Historiografia Contemporânea em perspectiva crítica [1 ed.]
 9788574603353

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Historiografia Contemporânea em perspectiva crítica Jurandir Malerba / Carlos Aguirre R. (Orgs.)

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EDUSC © 2007 ISBN 9788574603353

SUMÁRIO

PREFÁCIO Jurandir Malerba e Carlos António Aguirre Rojas CAPÍTULO 1 Tese sobre o itinerário da historiografia do século 20: uma visão numa perspectiva de longa duração Carlos António Aguirre Rojas CAPÍTULO 2 Novas tendências na historiografia russa e o problema da correlação entre micro e macro-história Lorina Repina CAPÍTULO 3 Historiografia alemã no século 20: encontros e desencontros Estevão Rezende Martins CAPÍTULO 4 Um certo número de idéias para uma história social ampla, geral e irrestrita Antônio Luigi Negro CAPÍTULO 5 Convite a outra micro-história: a micro-história italiana Carlos António Aguirre Rojas

Sumário

CAPÍTULO 6 Os historiadores espanhóis e a reflexão historiográfica (c. 1880-2000) Gonzalo Pasamar Alzuria CAPÍTULO 7 A renovação historiográfica francesa após a “guinada crítica” Helenice Rodrigues da Silva CAPÍTULO 8 Historiografia portuguesa contemporânea Francisco J. C. Falcon e Marcus Alexandre Motta CAPÍTULO 9 A historiografia latino-americana da questão nacional: nações inacabadas; inimigos da nação e a ontologia da nacionalidade Claúdia Wasserman CAPÍTULO 10 História e Nação: trajetória da historiografia cubana no século 20 Oscar Zanetti Lecuona CAPÍTULO 11 Os fundadores da historiografia marxista na América Latina Sergio Guerra Villaboy CAPÍTULO 12 História, memória, historiografia: algumas considerações sobre história normativa e cognitiva no Brasil Jurandir Malerba

PREFÁCIO

Qualquer proposta de abordagem de tema tão vasto e complexo como a história da historiografia do século 20, tomada de uma perspectiva global e abertamente crítica, implica uma série de desafios e estabelece inevitáveis limites. Uma chave para sua boa execução será o enfoque que Braudel chamou de “longa duração”. A empresa de se distinguir e entender quais teriam sido os itinerários essenciais da trajetória dos estudos históricos durante o século 20 exigirá mirálo com grande abertura de visão. Seria imperioso colocar-se em discussão, em primeiro lugar, o que representou essa historiografia em relação a toda trajetória anterior dos estudos históricos, toda a herança que a precedeu, e de que ela é herdeira, em toda sua diversidade. De um ponto de vista estritamente epistemológico, os modos como entendemos a História são muito diversos de como Heródoto, Tucídedes, Santo Agostinho ou Vico, por exemplo, a compreendiam. Tanto no que se refere ao estatuto da disciplina dentro do conjunto das Ciências Humanas, assim como a seus modelos globais de explicação, teorias, conceitos, métodos, passando até pelas técnicas de pesquisa que emprega, a História transformara-se de maneira radical nos últimos cem anos. O percurso da historiografia no último século explicará seu papel particular dentro da história global do conhecimento histórico, desde que este termo fora cunhado pelos gregos até o cenário historiográfico atual. É preciso destacar que a história da historiografia do século 20 não coincide com o mesmo século cronológico, mas se identifica com os processos históricos específicos que delineiam sua própria temporalidade. Neste caso particular, falamos de uma temporalidade iniciada por volta de 1848, com o

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surgimento do projeto crítico do marxismo original e seus efeitos profundos no universo dos estudos históricos que a ele se seguiram, e que ainda não encontrou seu termo derradeiro. Essa temporalidade encontra-se em plena marcha em virtude de que o conjunto de suas linhas de força e processos inerentes, deflagrados com o aparecimento do marxismo no contexto do ápice da modernidade industrial do século 19, ainda não se esgotaram completamente, encontram-se ativos mesmo nos dias de hoje. No decorrer desse “longo século 20”, surgiram estruturas e perfis mais importantes que demarcam o cenário historiográfico mundial atual. Esse é mais um motivo para buscarmos compreender a paisagem historiográfica atual com base na observação de sua trajetória no último século. Com isso, nosso projeto poderia incluir-se dentro de um segmento importante dos estudos históricos atuais, que é o da história da historiografia. Embora há muitas décadas explorado por toda parte, trata-se de território cultivado de modos desiguais e que têm levado a resultados também diversificados em profundidade e qualidade. Se na Itália e Alemanha, por exemplo, os estudos no campo da história da historiografia contam com uma longa tradição de reflexões teórico-metodológicas e estudos concretos, há outros países em que, embora presentes, explorações naquele campo são totalmente marginais, praticados à risca do entusiasmo do pesquisador, mas sem conhecimento de toda uma longa tradição anterior. Há mesmo países em que praticamente – e talvez deliberadamente – ignora-se a existência desse campo, ao lado de outros em que se produziram trabalhos mais propriamente quantitativos, descritivos e monográficos da história da historiografia, principalmente a mais atual. Não é raro encontrar tanto no México, na Espanha, mesmo na França e no Brasil, trabalhos que pretendem inserir-se nessa tradição da história da historiografia, mas que acabam sendo meras enumerações descritivas de autores, obras, ou supostas correntes, grupos ou tendências historiográficas, que se limitam a reproduzir dados biográficos de um autor, datas de edição de um livro ou ensaio seminal, uma suposta lista de “representantes” desta ou daquela corrente historiográfica. Falta muitas vezes, a tais trabalhos descritivos, aprofundar a análise sobre os vários contextos, sociais, culturais, políticos e econômicos que marcam a produção do autor, obra ou vertente em foco. Isso quer dizer que, mesmo dentro do ramo específico da história da historiografia, impera ainda um certo “positivismo” na abordagem, que, ao evitar interpretar seu objeto, opta a elaborar inventários e descrições que, além de efetivamente pouco agregarem à reflexão teórica forte e à própria his-

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tória da historiografia, não raro culminam na banalização dos diferentes autores e suas obras, reduzindo-os a etiquetas desgastadas e pouco explicativas, e em classificações simplistas e esquemáticas dos diversos e complexos itinerários historiográficos. Nossa concepção de história da historiografia vale-se de uma longa tradição que poderíamos remontar ao filósofo e historiador italiano Benedetto Croce, que a define simplesmente como “a análise crítica da evolução do pensamento histórico”, ou seja, o estudo compreensivo – e comparativo – das transformações que experimentam conceitos, teorias, métodos, perspectivas e os produtos resultantes do ofício dos historiadores. Embora parcial, tal definição é correta e nela agora podemos acrescentar que a investigação das mudanças e permanências que se verificam no pensamento e na obra dos historiadores deve ser apoiada em estudo que insira tais obras e autores nos sucessivos contextos historiográficos, intelectuais, sociais, políticos, enfim, nos diversos contextos históricos a que pertencem. Somente assim poderá estabelecer-se com precisão periodizações referenciais da curva da historiografia em foco, e também uma classificação categórica das diversas tendências, “escolas” ou correntes historiográficas, junto àqueles autores igualmente originais e inclassificáveis, não rotuláveis, que encontramos na história da historiografia. Esta deverá ser capaz de reconstruir criticamente os principais pontos de convergência, filiações, influências, empréstimos e redes de circulação que caracterizam as dinâmicas da historiografia em geral. Uma história crítica da historiografia deverá ainda buscar resgatar as filiações intelectuais dos diversos autores dentro de uma determinada tendência ou corrente, as matrizes intelectuais das diferentes obras, bem como os processos de intercâmbio, “aclimatação” e transferência cultural de perspectivas e horizontes que impactam nas diversas práticas historiográficas ao longo do tempo. Além de ser capaz de situar, de maneira criativa e sistemática, obras, autores e correntes ou tendências historiográficas dentro dos múltiplos e complexos contextos em que acontecem, uma história crítica da historiografia deve procurar igualmente estabelecer com cuidado e precisão os vínculos sutis de mediação que conectam aqueles vários elementos. Deve também estar apta a identificar aqueles autores, digamos, pouco suscetíveis de se incluir sob rótulos ou classificações; autores, como Michel Foucault ou Norbert Elias, por exemplo, que, por serem depositários de uma multiplicidade imensa de influências e contribuições culturais específicas, acabam sendo esquivos ao enquadramento dentro de qualquer “escola” ou corrente de pensamento histo-

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riográfico de sua época. Tais autores, que são poucos, é certo, afastando-se dos paradigmas dominantes do momento em que escrevem, acabam tornando-se eles mesmos fundadores de novos sistemas de pensamento, que ocasionalmente espraiam-se por outros grupos sociais. O presente conjunto de ensaios aqui reunidos tem limites muito claros. Seria simplesmente impossível pretender mapear o cenário historiográfico contemporâneo numa pequena coletânea como esta. O ensaio introdutório de Carlos Aguirre Rojas procura fornecer alguns parâmetros para se tomar, numa perspectiva global, o percurso histórico das matrizes historiográficas mais influentes no século 20. Basicamente, foram dois os critérios maiores de inclusão para a composição do presente conjunto. Por um lado, considerando-se o público a que se destina esta obra, relevamos a ascendência e influência de algumas matrizes historiográficas vis-à-vis à historiografia brasileira. Assim, sem se preocuparem com apresentar o inventário completo de autores e obras, mas uma reflexão de fundo sobre as historiografias que analisam, Estevão Martins, Gonzalo Pasamar, Francisco Falcon e Marcus Motta oferecem profundas análises críticas das historiografias alemã, espanhola e portuguesa, respectivamente. Apesar de muito influentes no Brasil, por aqui não circulam balanços, sinopses ou roteiros historiográficos para os neófitos nesse campo – o que tornam esses artigos absolutamente fundamentais para os acadêmicos brasileiros. Duas importantes matrizes, a francesa (particularmente ligada ao movimento dos Annales) e a inglesa (nomeadamente o chamado marxismo britânico) são muito mais divulgadas e debatidas no Brasil. Motivo por que seria inócuo repetir em artigo o tema de importantes livros, como o de José Carlos Reis, sobre os Annales, por exemplo. Por isso, o ensaio de Helenice Rodrigues da Silva focaliza a trajetória da Escola (sobre o que há inúmeras e excelentes obras, inclusive traduzidas) no momento posterior ao chamado tournant critique, de 1989, atualizando para o público brasileiro o debate em torno da prestigiosa corrente francesa. Antonio Luigi Negro oferece um belo ensaio sobre como se deu a “aclimatação” dos ensinamentos dos historiadores sociais britânicos, nomeadamente E. P. Thompson, na América Latina como um todo, e particularmente no Brasil. Longe de mero decalque teórico, pastiche intelectual, a apropriação do referencial marxista britânico fora sistematicamente pensada e aplicada no estudo de realidade absolutamente distinta da que se aplica à matriz original. Os micro-historiadores italianos estão presentes em dois ensaios aqui incluídos. Carlos Aguirre Rojas oferece um diagnóstico conceitual e uma breve

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história da difusão dessa escola, enquanto Lorina Repina insere-a no contexto da recente historiografia russa. O texto de Repina é inspirador não apenas pela análise inteligente que oferece do problema da correlação entre macro e micro na recente historiografia russa, mas simplesmente por oferecer ao público brasileiro algum contato com esta riquíssima historiografia, que infelizmente desconhecemos, salvas raríssimas exceções. E por mais que isso venha se amenizando sensivelmente nos últimos anos, os historiadores brasileiros ainda têm um diálogo muito curto com os colegas latino-americanos. Conhecemos muito mais as matrizes européias e mesmo americanas do que o que estão produzindo nossos vizinhos hispânicos. Prova disso é a classificação da História da América Latina como “área carente” para as agências de fomento. Desconhecemos a História da América Latina, como desconhecemos sua historiografia. E, infelizmente, o inverso também é verdadeiro. Poucos historiadores brasileiros são exceções à regra, como a Professora Cláudia Wasserman, que oferece minuciosa análise historiográfica da questão nacional na América Latina. O mesmo tema é tratado pelo Professor Zanetti Lecuona, com foco na historiografia cubana, especificamente. Seu colega Guerra Vilaboy oferece um verdadeiro programa de pesquisa para a história da historiografia marxista, tão profundamente marcante na América Latina de fala espanhola, como no Brasil. Por fim, o ensaio de Jurandir Malerba, partindo de duas breves reflexões sobre a memória historiográfica brasileira, procura pensar os fundamentos cognitivos e normativos da escrita histórica e, ao mesmo tempo, relativizar dicotomizações rigorosas entre essas atitudes gnosiológicas. Procura também sugerir alguns problemas culturais de fundo que enfrentará para buscar se inserir a historiografia brasileira num contexto mais amplo. Seria imponderável justificar todas as ausências deste livro. A historiografia americana seria o exemplo paradigmático e mais flagrante. Mas aqui perdemos por excesso. O universo de análise é tão gigantesco que escapa a uma única abordagem, mesmo a mais ensaística – e nem mesmo todo um livro não será suficiente para se mapear sequer os estudos historiográficos dos brazilianists. Ao se pensar o volume de material produzido e a qualidade da historiografia brasileira, sua história é praticamente um campo virgem no Brasil. Acreditamos que sua exploração será tanto mais fértil se feita, desde já, em permanente sintonia com as mais dinâmicas historiografias praticadas no planeta – e particularmente na América Latina –, com o conhecimento das

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melhores tradições de pesquisa em história da historiografia e, desde já, de maneira sempre crítica e construtiva. Com tal objetivo, oferecemos este primeiro esforço coletivo. Jurandir Malerba e Carlos Aguirre Rojas

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Capítulo 1

TESE

SOBRE O ITINERÁRIO DA

HISTORIOGRAFIA DO SÉCULO

20: UMA

VISÃO NUMA PERSPECTIVA DE LONGA DURAÇÃO Carlos Antonio Aguirre Rojas*

Tentar explicar o enorme problema dos perfis assumidos pela história da historiografia do século 20 numa perspectiva de longa duração implica atender, como propôs Braudel,1 às grandes curvas evolutivas, às grandes linhas que formam o conjunto dos progressos que os estudos históricos foram realizando ao longo deste século. Implica também a necessidade de concentrar a atenção, sobretudo nas grandes transformações, nas modificações verdadeiramente profundas que foram redefinindo de maneira radical a atividade historiográfica nesse período do século 20. Para nos introduzirmos nesse problema, é pertinente indagarmos o que aconteceu com a historiografia mundial nos últimos 150 anos. E, se falamos de um período de 150 anos e não de 100, é porque admitimos como válida a perspectiva da historiografia francesa, segundo a qual os séculos históricos nunca coincidem com os simples séculos cronológicos.2 Assim, a historiografia atual não começou, a nosso ver, a definir os seus perfis nem em 1968, nem em 1945, nem tampouco em 1900. Começou a definir os seus perfis fundamentais justamente naquela conjuntura crítica privilegiada da história européia, que é a conjuntura de 1848 a 1870. E não se trata, como é evidente, de datas inócuas: 1848 é a época das grandes revoluções européias, enquanto 1870 é a data fundamental da experiência da Comuna de Paris. Se nos perguntarmos seriamente, então, quando começou a se construir o que hoje constitui a historiografia contemporânea, a resposta mais pertinente seria: a partir de 1848. Porque é a

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partir dessa data que os elementos que hoje vigoram na paisagem historiográfica começaram a se definir.3 Então, observando com mais minudência a historiografia destes últimos 150 anos, de 1848 até agora, poderíamos reconhecer quatro grandes momentos, quatro grandes etapas que parecem definir esses elementos que são essenciais nos estudos históricos contemporâneos. Quatro etapas distintas que a historiografia contemporânea teria percorrido ao longo do seu complexo périplo recente e que nos dariam, vistas no seu conjunto, a totalidade das “heranças” ou das tradições e formas de exercer o ofício de historiador, que hoje é possível encontrar nos diferentes âmbitos das historiografias nacionais de todo o planeta. Desse modo, e percorrendo com “botas de sete léguas” esse itinerário da historiografia contemporânea, fica claro que tal percurso principiou com uma conjuntura ou um momento de ruptura fundacional, a conjuntura que vai de 1848 a 1870 e que, sendo uma etapa também muito importante da própria história geral da Europa, deu nascimento ao primeiro esboço ou tentativa sistemática e orgânica de fundar, por meio do projeto crítico do marxismo original, uma verdadeira ciência da história. Uma primeira etapa é o ciclo da historiografia contemporânea, que será seguido por um segundo momento, o qual, abarcando desde 1870 até 1929, aproximadamente, foi o momento da constituição de uma primeira hegemonia historiográfica que, situando seu centro de irradiação fundamental no espaço de fala alemã da Europa ocidental, vai servir de “modelo” geral para o conjunto das demais historiografias da Europa e do mundo daquele tempo. Todavia, esse segundo momento da historiografia recente vai terminar com a crise terrível desencadeada na cultura alemã pela trágica ascensão do nazismo, dando lugar a uma terceira etapa, que se caracterizará pela emergência de uma segunda hegemonia historiográfica, situada agora, em termos gerais, no espaço do hexágono francês. Uma terceira hegemonia ou modelo geral que serviu de inspiração e de referência obrigatória para todos os âmbitos historiográficos daquela época e que culminou, por sua vez, nessa profunda revolução cultural, de alcance planetário e de conseqüências civilizatórias maiores, que foi a revolução de 1968. Finalmente, e coroando todo esse complexo percurso dos estudos históricos contemporâneos, seguiu-se uma quarta e última etapa, filha direta das grandes e profundas transformações que 1968 trouxe em todos os mecanismos da reprodução cultural da vida social moderna e na qual já não existe nenhuma hegemonia historiográfica, mas, sim, pelo contrário, uma nova e inédita situa-

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ção de policentrismo na inovação e no descobrimento das novas linhas de progresso da historiografia e que se prolonga até os nossos dias. Tentemos, pois, examinar, mas com o devido cuidado, esses quatro momentos fundamentais do itinerário contemporâneo da historiografia recente.4 Se definirmos muito brevemente os traços que caracterizam essas quatro etapas principais, veremos que se trata ao mesmo tempo da definição daqueles elementos fundamentais que permitem entender os diferentes tipos de história que hoje compartilham o panorama historiográfico, os diferentes tipos de história que atualmente se desenvolvem não apenas na Alemanha ou na França, mas também, e claramente, em toda a Europa e no mundo inteiro (e portanto, também, evidentemente, na América Latina e no México). Diferentes modos de exercer o cada vez mais complexo, embora também cada vez mais apaixonante, ofício de historiador, que em suas confrontações diversas, mas também em suas complexas imbricações ou espaços de coincidência, disputam entre si de maneira permanente as preferências de todos os que nos dedicamos à difícil empresa presidida pela musa Clio. O ponto de partida da historiografia que genuinamente podemos chamar de contemporânea situa-se então nessa conjuntura de 1848 a 1870, que é a conjuntura do nascimento e da primeira afirmação do marxismo. O marxismo nasce entre 1848 e 1870 e se define, como disse certa feita um importante marxista francês da época do auge do estruturalismo, como o momento do nascimento do continente “História” dentro do espectro das Ciências Humanas, como o início do moderno projeto de fundação e abertura de uma verdadeira ciência da História.5 O que significa, no tocante ao problema aqui abordado – o das origens dos perfis atuais dos estudos históricos do século 20 –, que o projeto crítico de Marx e Engels é, na verdade, o momento em que a história dessa longa etapa em que havia vivido durante séculos e até milênios, e na qual se confundia, sem demasiado conflito, com o mito, a lenda e o mundo da ficção e da literatura, passa, enfim, ao empenho de tentar constituir-se em verdadeira “empresa raciocinada de análise”,6 numa verdadeira ciência cujo objeto de estudo é a reconstrução crítica das diferentes curvas evolutivas percorridas pelas sociedades humanas dentro do vastíssimo arco temporal em que elas se desdobraram. Momento de fundação de uma nova ciência, ou de abertura de um novo espaço dentro do sistema dos saberes científicos contemporâneos, que inaugura ao mesmo tempo essa história particular daquela, esse segundo momento da historiografia recente que é hoje a historiografia contemporânea.7

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E não há dúvida de que, sem o exame do marxismo, dificilmente poderíamos compreender o que são os estudos históricos do século 20 e da atualidade. Porque, apesar das desencantadas visões pós-modernas, e sem embargo da enorme, e em certas ocasiões maciça, reviravolta da sensibilidade da opinião pública, e ainda da reviravolta da sensibilidade de amplos setores da intelectualidade outrora crítica, em todo o mundo a reviravolta das posições de esquerda que tiveram tanta força e arraigamento nos anos de 1960 e 1970 para as posições mais conservadoras e de renúncia características dos anos 1980 e 1990, fica claro que é impossível entender os estudos históricos atuais se não levarmos em conta a influência e os ecos que tiveram o marxismo em todo desenvolvimento da historiografia de 1848 até esta data.8 O que se torna evidente se pensarmos, por exemplo, em todas as correntes historiográficas declaradamente marxistas que são hoje fundamentais nos estudos históricos, como a corrente da revista Past and Present, de Eric Hobsbawm e todo o seu grupo de marxistas tradicionais, ou também na obra de E. P. Thompson e de Perry Anderson e nas contribuições de sua revista New Left Review, o mesmo sucedendo na historiografia socialista e crítica de Raphael Samuel e do seu History Workshop. E o mesmo se dá com autores como Pierre Vilar ou Immanuel Wallerstein, que são declaradamente marxistas embora ao mesmo tempo sejam capazes de incorporar, em suas diferentes contribuições históricas e historiográficas, as mais interessantes contribuições e desenvolvimentos de outras perspectivas ou horizontes intelectuais. E há também o caso complexo, mas muito interessante, de alguns historiadores que, na origem de sua formação, tiveram uma forte marca marxista que depois pôde evoluir e se misturar com outros elementos para produzir obras e resultados historiográficos tão originais e interessantes, como se vê nas obras e nos ensaios metodológicos de Carlo Ginzburg ou nos trabalhos inovadores de Giovanni Levi.9 E o mesmo sucede com toda essa vasta gama de histórias e correntes historiográficas que algumas vezes pretenderam desenvolver-se sob o nome do marxismo, como ocorreu com a historiografia soviética, ou polaca, ou húngara, ou romena, mas também com a chinesa, albanesa, vietnamita; vale dizer, todo esse conjunto diverso e multifacetado das diferentes historiografias de todos os países do chamado mundo “socialista” e ao longo de todo o breve ou pequeno século 20 que vai de 1914-1917 a 1989. E há que considerar, enfim, também dentro deste vasto espectro de heranças e presenças do marxismo na historiografia contemporânea, os resultados produzidos pelo enorme impacto que a cosmovisão marxista teve na historiografia do México e da América

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Latina nos anos 1970 e 1980 e que vem somar-se a todos os diferentes núcleos que, através do mundo capitalista e durante todos os períodos que mencionamos anteriormente, manteve os diferentes projetos e esforços historiográficos igualmente iluminados pela perspectiva de Marx e de seus diversos epígonos. Porque, embora depois de 1989 esse impacto parecesse estar um pouco mais distante, estamos falando na verdade de uma aparência superficial e derivada da mera experiência imediata, que além do mais se vê desmentida se remontarmos tão-somente a um período de dez ou quinze anos. O marxismo impregnou então, de maneira igualmente profunda e radical, toda a historiografia latino-americana posterior a 1968, e é por isso que, sem uma consideração desse comportamento marxista e das múltiplas tradições e escolas que ele ajudou a criar, e que derivam todas desse momento fundacional do moderno projeto de construção de uma ciência na História, não é possível entender adequadamente a fisionomia complexa do panorama historiográfico mais contemporâneo.10 Quanto ao mais, é claro que a data dessa arrancada do moderno projeto de constituição de uma ciência histórica – e, por conseguinte, dos perfis da historiografia hoje vigentes, data associada às revoluções européias de 1848 e ao nascimento do marxismo – não tem nada de casual. Porque 1848 é o ponto histórico que mudou o sentido da curva global e secular da modernidade, o momento em que se esgota a longa fase ascendente dessa modernidade, iniciada no século 16, para dar lugar ao ramo descendente dessa mesma modernidade, que se estende desde essa conjuntura de 1848-1870 até hoje. O que significa então que toda a historiografia contemporânea se desenvolveu, nos seus diversos momentos, dentro do horizonte desse ramo descendente da modernidade e, em conseqüência, dentro de um espaço marcado pela possibilidade de avançar num sentido crítico, numa direção oposta à concepção tradicional que prevaleceu durante a fase ascendente dessa modernidade burguesa e capitalista.11 E é precisamente essa reviravolta fundamental do longo ciclo vital da modernidade – que alcança o seu clímax nessa conjuntura de 1848-1870 – que vai explicar duplamente tanto esse processo complexo do nascimento do marxismo – a expressão negativo-crítica dessa mesma modernidade – como também o projeto de superação crítica das antigas formas de conceber a História e a edificação inicial e simultânea desse projeto, vigente ainda hoje e ainda em via de construção, de uma verdadeira perspectiva científica para os estudos históricos. É nesse exato sentido que se deve entender a crítica sistemática das principais variantes do antigo modo de abordagem da história; vale dizer,

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tanto de toda possível filosofia da história, crítica que encontrou seu primeiro expoente sistemático, e não casualmente, no próprio marxismo, como de todos os discursos históricos antes amplamente difundidos, já como discursos narrativos e empíricos, já como discursos míticos ou lendários sobre a História, igualmente desconstruídos e transcendidos por esse mesmo marxismo. Desse ponto de vista, o marxismo lança as bases de todos os ulteriores projetos modernos de construção de uma ciência da História. E, da mesma sorte que o marxismo em geral – como cosmovisão do mundo e como doutrina que iluminou diversos movimentos políticos e sociais, mas também diferentes correntes e tendências intelectuais em todo o vasto campo das ciências sociais – sofreu um complexo processo de pluralização e readaptação às mais heterogêneas e diferentes experiências e circunstâncias – que vão desde a sua conversão em ideologia dominante e sua redução a um conjunto de apotegmas simplificados até a sua verdadeira recuperação crítica e o seu aprofundamento criativo e inovador –, também as historiografias que se reivindicaram como “marxistas” ao longo desse périplo da historiografia do século 20 cobriram igualmente um variado e diversificado leque de possibilidades que vão desde exercícios muito sofisticados e intelectualmente muito elaborados (como, por exemplo, no caso da Escola de Frankfurt) ou esforços de excelente nível que alimentam sempre as linhas e as perspectivas críticas e marginais da historiografia (como nos trabalhos já mencionados de Carlo Ginzburg ou de Immanuel Wallerstein) até as aplicações muito elementares de um marxismo mais simplificado e até “vulgar” que, reduzindo a complexa visão do marxismo a um conjunto de fórmulas de “manual”, reproduziram trabalhos muito esquemáticos e pouco originais. Passemos agora ao segundo momento, a esse momento que se constitui depois de 1870 em torno da progressiva afirmação de uma primeira hegemonia historiográfica, a hegemonia do universo de fala alemã. Hegemonia que, coagulando numa proposta historiográfica coerente todos os progressos que os estudos históricos haviam realizado entre a Revolução Francesa de 1789 e essa conjuntura de 1848-1870, vai representar, em certa medida, uma espécie de regressão com respeito ao momento fundador explicado anteriormente. Com a derrota da Comuna de Paris, fecha-se essa conjuntura revolucionária que dera nascimento ao marxismo, iniciando-se na história européia uma nova etapa que ficará marcada pela exacerbação dos nacionalismos e pela emergência de uma certa “contra-ofensiva” intelectual contra os movimentos críticos e as posturas intelectuais de impugnação. E, em consonância com isso,

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a nova hegemonia historiográfica que se vai constituir dentro do espaço da cultura alemã alimentará uma visão dos fatos históricos que pretende ser exageradamente “objetivista”, ao mesmo tempo em que se volta para funções de educação cívica e nacionalista e se esquece um pouco das contribuições principais da conjuntura anterior.13 E isso, junto ao fato de que o marxismo, durante essas épocas, jamais penetrou na academia nem nos âmbitos universitários, permanecendo antes vinculado aos movimentos sociais e políticos revolucionários da Europa daqueles tempos. Então, e nesse clima intelectual de signo inverso ao da conjuntura anterior de 1848-1870, é que vai prosperar esse segundo ciclo da historiografia contemporânea, marcado agora pela emergência de um sistema em que uma nação ou um espaço ou área intelectual funciona como centro principal da inovação historiográfica e as demais historiografias o imitam ou o seguem mais de perto ou mais de longe para constituírem-se como diferentes periferias ou semiperiferias desse mesmo centro. Visto numa perspectiva mais ampla, torna-se claro que, entre 1870 e 1930 aproximadamente, foi quase sempre o mundo de fala alemã que desempenhou esse papel de domínio hegemônico na historiografia européia e mundial. Pois quem gera as pesquisas, os temas, os debates e a historiografia de vanguarda em 1880, 1900 e 1920 é, sem dúvida, nove em cada dez vezes, a cultura alemã ou austríaca dessas datas. Os autores mais importantes da historiografia mundial, às vésperas da 1ª. Guerra Mundial e logo depois dela, são novamente, em sua esmagadora maioria, alemães ou austríacos. Por isso é perfeitamente lógico que seja no interior dessa historiografia de fala alemã, que vai deter a hegemonia ou o domínio historiográfico nos estudos históricos entre 1870 e 1930, que se vai desenvolver a célebre polêmica em torno da Methodenstreit e em que se vai encenar igualmente toda a discussão acerca das diferenças entre as ciências naturais e as ciências do espírito. E é também esse universo cultural de matriz alemã que vai prosperar o projeto da Kulturgeschichte e de outras diversas linhas da então inovadora história social alemã e austríaca,14 mas também esse tipo de historiografia dominante em certos âmbitos que chega aos nossos dias e que foi qualificado com o termo “positivista”. E, conquanto fique claro que o termo historiografia positivista não seja o mais adequado, dado o abuso que dele se fez e dada a muito diversa quantidade de significações heterogêneas que se fizeram passar sob a sua enunciação, é certo, não obstante, que o termo historiografia positivista tem um sentido importante que devemos conservar porque alude àquele tipo de histo-

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riografia originalmente alemã que foi dominante primeiro nas universidades de fala alemã para depois se converter rapidamente, através do esquema já descrito da primeira hegemonia historiográfica, no modelo amplamente difundido e também vigente, de maneira dominante, em todas as universidades do mundo europeu e ocidental. Visto que, como dissemos mais anteriormente, essa historiografia dominante que bem podemos chamar de rankiana ou positivista – reconhecendo embora que o próprio Ranke, que formulou o seu lema de batalha “narrar as coisas tais quais aconteceram”, não se ajusta por inteiro em sua obra ao que essa denominação implica – e que se desenvolve, em essência, entre 1870 e 1929, era de algum modo o resultado condensado de certos processos importantes que aconteceram na historiografia européia entre 1789 e 1870. Pois é bem sabido que foi em 1789 que a Revolução Francesa democratizou pela primeira vez, de maneira surpreendente, o acesso a uma quantidade de informação verdadeiramente enorme, que a partir dessa data vai constituir parte regular da matéria-prima básica da historiografia contemporânea. Se antes de 1789 os arquivos de todos os Estados europeus são segredos de Estado, depois dessa mesma data os historiadores têm à sua disposição absolutamente tudo o que se relaciona com esses Estados e também com os departamentos, e até com as paróquias. A revolução de 1789, entre muitas e benéficas conseqüências, implicou também a abertura imensa de uma torrente verdadeiramente considerável de nova informação, agora acessível aos historiadores, e sobretudo ao trabalho dos historiadores, fato que explica porque foi precisamente no século 19 que se desenvolveu, nesse mundo de fala alemã a que antes nos referimos, o interessante projeto dos Monumentae Germaniae Historicae, ao mesmo tempo em que na França prosperava um projeto como o da empresa historiográfica de Augustin Thierry, que dedicou a vida inteira a compilar os documentos e a fazer a história do Terceiro Estado. A historiografia positivista, que se vai caracterizar, entre outros traços importantes, por um culto fetichista e exagerado do texto,15 que ela considera como a única e exclusiva fonte legítima do trabalho histórico, condensa efetivamente todo um século de compilação de documentos, um século de classificação e atualização da informação que antes não era acessível aos historiadores. E é claro que essa historiografia positivista, que condensa ao mesmo tempo os grandes progressos alcançados pela erudição histórica nesse século 19 posterior à Revolução Francesa, mas que retrocede com respeito à enorme revolução que implicara o marxismo no campo da história, vai possuir certas

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virtudes importantes, vinculadas ao fato de insistir na importância de aprender o trabalho paciente da busca de fontes e a distinção entre fonte histórica e fonte literária, ensinando-nos também os procedimentos habituais da crítica externa e da crítica interna dos documentos e dos textos, e mostrando-nos como distinguir um documento verdadeiro de um falso. Adestrando-nos, em suma, em tudo o que se relaciona com a dimensão erudita da história, essa história positivista rankiana alimentou também, por vezes em excesso e com uma força e tenacidade surpreendentes, o conjunto dos âmbitos historiográficos e das historiografias nacionais das mais diversas partes do mundo.16 Mas, como já sublinhamos antes, o limite dessa historiografia positivista da História, que foi dominante em termos gerais no período de 1870-1930, estriba-se no fato de ser uma historiografia baseada num único tipo de fonte. E também no fato de que, no fundo, ela é mais uma expressão resumida dos principais progressos que a história logrou conquistar durante esse século 19 que foi chamado “o século da História” e, em conseqüência, que é mais um tipo de historiografia estritamente oitocentista, que no entanto sobreviveu a si mesma para se integrar como um componente ainda presente na historiografia do século 20. E, assim como o marxismo, desenvolvido no século 19 cronológico, é na verdade uma antecipação clara de muitos dos traços mais profundos dessa historiografia do século 20, assim a história positivista vai funcionar como uma espécie de “anacronismo” ainda vivo ao longo de toda essa última centúria de vida dos estudos históricos contemporâneos. O que explica também porque essa história positivista, em sua árdua busca de uma objetividade muito estrita e só aparentemente possível diante dos fatos históricos, haja desembocado finalmente numa clara renúncia a toda a dimensão interpretativa e explicativa da ciência histórica, dimensão que, por outro lado, havia sido sublinhada como central pelo projeto marxista da conjuntura anterior, já analisada, para se converter depois em um dos traços mais característicos de todas as diversas correntes historiográficas do último século. E foram essas, entre muitas outras, as limitações que já na mesma etapa de 1870-1930 suscitaram as críticas mais radicais a essa versão positivista da história, tanto no próprio universo de fala alemã como fora dele. Pois é bem conhecida, por exemplo, a dura crítica que Lucien Febvre, e com ele todo o grupo dos “primeiros Annales”, vão dirigir a essa célebre afirmação que é possível encontrar no tão difundido manual francês de Ch. Langlois e C. Seignobos, publicado em 1898 e intitulado Introdução aos Estudos Históricos, manual que é, quanto ao mais, apenas a variante francesa dessa mesma historiografia positivista rankiana:

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“A história se faz com textos, e um historiador sério jamais se atreveria a afirmar algo que não possa respaldar com um documento escrito”. E essa sentença foi tomada tão seriamente que se encontra na origem de uma distinção hoje claramente obsoleta, mas que continua vigente e é aplicada em nossas concepções habituais e nos ensinos históricos: a distinção tradicional entre a História e a pré-História. Pois é bem sabido que o fato que distingue a História da préHistória, e que marca o início da primeira, é justamente a invenção da escrita. Então, e seguindo essa mesma lógica, nenhum historiador sério iria estudar essas sociedades em que não existia a escrita porque não haviam textos escritos e, portanto, não seria possível reconstruir solidamente a sua história. E os autores admitem tão radicalmente o valor dessa afirmação que propõem seriamente a questão de saber o que vai acontecer quando os historiadores tiverem esgotado e interpretado todos os documentos escritos que têm à mão, para responder enfaticamente e sem titubear que então se acabará o ofício de historiador, embora busquem tranqüilizar imediatamente os historiadores, afirmando que, felizmente, ainda têm pela frente uns cem anos de trabalho paciente e meticuloso. Essa historiografia positivista é então a história que, baseando-se numa única fonte, também se vai concentrar, limitadamente, no estudo e no exame apenas de certas dimensões do tecido social, dos fatos biográficos, políticos, diplomáticos e militares. E também vai ser, como observamos antes, uma história com uma função muito memorística, muito nacionalista e até “chauvinista”, vinculando-se de perto aos interesses do Estado e às suas visões e aos objetivos daqueles tempos, de preparar “bons cidadãos” e reforçar neles a consciência nacional e até patriótica. E, finalmente, essa mesma história que dominou o ensino das universidades européias e do mundo nas últimas décadas do século 19 e no primeiro quartel do século 20 foi também uma história muito descritiva, muito narrativa, muito erudita e muito encerrada ou acantonada em suas próprias e limitadas visões dos problemas sociais e históricos.17 Isso, entretanto, não impede o fato de que, como já afirmamos, seria impossível entender a paisagem dos estudos históricos atuais sem levar igualmente em conta a contribuição dessa historiografia positivista. É claro que não pode haver história sem erudição, embora também seja evidente que a história nunca se reduz a uma condição apenas erudita e que, para chegar a ela, é necessário transcender a simples condição de “antiquário” ou amante e colecionador das “curiosidades do passado”, como no-lo assinalam os historiadores mais avançados desde o princípio do século 20.18

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E é evidente que, ao caracterizar essa história positivista, se aborda tãosomente a linha dominante dessa historiografia de fala alemã. Pois é igualmente bem conhecido o fato de que, entre 1870 e 1930, se desenvolveu também nesse mesmo universo de matriz cultural alemã todo um conjunto complexo e diverso de outras posturas historiográficas e de outras tradições intelectuais na história, como se observa na historiografia marxista de autores como Karl Kautsky, Heinrich Cunow, Otto Bauer, etc., ou em outra vertente, como no caso da historiografia acadêmica crítica de Max Weber, Alfred Weber ou Karl Lamprecht, entre outros. E esse é também o caso daqueles interessantes debates e agudas polêmicas sobre questões tão cruciais como a da “compreensão” da História (o tema da Verstehen), ou sobre a especificidade e o estatuto especial das “ciências da cultura” de W. Dilthey, G. Simmel, Rickert, etc. E, embora em todos esses casos se trate sempre de linhas marginais, face à tendência dominante, hegemônica, dessa variante positivista de matriz justamente hankiana, fica claro que não é possível compreender adequadamente essa mesma hegemonia de fala alemã sem considerar também as ricas e estimulantes contribuições historiográficas provenientes dessas linhas marginais e críticas do universo alemão e austríaco daquelas épocas.19 Assim, após afirmar essa hegemonia historiográfica na Europa e no Ocidente, é sabido que a Alemanha perdeu a guerra de 1914 para conhecer depois a maior tragédia de sua história, que foi justamente a ascensão do nazismo. Isso mostra, e não está muito longe de nós, o que as ditaduras são capazes de fazer com a cultura. Essa historiografia hegemônica do mundo de fala alemã terminou com os golpes sucessivos da 1ª. Guerra Mundial e, em seguida, com a ascensão do nazismo. Depois, com o fim da 2ª. Guerra Mundial, a cultura alemã sofreu um golpe de que não se recobrou de todo até a atualidade. Pois os alemães ainda não digerem por completo o que o nazismo foi dentro de sua história, e a historiografia alemã ainda não se recuperou daquele golpe terrível que foi o nazismo. Aliás, creio que essa hegemonia não estava ligada apenas à atividade historiográfica. Não me atreveria a postular, como hipótese, que esse domínio ou hegemonia se dá em todo o campo das ciências sociais: cumpre assinalar que, quando falamos dessa hegemonia na historiografia, estamos falando exatamente da época em que se desenvolve a psicanálise de Freud e da época do Círculo de Viena e da obra de L. Wittgenstein, e estamos falando também, evidentemente, da Escola de Frankfurt e de toda essa riqueza enorme da cultura alemã e austríaca que ainda hoje nos surpreende.

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Passemos à terceira etapa, que decorre diretamente da mencionada crise da segunda. Depois desses golpes sucessivos, vai-se constituir uma segunda e diferente hegemonia historiográfica européia e ocidental. E, se me perguntarem de novo quem domina a paisagem historiográfica em 1950, a resposta será que nove em cada dez vezes os autores mais inovadores e mais relevantes da historiografia desses tempos são agora historiadores de fala francesa. Pois é justamente o hexágono francês que agora se tornou hegemônico, mercê de um novo projeto dominante, que é o projeto conhecido como a corrente dos Annales. Porque são os Annales franceses que vão dominar a paisagem historiográfica entre 1929 e 1968,20 e isso a partir de um projeto que se constitui como contraponto perfeito da historiografia positivista dominante atrás referida. E não só porque os Annales vão criticar essa história rankiana direta e explicitamente, mas também porque, ante essa história concentrada somente no militar, no biográfico, no político e no diplomático, a nova perspectiva dos Annales propõe uma história do tecido social no seu conjunto. E, então, em vez de estudar apenas os grandes homens e as grandes batalhas e tratados que constituem os fatos “ressonantes” da História, os historiadores da corrente dos Annales vão começar a estudar as civilizações, as estruturas e as classes sociais, as crenças coletivas populares ou o moderno capitalismo numa nova perspectiva analítica e epistemológica. Porque, diante da história positivista, para a qual o objeto de estudo dos cultores de Clio é apenas o passado, e além disso o passado registrado em fontes escritas, os autores da corrente dos Annales vão reivindicar a célebre definição de que o objeto do historiador é “toda marca humana existente em qualquer tempo” e, portanto, de que a história é uma história global, cujas dimensões abarcam desde a mais distante pré-história até o presente mais atual, abrangendo também absolutamente todas as diferentes manifestações dos homens em toda a complexa gama de realidades geográficas, territoriais, étnicas, antropológicas, tecnológicas, econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas, artísticas, etc. Uma história, então, não pode limitar-se a uma única fonte para se construir, a fonte escrita, mas deve propor necessariamente uma multiplicidade de fontes, recuperando, por exemplo, a técnica da dendrocronologia e o uso da iconografia, a análise do pólen ou a técnica do Carbono 14, entre tantas outras. E, em face da história predominantemente narrativa, monográfica e descritiva, com que está a se confrontar, o projeto dos Annales d’Histoire Économique et Sociale vai propor uma história fundamentalmente interpretativa, problemática, comparativista e crítica. Ou seja, uma história que, jogando sistematicamente com os benefícios da aplicação do método comparativo, seja capaz

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de estabelecer de forma permanente tanto a singularidade e especificidade dos fenômenos que estuda como os seus elementos comuns e universais, entretecendo assim a dialética complexa do particular e do geral dentro das grandes curvas evolutivas dos processos humanos analisados. E também uma história que, empenhando-se conscientemente na construção de modelos gerais de explicação e na formulação de conceitos, teorias e hipóteses gerais, renuncie ao mesmo tempo à ingênua e impossível busca de uma objetividade “absoluta” do historiador. Em vez dessa empresa ilusória, os Annales vão explicitar o paradigma da história-problema, que, pelo contrário, afirma que toda investigação histórica séria começa justamente pela delimitação do “questionário” ou da pesquisa a empreender, que determina até certo ponto o próprio trabalho de erudição. Pois, como “só se encontra o que se busca”, e como “os textos falam segundo os interrogamos”, toda verdade histórica é relativa, e todo resultado historiográfico é sempre suscetível de aprofundamento, enriquecimento e até mesmo, ocasionalmente, de uma revisão total e radical.21 Assim, o relevo da hegemonia historiográfica de fala alemã, entre 1929 e 1968, foi constituído exatamente por esse projeto dos Annales d’Histoire Économique et Sociale, de Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel. Projeto que, enquanto estabelecia e difundia a historiografia francesa como a historiografia dominante na Europa e no Ocidente, abria os novos campos da história quantitativa, da história das mentalidades, da história da vida ou civilização material e das novas formas da história econômica e social. Então, desenvolvendo esses novos paradigmas da história comparada, global, problemática e de longa duração a que nos referimos brevemente, bem como seus modelos originais de interpretação da sociedade feudal, do século 16, das Reformas ou do capitalismo, essa historiografia de matriz francesa e mediterrânea pôde determinar, entre 1929 e 1968, as linhas principais da inovação historiográfica, assim como os grandes debates, temas, desenvolvimentos e campos principais dos historiadores da Europa e do mundo ocidental. E talvez não seja necessário insistir demasiado no fato evidente de que tampouco seria possível entender os perfis atuais dos estudos históricos contemporâneos sem considerar todo esse vasto conjunto de contribuições dos Annales, contribuições que hoje são moeda corrente de toda historiografia séria e à altura do nosso tempo.22 Enfim, a quarta etapa abrange o período que vai desde a revolução cultural de 1968 até a atualidade. Depois de 1968 voltaremos a fechar o capítulo da hegemonia historiográfica francesa para passar à situação que domina a

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paisagem historiográfica atual. O que acontece depois de 1968? O ano de 1968 é efetivamente uma fratura definitiva em todas as formas de reprodução cultural da vida moderna. Não é então um simples movimento estudantil, nem um movimento de diferença geracional. É, antes, uma revolução cultural e civilizatória das principais formas da reprodução cultural de toda a modernidade atual. Isso foi muito bem estudado por Braudel e, sobretudo, por Immanuel Wallerstein.23 Depois de 1968, passamos à outra situação: a página volta a virar e criase então outra situação historiográfica radicalmente diversa. E, se em 1950 a historiografia dominante é a historiografia francesa, qual é então a historiografia dominante em 1990? A resposta é tão original como, em princípio, desconcertante: a resposta a essa pergunta é nenhuma. Pois em 1990 já não há uma historiografia hegemônica, e aí é tão importante a “Escola” da micro-história italiana – com suas diferentes variantes de história cultural, de um lado, e história econômica e social, do outro – como a quarta geração dos Annales, o mesmo sucedendo com a historiografia socialista britânica, a antropologia histórica russa, a história regional latino-americana, a psico-história anglo-saxônica, etc. Depois de 1968, algo importante se rompeu e terminou esse regime de longa duração da hegemonia historiográfica de um espaço cultural ou de um espaço nacional, criando-se então a nova modalidade de funcionamento da historiografia a cujo desenvolvimento assistimos na situação atual. Ninguém é hegemônico na historiografia contemporânea, o que nos convoca a todos por igual a participar na inovação historiográfica. Porque hoje vivemos uma situação de policentrismo na inovação historiográfica. E de policentrismo na inovação cultural. Termino com duas idéias conclusivas que me parecem muito importantes. Quando dizemos que terminou o regime da hegemonia historiográfica, adentramos um problema muito mais profundo, que não estudamos o bastante e que faz referência ao fato de que, depois de 1968, terminou também quase todo tipo de centralidade na sociedade, e de maneira global. Pois antes de 1968 sabíamos bem que o sujeito social por excelência que devia operar a mudança revolucionária era a classe operária, mas depois de 1968 já não sabemos ao certo quem é esse sujeito social, ou se agora há vários sujeitos sociais, ou mesmo se essa mudança não será antes o resultado de processos novos e inéditos cujos protagonistas “centrais” sejam também diversos. Antes de 1968, a base da economia predominava no protesto dos movimentos sociais contestatórios, porém agora todos os níveis se politizaram e são fundamentais nos movimentos sociais de contestação anti-sistêmica. Antes de

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1968, sabíamos que havia economias dominantes no seio da economia ocidental e no seio das economias-mundo, mas depois do “68” não existe nada disso e estamos entrando numa situação policêntrica em todos os âmbitos. O importante, para terminar esta primeira conclusão, que deixo aberta, está talvez no fato de que a humanidade está talvez atravessando uma etapa de “bifurcação”24 e de que estamos então na ante-sala de uma mudança tão monumental que estaria provocando a formação de um novo padrão de funcionamento, evidentemente não só na historiografia nem tampouco em todo o espaço da cultura, mas no funcionamento social em sua globalidade, e isso é mais ou menos o que estou tentando expor. A segunda idéia conclusiva me permite vincular mais explicitamente a minha exposição ao tema, muito mais próximo de nós, da maneira como essas etapas da historiografia geral do século 20 se refletiram na historiografia latino-americana. Se analisarmos esta última em termos gerais, e para além das evidentes defasagens “nacionais” que os ritmos de seu desenvolvimento apresentam, veremos que ela assimilou e reproduziu essas linhas, correntes, autores e perspectivas da historiografia do século 20 que em cada etapa eram dominantes com um pequeno atraso temporal derivado obviamente dos tempos de tradução e publicação das obras principais dessas correntes e enfoques historiográficos, mas também do tempo de reprocessamento e assimilação críticas dessas mesmas contribuições.25 Ao mesmo tempo, e com um traço que chama prontamente a atenção, é evidente que a recuperação crítica e a implantação dessas contribuições externas nas diferentes historiografias da América Latina se deram sempre a partir de uma postura excepcionalmente cosmopolita que integrava facilmente e sem barreira alguma tanto as contribuições da historiografia alemã quanto as lições dos Annales, mas também os diversos ensinamentos dos múltiplos marxismos, da Europa e dos Estados Unidos, assim como os progressos decorrentes da micro-história italiana, da história socialista britânica ou da antropologia russa, entre muitos outros. Portanto, e assumindo radicalmente essa nova situação historiográfica criada no panorama dos estudos históricos mundiais depois da revolução cultural de 1968, esperamos que a historiografia latino-americana comece agora a produzir um conjunto de trabalhos que terão de constituir, no futuro próximo, a participação específica da América Latina no atual processo de renovação historiográfica mundial que, desde 1989, já está definindo os perfis do que

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haverá de ser o “ofício de historiador” no complexo mas apaixonante século e milênio que despontam no horizonte de todos nós.

NOTAS * Pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Nacional Autônoma

do México. 1 Sobre essa perspectiva da longa duração histórica, cf. Fernand Braudel, “Historia y Ciencias Sociales. La Larga Duración” no livro Escritos sobre Historia. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. Pode-se consultar também, de Carlos Antonio Aguirre Rojas, “La Larga Duración: In Illo Tempore et Nunc” no livro Braudel a Debate. México: JGH, 1997, e o livro Fernand Braudel y las Ciencias Humanas. Barcelona: Montesinos, 1996. cap. 2. 2 Para citar apenas dois exemplos dessa postura dos historiadores franceses: Fernand Braudel vai falar de um “longo século 16”, que iria de 1450 a 1650, em vários de seus textos – por exemplo, no ensaio “European Expansion and Capitalism. 1450-1650”, no livro Chapters on Western Civilization. New York: Columbia University Press, 1961 –, enquanto Emmanuel Le Roy Ladurie fala de um “longo século 13” no seu livro Montaillou, aldea occitana de 1294 a 1324. Madrid: Taurus, 1988. 3 Existem poucos estudos de conjunto da historiografia do século 20, malgrado a enorme relevância do tema. Por isso, este ensaio tem apenas o caráter de uma primeira abordagem do problema. Sobre essa historiografia, cf. IGGERS, Georg G. New Directions in European Historiography. Revised version. Hannover: Wesleyan University Press, 1984, e Historiography in the Twentieth Century. Hannover: Wesleyan University Press, 1997. 4 Trata-se evidentemente de uma esquematização muito geral, que atende apenas às principais linhas de evolução dessa historiografia dos últimos 150 anos, considerada no seu conjunto e de maneira global. 5 Sobre essa idéia, cf. ALTHUSSER, Louis. La revolución teórica de Marx. México: Siglo XXI, 1975. 6 Conforme a define Marc Bloch em seu belo livro Apologia para la historia o el oficio de historiador. México: Fondo de Cultura Económica: Instituto Nacional de Antropología e Historia, 1996. 7 Sobre a vigência do marxismo atualmente, e sobre a sua história durante o século 20, cf. WALLERSTEIN, Immanuel. El marxismo después de la caída del comunismo. La Jornada Semanal, México, n. 294, enero 1995, e ECHEVERRÍA, Bolívar. Las ilusiones de la modernidad. México: UNAM: El Equilibrista, 1995. 8 Sobre essa importância do marxismo para a história, cf. AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. El problema de la historia en la concepción de Marx y Engels. Revista Mexicana de Sociología, México, v. XLV, n. 4, 1983, e também, Economía, escasez y sesgo productivista. Boletim de Antropología Americana, México, n. 21, 1991. 9 A esse respeito, é interessante a tese de Jean-Paul Sartre, que define o marxismo como “o horizonte insuperável de nossa própria época” no seu ensaio Cuestiones de método”, incluído em sua Crítica de la razón dialéctica. Buenos Aires: Losada, 1970.

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10 Vale a pena insistir no fato de que várias das correntes historiográficas atuais mais importantes são ou declaradamente marxistas, como é o caso dos historiadores marxistas – por exemplo, a micro-história italiana, ou a história radical norte-americana. 11 Desenvolvemos mais amplamente essa idéia em Carlos Antonio Aguirre Rojas, “Convergencias y divergencias entre los Annales de 1929 a 1968 y el marxismo. Ensayo de balance global” no livro Los Annales y la historiografía francesa. México: Ed. Quinto Sol, 1996. 12 Sobre esses múltiplos marxismos do século 20, cf. WALLERSTEIN, Immanuel. Braudel, los Annales y la historiografía contemporánea. Historias, México, n. 3, 1983, e AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. Marxismo, liberalismo y expansión de la economía-mundo europea. Diário El Financiero, 15 y 29 de julio y 5 de agosto de 1991. (Série de três artigos.) 13 Uma síntese dos traços desse modelo alemão de historiografia pode ser visto em VÁZQUEZ GARCÍA, Francisco. Estudios de teoria y metodologia del saber histórico. Cádiz: Ed. Universidad de Cádiz, 1989. 14 Sobre esse ponto, cf. o artigo de OESTREICH, Gerhard. Le origini della storia sociale in Germania. Anali del Istituto Storico-tedesco di Trento, n. 1, 1977. 15 Como bem assinalou Lucien Febvre nos seus Combats pour l’histoire. Paris: Armand Colin, 1992. 16 O manual que vai condensar essas contribuições no horizonte francês será o livro de LANGLOIS, C. V.; SEIGNOBOS, C. Introducción a los Estudios Históricos. Buenos Aires: Ed. La Pleyade, 1972. Valeria a pena empreender uma investigação mais séria e sistemática sobre as razões da sobrevivência desse tipo de história, peculiar ao século 19, que é a história positivista, razões essas que se ligam em parte ao seu caráter inócuo e acrítico em face dos poderes dominantes. 17 Essa é a história oficial, “gloriosa” e autocelebratória que também será criticada, no momento próprio, por Michel Foucault, que a oporá à “contra-história” e à “contramemória” críticas derivadas do seu enfoque arqueológico-genealógico. Cf., por exemplo, o seu livro Genealogía del racismo. Madrid: Ediciones de La Piqueta, 1992. 18 Cf. PIRENNE, Henri. ¿Que és lo que los historiadores estamos tratando de hacer? Revista Eslabones, México, n. 7, 1994, e também BERR, Henri. La Síntesis en Historia. México: Uteha, 1961. 19 Pensemos, para mencionar só um exemplo possível, nos interessantes trabalhos de Norbert Elias, El proceso de la civilización e la sociedad cortesana. A esse respeito, cf. Carlos Antonio Aguirre Rojas,“Norbert Elias, Historiador y Crítico de la Modernidad”, no livro Aproximaciones a la Modernidad. México: Ed. UAM Xochimilco, 1997. 20 Sobre essa corrente dos Annales, cf. DOSSE, François. La historia en migajas. Valencia: Edicions Alfons el Magnanim, 1988, e BURKE, Peter. La revolución historiográfica francesa. Barcelona: Gedisa, 1993. 21 Desenvolvemos mais amplamente esse argumento em Carlos Antonio Aguire Rojas, “Entre Marx y Braudel: hacer la historia, saber la historia”, no livro Los annales y la historiografía francesa. México: Ed. Quinto Sol, 1996. 22 Para constatar, por exemplo, a vigência atual do pensamento de Braudel, pode-se consultar os livros Primeras Jornadas Braudelianas. México: Ed. Instituto Mora, 1993, e Segundas Jornadas Braudelianas. México: Ed. Instituto Mora, 1995.

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23 Sobre a profunda significação da revolução cultural de 1968, cf. WALLERSTEIN, Immanuel. 1968: tesis e interrogantes. Estudios Sociológicos, México, n. 20, 1989; BRAUDEL, Fernand. Renacimiento, Reforma, 1968: revoluciones culturales de larga duración. La Jornada Semanal, México, n. 226, oct. 1993; DOSSE, François. Mai 68: les effets de l’histoire sur l’Histoire. Cahiers de l’IHTP, Paris, n. 11, 1989; e AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. 1968: La Gran Ruptura. La Jornada Semanal, México, n. 225, oct. 1993. 24 No sentido desenvolvido por Immanuel Wallerstein em seu livro Después del liberalismo. México: Siglo XXI, 1996. 25 Desenvolvemos um exemplo particularmente instrutivo dessa assimilação e refuncionalização de tais influências em AGUIRRE ROJAS, Carlos Antonio. La recepción del metier d’historien de Marc Bloch en América Latina. Revista Argumentos, México, n. 26, 1997.

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NOVAS TENDÊNCIAS NA HISTORIOGRAFIA RUSSA E O PROBLEMA DA CORRELAÇÃO ENTRE MICRO E MACRO-HISTÓRIA* Lorina Repina

A renovação da historiografia contemporânea e da cultura histórica, em geral, vem ocorrendo num quadro de decadência do moderno racionalismo europeu. Significa isso a rejeição do determinismo, de todas as pretensões à objetividade e à busca da verdade, de quaisquer tentativas de usar as “leis gerais” da evolução histórica. Ao longo do século 20, o mundo mudou numa velocidade nunca vista e o progresso científico desempenhou o papel principal nesse desenvolvimento. Tais mudanças, no entanto, adquiriram o status de ciência nova, pois foi instalada num pedestal dentro de um sistema de valores sociais, mas, ao final do século, suas bases passaram a ser questionadas. Por outro lado, o pós-modernismo iconoclasta abre caminho para novas abordagens cognitivas. Em todas as disciplinas, a ênfase passa das leis e regras para os eventos únicos, as individualidades, os acasos. Ao mesmo tempo, novas formas de generalização estão sendo procuradas. O problema da síntese histórica ainda ocupa o posto central em numerosos debates sobre métodos. Pensa-se que a síntese histórica pode restaurar a coerência do passado, reintegrando as abordagens estruturais, socioculturais e psicológicas que ficaram isoladas no campo da pesquisa prática. Na última década, a pesquisa da síntese tem se voltado para o papel do individual e do coletivo, do nacional e do universal na História. Tentativas sérias foram feitas para superar a dicotomia do indivíduo e da massa, do particular e do geral no âmbito da teoria da História. Um dos primeiros indícios desse processo intelec-

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tual na historiografia russa surgiu na abordagem da civilização, com o seu enfoque na idéia de civilizações múltiplas coexistindo no quadro da totalidade da humanidade. A segunda abordagem adotou os princípios da Escola Francesa dos Anais em sua forma clássica. Na interpretação dos historiadores russos, esses princípios pareciam próximos da tradição historiográfica de Marx. A situação atual, porém, forçou os historiadores a decisões mais radicais. Embora o processo de modelar um novo paradigma histórico para substituir o antigo tenha se revelado complicado e contraditório, uma coisa parece óbvia: agora parecem mais promissoras as abordagens baseadas na noção de cultura. O enfoque na cultura conduz a uma nova compreensão dos objetivos do estudioso, a mudanças na escolha dos temas de pesquisa, do aparato conceitual e dos métodos, e, finalmente, à reformulação das normas acadêmicas e da imagem da disciplina histórica. Na Rússia, esse processo foi acompanhado e deformado pelo resultado ambíguo das mudanças radicais no sistema político, na estrutura social e na cultura. Durante a crise social e política de fins da década de 1980 e início da década de 1990, os mecanismos que então regulavam as relações entre o grupo profissional de historiadores e a sociedade foram destruídos e os critérios de pesquisa até então aceitos, desacreditados. Os historiadores precisaram mobilizar todas as suas energias intelectuais para preservar a identidade profissional. Em resultado, estrutura e linguagem do conhecimento histórico se alteraram, tanto quanto os modos de sua tradução. Apesar de tudo, as regras corporativas básicas puderam ser cuidadosamente preservadas, pois os historiadores consideravam-nas uma “barreira” entre os tipos profissional e amador de conhecimento: a fé nas fontes, a zelosa reconstituição de fatos históricos, a causação, etc. Por outro lado, o final dos anos 1990 assistiu a um grande número de estudos históricos cujos autores apelavam para os mesmos critérios disciplinares, mas chegavam não raro a resultados de pesquisa inteiramente diversos. Por isso, os historiadores profissionais passaram a rejeitar cada vez mais os argumentos teóricos e metodológicos. Essa atitude era demonstrada pela reabilitação da idéia de história como disciplina empírica e factual, e pelo apelo “de volta a Heródoto”. Tais pretensões, entretanto, suscitaram críticas graves, com os adversários reafirmando a história como disciplina teórica. De fato, a sociedade e a comunidade acadêmica estão às voltas com um processo de desenvolvimento paralelo: já surgem numerosas imagens da disciplina histórica, algumas baseadas em diferentes abordagens da natureza, conteúdos e funções do conhecimento histórico. As tentativas foram feitas para resolver o pro-

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blema da auto-identificação correlacionando-se a pesquisa contemporânea com a historiografia soviética, sendo esta última denunciada para se obterem resultados mais interessantes. Ao mesmo tempo, as práticas de pesquisa vigentes são comparadas ao modelo ideal (normativo) da disciplina histórica, cujo papel pode ser desempenhado, ou pela “historiografia ocidental” de qualquer tipo, ou pela vaga imagem de uma “disciplina do futuro”, suposto alvo da prática historiográfica contemporânea. Duas tendências principais podem ser rastreadas na historiografia russa da última década. A primeira liga-se à eliminação das “lacunas” da história russa mercê da exploração de arquivos até então inacessíveis e ao tratamento de temas antes impopulares e proibidos. Esse processo começou nos primeiros anos da perestroika. Ele ajudou a rever algumas interpretações históricas que passavam por quase sagradas, e a enorme quantidade de documentos, monografias e literatura popular veio preencher os espaços em branco com surpreendente velocidade. A abundância da literatura impressa, contudo, não lhe garantiu a excelência. Ao contrário, revelou um curioso jogo de opiniões antiquadas e sua rejeição; com efeito, descobertas sensacionais transformaram-se em argumentos nos conflitos sociais e políticos. Essa última tendência misturou-se à intolerância e às pretensões à verdade absoluta. Somente se exploraram os aspectos do problema que pareceram plausíveis para a principal linha de argumentação do autor; os outros foram ignorados. Todavia, rejeitar abordagens tradicionais não bastou para abrir um espaço inteiramente novo à pesquisa histórica. A denúncia de uma visão política inculcada de fora não eliminou os preconceitos políticos dos estudiosos e jornalistas; todos os acontecimentos, movimentos e personagens da história russa foram avaliados por um único critério: em que medida eles favoreciam ou impediam a realização do modo preferido de desenvolvimento histórico russo? A mudança mais óbvia foi o distanciamento do paradigma histórico marxista e a atribuição do status de “metodologia” ao senso comum elementar. Isso foi uma conseqüência natural de processos que evoluíram fora da comunidade acadêmica durante a perestroika. Todo esse tempo, só se valorizaram evidências “aprovadas” pela percepção humana ou que influenciavam consideravelmente a vida das pessoas comuns. As mudanças sociais obrigaram os historiadores a compreender a importância de acontecimentos cotidianos, comezinhos, “não históricos” e a interpretá-los no contexto da experiência prática, não no contexto da teoria. A metodologia marxista, após denunciar o positivismo, transformou-se em instrumento nas mãos da maioria dos histo-

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riadores russos. Supõe-se que documentos publicados “falem por si mesmos” e bom número de historiadores prefere refugiar-se por trás desses textos, vendo-os como a verdade última e fazendo de seus livros manuais anotados. Trata-se de livros oportunistas, divulgadores de uma espécie de “conhecimento negativo”: eles declaram que certos eventos históricos não ocorreram do modo como se descreveu. Não surpreende, pois, que o programa de história mais popular irradiado pela emissora Ecos de Moscou ostente o nome “Não foi assim!”. A importância social e científica dessa tarefa é indubitavelmente elevada e a missão de rejeitar clichês ideológicos ou erros cometidos por historiadores deve prosseguir. No entanto, isso não dá à historiografia russa nenhuma oportunidade de elaborar uma imagem completamente nova. A segunda tendência é bem mais promissora. Ela se destacou em meados dos anos 1990, buscando novas abordagens e métodos de pesquisa originais. A criatividade de alguns estudiosos e grupos acadêmicos abriu caminho para a evolução da historiografia russa com base num diálogo proveitoso com as principais escolas do Ocidente. A ânsia de renovação radical na metodologia é demonstrada por inúmeras conferências, pelo aparecimento de novos periódicos (Odysseus, Casus, Diálogo com o Tempo, Adão e Eva, etc.) e de diversas publicações em que se discutem problemas teóricos de conhecimento histórico, afora tentativas de incorporar novos métodos ao currículo. Um “pluralismo metodológico” fortaleceu as posições de novas metodologias nas práticas de pesquisa russas e, nessa base, novas escolas surgiram. Antes, alguns historiadores preferiam enfatizar a ação humana na história, o que justificava a popularidade da antropologia histórica. Embora essa abordagem tivesse uma sólida tradição na erudição russa (lembrem-se a obra pioneira de B. A. Romanov, Povos e costumes da velha Rússia, inicialmente publicada em 1947, as monografias de A. J. Gourevich, As Categorias da Cultura Medieval, Os Problemas da Cultura Popular Medieval e suas publicações das décadas de 1970-1990), a popularidade dela em finais dos anos 19801990 deveu-se principalmente à sua ligação com o Seminário de Antropologia Histórica (dirigido por A. J. Gourevich) no Instituto de História Mundial da Academia Russa de Ciências e com o periódico Odysseus: O Homem na História (a partir de 1989). Papel de destaque na posterior abordagem de novos métodos de pesquisa coube ao Seminário, ao Grupo de Pesquisa da História da Vida Privada (organizado no mesmo instituto em 1994, sob a direção de J. L. Bessmertny) e à publicação de Casus: O Individual e o Único na História (a partir de 1997). Novas tendências revelaram-se interessantes para

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diferentes estudiosos. Uma discussão a respeito do problema-chave teórico e metodológico da microanálise do número de projetos de pesquisa completados com sucesso (O Indivíduo no seio de sua Família, O Indivíduo num mundo de emoções, etc.), bem como das obras dos historiadores desse grupo (renomeado mais tarde como Centro para a História da Vida Privada), revelou um novo nível de qualidade. No atual debate metodológico, o problema da correlação entre micro e macro-história, e de sua possível combinação, ocupa um lugar importante. “Um historiador em campo: micro e macroabordagens de estudos históricos” foi o título de uma conferência proferida no Instituto de História Mundial em 1998; seus resultados influenciaram consideravelmente os conteúdos e métodos da nova pesquisa. Talvez valha a pena examinar um novo projeto do Centro (iniciado em 2000), “Ideais socioculturais e cotidiano na Europa Ocidental e na Rússia em princípios do século 20: os estereótipos e o único”. O principal objetivo do projeto é estudar o conflito entre ideais socioculturais e sua interpretação individual, além da correlação entre o geral e o específico numa estratégia de comportamento humano, que se esboçava na Europa Ocidental e na Rússia em conseqüência desse conflito. Os historiadores preferem não enfocar o poder coercitivo dos valores culturais gerais e enfatizar, isso sim, uma estratégia individual de comportamento em situações de mudança, de vez que a primeira abordagem insere o indivíduo no mecanismo social e não lhe permite fazer escolhas. Já o projeto sugere uma análise paralela da força dos valores aceitos e de sua interpretação ativa por parte de indivíduos de diferentes estratos sociais. Comparando interpretações estereotipadas e individuais (mesmo exclusivas) dos valores, os historiadores intentam estudar o comportamento humano em vários períodos do passado e revelar a possibilidade que o indivíduo tem de influenciar a História. Uma comparação das práticas culturais européias e russas exibe a diversidade das opções individuais e seu potencial. Assim, o projeto enfatiza a análise de ideais socioculturais vigentes no Ocidente e na Rússia em diversos períodos de sua história, incluindo situações em que ideais aceitos eram materializados apenas por parte da população. O projeto pretende ainda analisar o papel do poder (político, religioso e ideológico) e dos estereótipos mentais na preservação de ideais tradicionais em sociedades com diferentes tipos de autoridade. Por último, o projeto intenta estudar os meios por que indivíduos de diferentes grupos sociais interpretam esses ideais nas mais variadas situações, questionando tradições e propondo novos objetivos de vida.

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É óbvio que as fontes sobreviventes não contêm informação direta sobre os motivos que levaram pessoas de diferentes épocas e estratos sociais a tomar suas decisões. Daí a necessidade de empregar meios indiretos de análise. Esses podem incluir o estudo das reflexões explícitas e implícitas de um autor sobre seus próprios atos e opiniões; a análise da avaliação direta e indireta das ações de um indivíduo quando elas se tornam tema de investigação da família ou de seus inimigos; e o estudo das atitudes frente a um estranho (e a um alienígena em geral), que pode revelar os desejos e medos de um autor (ou de seus “heróis”). Podemos estudar reflexões sobre o mais cobiçável (“felicidade”) ou o mais temível e indesejável (“infelicidade”). É possível comparar comentários abonadores ou desabonadores sobre os atos de uma pessoa, além de determinar que ação deve ser glorificada ou censurada em textos didáticos. Descrições de execução “correta” ou “incorreta” de um ritual, procedimento jurídico ou cerimonial, podem ser usadas da mesma maneira. Outro objeto de análise é a atitude dos príncipes frente às ações de seus súditos e cortesãos. Em todas as circunstâncias anteriormente mencionadas, o ponto de partida da análise é um princípio da Escola Russa de Semiótica (Lotman-Uspensky), segundo o qual o comportamento cotidiano é um sistema de símbolos por cujo intermédio se podem estudar valores aceitos ou desvios. De acordo com esse princípio, todo ato humano é visto como um elemento do sistema e como reflexão implícita sobre o mundo interior de um membro da sociedade. Nesse caso, as fontes do estudo histórico podem incluir obras de autores famosos e textos de arquivo comuns, mesmo inéditos. Inúmeros estudos foram levados a cabo nos termos do projeto. Eles abarcam longos períodos da história ocidental e russa, desde a antiguidade até começos do século 20, incluindo os seguintes tópicos: atitudes humanas frente à “felicidade” e “infelicidade”, até que ponto se pensava sobre elas, seu significado implícito e explícito, sua conexão com as prioridades da vida e as preferências emocionais, e correlação entre estereótipos e interpretações individuais, que são traços comuns e específicos das atitudes ocidentais e russas perante tais problemas. A descrição pormenorizada de um projeto revela a originalidade e o potencial heurístico do princípio subjacente de análise: estudar as formas da vida social e suas normas por meio de sua incessante reinterpretação ou transformação na prática individual. Talvez seja a história do indivíduo a que apresenta o problema metodológico capital da correlação entre micro e macroanálise no cenário adequado, bem como de sua compatibilidade. Até hoje, a antro-

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pologia histórica desdenhou o problema da auto-identificação individual, do interesse privado, da escolha individual racional. Em última instância, a questão de como tradições culturais, costumes e opiniões herdados influenciam o comportamento humano em situações concretas (e, conseqüentemente, a cadeia de eventos com seus resultados) leva ao estudo dos atos do indivíduo. O mecanismo da escolha individual deveria ser incluído num modelo complexo de interpretação que considerasse não apenas a determinação social, estrutural e cultural, mas também a determinação individual e acidental, a fim de restaurar a coerência psicossocial de um indivíduo histórico. Assim, parece justificável a nova mudança do “típico” ou “comum” para os indivíduos concretos. Usualmente, os estudos se concentram numa pessoa extraordinária ou, pelo menos, numa pessoa apta a tomar decisões extraordinárias em situações complexas. Em resultado da mudança, uma nova abordagem vem surgindo, com suas tarefas e seus métodos específicos – a nova história biográfica ou pessoal, uma vez que o tema de pesquisa é a vida de um indivíduo (o mesmo se aplica à biografia histórica tradicional). Os tipos de biografia diferem segundo as tarefas de pesquisa. O impulso geral rumo à abordagem “pessoal” foi dado pela desconfiança, por parte dos estudiosos, da desumanização e despersonalização não apenas dos estudos sociologicamente orientados, mas também da antropologia histórica. As estratégias positivas, contudo, são moldadas por padrões bastante diferentes. Hoje podemos vislumbrar duas imagens da história pessoal na historiografia russa, com diferentes temas. Uma pesquisa concentra-se ou na reconstrução do mundo humano interior e sua dinâmica, na experiência existencial exclusiva (“biografismo existencial”, no dizer de D. M. Volodikhin), ou na situação cultural e social, em que uma vida descrita assume importância de história. A metodologia personalista da primeira abordagem está talvez mais próxima da crítica literária (com sua ênfase na exclusividade, sua preferência por resultados de atividade conscientemente criativa, a submissão absoluta do historiador ao texto em que se concentra a experiência individual da pessoa, a atmosfera sociocultural vista como mero pano de fundo e a história dos eventos constituindo um quadro para a reconstrução da biografia psicológica). Insistamos na segunda variante da história pessoal, ou seja, em suas versões que apresentam algumas características comuns: à diferença das biografias tradicionais e “existenciais”, essa pesquisa modela o estudo do mundo interior, de vidas individuais ao mesmo tempo como objetivo de pesquisa estratégica e como meio adequado de conhecer uma sociedade histórica que as

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abrange e foi por elas criada. Em outras palavras, essa pesquisa sugere o estudo de um contexto social. A “história pessoal” usa quase sempre diferentes tipos de fontes que contenham reflexões sobre assuntos pessoais (cartas, diários, memórias, autobiografias) e evidências indiretas, inclusive outras visões dos mesmos acontecimentos e a “informação objetiva” oriunda do campo social e cultural. Decerto, ela coloca limitações às biografias de pessoas da Antigüidade e Idade Média (afora as biografias dos nobres). A falta de textos de origem pessoal cria obstáculos não menos sólidos que as complexidades da hermenêutica. Assim, o interesse do biógrafo por arquivos pessoais e certos textos literários do período moderno é bastante compreensível, pois essas fontes habilitam os historiadores a definir meios de vida escolhidos no quadro de papéis sociais prescritos, a sondar preferências em termos de valores, e a atinar com visões coletivas de êxito social em formas pessoais de “biografia-modelo”, de “destino feliz” invariavelmente ligado a personagens históricas famosas. Um dos principais objetivos da “história pessoal” é revelar um processo de individuação da consciência humana e do comportamento que pode ser demonstrado pelo fortalecimento de metas pessoais a expensas dos valores de grupo. Essa abordagem sugere uma análise textual apta a mostrar relações humanas, identidades individuais e estratégias de comportamento. É óbvio que uma biografia se concentra primordialmente na vida emocional e espiritual da pessoa, bem como nas relações dessa pessoa com a família e os amigos. A pesquisa, quase sempre, enfoca o comportamento divergente, que rompe as normas tradicionais e os modelos alternativos aceitos pela sociedade, e as ações que pressupõem o impulso da vontade numa situação de escolha consciente. A categoria de “passado individual” (isto é, de experiência individual vivida e acumulada na mente da pessoa) desempenha um papel de integração por compensar resultados de procedimentos analíticos que dividem a atividade e a personalidade humana em seus elementos constituintes, criando uma falsa oposição entre pessoa e sociedade – uma antinomia do “individual” e do “social”. O tema de pesquisa (o indivíduo) era elemento importante da realidade passada, aquele que continuamente transformava essa realidade e a si próprio. Ele existia num núcleo de diferentes vínculos sociais e, em torno dele, situavam-se todos os campos do conhecimento histórico. Além disso, essa abordagem enfatiza o papel ativo, criativo de uma pessoa histórica confiante na memória haurida das gerações anteriores, que armazenara a experiência do passado coletivo, e na experiência de sua própria vida. Assim, a história de uma vida transforma-se em história biográfica, mostrada por intermédio de uma pessoa.

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A fertilidade da nova história biográfica está fora de dúvidas; mas, no nível da generalização, problemas metodológicos de conexão entre o individual e o coletivo ainda existem. Um conjunto de questões metodológicas colocadas pelos historiadores que vêem a biografia como uma estratégia cognitiva da história pode ser dividido em dois grandes grupos. O primeiro consiste de problemas ligados à generalização. A questão crucial é saber se convém generalizar observações feitas a respeito de vidas individuais e extrapolá-las para a experiência coletiva (e, depois, para as características gerais do contexto social e histórico). Decerto, em seus estereótipos mentais e comportamentais, este último fixa apenas a parte da experiência individual socialmente aprovada. Deve-se observar, porém, que os modelos rejeitados viveram na memória coletiva, embora com caráter negativo, e algumas decisões foram concebidas como padrão alternativo. O segundo grupo está ligado ao mecanismo de tomada de decisões individual. Depois que diferentes escolhas foram comparadas, cumpre definir se houve desvios em situações típicas ou casos de comportamento divergente em situações muito diversas. Também é importante saber se uma sociedade/grupo adotava um padrão de comportamento considerado automaticamente aceitável por todos os membros ou se tinha dois ou três modelos aceitáveis. Portanto, a concretização de um modelo (isto é, um resultado de escolha individual) poderia ser definida pela combinação de circunstâncias externas que capacitaram determinada pessoa a escolher uma estratégia correspondente às suas intenções e à situação em si. No último caso, pode-se sugerir o padrão de comportamento situacional para a relativa liberdade de escolha. Nos casos em que imperam esses padrões, cumpre fazer escolhas por si mesmo e definir os próprios atos: assim se concretiza a criatividade pessoal. A eficácia social da última circunstância depende da situação que favorece a “tomada” de decisões individuais inovadoras no âmbito da experiência coletiva, ou seja, ela deve facilitar sua adaptação pela sociedade. Em resultado desse desenvolvimento complexo, uma personalidade histórica, pela prática (e independentemente de sua consciência do fato), forma o passado e revela sua subjetividade frente a ele. De que modo ações seletivas e inovadoras podem ser incorporadas a uma análise dos atos coletivos, eventos históricos e macroprocessos? Sintetizar micro e macro-histórias é um problema crucial que não pode ser solucionado por uma simples composição de episódios e biografias. Um longo processo de tradições mutáveis implica a etapa na qual uma escolha que foi considerada divergente (de vez que todos os padrões, inicialmente, o

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são) passa a ser imitada ou aceita de modo automático na esteira de imitações de comportamentos bem-sucedidos. Mais tarde, ela se torna a base para a construção de um estereótipo alternativo de comportamento ou, talvez, de nova tradição. Deve, portanto, percorrer o longo caminho do único para o particular e, finalmente, para o tradicional. Esse processo ocorre dentro do “campo gravitacional” das normas e tradições vigentes, consistindo seus momentos dinâmicos na freqüência crescente das situações em que escolhas individuais “divergentes” ganham a aceitação da experiência coletiva. A grande maioria das fontes não fala aos historiadores de períodos remotos sobre como se tomaram decisões, apenas os informam dos resultados das ações empreendidas depois que as decisões foram tomadas. Semelhantes lacunas costumam levar a explicações simplistas, havendo, portanto, uma real necessidade de buscar modelos para essa operação complexa em diários, cartas e memórias, onde estejam descritas as reais situações de escolha e suas percepções subjetivas. A ferramenta do historiador é uma análise situacional multifacetada que lhe permite reconstituir um evento em sua coerência (inclusive o mecanismo de tomada de decisões), a saber, demonstrar uma combinação de condições, motivos, atos, emoções, percepções e reações, tanto quanto as conseqüências de tudo isso. Todo evento histórico portentoso consiste de milhares de acontecimentos importantes, comuns e elementares que ocorrem em diversos níveis: nas vidas das pessoas, na sociedade, nas instituições sociais. A diferença de escala é que impede tais eventos (chamados “fatos históricos”) de se organizarem em cadeia consecutiva, mas eles podem inserir-se numa cadeia mais complexa de situações históricas quando pessoas, com sua experiência, crenças e preconceitos, estão presentes e agem. A consciência individual e coletiva sempre dispõe de um fértil substrato de idéias, valores e modelos comportamentais vindos do passado e/ou estabelecidos pela experiência pessoal. Daí a pergunta: como passar da visão, da consciência coletiva e mesmo da subconsciência para uma análise de eventos históricos que pretende estudar atos, não resultados de atos? Evidentemente, há aí a necessidade de um novo paradigma de análise histórica. Suponhamos um modelo que consideraria não apenas as condições materiais e espirituais de vida, mas também a função criativa da personalidade, os mecanismos da escolha pessoal e a transformação da atividade do indivíduo incluído numa sociedade, sujeito à sua coerção, em atos sociais de sujeitos históricos coletivos. A interação de indivíduo e sociedade pode ser demonstrada por uma hierarquia de procedimentos de pesquisa que apresentaria os seguin-

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tes elementos: 1) análise de uma situação comum ou incomum que estabeleceu condições e limitou as soluções possíveis (inclusive modelos alternativos e seu valor social relativo); 2) reconstrução da história pessoal – a experiência prévia da pessoa que determinou a percepção individual de uma tradição sociocultural baseada em experiência herdada e ainda dominante na consciência social; 3) estudo da propensão psicológica da pessoa a uma linha de conduta, seu grau de senso comum e intuição prática, suas emoções (ou seja, as condições da escolha individual e a correlação dessa escolha com o modelo ou norma coletiva dominante); 4) descrição de atos pessoais, sem esquecer sua motivação, seu processo de tomada e concretização de decisões, com os resultados positivos e negativos; 5) mudança do particular para o coletivo, juntamente com uma mostra de decisões análogas ou alternativas (divergentes) que tenham sido aceitas na prática, tornando-se novos estereótipos de comportamento, e, portanto incorporadas na atividade de grupo ou massa; 6) análise das mudanças operadas na estrutura social. As conclusões dos historiadores geralmente vão do resultado para o evento, da conseqüência para a causa, e não vice-versa, dando assim a impressão de uma determinação rígida, de uma inevitabilidade. Entretanto, podem-se percorrer as situações históricas em outra direção: a partir de uma “causa acidental”, oculta no acervo das variações potenciais do comportamento individual. Toda situação histórica apresenta um leque de padrões comportamentais e a concretização de um dado padrão depende de inúmeras condições ou fatores, que às vezes parecem casualidades. Em situações de livre escolha, um ato humano consciente quase sempre depende não apenas da percepção da realidade passada e presente, mas também da compreensão ou percepção intuitiva de causas possíveis e da ânsia de evitar intervenções indesejadas. A pessoa pode escolher entre diferentes linhas, enquanto a ação (ou sua ausência) transforma variações potenciais em unicidade real. A adaptação às condições sempre principia pelas mudanças de comportamento, quando o indivíduo opta por um modelo que difere do vigente: então, as mudanças funcionais ocorrem, redefinindo as relações humanas até que o processo termina com a reforma morfológica modificando a estrutura mental do sujeito e do sistema social. As estruturas sociais surgem em resultado de atos precedentes e, em toda situação nova, condicionam eventos e atos humanos conscientes, inconscientes, intencionais, coordenados ou contradirigidos. Em tais casos, os indivíduos podem agir pessoalmente ou como sujeitos sociais, corporações e bandos. Os eventos políticos ocupam a ponta do iceberg de motivos, intenções, decisões,

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esperanças e frustrações dos homens. A análise das diversas camadas de um evento histórico tende a revelar diferentes cenários de acontecimentos, de vez que os agentes do drama histórico poderiam ter feito outras escolhas. O drama da história faz sentido graças à combinação das biografias de suas personagens, das histórias de vida; em seu contexto, elas assumem seu significado histórico. Em outras palavras, o historiador estuda a biografia individual como uma dimensão particular da história, seu aspecto subjetivo e pessoal que reflete o desenvolvimento de um sujeito ativo, associando desvios e inovações individuais à experiência coletiva herdada. Isso não exclui (na verdade, obstrui) a ênfase na importância dos estudos estruturais e culturais: as três perspectivas deveriam combinar-se para fornecer um quadro coerente do passado. Um “privilégio” óbvio da abordagem pessoal e de outras estratégias microanalíticas é que elas trabalham no interior de um “campo experimental” apto a resolver os problemas teóricos complicados da historiografia contemporânea. Além disso, a necessidade de responder a perguntas-chave – o que condicionou, limitou e definiu o processo de tomada de decisões, quais foram seus motivos íntimos e explicações, até que ponto os estereótipos e os atos pessoais se correlacionavam, como isso era percebido, que força tinham os fatores externos e os impulsos internos – arranca o historiador de um pequenino “nicho” de microanálise e o empurra para o campo de pesquisa da macro-história. A especificidade da micro-história não consiste em seu objeto (embora alguns historiadores digam isso), nem mesmo no tratamento dos detalhes. O mesmo objeto pode ser submetido à micro ou à macroanálise. Tudo depende do ponto de vista do pesquisador, já que a posição teórica e o modelo aceito de processo histórico condicionam a escolha. Em suma, a especificidade consiste no desdobramento do raciocínio do historiador: do presente para o passado (para seguir retrospectivamente a construção do mundo atual) ou a partir do passado (visto como em processo de formação). No último caso, o raciocínio se desdobra “prospectivamente” (do passado para o presente). O historiador busca respostas para outras perguntas: quais possibilidades existiram em situações de escolha histórica; como e por que tais possibilidades foram concretizadas; de que modo as percepções subjetivas, pensamentos, habilidades e intuições individuais atuaram num campo limitado pela objetividade das estruturas coletivas criadas pelas práticas culturais do passado. O primeiro ponto dá-nos uma projeção linear da realidade passada: vemos apenas a história que aconteceu em sua versão concretizada. No segundo caso, tentamos vislumbrar a realidade pretérita com o seu futuro “aberto”, não-predestinado,

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com o seu potencial múltiplo, às vezes contraditório: vemo-lo, portanto, em sua máxima diversidade e plenitude. A “inversão de perspectiva analítica” que descrevemos robustece consideravelmente o potencial cognitivo e enriquece nosso conhecimento porque, em vez de inserir o indivíduo no grupo social como fato e considerar as relações entre sujeitos como fixadas a priori, o historiador examina o modo por que tais relações geraram interesses comuns e criaram grupos sociais. A “perspectiva invertida” afeta da mesma maneira a história política, econômica e intelectual, dando corpo a abordagens em que um acidente, um caso estranho constitui tema de pesquisa privilegiado; mas, paralelamente, os historiadores tentam descortinar no evento único algo mais a fim de revelar processos ou tendências explícitas que enriqueçam a visão atual do passado. Ao estudar um caso concreto, o historiador procura responder às seguintes perguntas: de que modo as pessoas fizeram suas escolhas, quais eram seus motivos, até que ponto concretizaram suas intenções, em que medida conseguiram manifestar suas personalidades e “imprimir” aos acontecimentos o seu “selo” pessoal. Sem dúvida, os experimentos com métodos não são fins em si mesmos. Só fazem sentido por permitir ao pesquisador aproximar-se mais dos problemas com que se acha às voltas. Uma das tarefas mais complicadas do historiador é conceituar interações entre indivíduos e sociedade, além de correlacionar o concreto e o abstrato, o particular e o geral. O que se pretende é contemplar o total sem deixar fugir o parcial, sem eliminar a individualidade de seus elementos constitutivos – como na dialética de Platão. Diga-se, finalmente, que a “diversificação” e a complementaridade das micro e macroabordagens da História é que tornam a combinação destas tão promissora.

NOTAS * Ensaio para o Nanjing Symposium on Historiography of the 20th Century.

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HISTORIOGRAFIA ALEMÃ NO SÉCULO 20: ENCONTROS E DESENCONTROS Estevão de Rezende Martins

Nie geraten die Deutschen so außer sich, wie wenn sie zu sich kommen wollen. Kurt Tucholsky

Como as ciências sociais em geral, a historiografia passou por um processo extraordinário de transformação depois da 2.ª Guerra Mundial. É possível que o impulso não tenha bastado para gerar o que o historiador alemão Jörn Rüsen chamou de “matriz disciplinar” uniforme. Mas há claros indícios de um modelo básico fortemente difundido, cujo efeito foi indispensável ao progresso global da historiografia como investigação social auto-suficiente e coesa e ainda o é para sua compreensão.1 A ciência histórica conheceu, na segunda metade do século 20, um avanço prodigioso: renovação, enriquecimento das técnicas e dos métodos, dos horizontes e dos domínios. Esta reflexão se centra primordialmente na “época de ouro” que representou o salto qualitativo operado na segunda metade do século 20. Embora não se possa afirmar que a história seja disciplina recente, os contornos que assumiu, nas duas fases decisivas do século 20, nos anos 1920-1930 e a partir dos anos 1950, constituem uma renovação e mesmo uma redefinição contemporânea2.

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Ainda no século 19, as concepções de história e de historiografia passaram por uma mudança gigantesca e decisiva. Consagrou-se assim o século 19 como “o século da História”. Sem dúvida, foi ainda mais decisivo – embora essa perspectiva nem sempre tenha estado presente – o salto dado no segundo terço do século 20 e seus prolongamentos até nos anos setenta. Não obstante, a análise dos progressos da historiografia em nosso tempo deve ser feita mediante o contraste com o século 19, sem o qual não se pode perceber o alcance das mudanças do século 20. A evolução decisiva para a historiografia se dá com o que se pode chamar de fundamentação metódico-documental, basilar para a disciplina “acadêmica” contemporânea, produzida pelos tratadistas do século 19 e da primeira década do século 20. Tem-se aqui a origem da grande corrente historiográfica que se chamou – de forma algo exagerada, mas não totalmente imprópria – de historiografia positivista, intimamente entrelaçada com a forte tradição do historicismo alemão. É no século 19 que aparecem os primeiros grandes tratados do que se poderia chamar de normativismo histórico, um tipo de reflexão novo sobre a História, chamado de Historik por Johann Droysen. Essa reflexão define os parâmetros metódicos estipulados como obrigatórios para que a História se enquadre no que se tinha, então, por padrão de “ciência”. Essa é a razão por que esses tratadistas tomam como referência específica do estudo de história a ciência natural. Essa mudança profunda e duradoura do horizonte dos estudos historiográficos, cuja influência se estende até os anos trinta do século 20, é habitualmente creditada às contribuições trazidas por uma corrente chamada, sem esforço maior de precisão, de positivismo. De outro lado, o historicismo alemão é, amiúde, considerado a maior contribuição do século 19 em matéria de concepções da natureza do histórico e da identidade da historiografia. A “disciplina” da historiografia, no sentido moderno do termo, surge na transição do século 19 para o século 20, mediante um primeiro corpo de regras e normas metodológicas fixado sob influência do positivismo e do historicismo. Pode-se dizer que até o primeiro grande conflito armado do século 20, a guerra de 1914-1918, a ortodoxia historiográfica foi ditada pela escola metódico-documental. Seus principais representantes estavam na França e na Alemanha. Nas Alemanhas que se sucedem no século 20, o período do segundo pós-guerra é determinante para essa evolução. Com efeito, o século se inaugura com a Alemanha imperial em um curso triunfal. Nada parecia poder reter a sucessão de êxitos políticos, econômicos, sociais e culturais alemães. A tradição do historicismo, construção típica da teoria e da metodologia da História,

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desenvolvida no espaço cultural alemão, vê-se confortada com esse estado de coisas. Malgrado os violentos e traumáticos conflitos políticos até 1945 – desmoronamento do império, República de Weimar entre 1918 e 1933, nazismo de 1933 a 1945 –, o historicismo foi a escola historiográfica que prevaleceu na ciência histórica de língua alemã, praticamente sem rivais, até o início dos anos 1950. No breve século 20 de Eric Hobsbawm, a Alemanha e seu espaço cultural trocaram quatro vezes de regime político, jamais reencontraram as fronteiras iniciais do Império Alemão de 1871 e perderam substancial parte de sua autonomia econômica e social. A Alemanha que surge após a 2.ª Guerra Mundial e o trauma do regime nazista não é uma, nem una. Dois Estados alemães reproduzem, em suas cosmovisões e em suas atividades científicas, as linhas de fratura que cortam o mundo alemão, na política, na economia, na sociedade, na cultura. Mais do que na Alemanha, as rupturas fragmentam o mundo todo, na lógica implacável da Guerra Fria, cuja sombra se deita sobre o espaço público até a década de 1990. Na República Federal da Alemanha, desenvolve-se intenso trabalho de renovação historiográfica, nitidamente marcado pela concepção da história como ciência social e pela temática da história social. O intercâmbio e a multiplicidade das questões abordadas pela pesquisa indicam a abertura ao Ocidente e o diálogo com os desenvolvimentos teóricos e metódicos na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na outra Alemanha, na da República Democrática Alemã, formada na zona de ocupação soviética, prevalecem a ortodoxia política e a ideologia soviéticas com os vieses inevitáveis nesse tipo de regime. A historiografia alemã-oriental ficou assim aprisionada dos pressupostos do pensamento marxista-leninista que impregnaram todo o funcionamento institucional do ensino e da pesquisa em suas universidades. É assim indispensável distinguir o pensamento teórico inspirado na filosofia de Karl Marx, em geral, de sua versão politizada nos regimes social-comunistas. Trata-se o tema aqui em quatro itens: o período até a tomada do poder, no Reich alemão, pelos nazistas (da 1.ª Guerra até 1933); a historiografia alemãocidental e de suas fases e tendências (1946-1990); a historiografia alemã-oriental (1949-1989); as perspectivas a partir de 1990, quando a Alemanha Oriental cessa de existir e suas províncias (Länder) aderem à Lei Fundamental da República Federal, fundindo-se com ela. Três grandes polêmicas metódicas sacudiram os três primeiros desses períodos. No primeiro, tem-se a repercussão da polêmica em torno de Karl Lamprecht. No segundo, são duas as polêmicas: uma se desenvolveu a propósito da obra de F. Fischer, publicada em 1961;3 a

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outra – conhecida como a “querela dos historiadores (Historikerstreit)”, mobilizou, nos anos 1980, a discussão sobre a especificidade do itinerário nacional alemão, a partir de um duro núcleo traumático da consciência histórica alemã: o holocausto dos judeus no período nazista.4

A ALEMANHA DESORIENTADA (1918-1933): A HISTORIOGRAFIA DAS IDÉIAS E O HISTORICISMO METÓDICO O desmoronamento do Império Alemão em 1918 representou uma ruptura de paradigma cultural. O desordenamento político, econômico e social subseqüente à proclamação da república e a experiência de reconstruir um mundo sob as regras da democracia representativa e da multiplicidade liberal transformaram o dia-a-dia alemão em uma aventura cheia de riscos. A eclosão da violência política no cotidiano em nada contribuiu para assentar as bases das Ciências Sociais, dentre elas a História. O espaço público da República de Weimar era feito de contradições e de riscos. A pressão por reencontrar um norte político para a Alemanha, um meio de recuperação econômica e um sentido cultural para a identidade de uma sociedade esgarçada, era fortíssima. O convencionalismo historiográfico da herança historicista do século 19, que Karl Lamprecht (1856-1915) desafiava a superar, era resistente e renitente. Lamprecht foi, na virada do século 19 para o século 20, certamente o historiador alemão mais polêmico. Seu nome designa a primeira grande polêmica teórico-metódica da historiografia alemã do século 20. A “polêmica Lamprecht” se originou, em 1891, na proposta de superar a crise dos fundamentos das Ciências Sociais, em especial da História. Essa crise nasce da comparação com as ciências naturais e com seus métodos. Lamprecht propõe a hipótese das regularidades históricas. Essa hipótese, que se origina na Psicologia e em seus progressos, enuncia regularidades psicossociais na História. A proposta de Lamprecht, nitidamente enraizada nas tradições positivistas francesa e inglesa, incluía uma redefinição do objeto mesmo da História. Contra a historiografia tradicional, Lamprecht propõe a idéia de uma história cultural, que abrangeria a totalidade dos fenômenos sociais, econômicos, políticos e culturais.5 Friedrich Meinecke (1862-1954), um dos mais importantes historiadores alemães da primeira metade do século 20, opõe-se decididamente a tal proposta, rejeitando – com outros historiadores – o materialismo histórico que pensa ver no pensa-

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mento de Lamprecht. Este perde influência na historiografia alemã, embora participe ativamente da vida política do Império, formando nas fileiras dos pacifistas e dos social-democratas. Meinecke é conhecido como o fundador da história das idéias políticas e o principal representante da história intelectual. Editor da tradicional revista alemã de História, Historische Zeitschrift (fundada em 1859), desde 1893, Meinecke se notabilizou pela obra Cidadania universal e estado-nação, de 1907.6 Profundamente partidário do pensamento racional e do método argumentativo, Meinecke, durante a 1.ª Guerra Mundial, engajou-se por uma paz negociada e por reformas políticas na Alemanha. Malgrado suas nítidas simpatias monarquistas, compõe racionalmente com a incontornável república de 1918. O esforço analítico de conciliar o longo prazo da legitimidade política e social alemã com o novo sistema estatal republicano levou Meinecke a publicar, em 1924, sua segunda maior obra, fundamental para a racionalidade política dos regimes de democracia representativa: A idéia de razão de Estado na História Moderna.7 A persistência do método histórico tradicional entre os historiadores alemães da primeira metade do século tem de ser entendida no contexto da evolução político-social da Alemanha nesse período. A posição relativa da Alemanha, tanto no plano interno quanto no concerto das nações, é um tema recorrente na pesquisa historiográfica – desde Ranke. O historiador tem por tarefa investigar – despido de qualquer juízo de valor – os interesses objetivos de poder dos grandes Estados, a começar pelo alemão. As tensões sociais da Alemanha imperial subsistem e mesmo se agudizam no período de Weimar, confortam essa tradição historiográfica, cujas raízes, contudo, estavam nas condições da Prússia da Restauração pós-napoleônica, completamente diversas. Os historiadores dessa tendência, habitualmente titulares de cátedra nas universidades, provêm de um círculo relativamente pequeno de famílias de altos funcionários, pastores protestantes, eventualmente advogados ou médicos. A maioria era de protestantes, mas universidades tradicionalmente católicas, como a de Munique (Baviera), também abrigavam historiadores de peso. Muito raramente encontram-se profissionais oriundos da comunidade judaica. Todos esses profissionais tiveram formação muito semelhante, freqüentaram o ginásio clássico e a universidade de perfil humanístico, identificavam-se com os projetos sociais e políticos da burguesia intelectual protestante.8 O primeiro a destoar dessa tônica, no programa metódico, foi Meinecke. A derrota na 1.ª Guerra Mundial serviu à consolidação do conservadorismo historiográfico e político nas universidades alemãs. Se Meinecke representou uma sorte de

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conservadorismo mitigado, sua proposta de evoluir de uma história factual para uma história intelectual não chegou a modificar radicalmente a tendência majoritária da história política estatizante e nacionalista. Os vieses conceituais, sociais e econômicos na consideração do Estado não bastam para afetar significativamente esse quadro.9 Com efeito, a República de Weimar ensejou o surgimento de um esboço de posicionamento crítico com relação ao passado alemão recente, que no entanto ainda permaneceu inserida no âmbito da história política convencional, centrada em acontecimentos e indivíduos. A tradição historiográfica, com Meinecke à frente, continuava a valorizar a vida política e intelectual alemã como melhor do que o padrão ocidental. A crítica liberal, representada, por exemplo, por Franz Schnabel,10 considerava ter sido um erro trágico da Alemanha não ter seguido o modelo político ocidental da parlamentarização. O período que se abre com a tomada do poder pelos nazistas em 1933 não traz mudanças substanciais no panorama da historiografia alemã. A determinação ditatorial da padronização política da cultura e da comunicação (Gleichschaltung) não acarreta ruptura sensível.11 A geração de historiadores mais antiga não era, por certo, popular no sentido da discriminação e da preferência raciais, mas apoiava sem grandes ressalvas o Estado autoritário. Sobretudo a política externa do 2º. Reich, parecia-lhes estar na linha de continuidade da política nacional tradicional. É fato que Meinecke foi forçado a abandonar a editoria da Historische Zeitschrift (publicada desde 1859) e que alguns catedráticos foram aposentados compulsoriamente (como no caso de Hermann Oncken12) ou experimentaram a prisão (como se passou com Gerhard Ritter13). Por outro lado, todo esboço de um desenvolvimento crítico não-conformista era reprimido, o que acarretou o desbaratamento da geração emergente de historiadores críticos, cuja carreira estava começando, que deixaram a Alemanha para não mais voltar a ela como pesquisadores, como Hans Rosenberg.14 O Instituto do Reich para a História da Nova Alemanha, dirigido por Walter Frank, órgão central da historiografia “partidária” da Alemanha nazista, não produz nada de relevante para a historiografia crítica, na medida em que está a serviço de opções político-ideológicas, a cuja sustentação vincula o trabalho de pesquisa.15 A tomada absoluta do poder pelos nazistas fez da revisão da história alemã um tema crucial, que os historiadores no exílio passaram a se dedicar. O estudo das grandes personagens da história alemã (notadamente Bismarck) e a concentração nas grandes idéias indicam a manutenção de procedimentos metódicos bastante tradicionais. A compreensão e a explicação das

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condições de possibilidade do fenômeno nazista e de suas origens intelectuais foram o objeto de trabalhos importantes, como The Crisis of German Ideology, de George Mosse, publicado em Nova York, em 1964.16 Como o título do livro já indica, o papel reservado às idéias e às mentalidades é de escol. Assim, os trabalhos dessa linhagem procuram demonstrar a vinculação de toda e qualquer representação de comportamento ou de todo e qualquer padrão do agir a uma estrutura social sempre determinada de alguma forma. Tanto os autores liberais, como Mosse, quanto os marxistas, como Abusch17 ou Lukács18, atribuem ao fracasso da burguesia alemã dos séculos 19 e 20 em alcançar o poder político e a falência do liberalismo na Alemanha os descaminhos de Weimar e do 3.º Reich.

O VAZIO RECALCADO: DO FIM DA GUERRA À CRIAÇÃO DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA (1945-1949) A derrota do 3.º Reich e o vazio provocado pela desagregação territorial, social, política, econômica e cultural da Alemanha de 1945, pode-se imaginar, deveriam ter acarretado mudanças igualmente radicais na historiografia. No entanto, Iggers sublinha que, como em 1933, a ruptura não foi radical.19 E, sobretudo, não se deu uma inversão do fluxo migratório dos refugiados do regime nazista. A ocupação militar e a divisão da Alemanha em quatro zonas, associadas ao choque decorrente do desvelamento das atrocidades cometidas pelo regime antes e durante a guerra, provocaram, isso sim, um imenso vazio. A administração militar das zonas de ocupação e a separação entre as zonas ocidentais (inglesa, francesa e americana) e a oriental (soviética) tornam-se mais e mais evidentes. Ademais, a ordem do dia destes anos é marcada pela desnazificação e se concentra na reorganização política e econômica das zonas ocidentais. Embora o capítulo da desnazificação incluísse uma revisão dos conteúdos trabalhados no sistema educacional, não houve uma dedicação especial à questão histórica. Teve-se assim uma espécie de lacuna consentida. Esse vazio, paradoxalmente, encobriu a circunstância de que, nos departamentos universitários de História, tradicional reduto da historiografia, pouco ou nada se alterou. A discussão crítica do passado recente da Alemanha se desloca para os institutos de Ciência Política, de concepção metodológica inovadora – mediante a importação das teorias sociológicas para a crítica da história política – e de criação administrativa recente, sob influência da politologia

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anglo-saxã. Assim, a reflexão politológica ganha o passo sobre a histórica, combinando, por exemplo, teorias da decadência política para a análise dos elementos institucionais, ideológicos, sociais e econômicos da desagregação moral da sociedade. O recalque historiográfico somente começa a ser superado com a geração que passa à atividade a partir dos anos 1960. E a compensação historiográfica crítica ampla, no espaço de língua alemã, somente começará a aparecer na agenda da pesquisa e da discussão forçada por uma nova polêmica, a partir de meados dos anos 1980, conhecida como o Historikerstreit, em torno do período nazista e do Holocausto judeu.

A HISTORIOGRAFIA NA ALEMANHA FEDERAL (1949-1990): A REDEFINIÇÃO E A INDEPENDÊNCIA O nascimento da nova república alemã de feitio ocidental ocorre, pois, sob o manto de determinado grau de alienação política da historiografia. Nenhum dos historiadores de espírito liberal, exilados da Alemanha nazista, voltou definitivamente, dentre eles o próprio Georg G. Iggers.20 Outros historiadores, de corte mais conservador, mas perseguidos por motivos raciais, reassumiram posições nas universidades alemãs. Assim, Hans Herzfeld (1892-1962), Hans Rothfels (1891-1976) e Hans-Joachim Shoeps (1909-1980) após 1946. O nacionalismo triunfal e o antidemocratismo político, tal como representado por Rothfels, por exemplo, contribuíram para minar os fundamentos da República de Weimar no espaço acadêmico. A instrumentalização inescrupulosa desse tipo de historiografia teutocêntrica pelos nazistas não acarretou, contudo, a adesão de um homem como Rothfels (que teve de fugir da Alemanha em 1938), malgrado ter havido forte polêmica em torno dele após a guerra. Apesar de alguns atritos, o sistema universitário alemão, ao menos no lado ocidental, não sofreu modificações notáveis. O modus operandi para o recrutamento e para a seleção, para a promoção e para a titulação continuou o mesmo. Até início dos anos 1970, quando há uma vaga de criação de novas universidades, o sistema secular da universidade alemã manteve o instituto da cátedra e da “habilitação” (livre-docência) vinculada aos catedráticos. A inovação principal, nos anos 1950, correspondentes ao resgate da independência crítica da historiografia, vem do esforço metódico de utilizar as teorias sociológicas (e politológicas) para estudar a República de Weimar e o 3.º Reich. Dois dos representantes mais destacados desse período são Hans Mommsen (1930) e seu

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irmão gêmeo Wilhelm J. Mommsen, filhos do historiador Wilhelm Mommsen (1892-1966, afastado em 1945) e bisnetos do grande Theodor Mommsen (1817-1903), Prêmio Nobel de 1902. Especialista em História Contemporânea, Hans Mommsen (aposentado desde 1996) e seus discípulos passaram a se interessar de perto pelos fatores econômicos, sociais e institucionais que pesaram sobre o período de 1918 a 1945. Sob a orientação de Mommsen, foram realizados estudos marcantes sobre a República de Weimar e sobre o regime nazista, que se poderia qualificar de um primeiro grande movimento de “acerto de contas” com o passado alemão recente. O fenômeno da modernização econômica pela industrialização com as tensões que provocou na cena política, aliado à inexperiência e ao menosprezo com respeito à república e à democracia, nesse período crítico, dá o tom dessas pesquisas. Hans Mommsen é tributário da proveitosa influência de Werner Conze (1910-1986), sob cuja orientação doutorou-se. Conze, contudo, como Otto Brunner (1898-1982) ou Theodor Schieder (1908-1984), já havia diagnosticado as limitações de uma história factual e pugnavam por uma abordagem estrutural. Essa abordagem estrutural, fortemente dependente da sociologia alemã de G. Ipsen e H. Freyer, logo evoluirá para a marca registrada da inovação historiográfica alemã do século 20: a história social. Animado por um extraordinário dinamismo, Conze motivou um amplo leque de discípulos a adotar a perspectiva da história social, em seu Grupo de Trabalho de História Social Moderna, em Heidelberg, a partir de 1957. Essa perspectiva se concretizava pela investigação empírica, pelas análises metódicas e pela organização prática de grupos e instituições de pesquisa. Conze marcou a concepção da história social como ciência integradora, como síntese do mundo histórico, buscando superar as diferenças entre História e Sociologia. A plataforma teórica, metódica e empírica do Grupo de Trabalho, algo como sua vitrine de resultados, é a monumental obra Conceitos históricos fundamentais. Léxico histórico da linguagem político-social na Alemanha, editada por Conze conjuntamente com Reinhardt Koselleck e Otto Brunner, a partir de 1972.21 Outros resultados marcantes aparecem na série Mundo Industrial (Industrielle Welt),22 abrangendo sistematicamente os temas do movimento operário na era industrial, da história social da Alemanha Federal, da história das famílias e da história dos intelectuais. Esse leque temático permitiu tratar a história alemã, estruturalmente, como parte da história social moderna e contemporânea da sociedade industrializada ocidental, mediante recurso aos métodos habituais da pesquisa empírica e do modelo racionalis-

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ta da ciência moderna. Essa abordagem não perde de vista, todavia, as origens do estado nacional alemão, sublinhando sua versão reequilibrada no formato da república federal de 1949. Nessa república, a historiografia vê realizada, politicamente, a meta da conciliação socioeconômica, consciente das origens e das tensões nacionais, mediante a qual os conflitos de classe se podem superar. Surgem, assim, nesse modo de considerar a Alemanha pós1945, dois elementos fundamentais da maneira de produzir história social: de um lado, a tese da especificidade do caminho percorrido pelos alemães. De outro, a impossibilidade de entendê-los sem situar a história alemã no conjunto maior da história do Ocidente moral e político. A discussão da especificidade e da comunidade alemãs tornou-se um problema central da historiografia pós-1945. O nó górdio a ser cortado era o equacionamento do 3.º Reich: entendê-lo, explicá-lo, enfim, exorcizá-lo sem negá-lo nem minimizá-lo. Os historiadores liberais emigrados, como George Mosse (1918-1999),23 não admitiam considerar o 3.º Reich um produto casual de um concurso de circunstâncias excepcionais. Os historiadores mais conservadores, como Meinecke e Ritter, que estiveram aprisionados do assim chamado “exílio interno”, ou os perseguidos por motivos raciais, como Rothfels, que acabaram por ter de fugir, vêem o período nazista como uma ruptura e uma descontinuidade com o que consideram ser as estruturas de longo prazo da história alemã.24 Para essa corrente, o nacional-socialismo terse-ia originado, não de uma característica alemã, de uma mescla das tradições da democracia política, do socialismo e da industrialização, cujas raízes se encontrariam na Revolução Francesa. Dessa forma, a ocasião para a mistura explosiva do nazismo irromper na Alemanha não teria sido a falta, mas o excesso de democracia em uma república inexperiente e demasiado desorganizada, como teria sido a de Weimar. O Instituto de História do Tempo Presente, de Munique, dedica-se a documentar essa tese, tomando como referência inicial a eclosão da 1.ª Guerra Mundial. Essa tendência pensa ter-se desvencilhado, dessa forma, do lastro do passado nacional-socialista como exclusividade alemã, sem entretanto negar-lhe a crueldade e a desumanidade. É justamente contra esse pano de fundo que surge a segunda grande controvérsia historiográfica do século 20 alemão. Em 1961, Fritz Fischer (1908-1999), professor da Universidade de Hamburgo, lança um livro que abala a “boa consciência” da historiografia até então com respeito ao nazismo. A tese da descontinuidade do nacional-socialismo no longo prazo da história alemã não se recuperará do choque provocado por Griff nach der Weltmacht

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(Ambição de grande potência).25 Baseado em amplo material de arquivo, o livro de Fischer expõe solidamente a tese de que a linha de longo prazo da política alemã, pelo menos desde o período guilhermino, era a da ambição de predomínio europeu e internacional, dentro da qual se situaria, por via de conseqüência, o expansionismo nacionalista nazista. A polêmica que se inaugura com este livro inunda a corporação dos historiadores e transborda para o mundo político de uma Alemanha às voltas com a crise da construção do Muro de Berlim e com o crepúsculo da era Adenauer.26 Ela representa uma virada notável na historiografia alemã, tanto pelo aporte teórico-metodológico quanto por ter provocado o retorno da investigação do próprio passado nacional. Fischer trabalhou o tema de modo convencional, recorrendo à documentação arquivística pública. Descobriu um memorando de 9 de setembro de 1914 (entrementes famoso), em que Theobald von Bethmann Hollweg, Chanceler do Império e Primeiro-Ministro da Prússia entre 1909 e 1917, formulou pela primeira vez explicitamente os objetivos de guerra alemães. Esse documento havia sido sempre deixado de lado pelos historiadores de viés conservador. Tomando-o como referência, Fischer articula dois argumentos nodais para a virada historiográfica: a dependência mútua entre política interna e política externa, de uma parte, e de ambas com relação a interesses econômicos. Para a historiografia ocidental até então, essa argumentação assemelhava-se a uma verdadeira revolução, já que só apareciam em autores de inspiração marxista. O terremoto causado por Fischer se deveu a duas claras afirmações: primeiramente, que o governo imperial, em julho de 1914, não corria apenas o risco de entrar em guerra mas se havia preparado intencionalmente para ela. Em segundo lugar, evidenciou que os objetivos expansionistas da guerra eram apoiados pelos extremistas pangermânicos (como o futuro aliado de Hitler na tentativa de golpe de 1923, general Luddendorf), como dispunha de vasto espectro de simpatias populares e políticas. O congresso nacional alemão de História, em 1964, reconheceu – após debates intensos e acalorados – que Fischer afinal tinha boa dose de razão. Sua argumentação demonstrou que a política alemã de 1914 provinha de continuidades e gerou continuidades que, ainda nos anos 1960, careciam de análise crítica, tanto quanto ao passado como quanto ao presente. A polêmica em torno de Fischer sinaliza uma troca de guarda na historiografia alemã ocidental e a emergência de uma nova geração. A estabilidade econômica e o desenvolvimento positivo da convergência social no espaço público alemão-ocidental abriram a reflexão para o processo de modernização também no aparelho intelectual e universitário.

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A análise categorial das teorias sociológicas recebe o reforço das teorias econômicas do crescimento e o fermento crítico da Escola de Frankfurt (em especial Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, Jürgen Habermas e Alfred Schmidt) abrem as portas para uma aproximação diferenciada de Marx, cuja dependência de Hegel é fortemente destacada. Essa combinação crítica indica uma tomada de consciência, não apenas entre os historiadores, dos limites dos métodos quantitativos, sem os rejeitar, a priori, como demasiado restritos. A Escola de Frankfurt recusa a preferência “unidimensional” (Herbert Marcuse) pelos “fatos” – comum a positivistas, comportamentalistas e historiadores quantitativistas – e defendem uma “teoria crítica”, que denuncia a irracionalidade da situação política e social e promove a transição das relações sociais para uma comunidade de homens autônomos, emancipada das coerções e dominações irracionais.27 A visão de Marx de um homem não alienado é associada, pela Escola de Frankfurt, ao pessimismo freudiano quanto aos limites de uma reorganização social com sentido. A Escola fornece, assim, a uma geração ávida de preservar o rigor documentalista do historicismo sem ter de arcar com o ônus do conservadorismo positivista a ele associado, uma teoria crítica independente e criativa, que permita admitir também a militância política sem comprometer a qualidade científica e a autoridade acadêmica. A influência da Escola de Frankfurt sobre a historiografia foi bastante difusa e, por conseguinte, de difícil mensuração – na medida em que os integrantes da Escola não produziram muitos trabalhos de história das idéias ou da cultura. Dentre os historiadores contemporâneos que reconhecem a influência da teoria crítica em seus trabalhos, destacam-se Hans-Ulrich Wehler e Dieter Groh. O movimento de análise crítica da história presente e passada a partir do final dos anos 1960, representada por esses historiadores, inclui o importante fator do interesse na construção de uma sociedade futura organizada racionalmente.28 A teoria crítica se mescla, na atividade historiográfica de enquadramento da memória alemã sob as condições políticas e econômicas dos anos 1970-1980 com duas correntes fundamentais: o pensamento de inspiração marxiana e o de inspiração weberiana. Essa tríade compõe uma síntese da ênfase na clareza conceitual com o rigor empírico de pesquisa, que correspondia à tradição das ciências sociais anglo-saxãs e da busca de compreensão dos processos sociais de preservação e transformação. O caldo de cultura da querela em torno de Fischer fez frutificar assim o interesse pela análise crítica do passado alemão recente, com quadro referencial teórico e procedimentos metódicos renovados. O fenômeno do nazismo e de sua explicação carreia água para o moinho dos pesquisadores que defendem a

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tese da continuidade (mesmo se relativa) na história alemã, ao menos desde a fundação do Reich, em 1871. Bismarck e Guilherme II, tanto como as relações políticas e sociais de Weimar, são fontes inesgotáveis de inspiração e de investigação. As grandes estruturas sociais e os jogos de poder entre empresariado, partidos políticos, aristocracia, forças armadas e assim por diante, são os objetos que ocupam a primeira posição, mais do que indivíduos. Um dos textos mais representativos dessa história social-estrutural do longo prazo é Deutschlands Weg zur Grossmacht (Alemanha: a caminho da superpotência),29 de Helmut Böhme, um discípulo de Fischer, publicada em 1966. O principal do material de arquivo pesquisado por Böhme diz respeito à política comercial dos Estados alemães. Diversos outros trabalhos seguem a mesma inspiração, respondendo assim às questões levantadas por Fischer acerca da influência de grupos de interesse econômico na política exterior. Muitos dos autores desses trabalhos são doutorandos de Fischer, em Hamburgo, de Gerhard A. Ritter, em Berlim ou em Münster, ou ainda de Theodor Schieder e Werner Conze. Além do impulso desses orientadores, os pesquisadores lançam mão de trabalhos – até hoje pouco difundidos na Alemanha – de historiadores socioeconômicos do período de Weimar, como por exemplo Eckhart Kehr, precocemente falecido em Washington, em 1933, aos 31 anos de idade.30 Kehr antecipa uma história inspirada em uma “teoria crítica” que combina as idéias de Weber sobre a burocracia e a estratificação social com as de Marx sobre o papel do Estado como promotor da dominação de classe. A publicação de Kehr em meados dos anos 1960, por iniciativa de Wehler, indica o novo vento que sopra sobre a historiografia alemã, em direção à história social e à história cultural, integrando o fator econômico na moldura maior do pensamento e da forma de vida. Os trabalhos se enfileiram. Por exemplo: política, economia e sociedade são os protagonistas estudados por Hans J. Puhle ao se debruçar sobre as alianças dos agricultores,31 a social-democracia e seu papel na conformação institucional da Alemanha a partir da fundação do Reich é o tema que publica Dieter Groh,32 e o fenômeno do império alemão como um todo, para Hans-Ulrich Wehler.33 Cabe mencionar que o crescimento exponencial do interesse pela história social e pela sua função na “domesticação” da turbulenta memória alemã do século 20 conduz à fundação da talvez segunda maior revista de história da Alemanha contemporânea: Geschichte und Gesellschaft, em 1975. O título e o subtítulo consagram a tendência teórica da historiografia: História e Sociedade. Revista de Ciência Social Histórica. Os índices dessa revista indicam como ela passou a reunir o amplo espectro da preocupação social de apreensão e crítica

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do passado (não só alemão, mas principalmente o da Alemanha) expresso na nova geração de historiadores. Nesta, destaca-se o trabalho de Jürgen Kocka, fortemente marcado pelas idéias de Max Weber. É de Kocka, então professor na Universidade de Bielefeld, verdadeira Meca da escola alemã de história social, o artigo inaugural da revista. Titular da Cátedra Meinecke na Universidade Livre de Berlim desde 1988, Kocka é certamente o segundo maior representante da escola de história social de Bielefeld.34 A tônica desses trabalhos não se situa na influência direta ou preponderante dos interesses econômicos, mas no problema mais profundo do predomínio social e político de grupos. A combinação do método histórico tradicional da compreensão com a análise crítica textual aplica-se doravante a problemas novos e a novos materiais. A estrutura e a mudança sociais são o cerne da questão. O desenvolvimento de pesquisas dessa natureza, contudo, acentua a necessidade de examinar mais detidamente o fundamento teórico desta virada. Nos anos 1970, surgem, assim, estudos e pesquisas cada vez mais especificamente voltadas para a teorização e metodização em História. A teoria e metodologia da História, com sua aplicação empírica à pesquisa estrutural do pensamento, das idéias e dos movimentos sociais, passa a ocupar uma posição de destaque nas preocupações da comunidade historiográfica. A historiografia trabalha, admitidamente, com a concepção weberiana do agir humano racional e intencional, a partir de valores. A História, como a Sociologia, pode ser compreensiva, não de elementos psicológicos da subjetividade individual, mas de elementos intencionais da teleologia racional autônoma dos agentes. Os “tipos ideais” concebidos por Weber tornam-se, para a historiografia, idéias regulativas, instrumentos heurísticos que auxiliam na construção interpretativa da evolução histórica real. A Alemanha sedia – ao lado dos Estados Unidos e da Inglaterra – o maior movimento de sistematização teórica da ciência histórica do século 20. Reinhart Koselleck deve ser referido como o chefe de fila desse movimento. Sua obra é marcante e concilia rigor empírico e estruturação do substrato teórico da história social e intelectual como fatores de constituição da identidade temporal da sociedade alemã.35 Historicidade e historicização são constantes que Koselleck quer ver localizadas no tecido da formação social alemã, tanto pela cultura quanto pela linguagem ou pela interdependência temporal entre passado, presente e futuro. Semelhantemente ao medievalista francês Georges Duby, que afirmou ser a História apenas o sonho controlado do historiador; Koselleck vê na construção historiográfica uma atividade em que o risco do subjetivismo é constante. Somente o procedimento metódico preserva o historiador do risco do desva-

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rio e do ficcionismo. A metodologia possui, assim, uma função corretora, ao manter presente que a história não é auto-evidente, mas um artefato do historiador, por certo nutrido pela autocrítica e pela ética da pesquisa. Koselleck trouxe para a ribalta da historiografia as características do conhecimento histórico como consistindo em algo mais do que o mero inventário das fontes. A noção de constructo historiográfico e a teoria das múltiplas histórias possíveis (a partir do mesmo estoque de fontes) devem sua sistematização a Koselleck. Para o vivo debate que envolve a questão epistemológica da cientificidade da história e a questão filosófica da historicidade da razão contemporânea, as pesquisas de Jörn Rüsen e os resultados por ele obtidos são fundamentais e indispensáveis.36 Dentre os membros de um ativo grupo de pesquisas que reuniu, na Alemanha, de 1973 até 1989, historiadores, filósofos, sociólogos e politólogos, dedicado a dissecar atentamente a questão da história37, é Rüsen apresenta um sistema moderno, abrangente e coerente de teoria da história. Não resta dúvida de que a produção do grupo de trabalho (seis volumes) tornou-se obra de referência, no mundo contemporâneo, para qualquer estudioso da teoria e da metodologia da ciência histórica. Em 1989, saiu o sexto volume, organizado por Karl Acham e Winfried Schulze, marcado pela amplitude filosófica da problemática relativa ao “todo” e à “parte”. Esse volume completa um ciclo que ao mesmo tempo especializou-se e estendeu-se, numa demonstração do duplo aspecto que caracteriza a história: sua especificidade científica e sua abrangência racional. Da questão acerca da objetividade e do partidarismo na ciência histórica passou-se à dos processos históricos, à da teoria e narrativa na história, à das formas da historiografia e, em 1988, à questão do método histórico. Entre esses trabalhos e os de Rüsen subsiste uma relação de dependência mútua: dificilmente aqueles volumes teriam sido possíveis sem a contribuição decisiva de Rüsen e este, sem dúvida, não teria amadurecido e formulado sua posição sem o debate e o desafio dos colegas, bem como, logo após as primeiras publicações, sem a cordial e atenta expectativa do público.38 Detenhamos-nos no volume de Rüsen sobre a história viva. Já o título introduz o leitor num universo radicalmente diferente daquele em que habitualmente se ouve falar de história, em que o passado (em certo sentido “morto”) é determinante. Na abordagem sistêmica contemporânea, a função do presente, por conseguinte dos interesses ativos atuais, é indispensável para a elaboração de qualquer saber reconhecidamente válido. Nesses termos, um saber histórico “a-histórico” seria um paradoxo cuja exigência metodológica careceria de sentido. Assim, não há saber histórico sem forma; o saber histórico exerce

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sempre funções na vida cultural do presente, e ambos desempenham um papel essencial no trabalho do historiador. Para Rüsen, a forma e a função da história são sua vida. Somente na medida em que o resultado (quantas vezes “seco”, “árido”, “difícil”) da competência científica logra assumir forma socialmente convincente e, portanto, exercer função de orientação, tanto para o especialista como para o grande público, ele vive. Sem essa dupla condição, considera Rüsen – com razão –, de pouco adiantaria à História ter-se esforçado por obter resultados que ficariam sepultados sob a poeira dos arquivos. A interação pragmática entre saber e experiência histórica, de uma parte, e a realidade presente do agente racional humano (seja ele o historiador profissional, seja ele o cidadão comum que se depara com a historiografia ou com o uso dela), de outra parte, inclui, nas tarefas da teoria da história, a reflexão sobre a questão do saber se e como a ciência histórica e sua produção se relacionam praticamente com o agir social concreto do historiador. Assim, a História, como ciência especializada, está continuamente em relação íntima com educação, política e arte. Decerto, toca Rüsen aqui justamente um dos círculos concêntricos mais amplos da ação historiográfica profissionalizada: a difusão e o uso do saber histórico no discurso social, sobretudo na definição da ação político-governamental, nas concepções pedagógicas (fundamentais para o processo social de aprendizado dos papéis de identidade que são desempenhados na organização social e política dos homens, entre si e no Estado) e na estilística narrativa (em que se resgata a candente questão literária, relativa à historiografia narrativa, na perspectiva do discurso fundador e instituidor de sentido), cuja função é igualmente importante no processo de convencimento. Desde sua perspectiva integral, Rüsen propõe uma expressão globalizante para apreender a complementaridade das operações históricas (apreensão, compreensão, explicação): Geschichtskultur (cultura histórica). Não se trata de mera erudição, mas da articulação sistemática do aspecto cognitivo praticado pela ciência com os aspectos político e estético do mesmo trabalho sem que se dê a (infelizmente) freqüente instrumentalização de um pelo outro. Como Koselleck e Rüsen, muitos outros historiadores dedicaram-se ao trabalho de fundamentação de seus construtos historiográficos. A diversidade temática se amplia, mas a tônica continua recaindo sobre a estrutura de longo prazo da Alemanha, ad intra, como organização nacional da sociedade,39 e ad extra, como Estado ativo no contexto internacional40 e cuja sociedade é comparável e comparada com as demais em sua evolução política, econômica e cultural. Nesse contexto é de recordar a monumental História Alemã (Deutsche

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Geschichte)41 de Thomas Nipperdey. O autor evita, intencionalmente, utilizar a expressão “História da Alemanha” ou “História dos alemães”, como outros historiadores (alemães ou não). Nipperdey, como H. Schulze42 ou J. Osterhammel43 são exemplos da história social crítica da Alemanha ao final do século 20, que consolida a visão culturalista e estrutural do longo prazo, em perspectiva compreensiva, enraizada entretanto em amplíssimo e pormenorizado trabalho de coleta em arquivos, sem tabus nem interditos. Restava contudo, na Alemanha, às vésperas da reunificação em 1990, um grande tabu. Se o período de Weimar e o do nacional-socialismo já se haviam aberto ao corte crítico da análise, o holocausto dos judeus permanecia velado sob um pudico véu constrangido. Desde 1985-1986 o tratamento da era nacional-socialista trazia consigo dificuldades e divergências. Foi preciso que biografias de Hitler, por assim dizer, desbravassem o caminho e desmitificassem o tema.44 Em 1996, a publicação do livro do historiador americano Daniel J. Goldhagen, sobre o Holocausto, desencadeia a terceira grande polêmica historiográfica na Alemanha contemporânea, conhecida como a Historikerstreit. A tese de Goldhagen é simples e dura: todos os alemães são corresponsáveis pelo nazismo e pelo Holocausto. A reação é viva e arrasta atrás de si uma responsabilidade científica fundamental dos historiadores, sobretudo dos alemães: existe culpa coletiva irrestrita? Corda sensível da memória e da consciência – privada e pública – alemãs, a questão levantada suscita um vendaval de discussões e de posições contrárias. Sem que se entre no mérito do acerto ou do desacerto da tese de Goldhagen, pode-se constatar que essa polêmica tem o mérito de ter arrancado quem sabe o último véu da historiografia alemã contemporânea. Essa é ao menos a clara conseqüência que se pode tirar, por exemplo, dos ensaios de Hans Ulrich Wehler45 ou de Jörn Rüsen.46 Esse capítulo da historiografia alemã ainda está sendo escrito – e sob a influência direta de inúmeros impulsos vindos, de certa maneira, de fora, como no caso de Saul Friedländer47 – e de modo menos passional ou interessado.

A HISTORIOGRAFIA NA ALEMANHA ORIENTAL: MATERIALISMO HISTÓRICO E ORTODOXIA POLÍTICA O ano de 1949 viu nascer uma segunda Alemanha. A República Democrática Alemã (DDR) emergiu da zona de ocupação soviética subse-

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qüente à 2.ª Guerra Mundial. À semelhança da unificação política e da padronização cultural impostas pela administração soviética, a vida universitária e científica da Alemanha Oriental passa a estar submetida à ortodoxia doutrinária do marxismo-leninismo e do materialismo dialético. Assim, a historiografia alemã-oriental dedica-se ao acerto geral de contas com um passado alemão, regra geral recusado, e com a construção ideológica do “Estado dos trabalhadores e dos camponeses” como formato ideal da sociedade socialista. “O passado, repete-se amiúde, deve ser domesticado. [...] Passado – eis algo que não se apreende com golpes de machadinha ou vassouradas, incinerando o ruim e punindo o culpado.” Fritz Klein, o autor dessas linhas, certamente sabe do que está falando. Ao publicar suas memórias em 2000,48 esse reconhecido historiador da DDR, especialista na 1.ª Guerra Mundial, reconhece não ter sido crítico do Estado unipartidário na Alemanha Oriental. A experiência da perseguição sob o regime nazista o transforma em um convicto socialista. Ingressa no Partido Comunista da Alemanha em 1946, aos 22 anos, por considerar haver sido este o único a ter resistido incondicionalmente aos nazistas, a ter sofrido a mais brutal das perseguições e a ser os mais coerentes na reconstrução política. Como Klein, muitos intelectuais da Alemanha Oriental têm esse passado e essa disposição combativa. Confiante e otimista, o jovem intelectual na Alemanha Oriental recém-dividida tem esperanças e expectativas. Ilusões totalitárias parecem-lhes impossíveis. Esse otimismo – considerado por alguns ingênuo – se transpõe para uma historiografia emancipatória e libertária. Deficits de liberdade e de direitos não embaraçam os que se vêem como arautos de um futuro melhor e construtores de uma sociedade igualitária. No entanto, o rigor crítico da pesquisa, que forja o especialista, logo põe a dura prova o historiador. O redator-chefe da revista de História da DDR (Zeitschrift für Geschichtswissenschaft) em 1953, é afastado em 1957 por motivo de insuficiente fidelidade às diretrizes partidárias oficiais. Regra geral, contudo, malgrado afastamentos e ostracismos, a absoluta maioria dos profissionais de História na DDR manteve-se submissa à regulação partidária – independentemente da qualidade técnica que houvessem adquirido para a pesquisa documental. Um exemplo marcante dessa dependência, dessa subserviência está no Atlas de História, de 1970, publicado por uma comissão do Partido Socialista Unificado da Alemanha: no prefácio do primeiro volume, esclarece-se o leitor de que os mapas mostram ao leitor “as linhas principais da luta de classes”, em particular “as grandes batalhas de classe, a começar pela revolução, e, em relação com ela, a economia, as modificações político-territoriais, mas também os processos intelectuais e culturais. Em seguida, a ênfase se dá “à formação e à 62

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evolução das três poderosas correntes revolucionárias”... “que promovem o progresso da humanidade: o sistema socialista universal, o movimento internacional dos operários e o movimento nacional de libertação dos povos”.49 A historiografia na DDR, pois, dispôs – isoladamente – de especialistas em campos restritos (notadamente em História Antiga), mas no seu conjunto ficou escrava da “segunda ditadura alemã do século 20” (Jürgen Kocka).50

A ALEMANHA REENCONTRADA: A RECONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE COMUM Ao discursar na cerimônia pública solene de comemoração da reunificação alemã, em 3 de outubro de 1990, o ex-chanceler federal Willy Brandt, afirmou: “Agora cresce novamente junto o que pertence um ao outro”. As ciências sociais alemãs, na página que se abriu em 1990, têm-se dedicado a escrever uma história em que as rupturas sejam pensadas, interpretadas, entendidas, explicadas e, sobretudo, culturalmente processadas. E não apenas no plano formal da ciência, mas também no das consciências. Assim, a história como ciência da cultura consolida-se como fator social de coesão e de articulação crítica do passado. A interação com o ensino da história nas redes escolares, com o espaço público (museus, exposições, cinema, televisão), com o mundo editorial e periodístico está igualmente sendo mais e mais valorizada. A história da Alemanha, dos alemães, da sociedade e da cultura de expressão alemãs são variantes da historiografia mais recente.51 Nela está presente também o aspecto multicultural comparativo, tanto com respeito às sociedades implantadas na Alemanha (após o período de imigração econômica provocado pelos “Trinta Gloriosos”, por exemplo: a comunidade turca) como relativamente à sociedade internacional, especialmente no caso da construção política da União Européia. A opção preferencial da Alemanha Federal pela ocidentalização, em 1949-1995, transformou-se em uma europeização decidida, que abriu também a historiografia.52

NOTAS 1 RÜSEN, Jörn. Historik. v. 1: Razão histórica (1983). Brasília: Ed. da UnB, 2001; v. 2: Rekonstruktion der Vergangenheit (1986). v. 3: Lebendige Geschichte (1989). Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht.

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2 O primeiro grande balanço “clássico” dos caminhos da história no século 20 está em SAMARAN, Charles (Org.). L’Histoire et ses méthodes. Paris: La Pléiade, 1961. Cf. também: CARBONNELL, Ch.-O.; WALCH, Jean (Org.). Les sciences historiques de l’Antiquité à nos jours. Paris: Larousse, 1994. 3 Griff nach der Weltmacht. Die Kriegszielpolitik des kaiserlichen Deutschland 1914/1918. Düsseldorf: Droste, 1961. (3. ed. rev. 1967.) 4 Georg I. Iggers apresenta uma boa síntese das tendências historiográficas até meados dos anos 1970: Neue Geschichtswissenschaft. Vom Historismus zur Historischen Sozialwissenschaft. München: DTV, 1978. (ed. orig. Wesleyan University Press, 1975.) 5 Deutsche Geschichte. Berlin: R. Gaertners Verlagsbuchhandlung, 1895-1909. 12 v. 6 Weltbürgertum und Nationalstaat. Studien zur Genesis des deutschen Nationalstaates. München: R. Oldenbourg, 1907. 7 Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte. Berlin: R. Oldenbourg, 1924. 8 Cf. por exemplo, RINGER. F. K. The Decline of the German Mandarins. The German Academic Community 1890-1933. Cambridge: Harvard University Press, 1969. 9 HINTZE, Otto. Wesen und Wandlung des modernen Staates. Berlin: Sitzungsberichte der Preußischen Akademie der Wissenschaften, 1931. 10 Deutsche Geschichte im 19. Jahrhundert. Friburgo i. B.: Herder, 1929; Deutschland in den weltgeschichtlichen Wandlungen des letzten Jahrhunderts. Leipzig: B. G. Teubner, 1925. 11 Cf. diversas contribuições em FAULENBACH, B. Geschichtswissenschaft in Deutschland. München: Beck, 1974. 12 1869-1945. Idoso, Oncken não sobreviveu para ver o renascimento alemão após 1945. Uma coletânea interessante de seus textos sobre o Estado, a nação e a história está em: Nation und Geschichte; Reden und Aufsätze, 1919-1935. Berlin: G. Grote'sche Verlagsbuchhandlung, 1935. 13 1888-1967. Ritter, ao retornar à cátedra, marcou – com seus numerosos discípulos – o início do processo crítico de reflexão historiográfica. 14 1904-1988. Rosenberg somente retornou à Alemanha aposentado de Berkeley, em 1977. Sua obra mais marcante é Bureaucracy, aristocracy, and autocracy; the Prussian experience, 1660-1815. Cambridge: Harvard University Press, 1958. 15 Cf. HEIBER, H. Walter Frank und sein Reichsinstitut für Geschichte des Neuen Deutschlands. Stuttgart: Kohlhammer, 1966. W. Frank foi o historiador oficial do partido nazista. Para o período nazista, sua atividade foi claramente política e os textos publicados, discursos ou apologias político-partidárias como: Zur Geschichte des Nationalsozialismus. Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1934. Kämpfende Wissenschaft. Mit einer Vorrede des Reichsjugendführers Baldur von Schirach. Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1934. Zunft und Nation; Rede zur Eröffung des "Reichsinstituts für Geschichte des neuen Deutschlands”. von Walter Frank. Hamburg: Hanseatische Verlagsanstalt, 1935. 16 Do grupo de historiadores no exílio, G. Iggers lembra ainda F. Stern: Kulturpessimismus als politische Gefahr (Berkeley, 1963) e outros. Citado, p. 105. 17 ABUSCH, A. Der Irrweg einer Nation. Berlin, 1946 [em: Schriften. Berlin: AufbauVerlag, 1967. v. 3].

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18 LUKÁCS, G. Die Zerstörung der Vernunft. Berlin: Aufbau-Verlag, 1954. 19 Citado, p. 106. 20 Nascido em 1926, Iggers emigrou com seus pais ainda criança. Estudou, fez carreira e aposentou-se em Nova York. 21 Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. Stuttgart: Klett-Cotta, 1972-1997. v. 1-8/1 e 2. 22 Industrielle Welt. Schriftenreihe des Arbeitskreises für Moderne Sozialgeschichte. Stuttgart: Klett-Cotta, 1962 (v. 1-59); Köln: Böhlau (v. 60 em diante). 23 1919-1999. 24 MEINECKE, F. Die deutsche Katastrophe. Zürich: Aero-Verlag, 1946. RITTER, G. Carl Goerdeler und die deutsche Widerstandsbewegung. Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt, 1955. ROTHFELS, H. Die deutsche Opposition gegen Hitler. Frankfurt: Fischer, 1960. 25 Griff nach der Weltmacht. Die Kriegszielpolitik des kaiserlichen Deutschland 1914/18. Düsseldorf: Droste, 1961. 26 Konrad Adenauer (1876-1967), 1º. chanceler federal alemão (1949-1963). 27 HORKHEIMER, Max. Traditionnelle und kritische Theorie. Zeitschrift für Sozialforschung 6, p. 245-294, 1937. É o primeiro artigo em que o autor expõe o cerne da teoria. Junto com três outros, é republicado em Traditionelle und kritische Theorie. Frankfurt am Main: Fischer, 1970. 28 WEHLER, Hans-Ulrich. Bismarck und der Imperialismus. Frankfurt: Suhrkamp, 1984 (2. ed. de bolso; ed. orig. 1969). GROH, Dieter. Kritische Geschichtswissenschaft in emanzipatorischer Absicht. Stuttgart: Kohlhammer, 1984. 29 Deutschlands Weg zur Grossmacht. Studien zum Verhältnis v. Wirtschaft u. Staat während d. Reichsgründungszeit, 1848-1881. Köln: Kiepenheuer & Witsch, 1966. Die Reichsgründung. München: DTV, 1967. Prolegomena zu einer Sozial-und Wirtschaftsgeschichte Deutschlands im 19. und 20 Jahrhundert. Frankfurt: Suhrkamp, 1968. 30 Der Primat der Innenpolitik. Gesammelte Aufsätze z. preuss.-dt. Sozialgeschichte im 19. u. 20. Jahrhundert. Hrsg. Hans-Ulrich Wehler. Berlin: De Gruyter, 1965. 31 Agrarische Interessenpolitik und preussischer Konservatismus im Wilhelminischen Reich 1893-1916. Hannover: Verlag für Literatur und Zeitgeschehen, 1966. 32 Negative Integration und revolutionärer Attentismus; die deutsche Sozialdemokratie am Vorabend des Ersten Weltkrieges. Frankfurt am Main: Propyläen, 1973. 33 Das deutsche Kaiserreich, 1871-1918. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1973. 34 Unternehmensverwaltung und Angestelltenschaft am Beispiel Siemens 1847-1914. Stuttgart: [Klett], 1969. Klassengesellschaft im Krieg. Deutsche Sozialgeschichte 1914 bis 1918. Göttingen: [Vandenhoeck und Ruprecht], 1973. Unternehmer in der deutschen Industrialisierung. Göttingen: [Vandenhoeck und Ruprecht], 1975. Sozialgeschichte. Begriff, Entwicklung, Probleme. Göttingen: [Vandenhoeck und Ruprecht], 1977. Angestellte zwischen Faschismus und Demokratie. Zur politischen Sozialgeschichte der Angestellten. USA 1890-1940 im internationalen Vergleich. Göttingen: [Vandenhoeck und Ruprecht], 1977. Die Angestellten in der deutschen Geschichte 1850-1980. Vom Privatbeamten zum angestellten Arbeitnehmer.

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Göttingen: [Vandenhoeck und Ruprecht], 1981. Lohnarbeit und Klassenbildung. Arbeiter und Arbeiterbewegung in Deutschland 1800-1875. Berlin: [J. H. W. Dietz], 1983. Bürgertum im 19. Jahrhundert. München: [DTV], 1988. Weder Stand noch Klasse. Unterschichten um 1800. Bonn: [J. H. W. Dietz], 1990. Arbeitsverhältnisse und Arbeiterexistenzen. Grundlagen der Klassenbildung im 19. Jahrhundert. Bonn: [J. H. W. Dietz], 1990. Vereinigungskrise. Zur Geschichte der Gegenwart. Göttingen: [Vandenhoeck und Reprecht], 1995. 35 Kritik und Krise. Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt. Frankfurt: Suhrkamp, 1973; Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten. Frankfurt: Suhrkamp, 1979; Zeitschichten. Studien zur Historik. Frankfurt: Suhrkamp, 2000. 36 Jörn Rüsen foi professor de Teoria da História nas Universidades de Bochum e de Bielefeld (onde sucedeu a R. Koselleck em 1989). Preside, desde 1996, o Instituto de Estudos Avançados de Essen. Destacam-se, entre suas obras: Grundzüge einer Historik. Göttingen: [Vandenhoeck und Reprecht], 1983-1989. 3 v. O primeiro volume (Razão histórica) está publicado pela Editora da Universidade de Brasília (2000). Os outros dois volumes seguirão, Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer, 1990). Konfigurationen des Historismus. Studien zur deutschen Wissenschaftskultur. Frankfurt am Main: [Suhrkamp], 1993. Studies in Metahistory. Pretoria: [Human Sciences Research Council], 1993. Historische Orientierung. Über die Arbeit des Geschichtsbewußtseins, sich in der Zeit zurechtzufinden. Köln: [Böhlau], 1994. Historisches Lernen. Grundlagen und Paradigmen. Köln: [Böhlau], 1994. Historische Sinnbildung. Co-autoria com Klaus E. Müller. Reinbek bei Hamburg: [Rowohlt], 1997. Zerbrechende Zeit. Über den Sinn der Geschichte. Köln: [Böhlau], 2001. Kann Gestern besser werden? Essays zum Bedenken der Geschichte. Berlin: [s.n.], 2002. Geschichte im Kulturprozess. Köln: [Böhlau], 2002. 37 Cf. minha análise: Atualidade e relevância da teoria da história. Um debate contemporâneo. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, 1, p. 49-58, 1983. 38 Outras obras de J. Rüsen de relevância para a questão da teoria e do método da ciência histórica, são: Begriffene Geschichte (1969), Für eine erneuerte Historik (1976), Ästhetik und Geschichte (1976), além de diversos outros artigos em obras coletivas. 39 Por exemplo: FRIED, Johannes. Der Weg in die Geschichte. Berlin: Ullstein, 1998. 40 Cf. BOOCKMANN, H. et al. Mitten in Europa. Berlin: Siedler, 1999. 41 München: Beck, 1983-1992. 3 v. 42 Der Weg zum Nationalstaat. München: DTV, 1997. 43 Geschichtswissenschaft jenseits des Nationalstaats. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 2001. 44 Hitler. Eine Biographie. Berlin: Ullstein, 1973. 45 Entsorgung der Vergangenheit. Ein polemischer Essay zum “Historikerstreit”. München: Beck, 1988. 46 Trauer und Geschichte. B. Liebsch und Jörn Rüsen (Hg.). Köln: Böhlau, 2001. 47 Nazi Germany and the Jews: The Years of Persecution 1933-1939. Griedlander: [s.n.], 1999. 48 Drinnen und Draussen. Frankfurt: Fischer, 2000.

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49 Atlas zur Geschichte. Berlin-DDR: VEB-Druck, 1970. 50 Die Auswirkungen der deutschen Einigung auf die Geschichts-und Sozialwissenschaften. Conferência perante o Círculo de Estudos de História da Fundação Friedrich Ebert, em Bonn, 29 de janeiro de 1992. [ed. eletrônica; Bonn: FES Library, 1999. 51 WEHLER, H.-U. Historisches Denken am ende des 20. Jahrhunderts. 1945-2000. Göttingen: Wallstein, 2001. 52 Cf., a título de exemplo, JEISMANN, K.-E.; RIEMENSCHNEIDER, R. (Org.). Geschichte Europas für den Unterrricht der Europäer. Braunschweig: Westermann, 1980.

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UM CERTO NÚMERO DE IDÉIAS PARA UMA HISTÓRIA SOCIAL AMPLA, GERAL E IRRESTRITA Antonio Luigi Negro1

DEPOIS DA QUEDA “Que o número de nossos membros seja ilimitado”, reza a primeira das diretrizes da Sociedade Londrina de Correspondência.2 Ao citar esta conhecida passagem de Formação da Classe Operária Inglesa, não deveria constituir grande surpresa reparar que dois dos mais lidos e inovadores estudiosos sobre trabalho, no Brasil, também recorreram a ela quando se pronunciaram a respeito da influência de E. P. Thompson. O fato de José Sérgio Leite Lopes, em uma mesa denominada Tributo a Edward Thompson, e Sidney Chalhoub, noutra mesa (chamada E. P. Thompson no Brasil), terem invocado esse episódio inglês é um traço do prestígio – mais abrangente – de toda a historiografia marxista britânica entre nós.3 Mesmo com a irritação que isso pode provocar em especialistas estrangeiros,4 E. P. Thompson, Christopher Hill e Eric Hobsbawm têm sido – ao lado de outros mais (como C. Castoriadis, E. Genovese, M. Perrot, R. Williams) – 5 uma vívida fonte de inspiração e referência, aqui e em outros países da América Latina.6 Vale reparar, a despeito disso, que o mais famoso livro de Thompson foi citado apesar da inexistência de um diálogo longamente estabelecido entre os estudos da classe trabalhadora brasileira, em geral divididos entre seu passado autóctone e o influxo da imigração européia. Embora se verifique um consenso de que um tal diálogo seja necessário – e que já segue seu curso –,7 é notá-

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vel encontrar a Sociedade Londrina de Correspondência como ponto de interseção dos nossos estudos sobre trabalho nos séculos 19 e 20. Usada para tomar de assalto as muralhas que dividiam os séculos 18 do 19 na historiografia da Inglaterra,8 está servindo também para escrever uma história do Brasil não só a partir da luta de classes mas a partir de uma classe trabalhadora que não seja branca, industrial e urbana. A título de provocação, pode ser argumentado que Chalhoub e Leite Lopes não se confrontem, que dão de ombros para a questão; enquanto o primeiro está voltado para o século 19, o segundo se interessa pelo 20 – e somente a partir da Revolução de 1930. Precisamente, meu propósito é manter-me na oposição a este raciocínio.9 A historiografia marxista britânica não é apenas um recurso para nós brasileiros conhecermos a história social anterior e posterior às ondas imigratórias européias mas também é da mais alta valia para conhecermos o processo multicultural, interétnico e internacionalista de formação da classe trabalhadora.10 De acordo com Chalhoub,11 os trabalhadores escravos do século 19 exibiam uma indefectível consciência da sua situação de classe. Uma tal percepção acurada, ele argumentou, era informada por sua própria linguagem de classe, que era produto de sua cultura de classe. Antes da defesa do ofício, sua causa política era a liberdade, a emancipação. Ao se mobilizarem em função disso, quando suas organizações se dirigiam ao Conselho de Estado imperial demandando reconhecimento, podiam bem receber uma negativa como resposta. Em contraste com sua cultivada aura de tolerância, a recusa do Império ante a requisição de reconhecimento por parte das organizações dos trabalhadores se revestiu de um alarme de classe. Os conselheiros de D. Pedro II exprimiram apreensão acerca de uma “classe separada”, em vias de descolamento do corpo nacional, uma formação que podia ser não só coesa mas também antagônica. Como conseqüência, o imperador foi instruído a encomendar à polícia uma infiltração entre os peticionários, o que providenciaria informações à Sua Majestade. Em seu livro,12 Leite Lopes nos interpela a dirigir a atenção para um núcleo pioneiro de nossa industrialização, as fábricas têxteis (muitas delas de tecnologia e capital britânicos). Ele então demonstra que a propalada origem rural do operariado fabril não é tão desservida de recursos como se supõe nem constitui “o” grande obstáculo à formação de uma consciência de classe entre os trabalhadores.13

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Ao examinarem casos bem distintos, Chalhoub e Leite Lopes evidenciam os procedimentos democráticos para a incorporação de um número ilimitado de membros (ao menos teoricamente). Nesse sentido, ambos examinam os padrões de associativismo, os direitos e deveres dos membros afiliados, a exortação a um moral político elevado, o acesso à voz e à representação e práticas de auxílio mútuo. Pensando processos históricos particulares, analisam uma história em que os trabalhadores se servem da lei não só para ganhar proteção para seus costumes em comum mas também para criar direitos incomuns. Demonstram, ainda mais, como as ações dos trabalhadores podiam levantar barreiras ao domínio senhorial ou patronal ao mesmo tempo em que se revelam como uma classe subalterna. Portadoras de dignidade à vida cotidiana de seus associados, as organizações que Chalhoub e Leite Lopes abordam são evidência de que a emancipação dos operários é obra da própria classe operária. No Brasil oitocentista, isso significa dizer que, com ou sem liberdade, os trabalhadores haveriam de se defrontar com a inviolabilidade da voz de comando senhorial, num quadro de relações sociais tingidas de paternalismo, mas nem por isso removidas de lutas de classe.14 Esse vetor estrutural da sociedade e política brasileiras, na verdade, sobreviveria ao declínio do Brasil escravocrata e cafeicultor. No pós-30, a idéia de uma regulação das relações capital-trabalho por uma lei universal, que determina direitos e deveres recíprocos, confrontou-se, com freqüência, com valores e práticas cultivados, com arbitrariedade e na vida privada, pelas classes dominantes. Esse fenômeno foi desde logo observado nos estudos sobre industrialização e sindicalismo: a respeito do surgimento de um sindicato entre operários têxteis, L. M. Rodrigues escreveu que sua constituição foi encarada “pelas empresas como a quebra de uma relação de lealdade e respeito para com os patrões”.15 Retirar o inconteste arbítrio pessoal do senhor ou do patrão – ambos mediados pelo “feitor” no trato com seus trabalhadores – e introduzir a disputa na esfera pública não provocava repulsa entre esses mesmos trabalhadores, livres ou não, industriais ou não. Rompendo com a lógica da dominação de classe, afirma Chalhoub, trabalhadores negros e escravos apresentavam seu próprio conhecimento de como recorrer à lei e de como “encontrar aliados eventuais em setores do governo e da burocracia empenhados em submeter o poder privado dos senhores ao domínio da lei”.16 Em ambos os períodos históricos, os legisladores se deram conta de que a lei podia servir para personagens que forçavam sua entrada no cenário públi-

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co, desafiando ou desligando relações de classe privadas longamente estabelecidas. O temor de que, a partir daí, os trabalhadores podiam se organizar melhor e se tornar progressivamente licenciosos e dissidentes – uma “formação” separada do “corpo” da nação – em geral, aqui no Brasil, acabou conduzindo os donos do poder a lançarem contra-ofensivas punitivas. Nesse sentido, não pensemos, como algo excepcional, o conselho que sugeria ao imperador munir-se de informações preparadas pelo seu chefe de Polícia. Pois os trabalhadores têm sido classificados como uma classe perigosa e, portanto, têm figurado constantemente, em múltiplas formas, na agenda das diversas divisões policiais.17 É, por conseguinte, intrigante reparar que “tornou-se comum” que os trabalhadores “na segunda metade do século XIX, na Corte, (...) fugissem para a polícia – ao invés de fugir da polícia, experiência mais marcante dos trabalhadores ditos “livres” – para confrontar seus senhores”.18 No período republicano, não deixa de ser igualmente intrigante encontrar trabalhadores industriais em mobilização por suas reivindicações invocando a autoridade de um delegado de polícia como canal mediador de suas questões trabalhistas – e isso tanto em contato com sindicalistas moderados quanto com comunistas. Enfim, nesse processo de recorrer à institucionalidade para responder à experiência da conflituosidade de uma sociedade de classes – para surpresa ou dissabor das classes dominantes –, os trabalhadores, ao se colocarem em movimento visando à sua organização coletiva, servindo-se de suas próprias forças, imediatamente dispararam um alarme de classe entre senhores de terras e capitães de indústria, pois estes muito bem diziam que as instituições não eram coisa para trabalhador e que o trabalhador não iria se ater ao terreno institucional.

PRIMEIROS PASSOS Apesar de toda a recepção oferecida, os estudos que os historiadores marxistas influenciaram e motivaram por aqui ainda não foram objeto de uma avaliação historiográfica sistemática. Isso exigiria tratá-los, por um lado, não só em conjunto mas também em suas peculiaridades e, por outro lado, em suas diversas repercussões, igualmente, sobre o conjunto e sobre áreas específicas dos assuntos históricos brasileiros. Para falar um pouco do que já existe no Estrangeiro, nossas editoras dão sinal de apostar mais na tradução do rentável

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nicho das biografias, publicando a biografia de Thompson (escrita por Palmer) e, recentemente, a autobiografia de Hobsbawm.19 Enquanto isso, livros introdutórios ou balanços críticos, em que se destaca a atuação de Harvey Kaye, têm se restringido aos leitores do inglês ou do espanhol.20 Oportunamente, o gradativo fortalecimento nacional dos programas de pós-graduação, juntamente com o surgimento de revistas, têm propiciado a difusão de traduções, resenhas, conferências e entrevistas, ampliando a base para o especialista que deseja fazer aquele estudo.21 Em acréscimo, as listas eletrônicas de discussão também têm circulado material de relevo, sendo boa parte o repasse de matérias de jornais. Nesse sentido, sem almejar à guinada alguma, este capítulo pretende apenas fortalecer os debates, para tal detendo-se em E. P. Thompson. As primeiras citações que se fazem deste historiador marxista britânico acontecem, até onde pude inventariar, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em meados dos anos 1970. No Rio, seus interlocutores hão de ser encontrados entre os pós-graduandos em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). Acompanhando o encontro entre Antropologia e História acontecido na obra de Thompson nessa mesma década de 1970 (quando ele se pôs a esmiuçar o século 18 inglês), esses pesquisadores lidavam com grupos de trabalhadores do Nordeste, rurais ou urbanos, camponeses ou proletários, que, na época, eram invariavelmente responsabilizados pelo “atraso” da classe operária brasileira empregada no setor “moderno” da economia. (Pois haviam, mediante sua migração, brecado com o ímpeto rebelde do operariado urbano de origem européia.) Não só por causa de Thompson, mas certamente devido à sua obra,22 os estudos antropológicos contribuíram para renovar as pesquisas sobre grupos sociais com expectativas culturais marcadas pelo costume, para questionar e superar a tese da passividade do proletariado de origem rural, para inserir, em definitivo, a necessidade de considerar as classes sociais em suas mútuas relações de influência e poder e, por fim, para atestar que classe trabalhadora é um fenômeno histórico e cultural.23 Em São Paulo, A Formação da Classe Operária Inglesa é citada por Boris Fausto, mas não suscita maiores desdobramentos.24 No interior do estado, a Unicamp se beneficiaria com a chegada de três professores estadunidenses herdeiros da efervescência dos anos 1960 e 1970: Peter Eisenberg, Michael Hall e, antes passando pela UFF, Robert Slenes. Por terem o inglês como idioma materno – e ainda por estarem inseridos no campo cultural cosmopolita e de debates do Atlântico Norte –, todos os três conheciam bem

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de perto a obra da historiografia marxista britânica.25 A partir daí, a história social teve uma evolução bifronte, servindo para o reexame do papel dos afro-descendentes na história da escravidão e para o estudo da formação da classe trabalhadora brasileira com a chegada dos imigrantes italianos nas fazendas de café.26 Nessa época, a obra dos historiadores marxistas britânicos soaria aos alunos e pesquisadores brasileiros ruidosa e inexplicavelmente empirista, um estranhamento advindo de sua familiaridade com longas exposições acerca da “natureza teórica e metodológica do percurso intelectual do conhecimento histórico”. De maneira frustrante, Hill, Hobsbawm e Thompson não forneciam esquemas categóricos, que “arrumavam” os projetos em curso. A certa altura, o que era bifronte veio a se delinear em bifurcação, que se prolongou e distanciou caminhos. Apesar de não ter sido premeditada, pouco a pouco se instaurou uma divisão. De um lado, os estudos sobre a escravidão priorizaram os conceitos de luta de classes e experiência e, ao que parece, se ativeram na deslizante indagação de Thompson a respeito da luta de classes sem classes, hoje quase transformada em afirmativa. No entanto, a questão está em delinear, em algum momento, a emergência da classe trabalhadora, haja vista que a luta de classes não pode acontecer sem a presença das classes sociais, indefinidamente.27 De outro lado, os estudos dos grupos operários em que as clássicas instituições operárias (sindicatos e partidos) já são um dado empírico silenciaram quanto ao embranquecimento que encontraram e não se perguntaram pela presença de trabalhadores não europeus. Não questionaram a exclusão, aludida por Silvia Lara, através da qual “não figura o trabalhador escravo”, a personagem de três séculos de nossa história.28 Ainda mais, os anos 1980 foram marcados pela procura da autonomia operária e esta busca abateu a curiosidade acerca dos trabalhadores descendentes da mestiçagem entre brancos, índios e negros, que aparecem com toda a força na mão-de-obra industrial do pós-45 em diante.29 Afinal, esse paralelismo está prestes a se transformar de modo qualitativo. A proposta da Formação da Classe Operária Inglesa – de derrubar as muralhas que separam os séculos 18 e 19 ingleses – se situa hoje em vias de se efetivar, por aqui, entre os séculos 19 e 20, descompartimentando as pesquisas e os debates. Sente-se, amplamente, a necessidade de integrar a investigação a propósito da luta de classes, classes sociais e consciência de classe num esforço combinado.

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Voltando ao passado, após aquele duplo desembarque, uma extensa disseminação tomou seu curso à medida que a universidade brasileira fortalecia o sistema de pós-graduação. Tanto a solidez quanto a circulação das pesquisas e de alunos e professores se intensificaram, propiciando renovação e diversificação, o que exige um esforço cujos resultados não caberiam nos limites deste capítulo.30

PATERNALISMO, POPULISMO, TRABALHISMO Em seu livro dedicado ao século 18 inglês, no capítulo “Patrícios e Plebeus”, Thompson submete o conceito de paternalismo ao ambivalente exercício de afunda e acode.31 Ele primeiro afirma que o paternalismo nada mais serve do que para nomear fenômenos totalmente díspares entre si, não sendo operacional para construir comparações ou contrastes elucidativos, mas apenas para estabelecer confusões. Seu uso, ele prossegue, tem levado ao abuso, a uma amplitude equivocada, confirmando sua ineficiência. Depois, sua própria perspectiva – estabelecida a partir de cima (não sugere uma relação, mas uma “sociedade de uma só classe”) – omite da História as classes subalternas. Uma outra restrição é acrescentada – quanto à sugestão de um clima aconchegante – : “o termo não consegue escapar de implicações normativas: sugere calor humano, numa relação mutuamente consentida; o pai tem consciência dos deveres e responsabilidades para com o filho, o filho é submisso ou complacente na sua posição filial”. Na seqüência, chega-se a mais uma objeção: como mito ou ideologia, o paternalismo promove uma visão retrospectiva, idealizando o passado, o que mistura “atributos reais e ideológicos”. Porque os historiadores marxistas britânicos são fundamentais para o conhecimento dos costumes em comum assim como dos episódios de colisão e mudança, outra reserva de Thompson merece destaque: paternalismo inibe o reconhecimento da luta de classes. E foi precisamente explicitando a importância da luta de classes que essa geração transformou a visão de seu povo acerca de sua própria história. A propósito, apresentando Hill ao leitor brasileiro, Renato J. Ribeiro sublinha: “se nós, brasileiros, devemos continuamente lidar com o mito do povo bom, cordial, submisso, os ingleses têm um mito parecido, talvez ainda mais forte em sua cultura: o da sociedade na qual as mudanças se fazem de maneira consensual, na qual a gentileza (termo que remete à pequena nobreza, à gentry) prevalece sobre os .32 conflitos, e estes não desandam em confronto.”

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Hoje em dia, na mira de vários críticos, a operacionalidade do conceito de populismo com vistas a analisar diversos períodos da história latinoamericana tem sofrido censuras muito semelhantes àquelas feitas, acima, ao uso de paternalismo. No entanto, enquanto os historiadores da escravidão mantiveram a atitude de crítica e resgate, os disparos têm sido carregados com intenções letais.33 Distintamente, não é esse o caso de um esforço concertado de repensar a presença do operariado na história republicana.34 Argumentando que não houve sindicalismo populista mas que havia populismo na política, tal empreitada, que se inscreveu na organização dos episódios relatados a seguir, é resultante desse amplo processo de ocupação dos espaços institucionais da universidade, de debate sobre a historiografia marxista britânica e de “reconstituição detalhada” da história (a partir do convite de sair da sala de aula e conhecer os trabalhadores).35 Reflexo disso tudo, em 1992, no auditório do Sindicato dos Químicos de São Paulo, a mesa a respeito da Era de Hobsbawm reuniu José Sérgio Leite Lopes, Marco Aurélio Garcia, Michael Hall e Nicolau Sevcenko, na companhia do próprio Hobsbawm, para avaliar a importância de sua obra. Nessa mesma vinda ao Brasil, perguntou-se a ele como iam os velhos camaradas. “Somos amigos”, respondeu, os vejo com alguma freqüência, estamos todos na esquerda, ainda somos militantes e pesquisadores. Continuamos na luta e pensamos sempre na ligação profunda entre o trabalho acadêmico e o militante, sem diferenciá-lo. Isto, eu acho, nos ajudou a ser bons historiadores.36

No ano seguinte, Leite Lopes, Maria Célia Paoli e Michael Hall integraram outra mesa (já citada), Tributo a Edward Thompson. Ambas as atividades foram promovidas pelo Instituto Cajamar (uma escola de educação popular) e se desdobraram em duas publicações. A Era de Hobsbawm foi transcrita por História Social, uma revista dos alunos da pós-graduação em História da Unicamp (iniciativa editorial que possui congêneres Brasil afora).37 Por sua vez, o pretexto para a sessão sobre Thompson, que foi o lançamento da primeira edição doméstica de “As Peculiaridades dos Ingleses”, resultou em outras duas edições domésticas e, afinal, na coletânea As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos.38 Curiosamente, o ensaio “As Peculiaridades dos Ingleses” – densamente empírico e historicista – fora retirado da tradução de A Miséria da Teoria.39

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Além disso, alguns dos pesquisadores citados aqui se somaram a outros e, individualmente, colaboraram com o décimo segundo número da revista Projeto História, dedicado a E. P. Thompson, discutindo sua influência por ocasião de seu falecimento, em agosto de 1993. Também a palestra de José Sérgio Leite Lopes se desdobrou numa atividade de maior fôlego, sobre paternalismo industrial.40 Certamente, em nome do antagonismo a uma inventiva dos paulistas ou, similarmente, em nome da recusa a uma construção da universidade estadunidense, não vale muito a pena descartar populismo. Sob controle e reformulado, pode ser útil; assim como tem sucedido ao paternalismo.41 Sem dúvida, a oferta do abandono possui aspecto positivo: deixar de etiquetar tudo como populista e reconhecer a diversidade interna, a especificidade e o conflito político do cambiante período 1930-1964, com isso deixando transparecer um movimento operário, o trabalhismo.42

OUTRAS QUESTÕES Quais as outras questões que a historiografia marxista britânica nos ajuda pensar, formular e entender? Em poucas palavras, lá como cá, sua interlocução é indispensável para definir a forma e o conteúdo de concebermos a História. Nesse processo, talvez hoje estejamos revivendo a experiência de principiar com uma ofensiva bifronte e passar para uma bifurcação, opondo cultura de classe à política da classe, o que, quanto às linhas de pesquisa, pode dar origem a compartimentos institucionalizados. Em acréscimo, quanto à própria maneira de formular o problema da existência das classes, isso pode deixar de lado o fato de classe ser um fenômeno histórico e cultural, assim como econômico. Numa banda, a história da cultura; noutra, a do trabalho. Será que o ícone história social não é capaz de agrupá-las? Ao analisar os costumes de lazer, os modos de vestir e as habitações da classe trabalhadora inglesa dos anos 1870-1914, Hobsbawm notou que teria sido possível “compilar uma grande antologia com os escritos socialistas (...), expressando horror, desprezo e ridicularizando a estupidez e a indolência das massas proletárias”.43 Em artigo notório, um velho princípio é afirmado: a história da classe trabalhadora é maior que a história das ideologias revolucionárias, dos sindicatos, dos partidos e dos seus movimentos reivindicatórios.44 A menor conseqüência que isso acarreta é retirar o foco das cúpulas e lançá-lo sobre suas

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bases: os despolitizados, os simpatizantes, os ativistas, aqueles que não lutaram todo uma vida – não sendo os imprescindíveis - ou que sequer “lutaram”. Apesar desses ensinamentos, as pesquisas de grupos operários cujos membros dispõem de sindicatos e partidos ainda precisam se esforçar para não fazer dessas instituições verdadeiros biombos de representação, atrás dos quais, em prejuízo do conhecimento, os trabalhadores são posicionados. De todo modo, se a história do trabalho tem se renovado muito lentamente e em grau insatisfatório (deixando a descoberto um amplo arco temático dos mundos do trabalho), a história da cultura tem sua forte sedução desvanecida ao desperceber as relações de classe vigentes nesses mesmos mundos. De fato, os estudos do trabalho estão desafiados pela urgência de dar conta de outros sentimentos e aspectos da experiência operária afora o processo de trabalho e a revolta contra a exploração capitalista.45 Não precisam se livrar dos sindicatos, das lideranças ou partidos, mas carecem de reconhecer e refletir sobre aquilo que acaba sendo deixado de lado. Enquanto isso, os estudos da cultura, ao afirmarem que cultura não é reflexo mecânico da experiência, abordam processos em que há luta de classes “sem” classes, recorrendo, em compensação, à polarização elite-popular. Contudo, a questão é saber o que é classe, o que pode constituir a razão de, supostamente, não haver classes num processo de lutas de classe. Pois a história dos trabalhadores extrapola definições rígidas ou prénoções descuidadas. Se o modelo se choca com a história, é ele quem deve ser interrogado e refinado. Se a pesquisa e a análise partem de uma classe dos trabalhadores ancorada – como um ditame – no “sentido marxista clássico” (isto é, a classe trabalhadora inglesa do século 19, ou a classe trabalhadora brasileira de carteira assinada, braços cruzados e macacão),46 estamos fadados a nunca encontrá-la e a pensar os trabalhadores como uma massa. Em outras palavras, aqueles fenômenos coletivos que não são urbanos, industriais nem galvanizados por multidões sindicalizadas podem ser, perfeitamente, fenômenos da história operária. Como a capoeira, por exemplo.47 E sua horizontalidade, enfim, é de classe. Resta ainda o fato de a classe trabalhadora não ser um acontecimento que se põe em congelador. De caráter nacional e processual, demanda tempo e lugar amplos; classe é uma ocorrência que se delineia num largo período muito além desse ou daquele grupo operário. Não só escapa aos números e às tabelas, mas também não se enquadra facilmente em universos restritos ou de curta duração, constituindo isso um problema para abordagens micro-históricas. No

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entanto, a história social assim como a microanálise italiana, ao buscarem no entrelaçamento das fontes o “vivido” (a experiência), visam à reconstituição de redes de relações, encarnando-as em pessoas concretas.48 Indubitavelmente, várias maneiras de se abordar temas operários foram ultrapassadas por feitos acontecidos dos frontes “da escravidão” ou “da cultura”, mas a classe, se está em formação, ou apesar de oferecer escassa correspondência empírica, precisa, em algum momento, dar as caras (haja vista o Brasil ter sido e ser uma sociedade de classes). É claro que popular, massas e trabalhadores pobres são termos úteis, mas apresentam a tendência a, indefinidamente, fazer de operariado, proletariado e classe trabalhadora um termo rude, do facciosismo político ou não-brasileiro. Outros sim, os pesquisadores têm dado, aqui e ali, a popular ou a operário, um papel histórico demasiado subterrâneo, tenaz, alheio ao institucional, às outras classes, aos políticos e governos. Sua história é sempre teimosa e rebelde ao que, numa relação, vem de cima; sua carapaça cultural os deixa imunes a ideologias e à hegemonia das classes dominantes, varrendo-se problemas e dissonâncias para debaixo do tapete da resistência. Como observou Thomas Jordan,49 a divisão de ordem social da polícia política não só vigiava sindicatos e “células” dos partidos, mas ainda controlava informações acerca de clubes e associações operárias, como escolas de samba, times de futebol, sociedades literárias, etc. Ou outro departamento policial ainda fornecia tolerância para encontros religiosos, batuques e festas,50 dando ouvidos às “rodinhas”, os voláteis círculos que os trabalhadores arrumavam para conversar seus que tais. Portanto, não precisamos forjar nada de radicalmente novo, mas atravessar as fronteiras ou, adicionalmente, nos posicionar de modo a contemplar todo o conjunto. Desse modo, times de futebol tirados em fábricas não são, forçosamente, uma armadilha dos patrões nem apenas área de infiltração de militantes com vistas à agitação e ao recrutamento. Ativistas podiam usar seu tempo livre para gozar o futebol, o samba e o carnaval e os trabalhadores podiam ver nos times de futebol um espaço próprio de sua sociabilidade, sem o controle patronal e das células revolucionárias.51 Concluindo, desse ou daquele matiz, os adeptos da história social haverão de desconfiar de suas narrativas quando se depararem com uma história do conflito pautada entre a “resistência” e a crueza da exploração. (Mesmo o estimulante conceito de cultura pode consistir em registro unificador e pacificador.) Não há mais espaço para a romântica expectativa da formação da clas-

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se como um processo de marcha adiante, ininterrupto e irresistível. Assim, embora seja um fenômeno observável (mas extraordinário), a “percepção crescente de uma classe operária única, aglutinada através de um destino comum sem levar em consideração suas diferenças internas”,52 não pode ser um totem dos estudos históricos. Quer dizer, a classe trabalhadora de fato pode hegemonizar outras classes, absorvendo-as, tornando-se uma classe no sentido social, mas a “invisibilidade” das classes que lhe fornecem apoio (ou de suas diferenças internas) não pode ser estendida no tempo.53 Quando isso acontece, não é infinitamente duradouro. E quando deixa de acontecer, transparece a reivindicação da diferença. Para encerrar, uma revelação do casal Thompson. Na apresentação à coletânea The Essential E. P. Thompson, Dorothy comenta o título do artigo “History from Below” (já traduzido em português). Ela diz que tal título foi cunhado pelo editor do Times Literary Supplement, etiquetando, no fim das contas, o tipo de abordagem histórica a que ambos se afiliavam. Porém, Dorothy revela que Thompson nutria reticências, pois o termo induzia a negligenciar “as estruturas de poder na sociedade”. A História, enfim, nem sempre vem de baixo.54

GREVES, DISPUTA CULTURAL E MIGRAÇÃO Consideremos as greves agora. Estas têm sido, notoriamente, uma circunstância para a expressão aberta de visões e interesses. E relevantes também têm sido para unificar os trabalhadores em torno de valores e reivindicações universais. Ao mesmo tempo, abrem a possibilidade para disputas culturais entre esses, evidenciando, de novo, visões e valores conflitantes. Simultâneas a demarcações de caráter étnico e profissional, várias disputas que observamos acontecendo em episódios grevistas versavam sobre a identidade de “bom trabalhador”, em geral homem e adulto.55 Para começar, a crença de um bom destino para um bom trabalhador era compartilhada por operários, feitores e patrões. Por conta disto, muitos empregados não aderiam a mobilizações de protesto e de parada, preferindo manter-se alinhados com seus superiores, vários deles ex-operários. Ser um bom trabalhador, neste caso, significava manter a produção, preservando o bem-estar da firma e, assim, sua parte no benefício gerado pela iniciativa privada, o próprio emprego e salário. Dando outros significados à sua experiência, outros apreciavam a definição de bom trabalhador e feriam a expectativa patronal quanto ao papel a ser seguido.

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Numa pioneira fábrica de nossa industrialização automobilística – a unidade São Bernardo da Willys-Overland do Brasil –, um dos pontos de maior sensibilidade para a gerência era seu temor à transformação daquilo que chamava de a “máquina de trabalho que o povo brasileiro criou”56 em engrenagem de greve, um componente da (igualmente receada) “República Sindicalista”. Em nível mais geral, indiferentes à nacionalidade ou ao estágio tecnológico, as empresas industriais fabris não acreditavam que podiam existir trabalhadores conscientes de seus desejos e direitos naqueles ameaçadores, móveis, barulhentos e agressivos “esquadrões”, os piquetes. Os bons trabalhadores não haveriam de ser encontrados em palestras, assembléias ou em greves. Quando o eram, só estavam comparecendo porque vinham constrangidos pela pressão dos radicais ou porque estavam implicados à barganha clientelística “populista”. No entanto, quando o protesto social vencia seus obstáculos internos e denotava unidade e força, a imagem da multidão era assim repelente que os patrões automaticamente deploravam a dissolução de supostos laços de cordialidade, serventia e obediência – tão característicos no operário humilde – e, em seguida, cessavam com sua indulgência mediante telefonemas para a polícia (civil, política ou de choque), requisitando repressão. Chegamos aqui a um ponto significativo: a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) deixou o local de trabalho a descoberto de direitos sindicais. Todo trabalhador de carteira assinada possuía o sagrado direito à agremiação e à associação, assim como os sindicatos receberam garantias de funcionamento, mas ambos não dispunham de prerrogativas para o exercício do sindicalismo no local de trabalho, estando esse arranjo na base de inúmeros conflitos. Em aliança com a polícia política, o empresariado via na emergência do sindicalismo uma fratura no relacionamento com seus funcionários. Sua atitude era de enxotar para a rua os envolvidos, os militantes, os dirigentes e as mobilizações. Nas mesmas ruas, era comum o confronto com a repressão. Também por conta disso, havia um tipo de luta que levava a produção a uma certa paralisia, ao invés do seu completo bloqueio. A dificuldade tanto de mapear líderes e bases quanto de encontrar uma representação para conhecer as reivindicações e, muitas vezes, o fato de a paralisação não ter sido anunciada publicamente eram suas características. Com acréscimo de uma fundamental: por ser parcial, seu cenário era o recinto do trabalho. Chamada “greve branca”, seu desenrolar não era pacífico. O caráter de surpresa e discrição era replicado, novamente, com a ação policial, que era encarregada de dirimir a autoria, as

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razões, os envolvidos. Se a ação combinada de chefes e policiais não fosse suficiente para debelar a resistência, precisavam ambos ter os operários nas ruas. Agora agindo sozinha, a polícia havia distanciado os trabalhadores das dependências patronais, salvaguardando-as, e estava pronta para agir com ainda maior firmeza. Face a face com a repressão política, os trabalhadores eram mais criminosos do que bons empregados. Agentes faziam detenções ou piquetes de choque aguardavam enfileirados para intimidar e dispersar. Aí os grevistas escolhiam entre ser trabalhadores em luta ou, sob pitos e apitos, recuavam.57 O que seria uma greve não-branca?58 Oposta ao tipo anterior, haveria de ser maciça, convocada previamente e publicamente coordenada. Ressurgido no segundo governo Vargas, tal tipo de luta se colava a campanhas sindicais, geralmente por salários e pelo direito de greve. Nesse momento, a população rural ou interiorana chegava às cidades. De contingentes diversos, certos migrantes aparecem nas suspeitas de um investigador: “integrado na maioria por nortistas”, e em “grande alarido”, um piquete fecha a Rayon Matarazzo.59 Apesar disso, é comum encontrar dirigentes sindicais de origem migrante reclamando do “conformismo” ou da hostilidade de seus conterrâneos. Desenhando a figura de um pobre refugiado de horizontes estreitos, sua descrição é similar à representação da personagem Zé Brasil, um “pobre coitado”.60 É também semelhante ao menosprezo de sir John Russell que, em 1968, se perguntou: “Irá o Brasil para o comunismo?” O camponês pobre, ignorante e sem voz, a passar fome - deploravelmente - no árido sertão, arando uma vida miserável na savana ressecada, devendo sua alma ao armazém; qual interesse pode ele ter no “comunismo”… a não ser que seja algo para comer?61

De qualquer modo, as pesquisas já têm demonstrado que sertanejos não escapavam desordenadamente da seca e que eram capazes de controlar as etapas de seu percurso. Ao migrante fugitivo resgatado pela indústria, devemos contrapor a memória dos trabalhadores, com seus detalhes e explicações acerca de suas estratégias ante o recrutamento patronal e seu preparo para o trabalho que, freqüentemente, rural ou urbano, requisitava esforço, resistência e versatilidade. Diferenças culturais dentro desse grupo operário mostram divisões políticas concretas, bem distintas do confronto entre a politização do militante e a falta de sofisticação do migrante. Tomado como um incluído na abundância capitalista, para um migrante que se empregara numa metalúrgica, ele

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se tornara paulista. São Paulo era “progresso” e ele mantinha o mesmo passo ao refazer a identidade; sua fé em São Paulo era crença na empresa privada. Ao explicar o fato de não ser sócio do sindicato de sua categoria, ele argumentou que faltava autenticidade ao grêmio, que este era “político”, pois sustentava posições pró-Cuba.62 Neste caso, a máquina de trabalho criada pelo povo brasileiro não viria a ser uma máquina de greve. Ocorre que outras fusões já seguiam seu curso, inclusive em fábricas do setor “tradicional”, e longe do “urbano”. No final dos anos 1940, quando a divisão de ordem social da polícia política carioca devassou o Comitê Distrital do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Vila Inhamorim, três células operárias caíram em suas mãos. Se alguns de seus membros foram classificados como “ativos”, “orientadores”, “agitadores”, “propagandistas”, outros foram descridos como “manhosos” donos de “truques e disfarces”, “maneirosos”, “destemidos”. Provavelmente, um bom quadro melhor seria se fossem espertos e valentes.63 Mais ainda, o encrenqueiro podia ser diverso do que lhe era atribuído pelo outro, ou a partir de cima, alguém cuja ousadia e destemor colhia a atenção ou a contrariedade da vigilância disciplinar. E alguém temido a partir de cima podia ser admirado entre seus pares subalternos. Em contraste com outras experiências históricas (principalmente a européia), no Brasil, os operários de ofício não foram os artífices da agremiação sindical dos operários não-qualificados. Sabedores disso, os estudos históricos estão construindo outras teses. Em 2001, no XX Congresso da Associação Nacional de História (Anpuh), as exposições e os debates tanto registraram, como já foi dito, a importância da historiografia marxista britânica quanto, em paralelo, refletiram sobre a classe trabalhadora transatlântica, o encontro de migrantes, imigrantes e locais na formação do operariado, os trabalhadores escravos e livres, o regional, o nacional e o internacional, entre outros assuntos.

EM MOVIMENTO Atravessando linhas fronteiriças de tempo, lugar e nações, a programação acima é, em grande medida, resultado da constituição do Grupo de Trabalho (GT) Mundos do Trabalho, hoje estruturado em todo o Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará. Seguramente, esse GT é crucial para reunir esforços para a superação dos impasses e para o alargamento da renovação a que alude Batalha.64

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Para sua efetivação, vale refletir não só sobre a remoção das barreiras que apartam nosso conhecimento da experiência das classes subalternas, mas também sobre o debate interdisciplinar, os marcos e os conceitos históricos. Parte do programa do GT Mundos do Trabalho no congresso supracitado, a conferência de Marcel van der Linden reúne interessantes elementos nesse sentido.65 Antes de tudo, pluralismo, por este ser inevitável bem como intelectualmente estimulante. Em seguida, atenção e consideração para com dimensões transnacionais e transcontinentais da história social, seja para o estudo das relações de produção seja no que toca aos movimentos sociais. Sem ignorar o “outro lado” – as classes dominantes e suas instituições -, há mais um “outro lado”, a família e a comunidade, ambas juntas da experiência do trabalho, que, aliás, pode ser livre ou não, assalariado ou não, arcaico ou moderno. Por fim, quanto mais preciso for recuar no passado para o conhecimento histórico, assim acontecerá. A análise precisa ser complexa e abrangente porque os conceitos e os fenômenos que os embasam, além de específicos, podem ser construções excludentes. Essa sensibilidade foi entreaberta na própria Formação da Classe Operária Inglesa, em que Thompson frisa não ser possível descurar a tenacidade da autopreservação das classes subalternas, dispensando, por conseguinte, curiosidade aos “seus traços mais robustos e desordeiros” e descentralizando a importância dada aos sóbrios “antecedentes constitucionais do movimento operário”. Pois os “sem-linguagem articulada”, isto é, aqueles grupos cuja história mal consegue transparecer em atas de reuniões partidárias ou sindicais “conservaram certos valores - espontaneidade, capacidade para a diversão e lealdade mútua -, apesar das pressões inibidoras”, vindas de cima.66 Trabalhadores de rua ou ocasionais, a própria população de rua, os sem-tetos ou a prostituição encontram seu lugar no movimento operário somente após muita luta.67 Tudo isso é fundamental para assegurar que as classes subalternas não sejam destituídas de sofisticação no seu ato de fazer cultura, história e produzir o novo (quando isso é reconhecido). Desde há muito já se sabe que a migração não é a ponte com que o arcaísmo da tradição brasileira inunda e perverte a modernidade, infectando-a com passividade, ignorância e vivas ao populismo. A história social tem condições de formular uma nova equação geral para repor uma outra, ainda estabelecida: o escravo como uma coisa dócil ou brutalizada, substituído pelo imigrante anarquista, mas reposto pelo migrante de origem rural, este último finalmente empurrado à verdadeira consciência pelo arrocho salarial da ditadura militar, num movimento de retorno evocativo do conteúdo libertário da República Velha.68

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Nas palavras de Weffort, depois da “profunda cesura” inserida pelo primeiro governo Vargas, com sua estrutura sindical corporativa, uma fase heróica se encerrara; o movimento operário estava completamente esquecido de sua história.69 Esta inclinação romântica ante o operariado da República Velha não se sustenta mais: a historiografia tem demonstrado que os trabalhadores têm muito boa memória e que não se acovardaram.70 Portanto, causa uma certa perplexidade ler que Vargas era detestado pela esquerda por conta da “construção de uma máquina trabalhista que esmagou os antigos sindicatos anarquistas, só prometendo benefícios aos trabalhadores dispostos a abandonar a militância”.71 Primeiro, desde os anos 70, temos progressivamente nos inteirado da heterogeneidade e da competição políticas no meio operário, somente de modo errôneo redutível a “anarquismo”.72 Em segundo lugar, houve descontinuidade… e continuidade. Correntes reformistas não eram opostas visceralmente à presença reguladora do Estado, nas relações capital-trabalho. As pesquisas, inclusive, apontam para casos de grêmios que foram voluntariamente refundados de acordo com a leis varguistas, sem maiores problemas, sem serem destruídos, sem abdicar da militância política.73 Indubitavelmente, Vargas esmagou alternativas e antagonismos. No entanto, a letra da lei, ao fornecer garantias legais de funcionamento aos sindicatos, não extinguiu sua independência. Isto só aconteceu da repressão à Intentona Comunista, em 1935, em diante, até 1942, quando, defronte a um quadro desalentador, Getúlio teve de inventar o trabalhismo. Sem abrir mão da repressão política, combinou clientelismo, cooptação, conflito e consenso. Em suma, o livro de Levine é injusto com os operários legendados de “pelegos” (FIGURA 13). Na verdade, estão em torno da placa do Sindicato dos Estivadores do Rio de Janeiro, um grêmio que merece um pouco mais de cautela. Não nos tem parecido, em terceiro lugar, que o plano getulista de “cidadania regulada” – pioneiramente identificado por Wanderley G. dos Santos – foi capaz de abolir o reclame pela cidadania plena, em absoluto. Historicamente, o operariado brasileiro se comportou de modo sensível a demandas por direitos universais. O que, a partir de cima, é mais uma evidência de que a chanchada cucaracha pode se transfigurar na abordagem da história social, revelando a marcha do trabalho. Desde A Invenção do Trabalhismo, a engenharia da política brasileira não precisa ser lida, a todo o momento, como troca utilitária e manipulatória de vantagens materiais corporativas por obediência eleitoral.74 Em acréscimo, como propõe Michael Hall,75 trata-se reler a dinâmica política do ponto de vista de uma sociedade

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de classes e em conflito. Por conseguinte, podemos formular o problema da reinvenção do trabalhismo.76 Finalmente, nos anos 1930 e 1940, nem todas as forças esquerdistas eram filosoficamente avessas ao corporativismo – e isso não constitui peculiaridade brasileira alguma.77

LEVANTAR AS BARREIRAS Do final dos anos 1970 em diante, a história social no Brasil foi impelida adiante pela força irresistível das lutas sociais. Movimentos de massas se imiscuíram na política nacional e rearrumaram todo o sistema político, reconstituindo instituições, fundando outras novas. Aquilo que Marco Aurélio Garcia denominou de “ilusão social democrata” do novo sindicalismo não pôde passar despercebido. Os primeiros anos do partido que esse movimento ocasionou foram planejados com a expectativa de arrebatar os votos das classes subalternas a partir da crescente militância de um maciço proletariado industrial que florescera, quantitativamente, durante a ditadura. No entanto, o ímpeto militante revelou limites ante a própria rejeição encontrada nas classes subalternas, por conta de seu conservadorismo ou de sua baixa auto-estima. Em segundo lugar, recessões econômicas e o desgaste do modelo de desenvolvimento trouxeram novos desafios. Em síntese, nem todos os trabalhadores votavam em seus pares, ferindo as expectativas neles depositadas. A frustração desse chamado foi interpretada como evidência de preconceito, dominação e apatia. O que os historiadores sociais têm também a dizer é que um metalúrgico militante – ou apenas um metalúrgico – não é um brasileiro igualzinho a qualquer outro. A propósito, os historiadores marxistas britânicos são uma referência para não ignorarmos a irrelevância de uma historiografia ingênua em que a classe trabalhadora evolui indiferente à sua própria constituição interna, atropelando tudo que a negue. Em uma de suas visitas ao Brasil, sob o impacto da dessindicalização européia, Hobsbawm se avista com Luís Inácio Lula da Silva e toca no tema dos trabalhadores pobres e o movimento sindical. Ele principia perguntando como fazer para organizar os excluídos da economia formal.78 Lula reconhece a procedência da pergunta e a inexistência de uma resposta de comprovada eficácia, relacionando bons desempenhos nos pleitos à presença de sindicatos fortes. Com certo saudosismo, recorda: “Fazíamos assembléia na porta de fábrica, no estádio, mas também nos bairros; íamos conversar com o dono do

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boteco, da quitanda”. O declínio da aguerrida politização do cotidiano, que passou com a Nova República, a institucionalização das novas personagens e o descrédito dos políticos contribuem para Lula ir bem só entre o eleitorado que percebe de três a quinze salários mínimos. No entanto, ele informa: “mais de 65% da população vivem com menos de três”. Sem almejar a receituários, a história social tem algo a fazer, podendo contribuir à reflexão e ao conhecimento desses trabalhadores pobres. Estes, por exemplo, se interessavam na objetivação de outros conflitos e de outras questões além das “políticas”, não necessariamente “econômicos”. Na antiga Guanabara, os favelados integravam a classe operária, disso sabia muito bem o pecebista Moisés Vinhas.79 Muitas vezes, não exatamente a gosto dele, conduziam a uma polarização “de massas populares num lado único, ou simétrico, frente às classes dominantes”, absorvendo o proletariado e as camadas pauperizadas das classes médias, formando um “contingente popular”. No Recife, os subempregados e os marginalizados também imprimiam seu caráter “individualista, instável e explosivo”. Dilatando as fronteiras da classe, formavam “aglomerados de ‘mocambos’” com pressões que davam “lugar à luta de classes”. “Causas (...) perdidas na Inglaterra”, escreveu Thompson, podem ser “ganhas na Ásia ou na África”.80 Por aqui, os historiadores marxistas britânicos são lidos e abraçados. Seduzem os leitores não só por conta da proposta de uma história social, mas por darem respostas ao ceticismo que as pessoas sentem quanto ao que lhes é dito ou ensinado. Prova disso foi a História Brasileira Oficialmente Correta desafiada pelas próprias classes subalternas, nas comemorações dos nossos 500 anos. Esse compromisso político não fica só na empatia: seduz, ainda, pela própria maneira de formular o estudo, a pesquisa, a transmissão e a defesa da História. Em todas essas coisas que nos são favoritas, os historiadores marxistas britânicos são cruciais. Pão ou aço?, pergunta Josué de Castro em seu mais famoso livro.81 Vamos ter alimentos para todos e vamos nos agigantar economicamente? Não é surpresa que a irresolvida questão social mantenha a atualidade dos conceitos de luta de classes e classe social. Com medo e cinismo, parte das classes médias e, seguramente, as dominantes, em sua maioria, acorrem rumo ao Primeiro Mundo, no Brasil mesmo, e mantêm os brasileiros fora de ordem atrás de divisórias. “Paternalismo”, “populismo” e “modernização” não inibiram o conflito de classes. Ainda há muita pesquisa e discussão a fazer sobre a instalação das ocasiões - históricas - em que é possível implantar e consolidar a cidadania como marca de nossas relações políticas e cotidianas.

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NOTAS 1 Departamento de História, Universidade Federal da Bahia. Este capítulo foi apresentado no Congresso “Making Social Movements. The British Marxist Historians and the Study of Social Movements”. Ormskirk, 26-28 de junho de 2002. Desejo expressar meu débito para com Michael Hall e Cristiana Schettini, pela ajuda e interlocução permanentes. Aldrin Castellucci, Gabriela Sampaio e Maria Cecília Velasco e Cruz contribuíram com comentários. Em acréscimo, registro o debate feito no colóquio “Paternalismo, Consensos, Dissensos: Os Trabalhadores no Brasil”. Fortaleza, 16 a 18 de outubro de 2002. Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (Procad) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). 2 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. I, p. 15. 3 Tributo a Edward Thompson foi uma atividade levada a cabo pela equipe Mundos do Trabalho, do Instituto Cajamar, em conjunto com a Secretaria Nacional de Formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 28 de setembro de 1993. Abonada mais adiante, a palestra de Sidney Chalhoub foi proferida no simpósio da Associação Nacional de História (Anpuh), em Niterói, 2001. 4 BERGQUIST, Charles. Latin American Labor History in Comparative Perspective. Notes on the Insidiousness of Cultural Imperialism. Labour/Le Travail, n. 25, 1990. Diversamente das afirmações do autor, os nativos sabem o que fazer com as miçangas. 5 GENOVESE, Eugene. A economia política da escravidão. Rio de Janeiro: Pallas, 1976. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. CASTORIADIS, Cornelius. A experiência do movimento operário. São Paulo: Brasiliense, 1985. PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. (De Williams, pela Nacional, já havia saído, em 1969, Cultura e sociedade.) 6 A obra de Williams ecoa na pesquisa de Daniel James. Ver: Ideologia populista e resistência de classe: o peronismo e a classe operária, 1955-1960. Revista Brasileira de História, 10, 1985. Para o Brasil, ver: CEVASCO, Maria. Para ler Raymond Williams. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 7 EISENBERG, Peter. Escravo e proletário na história do Brasil. In: ______. Homens esquecidos. Escravos e trabalhadores livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas: Ed. da Unicamp, 1989. ALENCASTRO, Luiz F. Escravos e proletários. Imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos Cebrap, n. 21, 1988. RODRIGUES, Jaime. Índios e africanos: do “pouco ou nenhum fruto” do trabalho à criação de “uma classe trabalhadora”. História Social, Campinas, n. 2, 1995. RODRIGUES, Jaime. Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na fábrica de Ipanema. História Social, Campinas, n. 4/5, 1998. BATALHA, Cláudio. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cadernos AEL, n. 10/11, 1999. LONER, Beatriz. Negros: organização e luta em Pelotas. História em Revista, Pelotas, n. 5, 1999. VITORINO, Artur. Escravismo, proletários e a greve dos compositores tipográficos de 1858 no Rio de Janeiro. Cadernos AEL, n. 10/11, 1999. CRUZ, Maria Cecília Velasco e. Tradições negras na formação de um sindicato: sociedade de resistência dos trabalhadores em trapiche e café, Rio de Janeiro, 1905-1930. Afro-Ásia, n. 24, 2000. REIS, João. De olho

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no canto: trabalho de rua na Bahia na véspera da abolição. Afro-Ásia, n. 24, 2000. LONER, Beatriz. Construção de classe. Operários de Pelotas e Rio Grande (1888-1930). Pelotas: Ed. da UFPel, 2001. 8 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. 1, p. 111. 9 “Há outros trabalhadores para se conhecer em suas peculiaridades, mesmo que não afirmassem fazer parte de uma classe operária”. NEGRO, Antonio L. Imperfeita ou refeita? O debate sobre o fazer-se da classe trabalhadora inglesa. Revista Brasileira de História, v. 16, n. 31/32, p. 58, 1996. Ver também: LARA, Silvia. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História, n. 16, 1998. Da mesma autora, ver ainda: Trabalhadores escravos. Trabalhadores, n. 1, 1989. 10 A afirmação de que a classe trabalhadora é um processo e um fenômeno histórico e cultural e de que é preciso considerar a experiência dos trabalhadores nos implica a sensibilidade para suas relações de disputa e unidade. 11 CHALHOUB, Sidney. A enxada e o guarda-chuva: a luta pela libertação dos escravos e a formação da classe trabalhadora no Brasil. Palestra apresentada no XXI Simpósio da Anpuh, Niterói, julho de 2001. 12 LOPES, José S. Leite. A tecelagem dos conflitos de classe. São Paulo: Marco Zero, 1988. 13 Em palestra no Brasil, Hobsbawm incluiu os grupos proletários compostos de camponeses na análise do surgimento da consciência de classe, seja entre os mineiros andinos ou sul-africanos. Ver: Trajetória do movimento operário. Trabalhadores, n. 2, p. 5, 1989. Refletindo sobre outra abordagem – a micro-história –, que não é distante nem contrária à história social, Henrique Espada Lima F. anota que o ato da “troca” sobressai, invariavelmente, nos estudos dos grupos camponeses. Comentando a obra de Grendi, fala em “troca de bens, materiais e imateriais, isto é, como transação”, enfatizando-se o exame das convergências e diferenças, a reconstrução das relações pessoais, tanto verticais quanto horizontais, de união e conflito. Microstoria. Escalas, indícios e singularidades. 1999 . Tese (Doutorado) – IFCH/Unicamp, Campinas, 1999. p. 204. 14 Ver: LARA, Sílvia. “Blowin” in the Wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História, n. 12, p. 47, 1995. 15 Orelha de L. M. Rodrigues para LOPES, Juarez B. Crise do Brasil Arcaico. São Paulo: Difel, 1967. 16 CHALHOUB, Sidney. A enxada e o guarda-chuva: a luta pela libertação dos escravos e a formação da classe trabalhadora no Brasil. Palestra apresentada no XXI Simpósio da Anpuh, Niterói, julho de 2001. Ver também: XAVIER, Regina. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Centro de Memória: Ed. da Unicamp, 1996. AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luís Gama na Imperial cidade de São Paulo. Campinas: Cecult: Ed. da Unicamp, 1999. MENDONÇA, Joseli Maria N. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Cecult: Ed. da Unicamp, 1999. 17 A respeito da polícia política, ver: FONTES, Paulo; NEGRO, Antonio. Trabalhadores em São Paulo: ainda um caso de polícia. O acervo do Deops paulista e o movimento sindical. In: AQUINO, Maria A. de; MATTOS, Marco A. V. Leme

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de; SWENSSON JR., Walter C. (Org.). No coração das trevas: o Deops/SP visto por dentro. São Paulo: Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2001. 18 CHALHOUB, Sidney. A enxada e o guarda-chuva: a luta pela libertação dos escravos e a formação da classe trabalhadora no Brasil. Palestra apresentada no XXI Simpósio da Anpuh, Niterói, julho de 2001. 19 PALMER, Bryan. Edward Palmer Thompson. Objeções e oposições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes. Uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 20 KAYE, Harvey. The British Marxist Historians. Cambridge: Polity Press, 1984. KAYE, H.; McCLELLAND, K. E. P. Thompson. Critical Perspectives. Cambridge: Polity Press, 1990. 21 Ver, por exemplo, o número 14 de Varia História (1995), dedicado a Bridgett Hill e Christopher Hill. Ver também: A história feita de greves, excluídos e mulheres. Entrevista com Michelle Perrot. Tempo Social, v. 8, n. 2, 1996. Certamente, Hobsbawm está entre os mais entrevistados. Ver: O novo século. Entrevista a Antonio Polito. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 22 A respeito da relação entre a historiografia marxista britânica e a sociologia de Pierre Bourdieu (bastante influente no Museu Nacional), ver debate de José Sérgio Leite Lopes com Roger Chartier: Pierre Bourdieu e a história. Topoi, n. 4, p. 161, 163, 164, 2002. 23 Sumariamente, a respeito disso, ver, de LOPES, José Sérgio Leite. A formação de uma cultura operária. Tempo & Presença, n. 220, 1987. História e antropologia. Revista do Departamento de História, Belo Horizonte, n. 11, 1992. 24

FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). São Paulo: Difel, 1976. p. 9.

25 Ver relato de Hall em: Obra fascinante, mas perigosa! História Social, Campinas, n. 4/5, 1998. Para quem o Atlântico fica mais ao sul, ver: LARA, Sílvia. Peculiaridades no Brasil.Topoi, v. 3, 2001. 26 HALL, Michael. Immigration and the Early São Paulo Working Class. Jahrbuch für Geschichte von Staat, Wirtschaft und Gesellschaft Lateinamerikas, band 12, p. 407, 1975. EISENBERG, Peter. Modernização sem mudança. A indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. SLENES, Robert; MELLO, Pedro Carvalho de. Paternalism and Social Control in a Slave Society: The Coffee Regions of Brazil, 1850-1888. Comunicação apresentada no IX Congresso Mundial de Sociologia. Upsala, 1978. (Esta última referência é apontada por Lara como pioneira análise da relação senhor-escravo a partir da abordagem de Thompson do conceito de paternalismo. Ver: LARA, Sílvia. “Blowin” in the Wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História, n. 12, p. 47, 1995.) 27 Thompson faz a pergunta se há luta de classes sem classes porque o século 18 inglês é anterior ao fenômeno da classe trabalhadora inglesa, no sentido marxista clássico. Em épocas ou sociedades em que as classes têm correspondência empírica rarefeita com tal sentido, o conceito de luta de classes se revela de maior amplitude, mas Thompson não deixa de falar numa relação entre classes realmente existentes, como a gentry e a plebe. O fato de não ser possível encontrar formações de classe “maduras” no século 18, “não quer dizer que aquilo que se expressa de modo menos deci-

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sivo não seja classe”. THOMPSON, E. P. ¿Lucha de Clases sin Clases? In: ______. Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase. Barcelona: Crítica, 1989. p. 39. Ele mesmo cita Hobsbawm: “no capitalismo, a classe é uma realidade histórica imediata e em certo sentido vivenciada diretamente, enquanto nas épocas précapitalistas ela pode ser meramente um conceito analítico que dá sentido a um complexo de fatos que de outro modo seriam inexplicáveis”. HOBSBAWM, Eric. Notas sobre consciência de classe. In: ______. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 39. Nesse sentido, no Brasil, os escravos não formam uma classe operária no sentido marxista clássico (um sentido específico, restrito a um tempo e lugar), mas formam uma classe social, com sua cultura e linguagem de classe e dona de sua própria história. 28 LARA, Sílvia. “Blowin” in the Wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História, n. 12, p. 54, 1995. 29 Para mais detalhes, ver: FORTES, A.; NEGRO, A. L. Historiografia, trabalho e cidadania no Brasil. Trajetos. Revista de História UFC, Fortaleza, n. 2, 2002. 30 Novamente, cite-se aqui a atuação de Robert Slenes, já responsável pela orientação de duas gerações bem definidas, em que figuram Sidney Chalhoub e Flávio dos Santos Gomes. 31 THOMPSON, E. P. Patrícios e plebeus. In: ______. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 29 et seq. 32 RIBEIRO, Renato J. Apresentação. In: HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 11. Apud SILVA, Fernando T. da. O paternalismo nos estudos de E. P. Thompson sobre a Inglaterra do século XVIII. Campinas. Manuscrito, sem data. 33 Prós e contras são apresentados na coletânea organizada por FERREIRA, Jorge. O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 34 Refiro-me aqui a grupo composto por Alexandre Fortes, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa e Paulo Fontes e eu mesmo que, conjuntamente, editou o livro Na luta por direitos. Estudos recentes em história social do trabalho. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. As repercussões dessa coletânea podem ser verificadas, primeiramente, na resenha de Jorge Ferreira publicada em História Social (nº. 7). Ver também: FRENCH, John. The Latin American Labor Studies Boom. International Review of Social History, v. 45, pt. 2, p. 281, 2000. GOMES, Angela de C. O populismo e as ciências sociais. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 57. WOLFE, Joel. The Social Subject Versus the Political: Latin American Labor Studies at a Crossroads. Latin American Research Review, v. 37, n. 2, p. 251-252, 2002. FERRERAS, Norberto O. História e trabalho: entre a renovação e a nostalgia. Trajetos. Revista de História UFC, Fortaleza, n. 2, p. 57, 58, 2002. 35 Ver: “‘Sair da sala de aula e ouvir os trabalhadores’. Movimentos Sociais, História e Universidade na África do Sul”. Entrevista de Eddie Webster a Alexandre Fortes, Antonio Luigi Negro e Paulo Fontes. História Social, Campinas, n. 3, 1996. A exortação à reconstituição detalhada e de ida aos arquivos é feita por Slenes em: O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. Estudos Econômicos, v. 13, n. 1, p. 149, 1983. Semelhante chamada é feita pelo pró-

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prio Thompson. Ver: NEGRO, A. L.; FORTES, A.; FONTES, P. Peculiaridades de E. P. Thompson. In: THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001. p. 48. Ver também: NEGRO, Antonio Luigi. O fragmento como via de acesso à história social. Diálogos, v. 1, n. 1, 1997. 36 Brasil Agora, n. 30, 21 dez. 1992/24 jan. 1993. 37 Esse número de História Social (4/5) inclui artigo de Miles Taylor, “As guinadas lingüísticas da história social britânica”, uma polêmica não estabelecida plenamente por aqui, ao menos no campo da história social. Apesar disso, ver: JAMES, Daniel. O que há de novo, o que há de velho? Os parâmetros emergentes da história do trabalho latino-americana. In: ARAÚJO, Angela (Org.). Trabalho, cultura e cidadania. São Paulo: Scritta, 1997. Ver também: FONTES, Paulo. Classe e linguagem: notas sobre o debate em torno de Languages of Class de Stedman Jones. Locus, v. 4, n. 2, 1998. A grande diferença é que a história social britânica permanece um terreno valorizado, em disputa, apesar do declínio do marxismo e da reestruturação contemporânea dos mundos do trabalho. No Brasil, é freqüente o descarte do tema e da abordagem. 38 Para o interessado em consultar resenhas: FLORENTINO, Manolo. Exercícios de história total. Folha de S. Paulo, 24 jun. 2001. SEVCENKO. Nicolau. A mais estranha das ilhas. Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 8 set. 2001. LARA, Sílvia. Peculiaridades no Brasil. Topoi, v. 3, 2001. 39 Miséria da teoria foi o primeiro livro de Thompson publicado aqui, em 1981. Possivelmente, o motivo de sua impressão foi a predominância de Althusser no marxismo brasileiro. Foi sucedido por Exterminismo e Guerra Fria. São Paulo: Brasiliense, 1985. 40 José Sérgio Leite Lopes destaca que, paradoxalmente, os “símbolos da dominação tradicional são exagerados, teatralizados, reinventados”, muito mais utilizados do que no contexto das grandes propriedades rurais. Ver: Uma teatralização tradicional da dominação industrial. In: ARAÚJO, Angela (Org.). Trabalho, cultura e cidadania: um balanço da história social brasileira. São Paulo: Scritta, 1997. 41 SILVA, Fernando T. da; COSTA, Hélio da. Trabalhadores urbanos e populismo: um balanço dos estudos recentes. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 42 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa. O populismo na política brasileira. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história. Debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 43 HOBSBAWM, Eric. O fazer-se da classe operária, 1870-1914. In: ______. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 291. 44 HOBSBAWM, Eric. História operária e ideologia. In: ______. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 13, 18. 45 Um passo adiante foi dado por Adriano Duarte em Cidadania e exclusão, Brasil 1937-1945. Florianópolis: Ed. da Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. 46 “Classe como categoria histórica pertence ao preciso e dominante uso marxista”. Em Marx, sobretudo em Capital, “é esta acepção dominante”, sendo “o pressuposto de muitos, se não de todos, da tradição histórica marxista inglesa”. THOMPSON, E. P. Algumas observações sobre classe e “falsa consciência”. In: ______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001. p. 271.

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47 PIRES, Antônio Liberac. Bimba, Pastinha e Besouro de Mangangá. Três personagens da capoeira baiana. Tocantins: NEAB/Grafset, 2002. 48 GINZBURG, Carlo. O nome e o como. Troca desigual e mercado historiográfico. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p. 176, 178. GRENDI, Edoardo. Ripensare la Microstoria? Quaderni Storici, n. 86, p. 540, 1994. 49 JORDAN, Thomas. Contesting the Terms of Incorporation. Labor and the State in Rio de Janeiro; 1930-1964. 2000. Thesis (Ph. D.) – University of Illinois at UrbanaChampaign, Urbana, 2000. p. 60. 50 Ver: SAMPAIO, Gabriela dos R. Pequenos poderes: disputas entre autoridades e trabalhadores pobres no cotidiano da cidade do Rio de Janeiro em finais do Império. Comunicação apresentada no colóquio Paternalismo, consensos, dissensos: os trabalhadores no Brasil. Fortaleza, 16 a 18 de outubro de 2002. 51 CORRÊA, Hércules. Memórias de um stalinista. Rio de Janeiro: Opera Nostra, 1994. PEREIRA, Leonardo. Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 52 HOBSBAWM, Eric. O fazer-se da classe operária, 1870-1914. In: ______. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 288. 53 Ibid., p. 274. 54 THOMPSON, D. Introduction. In: ______. The Essential E. P. Thompson. New York: The New Press, 2001. p. x. 55 Refiro-me à pesquisa realizada para Linhas de montagem. O industrialismo automotivo e a sindicalização dos trabalhadores (1945-1978). 2001. Tese (Doutorado) – IFCH/Unicamp, Campinas, 2001. 56 Noticiário Willys, n. 6, 1959. 57 Embora Sidney Chalhoub não volte suas reflexões para as fábricas, é hora de aproximar as pesquisas sobre os “elementos” na mira dos policiais. Antes laborioso, humilde e cordato, o trabalhador, ao assumir-se como grevista, cai na desordem, vira uma ameaça. Ver: Classes perigosas. Trabalhadores, n. 6, p. 6 et seq., 1990. 58 Para greves de trabalhadores negros durante a escravidão, ver: REIS, João. A Greve Negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18, 1993. Ver também: LONER, Beatriz. Greve ou motim? As paralisações de trabalho de escravos e contratados. Comunicação apresentada no V Encontro Estadual de História ANPUH/RS, Porto Alegre, 25-28 de julho de 2000. 59 Informe reservado, 18/10/57. Arquivo do Estado de São Paulo (Aesp), setor Deops, 30-B-7, fl. 79. 60 LOBATO, Monteiro. Zé Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1947. 61 RUSSELL, J. Communism and Brazil, 21/5/68. Foreign Commonwealth Office 7 286. Public Record Office. 62 Viramundo, de Geraldo Sarno. São Paulo, 1965. 63 Listas de nomes, s.d. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), fundo DPS, “Comitê Municipal de Magé”, D 596, fls. 2-5. 64 BATALHA, Cláudio. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetórias e tendências. In: FREITAS, Marcos. Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo:

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Contexto, 1998. p. 155-158. Outras recensões devem ser citadas. Ver: FRENCH, John; FORTES, Alexandre. Urban Labor History in Twentieth Century Brazil. Albuquerque: The Latin American Institute, The University of New Mexico, 1998. LOBATO, Mirta (Dir.). Historia de los trabajadores (Argentina). Bibliografía. Movimiento obrero y sectores populares. CD-Rom do Grupo de Trabajo (UBA, UNCo, UNR). Buenos Aires, 2000. WOLFE, Joel. The Social Subject Versus the Political: Latin American Labor Studies at a Crossroads. Latin American Research Review, v. 37, n. 2, 2002. FERRERAS, Norberto O. História e trabalho: entre a renovação e a nostalgia. Trajetos. Revista de História UFC, Fortaleza, n. 2, p. 57, 58, 2002. 65 LINDEN, Marcel Van der. Globalizando a historiografia das classes trabalhadoras e dos movimentos operários: alguns pensamentos preliminares. Trajetos. Revista de História UFC, Fortaleza, n. 2, 2002. 66 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. I, p. 61-62. 67 PEREIRA, Cristiana Schettini. “Que tenhas teu Corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. 2002. Tese (Doutorado) – IFCH/Unicamp, Campinas, 2002. 68 Ver: HALL, Michael. Trabalhadores imigrantes. Trabalhadores, n. 3, p. 11, 1989. Ver também: GARCIA, Marco A. Os desafios da autonomia operária: São Bernardo a (auto)construção de um movimento operário. Desvios, n. 1, 1982. GARCIA, Marco A. Tradição, memória e história dos trabalhadores. In: CUNHA, Maria C. P. (Org.). O direito à memória. São Paulo: DPH, 1992. 69 WEFFORT, Francisco. Origens do sindicalismo populista. Estudos Cebrap, n. 4, p. 69, 70, 1973. Para uma crítica, conferir: FORTES, A.; NEGRO, A. L. Historiografia, trabalho e cidadania no Brasil. Trajetos. Revista de História UFC, Fortaleza, n. 2, p. 36, 2002. 70 COSTA, Hélio da. Em busca da memória. Organização no local de trabalho, partido e sindicato em São Paulo. São Paulo: Scritta, 1995. SILVA, Fernando T. da. A carga e a culpa. Os operários das Docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 19371968. São Paulo: Hucitec, 1995. 71 LEVINE, Robert. Pai dos pobres? O Brasil e a Era Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 145. Ver resenha: D’ARAÚJO, Maria Celina Soares. Getúlio Vargas decifrado pelo olhar estrangeiro. O Globo, 27 jul. 2002. 72 HALL, Michael; PINHEIRO, Paulo S. Alargando a história da classe operária: organização, lutas e controle. In: PRADO, A. Libertários & militantes. Campinas: Unicamp, 1985. (Coleção Remate de males, n. 5). BERTONHA, João F. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o Fascismo, 1919-1943. São Paulo: Anna Blume, 1999. TOLEDO, Edilene. O sindicalismo revolucionário em São Paulo e na Itália: circulação de idéias, experiências na militância sindical transnacional entre 1890 e o Fascismo. 2002. Tese (Doutorado) – IFCH/Unicamp, Campinas, 2002. 73 BATALHA, Cláudio. Le Syndicalisme «Amarelo» à Rio de Janeiro (1906-1930). 1986. Tese (Doutorado) – Universidade de Paris I, Paris, 1986. STOTZ, Eduardo. A união dos trabalhadores metalúrgicos do Rio de Janeiro na construção do sindicato corporativista. 1986. Dissertação (Mestrado) – ICHF/UFF, Niterói, 1986. FRENCH, John. The Origin of Corporatist Intervention in Brazilian Industrial Relations, 1930-34:

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A Critique of the Literature. Luso-Brazilian Review, v. 28, n. 2, 1991. WOLFE, Joel. Working Women, Working Men. São Paulo and the Rise of Brazil’s Industrial Working Class, 1900-1955. Durham: Duke University Press, 1993. ARAÚJO, Angela. A construção do consentimento. Corporativismo e trabalhadores nos anos 30. São Paulo: Scritta, 1998. FORTES, Alexandre. Revendo a legalização dos metalúrgicos de Porto Alegre (1931-1945). In: FORTES, A. et al. Na luta por direitos. Estudos recentes em história social do trabalho. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. 74 Ver: GOMES, Angela de C. O populismo e as ciências sociais. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 48. 75 HALL, Michael. Resenha de Father of the Poor? Vargas and his Era, de Robert Levine. International Review of Social History, v. 44, parte 3, 1999. Prefácio a Na luta por direitos. Estudos recentes em história social do trabalho. 76 Ao investigar a interação das estratégias de industriais, políticos e partidos com o movimento operário, minha tese de doutorado demonstra que a instalação de um cinturão automobilístico de linhas de montagem assentou-se numa rede de alianças patronal, policial, estatal e diplomática dedicada à neutralização dos esforços dos trabalhadores rumo a um sistema sindical independente da política estatal e dos patrões. Em vista disso, as conquistas sociais dessa época são afirmadas no chão das fábricas, e não benesses de acordos firmados em palácios. Ver: Negro, Linhas de, p. 79, 444. 77 HALL, Michael. Corporativismo e fascismo. As origens das leis trabalhistas brasileiras. In: ARAÚJO, Angela (Org.). Do corporativismo ao neoliberalismo. Estado e classe trabalhadora no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 18. 78 Brasil Agora, n. 30, 21 dez. 1992/24 jan. 1993. 79 VINHAS, Moisés. Estudos sobre o proletariado brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. p. 191, 198. 80 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. I, p. 13. 81 CASTRO, Josué de. Geografia da fome. O dilema brasileiro: pão ou aço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

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CONVITE A OUTRA MICRO-HISTÓRIA: A MICRO-HISTÓRIA ITALIANA Carlos Antonio Aguirre Rojas*

“Não há razões, exceto as de uma tradição filosófica nunca revisada, para supor que menos generalidade seja o mesmo que menos valor epistemológico ou científico”. Norberto Elias, Artigo “O Ócio no Espaço do Tempo Livre” (1986).

DA “MICRO-HISTÓRIA LOCAL” (MEXICANA) À “MICRO-HISTÓRIA DE ESCALA” (ITALIANA) Mencionar hoje no México, na comunidade de historiadores, o termo micro-história é suscitar de imediato uma possível confusão. Porque, desde os anos 1970 até hoje, e cada vez com mais força, o termo micro-história foi se associando, pouco e pouco, ao projeto e ao modelo de história defendido e explicitado pelo historiador mexicano Luis González y González, modelo que encontra sua expressão e aplicação paradigmática no hoje bem conhecido livro desse autor, intitulado Pueblo en Vilo.1 E, não obstante, quando se evoca o termo micro-história, tem-se em mente a importante e cada vez mais difundida corrente historiográfica da micro-história italiana, está se pensando num projeto intelectual que de fato se situa nas antípodas absolutas dessa “micro-história” de Luis González y González.

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Abordando com cuidado as reflexões e a caracterização que o próprio Luis Gonzálvez y González fez dessa mesma “micro-história mexicana”, é fácil descobrir que nela se trata, fundamentalmente, de um retorno claro e explícito aos horizontes e ao universo do muito antigo e amplamente difundido ramo da história local. Retorno que, além do mais, não é concebido como simples volta atrás, no nível da história geral e dos modelos mais globais sobre a história do México, como um retorno à tradicional história local e regional, mas, sim, como uma reivindicação saudável da necessidade de regressar a esse plano da história local e de âmbitos espaciais mais restritos como saída para o esgotamento e a relativa falta de renovação dessas mesmas histórias gerais. Assim, é o próprio Luis González y González que, para definir a sua versão do que é a micro-história, vai recorrer à “história antiquária” de Nietzsche, afirmando que esta última “[...] é a Borralheira do conto”. E depois, descrevendo os traços e as raízes dessa micro-história, acrescenta: “[...] flui de manancial humilde; origina-se no coração e no instinto. É a versão popular da história, obra de aficionados de tempo parcial. Move-a uma intenção piedosa: salvar do esquecimento a parte do passado que já está fora de uso. Procura manter a árvore ligada às raízes. É a que nos conta o pretérito da nossa vida diária, do homem comum, da nossa família e do nosso torrão natal”. E, para rematar a frase: “sua manifestação mais espontânea é a história do povo, ou micro-história, ou história paroquial, ou história mátria”.2 Fica claro, portanto, que essa micro-história mexicana é, na sua essência, uma exortação explícita à volta e ao desenvolvimento da história local. Exortação que, no contexto da profunda renovação historiográfica vivida pelo México e sob os benéficos efeitos da importante revolução cultural de 1968,3 pareceria ter sido muito bem ouvida, atendida e respondida por todo um setor dos historiadores mexicanos das últimas três décadas. Mas, posto seja claro que não são nem o chamado conteúdo na obra de Pueblo en Vilo nem os trabalhos de Invitación a la Microhistoria e Nueva Invitación a la Microhistoria que provocam o importante apogeu da história regional e local mexicanas posteriores a 1968, é igualmente certo que esse apogeu vai corresponder-se parcialmente e sustentar em parte a crescente e progressiva difusão dessa mesma “micro-história” proclamada e defendida pelo historiador Luis González y González.4 Assim, é pertinente afirmar que a micro-história italiana está nas antípodas dessa micro-história mexicana. Pois se esta última é, em essência, apenas uma nova versão da antiga história local, versão sofisticada e complexizada com

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algumas das técnicas e dos métodos historiográficos desenvolvidos nos anos 1950 e 1960 pela história demográfica, pela história da vida cotidiana, etc., a micro-história italiana é um projeto intelectual complexo que só utiliza o nível do “local”, ou do “regional”, como simples e estrito “espaço de experimentação”. Ou seja, a micro-história italiana não é, ao contrário do que o termo micro poderia equivocadamente sugerir, uma história de microespaços, ou de microrregiões, ou de microlocalidades – uma história local ou de espaços pequenos e reduzidos –, mas, sim, uma nova maneira de enfocar a história que, entre seus procedimentos principais, reivindica o da “mudança de escalas” do nível de observação e estudo dos problemas históricos e, por conseguinte, utiliza o acesso aos níveis “macro-históricos” – vale dizer, a escalas de observação pequenas ou reduzidas, que podem ser locais mas também individuais ou referidas a um fragmento, a uma parte ou elemento pequeno de uma realidade qualquer – como espaço de experimentação e trabalho, como procedimento metodológico para o enriquecimento da análise histórica. Giovanni Levi é muito explícito quando afirma: “A micro-história enquanto prática se baseia em essência na redução da escala de observação, numa análise microscópica e num estudo intensivo do material documental”, mas para esclarecer logo em seguida que, “para a micro-história, a redução de escala é um procedimento analítico aplicável em qualquer lugar, com independência das dimensões do objeto analisado”, acrescentando que “o verdadeiro problema consiste na decisão de reduzir a escala de observação com fins experimentais”.5 E, não obstante, tanto a micro-história mexicana como a micro-história italiana recuperaram e depois popularizaram, em seus respectivos âmbitos nacionais – e, no caso da micro-história italiana, no âmbito europeu e depois no de todo o mundo ocidental –, o termo micro-história, que, aliás, elas não inventaram.6 E também ambas as histórias são filhas dos efeitos culturais e historiográficos desencadeados pela Revolução Cultural de 1968, desdobrando suas respectivas curvas de vida no mesmo lapso temporal das últimas três décadas. O que explica, sem dúvida, porque no México a evocação do termo se presta a confusão. Mas também sublinha o fato de que apenas historiadores pouco atentos ou pouco informados sobre os principais desenvolvimentos recentes da historiografia mundial podem confundir a micro-história italiana com a micro-história mexicana. Pois a diferença clara e profunda que existe, por um lado, entre uma versão mais ou menos sofisticada da antiga e tradicional história local ou mesmo regional e, por outro, o complexo recurso do procedimento metodoló-

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gico da “mudança de escala” e o acesso ao nível do “micro” como lugar de experimentação historiográfica é uma diferença que não pode escapar ao exame cuidadoso de nenhum historiador atualizado no tocante ao estado geral dos desenvolvimentos e das correntes da historiografia mais contemporânea. Crise dos modelos gerais em ciências sociais que teve uma primeira falsa saída no desenvolvimento das múltiplas posturas pós-modernas desenvolvidas também depois de 1968. Uma falsa e cômoda saída que consistia simplesmente em negar a validade ou mesmo a possibilidade de construir modelos “gerais”, aos quais qualificou de simples “meta-relatos” e ante os quais o que se defende é um relativismo total das posições e do conhecimento historiográfico – reduzido nessa ótica a meros relatos com pretensões de verdade –, relativismo que renuncia explicitamente ao caráter científico do conhecimento histórico e reduz o resultado do trabalho do historiador à sua dimensão narrativa única e específica. Falsa alternativa pós-moderna que, não por acaso, será duramente criticada e desmontada em seus pressupostos e implicações metodológicas principais pelos expoentes da micro-história italiana.9 Diante dessa primeira resposta pós-moderna, que era um verdadeiro beco sem saída para os historiadores confrontados com essa crise dos modelos gerais, a micro-história italiana vai tentar outro caminho, completamente distinto, que consiste em preconizar o retorno ao “micro” e a volta à história viva e vivida pelos homens mediante a mudança de escala, mas sem renunciar em momento algum à necessidade e até mesmo ao papel fundamental do plano do geral. Por isso, Ginzburg vai definir a busca geral da corrente italiana, encarando-a como um projeto cujo objetivo é a construção de um “paradigma geral capaz de explicar os casos individuais e qualitativos, sem se reduzir à casuística”;10 vale dizer, restituir o papel essencial do particular, das realidades diversas cujo intento de explicação concreta gera justamente a construção desses modelos gerais, sem contudo abandonar ou negar a imprescindibilidade e a relevância dessa dimensão do geral. Pondo, então, no centro de sua proposta historiográfica geral uma nova forma de recuperação da complexa dialética entre as escalas macro-histórica e micro-histórica da realidade social, os micro-historiadores italianos vão também consolidar e afirmar de maneira definitiva o trânsito da historiografia italiana para a sua condição de história social verdadeira e estrita. Já que, ao indagarmos sobre as razões que explicam o fato de a proposta macro-histórica haver nascido e se desenvolvido na Itália, e não em qualquer outra parte do mundo, abordamos também esse contexto historiográfico particular, que foi o espaço de origem dessa corrente historiográfica que ora analisamos.

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Fica claro, então, o porquê de a micro-história italiana se inscrever num processo mais vasto, que a ultrapassa e a inclui, mas que também a determina e a impacta e que é o processo já mencionado de desdobramento da historiografia da península italiana como história social renovada e estrita. Processo por que todas as historiografias do século 20 tiveram de passar, mais cedo ou mais tarde, e que na Itália se vê claramente retardada pela irrupção do fascismo e pelo posicionamento italiano na 2.ª Guerra Mundial. Mas, como é bem sabido, na Itália, o fascismo será vencido por uma profunda e organizada resistência social popular, o que determinará o fato de que, ao sair da 2.ª Guerra Mundial, a tarefa imediata a cumprir pelos historiadores será a desse trânsito maciço e generalizado dos espaços da historiografia jurídica, política e da filosofia da história para os novos territórios da história econômica, social e cultural.11 Trânsito que não só explica a excepcional difusão e aceitação, na Itália dos anos 1950 e 1960, do conjunto de trabalhos e contribuições feitos nesses anos pela corrente dos Annales12 mas também o fato de a micro-história italiana ter sido formada e avalizada num clima altamente receptivo ao tipo de história econômica, demográfica, social e cultural que ela vai desenvolver. E que explica também o fato de algum autor ter caracterizado essa micro-história italiana como o simples “caminho italiano” para essa mesma história social. Mas a micro-história dos historiadores italianos, sendo sem dúvida parte da nova história social da península e dela se alimentando, vai muito além dela, conformando-se a uma proposta metodológica original e como uma nova via da análise histórica que não por acaso ultrapassou os limites da península itálica para se difundir com força na Europa e no resto do mundo ocidental durante os últimos quatro lustros. Torna-se difícil, portanto, entender essa originalidade e novidade da proposta macro-histórica se não considerarmos certos dados que são característicos e singulares do contexto italiano dos anos 1950 e 1960 e que aludem, num caso, a duas situações conjunturais dessa Itália do segundo pós-guerra e, no outro, a realidades de longa duração da história italiana, que nessa mesma conjuntura de pós-guerra se manifestaram também como elementos importantes e definidores dessa mesma micro-história. Em primeiro lugar, não se pode entender a riqueza e a complexidade da visão macro-histórica sem considerar a situação conjuntural de extremo cosmopolitismo cultural que a Itália conheceu nesses anos da conjuntura, que vai de 1945 a 1968, aproximadamente. Pois, como fruto do relativo declínio vivido pela historiografia italiana, após o brilho dos trabalhos de Benedetto Croce e Antonio

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Gramsci, entre outros, os historiadores da península se dedicaram a assimilar tudo e a aclimatar tudo em sua paisagem historiográfica, recuperando tanto a corrente dos Annales quanto a dos autores da Escola de Frankfurt, os resultados da historiografia socialista britânica e a antropologia anglo-saxônica, assim como suas próprias tradições italianas e as mais diversas correntes e autores da história da arte, da crítica literária ou da antropologia dos diferentes países da Europa. Uma abertura cosmopolita acendrada para os últimos desenvolvimentos do pensamento crítico nas ciências sociais contemporâneas, sem cuja assimilação e síntese seria igualmente impossível entender essa mesma corrente da micro-história italiana.13 Uma variedade e uma enorme multiplicidade das diferentes “fontes” ou “raízes” intelectuais em que se apóia a proposta macro-histórica que constitui o fundamento manifesto de suas complexas visões acerca da dialética macro/micro, da própria definição do macro-histórico e do macro-histórico, de sua construção progressiva da noção de cultura e de um novo modelo de história cultural, assim como da profunda renovação imposta por ela às histórias econômica, demográfica e social pelas quais incursionou. Complexidade de suas visões e propostas teóricas, metodológicas e historiográficas que levou um historiador francês a dizer que o lema dessa micro-história italiana é “por que fazer as coisas simples se pode fazê-las de maneira complexa?”.14 Em segundo lugar, é óbvio que praticamente todos os representantes da micro-história italiana se encontram situados em posições políticas ou ideológicas de esquerda, inserindo-se de múltiplos modos no leque de tradições e filiações culturais dessa Itália do segundo pós-guerra, mas sempre em posturas que questionam a sociedade existente e que denunciam o seu caráter injusto e explorador, reivindicando a necessidade e a vigência do pensamento necessariamente crítico nas ciências sociais.15 Uma postura ideológica em perspectivas de esquerda que explica não só o já mencionado distanciamento ante as posições e as falsas saídas pós-modernas mas também o fato de os autores macro-históricos serem enérgicos promotores da nova história social italiana, abordando temas ligados à história da classe operária, da cultura das classes oprimidas, da formação e do funcionamento dos mercados nas origens do capitalismo, à história da formação das elites e das classes dominantes ou ao papel dos saberes “indiciários” próprios das classes populares na história, entre tantos outros. Uma tomada de posição aberta nas fileiras da historiografia crítica contemporânea que, além de estar na base do caráter profundamente inovador e revolucionário das teses macro-históricas, explica em parte tanto o espectro de

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suas filiações intelectuais específicas atrás aludidas como a sua vasta difusão fora da Itália, nos espaços da historiografia européia e ocidental – e até mesmo, mais recentemente, japonesa. Em terceiro lugar, e juntamente com esse cosmopolitismo cultural acendrado e com a clara vocação de esquerda dessa historiografia italiana do segundo pós-guerra, encontram-se também duas estruturas subjacentes de longa duração que, manifestando-se com igual força nesses anos 1940, 1950 e 1960 recém-vividos, vão contribuir para definir os perfis específicos do projeto macro-histórico. Duas estruturas que, posto tenham estado presentes ao longo de séculos e séculos, vão reatualizar precisamente a sua presença e o seu impacto na cultura italiana depois do fim da 2.ª Guerra Mundial e justamente como conseqüência da sua irrupção. A primeira dessas arquiteturas de longa duração é a profunda e muito amplamente difundida densidade histórica geral do espaço que hoje conhecemos como Itália. Densidade histórica extraordinária, que percebemos já de imediato quando percorremos a cidade de Roma e nos deparamos, a poucos metros de distância, com presenças e monumentos que nos resumem em alguns quilômetros, como camadas estratigráficas que diríamos conscientemente ordenadas, a história européia pelo menos dos últimos vinte séculos. Densidade que levou os historiadores a considerar a Itália “um livro aberto de história”, um “arquivo vivo” que salta à vista quando percorremos as diferentes áreas, zonas, povoados e cidades de toda a península itálica.16 Densidade da história nacional italiana que é “anormal” em relação à média européia e ocidental e que se foi associando progressivamente à “identidade” da recém-criada “nação” italiana; identidade que a ascensão do fascismo pôs em questão e em crise e que se reatualizou nos seus efeitos e presenças justamente depois da derrota de Mussolini e durante os anos de 1945 a 1968. Concentração e caráter evidentes do “histórico” na cultura, na vida cotidiana e na historiografia italianas que explicam em parte a construção da micro-história italiana. Pois nesse espaço “cheio de histórias”, que é a Itália, é mais fácil apreender essas múltiplas “escalas” da realidade histórica cujo jogo e inter-relação estão no centro da proposta macro-histórica. Assim, a passagem dos diferentes planos “macro-históricos” é mais fácil e fluida numa historiografia que se enquadra numa realidade que é um verdadeiro repertório, múltiplo, variado e quase inexaurível, de “exemplos”, de “casos”, de “indivíduos” e de “espaços” históricos da mais diversa ordem, tamanho, duração, localização ou especificidade.

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Finalmente, e como uma segunda estrutura de longa duração da realidade social italiana que se atualiza também nas décadas imediatamente posteriores à 2.ª Guerra Mundial, há a extrema descentralização e multipolaridade dessa unidade chamada Itália. Porque, como poucos países modernos, a Itália é também “diversidade” e, portanto, uma paisagem que em verdade é uma síntese complexa de regiões, zonas, cidades e espaços muito distintos. Mas, além disso, junto à sua enorme diversidade estrutural, a Itália conta com o fato de suas diferentes partes componentes se terem constituído, ao longo dos séculos, em outros tantos pólos fortes de desenvolvimento e irradiação de fluxos históricos, provocando a circunstância de na península ser mais difícil pensar “o geral” sem o particular, sendo mesmo mais difícil o próprio processo de construção epistemológica dessa dimensão da generalidade.17 Então, e como outro dos resultados criados pela situação da 2.ª Guerra Mundial, que dilacerou também a Itália, dividindo-a entre a Itália fascista e a Itália da resistência e reatualizando suas divisões e sua multipolaridade, é que vai desenvolver-se a tentativa macro-histórica italiana que põe no centro essa relação entre o modelo geral e o conjunto de casos ou realidades particulares que o mesmo modelo pretende abarcar e explicar. Com o que se compreende a bem-fundada crítica dirigida pelos micro-historiadores às insuficiências desses modelos gerais e sua intenção de renová-los, injetando-lhes vida, mais uma vez a partir do âmbito dessas realidades diversas, multipolares e específicas do nível macro-histórico e particular. Situações conjunturais e estruturais do contexto italiano de germinação e gênese da micro-história italiana que talvez também expliquem em parte a hipótese repetida por Fernand Braudel em diversas ocasiões, segundo a qual, depois da 2.ª Guerra Mundial, o “centro cultural” da Europa se havia deslocado claramente de Paris e da França, em geral, para Roma e a Itália, no seu conjunto.18

MICROBIOGRAFIAS, MICROLOGIAS E MICRO-HISTÓRIA ITALIANA Sem pretender reconstruir toda a história concreta dos principais ramos ou vertentes da corrente macro-histórica italiana, nem tampouco seus impactos e formas de difusão diferenciados na Europa, na América e no Japão,10 tentaremos antes concentrar-nos no que consideramos o seu núcleo duro epistemológico, constituído pelo procedimento macro-histórico da

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mudança de escala e da reconstrução da complexa dialética entre o macro e o micro em história, procedimento compartido pelos diferentes representantes de seus diversos ramos ou variantes e que dá sustentação e consistência ao próprio termo da dita “micro-história italiana”. Com isso, não esquecemos que nos mais de quatro lustros de vida dessa corrente historiográfica puderam evoluir e diversificar-se, derivando desse ponto de partida ou matriz comum que é o procedimento macro-histórico, tanto um ramo de autores que se aprofundaram sobretudo na linha da renovação geral da história econômica, demográfica e social como também, em outra vertente, uma linha que se desenvolveu privilegiadamente no espaço da reconstrução e afirmação de uma proposta de história cultural nova e original. A primeira, associada aos nomes de Eduardo Grendi, Giovani Levi e seus discípulos, que incursionou preferencialmente no tema da relação entre os indivíduos ou atores e seu contexto específico, entrando então no estudo do que se chamou de análise das redes macro-históricas e reprolematizando a partir daí temas como o da biografia e o da relação entre os diversos sistemas de normas e os espaços possíveis de sua transgressão, os modos concretos de ajuste do funcionamento de um mecanismo econômico, as formas de coesão e comportamento das elites, a mudança geracional dos padrões de expectativas e percepções de uma classe ou as formas específicas de inserção dos grupos numa entidade urbana mais global entre outras.20 E a segunda, vinculada quase exclusivamente ao nome e à obra de Carlo Ginzburg, que se empenhou em desenvolver um modelo de construção novo e original para o estudo da história cultural, modelo que coloca no centro de atenção o resgate complexo da cultura dos oprimidos, da revalorização do “ponto de vista das vítimas”, redescobrindo e explicitando o “paradigma judiciário” como método de recuperação dessa cultura popular, ao mesmo passo que insiste na necessária e iniludível inter-relação e interdependência entre a cultura de elite e a cultura das classes submetidas, reproblematizando os modos gerais e específicos de sua dialética complexa e permanente.21 Mas, para além das contribuições específicas dessas duas vertentes macro-históricas, cuja análise mereceria um ensaio à parte, o espaço comum compartido por ambas é o do já referido procedimento macro-histórico. Procedimento que, como seu nome indica, implica, em princípio, uma clara reivindicação de retorno ao nível macro-histórico, retorno preconizado ante o esgotamento e a crise dos modelos globais e concebido como um caminho possível para recuperar essa dimensão viva e vivida da histó-

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ria, essa diversidade obliterada nos modelos globais questionados, retorno que, sem cair na falsa saída pós-moderna, permitiria renovar e relançar a história social italiana. Todavia, longe de uma interpretação demasiado fácil desse retorno, o que os autores italianos propõem é voltar à dimensão macro-histórica, mas sem abandonar o nível dos processos macro-históricos, sem incluir-se totalmente no espaço micro, porém antes, ao contrário, penetrar nele para recriar um modo novo de assumir tanto o macro como o micro em história, redefinindo também de um modo novo a sua complexa dialética. Porque, ao propor essa volta ao âmbito das realidades macro-históricas, os autores que se vão concentrar durante um período em torno da equipe construtora e diretora da hoje célebre revista Quaderni Stociri22 vêem como muito clara a necessidade de se distanciar, criticamente, das duas formas tradicionais e mais difundidas de enfrentar essa dialética macro/micro que foram tentadas no passado e que, no fundo, resolvem o problema privilegiando apenas de um dos seus termos e reduzindo o outro a esse primeiro termo. Pois é uma redução da complexidade desse nexo macro/micro conceber o nível macro-histórico como o mais importante ou fundamental, enfatizando a primazia epistemológica do “geral” e reduzindo o nível macro-histórico à condição de um simples conjunto de exemplos, casos ou concretizações diversas dessa mesma “generalidade”. Assim, o plano micro vem a ser uma espécie de simples “espelho” do geral, sendo obrigado a refleti-lo e a devolver passivamente a sua imagem, talvez um pouco deformada ou defeituosa, mas sempre correspondente a essa mesma dimensão geral.23 Redução do micro ao macro que, como contrapartida necessária, engendrou igualmente o seu oposto, porque, ante essa minimização do micro, desenvolveu-se também uma postura inversa que, privilegiando o nível do micro ou do particular como o nível essencial e central da análise, acabou por conceber o macro-histórico apenas como a soma, o conjunto ou o simples aglomerado de casos, ou também, em outra variante possível, como o mero “pano de fundo” – pouco relevante do ponto de vista epistemológico – dessas mesmas realidades ou fenômenos macro-históricos ou particulares.24 Diante dessas duas formas de assumir a dialética macro/micro, que no fundo reduzem um termo ao outro para simplificar falsamente o problema e eludi-lo, a micro-história italiana propõe antes restituir a complexidade dessa relação entre o micro e o macro, reivindicando a idêntica relevância de ambos os planos em termos gnosiológicos e epistemológicos e propondo um modo

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novo de conceber a sua articulação específica. Um novo modo de apreensão da dialética macro/micro que, ao mesmo tempo em que se distancia das duas formas de redução aludidas, se alimenta igualmente das experiências prévias realizadas por outras ciências sociais ou humanas que, antes dela, já se defrontaram com essa diferença de escalas referida. Pois é evidente que não são os micro-historiadores italianos que inventaram o recurso ao nível micro, nem tampouco são eles os primeiros a adentrar os problemas suscitados pela diferença das escalas macro/micro. Mas, em compensação, a eles corresponde o fato de haver tentado uma forma nova e original de abordar esse problema, forma que ao mesmo tempo recupera e suplanta as maneiras tentadas pela Economia, a Sociologia, a Arquitetura, a Geografia, a Antropologia ou a história local ou regional anteriores.25 Assim, a Economia e a Sociologia já haviam criado os ramos diferenciados da macroeconomia e da macrossociologia, por um lado, ante a microeconomia e a microssociologia, por outro, que nessa perspectiva correspondiam a dois níveis diferentes da realidade estudada e, portanto, eram concebidos como espaços com atores, lógicas, regras, normatividades e situações completamente distintas entre si. Afirmando então a absoluta autonomia e diferença desses dois universos macro/micro econômico/sociológico, essas ciências não viam conexão alguma entre ambas, separando-as como ramos independentes de sua própria tarefa analítica. Diferença radical do macro e do micro postulada pela sociologia e a economia, que serão recuperada pela micro-história italiana ao se admitir que se trata efetivamente de dois níveis diferenciados e irredutíveis um ao outro, cada qual com uma lógica e uma especificidade que lhes são exclusivas e singulares. Mas, diversamente da abordagem sociológica ou econômica, no caso da micro-história, trata-se de uma única realidade histórica, presente em níveis diversos e suscetível de ser observada e estudada nas suas manifestações correspondentes às diferentes escalas em que se desdobra, mas que, dada a sua unicidade originária, nos obriga a estabelecer e a recriar o modo de conexão particular entre esses dois ou mais níveis ou escalas considerados. Desse modo, o desafio será o de reconstruir essa conexão e esse movimento de uma escala a outra, mas respeitando e admitindo ao mesmo tempo essas especificidades e diferenças decorrentes do procedimento da mudança de escala. Procedimento que se enriqueceu igualmente a partir das lições da Geografia e da Arquitetura, que, “reduzindo” as dimensões de um mesmo objeto, nos demonstraram que, ao mudar a escala de observação ou conside-

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ração, muda também necessariamente o nível de informação disponível em torno desse objeto, modificando-se profundamente o que é perceptível e o que não o é e transformando também a configuração da realidade analisada. Mudanças que o geógrafo ou o arquiteto conhecem bem e que serão igualmente incorporadas pelos micro-historiadores italianos, que, ao passar de uma escala macro para uma escala micro, o farão justamente para ter acesso a informações novas e inéditas, descobrindo outros elementos da realidade histórica considerada e estabelecendo novas conexões, vínculos ou configurações do problema investigado. Mas, diversamente dos geógrafos e dos arquitetos, com a plena consciência de que nessa passagem de uma escala para outra o que eles investigam são níveis distintos de uma mesma realidade que está presente, simultaneamente, em várias escalas ou dimensões, e não um mesmo objeto que foi reduzido a proporções manejáveis pelos homens para sua mais fácil apreensão. Reivindicando, então, o fato de que se trata de duas dimensões do real, distintas mas interligadas, os micro-historiadores partem nesse périplo interescalas em busca de informações, percepções e formas inacessíveis a partir de um único nível dessa mesma realidade. Enfim, e sempre nesse jogo de resgates e deslindamentos das formas anteriores de abordagem do vínculo macro/micro, os autores da micro-história italiana recolheram também a lição da antropologia, que, abandonando radicalmente o nível do macro e denunciando os seus limites e a sua “pobreza” relativa diante das realidades particulares, se dedicou a mostrar e a demonstrar a riqueza exuberante do micro, desdobrando análises exaustivas e intensivas e construindo descrições densas e reconstruções totais que procuram esgotar a descrição dos diferentes objetos abordados. Reconhecendo então os limites da escala macro-histórica, mas negando a saída de obviá-la ou abandoná-la, desenvolvida pela antropologia tanto quanto pela história local ou regional, os micro-historiadores italianos vão recuperar toda essa riqueza multifacetada do nível micro, mas justamente para utilizá-la na reconstrução de um plano macro novo, mais complexo, rico, desenvolvido e cheio de determinações.26

A ORIGINALIDADE DO PROCEDIMENTO MACRO-HISTÓRICO ITALIANO Se revisarmos com cuidado tanto as principais obras como os principais ensaios metodológicos dos representantes centrais da micro-história italiana,

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ser-nos-á fácil entender onde reside uma das contribuições revolucionárias mais essenciais contidas no seu modo de propor e, depois, desdobrar operativamente o tantas vezes referido procedimento macro-histórico italiano. Pois, assimilando criticamente e superando ao mesmo tempo – sob o modo da clássica aufhebung hegeliana – as formas precedentes de abordar a dialética macro/micro, o que os micro-historiadores italianos vão realizar consistirá em deslocar e transcender claramente o tradicional pensamento dicotômico dos opostos. É muito evidente que, seguindo nesse ponto as profundas lições de Norbert Elias,27 os promotores dessa visão macro-histórica italiana vão abandonar totalmente as clássicas explicações que opõem o geral ao particular, propondo as falsas disjuntivas, explícitas ou implícitas, do indivíduo ou do contexto, a visão do social contra a do individual, o macro contra, à margem ou em concorrência com o micro, a lei contra o caso ou, acima do caso, o caso como forma de invalidar a lei, etc. Diante disso, e numa visão radicalmente nova e ainda pouco explorada pelos cientistas sociais, os autores italianos vão propor a construção do geral a partir do particular, ressituando então o indivíduo no contexto e dentro da sociedade. Com o que também é possível ver o macro no micro, a partir do e no próprio micro, recolocando o caso na norma e a norma atuando dentro do caso, etc. Assim se desloca inteiramente o modo de abordar todas essas dialéticas complexas, tão centrais e tão debatidas na história e em todas as ciências sociais, superando o pensamento simples binário, de opostos rigidamente contrapostos e só excludentes, para dar lugar à construção de modelos mais complexos e elaborados que reivindicam a nova biografia contextual, que decompõem o tempo nas múltiplas temporalidades, recriando os movimentos de vaivém do indivíduo e da obra para o mundo e a época e vice-versa e reconstruindo as múltiplas cadeias de interdependência em que se insere o indivíduo ou o grupo específico estudados.28 Torna-se claro, portanto, que o fundamental aqui não é nem o “micro”, considerado em si mesmo, nem o “macro”, concebido de maneira autônoma e auto-suficiente. Então, a micro-história não é nem história local da aldeia de Santena nem história biográfica tradicional de Menocchio ou de Piero della Francesca, nem tampouco história clássica da obra de Galileu Galilei, mas, sim, estudo complexo das formas concretas de funcionamento do mercado da terra na Itália dos séculos 17 e 18 através do caso de Santena, ou também estudo da cultura campesina e popular do século 16 ou, em outro caso, da cultura de elite dessa mesma época através e por intermédio do moleiro Domenico Scandella ou

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da obra e da vida do pintor autor de O Ciclo de Arezzo, assim como a história da revolução das cosmovisões européias do mundo durante o Renascimento testemunhadas na sorte e nos destinos da referida obra galileana. E, de igual modo e no outro extremo, tampouco interessa apenas continuar repetindo as histórias gerais e as teses macro-históricas habituais sobre o caráter necessariamente revolucionário da ideologia operária, a natureza “irracional” dos mitos camponeses na modernidade ou os processos de centralização política na formação do Estado moderno; o que interessa é analisar as formas concretas de desdobramento e particularização desses processos e tendências macro-históricos – por exemplo, na especificidade da classe operária de Turim, primeiro pró-socialista e depois pró-fascista, ou ainda na complexa construção, estratificada e muito densa, do rito/mito do sabá moderno e de sua singular curva de vida na Europa e fora da Europa, ou, enfim, nos modos concretos de transmissão do status, do privilégio e do poder numa pequena aldeia do Piemonte moderno.29 Portanto, o que o verdadeiro núcleo do procedimento macro-histórico italiano coloca no centro de sua preocupação não é nem apenas o micro nem apenas o macro, mas, sim, a totalidade dessa complexa dialética entre os níveis ou escalas macro-históricas e macro-históricas. E isso, para além das formas tradicionais de enfocar esses níveis macro e micro sociais e numa perspectiva, não binária dicotômica, nem de rígidas oposições e exclusões, mas, sim, a partir de uma nova visão de verdadeira dialética e interpenetração e pressuposição mútua, em que o macro está no micro e o micro inclui o macro, sem eliminar suas diferenças específicas, mas também sem esquecer que um nível ou escala só tem sentido e significação nessa mesma dialética que o inclui e determina como uma de suas partes componentes. O que então nos permite, finalmente, compreender em que consiste esse procedimento macro-histórico: nele se trata, segundo os cultores da micro-história italiana, de partir da recuperação de uma tese ou conjunto de teses já estabelecidas ou definidas no plano macro-histórico para depois, num movimento que é justamente o da “redução da escala de observação”, levar essas mesmas hipóteses a um plano distinto, plano de proporções sempre menores em relação ao plano ou nível original e que será justamente o universo macro-histórico a trabalhar. Então, e considerando esse plano “reduzido” ou macro-histórico como simples laboratório histórico ou “lugar de experimentação”, terá que retrabalhar e submeter à prova essas hipóteses ou teses macro-históricas, verificando sua validade, complexizando suas deter-

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minações, matizando seus conteúdos e incorporando-lhe elementos cada vez mais novos e mais sutis mediante os procedimentos antes referidos da “análise microscópica” dos problemas e dos pontos estudados e mediante a investigação exaustiva e intensiva de todo o material e de todos os elementos derivados desse mesmo universo macro-histórico. Enfim, e para fechar o círculo do percurso global dentro dessa dialética macro/micro, o microistoriador deverá voltar à dimensão macro-histórica, restabelecendo e até reformulando radicalmente, de maneira distinta, as hipóteses e teses originalmente submetidas a esse procedimento ou exercício, restabelecimento ou reformulação que após a passagem ou incursão pelo experimento macro-histórico deverá redundar necessariamente na construção e elaboração de novas teses, modelos e perspectivas macro-históricas, muito mais ricas, complexas, finas e sutis que as anteriormente existentes. Procedimento macro-histórico que dá sentido à frase anterior citada de Jacques Revel quando ele afirmou, para caracterizar o espírito geral dessa micro-história italiana: “Por que fazer as coisas simples quando se pode fazêlas de maneira complexa?”. E, visto que a realidade social – como, aliás, toda a realidade – é sumamente complexa, e dado que o objetivo da ciência social é captar da melhor maneira essa complexidade, fica clara a intenção geral que busca essa promoção, defesa e popularização desse exercício macro-histórico: trata-se, em geral, de avançar rumo à construção de modelos mais complexos de explicação do social e do histórico, modelos mais sutis e desenvolvidos que sejam capazes de recolher e, depois, reproduzir essa mutidimensionalidade, flexibilidade, variabilidade e extrema riqueza das realidades concretas que tais modelos tentam apreender. Mas então, e para evitar possíveis confusões, vale a pena indagar sobre as condições específicas em que é possível e pertinente a aplicação ou a prática desse procedimento macro-histórico. Quando é possível falar de um plano ou uma escala macro-histórica que inclua em si outros vários planos macro-históricos? E quando é possível esse movimento de “redução da escala de observação” e a concomitante descida ao micro? E de que “micro” estamos falando quando o definimos como um laboratório de análise histórica ou um lugar de experimentação do historiador? E o que se requer para que nessa dimensão macro-histórica seja aplicável a “análise microscópica” e também o “uso e tratamento exaustivo e intensivo dos materiais” disponíveis? E, enfim, como garantir o movimento de retorno do micro ao macro e, depois, a reestruturação desse macro a partir dos resultados da viagem realizada até o nível micro?

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Porque é evidente que nem todo problema é suscetível de ser submetido ao exercício da mudança de escala e de aplicação do procedimento macrohistórico, da mesma sorte que nem todo plano ou nível da realidade tem em relação a qualquer outro uma relação de escalas interligadas que possamos incluir na já referida dialética macro/micro. Então, para entender melhor essa complexa dialética entre o macrohistórico e o macro-histórico, pode ser útil voltar ao importante e debatido conceito de totalidade histórica. Assim, a relação macro/micro pode ser especificada como a relação que existe entre uma certa totalidade histórica e social complexa e uma de suas partes específicas, aquela que possa ser especialmente “reveladora” do todo que se investiga. O que significa que a escolha das dimensões macro-históricas e, depois, dos universos macro-históricos não é de modo algum uma escolha casual, arriscada ou arbitrária. Porque a própria realidade que estamos estudando se compõe de múltiplas dimensões ou níveis, níveis ou escalas organicamente relacionados e entre os quais há dialéticas e vínculos claramente estabelecidos. Por isso, quando falamos da dimensão macro-histórica, referimo-nos a essas totalidades histórico-sociais que já foram identificadas há muito tempo pelas ciências sociais e cujas tentativas de explicação já geraram a construção de múltiplos modelos, hipóteses e teorias diversas. E, igualmente, ao falar de universos micro-históricos, falamos então de certas dimensões, planos ou espaços que são parte orgânica dessas totalidades globais e complexas e que também são partes ou espaços particularmente reveladores dessas mesmas totalidades. O que delineia e especifica as condições e os limites de explicação do procedimento micro-histórico. Porque, ao falar de totalidades específicas e de partes ou dimensões reveladoras, falamos, para ilustrá-lo com um exemplo gráfico, do tipo de relação que pode existir, por exemplo, entre um quebracabeça considerado como todo e uma das suas peças especiais, peça que, pelo fragmento do desenho que inclui, permite decifrar de maneira mais evidente e numa forma particularmente acentuada o sentido do desenho geral plasmado no conjunto do quebra-cabeça.30 Assim, dado que uma totalidade não é um simples aglomerado ou conjunto qualquer de elementos – à maneira, por exemplo, de um zoológico qualquer, que é uma simples soma ou conjunto de animais, casual e caprichosamente reunidos num mesmo lugar físico e que, portanto, não constitui uma verdadeira totalidade –, mas é um conjunto complexo de elementos necessários e articulados de modo específico e cuja unidade e relações determinadas

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constituem justamente a totalidade em apreço, então a tarefa do microistoriador é, no início, a mesma da criança ou adulto que se defronta com o quebracabeça: partir da imagem global já conhecida para começar colocando aquelas peças-chave, especialmente “reveladoras” ou “decifradoras” da imagem de conjunto, a partir das quais terá de se desenvolver a (re)construção de toda a figura procurada.31 Destarte, fica claro que o procedimento macro-histórico não se aplica indiscriminadamente a qualquer problema de história ou em qualquer circunstância. E, no entanto, é igualmente claro que tanto o seu desenvolvimento como a sua possível difusão e extensão futura se referem a esse universo de certos temas essenciais que, durante décadas e séculos, preocuparam os cultores dos territórios da musa Clio. Porque, ao propor uma nova estratégia epistemológica para resolver o velho e recorrente problema da relação entre os níveis macro e micro na história, o que a micro-história italiana fez foi lembrar-nos uma vez mais que o conhecimento histórico nunca se esgota e que as verdades históricas, verdadeiro objetivo e sentido global do exercício da nossa ciência, posto sejam perfeitamente alcançáveis e cognoscíveis, sempre encerram ainda certos aspectos ou elementos por descobrir ou decifrar. Se a realidade e o próprio universo são infinitos, não poderiam ser finitos nem as verdades históricas nem o conhecimento histórico que delas temos. Mas é justamente aí que reside, em parte, o imenso prazer do nosso ofício.

NOTAS * Pesquisador do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade Nacional Autônoma

do México. 1 Cf. Pueblo en Vilo. México: Fondo de Cultura Económica, 1968. A edição original é dessa data, embora o livro tenha tido várias edições, algumas vezes com grandes tiragens. 2 Cf., em particular, o artigo “Teoría de la microhistoria” no livro Nueva invitación a la microhistoria. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. p. 33. Pode-se ver uma idéia semelhante no pequeno livro Outra invitación a la microhistoria. México: Fondo de Cultura Económica, 1997, onde Luis González y Gonzálvez equipara explicitamente a micro-história com, por exemplo, a local history inglesa ou ainda com a petite histoire francesa, assinalando contudo os inconvenientes dessas denominações, mas insistindo na idéia de que para além de sua denominação essa história local ou micro-história “foi exercida sem o ‘nome certo’ [...] durante mil anos” (cf. p. 15), afirmação que nos ilustra claramente a idéia do próprio González y González acerca da micro-história mexicana como simples nova versão dessa antiqüíssima história local.

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3 Cf., a esse respeito, o nosso artigo “Los Efectos de 1968 en la historiografía occidental”, na revista La Vasija, México, n. 3, 1998, onde tentamos estabelecer as coordenadas gerais desse contexto pós-68 no mundo ocidental e seus efeitos gerais nas historiografias de todo o Ocidente. 4 Vendo-o numa perspectiva temporal mais ampla, é evidente que tanto a obra como o projeto de “micro-história” de Luis González y González, por um lado, e o enorme apogeu da história local e regional mexicana, por outro, são meras expressões de um processo mais global, que ultrapassa o México, abarca toda a América Latina e condensa os efeitos da Revolução Cultural de 1968, no nosso continente, sob a forma de um intenso desenvolvimento de uma história regional original e muito pujante. Infelizmente, ainda falta à pessoa ou às pessoas que extraiam as lições gerais teóricas, metodológicas e historiográficas – dessa imponente produção de história regional latino-americana das últimas três décadas, que por certo singulariza as nossas historiografias em relação às demais historiografias do mundo ocidental. Sobre a força e o desenvolvimento dessa história regional latino-americana, cf. o artigo de KNIGHT, Alan. Latinoamérica: Un balance historiográfico. Revista Historia y Grafia, México, n. 10, 1998, ou também o de BANDIERI, Susana. Entre lo micro y lo macro: la historia regional. Síntesis de una experiencia. Revista Entrepasados, Buenos Aires, n. 11, 1996, para mencionar apenas dois exemplos entre os muitos possíveis. 5 Sobre essas citações, cf. o artigo de Giovanni Levi, “Sobre la Microhistoria”, no livro Formas de Hacer Historia. Madrid: Aliança, 1993. p. 122, 124. Em algumas entrevistas, Giovanni Levi foi ainda mais explícito quanto à contraposição entre história local e a micro-história italiana. Diz ele, por exemplo: “A micro-história nada tem a ver com a história local. Ou seja, pode-se fazer micro-história de Galileu Galilei ou de Piero della Francesca [...] a história local é outra coisa distinta, a história local estuda uma localidade [...] nesse sentido, jamais direi micro-história ou história local, são duas coisas totalmente distintas, inimigas; eu me ofenderia muito se fosse considerado um historiador local. Os dois povoados aos quais em particular dediquei muitos anos são dois povoados que considero sem nenhum interesse, dos quais não escrevi a história. Escrevi uma história neles” (cf. entrevista “Antropologia y microhistoria: conversación con Giovanni Levi” em Manuscrits, n. 11, p. 17, 18, enero 1993, Levi insiste nessa distinção também em outras duas entrevistas “Il piccolo, il grande e il piccolo”, Meridiano, n. 10, p. 223-224, 1990 e “La microhistoria italiana”, La Jornada Semanal, n. 283, p. 36, nov. 1994. 6 Carlo Ginzburg revisou agudamente a história do termo micro-história em seu artigo “Microstoria: due o tre cose che so di lei”, na revista Quaderni Storici, n. 86, ano XXIX, ago. 1994. Nesse artigo, Ginzburg caracteriza também a “micro-história mexicana” como uma simples variante da história local, estabelecendo sua diferença radical em relação ao projeto intelectual dos micro-historiadores italianos. 7 Sobre a caracterização de 1968 e seus impactos na cultura e na historiografia posteriores, cf. Fernand Braudel, “Renacimiento, Reforma, 1968: Revoluciones Culturales de Larga Duración” (entrevista a L’Express, nov. 1971), em La Jornada Semanal, México, n. 226, oct. 1993; WALLERSTEIN, Immanuel. 1968: Revolución en el Sistema-Mundo. Tesis e interrogantes. Revista Estudios Sociológicos, México, n. 20, 1989; DOSSE, François. Mai 68, les effets de l’Histoire sur l’histoire. Cahiers de l’IHTP, Paris, n. 11, avril 1989; Mai 68, mai 88: les ruses de la raison. Revista Espaces Temps, Paris, n. 38-39, 1988, assim como nossos artigos: AGUIRRE ROJAS, Carlos

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Antonio. 1968: La Gran Ruptura. La Jornada Semanal, México, n. 225, oct. 1993; Los Efectos de 1968 en la historiografía occidental. La Vasija, México, n. 3, 1998; Repensando los Movimientos de 1968. In: 1968. Raíces y Razones. Ciudad Juárez: Ed. Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, 1999. 8 Nesse sentido do esgotamento dos “modelos gerais” esvaziados de conteúdo e reduzidos a esquemas simplificados da realidade, vale a pena voltar a revisar o livro pioneiro de Jean-Paul Sartre, Crítica da razão dialética. Ali Sartre vai enfrentar aqueles marxistas “vulgares” e seus modelos empobrecidos, que pensavam que, para explicar Flaubert, bastava dizer que era um “pequeno-burguês” da época do Segundo Império. Mas, como houve dezenas de milhares desses pequenos-burgueses e só um foi Gustave Flaubert, e só um escreveu A educação sentimental, esse modelo de explicação não basta. Assim, Sartre antecipa uma das críticas recorrentes de todos os micro-historiadores italianos a esses modelos gerais, constituindo-se em um dos seus antecedentes intelectuais importantes, embora um antecedente não-explícito e não assumido conscientemente por esses mesmos micro-historiadores. Sobre a relação entre essa crise dos modelos gerais e o nascimento da micro-história, cf. o texto de Carlo Ginzburg, já citado: Microstoria: due o tre cose che so di lei, p. 517-521. 9 Cf., a esse respeito, as duras críticas de Carlo Ginzburg às posições de Hyden White em seus artigos “Provas e possibilidades à margem de ‘Il ritorno de Martin Guerre’ de Natalie Zemon Davis” e “Exphrasis e citação”, no livro A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989, e também em seus artigos “Solo un testigo”, na revista Historias, México, n. 32, 1994, e “Revisando la evidencia: Giovanni Levi a las posturas posmodernas en su microhistoria”, já citado, e em seu artigo “I pericoli del Geertzismo”, na revista Quaderni Storici, n. 58, ano XX, 1985. 10 Cf. o brilhantíssimo artigo de Carlo Ginzburg “Indícios. Raíces de un paradigma de inferencias indiciales”, no livro Mitos, emblemas, indicios. Barcelona: Gedisa, 1994. Valeria a pena ver também, nessa mesma e complexa linha de investigação, o interessante debate suscitado posteriormente por esse artigo e do qual é apenas uma pequena amostra a transcrição recolhida na revista Quaderni di Storia, n. 12, ano VI, 1980. Lamentavelmente, não nos podemos deter, neste artigo, na análise que mereceria esse ensaio excepcional. 11 Cf. os artigos de Daniela Coli “Idealismo e marxismo nella storiografia italiana degli ani ’50 e ’60”, de Alberto Caracciolo, “La storiografia italiana e il marxismo”, e de Pasquale Villani, “La vicenda della storiografia italiana: continuità e frature”, todos incluídos no livro La storiografia contemporanea. Indirizzi e problemi. Milano: Il Saggiatore, 1989, e também o artigo de BANTI, Alberto M. Storie e microstorie: l’histoire sociale contemporaine en Italie (1972-1989). Genèses, Paris, n. 3, 1991, e ainda o livro de MASELLA, Luigi. Passato e presente nel dibattito storiografico. Bari: Ed. De Donatto, 1979. 12 Falta um trabalho satisfatório que reconstrua globalmente essa presença e essa rede complexa de influências dos Annales franceses na Itália. À espera dele, pode-se, entretanto, ver os desenvolvimentos interessantes incluídos no livro de MASTROGREGORI, Massimo. El manuscrito interrumpido de Marc Bloch. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. Cf. também o artigo de GINZBURG, Carlo; PONI, Carlo. El nombre y el cómo: intercambio desigual y mercado historiográfico. Revista Historia Social, Valencia, n. 10, 1991; AYMARD, Maurice. Impact of the Annales School in Mediterranean Countries. Review, v. 1, n. 3/4, 1978; L’Italia-

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mondo nell’opera di Braudel. Crítica Marxista, n. 1, 1987; La storia inquieta di Fernand Braudel. Passato e Presente, n. 12, 1986. Por exemplo, até hoje ninguém sublinhou o fato de que Fernand Braudel, protagonista essencial desses Annales dos anos 50 e 60, tinha relações importantes e mais ou menos permanentes de intercâmbio e colaboração com Federico Melis, Federico Chabod, Franco Venturi ou Delio Cantimori, e também que teve como discípulos, nos seus seminários parisienses, Ugo Tucci, Alberto Tenenti ou Riggiero Romano, entre muitos outros, numa rede que cobria praticamente os centros principais da inovação historiográfica e dos desenvolvimentos mais significativos dessa historiografia italiana do segundo pósguerra. O que levou Braudel a dizer: “Quis o acaso que os meus livros sejam lidos, sem dúvida, mais na Itália que na França. Não sei muito bem por que razões” (cf. essa declaração no livro Ecrits sur l’histoire. Paris: Arthaud, 1990. p. 285). Em nossa opinião não se trata de um acaso, e o que explica isso é justamente essas transformações da historiografia italiana que aqui nos limitamos a evocar de maneira muito geral. Trata-se, no entanto, de uma linha de investigação ainda aberta e que valeria a pena desenvolver muito mais amplamente. 13 Para perceber esse cosmopolitismo excepcional, basta ver as referências de pé de página ou contidas nos ensaios de Edoardo Grendi, Giovanni Levi ou Carlo Ginzburg. Por exemplo, é bem conhecido o enorme trabalho de recuperação que Edoardo Grendi levou a cabo para introduzir nos debates da cultura italiana um conjunto importante das contribuições da antropologia anglo-saxônica e, de maneira geral, de alguns autores relevantes do pensamento social anglo-saxônico, como, por exemplo, Norbert Elias, Karl Potanyi, Edward P. Thompson ou Frederick Barth, entre outros. A esse respeito, pode-se consultar GRENDI, Edoardo. Polanyi. Dall’antropologia economica alla microanalisi storica. Milano: Etas Libri, 1978, assim como sua compilação de textos L’antropologia economica. Torino: Giulio Einaudi, 1972. 14 Cf. a referência contida no artigo já citado de Giovanni Levi “Sobre la microhistoria”, p. 142, e a referência original, que é uma afirmação do historiador francês Jacques Revel no seu prefácio “L’histoire au ras du sol” ao livro de Giovanni Levi intitulado Le pouvoir au village. Paris: Gallimard, 1989. 15 Sobre essa filiação de esquerda da micro-história italiana, basta revisar os testemunhos explícitos tanto de Giovanni Levi na sua “Entrevista a Giovanni Levi”, em Estudios Sociales, Santa fé, n. 9, 1995, como de GINZBURG, Carlo. Carlo Ginzburg: an Interview. Radical Review, n. 35, 1986. 16 Cf. o artigo atrás mencionado de Carlo Ginzburg e Carlo Poni “El nombre y el cómo: intercambio desigual y mercado historiográfico”, onde se sublinha essa densidade histórica excepcional da própria paisagem da península italiana. 17 Sobre esse ponto, cf. o artigo de Carlo Ginzburg “História da arte italiana” no livro já mencionado A micro-história e outros ensaios, onde Ginzburg enfatiza essa condição multicentrada ou multipolar da história italiana na longa duração, assim como suas conseqüências para a construção de uma história da arte na Itália. 18 Cf. no livro coordenado por Fernand Braudel L’Europe. Paris: Arts et Métiers, 1982, o capítulo 8, intitulado “Culture et civilisation. Le splendeur de l’Europe”, falsamente atribuído a Folco Quilici e redigido na realidade pelo próprio Braudel. 19 Trata-se de dois temas que mereceriam ensaios à parte. Para uma primeira revisão geral dessa história da micro-história italiana, de suas diversas vertentes e de suas

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difusões desiguais, pode-se consultar o bem-documentado artigo de Anacler Pons e Justo Serna “El ojo de la aguja: ¿de qué hablamos cuando hablamos de microhistoria?”, incluído na revista Ayer, n. 12, 1993. Pode-se consultar igualmente o ponto 3 do capítulo 3, “Microenfoques de la historia: lo cualitativo, la experiencia humana y lo ‘excepcional normal’”, no livro de SANDOICA, Elena Hernández. Los caminos de la historia. Madrid: Síntesis, 1995. Para se ter uma idéia mais direta dessa história da micro-história, pode ser útil revisar alguns dos seus textos hoje já “clássicos” que seriam os de GRENDI, Edoardo. Micro-analisi e storia sociale. Quaderni Storici, n. 35, ano XII, 1977, e Ripensare la microstoria? Quaderni Storici, n. 86, ano XXIX, 1994; Giovanni Levi, “Sobre la microhistoria”, citado anteriormente; Carlo Ginzburg, “Microstoria: due o tre cose che so di lei”, já referido; “Indicios. Raíces de un paradigma de inferencias indiciales”, igualmente já mencionado, assim como a “Introducción” de seu livro Historia nocturna. Barcelona: Muchnik, 1991. Sobre a difusão desigual da micro-história no mundo, é curioso observar que, enquanto na França está mais difundido o ramo de história social, econômica e demográfica desenvolvida por Grendi e Levi, ou também por Mauricio Gribaudi ou Simona Cerruti, entre outros, nos Estados Unidos são muito mais populares e difundidos os trabalhos de Carlo Ginzburg. Para comparar essa difusão desigual, pode-se ver, por exemplo, o livro coordenado por Jacques Revel Jeux des échelles, co-editado por Gallimard e Le Seuil, Paris, 1996, onde Carlo Ginzburg só é citado de maneira marginal duas vezes em todo o livro. No outro extremo, ver também o livro organizado por MUIR, Edward; RUGGIERO, Guido. Microhistory and the Lost Peoples of Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1991, publicado nos EUA e onde predominam os ensaios do mesmo Ginzburg. No México, no Japão e no Brasil, como na Espanha, a obra de Carlo Ginzburg parece ser mais conhecida que a dos demais micro-historiadores italianos, enquanto na Argentina parece haver uma situação mais equilibrada quanto ao conhecimento e à difusão dos resultados das duas principais vertentes da micro-história italiana. Eis um tema interessante, que valeria a pena desenvolver ulteriormente. 20 Falamos nesse caso dos textos bem conhecidos de GRENDI, Edoardo. I Balbi. Torino: Einaudi, 1997, La herencia inmaterial. Barcelona: Nerea, 1990. GRIBAUDI, Mauricio. Itinéraires ouvriers. Espaces et groupes sociaux à Turín au début du XXe siècle. Paris: EHESS, 1987, ou CERRUTI, Simona. La Ville et les métiers. Paris: EHESS, 1990, para mencionar apenas alguns dos exemplos mais difundidos. 21 Sobre essa linha pode-se ver o trabalho de REDONDI, Pietro. Galileo herético. Madrid: Alianza, 1990, e também e sobretudo os trabalhos de GINZBURG, Carlo. El queso y los gusanos. Barcelona: Muchnik, 1981, Historia nocturna, já citado, Mitos, emblemas, indicios, também já mencionado, Les batailles nocturnes. Paris: Flammarion, 1984, El Juez y el Historiador. Barcelona: Muchnik, 1993, Pesquisa sobre Piero. Barcelona: Muchnik, 1984, e, com PROSPERI, Adriano. Giochi di pazienza. Torino: Giulio Einaudi, 1975. Também vale a pena consultar os trabalhos mais recentes Occhiacci di legno. Milano: Feltrinelli, 1998, e History, rhetoric, proof. Hannover: Brandeis University Press: University Press of New England, 1999, onde Ginzburg amplia suas perspectivas para refletir sobre algumas das categorias centrais da história cultural, sobre a diversidade e o diálogo intercultural e sobre as próprias condições e a natureza geral do ofício de historiador e de suas implicações mais essenciais.

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22 É bem sabido que a revista Quaderni Storici, que acabará por se associar à corrente micro-histórica como o seu mais importante órgão de expressão e difusão, começou sua história em 1966, chamando-se então Quaderni Storici delle Marche – e publicando em seu primeiro número, coisa digna de assinalar, a primeira tradução italiana do célebre artigo de Fernand Braudel “Historia y Ciencias Sociales. La Larga Duración”. Mas só nos anos 70, após uma reorganização de seu comitê, de algumas mudanças e de perder o apelativo “delle Marche”, é que começou a funcionar como o principal espaço de concentração e irradiação da corrente da micro-história. O que não impede, ademais, que já nos anos 80 tenha começado a ser um pouco abandonada ou deixada de lado por alguns dos principais representantes dessa mesma micro-história, como no caso do próprio Giovanni Levi ou de Carlo Ginzburg, perdendo uma parte de sua força de inovação e de seu caráter de “núcleo estruturador” e de “foro de concentração” das principais descobertas dessa micro-história. Eis um tema que valeria a pena aprofundar com mais minudência. 23 Redução que é justamente o objeto da crítica de Jean-Paul Sartre em seu livro Crítica da razão dialética, a que aludimos na nota 8. 24 Uma crítica adequada desse procedimento que reduz o geral a uma simples soma dos casos e das dificuldades e implicações dessa passagem pode ser vista no artigo de LEPETIT, Bernard. Les Annales aujourd’hui. Review, Binghamton, v. XVIII, n. 2, 1995. 25 No argumento dessa idéia, faço um resumo das idéias que me suscitou a leitura do brilhante ensaio de LEPETIT, Bernard. Architecture, géographie, histoire: usages de l’échelle. Genèses, Paris, n. 13, 1993. Considero que essa é uma versão algo mais trabalhada do que aquela que, com algumas diferenças, se inclui no livro já referido Jeux d’échelles com o título “De l’échelle en histoire”. 26 Para nós é evidente que a influência das diversas vertentes da antropologia do século 20, desde os trabalhos de Frederick Barth até os de Claude Lévi-Strauss, e passando pelas lições de Clifford Geertz, entre outros, foi decisiva na construção das diferentes perspectivas dos diversos autores da micro-história italiana. No entanto, o desenvolvimento adequado desse ponto mereceria por si só todo um novo ensaio, que não podemos incluir aqui. Sobre esse ponto, pode-se consultar o artigo de PaulAndré Rosental “Construire le ‘macro’ par le ‘micro’. Frederick Barth et la microstoria”, no livro Jeux d’échelle antes citado. Também se pode consultar vários dos ensaios incluídos no livro Tethnologies en miroir. Paris: Maison des Sciences, 1992, e muito particularmente o artigo de Christian Bromberger “Du grand au petit. Variations des échelles et des objets d’analyse dans l’histoire récente de l’ethnologie de la France”. Ver também a “Introducción” do livro de Carlo Ginzburg Historia nocturna, já citada, e o artigo também referido de Giovanni Levi “I pericoli del geertzismo”. 27 Cf. a esse respeito e sobretudo o livro de ELIAS, Norbert. Sociologia Fundamental. Barcelona: Gedisa, 1982, e, de maneira mais geral, todo o conjunto da sua obra, incluindo seus livros sobre The Germans, deporte y ocio en el proceso de la civilización, El proceso de la civlización ou La civilización de los padres y otros ensayos, entre vários outros. Ademais, é claro que sem a consideração da obra de Norbert Elias fica muito difícil entender as contribuições e o conjunto da proposta dos microhistoriadores italianos. 28 Referimo-nos, evidentemente, às obras bem conhecidas de Lucien Febvre, Fernand Braudel, Jean-Paul Sartre ou Norbert Elias, para mencionar apenas alguns exemplos de autores que, nesse ponto da superação do pensamento binário ou dicotô-

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mico rígido, antecipam e preparam essa conclusão específica desenvolvida pela micro-história italiana. 29 Referimo-nos, nesses exemplos dos últimos parágrafos, às obras bem conhecidas de Giovanni Levi, La herencia inmaterial; de Carlo Ginzburg, El queso y los gusanos, pesquisa sobre Piero e Historia nocturna; de Pietro Redondi, Galileo herético; ou de Mauricio Gribaudi, Itinéraires ouvriers. Espaces et groupes sociaux à Turin au début du XXe siècle, todas elas mencionadas nas notas anteriores. 30 Portanto, talvez não seja por acaso que um dos livros importantes de Carlo Ginzburg, escrito em co-autoria com Adriano Prosperi e infelizmente ainda não traduzido para o espanhol, seja intitulado justamente Giochi di pazienza, livro que já citamos anteriormente. 31 Quando falamos de parte especialmente “reveladora” do todo, isso não quer dizer de modo algum parte “representativa” do todo. Porque, depois de Michel Foucault, é bem sabido que as “margens” de uma totalidade qualquer ou seus elementos “excluídos” – e, portanto, muito pouco “representativos” – podem ser tão reveladoras ou mais das suas estruturas essenciais como seus elementos mais “típicos” ou característicos. Um ponto que se vincula ao célebre oxímoro popularizado pelos micro-historiadores italianos do “excepcional normal” e que, sem embargo, não podemos desenvolver mais amplamente neste ensaio. A esse respeito, cf. o artigo de Edoardo Grendi “Microanalisi e storia soziale”, citado anteriormente, onde se enuncia pela primeira vez o referido oxímoro. Sobre as lições de Foucault em torno do ponto mencionado, cf. VÁZQUEZ GARCÍA, Francisco. Foucault o la crítica de la razón. Barcelona: Montesinos, 1995, e também Foucault y los historiadores. Cádiz: Universidad de Cádiz, 1987.

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OS HISTORIADORES ESPANHÓIS E A REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA* (C. 1880-2000) Gonzalo Pasamar Alzuria**

O DEBATE DA HISTÓRIA COMO CIÊNCIA OU O NASCIMENTO DA REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA NA ESPANHA No nosso país, a moderna reflexão sobre a historiografia apareceu ao compasso da lenta configuração da mesma como disciplina acadêmica. Somente quando os eruditos e os historiadores profissionais descobriram a “metodologia histórica” foi possível dar por concluído o velho gênero de normas sobre as “utilidades” da História e a “maneira” de escrevê-la, talvez um dos mais duradouros produtos da tradicional concepção da historiografia como complemento da retórica. A mencionada transformação não se iniciou na Espanha antes das décadas de 1960 e 1980 do século passado.1 A partir desse momento, e mais concretamente entre o final do século e a Grande Guerra, assistiu-se ao surgimento de uma curiosidade por esses temas, presentes em discursos acadêmicos e universitários, artigos, resenhas e notícias de revistas, ensaios, documentos e inclusive traduções de temas de teoria e metodologia da História assinadas por eruditos profissionais, historiadores e cultivadores das chamadas “Ciências Morais e Políticas”, chegando inclusive a suscitar-se certa polêmica, expressão do nascimento da própria historiografia profissional espanhola.

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O efeito global desta publicidade – que, como se verá, formava parte de um fenômeno intelectual exterior – foi reforçar o valor de identidade da disciplina nascente, ajudar a enquadrá-la em uma concepção em que se ia desenhando uma divisão entre erudição, historiografia e filosofia, em um contexto em que as novas ciências sociais quase não se impuseram no terreno universitário, não passando de um mero estado de opinião acadêmico. Mas esse interesse auto-reflexivo não tem somente um ponto de partida. Depois de tudo, a historiografia profissional espanhola deve seu surgimento à convergência – com clara importância – da erudição profissional, das tradições do nacionalismo historiográfico, das concepções epistemológicas do krausismo espanhol... Basicamente, além de constatar a recepção dos documentos sobre o “método histórico”, publicados na França e no mundo germânico, poderíamos destacar as seguintes fontes de procedência do proferido empenho: Em primeiro lugar, a importância que a Academia estava concedendo, nos anos 1990, à “nova concepção da história”, isto é, a noções como o “método histórico”, as “monografias”, ou as “coleções documentais”. Em segundo lugar, a influência do positivismo filosófico, cujas manifestações mais importantes para a historiografia se repartiram muito desigualmente em núcleos isolados e dispersos da geografia espanhola (Barcelona, Sevilha, Zaragoza, etc.) e ajudaram a recepção dos debates franceses sobre o problema da “história como ciência” nos anos de mudança de século. E, em terceiro lugar, a particular influência do krausismo, que se enfrentava com os problemas da entrada brusca das ciências sociais e da constituição da história como disciplina nos anos da Restauração. O primeiro destes âmbitos mostra como a erudição profissional havia dado novos traços e modificado a tradicional autopercepção do historiador do século 19, o intelectual iluminado pelo “gênio da História”. Os resultados de tal exaltação da atividade erudita foram a apreciação absolutamente excepcional de historiadores “geniais” ou de amplos vôos e uma tendência a identificar a historiografia com as normas da erudição profissional ou com uma visão restringida do “método histórico” (restringida na sua vertente técnica). Esta visão impunha uma contraposição entre “as idéias preconcebidas” ou “as hipóteses” e o ideal do “estabelecimento dos fatos com precisão”; uma prioridade dos testemunhos ou das “monografias”, inclusive das “coleções gerais”, sobre a “história geral”, horizonte longínquo e estranho a esta classe de historiadores, etc.2 O caso mais extremo desta tendência podemos encontrar no discurso do oficial do arquivo da Corona de Aragón, Andrés Giménez Soler, futuro professor da

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universidade zaragozana, em sua recepção na Academia de Buenas Letras de Barcelona (1899), em que ele confessava sua convicção de que a “maneira mais própria e perfeita de escrevê-la (a História) é a coleção diplomática”.3 Poucos meses mais tarde, Soler reconhecia em tom provocativo não haver lido “livros especiais de crítica histórica” e, sim, ter se deixado levar pelos “ditados do senso comum” no estudo e na interpretação de documentos.4 Mas este exemplo, que data de épocas em que ainda faltava o entrosamento entre eruditos e professores universitários de disciplinas históricas (ocorrida nos anos subseqüentes), é mais sintomático pelo que tem de defesa do trabalho erudito que pelo que significa como norma metodológica (uma concepção do mesmo estreitamento corporativista que, em efeito, contrasta com as definições muito mais generosas oferecidas pelos fundadores da erudição profissional espanhola umas décadas antes). O discurso de Giménez Soler era uma aposta por uma visão restringida da erudição histórica em um momento em que se estava produzindo a recepção de ensaios de metodologia e epistemologia das Ciências Sociais e da História, sobre os quais existia uma maior receptividade que aquela que pudera indicar o comentado discurso. Efetivamente, no final do século no mundo latino – França em concreto –, começava-se a assistir ao nascimento da filosofia da ciência; fenômeno apresentado por um de seus mais ilustres iniciadores, Émile Boutroux, mestre de Durkheim, como “um movimento da filosofia para as ciências e a vida” e viceversa.5 A essa busca de relações com o conhecimento científico não foram indiferentes às novas disciplinas sociais (Sociologia, Antropologia, Lingüística, Economia...), que lutavam fervorosamente para abrir caminho em um receoso mundo universitário.6 Com forte necessidade de argumentos históricos, elas acabariam propondo o problema lícito do “caráter científico da história”. O debate de fim de século começou destrinchando a obra de Paul Lacombe, De l´historie considerée comme science (1894), ambicioso intento de fundamentação psicológica da História, de feitio positivista, que buscava nas instituições “o efeito de uma constituição de forças psíquicas” e que concedia a prioridade às “instituições econômicas”.7 Até mesmo os historiadores profissionais membros da “école méthodique” francesa, muito melhor instalados que as nascentes disciplinas sociais, não puderam distanciar-se desse estado de inquietude e de polêmica. No caso espanhol, não é curioso constatar como, a finais de século, historiadores ideologicamente liberais, ao mesmo tempo em que exaltavam o método histórico em seus discursos acadêmicos, mostravam-se receptivos ou confiantes na Sociologia, embora recusassem os “excessos naturalistas”.

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Dos exemplos antes resenhados, Vidarte havia tido palavras favoráveis para aquela, porque “veio (...) recolhendo e concretizando estas iniciativas parciais [a história como obra coletiva] construindo de forma consistente a teoria da organização e funções dos povos como pessoas sociais”.8 O marquês de la Fuente Santa del Valle havia considerado “proveitoso” ainda que “exagerado” o método de Taine.9 Segundo ele, o catedrático da Universidade de Zaragoza, Eduardo Ibarra, em um discurso de tom positivista e marcadamente regeneracionista (1897), atreveu-se a prognosticar que “surge (...) relação tão estreita entre a Sociologia e a História que não é difícil perceber que em um futuro ambas ciências difundir-se-ão em uma só”, pois “quando as leis do desenvolvimento social estiverem fixadas de um modo definitivo, os feitos históricos servirão de comprovantes à exatidão das mesmas e, unidas em um estreito abraço, nos oferecerão o quadro, não suspeitado sequer pelos historiadores antigos, de uma ciência completa que investigue e exponha cientificamente o desenvolvimento e a vida das sociedades humanas”. 10 Devemos considerar esse diagnóstico, menos estranho daquilo que possa parecer, com independência de seu otimismo, como resultado da autopercepção e da confiança de alguns dos primeiros profissionais, que viam no historiador um personagem destinado a um labor transcendental na instrução pública e até mesmo na orientação das jovens disciplinas sociais. A introdução da Sociologia na Espanha, que se estabeleceu nos meios acadêmicos de quase todas as tendências ideológicas, especialmente entre intelectuais liberais e republicanos, teve um efeito apreciável (ainda que efêmero) sobre os historiadores regeneracionistas nos finais do século. Talvez quem de forma mais correta o diagnosticou foi Manuel Sales y Ferré (que passou a ser o primeiro “sociólogo” universitário espanhol) ao opinar que essa sociologia não era mais que a antiga filosofia da história “depurada de sua tendência metafísica e tomada em sentido prático e experimental”.11 Ou seja, a leitura de autores positivistas mencionados pelos historiadores espanhóis em seus discursos e artigos, os de Spencer, Buckle, Flint, Taine, Renan, Lacombe, Tarde, Gumplowicz ou Nordau, – a maioria traduzidos, mas cujas vicissitudes literárias na Espanha não são bem conhecidas –, para além de suas teses específicas, que praticamente todos se sentiram impelidos a criticar por seu excessivo biologismo, teve o efeito de revelar um pensamento reprimido em um escolasticismo tradicional; sinal evidente de que estava diminuindo o desconhecimento e o receio acerca das Ciências Sociais, embora ambos tenham seguido presentes.

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Todavia, os anos que mediaram a mudança de século e a Grande Guerra foram decisivos na constituição da historiografia universitária espanhola, tanto no terreno institucional e de projetos editoriais como no terreno de contatos e carreiras pessoais. Durante esse tempo, algo superior a uma década se instalou na historiografia à imitação da escola francesa e da “escola rakeana”, fracassando as expectativas do desenvolvimento universitário das ciências sociais. O otimismo sociológico regeneracionista experimentaria um rápido retrocesso e a reflexão historiográfica adquiriria uns traços completamente ecléticos, inimigos do positivismo filosófico, que teriam grande destino. Um caso ilustra perfeitamente este fenômeno, porque o mesmo autor mudou de opinião sobre esses temas aproximadamente no lapso da mudança de século. Em 1897, o catedrático de árabe da Universidade de Zaragoza, Juliá Ribera, publicou um conjunto de conferências de pretensões regeneracionistas, talvez as mais coerentemente influenciadas pela inquietude epistemológica do fim do século, sob o título Orígenes del Justicia de Aragon. Sua influência imediata teve parte na abertura do Curso 1897-1898 daquela universidade, auxiliada por seu amigo Eduardo Ibarra (ver parágrafo anterior). O autor mostrava-se convencido da existência de “leis de imitação”, “leis primárias e fundamentais para a história”,12 das quais a instituição de Justiça aragonesa – em sua opinião de origem muçulmana – seria um caso concreto; de modo que, se acertava-se formulá-las, “bastariam por si mesmas a dar caráter rigorosamente científico à História”13 e seriam possíveis inclusive as “previsões históricas”.14 Na realidade, as “leis de imitação” constituíam, naquele tempo, uma das vertentes da nascente disciplina sociológica na França (talvez a mais conservadora, se desejamos de um lado a influência do catolicismo social), sobretudo, através da figura e das concepções psicológicas de um palestrante como Gabriel Tarde, quem Ribeira previsivelmente conheceu através do também palestrante Paul Lacombe e somente de modo direto, já avançado o curso de suas conferências.15 No entanto, poucos anos depois, os artigos da Revista de Aragón, publicação que reconhecia ser influenciada pela Revue de Synthèse Historique, e o contato com essa classe de debates do país vizinho, levaram Ribera a publicar Lo científico en la historia (1906). Nessa obra, confessaria que “novas reflexões me levaram por novos caminhos: hoje creio que a História nem é, nem foi, nem nunca será ciência”.16 Este ensaio era uma defesa do caráter específico do trabalho historiográfico, sobre o qual, de algum modo, deveriam pivotar as ciências. Além disso, era uma amostra das hesitações, já superadas, sobre a definição e o uso da mesma expressão “ciência” entre os historiadores do final do século.17

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Nas novas conclusões do professor de árabe, a História necessitava dos requisitos de uma “ciência particular”18 tanto no terreno metodológico19 como no teórico. Constituía-se mais de um conjunto de “conhecimentos, dispostos e arrumados na forma mais apropriada para que a mente humana descubra semelhanças ou relações para enriquecer a essência das ciências já formadas”, ou ainda, “a arte de observar os feitos passados, de modo indireto e a uma distância conveniente, com a finalidade de descobrir princípios não averiguados, ou de comprovar verdades aceitáveis”.20 Mas Lo científico não era somente uma manifestação de desconfiança para com a sua anterior e quase incondicional perspectiva sociológica, ou um reflexo do nascimento da historiografia universitária espanhola no início do século; também era uma manifestação da influência de escritores já traduzidos no momento de defender uma concepção teórica e metodológica da disciplina histórica: essencialmente Langlois y Seignobos, na metodologia, e o filósofo romeno Xénopol, na teoria. No terreno da metodologia, os autores espanhóis logo se sentiram suficientemente seguros para imitar os ensaios das escolas francesa e alemã. Em 1913, foi editado o manual de Langlois y Seignobos, traduzido para o castelhano por Domingo Vaca, erudito profissional, membro da Instituição Livre de Ensino e tradutor para o editor Daniel Jorro de numerosas obras de História e Psicologia. Já de modo pioneiro, Rafael Altamira havia incluído em seu Enseñanza de la Historia muitas referências à “metodologia histórica”,21 mas, em 1912 e 1913, publicaram-se sucessivamente o manual do jesuíta Zacarias García Villada, Como se aprende a trabajar cientificamente, Lecciones de metodologia y crítica histórica (ampliado em 1921) e las Cuestiones históricas, de Antonio e Pío Ballesteros. Esses trabalhos estavam edificados sobre uma série de suposições que os profissionais consideravam incontestáveis: por um lado, aceitavam silenciosamente a existência de uma “filosofia da História”, concedendo a tal expressão, como ocorria naquele tempo na Europa, um significado que oscilava entre o tradicional do “sentido da história” e o novo de “epistemologia”.22 Neste âmbito, García Villada rejeitava as “idéias filosóficas” da obra de Bernheim;23 na seguinte edição, introduziria uma epígrafe sobre o providencialismo.24 Em segundo lugar, admitiam, de modo pragmático, a existência e expressão de uma “ciência da história” que Ballesteros se esforçava por argumentar através de “a história, ciência das causas” de Xénopol25 (infra), e García Villada – que também citava o autor romeno – desconversava rapidamente afirmando que “não vale a pena discuti-lo muito”.26 Um pragmatismo que já invocou rapidamente e previamente quem, naquele momento, havia se tornado o maior especialista em

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“questões modernas de história” e metodologia, Rafael Altamira. Em 1904, este havia publicado, entre outros, um breve ensaio, também bastante inspirado na leitura de Xénopol, aplicando à História as conseqüências oportunas da contemporânea relativização do conceito de “ciência”.27 Finalmente, os trabalhos comentados aceitavam um terreno especial do historiador composto de normas, o “método histórico”, onde procuravam combinar – utilizando exemplos espanhóis – os dois documentos canônicos da época: o Lehrbuch, de Bernheim (em sua versão bastante ampliada de 1908) e a Introduction (1898) de Langlois y Seinobos, obra mais familiar para os autores espanhóis. A maior identificação de García Villada entre disciplina histórica e método histórico – que o levava inclusive a desqualificar os trabalhos de Altamira – representou posições mais restritivas vinculadas às tradições da erudição.28 Segundo ele, o manual de Ballesteros, igual ao que ocorria com os tratados metodológicos europeus, não permitia entender precisamente que a historiografia tinha um valor diretivo, organizador perante as outras ciências; entre elas, naturalmente, estavam as nascentes Ciências Sociais.29 No terreno da teoria, a obra mais influente de até então foi a do filósofo romeno Xénopol – traduzida por Vaca, da edição de 1908. Este autor situava-se nas coordenadas do pensamento positivista no mesmo sentido que Langlois y Seignobos: crítico da história como ciência de “leis”, do positivismo filosófico e das concepções sociológicas da história, contraditor de Paul Lacombe – considerava a história política em sentido amplo, “a vida do Estado” como eixo da historiografia; mas era, ao mesmo tempo, adversário do individualismo metodológico germânico (de Ernest Berheim e de Heinrich Rickert). Com sua teoria dos “fatos de sucessão”, propunha um acordo ou uma terceira via entre ambas tendências e, mesmo que reconhecendo inclusive a necessidade de certa generalização por parte do historiador, não chegava à formulação de “leis”. A “série”, como denominava essa categoria capaz de representar os “fatos de sucessão no tempo”, representava tal opção: “geral no que diz respeito à forma, individual no que diz respeito ao tempo”. Constituída “mediante a ação do meio e das individualidades”, permitiria “encadear os feitos individuais no fio condutor da causalidade”. 30 O estudo de Xénopol foi um ecletismo epistemológico que sintonizava com a école méthodique e que lhe faria conquistar as simpatias dos historiadores da Gália.31 No caso espanhol, ocorreu uma influência similar: a capacidade da obra do romeno para formular a especificidade da disciplina histórica mantendo o termo “ciência da história”, que se impunha rapidamente após algu-

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mas dúvidas, também lhe assegurou um posto relevante. Põe à prova as idéias de Xénopol a tradução da obra El sentido de la História (1911), de Max Nordau, renomado apologista do decadentismo de fim de século, publicada nesse mesmo ano na mesma editora e a última das manifestações do positivismo filosófico traduzida para o castelhano até então. Este texto, radicalmente biologista e de expressão do darwinismo social, depreciava e criticava completamente o caráter científico da historiografia e o sentido teleológico da filosofia da história.32 Segundo ele, a comentada obra de Xénopol, também pertencente ao mundo intelectual do positivismo, não resistiria ao passo do tempo. Terminou caindo no esquecimento ao longo das décadas posteriores com o desaparecimento do pensamento positivista, e somente um autor tão deliberadamente eclético como José Antônio Maravall o tiraria, de certo modo, desse esquecimento em sua Teoria del saber histórico.33 Essa consolidação, na Espanha, da noção de “ciência da história” deveu, provavelmente, suas formulações mais coerentes aos intelectuais krausistas. Como se sabe, durante a Restauração, o krausismo espanhol havia deixado de ser uma “escola filosófica” para se converter em uma tradição relativamente dispersa, inclinada para o direito e para os “estudos de literatura e arte”, no que se refere aos interesses filosóficos.34 Mas seria aberta às ciências sociais e à sociologia em particular, fenômeno que Adolfo Posada acertaria em qualificar de “krausopositivista”.35 Em conformidade com essa atitude, uma preocupação manifestada pela epistemologia começou a caracterizar esses intelectuais nos últimos anos do século. Os estudos de Sociología y filosofia, de Francisco Giner (Obras Completas, v. XI, 1925), repertório de ensaios publicados naquele momento (reunidos em 1904 em uma obra de idêntico título), revelavam uma típica inquietude pelas Ciências Sociais: uma curiosidade filosófica em direção à Sociologia, entendida como uma “filosofia social” parceira da filosofia da história. A contribuição mais destacada nestes anos, o discurso de entrada na Academia de Ciências Morais e Políticas, de Gumersindo de Azcárate (Concepto de la Sociologia, 1891), era tributária de uma concepção parecida.36 Os mais ortodoxos krausistas abordaram a leitura de doutrinas sociais de caráter naturalista – especialmente a de Spencer – e de tratados sobre a “ciência da história” com a convicção de que a “história social” e a sociologia, portadoras de uma imprescindível função moral, estavam ligadas, em última instância, a uma “ciência dos princípios” ou metafísica que lhes dava sentido. Para eles, a paternidade das Ciências Sociais seria atribuída a Krause e à tradição idealista.37

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A consideração filosófica daquelas tinha, além do mais, repercussões no conceito da História, que era vista como metafísica e história universal na mais pura tradição idealista (à maneira de Ideal de la Humanidad para la vida, de Krause, traduzido por Sanz de Rio, 1860, ou do Compendio razonado de História General, 1863-1876, de Fernando Castro).38 Mas, nos anos 1890, também houve alusões à “história social”, isto é, a um domínio sociológico de limites imprecisos relacionado com o “reformismo social” ou modo de entender a “história da civilização”. Com esta segunda acepção, Adolfo Posada referiu-se à “Sociologia como História”, e Rafael Altamira, na revista britânica The Athenaeum, referiu-se aos dois autores e obras mais importantes, em sua opinião, de “nossa história social”. São elas: Instituciones sociales de la Espana goda, de Eduardo Pérez Pujal (1894, obra póstuma), e Colectivismo agrario, de Joaquín Costa (1898).39 Apesar das novidades, ou precisamente, graças a elas, no período referido, o krausismo estava necessitado de uma reflexão que delineasse perfis mais definidos da sociologia e reconhecesse a novidade e os traços tradicionais da historiografia profissional. A aparição de quem quer que visse na “ciência da história” um modo de referir-se à “sociologia” não fazia outra coisa senão aumentar essa necessidade. Alguns discípulos “emancipados” ou autores independentes, ainda que próximos ao krausismo, como Manuel Sales y Ferré ou Pedro Dorado Montero, críticos da metafísica ou da “filosofia da história”, haviam entrado em controvérsia nesse debate sobre a história. Nesta, viam o componente das ciências sociais que pareciam estar surgindo bruscamente e rompendo com as velhas formas de pensamento, mais que uma nascente disciplina devedora da Academia, da erudição e das escolas européias.40 Sales y Ferré (catedrático de sociologia da Universidade Central desde 1899, quando jovem discípulo predileto de Fernando de Castro e, já há tempos, desligado pessoalmente do núcleo sevilhano krausista) havia chegado a conceber a Sociologia não tanto como um procedimento novo da filosofia e das tradicionais Ciências Morais e Políticas (a moral, a economia, o direito...), tal como a consideravam os krausistas mais ortodoxos. De modo diverso, considerava-a como uma ciência completamente diferenciada, de marcada orientação histórica, desligada e superior à filosofia e à filosofia da história. Com estes argumentos, objeto de censura por parte de outros krausistas, Sales ficaria completamente isolado.41 Algo parecido havia ocorrido com Dorado Monteiro, que publicou em La Lectura – outra revista de começos de século atenta à epistemologia histórica – um artigo “sobre o caráter científico da his-

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tória” (1908). Uma vez que o autor havia recusado o conceito krausista da ciência, pois “só há ciência dos fenômenos, aquilo que não é observável não pode ser objeto da ciência”, 42 tentaria justificar uma dupla acepção de “ciência da história”: história como substrato de todas as ciências e história como disciplina específica, equiparável em método e objeto às outras, caracterizada “pela observação” e com “iguais aspirações mentais de catalogação e classificação, generalização e indução, de que resultam os conceitos, as idéias, os juízos, os raciocínios de índole geral e abstrata que tende a formular o homem de ciência”, 43 dado que “os feitos humanos são (...) igual que os fenômenos restantes produzidos pelos demais seres naturais, objeto de observação e conhecimento conseqüente por parte dos homens”.44 O reconhecimento do caráter específico da sociologia e da historiografia acabaria tendo seus próprios protetores entre os krausistas mais ortodoxos. Nesta direção, discorreram os Estudos de Sociologia (1908) de Adolfo Posada que, sem renunciar completamente à metafísica, reconhecia a procedência positivista da sociologia, definia a historiografia através de Seignobos e Xénopol, ressaltava as diferenças de ambas com a Filosofia da História, e defendia a compatibilidade entre todas elas.45 No entanto, foi Rafael Altamira o encarregado de firmar o estatuto epistemológico da nascente historiografia profissional espanhola. Sua contribuição consistiu em conciliar, até onde era possível, as tradições krausistas com a erudição e a metodologia histórica, valendo-se de seus vínculos com os eruditos e de um tardio, mas proveitoso, contato com as escolas históricas francesa e alemã (1890). As idéias expressadas em La eseñanza de la Historia (1891, 1895), De historia y arte. Estúdios críticos (1898) ou Cuestiones modernas de historia (1904), logo divulgadas entre o público culto,46 acompanharam a difusão da “ciência da história” no mundo universitário e reformularam os conceitos de “história geral” e “história nacional”. A obra de Altamira, nesse sentido, singularizou-se pela tentativa de unir a história de feitos políticos dos eruditos profissionais e acadêmicos com o conceito krausista de “história da civilização” (aquele citado em sua própria linguagem sociológica, com “a unidade orgânica da vida social”), perseguindo uma história geral em que o “interno” e o “externo” permanecem equilibrados: Em uma história geral (...) não se pode suprimir a história política (....) como se o desenvolvimento da personalidade jurídica, territorial e militar dos povos não tivessem nada a ver com sua civilização. Há (....) que se dar a esta parte da história um lugar próprio e adequado à sua importância (....) mas, sob a condição de estudá-la conforme o processo natural de sua formação, é dizer, começando pelo seu

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aspecto interno (elementos que ocorrem para criá-la: idéias, classes sociais, etc.) para que se veja claramente a geração e o porquê do resultado externo (os feitos políticos, revoluções, guerras, mudanças de dinastia, etc.). 47

Nessa nova estratégia de examinar as diferenças, mas também as compatibilidades entre filosofia, sociologia e historiografia, o discurso de entrada à Academia de la Historia de Gumersindo de Azcárate (1910) encerrou o período das contribuições krausistas à reflexão historiográfica. Carácter científico de la historia, atentamente considerada por alguns historiadores desejosos de demarcar a distância entre a “ciência da história” e a erudição,48 constituiu a tentativa mais madura de formular uma epistemologia que conciliasse os princípios krausistas, a sociologia e a historiografia. Reconhecendo três categorias de “objetos científicos” – “os princípios”, as “leis” e os “fatos” – correspondentes às respectivas ciências – a Filosofia (da história, do direito....), a Sociologia e a História (social ou da civilização) –, Azcárate estabelecia suas diferenças e pontos comuns.49 Seu discurso, em suma, foi uma das mais importantes provas de que o “krausopositivismo”, por sua capacidade de adaptação às novidades e aos arcaísmos do mundo intelectual espanhol, havia acabado impondo-se a outras concepções positivistas mais radicais e reticentes à metafísica e à historiografia profissional.

AO ENCONTRO DO INDIVÍDUO HISTÓRICO OU AS SOMBRAS DO PENSAMENTO GERMÂNICO Depois deste período inicial, uma vez afirmada a noção de método e proposta a de causalidade histórica, a auto-reflexão da historiografia espanhola entraria, a partir dos anos 1920, em uma longa fase da qual não saiu definitivamente até a década de 1960, com a lenta vitória da “história social”. Tal reflexão consentiu um terreno relacionado com as filosofias do “sujeito”, as morfologias históricas e algumas histórias especiais. Foi uma verdadeira reviravolta intelectual, um reflexo indireto das vicissitudes políticas e sociais espanholas e mundiais, e uma manifestação da ausência de raízes universitárias das Ciências Sociais. Do ponto de vista epistemológico, uma prolongada reação “antipositivista” que adquiriu verdadeiros traços políticos depois da Guerra Civil.

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O interesse que despertava no passado a metodologia histórica foi diminuindo à medida que esta se consolidava. Precisamente, depois da publicação dos primeiros trabalhos sobre esta matéria, alguns inclusive reeditados e ampliados como o de García Villada, predominou a solução intermediária de traduzir obras estrangeiras, em que se incorporavam referências e exemplos espanhóis: em 1923, a obra de Seignobos sobre a História e as Ciências Sociais, preparada por Domingo Vaca; em 1937, a Introdución al estudio de la historia; síntese da obra de Benheim e, em 1944, a versão da obra de Wilhem Bauer, também Introducción al estúdio de la historia (1921), com amplas anotações de Luis García de Valdeavellano. A esta lista se somaram os primeiros manuais de “ciências auxiliares”, de paleografia ou arqueologia, herdeiros dos trabalhos de cátedra da antiga Escuela Superior de Diplomática. Consolidadas no período entre guerras, as seções do Centro de Estúdios Históricos e as “cátedras de doutorado” da Universidad Central, fundadas as principais revistas especializadas apadrinhadas pela Junta para Ampliación de Estudios, tem-se como resultado que, até finais dos anos 1940, a metodologia histórica havia merecido uma publicação notória. Quando a teve, repetiram os ensinos anteriores (os cursos dados por professores da Universidad Central no Servicio Histórico Militar, infra). Cabe excetuar, talvez, a atividade de Rafael Altamira no exílio com a metodologia para a História do Direito.50 A diminuição da reflexão historiográfica foi devida, sem dúvida, ao assentamento da profissão em um panorama em que o positivismo filosófico não havia ajudado a iluminar nada duradouro e no qual as reformas da instrução pública haviam ficado curtas no mundo universitário. Como constatou eloqüentemente José Deleito Piñuela, um dos poucos historiadores capaz de seguir atento ao espírito interdisciplinar surgido no país vizinho, “hoje que a febre do especialismo vai superando as construções sintéticas, parece que uma conspiração de silêncio se estende sobre a obra de Sales y Ferré”.51 Não é por acaso que das obras teóricas de orientação positivista – ainda que não exclusivamente – publicada nesses anos possamos destacar as reedições ampliadas dos Principios de Sociologia, de Adolfo Posada (1908, 1929), e das Cuestiones Modernas de Historia, de Rafael Altamira (1904, 1935). Não faltaram, de fato, as invocações deste último à divulgação, ao ensino e aos valores liberais da historiografia, como se pode observar nessa segunda edição. Mas, naquele momento, as fontes da curiosidade reflexiva já teriam outros lugares de procedência. Após a Grande Guerra, visível o declínio do krausismo como grupo intelectual e visível a expressão de alguns projetos em um contexto de mobilização

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política dos intelectuais,52 o panorama universitário espanhol começou a se abrir mais aos estímulos estrangeiros e a se sentir atraído pelos ecos de um fenômeno já conhecido no mundo germânico pelo menos desde finais do século: a busca de um rearmamento intelectual da tradicional “concepção germânica da história” ou, como lhe chamavam seus protagonistas, “o problema do historicismo”. Era um objetivo em que o mundo germânico contava com empenhados filósofos e historiadores; todos inimigos declarados dos “métodos generalizantes” das Ciências Sociais e todos eles entregues a recuperar as raízes idealistas do “historicismo” sem renunciar a seu princípio básico: “totalidade individual” versus “ciências matemáticas e mecânicas” (Ernest Troelsh).53 Um de seus efeitos de maior destaque foi o de elevar a importância da “história intelectual” (Geistesgeschichte) na mesma escola alemã – ilustrado pela trajetória do próprio Friedrich Meinecke. Mas, sobretudo, teve o efeito de influenciar através das histórias especiais. Tal influência seria constatada por um dos mais atentos a esta problemática, Johan Huizinga, descoberto na Espanha nos anos 1930 e 1940. Na sua apresentação em nosso país entre o público universitário, dizia: Parecia mesmo que, freqüentemente, a importância da História política fosse deixada em segundo plano; crescia, no entanto, a demanda pela História do comércio e da indústria, da arte e das idéias; também, da cultura. A conseqüência deste processo de especializar e diferenciar foi que, no tempo moderno, os nomes dos grandes pensadores históricos se encontram mais freqüentemente nos terrenos 54 especiais do que nos da História em geral.

Quando os supostos idealistas da “concepção germânica da história” entraram em crise nos anos do Império, um dos mais importantes argumentos para confrontar e defender esse “método individualizante”, ante a aparição das Ciências Sociais, foi a de que a tradição idealista alemã – e não as tradições positivistas francesa e anglo-saxã – haveria sido a autêntica inventora das Ciências Sociais. Este raciocínio, talvez familiar a alguns krausistas espanhóis (supra), cobrava um significado completamente defensivo na pena dos escritores traduzidos a partir dos anos 1920. Encontramo-lo transformado no elemento principal de suas polêmicas, algumas traduzidas ao castelhano, como a do especialista em história constitucional Georg von Below, exacerbado defensor do idealismo, adversário das Ciências Sociais e muito reconhecido no Anuario de Historia del Derecho Español, ou a do economista e sociólogo tradicionalista austríaco Othmar Spann.55 Não menos importante era a conseqüência que acompanhava ao referido argumento: o assumir que as historiografias especiais

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(social, da economia, da arte...), sem deixar de pertencer a suas correspondentes disciplinas idealistas, seriam mais dadas a manejar categorias conceituais que o historiador geral, “que há de deixar atuar sobre si mesmo a plenitude da intuição histórica” (F. Meinecke).56 Na escola francesa, não importando que a historiografia acabasse definida através de critérios não idealistas – mesmo que em parte críticos como positivismo filosófico – pressupunha-se também uma diferença epistemológica entre história geral e as histórias especiais que apontavam em direção semelhante. Seignobos expressou isto, em sua obra sobre a História e as Ciências Sociais, da seguinte maneira: enquanto as histórias especiais (dos costumes, das artes, das religiões, das instituições....) “não dão mais que uma descrição das abstrações sucessivas”, “o caráter” da história geral é “ser uma descrição da realidade concreta, de contar os atos ou as aventuras do conjunto dos homens que formaram a sociedade”.57 Na Espanha, a recepção do fenômeno já referido foi “monopolizada” por uma personagem já notória como Ortega Y Gasset.58 Seu perseverante interesse pela História, que data do início dos anos 1920, do “triênio bolchevista” e do início do período da Ditadura, foi interpretado de modo contraditório: de um lado, com uma deserção “anti-revolucionária” da prioridade outorgada naquele momento à política; de outro, como um modo de protesto intelectual contra a Ditadura.59 Seja qual for o significado de tais invocações à História, o certo é que, a partir desse momento, Ortega aventurou-se em uma febril atividade para dar a conhecer distintas obras históricas representativas das “ciências do espírito” de inspiração germânica. “Vá para passado que nos meus errantes escritos – sinalava em 1935 –, nas edições da Revista de Occidente e nas de ‘Espasa Calpe’, dou ao público os empurrões que posso para induzir-lhes ao estudo da história”.60 Com a colaboração de Manuel García Morente, de seu discípulo José Gaos e de outros, Ortega esforçou-se em apresentar e selecionar para sua tradução um repertório que incluía desde o filósofo neokantiano Heinrich Rickert (1922) até historiadores como Heinrich Wölfflin (1924) ou Johan Huizinga (editado e dado a conhecer em 1934 e 1935), passando por especialistas em etnologia, sociologia e psicologia como Léo Frobenius (comentado em El Sol e na Revista de Occidente em 1924), Georg Simmel (freqüente na mesma revista e cuja Sociologia foi editada em 1927), Hans Freyer (do qual a Revista de Occidente reuniria, em 1931, sua introdução teórica à História Universal de Espasa-Calpe), Wilhelm Dilthey (apresentado na revista em 1933 e 1934) ou Eduard Spranger (editado em 1935). De fato, Ortega não se esqueceu de La decadencia de Occidente de

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Oswald Spengler (1923-26, 4 vols.), da qual García Morente publicara em 1923 “um guia ou carta geográfica para orientar o leitor”; nem da “Filosofia da História” de Hegel, que saiu à luz em 1928.61 Foi aquele um esforço benéfico para filosofia e para algumas histórias especiais, continuado e potencializado pelo exílio intelectual do pós-guerra, mas ao qual os historiadores contemporâneos mais importantes quase não dedicaram publicamente atenção. Fosse pela escassez de revistas interessadas na história, fora das publicações profissionais assentadas com abandonado otimismo nas normas do “método histórico” – excetuando-se a Revista de Occidente –; fosse pela agressividade com que Ortega atuou em ocasiões no “grêmio de historiadores”,62 ou pelas reservas com que havia sido acolhida a interpretação histórica de sua España invertebrada (1921),63 o certo é que sua proposição não passou, em princípio, de uma mera exigência ou plano pessoal. A pretensão orteguiana ficou expressa de modo esquemático no artigo intitulado “A filosofia da história de Hegel e a historiologia” (1928), em que foi reivindicada uma “autêntica” ciência histórica com o neologismo “historiologia” capaz de superar a proposta neokantiana de uma “reflexão lógica” da história mas sem cair na “metafísica” ao modo hegeliano: “uma análise imediata dos feitos heróicos, da realidade histórica”.64 As categorias dessa “realidade histórica” já havia abordado em alguns ensaios, ao menos desde a publicação de España invertebrada – texto nietzcheano e como um claro estilo de Splengler. Mas, a sua visão morfológica somente se expressou nas conferências En torno a Galileo (1933). Este ensaio sobre a problemática intelectual do renascimento – tema recorrente para esta tradição historiográfica –, em que Ortega exporia categorias de caráter psicológico como “geração”, “crise histórica”, ou diversos “tipos vitais” históricos, pode se considerar o início da influência orteguiana na historiografia espanhola. Essa influência que não se produziu isoladamente, foi, pelo contrário, produzida pela mão de alguns dos autores antes mencionados. En torno a Galileo foi, até o pósguerra, o mais conhecido na Espanha da “historiologia” orteguiana – complementado talvez com Ideas y creencias (1934), breve ensaio de “sociologia do conhecimento” de influência nieztscheana e ressaltada crítica das ideologias. No ensaio História como sistema, de forte pretensão analisadora, surgido em inglês, em 1935, mas inédito em nosso idioma até 1941, deixaria para trás, no entanto, o morfologismo spengleriano, uma vez que a concepção orteguiana da história alcançava um marcado tom existencialista, produto da atração por Heidegger.65

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A influência de Ortega e de alguns dos autores antes aludidos consolidou uma base fundamental para a reflexão de certos historiadores após a Guerra Civil. Salvo algumas exceções, esse interesse não veio dos profissionais de maior conhecimento acadêmico e erudito e, sim, de autores e histórias especiais dispersos ainda que notórios. Os nomes de Santiago Montero Díaz, autor de várias facetas, interessado especialmente na Filosofia da História e nas idéias do mundo antigo; Pedro Laín Entralgo, historiador intelectual e da Medicina; Enrique Lafuente Ferrari, especialista em História da Arte; Carmelo Vinñas Mey, procurador incansável de uma “história social” ou sociologia histórica; ou Luís Díez del Corral e José Antônio Maravall, estudiosos da história do pensamento político e social moderno e contemporâneo, constituem pontos de referência imprescindíveis para seguir a pista dessa influência germânica semeada por Ortega.66 Quando em 1947-1950, um grupo relevante de historiadores da Universidade Central proferiu dois cursos de “Metodologia e crítica históricas sobre formação técnica do moderno historiador” no Serviço Histórico Militar; os autores que deram maior cunho filosófico a suas conferências foram precisamente Montero e Carmelo Viñas. Para contextualizar melhor esta ascensão do pensamento histórico germânico depois da Guerra Civil, devemos fazer mais dois esclarecimentos. A influência de Ortega no mundo universitário a partir de 1940, marginalizado da Cátedra de Metafísica Central, teve repercussões política de excederam muito sua atividade intelectual: tido primeiro como “sênior” dos intelectuais falangistas durante os chamados anos da “não-beligerância” – apelação que remonta ao fundador da Falange, José Antônio Primo Rivera; seria invocado como mentor dos setores não intreguistas a partir dos anos de isolamento internacional, especialmente em vésperas da crise de 1956, coincidindo com seu falecimento no ano anterior. Por outro lado, após a Grande Guerra, houve uma invasão das concepções da direita católica – tradicionalismo, neotomismo... – no terreno universitário e da alta cultura, que não só estimulariam certa reflexão sobre a História, mas também exerceriam autênticas censuras e críticas com um pensamento germânico – e em particular com o orteguiano – ao qual acusariam seu “paganismo” ou sua convivência intelectual com os fascismos derrotados, acusação estendida às traduções do exílio em Ultramar. O que os autores do pós-guerra fizeram foi aprofundar no receio antipositivista presente em Ortega e nos pensadores por ele admirados, para dirigir a reflexão ao terreno do sujeito, da biografia e do psicológico, exaltando o irracional em alguns casos, e descartando outro tipo de categorias e problemas. Como

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evocava José Antonio Maravall, a leitura de História como sistema, obra em que “se punha em destaque a singularidade, a individualidade dos feitos históricos considerados como próprio objeto de conhecimento da história (...), acompanhadas estas circunstâncias de uma temporada de atenção especial à linha Dilthey-Meinecke, fizeram-me cair em um nominalismo histórico que podia ser grave”.67 Por outro lado, realçar traços como a “descontinuidade”, “singularidade”, “liberdade” ou “personalidade” da história tinha, além do mais, uma clara leitura política naquele tempo. Introduzia a busca de uma “genuína doutrina da história”, seja de pretensões tradicionalistas seja de inspiração falangista. Em 1940, o co-fundador das JONS e historiador profissional, Santiago Montero Díaz, adiantou-se em expor essa necessidade de uma “doutrina da história”. Isso também podemos encontrar, por aquelas datas, na revista Escorial, em que em alguns artigos se encontra aquela frase de Nietzsche: “O passado não deve ser interpretado sem a suprema força do presente”.68 Integración del arte em uma doctrina de la histtoria (1940) era uma reflexão sobre a idéia da “história universal” e suas manifestações historiográficas baseada em uma precisa apelação ao “voluntarismo histórico”, à “personagem” como sujeito da história, e inspirada na teoria dos “tipos básicos da individualidade” de Eduard Spranger – psicólogo vitalista dado a conhecer nos anos 1930 por Ortega. Ali, como uma invocação tipicamente fascista, cobrava prioridade a “história estética” e o homo aesteticus, por ser neste “mais espontâneo e vivo o livre jogo do fator pessoal”.69 Anos mais tarde, repassando o fundo filosófico do “método histórico”, da “historiografia espanhola medieval e moderna” ou “a divisão da história”, em sua conferência de “Primeiro Curso de metodologia e crítica histórica”, este nietzscheano seguiria insistindo que a “essência da história é a singularidade histórica”, sem aliviar em nada seus prejuízos contra as tradições positivistas: Recusamos os métodos naturalistas para a explicação da história universal por sua notória insuficiência. A criatividade humana, o espírito, a liberdade que atua decisivamente nos destinos do homem, escapam totalmente da previsões de tais métodos. E, cabalmente, nesses imponderáveis reside o motor da História.70

À insistência na individualidade se acrescenta a insistência da empatia e da intuição, carregadas de irracionalismo em alguns casos, cuja procedência geral encontramos em Spengler. Para ele, a compreensão de uma “cultura” implicava identificar-se intuitivamente com ela.71 Também neste terreno teve influência de Dilthey, o autor germânico que mais valorizava Ortega e o que descobriu através de Heidegger. Além de lhe dedicar um artigo de apresentação na Revista de

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Occidente, chegou a falar dele em sua História como sistema, que era “o pensador mais importante da segunda metade do século XIX”,72 e, anos mais tarde, que “os ‘pseudo-intelectuais’, praga de gafanhotos cultural, caíram sobre ele”.73 Em efeito, Dilthey também proporcionou argumentos recorrentes para realçar essas características de “singularidade” e “liberdade” da história e da “intuição” no trabalho historiográfico. Seus ecos, junto com os de Spengler, são informados nos artigos publicados em 1942 pelo franquista convertido Manuel García Morente. Também neste caso, um antipositivismo militante servia para fundamentar a tese de que “sobre sua vida biológica vive cada homem outra vida – a chamemos histórica – que é a série de transformações pelas quais passa seu ser humano (...) vida [que] não pode ser reduzida a leis gerais (...) vida peculiar, própria, íntima...”.74 Nesse momento, a biografia passava a se constituir no gênero historiográfico por excelência, em que o historiador devia “interpretar os feitos na trajetória total da vida através da própria intuição da continuidade na vida narrada”.75 Os trabalhos de García Morente, oculta crítica à orteguiana “História como sistema”, foram também um elo na influência da filosofia da história providencial e tradicionalista. Tal filosofia foi iniciada com a tradução do filósofo russo Nicolas Berdiaeff, El sentido de la historia (1936, 1943) (morfologia cultural com forte dose de tradicionalismo e exaltação do “intuitivo”76), a obra de P. García Villada, El destino de España em la Historia Universal (1936, 1940, 1948),77 e foi cultivada por autores como Rafael Gambra – assíduo em diversas revistas do Consejo Superior – e de modo esporádico por historiadores ideologicamente ligados ao tradicionalismo como Luciano de la Calzada, o Martín Almagro. Talvez tenha sido Pedro Laín Entralgo quem mais insistentemente serviu-se da influência de Dilthey, Heidegger e Ortega em seus estudos, de claro significado político, sobre o pensamento e a obra de Menéndez Pelayo, que lhe mantiveram no foco dos furores mais integristas em meados dos anos 1940. Laín havia se visto atraído durante a Guerra pelo pensamento germânico e pela história da medicina, reivindicando-a como “ciência cultural” ou “idiográfica” ao modo de Windelband e Rickert em Medicina e História (1941).78 Mas no momento de escolher um procedimento para essas “ciências culturais” esse intelectual falangista preferia mais a Dilthey que aos neokantianos, autores aos quais o próprio Ortega Havia considerado “antiquados”.79 Em consonância com isso, nas oposições à cátedra de História da Medicina da Universidade Central (1942), Laín afirmaria que “a aplicação do método de Rickert serviria se as sucessões históricas tivessem a veracidade imperturbável

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dos processos físicos, nos quais são possíveis juízos sintéticos anteriores à experiência. Para o livre acontecer do homem, o processo é imprestável, nos deixa em maus lençóis”.80 Sua biografia de Menéndez Pelayo, não obstante, foi a obra que mais terminantemente o levou ao terreno da história intelectual e da epistemologia histórica. Menéndez Pelayo. Historia de sus problemas intelectuales (1944) iniciava-se com três capítulos teóricos de influência diltheyana e heideggeriana sobre o significado e os elementos da “compreensão”, o papel capital da biografia na historiografia e a proposta de junto aos hábitos psicológicos e éticos do biografado, “nosso problema é saber o que quis fazer uma pessoa com sua vida inteira”, pois “se adquiriu em sua existência temporal estes ou aqueles hábitos, foi precisamente graças a esse empenho espontâneo seu ou influenciado com fazer algo de e com sua vida”.81 Ainda mais clara foi a influência diltheyana em Las generaciones em la historia (1945), do mesmo autor. Este ensaio, salpicado dos lugares comuns da história como domínio da “liberdade”, “singularidade” e “descontinuidade”,82 era uma tentativa de “desbiologizar” a categoria de “geração”, de corrigir a “historiologia” orteguiana em uma direção mais obcecada pelo problema da “vivência”,83 de levar aquela categoria a um terreno psicológico definindo-a como uma “forma que adota a consciência histórica do homem ante uma determinada época”.84 A matéria das gerações estava tendo, naquele momento, um inusitado destino intelectual, iniciada primeiro entre filólogos e historiadores da arte e logo entre outros historiadores. Sua divulgação levou ao orteguiano Julián Marías, sob o apadrinhamento de seu mestre, a reivindicar tal achado em El método histórico de las generaciones (1949, 1960, etc.), importante peça para a divulgação do conceito, cuja gênese encontrava-se em autores franceses do século passado e ao que acrescentava uma certa dimensão sociológica inexistente nos escritos orteguianos mais além das referências nietzscheanas, ainda que o discípulo se esforçasse em manter o contrário.85 A nova referência ficou expressa neste texto: Os usos sociais, as crenças, as idéias do tempo se impõem automaticamente aos indivíduos; estes se encontram com eles e com sua pressão impessoal e anônima; não quer isto dizer que forçosamente hajam de ceder aos conteúdos vigentes; mas têm que contar com eles (...) e isso quer dizer ter vigência.86

A influência de Ortega e Dilthey foi especialmente importante para o conceito de “história da arte”. Na realidade, as primeiras reflexões sobre as ciências históricas especiais datam do pós-guerra (infra). No caso da arte, vários

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fatores haviam acompanhado sua configuração profissional e universitária, convertendo-se em uma parte da história geral: o abandono definitivo do conceito de “Belas Artes” de raízes do século 18, a separação completa da arqueologia ou a vinculação à disciplina da estética.87 No entanto, ainda não existia uma reflexão sobre a matéria e só lentamente se começava a sentir a necessidade de categorias específicas. Alguns passos haviam tomado essa direção: a tradução, em 1912, da Estética, de Benedetto Croce, de que participou Unamuno, ou a tradução de Os conceitos fundamentais na história da arte, de Heinrich Wölfflin (1924, edição alemã de 1916), realizada por José Moreno Villa a pedido de seu amigo Ortega. História da arte sem nomes, Los conceptos, proporcionariam, pela primeira vez, uma linguagem conceitual aos especialistas espanhóis, além de sintonizar com o interesse orteguiano pelas morfologias históricas.88 Entretanto, até o discurso de Enrique Lafuente Ferrari na Academia de Bellas Artes em 1951, não se pode falar de uma reflexão em profundidade sobre a disciplina. Nesse momento, este orteguiano reivindicava uma concepção inimiga de qualquer evolucionismo e projeto morfológico, em que se uniram a história cultural e o interesse pela estética e a criação individual: “Personalidade, criação como elemento primordial da história artística [Croce] (...). Compreensão a Dilthey e não explicabilidade ou causalidade. Interpretação e não evolução...”.89 Esta tendência de considerar a história domínio do individual permaneceu combinada no caso de Carmelo Viñas Mey, historiador cuja reflexão situava-se no terreno aparentemente mais propício da Sociologia, embora também completamente periférico ou “auxiliar” desde sua aparição na Espanha, em finais do século 19. Além do mais, quando teve começo a carreira acadêmica de Viñas nos anos 1930, a cátedra de sociologia da Universidade Central estava ocupada por Severin Aznar Embid (1916-1936), sucessor do krausopositivista Manuel Sales Y Ferré e figura destacada do catolicismo social, completamente desinteressada pela sociologia histórica que um contemporâneo caracterizou como “sociólogo para ação”.90 A fundação, em 1942, do Instituto Balmes del Consejo Superior criaria o âmbito propício para o cultivo de uma sociologia de orientação católica com certa vocação teórica e historiográfica, de que necessitava até então, e constituída, entre outros, por um interesse na teoria e morfologia culturais e na “história social”. A maturidade da sociologia e a renovação da historiografia, nos anos 1960, foram fatores determinantes na decadência de tal domínio. Mas o principal sustentador desse interesse historiográfico seria precisamente Carmelo Viñas, herdeiro das tradições do reformismo social do final do século que convocara a conservadores e a krausistas (se bem que, a

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estes, últimos, devemos as páginas mais inovadoras de historiografia). Viñas era um conhecedor in situ do “problema agrário” (com alguns reformistas sociais), antes de sua chegada à universidade compostelana91 e, finalmente, um contagiado dos empenhos teóricos das “ciências do espírito” germânicas. Viñas não empreendeu sua reflexão a partir da história intelectual e, sim, a partir das formulações da Kulturgeschichte e a sociologia histórica, dirigindo seus dardos contra a “tradicional” história institucional, o que realça ainda mais seu desejo de sincretismo antipositivista. Como escreveu no necrológio de Johan Huizinga, a História e a Sociologia compartilhavam o mesmo objeto, “o grupo humano”, e estavam “separadas pelos limites que há ‘entre o descritivo e o normativo’, entre a realidade contingente e o projeto conceitual”, de modo que “o historiador percebe no passado – e descreve – certas formas ideais (...) de sociedade, de arte, de veneração de Deus, de direito, de indústria, de vida nacional e popular, de vida e cultura. Uma função reside em cada forma, e o sociólogo as define”.92 Anos mais tarde, acrescentaria a partir de idênticos pressupostos que “a sociologia clássica é um produto das correntes do idealismo em suas várias modalidades, do romantismo, da escola histórica, do tradicionalismo e da nova biologia espiritualista, em maior medida que do positivismo propriamente dito”.93 Em concordância com ele, veria nas categorias sociais e econômicas – ou institucionais – mais que fenômenos “coletivos” em si mesmos, expressões das “formas da individualidade”, manifestações da união das idéias de “comunidade” e “individualidade”. Estas formulações lhe permitiam reivindicar ao mesmo tempo a psicologia social e a sociologia do conhecimento de procedência germânica, os “tipos sociais”, ou “vitais” e a idéia de geração.94 Enfim, para Viñas, a “história social” seguiu constituindo um domínio sociológico de limites inconsistentes na linha do reformismo social de finais do século 19, em que, por razões ideológicas, se prendia em certas doutrinas sociais e substituía as tradicionais categorias institucionais por visões morfológicas. A atração exercida pelas morfologias culturais, salpicadas de fundo existencialista – origem parcial desse interesse com a renovação historiográfica –, revelar-se-ia, em médio prazo, incompatível com a renovação historiográfica. Não obstante, o contexto cultural dos anos 1940 e 1950, de escassez e de miséria econômicas, assegurou-lhes uma ascendência singular. Os autores mais radicais, ou mais identificados com os fascismos derrotados, desacreditados, deixaram passagem a outros autores. Spengler, Berdiaeff e Heidegger cederam o posto a Toynbee, Dawson e Jaspers. Em qualquer caso, as doutrinas do “individualismo metodológico” seguiram imóveis. A influência de Toynbee em particular consti-

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tuiu o mais importante exemplo de como razões ideológicas, preconceitos profissionais, confusão na busca de teorias históricas, e inclusive o isolamento político e cultural, deram um passageiro impulso ao interesse pela “filosofia da história” durante os primeiros cinqüenta anos. Jaime Vicens Vives, que reconheceu em seus estudos sobre “Geoistória” ou “Geopolítica” que Toynbee lhe havia proporcionado os “mais sólidos embargos filosóficos”, resenhou com toda a espécie de elogios à obra do filósofo e historiador britânico concluindo que “renuncia por completo ao sonho spengleriano e volta a colocar a fecunda individualidade criadora no plano que sempre lhe correspondeu”.95 Desde a teoria cultural e a sociologia, tanto os irracionalismos mais chamativos como a obsessão pela psicologia histórica já haviam sido criticadas nos anos 1940. Na Revista Internacional de Sociología não faltaram, naquele momento, as críticas a Spengler nem a filosofia vitalista em geral. Como escreveu em 1947 um de seus mais assíduos colaboradores, “o ‘espiritualismo’ e o culturalismo de Dilthey e outros autores alemães nos colocou em um momento aflitivo de ver extinguir-se completamente a ciência sociológica, já que em sua reação antinaturalista estiveram a ponto de injetarmos outra vez o famoso espírito objetivo de Hegel, cuja eliminação é um dos supostos básicos da sociologia”.96 A partir de 1945, a sociologia histórica reforçou-se com as formulações de Hans Freyer, que acabaram no acervo de alguns historiadores inquietos, convertidos por José Antônio Maravall em sua Teoria do saber histórico em uma das principais propostas sobre os conceitos históricos.97 A obra de Freyer era fiel representante dos lampejos finais da sociologia histórica alemã de começos de século: discípulo de Spengler, descobridor tardio de Dilthey, empenhado em superar a formulação – ainda inimigo da sociologia – da obra diltheyana Introducción a las ciencias del espíritu (1883). Defensor da independência daquela a respeito das “ciências do espírito de caráter sistemático”, considerava-a ciência matriz de caráter histórico frente às outras “ciências do espírito” alheias ao tempo, e a assentava em formulações existencialistas insistindo em que “as formas sociais são os fundamentos de nossa existência”.98

A SAÍDA DO TÚNEL OU A RECEPÇÃO DA HISTÓRIA SOCIAL Nos anos 1950, os historiadores espanhóis começaram a conhecer em alguns casos, a criticar publicamente em outros e a se deixar influenciar em

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menos casos, pela escola dos Annales. Deixando de lado o seu mais decidido partidário, Vicens Vives, a sensação que a escola deve ter causado entre os menos passivos deve ter sido de auto-afirmação: uma “escola” cariz “unilateral”, que, entretanto, ratificava uma necessidade largamente propugnada a ampliar os horizontes do historiador. Em 1953, a revista Arbor traduziu um artigo do medievalista belga Charles Verlinden, em que, pela primeira vez, aparecia uma tentativa ambígua de delimitar o conceito de “história social”: distinto da sociologia histórica, da etnologia e da geografia humana, mas, próximo à história econômica, ainda considerava o conceito definição de uma história especial.99 Já em 1960 (pouco antes de se publicar na Annales E. S. C., o conhecido artigo de Braudel, “Histoire et sciences sociales. La longue durée” (1958), editado em castelhano uma década depois), Carmelo Viñas Mey, diretor naquele momento da Revista Internacional de Sociología e notório adversário de Vicens Vives, mandou transcrevê-lo “por sua grande significação científica e o desejo de nossa revista de suscitar na Espanha o interesse por todas as vertentes da sociologia”.100 Nesses momentos, já estava na sua segunda edição aquele que se pode considerar o ensaio teórico mais importante desde o começo do século, a Teoria del saber histórico, de José Antônio Maravall (1958, 1960); uma obra em que se alinhavam o pensamento orteguiano e as “ciências do espírito” com as influências dos Annales. Por suas páginas desfilava um elenco de nomes desde Ortega, Dilthey, Max Weber ou Freyer, até Braudel, passando por alguns quase esquecidos como Xénopol. Sua crítica ao “método individualizador” lhe permitia considerar a “história social” em sentido globalizador como a futura tendência da historiografia:” sua concepção como um estudo das relações estruturadas entre os indivíduos e os grupos, há de tomála como um eixo de toda a área historiográfica...”.101 Em médio e largo prazo, a influência da escola dos Annales – em realidade, a de Febvre, Bloch, Braudel, Labrousse e Vilar – seria essencial para estimular a reflexão sobre a história econômica e social. Sem dúvida, talvez por desconfiança e como recusa a uma “filosofia da história” fortemente centrada na história intelectual, ou, talvez, devido à vigência de uma estrutura acadêmica onde cátedras universitárias, Conselhos Superiores e sociedades eruditas locais eram os pilares de reconhecidos usos metodológicos e eruditos; a partir dos anos 1950, a reflexão deliberada sobre a História foi uma atividade desprezada inclusive por parte dos mais receptivos historiadores. Um Vicens Vives influenciado pela escola dos Annales considerou mais importante a organização de projetos e a reinterpretação da história da Espanha e da Catalunha

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moderna e contemporânea que a reflexão teórica, uma vez abandonado seu interesse pela morfologia histórica e o diagnóstico cultural.102 De seus contados trabalhos naquela vertente, podemos destacar o artigo que publicou em Hispania, Hacia uma nueva historia económica de España (1954), por motivo de sua nomeação como professor encarregado da disciplina de História Econômica de España da Facultad de Ciencias Económicas de Barcelona.103 Aquele foi um breve escrito sobre a importância da história econômica e social para a história geral, em que o professor das costas ampurdanesas, lembrando que “em geral os historiadores (...) esculpimos no vazio ou nos entretemos em descrever epidermes”, propunha “ir ao centro da questão (...) partindo destes dois princípios fundamentais: história econômica de um lado; história da mentalidade social outro”.104 O comentário de Vicens adquire toda a sua importância se observarmos que, entre os mentores do Instituto de Estúdios Políticos, do Instituto Sancho de Moncada del Consejo e da Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas, contavam-se bastantes adeptos das teorias econômicas “neoclássicas”, críticos das concepções “historicistas” de tradição germânica divulgadas por, entre outros, Antonio Flores de Lemus antes da guerra.105 Segundo ele, os professores de história econômica daquela Faculdade, ainda que estimulados pela notória obra de Hamilton, seguiam construindo necessariamente uma prolongação da “história econômica” de caráter institucional nascida nas Faculdades de Direito. Também da “história da economia política” ao estilo de Colmeiro, embora já longe da orientação ideológica deste. Sem uma tradição historiográfica recente aos especialistas colaboradores da revista do Consejo Annales de Economia, a delimitação de sua especialidade e sua função não parecia apresentar-lhes maiores problemas. Nem sempre ocorreu o mesmo entre as histórias especiais, tal e como o demonstram os singulares esforços de Alfonso García Gallo por reinterpretar, em sentido restritivo e de costas à história geral e a qualquer classe de influência procedente das correntes historiográficas européias, o conceito de “história do direito” e a tradição espanhola ou o que é o mesmo, a “´Escola de Hinojosa”.106 Porém, os historiadores espanhóis não leriam as mais criativas páginas sobre a problemática da história econômica e social até uns anos depois, através de Pierre Vilar, sobre cuja trajetória Vicens Vives fez a seguinte predição, em 1950: “é um dos mais sólidos historiadores da economia espanhola, embora não tenha ainda nem o prestígio nem a autoridade, nem os recursos financeiros de um Hamilton, embora seja possível que possa chegar a compará-

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lo”.107 A partir de 1960, com “Croissance économique et analyse historique”, seu mais importante trabalho teórico durante essa década, lido na Premiére Conférence Internationale d´historie économique de Estocolmo, Vilar havia se transformado não somente em um notável discípulo marxista de Annales, como também em um dos autores mais preocupados com o momento que atravessava a historiografia e a economia e, por extensão, no problema das relações entre a história geral e a história econômica; interesse que se remonta aos anos trinta e de pós-guerra com o impacto de Labrousse e Hamilton.108 Em segundo lugar, na repercussão do estruturalismo e, por último, nas diferenças entre a “filosofia da história” e o marxismo entendido como “teoria histórica”. Suas propostas derivavam da convicção de que somente este havia sido capaz de assegurar um autêntico programa de “história total”.109 Em nosso país, o mais conhecido das reflexões do autor de La Catalogne dans l’Espagne moderne, circunscrevia-se, até começos dos anos 1960, em pouco mais que o relato de Estocolmo, traduzido e divulgado pelos discípulos de Vicens (1964), e a um sucinto, mas muito representativo ensaio das preocupações do hispanista. Efetivamente, a conferência que pronunciou, em 1968, na Casa de Velázquez “Historia geral e historia económica”, pode ser considerada um resumo de suas polêmicas em diversas frentes: as precauções com o caráter restritivo dos modelos econômicos e sociológicos ou, o que é o mesmo, o perigo de “fazer história econômica como outros fazem história militar ou história da arte, esquecendo de introduzir de novo todas essas histórias na totalidade histórica”.110 Os “excessos da epistemologia” – a leitura marxista de Althusser e o espírito anti-histórico de Lévi-Strauss; o risco das técnicas refinadas entendidas como fim em si mesmas.111 Desses aspectos, o mais importante para os autores espanhóis era a aposta pela “história total”. Começados os anos 1960, a influência da escola dos Annales, a inércia e a decadência das velhas concepções filosóficas e metodológicas haviam se estendido até o ponto de suscitar a elaboração de um ensaio teórico, em que a balança das influências e das reflexões permanecia inclinada. Comprendre el món (1967), de um dos discípulos de Vicens melhor situados no terreno acadêmico, Joan Reglá Campistol, ideologicamente liberal como seu mestre, representava um tipo de reflexão menos sofisticada que o tradicional “ensaio orteguiano”. Tal reflexão deixava para trás quase todas as velhas concepções. Editado em castelhano três anos depois, situava-se no limiar de um período de renovação historiográfica. A formulação aberta de Reglá podia aproximá-lo de historiadores marxistas, justamente como ocorria a Vilar com respeito a alguns leitores espa-

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nhóis não marxistas. Quando começaram a aparecer esporadicamente os primeiros autores marxistas na revista Hispania (1968), Enrique Sebastiá, colaborador de Reglá na universidade de Valência, pode iniciar a crítica daquela obra escrevendo que “é somente possível que se compartilhem as motivações científicas em favor de uma teoria histórica que integre a práxis de investigação”.112 Efetivamente, o trabalho de Reglá evitava um posicionamento teórico ou ideológico expresso, insistindo no relativismo e presentismo do historiador, espectador dos grandes temas da década, do degelo das relações entre o leste e o oeste, das novas orientações da Igreja Católica, mas alheio a todo interesse no diagnóstico cultural.113 As reflexões epistemológicas ficavam circunscritas às referências à “história problema”, à “história integral” e à concepção braudeliana de tempo plural.114 No entanto, Reglá não pretendia uma ruptura completa com as velhas concepções. Em um adiantamento do ensaio citado, havia assegurado que “podemos considerar que as contribuições decisivas para a elaboração do conceito atual da História procedem da sistematização do historiador alemão Wilhelm Bauer (...) e da grande atividade empregada por Lucien Febvre e Marc Bloch...”.115 De fato, Comprendre el món conservava ainda certos traços “arcaicos”: pretendia estabelecer um nexo – em forma de apêndice final –“entre a reflexão historiográfica” e “as grandes visões da história universal”; e dedicava uma parte específica ao problema das “gerações”, embora procurasse relativizá-lo e adaptálo à história social como já tentara Vicens alguns anos antes. Seu argumento principal contra a consideração orteguiana das “gerações” como categoria suprema era a observação da aceleração do “ritmo histórico” e o progressivo incremento na duração da vida humana a partir da época contemporânea.116 O triunfo definitivo da “história social” na Espanha, o que José Maria Jover chamou em termos genéricos “a absorvente primazia da história social”, teve lugar durante os anos da crise do franquismo e da Transição.117 Em aproximadamente uma década, as transformações do panorama historiográfico foram inconfundíveis: um maior consumo de revistas e obras de história, que alguém relacionou com a “aceleração da história da Espanha”;118 uma preocupação pelo “ensino da história” produto dos câmbios na política e no sistema educativo; a aparição de uma plêiade de jovens historiadores, animada por velhos e novos mestres, muito interessada pelo contemporâneo; por último, uma renovada preocupação com a metodologia histórica. A reflexão historiográfica espanhola saiu, assim, de uma etapa de letargia pública, naturalmente, sem o excepcional brilhantismo que caracterizou os historiadores da República Federal da Alemanha nos anos 1970.

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Podemos personificar o fenômeno em dois pólos de atenção: Manuel Tuñón e Josep Fontana Lázaro. Ligada a tal tradição, uma divulgação de autores estrangeiros que ganhou força aproximadamente desde meados da década consolidaria a notoriedade de Pierre Vilar. No caso de Tuñón, os anos 1960 foram seus anos mais fecundos: “besta negra” dos historiadores franquistas, mestre de historiadores espanhóis e retornado do exílio, mas assentado na Universidade de Pau, sua reflexão sobre a “história social” representou a mais profunda tentativa realizada até então, autêntico ponto de partida para posteriores exercícios reflexivos. E quanto a Josep Fontana, transformado no mais importante discípulo de Vicens – Joan Reglá havia desaparecido prematuramente em 1973 – e representante de uma historiografia econômica assentada como especialidade do ofício de historiador, iniciou publicamente uma reflexão que em substância não variaria mais tarde. Historiadores marxistas ambos, os dois iriam mais além da reflexão “metodológica” em busca de uma concepção da história pluricasual, orientada teoricamente e “comprometida” criticamente com o presente. A obra de Tuñon inclinou-se mais em direção à problemática metodológica, publicando em 1973 sua Metodología de la historia social de España (1974, 1977, etc.). Em tal empenho havia uma razão de ordem cultural em primeiro lugar: Tuñon proporcionava um esforço conceitualizador e sistematizador procedente do “diálogo” que os historiadores franceses haviam sustentado com o estruturalismo – em particular com Althusser. Uma pretensão que caía em terreno abandonado, pois, como sabemos, a moderna teoria da ciência e, por extensão, o estruturalismo do país vizinho haviam começado a se difundir no mundo universitário espanhol desde finais da década de sessenta.119 Mas, assim mesmo, Metodología chegava às livrarias espanholas em um momento em que as invocações à “metodologia” haviam se transformado em um problema prioritário da renovação historiográfica no nosso país.120 A velha imagem do método histórico procedente dos manuais e textos clássicos havia se tornado irreconhecível. Os autores espanhóis se inclinavam por uma nova, e mais de acordo com o proceder das ciências sociais, expressa, por exemplo, nesse comentário de José Angel García de Cortazar, que foi a primeira obra conjunta de reflexões historiográficas publicadas na Espanha: Realmente, a investigação histórica atual está demonstrando a cada dia como a perspectiva global condiciona a totalidade do processo investigador (...) ela constrói o modelo teórico, influi na formulação de hipóteses, domina a seleção dos fatos e a sua classificação, a construção de tipologias, a integração dos detalhes...121

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Mas a metodologia de Tuñón também formava parte da influência de uma historiografia de tradição francesa, o que imprimia o selo à sua definição de história social. Como já viram certos especialistas, o professor da Universidade de Pau não estabelecia uma delimitação da matéria em um sentido estrito. Um mensurado recensionista, Manuel Pérez Ledesma, destacaria que Tuñón admitia, ao mesmo tempo, que “toda a história é história social”, à maneira annalista, e que “a história social implica um conhecimento setorial específico”.122 Na realidade, aqui residiam a virtualidade da obra de Tuñón, sua capacidade para entrar em contato com os mais preocupados historiadores espanhóis, possivelmente as razões de sua popularidade e um indício do que a historiografia marxista estava contribuindo para a renovação espanhola. Como marxista e historiador, Tuñón não acreditava que a metodologia acabasse em uma questão de classificação conceitual, tipológica ou de “metodologia da ciência”. No entanto, concedia a este aspecto um lugar primordial. Uma visão “excessivamente” delimitada da história social chocava-se não só com a tradição dos Annales e com as características da renovação espanhola, mas também com a interpretação marxista da História. Para Tuñón, a história social se configurava com uma especialidade na medida em que abordasse “o conflito social (...), as condições de trabalho, a condição trabalhista e operária (...) [e] dos grupos sociais que se definem por sua afinidade de classe ou profissão”, acrescentando a tudo isso, “o estudo dos grupos de familiares e múltiplas atividades sociais”.123 No entanto, a preocupação do professor de Pau estava referida às categorias do materialismo histórico, a uma teoria histórica em que a “formação social histórica” constituiria “a verdadeira categoria do pensamento histórico que pode permitir as classificações”.124 Esta noção, citada somente de passagem em Metodología, que em mudança se classificavam conceitos marxistas como os de “estrutura histórica”, “crise orgânica”, “conjuntura histórica” e “câmbio estrutural” sob as influências de Althusser, Gramsci ou Vilar,125 havia começado a difundir-se na historiografia espanhola, proposta como a maior garantia dessa “história total”. Naquela que podemos considerar a primeira obra destinada a um grande público sobre estes temas, Josep Fontana também havia incidido no conceito de “formação econômico-social” como elemento fundamental para “o estudo histórico das sociedades”.126 A referida obra, publicada em 1973, implicava a entrada deste professor catalão no âmbito da reflexão pública sobre a História, situado nas coordenadas do marxismo e com uma maior capacidade para relativizar as influências francesas. Posicionado na especialidade da história econômica, em

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que não era precisamente a reflexão “metodológica” a que urgia enfrentar, descobriu, de repente, outras tradições da história social. Reconhecendo-se como “seguidor” da tradição francesa, e de Pierre Vilar em específico, recusaria uma “história econômica que não se interessava pelos homens que intervinham nos fatos econômicos e, sim, pelos fatos em si mesmos. No entanto, Fontana contemplaria com distanciamento e forte sentido crítico o estruturalismo e as propostas braudelianas. Como escreveu no mencionado ensaio, recusava “uma história que se limitara a descrever as estruturas existentes e que, ao pretender imobilizá-las para mostrar-nos sua anatomia, asfixia-as e nos oferece somente sua carapaça e seu esqueleto”.128 Mas ainda, para o professor catalão, “a hora da escola dos ‘Annales’ havia passado”, submergida numa confusão de métodos e incapaz de forjar ou utilizar-se de uma teoria da história.129 Em La Historia, preferia o termo “história integradora” ao de “história total” e, trazendo ao debate a obra de E. P. Thompson, ainda desconhecida para o público espanhol, com suas páginas sobre a natureza histórica das classes sociais, indicaria que “O historiador (...) não chegará a compreender jamais a dinâmica da evolução de uma sociedade se não entende os enfrentamentos entre as distintas classes que o integram” e, também, “deve buscar os critérios definidores dessas classes, e as razões objetivas de seus ataques , no plano de suas respectivas posições em relação ao processo produtivo”.130 Após uma inclinação no começo dos anos 1980, como se o final da Transição houvesse obrigado aos historiadores a estabelecer balanços e conclusões – incluindo Foºntana com sua Historia. Análisis do pasado y proyecto social (1982) –, encontramos-nos com as reflexões atuais, devedoras dos mencionados mestres, mas também produto de fatores novos e inevitáveis. Sua característica: a de formar parte de um processo de influências mais rico e ponderado assim como de um notável aumento da atividade profissional e de espírito associativo. Seu desafio: o de dar resposta a algo tão imprevisível para a historiografia espanhola anterior como a chamada “crise da historiografia”.

EPÍLOGO: A REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA NA ESPANHA, 1980-2002 O seguimento da “reflexão historiográfica” constitui-se, cada vez mais, em um instrumento útil para valorizar o grau de renovação da disciplina histórica ou nascimento de grupos inovadores. Não se pode compreender

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a fundo o panorama atual sem constatar o enorme interesse que suscita a reflexão sobre as formas de escrever a história e sobre suas repercussões. No caso espanhol, esta premissa é, hoje, inegável. Na última década, assistiu-se a uma eclosão destes temas, concretizada na infinidade de artigos, na organização de alguns Congressos e incluídos na publicação de certos ensaios. Não se trata de um fato casual, já que nestes anos pode-se afirmar, sem dúvida alguma, que a historiografia espanhola acompanhou as correntes internacionais. Assim, por exemplo, para a reedição de seu ensaio La historia social y los historiadores (Barcelona, Crítica, 1991), Julián Casanova revisou a metáfora com que estimava os anos 1960 e 1970 (“o deserto espanhol”) e chegou à conclusão de que “os anos noventa constituem-se em um ponto de inflexão importantíssimo na historiografia espanhola sobre a idade contemporânea”.131 Este apogeu é o resultado de um processo muito mais demorado, desenvolvido desde os anos setenta (supra) e que se acelera notavelmente no decorrer da década de 1980. De fato, nos recentes balanços da historiografia espanhola (ao menos os relativos aos estudos de história contemporânea), associa-se o último quarto de século de democracia com um desenvolvimento inusitado dos estudos históricos. Afirma-se que nós nos encontramos diante de uma “idade de prata para a nossa profissão”, na qual “superou-se o atraso produzido pelo isolamento e pela repressão intelectual durante a ditadura franca”.132 Já nos anos 1970, na fase final da ditadura, uma parte da vitalidade da historiografia espanhola procedia do fato de ter-se acelerado notavelmente a recepção da escola dos Annales e da historiografia marxista. Isto é, procedia da difusão do que se denomina “o paradigma da história econômica e social”. Todavia, a construção das bases definitivas para a mudança institucional, associativa e inclusive de geração de historiados e historiadores espanhóis, começou verdadeiramente nos anos 1980. No entanto, não é surpreendente que ainda nesta década, em termos gerais, a historiografia espanhola fosse desconhecida da maioria das correntes que estavam modificando o panorama internacional; sobretudo, das várias formas da história política e sociocultural. Não é estranho, insistimos, posto que, os 15 anos, aproximadamente, em que a história sociocultural se consolidou (1975 a 1990), constituem um dos períodos de maiores mudanças da época contemporânea. Além do mais, nunca houve uma historiografia tão compartilhada como a proporcionada pelos estudos culturais nos anos 1980. Assim, em 1992, Josep Fontana podia publicar um livro em que pretendia “ajudar aos que estudam a história, e em especial aos que se dedicam a ensiná-la,

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a se orientar no labirinto de correntes que vieram para substituir aquele mapa tão claro de nosso território”.133 La historia después del fin de la historia não foi em absoluto um ensaio meramente informativo e, sim, também um balanço crítico. No entanto, contribuiu de modo notável para que muitos historiadores espanhóis conhecessem expressões, hoje familiares, como “micro-história”, “eco-história” ou “giro lingüístico”. Para além desses problemas de recepção, o certo é que o panorama da historiografia espanhola dos anos 1990 mal se parece com a dos anos 1970: tal historiografia necessita de “centralismo” propriamente dito. Isto é, formam a historiografia numerosos grupos conectados entre si graças a um ativo associacionismo e a certas revistas especialmente relevantes (a mais importante é Historia Social. Fundação Instituto Social. Valência, fundada em 1998). Além do mais, mantém abundantes vínculos com historiadores e historiadoras de outros países (sem dúvida, a difusão pela Internet contribuiu para aumentá-los). Naturalmente, apesar de todas estas mudanças, continua havendo questões pendentes que distanciam, em geral, a maioria dos estudiosos espanhóis dos grupos dominantes da esfera internacional: uma excessiva rigidez acadêmica que margeia, em boa medida, os professores e bacharéis e coloca travas à interdisciplinaridade; escassez de debates; uma presença, também rara, nas grandes revistas de projeção internacional, e, enfim, uma concentração ainda excessiva em temas relativos à história doméstica e suas relações com outros países. Os estudos de historiografia constituem, sem dúvida, um reflexo deste jogo de luzes e sombras: escasseiam os especialistas em história da historiografia e se tornam abundantes o que Ignacio Peiró chamou “uma literatura sem objeto”. Isto é, um repertório de traduções de ensaios historiográficos de conhecidos autores de projeção internacional (como por exemplo, Edward P. Thompson, Eric Hobsbawm, Jürgen Kocka, Roger Chartier, Jacques Le Goff e Joan Scott) e de reflexões escritas pelos próprios historiadores espanhóis, geralmente, sob a inspiração desses autores estrangeiros.134 Trata-se, sem dúvida, de um panorama desigual, em que a reflexão desempenha um papel muito importante. E a história da historiografia, propriamente dita, é cultivada somente por uma minoria, que, por sinal, costuma mostrar preferência pelas biografias de historiadores. Contudo, o que não está tão claro é que tal situação deva ser considerada anômala ou um sintoma de atraso. Na realidade, deixando de lado os casos anglo-saxão e germânico, na maioria dos países se observa uma desigualdade parecida.

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O desenvolvimento bastante lento dos estudos da história da historiografia espanhola não significa que eles não interessem aos historiadores ou que careçam de respeito intelectual. De fato, nos anos 1990, não somente se reivindicou a importância das tradições espanholas, mas também o que os comentaristas constatam “a história da historiografia espanhola constitui um campo de estudos com um futuro promissor”.135 A recente publicação do Diccionario de historiadores españoles contemporâneos (Madrid, Akal, 2002), de Gonzalo Pasmar e Ignacio Peiró, pode animar a penetração dessa classe de estudos, porém o mais previsível é que ele atue exclusivamente como uma obra de consulta – tal como foi projetada. Por outro lado, não podemos esquecer que a citada especialidade é somente uma variedade dentro do panorama dos estudos de historiografia; e que, além do mais, aquela não é absolutamente auto-suficiente quando se defronta com os problemas teóricos da “historiografia imediata” (que, afinal de contas, são os que mais interessam aos historiadores espanhóis). Tampouco resultou em um fato inusitado a combinação da história da historiografia com a reflexão teórica. Tal combinação pode encontrar-se, por exemplo, na compilação de trabalhos de Juan José Carreras – pioneiro na Espanha nos estudos de historiografia –, intitulada Razón de historia. Estúdios de historiografia (Madrid, Marcial Pons-Prensas Universitárias de Zaragoza, 2000); ou no manual de Gonzalo Pasamar, La historia contemporânea: aspectos teóricos e historiográficos, (Madrid, Síntesis, 2000). O que predomina no panorama espanhol é o ensaio de reflexão historiográfica. Este desempenha um papel notável já que é um modo de manifestar a preocupação pelos problemas internacionais da disciplina e preencher as necessidades de informações de muitos professores. Possivelmente, o grupo “História a Debate”, coordenado por Carlos Barros desde Santiago de Compostela (www.h-debate.com), constitui atualmente a iniciativa mais importante nessa direção. Os dois congressos organizados por tal grupo (1993 e 1999), particularmente o segundo, são uma amostra eloqüente do interesse crescente suscitado pela reflexão historiográfica na Espanha. Nas atas do Congresso de 1993, publicadas dois anos depois (seis volumes), podem encontrar-se as intervenções de autores que haviam sido pioneiros no interesse pelos problemas teóricos da história: Julio Valdeón, Santos Juliá, Julián Casanova, Julio Aróstegui ou Antonio Morales Moya. No Congresso de 1999 (atas em três volumes, 2000), a forte presença de professores de bacharelado e da universidade, bem menos conhecidos, mostra como cresceu esse interesse ao longo da década.

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No entanto, o comportamento da reflexão historiográfica atual se baseia cada vez menos na possibilidade de conhecer as correntes internacionais, e cada vez mais na necessidade de estabelecer um balanço crítico dessas mesmas correntes. O citado grupo “História a Debate” nunca ocultou que não se conforma com um simples exame do pensamento histórico ou uma mera história da historiografia. Segundo demonstra o recente “Manifesto de História a Debate” (11/9/2001), este grupo pretende tomar o pulso da situação atual da disciplina histórica e encontrar um modo de influenciá-la. Algo parecido ocorre como o recente livro de Josep Fontana, La historia de los hombres (Barcelona, Crítica, 2001), que constitui uma revisão profunda da História. Análisis del pasado y proyecto social (1982). Possivelmente, o mais original desta nova obra esteja em seu balanço crítico da historiografia internacional dos últimos 20 anos; no intuito de mostrar em que medida as “novas histórias” geraram uma série de problemas que colocam em xeque a inspiração clássica ao considerar a história como “análises do passado e projeto social”. Na Espanha, os outros autores de ensaios de historiografia normalmente são historiadores com uma diversificada investigação empírica que, por diversas razões, sentiram a necessidade de viajar ao âmbito da teoria. Salvo exceções, não se consideram nem “teóricos” nem “historiógrafos”. Dado que a possibilidade de se informar a respeito da bibliografia internacional não apresenta limites ou obstáculos intransponíveis, normalmente suas obras são bastante sugestivas e documentadas, se bem que a maioria delas se apresentam mais como textos universitários em um sentido mais amplo, que como monografias dirigidas a especialistas em historiografia ou epistemologia. Alguns destes autores, por diferentes circunstâncias, transitaram do artigo ao ensaio em forma de livro, ou publicaram em revistas de repercussão internacional. Tais são os casos, por exemplo, de Ignacio Olábarri, pesquisador das “novas histórias” e dos problemas relativos à “memória”; ou Miguel Angel Cabrera, que defende em um livro recente posições em favor da “história discursiva” e do pós-modernismo; ou Justo Serna e Anaclet Pons, especialistas na problemática da micro-história e na obra de Carlo Ginzburg; ou Elena Hernández Sandoica, que assina um ensaio sobre os modelos da epistemologia e seu reflexo na historiografia atual; ou, enfim, Julio Aróstegui e Enrique Moradiellos, autores de curtas sínteses de metodologia e teoria da história de grande influência entre os professores universitários e bacharéis.136 Menção à parte merece, sem dúvida, Francisco Vázquez García. Este autor, membro do grupo “História a Debate”, é um dos poucos filósofos pro-

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fissionais que se movem com facilidade – e de modo reconhecido – no âmbito dos historiadores (uma tendência mais freqüente em outras latitudes). Tal autor, partidário de aproximar os historiadores dos critérios pós-modernistas, contribuiu de maneira importante para a divulgação do pensamento de Michel Foucault entre os mesmos.137 Ultimamente, penetrou, também, na obra do recentemente falecido Pierre Bordieu, cujas teorias foram consideradas uma sugestiva receita para conciliar os tradicionais dilemas do pensamento social (estrutura versus atitude; objetivo versus subjetivo, etc.).138 Também tem peculiaridades muito interessantes a obra de José C. Bermejo Barrera. Este professor de História Antiga da Universidade de São Tiago de Compostela é, possivelmente, o historiador profissional espanhol que desenvolveu um pensamento mais profundo e original em matéria de teoria da história. Seus trabalhos sobre o que denomina “História Teórica” pretendem ser uma síntese de problemas filosóficos, epistemológicos e relativos à história da historiografia. Sua mesma obra já se tornou objeto de investigação e reflexão.139

NOTAS * Tradução do original espanhol por Gabriela Cristina B. Engler Pinto. ** Universidade de Zaragoza. 1 A última das manifestações do velho gênero seria exposta por Marcelino Menéndez Pelayo em seu discurso de entrada na Academia de la Historia, intitulado “A História considerada como arte bela” (1883). Nesse texto, o escritor santanderino não pretendia propriamente recuperar a velha noção da História como instrumento da eloqüência, e, sim, estudar o tradicional papel daquela situando-o na disciplina nascente da estética ou na história das idéias artísticas. No entanto, o discurso deixou uma impressão de anacronismo em um momento em que os eruditos profissionais, professores e alunos da Escola Superior Diplomática aceitavam a importância do “método” como traço básico da historiografia (a recepção deste discurso, em PEIRÓ, L.; PASAMAR, G. La Escuela Superior de Diplomática. Los archievos en la historiografía española contemporánea. Madrid: ANABAD, 1996. p. 170-171). 2 Vide MENENDÉZ PELAYO, Marcelino. Contestación a “Ambrosio de Spínola. Primer marqués de los Balbases”, leído ante a Real Academia de la Historia en la recepción pública de D. Antonio Rodríguez Villa, el dia 29 de octubre de 1893. Madrid: Imp. Fortanet, 1893. p. 106-107; VIDART, Luis. “Ulitidad de las monografias para el cabal conocimiento de la Historia de España”, Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia en la recepción pública del Excmo Sr. … el día 10 de junio de 1894. Madrid: Tip. de San Francisco de Sales, 1984. p. 27-28; FUENSANTA DEL VALLE, Marqués de la. “El progreso de las ciencias historicas à consecuencia de los nuevos descubrimientos llevados à cabo en el siglo actual”, Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia en la recepción pública del Excmo Sr. ... el domingo 13 de enero de 1895. Madrid: Imp. de José Perales y Martínez, 1895. p. 52-53, 58. Sobre o significado

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dessa nova linguagem acadêmica: PEIRÓ MARTÍN, Ignacio. Los guardianes de la Historia. La historiografía académica de la Restauración. Zaragoza: Institución “Fernando el Católico”, 1995. p. 81-84. 3 GIMÉNEZ SOLER, Andrés. “Formas actuales de la Historia”, Discurso leído en la real Academia de Buenas Letras de Barcelona en la recepción pública del Sr. D. ... el día 26 de marzo de 1899. Barcelona: Hijos de Jaime Jepús imps., 1899. p. 13-14. 4 GIMÉNEZ SOLER, Andrés. El Justicia de Aragón? es de origen musulmán? Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos, (tercera época) 4 , p. 205-206, abr. 1901. 5 BOUTROUX, Émile. La philosophie: VVAA. In: Un demi siécle de civilisation française, 1870-1915. Paris: Hachette, 1916. p. 14. Cf. POLIZZI, Gaspare. Sull’epistemologia allo stato nascente. La “Revue de Métaphisique et de Morale tra 1893 e 1914”: Studi Storici, 1, p. 167, enero/marzo 1993; LUKES, Steven. Émile Durkhein, su vida y su obra. Estudio histórico crítico. Madrid: Siglo XXI, 1984. p. 57. 6 Sobre a introdução das ciências sociais na universidade de fim de século na França, LUKES, Steven. Émile Durkhein, su vida y su obra. Estudio histórico crítico. Madrid: Siglo XXI, 1984. p. 99-107, 287-318; KARADY, Victor. Strategie de réussite et modes de fairevaloir de la sociologie chez les durkheimiens. Revue française de sociologie, 1, p. 49-82, janv./mars 1979; WEISZ, George. L’idéologie républicaine et les sciences sociales. Les durkheimiens et la chaire d’histoire d’economie sociale à la Sorbonne”, Ibid., p. 83-112. 7 Sobre a concepção de Paul Lacombe, ALLEGRA, L.; TORRE, A. La nascita della storia sociale in Francia. Dalla Comune alle “Annales”. Torino: L. Einaudi, 1977. p. 120-122. A obra de Lacombe foi publicada em castelhano no editorial Espasa-Calpe, em 1948. Passou completamente desapercebida em Espanha no pós-guerra, sem que fosse citada por um único autor, talvez devido a que fora impressa na Argentina, mas principalmente devido ao próprio clima intelectual da época (infra). Além do mais, o próprio nome do autor está equivocado na versão espanhola (“Pierre Lacombe” em vez de “Paul Lacombe”). No entanto, não é uma tradução de má qualidade (as referências à psicologia como ciência auxiliar da história e à base psicológica das instituições, Ibid., p. 34-47, 115, 195-205; a importância da economia, p. 64 et seq., 305 et seq.). 8 VIDART, Luis. “Ulitidad de las monografias para el cabal conocimient de la Historia de España”, Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia en la recepción pública del Excmo Sr. … el día 10 de junio de 1894. Madrid: Tip. de San Francisco de Sales, 1984. p. 20. 9 FUENSANTA DEL VALLE, Marqués de la. “El progreso de las ciencias historicas à consecuencia de los nuevos descubrimientos llevados à cabo en el siglo actual”, Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia en la recepción pública del Excmo Sr. ... el domingo 13 de enero de 1895. Madrid: Imp. de José Perales y Martínez, 1895. p. 53-54. 10 IBARRA Y RODRÍGUEZ, Eduardo. “Progresos de la ciencia histórica en el presente siglo”, Discurso leído en la solemne apertura del curso académico de 1897 à 1898 en la Universidad de Zaragoza por el Dr. D. … Zaragoza: Imp. de Ariño, 1897. p. 62. 11 SALES Y FERRÉ, Manuel. Estudios de Sociología. Evolución social y política. Madrid: Lib. de Victoriano Suárez, 1889. p. VIII, primera parte. 12 RIBERA TARRAGÓ, Julián. Orígenes del Justicia de Aragón por el Dr. D. ... Con un prólogo de D. Francisco Codera. Zaragoza: Tip. de Comas hermanos, 1897. p. 289.

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13 Ibid., p. 201. 14 Ibid., p. 291 et seq. 15 Ibid. Conferências V e VI. p. 195-300; a referência expressa a G. Tarde, Ibid., p. 282. Seu discípulo Miguel Asin asseguraria, anos mais tarde, que Ribera havia chegado à teoria da imitação em torno de 1893 e de maneira independente do sociólogo francês (ASÍN Y PALACIOS, Miguel. Introducción. In: RIBERA, Julián. Disertaciones y opúsculos. Edición colectiva que en su jubilación del profesorado le ofrecen sus discípulos y amigos. Madrid: Estanislao Mestre, 1928. v. I, p. XLVI-LII). 16 RIBERA TARRAGÓ, Julián. Lo científico en la Historia. Madrid: Imp. P. Apalategui, 1906. p. 23 (o livro é uma compilação dos nove artigos, cada um com título diferente, que publicou Ribera na Revista de Aragón entre finais de 1902 e 1905). 17 Em seus discursos, Vidart recusava a expressão (p. 8). Gimenez Soler a manipula (p. 4, 24, 31) e o marquês de la Fuensanta del Vale a utiliza em plural e deixa o singular para se referir ao “método científico” (p. 8, 52-53). 18 RIBERA TARRAGÓ, Julián. Lo científico en la Historia. Madrid: Imp. P. Apalategui, 1906. p. 102-103, 107. 19 Ibid., p. 85-96. 20 Ibid., p. 105. 21 ALTAMIRA, R. La enseñanza de la historia. Madrid. Librería de Victoriano Suárez, 1895. p. 214-247. 22 Este último significado é o que, por exemplo, utilizava Croce contemporaneamente – recusando o primeiro (Teoría e historia de la historiografía [1914]. Buenos Aires: Imán, 1966. p. 64); ou o mesmo que havia adotado Berheim na edição de 1903 de seu Tratado del método histórico (SCHLEIER, Hans. Ranke in the manuals on historical methodos of Droysen, Lorenz, and Bernheim. In: Leopold Ranke and the Shaping of the Historical Discipline. Edited by G. G. Iggers, J. J. M. Powell. New York: Syracusa U. P., 1990. p. 119). 23 GARCÍA VILLADA, Zacarías. Cómo se aprende a trabajar científicamente. Lecciones de metodología y críticas históricas por el… Barcelona: Tip. Católica, 1912. p. 31. 24 GARCÍA VILLADA, Zacarías. Metodología y crítica históricas. Barcelona: Sucesores de Juan Gili, 1921. p. 11. 25 BALLESTEROS, Antonio; BALLESTEROS, Pío. Cuestiones históricas. Edades antígua y media (metodología). Madrid: Est. Tip. Juan Pérez Torres, 1913. p. 41-49. 26 GARCÍA VILLADA, Zacarías. Metodología y crítica históricas. Barcelona: Sucesores de Juan Gili, 1921. p. 15. 27 ALTAMIRA, Rafael. La ciencia de la historia (1904). In:______. Cuestiones modernas de Historia. Madrid: Aguilar, 1935. p. 124-125. Sobre a influência de Xénopol em Altamira, o comentário, talvez necessitado de certos traços, de CARRERAS, Juan José. Altamira y historiografía europea. In: ALBEROLA, A. (Ed.). Estudios sobre Rafael Altamira. Alicante: Instituto de Estudios “Juan Gil Albert”, 1988. p. 408. 28 GARCÍA VILLADA, Zacarías. Metodología y crítica históricas. Barcelona: Sucesores de Juan Gili, 1921. p. 43; Cómo se aprende a trabajar cientificamente. Lecciones de metodología y críticas históricas por el… Barcelona: Tip. Católica, 1912. p. 38-41. No caso do jesuíta, tratava-se de uma preocupação metodológica de “procedência vie-

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nesa” que, segundo recordaram seus biógrafos, “concebia a disciplina histórica como simples contribuição de datas e documentos submetidos à crítica e à máxima exatidão” (Cf. GARCÍA IGLESIAS, L. El P. Zacarías García Villada, académico, historiador y jesuita. Madrid: UPCO, 1994. p. 96). 29 Idéia expressamente acolhida e tese global da obra de SEIGNOBOS, Ch. La méthode historique apliquée aux sciences sociales. Paris: Felix Alcan, 1901. p. 14, 121-124, 163. 30 XÉNOPOL, A. D. Teoría de la historia. Segunda edición de “Los principios fundamentales de la historia”. Madrid: D. Jorro, 1911, as três referências respectivamente, p. 150, 454-457 e 152. A importância de “a vida do Estado”, que, para o autor, era perfeitamente compatível com a “história da civilização”. Ibid., p. 484-487. 31 ALLEGRA, L.; TORRE, A. La nascita della storia sociale in Francia. Dalla Comune alle “Annales”. Torino: L. Einaudi, 1977. p. 122. 32 NORDAU, Max. El sentido de la historia. Madrid: Daniel Jorro, 1911. p. 385-407. Deve-se advertir que Nordau era um social-darwiniano do século 19. Considerava, efetivamente, que “o verdadeiro sentido da história é a manifestação do curso de vida da humanidade”, mas reconhecia a existência de certa evolução moral e não manipulava imagens morfológicas e cíclicas da história, ao menos nesta obra. Sua influência a encontramos, por exemplo, na “boêmia intelectual” de finais de século (Cf. TUÑÓN DE LARA, Manuel. Medio siglo de cultura española, 1885-1936. Barcelona: Bruguera, 1981. p. 159, 170). 33 Cf. MARAVALL, José Antonio. Teoría del saber histórico. Madrid: Revista de Occidente, 1958, 1961. p. 148. Previamente, no ciclo de Conferências de 1947-1948 sobre “Metodologia histórica” pronunciadas por professores da Universidade Central, somente Luís de Sousa faria uma quase inadvertida referência ao filósofo romeno (Concepto de historia. In: Primer curso de metodología y crítica históricas sobre formación técnica del moderno historiador. Madrid: Estado Mayor Central del Ejército. Servicio Histórico Militar: C Bermejo Imp., 1948. p. 34). 34 Sobre o interesse pela filosofia do direito entre os krausistas espanhóis durante a Restauração – que contrastou com o controle nulo exercido nas assinaturas universitárias desta matéria – GIL CREMADES, Juan José. El reformismo español. Krausismo, escuela histórica, neotomismo. Barcelona: Ariel, 1969. p. 188-192. A atenção filosófica à literatura e à arte foi outro traço persistente, ainda que de menor relevância. A expressão do texto refere-se aos ensaios de Francisco Giner, titulados Estudios de literatura y arte (1876, 1919). 35 POSADA, Adolfo. Los estudios sociológicos en Espana. Boletín de la Institución Libre de Enseñanza, p. 220, 30 jun. 1899. Los rasgos del “krausopositivismo”, em NÚÑEZ RUIZ, Diego. La mentalidad positiva en España: desarollo y crisis. Madrid: Túcar, 1975. p. 79-109. 36 DIAZ, Elias. La filosofia social del krausismo español. Madrid: Edicusa, 1973. p. 229-230; GIL CREMADES, Juan José. El reformismo español. Krausismo, escuela histórica, neotomismo. Barcelona: Ariel, 1969. p. 234-235. 37 Cf. PÉREZ PUJOL, Eduardo. Historia de las instituciones sociales de la España goda. Obra póstuma de ... T. I. Valencia: Est. Tip. de F. Vives Mora, 1896. p. 1-11. 38 Sobre esta concepção da história no krausismo espanhol, LÓEZ MORILLAS, José. El krausismo español. Perfil de una aventura intelectual. México: Fondo de Cultura

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Económica, 1980. p. 40-47, 69-71, 78-82; JEREZ MIR, Rafael. La introcucción de la Sociología en España. Manuel Sales y Ferré: una experiencia frustrada. Madrid: Ayuso, 1980. p. 73-88. 39 Respectivamente, POSADA, Adolfo. Principios de Sociología. Madrid: Daniel Jorro, (1908), 1929. t. II, p. 244-246; CHEYNE, G. J. G. (Ed.). El Renacimiento ideal: epistolario de Joaquín Costa y Rafael Altamira (1888-1911). Alicante: Instituto de Cultura “Juan Gil Albert”, 1992. p. 195 (o texto está em inglês). 40 De Sales y Ferré pode-se dizer, sem dúvida, que foi um discípulo “emancipado do krausismo, como já o caracterizou em sua época Adolfo Posada. De Dorado Montero, pode-se dizer que a influência do krausismo vinha de seu passageiro contato pessoal com Giner nos anos de doutorado (1883-1885) e, sobretudo, de sua colaboração posterior com Posada (1891-1904), mas o caráter peculiar positivista era anterior e sobrepassava a influência do próprio Posada, quem o distinguiu como um autor influenciado pela filosofia do Direito de Giner mantendo “uma posição original independente” (Las caracterizações de Sales y Dorado Montero, em POSADA, Adolfo. Los estudios sociológicos en Espana. Boletín de la Institución Libre de Enseñanza, 30 jun. 1899, respectivamente, p. 250 e 255). Sobre a tragetória de Sales, JEREZ MIR, Rafael. La introcucción de la Sociologia en España. Manuel Sales y Ferré: una experiência frustrada. Madrid: Ayuso, 1980. p. 44-48, 253-365. Sobre a tragetória de Dorado, SÁNCHEZ-GRANJEL, Gerardo. Dorado Montero y la “Revista de Derecho y Sociología”. Salamanca: Europa Arts Grafs., 1985. p. 19-33. 41 Adolfo Posada criticaria sua excessiva adesão ao positivismo e ao evolucionismo (“Los estudios...” p. 250-251), objeções que Rafael Altamira já havia feito no comentário da obra, publicado em La España moderna (1889), dos Estudios de sociología (1889) de Sales y Ferré (JEREZ MIR, Rafael. La introcucción de la sociología en España. Manuel Sales y Ferré: una experiencia frustrada. Madrid: Ayuso, 1980. p. 289-290). 42 DORADO MONTERO, Pedro. Sobre el carácter científico de la historia. La Lectura, II, p. 122, jul. 1908. 43 Ibid., p. 125. 44 Ibid. 45 POSADA, Adolfo. Principios de Sociología. Madrid: Daniel Jorro, (1908), 1929. t. II, p. 239-265; as referências a Seignobos e a Xénopol. Ibid., p. 240-242; GIL CREMADES, Juan José. El reformismo español. Krausismo, escuela histórica, neotomismo. Barcelona: Ariel, 1969. p. 281-284. 46 Já em curso 1889-1890, Altamira pronunciou no El Ateneo de Madrid uma conferência sobre “Tendências modernas da ciência histórica” (Cf. VILLACORTA, F. El Ateneo de Madrid. 1885-1912. Madrid: Centro de Estudios Históricos, 1985. p. 257). 47 ALTAMIRA, R. La enseñanza de la historia. Madrid. Librería de Victoriano Suárez, 1895. p. 152. Deve-se realçar uma vez mais a concordância com as formulações de Xénopol, que também pretendia compatibilizar a “história política” com a “história da civilização” (XÉNOPOL, A. D. Teoría de la historia. Segunda edición de “Los principios fundamentales de la historia”. Madrid: D. Jorro, 1911. p. 486). Sobre a concepção de Rafael Altamira, VERGARA, Asín. La obra histórica de Rafael Altamira. In: ALBEROLA, A. (Ed.). Estudios sobre Rafael Altamira. Alicante: Instituto de Estudios “Juan Gil Albert”, 1988. p. 389-394; CARRERAS, Juan José. Altamira y historiografía europea. In: ALBEROLA, A. (Ed.). Estudios sobre Rafael Altamira. Alicante: Instituto de Estudios “Juan Gil Albert”, 1988. p. 395-413; MARAVALL, José Antonio.

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La concepción de la Historia en Altamira. Cuadernos Hispanoamericanos, 477-478, p. 13-48, marzo/abr. 1990. 48 DELEITO PIÑUELA, José. Recención de ... La Lectura, p. 326-327, jul. 1910. 49 AZCÁRATE, Gumersindo de. “Carácter científico de la historia”, Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia en la recepción pública del Sr D. ..., el día 3 de abril de 1910. Madrid: Imp. de los sucesores de Hernando, 1910. p. 36-37, 48-49. 50 ESET, Mariano. Rafael Altamira em México: el final de un historiador. In: ALBEROLA, A. (Ed.). Estudios sobre Rafael Altamira. Alicante: Instituto de Estudios “Juan Gil Albert”, 1988. p. 253-261. 51 DELEITO PIÑUELA, José. “La esenãnza de la historia en la universidad española y su reforma posible”, Discurso leído en la solemne apertura del curso acadêmico de 1918 à 1919 en la Universidad Literaria de Valencia por ... Valencia: Tip. Moderna a cargo de M. Gimeno, [18--]. p. 66. 52 Sobre este problema, SUÁREZ CORTINA, Manuel. El reformismo en España. Republicanos y reformistas bajo la monarquía de Alfonso XIII. Madrid: Siglo XXI, 1986. p. 114-128; LAPORTA, E. J. Adolfo Posada: política y sociología en la crisis del libera– lismo español. Madrid: Edicusa, 1974. p. 156, 181-212; TUÑÓN DE LARA, Manuel. Medio siglo de cultura española, 1885-1936. Barcelona: Bruguera, 1981. p. 232-239; etc. 53 DE SALIS, J. R. La théorie de l’historie selon Ernest Troelsch. Revue de Shynthése Historique, 127-129, p. 5-13, juin 1927; RINGER, F. K. El ocaso de los mandarines alemanes. Catedráticos, profesores y la comunidad acadêmica alemana, 1890-1933. Barcelona: Pomares-Corredor, 1995. p. 108. O significado político e filosófico da crise do historicismo, em CARRERAS ARES, J. J. El historicismo alemán. In: Estudios de Historia de España. Madrid: UIMP, 1981. v. II, p. 638-641; IGGERS, G. G. The German Conception of History. The national tradition os historical thought from Herder to the present. Middletown, Conneticut: Wesleyan U. P., 1983. p. 200-222. 54 HUIZINGA, Johan. Sobre el estado actual de la ciencia histórica. Cuatro conferencias. Madrid: Revista de Occidente, 1934. p. 44. 55 BELOW, J. von (Org.). Comiezo y objetivo de la Sociología. Anuario de Historia del Derecho Español, 3, p. 5-30, 1926; SPANN, Othmar. Filosofía de la sociedad. Madrid: Revista de Occidente, 1933. 56 MEINECKE, Friedrich. Preussen und Deutchland im 19 und 20 Jahrhundert. Brosch: [s.n.], 1918. p. 479 (cf. DIEZ DEL CORRAL, Luis. De Historia y Política. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1956. p. 152-153); BAUER, Wilhelm. Introducción al estudio de la historia. Barcelona: Bosch, 1944. p. 128, 154. 57 SEIGNOBOS, Ch. La méthode historique apliquée aux sciences sociales. Paris: Felix Alcan, 1901. p. 160-161. 58 Contra o que sugere Julio Aróstegui, o interesse de Ortega pela História não tem a ver com a revolução historiográfica do nosso século. É um produto da influência da crise filosófica do historicismo, em que historiadores e filósofos haviam tentado redescobrir o caráter “idealista” das categorias historiográficas e buscar uma epistemologia sempre virada de costas aos conceitos positivistas de “leis” e “causalidades. O artigo de ARÓSTEGUI, J. Historiografia y autorreflexión, la “Historiología” de Ortega. Bulletin d’Histoire Contemporaine de L’Espagne, 21, p. 27-48, juin 1995. 59 A primeira das interpretações em ELORZA, Antonio. La razón y la sombra. Una lectura política de Ortega y Gasset. Barcelona: Anagrama, 1984. p. 138-140. A segunda

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interpretação em REDONDO, Gonzalo. Las empresas políticas de José Ortega y Gasset. “El Sol”, “Crisol”, “Luz” (1917-1934). Madrid: Rialp, 1970. v. II, p. 70-81. Mais recentemente, a separação entre cultura e política proposta por Ortega nesses primeiros anos da Ditadura foi interpretada como um traço da ambígua posição do professor ao regime, que mesmo sem ser um colaboracionista, permitia-se doutrinar-se como intelectual. (QUEIPO DE LLANO, G. Garcia. Los intelectuales y la dictadura de Primo de Rivera. Madrid: Alianza, 1988. p. 243-253.) 60 ORTEGA Y GASSET, José. Introducción a dos ensayos de historiografía (1935). In: ______. Obras completas. Madrid: Revista de Occidente, 1955. t. VI, p. 355. 61 Esta enumeração, não exaustiva, não faz referência a fontes germânicas que inspiraram o penamento de Ortega – questão sobre a qual não há acordo – e, sim, a autores dados a conhecer a pedidos do pensador espanhol e que este considerava de grande interesse para a divuldação e renovação historiográfica. A falta de acordo acerca das “fontes germânicas” de Ortega é uma característica dos trabalhos sobre o filósofo – deixando de lado seus discípulos, que sempre as conside– raram secundárias: Ciríaco Morón Arroyo aprecia sucessivamente as seguintes de caráter básico: Cohen, Scheler, Spengler y Heidegger; e de modo secundário, Simmel y Dilthey (El sistema de Ortega y Gasset. Madrid: Alcalá, 1968. p. 77-81, 299-306); Nelson R. Orringer detecta outros autores muito menos conhecidos (Ortega y sus fuentes germânicas. Madrid: Gredos, 1979); Gonzalo Sobejano considera fundamental e permanente a influência de Nietzsche (Nietzsche en España. Madrid: Gredos, 1967. p. 527-565). Sobre os traços políticos e intelectuais da influência de Ortega e de alguns autores germânicos que acompanharam essa influência durante o pós-guerra, PASAMAR, Gonzalo. Historiografía y ideología en la postguerra española: La ruptura de la tradición liberal. Zaragoza: Prensas Universitarias, 1991. p. 92-117, 183-201. 62 Por exemplo em: La “Filosofia de la Historia” de Hegel, e la historiología. Revista de Occidente, 56, p. 149-150, feb. 1928. 63 Testemunhos dessas reservas em SANCHEZ ARBORNOZ, Cláudio. Recuerdos emocionales. Revista de Occidente (segunda época), 24/25, p. 242-243, mayo 1986; PÉREZ VILLANUEVA, Joaquim. Ramón Menéndez Pidal. Su vida y su tiempo. Madrid: Espasa-Calpe, 1991. p. 291-296. 64 ORTEGA Y GASSET, José. La “Filosofia de la Historia” de Hegel, e la historiología. Revista de Occidente, 56, p. 171-173, feb. 1928. 65 Esta interpretação de Historia como sistema, como síntese entre sua “historiologia” e a influência de Heidegger, em C. Morón Aroyo, citado, p. 305-306. 66 Note-se que nos referimos a historiadores profissionais: não tratamos de filósofos orteguianos, que parecem não terem tido prestígio entre aqueles. 67 MARAVALL, José Antonio. Una experiencia personal de la obra de Ortega. Revista de Occidente, (segunda época), 24/25, p. 181-182, mayo 1983. 68 Como se sabe, a influência de Nietzsche entre o público espanhol foi se difundindo a partir dos anos de 1920, mas, em 1932, publicaram-se em castelhano suas Obras completas, em uma tradução bem mais pobre e, naturalmente, o ensaio intitulado De la utilidad y los incovenientes de los estudios históricos para la vida (Obras completas. Madrid: Aguilar, 1932. t. II, p. 72-154), cujo comentário, por exemplo, podemos encontrar no artigo de FREYER, HANS. Los sistemas de la historia universal. Revista de Occidente, 99, p. 249-255, sept. 1931. A crítica nietzscheana à “objetividade histórica” está presente nas páginas de Escorial – e nos escritos de Montero – em

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diversos artigos: ALONSO DEL REAL, Carlos. Sobre la “objectividad de la ciencia histórica. Revista de Occidente,11, p. 383-395, sept. 1941. A isso deve-se acrescentar o comentário realizado por Laín Entralgo de Historia como sistema de Ortega, em que se afirma que “escrever inteligentemente sobre a História” constitui um “genuíno serviço nacional” e somente se critica este seu “relativismo” com respeito ao cristianismo (Escorial, III, p. 304-313, abr. 1941). 69 MONTERO DIAZ, Santiago. Integración del arte en una doctrina de la historia. Madrid: Imp. Marsiega, 1940. p. 22-23. 70 MONTERO DIAZ, Santiago. Historiografía y método histórico. In: Primer curso de metodología y crítica históricas sobre formación técnica del moderno historiador. Madrid: Estado Mayor Central del Ejercito. Servivio Histórico Militar: C Bermejo Imp., 1948, a primeira idéia na página 53 e passim; a segunda na página 58. 72 ORTEGA Y GASSET, José. Historia como sistema. In: ______. Obras completas. Madrid: Revista de Occidente, 1955. t. VI, p. 41; a mesma idéia em “Guillermo Dilthey e la idea de la vida”, Ibid., p. 165. 73 ORTEGA Y GASET, José. La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoria evolutiva (escrito em 1947). In: ______. Obras completas. Madrid: Revista de Occidente, 1955. t. VIII, p. 308, nota. 74 GARCÍA MORENTE, Manuel. Ideas para una filosofía de la historia en España (conferencia pronunciada na abertura do curso 1942-43 na Universidade Central). In: Idea de Hispanidad. Madrid: Espasa-Calpe, 1961. p. 150; e La estructura de la historia. Príncipe de Vianna, 8, p. 288-291, 3 trim. 1942. 75 GARCÍA MORENTE, Manuel. Ideas para una filosofía de la historia en España (conferencia pronunciada na abertura do curso 1942-43 na Universidad Central). In: Idea de Hispanidad. Madrid: Espasa-Calpe, 1961. p. 150; e La estructura de la historia. Príncipe de Vianna, 8, p. 291, 3 trim. 1942. 76 Sobre Berdiaeff e sua influência no pós-guerra, SOROKIN, P. A. Las filosofías sociales de nuestra época de crisis, el hombre frente a la crisis. Madrid: Aguillar, 1956. p. 182-190; e PASAMAR, Gonzalo. Historiografía y ideología en la postguerra española: La ruptura de la tradición liberal. Zaragoza: Prensas Universitárias, 1991. p. 104, 189-190. 77 O comentário desta obra em GARCÍA IGLESIAS, L. El P. Zacarias García Villada, académico, historiador y jesuíta. Madrid: UPCO, 1994. p. 248-254. 78 LAÍN ENTRALGO, Pedro. Descargo de consciencia. Barcelona: Barral, 1976. p. 326-327. 79 ORTEGA Y GASSET, José. Prólogo a “Ciencia cultural y ciencia natural” (sic) de Enrique Rickert. Revista Nacional de Educación, 42, p. 15, jun. 1944. 80 Parte de tal memória de oposições reunida em LAÍN ENTRALGO, Pedro. El método historiográfico en la obra de Enrique Rickert. Revista Nacional de Educación, 42, p. 15, jun. 1944. 81 Cf. LAÍN ENTRALGO, Pedro. Manéndez Pelayo. Historia de sus problemas intelectuales. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1944. p. 32-33. 82 Cf. LAÍN ENTRALGO, Pedro. Las generaciones en la historia. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1945. p. 269-270 e passim. 83 Esta tentativa de orientar o programa orteguiano em uma direção mais psicológica se pode observar também no artigo de Lain: Sobre el apoyo del hombre en la historia. Revista de Estudios Políticos, 17, p. 49 et seq., sept./oct. 1944.

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84 A crítica ao conceito de “geração” entendido como categoria fundamental da história em LAÍN ENTRALGO, Pedro. Las generaciones en la historia. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1945. p. 281-294. 85 Em El tema de nuestro tiempo (1923), texto de forte influência nietzscheana, Ortega considerava que toda geração estaria composta de uma massa e uma minoria (ORTEGA Y GASSET, José. Obras completas. Madrid: Revista de Occidente, 1955. t. III, p. 147); no entanto, a aplicação realizada em En torno a Galileo (1933) estava relacionada com a história intelectual – somente se referia à “minoria” – e necessitava de toda referência sociológica. 86 MARIAS, Julián. El método histórico de las generaciones. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 88. 87 Estudamos este problema em “De la historia de las bellas artes a la historia del arte (la profesionalización de la historiografía artística española)”, VII Jornadas de Arte. Historiografía del arte español en los siglos XIX e XX. Madrid: Departamento de Historia del Arte “Diego Velázquez”. Centro de Estudios Históricos, 1995. p. 137-149. 88 A conexão entre Ortega e a tradução de Moreno Villa da obra de Wölfflin, em MORENO VILLA, José. Vida en claro. Autobiografía. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1976. p. 114. 89 LAFUENTE FERRARI, Enrique. “La fundamentación y los problemas de la historia del arte”, Discurso de ingreso leido en la sesión pública del dia 15 de enero de 1951 y contestación del Excmo Sr. D. Elías Tormo y Monzó. Madrid: Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, 1951. p. 123. 90 RUIZ DEL CASTILLO, Carlos. Semblanzas de los Excmos señores Don Salvador Mingüijón y Don Severino Aznar. Madrid: Imp. Juan Bravo, 1960. p. 42. Para o pensamento de Severino Aznar, VIÑAS MEY, Carmelo. La vida y la obra de Severino Aznar. Revista Internacional de Sociología, 68, p. 525-543, oct./dic. 1959. 91 As obras que caracterizaram Viñas como herdeiro das tradições do reformismo social de fim de século, La Reforma agraria en España en el siglo XIX. Santiago: Tipografia de “El eco franciscano”, 1933; e El problema de la tierra en la España de los siglos XVI y XVII. Madrid: Instituto Jerônimo Zurita, 1941. 92 VIÑAS MEY, Carmelo. In Memoriam. Huizinga. Revista Internacional de Sociología, 10, p. 313, abr./jun. 1945. 93 VIÑAS MEY, Carmelo. En torno a los orígenes de la sociología (ensayo de reconstruccíon de un proceso doctrinal). XVII Congreso Internacional de Sociología, Beyrut, 1957, p. 191. 94 A reivindicação manifesta do funcionamento de “tipos vitais” ou “formas coletivas da individualidade” – que se podem observar em alguns de seus trabalhos a partir de 1940 – em: Critica interna. In: Segundo curso de metodología y crítica históricas para la formación técnica del moderno historiador. Madrid: Estado Mayor Central del Ejército, Imp. C. Bermejo, 1950. p. 148-150; a exaltação do “método das gerações”, sob a interpretação de Laín, em: En torno a los Orígenes de la sociologia..., citado, p. 214-217. 95 Jaime Vicens Vives, comentário de A. J. Toynbee, A study of history (en Destino, 1949). VICENS VIVES, Jaime. Obra dispersa. Barcelona: Ed. Vicens Vives, 1967. v. II: España. América. Europa, p. 442. A influência de Toynbee em Vicens Vives, em MUÑOZ I LLORET, J. M. Jaume Vicens i Vives (1910-1960). Una biografía intelectual. Barcelona: Eds. 62, 1997. p. 193-200.

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96 Antonio Perpiñá, comentário de DILTHEY, W. Hombre y mundo en los siglos XVI y XVIII. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, Revista Internacional de Sociología, 17, p. 261-262, enero/marzo 1947, também, PASAMAR, Gonzalo. Historiografía y ideología en la postguerra española: La ruptura de la tradición liberal. Zaragoza: Prensas Universitárias, 1991. p. 241-242. 97 MARAVALL, José Antonio. Teoría del saber historico. Madrid: Revista de Occidente, 1958, 1961. p. 152-155. Um exemplo do conhecimento de Freyer entre os historiadores dos anos cinqüenta é o de Miguel Artola, em sua Introducción a Los orígenes de la España contemporánea (1959), que se refere ao autor alemão ao falar do conceito de “sociedade estamental” (Madrid: IEP, 1975. v. I, p. 13). 98 FREYER, Hans. Introducción a la sociología. Madrid: Ed. Nueva Época, 1949. p. 5-31. Sobre as idéias de Freyer, RINGER, F. K. El ocaso de los mandarines alemanes. Catedráticos, profesores y la comunidad academica alemana, 1890-1933. Barcelona: Pomares-Corredor, 1995. p. 221; PASAMAR, Gonzalo. Historiografía y ideología en la postguerra española: La ruptura de la tradición liberal. Zaragoza: Prensas Universitárias, 1991. p. 243. 99 VERLINDEN, Charles. ?Qué es la historia social? Arbor, 86, p. 164-177, feb. 1953. Um exemplo dessa impresão sobre a Escola dos Annales, em OLIVAR BERTRAND, R. Outra “nueva” escuela histórica. Arbor, 147, p. 407-411, mayo 1958. 100 Cf. Revista Internacional de Sociología, 70, p. 197, abr./jun. 1960. Os dados completos da publicação do ensino são os seguintes: Ibid., p. 197-214; e 71, p. 357-371, jul./sept. 1960. 101 MARAVALL, José Antonio. Teoría del saber historico. Madrid: Revista de Occidente, 1958, 1961. p. 167 nota. 102 Cf. O programa do Prólogo do número um de Estudios de Historia Moderna (1951), revestido com uma definição da historiografia em que se davam as mãos Bloch, Febvre, Braudel e Ortega (VICENS VIVES, Jaime. Obra dispersa. Barcelona: Ed. Vicens Vives, 1967. v. II, p. 523-529, especialmente p. 528-529). A tese de doutorado dirigida a Juan Pérez Ballestar demonstra que Vicens não depreciava a reflexão teórica. O resumo do trabalho se encontra recolhido em Estudios de Historia Moderna, III (1953), sob o título de Ideas para uma ordenación metódica de la historiografía, p. 3-24; denso trabalho em que ressoam os ecos de autores como Jaspers, Dilthey e Freyer. 103 MUÑOZ I LLORET, J. M. Jaume Vicens i Vives (1910-1960). Una biografía intelectual. Barcelona: Eds. 62, 1997. p. 311 et seq. 104 VICENS VIVES, Jaime. Hacia uma nueva historia económica de España (1954). In: ______. Obra dispersa. Barcelona: Ed. Vicens Vives, 1967. v. II, p. 59. 105 Uma análise destes grupos em VERLARDE, Juan. Economistas españoles contemporáneos. Primeros maestros. Madrid: Espasa-Calpe, 1990. p. 32-61. Talvez o único autor que pretendeu construir uma concepção histórica da economia foi o acadêmico e exministro de Franco, José Larraz, em La meta de dos revoluciones (Madrid: Blass, 1946); conjunto de reflexões sobre o caráter histórico da economia, mescla de neotomismo e de morfologia sociológica, crítica do marxismo e da teoria das espécies de Weber – cuja Economía y Sociedad havia sido editada em castelhano no México em 1944. 106 Até o pós-guerra não se estava em desacordo sobre o fato de que a “história do direi– to” fosse uma especialidade da história geral. Pelo contrário, entendida em um sen-

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tido amplo como elemento fundamental da “história interna”, era considerada uma manifestação relevante da própria renovação historiográfica. No pós-guerra, a distribuição pessoal e profissional do Consejo Superior, assim como a crítica às filosofias da história de inspiração idealista e positivista, abriram o caminho a uma concepção da história do Direito muito mais restritiva, formulada precisamente por Afonso Garça Gallo. Este, em sua argumentação viria a negar que a História fosse ainda a mestra das ciências ao estilo do século 19, como pretendeu o “positivismo” e, portanto, assegurava que as histórias especiais deviam gozar de independência e se dedica exclusivamene ao objeto que lhes era próprio (GARCÍA GALLO, Alfonso. Historia, derecho e historia del derecho. Consideraciones en torno a la Escuela de Hinojosa. Anuario de Historia del Derecho Español, 23, p. 22-23, 25, 33, 1953). O argumento teve um duradouro sucesso e somente foi posto em dúvida entre alguns especialistas, com a renovação historiográfica dos anos de 1970 (CLAVERO, B. Tomás y Valiente, una biografía intelectual. Milano: A. Giffré, 1996. p. 66, 164-170). 107 VICENS VIVES, Jaime. La transformación económica de Barcelona en el siglo XVIII) (Destino 1950). In: ______. Obra dispersa. Barcelona: Ed. Vicens Vives, 1967. v. II, p. 423-424. 108 Destacou sua análise crítica da influência do keynesianismo na historiografia em “Problèmes de la formation du capitalisme” (Past and Present, 1953) (Une histoire en construction. Approche marxiste et problématiques conjoncturelles. Paris: Gallimard: Seuil, 1982. p. 125-153). Referências a essa influência nas obras de Labrousse e Hamilon, em: Prefacio. In: VILAR, Pierre. Cataluña en la España moderna. Investigaciones sobre los fundamentos económicos de las estructuras nacionales. Barcelona: T. I. Crítica, 1979. p. 18-23. 109 Este é o pensamento que havia inspirado “Croissance économique et analyse historique” (Cf. Une histoire en construction. Approche marxiste et problématiques conjoncturelles. Paris: Gallimard: Seuil, 1982. p. 14). 110 VILAR, Pierre. Historia general e historia económica. Moneda y Crédito, 108, p. 15, marzo 1969. 111 As críticas ao estruturalismo, Ibid., p. 6-9; el “peligro de las técnicas”, Ibid., p. 11-13. 112 SEBASTIÁ DOMINGO, Enrique. La problemática del historiar. En torno a un libro de Juan Reglà. Hispania. Revista Española de Historia, 110, p. 673, sept./dic. 1968. Sobre o aparecimento de historiadores marxistas em Hispania, recordemos que pouco antes Juan José Carreras Ares havia publicado um amplo estudo sobre “Marx y Engels, (1843-47). El problema de la revolución”. Revista Española de Historia, 108, p. 56-154, enero/abr. 1968. 113 REGLÀ, Joan. Comprendre el món (réflexions d’un historiador). Barcelona: Ed. A. C., 1967. p. 17-18, 213-217 e passim. (A obra foi publicada em castelhano sob o título Introducción a la historia. Socioeconomía-Política-Cultura. Barcelona: Teide, 1970.) 114 REGLÀ, Joan. Comprendre el món (réflexions d’un historiador). Barcelona: Ed. A. C., 1967. p. 26-40. 115 REGLÀ, Joan. Notas sobre el concepto actual de la Historia. Revista de Occidente (segunda época), p. 23, abr. 1966. 116 REGLÀ, Joan. Comprendre el món (réflexions d’un historiador). Barcelona: Ed. A. C., 1967. p. 115-116. Seu mestre, Vicens Vives, passou a considerar o conceito de “gene-

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ración” à maneira de Ortega e Laín – inclusive defendendo-o no Congreso Internacional de Ciencias Históricas de Paris (1950) – relativizando-o e aplicandoo à história social (respectivos testemunhos em VILAR, Pierre. Bulletin Historique. Histoire Contemporaine de L’Éspagne, XVIII-XX siècles. Revue Historique, t. 206, p. 307, oct./nov. 1951, e VICENS VIVES, J. Destino, 1954. In: ______. Obra dispersa. Barcelona: Ed. Vicens Vives, 1967. v. I, p. 467-469. 117 Cf. JOVER, José Maria. Corrientes historiográficas en la Espana contemporánea. In: CARRERAS ARES, J. J. et al. Once ensayos sobre la historia. Madrid: Fundación Juan March, 1976. p. 238. 118 RUIZ, David. La difusión del conocimiento histórico en la crisis del franquismo. Estudios sobre Historia de España, citado, p. 388. 119 DIAZ, Elias. Pensamiento español en la Era de Franco (1939-1935). Madrid. Tecnos, 1983. p. 164-165. 120 As interessantes I Jornadas de Metodología aplicadas a las ciencias históricas (Santiago de Compostela, 1973) coincidiram aproximadamente com outras que ratificaram a renovação de determinadas especialidades historiográficas: o I Coloquio de Historia económica de España (Barcelona, 1972), sobre “El crecimiento económico en la España contemporánea, realizado con el patrocinio de Ramón Carande y Pierre Vilar” (Cf. NADAL, J., TORTELLÁ, G. (Ed.). Agricultura, comercio colonial y crecimiento económico en la España contemporánea. Barcelona: Ariel, 1974. p. 7-8); e o I Coloquio Internacional de Historia del Derecho (Universidad de Granada, 1973), cujo tema básico foram “as relações da história do Direito e as recentes aquisições da chamada “história total” (Cf. Hispania, Revista Española de Historia, 125, p. 717, sept./dic. 1973). 121 GARCÍA DE CORTÁZAR, José Angel. Los nuevos métodos de investigación histórica” (1975). In: CARRERAS ARES, J. J. et al. Once ensayos sobre la historia. Madrid: Fundación Juan March, 1976. p. 43. 122 PÉREZ LEDESMA, Manuel. Recensión de ...., Sistema. Revista de ciencias sociales, 4, p. 149-150, enero 1974. As referências procedem de TUÑÓN DE LARA, M. Metología de la historia social de España. Madrid: Siglo XXI, 1979. p. 4. 123 Ibid., p. 5. 124 TUÑÓN DE LARA, Manuel. La periodización en la historia socio-económica contemporánea de España. Cuadernos Aragoneses de Economia, curso 1975-1976, p. 10. 125 TUÑÓN DE LARA, Manuel. Metología de la historia social de España. Madrid: Siglo XXI, 1979. p. 83-87. Como assinalou Julio Aróstegui, a reflexão tuñoniana não é somente uma proposta metodológica, e, sim, que contém importantes elementos de uma teoria da história (“Manuel Tuñón de Lara y la construcción de uma ciência historiográfica”, DE LA GRANJA, J. L.; REIG TAPIA, A. (Coord.). Manuel Tuñón de Lara. El compromiso con la historia. Su vida y su obra. Bilbao: Universidad del País Vasco, 1993. p. 185 e passim). 126 FONTANA, Josep. La historia. Barcelona: Salvat, 1973. p. 127-128. Recordemos que no mencionado o livro conjunto de reflexões historiográficas, outro historiador marxista, Juan José Carreras Ares, proporcionava uma rápida contextualização e definição do mencionado conceito, aludindo a seu valor totalizador (Categorias historiográficas y periodificación histórica. In: CARRERAS ARES, J. J. et al. Once

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ensayos sobre la historia. Madrid: Fundación Juan March, 1976. p. 60-61). 127 FONTANA, Josep. La historia. Barcelona: Salvat, 1973. p. 47. 128 Ibid., p. 114. 129 FONTANA LÁZARO, Josep. Ascenso y decadencia de la escuela de los “Annales” (en catalán, Recerques, 1974), PARAI, Ch. et al. Hacia uma nueva historia. Madrid: Akal, 1985. p. 109-127. 130 FONTANA, Josep. La historia. Barcelona: Salvat, 1973. p. 110. 131 CASANOVA, J. El secano español revisitado. In: ______. La Historia social y los historiadores. Barcelona: Crítica, [1991] (texto consultado graças à gentileza do autor). 132 PÉREZ GARZÓN, J. S. Sobre el espledor y la pluralidad de la historiografía española. Reflexiones para el optimismo y contra la fragmentación. In: DE LA GRANJA, J. L. et al. Tuñón de Lara y la historiografía española. Madrid: Siglo XXI, [1999]. p. 336. 133 FONTANA, J. La historia después del fin de la historia, Reflexiones acerca de la situación actual de la ciencia histórica. Barcelona: Crítica, 1992. p. 8-9. 134 PEIRÓ, I. La historia de la historiografía en España: una literatura sin objeto. Ayer, 26, p. 129-137, 1997. 135 VÁZQUES, F. La historia social española y los nuevos paradigmas: encuentros y desencuentros. In: BARROS, C. (Ed.). Actas del II Congreso Internacional “Historia a Debate”. A Coruña, Ed Historia a Debate, 2000. t. I, p. 225. 136 Sem a intenção de sermos exaustivos, citamos algumas das obras destes autores: OLÁBARRI, I. “New” New History: a “longue durée” Structure. History and Theory, v. 34, n. 1, p. 1-29, 1995; CABRERA, M. A. Historia, lenguaje y teoria de la sociedad. Madrid: Cátedra, 2001; SERNA, J.; PONS, A. Como se escribe la microhistoria. Ensayo sobre Carlo Ginzburg. Madrid: Cátedra, 2000; SANDOICA, E. Hernández. Los caminos de la historia. Cuestiones de historiografía y método. Madrid: Síntesis, 1995; ARÓSTEGUI, J. La investigación histórica. Teoría y método. Barcelona: Crítica, 1995 (reeditado em 2001); MORADIELLO, E. Las caras de Clío. Una introducción a la historia. Madrid: Siglo XXI, 2001. 137 Sobretudo, através de: Foucault y la historia social. Historia Social, 19, p. 145-159, 1997. 138 Vide VÁZQUEZ GARCÍA, F.; BOURDIEU, Pierre. La sociología como crítica de la razón. Madrid: Montesinos, 2002. 139 Vide PRESEDO GARAZO, A. La historia teórica: algunas reflexiones en torno a la propuesta historiográfica del profesor J. C. Bermejo. Obradoiro de Historia Moderna, Santiago de Compostela, 10, p. 173-180, 2001.

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A RENOVAÇÃO HISTORIOGRÁFICA FRANCESA APÓS A “GUINADA CRÍTICA”1 Helenice Rodrigues da Silva*

Desde a década de 1990, a disciplina História conheceu inflexões consideráveis do ponto de vista, sobretudo, epistemológico. Buscando-se dotar de uma identidade própria, traduzida pelos “regimes de historicidade”, ela reabilita duas noções fundamentais, que haviam sido eclipsadas durante a vigência dos Annales: o acontecimento e a temporalidade (em sua articulação passado/presente/futuro). Dentro dessa nova perspectiva, a História não pode ser mais vista como uma ciência mas, essencialmente, como um conhecimento revelado através de rastros e de vestígios. Conotando, portanto, acepções distintas: seqüência de acontecimentos e ato narrativo (discurso), esse duplo objeto de reflexão, ou seja, disciplina ou conhecimento indireto, por um lado, e rastros dos acontecimentos, por outro lado, a História mereceu uma atenção especial por parte dos historiadores franceses, interessados, a partir de então, em abordagens epistemológicas. Praticada desde o século 19, por eruditos e filósofos, e a partir de meados do século 20 por profissionais de métier, a disciplina História, na França, institucionaliza-se e se vulgariza graças à expansão dos lugares de produção e a extrema “midiatização”, a partir da segunda metade do século 20, da profissão do historiador. Solicitado a intervir nos debates públicos sobre as tramas do passado e as atualidades históricas,2 o historiador francês se vê investido de múltiplos papéis: expert, magistrado e até mesmo juiz. Ao lado da função pedagógica e cognitiva, o historiador ocupa, igualmente, uma função social.

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No entanto, se os historiadores de métier se preocuparam, ao longo dos tempos, com a interrogação de seus métodos de investigação, especialmente no momento do triunfo dos Annales, a excessiva atenção com a prática histórica fez com que ignorassem a reflexão de ordem epistemológica da disciplina. A proximidade da História com as Ciências Sociais até meados dos anos 1980 distanciou os historiadores de um necessário diálogo com a Filosofia. Aliás, as desconfianças dos primeiros em relação à Filosofia da História impediu que a disciplina evoluísse em direção a uma maior conceituação e reflexão. Escritos no início dos anos 1980, os três volumes de O Tempo e a Narrativa, de Paul Ricoeur, passam praticamente despercebidos junto da corporação dos historiadores. É somente na década de 1990 que autores como Michel de Certeau, Jacques Rancière e Paul Ricoeur,3 responsáveis por um reflexão filosófica e poética da História, vêem seus trabalhos valorizados por uma pequena fração dessa corporação. Fundamentos para uma epistemologia da História, a parte reservada aos modos de escrita, à narrativa, à argumentação, à subjetividade do historiador, ilustram a guinada hermenêutica (ou interpretativa) que marcou a historiografia dos anos 1990. Graças aos trabalhos de Paul Ricoeur sobre o tempo histórico, os historiadores redescobrem a dupla dimensão da História que, sob o mesmo vocábulo na França, insere a própria narração e a ação narrada.4

O FINAL DAS CERTEZAS E DA HEGEMONIA DE UM MODELO: A “GUINADA CRÍTICA” Se os dois editoriais da revista Les Annales, publicados em 1988,5 sob o título de Le tournant critique, constituem uma resposta à crise de paradigmas em vigor nos anos 1970 e à nova conjuntura intelectual, eles representam, sobretudo, uma “solução provisória [visando] a uma legitimação identitária”.6 Essa última passaria, segundo seus autores, por um posicionamento crítico em relação ao modelo historiográfico dominante. Sem dúvida, a necessidade de uma tomada de posição por parte de membros dessa revista justifica-se em razão do constato eminente de uma crise identitária por que atravessaria a disciplina na França. Externamente, a posição hegemônica dos Annales encontrava-se ameaçada pelas novas correntes historiográficas vindas do estrangeiro: social history inglesa, micro-história italiana, linguistic turn americana e alltagsgeschichte alemã. Internamente, esse modelo já

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havia sido alvo de críticas por A História em migalhas (1987) de François Dosse, que diagnosticou e examinou a fragmentação do projeto dos Annales. Preconizando uma renovação e os “novos métodos da pesquisa histórica”, ou seja, a necessidade de se levar em conta não mais as estruturas, a longa duração e os grupos sociais, mas as escalas de análise, os atores individuais e a escrita da História, os diferentes textos da “guinada crítica”7 visam a romper com as certezas metodológicas que marcaram os Annales. A modificação mesmo do subtítulo da revista Annales, em 1993, de Économie, société et civilisation para Histoire et sciences sociales demonstra a necessidade de uma renovação, que passaria, num primeiro momento, pela afirmação de identidade da própria disciplina. Deixando de lado a possibilidade de uma análise mais aprofundada, propomos salientar somente os pontos mais relevantes que permearam esse projeto crítico. Se o primeiro editorial da “guinada crítica” propõe analisar a conjuntura historiográfica e elaborar propostas de renovação da prática dos historiadores, ele recusa pensar essa mesma conjuntura em termos de “crise da história” e de fracasso de um “procedimento dominante”, o dos Annales dos anos 1970. “[Essa é a característica] principal das proposições de redefinição que [pretende ser] uma ‘epistemologia de transição’, a partir de uma pressão identitária, ou seja, em defesa de uma comunidade cuja legitimidade científica (e social) é objeto de crítica.”8 Propondo estabelecer as bases renovadas do métier dos historiadores, a “guinada crítica”, num primeiro momento, visa a buscar uma nova legitimidade científica. Num segundo momento, no início dos anos 1990, o tournant critique redireciona seu alvo, propondo um novo modelo historiográfico em torno do paradigma pragmático. Para isso, ela investe, em particular, as propostas teóricas da sociologia das periferias (Boltanski e Thévenot) e da economia das convenções”.9 Esse novo modelo paradigmático inscreve-se em uma conjuntura historiográfica marcada pela existência de outros modelos de escrita da História. Partindo de uma análise da conjuntura marcada pelas “incertezas” e dúvidas, os textos do primeiro TC – tournant critique – têm, então, por objetivo “estabelecer as bases renovadas” do métier do historiador, apreendendo um “campo de forças”, composto pela evolução da disciplina, pela sua dinâmica interna, pelo contexto geral das Ciências Sociais e pelo estado das relações entre disciplinas.10 O estado de “incerteza” da História resultaria, segundo os autores, de uma crise geral das Ciências Sociais e do esgotamento mesmo desse

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modelo historiográfico dominante (quantitativo-antropológico) dos anos 1970. Insurgindo contra a prática “selvagem” e “homológica” da interdisciplinaridade, a “guinada crítica” insiste sobre o caráter irredutível das disciplinas. Ameaçada de perder sua identidade, a História necessita questionar seus postulados e os protagonistas desse projeto crítico buscam, nesse primeiro momento, elaborar uma “epistemologia de transição”. No entanto, como bem mostra Christian Delacroix, “a legitimidade científica passa pela legitimidade identitária, ela mesma conduzida pela comunidade institucionalmente encarregada da revista dos Annales”.11 Na ausência de um paradigma unificador, pelo momento, a continuidade se impõe pela recusa de polêmicas e pela negação da existência de crises.12 Nesse primeiro momento, os promotores do TC rejeitam outras alternativas de um discurso histórico, por exemplo, as teses de François Dosse, em A História em migalhas. Constatando a perda, por parte da disciplina, de uma identidade própria, em razão de seu esfacelamento, esse livro propõe uma reabilitação do acontecimento como uma especificidade própria à História. Do mesmo modo, os autores do TC evitam analisar duas propostas, julgadas insuficientes: a do “retorno à narrativa” de Lawrence Stone13 e a do “retorno à história política” de Marcel Gauchet. A primeira dessas propostas, que critica o mito da história científica, diagnosticada pela crise do “determinismo econômico e demográfico”, propõe o deslocamento da noção do grupo em direção ao indivíduo e do científico em direção ao literário. A segunda, fundamentada no constato de uma “mudança de paradigma”,14 caracterizada pelo “retorno da consciência” e da “parte explícita e consciente da ação”, preconiza uma história mais simbólica (exemplo, Os Lugares da Memória, de Pierre Nora), ao lado de uma “nova história política”.15 Sem dúvida, as propostas, de François Dosse, de Lawrence Stone, de Marcel Gauchet e da “nova história política” constituem alternativas historiográficas passíveis diante dos impasses da corrente dos Annales. Possibilitando atribuir uma maior identidade à disciplina, através do retorno a uma outra forma de temporalidade, elas sugerem a irredutibilidade da História em relação a outras disciplinas. Ora, a exploração de recursos teóricos exteriores à disciplina tornou-se prática corrente ao longo dos cinqüenta anos de hegemonia dos Annales. Apropriando-se da sociologia e da antropologia, em nome do déficit de cientificidade da história, os Annales não hesitaram em realizar uma “autonomia teórica”, apoderando-se da sociologia durkheimiana e da antropologia de Lévi-Strauss.16

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Ao lado das denúncias de excesso de interdisciplinaridade, a “guinada crítica” nesse primeiro momento reforça a sua “dupla recusa epistemológica”, ou seja, a redução lingüística da História e o excesso de cientificismo. Se as críticas ao modelo dos Annales são autorizadas, elas se fazem discretamente a partir da crítica da própria disciplina, em nome do excesso da “ilusão científica”, e não a partir de modelos historiográficos concorrentes. “O TC é o dispositivo encarregado de construir as condições de emergência de um novo modelo historiográfico estabilizado, com vocação de paradigma – no sentido de matriz disciplinaria – a partir do constato de crise da identidade da disciplina, evitando a confrontação direta com outros modelos historiográficos desqualificados, [e isso] em nome da legitimidade científica dos Annales”.17 Nesse primeiro editorial, o privilégio do tempo e da dimensão temporal dos fenômenos são creditados como sendo o único objeto específico da História. Os modelos de análise propostos, visando a romper com a “dupla recusa” (os “velhos dualismos” ficção/ciência), são de natureza distinta. Um primeiro, interno à disciplina, é feito sobre as escalas de análise e a micro-história, um segundo, externo, apresenta a teoria da auto-organização e a corrente do construtivismo social, um terceiro volta-se para o procedimento hermenêutico. Desde os anos 1950, Paul Ricoeur18 já havia assinalado as tensões inerentes à prática da disciplina, marcada, por um lado pela objetividade, necessária, de seu objeto e, por outro lado, pela inevitável subjetividade do seu historiador. A hermenêutica corresponderia, então, nesse momento de deslocamento de categorias de temporalidades (a curta duração, as descontinuidades, por exemplo) e de mutações da escrita histórica (a valorização do acontecimento e do presente), do início da década de 1980, a uma tentativa de se articular a explicação histórica à sua compreensão narrativa. Interrogando, então, “as diversas modalidades de fabricação e de percepção do acontecimento a partir de sua trama textual”, o historiador operaria um trabalho de luto de um passado, contribuindo para a atribuição de novos sentidos.19 Segundo os autores da “guinada crítica” (Bernard Lepetit e Jean-Yves Grenier), a hermenêutica permitiria servir de modelo de análise, rompendo, desse modo, com os procedimentos “simplificadores” da história serial, ou seja, com o excesso de realismo histórico, o de se coisificar categorias. O recurso à hermenêutica representaria a possibilidade de se liberar de uma “fossilização quantitativa do modelo “labroussiano”, dando margem a uma lógica de “série de interpretações”.20

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No início dos anos 1990, o TC propicia uma radicalização paradigmática, por parte de um pequeno grupo ligado aos Annales, provocando, do ponto de vista institucional, uma recomposição da equipe da direção da revista.21 Os artigos publicados nos Annales, no entanto, continuam exprimindo uma lógica de autonomia.

O PARADIGMA PRAGMÁTICO E INTERPRETATIVO NA “GUINADA CRÍTICA” Se o paradigma estruturalista (dos anos 1950 à metade dos anos 1970), exprimindo pensamentos de “suspeita” e de estratégia, descentralizou o sujeito para melhor desvendar a idéia de uma verdade científica, o paradigma dos anos 1990 reintroduziu não um sujeito transparente e soberano, mas a noção da consciência e das ações capazes de explicar a consciência dos atores. Os trabalhos da pragmática e do cognitivismo (vindos dos Estados Unidos) inspiram, então, esse novo modelo teórico que, abandonando as referências ao inconsciente e às infra-estruturas, reinveste as Ciências Humanas. Um segundo momento do TC (nov./dez. de 1989) marca a “conversão pragmática dos Annales”, radicalizando, desse modo, o paradigma (pragmático e interpretativo) dos anos 1990. “O motor dessa conversão é essencialmente o investimento de dois modelos teóricos, [já mencionados], o da sociologia das “cidades – dormitórios” de Luc Boltanski e Laurent Thévenot e o da economia das convenções”.22 Esses estudos evidenciam a importância concedida à ação e à interpretação, a partir de uma pesquisa sobre a pluralidade de conjuntos habitacionais (cités), em que se encontra “diferentes mundos de pertença”, no interior do qual o homem é pluralizado. O estudo evidencia a impossibilidade de qualquer reducionismo monocausal.23 Esse modelo de análise sociológica serve, segundo o TC, de inspiração para as futuras análises históricas. Face ao ecletismo da comunidade histórica, nesse início da década de 1990, o TC reitera o desejo de defender uma identidade profissional e de construir uma nova matriz disciplinar.24 Uma série de questões metodológicas, tais como a objetividade, o realismo e a verdade, impõe-se aos promotores do TC como condição possível de “cristalização de um novo paradigma”. O relativismo (os trabalhos de Hayden White) e os interesses em jogo relativistas do construtivismo25 são rejeitados como uma impossibilidade de se atingir um conhecimento científico do passado.

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Convém salientar que a produção de teses revisionistas ou negativistas (por exemplo, sobre o Holocausto) na França nos anos 1980, abrindo caminho a falsificações, interdita toda forma de relativismo histórico e abre espaço para a valorização da questão da objetividade.26 O debate historiográfico, no início dos anos 1990, mobiliza alguns historiadores fora dos Annales, Roger Chartier, Pierre Nora, Pierre VidalNaquet,27 embora exprimindo posições diversas, atestam a necessidade de uma renovação historiográfica que, segundo eles, passaria pela reconfiguração da historicidade. O tema do ator, o método hermenêutico, a prática da micro-história prefiguram, assim, o dispositivo desse segundo TC pelo viés da historicidade. “É a noção de ‘regime de historicidade’ entendida como convenção que regula a relação de toda sociedade com o seu passado, que dá coerência a esse espaço de ‘tradutibilidade’ e que assinala essa transformação”.28 O realismo restrito (contra o relativismo) e a historicidade do objeto possibilitariam, então, uma identidade teórica apropriada à disciplina História. As mutações intensas que afetam as Ciências Humanas nos anos 1980 (o final do marxismo, do estruturalismo e do funcionalismo), levando-as a um “processo de humanização”, conduzem a História a operar uma “conversão pragmática”. Isso significa a revalorização, pelos historiadores, dos atores, o que se traduz por uma reconfiguração mesmo do tempo histórico. A curta duração e o acontecimento, deixados de lado, durante décadas, pelos Annales, retornam então em força nas análises históricas, permitindo melhor situar a noção da ação. A conversão da disciplina à pragmática, possibilitando abordar a ação dos atores do passado, reabilita a noção de apropriação, de representação e de rastros. Desse modo, os historiadores abordam os modelos temporais dos atores do passado, dialogando com a Filosofia e pedindo emprestado o modelo da Sociologia da ação. Em síntese, a “guinada crítica” abre possibilidades de um espaço teórico próprio à História. “Essa parte explícita e refletida da ação, que retornou em primeiro plano, tem por efeito situar a identidade histórica no centro do quadro de um triplo objeto privilegiado para o historiador: uma história política, conceitual e simbólica renovada”.29 Marcada pela pluralidade de interpretações, a história francesa, na década de 1990, passa a ser dominada pelas novas correntes da história política, da história conceitual e da história simbólica . A exigência de se pensar a historicidade e a necessidade de definir a operação histórica, a partir da “centralidade do humano, do ator e da ação situada”

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(François Dosse) conduz, então, os historiadores a novas interrogações, em termos conceituais e filosóficos. A crise do causal e o princípio da subdeterminação, demonstrados na teoria física por Pierre Duhem,30 assim como a noção de “irreduções” de Bruno Latour,31 influenciam novas pesquisas na área das Ciências Humanas. Abrindo pistas para a apreensão do real, a partir da sua complexidade; o princípio de indeterminação, portanto, permite múltiplas descrições. Liberada da falsa alternativa entre cientificidade (esquemas causais) e literatura (“derivas ficcionais”), a disciplina História redescobre, nos trabalhos de autores como Michel de Certeau, Paul Ricoeur e de Reinhard Koselleck,32 por exemplo, novas possibilidades de se pensar o regime de historicidade. Desde meados da década de 1970, Michel de Certeau apreendia a operação histórica como uma operação complexa, um misto de ciência e de ficção. Lugar particular de enunciação, o discurso histórico seria uma prática institucionalizada, tributária de uma comunidade de pesquisadores e correlativa à estrutura da sociedade que “traça as condições de um dizer”. Túmulo do passado, o discurso historiográfico teria por função honrar os mortos e participar da eliminação do passado. “Esse revisitar histórico teria, então, por função a abertura ao presente de um espaço próprio para marcar o passado, redistribuindo um espaço dos possíveis”.33 Os três volumes de O Tempo e a Narrativa, de Paul Ricoeur desenvolvem uma vasta reflexão sobre a temporalidade histórica. Intermediária entre um tempo cosmológico, demonstrado por Aristóteles e por Kant, e um tempo íntimo (ou psíquico), presente nos trabalhos de Santo Agostinho e de Husserl, o tempo histórico equivaleria à sua própria narrativa. Entre esses dois tempos encontra-se, então, o tempo histórico, ou seja, o tempo narrado pelos historiadores. Caracterizando-se pela tensão, própria a esse tempo, o discurso histórico situa-se entre a ambição da verdade e a identidade narrativa. Partindo de uma leitura crítica de Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II, de Fernand Braudel, Paul Ricoeur detecta a “estrutura de transição” que assegura a coerência do conjunto dessa obra. A ambição de uma história total e a “história imóvel”, resultados de cortes epistemológicos operados pelos Annales, tinham, na verdade, por principal alvo a escola metódica. A cientificidade de um discurso histórico, renovado pelas Ciências Sociais, aparecem, assim, como um meio de se liberar do sujeito, do acontecimento e de sua narrativa. Entretanto, como mostra Ricoeur, se Braudel denunciou a curta duração exaltando o tempo longo, as regras da escrita histórica (a narrativa pela mise en intrigue) o impediram de fazer uma

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obra sociológica. Enquanto historiador, Braudel continuava tributário de formas retóricas próprias à disciplina História. “O mediterrâneo figura um quase-personagem que conhece as últimas horas de glória no século XVI antes de assistirmos a um deslocamento em direção ao Atlântico e à América, momento em que, ao mesmo tempo, o mediterrâneo abandona a grande história”,34 afirma Ricoeur. A narração constitui, portanto, uma mediação indispensável em toda a escrita da História. Entre os historiadores que pensaram as categorias de historicidade, Reinhart Koselleck, redescoberto na França graças aos trabalhos de Paul Ricoeur, articula o tempo passado à narração do historiador como possibilidade de associar o “espaço de experiência” e o “horizonte de expectativa”. Desse modo, “a narração se desloca entre um espaço de experiência que evoca a multiplicidade dos percursos possíveis e um horizonte de expectativa que define um futuro transformado em presente, não redutível a uma simples conseqüência da experiência presente”.35 Essa hermenêutica do tempo histórico volta-se para um fazer humano, um agir sobre o presente e um dialogar entre gerações. A perspectiva de abertura sobre o passado visa a “tornar nossas expectativas mais determinadas e nossa experiência mais indeterminada”.36 Se a construção de uma hermenêutica histórica permite romper com partes das tradições históricas, sobretudo, com as que consideram o passado um tempo morto e a objetivação do historiador, excluindo sua subjetividade, ela demonstra o caráter específico da História: reconstrução do passado. Reaberta em função de sua escrita, ou seja, de suas diferentes fases e atualizações, a História se reapropria do passado e, em geral, de suas representações. No início dos anos 2000, a epistemologia histórica, na França, fundamenta-se, portanto, através da valorização das noções de historicidade, de ruptura, de sujeito, a partir de um modelo hermenêutico que explicita o sentido do acontecimento. A esse propósito, Paul Ricoeur propõe a distinção de três níveis de abordagem do acontecimento: 1 – o acontecimento infra-significativo; 2 – o limite do non-événementiel; 3 – a emergência dos acontecimentos supra-significativos. O primeiro correspondendo às orientações da escola metódica , a do estabelecimento crítico das fontes, descreve “o que acontece”. O segundo, próximo às orientações dos Annales, insere o acontecimento no interior de esquemas interpretativos, articulados às regularidades das leis. O terceiro vê o acontecimento como parte integrante de uma construção narrativa constitutiva de identidade fundadora, por exemplo, a Tomada da Bastilha, e a negativa, Auschwitz.37

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Centrada em direção do acontecimento e do presente, a escrita atual da história contribui para que seu próprio sentido sofra mutações. A História é recriada e o historiador torna-se esse mediador do sentido. “Ela se realiza no trabalho da hermenêutica que lê o real como uma escrita cujo sentido se desloca ao fio do tempo em função de suas novas fases de atualização”.38 Dentro dessas novas perspectivas abertas à temporalidade, as noções de rupturas e de descontinuidade, tributárias, em grande parte, dos trabalhos de Michel Foucault (que mostrou as quebras dos valores instauradas pelos epistemes), reaparecem na apreensão da noção de acontecimento. Aliás, o “retorno ao acontecimento”, através da produção da mídia, já havia merecido a atenção de Pierre Nora, em 1972, quando publica Fazer a história. Em pleno apogeu dos Annales, Nora preconiza esse retorno como condição necessária, por parte do historiador, da desconstrução do próprio acontecimento. Ora, os acontecimentos só se revelam, como tais, através de rastros deixados, sejam eles discursivos ou não. Um exemplo interessante de interrogação desses traços na busca de um sentido do acontecimento encontra-se no livro de Georges Duby, O Domingo de Bouvines,39 em que esse autor analisa a memória dessa famosa batalha. O acontecimento em si, ocorrido em 1214, só pôde ser preservado graças a seu enquadramento na consciência coletiva. “As metamorfoses dessa memória tornam então objeto da história do mesmo modo que a efetividade do acontecimento nos seus estreitos limites temporais. O estudo dos jogos da memória e do esquecimento dos rastros desvenda-se como ‘a percepção do fato vivido se propaga em ondas sucessivas’”.40 A fixação e a cristalização do acontecimento pode, igualmente, passar pela sua apelação discursiva. Em um estudo sobre a imigração francesa e a construção da identidade nacional, Gerard Noiriel41 mostra como os fenômenos sociais podem existir através, não da sua visibilidade, mas da sua nomeação. Ora, no século 19, a imigração já existia na prática, embora não fosse nomeada como tal. A relação entre linguagem e história, explorada no momento atual, é problematizada pelas correntes interacionistas, pela etnometodologia (que investiga a relação entre as explicações científicas e aquelas fornecidas pelos atores) e pela abordagem hermenêutica. “Esse deslocamento da événementialité em direção de seu rastro e de seus herdeiros suscitou um verdadeiro retorno da disciplina histórica sobre ela mesma, no interior do que poderíamos qualificar de círculo hermenêutico ou de guinada historiográfica”.42 Isso implica a interrogação sobre as diversas modalidades da “fabricação e da percepção do acontecimento a partir de sua trama tex-

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tual”. Na França, essa tendência à revisitação do passado pela escrita da história acompanha-se de um trabalho de produção de uma memória nacional.43

AS MÚLTIPLAS ABORDAGENS: REPRESENTAÇÕES, SIMBOLISMO, MEMÓRIA Alguns conceitos, tais como o de representação,44 o de apropriação e o de simbolismo, restituídos às novas escalas de análises, servem de referência às abordagens históricas atuais. Para melhor marcar a sua distância em relação às “mentalidades” dos Annales, Roger Chartier (em um número consagrado ao TC) concede à noção de representação um papel predominante na pluralização da construção cultural. Restituído à dinâmica da luta de representação, ao que se encontra em jogo nas estratégias simbólicas em confrontação, o conceito de representação pode ser de extrema eficácia se “concebido a partir de sua capacidade em articular o espaço dos possíveis no interior do qual se inscrevem as produções, as decisões, as intenções explícitas”.45 Nesse processo de construção de sentido resultante do encontro entre o “mundo do texto” e o “mundo dos leitores”, Roger Chartier propõe levar em conta diversas formas de apropriação, deixando de lado o recorte unicamente dualista, como o de dominante/dominados. A valorização da concepção de apropriação deve-se, em grande parte, à redescoberta de Norbert Elias, ao estudo de Michel de Certeau sobre as práticas cotidianas e a Michel Foucault, quando ele se interroga (Vigiar e punir) sobre as práticas não discursivas através do discurso. Mas, como afirma Chartier, a noção de apropriação não deve corresponder a uma simples automatização de equivalências generalizadas em relação às categorias sociais; ao contrário, ela deve estar ligada às práticas. Entre a parte explícita e a parte inconsciente das representações, um outro campo de investigação é aberto aos historiadores, o do simbolismo. “Considerar que é possível ter acesso ao passado implica pensar que existe, para além das variações, das mudanças e das rupturas entre a cultura de hoje e a de ontem, alguma coisa que permite uma possível comunicação, logo uma “humanidade comum”, o que permite, por exemplo, reencontrar o sentido da beleza em Platão ou qualquer outro valor cultural de uma sociedade que não é mais a nossa”.46 Assim, é dentro de uma perspectiva hermenêutica que o historiador estabelece a ligação entre a compreensão do passado e a intersubjetividade do autor em relação ao outro, distanciado no tempo.47 Dentro desse

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paradigma subjetivista, a noção de intencionalidade e de experiência vivida passam a inspirar essa nova história social. Preconizada por Pierre Nora nos anos 1980, os “lugares da memória” abriram pistas para novas abordagens da história, rompendo com a concepção ingênua, admitida pela escola metódica, de reflexo e de automatismo entre memória nacional e Estado-nação. Com o final do modelo dos Annales, a atenção dos historiadores em relação à questão do tempo possibilita uma reabilitação da categoria da memória, como equivalente à idéia da presença de uma ausência. Liberada dos esquemas durkeimianos de Halbwachs, que dissociavam memória e história, os novos estudos nessa área acentuam a noção do rastro como um laço indizível entre o passado e o presente. A partir desse rastro deixado na memória coletiva, novos objetos despontam no território do historiador: emblemas, símbolos e homens, “não mais os determinantes, mas seus efeitos, não mais as ações memorizadas nem mesmo comemoradas, mas o rastro de suas ações e o jogo dessas comemorações, não os acontecimentos por eles-mesmos, mas sua construção no tempo, o apagamento e o ressurgimento de suas significações; não o passado tal como ele se passou, mas seus reempregos permanentes, seus usos e desusos, sua pregnância sobre os presentes sucessivos, não a tradição, mas a maneira pela qual ela se constituiu e foi transmitida”.48 Essa problematização da memória pela história, ou seja, a própria historicidade da memória, atravessa, segundo Ricoeur, o tempo cósmico e o tempo vivido. “A distância temporal não é mais, então, um empecilho mas um trunfo para uma apropriação de diversas estratificações de sentido de acontecimentos passados transformados em acontecimentos ‘suprasignificados’”.49 O caráter irredutível do acontecimento e o retorno da memória reforçam a concepção de descontinuidade da história.

A PROBLEMATIZAÇÃO DA MEMÓRIA PELA HISTÓRIA50 O objeto memória, constitutivo do trabalho filosófico de Paul Ricoeur, enquadra-se no chamado “momento memorial” que conhece a França, marcado pelas “rememorações” subjetivas e pelas comemorações sociais. Desse modo, suas análises mais recentes (La mémoire, l’histoire et l’oubli51) contribuem para uma melhor apreensão desses dois fenômenos (“rememoração” e comemoração) que, nesses tempos de crise e de incertezas do presente e do futuro, vêm marcando a historiografia francesa.

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Inspirando-se em análises filosófica (Agostinho) e psicanalítica (Freud), Ricoeur questiona situações contrastadas, presentes, muitas vezes, na prática dos analistas da memória e que dizem respeito ao trabalho da lembrança e do luto. Confrontadas pelos historiadores do tempo presente, essas situações traduzem, em geral, os traumatismos da memória (individual e coletiva) em relação a determinados acontecimentos históricos. A primeira dificuldade, encontrada pelo historiador da memória, concerne às situações de recalque e/ou do retorno do recalcado. Assim, da escassez da memória sobre um momento sombrio da história nacional (por exemplo, o governo de Vichy durante a Ocupação alemã – 1940/1944), passa-se a um excesso de memória. Os múltiplos trabalhos, publicados nessas duas últimas décadas sobre esse acontecimento, atestam esse deslocamento. Em outras palavras, esse “passado que não quer passar” (título do livro de Henri Rousso sobre o governo de Vichy), torna-se, então, uma obsessão historiográfica do presente. A segunda dificuldade refere-se, ao contrário, à negação dos momentos mais traumáticos do passado, sintoma de patologias coletivas ou individuais da memória e que se traduzem não pelo esquecimento, mas pelo silêncio.52 Essa situação se manifestou, notadamente, em relação à shoah (genocídio dos judeus) e à difícil transmissão, por parte dos seus sobreviventes, da narrativa desse acontecimento. Segundo Freud,53 o impedimento à tendência compulsiva de repetição de um traumatismo, por parte de um paciente, é feito por meio de um “trabalho de lembrança”, cuja cura se dá pelo ato de transferência. Ao contrário, o “trabalho de luto” se opõe à tendência autodestrutiva da melancolia; esse “esquecimento” consiste no desprendimento de um objeto perdido (de amor ou de ódio). Na apreensão da relação da memória à história, Ricoeur detecta a verdade como o elemento comum entre ambas. Segundo esse autor, a busca do passado (característica da anamnèse aristoteliana), visando à exatidão, à fidelidade, à verdade, tende a invalidar a idéia, falsamente admitida na tradição filosófica, da equivalência da memória à imaginação. Se essa última se identifica com o irreal e com a ficção, a memória, apesar de sua fragilidade e de seus enganos, visa, ao contrário, à fidelidade e à verdade. A História reencontra, então, a memória nessa sua ambição da verdade. A transmissão da memória à história processa-se, segundo Ricoeur, pelo “mesmo médium lingüístico da narrativa, o qual organiza, met en intrigue, tanto as lembranças pessoais como as lembranças coletivas”.54 No entanto,

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em razão mesmo de sua função crítica, cabe à história remediar e corrigir, ao mesmo tempo, as fragilidades e os abusos da memória.55 A fragilidade da memória (individual e/ou coletiva) nas histórias nacionais é passível de leituras distintas. Se em determinados países, como a França, o excesso de memória, revelado pelo fenômeno das numerosas comemorações de datas históricas e pelas múltiplas “rememorações” individuais (as narrativas de vida), pode dar margem a abusos, em contrapartida, em países totalitários, a insuficiência da memória, em razão de sua própria manipulação política, propicia utilizações ideológicas do presente e do futuro desse mesmo passado. Em ambos os casos, os abusos da memória são perceptíveis. Ao lado de um trabalho da lembrança, necessário à preservação da identidade nacional, um trabalho de esquecimento, visando a um justo equilíbrio da distância temporal, torna-se, portanto, segundo Ricoeur, inevitável. Desse modo, a História se confronta, por um lado com a fragilidade afetiva da memória, por outro com seus abusos vinculados às manipulações da História. A esse propósito, Tzvetan Todorov, em seu livro Os abusos da memória, insiste sobre a indissociabilidade da memória a um trabalho de esquecimento. “A memória não se opõe absolutamente ao esquecimento. Os dois termos contrastantes são o apagamento (o esquecimento) e a conservação; a memória é, sempre e necessariamente, uma interação entre os dois”.56 Os abusos da memória estariam ligados diretamente a perturbações e a feridas da identidade dos povos; em outras palavras às crises identitárias (inseguranças e medo das diferenças). Esses abusos remetem à confrontação da identidade em relação ao tempo e ao outro. Ao lado dessas “feridas coletivas”, em grande parte simbólicas, encontra-se a violência efetiva, cuja presença se manifesta na fundação das identidades, principalmente coletivas. Essas feridas são assimiladas, na maioria das vezes, a guerras, uma vez que as comunidades históricas se constituíram, em grande parte, por meio de atos violentos (por exemplo, a colonização, a descolonização de alguns países africanos e, por que não dizer, a Descoberta da América, seguida pelos massacres indígenas). Os acontecimentos fundadores de uma identidade nacional, objeto mesmo de celebrações, pertencem, geralmente, a essa categoria de ferida coletiva. Associados à manipulação e à instrumentalização da lembrança, os abusos da memória se traduzem, lembra Ricoeur, pela política abusiva das comemorações das grandes datas, caracterizadas tanto pelas glórias como pelas humilhações.57

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Em síntese, podemos constatar que se, as mutações internas às disciplinas e externas à conjuntura permitem ilustrar o reviramento dos paradigmas ocorridos na França nos anos 1990, a produção historiográfica, quanto a ela, marcada por esse novo modelo, continua exprimindo uma enorme diversidade. Da história demográfica à história das sensibilidades,58 passando pela história das empresas, os pesquisadores, suscetíveis às mutações de modelos e à l’air du temps, praticam diferentes métodos e adotam diversas escalas de análises. Redescobrindo a sua parte humana, intrínsecas às mesmas, as Ciências Humanas conhecem, nessa última década, uma renovação de modelos, de métodos e de objetos que migraram de um domínio a outro. No campo da História, se o final do modelo hegemônico dos Annales abre espaços teóricos para uma necessária discussão sobre o estatuto mesmo da História, a partir de um diálogo com filósofos que pensaram a historicidade, um tal diálogo parece restrito a uma fração da comunidade histórica. Lembramos que a guinada crítica mobilizou um número ínfimo de protagonistas, pertencentes à instituições de pesquisa, e, portanto, em contato mais direto com as Ciências Humanas. Embora as questões, tais como a narrativa, os modos da escrita, a subjetividade do historiador, a argumentação, ao lado da objetividade, requisito para todo conhecimento histórico, passam a constituir referenciais de uma epistemologia, as questões metodológicas, tais como a exploração das fontes, tendem ainda a priorizar a pesquisa histórica. A questão da objetividade da História permanece de grande atualidade nas reflexões historiográficas. Não se trata mais de se conceber uma pesquisa histórica objetiva, tal como a praticada pelo cientificismo dos anos 1950 – 1960 (sob a influência do marxismo ou do estruturalismo), pretendendo destacar “leis” da História e defender um conceito de verdade histórica baseada na das ciências naturais. Na opinião de Gerard Noiriel, “os historiadores deveriam abandonar as doutrinas epistemológicas que se interessam unicamente ao objeto das ciências (como o positivismo e a hermenêutica) para se voltarem em direção das correntes filosóficas (como o pragmatismo) que apreendem o conhecimento científico como um conjunto das práticas sociais”.59 Contra os ataques relativistas e as teses negativistas, o historiador, segundo esse autor, se pretende atingir a objetividade, deve submeter seus trabalhos ao olhar crítico de seus pares.60 Sofrendo, então, influências do pragmatismo e do cognitivismo, vindo dos Estados Unidos, a historiografia francesa, que abandona as estruturas e a longa duração, redireciona seus enfoques sobre novas abordagens: o aconteci-

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mento, o tempo curto. A hermenêutica desponta no horizonte dos historiadores como possibilidade de uma melhor interrogação entre passado e presente, por meio da compreensão explicativa. Revelando, assim, o caráter da operação histórica, ou seja, o de apropriação e de reconstrução dos acontecimentos, a hermenêutica fundamenta a chamada guinada historiográfica. No entanto, o método hermenêutico, remetendo aos círculos hermenêuticos, impõe, como meio de se evitar todo reducionismo, um mínimo de conhecimento, por parte dos historiadores, das obras de Ricoeur e de Gadamer. Ora, somente uma pequena fração de historiadores parece capacitada a transitar facilmente de uma disciplina à outra. Na perspectiva do pragmatismo, a sociedade deixa de ser vista dentro de uma dimensão de produção (econômica e cultural), passando a ser definida como uma categoria de práticas sociais, produto da interação dos atores. Novas correntes historiográficas, vindas do estrangeiro, influenciam a produção francesa, atualmente dominada pela história política, pela história cultural renovadas, mas também voltada para outras áreas de pesquisas, como a história social da memória, a história das sensibilidades, a história intelectual. Mas, como adverte François Dosse, se, no momento atual, a História é suscetível de interpretações plurais (devido aos diversos mecanismos de apropriação e às múltiplas mediações), ela jamais poderá se reduzir “a um puzzle pósmoderno puramente eclético”. A razão para uma tal recusa residiria no constato mesmo da impossibilidade de uma dissociação entre a memória e a sua função de identidade e de fidelidade, e a história, em sua busca de verdade”.61

NOTAS * Professora Adjunta da UFPR. 1 Sob o título de Tournant critique, ou seja, de “guinada crítica”, a revista dos Annales publica a partir dos números de janeiro/fevereiro de 1988, (essa expressão só aparece no número de março/abril de 1988), novembro/dezembro de 1989, novembro/dezembro de 1990, novembro/dezembro de 1993, janeiro/fevereiro de 1994, março/abril de 1994, análises críticas sobre a historiografia francesa. O verdadeiro número da guinada crítica é, no entanto, o de novembro/dezembro de 1989. 2 Os recentes processos judiciais de personalidades políticas (Maurice Papon, Paul Touvier, Klaus Barbie), envolvidos em crimes durante a Ocupação alemã, mobilizou os historiadores do tempo presente. Convocados a depor na pretória, alguns entre eles recusaram o convite, em nome de sua própria função. 3 CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1995. RANCIÈRE, Jacques. Les mots de l’histoire: essai de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992. RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983, 1984, 1985. 3 v.

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4 Ver DOSSE, François. L’histoire. Paris: Armand Collin, 2000. p. 54. 5 Bernard Lepetit, membro do comitê de direção da revista e autor, junto com JeanYves Grenier, dos números: janeiro/fevereiro de 1988 e novembro/dezembro de 1989, foi o iniciador da guinada pragmática da revista. 6 Ver DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Les Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, 1995. 7 Christian Delacroix retém, para a sua análise, dois tipos de textos: 1 – os textos de apresentação dos números dos Annales de janeiro/fevereiro de 1988, março/abril de 1988, novembro/dezembro de 1989, novembro/dezembro de 1990, novembro/dezembro de 1993, janeiro/fevereiro de 1994, março/abril de 1994; 2 – alguns textos pessoais, não necessariamente publicados nos Annales, de Bernard Lepetit, de André Bourguière, de Jean-Yves Grénier, de Jacques Revel, membros do comitê de direção da revista. 8 DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Les Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 88, 1995. 9 Sob a designação de “economia das convenções”, um grupo de pesquisadores (economistas, sociólogos e filósofos da ciência) propõe um modelo geral de interpretação das relações sociais. Eles organizam uma publicação comum (L’économie des conventions. Revue économique, v. 40, n. 2, mars 1989) tendo por objetivo refletir sobre as regulações das economias nacionais e suas regras, sobre o ressurgimento do “institucionalismo”, a partir de um grupo, de uma empresa, de uma coletividade. Ver DOSSE, François. L’empire du sens: l’humanisation des sciences humaines. Paris: La Découverte, 1995. p. 65, 66. 10 DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Lês Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 88, 1995. 11 Ibid. 12 Ibid., p. 89. 13 STONE, Lawrence. The revival of narrative. Reflections on a new old history. Past and Present, n. 85, 1979. Esse texto foi traduzido em francês: Retour au récit, réfléxions sur une nouvelle vieille histoire. Le Débat, n. 4, 1980. 14 Ver GAUCHET, Marcel. Le changement de paradigmes en sciences sociales? Le Débat, n. 50, 1988. 15 Ver igualmente, RËMOND, René (Dir.). Pour une histoire politique. Paris: Seuil, 1988. 16 DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Lês Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 90, 91, 1995. 17 Ibid., p. 92. 18 Ver RICOEUR, Paul. Histoire et vérité. Paris: Seuil, 1952. Sobre a hermenêutica, ver Du Texte à l’action: essais d’hermenéutique. Paris: Esprit: Seuil, 1986. II. 19 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 17.

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20 Ibid., p. 95. 21 Em 1994, o comitê de direção da revista integra Laurent Thévenot e André Orléan. Jean-Yves Grenier é nomeado secretário da redação e Bernard Lepetit reassume o comitê de direção. (DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Lês Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 99, 1995.) 22 DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Les Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 98, 1995. Ver BOLTANSKI, L.; THËVENOT, L. De la justification: Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991. 23 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 3. 24 DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Les Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 99, 1995. 25 A abordagem construtivista parte da idéia de uma edificação permanente do mundo pelos indivíduos através de suas ações e reações recíprocas, através de suas representações que orientam suas condutas e suas ações. No entanto, “o construtivismo epistemológico não deve ser confundido com as modalidades simbólicas de existência dos objetos da pesquisa histórica (nível ontológico)”(DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Les Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 93, 1995). 26 Ver NOIRIEL, Gerard. L’historien et l’objectivité. Sciences Humaines – L’histoire aujourd’hui, n. 18, sept./oct. 1997. 27 Ver CHARTIER, Roger. Le temps de doute. Le Monde, 18 mars 1993; NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de la mémoire. Paris: Gallimard, 1993. t. III; VIDAL-NAQUET, P. Les assassins de la mémoire. Paris: La Découverte, 1991. 28 DELACROIX, Christian. La falaise et le rivage. Histoire du “tournant critique”. Espaces Temps (Les Cahiers), “Le temps réfléchi”. L’histoire au risqué des historiens, n. 59/60/61, p. 107, 1995. 29 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 2. 30 DUHEM, P. La théorie physique, son objet, sa structure. Paris: Vrin, 1981. 31 LATOUR, B. Irréductions. In: Les microbes, guerre et paix. Paris: Métailié, 1984. 32 KOSELLECK, R. Le futur passé. Paris: EHESS, 1990. (trad.) 33 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 13. 34 Ibid., p. 14. 35 Ibid. 36 RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1985. t. 3. Apud DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 14.

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37 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 16. 38 Ibid., p. 14. 39 DUBY, G. Le dimanche de Bouvines. Paris: Gallimard, 1975. 40 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 11. 41 NOIRIEL, G. Le creuset français, l’histoire de l’immigration XIX, XX siècle. Paris: Seuil, 1988. 42 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 17. 43 Ver NORA, Pierre (Dir.). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984-1993. 6 v. 44 Ver RODRIGUES DA SILVA, H. A história como “a representação do passado” – a nova abordagem da historiografia francesa. In: CARDOSO, Ciro F.; MALERBA, Jurandir (Org.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 45 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 21. 46 Ibid. 47 Ibid. 48 NORA, Pierre. Les lieux de la mémoire. Paris: Gallimard, 1993. t. III, v. I, p. 24. 49 DOSSE, François. Le double tournant hermenéutique et pragmatique dans les etudes historiques et les sciences socials en France. Texto da Conferência proferida na UFPR em 17 de abril de 2001, p. 23. 50 Ver RODRIGUES DA SILVA, H. Rememorações/comemorações – as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, n. 44, dez. 2002. 51 Paris: Seuil, 2000. 52 Ver POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, 1989/3. 53 FREUD, Sigmund. Souvenir, répétition, perlaboration” (1914). In: ______. De la technique psychanalytique. Paris: PUF, 1953; Deuil et mélancolie (1917). In: FREUD, Sigmund. Métapsychologie. Paris: Gallimard, 1952. 54 RICOEUR, Paul. Entre mémoire et histoire. Projet, n. 248, p. 13, 1996. 55 Ibid., p. 10. 56 TODOROV, Tzvetan. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995. p. 14. 57 RICOEUR, Paul. Entre mémoire et histoire. Projet, n. 248, p. 12, 1996. 58 Ver RODRIGUES DA SILVA, H. A história como “a representação do passado” – a nova abordagem da historiografia francesa. In: CARDOSO, Ciro F.; MALERBA, Jurandir (Org.). Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. p. 88, 89, 90.

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59 NOIRIEL, Gerard. L’historien et l’objectivité. Sciences Humaines – L’histoire aujourd’hui, n. 19, 20, sept./oct. 1997. 60 Ibid., p. 18. 61 DOSSE, F. L’histoire. Paris: Armand Colin, 2000. p. 198.

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HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA Francisco J. C. Falcon* Marcus Alexandre Motta ** com a colaboração da Prof.ª Ms. Ana Luiza Marques***

APRESENTAÇÃO Este capítulo sobre historiografia contemporânea portuguesa não teria sido possível sem a decisiva parceria de Marcus Alexandre Motta e a colaboração de Ana Luiza Marques. Encarrega-se o primeiro da elaboração de pequenas análises baseadas em obra ou texto expressivo de cada um dos historiadores por nós selecionados; coube à segunda sintetizar a contribuição de Antônio Sérgio no âmbito da vida intelectual lusa, até os meados do século 20; bem como apresentar, de forma distinta, em grandes traços, a historiografia anterior a 1974. Tomamos como ponto de inflexão a Revolução dos Cravos, pois aí situamos os começos da historiografia contemporânea portuguesa. Nossas limitações, muitas, sem dúvida, a começar pelos limites materiais estabelecidos pelos editores, impuseram escolhas bastante difíceis que não nos permitem fazer justiça a todos aqueles historiadores que têm contribuído de modo significativo, nas últimas décadas, para os grandes avanços da produção historiográfica em Portugal. Nossas mais sinceras desculpas. Na organização do capítulo, optamos por distribuir os assuntos da seguinte forma: I– António Sérgio; II – A historiografia anterior a 1974; III– A historiografia contemporânea.

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I. ANTÔNIO SÉRGIO E A HISTÓRIA CULTURAL EM PORTUGAL Prof.ª Ms. Ana Luiza Marques

Antônio Sérgio de Sousa (1883-1969), filho de duas gerações de administradores coloniais, teve formação técnica na Escola Naval. Apesar da carreira promissora, demite-se da Marinha em 1912. A partir de então, passa a administrar a tipografia do sogro. Completa seu sustento com traduções, aulas e adaptações de clássicos da literatura européia para roteiros de cinema. Simultaneamente, publica seus ensaios e contribui em obras coletivas como revistas e enciclopédias. Participa ativamente da vida política portuguesa. Já nos primeiros anos de República em Portugal, desentende-se com os governistas devido à sua concepção de democracia e liberalismo econômico. Posteriormente, a discordância aumentará e Antônio Sérgio será preso e exilado por duas vezes. Antes e durante os períodos de exílio político, com Jaime Cortesão, Raul Proença e outros, contribui na Renascença Portuguesa e no Grupo da Biblioteca Nacional. Interessa-lhe a finalidade da Renascença: “restituir Portugal à consciência dos seus valores espirituais próprios; e promover em todo o país [...] uma profunda ação cultural, junto de todas as camadas sociais”.1 Nessa época, também escreve na revista Lusitânia e funda a Pela Grei, precursora da Seara Nova. Além do que, tem seu nome cogitado (e não aceito) para a cadeira de pedagogia da Universidade de Lisboa; consoante desavenças e queixas, administra a pasta de Instrução Pública por dois meses no final de 1923; e, no exílio na Espanha, leciona história e literatura portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela. A influência de Antônio Sérgio na historiografia portuguesa acontece através de obras dedicadas à cultura em Portugal. Como salienta Vitorino Magalhães Godinho,2 suas hipóteses sobre a história de Portugal não contribuem em termos documentais ou factuais, mas pela exigência de uma história desmistificadora de fatos, “a resolver os problemas fora de carris obsoletos”.3 Destaca-se aqui a Introdução histórica4 escrita para o Guia de Portugal organizado na Biblioteca Nacional de Lisboa. O que vem a ser a edição espanhola História de Portugal, em 1929, e, posteriormente, a Breve Interpretação da História de Portugal5. Onde se lê que os “Descobrimentos” é a “obra que nos caracteriza a nós, Portugueses, como um povo realmente histórico”.6

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Na condição de “pedagogista”, quer restituir os portugueses a seus “valores espirituais próprios” por alinhamento à tradição dos “dias do Quinhentismo”. Século em que “Portugal acompanha galhardamente o melhor espírito europeu”.7 Importa, contudo, menos o fato que seu legado. De modo tal que a consciência do feito vai se converter em ter antes na consciência a cultura dos Descobrimentos. Nas primeiras décadas do século 20, muitos historiadores se dedicaram ao estudo das navegações e dos Descobrimentos portugueses, a singularidade da obra de Antônio Sérgio está em sua adequação ao que reconhece ser a cultura em Portugal a partir do quinhentismo. O que pode ser notado tanto nos livros dedicados à história de Portugal, quanto na obra Ensaios. Antônio Sérgio reconhece no legado do quinhentismo uma tradição de cultura que denomina “espírito crítico” ou crítica. Mediante a ânsia de adequar sua obra a tal cultura, escreve ensaios ou a crítica de fatos passados e presentes. Especula-se, a partir disso, que a crítica de fatos preconiza a escrita da história por evocação da reforma como outra vanguarda em Portugal. Os atos políticos, quer voltados para a sociedade, quer para a economia, constrangem a História. Isso porque, se “quinhentismo” e “espírito crítico” coincidem naquilo que fez dos portugueses “um povo realmente histórico”, a própria idéia de vanguarda passa a ditar futuro e passado. A idéia de vanguarda em Portugal vai, enfim, habilitar a escrita da história a se inteirar da tradição de cultura na atualidade. Os Ensaios e a história de Portugal se afeiçoam à condição histórica desse povo, que, como tal, não consegue abandonar a cultura palpável em obras e ações. Tal qual Camões sentencia o declínio da empresa marítima na epopéia, os estudos sociais e históricos, dedicados à divulgação da reforma social e política, julgam as ações presentes. Ocorre que nenhum dos estudos tem por meio senão a educação do povo em sua condição histórica. O reconhecimento da cultura legada dos Descobrimentos não implica resistência, mas, sim, adequação. Deslocada de sua posição adversa e resistente, a cultura em Portugal transforma-se em coisa crítica, ou melhor, a constante crítica das coisas. A historiografia ensaísta ou crítica adotada por Antônio Sérgio pratica a luta e o empenho político por mudanças no mundo. A intensidade política dessa historiografia pode ser melhor sentida na própria forma de escrita que escolhe: o ensaio. O que se define ora por forma literária que flerta com as demais formas, ora por crítica. Sendo ainda prova ou teste na engenharia, mas também a dinâmica de preparação da peça teatral. Talvez se opte por uma escrita de tão difícil definição porque mais importa sua aptidão para o objeto, ou seja, a cultura em Portugal. As obras historiográficas ensaístas retiram sua

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plausibilidade e motivação da cultura que se identificam. Por um lado, a necessidade de reforma se prova na idéia da vanguarda que habilita a escrita da história para a cultura; por outro, essa idéia só acontece como busca e descoberta. Fechada em si, por história e por futuro, a cultura critica e ensaia exaustivamente esta peça prometida: a vanguarda do mundo em Portugal.

II. HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA PRÉ-1974 SOB A TUTELA DO REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA Estou a ferir a memória. Sim, agora não deixo mais de fazê-lo. Aqueles livros devem estar ainda naquela Biblioteca; no suave tédio das estantes. Livros portugueses, cujos autores viveram sob ameaça da sombria ignorância do Estado Novo. Nunca passei por eles no conforto das prateleiras; tive-os nas mãos e os estudei. Era apenas um graduando, sem recursos, cheio de desejo de compreender essa intricada interdependência, hoje esquecida, entre os dois lados do Atlântico. Na presença daqueles ouvintes silenciosos, a leitura os aceitava como meus. Estavam ali, sobre a mesa, a dizer mais do que diziam, pois assim os entendia. Diziam realmente mais, porque se punham de fora, ou contra aquele desastre intelectual que a ditadura salazarista gabava-se – chame-o de regime fascista, autoritário ou totalitário, pois, na verdade, as perdas nunca poderão caber num conceito. O Professor Falcon comenta que nas “longas tardes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e no Arquivo Ultramarino, pesquisando a época pombalina, (nos idos de 1969, na transição ao caetanismo; já numa abertura relativa, que permitia a quase-vida intelectual de historiadores oposicionistas), sentia-se moderno a contemplar os colegas lusitanos, debruçados sobre gigantescos in-folios quinhentistas, ou levantado documentos sobre as conquistas em Angola e Moçambique – para aquela História política e militar, quando muito, institucional, dos anos 1960. Ambiente carregado, evidentemente, onde poucos espíritos logravam produzir ou iniciar a produção de obra séria, não importando quão polêmico fosse, eventualmente, o tipo de relacionamento com o regime em vigor. E, naquele clima, perdiam o que era um dos elementos essenciais às novas tendências da História: diálogo com outras ciências do homem” – graças a Salazar. Ar impregnado de afã nacionalista com a Formação e Manutenção do “Portugal Castiço”, a permitir cortes e recortes temáticos (autonomia, indepen192

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dência, raízes pré-nacionais, desenvolvimento do comércio, despovoamento, expansão marítima, restauração, despovoamento, decadência, pombalismo, liberalismo e republicanismo) concernentes às muitas possibilidades de a História legitimar direitos de exceção. Porém, aqui nos meus olhos, repleto de Biblioteca, a importância dessa historiografia não alinhada à oficial mostrava-me como a interpretação histórica (redimensionando temas, desenraizando mitos e propondo outros), responsabilizava-se pelo andamento das coisas do mundo. Em cada um daqueles intelectuais, graus de resistência; estando exilado, fora ou dentro. Em todo caso, sempre os requisitei; estavam sob a minha proteção e entusiasmo – mesmo que soubesse que o Portugal da grei estivesse isolado das novas correntes, e avesso às Ciências Sociais, como manda o receituário de qualquer Ditadura. Esse processo de infinda busca, requerendo-os sempre, criava na mente uma certa vontade de amigá-los ao meu futuro. E nesse momento em que preciso tratar deles, historiograficamente, sinto-os tão próximos que não me permito deixar de falar dos impactos que provocaram. E, dessa maneira, acabo aceitando a intenção de dar, ao leitor, não prontamente o que dizem tais livros, isso poderia afastá-los da obrigação da leitura, mas o relacionamento que me sugere a recordação. Sei que é inteiramente arbitrário que eu faça assim, baseando-me na memória; essa elegante infiel. Esse processo (ou qualquer outro) é apenas um desenho de dique contra a borrasca das lembranças pessoais. Posso até afirmar que cada um daqueles livros, autores, confinavam-me ao caos. Sentia-me compromissado; refém dos pretéritos desprendidos naquelas linhas, em razão das manchas impostas aos olhos, feitas de acaso e destino. Quando lia António Sérgio, sentia-me adoecido de endividamentos e repleto de vontade de me tornar um crítico e propor mudanças e pedagogia ao meu país. O Reino Cadaveroso punha-me na mesma sensação experimentada por alguém que tivesse perdido seus originais. Um único conhecimento daqueles textos desordenava o catálogo das minhas idéias. Era algo adjacente, quase possível de ver como espectros encarnados na bruta turba de roupa verde-oliva, que faziam passear temores, perdas, crimes; evitando beijos, abraços e tudo de mais comum e sério na vida; assim como foi naquele lado do Atlântico. Nunca mais deixei de lê-lo. Anda ano, vem mais, e aquela ironia pedagógica, desprovida de sistematização, porém repleta de denúncias e criação, parece grudada – de tal jeito, que digo coisas que parecem pertencer não a António Sérgio, mas ao seu fantasma; irmão de diversos meus. Assim ia, entre a ordem de aprender e a desordem de tê-los estudados. Uma relação misteriosa se dava na leitura dos livros de Vitorino Magalhães

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Godinho. Aquela certeza, o equilíbrio erudito e a obrigação de mundo produziam em mim anseios de história econômica; ser marxista e misturá-lo à Escola dos Annales – pois o tinha de tal modo; representante da História Nova em Portugal. Os quatro volumes da Economia Mundial, A economia dos descobrimentos henriquinos, os Ensaios e A estrutura da sociedade portuguesa apontavam para a noção que tudo estava fora dos eixos; portanto, havia necessidade de justiça e muita história. Muita história, tudo se tornava respondido por seus exemplos. E um tipo de energia surgia desse excesso de leitura, aquela que, envolvida com o tempo, permite pensar: no meio do que partiu e do que ainda não chegou, articula-se uma responsabilidade e, após ela, se escreve História. Penhorava as minhas idéias à exigência dessa justiça. Impaciente, intratável e incondicional como ela, eu me tornei; nos tempos da Biblioteca, lendo Godinho. Em livros que não diziam tais coisas, por que vim a olhá-los assim? Talvez, por fascínio. Talvez, por estudá-los conjuntamente às minhas historietas. Talvez, por serem livros autorais; cujo maior destino é encontrá-los. O que dizer, quando conheço nos olhos a postura elegante de Jaime Zuzarte Cortesão, que no Brasil esteve exilado, a educar imagens com os seis volumes de Os descobrimentos portugueses, com Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, O sentido da cultura em Portugal no século XIV, A geografia e a economia da Restauração. Sem falar das suas preocupações em difundir idéias e combater, que tão bem expressam as revistas Lusitânia e Seara Nova. Nele, eu tinha o todo elogiável de uma cultura. As vastas páginas daqueles livros confirmavam que eu poderia chagar a possuir algo; numa viagem de leitura a afiançar um possível trajeto intelectual. Em Cortesão, recebi o direito de esconderijo, traindo de alguma maneira a rigidez de impecável justiça. O humanismo desse historiador tornava-se nítido e eu estava completamente atrasado; sendo que nenhuma companhia soava mais amiga do que lê-lo. Sentia-me seguro. Aquelas palavras descreviam um sentimento imemorial; deveria acreditar nos homens. E o mundo ia mal. Estava de estilo desgastado; mas isso nada proferia. Entrando na Biblioteca, a velhice e juventude dos livros, ou do mundo, pouco contava. Com evidência faltava-me medida; retinha crise e angústia. Lia apenas. Duarte Leite: os Descobridores do Brasil e História dos Descobrimentos. Lia, Luís Guilherme Mendonça Albuquerque. Virgínia Rau desfilava o começo da minha medida por alguns anos. Dela, a minha mente tomou aspecto: Feiras medievais portuguesas, Sesmarias

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medievais portuguesas, Estudos sobre a história econômica do sal português, Estudos sobre a história econômica e social do antigo regime. Tudo a balizar o crescimento mesmo, isto é: o desdobramento de um processo pessoal. Transformado em “português”, na tutela livre da Biblioteca, as experiências de leitor encaminhavam-se; sem conversar tudo o que era necessário com aqueles livros. Pedia para descer A situação econômica no tempo de Pombal, O bloqueio continental, Economia da guerra peninsular, e na capa estava (está) Jorge Borges de Macedo. E tudo acontecia infinito, e deste, nada se herda. Como não se herda, aqueles espectros da leitura, na bela casa do Real Gabinete, mantinham uma tortura originária – ferida de nascença. E por mais paradoxal que pareça, nas linhas dos autores a aprendizagem, ou instrução de viagem, aplicava a lição de se estar com e em algum lugar. Algo irremediável; se chovia, quem sabe não era hora de ler aqueles sob a influência marxista: Barradas de Carvalho (era triste, não era?), António José Saraiva e Armando Castro. Com eles aprendi as constantes e as variáveis da teoria marxista. Num momento, perspectiva geral da História; numa oitava acima, a situação de conflito histórico; no acorde, o caminho da solução no presente; e, no fecho, as possibilidades futuras, sejam por história ou política. Tudo para constituir um universo de sentido, que tende para uma ordem lógico-objetiva, cuja idéia principal, mesmo escondida no íntimo da pesquisa, é despertar no seio dos homens a consciência de liberdade – pois, o antes, é pré-história. E porque não falar na importância do livro Discurso Engenhoso, de António José Saraiva, que li anos depois. Peça historiográfica fundamental nos estudos dedicados ao Padre Antônio Vieira. Muita influência causa aquele capítulo destinado ao jesuíta. Todos dele se usam e abusam; e várias carreiras acadêmicas se fizeram em lê-lo. Naquele texto, as palavras, as imagens, as proporções e o texto tornamse fontes do discurso de Vieira. Cada um dos termos, uma mina para compreensão do fluxo discursivo do jesuíta. E em cada pormenor dessa leitura do pregador luso-brasileiro, as qualidades do autor e do historiador conjugamse. Enfim, naquelas linhas toda nova historiografia se afirma e se descuida de uma idéia expressa por António Saraiva: tudo é palavra e fala. Mas a fala não conhece fronteira. E se muito quente estava, há de ser o tempo da luz de Oscar Lopes; e sob as nuvens de um dia morno, seria ou não o momento de olhar Jorge Dias,

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Joaquim de Carvalho. Bem, quando o dia recebia o prêmio de ser o que é, a memória me diz: você lia Joel Serrão e Oliveira Marques, José Sebastião da Silva Dias. Belas, muito belas escritas. E com tais autores, findo essa tutela; pois parece possível que meu desajuste em comentar a historiografia pré-1974 guarde um segredo. Idêntico àquele que, numa a-contemporaneidade, descreve a procedência sobre os instantes não dóceis daquele momento de formação. Depois das linhas anteriores, posso expor: muitas outras experiências deve ter tido o Professor Falcon com esses livros e autores; mas, evidentemente, a influência se fez. Pois, num cadinho de leitura, entre gerações e pátrias, uma só coisa é passível de se pôr no lugar daquela, sem deixar de ser: o hiato – o que ele já era capaz de entender com o coração. No belo adágio de Guimarães Rosa, as súmulas das expectativas abrem letras, sejam elas historiografia ou não. E se me cabe ainda falar desses três últimos historiadores (a Vitorino Magalhães Godinho retorno depois), sem ficar sob o encanto da musa; assumo a proposta do Professor Falcon de nos referir às visões gerais compostas nas obras: Dicionário de Portugal, de Joel Serrão e História de Portugal, de A. H. de Oliveira Marques – cujo destaque é mais do que significativo para historiografia luso-brasileira. Como também, a Revista de História das Idéias (v. 1, 1977) sob a tutela da inteligência de Silva Dias. Nesse ato de me aludir à memória e denunciá-la, tomando as conversas com o Professor Falcon num inestimável arquétipo, chego a sugerir que deixássemos ao leitor três intervenções em textos por nós escolhidos. Faríamos à maneira indicada na apresentação desse Capítulo; mas, tomando a escrita, de cada um, na forma de visão de história, de mundo ou de implícita teoria (aproveitando essa trindade em todo o texto). Após aceite, conversas e seleção, conformamos a importância de Joel Serrão, Silva Dias e A. H. de Oliveira Marques em discurso na primeira pessoa do singular, como se quiséssemos, imaginativamente, estabelecer um diálogo, muito próximo, com o ato de escrever história (usando essa idéia no restante do trabalho) e agravar a idéia de herança para tarefa dos historiadores pós-25 de Abril – por muitos anos sob a atenção daquelas admiráveis escritas.

JOEL SERRÃO – APÓLICE HISTORIOGRÁFICA É que todo e qualquer esquema interpretativo, incluindo o que é da história, mesmo que esta aspire às fronteiras latas da estrutura, é uma violência cometida contra a realidade sempre mais vasta e mais funda, que acaba por se nos furtar.8

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Penso em sensibilidade humanística. E quando leio a passagem, encontro expresso a humanitas do autor. Antiga tradição clássica, que, de quando em quando, consulta as idéias de um escritor para ver se este pode lhe atualizar a qualidade da estatura humana. Certamente, a consulta resultou em “inscrição historiográfica”. Personificado o humanismo, a escrita histórica precisa se fazer de experiência arriscada no âmbito público. Tal arrojo concerne à idéia de que Serrão primeiro se preocupa com o mundo e, imediatamente após, escreve História. Mas o que isso profere sobre ele? Diz: nada há que facilite a tarefa. Nenhum abono disciplinar merece tanta atenção. Pois, tudo o que se ergue por palavras não pode deixar de responder ante a própria humanitas (mesmo que seja através do coletivo Portugueses Somos). Logo, coisa alguma faculta ao historiador sair da luz pública, onde se testa o indivíduo e o que pensa, e buscar esquema interpretativo para obter apostilas institucionais aceitáveis – ou seja: tratar apenas da toga. Violência, eis o termo. Forte como ato que, suprimindo dos homens boa dose da fortuna encerrada, na realidade, facilita anseios. Contra, eleva-se Joel Serrão. “Antes quebrar que torcer” – cita o autor em texto, do mesmo livro, em que distingui a família de espíritos de eleição: Sá de Miranda, Mouzinho da Silveira, Antero de Quental e António Sérgio (bem contíguo a seu mundo). Nada me evita filiá-lo; mas seria apenas confete inútil, anverso ao nome e às suas inquietações intelectuais. Contudo, isso alega retorno à forma da escrita. Joel Serrão escreve. Escrevendo, ensaia, sem abafar a competência na pesquisa – o desejo de liberdade é consciência: pensar até ao fundo os problemas que nos são postos...9 Aloquei a palavra ensaio, qual pretexto me foi cedido para obtê-la? A idéia fixa no espírito humanístico. Qual? Aquela que narra a sentença: em qualquer pensamento histórico está expresso o ser da política; até em coisas tidas como insignificantes à política. De fato, ensaiar refere-se à observância de retomar caminhos, corrigir rumos, supor confabulações íntimas sobre a humanitas – Oliveira Martins, Raul Proença, António Sérgio, Antero de Quental, Herculano, Eugénio de Andrade, Camilo Castela Branco e, ainda, outros. Diálogos culturais e História Política, criar espaços é autoria. Estando ali, há a relação homem moderno e tradição, numa justaposição temporal, em que a proximidade e a distância não mais dependem dos séculos que os separam, mas, exclusivamente, do ponto livre a escolher. Seleto, a inteligência chama a compreensão. Vindo, necessita assumir constância, sem apelação catedrática possível. Chegando, ganha fiança humanística.

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Mas o que se pode entender disso, pensando em Joel Serrão? A figura impressa na sua escrita. Qual? A que conta a seguinte história: alguns homens habitados de humanitas trazem um sonho que os excede. Ouvindo o relato, a prosa metamorfoseia-se em arte e, às suas expensas, o combate historiográfico exibe a verdade.

Alguns escritos do autor: Temas Oitocentistas – I. Lisboa: Ática, 1959; Temas Oitocentistas – II. Lisboa: Portugália, 1962; Temas de Cultura Portuguesa. Lisboa: Ática, 1960; Da “Regeneração” à República. Lisboa: Livros Horizonte, 1990; O caráter social da revolução de 1383. Lisboa: Horizonte, 1976; Do sebastianismo ao socialismo em Portugal. Lisboa: Horizontes, 1983. Antologia do pensamento político português. Lisboa: Horizonte, 1980; Introdução à indústria portuguesa, do antigo regime ao capitalismo. Lisboa: Horizonte, 1978.

A. H. DE OLIVEIRA MARQUES – BÊNÇÃO DO PERIFÉRICO A história dos animais domésticos na sua relação com o homem – como a história dos animais – é um tema relativamente novo nos estudos do cotidiano. Com a sua integração na historiografia abre-se mais um campo nesse grande desdobrar de temas que a tem caracterizado nos últimos cem anos (...) Fazer história animal equivale, assim, a entrar num vasto somatório de histórias onde o já conhecido, o mal conhecido e o totalmente desconhecido se interpenetram num entrechocar constante.10

Ao ler este fragmento da Comunicação de Oliveira Marques (Congresso Internacional de Vida Cotidiana; Lisboa, abril 1993), percebo a aceitação, sem reserva, da face historiográfica que assume a curiosidade do público letrado como parâmetro. A história do cotidiano evidencia que a estandardização da consciência gerou a sua subjetiva estética. E como ela é adequação à alusão aos anseios por informações singulares, ativa o imperativo dos antepassados – como se fossem as vidas pretéritas elementos de exposição num zôo interativo. Por mais paradoxal que pareça, tal perspectiva, com muitos trabalhos produzidos e respeitabilidade inquestionável do autor, demonstra zelo historiográfico. O fato é: sua atenção ao grande desdobrar de temas no conhecimento histórico demonstra uma sensibilidade contemporânea pouco comum à tradição portuguesa. 198

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Ao falar do entrechoque entre o já conhecido, o mal conhecido e o totalmente desconhecido, Oliveira Marques chama, para si, o pressuposto retórico da absoluta aspiração que a curiosidade – como axioma da cultura de massa – carrega. E, quando o faz, oferece fuga ao cotidiano das classes letradas através do coloquial curioso que o periférico alcança; pois a diversão intelectualizada favorece a resignação ou a ironia. O tipo de agenciamento que o autor promulga revela tanto a inaudível condição de perigo impresso na importância desse tipo de estudo, quanto caracteriza o comum desdobrar temático da produção histórica. E como se ele avivasse a idéia de que novas incorporações de assuntos na historiografia não é algo tão distinto assim, marca os últimos cem anos da disciplina, e, portanto, funda-se num interesse atual que deve aprender de novo a descobrir o passado e fazer, muitas vezes, tábua rasa dos processos que sempre utilizamos. Finalizando, não posso deixar incólume a advertência. Uma história animal encontraria a versão do mundo sem conceito, em que nenhuma palavra pode identificar o fluxo dos fenômenos, em que nada permanece e, no entanto, tudo é idêntico – como os adágios que o autor seleciona –; e isto não teria nada de similar com a apreensão genérica da História. Se assim poderia ser, a postura sensível ao contemporâneo de Oliveira Marques, credita inquietações a individual consagração de historiador, tornando-o, então, sismógrafo da historiografia portuguesa pós-1974, sem perder de vista o interesse que o mundo, tanto o doméstico quanto o selvagem, está a despertar nas preocupações de toda uma sociedade.

Alguns escritos do autor: A nobreza nos séculos 14 e 15. Beira Alta, Viseu, v. 44, n. 2, p. 247-275, 1985; O povo nos séculos 11 e 15: contribuições para o seu estudo estrutural. Separata de: Jornadas de Histórias Medieval, Lisboa, 1985; Las ciudades portuguesas en los siglos XIV. Separata de: Estudios de Historia y de Arqueologia Peninsulares, Cadiz, 7-8, p. 77-102, 1987-1988; O clero nos séculos 11 e 15: alguns aspectos. Separata de: Jornadas sobre Portugal Medieval, Leiria, 1983 [Actas], Leiria: Câmara Municipal, 1987; Portugal quinhentista: ensaios. Lisboa: Quetzal, 1987. Introdução à história da agricultura em Portugal. Lisboa: Cosmos, 1968. A unidade na oposição à ditadura, 1928-1931. Lisboa: EuropaAmérica, 1976; A primeira legislatura do Estado Novo – 1935-1938. Lisboa: Europa-América, 1978; História da 1ª. República portuguesa. As estruturas de base. Lisboa: Iniciativas Editoriais, [1978]; A Primeira República portuguesa.

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Alguns aspectos estruturais. 3. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1980; Guia de história da 1ª. República portuguesa. Lisboa: Estampa, 1981; Ensaios de história da 1ª. República portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1988; História da maçonaria em Portugal. Lisboa: Presença, 1990; Portugal. Da Monarquia para a República. Lisboa: Presença, 1991.

J. S. DA SILVA DIAS – ADÁGIOS DE ABERTURA Como explicar o desfazamento entre ponto de partida global da cultura portuguesa no século XVI e o seu ponto de chegada global no século XVII? Como explicar as costas voltadas da inteligência pátria à inquietação e aos conteúdos da filosofia e da ciência na Europa durante esta época?11

Da ação comodata entre as perguntas, uma historiografia se fez. Num lance de harmonia, Silva Dias assume interrogações que não podem ser alcançadas, facilmente, pela realidade investigada, sem lhe impor graus correspondes de compreensão. Uma reciprocidade perfeita entre aquelas indagações e o campo histórico deixaria de conter a tensão reservada à problemática cultural. E, nesse andamento, o trabalho de pesquisa sugestiona, sem ali estar, a “estrutura da dúvida” intelectual. Na natureza deste arcabouço, o pensamento se faz de único conceito basilar da investigação histórica. É como se dissesse aos muitos historiadores formados sob a tutela de sua inteligência: entrem no cerne dos eventos e divisem, questionando, os adágios dos agentes históricos; assim procedendo, repensem em seu espírito aquelas idéias, o que acarretará a apreensão da situação cultural em que os atores se achavam e a maneira como a enfrentavam. Nesse sentido, a escrita assume a perspectiva de configurar o espaço cultural como problemática. E esta isola a cena histórica como assunto de estudo. Assim, escrever é arcar com os temas como se fossem, eles, algo próximo à emoção do escritor. Por mais que Silva Dias consiga eliminar o lado pessoal no discurso, a seleção e a abordagem não deixam de se integrar à mais íntima biografia intelectual. A personalidade do historiador, portanto, parece manter contíguo o modo da problemática que trata. Isso quer dizer: Silva Dias identifica-se à matéria de estudo, apresentando o compromisso do escritor com o leitor e, ao mesmo tempo, revelando o pacto entre ele e seus temas problematizados. Assim sendo, o autor passa ocupar o ponto de cruzamento entre a realidade histórica que privilegia e a comunicação dos problemas eleitos para compreendê-la.

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Com evidências, o profissionalismo de Silva Dias pôde fazer, e fez, mais do que aqui expus. O regular intercâmbio entre suas preocupações e a cultura que o envolvia, intervinha amiúde na seriedade dos compromissos assumidos. A verdade desse fato é que ao definir critérios para uma História da Cultura – na forma lata de História e Teoria das Idéias – trouxe à luz pública a objetividade de estudos que não se conferem, meramente, em laudatórios nacionais e, tampouco, em consignações de dados; mas, comprometem-se na inteligência explicativa capaz de compreender que escrever história é assumir problemas. Eis a herança historiográfica.

Alguns escritos do autor: Portugal e a cultura européia – séculos XVI a XVIII. Coimbra: [s.n.], 1981; Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Lisboa: Presença, 1982. Os primórdios da maçonaria em Portugal. Lisboa: INIC, 1980. 4 v. O vintismo: realidades e estrangulamentos políticos. Análise Social, Lisboa, v. 16, n. 61-62, p. 273-278, 1980; A Revolução Liberal portuguesa: amálgama e não substituição de classes. In: Colóquio O Liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX, Lisboa, 1981. Comunicações. Lisboa: Sá da Costa, 1982. v. I, p. 21-25.

III. HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA PÓS-197412 SOB TUTELA, SÓ A LIBERDADE. Naquele dia – 25 de abril de 1974 – alguns intelectuais saíram de seus “esconderijos” já cansados. Sabiam que o acontecimento havia tangenciado a verdade histórica, passando ao lado, para, logo depois, preencher o vazio com associações. Prudentemente, reconheciam estar em vias de adquirir verdadeiro nome, como se fossem nascidos em data santa. Esqueciam, porém, que, ao contraírem escrita farmacêutica para as necessidades, após aquele momento oportuno, a paga instantânea era a apreensão genérica da disciplina História. Assim, mesmo não existindo coesão de posturas teórico-metodológicas entre eles, havia pelo menos a unidade e a identidade da palavra História. Pode-

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se até observar que as palavras postas em escrita eram tomadas num uso extensivo; quer dizer, funcionavam através de um comum historiográfico que, podendo agora importar termos, abordagens, problemas e objetos, assegurava (contra as próprias urgências de importação e contato) a unificação do conjunto que elas subsumiam. E como cada historiador conta com balizas para estabelecer critérios de ofício, cada um daqueles intelectuais escreveu o seu ponto de vista sedentário, pois o nomadismo inerente à “revolução” duraria quadra festiva. Disse-os cansados; e o que isto insinua? A maneira de dar conta da historiografia portuguesa hoje.13 Algo como uma teoria do relato historiográfico entre antecena das novidades e o plano de fundo formado pelo nome próprio História; conforme se dê o detalhe estilístico da escrita de cada um. Para tanto, escolho historiadores e, com eles, dialogo. Ao fazer, incomodo-os lendo-os. E, ao lê-los, tomo suas passagens e, com elas, abro conversas, tentando pensar, sem esclarecer, porque venceu a apreensão genérica da disciplina, após aquele dia 25 de abril de 1974, sem ser desafiada.

A TEMÁTICA DA HISTÓRIA PÓS-MODERNA Bem, as conseqüências já se conhecem quando se batiza algo de pósmoderno. Mesmo assim, denominar o opositor, já muito pouco traz de importância. Entre um moderno e um outro após, a escrita da história oscila entre uma pergunta e uma exclamação: isto é história? E, história é isto! Se o primeiro responde ou grita, estará sempre se referindo a um conceito determinado e representativo, pousado como está sobre a noção de realismo (cujas fundações não podem ser negadas; lá no século 19), condicionando o ofício a uma questão de convicção: faço história. Se o segundo rebate ou brava, traz à baila a noção de que o conceito de história não prima por de identidade real possível, pois, para este, não há como estabelecer critérios de certeza, tangibilidade e exatidão; restando apenas criatividade narrativa, sem posse de expor, com isenção, o que faz. Se o primeiro vai aos seus, supõe que a modernidade é um projeto inacabado; o que o obriga a olhar para o passado e dizer: entendo-o. Se segundo ironiza aquela postura, é porque vê o sistema de crenças, que sustentou a modernidade, abalado e fala: penso-o. Se o primeiro quase sempre prefere a exclamação à pergunta, é porque a convicção corresponde a um ato de fé; escondendo o que professa nas cercanias da deusa Ciência. Se, continuamente, o segundo, elege a pergunta às custas da exclamação, é porque, faltando convicção, resta-lhe uma postura filosó-

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fica cínica, ou niilista, ou ainda, paralisia mental. De qualquer jeito, tudo se dá entre a ética do primeiro e a intelectualidade do segundo. Logo, se é entre ética e intelectualidade, uma prática comunicativa e um entendimento teórico “não comunicativo”; fica em aberto o que por “natureza contemporânea” não pode ser lacrado, nem pelo primeiro e nem pelo segundo. O acima dito me permite fornecer a dois historiadores de fundamental importância na historiografia portuguesa contemporânea, José Mattoso e António Manuel Hespanha, leituras de insuficiente acidez. Não darei a medida, ela é óbvia. Apenas deixo o leitor sob a influência do texto anterior e que, aquele, possa dimensionar as linhas abaixo. Se faço isso, é em respeito e admiração a ambos; porém, cabe a crítica, num tom de apreciação e inerência, motivar a imaginação, para que esta, olhando um pequeno fragmento de textos dos historiadores em destaque, seja rigorosa – não no sentido de denúncia ou aplauso; mas, no sentido de interromper a objetivação desses discursos historiográficos.

JOSÉ MATTOSO – ENCARNAÇÃO DO LOGOS A história escrita resulta, obviamente, da intensidade da descoberta. Por isso insisto tanto no caráter triplamente emotivo e estético as experiências que tento descrever. É-o desde a observação atenta e apaixonada do real até à produção emocionada do texto, passando pela intensidade do cântico interior. Daí que o historiador, se o é de verdade, não possa deixar de escrever, como o poeta de compor os seus poemas, como o músico de criar as suas sinfonias, como o namorado de falar de sua amada, como o místico de rezar e cantar. E, ao comparar, a história escrita com estas diversas espécies de textos nascidos de uma experiência com um denominador comum, a percepção poética, pretendo, evidentemente, insistir mais no caráter artístico do texto histórico, do que no seu teor científico. Mas uma coisa não exclui a outra, como tentei dizer a pouco, ao falar de representação mental. O que importa, aqui, é sublinhar que o texto histórico terá de ser rigoroso, objetivo, bem fundamentado, mas também claro, comunicativo, sugestivo, ou mesmo, no limite, fundador de harmonia, construtor de evidências que seriam como que a expressão do reconhecimento da ordem cósmica, ou, mais ainda, da potência criadora do Logos. Por isso digo que a escrita da história é do domínio da arte, quer ela se considere como uma techné, no sentido de um saber afeiçoar a matéria, que se considere como uma espécie de dom carismático.14

Nas frases equilibradas do autor, a promoverem uma harmonia só possível por exclusão, o lirismo abarca tudo de cima. Ficar acima da existência, agenciado por um caso de amor contemplativo, é simplesmente não vê-la e

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apenas etiquetá-la. Ao tratar do mais delicado no pensamento, rejeitando por ofício profissional a filosofia da história que promulga, como se aquilo que escreve nada contivesse dela, Mattoso abonando-se no seu ato de fé. O particularismo da cultura portuguesa reencontra o decalque lírico da prece reflexiva, pois é do lirismo da oração revelar e objetivar palavras de forma a sobreviver às vicissitudes da história nacional. O mundo das circunstâncias é o reino da alma de um deus cantor – para usar uma expressão de Santo Agostinho. Ou seja, Mattoso as apreende conforme a pronúncia que individualiza o enunciador reflexivo e, por mais variadas que sejam as relações que se estabeleçam na escrita, marcando a fronteira entre a interioridade do autor e os “mundos sonoros na história”, o tema principal não deixa de ser o movimento adequado aos sentimentos e meditações. Mas como sua escrita não consegue sedimentar as escolhas que perpetra (só o poderia fazer se o eu autoral se esquecesse na linguagem, evitando convertê-la em abracadabra de símbolos), o que acontece é tematização fervorosa da relação eu e sociedade – seja em que temporalidade estiver, segundo o paladar da sociedade lusa por gestos de certa memória requerida. Seguir este paladar é manter urgências de identidade, afirmada tanto no livro Identificação de um País (Estampa, 1988) quanto na História de Portugal, sob a sua direção, publicada a partir de 1992, em oito volumes. Tal evidência traz ao palco os traços modais do seu formismo; em certos textos até comunga a integração orgânica. O medievalista parece ter em mira a identificação dos tipos ímpares que habitam o campo histórico. Suas explicações são estabelecimentos da unicidade de objetos particulares de um certo anfiteatro histórico ou fenômenos que possam ser integrados por uma descrição das multiplicidades cênicas. É como se ele fosse o alto-falante dos leitores, tornando os objetos da percepção mais auditivos à mente, numa tentativa de palingenesia, cuja “frotagem” da escrita absorve a qualidade sonora, ricamente, variada.

Alguns escritos do autor: Identificação de um País: ensaio sobre as origens de Portugal. Lisboa: Estampa, 1985. 2 v. Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987; A nobreza medieval portuguesa – a família e o poder. Lisboa: Estampa, 1981; Ricos-homens, Infanções e Cavaleiros – a nobreza medieval portuguesa.

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Lisboa: Guimarães, 1985; Religião e cultura na Idade Média Portuguesa, Lisboa: Imprensa Nacional, 1985; O essencial sobre a formação da nacionalidade. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985; O essencial sobre a cultura medieval portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985; O essencial sobre os provérbios medievais portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional, 1986.

ANTÓNIO MANUEL HESPANHA – CARGA SEMÂNTICA A esta luz (dados empíricos), resulta-me mais do que problemático que um volume sobre a Idade Média portuguesa possa terminar com a seguinte frase conclusiva: “em 1484 há território, passado, nação e pátria, tufo fortemente com-sentido e condensado em Portugal e Portugueses. Construí-se o Estado – parturição muito lenta. Em 1484, o Regnum de D. Dinis é um Estado Moderno, organizativamente complexo e seguramente centralizado {...} É um estado-povo-cultura às portas de ser império e cantar-se em epopéia. Lusiadamente”. A menos que “Estado” não tenha significado nenhum e se desconheça a carga semântica que no conceito foi depositado por quase 200 anos de teoria política.15

A natureza da crítica é índice dos cuidados de uma mente atenta. Hespanha receia a perda dos “bons modos” de se saber do que se fala. Talvez, tal preocupação esteja fadada a ser desprestigiada por rotinas acadêmicas que legitimam antes de qualquer prova de competência – bastante regular hoje em dia. Bem, mas o que aqui cabe não trata de tocar nesses assuntos. Embora a seriedade de Hespanha os aponte. Se de algum jeito as aponta, o que isso pode nos auxiliar para pensar a sua escrita da História Política de largo espectro? E, ao mesmo tempo, de que maneira ela requer a identificação historiográfica em outros textos de autoria? A primeira coisa que vem à mente é ser a escrita de Hespanha um tipo de comunicação simétrica aos conceitos propostos. Algo funcional à medida de um contexto que lhes dá sentido e os recupera da simples utilização. Isso quer dizer: escrever é pôr pensamento no discurso, de forma a dar peso semântico aos conceitos. Logo, estes não são projeções indelicadas de recém-chegados, desavisados da frouxa historicidade que lhes deu a conta, numa alarmante afinidade com o positivismo, mesmo que estejam felizes. Hespanha se preocupa com a frouxidão discursiva, que a moda historiográfica traz e se instala protegida da crítica. Sua escrita alerta sobre a distância necessária entre o pensamento e a realidade; pois ela é senão aquilo que a História depositou nos conceitos.

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Se as preocupações do autor vinculam-se ao estudo do aparato institucionalizante do poder, sua produção historiográfica impede, para ter ares contemporâneos, a eliminação completa das categorias de validade, sentido e valor – não só no plano metafórico, como também no empírico. A escrita da história de Hespanha noticia, portanto, participar da contemporaneidade; porém, reserva à filosofia da consciência o papel principal; o que significa “clássica historiografia”. Caso isso tenha lastro, na medida em que um certo grau de combate ao historicismo lhe seja bastante particular, a forma da escrita do autor, tão contrária ao que pessoalmente posso pressupor como escrita, expressa a oposição radical aos afagos provenientes do uso descuidado de conceitos. A verdade dessa identificação historiográfica é um ensinamento que precede qualquer disputa no ato conceber a escrita da História; ou seja: antes a consistência teórica que me nega abadia, impondo diferenças absolutas, do que fazer parte de algo que nem a idéia de espírito distraído é capaz de sobrepujar à escalada dos juniores – tenham a idade que tiverem.

Alguns escritos do autor: História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. Centro e periferia no sistema político português no Antigo Regime. Ler História, Lisboa, 8, p. 35-60, 1986; Poder e instituições no Antigo Regime: guia de estudo. Lisboa: Cosmos, 1992; Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político: Portugal, século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. Justiça e administração nos finais do Antigo Regime. In: Hispania: entre derechos propios y derechos nacionales. Milano: Giuffrè, 1989; A nobreza nos tratados jurídicos dos sécs. XVI a XVIII. Penélope, Lisboa, 12, p. 24-42, 1993; Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político: Portugal século XVII. Coimbra: Almedina, 1994 (Ed. espanhola. Madrid: Taurus, 1989).

Se fica em aberto o que por “natureza contemporânea” não pode ser lacrado, poderia trazer, ao texto, dois outros autores. Penso em Armando Luís de Carvalho Homem e Boaventura Soares Santos. Mas, de qualquer forma, o tempo não é dos melhores e nem as páginas são suficientes. Contudo, deixo ao leitor algumas referências aos seus escritos – a seguir.

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Mas antes de terminar, devo consentir algumas considerações rápidas sobre o pensamento de Boaventura Santos. A primeira coisa a se destacar é a forma de auto-expressão ou elaboração de seu estilo; o que já é algo – digo – uma pouco dissonante (antes fosse) à titulação de pós-moderno que se encarrega de ser. Ou seja: o uso que faz de seu paradigma crítico deveria diminuir os riscos de reducionismo; entretanto, todo paradigma é, em si mesmo redutivo. Logo, a qualidade, o próprio engano do autor, é a tentativa de oferecer um protótipo para o pensamento que se quer aberto – pós-moderno poderia ser, se não fosse assim. A segunda é o que o autor comunica, prescrevendo uma determinação na escrita, esquecendo-se da própria situação retórica. Esta atitude conserva, por deslocamento, os mitos combatidos; pois, quando reduz a totalidade das explicações anteriores a um algo a ser condenado, produz um vazio posterior, a correção do autor, permitindo o replantio dos próprios mitos. Isto quer dizer: caso Boaventura Santos fosse levar ao extremo a sua postura, deveria abandonar o próprio dado Portugal e, apenas, enunciar, rapidamente, sem capacidade de afirmação, a múltipla variedade dos localismos pós-modernos. Por fim, a evidência de que o autor promulga um combate, cujas feridas são de todos os portugueses, permite-me argumentar sobre os precursores, amados e temidos, de Boaventura Santos; pois estes se tornam o ato final e definitivo da própria anterioridade da sua escrita. Isto é: a simbologia sociológica do autor, cujo movimento crítico vai da desagradável sensação de carência do significado perdido à consciência ainda mais aflitiva da perda, demonstra, ainda, que o eu português reitera muito a representação do que é da parte de um todo mutilado e epifânico. De qualquer forma, a presença desse autor, como também, a de António Manuel Hespanha e Armando Luís de Carvalho Homem, e de certo modo José Mattoso, produz um desconforto nas escolas historiográficas de matriz conservadora e positivista em Portugal. A crise do paradigma dominante, a “bendita crise da história”, veio a permitir o surgimento de novas abordagens ou tendências: seja a nova história econômica (Jaime Reis e Jorge Borges de Macedo); seja o regresso à (nova) narrativa; seja àquela denominada, sem qualquer sustento conceitual ou poético, de história pós-moderna – até porque a apreensão genérica da disciplina não foi colocada em risco; mesmo os historiadores considerados mais contemporâneos, na abordagem e tendência, optam por escrevê-la à maneira sedentária, ousando pouco no nomadismo que a Revolução dos Cravos poderia ter sugerido.

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Alguns escritos dos autores: Boaventura Soares Santos Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1988; Introdução a uma ciência pós-moderna. Porto: Afrontamento, 1989; Estado e sociedade em Portugal. Porto: Afrontamento, 1990; Pela mão de Alice: o social e o político. Porto: Afrontamento, 1994.

Armando Luís de Carvalho Homem O Desembargo Régio (1320-1433). Porto: INIC-CHUP, 1990; Portugal nos finais da Idade Média: Estado, instituições, sociedade política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. A propaganda republicana: 1870-1910. Coimbra: Coimbra, 1990.

A HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL Sendo cabível, posso afirmar que a narração, embora não seja capaz proferir que inexista, nunca foi uma preocupação para essa área de saber. É por demais evidente que os historiadores envolvidos nesse tipo de estratégia de conhecimento histórico (com raras exceções) mantenham uma “voz das alturas” como significante no discurso. Sua natureza escriturária realiza-se quando a aproximação, quase radical, entre o conteúdo e o expresso subscreve o campo de imanência da própria explicação. Isso quer dizer: no momento em que se articula a noção de causalidade com a “prova de realidade”, arbitra-se o encarregado da História. De fato, a História econômica e social participa do anseio, indescritível, pela História científica. A esfera discursiva em que é passível de acontecer, constitui-se através da inequívoca força que o discurso direto obtém aos olhos de qualquer um que aceite a tangibilidade como pressuposto nas áreas humanas. Por direito, esse tipo de historiador argumenta através do grau de responsabilidade de mundo que prescreve para si e outros. De alguma maneira, seja no aspecto quantitativo ou qualitativo, a escrita da História esteia-se na tendência de desejar, classicamente, um realismo finalista e incólume – com raras exceções.

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O empenho dos historiadores, portanto, é apreender a realidade tal como ela é de fato fundada, ou se supõe ser – segundo certa configuração a priori do que é o real; independentemente que seja por atribuições conceituais ou empíricas. Logo, as obras que produzem seguem a idéia de que elas são a imagem do campo histórico, segundo confiança arraigada nos problemas que elegem. No espaço historiográfico português, a Revista de História Econômica e Social, a partir de 1978, possibilita fértil pesquisa nessa área. Em cada número, as posturas da escrita estabeleciam métodos, perspectiva e objetos de estudo. Não obstante, pudesse persistir no comentário sobre o valor da revista, o que seria tornar a aprender e discutir, escolho dar voz e nome a alguns historiógrafos de destaque. Faço da seguinte forma: deixo, primeiramente, ao sabor da crítica, a minha apreensão da escrita de Vitorino Magalhães Godinho; depois, entrego ao leitor uma intervenção a propósito do texto de Miriam Halpern Pereira e outra sobre José M. de Amado Mendes; por fim, apresento alguns textos e obras Manuel Villaverde Cabral, Antônio de Oliveira, Pedro Lains e Jaime Reis (personalidade da nova história econômica); e a inconfundível presença historiográfica de Borges Coelho, já na fronteira de outras “expectativas” historiográficas. Cometo a deferência: Vitorino Magalhães Godinho. Tomo-a em dois alcances: um que, rapidamente, supõe as características da escrita no espaço dessa expectativa historiográfica; e outro, um pouco mais longo, que toma a sua competente posição, historiador da economia e sociedade, como chave da compreensão da leitura que faz da historiografia portuguesa. Conforme os dois aspectos, pretendo homenageá-lo sem negar diversas formas de abarcá-lo; e assim descrevo: 1 – a escrita do autor parece seguir o caminho da observação repetida – até o esgotamento de leitura. A cada parágrafo, a comparação sistemática (intrínseca à questão) apresenta a sua responsabilidade historiográfica em ignorar e quebrar a narrativa; de maneira a descrever, analisar e explicar. Magalhães Godinho coloca em ênfase um tipo de “geografia gramatical” capaz de fixar realidades evidenciadas, por análise, cujo esforço de inteligibilidade tende a reconhecer articulações, evoluções e similares sobre um espaço definido. Os elementos do campo histórico são integrados num processo sintético que, assim sendo, orienta-se por determinações de fins. As cenas históricas, portanto, comparecem como aparatos para as classes de fenômenos em exame, capazes de fazer, num quadro de abstração admissível, surgir os princípios que governam suas interações.

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2 – no âmbito historiográfico, a escrita de Godinho persegue a tarefa imposta à intelectualidade pela herança de alguns nomes próprios – Oliveira Martins, António Sérgio. O autor busca estabelecer linhagens, identificar filiações, como por exemplo, aqueles ligados ao espírito de Herculano (Braancamp Freire, Sousa Viterbo, Pedro de Azevedo, etc.; todos aqueles reunidos em torno da publicação Arquivo Histórico Português.) De algum modo, Magalhães Godinho não perde de vista a disposição da “voz das alturas” como significante do discurso. Se reconhece a contribuição inestimável de António Sérgio, a tantas gerações de intelectuais portugueses; vê-o na posição de crítico cultural; sem se consentir ser por completo; porque se obriga a compreendê-lo. A escrita, portanto, insinua, diante do que concebe ser o ofício de historiador, que o autor possui aquilo que falta a quem critica. Ocupando as lacunas deixadas pela herança, a forma discursiva retoma as contribuições de autores de relevância – condenando aqueles que nada acrescentam – para ter uma matéria social de suas práticas e datá-las. Assim, escrever sobre a historiografia portuguesa torna-se a exterioridade do diagrama das atenções históricas que povoaram os discursos daqueles eleitos em seus textos (A historiografia portuguesa do século XX – orientações problemas, perspectivas, In: Ensaios III. Teoria da história e historiografia, In: Revista de História de São Paulo, v. 10, 1955) Logo, numa apreensão sinóptica, Magalhães Godinho estabelece o cenário instituinte e interpretativo da posição do pensamento histórico em Portugal. E, ao fazê-lo, promulga a afirmação de que a validade de um juízo é penhora da própria personalidade na crítica.

MIRIAM HALPERN PEREIRA – ESCRITA ÍNDICE A minha hipótese global, já desenvolvida noutras ocasiões, é de que o contexto institucional é decisivo na configuração do fenômeno emigratório. Determinados vetores demográficos e socioeconômicos constituem terreno propício ao desencadear da corrente migratória, a sua ocorrência não constitui porém uma derivada simples, mas um fenômeno combinatório complexo.16

Na exposição da hipótese global, Miriam Halpern ajusta a exigência de ter o fenômeno emigratório a partir da complexidade de um dado contexto institucional. Tal tipo de enunciação a caracteriza como intelectual, preocupada, como sempre esteve, em não facilitar apreensões simplistas dos problemas históricos – demográficos e socioeconômicos. Claro que a investida nesse

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espaço de saber da História sempre apresentou uma aridez condizente com as circunstâncias dos seus métodos e correspondentes explicações. Isso ocorre em razão da aparência de certeza que a quantificação e apuramento conceitual permite. A despeito da existência entre os especialistas de oferecer os resultados de análise como crônica explicativa, a prática historiográfica da autora realiza a escrita índice. O que significa que Miriam Halpern evita ater-se como vítima das “tabulações”. Sua escrita da história assume todo o peso da explicação. As sentenças provenientes da análise não pousam no ato contente de constatar; antes; absorvem toda o enredamento que o pensar sobre produz. Logo, o acento posto pela historiadora na locução contexto institucional revela a dinâmica das situações – por exemplo, a atitude do Estado (conforme os grupos sociais envolvidos) e o lugar da emigração familiar – que, tratadas no discurso, procuram a forma da síntese. Para Miriam Halpern, o histórico, nas áreas que a interessam, aparece como campo de entidades integradas, cuja regência é proveniente de uma estrutura de relações especificáveis. A forma de sua escrita, portanto, é um paradigma explicativo que impulsiona os elementos de análise para um modo de articulação sintético – numa atitude que teria estratégias de captura para, novamente, forçar os limites da hipótese que defende. Posso dizer que a autora, perante o julgamento do seu fórum profissional de franqueza e seriedade, prepara o próprio caminho para interpretações mais complexas e apuradas no domínio da apreensão genérica da disciplina – basta passar os olhos em sua biografia intelectual nos últimos 20 anos. A sua contribuição para a elucidação epistemológica dessa forma de conceber o trabalho do historiador é muito maior do que geralmente se reconhece.

Alguns escritos da autora: Obras. Coord. de Mouzinho da Silveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. 2 v.; Negociantes, fabricantes e artesãos entre velhas e novas instituições. Lisboa: João Sá da Costa, 1992. Miriam Halpern Pereira foi quem dirigiu esse projeto de pesquisa; Livre câmbio e desenvolvimento econômico. Portugal na segunda metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa, 1983 (1. ed. Lisboa: Ed. Cosmos, 1971); Assimetrias de crescimento e dependência externa. Lisboa: Seara Nova, 1974; Um crescimento agrícola sem industrialização. Recerques, Barcelona, mar. 1977; “Decadência” ou subdesenvolvimento: uma

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reinterpretação das suas origens no caso português. Análise Social, Lisboa, 2. série, v. 14, n. 53, p. 7-20, jan./mar. 1978; Revolução, finanças, dependência externa. Lisboa: Sá da Costa, 1979; A política portuguesa de emigração (18501930). Lisboa: A Regra de Jogo, 1981.

JOSÉ M. AMADO MENDES – GABINETE DE ESTUDO Com efeito, o êxodo de mais de quatro milhões de portugueses, desde meados do séc. XIX (...) para além dos seus aspectos demográficos e econômicos, mais facilmente apreensíveis, envolve componentes sociais e culturais de enorme relevância.17

Nem sempre, ou quase nunca, o qualitativo se rende aos encantos dos números, tabulações, aridez, etc. Amado Mendes escreve a advertência e pontua a relevância dos aspectos culturais e econômicos. Mas o que isso me auxilia para discorrer sobre a escrita do autor? Digo: permite-me abrigar o seu ato de escrever nas imediações da leitura. Isso exprime que os discursos de Amado Mendes se orientam pela voz íntima de quem lê. E, ao se levar por ela, a escrita assume o trabalho de grafar aquela ação; como se ela ao tocar no papel produzisse sons do “pensar alto” envolvido por um específico ambiente. Essa característica alvitra a satisfação de perseguir a leitura forte perante uma prateleira de livros. Tal procura remete aos textos autorais, à necessidade de agenciar à acuidade da forma (escrita) através do encargo em produzir analogias entre o gesto de indicar, de abordar e ler. Quando o historiador escreve, portanto, exprime a interioridade da voz e, ao fazê-lo indica localizações rigorosas e, em tal exercício, a abordagem confirma a segurança do conhecimento perante as estantes de livro. Em cada frase, a apreciação do leitor é conduzida pela sensação de que o autor está a dialogar com os seus pensamentos, como se estivesse confabulando ao espelho, num espaço que apenas a ele é próprio. Se for plausível o que anteriormente se disse, admito imaginar um equivalente estético para a sua escrita. Assumo-o da seguinte forma: Amado Mendes conserva no ato de escrever os traços reflexos apurados no lugar natural da leitura – o gabinete de estudo. Quer dizer, instala-se na escrita a atmosfera do ambiente, depois da ação de leitura. Isso porque todo o andamento discursivo, do autor, é fabricado de maneira a apagar qualquer rastro da desordem instaurada por papéis e livros. É esse aspecto da natureza da escrita que sustenta o acordo entre autor e seus pensamentos.

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A transferência daquele ambiente para o papel sugere, por fim, que Amado Mendes deseja, de algum modo, prolongar os efeitos do equilíbrio entre a leitura aclimatada e a escrita que se põe a público. E como esse equilíbrio só existe nas imediações de um após, a autoria simula o que lhe ficou arrumado na mente, numa proporção equivalente a um gabinete de estudo pronto para que se entre e se realize o trabalho. Logo, as frases sintéticas que usa nada mais são do que a imagem que quer deixar a quem o lê. E a imagem é esta: uma mão retira da gaveta anotações de leituras feitas, e cada novo olhar sobre a cena, lá estão elas postas nos papéis, elegantemente.

Alguns escritos do autor: Para a história do movimento operário em Coimbra. Análise Social, Lisboa, 2 ª. série, v. 17, n. 67-69, p. 603-614, 1981; As camadas populares urbanas e a emergência do proletariado industrial. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 5, p. 493-499; Sobre as relações entre a indústria portuguesa e a estrangeira no século XIX. Análise Social, Lisboa, 2 ª. série, v. 16, n. 61-62, p. 31-52, 1980; A área econômica de Coimbra: estrutura e desenvolvimento industrial, 1867-1927. Coimbra: Comissão de Coordenação, 1984; A indústria em Portugal na segunda metade do século XIX. Biblos, Coimbra, 66, p. 179-191, 1990; História econômica e social dos séculos XV a XX. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

ANTÔNIO BORGES COELHO – SECO AJUSTE António Homem foi garrotado e queimado em Lisboa como negativo sob a acusação de sumo sacerdote dos judeus e, como se só não bastasse, lhe acrescentaram a acusação de sodomia. As provas não convenceram o Pe. António Vieira: “não há patranha em D. Quixote que não tenha mais probabilidade que esta”.18

Não resta equívoco, Borges Coelho coloca o discurso no limite do que se pode denominar de denúncia. Quanto mais o pesquisador penetra nas “astúcias” dos processos e papéis dos arquivos inquisitoriais, mais a escrita pratica o acirramento das aberrações de um tipo de mundo português. As cenas de força do Santo Ofício em Portugal são arranjadas de maneira a constituir um tecido histórico, cujos fios, fabricados pela espetacularidade dos processos, tramam o presente sociocultural do período. A interpretação se

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encarrega de anunciar rígidas tendências no tema da pesquisa, num correlato com os princípios denunciantes que regem a consciência do autor. Borges Coelho encontra na natureza da Inquisição portuguesa, capaz de ameaçar até soberanos, a ramificação mais lateral da tendência que pode sobreviver, em algum lugar, na cultura lusa. A raiz da censura e da repressão é imagem que retroage ao solo de onde partiu. Sua produção historiográfica busca um mimetismo com a situação dos agentes históricos que sofrem, repugnantemente, as ações originadas na cena inquisitorial. Se as ações são intensas num momento e, noutro, frágeis, a única coisa que não deixa de ser autopresente é a ameaça cênica – apta a contaminar outras instituições. Isso faz com que o desenrolar dessa história dramática não apele para reiterações aflitas na compreensão, o que lhe permite impor a narrativa mais seca possível. Assim, as composições do autor entregam-se à passagem selecionada; pois é difícil conceber, como Vieira, um estado de coisas que nem a mais desatenta mente não fosse passível de se horrorizar com falsificação dos processos. Borges Coelho toma o ajuste ético (segundo penso) como atitude que leva a sério a injustiça, de maneira a manter uma solidariedade com os protestos dos que viveram perseguidos ou morreram nas mãos do Santo Ofício.

Alguns escritos do autor: A Revolução de 1383. 5. ed. Lisboa: Caminho, 1984; O tempo e os homens: séculos XII-XIV. In: MEDINA, João (Dir.). História de Portugal. Amadora: Ediclube, D. L. 1994. v. 3, p. 93-193; O tempo e os homens. Lisboa: Caminho, 1996. (Questionar a História, 3); Raízes da expansão portuguesa. 5. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1985; Comunas e conselhos. Lisboa: Prelo, 1973; Portugal na Europa do seu tempo. Lisboa: Seara Nova, 1978; A economia portuguesa no século XX. Lisboa: Edições 70, 1979; Camões e a sua época. Lisboa: Caminhos, 1980.

Alguns escritos dos autores mencionados no texto: Manuel Villaverde Cabral O desenvolvimento do capitalismo em Portugal no século XIX. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981 (1. ed. 1976, elaborada antes de 1974); O operariado nas vésperas da República. Lisboa: Presença, 1977; Portugal na Alvorada do Século

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XX. Lisboa: Regra do Jogo, 1979; Materiais para a história da questão agrária em Portugal. Porto: Inova, 1974.

Antônio de Oliveira O levantamento popular de Arcozelo em 1635. Separata de: Revista Portuguesa de História, Coimbra, 17, 1977; Levantamentos populares no arcebispado de Braga em 1635-1637. Separata de: Bracara Augusta, Braga, v. 34, n. 78-91, jul./dez. 1980; Levantamentos populares no Algarve em 1637-1638: a repressão. Coimbra: IHES, 1983; Contestação fiscal em 1629; as reacções de Lamego e Porto. Separata de: Jornadas de História Moderna, 1ª. , Lisboa, 1986, [Actas] v. 1, Lisboa, CHUL, [1989]; Oposição política em Portugal nas vésperas da Restauração. Separata de: Cuadernos de Historia Moderna, Madrid, 11, 1991; Poder e oposição política em Portugal no período filipino: 1580-1640. Lisboa: Difel, 1991; O âmbito do poder e das oposições ao tempo com Espanha: 15801640. In: Colóquio Internacional Rebélion y Resistência en el Mundo Hispânico de el siglo XVII, Louvaina, 1991, [Actas] Louvaina, 1992, p. 79-94; Poder e sociedade nos séculos XVI e XVII. In: MEDINA, João (Dir.). História de Portugal. Amadora: Ediclube, D. L. 1994. v. 7, p. 11-47; A restauração. In: MEDINA, João (Dir.). História de Portugal. Amadora: Ediclube, D. L. 1994. p. 87-106.

Pedro Lains O proteccionismo em Portugal (1842-1913): em caso mal sucedido de industrialização “concorrencial”. Análise Social, 3ª. série, n. 97, p. 481-503, 1987; A economia portuguesa no século XIX. Crescimento econômico e comércio externo 1851-1913. Lisboa: INCN, 1995; Exportações portuguesas, 1850-1913: a tese da dependência revisitada. Análise Social, n. 91, 1986; A evolução da agricultura e da indústria em Portugal, 1850-1913. Interpretação quantitativa. Lisboa: Banco de Portugal, 1990.

Jaime Reis O atraso econômico português e perspectiva histórica: estudos sobre a economia portuguesa na segunda metade do século XIX, 1850-1930. Lisboa:

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INCN, 1993; A industrialização no país de desenvolvimento lento e tardio: Portugal, 1870-1913. Análise Social, v. 23, n. 96, p. 207-227, 1987.

A HISTÓRIA DA CULTURA, DAS IDÉIAS E DAS MENTALIDADES Cometo aqui uma impropriedade. Isso se dá porque é nessa “expectativa” historiográfica que melhor a teoria do relato se debruça. Não quero aqui esmiuçar apreensões distintas dos historiadores sobre os assuntos. Como também, jogarei para o lado as definições das áreas. Quero tão somente apreciar como, de que maneira, todos aqueles termos definidores de tipos de histórias estão sob um território comum; cujos pedaços são, de um lado, a convidativa palavra Idéias, em maiúscula e no plural é evidente, e outra atraente, a política, em sentido amplo; confirmando a apreensão genérica da disciplina. Evito dizer sobre os motivos, apenas tomo o problema do território a partir de uma vaga e incompleta teoria do relato. E, assim, farei. Mas se vou executar; devo antes reforçar a importância dos estudos de J. S. da Silva Dias e, conseqüentemente, mencionar o valor da Revista de História das Idéias, do Instituto de Teoria e História das Idéias, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Se os valoro, a revista e seu tutor, num quadro narrativo que se diz impróprio, é porque algumas coisas devem estar longe de ameaças – mesmo a mais pueril que seja. Assim vou; cabe perguntar, como? Rapidamente, considero o óbvio nas perspectivas: as áreas de concentração. Aquela a saltar às vistas, de imediato, é a denominada História Social da Cultura, com os seus correspondentes estudos sobre estrutura social, modos de vida, mentalidade social e pensamento social. Em seguida, a dos Quadros Institucionais da Vida Cultural e seus saberes a propósito de escolaridade, academias de intelectuais, sociedades de amigos e similares, bibliotecas, museus, institutos de propaganda e imprensa. Depois, A Vida Cultural, propriamente dita – idéias, tendências literárias e artísticas. Por fim, a História das Instituições, o que provoca quase um retorno à primeira. Dito onde se encontram os marcos, inicio de fato. Um tipo de pensamento historiográfico, sob a égide das três noções do subtítulo (seja em que nação estiver), ao contar o que conta nele e na leitura, introduz-se numa narrativa acerca da qual se perguntará se aquele não se torna “novela”. Neste mínimo conto, quatro desvios são possíveis, de maneira a evitar a adoção da pergunta.

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O primeiro desvio é o que propõe um discurso como método, de modo a conduzir o histórico sob a alça de mira da razão. Quer dizer: pratica, narrativamente, a política de sua pesquisa, informação e posse teórica. No segundo, as Idéias nada mais são do que discursos naturais à história; logo, os indícios de época, período ou tempo tornam-se objetivados, numa manifestação das existências formais do discurso histórico. O terceiro aproxima a filosofia da narração, buscando uma evasão do último termo. O histórico acontece, portanto, na verdade interior de um conceito. Por último, aquele que ao esclarecer deflora o histórico, a partir de duas línguas, uma correspondente ao ofício e outra resultante do posicionamento do indivíduo no plano político. Nesse, o narrar é uma propriedade dos fragmentos dos dois discursos, cuja relação pensável se dá entre os meios economizados da primeira e o método da segunda. Já terminei. Assim, digo: posso pensar que em nenhum dos historiadores portugueses, e também do lado de cá do Atlântico, mais ao sul, o que poderia ocorrer não acontece, ou seja, a dificuldade do relato, narração ou histórias – pois estas, estão no absoluto enigmático –, contêm todas as possibilidades do ato de contar qualquer e mesma coisa, o homem. Explicando, a narração, os relatos ou as histórias são artifícios que mudam, cuja singularidade é: ser um objeto que muda seu objeto. Se ela muda sua ação, trata-se de explorar a relação mesma com o pensamento, com a linguagem, com a própria atuação e não somente com o seu aspecto. Uma história da cultura, mentalidades ou idéias, deveria pressupor aquela desobjetivação, em função do vigor teórico que os termos trazem; contudo, a apreensão genérica da disciplina (História) impõe a objetivação nas palavras e nenhuma dificuldade sequer é suposta. Deste modo, os quatro desvios anteriormente enunciados dão “conta” do enredo implícito nessa teoria do relato e declaram a impossibilidade do surgimento historiográfico da expressão daquela dificuldade. E, se necessito dar nomes, posso admitir que no primeiro desvio se encontram os historiadores Oliveira Ramos; no segundo, Fernando Catroga, por exemplo; no terceiro desvio, Luís Filipe Barreto é destaque; no último, Reis Torgal e são bons representantes, guardando as devidas distâncias entre eles. Poderia citar outros de inegável relevância, Ana Cristina Araújo, Maria Helena da Cruz Coelho, Amadeu José Carvalho Homem, José Esteves Pereira, Romero de Magalhães, Humberto Baquero Moreno, Sérgio Cunha Soares ou Antônio Manuel Hespanha, e ainda outros mais. Contudo, qualquer um desviar-se-ia daquelas quatro maneiras e cairia nos braços da apreensão genérica da disciplina, evitando assumir a “novela”. Pois, o cansaço que nas primeiras páginas se disse, não foi capaz de sustentar o que a Revolução dos Cravos exi217

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giria, se fosse possível alimentar a sua atmosfera, o nomadismo do pensar – caso se apreenda o acontecimento em combustão.

LUÍS REIS TORGAL – DOTE DO SIGNIFICADO Creio poder aqui escolher um trecho da dissertação do autor, nos idos de 1981. Faço porque o Prefácio do estudo sugere, antes de qualquer coisa, conter o futuro das preocupações historiográficas de fato, extraio, retrospectivamente, os anseios do representante da História das Ideologias, no sentido de estrutura sociocultural das Idéias. Toda obra, literária ou científica, tem um espaço dramático, um espaço que lhe é intrínseco – e a história é profundamente dramática – e um espaço que lhe é extrínseco, mas que condiciona a sua construção. Uma boa parte do trabalho de anos que exigiu a preparação deste livro foi realizada em momentos extremamente agitados e difíceis da minha vida. Em momentos de emotividade e ação devido às alterações políticas de Abril...19

Graus de memória agarram-se à própria pesquisa. E o que se discursa para lá, 1640 a 1670, ecoa, imperceptivelmente, nos anseios de cá. Nunca mais Torgal deixa de impor a si a proeminência dos jogos de espelho anteriores à escrita da História. Tanto é que seu caminho intelectual buscará no cinema e na instrução pública a visa dramática dos anos de censura e repressão; como também, os passos de historiógrafo se achegam à atualidade. Evidentemente, essa feição do seu intelecto resulta da condição que a palavra ideologia funda como meio associativo. Nela se inscreve o necessário do antes e do agora, numa correspondência termo-a-termo que serve à causa da redução do conteúdo ao significado. Isso quer dizer: as formas de conteúdo e a escrita estão em estado pressuposição recíproca. Num plano de quem traz para si o peso de um acontecimento primordial (o 25 de Abril o é de algum jeito), Torgal responsabiliza-se. Ao fazê-lo, descreve a consistência que nada tem de relativo. Não o tendo, a escrita tende à unidade discursiva que, de acordo com a noção de realidade-essência, retira das categorias sociológicas dotes constitutivos da significação historiográfica. Dessa maneira, a voz ativa do discurso coloca o leitor numa posição em que, qualquer que seja a sua visão de mundo, é obrigado a praticá-la num estado de aviso de consciência. Para Torgal, o senso de verdade no discurso histó-

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rico incide (posso dizer) na contradição de que a vida pode ser querida livre, mas há de especificar o quanto de argamassa existe nisso.

Alguns escritos do autor: Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: BGUC, 1981-1982. 2 v.; Acerca do significado sócio-político da “Revolução de 1640”. Revista de Historia das Idéias, Coimbra, 6, p. 301-319, 1984. (Col. Isabel Nobre Vargues). A Revolução de 1920 e a instrução pública. Porto: Paisagem, 1984; Sobre a história do Estado Novo: fontes, bibliografia, áreas de abordagem e problemas metodológicos. Revista de História das Idéias, v. 14, p. 529-554, 1992; Salazarismo, fascismo e Europa. Vértice, p. 41-52, jan./fev. 1993; Salazarismo, Alemanha e Europa: discursos políticos e culturais. Revista de História das Idéias, Coimbra, 16, p. 73-104, 1994; Ingresso no ensino superior – um labirinto de Creta... Aveiro: Estante, 1986.

LUÍS A. DE OLIVEIRA RAMOS – ARTEFATOS DE ILUMINAÇÃO Se, mesmo assim, os textos que representam essas parcelas, além de refazerem tramos do pretérito provocarem críticas, desenvolvimentos e contrapropostas, atiçadas pela reflexão e pela pesquisa, bom será, pois a isso compelem. E a sua reedição conjunta justificar-se-á melhor se o revolver do passado despertar no leitor a consciência da contemporaneidade, a que se deve agregar a meditação prospectiva que a construção do porvir exige, sem sombras de dúvida.20

Em Nota Prévia, a passagem anterior se apresenta. Certa velocidade impressa nos ritmos das frases caracteriza o andamento das perspectivas do autor. Três capacitações dos textos, que irão compor o livro, saltam aos olhos: a espera da crítica fundamentada, a consciência da contemporaneidade e a prospecção do provir – cavar o passado. Em todas elas, fica demonstrado como Oliveira Ramos coloca o problema da importância da História. Independentemente desse pequeno trecho, a escrita do autor se encarrega de configurar aquela postura, assumindo o que posso denominar de técnica de iluminação: pôr à luz o cenário de dada época (seja Pombalina, Liberal, etc.). Esse efeito garante, antes de tudo, a temporalidade do assunto a ser esclarecido. Creio que a freqüência de rápidos e abreviados enfoques das frases em seus textos provenha da finalidade da idéia de iluminação que anteriormente

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sugeri; ou seja: consentir, ao leitor, a visualidade das mudanças de focos familiares ao cenário, expondo assim, na leitura, os motivos essenciais que tecem a História. Salientados nitidamente os “objetos” através da repetição de elementos de importância no discurso, o autor aclara cenas. Se há elucidação das cenas, é porque as mesmas comparecem em forte simplificação; pois o cenário favorece a ligeireza discursiva do autor. É como se Oliveira Ramos adapta-se à “realidade histórica” a propósitos de elegância e utilidade, contidos na noção de luz clássica. Dessa maneira, a escrita histórica do autor estabelece um conjunto de relações em que os agentes encarnam o que as cenas naturalizam. Esse curso alude a tendência de Oliveira Ramos em fazer valer um processo singular de “desenvolvimento” da parte, Portugal, em relação ao todo, Europa; o que acaba demonstrando que a força da trama se dá por favorecimento do cenário anteposto. Nesse caso, a elucidação do processo torna-se mote privilegiado da narrativa; o que me permite dizer: as últimas frases criadas por Oliveira Ramos, nos seus textos, funcionam como cortinas a fechar raciocínios. Se assim é, a fuga permitida pela ironia ganha o mesmo estatuto da seriedade da razão; pois a última locução do trecho citado, em outros escritos isso se repete, parece conter uma densa ambigüidade entre o tropo e a luz: sem sombras de dúvida.

Alguns escritos do autor: Raízes do liberalismo portucalense: dados e observações. Revista de História, Porto, I, 1978; Ilustração ao liberalismo: temas históricos. Porto: Lello & Irmão, 1979; O Porto e a gênese do liberalismo. Porto: [s.n.], 1979; O Porto e as origens do Liberalismo. Subsídios e observações. Porto: Gabinete de História da Cidade, 1981; Portugal e a Revolução Francesa: 1717-1834. Revista da Faculdade de Letras, História, Porto, 2ª. série, 7, p. 155-218, 1990.

FERNANDO CATROGA – FORMA FINAL O século XIX foi o “século da história”, porque foi igualmente o “século dos mortos”.21

Eis a primeira locução, a abrir o arremate do livro. Mas o que ela oferece à compreensão da escrita autoral? Se a vejo começar, atribuo-a figura de 220

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chave; as frases que se seguirão atuam no tom mais baixo imposto pela clave da sentença. Isso me permite dizer: os escritos do autor estão próximos à notícia da forma final. Algo que implica o intenso approach entre a argúcia da morte e a idéia de História. Como assim? Catroga age na escrita como se a infinitude das conexões de elementos históricos contivessem um aviso último de sentido, expresso no caráter temporal que, em si, é inacabável; mas, no âmbito da escritura, se reconhece na natureza tumular. Fico a refletir se o autor não imprimiu na mente a especificidade mensageira da escrita e da história – a mortificação. Sendo esse trabalho, de onde retirei a sentença, a evidência dessa qualidade intelectual na área de História Social da Cultura. Se assim for, a produção historiográfica de Catroga se individualiza por cultivar, em solo acadêmico, a escrita jornalística. Por quê? Porque é da escrita jornalística (numa idealização que não pode ser apreendida no meio que lhe dá suporte) a subtração do “humor” dos acontecimentos, de maneira que, os mesmos, sejam “ritualizados” numa dinâmica a partir das palavras que lhe dão sobrevida – não faz o mesmo certo tipo de discurso histórico, segundo ressonâncias distintas, mas numa igual freqüência? Então, admitindo o que anteriormente se disse, a escrita de Catroga, em razão da atenção às advertências impressas num dado fluxo de tempo, requer a mesma afinidade que o jornalista tem com os acontecimentos. Claro que isso é feito de maneira culta, sendo a sua narrativa histórica a palingenesia das circunstâncias. Mas se o solo do cultivo é acadêmico, em que o viés do imediato não germina, a escrita de Fernando Catroga comparece sob o manto do luto; que nessa obra é evidente, sem impedir comparecimento em outras. De fato, uma escrita da história que se queira histórica, precisa, lutuosamente, “ontologizar” (para usar um termo de Derrida) as ruínas dos testemunhos, de modo a apresentá-los no discurso como comunicação identificável ao acontecido. Este aspecto da escrita do autor, portanto, percebe a notícia da aproximação do pensamento histórico com a exaustão do valor da História na contemporaneidade. Se o século 19 foi, ao mesmo tempo, século da história e século dos mortos, é possível pensar que escrever no âmbito da disciplina, hoje, é pressupor a silhueta fim de um pensar e de um valor herdado; não sendo à-toa o achego do autor à Literatura. Catroga escreve e, ao fazê-lo, indica. Indicado, a escrita aborda a forma final. Porém, caso isso fosse levado ao extremo, o discurso entraria numa área de desentendimento, pois desarrumaria apreensão genérica da disciplina 221

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História. Se não entra em discórdia, nada nega que a sua intelectualidade já apreendeu, de algum jeito, o esgotamento dos pressupostos que defende. Logo, a “porta” citada, me ocorre ser tanto a entrada do saber autoral, expresso em livro, quanto à abertura ao destino de tudo.

Alguns escritos do autor: O republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de outubro de 1910. Coimbra: Faculdade de Letras, 1991. 2 v. A militância laica e a descristialização da morte em Portugal. Coimbra: Faculdade de Letras, 1988; A História da História de Portugal. Em colaboração com Reis Torgal e José Amado Mendes. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.

LUÍS FILIPE BARRETO – ZELO TEÓRICO Eis chegado o ponto de repouso em que essa Introdução se interrompe. O nosso objetivo foi libertar alguns problemas do silêncio ou simplicidade a que tradicionalmente estão condenados. Toda e qualquer questão aqui abordada teve seu horizonte de limite duma Introdução, isto é, uma iniciação a um território. Traçamos apenas o esboço de guia para o acesso a uns poucos lugares do imenso continente formado pela lógica histórica do cultural.22

Ao olhar esta passagem, é possível reconhecer que a historiografia genealógica tem em Portugal a sua personalidade. Filipe Barreto demonstra uma cuidadosa atenção aos complexos jogos de linguagem que fundam a possibilidade de pensar a cultura, através da lógica histórica. Isso requer que o autor saiba ser sua escrita: tanto ato de abordagem, quanto ação nômade. Do primeiro, provém a maneira como a escrita procura captar nuanças na análise dos conceitos, conforme o plano epocal de seus funcionamentos; do segundo, emana a vivacidade de migrar entre as “disciplinas humanísticas”. Nesse sentido, a forma da escrita territorializa silêncios historiográficos e, ao mesmo tempo, fomenta linhas de fuga para melhor problematização. Qualquer um que leia os seus livros, com um pouco de zelo teórico, perceberá o agenciamento produzido. É como se a escrita fomentasse complexidades e, assim fazendo, estabelecesse conexões com outros livros. Seus livros, portanto, configuram-se como árvores de conhecimento; o que significa que mesmo sendo inovador na historiografia portuguesa, a orga-

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nização imagética contém raízes clássicas – nada conspurca tal presença. Isso quer dizer: seus trabalhos são belas interioridades orgânicas. Imitam mundos, com arte conceitual e lógica histórica. Tal aspecto historiográfico repercute círculos binários, em que a influência imposta pelo verbo saber condiciona a análise de discursos altamente selecionados, conforme um olhar problematizante e histórico que decompõe a tarefa em dois: documentos de época portadores de sentido e suspensão dos privilégios do presente. Isso é: de um lado a singularidade epocal e, de outro, a ação de pensar entregue ao próprio tempo – o que significa, evitar qualquer presentismo histórico. Assim sendo, a escrita de Filipe Barreto percebe a incapacidade de instituir enunciados que se refiram a algo como parâmetro individualizante; pois a estrutura da lógica epocal fomenta intróitos históricos, que, por serem, guardam a peculiaridade da abordagem e a especificidade nômade da teoria. Caso isso tenha significação, escrever para o autor (me permito pensar) é pôr, na imensa diversidade intelectual, estratos de sentido, cujas articulações espalham-se no leitor como se fossem aprendizados empíricos – na ordem dos conceitos ou dos problemas.

Alguns escritos do autor: Descobrimentos e Renascimentos: formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI. Lisboa: INCM, 1983; Caminhos do saber no Renascimento Português: estudos de história e teoria da cultura. Lisboa: INCM, 1986; Os descobrimentos e a ordem do saber: uma análise sócio-cultural. Lisboa: Gradiva, 1987; A ordem do saber dos descobrimentos portugueses. Tese (Doutorado) – FLUL, Lisboa: Ed. A., 1992. 2 v.

Obras de alguns autores citados: Humberto Baquero Moreno – sua importância historiográfica mereceria uma outra forma de trato, que não se reduzisse à citação de suas obras e textos; contudo, os limites do capítulo não me permitiram tal exercício. Tensões sociais em Portugal na Idade Média. Porto: Athena, 1975; A Batalha de Alfarrobeira: antecedentes e significado histórico. Coimbra, BGUC,

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1979-1980. 2 v.; Morte de D. Duarte: luta pela regência. In: SARAIVA, José Hermano (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Alfa, 1983. v. 3, p. 107-137; O poder real e suas autarquias locais no trânsito da Idade Média para a Idade Moderna. Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 30, p. 369- 393, 1983; Reflexos da Peste Negra na Crise de 1383-1385. Separata de: Revista Bracara Augusta, Braga, 37 (83-84), jun./dez. 1983; O Norte na Revolução de 1383. Separata de: Gaya, Vila Nova de Gaia, 2, 1984; Movimentos sociais antijudaicos em Portugal no século XV. Ler História, Lisboa, 3, p. 3-11, 1984; Marginalidade e conflitos sociais em Portugal nos séculos XIV e XV: estudos de história. Lisboa: Estampa, 1985; Os movimentos sociais em Portugal nos finais da Idade Média. Revista de Ciências Históricas, Porto, 1, p. 219-225, 1986; Contestação e oposição da nobreza portuguesa ao poder político nos finais da Idade Média. Revista da Faculdade de Letras, História, Porto, 2ª. série, 4, p. 103118, 1987; Les Révolutions Portugaises de la Fin du Moyen Age. In: Colóquio Histoire du Portugal, Histoire Européenne, Paris: 1986, Actes, Paris Fondation Calouste Gulbenkian – Centre Culturel Portugais, 1987, p. 37-42.

João Medina – o mesmo dito para Baquero Moreno cabe ao autor e, de algum jeito, dada a sua importância, as desculpas seriam despropositadas. Eça político. Lisboa: Seara Nova, 1974; Herculano e a Geração de 70. Lisboa: Terra Livre, 1977; (Pref. de José Relvas) Memórias políticas. Lisboa: Terra Livre, 1977; Salazar em França. Lisboa: Ática, 1977; Os primeiros fascistas portugueses: subsídios para a história dos primeiros movimentos fascistas em Portugal anteriores ao nacional-sindicalismo: estudo antológico. Coimbra: [Atlântica], 1978; Salazar e os fascistas: salazarismo e nacional-sindicalismo, a história de um conflito 1932-1935. Amadora: Bertrand, 1979; Eça de Queiroz e a Geração de 70. Lisboa: Moraes, 1980; Afonso Lopes Vieira: anarquista. (Introdução e notas) Lisboa: António Ramos 1980; (Estudo introd. de Joaquim Madureira, Augusto Viveiro e António de la Villa) Machado dos Santos: A Carbonária e a Revolução de Outubro. Lisboa: História & Crítica, 1980; Manuel Teixeira Gomes e Sidónio Paes. Clio, Lisboa, 2, p. 117-129, 1980; Cartas de José Relvas a António Macieira. (Apresentação e notas) Alpiarça: Câmara Municipal, 1981; Um semanário anarquista durante o primeiro governo de Afonso Costa: Terra Livre. Análise Social, Lisboa, 2ª. série, 17 (67-68-69), p. 735-765, 1981; O Zé Povinho durante a República. Clio, Lisboa, 3, p. 103-126, 1981; O Congresso

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fascista em Montreux: 1934. Separata de: Colóquio O fascismo em Portugal, Lisboa, 1980. [Actas] Lisboa: A Regra do Jogo, 1982; As Conferências de Casino e o Socialismo em Portugal. Lisboa: Dom Quixote, 1984; (Dir.). De História contemporânea de Portugal. Lisboa: Amigos do Livro-Multilar, 1985-1990; Un doublé centénaire: “Os Maias” de Eça de Queiroz et Fortunata et Jacinta de Perez Galdos. In: Coloque Eça de Queiroz et la Culture de son temps. [Actes] Paris: Fundação Calouste Gulbenkian-Centre Culturel Portugais, 1988. p. 103-108; Sérgio e Sidónio: estudo do ideário sergiano na revista Pela Grei (1918-1919). In: Estudos sobre António Sérgio. Lisboa: CHUL, 1988; “Oh! A República!...” Estudos sobre republicanismo e a Primeira República Portuguesa. Lisboa: INIC, 1990; Mystique: la Relique d’Eça de Queiroz. In: Sep. Mirroirs de l’Altérité et Voyages au Proche Orient, Paris, 1990; John Bull and Zé Povinho: The Clash between two national stereotypes: a centennial remembrance of the 1890 British Ultimatum to Portugal. Separata de: Islenha, Funchal, 10, Jan./Jun. 1992; O Zé Povinho, caricatura do “Homo Lusitanus”: estudo de história das mentalidades. In: Estudos em homenagem a Jorge Borges de Macedo. Lisboa: INIC, 1992; História de Portugal Contemporâneo: político e institucional. Lisboa: Univ. Aberta, 1994; Morte e transfiguração de Sidónio Pais. Lisboa: Cosmos, 1994.

Ana Cristina de Araújo Revoltas e ideologias em conflito durante as invasões francesas. Revoltas e Revoluções, Coimbra: Instituto de História e Teoria das Idéias da Faculdade de Letras, 2, p. 7-90, 1985.

José Esteves Pereira Silvestre Pinheiro Ferreira: o seu pensamento político. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1974. Henriques Nogueira e a conjuntura portuguesa (1846-1851). Coimbra: [s.n.], 1976; António Ribeiro dos Santos e a polémica do “Novo Código”. Lisboa: [s.n.], 1982.

Maria Helena da Cruz Coelho O mosteiro de Arouca do século X ao século XIII. Coimbra: Centro de História da Universidade, 1977; O Baixo Mondego nos finais da Idade Média:

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estudo de história rural. Coimbra: FLUC, 1983. 2 v.; Homens, espaços e poderes: séculos XI-XVI. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. 2 v.

Joaquim Romero de Magalhães O poder concelio das origens às cortes constituintes: notas de história social. Colab. com Maria Helena da Cruz Coelho. Coimbra: CEFA, 1986; Os conselhos. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 3, p. 175-185; As estruturas de enquadramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os conselhos. Notas econômicas, Coimbra, 4, 1994; 1637: motins da fome. Biblos, Coimbra, 72, p. 319-333, 1976; E assim se abriu judaísmo no Algarve. Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 29, p. 1-73, 1984; O Algarve económico: 1600-1773. Lisboa: Estampa, 1988; Algumas notas sobre o poder municipal no império português durante o século XVI. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, 25-26, p. 21-30, dez. 1988; La Inquisición portuguesa: intento de periodización. Revista de la Inquisición, Madri, 2, 1992; D. João II. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 3, p. 513-521; D. João III. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 3, p. 530540; D. Manuel I. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 3, p. 521-530; A ilha da Madeira na economia atlântica no tempo do infante D. Henrique. In: O Infante e as Ilhas do Atlântico. Funchal: CEHA-SRTC, 1994. p. 15-34.

NOVAS TENDÊNCIAS Bem, se a historiografia portuguesa escolheu para si mesma, sucessiva ou simultaneamente, os quatro desvios anteriormente referidos, é importante incluir, naqueles, as novas vibrações que lhe dão a sobrevida, confirmando o espaço de apreensão genérica da disciplina. A primeira, que escapa para se dizer nova, é retorno do político. Aspecto que incorpora uma dada narratividade, mas que ainda se mantém presa à “distribuição das cartas” – categorias e conceitos da ciência política ou de base antropológica. Nessa outra exterioridade da velha história política, até porque a palavra é no masculino o sinônimo de astúcia (o que significa ter mais historicida-

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de do que a normalmente se dá “conta”), a escrita que se faz ainda continua a evitar o problema teórico da linguagem como agente do próprio relato. Isto quer dizer: o mito continua a sua vida estacionária, sem ruptura histórica; efeito dos desvios que evitam a dificuldade da narrativa. Como preciso citar algum historiador, prefiro admitir a intervenção sobre um texto de José Tengarrinha. O motivo é ser o autor um grande representante de toda a historiografia dedicada ao assunto, velha ou nova, e, ao mesmo tempo, figura intelectual que pode exemplificar o que se disse até aqui.

JOSÉ TENGARRINHA – DIGNO TRAJETO A maior complexidade do relacionamento entre as forças políticas em Portugal após a Segunda Guerra – comparativamente nos anos que de perto a precederam – coloca à análise histórica problemas novos que julgo deverem motivar uma abordagem específica e sistemática. Tal não aconteceu nos numerosos balanços a propósito do recente 20º. aniversário do 25 de Abril, com a agravante de, por deficiente informação ou ainda fortes preconceitos, quando o assunto foi tocado não raro se ter assistido a deturpações de fatos e interpretações tendenciosas.23

Se uma escrita motiva-se na deliberação da abordagem específica e sistemática, é porque aspira ensinar. Tal aparência me parece distinguir o discurso histórico de José Tengarrinha. O que significa que o autor determina as reflexões objetivando-as. Nesse andamento, a velha máxima da disciplina, “tal como efetivamente aconteceu”, ganha nos seus trabalhos novo status. Isso quer dizer: a forma da escrita de Tengarrinha assume o valor daquela moral, não como dado subjetivo, mas como perfil do bem comum. Nesse sentido, a palavra compreensão deve assumir o caráter de ferramenta cognitiva; revelando a natureza da responsabilidade em escrever história. Contudo, o ato de ensinar pressupõe dar estatura superior ao individual – tanto na aparência pública dos textos, quanto na íntima convicção que os motiva. Os fatos, então, precisam comparecer inteligíveis na escrita; avivados tais e quais estariam se estivessem presentes na consciência de um suposto leitor. Evidentemente, a pressuposição do compreensível só se torna o que é se a escrita estabelecer, para si, um suporte. Esse apoio é o reconhecimento do espírito democrático como ação da inteligência – sendo isso, o que estabelece o grau de coerência historiográfica do autor. Por estudar, já por muitos anos, a contemporaneidade portuguesa, dedicando-se à História da Imprensa e às releituras da historiografia política

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mais recente, Tengarrinha escreve adotando o fim e a norma do conhecimento histórico. O discurso, portanto, se obriga representar a complexidade de um problema histórico, conforme a intencionalidade pedagógica, de maneira a efetivar o compromisso entre o saber e a imparcialidade ética. Essa preocupação do autor estabelece um parâmetro narrativo que se apresenta em blocos de sentido. Essa forma de escrita, se me for possível abusar de uma imagem, é aquela que provém da seguinte situação educacional: uma questão surge em sala e, após ouvir atentamente a demanda, o professor levanta-se, toma nas mãos o giz, como se estivesse segurando a interrogação, caminha para lousa e estabelece um raciocínio, provendo de claro àquilo que é, em si, já intricado por natureza temporal.

Alguns escritos do autor: Obra política de José Estevão. Lisboa: Portugália, 1962 e 1963. 2 v.; História da imprensa periódica portuguesa. Lisboa: Portugália, 1965. Movimentos populares agrários em Portugal. Mem Martins: Europa-América, 1994. 2 v., v. 1: 1751-1807, v. 2: 1808-1825; Estudos de história contemporânea de Portugal. Lisboa: Caminho, 1983; Da liberdade mitificada à liberdade subvertida: uma exploração no interior da repressão à imprensa periódica de 1820 a 1828. Lisboa: Colibri, 1993; Movimentos populares agrários em Portugal. Lisboa: Europa-América, 1994. II: 1808-1825, p. 11-63. Regeneração: a viragem indispensável no processo do capitalismo em Portugal. In: MEDINA, J. (Dir.). História contemporânea de Portugal. [Lisboa: Amigos do Livro, 1985] v. I, p. 127-136; 1870-1890: Charmeira entre o velho e o novo Portugal. In: MEDINA, J. (dir.) História contemporânea de Portugal. [Lisboa: Amigos do Livro, 1985]. v. I, p. 177-196. Movimento grevista e sociedade em movimento: uma perspectiva histórica até 1920. In: Estudos de História Contemporânea de Portugal. Lisboa: Caminho, 1983. p. 35-83; Os caminhos da unidade democrática contra o Estado Novo. Separata de: Revista de História das Idéias, Coimbra, 16, 1994; Combates pela democracia. Lisboa: Seara Nova, 1976. Retornando, apresento a segunda tendência que se nomeia de “revalorização da narrativa”. Quero primeiro citar três expressivos representantes, Nuno Severiano Teixeira, Maria de Fátima Bonifácio e Vasco Pulido Valente; haveria outros com certeza. Após tal recorrência, falo: a questão da narrativa ganharia muitas páginas e pouca eficiência teórica no domínio historiográfico se, aqui, se

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desejasse dar-lhe trato. Muitas coisas foram ditas, interessantes ou desprezíveis, contudo, devo pensar a partir da teoria do relato. Sendo deste modo, apenas aprecio a fixação ao infinito do horizonte narrativo como sua dificuldade. Nela, os acontecimentos, os fatos, as questões, as hipóteses, as perspectivas, sem evitar a pergunta se o pensamento não se torna “novela”, deveria supor as potências narrativas em graus superpostos; de forma a criar uma conseqüência no absoluto. Ou seja: dar sentido vivificante a uma história em que nenhum documento, conceito, categoria e similares pudessem, sequer ousar em pedir equivalência à verdade na escrita. Mas como tal grau de eficiência da dificuldade narrativa não acontece na historiografia portuguesa, sendo muito difícil no meio de historiadores de todos os lugares encontrar qualquer evidência disso, a apreensão genérica da disciplina ganha mais um “filho legítimo”. A manutenção dos aparatos narrativos admissíveis no ofício, mesmo que haja mais elasticidade, não chega nunca a ser fábrica e, nem tampouco, mundo virtual. Outra que se segue no âmbito das novas tendências é a denominada por termos tais: Biografia, Prosopografia e Estudo das Elites. Entre seus representantes se encontram Amadeu Carvalho Homem, Alexandre M. Flores, Pedro Freiras e João Barroso da Cunha Montes. Nessa ampla tendência historiográfica, conforme a teoria do relato, vê-se o efeito narrativo que se nega a perceber o próprio movimento. Digo sobre o mecanismo retórico que aprecia não a exploração da ação opaca da ficção, mas a investigação dramatizada das vidas como alegoria fática dos dados históricos. Em tal forma, longe de ser uma propriedade da historiografia portuguesa, concebe-se o benefício da sedução narrativa que vem impressa nos dados históricos (como equivalente à curiosidade do leitor médio e letrado); ao preço do abandono ou da mutilação das potências de interferência que se delimitam as margens da comunicação escrita – expressão, sonhos, delírios, etc. A próxima chama-se a Nova História Regional e Local. Seus maiores representantes são Reis Torgal, Amado Mendes e António de Oliveira. Encontra-se nessa tendência a questão de como fraturar a universalidade expressa na palavra história. O condicionamento de particularidades, só localizadas num singular espaço, recomenda atenção e cuidado dos historiadores envolvidos nessa perspectiva. O risco de a proeza investigativa cair nos braços da descrição, conforme um anseio antropológico, é bastante evidente, para que, aqui, se comente. Essa “esperança historiográfica” talvez seja a mais pertinente garantia dos desvios

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anunciados. A demarcação de um espaço regional, com dada identidade, pode sugerir a sobrevida de um desígnio para a metamorfose do mercantil. Isto é: numa sociedade de convergência absoluta à equivalência genérica entre as coisas, homens e idéias, um certo produto exótico é mercadoria cara ou curiosa – como a correspondência existente entre um diamante na vitrine, numa loja cara, e o artesanato sob a barraca de rua; onde ambas atingem o mesmo aspecto social da curiosidade identificadora. Sendo assim, o que cabe à teoria do relato dizer é: a mudança no pensamento, sobre o pedestal ou o instrumento rústico daquele idêntico, arranca o conteúdo objetivo de um problema e o modela num teatro. Logo, a escrita estabelece, por capacidade ilusionista, um pensamento de dentro daquela identidade regional. E quando o faz, forma um espaço mercantil onde os olhos do historiador, suas mãos, e as coisas eleitas, entram numa curiosa economia política; cujo valor de troca já se colocou como substituto inalienável da crítica. Por fim, a tendência historiográfica denominada a História e as Mulheres ou de Gênero. Alguns de seus maiores representantes historiográficos são: Manuela Silva, Joaquim Ferreira Gomes, Maria Regina A. Tavares da Silva, Irene Maria Veguinhas. De acordo com o direito adquirido, nada há a opor. Contudo, a forma da escrita quase sempre engajada, a priori, já comunga um dos desvios enunciados. Falo do segundo, aquele em que as Idéias nada mais são do que discursos naturais à história; mas que nessa “esperança” é agravado. Nesse tipo de escrita da história, o admissível é uma maneira de acesso às operações que dissimulam a dificuldade narrativa. A miséria do discurso é um padrão comum, pois o ato de discípulo aos imperativos do presente dirige as reprovações a valores que os mesmo inventam. A abdicação imperiosa de problemas afeta, enormemente, a posição da crítica nesse andamento histórico. Parece ser uma perspectiva muito presa ao que posso chamar de exportação cultural e a sua correspondente penúria discursiva. Para que houvesse de fato uma historiografia com tal “esperança”, a anacronia ou ucronia deveria tornar-se o ápice do processo narrativo. Isto porque, lá onde falta equivalência, urge perceber as operações de desvelamento nos relatos – teóricos sempre. Mas como as Idéias nada mais são do que discursos naturais à História, a abordagem da dificuldade da narração não acontece. Se ocorresse, a língua do pensamento encontraria a potência dos níveis de terreno, onde as marcas temporais demonstrariam a necessidade do cunho ocasional do traço de um problema.

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Claro que era passível trazer ao texto outras tendências. Contudo, as que não denominei estão – melhor seria dizer, deveriam – nos limites da apreensão comum da disciplina. Digo sobre a História da Arte – tendo como representantes, principalmente, José Augusto França; como também a Jorge Henrique Pais da Silva, Paulo Pereira e Pedro Dias –; sobre a Arqueologia histórica na pessoa de Jorge Custódio, Amado Mendes, Paulo Oliveira Ramos; e até a denominada História e Cultura Pré-Clássica e seus dignos representantes: Oliveira Jorge, Cláudio Torres, João Carlos de Sena Martinez e outros. Logo, devo retomar a abertura dessa parte do capítulo sobre a historiografia pós1974, dando fim ao corpo do trabalho. Os disse cansados e que a postura sedentária garantiu a permanência do nome próprio História (agora na sua mais grave difusão: as muitas revistas acadêmicas e as histórias gerais, ao gosto do leitor médio). Mas, ao falar, não convoquei a máxima de que abril pode ser o mais cruel dos meses, mesmo tendo toda a graça da liberdade; pois a mistura de memória e desejo aviva as chuvas da primavera. Avivadas, secos tubérculos institucionais da História, que ainda restavam vivos, ficaram em flor também. Se antes alguns historiadores, pré-1974, que viveram os anos negros da Ditadura, responsabilizavam-se pelo mundo e, depois escreviam História; pós1974, a maior tendência historiográfica é aceitar o encargo de ficar tomando conta da disciplina (não só em Portugal). Nesse “novo” e tão recente lugar, as tensões entre eras, épocas, períodos, qualquer coisa que valha, tão distintos, quanto próximos, ficam à mercê da boba vigilância de quem é ou não anacrônico; de quem é ou não empirista; de quem é ou não moderno e pós-moderno; de quem é ou não desta e daquela escola. Assim sendo, a herança não pode receber mais a contemporaneidade que lhe aguardava – este seria o seu tempo. Ou seja: narrar a dificuldade da narração, perante aqueles historiadores não alinhados ao fascismo, é encontrar recursos históricos, lá no limite, onde se aprende a maneira por que é dito o desacordo entre os homens e o mundo. Mas como se está a se responsabilizar pela matéria, a antecena daquele acontecimento, nunca mais possível, passouse à hora, é a medida grave da frouxidão dos problemas e das questões. O nomadismo inerente à Revolução dos Cravos não pode impedir a institucionalização da velha senhora, a História.

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NOTAS COMPLEMENTARES Os autores e as correspondentes obras que serão listados, por cortes tradicionais à História, mesmo que já tenham comparecido no corpo do trabalho, apenas formam um panorama da historiografia portuguesa recente. Não se quer, aqui, estabelecer critérios de valor, em desuso, para tê-los fora ou dentro do texto, e nem esgotar a bibliografia que o tema exige. No entanto, muitos dos que a seguir estarão presentes assumiram papéis de destaque na produção histórica em Portugal; confirmando a tendência historiográfica proveniente da liberdade pós-25 de bril. Caso alguma omissão aconteça, minhas sinceras desculpas. Caso meu conhecimento não seja tão exaustivo como deveria ter sido necessário, novas escusas. Por fim, ao julgamento dos leitores a contribuição que se faz possível.

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Fernando de Sousa A população portuguesa nos inícios do século XIX. Tese (Doutorado) – FLUP, Porto: Ed. A., 1980. 2 v.; Os rendimentos das ordens religiosas nos finais do Antigo Regime. Separata de: Revista de História Econômica e Social, Lisboa, 7, 1981.

Fernando Medeiros A sociedade e a economia portuguesa nas origens do salazarismo. Lisboa: Regra do Jogo, 1978.

Fernando Rosas O Estado Novo nos anos 30. Lisboa: Estampa, 1986; Salazar e o salazarismo. Lisboa: Dom Quixote, 1989; Portugal entre a paz e a guerra: estudo do impacto da II Guerra Mundial na economia e na sociedade portuguesa 19391945. Lisboa: Estampa, 1990; SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira. (Dir.). Nova história de Portugal. Lisboa: Presença, 1992. v. 12: Portugal e o Estado Novo (1930-1960); MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994. v. 7: O Estado Novo (1926-1974).

Franco Nogueira História de Portugal, 1933-1974. Porto: Civilização, 1981; Salazar. Lisboa: Civilização, 1983 e 1986. v. III e IV; Um político confessa-se (diário 1960-1968). Lisboa: Civilização, 1986.

Helder Adegar Fonseca O Alentejo no século XIX. Economia e atitudes econômicas. Lisboa: INCN, 1996.

242

Capítulo 8

Hipólito de la Torre Gómez Conspiração contra Portugal, 1919-1912. As relações políticas entre Portugal e Espanha. Lisboa: Livros Horizonte, 1978; Na encruzilhada da Grande Guerra, 1913-1919. Lisboa: Estampa, 1980; (Col. com A. H. Oliveira Marques) Contra-revolução. Documentos para a história da primeira república portuguesa. Lisboa: Perspectiva e Realidades, [1982]; (Col. com Josep Sánchez Cervelló) Portugal en el siglo XX. Madrid: Istmo, 1992.

Isabel Nobre Vargues A aprendizagem da cidadania em Portugal (1820-1823). Coimbra: Minerva, 1997.

Jacinto Batista O cinco de Outubro. Lisboa: Bertrand, 1978. (1. ed. 1964)

João B. Serra Elites locais e competição eleitoral em 1911. Análise Social, Lisboa, 3ª. série, v. 23, n. 95, p. 59-95, 1987; Do 5 de outubro ao 28 de maio: a instabilidade permanente. In: REIS, Antonio (Dir.). Portugal Contemporâneo: 1820-1992. Lisboa: Alfa, 1990. v. 3, p. 13-84.

João César Neves O desenvolvimento económico português e o padrão transversal de crescimento, 1833-1985. Análise Social, n. 112/113, p. 807-822, 1991.

João Morais e Luís Violante Contribuição para uma cronologia dos fatos econômicos e sociais, Portugal 1926-1985. Lisboa: Livros Horizonte, 1986.

243

Capítulo 8

Joaquín Del Moral Ruiz La Hacienda portuguesa en la crisis final del Antiguo Régimen, 17981833. In: O Liberalismo na Península Ibérica na metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa, 1982. v. 1, p. 175-187.

Jorge Borges de Macedo A problemática tecnológica no processo da continuidade RepúblicaDitadura Militar-Estado-Novo. Economia, v. III, n. 3, 1979; O anticlericalismo em Portugal no século XIX. Ensaios de uma perspectiva sociológica. In: Communio, n. 5, p. 440-450, 1985; Marcelo Caetano e Marcelismo. Lisboa: Colibri, 1995.

Jorge Campinos A ditadura militar, 1926-1933. Lisboa: Dom Quixote, 1975.

Jorge Couto O Colégio dos Jesuítas do Recife e o destino do seu patrimônio: 1751-1777. Lisboa: Ed. A., 1990. 2 v.; As estratégias de implantação da Companhia de Jesus no Brasil. In: Instituto de Estudos Avançados. São Paulo: Univ. de São Paulo, 1992; O Brasil pombalino. In: MEDINA, João (Dir.). História de Portugal. Amadora: Ediclube, D. L. 1994. v. 5, p. 113-131.

Jorge do Ó O lugar de Salazar. Lisboa: Alfa, 1990; (Colab. com Fernando Rosas) Estado Novo – das origens ao fim da autarcia. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1986.

Jorge Pedreira Indústria e atraso econômico em Portugal (1800-1825). Análise Social, n. 97, 3ª. série, p. 563-596, 1987; Estrutura industrial e mercado colonial: Portugal e Brasil (1780-1830). Lisboa: Difel, 1994.

244

Capítulo 8

José-Augusto França Le romantism au Portugal: étude des faits socio-cultureles. Paris. Klincksieck, 1975 (obra publicada em português, em 6 v., em 1974-1975, por Livros Horizonte, com o título O Romantismo em Portugal. Estudo de factos sócio-culturais).

José Henrique Dias José Ferreira Borges: política e economia. Lisboa: INIC, 1988.

José Medeiros Ferreira O comportamento político dos militares – forças armadas e regimes políticos no século XX. Lisboa: Estampa, 1992; Características históricas da política externa portuguesa entre 1890 e entrada na ONU. In: A política internacional. Lisboa: 1993. v. I, p. 113-156.

José Viriato Capela Escravatura. A empresa de saque. O abolicionismo (1810-1875). Porto: Afrontamento, 1974; A burguesia do Porto e as colônias (1834-1900). Porto: Afrontamento, 1975; O impacto de palhota e a introdução do modo de produção capitalista nas colônias. Porto: Afrontamento, 1977; As burguesias portuguesas e a abolição do tráfico da escravatura, 1810-1842. Porto: Afrontamento, 1979; (Colab. com João A. Nunes) O concelho Barcelos do Antigo Regime à Primeira República: fonte para o seu estudo. Separata de: Barcellos-Revista, Barcellos, v. I, n. 2, 1983; A Câmara, a nobreza e o povo do concelho de Barcellos: a administração do município nos fins do Antigo Regime. Separata de: Barcellos-Revista, Barcellos, 1, 1986; Entre-Douro e Minho 1750-1830: finanças, administração e bloqueamento estruturais no Portugal moderno. Braga: Ed. A., 1987. 3 v.; O município de Braga de 1750 a 1834; o governo econômico e financeiro. Bracara Augusta, Braga, v. 12, n. 91/92, p. 177-404, 1988-1989; O Minho e os seus Municípios; Estudos Económico-administrativos sobre o Município português nos horizontes da reforma liberal. Braga: Universidade do Minho, 1995; Política de corregedores. A actuação dos corregedores nos municípios minhotos no apogeu e crise do Antigo Regime (1750-1834). Braga: Instituto de Ciências Sociais do Minho, 1997.

245

Capítulo 8

Julião Soares de Azevedo Condições econômicas da Revolução de 1820. Lisboa: Empresa Contemporânea de Edições, 1944.

Júlio Rodrigues da Silva A Guarda Nacional, segurança e defesa nacional, 1834-1838. Nação e defesa, Lisboa, 43, p. 87-95, jul./set. 1987; O constitucionalismo setembrista e a Revolução Francesa. Revista de História das Idéias, Coimbra, 10, p. 475-483, 1988; As cortes constituintes de 1837-1838: liberais em confronto. Lisboa: INIC, 1992.

Luís Espinha da Silveira Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas (1800-1827). Análise Social, 97, p. 505-529, 1987; (Coord.). Poder central, poder regional, poder local. Uma perspectiva histórica. Lisboa: Cosmos, 1997; Território e poder. Nas origens do Estado Contemporâneo em Portugal. Cascais: Patrimonia Historica, 1997; Para um índice da produtividade do trabalho agrícola em Portugal na segunda metade do século XIX. Revista de História Econômica e Social, 17, p. 55-70, 1986.

Luís Vidigal Cidadania, caciquismo e poder. Portugal, 1890-1916. Lisboa: Livros Horizonte. 1988; O municipalismo em Portugal no século XVIII. Lisboa: Livros Horizonte, 1989; Câmara, nobreza e povo. Poder e sociedade em Vila Nova de Portimão (1755-1834). Câmara Municipal de Portimão, 1993.

Luísa Tiago de Oliveira A saúde pública no vintismo. Lisboa: João Sá da Costa, 1993.

246

Capítulo 8

M. E. A. Mateus The Agrarian Revolution in 19th Century Portugal: Technological Change, Trade Regimes and Response of Agriculture, Working Paper. Lisboa: Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, 1990.

Magda Pinheiro Chenins de fer, structure, financière de l’Etat et dépendence extérieure au Portugal, 1850-1890. Tese (Doutorado)–Université de Paris, Paris, 1986; Os portugueses e as finanças no dealbar do liberalismo. Lisboa: João Sá da Costa, 1992.

Manuel Braga da Cruz As origens da democracia cristã e o salazarismo. Lisboa: Presença, 1980; Monárquicos e republicanos no Estado Novo. Lisboa: Dom Quixote, 1986; O partido e o Estado no salazarismo. Lisboa: Presença, 1988; As relações entre o Estado e a Igreja. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. Oliveira (Dir.). Nova história de Portugal. Lisboa: Presença, 1992. v. 12, p. 201-221.

Manuel Lucena A evolução do sistema corporativo português. Lisboa: Perspectivas e Realidades, 1976. v. I: O salazarismo, v. 2: O marcelismo; Interpretações do salazarismo: notas de leitura crítica. Análise Social, v. XX, n. 83, p. 423-451, 1984.

Maria Cândido Proença A primeira regeneração: o conceito e a experiência nacional 1820-1823. Lisboa: Livros Horizonte, 1989.

247

Capítulo 8

Maria Carrilho Forças armadas e mudança política em Portugal no século XX. Lisboa: Europa-América,[19--].

Maria de Fátima Bonifácio A Revolução de 9 de Setembro de 1836: a lógica dos acontecimentos. Análise Social, Lisboa, 3ª série, v. 18, n. 71, p. 331-370, 1982; Havia proteccionismo do liberalismo português: política econômica e relações luso-britânicas 1834-1843. 1989. Tese (Doutorado)–FCSH/UNL, Lisboa, 1989; História da guerra civil da Patuléia: 1846-47. Lisboa: Estampa, 1993.

Maria de Fátima Brandão O mercado na comunidade rural: propriedade, herança e família no norte de Portugal, 1800-1900. Análise Social, n. 112-113, p. 613-628, 1991.

Maria de Fátima Nunes O liberalismo português, ideários e ciências: o universo de Marina Miguel Franzini (1800-1860). Lisboa: INIC, 1988.

Maria Eugénia Mata As três faces do fontismo: projectos e realizações. In: Estudos e ensaios em homenagem a Vitorino Magalhães Godinho. Lisboa: Sá da Costa, 1988; (Colab. com A. B. Nunes e Nuno Valério) Portuguese economic growth, 1833-1985. Journal of European Economic History, v. 18, n. 2, p. 291-330, 1992; As finanças públicas portuguesas da Regeneração à Primeira Guerra Mundial. Lisboa: Banco de Portugal, 1993.

248

Capítulo 8

Maria Filomena Mónica O movimento socialista em Portugal: 1875-1934. Lisboa: INCN, 1985; A formação da classe operária portuguesa: antologia da imprensa operária (19501934). Lisboa: ICS, 1986; Os grandes patrões da indústria. Lisboa: Dom Quixote, 1990; O tabaco e o poder. Lisboa: Quetzal, 1992.

Maria de Lourdes Lima dos Santos Intelectuais portugueses na primeira metade do oitocentos. Lisboa: Presença, 1988.

Maria Manuela Rocha Níveis de fortuna e estruturas patrimoniais no Alentejo. Monsaraz, 1800-1850. Análise Social, n. 112-113, 1991, p. 629-651.

Maria Manuela Tavares Ribeiro Portugal e a Revolução de 1848. Coimbra: Minerva, 1990.

Maria Margarida Sobral Neto Regime senhorial, sociedade e vida agrária. O mosteiro de Santa Cruz e a região de Coimbra (1700-1834). 1991. Tese (Doutorado) – FLUC, Coimbra, 1991. 2 v.

Mário Murteira Desenvolvimento, subdesenvolvimento e o modelo português. Lisboa: Presença: GIS, 1979.

249

Capítulo 8

Nuno Gonçalo Monteiro Os rendimentos da aristocracia portuguesa na crise do Antigo Regime. Análise Social, Lisboa, 4 ª. série, v. 26, n. 111, p. 361-384, 1991; Los rendimientos de la aristocracia portuguesa en la crise del antiguo régimen. In: Señor e campesinos en la Península Ibérica, siglos XVIII-XX. Barcelona: P. Saavedra, R. Villares, 1991; Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 4, p. 338-379.

Pedro Tavares de Almeida Eleições e caciquismo no Portugal oitocentista (1868-1890). Lisboa: Difel, 1991.

Ramiro da Costa Elementos para a história do movimento operário em Portugal (18201975). Lisboa: Assírio e Alvim, 1976 e 1979. 2 v.

Rui Feijó Liberalismo e transformação social. A região de Viana, do Antigo Regime a finais da Regeneração. Lisboa: Fragmentos, 1992.

Rui Ramos A idéia republicana e a história da República em Portugal. Análise Social, n. 115, p. 229-239, 1992.

Sacuntala de Miranda A Revolução de Setembro de 1836 – Geografia eleitoral. Lisboa: Livros Horizonte, 1982; Portugal. O ciclo vicioso da dependência, 1890-1939. Lisboa: Teorema, 1991.

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Capítulo 8

Sérgio Campos de Matos O ensino da História nos liceus da I República. O Estudo da História, Lisboa, 7, p. 34-43, nov. 1983; História, mitologia, imaginário nacional: a história no curso dos liceus (1895-1939). Lisboa: Livros Horizonte, 1990; A crise da monarquia constitucional: 1890-1906. In: MEDINA, J. (Dir.). História de Portugal. Amadora: Ediclube, 1994. v. 9, p. 163-180.

Valentim Alexandre Origens do colonialismo português moderno (1822-1890). Lisboa: Sá Costa, 1979; Um momento crucial do subdesenvolvimento português: efeitos econômicos da perda do império brasileiro. Ler História, Lisboa, 7, p. 3-45, 1986; Portugal e abolição do tráfico de escravos (1834-1851). Análise Social, Lisboa, v. 26, n. 111, p. 293-333, 1991; Portugal em África (1825-1974): uma visão geral. Jornadas de Estudios Luso-Españolas, 4ª., Portugal, España y Africa en los últimos cien años, Coord. Hipólito de la Torre, Actas, Mérida, Un. Nacional del Educación a Distancia, 1992; Ideologia, economia e política: a questão colonial na implantação do Estado Novo. Análise Social, Lisboa, v. 28, n. 123-124, p. 1.117-1.136, 1993; Portugal em África 1825-1974: uma pespectiva global. Penélope, Lisboa, 11, 1993; A degradação do império: Portugal e o reconhecimento do Estado brasileiro 1824-1826. Análise Social, Lisboa, v. 28, n. 121, p. 1.117-1.136, 1993; Os sentidos do império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime português. Porto: Afrontamento, 1993; Projecto colonial e abolicionismo. Penélope, Lisboa, 14, 1994.

Vasco Pulido Valente Povo em armas: a revolta nacional de 1808-1809. Análise Social, Lisboa, 2 ª. série, v. 15, n. 57, p. 7-48, 1979; O poder e o povo. A Revolução de 1910. Lisboa: Morais, 1982 (1. ed. 1976). Tentar perceber. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1983; Estudos sobre a Crise Nacional. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, [19--].

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Capítulo 8

Victor de Sá Perspectivas do século XIX. Lisboa: Portugália, 1964; A crise do liberalismo e as primeiras manifestações das idéias socialistas em Portugal (1820-1852). Lisboa: Seara Nova, 1969 (3. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1979); A Revolução de Setembro de 1836. Lisboa: Dom Quixote, 1969 (reedição posterior).

Zília Osório de Castro Cultura e política. Manuel Borges Carneiro e o Vintismo. Lisboa: INIC, 1990. 2 v.

Outros domínios História da Arte Artur Nobre de Gusmão Aspectos da arte em Portugal no século XVIII. (Dir.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.

Carlos Alberto Ferreira de Almeida Arte da Alta Idade Média em Portugal. Lisboa: Alfa, 1988; Arte romântica em Portugal. Lisboa: Alfa, 1988.

Jorge de Alarcão História da arte em Portugal. Lisboa: Alfa, 1987. v. I: Do Paleolítico à arte visigótica. (Coord., apres. e concl.); O domínio romano em Portugal. Lisboa: Europa-América, 1988; SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira. (Dir.). Nova história de Portugal. Lisboa: Presença, 1990. v. I: Portugal das origens à romanização.

252

Capítulo 8

Jorge Henrique Pais da Silva Estudos sobre o maneirismo. Lisboa: Estampa, 1986. (1. ed. 1983.); Páginas da história da arte. Lisboa: Estampa, 1986. v. I: Artistas e monumentos, v. II: Estudos e ensaios.

José-Augusto França A arte portuguesa de Oitocentos. Lisboa: Inst. Cultura Portuguesa, 1979; O modernismo na arte portuguesa. Lisboa: Inst. Cultura Portuguesa, 1979; História da arte ocidental: 1780-1980. Lisboa: Livros Horizonte, 1987; Lisboa: urbanismo e arquitectura. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1989.

Pedro Dias A arquitectura manuelina. Porto: Civilização, 1988; Os portais manuelinos do mosteiro dos Jerónimos. Coimbra: Inst. História da Arte, 1993; A arquitectura gótica portuguesa. Lisboa: Estampa, 1994.

Vítor Serrão O Maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. Lisboa: INCM, 1983; Estudos de pintura maneirista e barroca. Lisboa: Caminho, 1990; A pintura maneirista em Portugal. 2. ed. Lisboa: Ministério da Educação/Inst. Cultura e Língua Portuguesa, 1991.

História do Pensamento Econômico António Almodóvar Silvestre Pinheiro Ferreira: o seu pensamento político. Coimbra: Universidade, 1974; As idéias fisiocráticas em Portugal: projecto de investigação. Coimbra: Universidade – FLUC, 1980; O pensamento político em Portugal no século XVIII: António Ribeiro dos Santos. Lisboa: INCM, 1983; Sobre a história das idéias: intervenções, recensões, 1982-1988. Lisboa: CHC/UNL, 1992.

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Capítulo 8

Armando Castro O sistema económico conceitual de José Acúrsio das Neves. Porto: Afrontamento, [19--].

José Maria Amado Mendes Teorias e políticas económicas. In: MATOSO, J. (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 5, p. 409-415.

José Luís Cardoso O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII, 17801808. Lisboa: Estampa, 1989.

História da Igreja António Banha de Andrade Dicionário de história da Igreja em Portugal. (Dir.). Lisboa: Ed. Resistência, 1980.

António do Carmo Reis O Liberalismo e a Igreja Católica. A época de Sua Majestade Imperial de D. Pedro. Lisboa: Ed. Notícias, 1988.

Eugénio dos Santos O oratório no Norte de Portugal (1673-1834): contribuição para o estudo da história religiosa e social. Porto: INIC, 1982; A Igreja em Portugal sob a Monarquia Absoluta. Lisboa: [s.n.], 1993.

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Capítulo 8

José Eduardo Horta Correia Liberalismo e Catolicismo. O problema congreganista (1820-1823). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1974.

Manuel Braga da Cruz Os católicos e a vida pública portuguesa do liberalismo aos tempos de hoje. Reflexão Cristã, Lisboa, v. 14, n. 68, p. 5-20, jan./fev. 1990; As elites católicas nos primórdios do salazarismo. Análise Social, Lisboa, 4ª série, v. 27, n. 116-117, p. 547-554, 1992; As relações entre a Igreja e o Estado liberal – do “cisma” à Concordata (1832-1848). In: O liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX. Lisboa: Sá da Costa, 1982. v. 1, p. 223-235; As relações entre Estado e Igreja. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. Oliveira (Dir.). Nova história de Portugal. Lisboa: Presença, 1992. v. 12, p. 201-221.

História Militar Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda História orgânica e política do exército português. Lisboa: [s.n.], 1896.

Fernando Pereira Marques Exército e sociedade em Portugal no declínio do Antigo Regime e advento do liberalismo. Lisboa: A Regra do Jogo, 1981.

Humberto Baquero Moreno A organização militar em Portugal nos séculos XIV e XV. Revista da Faculdade de Letras, História, Porto, 2ª. série, 8, p. 29-41, 1991.

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João Gouveia Monteiro Cavalaria montada, cavalaria desmontada e infantaria: para uma compreensão global do problema militar nas vésperas da Expansão portuguesa. Revista de História das Idéias, Coimbra, 14, p. 143-194, 1992; A arte militar em Portugal nos finais da Idade Média: estrutura de uma investigação. In: Colóquio sobre o Panorama e Perspectivas Actuais da História Militar em Portugal, 2º., Lisboa, 1991, [Actas] Lisboa: CPHM, D. L., 1993. p. 333-337.

Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da Silva A Guarda Nacional, segurança e defesa nacional: 1834-1838. Nação e Defesa, Lisboa, 43, p. 87-95, jul./set. 1987; A imprensa militar na segunda metade do século XIX. In: Colóquio sobre o Panorama e Perspectivas Actuais da História Militar em Portugal, 2º. , Lisboa, 1991. [Actas] Lisboa: CPHM, D. L., 1993. p. 339-345.

Maria Carrilho Forças armadas e mudança política em Portugal no século XX. Para uma explicação sociológica do papel dos militares. Lisboa: IN-CM, 1985.

Rui Bebiano Sobre a historiografia de temática militar. In: Colóquio e Dia da História Militar, 3º, Portugal e a Europa – sécs. XVII a XX. [Actas] Lisboa: CPHM, 1992. p. 301-309; Guerra e poder em Portugal nos séculos XVII e XVIII: um projecto de história das idéias. In: Colóquio sobre o Panorama e Perspectivas Actuais da História Militar em Portugal, 2º. , Lisboa, 1991. [Actas] Lisboa, CPHM, D. L., 1993. p. 367-375; Organização e papel do exército. In: MATOSO, José (Dir.). História de Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 1993. v. 5, p. 252-263.

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Demografia histórica Amorim Girão Estudos da população portuguesa – evolução demográfica e ocupação do solo continental (1890-1940). Biblos, v. XX, p. 1-22, 1944.

Ana Bela Nunes A evolução da estrutura por sexos da população activa em Portugal – um indicador do crescimento econômico (1890-1981). Análise Social, n. 112/113, p. 707-722, 1991.

Custódio Cónim Portugal e a sua população. Lisboa: Alfa, 1990. 2 v.

Fernando de Sousa A demografia portuguesa em finais do Antigo Regime – aspectos sóciodemográficos de Coruch. Colab. com Manuel Nazareth. Lisboa: Sá da Costa, 1983.

J. Manuel Nazareth O envelhecimento da população portuguesa. Lisboa: [s.n.], 1979; A demografia portuguesa no século XX: principais linhas de evolução e transformação. Análise Social, n. 87-89, p. 963-980, 1985.

João Pedro Ferro A população portuguesa no final do Antigo Regime (1750-1815). Lisboa: Presença, 1995.

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Joel Serrão Demografia portuguesa. Lisboa: Horizonte, 1973.

Maria Norberta Amorim Método de exploração dos livros de registros paroquiais e reconstituição de famílias. Guimarães: Ed. A., 1982; Análise comparativa da evolução da população e sociedade em áreas urbanas e rurais 1580-1980. Cadernos do Noroeste, Braga, v. 3, n. 1/2, p. 287-292, 1990; Demografia histórica (Antigo Regime). Ler História, Lisboa, 21, p. 72-78, 1991.

Miriam Halpern Pereira Livre câmbio e desenvolvimento económico. Portugal na segunda metade do século XIX. Lisboa: Cosmos, 1971. (2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1983).

Orlando Ribeiro Deslocamentos de população em Portugal. In: Ensaios de Geografia Humana e Regional. Lisboa: [s.n.], 1970. v. I.

Sacuntala de Miranda A população portuguesa no século XX: ensaio de demografia histórica. Ler História, n. 18, p. 51-82, 1990; A evolução demográfica. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. (Dir.). Nova história de Portugal. Lisboa: Presença, 1992. v. XII, p. 259-271.

Sousa Franco A população de Portugal – notas para um estudo da estrutura demográfica portuguesa. Boletim do Banco Nacional Ultramarino, Lisboa, n. 75/76, 1968.

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Capítulo 8

Tereza Rodrigues Nascer e morrer na Lisboa Oitocentista. Migrações, mortalidade e desenvolvimento. Lisboa: Cosmos, 1995.

NOTAS * PUC-Rio de Janeiro. ** Prof. Visitante do Instituto de Letras da UERJ. *** Doutoranda do PPGHSC da Puc – Rio. 1 LOPES, Fernando Fardo. Antônio Sérgio na “Renascença Portuguesa”. Revista de História das Idéias, 5; Antônio Sérgio. Coimbra: Instituto de História e Teoria das Idéias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1983. 2 v., p. 408. 2 GODINHO, Vitorino Magalhães. Antônio Sérgio: presença no passado, presença no futuro. In: ______. Ensaios. Humanismo científico e reflexão filosófica. Lisboa: Sá da Costa, 1971. v. 4, p. 263-270. 3 GODINHO, Vitorino Magalhães. Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar. Séculos XIII-XVIII. Lisboa: Difel, 1990. p. 19. Nesse mesmo texto Godinho nota a influência de Antônio Sérgio na obra de Jaime Cortesão. 4 SÉRGIO, Antônio. Correspondência para Raul Proença. Lisboa: D. Quixote/Biblioteca Nacional, 1987. Carta n. 77 de 9 ago. 1923, p. 167. 5 SÉRGIO, Antônio. Breve interpretação da história de Portugal. 10. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1981. 6 Ibid., p. 1. 7 SÉRGIO, Antônio. Obras completas: ensaios. 2. ed. Lisboa: Sá da Costa, 1977. t. II, p. 27. 8 SERRÃO, Joel. Poesia, invenção do homem (dedicado ao poeta Eugénio de Andrade). In: ______. Portugueses somos. Lisboa: Horizonte, 1975. 9 Ibid., p. 119. 10 MARQUES, A. H de Oliveira. Introdução à História dos Gatos em Portugal. In: A historiografia portuguesa hoje. Coord. José Tengarrinha. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 46-47. 11 DIAS, J. S. da Silva. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Lisboa: Presença, 1982. p. 261-262. 12 Essa parte do texto não teria sido possível sem a pesquisa bibliográfica dos alunos Denise Pires de Andrade e Wanderlei Barreiro Lemos. 13 Além dos historiadores que estarão no corpo do texto, apresento outros em Notas complementares. Faço-as localizando a produção historiográfica, conforme nomes e obras sugeridas por José Manuel Tengarrinha no livro Historiografia luso-brasileira contemporânea, publicado pela Edusc. Chamo-as de Notas complementares em razão de serem, antes, anexos, sem qualquer influência nas linhas que se seguirão.

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14 MATTOSO, José. A escrita da história: teoria e métodos. Lisboa: Estampa, 1988. p. 27. 15 HESPANHA, António Manuel. O debate acerca do “Estado Moderno”. In: A historiografia portuguesa hoje. Coord. José Tengarrinha. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 144-145. 16 PEREIRA, Mirian Halpern. A política de emigração portuguesa (1850-1930). In: A historiografia portuguesa hoje. Coord. José Tengarrinha. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 183. 17 MENDES, José M. Amado. A emigração portuguesa nas óticas de Alexandre Herculano, Oliveira Martins e Afonso Costa. Separata de Revista Portuguesa de História, Instituto de História Econômica e Social da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, t. XXIV, p. 294, 1990. 18 COELHO, António Borges. Tópicos para o estudo da relação Universidade e Inquisição (séculos XVI-XVIII). In: ______. Clérigos, mercadores, “judeus” e fidalgos. Lisboa: Caminho, 1994. p. 245-258. 19 TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1981. p. XI. 20 RAMOS, Luís A. de Oliveira. Sob o Signo das “Luzes”. Lisboa: Imprensa NacionalCasa da Moeda, 1988. p. 9. 21 CATROGA, Fernando. O céu da memória – cemitério romântico e culto cívico dos mortos. [Coimbra]: Minerva, 1999. p. 315. 22 BARRETO, Luís Filipe. Caminhos do saber no Renascimento Português – estudos de história e teoria da cultura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986. p. 315. 23 TENGARRINHA, José. Os caminhos da unidade democrática contra o Estado Novo. In: A historiografia portuguesa hoje. Coord. José Tengarrinha. São Paulo: Hucitec, 1999. p. 229.

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A HISTORIOGRAFIA LATINOAMERICANA DA QUESTÃO NACIONAL: NAÇÕES INACABADAS; INIMIGOS DA NAÇÃO E A ONTOLOGIA DA NACIONALIDADE Claudia Wasserman*

Esse artigo pretende discutir o percurso historiográfico da problemática nacional na América Latina. Entender obras e trabalhos que se dedicaram à questão nacional como parte de um conjunto articulado de estudos sobre o mesmo tema permitem desvendar algumas das principais tendências historiográficas presentes nos países latino-americanos, já que esses temas – nacionalismo, nacionalidade, construção das nações e identidade nacional – expressam e simbolizam importantes problemas subcontinentais. Por se tratar de um tema da História que já possui uma trajetória vasta e importante, contendo tantas controvérsias e revisões, entendo a necessidade de mapear e analisar o percurso e o desenvolvimento dos estudos históricos acerca desse conhecimento específico. O estudo da questão nacional na América Latina comporta dois níveis discursivos que me interessam: o discurso político e o discurso historiográfico. Suas análises devem contemplar a dimensão temporal-espacial, as condições concretas da realidade circundante e a história de vida do sujeito que enuncia. Sendo enunciados nas mesmas circunstâncias, os discursos cientifico e político se confundem e estão de tal maneira imbricados que se pode aventar a hipótese da existência de uma certa influência de um sobre o outro. No tocante à questão nacional, os trabalhos de Ciências Sociais (História, Sociologia, Ciência Política) e os discursos políticos têm traços muito semelhantes.

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Num primeiro momento, até o período que se abre com a 1.ª Guerra Mundial, os discursos político e historiográfico estiveram altamente influenciados pelos modelos estrangeiros. As nações européias serviam de parâmetro ideal para a análise das realidades latino-americanas e o paradigma civilizatório era tido como meta a ser alcançada. A partir da 1.ª Guerra Mundial, políticos e intelectuais latino-americanos perderam as ilusões acerca dos modelos estrangeiros, mas a desilusão não se traduziu na busca de alternativas viáveis para o desenvolvimento interno. Embora o marxismo, de um lado, e o nacionalismo, de outro, tenham feito sucesso na América Latina na primeira metade do século 20, os discursos político e historiográfico mantiveram-se fiéis à busca da almejada “civilização” contra a “barbárie” e do “desenvolvimento” contra o “subdesenvolvimento”. O mito do progresso e das “luzes” continuou sendo propalado no discurso modernizador e, sobretudo, o discurso político seguiu exaltando os valores da sociedade moderna ocidental e isso teve efeitos semelhantes no campo historiográfico. Em relação à questão nacional latino-americana, a identidade entre os dois tipos de construção discursiva pode ser identificada em pelo menos três pontos: a idéia de que o processo de construção nacional na América Latina ficou incompleto, a noção de que há obstáculos concretos para alcançar a formação nacional e a identificação de inimigos da nação, ou seja, aqueles que estariam em oposição à completude do processo. Essa semelhança entre o discurso político oficial – enunciado por frações das classes dominantes latinoamericanas – e o pensamento historiográfico renovam a conclusão de que as idéias não estão desfocadas ou “fora do lugar”, mas influenciadas direta ou indiretamente pelos interesses das classes dominantes, ainda que não conscientemente. Essas observações preliminares levam a pensar que, quando se analisa a hegemonia das classes dominantes, ou o domínio das elites, esses processos não ocorrem apenas e tão somente nos universos do mercado e da política, mas também têm grandes implicações no mundo do saber. A preocupação com a revisão da literatura acerca do tema tem como objetivo não percorrer, sem necessidade, um caminho que muitos já traçaram; mas, também se justifica pela observação de tendências historiográficas que remetem a um equívoco de enfoque sobre a centralidade do problema nacional no subcontinente: a tendência a tomar exemplos históricos longínquos como modelos ideais e da idéia de existência ontológica das nações latinoamericanas. Com base na teoria geral contemporânea sobre a construção das nações modernas, desaprovo as idéias de existência ontológica e tento me

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colocar mais próxima dos autores que pensam a nação como uma relação social específica de um determinado momento no desenvolvimento econômico, tecnológico e social de cada país. Um dos temas mais discutidos entre os teóricos da questão nacional é o que diz respeito às origens da nação moderna. Com poucas exceções,1 esses autores situam seu aparecimento no período de transição ao capitalismo e insistem na íntima relação dessas “novas unidades” com o Estado. Muito embora a discussão da gênese das nações modernas gere um confuso debate entre historiadores, sociólogos e teóricos da filosofia política, algumas premissas básicas são aceitas integralmente. Segundo Anderson, por exemplo, “a convergência do capitalismo e da tecnologia da imprensa sobre a diversidade fatal das línguas humanas criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada”. Para ele, as nações modernas são “comunidades imaginadas” e a possibilidade histórica de imaginar esse tipo de unidade só ocorreu de fato quando três conceitos culturais básicos da sociedade medieval entraram em decadência: a idéia de uma língua escrita monopolizada por elites religiosas, a crença da sociedade organizada de maneira natural em torno de dogmas hierárquicos e a concepção de temporalidade, relacionada a paradigmas messiânicos.2 Hobsbawm também entendeu a necessidade de situar o aparecimento do fenômeno nacionalidade na história. Ao discutir a conveniência do levantamento de critérios que possibilitem distinguir uma nação de outras entidades, observa que: “Todas as definições objetivas falharam pela óbvia razão de que, dado que apenas alguns membros da ampla categoria de entidades que se ajustam a tais definições podem, em qualquer tempo, ser descritos como nações, sempre é possível descobrir exceções.”3 O autor descarta também os critérios chamados “subjetivos”, segundo os quais o que determinaria a existência de uma nação seria a “vontade” de ser dos habitantes de certo território ou sua consciência de pertencer àquela unidade. Esses critérios, segundo Hobsbawm, levariam a extremos de voluntarismo e somente serviriam para determinar a existência de uma nacionalidade a posteriori. Neste sentido, conclui que: “a nação pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente. Ela é uma entidade social apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o Estado-nação: e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação”.4 Hobsbawm ainda adverte que “a questão nacional (...) está situada na interseção da política, da tecnologia e da transformação social”,5 ou seja, a existência da nação exigiu historica-

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mente uma série de transformações tecnológicas que ocorreram justamente no período de transição ao capitalismo, e mais especificamente à época da criação da imprensa, da alfabetização e escolarização em massa que permitiram a universalização do fenômeno e a própria adesão às novas entidades. Ambos os autores citados, Hobsbawm e Anderson, recorrem, no entanto, a Ernest Gellner para explicar o aparecimento concreto das nações modernas. Foi Gellner quem introduziu as noções de “invenção”, “artefato” e “engenharia política” no debate em voga. Segundo ele, “ É o nacionalismo que dá origem às nações, e não o contrário. (...) é possível revivificar línguas mortas, inventar tradições, restaurar antigas essências bastante fictícias. No entanto, este aspecto, culturalmente criativo, imaginativo, positivamente inventivo, do ardor nacionalista não deveria permitir que ninguém concluísse erradamente que o nacionalismo é uma invenção ideológica, contingente e artificial(...)”.6

Ao advertir para o fato de que o nacionalismo não é uma “força maquiavélica”, capaz de “despertar” nações adormecidas, Gellner quer dizer que não se pode inferir dessas idéias uma existência ontológica para as nações, pois o próprio nacionalismo é “conseqüência de uma nova forma de organização social, baseada em culturas eruditas profundamente interiorizadas e dependentes do fator educação, sendo cada uma delas protegida pelo seu próprio Estado”.7 Ou seja, “As nações, como modo natural e divino de classificar os homens, como um destino político inerente, embora longamente retardado, são um mito. (...) As nações não estão inscritas na natureza das coisas, não constituem uma versão política da doutrina dos seres naturais. Nem tão-pouco os Estados nacionais representam o destino último dos grupos culturais e étnicos.”8

A título de conclusão,9 pode-se afirmar que as nações são, aos olhos dos cientistas sociais contemporâneos, fenômenos objetivamente modernos e situados historicamente no processo de transição ao capitalismo e que tiveram sua origem no poder dos nacionalismos, ou melhor, na força de projetos nacionalizantes, projetos que demandavam autonomia para determinada região, ou que visavam unidade e centralização política, ou ainda, evocavam a valorização cultural de determinados grupos sociais e outros. Neste artigo, pretendo discutir como a historiografia latino-americana contemporânea considera essa problemática: em que momento histórico situam o surgimento das nações e nacionalidades latino-americanas? Quais os

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elementos ou critérios eleitos pela historiografia para designar “nações” aos países da América Latina? E, principalmente, vou discutir as questões que aparecem nos estudos latino-americanos sobre as identidades nacionais: as idéias de existência ontológica das nações da América Latina, inimigos da nação, incompletudes, desvios, deformações e outras. Grande parte da historiografia latino-americana considera as identidades nacionais como dados empíricos concretos, e as nações, como entidades sociais originárias, que estiveram presentes desde o período pré-colonial, para alguns, desde a colônia, para outros e, no mínimo, desde as independências. Muitas vezes, como no caso dos militares que participaram dos movimentos de independência, essas idéias eram o fruto de um desejo de que existissem nações e nacionalidades nesses territórios, e não da observação atenta e descompromissada desses políticos. Em outros casos, os políticos e pensadores que formularam as idéias de identidades nacionais originárias estavam com sua visão obscurecida pela atração que os modelos francês, inglês ou norte-americano exerciam sobre eles. Assim, ao se deparar com a realidade latino-americana e com as dificuldades de implantação de ordenamentos estáveis em todo o subcontinente, os autores acabavam achando que a América Latina tinha desvios e deformações no processo de formação nacional, ou que esses processos estavam ainda inacabados.Essas características do pensamento latino-americano em relação à questão nacional – existência ontológica de nações, atração por modelos externos, identificação de desvios e deformações no processo de formação das nações e as idéias de incompletude e frustração na constituição dessas entidades sociais – estão presentes em toda a história do subcontinente e trouxeram conseqüências no campo da historiografia e também conseqüências políticosociais, como por exemplo a idéia da existência de inimigos da nação, responsáveis pela obstaculização do processo de formação nacional, responsáveis pela incompletude do processo, pelos desvios e pelas deformações. “Classe e Nação” é título de pelo menos dois estudos sobre nações dos anos 1980. O livro de Ricaurte Soler, editado na Espanha em 1981,10 e o de Octávio Ianni, editado no Brasil em 1986,11 abordam a mesma temática e possuem a mesma perspectiva de “nação incompleta”: “A nação da burguesia não compreende a nação do povo. Os camponeses, mineiros, operários e outras categorias sociais, ou índios, mestiços, negros, mulatos, brancos e outros constituem uma espécie de nação invisível; aparentemente invisível”.12

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Ou de “nação frustrada”: “No obstante, sus limitaciones y contradicciones el liberalismo constituyó un poder social nacional (...) Ese poder social, es sabido, fracasó en su intento de estructurar Estados nacionales económica y, por lo tanto, realmente independientes. Fracasó. Se conservatizó. Degeneró. Fue literalmente absorbido por el imperialismo.”13

As noções de incompletude e frustração, no que diz respeito à questão nacional, estão presentes em outros autores, como por exemplo Luis Vitale: “La burguesía criolla resolvió a medias la cuestión nacional. (...) La persistencia de problemas nacionales irresueltos, como la variedad de etnias y lenguas, fue un obstáculo para el desarrollo de una literatura nacional masiva en el siglo XIX.”14 São freqüentes na historiografia latino-americana as idéias de nações incompletas, revoluções inacabadas ou movimentos sociais frustrados.15 Todas estas denominações apresentam-se como uma espécie de premonição que não foi cumprida conforme o esperado. O texto de Alejandro Serrano Caldera ilustra perfeitamente esse entusiasmo na adoção de modelos: “La nación europea que se forja en el siglo XVI, trata de formarse en los países de América Latina en el siglo XIX y en el siglo XX sin haberlo logrado del todo.”16 Existem dois problemas a serem discutidos nessas concepções; em primeiro lugar, está presente a premissa da frustração no processo de construção da nação na América Latina, exemplificado também pelas denominações de nação incompleta ou inacabada. E nota-se, também, a idéia subliminar, mas não menos persistente, da preexistência de nações aos processos empíricos escolhidos como referência para o seu aparecimento concreto. As duas questões problemáticas têm a mesma natureza, dizem respeito ao conceito de nação e a definição dos termos correlatos, como identidade nacional, nacionalismo, integração nacional, etc. Além disso, remetem para o problema das origens da nação na América Latina. Enquanto Soler admite que os liberais do século 19 tinham um projeto nacional que foi frustrado pelo processo de “conservantização” dessas elites,17 Ianni remete o problema para o século 20 e, mais especificamente, aos processos de revolução burguesa que, com exceção do México (1910), ele localiza a partir dos anos 1930 e 1940.18 A idéia de frustração no processo de construção da nação supõe que os autores contemporâneos estão diante de um modelo pré-determinado. Ricaurte Soler, por exemplo, atribui aos liberais do século passado o mesmo papel que tiveram as burguesias européias ao longo do século 18, na progressiva dissolução das relações servis, expansão do modo de produção capitalista e no processo de construção das nações modernas. Daí a impressão de frustra-

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ção que emerge da conclusão do autor: os liberais não completaram o projeto nacional; deixaram-no inacabado. Entretanto, sabemos que não o fizeram, justamente porque não eram burgueses, não estavam na Europa e não eram porta-vozes de um processo revolucionário. Preocupado com um período histórico posterior, localizado no começo do século 20, Octávio Ianni também demonstra uma excessiva preocupação em submeter a problemática nacional latino-americana a um modelo pré-concebido: “Em síntese, a revolução burguesa latino-americana não resolve a questão nacional. Produz escassa articulação da sociedade civil com o Estado. Pouco faz no sentido de favorecer, ou generalizar, a metamorfose da população em povo, cidadãos.”19 Ianni está se referindo, evidentemente, às revoluções burguesas européias e ao processo de democratização política decorrente daqueles movimentos. A própria definição de revolução burguesa para os países latino-americanos permanece em ampla discussão, a maior parte dos autores que a discute prefere analisar se as tarefas de implantação e consolidação do modo de produção capitalista foram ou não cumpridas a se arriscar no duvidoso terreno da efetivação da revolução, a exemplo dos processos europeus.20 A crítica que está se fazendo aqui não está relacionada com a adoção de modelos históricos comparativos, mas, sim, com a idéia da existência de modelos ideais. O continente europeu foi pioneiro no processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista, na constituição de Estados nacionais e na discussão dos problemas relativos à nação e nacionalidades. Estudar e discutir outros casos empíricos com base no exemplo ocorrido em primeira mão é altamente pertinente no processo de construção do conhecimento histórico. Deve-se, no entanto, evitar a tentativa de encontrar os mesmos resultados. A conseqüência deste tipo de análise, que toma como modelo ideal a construção das nações européias, tem sido a inútil verificação de “deformações, desvios, incompletudes e frustrações” no processo de construção da nação nos países da América Latina, ou no subcontinente como um todo. O texto de Marcos Kaplan ilustra o desejo implícito de cópia do modelo e a verificação de sua impraticabilidade: “A idéia nacional e a vontade de construir o novo Estado sobre e dentro de grandes marcos geográficos conservam um caráter de abstração e impraticabilidade até hoje. Difundem-se e concretizam-se de modo lento e incompleto. (...) Corresponde à integração superficial um fraco aparecimento do sentimento nacional, não só a nível latino-americano mas também no plano mais localizado dos novos Estados emergentes.”21

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O paradigma europeu foi utilizado desde o período emancipacionista, pelos militares que participaram dos processos de independência. Bolívar, San Martin e Moreno foram exemplos de líderes dos processos de independência que, diante da necessidade de afirmar os novos Estados que surgiram com o fim da dominação metropolitana, ficaram fascinados com o modelo norteamericano. Os exemplos da França e da Inglaterra também estimularam o desejo de construção de uma grande nação latino-americana ou, pelo menos, de várias grandes nações. O conteúdo do Plano Revolucionário de Operações de 1810, atribuído a Mariano Moreno,22 dos escritos de José Maria Morelos,23 no México, e dos Manifesto de Cartagena e Carta de Jamaica,24 escritos por Bolívar em 1812 e 1815, respectivamente, são documentos históricos que atestam a adoção de idéias anti-hispânicas, o forte desejo de transpor a experiência norte-americana ao subcontinente e a convicção da existência de uma comunidade nacional culturalmente identificada que antecedia a luta pela emancipação. Nesses textos, identifica-se claramente a idéia de preexistência de uma identidade coletiva, mas também o indício da confusão espacial que acompanhou o pensamento do século 19: qual a dimensão da identidade existente? Continental, nacional ou provincial? Esse é um dos temas que a historiografia contemporânea tentará responder. A versão desses líderes dos processos de emancipação estava carregada de subjetividade; são textos impregnados de adjetivos e imagens com forte conteúdo valorativo; seus autores se propunham metas políticas e militares que pareciam inadiáveis. Na realidade, entretanto, o acirramento dos localismos e um processo de ruralização, iniciados no final do século 18 e aprofundado na época das reformas bourbônicas, tornava cada vez mais difícil a aproximação entre as diversas regiões do subcontinente e, até mesmo, a implantação de ordenamentos estáveis em países que no período colonial se constituíam como unidades administrativas. Embora a realidade concreta dos países latino-americanos insistisse em contrariar as afirmações de Bolívar, San Martin, Hidalgo, Morelos e Moreno, entre outros, todas essas idéias acerca dos traços de identificação desses povos passaram a fazer parte do repertório principal do pensamento político da América Latina. Políticos e intelectuais passaram, então, a considerações sobre quais eram os obstáculos que impediam a concretização do que era considerado um dado cujos elementos principais estavam presentes e que só faltava a conclusão do processo: a constituição das novas nações. A historiografia do século 19 esteve marcada pela caracterização dos

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obstáculos à consolidação das nações latino-americanas e pelas tentativas de solucionar os problemas que se apresentavam à construção das novas nacionalidades. Uma das principais características do pensamento pós-independência foi a apreciação dos modelos políticos que tinham sido capazes de superar as dificuldades de união nacional, centralização política ou imposição de ordenamentos estáveis. Liberais ou conservadores no campo do pensamento político, os autores desse período, como por exemplo, Sarmiento25 e Alberdi,26 na Argentina; Lucas Alamán27 e José María Luis Mora,28 no México; e Francisco Adolfo de Varnhagen,29 Capistrano de Abreu30 e Euclides da Cunha,31 no Brasil, não eram historiadores ou acadêmicos propriamente ditos, mas suas obras alcançaram alto grau de dedicação à investigação histórica e possuem grande valor documental. Preocupados com os problemas constitucionais dos novos países e com a orientação econômica dos governos, foram influenciados pelo cientificismo que dominava a Europa e atribuíam aos fenômenos da natureza – geografia e clima – e aos fatores raciais, como a mestiçagem, todas as causas dos problemas latino-americanos. Terra, clima e raça constituíam-se como chaves interpretativas dos movimentos políticos, culturais e sociais e como explicações dos infortúnios dos novos países e de seu desenvolvimento inferior frente aos Estados Unidos, por exemplo, povoado por colonos anglo-saxões. Propugnavam o branqueamento da população, através do extermínio do elemento índio ou negro e da imigração massiva de europeus. As idéias de superioridade da raça branca eram tão marcantes no pensamento político da época que mesmo os espanhóis ou latinos eram preteridos em relação ao tipo anglo-saxão. Essa geração de intelectuais repudiava os valores ibéricos e preferia leituras francesas e inglesas. Mas o afastamento cultural das antigas metrópoles não ocorreu com facilidade em todos os casos. Os autores do século passado dividiam-se entre o alinhamento ou rompimento definitivo com os valores da cultura metropolitana. Os liberais, influenciados pela Ilustração francesa, consideravam a independência como um processo necessário e justificado, por isso pretendiam o rompimento definitivo com os valores ibéricos. Os conservadores, católicos e tradicionalistas, por outro lado, tinham considerado os processos de independência como algo inevitável, mas não aceitavam a ruptura com os valores e tradições das antigas metrópoles, tidos como a essência da nacionalidade.Em meados do século 19, valorizar a cultura ibérica ou qualquer outra em detrimento dos valores locais significava, em todos os casos, corroborar a idéia de que, em meio ao caos ocasionado pelas guerras de independência, existia algo de identificação coletiva entre esses povos a preservar, fosse retomando os

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valores ofuscados pela colonização ou recuperando os valores perdidos pela independência. A quantidade de intrigas políticas e golpes que assolavam os países latino-americanos, neste período, levava liberais e conservadores a assumir posturas semelhantes em relação à ordem pública. As principais tendências do pensamento latino-americano do século 19 mantinham as idéias de existência ontológica de nacionalidades e buscavam nos modelos estrangeiros, fossem eles tradicionais (ibéricos) ou progressistas (norte-americano, inglês ou francês), a solução dos problemas enfrentados pelos novos países. Esses problemas eram vistos como deformações e desvios, atribuídos aos fatores climáticos, geográficos e raciais ou à história da dominação espanhola e portuguesa. Embora concordassem na existência prévia de nacionalidades, em relação ao período histórico em que viviam, uns pensavam que essas nacionalidades eram frutos do período pré-colonial e por isso valorizavam discretamente o elemento indígena; outros consideravam-nas como resultado da fusão de vários elementos no período colonial, mas com o predomínio indiscutível do colonizador. A temática da identidade nacional, da nossa especificidade, das dificuldades de ordenamento de identidades tidas como originárias foi uma constante nas discussões políticas e historiográficas latino-americanas. Todos recorriam à busca dos culpados pela situação. Sem fazer juízo de valor do pensamento liberal radical ou moderado e do pensamento conservador, seus representantes recorriam aos modelos externos e sua influência era tida como positiva ou negativa, dependendo da época e do viés ideológico do autor. No começo do século 20, as idéias deterministas não desapareceriam e continuariam por muito tempo influenciando os pensadores latino-americanos, mas o apogeu das economias primário-exportadoras e o desenvolvimento mais acelerado de tecnologias capazes de “driblar” os problemas geoclimáticos, acabariam cedendo espaço à identificação de outras causas para os males das nações latino-americanas. A partir da primeira década do século 20, a história peculiar dos países da América Latina e a política mal orientada seriam consideradas os problemas de origem dessas sociedades. Consolidadas as oligarquias primário-exportadoras no poder, defender a existência de nacionalidades originárias deixou de ter significado tão especial quanto no período anterior. A existência das nações latino-americanas já não dependia apenas dos fatores subjetivos ou da reunião de vontades de um grande número de políticos ilustrados e historiadores comprometidos. As nações deviam sua existência ao trabalho de uma geração da aristocracia fundiária

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fortalecida por seu tipo de atividade econômica (monocultura) e pelo vínculo que estabeleceram com o exterior (atividade exportadora). Essas oligarquias tiveram que “fundar” as bases institucionais dos Estados políticos latino-americanos, eliminando localismos caudilhescos prejudiciais às atividades primário-exportadoras, criando um sistema de pesos e medidas unificado, uniformizando o sistema monetário e eliminando alternativas jacobinas (como as representadas por Artigas no rio da Prata) e retrógradas (como as representadas por Antônio Conselheiro no Nordeste do Brasil). O tipo de pensamento intelectual e as conseqüências historiográficas do período de consolidação das oligarquias latino-americanas teriam pelo menos duas vertentes no que diz respeito às idéias acerca das origens da nação e da nacionalidade: o positivismo e o novo idealismo ou a corrente mais conhecida como “arielistas”. Pensadores como o brasileiro Alberto Torres (18651917),32 os mexicanos Ricardo Rabasa33 e Justo Sierra34 e o argentino José Ingenieros35 mantinham idéias racistas, de degeneração racial e hierarquia das raças. No entanto, relativizavam o determinismo geoclimático e racial para emprestar importância fundamental à política e à administração, como instrumentos para promoção da ordem. Os grupos positivistas eram formados por minorias ilustradas, seguras de que detinham a verdade fundada na ciência e na experiência dos países mais avançados. Seus temas centrais eram a razão, o indivíduo, o progresso, a liberdade, a natureza e o endeusamento da ciência. Quando transladados ao campo da política, esses conceitos eram utilizados como forma de acabar com a anarquia e impor a ordem. O pensamento corrente recomendava a “ordem positiva” como valor central a ser alcançado pelos países latino-americanos para almejar a unidade nacional. Para eles, isso só poderia ser obtido através de um programa político-administrativo “positivo” que garantisse a ordem, a qualquer custo, para chegar ao progresso. Governantes fortes e autoritários passaram a ser considerados como males necessários para atingir essas finalidades. A interpretação positivista da política latino-americana se baseava na convicção de que os países do subcontinente eram incapazes de realizar princípios liberais e democráticos. Tinham uma visão pessimista do desenvolvimento latino-americano e utilizavam termos das Ciências Biológicas, como “continente enfermo” e “pueblo enfermo” para definir os males e anormalidades detectados. Os positivistas reconheciam que seus países tinham características singulares e as limitações da teoria evolucionista os obrigava a considerar essas sociedades como inferiores em uma escala unilinear de civilização. É sin-

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tomático que quase toda a literatura positivista apresentasse no título dos trabalhos a palavra “evolução”. A noção de uma história unilinear era corrente para essa geração. A “religião do progresso” triunfou em quase todos os países da América Latina. Entusiasmados com a possibilidade de seus próprios países se equipararem à “civilização ocidental”, os autores diagnosticavam os males da América Latina como problemas advindos da formação das raças, da ignorância generalizada e da péssima administração dos governantes que se seguiram aos processos de independência. Mesmo os autores positivistas mais incrédulos na possibilidade de obtenção de uma homogeneidade cultural consideravam a nação como um dado, advinda dos processos que ensejaram a dominação oligárquica, como a reforma liberal no México, a proclamação da República no Brasil ou a queda de Rosas na Argentina. Os positivistas confiavam na prosperidade obtida graças ao boom das atividades primário-exportadoras e defendiam os governos oligárquicos, fortes e excludentes, como os únicos capazes de levar os países a atingir o patamar das nações civilizadas. Por outra parte, ao mesmo tempo em que o positivismo se impunha como filosofia política dominante, percebia-se a defesa do indigenismo e do negro brasileiro, a valorização da cultura pré-hispânica, a negação do modelo norte-americano e avaliação dos prejuízos que ele poderia causar. Essas idéias apareceram no final do 19 e início do século 20 e seus principais expoentes fizeram escola no pensamento político latino-americano: o cubano José Martí e o uruguaio José Enrique Rodó. Inauguraram o que mais tarde ficaria conhecido como “Hora americana” e achavam que o principal obstáculo à unidade nacional era a adoção de modelos como o norte-americano. Pensavam que essa adoção frustrava a possibilidade de colocar em prática os processos de unificação nacional. Por isso mesmo, Martí propunha que se realizasse a “segunda Independência”. O ensaio Ariel, do uruguaio José Enrique Rodó (1871-1917), foi publicado em 1900 e evocava um “espírito” latino-americano, rechaçando o utilitarismo e a mediocridade da democracia norte-americana. Proclamado como o profeta do “novo idealismo” latino-americano, Rodó inspirou uma série de intelectuais do subcontinente, chamados “arielistas”. No entanto, sua obra refletia, na verdade, uma versão da interação contínua entre o empirismo (positivismo) e o idealismo (espiritualismo), presentes no pensamento francês do século 18.36 Entre as dissenções do pensamento positivista dominante encontramse autores como o brasileiro Manoel Bonfim,37 os argentinos Paul Grossac (franco-argentino), Ricardo Rojas, Manoel Gálves38 e os mexicanos Antonio

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Caso (1883-1946), José Vasconcelos (1882-1959), o dominicano Pedro Henríquez Ureña (1884-1946) e Alfonso Reyes (1889-1959), protagonistas do “Ateneo de la Juventud”, sociedade fundada em 1909, que reunia os “utopistas”. Esses autores defendiam o ensino da história nacional às gerações futuras como forma de manter valores que não confundissem progresso com civilização e, portanto, evitassem a valorização extremada do materialismo europeu; enalteciam as raças indígena e negra como formadoras da nacionalidade e identificavam a facilidade de miscigenação racial como uma das qualidades herdadas dos povos conquistadores. Rechaçavam as teorias de inferioridade racial e procuravam soluções para os problemas latino-americanos que não passavam pelas tradicionais propostas de branqueamento, mas pela educação. Representaram uma profunda renovação no pensamento intelectual dos seus respectivos países, pois tinham preocupações cosmopolitas e americanistas. A complexidade da vida intelectual latino-americana no começo do século 20 refletia-se na existência concreta de idéias positivistas ao lado de posições influenciadas por Rodó e Martí. Embora as duas correntes concordassem no diagnóstico fatalista e pessimista acerca da realidade dos países da América Latina e apontassem a educação como uma das panacéias para a cura desses males, os positivistas permaneciam ligados às concepções racistas do século 19 e a idéia de atingir o patamar de “civilização” dos países centrais do capitalismo. Os arielistas, por outro lado, consideravam a influência estrangeira, sobretudo dos Estados Unidos, como sintoma de uma dependência econômica, política e cultural altamente prejudicial aos objetivos progressistas dos povos latino-americanos. Achavam que a valorização das raças formadoras da nacionalidade, sua educação para o exercício da democracia e a fusão dos componentes “saudáveis” de cada raça (mestiçagem) seriam o melhor caminho para atingir o progresso social e material. É importante, no entanto, estabelecer os motivos que levaram pensadores como Rodó, Martí, Bonfim, Paul Groussac, Ricardo Rojas, Vasconcelos e outros a discordar do pensamento positivista dominante. A dissidência dos arielistas explica-se a partir do próprio rompimento da chamada “pax oligárquica”. Se o período que vai de, aproximadamente, 1800 a 1910 foi um momento de apogeu das oligarquias primário-exportadoras, de prosperidade econômica e de aparente eliminação dos elementos políticos dissidentes, a fase que se seguiu demonstrou a fragilidade do poder oligárquico, exemplificado nas oscilações de preços dos produtos primários no mercado internacional e no crescimento de reivindicações políticas dos setores não contemplados pela

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“prosperidade”. Enquanto os positivistas estavam destinados a justificar a manutenção das oligarquias no poder, inclusive porque eles ocupavam cargos importantes na administração de alguns países – científicos no governo de Porfírio Díaz, Júlio de Castilhos, governador do Rio Grande do Sul, no Brasil, e José Ingenieros, fiel colaborador dos governos oligárquicos argentinos –, os arielistas ressentiam-se da falta de crítica a essa ideologia dominante e passaram a representar setores sociais que exigiam o rompimento da excludência oligárquica e a valorização nacional. E, mesmo que situados em campos diferentes no que se referia à questão nacional, positivistas e arielistas tinham um deslumbramento pelo progresso e pela civilização ocidental; atração que foi um pouco questionada pelos arielistas, mas que só rompeu-se realmente após a eclosão da 1.ª Guerra Mundial. As décadas entre 1910 e 1940 foram fundamentais no tocante à questão nacional para os países latino-americanos. Neste ponto, é importante retomar a diferenciação entre “movimentos que visavam fundar nações” e “movimentos nacionalistas”. Segundo Hobsbawm, os primeiros constituíam-se de programas políticos que justificavam suas atividades por estarem baseados nos últimos.39 As oligarquias primário-exportadoras dos diferentes países da América Latina poderiam, imbuídas dos mesmos intuitos do italiano Massimo D’Azeglio, da época da Unificação, repetir suas palavras: “Fizemos a Itália; agora precisamos fazer os italianos”, e bastaria trocar os substantivos Itália e italianos por Argentina e argentinos, México e mexicanos, Brasil e brasileiros, etc. Até o início do século 20, não havia um verdadeiro movimento nacionalista nos países da América Latina e o esforço oligárquico por organizar os Estados políticos apenas supunha apoiar-se em uma identidade nacional. Na verdade, e até esse momento, as repúblicas latino-americanas que substituíram os impérios ibéricos refletiam um pouco mais do que as antigas divisões administrativas metropolitanas. Os processos de independência haviam sido realizados por grupos de elite, movidos por incompatibilidades econômicas em relação aos comerciantes metropolitanos. Ainda segundo Hobsbawm, “mesmo entre a minúscula camada dos latifundiários latino-americanos politicamente decisivos, seria anacrônico falarmos nesse período de algo mais que o embrião da “consciência nacional” colombiana, venezuelana, equatoriana etc.”40 Ele completa dizendo que faltava aos países latino-americanos “condições sociais” para o aparecimento concreto dos nacionalismos e da “consciência nacional”. Essas “condições sociais” somente se manifestariam nos países subcontinentais

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a partir do século 20, “no contexto de um estágio particular do desenvolvimento econômico e tecnológico”,41 ou melhor, a partir da consolidação do modo de produção capitalista através da modalidade oligárquico-dependente.42 O que se modificou substancialmente a partir de 1910 foi a intensidade dos debates acerca da questão nacional. Essa problemática apresenta-se reiteradamente no curso da história subcontinental, mas se revela mais importante do ponto de vista prático e teórico em conjunturas críticas como aquela vivida pelos estudiosos latino-americanos do século 20. Essa conjuntura crítica foi determinada pelo impacto causado pela 1.ª Guerra Mundial, Revolução Russa, Revolução Mexicana e a crise das oligarquias primárioexportadoras em toda a América Latina. Conjugados, esses processos históricos resultaram em efeitos de longa duração e grande intensidade no sentido da transformação do pensamento político e social em relação aos países da América Latina. Historiadores, cientistas sociais e políticos militantes foram tomados por duas sensações contraditórias e complementares: o desencanto e a esperança. A 1.ª Guerra Mundial foi chamada pelo historiador marxista argentino Aníbal Ponce de la gran liberatriz ou melhor, “gracias a ella tuvimos desde muy temprano la desconfianza del pasado”.43 Um setor importante da intelectualidade latino-americana compreendeu a guerra como fracasso da cultura européia, como incapacidade da civilização de manter intactas as conquistas materiais e humanas, como crise de um sistema de civilização até então apreciado e tido como modelo ideal para se alcançar o progresso. O desencanto do paradigma europeu vinha acompanhado internamente pela crise da modalidade de desenvolvimento capitalista implantada pelas oligarquias exportadoras. O período anterior à guerra já revelara em alguns países a vulnerabilidade do setor predominante da economia da América Latina em relação às oscilações de preço e demanda dos produtos primários no mercado internacional. Em muitos países, como no Brasil, por exemplo, a 1.ª Guerra e a crise econômica mundial acentuaram a vulnerabilidade e resultaram na certeza de que a divisão internacional do trabalho, que impunha à América Latina a condição de “celeiro do mundo”, era prejudicial e punha em evidência a dimensão mais brutal da relação latino-americana com o resto do mundo: a dependência. As incertezas, a desorientação, o desencanto e o ceticismo causados pela 1.ª Guerra e pela crise do setor primário-exportador davam lugar a esperanças, renovação de utopias, planos e encantamento com processos que ocorriam simultaneamente e pareciam oferecer alternativas possíveis: a Revolução

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Mexicana e a Revolução Russa. Enquanto a primeira constituía-se num testemunho exemplar de resgate da cultura nacional, a segunda apresentava ideais novos para a redenção dos problemas europeus e propunha uma forma radical de romper a dependência econômica. Neste sentido, os intelectuais latinoamericanos começavam a questionar o paradigma da civilização ocidental, a clausura política imposta pela ordem oligárquica e a vulnerabilidade do modelo econômico primário-exportador. Entusiasmados com os processos revolucionários mexicano e russo, vislumbravam a possibilidade de resgatar uma cultura própria e um modelo de desenvolvimento alternativo. Segundo Carlos Rama, (...) el nacionalismo latinoamericano es simultáneo de una crisis reveladora de la estructura social en que se alternan las relaciones antiguas entre sociedad rural y urbana, y se aprecia a través de la industrialización el ascenso del proletariado y las nuevas clases medias. No es extraño que – a menudo – nacionalismo y socialismo aparezcan unidos, o entremezclados, y seguramente algo parecido sucede en otros continentes del Tercer Mundo... asumiendo formas de reación política y cultural frente a vieja dependencia exterior.44

Genericamente, o período que vai de 1910 a 1940 foi uma fase de agitação social e política em todos os países da América Latina. Greves operárias, formação de partidos socialistas e comunistas, anarquismo, radicalismo agrário e movimentos como a Revolução Mexicana, o Tenentismo no Brasil e a Reforma Universitária na Argentina revelam que outros grupos sociais, além dos grupos dominantes, estavam preocupados com a solução dos males latinoamericanos. E, muito embora, a forma e a intensidade dessas manifestações político-sociais tenham sido diversas, bem como seus resultados tenham aparecido mais tardiamente em uns países do que em outros, do ponto de vista intelectual, do pensamento acerca das questões nacionais, pode-se afirmar que a busca das origens da nação, da essência da nacionalidade e de aspectos identitários foram igualmente vigorosos em todos os países do subcontinente. Após a eclosão da 1.ª Guerra, da crise das oligarquias, do início das revoluções mexicana e russa, observava-se um rompimento importante em relação ao paradigma anterior e ao modelo de civilização a ser alcançado, mesmo que o positivismo não tenha desaparecido totalmente do pensamento latino-americano. Nesta época, explodiu a temática nacional: Samuel Ramos,45 no México; Ezequiel Martinez Estrada,46 na Argentina; Gilberto Freire47 e Sérgio Buarque de Holanda,48 no Brasil, são os exemplos mais importantes dessa tendência. Inclusive o professor mexicano Abelardo Villegas considera que

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“Samuel Ramos, Ezequiel Martínez Estrada y Gilberto Freire son los más grandes pensadores nacionalistas de América Latina, y destaca la coincidencia de la aparición se sus primeras obras entre los años 1930 y 1940”.49 Consideravam o passado como um obstáculo e preconizavam a liquidação das raízes como um imperativo do desenvolvimento nacional. Exploraram conceitos polares como sociedade rural x sociedade urbana; tradicional x moderno; personalismo x coletividade; público x privado; contrapunham-se à tentativa de importação de idéias européias e à implantação de cultura forânea. Os brasileiros exaltavam os bandeirantes paulistas, assim como os autores argentinos e mexicanos tentavam recuperar a imagem dos caudilhos, como forças telúricas, que representavam a identidade nacional mais autêntica. Identificavam a nação como entidade cuja existência era indiscutível, pelo menos desde a independência, mas que possuía uma série de vícios e defeitos de origem. Dentre as anomalias da formação do caráter nacional, consideravam o “ritmo lento”, “o despovoamento”, “a herança portuguesa ou espanhola”, a “tendência à imitação” e outros como os males que afetavam a construção da nacionalidade plena em seus países. A nação era vista como “provisória”, “mal feita e mal povoada”. O desprezo pelas massas populares, característico da literatura do período anterior, transformara-se nestes textos em necessidade crescente de valorização e incorporação destas à nacionalidade. No mesmo período, o marxismo latino-americano despontava como importante tendência epistemológica no campo da história nacional. O historiador brasileiro Caio Prado Jr.,50 por exemplo, representou um esforço de interpretação da realidade nacional que tinha muito em comum com os autores nacionalistas. Essa fase consagra-se pela absorção orgânica do marxismo como epistemologia da história, a exemplo de Caio Prado Jr. e da obra do peruano José Carlos Mariátegui (1895-1930), mas também como instrumento de luta política. Do ponto de vista prático, os dirigentes socialistas latinoamericanos seguiam as tendências discutidas e decididas em foros distantes: os congressos internacionais e a prática soviética. Mesmo assim, a questão do nacionalismo e da liberação nacional ocupou papel preponderante na obra dos principais escritores marxistas. Até 1935, proclamavam a necessidade de lutar pela revolução socialista e antiimperialista, simultaneamente. Os movimentos de El Salvador, em 1932, e a Insurreição de 1935, no Brasil, foram exemplares neste sentido. A partir da consolidação de Stalin no poder soviético, os dirigentes latino-americanos passaram a pregar a “revolução por etapas”, conquanto entendiam que o subcontinente precisava cumprir a fase ou etapa

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“nacional democrática”. Entre os autores marxistas, comprometidos com a militância, podemos citar o argentino Ernesto Giudici,51 o dirigente brasileiro Luis Carlos Prestes,52 e o dirigente operário mexicano Vicente Lombardo Toledano.53 As definições de “nacional”, presentes nesses autores, estavam ligadas à idéia de colaboração entre as classes, tônica do movimento comunista no entre-guerras. Apontavam os “inimigos internos” da nação, em oposição aos capazes de satisfazer as necessidades das “massas”. Propunham a “liquidação dos restos feudais”, para possibilitar o desenvolvimento nacional. A Nação era tida como dado apriorístico e as soluções apresentadas estavam baseadas na eliminação de “inimigos retrógrados”, ligados às reminiscências de um suposto feudalismo latino-americano. Neste longo período histórico que começa com a crise do modelo primário-exportador, e das oligarquias que dele se beneficiavam, e se estende até o fim da 2.ª Guerra Mundial, tanto os autores marxistas como os autores nacionalistas demonstravam uma tendência à valorização da mestiçagem, do autenticamente nacional e das classes populares. Preconizavam, ao contrário dos autores do século passado, a necessidade de união das classes sociais como forma de promoção de uma integração nacional. Na luta contra as oligarquias aristocráticas, promoveu-se uma unidade discursiva entre as frações progressistas das classes dominantes latino-americanas e as classes populares. O período das guerras apontava para a crise da almejada civilização ocidental e colocou em xeque a admiração pelos modelos externos; a compreensão da vulnerabilidade do modelo de desenvolvimento capitalista baseado no setor primário-exportador; a indignação contra a excludência oligárquica, aliada ao vislumbramento da alternativa socialista; o consentimento e a cooperação das oligarquias no processo de sucção de excedentes foram os principais elementos para o aparecimento de movimentos nacionalistas não identificados com o nazi-fascismo, com a Igreja ou com idéias antiliberais, mas compostos inclusive por frações das classes dominantes latino-americanas que compreenderam a necessidade de transformações profundas, sob o risco de iminentes rebeliões populares. Não foi por acaso, portanto, que, diferentemente dos autores do século anterior que faziam comparações e citavam os exemplos da Europa e Estados Unidos, a historiografia desse período preconizava a necessidade de aproximação entre os países latino-americanos. Entre os esforços analíticos por superar a tendência isolacionista e buscar a solução conjunta para os problemas latino-americanos, destacou-se a Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), fundada em 1949. A Economia

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Política da CEPAL foi expressa pela primeira vez em um estudo publicado em Nova York, “Economic Survey of Latin America”. Nasceu para explicar a natureza do processo de industrialização que eclodira entre 1914 e 1945, para analisar os problemas e desequilíbrios desse processo em países periféricos e com o objetivo de alertar para a idéia de que a industrialização era o único caminho contra a miséria e contra a dependência em relação aos centros mundiais do capitalismo.54 Para os cepalinos – como Raul Prebisch, Celso Furtado, Anibal Pinto, Oswaldo Sunkel, entre outros – a dependência e a miséria eram resultados da situação periférica, frutos do “modelo de crescimento para fora”. Propunham uma nova etapa no desenvolvimento latino-americano, de “desenvolvimento para dentro”, cujo centro dinâmico da economia se deslocasse para “dentro da Nação”.55 A partir da década de 1960, no entanto, o fracasso quase generalizado das políticas de industrialização, a dificuldade dos governos denominados populistas ou nacionalistas em colocarem em prática as chamadas “reformas estruturais”, a eclosão da Revolução Cubana e a escalada de terror militar implementada a partir do golpe de 1964 no Brasil, foram os elementos concretos que fizeram ruir parte das análises teóricas em voga. No plano teórico, surgiu a Teoria da Dependência para explicar a “não-industrialização nacional”, com o livro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto.56 Além das inúmeras críticas que surgiram a esse estudo – pouca análise econômica, tipologia insuficiente, escassa análise pós-1945, não-modificação da periodização cepalina, semelhança em relação à interpretação cepalina sobre os períodos de transição de uma fase a outra da economia – ressalta, para os objetivos da presente discussão, a característica marcadamente nacionalista da análise desenvolvimentista. A perspectiva do progresso civilizatório, assim como a atração pelos modelos externos, não haviam sido de fato superadas e os teóricos da dependência propunham, na realidade, o entendimento do conceito de “dependência” como forma de completar a industrialização e o desenvolvimento nacional, através da união das classes sociais. A “dependência” se erguia como dimensão única da análise e o conflito entre países dependentes e Estados imperialistas ocupava parte central da discussão, deixando de lado importantes discussões como a luta de classes. A teoria da dependência tornou-se hegemônica no pensamento latinoamericano e inculcou no grosso da intelectualidade da América Latina a convicção de que a “nossa história” é tão original que não caberia encaixá-la dentro de conceitos e teorias (moldes) forâneos. Tratava-se naturalmente de justificar teoricamente certas vias políticas também originais. Em consonância com as idéias intelectuais em voga, neste período, os governantes denomina-

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dos populistas ou nacionalistas tentavam diluir a questão da luta de classes, que apareceu com força na luta pelo socialismo (Revolução Cubana), e faziam um discurso voltado para as aspirações de unidade ontológica. Esta foi a base do moderno pensamento latino-americano. Assim, inauguramos o tempo presente, o pensamento contemporâneo, perguntando-nos sobre a nossa identidade, sobre a questão nacional e os autores continuaram apegados às teses de existência prévia de uma identidade que é, segundo eles, constantemente obstaculizada pelos “outros”. A partir da década de 1970-1980, os historiadores do subcontinente passaram a se dedicar muito mais à história regional e a realizar estudos minuciosos e especializados. Depois dos anos 1990, particularmente, a pretensão de realizar grandes sínteses da história nacional cedeu definitivamente lugar a temas de história das regiões de cada país. Em países imensos como Brasil, México, Argentina e outros, até os anos 1980, o estudo das particularidades regionais havia ficado subsumido aos grandes temas e problemas da nação como um todo. Por isso, a partir dos anos 1980, com uma tomada de consciência da necessidade de atender aos estudos daquelas particularidades, o número de trabalhos que genuinamente iluminavam a questão a respeito da problemática nacional tornou-se limitado. A maior parte dos estudos que mantiveram sua atenção na questão da nação, identidade nacional e nacionalidade demonstrava uma preocupação “os inimigos da nação”, muito em função da bipolarização ideológica da época e da escalada militar em quase todos os países. Também foram freqüentes estudos das supostas características incompletas ou deformadas do desenvolvimento nacional. Outra característica presente entre os autores do final do século 20 foi a continuidade da atração pelos modelos externos, embora também esteja sempre presente a perspectiva e a necessidade de criação de teorias próprias para o estudo da história latino-americana. Mesmo diante das supostas “distorções” no processo de construção das nações latino-americanas, os autores contemporâneos, a exemplo dos autores discutidos anteriormente, não debateram a própria existência das nações. Apresentam-nas como um dado indiscutível, localizado antes ou logo depois das independências, porém inacabado, como por exemplo, na obra de Luis Vitale,57 Carlos Pereyra,58 Jaime Pinski,59 Octávio Ianni:60 “a nação não está pronta, acabada” ou “Na América Latina, a história estaria atravessada pelo precário, inacabado, mestiço, exótico, deslocado, fora do lugar, folclórico. Nações sem povo, sem cidadãos, apenas indivíduos e população”.61 Outros autores, cuja origem não se inscreve na linha historiográfica, mas, sim, intelec-

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tual, literária, como Octávio Paz,62 poderiam ser citados como exemplo dessas tendências. Nesta fase da produção historiográfica latino-americana destacase a continuidade das tendências interpretativas dos períodos anteriores, mas também algumas interpretações diferenciadas, cuja discussão sobre a origem da nação estava acompanhada de estudos empíricos específicos que davam sustentação às propostas teóricas. Muito embora a historiografia latino-americana do século passado e a contemporânea insistam em atribuir às divisões territoriais e de governo americanas o status de nações, uma análise cuidadosa dos processos empíricos que estiveram presentes na formação desses países, como unidades independentes das respectivas metrópoles, será suficiente para comprovar a inexistência concreta dessas unidades. Em primeiro lugar, existiam, no período anterior às emancipações políticas, muitas opiniões contrárias às independências, justamente pelo temor das elites coloniais em perder a unidade imposta rigidamente pelas metrópoles ibéricas. É muito difícil ainda definir as fases através das quais os portugueses nascidos no Brasil, ou espanhóis nascidos no México e Argentina começaram a tomar consciência de si mesmos como americanos, quanto mais como mexicanos, brasileiros ou argentinos. As idéias de fatalidade no nascimento extra-espanhol acompanharam por muito tempo, e após os processos de independência, os descendentes de portugueses e espanhóis na América e isso se deve ao fato de que essa transição – modificação do sentimento de pertencimento – era obstaculizada por diferenças étnicas e sociais que separavam a grande massa de índios e negros, com variadas manifestações de mestiçagem, das elites coloniais proprietárias. Os sentimentos antilusitanos e antiespanhóis – o sentir-se “americano” – estiveram de fato presentes nos processos de emancipação do México, Brasil e da Argentina, mas somente foram incorporadas pelas elites coloniais quando esses processos demonstraram sua inevitabilidade. No momento das independências, não existiam as identificações nacionais e mesmo subcontinentais que existem atualmente. Essa ausência permitia que os militares e líderes da independência de um “país” atuassem em vários pontos do continente. Sobre isso, Edelberto Torres Rivas observa que “a crise do Estado colonial foi o fim da nação hispânica ou hispano-americana. O sonho de Bolívar foi apenas isso, um sonho”.63 Foram possivelmente os sonhos, as paixões, os interesses políticos e o vislumbramento de alternativas de uma “nação melhor” que levaram a maior parte dos pensadores contemporâneos a identificar permanentemente as incompletudes do processo e a identificação dos seus inimigos.

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A literatura contemporânea a respeito da questão nacional nos países latino-americanos é majoritariamente ensaísta. Em geral, os intelectuais que discutem a nação e a nacionalidade não deduzem suas “teses” de estudos empíricos. Assim, as tentativas de entender a questão nacional na América Latina denota a renovação de preocupações presentes nos autores do século 19: presença indiscutível das nacionalidades; nações inacabadas, frustradas ou incompletas; processo de construção nacional carregado de desvios, deformações e anormalidades; presença de “inimigos da nação” que obstaculizam o processo; e, finalmente, uma busca impressionante das origens do processo de construção nacional, como se ela pudesse explicar todos os “males” do seu desenvolvimento.64 Alguns autores contemporâneos alertam para o perigo de buscar as origens da nação e os indícios de identidade nacional em períodos anteriores ao desenvolvimento das condições materiais para a constituição desta unidade, conseguindo diferenciar-se das tendências majoritárias. José Murilo de Carvalho, em seu estudo sobre a simbologia republicana, alerta para a existência de um “anterior sentimento de comunidade, de identidade coletiva, que antigamente podia ser o de pertencer a uma cidade e que modernamente é o de pertencer a uma nação.”; diz ele: “No Brasil do início da República, inexistia tal sentimento. Havia, sem dúvida, alguns elementos que em geral fazem parte de uma identidade nacional, como a unidade da língua, da religião e mesmo a unidade política. A guerra contra o Paraguai na década de 1860 produzira, é certo, um início de sentimento nacional. Mas fora muito limitado pelas complicações impostas pela presença da escravidão... A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação, seria tarefa que iria perseguir a geração intelectual da Primeira República”.65

Torres Rivas, mais explicitamente, em um ensaio sobre a formação do Estado na América Central, afirma que a condição essencial para a consolidação nacional era a formação de um mercado interno. Ele adverte que, “(...) ainda que a nação já existisse como uma realidade cultural, cujos valores básicos eram uma língua comum, uma religião e uma relativa homogeneidade racial, essa realidade só ganhou eminência a partir de determinadas situações de poder. Em outras palavras, faziam falta a essa transformação as possibilidades reais de uma experiência em partilhar instituições políticas comuns e, permeando todos esses níveis societários, uma solidariedade econômica, uma condição de mercado em que encontrassem respaldo os interesses dominantes”.66

Torres Rivas aponta os diversos fatores desintegradores que atuaram após as independências e que, juntamente com a ausência de uma condição de

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mercado, no sentido capitalista do conceito, impediam a integração nacional. Segundo ele, esta integração somente ocorreria a partir da consolidação das economias primário-exportadoras e impulsionada pelos Estados oligárquicos que se constituem a partir da segunda metade do século 19. José Carlos Chiaramonte, por sua parte, escreveu um artigo para combater a idéia generalizada da historiografia latino-americana, segundo a qual a profusão de projetos pós-independência implicava a existência prévia de nacionalidades. Salienta que essa tendência é fruto de uma “necessidade de afirmação de autonomias”, considera que “tal perspectiva es fruto de la voluntad nacionalizadora de la primera historiografía nacional del siglo pasado”, ou seja: “El afán por afirmar los débiles estados surgidos del derrumbe ibérico, fomentando la conciencia de una nacionalidad distinta, propósito explícito en esa historiografía, facilitó la generalizada suposición de que la Independencia fué fruto de la necesidad de autonomía de nacionalidades ya formadas”.67 Ele também se refere à presença de três tipos de sentimentos que existiam no período posterior às independências e que são freqüentemente confundidos, a identidade hispano-americana, prolongamento do sentimento forjado durante o período colonial; a provincial, forjada a partir da pequena localidade; e a rio-platense, e, posteriormente, argentina.68 A coexistência dessas três identidades territoriais e mais a existência de outros tipos de identidade, como familiar, religiosa, de classe social e outras, foram freqüentemente motivo de confusões na Argentina e em todos os outros países da América Latina. O estudo de José Horta Nunes, “Manifestos Modernistas: a identidade nacional no discurso e na língua”,69 remete às questões lingüísticas o processo de formação da nacionalidade e afirma a época do modernismo como da fixação de sentidos nacionais, através da afirmação lingüística evocada pelos manifestos culturais: “O contexto cultural da época dos manifestos se caracteriza pela afirmação da identidade nacional (...) intensifica-se a preocupação com a questão da língua nacional, havendo um esforço para distinguir a língua brasileira das demais, principalmente da portuguesa”.70 Começam a surgir na América Latina dos anos 1990 estudos que divergem das posições recorrentes de “desvios, anomalias, deformações, inimigos, incompletudes”, como por exemplo o estudo sobre cidadania de Maria Cristina Leandro Ferreira.71 As construções estereotipadas sobre o país e o seu povo começaram a ser contestadas com base em trabalhos de “nova história política”, especialmente através da análise de discurso e interpretação da realidade simbólica do passado. Os novos aportes entendem a construção dos este-

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reótipos como determinações históricas, circunstanciais. O conceito de cidadania passou a vincular-se diretamente ao de nacionalidade. Nesses estudos, observa-se a necessária incorporação política e social dos trabalhadores como modo de construir a nação e a nacionalidade, numa clara demonstração de que a historiografia latino-americana vem compatibilizando os conceitos de nação e de cidadania com as experiências históricas concretas.

NOTAS * Professora Adjunto de História e pesquisadora (UFRGS); Drª. em História (UFRJ). [email protected]. 1 AMIN, Samir. La nation arabe. Nationalisme et lutte de classes. Paris: Minuit, 1976. p. 109. Oferece a idéia de uma nação milenar, que nasce e renasce. Os comerciantesguerreiros, por exemplo, já formariam uma nação que posteriormente seria destruída, idéia a partir da qual o surgimento da nação não tem qualquer relação com uma classe social ou com a gênese do capitalismo. 2 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. p. 9-56. 3 HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 15, afirma que língua, território, etnia, traços culturais comuns, religião e outros podem ser importantes, mas não fundamentais para definir a existência desses agrupamentos humanos. 4 HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 19. 5 Ibid. 6 GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Trajectos. Lisboa: Gradiva, 1993. p. 89. 7 Ibid., p. 77. 8 Ibid., p. 78, 79. Grifos meus. 9 Essa introdução tem como objetivo apresentar algumas questões fundamentais sobre a problemática da nação moderna, sem as quais seria impossível o rigor teórico que se pretende nesse estudo; entretanto, não pretende dar conta de todos os autores contemporâneos e tampouco de todas as discussões travadas por eles. 10 SOLER, Ricaurte. Clase y nación. Barcelona: Fontamara, 1981. 11 IANNI, Octávio. Classe e nação. Petrópolis: Vozes, 1986. 12 Ibid., p. 14-15. 13 SOLER, Ricaurte. Clase y nación. Barcelona: Fontamara, 1981. p. 61, 63. 14 VITALE, Luis. Introduccion e una teoria de la História para América Latina. Buenos Aires: Planeta, 1992. p. 260-261. 15 Entre outros autores que compartilham desta visão estão KAPLAN, Marcos. Formação do Estado Nacional na América Latina. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974; BORDA, Fals. As revoluções inacabadas na América Latina (1809-1968). São Paulo:

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Global, 1979; GILLY, Adolfo. La Revolución interrumpida. ed. aum. e corr. México: Era, 1994. A primeira edição foi de 1971; RAMOS, Jorge Abelardo. La Nación inconclusa. Montevideo: Ediciones de la Plaza, 1994. 16 SERRANO CALDERA, Alejandro. La história como reafirmación o como destrucción. In: ZEA, L. (Comp.). Quinientos años de História, sentido y proyección. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. p. 173, grifo meu, A noção de incompletude aparece neste autor de forma explícita nesta passagem. 17 SOLER, Ricaurte. Clase y nación. Barcelona: Fontamara, 1981. 18 IANNI, Octávio. Classe e nação. Petrópolis: Vozes, 1986. 19 Ibid., p. 132. 20 Os autores clássicos dessa discussão são FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1974; SAES, Décio. A formação do estado burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; CUEVA, Agustín. El desarrollo del capitalismo en América Latina. México: Siglo XXI, 1977; KOSSOK, Manfred et al. Las Revoluciones Burguesas. Barcelona: Crítica, 1983. 21 KAPLAN, Marcos. Formação do Estado Nacional na América Latina. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. p. 113. Grifos meus. 22 MORENO, Mariano. Plan Revolucionario de Operaciones. Buenos Aires: Plus Ultra, 1975. 3. ed. p. 24, 25, 26. Originalmente escrito em agosto de 1810. 23 J. M. Morelos, apud BRADING, D. A. Orbe indiano. De la monarquia católica a la república criolla, 1492-1867. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. p. 623. 24 BOLÍVAR, Simón. Escritos políticos. Lisboa: Estampa, 1977. p. 98, intitulada Cartas de Jamaica: resposta de um americano meridional a um cavalheiro desta ilha. Kingston, 6 de setembro de 1815. 25 SARMIENTO, D. F. Facundo o civilización y barbarie. 5. ed. Buenos Aires: Sopena, 1952. Primeira edição de 1845, p. 5. 26 ALBERDI, J. B. Bases y puntos de partida para la organización política de la República argentina. 4. ed. Buenos Aires: Plus Ultra, 1981. Primeira edição de 1852, p. 136. 27 ALAMÁN, L. Disertaciones. In: BRADING, David A. Orbe indiano. De la monarquia católica a la república criolla, 1492-1867. México: Fondo de Cultura Económica, 1991. p. 692. 28 MORA, J. M. L. México y sus Revoluciones. México: Ed. Agustín Yáñez, 1950. 3 v., v. II, p. 230. Primeira edição em 1836. 29 VARNHAGEN, F. A. História geral do Brasil. Antes de sua separação e independência de Portugal. 7. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1959, 6 t., t. I, p. 24. A primeira edição desse tomo data de 1852. 30 ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e estudos, 1ª.série. Rio de Janeiro: Briguiet, 1931. p. 75-76. 31 CUNHA, E. Os sertões. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 30-89. A primeira edição do livro é de 1901. 32 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro: introdução a um programa de organização nacional. 4. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1982. A primeira edição foi de 1914. 33 RABASA, Ricardo. La evolución histórica de México. México: Porrua, 1956. p. 263, 264, escritos de 1920.

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34 SIERRA, Justo. Evolución política del pueblo mexicano. México: Fondo de Cultura Económica, 1940. p. 192-282. Primeira edição de 1910. 35 INGENIEROS, José. La evolución de las ideas Argentinas. Buenos Aires: El Ateneo, 1951. p. 299. A primeira edição foi de 1918. 36 HALE, Charles A. Ideas políticas y sociales en América Latina, 1870-1930. In: BETHELL, L. História de América Latina (cultura y sociedad, 1830-1930). Barcelona: Crítica, 1991. v. 8, p. 1-64. 37 BONFIM, M. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993. p. 173. A primeira edição foi de 1903. 38 Apud HALE, Charles. Ideas políticas y sociales 1870-1930. In: BETHELL, L. História da América Latina. Cultura y sociedad, 1830-1930. Barcelona: Crítica, 1991. v. 8, p. 36. 39 HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital 1848-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 107. 40 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 162. 41 Ibid., 1990, p. 19. 42 CUEVA, Agustín. El desarrollo del capitalismo en America Latina. México: Siglo XXI, 1979. cap. 5. 43 Anibal Ponce apud PORTANTIERO, Juan Carlos. Estudiantes y política en América Latina 1918-1938. El proceso de la Reforma Universitaria. México: Siglo XXI, 1978. p. 29. 44 RAMA, Carlos M. Nacionalismo e historiografia en America Latina. Madrid: Tecnos, 1981. p. 14. 45 RAMOS, Samuel. El perfil del hombre y la cultura en Mexico. México: Espasa-Calpe, 1996. 26. Reimpressão, p. 21-22. A primeira edição deste livro é de 1934. 46 MARTÍNEZ ESTRADA, E. Radiografia de la pampa. 13. ed. Buenos Aires: Losada, 1991. p. 11. A primeira edição é de 1933. 47 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. 22. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1983. A primeira edição é de 1933. 48 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 13. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1979. p. 3, 121. A primeira edição é de 1936. 49 A. Villegas em RAMA, Carlos M. Nacionalismo e historiografia en America Latina. Madrid: Tecnos, 1981. p. 147. 50 PRADO JR., C. Evolução política do Brasil. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. p. 48. A primeira edição foi de 1933. 51 GIUDICI, E. El imperialismo y la liberación nacional. Buenos Aires: Granica, 1974. p. 3-5. A primeira edição é de 1940. 52 PRESTES, L. C. Os problemas atuais da democracia, 1944, apud CARONE, Edgard. A Terceira República (1937-1945). Rio de Janeiro: Difel, 1982. p. 508. 53 LOMBARDO TOLEDANO, V. El Partido Popular, 1947, apud LÖWY, M. op. cit., 1982. p. 161. 54 MELLO, J. M. Cardoso de. O capitalismo tardio. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 20, 21. A primeira edição é de 1982.

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55 Ibid. 56 CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência e desenvolvimento na América Latina. Ensaio de interpretação sociológica. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. A primeira edição é de 1970. 57 VITALE, Luis. Introduccion e una teoria de la História para América Latina. Buenos Aires: Planeta, 1992. p. 204. 58 PEREYRA, C. El sujeto de la história. México: Alianza, 1988. p. 179-192. 59 PINSKY, Jaime. A formação do Estado nacional no Brasil: origens do problema. In: BRUIT, Héctor H. (Org.). Estado e burguesia nacional na América Latina. São Paulo: Icone, 1985. p. 69. 60 IANNI, O. O labirinto latino-americano. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 75. 61 Ibid., p. 77, 78. 62 PAZ, Octávio. El laberinto de la soledad, Postdata e Vuelta a el laberinto de la soledad. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 227. Esta é uma edição popular que reúne três obras do autor, cujas primeiras edições foram publicadas respectivamente em 1950, 1970 e 1979. 63 TORRES RIVAS, E. Sobre a formação do Estado na América Central (hipóteses e questões fundamentais para seu estudo). In: PINHEIRO, Paulo Sérgio. O Estado na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 65. 64 Marc Bloch falava em “obsessão embriogênica” ou “mito das origens” e explicava esse fenômeno como fruto de uma preocupação religiosa – necessidade de explicar a origem da vida – que teria se estendido a outros campos de investigação, como à História, por exemplo. Ainda segundo Bloch, isso provoca o aparecimento de outro “inimigo satânico da verdadeira história: a mania de julgar”. BLOCH, M. Apología para la história o el oficio de historiador. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. p. 144, Edição crítica preparada por Étienne Bloch. 65 CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia. das Letras, 1990. p. 32. O texto de Carvalho é extremamente agradável e rigoroso na utilização de fontes não escritas – monumentos e símbolos republicanos –, mas o que me interessa é que ele é um dos primeiros autores brasileiros a situar o aparecimento da nação na fase de implantação e consolidação do modo de produção capitalista no país, depois do advento da abolição, pelo menos. 66 TORRES RIVAS, E. Sobre a formação do Estado na América Central (hipóteses e questões fundamentais para seu estudo). In: PINHEIRO, Paulo Sérgio. O Estado na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 66. 67 CHIARAMONTE, José Carlos. El problema de los origenes de los Estados hispanoamericanos en la historiografía reciente y el caso del Rio de la Plata. Porto Alegre: Anos 90, UFRGS, n. 1, maio de 1993, p. 50. 68 Ibid., p. 51. 69 NUNES, José Horta. Manifestos modernistas: a identidade nacional no discurso e na língua. In: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso fundador. São Paulo: Pontes, 1993. p. 43-57. 70 NUNES, José Horta. Manifestos modernistas: a identidade nacional no discurso e na língua. In: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso fundador. São Paulo: Pontes, 1993. p. 49.

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71 FERREIRA, M. C. L. A antiética da vantagem e do jeitinho na terra em que Deus é brasileiro (o funcionamento discursivo do clichê no processo de construção da brasilidade) In: ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso fundador. São Paulo: Pontes, 1993. p. 69-79.

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HISTÓRIA E NAÇÃO: TRAJETÓRIA DA HISTORIOGRAFIA CUBANA DO SÉCULO

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Oscar Zanetti Lecuona

Nas páginas que se seguem, tentaremos abordar o processo histórico em Cuba durante o século 20 a partir de um ângulo específico: o discurso histórico da nação. O problema nacional constitui, a nosso ver, o eixo em torno do qual a historiografia cubana articula, por mais de uma centúria, sua missão, dando-nos assim a possibilidade de captar nesta síntese, forçosamente breve, inúmeras manifestações e tendências. A perspectiva adotada, contudo, é, sem dúvida, unilateral e inevitavelmente dá margem a reduções e omissões. As exigências de espaço impõem também um limite às referências, que ficarão circunscritas a estudos precedentes de corte historiográfico, bem como a obras e autores reconhecidamente representativos, mencionados à guisa de ilustração sem que de modo algum pretendamos exaurir o assunto.

A CONSTITUIÇÃO DE UMA HISTÓRIA NACIONAL O século 20 iniciou-se para os cubanos sob um clima de incerteza. Após décadas de combate pela liberdade, o pavilhão espanhol fora finalmente corrido da ilha, mas apenas para ser substituído pela bandeira de listas e estrelas, símbolo de uma ocupação passageira e com prazo definido decorrente da intervenção norte-americana que pusera termo à guerra de independência. A

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preocupação pelo destino do país, que animava então a literatura política, haveria também de calar fundo na historiografia do século nascente. As definições que se impunham no momento ensejaram o esclarecimento das posturas historiográficas. O setor da intelectualidade que nunca havia comungado com a independência desconfiava da capacidade dos cubanos – considerando-os um povo social e etnicamente fragmentado, fruto de séculos de opressão colonial – de edificar um Estado equilibrado e estável, capaz de conduzir a sociedade insular na senda da modernidade. A alternativa era óbvia, tanto mais que já se faziam ouvir opiniões influentes em Washington. Em 1900, um autor cubano radicado nessa cidade, José Ignacio Rodríguez, apressara-se a publicar seu Estudio histórico sobre el origen, desenvolvimiento y manifestaciones prácticas de la idea de la anexión de la Isla de Cuba a los Estados Unidos de América, relato da trajetória quase secular de uma corrente política cujas aspirações o autor cria chegado o momento de concretizar. Mas o sentimento de independência era profundo e suficientemente disseminado para frustrar o projeto de anexação. Em seu lugar aplicou-se a fórmula republicana, posto que com a soberania explicitamente limitada pela Emenda Platt, imposta como apêndice à constituição cubana. Para alguns, essa república seria meramente uma espécie de “preparação” que adestraria os cubanos até o momento de seu ingresso definitivo na União do norte. Acreditou-se que a hora chegara em 1906, quando as discórdias internas romperam a ordem estatal recém-criada e atraíram uma nova intervenção dos Estados Unidos. A “incapacidade cívica” do cubano parecia óbvia e outro historiador anexacionista, Francisco Figueras, encarregou-se de rastrear suas raízes no passado colonial.1 As circunstâncias, contudo, se mostraram francamente adversas ao anexacionismo, tendência que tanto na política quanto na historiografia haveria de subsistir mascarada por uma literatura que exaltava sistematicamente os valores da civilização norte-americana e defendia a necessidade da tutela imperial. Frente a essa tendência, outra tomava corpo, encarnada nos representantes mais coerentes do projeto independentista, cuja prédica fincava raízes nos valores de uma cultura nacional forjada no próprio seio do colonialismo espanhol. A defesa da república soberana, capaz de preservar e eternizar essas tradições, encontrou sua manifestação historiográfica mais destacada na obra de Enrique Collazo. General das guerras de independência, Collazo publica durante a primeira década do século três obras: Cuba independiente (1900), Los americanos en Cuba (1905) e Cuba intervenida (1910), nas quais, afora a

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exaltação da épica libertadora, desvendava os antecedentes e as práticas da política norte-americana na ilha, denunciando suas intenções de dominação imperial.2 Os trabalhos de Collazo e seus seguidores mais imediatos – como Julio Cesar Gandarilla – constituem os alicerces da historiografia nacionalista. A república, porém, era filha de uma transação, plasmada no tortuoso e dilacerante debate que conduziu à aceitação da Emenda Platt. A geração que havia feito a guerra enfrentava agora a difícil tarefa de assegurar, fosse como fosse, a continuidade de seu projeto e a sobrevivência da identidade cubana dentro de moldes institucionais e condições funcionais provenientes do paradigma modernizador norte-americano – e impostos por ele. De outro lado, essa legitimação republicana, que tentava consolidar um Estado nacional precário, tornava-se indispensável para dar credibilidade à nova elite dirigente, que assumia o governo do país em conivência com a dominação, maldisfarçada, de uma potência estrangeira. Para a construção da história “pátria”, contava-se com uma literatura cujos antecedentes remontavam à obra seminal de José Martín Felix de Arrate, no século 18, e, sobretudo, com os estudos, as crônicas e os testemunhos da epopéia da independência publicados pelos protagonistas desse conflito.3 Nociones de Historia de Cuba, obra editada por Vidal Morales, em 1901, e adotada como texto oficial para o ensino primário, apresenta com clareza – talvez por sua formulação singela – os lances da imagem histórica que pretende fixar. Num estilo levemente moderado por laivos positivistas, Morales assume a tarefa de expor as bases históricas do Estado nacional num tom que, em outras partes do continente, fora o da historiografia romântica. Com óbvia intenção idealizadora, o texto narra os feitos notáveis e enaltece as figuras portentosas do processo histórico cubano, mas não esconde a intencionalidade implícita no tratamento indistinto desses acontecimentos e personagens. Assim, ao mesmo tempo em que exalta o heroísmo de um Céspedes, de um Agramonte ou de um Maceo, o anexacionista Narciso López encabeça a lista dos mártires da independência, de sorte que o comando autonomista ficava livre de seu compromisso colonial.4 O melhor expoente do espírito que anima essa história nacional em gestação é, porém, uma obra de tema contemporâneo: Cuba. Los primeros años de independencia, publicada em 1911 e 1912. Seu autor, Rafael Martínez Ortiz, médico de profissão, tece uma extensa e pormenorizada narração dos fatos políticos ocorridos entre 1899 e 1909 (dos quais foi não raro testemunha ou protagonista), unindo à sua visão pessoal dos acontecimentos o recurso a

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numerosas e variadas fontes, que transcreve ou cita com o escrúpulo da melhor tradição positivista. Sóbrio e mesmo superficial em suas interpretações, Martínez Ortiz traça uma imagem conformista da experiência republicana recente, que, a seu ver, ensinaria os cubanos a tirar o melhor partido possível da “lei fatal” que os sujeitava aos Estados Unidos.5 Quando essa obra veio a lume, o mundo intelectual cubano debatia o valor das influências culturais – norte-americana e espanhola – a que se achava submetida a sociedade insular e ensaiavam-se os primeiros passos rumo a uma institucionalização que vinculasse as tradições nacionais e a atualidade. No âmbito historiográfico, a Academía de la Historia de Cuba, criada por decreto presidencial em agosto de 1910, seria o órgão encarregado de outorgar sanção oficial aos relatos que integravam a “história pátria”. De caráter francamente exclusivista – só podia contar com trinta acadêmicos e outros tantos correspondentes, todos vitalícios –, a academia exibiu desde sua criação o perfil próprio a instituições desse tipo, adotando por inteiro uma liturgia elaborada para dar a maior respeitabilidade a seus atos. Em sua tríplice função de conservar, divulgar e orientar, a academia não apenas se encarregou da exegese oficial da história de Cuba como subscreveu um modo de ação afeito à tradição erudita, de vez que consagrava o primado do paradigma positivista na produção historiográfica. Após uma primeira década de atividade intermitente, a academia desfrutou de um breve período de fastígio durante os anos 1920, quando, por meio da concessão de prêmios, apoio a certos empreendimentos de pesquisa e gestão editorial mais eficiente, ajudou a plasmar obras que representaram uma contribuição substancial ao conhecimento da história pátria.6 Quase meio milhar de textos variados – livros, folhetos, ensaios, etc. – relacionados de algum modo a temas históricos vem à luz durante as primeiras duas décadas republicanas. Trata-se de uma literatura de valor bastante desigual, em que as de lavra profissional são as menos discutíveis, mas que propicia e indiscutivelmente enriquece a imagem do passado cubano. Os processos políticos constituem a matéria-prima quase exclusiva dessas narrativas, em que o sopro positivista, aliás um tanto vago, aparece muito mais no apego ao factual do que no tratamento cuidadoso das fontes e na aplicação dos métodos críticos. Embora o esforço de síntese esteja praticamente ausente, salvo em um e outro texto escolar, alguns lances do discurso histórico nacional surgem com nitidez suficiente para permitir uma caracterização. Para começar, o interesse se volta de maneira muito desigual para a dimensão temporal do objeto de estudo. Os primeiros séculos coloniais, que

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recebem a todo instante os qualificativos de “obscuros”, “difíceis” ou “sombrios”, merecem pouca atenção. Alardeando o mesmo desdém de Arango e Parreño pelos “tempos primitivos”, a novel historiografia republicana assume a perspectiva histórica da velha oligarquia e concentra sua análise no período posterior à tomada de Havana pelos ingleses (1762), quando a participação popular se torna evidente. Os cubanos são, pois, os atores principais do drama. Mas não todos: somente os “ilustres”, aqueles que, em sua condição de “iniciadores” ou “fundadores”, impulsionam o futuro nacional.7 O homem do povo raramente aparece nas páginas dessa história e, quando o faz, é sempre como uma individualidade a quem as circunstâncias puseram em primeiro plano. A história em gestação não é menos díspar no espacial que no cronológico. Havana é o centro privilegiado, o teatro primordial do acontecer insular. Seus feitos e circunstâncias não apenas são mais estudados como, amiúde, as conclusões desses estudos se generalizam arbitrariamente para todo o país. A partir do instante em que a história regional passa a ter cultores, até acadêmicos de nomeada como Emeterio Santovenia dedicam ao “torrão” os seus primeiros desvelos; mas esses relatos locais apenas se integram ao discurso histórico nacional, que só se afasta da capital quando acontecimentos de peso – como as guerras de independência – se dão em outro cenário. Assim, a história oficial gerada e “oficializada” nos primórdios da república mostra-se apta a salvaguardar certos valores essenciais à identidade cubana sob circunstâncias das mais complexas. Contudo, seu discurso reflete tanto as necessidades quanto as inconseqüências de uma classe dirigente que se desgasta e se corrompe no exercício do poder.

REAFIRMAÇÃO NACIONAL E RENOVAÇÃO HISTORIOGRÁFICA Na década de 1920, toma corpo uma mudança substancial na trajetória da sociedade cubana. Após o entusiasmo desenfreado produzido pela 1.ª Guerra Mundial, uma profunda e inesperada crise desmascara a fragilidade estrutural da economia monoprodutora. A transferência maciça de propriedades para mãos norte-americanas, provocada pela queda do preço do açúcar, dissipa as ilusões de um progresso ilimitado até em certos elementos da burguesia associados ao capital imperialista. Mergulhadas na corrupção e nas lutas partidárias, as classes dirigentes republicanas deixam clara sua incapaci-

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dade política e propiciam a intromissão do governo dos Estados Unidos, que, por sistemática e despudorada, torna-se cada vez mais intolerável. Essas circunstâncias suscitaram o que para alguns autores foi o “despertar da consciência nacional”, fenômeno encarnado em amplos e multiformes movimentos de reivindicação que evidenciam a irrupção cabal das classes trabalhadora e média na arena política. Para dominar essas forças, a oligarquia se aproxima de Gerardo Machado, cuja ditadura agravará a crise até provocar uma revolução que, embora frustrada, consegue abalar profundamente a ordem republicana. As necessidades da hora afetam o movimento intelectual. Estudos e ensaios em profusão sobre a “crise” e a “decadência” refletem a inquietude e o compromisso crescente de inúmeros intelectuais que, imbuídos das mais avançadas tendências do pensamento mundial, concebem projetos políticos e culturais destinados à recuperação (ou remodelação) do país. De modo algum alheia a essas influências, a historiografia também dá mostras de impulsos renovadores que se associam, na essência, ao trabalho de três personalidades proeminentes: Ramiro Guerra, Fernando Ortiz e Emilio Roig de Leuchsenring. O exercício do magistério e uma poderosa vocação impelem Ramiro Guerra a uma tenaz e fecunda atuação historiográfica de quase meio século. Afora a redação de alguns textos de finalidade docente, Guerra toma a peito o ambicioso projeto de uma Historia de Cuba, de que só vieram a lume os dois primeiros volumes (1921 e 1925). Na ocasião, o seu esforço fica restrito ao período colonial mais recuado, época sobre a qual a historiadora norte-americana Irene Wright andava pesquisando e publicando.8 Mas, à diferença de Wright, sempre a descrever com franca antipatia o ambiente de preguiça e relaxação moral que julgava característico do cubano, Guerra atribui importância primordial a essa etapa por considerá-la “o verdadeiro período de fundação da coletividade cubana”. O processo constitutivo do povo-nação apresenta-se assim como o tema por excelência da historiografia guerriana, algo que se tornará ainda mais evidente graças à publicação, em 1938, de seu Manual de Historia de Cuba.9 Justamente na preocupação pelo destino nacional em condições tão críticas, como o eram as dos anos 1920, encontra-se a raiz de Azúcar y población en las Antillas, livro publicado em 1927 que é, provavelmente, a obra mais conhecida desse historiador. Em suas páginas, Guerra traça um paralelo assustador entre o desenvolvimento das plantações nas Antilhas britânicas, ao longo dos séculos 17 e 18, e a avassaladora expansão do latifúndio açucareiro na Cuba da época. Ao analisar os males do latifúndio, o autor reflete as angústias

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de muitos colonos e fazendeiros de açúcar cubanos ante o perigo de serem varridos pelo capital estadunidense. No entanto, sua denúncia se sustenta antes de tudo na ameaça que significa para a sociedade e o Estado cubanos uma instituição econômica – o latifúndio – que “mina, solapa, destrói a nacionalidade no que ela tem de básico e essencial”.10 Preocupado com outro fenômeno de expansão, o do Estado norte-americano, Guerra volta para aí seus estudos e, em obras como En el camino de la independencia (1930) e La expansión territorial de los Estados Unidos (1935), analisa os problemas que esse processo provocou para a constituição da nação cubana, assunto sobre o qual seus critérios constituem bom exemplo da ambigüidade de sentimentos que os Estados Unidos – em seu duplo papel de paradigma democrático e potência imperial – suscitavam na maioria de seus contemporâneos. As obras posteriores de Ramiro Guerra trazem uma imagem renovada dos espaços regionais e locais. Mudos testigos (1947) e Por las veredas del pasado (1957), em virtude de sua sensibilidade toda especial, são lucubrações, até certo ponto proféticas, sobre a micro-história. Mas os capítulos iniciais de Guerra de los Diez Años (1950-1952) é que apontariam caminhos para a difícil tarefa de captar as peculiaridades regionais e integrá-las ao tecido histórico nacional. A distância entre a obra de Guerra e a historiografia forjada nas primeiras décadas da república é apreciável, não só por sua revalorização dos séculos “obscuros” ou sua perspectiva dos processos regionais, mas também, e acima de tudo, pelo fato de seus textos exibirem um peso interpretativo sem precedentes. Inteirado das tendências da historiografia mundial, sobretudo a anglo-saxônica – Trevelyan, Stratford, Truslow Adams, os Beard –, Guerra mostra-se rigoroso no tratamento das fontes, valendo-se de um método de análise que deixa entrever os critérios de seleção, abrindo algum espaço às explicações e generalizações. Embora sua atenção permaneça concentrada nos fatos políticos, ele os relaciona com fenômenos econômicos e sociais, desvendando os interesses que animam os protagonistas históricos, e não perde de vista a influência dos acontecimentos internacionais quando reconstitui os processos da história cubana. O tom objetivo e a moderação de julgamento, entre outras características, mantêm Ramon Guerra dentro das fronteiras do positivismo, mas sua obra supera claramente a etapa narrativa da historiografia de princípios do século, imprimindo ao discurso histórico da nação traços modernos e perduráveis. Fernando Ortiz não foi historiador de ofício, nem se pode qualificar de historiográfica a maior parte de sua obra. Todavia, sua atividade intelectual,

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tão erudita quanto imaginativa, renovou pela base as concepções históricas acerca do futuro nacional. De sólida formação positivista, adquirida em princípios do século durante seus estudos de Direito e Sociologia em universidades da Espanha e da Itália, Ortiz encara a sociedade cubana com o intento de investigar a criminalidade. Na esteira de seus mestres Lombroso e Ferri, busca um fundamento atávico nas condutas criminosas, o que o conduz, em correspondência com as circunstâncias do momento, a perquirir as práticas religiosas e mágicas de origem africana. Sua primeira contribuição, Los negros brujos (1906), é um estudo de etnologia criminal que se esforça por compreender, em bases científicas, a “primitividade psíquica” dos negros. Logo percebe que o assunto não pode ficar circunscrito à sua matriz africana e que se torna indispensável analisá-lo no quadro das condições históricas – habitualmente opressivas – a que esteve submetido esse setor da população insular. Assim, a segunda obra concebida dentro do ciclo dedicado à “súcia afrocubana”, Los negros esclavos (1916), revelará já uma intenção historiográfica predominante, por mais que sua estrutura e freqüente consideração sociológica dos problemas a distanciem do elemento convencional na literatura histórica da época. A partir daí, renova-se o programa de Ortiz, que visará ao reconhecimento do negro com seus valores culturais e dignidade plenamente respeitados, parte indissolúvel que é da comunidade nacional.11 Definitivamente propenso à antropologia – em 1921, funda a Sociedade de Folclore Cubano –, Ortiz abandona os estudos de criminologia para concentrar toda a sua atenção nos fatores constitutivos da sociedade e da cultura, trabalho formidável em que conjuga a mesa e a tribuna, abarcando desde a valorização das influências hispânicas e a edição dos “clássicos” do pensamento cubano até o estudo incessante das contribuições africanas à formação nacional. Com a publicação, em 1940, do Contrapunteo cubano del azúcar y el tabaco, cristalizam-se numa síntese magistral as diversas sendas de trabalho palmilhadas por esse autor. Concebida como um contraste histórico entre os parâmetros fundamentais da produção cubana, a obra vai muito além disso e, num verdadeiro alarde de erudição, examina tanto a estrutura da sociedade cubana e os efeitos da monocultura quanto a evolução de hábitos, crenças e imaginário, enfeixando tudo isso em torno de um conceito de “cultura” que já não pode ser enquadrado nos limites do positivismo culturalista. Graças a essa concepção dinâmica da cultura e exame dos fatores sociais do processo nacional, Ortiz instalava sobre alicerces científicos o estudo da identidade cubana, de vez que via o problema histórico da nação em termos que

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transbordavam de seu tradicional – e estreitíssimo – leito político. Nesse âmbito, o sábio cubano encarregar-se-á de novas contribuições – La africanía de la música folklórica de Cuba (1950), Los instrumentos de la música afrocubana (1952) – e ainda terá tempo para, quase no ocaso de sua vida ativa, publicar a Historia de una pelea cubana contra los demonios (1959), fascinante estudo sobre as superstições e o fanatismo numa aldeia do século 17, em que já se entremostram aspectos do que mais tarde seria conhecido como a “história das mentalidades”. Sem a industriosidade de um Ramiro Guerra ou a cosmovisão de um Fernando Ortiz, Emilio Roig de Leuchsenring figura, não obstante e por direito próprio, entre os renovadores da historiografia cubana. Também advogado de profissão, Roig ensaia as armas no jornalismo de costumes e no direito internacional público. É nesse terreno que se insere seu primeiro livro, La ocupación de la República Dominicana por los Estados Unidos y el derecho de las pequeñas nacionalidades de América (1919), primícias do que será o centro de suas preocupações ao longo de um trabalho historiográfico dos mais frutíferos. Roig traz para a historiografia cubana seu pragmatismo peculiar. Para ele, a história é, antes de tudo, um elemento formador da consciência nacional. E, nas circunstâncias difíceis de seu país, essa consciência devia ser alertada para as ameaças que no correr do tempo os Estados Unidos sempre representaram para o destino da nação cubana. La ingerencia norteamericana en los asuntos internos de Cuba (1922), Historia de la Enmienda Platt (1935), Cuba no debe su independencia a los Estados Unidos (1949), Los Estados Unidos contra Cuba Libre (1959) são apenas os marcos principais de sua historiografia explicitamente antiimperialista. Com esse esforço, Roig retoma e robustece a corrente nacionalista iniciada por Collazo, até fazer em pedaços a imagem de “aliado leal e desinteressado” que dos Estados Unidos a narrativa histórica oficial divulgava. Seu trabalho não se restringe, porém, a essa temática: a cidade de Havana, o pensamento de José Martí e as guerras de independência também ocupam amplos espaços na rica bibliografia do historiador.12 Não bastasse a obra escrita, Roig influencia o movimento historiográfico cubano graças a seus extraordinários dotes de incentivador. Na Oficina del Historiador de la Ciudad de La Habana – instituição criada por iniciativa sua –, ele apóia publicações, inspira sociedades e organiza congressos nacionais de História, atividades em que congrega tanto figuras consagradas quanto historiadores iniciantes para afiançar o compromisso social de uma historiografia postada à margem da Academia.13 Esse movimento externa o que de forma implícita e fragmentada se pode notar na melhor produção historiográfica das décadas de

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1920 e 1930; do mesmo modo que a revolução de 1933, embora frustrada, havia sacudido a hegemonia oligárquica na república, o impulso renovador desse anos, sem transformar radicalmente a elaboração e os fundamentos da historiografia cubana, deu margem a um discurso alternativo da história nacional capaz de disputar espaço com a tradição oficial na consciência histórica da sociedade.

FLORESCIMENTO E DIVERSIDADE Os anos 1940 e 1950, sobretudo os primeiros, são um ponto culminante no movimento historiográfico cubano que se expressa não tanto pela envergadura e alcance das publicações quanto pela profusão e diversidade destas. Em meio à atmosfera de democratização e recuperação econômica propiciada pela 2.ª Guerra Mundial, surgem obras tradicionais e inovadoras, marca presença uma nova geração de historiadores, dilatam-se os espaços públicos de debate e difunde-se um paradigma historiográfico – o marxismo – capaz de orientar as tendências renovadoras rumo a metas mais ambiciosas e cruciais. Em 1939, Emeterio Santovenia – então presidente da Academia – dá início à publicação de sua Historia de Cuba, da qual, quatro anos depois, verá a luz um segundo volume. A obra estaca no final do século 18, mas ainda assim constitui uma boa mostra de que o discurso histórico tradicional não se subtrai ao influxo de certos ares renovadores, ampliando-se para abarcar alguns processos econômicos e sociais, inclusive certos aspectos do modo de vida, sem que seus textos percam o enfoque descritivo. Outros expoentes da historiografia acadêmica – J. M. Pérez Cabrera, F. Ponte Domínguez – nutrem também a literatura histórica da época com monografias breves e estudos biográficos de caráter mais ou menos tradicional. Os temas do século 19, bem como a abordagem da vida e obra dos próceres, continuam predominando na produção historiográfica – e não apenas na acadêmica – que, pela maior parte, flui pelo desaguadouro aberto à história nacional. O caso peculiar e até certo ponto contraditório de Herminio Portell Vilá ilustra a heterogeneidade da orientação historiográfica da época. Esse historiador, que havia mostrado interesse pela história diplomática em alguns breves estudos publicados ao longo da década de 1930, deu a lume, entre 1939 e 1941, uma Historia de Cuba en sus relaciones con Estados Unidos y España, obra alentada em quatro volumes em que ele aproveita – e em boa medida reproduz – a copiosa documentação consultada durante um longo período de trabalho

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nos arquivos norte-americanos. Aplicando os melhores recursos do cânone positivista, Portell Vilá reconstitui o processo histórico cubano – até 1909 – seguindo uma lógica que associa de modo constante “a ação e a reação das forças externas” que condicionam a evolução nacional. Elabora, assim, um texto cujo apurado senso crítico parece aproximá-lo das posições de Roig de Leuchsenring, embora num tom bem mais cauteloso e contido. Todavia, na década seguinte, dará a público uma obra igualmente volumosa e bem-documentada, Narciso López y su época, com vistas não só a desonerar explicitamente de seu anexacionismo o controvertido general venezuelano, mas a desculpar – aqui, sim, de modo implícito – a corrente anexacionista por sua projeção antinacional essencial. Essa obra, até certo ponto, vinha reanimar uma tendência que se acreditava extinta, suscitando acirradas polêmicas e gerando uma repulsa bastante generalizada no meio historiográfico.14 Aqueles eram tempos de debate. Não se deve esquecer que, por essa época, os congressos nacionais de História denunciavam que “[...] por maldade ou inconsciência se fez crer ao cubano que ele é um povo infeliz, incapaz e desgraçado a ponto de sequer conseguir com esforço próprio romper os laços que o escravizavam à Espanha [...]”.15 Nas décadas de 1940 e 1950, como vimos, surgem também algumas das obras mais significativas da corrente renovadora. Não cabe agora reiterá-las, mas em troca é imprescindível mencionar o trabalho de algumas figuras “menores” desse movimento que então se agitavam principalmente ao redor de Emilio Roig. É o caso de José Luciano Franco, arguto pesquisador de formação autodidata animado por um crescente interesse em destacar o papel da população negra no processo histórico; Enrique Gay-Calbó, estudioso tanto da história institucional e intelectual quanto dos movimentos políticos na primeira metade do século 19, e Elías Entralgo, em cujas abordagens sociológicas do futuro histórico cubano e interesse pelas figuras de proa da cultura nacional se faz visível a influência de Fernando Ortiz. Do círculo de Roig procede também Fernando Portuondo, autor do que consideramos o melhor texto para o ensino da História de Cuba escrito no século passado. Publicada pela primeira vez em 1943, essa obra constitui excelente prova do grau em que o esforço renovador estava transformando o discurso histórico nacional. O esquema de síntese, de óbvio influxo guerriano, acompanha o eixo do acontecer político e se concentra no século 19, mas sem excluir os processos econômicos e culturais nem o exame da influência dos fatores externos sobre a evolução nacional. Embora a narrativa não se demore em problemas e – talvez em virtude da finalidade didática – siga fielmente a seqüência cronológica, de modo algum está

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ausente a intenção explicativa ainda que esta, de um modo geral, capte apenas as relações mais elementares. A exaltação dos valores nacionais, enfim, conserva o sabor indistinto e às vezes ingênuo do discurso tradicional, mas ainda assim o transcende graças a um manifesto espírito nacionalista que se detém exatamente na fronteira com o antiimperialismo – algo compreensível em se tratando de uma obra concebida como texto para o ensino oficial. Portuondo pertence à nova geração de historiadores surgida ao final da década de 1930, alguns dos quais haviam marcado presença num ciclo de conferências de grande repercussão sobre a História de Cuba, editadas pouco depois sob os auspícios de Emilio Roig.16 Nessa nova jornada, nota-se a influência do marxismo, cuja difusão seria facilitada pela atuação legal do Partido Comunista durante os anos 1940. A nascente historiografia marxista cubana insere-se no movimento renovador, cujo primado, sobretudo em Ramiro Guerra, alguns de seus membros reconheceriam de modo explícito.17 Os primeiros historiadores marxistas, carentes como seus colegas de uma formação específica e provavelmente mais limitados nas possibilidades de exercício profissional, concentraram esforços na “reinterpretação” da História de Cuba, trabalho que desenvolveram de maneira um tanto dispersa e fragmentária, apoiando-se nos conhecimentos acumulados pela historiografia precedente. A figura mais ilustrativa dessa novel historiografia marxista é Sergio Aguirre com sua obra de estréia, Seis actitudes de la burguesía cubana en el siglo XIX (1942). Aguirre manuseia a trama histórica tradicional para subvertê-la, vislumbrando a origem das diversas posturas e correntes políticas na evolução das condições socioeconômicas e no jogo dos interesses de classe. Nesse mesmo estilo analítico, o historiador produziria, uma década depois, em Quince objeciones a Narciso López, a crítica mais profunda e convincente à controvertida – e já mencionada – obra de Portell Vilá.18 Por seu caráter interpretativo e aplicação explícita de uma teoria da história, o marxismo lança o primeiro desafio em regra ao primado positivista na historiografia cubana. Entretanto, a penúria de pesquisas concretas fez com que os primeiros historiadores marxistas dependessem do material factual disponível e impediu-os, por isso mesmo, de refundir na essência o discurso histórico estabelecido.19 Em que pese à sua crítica geral da historiografia burguesa e seu interesse pelo resgate do sujeito popular – a ação histórica do negro, por exemplo –, o núcleo dos historiadores comunistas permaneceu cativo das formulações e valorizações tradicionais frente a alguns processos e personalidades. Nisso pode ter influído também a conjuntura política, pois não se deve esque-

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cer que o desenvolvimento inicial das interpretações marxistas coincidiu com a era das frentes amplas antifascistas, circunstância que talvez haja obscurecido em parte o tom classista de seus enfoques críticos. Assim é que os indícios de uma ruptura mais clara com o discurso tradicional não se encontram nas fileiras comunistas, mas entre historiadores de influência marxista que se haviam desengajado ou não militavam nelas. De momento, o ataque se concentrou contra alguns liberais reformistas do século 19 proclamados “pais fundadores” da nação, sem levar em conta os preconceitos raciais e o sentido excludente de seus projetos. A crítica, viciada por um esquematismo iconoclasta em Rafael Soto Paz, adquiriu mais equilíbrio e sensatez, afora uma ampla fundamentação documental, em Raúl Cepero Bonilla, cuja obra Azúcar y abolición (1948) constitui o mais rematado expoente cubano do que em outras partes da América Latina seria conhecido como “revisionismo historiográfico”. A variedade de enfoques e preferências temáticas, as divergências interpretativas e sua confluência polêmica em espaços públicos reconhecidos, o surgimento de novos paradigmas historiográficos: tudo isso são evidências do processo de maturação por que passava a historiografia cubana, a que se deve acrescentar a constituição das primeiras disciplinas históricas especializadas. Em alguns casos, podia-se contar com antecedentes remotos, como na história das idéias, que ora se sistematiza sobretudo nas obras de Medardo Vitier.20 Em outros, como o da história econômica, tudo era sem dúvida novidade. O primeiro esforço de sistematização nesse terreno deveu-se a um conhecido historiador alemão, Heinrich Friedlander, que durante uma breve passagem pelo país empreendeu a redação de uma Historia Económica de Cuba, obra inacabada que viria a público em 1944. Já então alguns jovens historiadores davam mostras de interesse pelo tema e, entre eles, quem conseguiria plasmar as realizações mais precoces e judiciosas seria Julio Le Riverend. Com formação profissional acadêmica no Colegio de México – uma das pouquíssimas exceções na época – e dotado de indisfarçável inspiração marxista, Le Riverend inicia sua pesquisa na década de 1940. Os resultados que obtém, difundidos em artigos e monografias curtas, deram margem pouco depois a uma síntese ampla e quase completa da evolução econômica de Cuba, cujos capítulos vieram a lume em diferentes volumes de uma obra coletiva que comentaremos mais adiante. A existência sonolenta da história regional, apenas sacudida pelo esforço tenaz e isolado de algum cultivador como Rafael Martínez Fortún, não poderia modificar-se só em virtude do concurso aberto pela Academia de la Historia, nos anos 1950, incentivando a redação de uma história de cada pro-

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víncia do país. Os resultados dessas “biografias” de províncias, totalmente disparatados e geralmente pobres (com exceção do estudo de Havana devido a Julio Le Riverend), pouco contribuíram para a constituição definitiva da tão necessária especialidade dentro da historiografia nacional. O florescimento historiográfico testemunhado pelos anos agora em exame dá testemunhos visíveis de esgotamento à medida que a década de 1950 avança, em grande parte como reflexo das condições políticas criadas pela ditadura de Batista. É por isso que uma obra coletiva publicada para comemorar o cinqüentenário da República, a Historia de la nación cubana (1952), pode ensejar um balanço do estado da historiografia na época. Com a intenção de produzir uma história geral de Cuba, os organizadores da obra – Santovenia, Pérez Cabrera, Guerra e Juan J. Remos – convocaram mais de uma vintena de autores das mais variadas especialidades e tendências, alardeando um espírito “ecumênico” concorde com a ordem democrático-representativa então reinante, mas que encontrou um limite preciso na exclusão daqueles cujas posições políticas ou historiográficas eram tidas por demasiado extremas. Sem unificar critérios nem estabelecer parâmetros, a tarefa foi distribuída por temas, de acordo com uma periodização de base igualmente confusa; e o resultado é que a obra, em dez volumes, parece mais um compêndio de monografias que uma síntese. A imagem do processo histórico nacional se apresentava, pois, inteiramente fracionada em textos em que o predomínio do paradigma positivista era contudo evidente, por mais que o próprio caráter da obra tentasse refrear os excessos documentais. Embora, em algumas seções – a da história econômica devida a Le Riverend, por exemplo –, se fizesse alarde de uma capacidade explicativa consoante com as posições historiográficas mais avançadas, havia também momentos de franco retrocesso, como se vê pelo emprego da expressão “Guerra Hispano-Americana”, arbitrariamente adotada por Remos a fim de qualificar o conflito de 1898, a despeito das teses de Roig e das resoluções dos congressos nacionais de História. Por sua imagem fragmentada e sua incoerência óbvia, a Historia de la nación cubana oferece uma prova inequívoca da decomposição do discurso histórico nacional no ocaso da república burguesa.

O IMPACTO DA REVOLUÇÃO A Revolução de 1959 constitui a reviravolta histórica capital do século 20 cubano. Mais que uma saída para a crise política encarnada na ditadura

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de Batista, o movimento revolucionário desencadeou um processo de transformações radicais destinado a superar os obstáculos ao progresso do país e a estabelecer uma ordem social mais justa, mais igualitária. Tratava-se, na realidade, de construir uma sociedade nova, processo abrangente e diversificado que modificaria também as condições da criação historiográfica. Em 1962, a instituição da carreira universitária de História representou o primeiro e decisivo passo para a profissionalização do historiador; vieram em seguida a fundação de centros de pesquisa e, mais tarde, a organização das redes nacionais de arquivos e museus históricos, instituições em que o trabalho dos historiadores encontraria finalmente uma sustentação própria. Desse modo, a institucionalização da historiografia, que desde meados do século ocorre em outros países da América Latina, verifica-se em Cuba – talvez de maneira mais extensa – sob a égide da Revolução. Os motivos de um esforço de institucionalização que em certos momentos ultrapassou a racionalidade econômica são, aliás, compreensíveis: a Revolução tem na História de Cuba sua principal fonte de legitimidade. A ruptura dos antigos vínculos de sujeição, num enfrentamento tenaz e às claras com os Estados Unidos, materializava o ideal independentista; a Revolução se apresentou, assim, como o auge de um processo secular marcado por sucessivas frustrações e reafirmações cuja continuidade histórica Fidel Castro formularia em 1968 sob o conceito dos “cem anos de luta”.21 Mas, em sua orientação socialista, o movimento revolucionário representava também a reivindicação de classes e setores preteridos no seio da sociedade cubana, cujo resgate histórico ele intentava assumindo de modo explícito uma postura ideológica – a marxista – fundamentada numa teoria ampla do progresso social. Munida de tais projetos, a revolução encontrará obviamente dois trunfos inapreciáveis no campo historiográfico: de um lado, a tradição nacionalista, que na obra de Roig havia alcançado sua expressão mais perfeita; de outro, a linha marxista, de realizações ainda discretas, mas suficientes para oferecer uma perspectiva diversa do passado cubano. Graças a uma simbiose completa e peculiar, ambos os componentes participarão – com peso variado, segundo as circunstâncias – da prolongada gestação da nova história nacional. De início, o esforço se voltou para a reinterpretação do passado do país, aplicando os conceitos do marxismo – em alguns casos, pressurosamente assimilados – ao material historiográfico disponível. Dessa tarefa, geralmente acossada por necessidades pedagógicas, participaram tanto historiadores consagrados quanto outros mais novos; os resultados, de valor muito desigual,

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abarcaram desde sínteses bastante aceitáveis até obras francamente medíocres, em que os processos da história nacional, malcompreendidos, mesclavam-se às categorias e leis do materialismo histórico, que assim ficava reduzido a mera terminologia.22 Mesmo nas obras mais bem-sucedidas dessa literatura tornavase evidente que a reformulação do discurso histórico nacional exigia não apenas a crítica profunda e perspicaz da historiografia anterior como também uma ampliação radical da base empírica dos estudos históricos. São duas as obras que, a nosso ver, abriram caminho para tão formidável empresa: El ingenio (1964), de Manuel Moreno Fraginals, e El general Don Miguel Tacón y su época, de Juan Pérez de la Riva.23 Tratava-se, em ambos os casos, de historiadores de formação profissional cujas publicações na era pré-revolucionária haviam sido relativamente poucas; Moreno dava a lume o primeiro tomo de um projeto, ambicioso e original ao mesmo tempo, com o qual se propunha a estudar a plantação açucareira escravista como alicerce da sociedade cubana na primeira metade do século 19; Pérez de la Riva, por seu turno, retomava um tema-chave da história dessa mesma etapa para renovar algumas teses propostas por Cepero Bonilla. De pontos de vista diferentes – e sem que fosse esse seu objetivo principal –, os dois autores tratavam o tema da formação nacional em Cuba a partir de um ângulo que se distanciava do enfoque corriqueiro, colocando em primeiro plano um problema que daria margem ao mais interessante debate historiográfico daqueles anos.24 Para além desse importante ponto de convergência, a tarefa historiográfica revela um considerável enriquecimento temático na passagem dos anos 1960 para os anos 1970. Os processos econômicos, como é de supor, chamaram mais a atenção, sobretudo aqueles que eram tidos como fatores do subdesenvolvimento e da dependência da nação (criação de uma estrutura monoprodutora, penetração do capital norte-americano, etc.). De igual modo, manifestava-se o interesse por temas sociais, principalmente a evolução do movimento operário e os problemas históricos da população negra. Evoluíram também os estudos sobre o período republicano, empenhados de um modo geral em denunciar as conseqüências da dominação imperialista e as mazelas da sociedade anterior – zelo compreensível, dadas as circunstâncias –, em que se percebe acentuada preocupação com o processo revolucionário dos anos 1930, considerado o antecedente imediato da Revolução. Os frutos de todo esse trabalho, transfundidos em monografias, ensaios e artigos de revista, eram avalizados por nomes conhecidos (Le Riverend, Aguirre, Moreno Fraginals, Pérez de la Riva, José Luciano Franco, José Rivero Muñiz, Fernando

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Portuondo, Juan Jiménez Pastrana, Hortensia Pichardo, entre outros) a quem se uniram estreantes como Jorge Ibarra, Oscar Pino-Santos, Pedro Deschamps, José Tabares, César García del Pino e Walterio Carbonell, autores de formação diversa, além de jornalistas, advogados e professores que nas novas condições criadas haviam encontrado espaço para sua vocação.25 A agitação dos tempos mostra-se propícia ao acolhimento de influências variadas. Em primeiro lugar, temos o marxismo, vindo em manuais soviéticos de feição mais ou menos dogmática, porém igualmente acessível nas obras clássicas de Marx, Engels e Lenin, editadas e distribuídas profusamente, e nas de alguns pensadores (Gramsci, Lukács, Althusser) ou historiadores (Gordon Childe, Hobsbawm e Soboul) contemporâneos. A Escola dos Annales se faz sentir não apenas com a publicação da Apología de la historia, de Bloch, em 1971, mas também com a circulação dos trabalhos de Febvre, Braudel e Pierre Vilar; sua inspiração é evidente na criação multifacetada de Pérez de la Riva, que se formara em universidades francesas, e aparece nos métodos aplicados por outros historiadores. Por motivos óbvios, a “teoria da dependência” deixa sua marca em várias obras dessa época e ainda animará concepções de mais largo fôlego.26 Na agitação febril dos anos 1960, chegava a termo a prolongada hegemonia do paradigma positivista na historiografia cubana – ainda que se notem até hoje notáveis sobrevivências –, que antecipava então o que na América Latina começava a ser conhecido como “nova história”. Após o fracasso da “Safra dos Dez Milhões” (1970), em Cuba, a experimentação arrojada cede espaço a uma sociedade moldada cada vez mais pelas normas aparentemente eficazes do chamado “socialismo real”.27 A nova orientação, visível no planejamento econômico e na institucionalização política, estendeu-se também ao plano ideológico. A vigência de um marxismo esclerosado por décadas de hibernação dogmática teve conseqüências nefastas para as Ciências Sociais: muitas delas, como a Sociologia, desapareceram até dos cursos universitários. Tanto na pesquisa quanto no ensino, a atenção devia se voltar para as “regularidades” históricas, aquelas pautas universais que apontavam o rumo inelutável da humanidade e sustentavam um único modelo possível de construção socialista. Na formação universitária dos historiadores, abriu-se considerável espaço a disciplinas teóricas cujos métodos de abordagem da realidade eram francamente dedutivos e reducionistas, ao mesmo tempo em que algumas cátedras históricas adotavam modelos explicativos de notório esquematismo. Felizmente, a obrigatoriedade simultânea da tese de graduação deixou aberta

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uma válvula de escape para a pesquisa concreta, a ser melhor ou pior aproveitada segundo as circunstâncias. Contudo, sem margem a dúvidas, a conseqüência mais lamentável da onda dogmática na esfera educativa seria a supressão da História de Cuba como matéria específica do curso médio, com seus conteúdos se dissolvendo numa disciplina histórica geral organizada de acordo com a sucessão de formações econômico-sociais em escala mundial. Assim se eliminou toda possibilidade de um estudo sistemático da história nacional, desapareceram os textos sobre o tema e, pior ainda, formou-se uma geração inteira com limitadíssimos conhecimentos do processo histórico cubano. Na pesquisa científica, privilegiaram-se certos campos e desestimularam-se outros, conforme as concepções teóricas em vigor. Mas até aqueles a que se dava prioridade ficaram paralisados por um enfoque claramente empobrecedor, como sucedeu com a história operária, tratada em termos estritamente institucionais que deixavam de lado importantes problemas cuja elucidação teria enriquecido a imagem do passado cubano. Os centros de pesquisa adotaram métodos de direção que propiciavam a esterilidade intelectual e, em sentido genérico, impôs-se uma atitude de reserva e suspeita com relação à literatura histórica de países outros que não os da Europa do Leste – incluindo a de marxistas ocidentais – que isolava os historiadores e condenava-os a ignorar os progressos da ciência histórica em escala mundial.28 Em que pese ao fato de se fazerem sentir restrições também no âmbito editorial, que começaram a afrouxar após a criação do Ministério da Cultura, em 1976, a publicação de monografias, ensaios e outros estudos iniciada nos anos 1960 prosseguiu em escala ascendente, já agora nutrida pelas contribuições de uma nova safra de historiadores formados nas universidades.29 Graças às próprias peculiaridades do processo histórico cubano e à sua sólida tradição nacionalista – inestimáveis obstáculos ao mimetismo –, a historiografia lograva rebater os golpes do dogmatismo e iniciava um movimento progressivo rumo à consolidação. No evolver dessa tendência, expressa tanto no número e na acuidade das pesquisas quanto em sua ampliação temática, algumas especialidades historiográficas já estabelecidas cobram novo impulso, enquanto outras se consolidam. A história econômica, que em 1973 haurira o sopro renovador do estudo que Pino-Santos dedicou à atividade do capital monopolista norteamericano em Cuba,30 consegue a sua mais alta realização, na época, com o surgimento, em 1978, dos três volumes em que Moreno Fraginals concentra os resultados de sua pesquisa sobre o complexo açucareiro escravista. Ambas as linhas asseguram sua continuidade mercê das contribuições de novos pesquisa-

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dores como Jesús Chía, Arnaldo Silva, Francisco López Segrera, Alejandro García e Oscar Zanetti (em estudos estruturais e empresariais sobre a era capitalista), bem como de Fe Iglesias e Gloria García, entre outros, que se dedicam aos problemas da economia baseada na escravidão. A isso se somam novas indagações sobre o período colonial remoto, notadamente o trabalho de Le Riverend a respeito dos problemas da formação agrária. A história demográfica nasce graças aos esforços de Pérez de la Riva, cujos estudos sobre os movimentos migratórios constitutivos do povo cubano encontram seguidores em Jesús Guanche, Sonia Catasús, Rafael López Valdés e outros. O conhecimento das estruturas e classes sociais se aprofunda com as contribuições de María del Carmen Barcia, Alejandro García e Eduardo Torres Cuevas, destacando-se este último igualmente na esfera da história intelectual. Os estudos sobre as condições econômicas e sociais do negro, o tráfico de escravos e outros problemas relacionados à presença negra na história cubana alimentam-se dos constantes trabalhos de Franco e Deschamps, a quem se somam Rafael Duharte, Enrique Sosa, Gabino La Rosa, Tomás Fernández Robaina e Rodolfo Sarracino. A temática operária chama especialmente a atenção, conforme dissemos, e embora muitos estudos fluam pelo leito apertado do convencional, registra contribuições notáveis assinadas por Carlos del Toro, Olga Cabrera, John Dumoulin e Eddy Trimiño, além de uma síntese geral da história do movimento operário realizada quase ao fim dessa fase.31 No quadro de tão vasto panorama, são os temas da história política que continuam absorvendo o grosso da produção historiográfica. Os movimentos políticos e as correntes ideológicas do século 19, em particular as lutas pela independência sem excluir seus aspectos militares, mantêm a tradicional primazia no seio de uma geração nova que trará à cena nomes estreantes: Ramón de Armas, Pedro Pablo Rodríguez, Francisco Pérez Guzmán, Eusebio Leal, Diana Abad, Oscar Loyola, Salvador Morales, Mildred de la Torre, só para mencionar alguns dos numerosos cultivadores dessa temática. Diversas personalidades do século passado são objeto de estudo biográfico, mas o foco da atenção concentra-se em José Martí. Para examinar a vida e as idéias desse prócer, cria-se um centro de pesquisas. Por outro lado, a caracterização do pensamento de Martí suscita uma reveladora polêmica em que se esclarece uma vez mais o contraste entre aqueles que enfatizavam as especificidades da história nacional e aqueles que se esforçavam para traduzir essas especificidades em categorias de alcance universal.32 Os processos republicanos constituem o outro grande campo da historiografia política. Trata-se, é claro, de um terreno

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bem menos conhecido em que se aventuram Teresita Yglesias, Joel James, José Tabares, Lionel Soto, Federico Chang e Jorge Ibarra com estudos sobre períodos ou personalidades das décadas mais recuadas, e Mario Mencía, Pedro Alvarez Tabío e William Gálvez, pioneiros no estudo da luta insurrecional que conduziu ao triunfo revolucionário de 1959, assunto responsável também por farta publicação de perfil testemunhal. Embora esses trabalhos esclareçam importantes questões do período neocolonial, a ânsia de contrastar passado e presente, além de certa tendência a enfoques teleológicos, impediu o exame dos problemas em todo o seu espectro, de sorte que o conhecimento da experiência republicana continua apresentando deficits muito sensíveis para a construção de uma imagem íntegra da história nacional. Mais notável ainda é a virtual ausência de estudos históricos sobre a etapa posterior a 1959, de modo que o passado recente vem sendo matéria de análise para sociólogos ou economistas, mas continua carente de “historização”. Embora suas origens remontem à década de 1960, cremos apropriado consignar aqui um fenômeno inédito no século que abordamos: a existência de uma produção historiográfica cubana fora de Cuba. Seu surgimento resultou da atividade de alguns intelectuais e políticos como Santovenia, Calixto Masó e Carlos Márquez Sterling, entre outros que, tendo abandonado a ilha após o triunfo da Revolução, fazem e refazem suas obras sob o impacto do acontecimento revolucionário. Trata-se, em grande medida, de uma retomada da velha tradição historiográfica, mas agora viciada por uma insistência no presente que, amiúde, torna difícil distinguir estudos estritamente históricos de outros de perfil sociopolítico, cujo alcance científico acaba por isso mesmo sendo bastante questionável.33 Com o passar do tempo, foram se definindo duas linhas nessa historiografia. A primeira é representada por historiadores não-profissionais que, com ânimo diverso, abordaram processos, acontecimentos e personalidades do passado cubano para criar uma literatura (quase toda publicada pela editora Universal, de Miami) que inclui tanto monografias de valor quanto verdadeiros compêndios de bisbilhotice. A outra se baseia no trabalho de alguns historiadores de origem cubana formados em universidades dos Estados Unidos durante os anos 1970 e 1980, que revelaram interesse pelos problemas históricos de seu país natal. Com freqüência inovadores por seus temas, fontes ou métodos, esses trabalhos trazem apreciações novas sobre o processo histórico da nação, ainda que de um modo geral tendam a se enquadrar mais nos moldes acadêmicos norte-americanos – quase todos são teses de doutorado – que

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na tradição historiográfica cubana. Nesse contexto, merece citação à parte, por sua grandiosidade, a obra Cuba: economía y sociedad, de Levi Marrero. Professor universitário com alguma experiência em pesquisa, Marrero concebeu um ambicioso projeto de história geral que levou adiante com denodado esforço – incluindo longas temporadas nos arquivos espanhóis – até conseguir publicar doze volumes entre 1974 e 1990, quando, significativamente, deu a obra por concluída: justamente no começo do período correspondente às guerras de independência. Em Marrero, geógrafo de profissão, percebe-se a influência da Escola dos Annales, posto que muito mais no plano da obra e na determinação do objeto – reserva considerável espaço aos processos econômicos e demográficos, bem como aos fenômenos sociais e ao modo de vida – que no procedimento analítico, pois seus textos se caracterizam tanto pela descrição ricamente documentada quanto pela penúria interpretativa. No decorrer da década de 1980, tornou-se claro que os estudos monográficos iam modificando substancialmente o panorama da história nacional, mas, na medida em que essas realizações não chegavam a uma síntese – nem mesmo nos textos do ensino médio –, a visão de conjunto se diluía. Esta só tomava corpo, até certo ponto, na divulgação de imagens históricas pela imprensa e outros meios, imagens que, apesar do emprego de uma terminologia marxista, da inspiração popular e do óbvio teor antiimperialista, no fundo ofereciam unicamente atualizações pragmáticas do discurso tradicional. Cientes dessa situação, os historiadores começaram a formular no âmbito das universidades e centros de pesquisas projetos de síntese que, como textos de nível superior ou sob outra forma qualquer, pudessem preencher esse vazio gritante. Depois de sua criação, em 1988, o Instituto de História de Cuba convocou numeroso grupo de especialistas para levar a cabo a redação de uma história geral planejada para cinco volumes. Redigida pela maior parte em curto espaço de tempo, essa obra não veria a luz até estar bem adiantada a década de 1990, devido às circunstâncias críticas daqueles anos.34 Independentemente de algumas diferenças de critério entre os autores, o projeto repousava em fundamentos teóricos comuns e num plano bem-definido, o que lhe permitia resolver com desenvoltura os problemas de coerência tão freqüentes nos grandes empreendimentos coletivos. A explicação oferecida na maior parte dos capítulos encadeia com habilidade e profundeza aceitáveis os processos políticos, econômicos e sociais – estes últimos, principalmente nos aspectos estruturais, demográficos e classistas –, desentranhando toda uma lógica da evolução histórica da sociedade cubana, o que por si só representa um progresso apreciável com relação a qualquer síntese

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precedente. No entanto, a periodização adotada, o espaço desigual concedido a cada etapa, a presença vaga do sujeito popular – tanto em sua atividade quanto em suas imagens e modo de vida – e, sobretudo, o tratamento superficial dos processos culturais, base do futuro do país, indicam que como discurso histórico nacional estamos diante de uma simples obra de transição.35

OS TEMPOS ATUAIS O desaparecimento da União Soviética e do bloco socialista europeu em princípios dos anos 1990 teve formidável impacto sobre a realidade cubana. O país assistiu ao rompimento brusco de seus principais vínculos econômicos, enquanto os Estados Unidos redobravam esforços para sufocar o processo revolucionário. Afora a queda acelerada dos indicadores econômicos e a visível deterioração das condições sociais, a crise apresentava também outra faceta, que, para efeitos desta análise, vem a ser a mais importante: ao solapar realidades tidas por irreversíveis, o giro histórico questionou os fundamentos do paradigma marxista, projetando a crise para o âmbito ideológico e cultural. A busca de novas fórmulas econômicas e os reajustes políticos precisavam cercar-se, pois, de uma reavaliação dos pressupostos culturais do projeto revolucionário. Enquanto o marxismo forceja por se reconstituir passando sua experiência pelo crivo da crítica, em Cuba, a revolução se firma nos valores autóctones e o discurso histórico se aferra ao tom nacionalista em seu duradouro confronto com os Estados Unidos. Essa apreciação, que nos parece bastante exata para definir a tendência mais geral, resulta, todavia, de uma nítida insuficiência, se com ela pretendermos caracterizar o estado atual dos estudos históricos na ilha. A atividade historiográfica, na segunda metade da década de 1990, foi incentivada em grande parte pela comemoração do centenário da última guerra de independência (1895-1898) e, na medida em que isso coincidiu com uma certa recuperação econômica e editorial, temos aí realizações suficientes para traçar um panorama da situação. Os problemas clássicos daquele período histórico – estado e perspectivas do conflito quando da intervenção dos Estados Unidos, razões dessa intervenção, tendências dentro do movimento libertador, etc. – foram outra vez trazidos à baila para serem examinados à luz de novas fontes, principalmente espanholas e norte-americanas, num esforço de revisão cujo resultado mais visível é a obra em dois volumes de Rolando Rodríguez,

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Cuba: la forja de una nación (1998). Também é notório o interesse por resgatar assuntos pouco estudados como a “reconcentração” – em Herida profunda (1998), de Francisco Pérez Guzmán – e, sobretudo, dilatar a perspectiva dos problemas, situando-os de maneira correta em marcos temporais mais amplos, observando-os numa vasta rede de relações ou invadindo terrenos inexplorados, principalmente na esfera social, conforme se vê nos trabalhos de Fe Iglesias, Oscar Zanetti e María del Carmen Barcia. E é no amplo espectro temático da chamada “história social” que se inserem, em volume cada vez maior, os trabalhos mais recentes da historiografia cubana. Problemas da História de Cuba, movimentos e conflitos sociais, mentalidades coletivas ou de sexo imbricam com linhas já estabelecidas, como a questão étnica e as estruturas sociais, numa dinâmica que vai ampliando gradativamente o campo de pesquisa. Para o desenvolvimento dessa tendência, contribuem tanto trabalhos de figuras consagradas – Jorge Ibarra, por exemplo – e especialistas conhecidos – como Carlos Venegas, Lohania Aruca e Ernesto Chávez – quanto representantes da última geração de historiadores cubanos. Fruto de cursos universitários durante a década de 1980, esses novos pesquisadores vão encetar sua carreira nas complexas circunstâncias dos anos 1990. Em trabalhos como os de María A. Marqués, J. Ibarra Guitart, Mercedes García, Urbano Martinez, Rafael Rojas ou Eliades Acosta, fazem-se visíveis ao mesmo tempo a continuidade e a vontade renovadora dos gêneros estabelecidos (história política, econômica e intelectual), tanto quanto o interesse crescente por áreas pouco exploradas da história social. Salta à vista a importância desse movimento rumo à chamada “recuperação do sujeito” na constante renovação da história nacional, pois que traz à cena histórica atos, crenças e condições reais de existência das pessoas comuns ou desvenda ângulos quase ignorados da consciência social. Desse modo, começa-se a suprir uma carência antiga, tornando o discurso mais próximo e também mais acessível.37 A outra esfera em que atualmente se observa um dinamismo todo particular é a história regional. A renovação dessa valiosa especialidade historiográfica já era perceptível nos anos 1980, graças às obras de autores como Hernán Venegas, Olga Portuondo e Raúl Ruiz. A criação de centros superiores de estudo em todas as províncias do país, bem como as redes de museus, arquivos e bibliotecas, foram suportes fundamentais para esse movimento que vai aglutinando historiadores das principais cidades e regiões. Suas realizações, ainda discretas, aparecem em monografias ou revistas e dão vida a um programa de histórias provinciais ou municipais que busca resgatar as identidades

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locais, aproximando o ensino da história do ambiente imediato dos estudantes. Os problemas colocados pelo desenvolvimento da historiografia regional são múltiplos e complexos; eles deram ensejo a importantes reflexões e ora criam espaços de debate em encontros periódicos como os organizados pela Casa do Caribe e o Instituto de História de Cuba.38 Todavia, resta ainda à historiografia cubana um caminho a percorrer para que as histórias regionais, transcendendo a imagem da região como cenário específico de processos nacionais, consigam captar a lógica própria ao desenvolvimento local. Só assim seus resultados poderão inserir a história nacional na dimensão espacial múltipla e diversificada de que ela tanto necessita. Os estudos de história social e regional constituem pontos de convergência de diferentes ciências sociais e oferecem, por isso mesmo, possibilidades para uma profícua colaboração interdisciplinar. Neles se pode também apreciar melhor o influxo que algumas correntes historiográficas contemporâneas – como a micro-história ou a nova história cultural – exerce sobre os historiadores cubanos, influência ainda limitada pelas carências materiais que dificultam o acesso à bibliografia mais recente. Este modesto resumo de todo um século de trabalho historiográfico, apesar de suas lacunas inevitáveis, deixa um saldo que nos parece evidente: o discurso histórico nacional em Cuba é e continuará sendo uma “história em construção”. Como vem sucedendo há décadas, a pesquisa incessante iluminará recantos desconhecidos, resgatará personagens ignorados e elaborará explicações cada vez mais consistentes. Em virtude desse anseio inamovível – e irrealizável – de abarcar todos os tempos e todos os cenários, todos os homens e todas as mulheres, ir-se-á modelando uma história mais plena, cujos problemas mobilizem o pensamento e permitam ao povo compreender de onde vem e para onde vai. Essa história nacional que se constrói, despojada do falso vezo patriótico da avelhentada historiografia republicana, representa um meio inestimável de preservar a identidade da nação em um mundo a cada dia mais globalizado.

NOTAS 1 Cuba y su evolución colonial. La Habana: Imp. El Avisador Comercial, 1907. Um ano antes, Figueras publicara o folheto La intervención y su política, em que fazia uma primeira avaliação dos fatores que impediam Cuba de levar existência independente e, com gritante providencialismo, apontava para o destino de americanização da ilha. Em Cuba y su evolución colonial, fundamentava essa tese no plano histórico com um texto mais aliciante pela sugestão de certas interpretações sociológicas que pela exatidão factual ou pelo peso da documentação.

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2 Collazo já havia dado mostras de suas aptidões historiográficas precoces com a pu– blicação de Desde Yara hasta el Zanjón (1893), um relato da primeira guerra de independência. Embora não fosse historiador profissional, apoiava sua narração tanto em experiências próprias quanto em documentos, dos quais reproduz na obra longos trechos, como era costume na época. Seu esforço, por outro lado, tem fundamento pragmático bem explícito, conforme se vê na “Dedicatória” de Los americanos en Cuba: “Aprendamos, com a história de nosso passado, a desconfiar de nossos protetores humanitários [...] se é que queremos conservar a independência absoluta e a liberdade, pelas quais lutamos durante meio século”. 3 Embora os primeiros expoentes dessa literatura apareçam em fins do século 19, ela se nutre cada vez mais, desde os primórdios da república, da publicação de obras como La revolución de Yara, de Fernando Figueiredo (1902), Mi diario de la guerra, de Bernabé Boza (1905), Las crónicas de la guerra, de José Miro Argenter (1909) e Relieves, de Gerardo Castellanos (1910). 4 ALMODÓVAR, Carmen. Antología crítica de la historiografía cubana (período neocolonial). La Habana: Ed. Pueblo y Educación, 1989. p. 99-102. 5 YGLESIA, Teresita. The History of Cuba and its Interpreters, 1898-1935. The Americas, XLIX, n. 3, p. 373-374, Jan. 1993. 6 Entre essas obras, figuram as monografias de Roque Garrigó e Adrián del Valle, dedicadas às primeiras conspirações independentistas, os estudos da historiadora norte-americana Irene Wright sobre a Havana dos primeiros séculos coloniais e importantes compilações documentais como o Centón epistolario de Domingo del Monte e o Cedulario cubano, fruto de uma minuciosa pesquisa empreendida por José María Chacón y Calvo nos arquivos espanhóis. Uma arguta avaliação das características e realizações da Academia está no ensaio inédito de Ricardo Quiza, El cuento al revés: historia, nacionalismo y poder en Cuba, 1902-1930, cujo texto pudemos consultar por gentileza do autor. 7 Quiza, p. 30-36. 8 The Early History of Cuba, 1492-1856. New York: [Macmillan], 1916; Historia documentada de San Cristóbal de La Habana. La Habana: Siglo XX, 1927. Para uma apreciação, ver C. García del Pino e A. de la Fuente, “Apuntes sobre la historiografía de la segunda mitad del siglo XVI cubano”, em Santiago, n. 71, p. 77-78, dic. 1988. 9 De maneira explícita, Guerra estabelecera esse critério na introdução ao primeiro volume de sua Historia de Cuba (La Habana: Siglo XX, 1921. p. 3), ao afirmar que “[...] a história tem como objetivo primordial explicar cientificamente o processo de formação e evolução de uma comunidade nacional [...]”. 10 Azúcar y población en las Antillas. La Habana: Instituto Cubano del Libro, 1970. p. 80. Sobre esse assunto, ver R. Rojas, “La memoria de un patricio”, em op. cit., (Puerto Rico), n. 7, p. 130-137, 1992. 11 Já em 1913, Ortiz proclamava a necessidade de uma “[...] análise precisa, objetiva, sem paixões nem preconceitos e documentada pelos múltiplos elementos com que, para nossos costumes e caráter nacional, contribuiu cada raça, estudando-se também a evolução de cada elemento em particular, relacionado aos demais”. ORTIZ, Fernando. Las supervivencias africanas en Cuba. In: ______. Entre cubanos. Psicología tropical. La Habana: Ed. de Ciencias Sociales, 1987. Ver: LE RIVEREND,

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J. Fernando Ortiz y su obra cubana. In: ORTIZ, Fernando. Órbita de Fernando Ortiz. La Habana: Union de Escritores y Artistas de Cuba, 1973. 12 ALMODÓVAR, Carmen. Antología crítica de la historiografía cubana (período neocolonial). La Habana: Ed. Pueblo y Educación, 1989. p. 356-365. Por seu apego ao factual, citação freqüente de extensos fragmentos documentais e outros atributos, a obra de Roig mantém-se enraizada no positivismo historiográfico, cujos cânones no entanto transgride, concedendo espaço aos juízos de valor. 13 Os Congressos Nacionais de História se propunham fomentar a pesquisa e a divulgação históricas “[...] para que esse conhecimento se traduza na reafirmação permanente da fé cubana na evolução histórica da nacionalidade e estimule um patriotismo sadio”, La Habana, Oficina del Historiador de la Ciudad. Revalorización de la Historia de Cuba por los Congresos Nacionales de Historia. La Habana: [s.n.], 1959. p. 7. 14 A mudança de rumo de Portell talvez seja menos brusca do que parece. Desde 1943 ele dirigia o Instituto Cultural Cubano-Norte-americano, financiado pela embaixada dos Estados Unidos, e sua orientação já é perceptível no folheto Theodore Roosevelt en la independencia de Cuba, publicado em 1950. Os três volumes de Narciso López y su época apareceram sucessivamente em 1950, 1952 e 1958. 15 Sociedad Cubana de Estudios Históricos e Internacionales. “Nota preliminar a la primera edición...”, em ROIG DE LEUCHSENRING, E. Cuba no debe su independencia a los Estados Unidos. La Habana: Sociedad Cubana de Estudios Históricos e Internacionales, 1950. O IX Congresso recomendaria formalmente ao ministro da Educação a revisão dos textos de “história pátria” de modo que estes expusessem claramente a tese de Roig que dava nome à referida obra. 16 Com o título de Curso de Introducción a la Historia de Cuba, as conferências foram publicadas na série “Cuadernos de Historia Habanera” em 1937. 17 Carlos Rafael Rodríguez, “El marxismo y la historia de Cuba”. Esse artigo, de excepcional valor programático, apareceu originalmente na revista Dialéctica, em 1943. Pode ser lido em ALMODÓVAR, Carmen. Antología crítica de la historiografía cubana (período neocolonial). La Habana: Ed. Pueblo y Educación, 1989. p. 524-534. 18 Quince objeciones a Narciso López veio a público em 1953 na revista La Ultima Hora. Esse e outros trabalhos podem ser lidos em AGUIRRE, S. Eco de caminos. La Habana: Ed. de Ciencias Sociales, 1974. 19 De fato, os primeiros estudos marxistas tinham caráter fragmentário, concentrando-se em períodos relativamente breves da evolução nacional. A única intenção abrangente aparece num texto cujo perfil não é estritamente historiográfico, Los fundamentos del socialismo en Cuba, da lavra de Blas Roca (secretário-geral do PC), cujo esforço de conceituação se apoiava no emprego excessivamente mecânico do esquema dos modos de produção. 20 Las ideas en Cuba. La Habana: [s.n.], 1938; La filosofía en Cuba. México: [Fondo de Cultura Económica], 1948. 21 A temática histórica é muito freqüente no discurso da liderança revolucionária cubana, especialmente em Fidel Castro. O dito conceito se viu consagrado no discurso que o líder cubano pronunciou por ocasião das comemorações da primeira guerra de independência (10 de outubro de 1968), que constitui ademais uma excelente mostra de seus critérios historiográficos. Ver Historia de la Revolución Cubana. Selección de discursos sobre temas históricos. La Habana: Editora Política, 1980.

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22 Entre as publicações desse período, figuram a Historia económica de Cuba (1963), de Julio Le Reverend, versão atualizada – e bastante simplificada – dos capítulos que ele redigira para a Historia de la nación cubana; as conferências desse mesmo autor num curso universitário sobre a história contemporânea de Cuba, reunidas sob o título de La república: dependencia y revolución (1966); Lecciones de Historia de Cuba (1961), texto preparado por Sergio Aguirre para o ensino elementar; e algumas obras de historiadores novos: Historia de Cuba; aspectos fundamentales (1964), de Oscar Pino-Santos, e Historia de Cuba (1964), publicação da Dirección Política de las Fuerzas Armadas Revolucionarias devida principalmente a Jorge Ibarra, Los regímenes precapitalistas en Cuba. 23 Esse estudo foi publicado como “Introducción” à Correspondencia reservada del Capitán General Don Miguel Tacón, 1834-1836. La Habana: Biblioteca Nacional “José Martí”, 1963. 24 Essa curiosa polêmica, cujas referências de um autor a outro raramente são explícitas, tomou forma durante as comemorações do centenário da primeira guerra de independência, em 1968, e precisa ainda de uma avaliação historiográfica. Uma relação não-exaustiva de participantes inclui: Sergio Aguirre, “Nacionalidad, nación y centenario” e “De nacionalidad a nación en Cuba”, ambas em Eco de caminos. La Habana: [Editorial de Ciencias Sociales, Instituto Cubano del Libro], 1974; FRAGINALS, Moreno. Azúcar, esclavos y revolución. Casa de las Américas, n. 50, 1968, e Desgarramiento azucarero e integración nacional. Casa de las Américas, n. 62, 1970; PÉREZ DE LA RIVA, Juan. Una isla con dos historias. El barracón y otros ensayos. La Habana: [Ed. de Ciencias Sociales], 1975; CHAÍN, Carlos. Formación de la nación cubana. La Habana: [Ediciones Granma], 1968; e IBARRA, Jorge. Notas sobre nación e ideología. In: ______. Ideología mambisa. La Habana: [s.n.], 1968. Este último autor sustenta paralelamente um interessante debate particular com o historiador polonês Tadeusz Lepkowski sobre a síntese da história cubana – de certo modo vinculado ao mesmo problema – que foi publicado na Revista de la Biblioteca Nacional “José Martí”. 25 Não há espaço aqui para comentários específicos sobre esses autores e suas obras. O leitor interessado encontrará uma abordagem mais particularizada em IBARRA, J. Historiografía y revolución. Temas: La Habana, n. 1, 1995, bem como nos números 1 e 2 (1985) da Revista de la Biblioteca Nacional “José Martí”. 26 Ver LÓPEZ SEGRERA, Francisco. Cuba: capitalismo dependiente y subdesarrollo (1510-1959). La Habana: [Casa de las Américas], 1972. 27 Em 1964, adotou-se um programa destinado a produzir dez milhões de toneladas de açúcar em 1970, meta que, se alcançada, asseguraria recursos para um ulterior desenvolvimento diversificado. 28 No artigo já citado de Jorge Ibarra (25, p. 8, 9), encontra-se um exame mais amplo das características e dos problemas desse período que consideramos válido de um modo geral, ainda que ponhamos em dúvida a exatidão de algumas de suas asserções. 29 Dizemos “safra” e não “geração” porque entre os autores que surgiram durante essa fase figuram tanto jovens egressos da universidade quando outros mais velhos que só durante esses anos conseguiram se tornar profissionais. 30 El asalto a Cuba por la oligarquía financiera yanqui. La Habana: Casa de las Américas, 1973.

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31 Também evoluíram outros gêneros, consolidando-se inclusive uma produção historiográfica sobre temas latino-americanos – com autores como Omar Díaz de Arce, Sergio Guerra e Alberto Prieto – e de história universal. Mas, como ressaltamos na apresentação destas páginas, é impossível consignar todos os autores e muito menos citar suas obras. O leitor interessado encontrará informação bastante ampla sobre os assuntos histórico-sociais em Oscar Zanetti, “Realidades y urgencias de la historiografía social en Cuba”, artigo publicado pelas revistas Temas (n. 1, 1995) e Historia Social (Espanha, n. 19, 1994). 32 Desse debate, como em geral do desenvolvimento dos estudos sobre Martí, participam alguns dos historiadores anteriormente mencionados, além de José Cantón, Ibrahim Hidalgo e outros, sem contar estudiosos oriundos do campo da Literatura como, principalmente, Cintio Vitier, Roberto Fernández Retamar e Luis Toledo Sande. 33 Sobre esse tema, ver: DUMOULIN, John. Las concepciones historiográficas sobre el período 1935-1958 en Cuba. Santiago, Cuba, n. 69, p. 139-143, 1988. Esse artigo contém ainda reflexões muito úteis e sugestivas a respeito da historiografia da época republicana. 34 Até 1999, só tinham sido publicados os três primeiros volumes. 35 Algo parecido ocorre com as diferenças no desenvolvimento regional, razoavelmente tratadas no volume I: La colonia; evolución socioeconómica y formación nacional –, mas não nos subseqüentes. 36 Em Del ingenio al central (La Habana, 1999), F. Iglesias acompanha o eixo do processo de “centralização” açucareira para avaliar alguns dos principais efeitos econômicos da guerra; Comercio y poder (La Habana, 1999), de Oscar Zanetti, enfeixa os processos e interesses econômicos de Cuba, Espanha e Estados Unidos para explicar o trânsito intersecular simbolizado pelo ano de 1998; em Elites y grupos de presión (La Habana, 1998), Carmen Barcia propõe uma reveladora indagação dos nexos entre sociedade e política, podendo-se a essa obra acrescentar realizações como La voz del mambí: imagen y mito (La Habana, 1997), onde Blancamar León explora o imaginário coletivo dos libertadores. Uma visão bem mais rica dessa abordagem plural pode ser obtida com a revisão de numerosos artigos publicados em revistas e compilações surgidos em Cuba, Espanha e México de 1995 a 1999. Em “El 98 en América; últimos resultados y tendencias de investigación” (Revista de Indias, n. 215, 1999), Antonio Santamaría e Consuelo Naranjo empreendem uma extensa revisão da literatura internacional, abrindo bom espaço ao exame das contribuições cubanas. 37 Entre as realizações desse movimento, destacam-se também as contribuições de Imilcy Balboa, Alejandro de la Fuente, Marial Iglesias, Manuel Barcia, Yolanda Díaz, Ricardo Quiza e Pabro Riaño, autores cujos trabalhos, como sói acontecer, ainda se encontram dispersos nas páginas de diversas revistas. Alguns podem ser encontrados em compilações como La turbulencia del reposo, Cuba 1875-1975 (La Habana, 1998) e Diez nuevas miradas de la historia de Cuba (Castellón, 1998), assim como em vários números da revista Debates americanos. 38 Ver Hernán Venegas, Provincias, regiones y localidades. Historia regional cubana. Caracas: Fondo Editorial Tropykos, 1993.

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OS FUNDADORES DA HISTORIOGRAFIA MARXISTA NA AMÉRICA LATINA Sergio Guerra Villaboy

Um dos grandes paradigmas historiográficos contemporâneos, o marxismo, se impôs na América Latina na segunda metade do século 20, variando radicalmente o caminho seguido até então pela produção histórica desse continente. A partir desse momento, generalizou-se o interesse por uma história, estrutural e objetivista, que permitisse oferecer uma visão global do futuro dos países latino-americanos e que, desdenhando o papel dos indivíduos e a onipresença do fato histórico, enfatizasse a evolução econômico-social e a macroanálise, mesmo conservando determinados componentes do instrumental metodológico legado pela historiografia positivista. Na realidade, esse processo se iniciara no começo do século 20, quando uma jovem geração de historiadores promoveu, com ganhos e contribuições significativos, a aplicação do marxismo para a análise e a investigação da história da América Latina e do Caribe. A contrapelo da perseguição e da repressão governamental, assim como de inevitáveis vaivens, mimetismos, esquemas e desigualdades, desde então foi impondo uma corrente que fez do marxismo o seu paradigma interpretativo da história latino-americana. Neste trabalho, tencionamos realizar um balanço crítico da produção editada dos primeiros historiadores marxistas da América Latina e do Caribe no período que se estende desde o início do século 20 até o triunfo da Revolução Cubana, acontecimento que marcou o começo de uma nova etapa na história e em toda a atividade historiográfica deste continente. Portanto, não são objeto de

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nosso estudo os textos sobre a história latino-americana escritos nessa perspectiva de análise e publicados depois de 1959, visto considerarmos que desde essa data se produziu um salto qualitativo e aumentou consideravelmente o número de pesquisadores que, à margem da historiografia tradicional, continuou a revalorização histórica iniciada pelos primeiros historiadores marxistas com base na assimilação de métodos e nas contribuições da renovada historiografia marxista européia, na teoria da dependência e na corrente francesa dos Annales, e que recebeu o nome de Nova História da América Latina.

DIFUSÃO DO MARXISMO A historiografia marxista latino-americana, surgida tardiamente em comparação com a Europa, apenas nas primeiras décadas do século 20 se caracterizou, desde as suas primeiras expressões, pela intenção de aplicar os postulados fundamentais do pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels à história da América Latina. Embora no Velho Continente o materialismo histórico já houvesse alcançado certo desenvolvimento desde a publicação do famoso Manifesto do Partido Comunista (1848), sua repercussão neste continente foi muito posterior. Para entender essa defasagem histórica, é preciso levar em consideração, em primeiro lugar, o baixo nível de desenvolvimento socioeconômico latino-americano, determinado pelo lento avanço capitalista. Por isso, a difusão das idéias de Marx e Engels na América Latina não encontrou então um terreno fértil, já que, durante o século 19, a classe operária e os outros setores sociais que deviam assimilar as novas doutrinas eram muito reduzidos. Isso explica porque, diversamente da Europa, o marxismo se enraizará aqui muito mais tarde e porque o processo de sua implantação começara pelos países do Cone Sul, região que em fins do século 19 e princípios do 20 registrava um surpreendente boom econômico que atraía centenas de milhares de trabalhadores estrangeiros. Junto com a chegada desses numerosos imigrantes europeus, muitos deles com um desenvolvimento relativamente alto de sua consciência social e política, começou a se difundir o pensamento marxista. Não por acaso, os primeiros partidos socialistas do continente que lograram consolidar-se surgiram na Argentina (1896), no Chile (1906) e no Uruguai (1912), encabeçados por celebridades intelectuais como o argentino Juan B. Justo (1865-1928) e o uruguaio Emilio Frugoni (18801969), assim como pelo líder trabalhista chileno Luis Emilio Recabarren (18761924). Como parte da luta ideológica em que se envolveram, foram eles os pri-

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meiros que tentaram aplicar as categorias marxistas, de forma rudimentar e esquemática, e ainda sob a herança do biologismo positivista, a compreensão de determinados aspectos da sociedade e da política da América Latina. Um exemplo é constituído pela intensa atividade intelectual do médico argentino Juan B. Justo, que não só traduziu para o espanhol, diretamente da quarta edição alemã, o primeiro tomo de O Capital, como foi também autor de vários folhetos, entre eles Socialismo e Teoría y Práctica de la Historia (1909), em que desenvolve sua própria interpretação histórica misturando elementos do positivismo de Herbert Spencer e da teoria de Marx. Como assinalou Juan Antonio Salceda: “Seguindo Spencer, Justo acreditava que a espécie humana se formou e evolui pela ação dos mesmos grandes fatores que determinaram a formação da espécie em geral”. Darwin e Malthus lhe servem de sustentáculo. Lendo Marx e Engels, talvez no idioma original, compreende que “o proletariado enarbola o ensinamento mais belo já aparecido na História”, mas coloca a sua emancipação no futuro remoto e postula o gremialismo e a cooperação livre dentro do sistema capitalista para chegar ao socialismo evolutivamente”.1 Já em La Teoría Científica de la Historia y la Política Argentina – fruto de uma conferência pronunciada em 1915 – Justo considerou: “Ao afirmar o papel fundamental do modo de produção e de mudança na história, Marx e Engels ficaram muito longe de fazer do desenvolvimento histórico um conceito unilateral”.2 Nesse trabalhos, o socialista argentino advogou, a partir de proposições que conjugavam o positivismo com um contorno materialista muito rudimentar, por uma compreensão científica da história da Argentina baseada no determinismo econômico, como já argumentara numa conferência proferida em 18 de julho de 1898, no Ateneu de Buenos Aires: Pois bem! Os movimentos religiosos, políticos e filosóficos, que disfarçam ou ocultam o fundo do movimento histórico de outros países e de outras épocas, têm um papel tão pequeno na história argentina que o fundamento econômico desta é evidente e não pôde ser reconhecido de todo pelos historiadores do país, embora não hajam tido teoria alguma do movimento histórico em geral nem tenham estudado os acontecimentos segundo um critério sistemático.3

Num prisma e numa evolução política muito parecida com a de Justo – que acabou filiado à II Internacional –, Emilio Frugoni escreveu a proclamação Al Pueblo (1911), manifesto do então recém-criado Centro Karl Marx de Montevidéu, em que manifesta seu interesse por uma interpretação marxista da sociedade uruguaia. Outro caso significativo foi o do professor italiano de Latim, estabelecido no Brasil desde 1904, Antonio Piccarollo, que em

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1908 deu a conhecer uma síntese histórica e política desse país que foi publicada com o título de Socialismo no Brasil. A rigor, o materialismo de Piccarollo era marcadamente mecanicista e pouco tinha a ver com o método de Marx. Como assinalaria muito tempo depois o historiador brasileiro Caio Prado Jr., ao fazer a crítica dessa obra, “Piccarollo dissolvia a dialética no evolucionismo, combinava elementos do folheto de Engels Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico com a idéia de que nem a natureza nem a história podiam dar saltos”.4 Outro texto que também deve figurar nesta relação de precursores da historiografia marxista latino-americana é Ricos y Pobres (1910), do socialista chileno Luis Emilio Recabaren. Na realidade, esse trabalho – trata-se de uma pequena conferência proferida por ocasião do primeiro centenário da independência do Chile – não pertence ao campo estrito da História, posto que nele Recabarren já tente valorizar aquele importante acontecimento numa perspectiva marxista, lastreado embora pela imaturidade do seu pensamento. Como quer que seja, é justo consignar que o enfoque maniqueísta de Recabarren, que condenava por inteiro os próceres da independência e rechaçava as façanhas e os heróis da história oficial, por considerá-los simples representantes da burguesia, estava prenunciando a postura típica que sobre a história deste continente adotariam os partidos comunistas latino-americanos na sua primeira etapa: desde a sua fundação – a partir do triunfo da Revolução Russa de 1917 e da criação da III Internacional, em 1919 – até a segunda metade dos anos 1930. Situado desde logo numa perspectiva sectária, Recabarren chegou a considerar o processo emancipador de 1810 alheio aos verdadeiros interesses da classe operária, por atribuir, como parte de uma avaliação igualmente equivocada de seu conteúdo social, um substrato burguês. Nós, que de há muito já estamos convencidos de que nada temos a ver com essa data que se chama aniversário da independência nacional, cremos necessário indicar ao povo o verdadeiro significado dessa data, que no nosso conceito só deve ser comemorada pelos burgueses, porque eles, sublevados em 1810 contra a Coroa da Espanha, conquistaram essa pátria para desfrutar dela e para aproveitar-se de todas as vantagens que a independência lhes proporcionava; porém sempre viveu na miséria, nada, absolutamente nada ganha nem ganhou com a independência deste solo da dominação espanhola.5 A fundação dos partidos comunistas na América Latina permitiu que o marxismo se difundisse mais aceleradamente por todo o continente. Desde então, a assimilação da teoria e da metodologia marxista proveio não só da lei-

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tura das escassas obras de Marx e Engels e Lenin, que por esse tempo circulavam em castelhano, mas também de manuais, textos e panfletos de propaganda da União Soviética, assim como da própria práxis dos partidos comunistas. Foi nessas circunstâncias que apareceram, inseridas em documentos partidários desses primeiros agrupamentos marxista-leninistas, algumas breves e ainda muito imprecisas incursões interpretativas sobre o devir histórico dos países latino-americanos. Ao mesmo tempo, jovens dirigentes comunistas, envolvidos ativamente nas lutas revolucionárias dessa época convulsa, sentiram também a necessidade de apoiar suas teses políticas com argumentos extraídos da história do continente. Assim, por exemplo, o cubano Julio Antonio Mella (1903-1929) escreveu, em 1925, o seu folheto Cuba, um Pueblo que Nunca Há Sido Libre, em que, ao tentar demonstrar o caráter expansionista do capitalismo norte-americano, analisa as tendências anexionistas de determinados setores burgueses crioulos ao longo de toda a história da maior ilha das Antilhas.6 O mesmo se pode dizer do livrinho elaborado nesse mesmo ano pelos comunistas venezuelanos Gustavo Machado (1898-1983) e Salvador de la Plaza (1896-1970), intitulado La Verdadera Situación de Venezuela, publicado em Havana em 1925 e reeditado no México em 1929. Em particular, nesse trabalho, Machado e de la Plaza ressaltam a transcendência das culturas aborígines do México e do Peru e fazem uma breve avaliação da colonização espanhola e do surgimento da propriedade privada e das classes sociais na Venezuela. Como bem assinalou Lucho Vitale: “A interpretação marxista que ali se faz de uma formação social concreta, como a Venezuela, é uma das primeiras que se fizeram no nosso continente utilizando o método materialista histórico”.7 Também foram provavelmente os primeiros que se atreveram a afirmar que “ao escravo sucedeu o peão assalariado”, o que equivalia a dizer que o regime escravista foi substituído por um capitalismo embrionário e que a independência em relação à Espanha tivera um caráter político formal, deixando intactas as bases econômicas e sociais herdadas da colônia: [...] não se iniciou como revolução social [...]. A “vida colonial” seguiu o seu curso, como após um parêntese de dor e miséria, não obstante a transformação política efetuada. As classes sociais continuaram igualmente caracterizadas salvo a incorporação, na classe governante, dos nativos que haviam adquirido méritos na guerra: a classe governante formada pelos antigos nobres, ricos latifundiários, sacerdotes e libertadores.8

Outros precursores da historiografia que também devem ser mencionados são os brasileiros Octavio Brandão e Antônio dos Santos Figueiredo.

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Brandão, fundador do Partido Comunista brasileiro, deu a público, em 1926, o seu apaixonado folheto Agrarismo e Industrialismo. Ensaio Marxista-leninista sobre a Revolta de São Paulo e a Guerra de Classes no Brasil, assinado com o pseudônimo de Fritz Mayer e que continha um rodapé aludindo à sua suposta edição em Buenos Aires. Como bem diz Konder: Brandão, fascinado por Lenin, se esforça por complementar o materialismo com a dialética, para torná-la mais conseqüente, para permitir que a práxis revolucionária dos homens fosse pensada em termos materialistas. Sua dialética, no entanto, era limitada por uma formulação exagerada, de tipo positivista. Era uma dialética que [...] ficava reduzida ao esquema da tríade de Hegel (tese, antítese, síntese), que era aplicada esquematicamente, como fórmula definitiva e universalmente válida [...] a processos históricos como o levante militar de 1924 ou a evolução do movimento operário brasileiro.9

Ao tentar aplicar a dialética marxista à sociedade brasileira, com base na dicotomia centralização-descentralização, Brandão relaciona dez ciclos históricos desde a chegada dos portugueses ao Brasil: “O primeiro ciclo é centralizador, quando a terra pertence a uma só pessoa, Dom Manuel, o Venturoso; e sua antítese é a descentralização, com as capitanias hereditárias, culminando a síntese no décimo, depois de vários ciclos – que deve ser promovido pela revolução proletária, socialista”.10 Além disso, por vezes Brandão cita frases de Marx como se fossem de Lenin, confusão em que não incorreu Antônio dos Santos Figueiredo, que evidencia maior domínio da doutrina de Marx, que ele distingue do leninismo. Figueiredo, um intelectual socialista independente, publicou, em 1926, uma recopilação de seus artigos com o título A Evolução do Estado no Brasil. Mas, como também assinalou Konder, “o materialismo de Antônio Figueiredo era meramente contemplativo” e “se deixava absorver por um pessimismo paralisador”.11

A ANÁLISE HISTÓRICA DE PONCE E MARIÁTEGUI Sem dúvida alguma, as figuras mais destacadas dessa geração de iniciadores foram o argentino Aníbal Ponce (1890-1938) e o peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) que, aplicando de maneira criadora o marxismo à realidade latino-americana, deram as primeiras contribuições substanciais para a compreensão da história deste continente numa nova pers-

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pectiva teórica. O escritor cubano Juan Marinello (1898-1977) chamou a atenção para a improcedência de comparar essas duas personalidades excepcionais que pertenceram ao reduzido grupo dos primeiros marxistas latino-americanos: Os dois livros-mestres de Ponce [refere-se a Educación y Lucha de Clases (1934) e Humanismo Burguês y Humanismo Proletário (1935), SGV] contêm, indubitavelmente, as mais ambiciosas reflexões desenvolvidas pelo pensamento marxista na nossa América. Com isso não se está querendo aludir a emulações sem sentido, nas quais estaria incluído, obrigatoriamente, José Carlos Mariátegui. De igual relevância, mas diferente, o autor peruano conduz por outros caminhos o seu vigoroso discurso. Mais enfático e assertivo, mais insistente e próximo – mais osso e menos pele –, ele escolhe dois registros primordiais: a interpretação nova da realidade que o cerca e a luta ideológica travada sobre as definições capitais de sua época. De certo modo, Ponce é como o complemento da obra de Mariátegui, como o foro desembaraçado e dinâmico que recolhe o seu augúrio.12 Ponce, discípulo de José Ingenieros (1877-1925) – que chegou a tentar conciliar o biologismo positivista com o marxismo, de que tinha umas escassas noções – e considerado a figura mais destacada entre os fundadores da corrente marxista na Argentina, teve de se exilar no México, onde atuou como educador até sua morte precoce num acidente automobilístico quando saía de Michoacán. Não foi um historiador, embora tenha deixado opiniões e critérios sobre a evolução deste continente disseminados em conferências e artigos. Algumas das suas concepções sobre a história latino-americana podem ser rastreadas numa conferência de 1928, na Universidade de La Plata, intitulada “Examen de Consciencia”, e no discurso “Las Masas de América contra la Guerra em el Mundo”, de 1933, pronunciado no Congresso Latino-americano contra a Guerra Imperialista, celebrado em Montevidéu. Lamentavelmente, na primeira dessas intervenções, Ponce se deixa levar, como sucederia depois com a historiografia marxista latina ligada ao Partido Comunista, pelos arraigados preconceitos liberais do século 19 e por determinadas concepções filosóficas então em voga, derivadas do positivismo, seguindo ao pé da letra as teses racistas de Domingo Faustino Sarmiento, tendentes a identificar o gaúcho e, por extensão, todo o interior argentino, com o atraso feudal. Depois de explicar, na epígrafe “La Historia Precolombina”, a escassa herança indígena na formação nacional platina, o marxista argentino declara mais adiante no cabeçalho que intitula “La Divergencia con España”:

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Não se tratava, pois, de uma guerra civil com aspirações ao separatismo; era a oposição clara e peremptória de duas culturas, de duas mentalidades, de duas filosofias. Não era a um triunfo militar sobre a Espanha que a revolução visava [Ponce se refere à independência (SGV)], e depois que os exércitos foram vencidos ainda se continuava lutando contra as suas idéias, contra as suas instituições, contra os seus costumes. Cada derrota da revolução continuou sendo assim uma vitória da Espanha, e o mais doloroso dos fracassos argentinos – a tirania de Rosas – foi um triunfo tão ruidoso do feudalismo espanhol que apareceram no rio da Prata, com o poder absoluto e a Companhia de Jesus, as corridas de touro e os autos-de-fé.13

Mais adiante, Ponce chegou à assimilação acrítica do falso dilema de Civilización y Barbárie, formulado por Sarmiento quando, na epígrafe seguinte, que denominou “La Leyenda del Gaucho”, expõe sem rodeios: Mestiço de índia e de espanhol – que quer dizer duplamente mestiço em razão das impurezas africanas do sangue paterno –, o gaúcho representou, durante a Colônia, a servidão feudal na sua acepção rigorosa. Inconsciente na qualidade de ignorante, e dócil ao patrão como bom servo, entrou com ele nas guerras de independência e seguindo-o decidiu suas simpatias. Guerreiro da Revolução o mais das vezes, outras foi também inimigo dos “insurrectos”.

Ante o número exíguo de europeus puros ou de quase europeus que fizeram a Revolução, o gaúcho formava maioria numa proporção esmagadora, e dentro da nacionalidade prolongava os hábitos e os costumes da Colônia. Os elementos conservadores do país tiveram nele seu aliado natural, e ante a sociedade “civil” pela qual se vinha batendo de Vértiz a Rivadaviaz, a barbárie gaúcha lançou as bases de uma sociedade “militar”: o caudilhismo e a tirania. Incapaz de trabalho por inveterada indolência, brigão e anarquista por hábito de guerra, não pôde fazer da Nação mais que um conglomerado de pequenos senhorios.14 Seja como for, cabe advertir que a aceitação por Ponce de algumas das teses racistas de Sarmiento era uma coisa comum na intelectualidade de esquerda da sua geração, embora essa posição tivesse mais a ver com uma interpretação liberal-positivista da História que com a interpretação propriamente marxista. O próprio Mariátegui, que estudou em profundidade o problema indígena, seguiu Sarmiento sem reservas em diversos textos, apesar de as conclusões do escritor argentino serem diametralmente opostas às suas. Essa presença persistente de Sarmiento em Ponce limitou, sem dúvida, o alcance do seu pensamento criador e cerceou a produção intelectual de orientação marxista desse talentoso autor, o que se pode observar igualmente nos dois livros que dedicou ao controvertido político e educador platino: La Vejez de Sarmiento (1927) – essencialmente um estudo literário com breves incur-

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sões na política – e Sarmiento, Constructor de una Nueva Argentina (Madri, 1932). Além de se deixar penetrar pelos enfoques racistas em relação ao gaúcho, Ponce celebrou o lamentável artigo de Marx sobre Simão Bolívar, pelo que sempre colocou entre aspas o qualificativo de “libertador”.15 Em compensação, muito mais lúcidas foram as avaliações históricas, o que se poderia considerar uma das primeiras e mais sugestivas análises globais, numa perspectiva marxista, dos efeitos da penetração do capital estrangeiro e das rivalidades interimperialistas sobre a sociedade latino-americana. Aqui ele explica as causas econômicas produzidas pela 1.ª Guerra Mundial e seus resultados para a América Latina, logrando articular uma linha interpretativa até então inédita da evolução econômica e social dos países latino-americanos depois de sua emancipação da Espanha, que se converteria em um lugarcomum de toda a historiografia marxista e antiimperialista posterior. Todavia, é nos trabalhos de Mariátegui, mais que nos de Ponce, que aparece pela primeira vez no pensamento marxista latino-americano a intenção de compreender a história deste continente com espírito de totalidade.16 Já a partir de 1918, Mariátegui começara a propender para o marxismo, que terminou por assimilar durante sua temporada na Itália entre 1920 e 1923, quando participou na fundação do Partido Comunista desse país europeu. De volta ao Peru, publicou a revista mensal Amanta (1926) e figurou como membro da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) até 1928, quando organizou o Partido Socialista – mais tarde Comunista. No início de seus conhecidos Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana (1928), sua obra mais orgânica, o singular intelectual peruano oferece um rico e matizado esquema interpretativo, fundamentado no materialismo histórico, da evolução de seu país e que, ao mesmo tempo, configura um grupo de teses essenciais para a compreensão da história latino-americana, que não perderam boa parte de sua validade. Como assinala Antonio Melis, aqui Mariátegui intui que para entender Marx é necessário estar em condições de compreender todo o alcance ‘estrutural’ de sua análise, ou seja, seu propósito de situar os traços específicos de uma formação econômico-social num modelo geral de desenvolvimento histórico, o que é a única coisa que confere um valor autenticamente científico ao marxismo, para além de qualquer interpretação deformadora no sentido do historicismo idealista.17

Por isso, mais livre dos velhos preconceitos liberais e menos afetado pelo pesado fardo do positivismo que aquejó outros marxistas da sua geração, Mariátegui mostrou nos seus Siete Ensayos uma compreensão melhor que a de

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Ponce das desiguais realidades latino-americanas e incursionou com maior acerto que o educador argentino na análise da evolução deste continente, como se pode ver pelo seguinte trecho: Enfocada no plano da história mundial, a Independência sul-americana apresenta-se decidida pelas necessidades do desenvolvimento da civilização ocidental ou, melhor dizendo, capitalista. O ritmo do fenômeno capitalista teve na elaboração da Independência uma função menos evidente e ostensiva, mas sem dúvida muito mais decisiva e profunda que o eco da filosofia e a literatura dos enciclopedistas. Apenas se tornaram independentes, guiadas pelo mesmo impulso natural que as havia conduzido à revolução de Independência, essas nações buscaram no tráfico com o capital e a indústria do Ocidente os elementos e as relações requeridas pelo incremento de sua economia. Ao Ocidente capitalista começaram a enviar os produtos do seu solo e do seu subsolo. E do Ocidente capitalista entraram a receber tecidos, máquinas e mil produtos industriais. Estabeleceu-se assim um contato contínuo e crescente entre a América do Sul e a civilização ocidental. Os países mais favorecidos por esse tráfico foram, naturalmente, a causa de sua maior proximidade da Europa, os países situados à beira do Atlântico. A Argentina e o Brasil, sobretudo, atraíram para seu território capitais e imigrantes europeus em grande quantidade. Fortes e homogêneas aluviões ocidentais aceleraram nesses países a transformação da economia e a cultura que adquiriram gradualmente a função e a estrutura da economia e da cultura européias. A democracia burguesa e liberal pôde lançar aí raízes seguras, enquanto o resto da América do Sul se via obstruída pela subsistência de tenazes e extensos resíduos de feudalidade.18 Uma constante do pensamento de Mariátegui foi a sua preocupação pela dimensão específica da luta de classes na América Latina, particularmente no Peru, que devia ser analisada na perspectiva enriquecedora e antidogmática do marxismo, juntamente com a ponderação de fenômenos peculiares a este continente, como a presença indígena e o problema agrário. Assim, por exemplo, não somente conseguiu uma dissecção classista mais rigorosa da sociedade latino-americana que as realizadas até então pelo pensamento marxista como também assinalou com agudeza a maneira como a existência das comunidades indígenas na terra andina, e seu conflito endêmico com os gamonales determinaram os limites do processo de independência. Ao mesmo tempo, advertiu que a incapacidade de incorporar plenamente as massas aborígines à luta anticolonial foi sempre motivada por fatores classistas e raciais,

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e que a instabilidade política posterior à independência era uma conseqüência da falta de uma “burguesia orgânica”, pois, para que a nova ordem republicana liberal “funcionasse mais ou menos embrionariamente tinha de se constituir uma classe capitalista vigorosa”.19 Além disso, o Amauta peruano criticou os autores hispanófilos que só viam a origem da pátria peruana na conquista espanhola, desconhecendo o rico passado pré-colombiano.

PIONEIROS DA HISTORIOGRAFIA MARXISTA A rigor, as primeiras obras consagradas propriamente à história latinoamericana, elaboradas numa perspectiva marxista, não apareceram até princípios da década de 1930. Referimo-nos a La Lucha de Clases a través de la Historia de México (1932), do mexicano Rafael Ramos Pedrueza (1897-1943) e Evolução Política do Brasil. Ensaio de Interpretação Materialista (1933), de Caio Prado Jr. (1907-1990), dois autores que devem ser considerados os verdadeiros iniciadores da historiografia marxista em todo o continente. A obra do brasileiro Caio Prado Jr., cuja avaliação se faz mais adiante, distingue-se por ser a primeira a aplicar de maneira criadora as categorias marxistas ao estudo da história, da sociedade e do regime político de um país latinoamericano específico, atribuindo um papel essencial aos processos econômicos; algo que com resultados mais limitados tentou fazer Ramos Pedrueza em relação à história do México. De Rafael Ramos Pedrueza, um autodidata que fora militante do Partido Comunista do México, sobressaem o livro já mencionado – que abrange desde a organização do trabalho na etapa pré-cortesiana até a Revolução Mexicana de 1910 – e outro de 1936, escrito tendo como leitmotiv a Guerra Civil Espanhola e que busca ressaltar a solidariedade revolucionária entre a Espanha e o México: Francisco Javier Mina, Combatiente Clasista en Europa y América.20 Para o historiador mexicano, o materialismo histórico era o único “método [que] dá à história caráter de ciência positiva, comprovando a teoria da luta de classes, manancial de força revolucionária”.21 Mas a visão de Ramos Pedrueza é demasiado superficial e maniqueísta em comparação com a de Caio Prado Jr. Assim, para validar sua tese, Ramos Pedrueza identifica, sem matizar, os insurgentes mexicanos de princípios do século 19 com os oprimidos, e os realistas com os opressores, passando por alto as heterogeneidades socioclassistas existentes entre os participantes de ambos os lados. Noutra parte, ao se referir ao trabalho de

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Bolívar e San Martín, manifesta desconhecimento do verdadeiro significado histórico daquela gesta, em que reclama a ausência de um programa de transformação social: San Martín libertou no Sul, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e uma parte do Peru. [sic] O resto, ao norte, foi libertado por Bolívar. Naquelas imensas extensões e em lutas gigantescas, não se tocou na propriedade privada, os enormes latifúndios continuaram. Não se pensou sequer em melhorar economicamente as massas produtoras. A guerra só se fazia com finalidade política.22 Ao finalizar cada capítulo desse livro, em que cita abundantes fragmentos de textos de outros autores e documentos diversos, Ramos Pedrueza reafirma seu interesse pela dialética materialista por meio de análises mecanicistas, pretensamente marxistas, como a que transcrevemos a seguir, referentes à crise do porfiriato: Conclusões dialéticas deste capítulo: Tese: Ditadura classista, sustentada pelo latifundiarismo e pela burguesia internacional, explorando brutalmente o campesinato e o proletariado. Antítese: Agitação pela pequena burguesia, particularmente intelectual, nas massas oprimidas, revelando-lhes sua espantosa situação e possibilidades de remediá-la. Síntese: A Revolução Mexicana iniciada em 18 de novembro de 1910.23 Diversamente de Caio Prado Jr., que nesses anos fundacionais foi, na prática, o único historiador marxista ativo no Brasil, Ramos Pedrueza inseriase numa corrente relativamente ampla de seguidores das idéias de Marx e Lenin que se desenvolveu no México desde os anos 1930. Provavelmente isso se relaciona com o clima revolucionário e antiimperialista gerado pela Revolução Mexicana de 1910, fortalecido depois pelo governo nacionalista de Lázaro Cárdenas. Para Andrea Sánchez Quintanar, “o México é um dos países do nosso continente onde pela primeira vez se concretizaram as intenções de uma interpretação histórica à luz da teoria do socialismo científico”.24 Destarte, a historiografia marxista na antiga terra asteca, iniciada na década de 1930 com os livros mencionados de Rafael Ramos Pedrueza, teve também entre seus expoentes Alfonso Teja Zabre (1888-1962), Miguel Othón de Mendizábal (1890-1945), José Mancisidor (1894-1956), Luis Chávez Orozco (1901-1966), José C. Valadés (1901-1976), Agustín Cué Cánovas (1913-1971) e Armando e Germán Lizt Arzúbide.25 Nem todos esses autores podem ser situados numa linha marxista definida, pois Teja Zabre, muito eclético, só se guiou pelo materialismo histórico numa etapa inicial, à qual corresponde sua Historia de México. Una Moderna

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Interpretación (1935). Aqui, seguindo a prática determinista então em voga, atribui a causa da luta independentista iniciada em 1810 ao “conflito entre as forças produtivas e as relações de produção e a ruptura do equilíbrio entre essas relações de produção e as formas políticas que as expressam”.26 Por sua vez, Chávez Orozco, que foi antes de tudo um verdadeiro erudito dedicado à investigação de arquivos e dos primeiros a se interessar pela história econômica, dirigiu, entre 1933 e 1938, a publicação da compilação Documentos para la Historia de México, em doze tomos, com uma introdução de sua autoria. No tomo seis dessa obra, apareceu o seu ensaio pioneiro La Prehistoria del Socialismo e México (1935). Três anos depois, publicou-se pelas Ediciones Botas a sua Historia Económica y Social de México. Ensayo de Interpretación, livro que, a pesar do título, não é propriamente uma história, mas uma coletânea de ensaios – fundamentados num substancioso aparato crítico –, em que ele aborda diversos tópicos relacionados com o tema, como a servidão e a peonagem, os problemas agrários, os grêmios e os artesanatos. Nessa obra, o historiador mexicano considera que a independência propunha mudanças de ordem não somente política, mas também econômico-social, de caráter antifeudal, o que o vincula de forma pioneira ao ideário de Morelos.27 Othón de Mendizábal foi o outro historiador mexicano dessa geração que, juntamente com Chávez Orozco, se preocupou com a história econômica, conservando embora maiores elementos positivistas na sua produção historiográfica.28 Esse autor se deu a conhecer nos anos 1930 por suas conferências sobre “Historia Económica de México”, mais tarde recolhidas em suas Obras Completas, publicadas em seis volumes em 1947, com prólogo de Jesús Silva Herzog. Nesse texto pioneiro, Mendizábal analisa em forma de ensaio antropológico, estribado numa fundamentação marxista, o período que vai desde a época pré-hispânica até 1767, insistindo, sobretudo, na organização social e econômica dos indígenas. Na realidade, é mais uma história social salpicada de informações de caráter econômico. Dos sete capítulos em que se divide essa obra, os dois primeiros são dedicados aos povos pré-colombianos, um ao processo da dominação espanhola no vale central e os quatro restantes à conquista e colonização do oeste e do norte do México. Em cada um deles, juntamente com o enfoque histórico-antropológico, ele destaca os aspectos econômicos particulares dos grupos indígenas e se empenha em esclarecer suas características e antagonismos com a economia hispânica. Mendizábal se interessa pelos problemas econômicos, da comunidade e dos grupos aborígines, juntamente com os processos de aculturação e troca motivados pelo contato entre a econo-

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mia indígena e a economia espanhola. Esse autor denunciou também as arbitrariedades cometidas com os índios pelos colonizadores europeus e as diversas formas de que se valeram para explorar a população autóctone do México. Nesse grupo vanguardista, alguns especialistas mexicanos também incluem, por sua militância política inicial, José C. Valadés, que, com Chávez Orozco, se interessou pela história social. Valadés atuou no começo dos anos 1920 como secretário-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e foi um dos fundadores do Partido Comunista Mexicano – de que se separou em 1925. Porém, em seus principais livros, não há influências visíveis do método marxista, com exceção de sua opera prima Orígenes del Movimiento Obrero en México (1927).29 Por sua vez, a produção de Mancisidor, que havia lutado contra a intervenção norte-americana em Veracruz (1914) e atuado como alcalde de Xalapa, foi talvez a que mais ficou exposta à influência de um marxismo de cunho stalinista. Isso pode ser visto em seus trabalhos “Síntesis Histórica del Movimiento Social de México” (1940), Miguel Hidalgo, Constructor de una Patria (1944), Angulos de México (1945), Hidalgo Morelos, Guerrero (1956) e, sobretudo, Historia de la Revolución Mexicana, publicada post-mortem (1957), uma magnífica síntese desse processo, em que trabalhou por mais de vinte anos.30 Um rigor analítico e conceitual maior que o de Mancisidor caracterizou o trabalho historiográfico de Cué Cánovas, como o comprova a leitura de sua valiosa Historia Social y Económica de México, publicada pela primeira vez em 1947. Já na introdução do livro, Cué Cánovas demonstra que segue Marx na sua exposição ao explicar as importantes trocas socioeconômicas que impulsionaram a invasão européia da América no século 16. Entre os aspectos novos que teve para o seu tempo, esse importante livro de Cué Cánovas figura a sugestiva análise socioeconômica das diferentes etapas da história mexicana e a precisa definição classista de movimentos como o da independência ou a primeira reforma liberal, coisa até então ainda não conseguida pela jovem historiografia marxista mexicana.31 A partir das duas obras pioneiras de Ramos Pedrueza e Caio Prado Júnior, que ofereceram as primeiras análises históricas integrais sobre os seus respectivos países estribados na estrutura socioeconômica e em termos de luta de classes, iniciou-se uma discreta produção historiográfica marxista de autores latino-americanos, quase todos vinculados à linha dos partidos comunistas e que em vários lugares do hemisfério – como Bolívia,32 Equador33 e

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Paraguai34 – praticamente não teve representantes. Esse foi também o panorama desolador de quase toda a América Central e Caribe, dominados então por ditaduras sangrentas – ou regimes coloniais (Belice, Porto Rico, Jamaica e todas as Pequenas Antilhas) – que não toleravam o menor sintoma de oposição e onde as forças de esquerda eram de fato inexistentes. Isso explica porque nesses anos praticamente não se produziram nessa área expressões historiográficas marxistas. O atraso da região e seu precário desenvolvimento intelectual foram também fatores que contribuíram para a quase total ausência de historiadores marxistas antes de 1959. A exceção que confirma a regra é proporcionada pelo escritor guatemalteco Luis Cardoza y Aragón (1909-1992), que, estando exilado no México, publicou La Revolución Guatemalteca e Guatemala: Las Líneas de Su Mano, ambas em 1955, obras empenhadas em denunciar a agressão norte-americana contra sua pátria e nas quais incluiu breves análises históricas numa perspectiva marxista. Em particular, nesta última obra, Cardoza y Aragón faz uma sugestiva síntese marxista da história centro-americana, valorizada por sua prosa excepcional, como se pode ver no seguinte fragmento: A luta de classes se aguça na violenta posição dos partidos. A Grã-Bretanha e os Estados Unidos movem algumas das marionetes. Em cada Estado os interesses dos grupos dirigentes criam um clima propício aos transtornos e às guerras civis. A atenção nunca esteve posta na supremacia de uma organização unitária ou federal, mas sim diretamente em lutas de essência econômica mesmo dentro do quadro federativo de então, “grude pouco pegajoso”, nas palavras de Antonio José de Irisarri. Um quadro frágil e carcomido, fácil de romper quando conviesse às oligarquias de cada Estado, que disputavam entre si o poder e sua transcendência econômica. Francisco Morazán corre de um ponto a outro para reconstruir o desmantelado, como num castigo mitológico.35

Outro caso singular na região da América Central e Caribe é o do comunista haitiano Etienne D. Charlier, que publicou em 1954 uma grossa monografia marxista intitulada Aperçu sur la formation historique de la nation Hatienne, que contém um interessante estudo dessa sociedade às vésperas da revolução do final do século 18. Aqui, Charlier deu uma atenção especial ao papel dos escravos, aos aspectos sociais e ideológicos na formação da nação, muito embora se possa assinalar certa subestimação dos fatores políticos. No entanto, a caracterização classista dos líderes da Revolução Haitiana é realizada com acerto, apesar de alguns inevitáveis esquematismos sociológicos do trabalho.36 A área centro-americana e caribenha de Cuba foi, sem dúvida, um caso diferente do resto, pois aqui se conseguiu estabelecer uma corrente historio-

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gráfica relativamente extensa de inspiração marxista. Entre suas primeiras expressões figurou o “Curso de Introducción a la Historia de Cuba”, irradiado em 1936 pelo Instituto Popular del Aire e publicado dois anos depois pelo Historiador de la Ciudad de La Habana Emilio Roig de Leuchsenring (18891964). “O Curso”, como escreveu José Antonio Portuondo (1911-1996), precisamente um dos participantes já influenciado pelo marxismo, “composto por trinta e sete lições de diversos autores, tem um sentido predominantemente progressista e antiimperialista que, em alguns autores, já se funda num enfoque marxista preciso. Em várias lições aparecem, com fisionomia própria, as classes exploradas como protagonistas e se faz menção específica à luta de classes como motor da história”.37 A partir de então, e favorecidas pelas condições de legalidade criadas para o Partido Comunista – pouco depois redenominado Partido Socialista Popular – com a 2.ª Guerra Mundial, apareceram os primeiros trabalhos históricos de Sergio Aguirre (1914-1993), Raúl Cepero Bonilla (1920-1962), Carlos Rafael Rodríguez (1913-1997) e Julio Le Riverend (1912-1998), entre outros destacados historiadores que fizeram do marxismo o seu paradigma historiográfico.38 Ora, é a um dos textos de Sergio Aguire, Seis Actitudes de la Burguesía Cubana en el Siglo XIX (1942) que se reconheceu a condição de primeira expressão da historiografia marxista cubana.39 Incorporado desde os anos 1930 às fileiras do Partido Comunista, Aguirre foi docente do ensino médio e jornalista até o triunfo da Revolução, quando se converteu, entre 1962 e 1966, em diretor fundador da Escola de História da Universidade de Havana, onde trabalhou depois como professor até sua morte, em 1993. Entre seus primeiros textos figuram também Esclavitud y Abolicionismo (1946) e Quince Objeciones a Narciso López (1953). Uma aguda dissecção das contribuições de Aguirre para o conhecimento da História de Cuba – cujas considerações podem estender-se a quase toda a primeira geração de historiadores latino-americanos vinculados aos partidos comunistas – foi dada pelo malogrado historiador marxista cubano Carlos Funtanellas (1918-1973) quando escreveu: “Qualificamos historicamente a tarefa realizada por Aguirre. Foi ele – ou não foi – um investigador da nossa história? Em sentido técnico, não; manejou apenas fontes secundárias e, ainda mais, uma seleção entre elas. Ele próprio o adverte continuamente. Não trouxe novos elementos informativos extraídos de fontes primárias, não trabalhadas previamente. Utilizou os próprios elementos formativos da historiografia anterior, aplicando-lhes um novo instrumental metodológico:

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o materialismo histórico. Dir-se-ia que isso não é suficiente, que a historiografia burguesa, em nível informativo, realiza uma seleção de dados de acordo com seus interesses ideológicos e de classe; e isso é certo. Ficam nos arquivos, sem dúvida, elementos, dados, acontecimentos marginalizados por essa seleção, mas necessários para uma análise histórico-marxista; isso produz lacunas no saber histórico”.40

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA PRIMEIRA GERAÇÃO DE HISTORIADORES MARXISTAS Em que pese a essas e outras insuficiências que se poderiam assinalar, os trabalhos dessa primeira geração de historiadores deram lugar a uma renovação substancial na historiografia deste continente. Todos partiram do pressuposto de que a luta de classes é o motor da história e indagaram sobre o seu substrato econômico, para o que se valeram de conceitos novos – modo de produção, formação social, base econômica e superestrutura, revolução social, imperialismo, dependência, etc. – que se converteram nos principais atores do discurso histórico, ocupando o lugar que antes correspondia aos heróis e suas façanhas memoráveis. Dessa maneira se desenvolveram tópicos que antes nunca haviam chamado a atenção dos historiadores da América Latina, isto é, a estrutura social, o papel das massas populares, o surgimento da burguesia, o problema indígena, a escravidão, a dominação imperialista e outros temas virgens. Confrontados em geral com os reclamos da luta ideológica, esses autores, que na sua maioria pertenciam aos partidos comunistas ou atuavam em sua órbita de influência, entregaram-se à tarefa de tentar revelar as verdadeiras condições ocultas nas versões tradicionais a partir da reinterpretação da história “oficial” de seus respectivos países. Entre os objetivos dessa historiografia estava o interesse em demonstrar que as grandes personagens da história da América Latina só faziam expressar as aspirações de amplos movimentos de massas e a busca da função das classes e dos grupos sociais no processo histórico e outras questões ignoradas pela historiografia tradicional, de matriz romântico-nacionalista e positivista. Mas uma parte do trabalho da historiografia marxista produzida na América Latina entre os anos 1930 e 1950 viu-se afetada pelo escasso conhecimento que então existia dos trabalhos de Marx, Engels e Lenin – por exemplo, A Ideologia Alemã, de 1845-1846, em que aparecem as primeiras formulações

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extensas e coerentes do materialismo histórico e da concepção marxista da história, não foi editada até 1932 em sua língua original, e em espanhol só o foi vários anos depois –,41 assim como pela virgindade do seu objeto de investigação. Ademais, algumas das obras dos primeiros historiadores marxistas eram lastradas, em maior ou menor medida, pela tendência a recorrer aos princípios do materialismo histórico – avalizados com freqüentes citações dos fundadores do marxismo e outras figuras consideradas autoridades na matéria (Plejanov, Bujarin, Stalin) – para forçar a exegese ante a ausência de investigações factuais que permitissem a comprovação de suas novas exposições. Todos os elementos apontados explicam a aplicação mecânica e esquemática dos critérios mais rudimentares da análise marxista e a sobrevivência em muitos desses autores de consideráveis elementos positivistas, sem embargo de suas duras críticas a toda a historiografia anterior. Às voltas com a escassa informação disponível – recompilada no prisma da história tradicional – e com o uso predominante de fontes secundárias, muitos dos primeiros historiadores marxistas latino-americanos não puderam oferecer, de maneira coerente e sistemática, uma reinterpretação completa do processo histórico e tampouco trazer novos elementos cognoscitivos. Não obstante, essa não foi a característica predominante em todos os integrantes dessa fornada de historiadores marxistas latino-americanos, como o demonstram as percucientes investigações de arquivos desenvolvidas, por exemplo, pelo chileno Hernán Ramírez Necochea (1917-1980) e pelos venezuelanos Miguel Acosta Saignes (1908-1988) e Federico Brito Figueroa (1922). Ramírez Necochea, que desde 1934 foi membro do Partido Comunista e professor da Universidade do Chile, publicou, em 1951, La Guerra Civil del 91. Antecedentes Económicos, em 1956, Historia del Movimiento Obrero en Chile, Antecedentes, Siglo XX, e em 1958 Balmaceda y la Contrarrevolución de 1891.42 Os textos de Ramírez Necochea se caracterizam não só pelo seu rigor metodológico e conceitual mas também pelo uso exaustivo de fontes documentais. Foi um dos primeiros historiadores que se dedicaram ao tema da penetração do capital estrangeiro e do imperialismo, em sua acepção leninista, por sua transcendência para a compreensão da história latino-americana dos séculos 19 e 20. Por sua parte, o antropólogo venezuelano Miguel Acosta Saignes, um dos mais sólidos historiadores marxistas venezuelanos de sua geração, deu-se a conhecer em 1937 com Latifundio. La Tierra para Quien la Trabaja, obra assinada com o pseudônimo de José Fabbiani Ruiz e elaborada no contexto da luta contra a ditadura de Juan Vicente Gómez e da estruturação, entre 1936 e 1937,

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do Partido Democrático Nacional da Venezuela. Em 1945, Acosta Saignes graduou-se como etnólogo na Universidade Nacional Autônoma do México e depois como antropólogo na Venezuela. Foi fundador da Escola de Jornalismo, professor universitário e senador da República. Como resultado de suas rigorosas pesquisas, publicou, no período aqui analisado, Estudios de Entnología Antigua de Venezuela (1954), com prólogo do conhecido etnólogo cubano Fernando Ortiz, Los Pochtecas, Ubicación de los Mercaderes en la Estructura Social Tenochca (México, 1945), Los Caribes en la Costa Venezolana (1946), El Area Cultural Prehispánica de los Andes Venezolanos (1952) e Historia de los Portugueses en Venezuela (1959). Além de Acosta Saignes, pode-se mencionar ainda outro destacado historiador venezuelano, Federico Brito Figueroa, que também estudou no México, onde se graduou na Escola Nacional de Antropologia e História com a tese Desarrollo Económico y Proceso Demográfico en Venezuela (1958). A essa mesma etapa correspondem seus folhetos La Liberación de los Esclavos en Venezuela (1949) e El Marxismo y la Antropología (México, 1957). Brito Figueroa, com apenas 17 anos de idade, incorporou-se ao Partido Comunista (1939) e foi organizador do movimento camponês no Estado de Aragua até passar, entre 1945 e 1949, a estudar no Instituto Pedagógico Nacional. De 1950 a 1952, ficou confinado no Estado de Yaracuy por suas atividades políticas. Em San Felipe, exerceu a docência e realizou uma pesquisa que mais tarde publicaria com o título de Visión Geográfica, Económica y Humana del Estado Yaracuy (1951). Essa obra, juntamente com os folhetos Miranda, Pasión de la Libertad Americana (1950), Ezequiel Zamora: Um Capítulo de la Historia Nacional (1951), Humboldt y la Estructura Social de Nueva España (México, 1956), Panamá 1826-1956: Bolívar contra el Colonialismo y el Imperialismo (México, 1956), completa sua bibliografia, que o inscreve entre os pioneiros da historiografia marxista na Venezuela que realizaram trabalhos de arquivo.43 Outro fator a se levar em conta na avaliação da produção de boa parte dos historiadores marxistas dessa geração é que ela foi marcada desde 1935, devido aos seus estreitos vínculos com os partidos comunistas, pela política das “frentes populares”, que, de certa forma, permanecem vigentes até que o triunfo da Revolução Cubana obrigou a abandoná-la. Por isso, quase todos esses autores aceitaram sem grandes reservas as linhas interpretativas, incluso o culto dos principais heróis nacionais, impostas pela historiografia liberalpositivista tradicional, posto que lhe trazendo um embasamento socioclassista extraído da doutrina marxista-leninista.

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Exemplo disso, podemos encontrá-lo na historiografia uruguaia com o trabalho realizado por Jesualdo Sosa (1905-1982) em seu volumoso romance histórico Artigas. Del Vasallaje a la Revolución (1940),44 em que exalta a figura do Protetor dos Povos Livres, e Francisco R. Pintos (1889-1968), com seu Batlle y el Proceso Histórico del Uruguay (1938), em que avalia o papel de um dos clássicos políticos burgueses orientais, que fora fundador do sistema político contemporâneo do Uruguai. Nesta obra, a primeira que se escreveu no Uruguai com critério marxista, Pintos aplicou ao fenômeno do batllismo o conceito de luta de classes, movimento que ele definiu por sua confrontação com os caudilhos rurais. Ao fundamentar sua posição, na introdução desse livro pioneiro, o próprio Pintos confessa: Nós, de nossa parte, entendendo também que só através do método que nos assinala Marx é possível compreender a ação dos homens e explicar sua posição perante a história, empreenderemos a análise de Batlle e sua obra à clara luz do marxismo. E, ao fazê-lo utilizando esse método, longe de apequenar a personalidade de Battle, vamos pôr bem de manifesto o seu mérito, seus valores, que consistem em haver compreendido, como ninguém em sua época, a forma como era necessário agir para levar o país para adiante, ultrapassando rapidamente o estado inferior de quase imobilidade em que se encontrava desde a época da Independência. Só procedendo assim é possível ter uma idéia cabal não apenas da personalidade e da obra do fundador do batllismo mas de todo o processo histórico do Uruguai nos últimos anos.45

O clima criado com a adoção pelos partidos comunistas da tática das “frentes populares” explica porque desde os anos 1940 a historiografia marxista foi mais tolerada em alguns meios acadêmicos e intelectuais da América Latina. Em última instância, com suas análises, a historiografia marxista estava dando fundamento histórico à aliança dos partidos comunistas com as forças “progressistas” de seus respectivos países. Não esqueçamos que se tratava de uma política comunista que via, nos países latino-americanos, semicolônias feudais necessitadas de avançar rumo ao capitalismo e à democracia representativa. Desse modo, a visão do passado oferecida pelo marxismo latino-americano passou de seus anátemas iconoclastas contra o processo emancipador do século 19 e de sua condenação das personalidades históricas, consideradas representantes dos interesses da burguesia – enfoque que se harmonizava com a tática do Comintern de “classe contra classe”, vigente desde os anos 1920 – a algumas conclusões mais indulgentes com os mitos da história “oficial”, após os acordos do VII Congresso da III Internacional (1935). Com

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razão, Carrera Damas assinalou que, por esse caminho, “o crítico acabava por se converter quase em ‘tributário’ absoluto do criticado, ao se definir apenas negativamente com relação a ele, sem poder opor-lhe uma nova construção, sólida e coesa, além de uma teoria interpretativa geral. Há, nesse sentido, uma grande distância entre o ‘Anti-Dühring’ composto por Engels e o ‘AntiVallenilla Lanz’ composto por Carlos Irazábal e o ‘Anti-Picón Salas’ composto por Eduardo Machado”. Essa incapacidade de se distanciar dos pontos de vista da história “oficial” é exatamente o que mais chama a atenção no livro, esquemático e superficial, do historiador comunista argentino Álvaro Yunque – seu verdadeiro nome era Aristides Gandolfi Herrero (1890-1982) –, intitulado Breve Historia de los Argentinos (1948). Essa obra, em que se acentua o determinismo economicista, segue de perto a interpretação liberal ao analisar as lutas de Buenos Aires com o interior segundo o velho dilema de Sarmiento, recoberto embora de um tênue verniz marxistizante, como se pode comprovar no seguinte passo: Aparentemente, a Guerra do Paraguai é uma guerra entre nações. Na realidade, é uma guerra entre classes sociais. É a guerra do capitalismo industrial contra os restos do feudalismo. O senhor feudal Rosas, que brigou para manter isolada a Argentina, ou o seu litoral pelo menos, manteve por sua vez isolado o Paraguai, feudo dos ditadores Francia e López. Com a queda de Rosas, derrubado pelos interesses do capitalismo, este se lançou sobre o feudalismo paraguaio.47 Em suas avaliações, Yunque se baseia nos mitos estabelecidos pela historiografia liberal-positivista argentina, mesclados ao inflexível esquema teleológico relativo à sucessão de cinco modos de produção implantados por Stalin, o que decerto causaria sérias incongruências históricas em sua aplicação dogmática à evolução latino-americana. Uma prova disso pode ser vista num conhecido texto marxista cubano de 1943: Com a abolição da escravidão, os traços que predominaram na sociedade cubana correspondiam aos de um regime feudal sui generis, embora em franco processo de dissolução, ainda recém-nascido, enquanto os elementos capitalistas que se haviam desenvolvido desde a escravidão acentuavam sua presença e sua importância. Na curta história do nosso país, tivemos quatro formas fundamentais de relações de produção que se desenvolveram no mundo até 1917: o comunismo primitivo, a escravidão, o feudalismo e o capitalismo.48

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OS ESTUDOS RENOVADORES DE PUIGGROS, DE LA PLAZA E JOBET Não obstante, alguns historiadores marxistas, divergindo da opinião da política de alianças com a burguesia sustentada pelos partidos comunistas, forjada no contexto internacional da luta contra o fascismo, abriram – particularmente em função da crítica ao browderismo – novas linhas analíticas que em diversos casos acabariam por se entroncar com a historiografia revisionistanacionalista de caráter populista e antiimperialista. Tal foi precisamente a evolução de dois destacados historiadores dessa geração, o venezuelano Salvador de la Plaza e o argentino Rodolfo Puiggros (1906-1980), que passaram do apego acrítico às doutrinas partidárias ao questionamento de dogmas e estereótipos. De la Plaza, a quem já mencionamos como co-autor, juntamente com Gustavo Machado, de uma obra pioneira do pensamento marxista latino-americano, em discrepância com o browderismo, afastou-se do Partido Comunista da Venezuela nos anos 1940 e fundou o Partido Revolucionário do Proletariado.49 Como investigador, De la Plaza deixou uma ampla produção de cunho sociopolítico em que fez estudos enriquecedores sobre a questão agrária e a evolução demográfica da Venezuela.50 Por sua vez, Puiggros se deu a conhecer como historiador com o livro De la Colônia a la Revolución (1940), um sério esforço analítico acerca da evolução do Vice-reinado do rio da Prata. Nesse mesmo ano, publicou La Herencia que Rosas Dejó al País e depois, estando exilado em Montevidéu, Rosas el Pequeño (1944). Nesse período de sua vida, quando ainda militava no Partido Comunista da Argentina e citava Stalin com freqüência, Puiggros partilhava os pontos de vista anti-rosistas da historiografia liberal-positivista de seu país ao julgar o clássico ditador argentino do século 19: A reivindicação do tirano Rosas, que se iguala à do colonialismo, havia necessariamente de coincidir com as forças mais reacionárias, obscurantistas e sanguinárias do mundo contemporâneo.51 Em 1947, Puiggros deixou o Partido Comunista e se integrou ao peronismo de esquerda, posição que o levaria, sem abandonar o marxismo, a comungar com o revisionismo histórico nacionalista, assumindo uma postura mais eclética do ponto de vista interpretativo e metodológico.52 Um historiador que também deve ser situado fora da linha promovida pelos partidos comunistas é o chileno Julio César Jobet Búrquez (1912-1981).

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Diferentemente de quase todos os autores incluídos neste estudo sobre os fundadores da historiografia marxista na América Latina, Jobet nunca pertenceu ao Partido Comunista, mas, sim, a outra força de esquerda – o Partido Socialista –, e isso explica porque sua produção, livre dos dogmas stalinistas que constrangiam boa parte da produção histórica de cunho comunista, foi mais desenvolta e flexível, sem perder o rigor científico. Jobet foi um político socialista que, em 1951, publicou Desarrollo Económico-social de Chile. Ensayo Crítico, que se pode considerar uma obra de vanguarda na historiografia marxista chilena. Nesse livro, como escreveu o seu compatriota, o sociólogo Hugo Zemelman, “se revigora o esforço de penetrar no conhecimento de diferentes aspectos estruturais até então desconhecidos, como a estrutura da propriedade agrícola, a relação entre economia e grupos sociais, o trabalho indígena, a peonagem e o inquilinato, o comércio, o movimento operário, etc. Desse modo se abre o umbral para uma recriação histórica original, organizada com base numa maior riqueza de material que busca dar conta da realidade como um todo complexo. Abandona-se a antiga perspectiva de reduzir a história ao episódico, ao que possa derivar da ação dos indivíduos. Começa-se a dar maior atenção à dinâmica estrutural, que em última instância explica o conjunto do movimento da sociedade”.53 No início desse importante texto, Jobet deixa bem explícitos os seus objetivos: Este trabalho pretende oferecer uma visão panorâmica do processo nacional numa síntese histórica e sociológica que supere a crônica predominantemente política. As classes oprimidas, o povo, não tiveram seus próprios historiadores, e a história do Chile foi assimilada, de maneira geral, à da sua classe rica, ou classe superior, como ela se autodenomina, e à análise de suas leis, sempre divorciadas da existência prática do povo.54

AS CONTRIBUIÇÕES DE SERGIO BAGÚ E CAIO PRADO JÚNIOR Merecem lugar especial, por seu rigor conceitual e investigativo, assim como pelas notáveis contribuições historiográficas, duas eminentes figuras da historiografia latino-americana. Referimo-nos aos historiadores Sergio Bagú, da Argentina, e ao já mencionado Caio Prado Júnior, do Brasil. Os primeiros trabalhos de Sergio Bagú foram do gênero biográfico, ao publicar, em 1937, Vida Ejemplar de José Ingenieros. Juventud y Plenitud e, dois

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anos depois, Mariano Moreno. Pasión y Vida del Hombre de Mayo, textos em que ainda não se deixa ver claramente o emprego do materialismo histórico, o que, não obstante, já é muito palpável nos seus polêmicos livros Economia de la Sociedad Colonial (texto escrito entre 1944 e 1945 e publicado pela primeira vez em 1949) e Estructura Social de la Colonia (1952), ambos subintitulados Ensayo de Historia Comparada en América Latina.55 Para Márgara Millán, em Economía de la Sociedad Colonial, Bagú, situado no limite da história e da sociologia, realiza a reconstrução de um mecanismo colonial inserido numa sociedade. Não é história econômica, nem tampouco história social. Coincide sem o saber, por esse acaso da história que permite o aparecimento de idéias semelhantes em latitudes muito diversas, com Marc Bloch e a escola dos Annales, e muito forte é também a presença da análise marxista, conquanto a obra de Marx e Engels fosse apenas parcialmente conhecida nesse momento.56

Em ambos os livros, e baseando-se numa análise ponderada da estrutura socioeconômica latino-americana, defende-se a proposta de um capitalismo colonial contra a interpretação tradicional, aceita disciplinadamente por quase toda a historiografia marxista de então, de um regime feudal dominante no império espanhol de ultramar. As primeiras formulações de Bagú nessa direção foram realizadas em 1944, num ciclo de conferências pronunciadas nos Estados Unidos – para onde viajou ao ganhar um concurso interamericano de ensaio sobre a classe média –, quando partiu da premissa do caráter capitalista ou protocapitalista do período colonial na América espanhola.57 Como bem notou a própria Millán: “A visão que nos propõe o texto de 1949 em relação à índole da economia colonial tem a fortuna da clareza. É uma tese que vai de encontro à concepção generalizada da época, a qual era em princípio compartida pelo autor, segundo ele próprio confessa ao iniciar a pesquisa. Essa concepção propunha que o que ocorrera na Colônia era a projeção do feudalismo espanhol tradicional. Que essa etapa era uma etapa feudal. Opera aqui uma concepção de todo em todo diversa da história, oposta à idéia evolucionista de cunho neopositivista, mas também ao evolucionismo de um marxismo reducionista que sustentou a compreensão da história como uma sucessão inalterável de grandes etapas”.58

Assim, na primeira das duas obras já clássicas de Bagú, o historiador argentino conclui com a seguinte análise, que citamos in extenso: Quando os historiadores e economistas dizem que o feudalismo, agonizante na Europa, reviveu na América, referem-se a fatos certos: a transferência de algumas instituições já decadentes no Velho Mundo; o florescimento de uma aristocracia constituída por elementos deslocados de lá; certas características das grandes explo-

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rações agrárias, pecuárias e mineiras, que analisamos e que evocam as condições de dependência de servo para com o senhor e a beligerância senhorial da época feudal. Mas todos esses fatos não bastam para configurar um sistema econômico feudal. Quanto ao mais, o capitalismo colonial apresenta reiteradamente, nos diversos continentes, certas manifestações externas que o assemelham ao feudalismo. É um regime que conserva um perfil equívoco, sem alterar por isso a sua inquestionável índole capitalista. Longe de reviver o ciclo feudal, a América ingressou com surpreendente celeridade no ciclo do capitalismo comercial, já inaugurado na Europa. Mais ainda: a América contribuiu para dar a esse ciclo um vigor colossal, tornando possível a iniciação do período do capitalismo industrial, séculos mais tarde.

A escravidão nada tem de feudal, mas tudo de capitalista, como acreditamos havê-lo provado no caso da nossa América. Ao integrar-se no ciclo comercial, a América luso-espanhola recebeu um formidável enxerto africano. A mão-de-obra indígena e a outra, de procedência africana, foram os pilares do trabalho colonial americano. América e África – destilados os seus sangues pelos alquimistas do comércio internacional – foram indispensáveis para o deslumbrante florescimento capitalista europeu.59 E em outra parte desse mesmo texto Bagú acrescenta: A economia que as metrópoles ibéricas organizaram na América foi de inquestionável índole colonial, em função do mercado centro-ocidental europeu. O propósito que animou os produtores luso-hispânicos no novo continente teve igual caráter. Não foi feudalismo o que apareceu na América no período que estudamos, mas capitalismo colonial. Não houve servidão em vasta escala, mas escravidão com múltiplos matizes, oculta amiúde sob complexas e enganosas formulações jurídicas. A América ibérica nasce para integrar o ciclo do capitalismo nascente, e não para prolongar o agonizante ciclo feudal.60 Como se pode ver, nesse livro, Bagú diferencia claramente entre o modelo histórico do modo de produção capitalista e o capitalismo como sistema econômico mundial. Em muitas dessas novas propostas do historiador argentino, encontra-se implícita a idéia da dependência e do subdesenvolvimento como condição para o desenvolvimento capitalista, que seriam retomadas nos anos 1960 – embora, diversamente de Bagú, pondo maior ênfase nas teses circulacionistas – pela sociologia “dependentista” latino-americana.61 Os novos enfoques de Bagú foram desenvolvidos quase simultaneamente, e com o mesmo sentido interpretativo, embora provavelmente sem conexão alguma entre si, pelo brasileiro Caio Prado Júnior, que também navegou então contra os dogmas já estabelecidos pela nascente historiografia marxista. Caio Prado era, além disso, o mais importante historiador brasileiro que professava

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abertamente o materialismo histórico, num país onde se conhecem muito poucos representantes dessa corrente, entre eles Leôncio Basbaum (1907-1969).62 Por isso, a obra de Caio Prado Júnior merece um parágrafo à parte na historiografia marxista latino-americana e brasileira. Caio Prado nasceu em São Paulo (1907), no seio de uma família abastada, e, após realizar durante um ano estudos na Inglaterra e fazer outras viagens, formou-se advogado, em 1928. Embora nessa época juvenil tenha militado no Partido Democrático e apoiado Getúlio Vargas – o que lhe valeu uma prisão precoce (1930) –, bem cedo se desencantou da política burguesa, em particular depois da chamada Revolução de 1930, quando foi conquistado pelas idéias marxistas (1931). Em 1935, atuou como vice-presidente da Aliança Nacional Libertadora, organização de frente ampla orientada pelo Partido Comunista. A repressão governamental contra as forças de esquerda levou-o ao cárcere e, nesse mesmo ano, teve de expatriar-se na França, até que, em 1939, regressou ao Brasil. Em 1947, depois da queda da ditadura de Vargas, Caio Prado obteve uma cadeira de deputado estadual em São Paulo pelo Partido Comunista. Em 1955 lhe foi negada, por sua condição de comunista, um posto na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e, em 1966, depois do golpe militar de 1964, foi encarcerado e passou dois anos na prisão. Morreu em 1990. Sob o influxo da ideologia marxista, Caio Prado publicou, em 1933, seu livro Evolução Política do Brasil – Ensaio de Interpretação Materialista da História, em que rompe com a historiografia positivista ao oferecer uma visão diferente da história brasileira. Como ficou dito antes, esse foi um dos primeiros livros de história escritos na América Latina numa perspectiva marxista. Já no prefácio à primeira edição, Caio Prado advertia que não se tratava de uma simples História do Brasil, mas de um ensaio elaborado com um método relativamente novo: a interpretação materialista. No ano seguinte, após uma viagem à União Soviética, escreveu URSS, o Mundo do Socialismo, como resultado de uma conferência em que manifestou sua admiração pelo país dos sovietes. Uma de suas obras de história mais relevantes foi, sem dúvida, a já clássica História Econômica do Brasil (1945).63 Aqui ele logra apresentar um quadro harmonioso e nada esquemático da evolução do país, limitado embora pela pouca informação factual utilizada. Outro importante trabalho de Caio Prado Júnior foi Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia (1942), considerado o seu texto mais valioso para a análise do Brasil colonial, em que atribui a essa etapa histórica um papel de destaque no processo de acumulação primitiva do capitalismo. Como bem observa Sedi Hirano, nessa obra, o histo-

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riador brasileiro arremete contra um dos artigos de fé da historiografia marxista da época: “Não há, nos estudos de Caio Prado Júnior sobre a formação do Brasil colonial, uma tese que afirme a existência de “relações feudais” ou “pré-capitalistas”. Sua tese é a de um capitalismo. É “capitalista” porque se apóia no argumento de que Portugal já era um país marítimo e mercantil de grande envergadura na virada do século XV para o XVI [...]”.64

Ao questionar indiretamente a harmoniosa articulação das teses liberalpositivistas com o dogma stalinista do escalonamento de cinco modos de produção, Caio Prado abriu uma via analítica original para a compreensão da história deste continente que teria entre suas primeiras repercussões a sociologia dependentista dos anos 1960 e que, anos depois, acabaria por desembocar numa enriquecida renovação da historiografia latino-americana. Essas idéias de Caio Prado Júnior sobre as peculiaridades da formação econômico-social configurada na América Latina desde a etapa colonial, semelhantes às conclusões que então já sustentava Bagú na Argentina – e que, em última análise, eram o resultado da aplicação criativa do marxismo às condições latino-americanas, tal como preconizara Mariátegui –, representam sem dúvida o ponto mais alto alcançado pela historiografia marxista no período que antecede o triunfo da Revolução Cubana. Além disso, todos os integrantes dessa primeira geração de historiadores marxistas latino-americanos sempre estiveram comprometidos com as melhores causas dos povos, embora tenham precisado enfrentar uma violenta ofensiva política da direita – que os condenou ao ostracismo nos meios acadêmicos e de comunicação em massa, num processo paralelo às campanhas pejorativas promovidas pela historiografia tradicional. Mas esses ataques impiedosos não conseguiram evitar a paulatina propagação do marxismo por todo o hemisfério, sobretudo depois do impulso dado pelo triunfo da Revolução Cubana, que o converteu em um dos principais paradigmas que desde então dominaram a historiografia latino-americana, contribuindo, em grande parte graças ao trabalho desses precursores, para desobstruir o caminho conducente a uma nova compreensão da realidade e da história da América Latina.

NOTAS * Universidade de Havana. 1 SALCEDA, Juan Antonio. Aníbal Ponce y el Pensamiento de Mayo. Buenos Aires: Lautaro, 1957. p. 26. Ver um fragmento desse texto de Justo em Pensamiento

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Positivista Latino-americano. Compilación, prólogo e cronología de Leopoldo Zea. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1980. t. I, p. 484 et seq. 2 Em JUSTO, Juan B. La teoría científica de la historia y la politica argentina. Buenos Aires: La Vanguardia, 1915. p. 8. 3 Apud PASO, Leonardo. De la Colonia a la Independencia. Buenos Aires: Futuro, 1963. p. 10. 4 Em KONDER, Leandro. A façanha de uma estréia. In: História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 133. Ver também de MORAES FILHO, Evaristo de. A proto-história do marxismo no Brasil. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et al. História do marxismo no Brasil. O impacto das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 39. 5 RECABARREN, Luis Emilio. Obras. Prólogo de Digna Castañeda. La Habana: Casa de las Américas, 1976. p. 75. Apesar das limitações apontadas, nessa singela peça oratória, Recabarren qualifica acertadamente a Guerra do Pacífico (1879-1883) como uma contenda de conquista da burguesia chilena e faz uma análise pioneira da estrutura social de seu país em princípios do século 20. 6 Ver MELLA, J. A. Documentos y artículos. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1975. p. 174 et seq. 7 Ver VITALE, Luis. De Martí a Chiapas. Balance de un Siglo. Santiago de Chile: Síntesis y CELA, 1995. p. 66. 8 Apud VITALE, Luis. De Martí a Chiapas. Balance de un Siglo. Santiago de Chile: Síntesis y CELA, 1995. p. 67. Observe-se que, diferentemente de Recabarren, citada anteriormente, Machado e De la Plaza fazem uma análise muito mais matizada e evitam catalogar como burguesa a “classe governante” crioula que fez a independência. 9 KONDER, Leandro. A façanha de uma estréia. In: História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 135. 10 MORAES FILHO, Evaristo de. A proto-história do marxismo no Brasil. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et al. História do marxismo no Brasil. O impacto das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 43. 11 KONDER, Leandro. A façanha de uma estréia. In: História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Júnior. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 134. Ver também o comentário de MORAES FILHO, Evaristo de. A proto-história do marxismo no Brasil. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et al. História do marxismo no Brasil. O impacto das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 44. 12 MARINELLO, Juan. Pensamiento e invención de Aníbal Ponce. In: PONCE, Aníbal. Obras. La Habana: Casa de las Américas, 1975. p. 14. 13 PONCE, Aníbal. Obras. La Habana: Casa de las Américas, 1975. p. 364. 14 Ibid., p. 365-366. 15 Referimo-nos ao artigo de Marx, “Bolívar e Ponte”, escrito em 1858 para uma enciclopédia britânica, em que faz sobre o Libertador um juízo demolidor, qualificando-o de “Napoleão das retiradas”. Por certo, a primeira crítica de um latino-americano a esse polêmico trabalho de Marx se deveu ao dirigente comunista colombiano Gilberto Vieira, que editou, nas oficinas do Diario Popular, o seu ensaio reivindicativo Sobre la estela de Bolívar (1942). Entre os primeiros autores colombianos que empregaram categorias marxistas para o estudo da história se encontram Luis

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Eduardo Nieto Arteta, Guillermo Hernández Rodríguez, Arturo Vallejo e Eduardo Garzón, aos quais se seguiram Anteo Quimbaya, Diego Montaña Cuellar e o exsecretário-geral do Partido Comunista Ignacio Torres Giraldo (1893-1968). Ver CARRERA DAMAS, Germán. Historiografía marxista venezolana y otros temas. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1967. p. 110; FLÓREZ, Lenin. Notas acerca del trabajo del historiador en Colombia y algunos problemas metodológicos, Estudios Marxistas, Bogotá, n. 9, p. 92, 1975, e La historia al final del milenio. Ensayos de historiografía colombiana y latinoamericana. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 1994. v. I, p. 44-51. 16 No entanto, Jaime Labastida sustenta que Ponce teve uma formação marxista mais sólida que a de Mariátegui, reconhecendo embora que o pensador argentino nunca tentou a investigação crítica da história e da sociedade latino-americana nem de seu país, campo para o qual o Amauta peruano deu importantes contribuições. Ver LABASTIDA, Jaime. Introducción a humanismo y revolución, selección de ensayos de Aníbal Ponce. México: Siglo XXI, 1973. 17 MELIS, Antonio. Mariátegui, primer marxista de América. Revista Casa de las Américas, La Habana, n. 48, p. 24, mayo/jun. 1968. De forma mais matizada, o sociólogo peruano Aníbal Quijano reafirma essa opinião quando assinala: “O que hoje nos assombra na obra mariateguiana é que, apesar de suas ambigüidades conceptuais e da insuficiência de sua formação teórica, ele conseguiu fazer as descobertas teóricas mais importantes da investigação marxista de seu tempo na e sobre a América Latina”. Ver o seu prólogo a MARIÁTEGUI, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1979. p. LV. 18 MARIÁTEGUI, José Carlos Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Prólogo de Francisco Baeza. La Habana: Casa de las Américas, 1973. p. 6, 8. 19 Ibid., p. 12. Vale a pena esclarecer que no Peru a presença de Mariátegui, sem dúvida o mais lúcido pensador marxista latino-americano de sua geração, ofusca o trabalho de outros autores peruanos com obras de menor significação. É o caso de Ricardo Martínez de la Torre (1904-1968), na prática o único historiador marxista ativo no Peru após a morte de Mariátegui. Envolvido nas lutas políticas, publicou Páginas anti-apristas (1933) e Aprismo y sanchezcerrismo (1934). Só deixou uma obra propriamente de história: Apuntes para una interpretación marxista de la historia social del Perú, publicada em quatro tomos entre 1947 e 1950. No entanto esses volumes, dedicados à história do movimento operário peruano, carecem de inovações analíticas e constituem apenas uma valiosa recompilação documental. Entre os fundadores da historiografia marxista peruana, cabe mencionar também Luis E. e Gustavo Valcárcel, Alberto Tauro e Emilio Choy. Cf. a autorizada opinião de Pablo Macera em Trabajos de Historia. Lima: G. Herrera Editores, 1988. t. I, p. 134. 20 Publicou também Estudios históricos, sociales y literarios (1923), Sugerencias revolucionarias para la enseñanza de la Historia (1932), Crimenes de los Imperialismos, Emiliano Zapata y el Agrarismo Nacional e José M. Moralos y Pavón, Precursor del Socialismo en México. 21 RAMOS PEDRUEZA, Rafael. La lucha de clases a través de la historia de México. México: Editorial de la Revista “Lux”. 2. ed. cor. e aum. México: [s.n.], [1936]. p. 19. Obra reeditada em 1941 – consideravelmente ampliada e dedicada exclusivamente ao processo iniciado em 1910 – com o título Revolución Democráticoburguesa. 22 Ibid., p. 103.

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23 Ibid., p. 268. Itálicos no original. 24 SÁNCHEZ QUINTANAR, Andrea. La historiografía marxista mexicana. In: Panorama actual de la historiografía mexicana. México: Cuadernos del Instituto Dr. José María Luis Mora, 1983. p. 24. Ver também o seu estudo anterior: Tres socialistas en la historia mexicana contemporánea. Anuario. México: Escuela de Historia de la Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, n. 2, p. 37 et seq., 1977. 25 MATUTE, Alvaro. La Teoría de la Historia en México. México: Sep-Setentas, 1974. p. 13, 14, e HUERTA, María Teresa et al. Balance y perspectivas de la historiografía social en México. México: Instituto Nacional de Antropología e Historia, 1979. 2 t. Entre as manifestações pioneiras dessa historiografia figuram o trabalho de Germán Lizt Arzubide intitulado Emiliano Zapata exaltación (1927) e, em co-autoria com seu irmão Armando, La huelga de Río Blanco (1935). Outro autor que também se poderia incluir nesta lista, devido ao uso de determinados instrumentos de análise extraídos do marxismo, é o historiador mexicano nascido em Barcelona (1922), Luis Villoro, que em 1953 publicou seu clássico La revolución de independência, ensayo de interpretación histórica. 26 TEJA ZABRE, Alfonso. Historia de México. Una moderna interpretación. 2. ed. cor. e atual. México: Ediciones Botas, 1948. p. 304. A essa etapa correspondem igualmente Teoría de la revolución (1936) e Panorama histórico de la revolución mexicana (1939). 27 Entre as primeiras obras de Chávez Orozco figuram Un esfuerzo de México por la independencia de Cuba (1930) e La civilización maya-quiché (1932). Valendo-se de fontes primárias, Chávez Orozco deixou uma profusa obra historiográfica em que se destacam, entre outros títulos, Historia de México (1939-1940, 2 t.), que contém valiosas contribuições para a análise econômico-social do período 1808-1836; La libertad del comercio en la Nueva España en la segunda década del siglo XIX (1943); Indice del ramo de indios del Archivo General de la Nación (1951), em vários tomos, e Documentos para la Historia del Comercio Exterior (1958-1962, 7 t.). 28 Entre seus trabalhos também se destacam La influencia de la sal en la distribución geografica de los grupos indígenas de México (publicado originalmente em 1928), La minería y la metalurgia en México e La minería en el siglo XVI. 29 Isso pode ser comprovado em obras como El porfirismo. Historia de un régimen. El nacimiento (1876-1884) (1941) e El porfirismo. Historia de un régimen. El crecimiento (1948, 2 v.), em que se examina a intenção de reivindicar a figura desse ditador na perspectiva de uma história narrativa tradicional, com o que se situa, na realidade, mais próximo das posições do revisionismo histórico nacionalista do que do mar-xismo. Outras obras de Valadés que também se podem consultar são Bibliografía del anarquismo en México (1927), Las caballerías de la revolución. Hazañas del General Buelna (1937), Motín político, Santa Anna y la Guerra de Texas (1936), Alamán, estadista e historiador (1938) e Topolobampo, la metrópoli socialista de occidente (Apuntes para la Historia de la Ciudad de La Paz) (1939). Ver, de GURRIA LACROIX, Jorge. Trabajos sobre Historia Mexicana. México: Instituto Nacional de Antropología e Historia, 1964. p. 119, e a introdução de Oscar Javier Acosta Romero a José C. Valades: El juicio de la Historia. Escritos sobre el siglo XIX. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1996. 30 Suas Obras completas, em seis tomos, foram publicadas em Xalapa entre 1978 e 1981. 31 Além da obra já citada, escreveu também Historia del capitalismo (1945), Hidalgo (1953), El Tratado McLane-Ocampo, Juárez, los Estados Unidos y Europa (1956), com

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prólogo de Vicente Sáenz; Historia política de México (1957); Ricardo Flores Magón, La Baja Califórnia y los Estados Unidos (1957); Constitución y liberalismo (1958); La reforma liberal en México (1960); Historia mexicana (2 t., 1959 e 1961); El Tratado Mont-Almonte (1960); El federalismo mexicano (1960); La reforma liberal en México (1960) e Martí, el escritor y su época, dois ensaios elaborados em 1953 e publicados, com uma dedicatória ao comandante revolucionário cubano Camilo Ciénfuegos. 32 Ao que parece, nesse país andino, o único autor interessado pelo marxismo foi o político e romancista Tristán Maroff, cujo verdadeiro nome era Gustavo A. Navarro. Nascido em Sucre, em 1898, Maroff viajou pela Europa e viveu no México – entre 1928 e 1930 foi professor da Universidade Nacional –, Argentina e Peru e acabou filiado ao trotzquismo. Em El ingenuo continente americano, Maroff dedica um capítulo inteiro à cultura incaica e outro à evolução histórica da América Latina, no qual, por certo, aparece pela primeira vez a tese da “balcanização” sofrida pelo continente depois da independência, que em seguida seria utilizada por representantes do revisionismo histórico, como o argentino Jorge Abelardo Ramos. Assim, podese ler: “Mas, no dia seguinte ao êxito [refere-se à emancipação (SGV)], apareceu no cenário da América uma série de republiquetas terrivelmente apegadas aos seus ritos, aos seus costumes, às suas igrejas e até aos seus senhores e seus vícios. Burguesias hábeis e embriagadas com o clarim militar, mostraram ao povo ignorante a conveniência de constituir grupos isolados, para melhor dominar e explorar; porque a idéia de Bolívar já lhes parecia um tanto louca, por homérica e atrevida”. Em MAROFF, Tristán. El Ingenuo Continente Americano. Carta de Henri Barbusse e epílogo de Amadeo Legua. Barcelona: Maucci, 1923. p. 56. Entre suas obras, destacam-se também La justicia del Inca (Bruxelas, 1926), onde propôs realizar uma reforma agrária e nacionalizar as minas; Opresión y falsa democracia; La verdad socialista; e México de frente y de perfil. 33 No Equador, só se pode citar como antecedente da historiografia marxista o livro de denúncia social elaborado pelo médico e dirigente comunista Ricardo Paredes, intitulado El imperialismo en Ecuador. Oro y sangre en Portobelo, de 1938, e posteriormente o magnífico ensaio do escritor socialista Leopoldo Benites Vinueza Ecuador: drama y paradoja, fundamentado na luta de classes como motor da história e em que se critica o capitalismo e a dependência imperialista. Uma análise desse valioso livro, publicado originalmente pelo Fondo de Cultura Económica do México (1950), encontra-se em AYALA, Enrique. Historia, compromiso y política. Quito: Planeta, 1989. 34 Na terra guarani só podemos mencionar uma obra precursora de Oscar Creydt, exsecretário-geral do Partido Comunista desse país. Referimo-nos ao seu importante texto intitulado Formación histórica de la nación paraguaya (1953). Esse texto foi a proposta de Creydt para a obtenção de seu doutorado na Universidade de Moscou, processo frustrado em 1965, quando abandonou o Partido Comunista e fundou uma nova organização, de tendência maoísta. Uma versão desse trabalho de Creydt foi publicada pelo Boletín de la Agencia Prensa Latina em 15 de outubro de 1963 (n. 41, Ano 1, v. III) e contém a primeira reavaliação histórica marxista do legado revolucionário do ditador paraguaio José Gaspar Rodríguez de Francia. 35 CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. Guatemala. Las líneas de su mano. México: Fondo de Cultura Económica, 1955. p. 222. 36 CHARLIER, Etienne D. Aperçu sur la formation historique de la nation Haïtienne. Port-au-Prince: Les Presses Libres, 1954. Ver a certeira análise de LEPKOWSKI,

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Tadeusz. Algunas observaciones sobre la historiografía haitiana. In: Haiti. La Habana: Casa de las Américas, [19--]. t. I, p. 35-36. 37 Ver PORTUONDO, José Antonio. Hacia una nueva Historia de Cuba. In: ______. Crítica de la época y otros ensayos. La Habana: Universidad Central de Las Villas, 1965. p. 39. 38 Entre os primeiros trabalhos de história de Carlos Rafael Rodríguez estão Lenin (1941), El marxismo y la historia de Cuba (1943), José de la Luz y Caballero (1947) e La misión Welles (1957). A Cepero Bonilla se devem os livros Azúcar y abolición (1947) e El siglo (1862-68), un Periódico en lucha contra la censura (1957), enquanto de Le Riverend são, entre outros textos, os capítulos sobre história econômica incluídos nos dez tomos de Historia de la Nación Cubana (1952). Alguns dos historiadores cubanos também vinculados ao Partido Comunista se interessaram pela temática racial, como José Luciano Franco (1891-1989), Jorge Castellanos (1915) e Serafín Portuondo Linares. Ver um exemplo na obra deste último Los Independientes de Color. Historia del Partido Independiente de Color. La Habana: Publicaciones del Ministerio de Educación, 1950. 39 Para isso contribuiu decisivamente a opinião de Carlos Rafael Rodríguez em seu trabalho “El marxismo y la historia de Cuba”, que se pode consultar em Letra con filo. La Habana: Ediciones Unión, 1987. t. 3. 40 FUNTANELLAS, Carlos. Nota Preliminar. In: AGUIRRE, Sergio. Eco de Caminos. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1974. p. 12. Ver também a sua “Introducción” a CEPERO BONILLA, Raúl. Azúcar y abolición. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1971. p. 7. 41 Como assinalou B. N. Brodovich em Las obras de Marx en América Latina. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1977. p. 10: “A edição e divulgação sistemáticas da literatura marxista na América Latina se referem ao princípio dos anos 30 do século XX e estão relacionadas com a atividade da Editorial Europa-América, da Espanha, que começou a editar a série ‘Biblioteca del Marxista’ e a ‘Serie Popular de los Clásicos del Socialismo’”. 42 Outras obras importantes de sua autoria que correspondem ao período que analisamos são: Antecedentes económicos de la independencia de Chile (1959) e Historia del imperialismo en Chile (1960), com que obteve o doutorado na Universidade Carolina de Praga. No Chile já se havia publicado a obra histórica pioneira do dirigente comunista Volodia Teitelboim, nascido em 1916, intitulada El amanecer del capitalismo y la conquista de América (1943). Nesse trabalho, principal incursão de Teitelboim no campo específico do ensaio histórico, expõe-se de forma sintética aspectos elementares do nascimento e desenvolvimento do novo regime de produção na Europa e sua incidência no continente americano. 43 Ver ROJAS, Reinaldo. Contribución de Federico Brito Figueroa a la comprensión histórica de Venezuela Colonial. Revista de Africa y Medio Oriente, La Habana, Centro de Estudios de Africa y Medio Oriente, n. 2, 1988. 44 Ver SOSA, Jesualdo. Artigas. Del vasallaje a la revolución. Buenos Aires: Losada, 1961. p. 14. Para uma contextualização, cf. a opinião de Ana Ribeiro em Corrientes de la historiografía uruguaya, 1880-1940. De la epica al ensayo sociológico. Montevideo: [s.n.], 1992, p. 68. Mimeografado. 45 PINTOS, Francisco R. Batlle y el proceso histórico del Uruguay. 2. ed. Buenos Aires: Problemas, 1940. p. 20-21. Pintos foi o primeiro que aplicou, de maneira criado-

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ra, a conceitualização marxista à história do Uruguai. Militante do Partido Socialista desde 1915, fez parte do grupo encabeçado por Eugenio Gómez, que se separou dessa organização e criou o Partido Comunista, em 1921. Entre os primeiros expoentes da historiografia marxista uruguaia figuram também o próprio Eugenio Gómez, que, em 1951, publicou Historia del Partido Comunista del Uruguay. Um maior nível analítico, combinado com um embasamento factual apropriado, foi conseguido por Pintos com De la dominación española a la Guerra Grande, publicado em 1942, em que oferece uma singular reconstrução histórica do período colonial na qual prevalece o substrato socioeconômico. Escreveu também Historia del Uruguay 1851-1938, Ensayo de interpretación materialista (1946) e Historia del movimiento obrero del Uruguay (1960). Aproveitamos aqui para mencionar, entre os antecedentes da historiografia marxista uruguaia, a pequena crítica de Rodney Arismendi, até sua morte como secretário-geral do Partido Comunista uruguaio, um trabalho do historiador Alberto Zum Felde intitulado “El materialismo histórico y la evolución histórica del Uruguay”, publicado em Justicia em 1945 e reproduzido em Problemas de una revolución continental. Montevideo: Ediciones Pueblos Unidos, 1962. 46 CARRERA DAMAS, Germán. Historiografía marxista venezolana y otros temas. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1967. p. 130. Esse historiador refere-se aos comunistas venezuelanos Eduardo Machado, autor de Las primeras agresiones del Imperialismo contra Venezuela, publicado no México em 1957, e a Carlos Irazábal, que escreveu Hacia la democracia, editada também no México, em 1939, com prólogo de Luis Chávez Orozco, e Venezuela, esclava y feudal, de 1964. 47 YUNQUE, Alvaro. Breve historia de los argentinos. 2. ed. Buenos Aires: Futuro, 1960. p. 287-288. No entanto, em honra da verdade, muito mais matizadas e proveitosas são as suas anotações em rodapé que aparecem em BARROS ARANA, Diego. Historia de América. Introdución e notas de Alvaro Yunque. La Habana: Instituto del Libro, 1967. Vale consignar que esse autor foi um verdadeiro político que deixou, entre outras obras significativas, La literatura social en la Argentina (1941); La literatura social en la Argentina. Historia de los movimientos literarios desde la emancipación nacional hasta nuestros días (1941) e Alem, el hombre de la multitud (1946). 48 ROCA, Blas. Los Fundamentos del Socialismo en Cuba. La Habana: Ediciones Populares, 1960. p. 17-18. Os itálicos são do original. 49 Um roteiro semelhante seguiu também Rodolfo Quintero (1909-1985), outro membro da geração revolucionária venezuelana de 1928, iniciado no marxismo em fins dos anos 1920 por Pio Tamayo (1898-1935), quando estava preso em Puerto Cabello. Foi fundador do Partido Comunista da Venezuela e depois, nos anos 1940, esteve com De la Plaza na constituição do Partido Revolucionário del Proletariado. Em 1949, graduou-se em Antropologia no México, mas depois se especializou na temática operária. A essa etapa corresponde La vida y las luchas del revolucionario venezolano Daniel de León, publicado no México em 1955, em que reivindica a origem venezuelana de um dos fundadores do sindicalismo norte-americano. 50 Entre suas obras dessa época anterior ao triunfo da Revolução Cubana figura El problema de la tierra. (Venezuela). Base de la planificación económica y del progreso de América, publicado no México em 1947, que foi ampliada depois em La Reforma Agraria (1959). 51 PUIGGROS, Rodolfo. De la Colonia a la Revolución. Buenos Aires: Lautaro, 1943. p. 9-10. As outras obras de Puiggros, correspondentes à sua etapa de militância comunista, foram A 130 años de la Revolución de Mayo (1941), Los caudillos de la

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Revolución de Mayo (1942) e Historia económica del Río de la Plata (1943), texto pioneiro nesse campo, em que aplicou com uma precisão não isenta de momentos de certa rigidez analítica os esquemas e conceitos marxistas. Nessa mesma etapa, Puiggros, a exemplo de Yunque, qualificava de “feudal” o regime do doutor Francia. Ver PUIGGROS, Rodolfo. Historia económica del Río de la Plata. Buenos Aires: Ediciones Siglo XX, [19--]. p. 228 et seq. 52 Posteriormente, entre 1973 e 1974, Puiggros foi reitor da Universidade de Buenos Aires. Pertenceu à direção nacional do Movimiento Peronista Montonero, exilou-se no México e morreu em Havana. A essa última etapa correspondem: Historia crítica de los partidos políticos nacionales (1956), Libre empresa o nacionalización de la industria de la carne (1957) e El proletariado en la revolución nacional (1958). Eduardo B. Astesano e Juan José Real, historiadores comunistas como Puiggros, acabaram seguindo o mesmo caminho. Assim, Astesano, que em 1940, sendo comunista, considerava em sua Historia de la independencia económica que “Rosas [era] inimigo do progresso”, variava o seu critério em 1960 com o seu Rosas. Bases del nacionalismo popular. Astesano escreveu também Hombres y clases de la Revolución de Mayo, La movilización económica de los ejércitos sanmartinianos e San Martín y el origen del capitalismo argentino. Por sua vez, Juan José Real, que chegou a ser considerado o historiador oficial do Partido Comunista Argentino até 1953, abandonou essa organização e também passou a subscrever os principais postulados defendidos pelo revisionismo histórico nacionalista. 53 ZEMELMAN, Hugo. Prólogo. In: JOBET, Julio César. Ensayo crítico del desarrollo económico-social de Chile. Nota biográfica de Osvaldo Arias. México: Centro de Estúdios del Movimiento Obrero Salvador Allende-Casa de Chile, 1982. p. IX. De todo modo, o próprio Zemelman reconhece algumas das limitações do texto de Jobet: “Longos parágrafos de seu livro são menos que ensaísticos, pecando por jornalísticos, como pode atestá-lo a imprecisão científica de muitos termos, mas que respondem ao clima intelectual do debate público do seu tempo. É o caso de termos como regime feudal-capitalista ou oligarquia-imperialista” (p. XV). 54 JOBET, Julio César. Ensayo crítico del desarrollo económico-social de Chile. Nota biográfica de Osvaldo Arias. México: Centro de Estudios del Movimiento Obrero Salvador Allende-Casa de Chile, 1982. p. 1. Outras das suas obras são: Santiago Arcos Arlegui y la Sociedad de la Igualdad, un socialista utópico chileno (1942), Tres ensayos históricos, Valentín Letelier y sus continuadores: Dario Salas, Luis Galdames y Pedro Aguirre Cerda (1954), Luis Emilio Recabarren y los orígenes del movimiento obreto y del socialismo chilenos (1955), El socialismo en Chile (1956) e Los precursores del pensamiento social de Chile (1955-1956, 2 t.). 55 Outros textos importantes de Bagú, correspondentes ao período estudado nesse trabalho, são: La batalla por la presidencia de Estados Unidos (1948) e “Transformaciones sociales en la América Hispana”, ensaio publicado na revista mexicana Cuadernos Americanos em 1951. 56 MILLÁN, Márgara. Sergio Bagú: Los caminos de la historiografía. Estudios Latinoamericanos. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Ano 1, n. 1, p. 149, 1994. 57 Ver a análise de SOLER, Ricaurte. Idea y cuestión nacional latinoamericanas, de la independencia a la emergencia del imperialismo. México: Siglo XXI, 1980. p. 104. Uma

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crítica de Armando Córdova, “El ‘capitalismo colonial’ de Sergio Bagú”, encontra-se na Revista Universitária de Historia, Caracas, Universidad Santa Maria, n. 2, p. 37-54, mayo/agosto 1982. 58 MILLÁN, Márgara. Sergio Bagú: Los caminos de la historiografía. Estudios Latinoamericanos. México: Universidad Nacional Autónoma de México, Ano 1, n. 1, p. 154, 1994. 59 BAGÚ, Sergio. Economía de la sociedad colonial. Ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires: “El Ateneo” Editorial, 1949. p. 142-143. 60 Ibid., p. 260. 61 Em Estructura social de la colonia. Ensayo de historia comparada de América Latina. Buenos Aires: “El Ateneo” Editorial, 1952. p. 77. Bagú explicitava sobre suas conclusões a esse respeito: “Sem ser feudalismo, o regime econômico e social que se estrutura na América tem forte coloração feudal”. 62 Basbaun publicou em 1957 um livro pretensamente marxista, mas de pouca significação, intitulado História sincera da República, que oferece um apanhado da evolução do Brasil. 63 Ver a primeira versão em espanhol em PRADO JÚNIOR, Caio. Historia económica del Brasil. Buenos Aires: Futuro, 1960. 64 Sedi Hirano, “A face pré-capitalista”, em História e ideal, citado. Outras obras de Caio Prado Júnior que devemos mencionar são Dialética do conhecimento (1952, 2 t.), Diretrizes para uma política econômica brasileira (1954), Esboços dos fundamentos da teoria econômica (1957) e Notas introdutórias à lógica dialética (1959), em que cita profusamente Stalin.

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HISTÓRIA, MEMÓRIA, HISTORIOGRAFIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE HISTÓRIA NORMATIVA E COGNITIVA NO BRASIL* Jurandir Malerba

De início, cabe uma palavra para situar o contexto da produção do ensaio e da reflexão desenvolvidos a seguir. Em março de 2003, o historiador e teórico da história, Professor Masayuki Sato, promoveu um seminário para discutir a natureza das formas de narrativa histórica praticadas no Ocidente e no Oriente. O seminário Cognitive Historiography and Normative Historiography: Searching for the role of history in the 21st century realizou-se na Yamanashi University, na cidade Kofu, província de Yamanashi, Japão, de 26 a 29 março 2003. Teóricos da Alemanha, China, Coréia, França, Grécia, Itália, África do Sul, Romênia, Rússia, do Japão e Brasil alimentaram o debate a partir de um texto previamente encaminhado aos conferencistas, cujo propósito era precisamente demarcar os focos do debate e salpicar algumas provocações. O Professor Sato enunciava suas premissas no primeiro parágrafo do referido texto, para então desenvolvê-las. A premissa maior era a seguinte: É característico da historiografia não estar determinada pela combinação de seus elementos. Pelo contrário, a natureza de cada parte e até a natureza da combinação dessas partes estão determinadas pela posição e pelo papel da historiografia no âmbito do todo de uma cultura. Mesmo se ocorrer mudança em alguma de suas partes, o caráter do todo pode ser preservado. Como exemplo desse princípio, a historiografia européia manteve sua natureza fundamentalmente cognitiva ao longo dos quatro últimos séculos, enquanto a historiografia do Extremo Oriente preservou, ao longo do último século e

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meio, seu caráter normativo, oficialmente sustentado, apesar de ter adotado os métodos cognitivos da historiografia moderna ocidental.1 A reação gerada por tais afirmações enfáticas levou-me a uma reflexão sobre os pressupostos básicos do Professor Sato, assentados, por sua vez, em duas oposições fundadoras de seu argumento. Primeiro, pareceu-me fundamental refletir sobre o modo como “cognitivo” e “normativo” surgem em seu texto quase que como termos antitéticos, excludentes. Segundo, cada um desses termos adere a outro binômio de conceitos antitéticos: a historiografia Ocidental seria, digamos, mais “cognitiva”, enquanto que a Oriental teria uma vocação mais normativa. O texto que segue, apresentado no referido simpósio, procura, senão questionar, ao menos relativizar as categorizações cabais do Professor Sato. Como o texto do teórico japonês teve o aberto intento de, em suas definições quase caricaturais, provocar o debate, minha réplica avançou no mesmo sentido – e ambos atingimos nossa meta, pois as discussões foram acaloradas. Para construir meu argumento, parti deliberada e provocativamente de dois “acontecimentos” históricos, dois mitos fundadores, dois pilares da memória nacional, que são a Independência e o Descobrimento do Brasil. Minha intenção era contrapor às divisões binárias rígidas do Professor Sato (cognitivo/normativo; Ocidente/Oriente) as relativizações quase que naturais que nos facultam nossas experiência e perspectiva de historiadores brasileiros, “quase” ocidentais, criados numa tradição cultural marcada pela experiência da colonização. Abertos às mais diversas tradições historiográficas, somos, todavia, marcados pelo peso de nossa própria trajetória histórica, no âmbito do pensamento e no plano institucional. Nossa memória é o melhor testemunho disso. Minha intenção, ao deliberadamente acatar as definições dualistas dos Professor Sato, é mostrar como elas são pouco operacionais para tratar de realidades historiográficas como a brasileira, que escapam a rígidas divisões como aquelas anteriormente enunciadas. No ano 2000, esse número quase escatológico, os brasileiros celebramos os “500 quinhentos anos” ou o “V Centenário” do Descobrimento. De acordo com a historiografia oficial, em 1500, Pedro Álvares Cabral, um intrépido navegador português, desembarcava na costa selvagem do que hoje chamamos Brasil. Por certo, a efeméride foi pretexto para a produção de uma verdadeira avalanche de obras de História, a maioria de caráter apologético, que primavam por resgatar os grandes acontecimentos dessa nação tão jovem e peculiar que é o Brasil. Mas, ao mesmo tempo, aquela foi uma oportunidade igualmen-

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te muito singular, de que é possível tirarmos alguns elementos de reflexão eventualmente interessantes para o eixo do debate em pauta. A questão da diversidade cultural e o respeito a tal diversidade pertence ao universo inesgotável das disciplinas ou Ciências Sociais. Por prudência, não vou entrar nesse labirinto.2 Essa questão pertence igualmente à agenda urgente dos governantes, que, infelizmente, está muito distante da nossa. Por outro lado, imagino que não poderia acrescentar muita coisa ao debate simplesmente oferecendo a súmula das reflexões profundas levadas a cabo por importantes pensadores, como os que se encontram hoje aqui reunidos. Assim, meu escopo, muito limitado, é o de tentar estabelecer um contraponto argumentativo, antepondo à discussão eminentemente teórica sobre o caráter normativo ou cognitivo das diferentes tradições historiográficas um “estudo de caso”, especificamente o caso da historiografia brasileira, na expectativa de que ambos se iluminem reciprocamente. Creio ser possível afirmar que a maioria dos historiadores aqui presentes compartilha de algumas premissas básicas, ou pelo menos de algumas intenções comuns. Salvo engano, estamos aqui neste seminário à procura de critérios e metodologias para análises historiográficas comparadas que, para acontecer, devem superar barreiras culturais.3 A diferença deve ser tomada não como limite, barreira, obstáculo, mas como o que se quer apreender – o ponto de partida e não o de chegada. Nesse sentido, minha estratégia argumentativa partirá de minha experiência de historiador brasileiro para refletir sobre as premissas do nosso debate, tal como enunciadas pelo Professor Sato. Não é o caso tentar fazer um esboço da história da historiografia brasileira, mas problematizar suas matrizes fundadoras e as dificuldades que estas sempre tiveram para pensar a diversidade, a diferença. Ao expor alguns aspectos característicos da historiografia brasileira, pretendo também abrir à discussão o problema de como os historiadores brasileiros estão ainda longe de um padrão orgânico e universalmente inteligível da prática historiográfica multicultural.4 O Brasil é um país peculiar. Ao afirmá-lo, ocorre-me o doloroso processo de emancipação política das regiões do continente americano. O Brasil foi o único país que dele emergiu como uma monarquia – enquanto todos os demais países hispano-americanos tornaram-se repúblicas.5 Também é o único caso de um monarca de típica casa dinástica européia a ser coroado sob os trópicos.6 Portanto, o Brasil tem uma herança colonial e monárquica que marca definitivamente seu povo e sua história.

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Ao respeitar as periodizações tradicionais, forjadas no oficialismo monárquico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB (1838) e acatadas pela crítica especializada posterior, a historiografia brasileira teria tido um ato fundador com a edição do primeiro volume da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1839.7 A historiografia oficial surgiu, no Brasil, como um órgão de ação dentro do projeto de construção do Estado e de formação da nação ao longo do século 19. Também lá ela participou da universalização de modelos hegemônicos de práticas historiográficas, com a ampla difusão das vertentes teórico-metodológicas alemã e francesa desde o início, predominando a matriz francesa ao longo do século 20. 8 Desde o início de suas atividades, o IHGB, assim como toda a historiografia oitocentista, buscou construir as raízes identitárias da nação em formação em dois mitos fundadores: o “Descobrimento” do Brasil (1500)e sua “Independência” política (1822). As diversas gerações de historiadores brasileiros, imersos em suas próprias temporalidades históricas, narraram o descobrimento e a história da Independência cada qual a seu modo: reiterando teses fundadoras, retificando detalhes equivocados, rejeitando in limini aquelas teses e apresentando outras novas. A cada época, foi-se ampliando o acesso a diversos acervos, ao passo que a própria prática historiadora se aprimorava, aperfeiçoando seus instrumentos. A renovação da disciplina histórica acompanhou muito próxima a construção da memória histórica desses dois “fatos”. Descobrimento e Independência foram absorvidos pela historiografia oficial como marcos da construção da nacionalidade brasileira. Aquele enfatiza o primeiro contato do homem branco com a “natureza” do país. O segundo centra-se na conquista da “maioridade política” alcançada pelo “povo brasileiro” em 1822. Porém, olhando-se essa historiografia bem de perto, pode-se notar que alguns problemas estruturais, ligados à limitação de horizontes teóricos, persistem até hoje. A seguir, vou tentar usar esses dois “fatos” ou “eventos” como pretexto para pensar alguns problemas concernentes à prática historiográfica no Brasil.

A “INDEPENDÊNCIA DO BRASIL” Nenhum outro assunto da história brasileira fora tão exaustivamente estudado e pesquisado quanto o processo de emancipação política do Brasil frente a Portugal. Desde o próprio evento (que, de acordo com a historiogra-

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fia oficial, aconteceu entre 1808 e 1825), esse episódio vem gerando enorme interesse e resultou em incontáveis obras historiográficas.9 Foi ainda sob o império dos Bragança que se produziu a opus magna da Independência do Brasil, da pena de um dos maiores historiadores brasileiros de todos os tempos, Francisco Adolfo de Varhagen.10 Instaurou-se a República e, ironia do destino, logo viriam as comemorações do Centenário, pretexto perfeito para a apropriação da memória do grande acontecimento pelas mais diferentes facções. A elas aderiram os monarquistas imbuídos em “restaurar” uma ordem que se perdera e detratar o status quo, assim como seus opositores republicanos, firmes no propósito de enxovalhar a velha ordem já ida tarde, mas que sabiam bem resgatar, a seu modo, o simbolismo da emancipação em prol da causa republicana.11 Seguiram-se ditaduras, aberturas, renovações políticas, historiográficas, mas o tema manteve-se lá, ícone intocável da brasilidade. Nenhum outro autor ofereceu contribuição maior à história da Independência no século 19 do que Francisco Adolfo de Varnhagem, pois seu modelo interpretativo do processo de emancipação política do Brasil vigeu por quase dois séculos. Por isso, vou tomá-lo como referência para verificar como as funções “cognitiva” e “normativa” combinam-se nesta matriz fundadora da historiografia brasileira. Muitos historiógrafos importantes dedicaram-se ao estudo da obra e da vida do Visconde de Porto Seguro, com maior ou menor profundidade. Um problema quase universal de sua crítica, porém, reside no fato de que a maior parte de seus exegetas, mesmo entre os mais argutos, como José Honório Rodrigues, Nilo Odália e José Carlos Reis, fundamentam suas análises sobre Varnhagen quase exclusivamente na História Geral do Brasil, em que se teriam lançado, mais que um paradigma, verdadeiros “quadros de ferro” da historiografia nacional, conforme sentenciou Capistrano de Abreu, que anotou a obra magna de nosso autor.12 A História da Independência, pronta desde 1877 (um ano antes da morte de Varnhagen), mas publicada postumamente apenas em 1916, seria o último capítulo a completar a História Geral. Compõe-se de dez capítulos dispostos em ordem rigorosamente cronológica, desde a revolução do Porto e o retorno de Dom João a Portugal (1820) até o tratado de reconhecimento da Independência em 1825. Segue apensa uma seção “Províncias”, de extensão e profundidade desiguais, em que aborda a independência em seus sucessos locais. Sintomaticamente, não inclui a de São Paulo, berço dos Andradas, a quem ele procura detratar em sua obra por desafetos de família. A História da

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Independência documenta a cisma que o visconde nutria pelo Andrada. A respeito, sentencia com propriedade José Honório Rodrigues, a História da Independência é obra em defesa do papel de D. Pedro, em detrimento de José Bonifácio, na elaboração da Independência, de desvalorização da guerra da Independência, para que esta surja como um desentendimento momentâneo e não como uma ruptura com o regime colonial a que teria sido levado o Brasil, caso José Bonifácio não tivesse sido expulso do processo histórico.13 A animosidade de Varnhagen contra Bonifácio é indisfarçável. Procurou abertamente atribuir-lhe papel menor na Independência, por exemplo, subestimando o valor das intervenções de Bonifácio no processo, ao avaliar como secundários ou mal elaborados seus textos, tais como a representação de São Paulo de 1821 e o Manifesto de 6 de Agosto de 1822. Retirou da primeira edição o retrato do “patriarca”, menção honrosa que procurou atribuir a outras personagens, como Cairu, Hipólito da Costa e Azeredo Coutinho. Se a obra é um manifesto anti-andradino, a figura de D. Pedro é sacralizada, um verdadeiro culto à sua personalidade, além da apologia de outras figuras como os ultraconservadores Cairu e Azeredo e o combatente Hipólito. Basicamente, todo empenho argumentativo de Varnhagen vai no sentido de negar à independência o caráter de revolução, menosprezar seu aspecto de luta, de ruptura, de participação popular, que lhe causa calafrios. A independência, não passara de um desentendimento episódico entre a incontestável dinastia reinante e os homens bons da terra. Por seu trabalho sistemático de pesquisa e crítica de fontes, por sua verdadeira obsessão por fundamentar cada afirmação com evidências documentais, por sua busca exasperada de escrever uma história rigorosa, fundada na observação e na aplicação de um método científico (que para ele restringia-se à crítica das fontes), por sua gana em buscar a verdade histórica, o que “realmente aconteceu”, por tudo isso, esse verdadeiro modelo fundador da historiografia brasileira que é Varnhagen pode ser facilmente enquadrado numa tipologia dos historiadores metódicos que lhe são contemporâneos, ou seja, aqueles que eram portadores do que se poderia chamar, parafraseando Goldmann, do máximo de consciência histórica científica à sua época. O máximo que então atingia a reflexão histórica cognitiva. Não é tarefa difícil situar Varnhagen no modelo ocidental dominante de reconstrução histórica do passado. Não cabe aqui resgatar a fortuna crítica da obra do Visconde de Porto Seguro,14 mas apenas iluminar alguns pontos de sua trajetória que nos permitam fazer compreender melhor a História da

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Independência do Brasil. De um modo geral, os críticos são unânimes em reconhecer que o estilo narrativo de Varnhagen era pobre, apesar de sua pretensão de literato e interessado na história da nossa literatura, a ponto de produzir a mais importante antologia poética brasileira do século 19.15 Iglesias avalia que o Visconde “não era particularmente dotado para a arte de escrever: julga seu texto destituído de qualquer garra de escritor”; Manuel Bonfim, em O Brasil na História, considera-o “pesadão, deselegante, sem arte”.16 É antológica a descrição feita por Capistrano de Abreu do gênio de Varnhagen, possuidor de inúmeros pontos vulneráveis. Era dos homens inteiriços, que não se apóiam sem quebrar, não tocam sem ferir, e matam moscas a pedradas, como o urso do fabulista. Em muitos pontos em que sua opinião não era necessária, ele a expunha complacentemente, com tanto maior complacência quanto mais se afastava da opinião comum. Suas reflexões às vezes provocam um movimento de impaciência que obriga a voltar a página ou a fechar o volume. Muitos assuntos sem importância, ou de importância secundária, só ocupam por serem descobertas suas.(...) Sensível ao vitupério como ao louvor, se respirava com delícias a atmosfera em que lhe era queimado, retribuía aquele com expressões nada menos que moderadas.17 Não obstante, não lhe faltavam outras virtudes. Além de “trabalhador possante” e “explorador infatigável”, como o caracterizou Capistrano, talvez tenha sido o maior erudito brasileiro de todos os tempos. Demonstra-o o aparato crítico apresentado em sua obra de estréia, escrita aos 23 anos, as Reflexões críticas, em que o autor, inaugurando o uso sistemático do método crítico ao documento histórico, tal como proposto pela escola histórica alemã, restitui a autoria e o texto integral do Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa.18 Podemos tranqüilamente conceitualizar a atitude metódica que animava Varnhagen como típica da historiografia cognitiva de sua época, ou seja, a busca sistemática da verdade histórica com base na aplicação de metodologias rigorosas aplicadas sobre fontes documentais garimpadas à exaustão. Se a Varnhagen sobrava erudição, faltava-lhe, além do estilo escorreito, o enquadramento teórico. Iglesias reconhece-lhe a capacidade hercúlea de trabalho e a visão de conjunto, mas lhe acusa a carência da teoria, que lhe autorizaria melhor interpretação da história brasileira, provendo-o dos instrumentos necessários para a organização do imenso volume de material que manipulava. Nem é preciso recorrer aos melhores analistas de sua obra para reconhecer outro traço marcante de Varnhagen: era um aguerrido conservador,

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que fez a apologia da colonização portuguesa na América, embora tendo o mérito de saber reconhecer os excessos e abusos da minoria dominante. O Professor José Honório indica como nosso autor relatou as perseguições políticas e religiosas, as discriminações raciais, a censura, os castigos, a corrupção de governadores e magistrados em sua HGB. Iglesias lembra a exaltação da monarquia, o culto à ordem, que o fez expressar sua abominação a qualquer movimento libertário. Era ele próprio, porém, carregado de preconceitos políticos, sociais e religiosos. Julgava – e condenava –, como fez em História da Independência do Brasil, sem o menor pudor. Condenou a Inconfidência Mineira, a figura de Tiradentes, assim como a Revolução de 1817, sobre a qual expressou com toda franqueza que, por ele, passaria sobre ela um véu, não a incluindo no quadro histórico que se propusera fazer.19 Socialmente, era um cortesão à cata de favores reais, tendo particular queda por títulos honoríficos, dos quais lastimou tê-los recebido já em idade tão avançada. A disputa por benesses e melhores lugares na Corte, como a que se envolveu com José da Silva Paranhos (futuro Marquês de Paraná), que Honório Hermeto preferiu a Varnhagen para acompanhá-lo como secretário a uma missão ao Rio da Prata em 1851, é apenas um exemplo do habitus20 cortesão do Visconde. Como consta em sua correspondência ativa, organizada por Clado Ribeiro Lessa, Varnhagen escrevia com freqüência para D. Pedro II, seu protetor, sempre solicitando algum favor ou lastimando preterições: “foi sempre um constante áulico do Imperador e seus ministros, embora nos momentos de crise agradecesse a D. Pedro ter se lembrado ‘do pobre Varnhagen’”.21 Esse perfil social ajuda a compreender muito de suas posturas ideológicas, manifestas por toda sua obra e, especialmente, também em História da Independência. Embora postulasse a neutralidade, a busca da verdade nos parâmetros da escola crítica cientificista, sua ideologia marcou de maneira indelével suas reconstituições históricas, como se percebe na seleção que opera dos fatos e nos juízos que emite sobre os agentes. Esse é um aparente paradoxo de nosso historiador. Pretende buscar a “verdade histórica”, imparcial e objetivamente, mas é um historiador totalmente engajado, como somos todos, de acordo com a feliz sentença de José Honório. Não se trata de procurar justificá-lo, ponderando que Varnhagen “era um homem de seu tempo”, como fazem Iglesias e José Carlos Reis. Aquele reclama que nosso autor deve ser julgado por sua efetiva contribuição, a de ter introduzido o método e o rigor críticos, a valorização do documento, que seria sua grande contribuição, suficiente para lhe garantir destaque em nosso cenário historiográfico.

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Considerá-lo desvalioso por não atentar para o mal da escravidão, por seu conservadorismo ou reacionarismo, por não apreciar questões hoje tão vitais, para nós, é não só procedimento duvidoso como denunciador de falta de sentimento histórico. Varnhagen foi homem de sua época, pensou e agiu como a maioria de seus contemporâneos. O mais é crítica de reparos.22 O historiador das identidades do Brasil, por sua vez, irá no rastro do mestre, apontando que Varnhagen justificou a dominação colonial e a escravidão, etc. Mas, ao lembrar que a HGB fora escrita nos anos 1850, sendo representativa do pensamento internacional dominante na época, indaga: Se ele a escreveu naquelas circunstâncias históricas, políticas, culturais e outras, naquele tempo, naquela historicidade, poder-se-ia esperar algo diferente? Seria possível esperar um Varnhagen socialista? Democrático? Antiescravista? (...)Varnhagen representa o pensamento brasileiro dominante durante o século 19, e ele o expõe com rara clareza, com fartura de dados e datas, nomes e fatos. Deve ser lido como um grande depósito de informações sobre o Brasil, um arquivo portátil, e como a interpretação do Brasil mais elaborada e historicamente eficaz do século 19.23 Pediria eu licença aos dois mestres mineiros para introduzir um outro olhar sobre nosso o assunto. Dizer que um autor é “homem de seu tempo” não nos permitiria compreender a escrita histórica de Varnhagen em sua integridade. A questão metodológica a ser levantada, a partir desse ponto de partida inalienável, seria a seguinte: o que um autor e sua obra podem nos revelar sobre seu tempo, que ainda não foi dito? Esse é o sentido da história da historiografia. E aqui poderá se revelar a importância e a explicação da longevidade de Varnhagen. Este autor percebeu a importância da História para a efetivação de um projeto político, a que ele se pôs a serviço de modo incondicional ao longo de toda sua vida: o historiador metódico e idólatra da verdade apresentou-se como um verdadeiro artífice/mentor voluntário do projeto de construção da nação que se iniciava. Claro está que isso resulta numa série de desdobramentos, que não cabe explorar aqui: que o projeto de construção da nação implicava, para ele, a delimitação de uma nação que fosse branca e européia, e que todo o processo deveria ser, meio hegelianamente, conduzido por um Estado forte e centralizado. É esse engajamento político-ideológico, essa adesão de Varnhagen ao projeto do Estado-nação imperial, que explicam seus juízos e posicionamentos intempestivos, projeto que nosso autor abraçou como verdadeira missão de vida: “pensar a tarefa de dar forma narrativa e conteúdo histórico ao proje-

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to”.24 Como lembra Nilo Odália em sua profunda análise do pensamento de Varnhagen, o historiador engajado no projeto nacional deve buscar em seu cotidiano que se evite qualquer separatismo, desunião, fragmentação; deve ele buscar superar com a força do argumento histórico, que oferece do passado, os elementos necessários à orientação para ação prática no presente: Se, num primeiro momento, a ele cabe a criação de um passado uno, que dá sentido à nação; num segundo momento, a sua participação é muito mais vigorosa porque a ele cabe também a tarefa de modelar o futuro. Uma nação não é apenas o que ela foi em seu passado colonial, esta é a matériaprima, o ponto de partida para uma projeção em direção ao futuro em que deve se realizar seu ideal de Nação.25 Aqui reside a explicação para o vigor e a vigência da obra de Varnhagen: ela respondeu melhor que qualquer outra aos anseios de um projeto vitorioso, que a própria proclamação da República apenas re-significou, sem refutar in limine. Como disse Wilson Martins no terceiro volume de sua História da Inteligência Brasileira, Varnhagen “configurava nossa consciência histórica brasileira: pode-se dizer, por isso, que, além de escrever uma história do Brasil, ele fez, em larga medida, a História do Brasil, pois a sua ficou sendo, afinal de contas, desde então, a nossa própria visão da história pátria”. Modelo de ferro que subsiste e só muito recentemente começa a ser superado, na opinião de Iglésias, não apenas pelo mérito de Varnhagen ter captado e traduzido em sua obra o espírito de uma busca de identidade nacional, como também pela fragilidade de nossa historiografia, devido ao oficialismo da cátedra e de instituições refratárias à transformação.26 Utilizei o caso de Varnhagen e sua abordagem da independência do Brasil no sentido de questionar as fronteiras eventualmente rígidas entre uma historiografia “cognitiva” e outra “normativa”. A história escrita por Varnhagen, que influenciou várias gerações de historiadores, pretendia-se totalmente “cognitiva”, metódica, rigorosa, científica; porém, seu engajamento no projeto de construção do Estado nacional brasileiro na segunda metade do século 19 estabelecia o limite do aspecto cognitivo de sua história, a partir do qual o homem Varnhagen desenhava o passado que melhor convinha a suas expectativas de futuro.27 Como uma hipótese de trabalho, eu afirmaria que tal dualidade excludente não existiu jamais, ou seja, que não há historiografia predominantemente cognitiva que não seja em alguma medida normativa. E, vice-versa, que não há historiografia predominantemente normativa que não seja construída sem respeito a qualquer mínimo de racionalidade metódica, que não seja, nesses termos, cognitiva.

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O “descobrimento do Brasil” é um marco da memória brasileira tão importante quanto a Independência para a construção da identidade nacional. Vou utilizar este caso para relativizar divisões estanques entre Oriente e Ocidente, procurando mostrar que nem todas as realidades do planeta e nem todas as formas de escrever e contar a história cabem nesses conceitos. As celebrações do quinto centenário da Independência, no ano 2000, proporcionaram-me a chance de examinar minhas próprias concepções sobre o discurso historiográfico em perspectiva. Historiadores com pendores “progressistas” – para não dizer de “esquerda” - desejavam utilizar as “comemorações” do quinto centenário para manifestar suas críticas de caráter social e político, para mostrar como os cinco séculos de História do Brasil geraram uma sociedade com um dos piores índices de distribuição da riqueza do planeta, com um dos piores índices de desenvolvimento humano, com um Estado viciado em corrupção, etc. Era uma oportunidade ímpar para utilizar os holofotes da mídia e “denunciar”, entre outras coisas, que essa história de desigualdades, constantemente maquiada pela historiografia oficial, havia condenado uma maioria negra e mestiça aos piores indicadores sociais e ao quase extermínio de nações indígenas inteiras. Não obstante, tanto a visão apologética da colonização quanto seu oposto, o denuncismo da expropriação ou até a exaltação da resistência contra ele, via de regra, sustentam-se na historiografia a partir da perspectiva do branco colonizador – quem, como vimos no exemplo anterior de Varnhagen, atribuiu-se a idéia de construir a memória e escrever a história do país. A história dos opressores e a história dos oprimidos, e mesmo a história da resistência contra a opressão, têm sido escritas com as fontes, as técnicas e os métodos e a partir da perspectiva do branco colonizador. Ou seja, toda essa história conta-se, narra-se, do modo triunfante do discurso do colonizador. Mas foi um movimento imenso. Imagine que movimento fantástico que aconteceu nos últimos três, quatro séculos, trazendo milhares e milhares de pessoas de outras culturas para cá. Então meu povo Krenak, assim como nossos outros parentes das outras nações, nós temos recebido a cada ano esses povos que vêm para cá, vendo eles chegarem no nosso terreiro. Nós vimos chegar os pretos, os brancos, os árabes, os italianos, os japoneses. Nós vimos chegar todos esses povos e todas essas culturas. Somos testemunhas da chegada dos outros aqui, os que vêm com antigüidade, e mesmo os cientistas e pesquisadores brancos admitem que sejam de seis mil, oito mil anos. Nós não podemos ficar olhando essa história do contato como se fosse um evento português. O encontro com as nossas culturas, ele transcende a essa cronologia do descobrimento da

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América, ou das circunavegações, é muito mais antigo. Reconhecer isso nos enriquece muito mais e nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre essas diferentes culturas e “formas de ver e estar no mundo” que deram fundação a esta nação brasileira, que não pode ser um acampamento, deve ser uma nação que reconhece a diversidade cultural, que reconhece 206 línguas que ainda são faladas aqui, além do português. (...) Quando a data de 1500 é vista como marco, as pessoas podem achar que deviam demarcar esse tempo e comemorar ou debaterem de uma maneira demarcada de tempo o evento de nossos encontros. Os nossos encontros, eles ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além desse horizonte. Nós estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que existe um roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a oportunidade de reconhecer o Outro, de reconhecer na diversidade e na riqueza da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro patrimônio que nós temos, depois vêm os outros recursos, o território, as florestas, os rios, as riquezas naturais, as nossas tecnologias e a nossa capacidade de articular desenvolvimento, respeito pela natureza e principalmente educação para a liberdade... 29 O que temos aqui não é definitivamente uma questão de fácil resolução, pois que inevitavelmente dispõe na mesma equação vetores diversos, histórico/culturais e epistemológicos. O ponto central do argumento é o de que a base de legitimação do conhecimento em geral, e do conhecimento histórico, em particular, continua sendo o da hegemonia cultural dos povos que concentram poder sobre os que a ele são, de alguma maneira, submetidos. No caso em análise, poderíamos dizer com o teórico pós-colonialista indiano Ashis Nandy30 que a consciência histórica domina hoje o mundo - mas eu não teria muita convicção de que a vitoriosa historiografia brasileira, institucionalmente forjada na melhor tradição cognitiva européia (particularmente francesa), estaria inclinada a se abrir no sentido de admitir uma nova “sensibilidade face a imperativos culturais, capacidades psicológicas e talvez até para preocupações éticas oriundas de sociedades ou comunidades que, de diferentes maneiras, obstinadamente optaram por continuar a viver fora da história”.31 Nem tampouco tenho eu uma resposta definitiva para esse desafio ético, étnico e epistemológico. Posso dizer apenas que acredito que a historiografia brasileira raras vezes demonstrou capacidade para perceber que, dentro desse imenso continente cultural chamado Brasil, há outras maneiras de se contar história que não a do branco dominante. Junto aos índios, é comum colocar-se o “negro”,

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trazido à força para a América desde os primórdios da colonização para suportar o trabalho braçal nos campos e nas cidades. Quando se fala em “o negro”, omite-se outra grande diversidade cultural. Até hoje, existem centenas, senão milhares de comunidades negras que vivem isoladas da “civilização”. Essas comunidades são oriundas dos “quilombos”, formados com negros de diversas etnias que fugiam das fazendas e formavam essas comunidades.32 Há algumas que mal falam português até hoje. Tantos negros como índios possuem, como o excerto anterior quis indicar, bagagens culturais riquíssimas, constituídas por relatos transmitidos pela tradição oral. A historiografia oficial do Brasil tem dificuldade para lidar com essa riqueza, embora é preciso reconhecer que o mesmo não acontece nas outras ciências sociais brasileiras. 33 Mesmo quando se fala do elemento “branco”, corre-se o risco de se omitir uma enorme diversidade. O termo “branco” refere-se ao elemento colonizador português, mas como caracterizar etnicamente as centenas de grupos germânicos, de eslavos e judeus da Europa central e oriental, japoneses, coreanos, sírios e libaneses (tanto cristãos como muçulmanos), que chegaram e continuam a chegar aos milhares todos os dias aos Brasil? Nossa historiografia oficial tem dificuldade de enfrentar esse desafio teórico. A historiografia brasileira, rigorosamente, enxerga com muita dificuldade outras diversas e riquíssimas formas de narrar a história, que se encontram fortemente arraigadas dentro do seu próprio horizonte de observação. Uma possível explicação para isso pode estar na própria história dessa historiografia, que, consoante à História do Brasil em que se insere, também foi ela “colonizada”. A fábrica de teses que se tornou a pós-graduação em história no Brasil é um exemplo evidente do tipo de “enquadramento” e dos mecanismos de exclusão hoje reinantes. Claro que existe toda uma linhagem de pensadores do social no Brasil, historiadores incluídos, que, ao longo de sua história, procuraram entendê-lo e explicá-lo a partir de sua própria trajetória e suas vicissitudes. Uma configuração complexa como o Brasil requer seus próprios quadros teóricos. No entanto, basta pegar qualquer tese acadêmica de História, sobre qualquer tema que seja, e os mesmos e recorrentes autores “da moda” lá estarão presentes.34 Parece rigorosamente correta a tese de Kerwin Lee Klein de que, como um reflexo ou um refluxo da metanarrativa, a situação global e as interações crescentes entre os diversos povos e culturas estão a exigir um novo parâmetro universal de linguagem: “Qualquer que seja a profundidade de nossa ‘incredubilidade’ pósmoderna a respeito das metanarrativas, a história universal não desapareceu”, afirma Klein. Eu concordaria em parte com tal afirmação. Quero dizer, num

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mundo globalizado35 – pelo menos desde o século 16, de acordo com Fernand Braudel -, fica muito difícil evitar tal terminologia, mesmo para designar o nefasto encontro civilizacional entre culturas diversas. Pode-se mesmo dizer que resguardar essa busca de um parâmetro universal da História é hoje algo fundamental, como contraponto às chamadas “narrativas locais” de “mentes ou espíritos selvagens” próprias de “sociedades frias” – ou a história dos povos sem história, como uma vez as designou o próprio Hegel.36 Contudo, quer-me parecer que qualquer tentativa no sentido da “inclusão” de tais “histórias locais” em qualquer master narrative pode levar a formas insondáveis de violência simbólica. Nesse sentido, parece-me que precisamos ainda muito refinar nossos instrumentos teóricos para perceber as diversas formas existentes de se narrar a história, mesmo dentro de uma mesma unidade geopolítica, como o caso do Brasil é exemplar. Isso implica que o desafio epistemológico de análise e julgamento (pois é disso que se trata!) das formas de narrativa da História, numa perspectiva necessariamente comparada, tem que admitir e saber aquilatar a dimensão cultural (no sentido mais amplo do termo) no processo de produção historiográfica. Aqui, posso apenas afirmar que tal preocupação passa ao largo da agenda da ocidentalizada/ colonizada historiografia brasileira. Por fim, como um convite à discussão, quero dizer que estou plenamente convencido de que essa esquizofrenia teórica e essa incapacidade de dialogar com a diversidade não são exclusivas do Brasil ou mesmo dos países chamados periféricos ou colonizados. Quer-me parecer que mesmo uma divisão para fins heurísticos entre “Ocidente” e “Oriente” – assim como aquela outra separação inconciliável entre uma historiografia “normativa” e outra “cognitiva” – enquadra e solapa infinitas e imensas diversidades e modos de se conceber e contar a História, de que talvez ainda não sejamos capazes sequer de percebermos. O que me faz entender que estamos dando os primeiros passos rumo a uma historiografia comparada e que todos os esforços neste sentido, como este próprio seminário representa, são e serão sempre muito bem-vindos.

NOTAS * Agradeço à leitura e aos comentários dos participantes no evento em Kofu, particularmente dos professores, Jörn Rüsen, George Iggers e Masayuki Sato. E também à leitura do Professor Hélio Rebello Cardoso Jr. 1 Masayuki Sato, Cognitive Historiography and Normative Historiography, paper apresentado no referido evento.

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2 Contribuições sugestivas podem ser encontradas em JOHNSON, James. Why Respect Culture? American Journal of Political Science, v. 44, Issue 3, p. 405-418, Jul. 2000; também BADER, Veit. Cultural Conditions of Transnational Citizenship: on the Interpenetration of Political and Ethnic Cultures. Political Theory, v. 25, Issue 6, p. 771-813, Dec. 1997. 3 As premissas gerais do debate foram estabelecidas por RÜSEN, Jörn. Some Theoretical Approaches to Intercultural Comparative Historiography. History & Theory, v. 35, Issue 4, p. 5-22, 1996. Ver também BOWLIN, John R.; STROMBERG, Peter G. Representation and Reality in the Study of Culture. American Anthropologist, v. 99, n. 1, p. 123-134, 1997; FEATHERSTONE, Mike. Global culture: an introduction. In: FEATHERSTONE, M. (Org.). Global culture. London: Sage, 1990; BRAEMBUSSCHE, A. A. van den. Historical Explanation and Comparative Method: Towards a theory of the History of Society. History and Theory, v. 28, n. 1, p. 1-24, 1989; LLOYD, Christopher. The Methodology of Social History: a critical Survey and Defense of Structurism. History and theory, v. 30, n. 2, p. 180-219, May 1991. 4 As premissas para a fundação de uma tal historiografia bem poderiam iniciar-se a partir das penetrantes susgetões do Professor Boaventura de Sousa Santos. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Toward a new common sense. London: Routledge, 1995. 5 Outros reconhecem tal ato com a monografia escrita por Karl Friedrich Phillp Von Martius, que ganhou o concurso “Como se deve escrever a História do Brasil”, promovido pelo IGHB, em 1844. A tese do naturalista alemão centrava-se na especificidade da trajetória histórica do país tropical, a partir da tese das três raças formadoras. Cf. DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: EDIUPF, 1998; SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 6 Sobre as ligações entre Estado e historiografia no Brasil no século 19, Cf. GUIMARÃES, Manuel L. S. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988; WEHLING, Arno. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 e A invenção da história; estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: EDUFF, 1994; SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças; cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993, e As barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. A vigência dos cânones franceses, não apenas na História, mas em todas as Ciências Humanas no Brasil, explicam-se em virtude de que a implantação da moderna universidade brasileira nos anos de 1930, com fundação da Universidade de São Paulo, foi sustentada por uma “missão francesa” de intelectuais como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastid, Pierre Monbeig e Fernand Braudel. Para uma visão geral da fundação da USP, ver a edição comemorativa dos 60 anos da Universidade, Revista de Estudos Avançados, n. 22, particularmente o ensaio de Fernando Novais: Braudel e a “Missão francesa”. (http://www.usp.br/iea/revista/online/revista22/novais.html) 7 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, [19--]. Dois excelentes estudos sobre Varnhagen são: WEHELING, Arno. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 e ODÁLIA, Nilo. As formas do

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mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997. 8 Cf. SANDES, Noé Freire. A invenção da nação: entre a Monarquia e a República. Goiânia: Ed. da UFG: Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira, 2000; CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 9 As anotações de Capistrano à HGB passaram a ser reproduzidas a partir da 3.ª edição da grande obra de Varnhagen. As impressões do comentador sobre o comentado estão bem caracterizadas em ABREU, Capistrano. Sobre o Visconde de Porto Seguro. In: Ensaios e estudos, 1ª série. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1976. Autores importantes dedicaram-se ao estudo da obra e da vida do Visconde de Porto Seguro. Cf. WEHLING, Arno. Os “quadros de ferro”: o paradigma Varnhagen. In: ______. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 195-220; RODRIGUES, José Honório. Varnhagen: o primeiro mestre da historiografia brasileira. In: ______. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 191-225; REIS, José Carlos. Anos 1850: Varnhagen; o elogio da colonização portuguesa. In: ______. As identidades do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999. p. 23-50; IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG, 2000; ODÁLIA, Nilo. Varnhagen e a historiografia brasileira. In: ______. As formas do mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997. 10 RODRIGUES, José Honório. Varnhagen: o primeiro mestre da historiografia brasileira. In: ______. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 191-225, citação p. 210. 11 As sentenças de Nandy sobre as elites de países de desenvolvimento “abortado” encaixam-se perfeitamente para o caso do Brasil: “The elites of the defeated societies are usually all to eager to heed this plea. They sense that the dominant ideology of state and their own privileged access to the state apparatus are both sanctioned by the idea of history…”. Cf. NANDY, Ashis. History’s Forgotten Doubles. History and Theory, v. 34, Issue 2, Theme Issue 34: World Historians and Their Critics, p. 44-66, May 1995. 12 Trabalho realizado com todo mérito em WEHLING, Arno. Os “quadros de ferro”: o paradigma Varnhagen. In: ______. Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 195-220. 13 VARNHAGEN, F. A. de. Florilégio da poesia brasileira. Lisboa: Imprensa Nacional; Madri: D. J. R. Domingues, 1850-1853. 14 Cf. Iglesias, p. 73 et seq.; cf. MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix: Edusp, 1977-1978. v. 2, p. 512. 15 Cf. Capistrano Abreu, citado, p. 203-204. 16 Cf. Reflexões críticas sobre o escrito do século XVI impressas com o título de Notícia do Brasil. No tomo 3º da Coleção de Not. Ultr. Acompanhadas de interessantes notícias bibliográfica e importantes investigações históricas. Lisboa: Tipografia da Academia de Ciências de Lisboa, 1839. Um dos textos mais densos sobre a obra de Varnhagen ainda é o de RODRIGUES, José Honório. Varnhagen: o primeiro mestre da historiografia brasileira. In: ______. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 191-225.

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17 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História da Independência do Brasil. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, [19--]. Cf. REIS, José Carlos. Anos 1850: Varnhagen; o elogio da colonização portuguesa. In: ______. As identidades do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999. p. 23-50; Iglesias, p. 75 et seq.; RODRIGUES, José Honório. Varnhagen: o primeiro mestre da historiografia brasileira. In: ______. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 206 et seq. 18 Para uma discussão sobre o conceito de habitus, cf. MALERBA, Jurandir. Para uma teoria simbólica: conexões entre Norbert Elias e Pierre Bourdieu. In: CARDOSO, Ciro; MALERBA, J. Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 19 Cf. RODRIGUES, José Honório. Varnhagen: o primeiro mestre da historiografia brasileira. In: ______. História combatente. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 223. Também as 242 cartas reunidas em sua Correspondência ativa (org. Clado Ribeiro Lessa). Rio de Janeiro: INL, 1961. 20 Iglesias, p. 85. 21 REIS, José Carlos. Anos 1850: Varnhagen; o elogio da colonização portuguesa. In: ______. As identidades do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999. p. 33. 22 Cf. DIEHL, Astor. A cultura historiográfica brasileira do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo: Ediupf, 1998. p. 46 et seq. 23 ODÁLIA, Nilo. Varnhagen e a historiografia brasileira. In: ______. As formas do mesmo. Ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997. p. 38. REIS, José Carlos. Anos 1850: Varnhagen; o elogio da colonização portuguesa. In: ______. As identidades do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1999. p. 31 et seq. 24 Iglesias, p. 76. Citação de Wilson Martins, p. 91. 25 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro pasado. Para uma semántica de los tiempos históricos. Trad. Norberto Smilg. Barcelona: Paidós, 1993. 26 Cf. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sociologia do Brasil indígena. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978; CUNHA, Manuel Carneiro da. História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; MOTA, Lúcio Tadeu. A guerra dos Kaigang: a história épica dos índios Kaigang no Paraná (1769-1924). Maringá: Eduem, 1994. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 27 KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto. A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 23-31. Há uma extensa bibliografia sobre esse mitos do encontro do ponto de vista das nações indígenas americanas. Cf. GIACCARIA, Bartolomeo. Mitologia Xavante: mitos, leyendas, cuentos y sueños. Quito: Abya-Yala, 1991; LOPEZ BREARD, Miguel Raul. Mitos Guaranies. Assunção: Intercontinental, 1994; LUKESCH, Anton. Mito e vida dos índios Caiapos. São Paulo: Pioneira, 1982. MINDLIN, Betty. O primeiro homem e outros mitos dos índios brasileiros. São Paulo: Cosac & Naify, 2001; Conselho Indígenista Missionário (CIMI). Outros 500: construindo uma nova história. São Paulo: Salesiana, 2001. 28 NANDY, Ashis. History’s Forgotten Doubles. History and Theory, v. 34, Issue 2, Theme Issue 34: World Historians and Their Critics, p. 46, May 1995.

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29 Cf. REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, especialmente o capítulo de Eurípedes A. Funes, “Nasci nas matas, nunca tive senhor” – história e memória dos mocambos do baixo Amazonas, p. 467-498. 30 Sobre a formação do povo brasileiro e sua diversidade ver RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 204-207. Sobre os negros, em particular, Gilberto Freyre. Casa-grande e senzala e Sobrados e mocambos, ambas com várias edições. Emboras antigas, já clássicas, essas obras oferecem algumas das mais importantes interpretações da formação do povo brasileiro. Diga-se de passagem, por sociólogos e não-historiadores. 31 Ver, a propósito, o artigo irônico do professor José Murilo de Carvalho publicado pelo jornal O Globo. em 16 de dezembro de 1999, p. 7, e intitulado: Como escrever a tese certa e vencer. 32 Cf. As agudas reflexões sobre a natureza do pensamento histórico nessa tal era globalizada, GEYER, Michel; BRIGHT, Charles. World History in a Global Age. The American Historical Review, v. 100, n. 4, p. 1.034-1.060, 1995. Também, SOGNER, Solvi (Ed.). Making Sense of Global History. Oslo: Universitetsforlaget, 2001. (Volume comemorativo do 19º Congresso Internacional de Ciências Históricas, Oslo 2000), particularmente os textos de Patrick Karl O’Brien: The Status and Future of Universal History e Andrew Sherrat: World History: an Archeological Perspective. 33 Cf. KLEIN, Derwin Lee. In search of Narrative Mastery: Postmodernism and the People without History. History and Theory, v. 34, Issue 4, p. 275-298, Dec. 1995. Cf. HEGEL, Georg Wilhem Friedrich. A razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995. Para uma crítica da filosofia da História de Hegel, Cf. CALLINICOS, Alex. Theories and Narratives. Reflections on the Philosophy of History. London: Polity, 1995. GADAMER, H. G. Hegel’s Dialectic: Five Hermeneutical Studies. Trad. New Haven: [s.n.]: 1976; WALSH, W. H. Hegel on the History of Philosophy. History and Theory, v. 5, p. 67-82, 1965.

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Renato Valderramas

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Glória Maria Palma

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