História da Historiografia
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História da Historiografia Rogério Forastieri da Silva

ed u Sc E d ito ra d a U n iv e rs id a d e d o S a g r a d o C o ra ç ã o

Existe um consenso relativo aos conteúdos da evolução da História como uma disciplina autôno­ ma a partir do século XIX. Segundo este, a História privilegiava a dimensão política, e estaria compro­ metida com um viés nacionalista, possuindo uma concepção bastante estreita sobre o que considerava "fato" e "fontes". Ainda no século XIX, passou a existir uma ati­ tude crítica em relação a esta maneira de fazer História, que culminaria na fundação da revista Annales, em 1929. Estabelecia-se uma renovação nos estudos históricos, caracterizados por uma maior integração da História com as Ciências Sociais, cujos desdobramentos dariam origem à Nova História. Este livro discute esta forma de concepção do desenvolvimento da História da historiografia con­ temporânea. Examina, em primeiro lugar, a for­ mação de um setor do conhecimento no interior da História como disciplina, os estudos historiográficos, ou seja, o estudo da história dos escritos históri­ cos, métodos, interpretações e suas controvérsias. Reexamina, à luz da história dos estudos historiográficos gerais, a historiografia sobre a Nova His­ tória e seu posicionamento no contexto da História da historiografia contemporânea. Por isso, este livro pode ser também considerado como um balizamen­ to para a constituição de uma história das histórias gerais da historiografia, procurando incorporar algumas das principais perspectivas historiográficas contemporâneas. Rogério Forastieri da Silva

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Natural de São Paulo, Rogério Forastieri da Silva graduou-se em Ciências Sociais e realizou Mestrado e Doutorado em História Social pela USP. Foi Professor da UNESP em Assis, SP, sendo autor de materiais didáticos diversifica­ dos para o Ensino Fundam ental e Médio. Dedica-se à formação de professores de His­ tória e desenvolve pesquisas historiográficas. Entre suas obras, destaca-se Colônia e nativismo: a História como “biografia da nação".

EDÜSC Editora da U n ive rsid a d e d o S a g ra d o C oração

Coordenação Editorial Irmã Jacinta Turolo Garcia Assessoria Administrativa Irmã Teresa Ana Sofiatti Assessoria Comercial Irmã Áurea de Almeida Nascimento Coordenação da Coleção História Luiz Eugênio Véscio

Rogério Forastieri da Silva

História da Historiografia capítulos para uma história das histórias da historiografia

EDUSC Editora da U n ive rsid a d e d o S a g ra d o C oração

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Silva, Rogério Forastieri da. História da historiografia: capítulos para uma história das histórias da historiografia / Rogério Forastieri da Silva. -- Bauru, SP : EDUSC, 2001. 336 p. ; 21cm . -- (Coleção História) Inclui bibliografia ISBN 85-7460-054-7 1. Historiografia-História. 1. Título. II. Série. CDD. 907.2

e-mail do autor: [email protected]

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Devo aos meus colegas de trabalho, aos da Universidade, à minha família, e ao meu orientador o incentivo para que se realizasse o presente trabalho, que a eles dedico.

Sumário

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Preâm bulo

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Prefácio

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Introdução

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Capítulo 1 Estudos historiográficos gerais: passado e presente

17 Os estudos historiográficos: propósitos e diversidade 26 Em penhos historiográficos 58 Os estudos historiográficos gerais 87 Estudos historiográficos: m últiplos enfoques 116 Ultrapassagem do paradigm a nacionalista 143 Consolidação dos estudos historiográficos

Capítulo 2 169 A Nova História e os estu d os historiográficos 169 172 199 231 257 281

Dim ensões da Nova História na historiografia A Nova História nas histórias da historiografia Nova História, novas histórias Reptos à Nova História Nova História, impasses e tensões Nova História e o pós-m odernism o

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Conclusões

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Bibliografia

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ín d ice onom ástico

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Preâmbulo Por razões de ordem editorial a tese de doutorado que agora se publica recebeu o título de História da Historiografia. O riginalm ente a pesquisa associava-se a um estudo de histo ­ riografia sobre a Nova História. Os desdobram entos da inves­ tigação, entretanto, levaram -nos a constatar que a Nova His­ tória estava com prom etida com um determ inado relato da história geral da historiografia na qual os elos im portantes eram : "história positivista" - "escola dos Annales” - "Nova His­ tória". De um a m aneira geral esta "história da historiografia" que culm inava com a Nova História era pouco questionada, inclusive, deve-se acrescentar, por um a parte significativa dos mais severos críticos da Nova História. Parecia existir um co n ­ senso q u an to a este "relato fundador" da Nova História. Por tais razões redirecionam os nossa pesquisa efetuando, entre outros aspectos, um balanço historiográfico das "histórias gerais da historiografia" a partir do qual pudéssem os verificar, e em certa m edida, avaliar a consistência teórica da Nova His­ tória neste "relato fundador". O resultado desta investigação é o que agora apresentam os ao público interessado. A rigor o presente texto não se constitui, portanto, num a história da historiografia na sua acepção corrente, m as acreditam os que oferece alguns direcionam entos no interior da história geral da historiografia, nos quais podem ser destacados pelo m enos dois aspectos que consideram os im portantes: abre sendas no sentido de se constituir um a história das histórias gerais da historiografia e, sim ultaneam ente, procura, a partir desta perspectiva, situar a Nova História nos quadros das principais tendências da historiografia contem porânea destacando seu papel para um a história sem adjetivos.

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Prefácio O livro que apresentam os ao público constitui no es­ sencial, com algum as alterações, a tese de doutorado que delendem os no D epartam ento de História da Faculdade de Filosolia, Letras e Ciências Hum anas da Universidade de São Pau­ lo sob orientação do professor F ernando A ntonio Novais. Pro­ curam os, na medida do possível, incorporar as objeções, críti­ cas e sugestões realizadas pela banca exam inadora, a quem desde já, de público, agradecem os a atenção que o texto sus­ citou. Nestes term os querem os agradecer nom eadam ente ao nosso orientador que, no decorrer de um já longo convívio in ­ telectual e de am izade, tem nos propiciado o necessário estí­ m ulo ao prosseguim ento de nossas investigações associadas aos estudos historiográficos. Fazemos agradecim entos igual­ m ente extensivos aos demais m em bros da banca exam inado­ ra: aos professores Leila M ezan Algranti, István Jancsó, José Jobson de A ndrade Arruda e José Leonardo do Nascimento. O presente livro de algum a form a expressa um m o ­ m ento de um a trajetória que se iniciou nos tem pos da grad u a­ ção no curso de Ciências Sociais na m esm a Universidade de São Paulo quando, naquela ocasião, tivem os a oportunidade de poder observar e investigar as diferentes formas de trata­ m ento de nossa disciplina - a história - entre os cientistas so­ ciais e os historiadores. Desde então nossa atenção se voltou sobre as questões associadas às condições de possibilidade de constituição do discurso histórico e suas respectivas im plica­ ções, bem com o aos problem as relacionados aos tem as de identidade e especificidades da produção historiográfica no Brasil. Nesta direção, term inada a graduação, realizamos em nosso m estrado um estudo historiográfico voltado para a in ­ vestigação do tem a "nativismo" na historiografia brasileira sob orientação do professor F ernando A ntonio Novais.1No d o u to ­ rado am pliam os nosso escopo, realizando u m estudo historio­ gráfico investigando os nexos entre a cham ada Nova História

1 Rogério Forastieri da Silva - Colônia e Nativismo: a história como 'biografia da nação'. São Paulo: Hucitec, 1997.

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e a história geral da historiografia. O riginalm ente a pesquisa associava-se a um estudo da historiografia da Nova História. Os desdobram entos da investigação, entretanto, levaram -nos a constatar que a Nova História estava com prom etida com um determ inado relato da história geral da historiografia na qual os elos im portantes eram : "história positivista" - "escola dos Annales" - "Nova História". De um a m aneira geral esta "história da historiografia" que culm inava com a Nova Histó­ ria era pouco questionada e tida com o verdadeira. Mesmo en tre os severos críticos da Nova História este "relato fu n d a­ dor" não era questionado. Por esta razão viemos a redirecio­ nar nossa pesquisa efetuando, entre outros aspectos, um b a­ lanço historiográfico das "histórias gerais da historiografia" a partir do qual pudéssem os verificar e, em certa m edida, ava­ liar a consistência teórica da Nova História neste "relato fu n ­ dador". O resultado desta investigação é o que agora apresen­ tam os ao público interessado. A rigor o presente texto não se constitui, p ortanto, num a história da historiografia na acep­ ção corrente, mas acreditam os que oferece alguns direciona­ m entos n o interior da história geral da historiografia, nos quais podem ser destacados dois aspectos que consideram os im portantes: abre sendas no sentido de se constituir um a história das histórias gerais da historiografia e, sim ultanea­ m ente, procura, a partir desta perspectiva, situar a Nova His­ tória nos quadros das principais tendências da historiografia c o n tem p o rân ea destacando sua contribuição p ara um a história sem adjetivos. Esperam os poder dar continuidade às nossas investigações nesta m esm a direção relacionando a Nova História no contexto da produção historiográfica no Brasil.

São Paulo, setem bro, 2000

Rogério Forastieri da Silva

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Introdução Muitos autores já observaram que existe atualmente uma ex­ traordinária internacionalização da pesquisa histórica, uma crescen­ te diversificação de objetos de investigação , uma multiplicidade de abordagens, uma massa de publicações sem paralelo. Acrescente-se a esse conjunto uma oportunidade praticamente ilimitada, propicia­ da pela revolução na tecnologia das comunicações, de se dispor com relativa facilidade de fontes primárias, obras especializadas e repertó­ rios bibliográficos, dificultando certamente qualquer possibilidade de se estabelecer um parâmetro de comparação, do ponto de vista dos recursos para a pesquisa histórica, entre o que temos à disposição presentemente e um passado não muito longínquo. Se no passado recente, de maneira geral, para muitos pesquisadores uma das gran­ des dificuldades era o acesso às fontes, boje o problema parece ter sido invertido. Em muitas áreas de pesquisa observa-se uma verda­ deira abundância de fontes. A velocidade e a quantidade da produ­ ção constituem-se num verdadeiro obstáculo para que qualquer aca­ dêmico possa se considerar a par do que se produz no seu setor de especialização. Assim sendo, torna-se razoável de tempos em tempos rastrear o que tem sido produzido de significativo em determinados campos do conhecimento e também recuperar para o presente auto­ res e textos que, apesar de importantes, possam por alguma razão ter ficado no olvido. Se o campo dos estudos históricos propriamente di­ tos é enriquecido a cada dia com um grande número de publicações de temáticas e abordagens cada vez mais sofisticadas, o mesmo pro­ vavelmente não acontece com a mesma intensidade na área dos es­ tudos historiográficos gerais. Particularmente na história da história dos estudos historio­ gráficos gerais, estabeleceu-se um certo roteiro que, com algumas variações, está sempre presente e, à força de repetição, adquire direi­ tos de se constituir num saber irretorquível. Esse roteiro, além de fornecer um panorama sucinto e substantivo da evolução da história desde seu estabelecimento como disciplina no final do século XIX até

* JE A N BOUTIER - DOM IN IQ U E JULIA - " O uverture: A q u o i pen sen t les historiens?" - JE A N BOUTIER - D O M IN IQ U E JU LIA (org.) - Passés R ecom posés. C ham ps et chan tiers d e l'H istoire. Paris: É ditions A u tre m e n t,

1995. p. 13-53.

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o presente, também coloca à disposição do interessado, além de uma ordem seqüencial, um conjunto de conceitos que passam a circular com relativa mobilidade e, sobretudo, um cânone de autores e obras que devem estar associados a cada um dos nichos da periodização proposta pela história geral da historiografia. É nesta moldura que aprendemos ter existido uma "escola histórica positivista" com duas importantes vertentes que estariam na origem da história como dis­ ciplina acadêmica, nomeadamente, a Escola Histórica Alemã, o his­ toricismo, tendo à frente, entre outros, Léopold von Ranke, e a Es­ cola Metódica Francesa, com Ernest Lavisse, Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos. Ainda, os referidos autores e suas respectivas obras são exemplos claros daquilo que foi chamado de histoire historisante, que pode ser considerado um juízo negativo. Também foram estes "positivistas" que se preocuparam apenas com a história políti­ ca, a história-batalhas, a biografia de homens célebres, e, no conjunto, devotaram um solene desprezo aos "marginalizados da história", os "de baixo". O único contraponto a esta história elitista foi a perspectiva marxista. Nas primeiras décadas do século XX ocorre uma reviravolta no campo da história, para alguns uma verdadeira revolução, que foi a fundação da revista Annales d'histoire économique et sociale, em 1929, por dois eminentes historiadores, Marc Bloch e Lucien Febvre. O grande salto constituiu-se no virtual abandono daquilo que chama­ ram de "história tradicional", especialmente a história política, e na incorporação dos métodos, abordagens e interesses das Ciências So­ ciais no campo da história. Grosso modo, a partir deste grupo de his­ toriadores, podemos distinguir fundamentalmente duas grandes ver­ tentes: uma interessada no estabelecimento de uma "história total" que distinguisse diferentes dimensões da temporalidade e enfatizas­ se especialmente a "longa duração", a história das estruturas e que procurasse combinar de forma inovadora a sincronia e a diacronia, tendo como principal expoente Fernand Braudel; e outra vertente mais interessada no universo das representações, particularmente o imaginário, da dimensão psicológica, que teria feito, segundo um de seus severos críticos, uma "história em migalhas" alienada e aliénan­ te, distanciada dos grandes problemas, das grandes estruturas, desti­ nada apenas a preencher certas necessidades de consumo de uma so­ ciedade globalizada e sem perspectivas. Esta última vertente tem sido consensualmente chamada de Nova História. Aí está, em linhas gerais, a história geral da historiografia contemporânea, de certa for­ ma tida como estabelecida, não havendo por que se preocupar com estas questões.

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Nossa investigação, de um modo geral, está preocupada precisamente com o que se considera estabelecido. Sugere, entre outros aspectos, a existência de um setor do conhecimento, que é a história geral da historiografia, que deveria ser incorporado de uma maneira mais extensiva no conjunto das preocupações relativas às reflexões de caráter historiográfico, pois, como é comum em outras áreas do conhecimento, existe um verdadeiro fascínio pelo "novo". Um domínio mais adequado associado à história geral da historiogra­ fia nos ofereceria condições de sermos, por exemplo, mais críticos em relação ao que se considera "novo" e "ultrapassado" em matéria de história. A exposição divide-se nas seguintes partes: inicialmente procuramos caracterizar os estudos historiográficos no que tange à sua diversidade e aos seus alvos; em seguida destacamos que refle­ xões de caráter propriamente historiográfico existiram mesmo bem antes da existência de estudos historiográficos, que é o que denomi­ namos de "empenhos historiográficos"; nossa análise incide em se­ guida sobre os estudos historiográficos gerais, suas características e evolução de seus respectivos conteúdos; examinamos em seguida, à luz da história geral da historiografia, os estudos historiográficos es­ pecializados sobre a Nova História, e, particularmente, o posiciona­ mento desta tendência historiográfica da perspectiva da história ge­ ral da historiografia, concluindo com uma avaliação sobre a Nova História no contexto da história da historiografia contemporânea.

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capítulo 1 ESTU D O S H I S T O R IO G R Á F IC O S G E R A IS : P A SSA D O E PR ESEN TE

"Certos autores, falando de suas obras, dizem: 'Meu livro, meu comen­ tário, minha história' etc. Isso cheira a burguês com bens de raiz e sempre com um 'meu lar' nos lábios. Andariam melhor dizendo: 'Nos­ so livro, nosso comentário, nossa história', visto que, em geral, há nis­ so mais bens alheios do que próprios." Blaise Pascal (1623-1662). 1

O s estu d os historiográficos: propósitos e diversidade O que se segue consiste num estudo de caráter historiográfico incidindo fundamentalmente sobre a maneira pela qual uma ver­ tente historiográfica contemporânea, nomeada mente, a Nova Histó­ ria, tem sido avaliada. Partimos de um conjunto de pressupostos dos quais alguns, pelo menos, consideramos necessário explicitar desde já; quanto aos demais, acreditamos que serão perceptíveis ao longo da exposição. Em primeiro lugar, expressam a consciência de que para efetuar um estudo historiográfico o pesquisador deve ter conhe­ cimento da diversidade dos estudos historiográficos e da própria história destes estudos, sob pena de incorrer numa armadilha muito comum neste gênero de trabalho, a qual consiste em acreditar que o objeto de sua pesquisa, que a estratégia que adotou e o conteúdo que veicula constituem a última palavra sobre a matéria em questão. A partir deste pressuposto constituímos um elenco de estudos historio­ gráficos que se tornaram objeto de nossa atenção. A discussão deste

1 BLAISE PASCAL. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961, p. 61. No original: "Certains auteurs, parlant de leurs ouvrages, disent: 'M on livre, m on com m entaire, mon histoire, etc.' Ils sentent leurs bourgeois qui ont pignon sur rue, et toujours un 'chez m oi' à la bouche. Ils feraient mieux de dire: 'Notre livre, notre commentaire, notre his­ toire, etc.' vu que d'ordinaire il y a plus en cela du bien d'autrui que du leur." BLAISE PASCAL . Pensées. Paris: Librairie Générale Française, 1972. p. 17.

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elenco também possui a finalidade de romper um notável "paroquialismo corporativo" que tivemos oportunidade de observar no decor­ rer de nossa pesquisa. É digno de nota o fato de existir um número razoável de estudos historiográficos que sugerem a existência de in­ transponíveis barreiras ideológicas e nacionais. Na Inglaterra, por exemplo, dois autores de estudos historiográficos que publicaram suas respectivas obras em primeira edição com uma diferença de apenas um ano ignoram-se mutuamente. Não há sequer uma refe­ rência bibliográfica de um em relação ao outro,23mesmo que para re­ gistrar a existência da outra obra ou para afirmar, tão somente, "não nos interessa para os nossos propósitos", o que, no caso de um estudo historiográfico, de resto, seria bastante discutível. Observa-se, contrariamente ao que se espera num trabalho acadêmico, um acabrunhante e eloqüente silêncio. Além do paroquialismo ideológico é notável também o peso da questão nacional, e observe-se que não estamos nos referindo ao passado, aos primeiros estudos historiográ­ ficos, mas ao presente. Para aqueles que, como nós, tiveram de se de­ bruçar sobre essas obras, é como se, no plano dos estudos historio­ gráficos, a Guerra dos Cem Anos ainda não tivesse terminado (no ge­ ral, ingleses e franceses ignoram-se mutuamente, ou esporadica­ mente encontramos comentários ácidos) e a Guerra Franco-Prussia­ na ainda ecoasse (franceses e alemães ignoram-se mutuamente). No caso da história e da historiografia, partilhamos da afirma­ ção de Henri-Irénée Marrou (1904-1977), segundo a qual existe um processo cumulativo; conseguimos sempre verdades parciais em história, a qual é, a cada momento, reelaborada,' o que acreditamos constituir uma forte razão para que tais barreiras sejam rompidas. Um estudo historiográfico dispõe de livros de história como documenta­ ção básica; daqui decorrem algumas implicações que valem a pena ser notadas. As notas de rodapé são incontornáveis, um aparente forma­ to "catalogràfico" é difícil de ser evitado; entretanto procuramos, na 2 Veja-se JOHN KENYON. The History Men: the Historical Profession in England since the Renaissance. London: W eidenfeld and Nicolson, 1993. (Ia edição, 1983). HARVEY J. KAYE. The British Marxist Historians. An Introductory Analy­ sis. London: Macmillan, 1995. (Ia edição, 1984). Na obra de Jo h n Kenyon, por exemplo, o único historiador de posições m arxistas citado é Christopher Hill e ainda de uma forma bastante sucinta quando existem referências sobre a historiografia das Revoluções Inglesas do século XVII. 3 HENRI-IRÉNÉE MARROU. Sobre o Conhecimento Histórico. Tradução de Ro­ berto Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. (Ia edição, 1954). O a u ­ tor é incisivo em destacar a im portância de o historiador, para além de suas atividades diárias como pesquisador, deve refletir tam bém sobre a natureza de seu próprio trabalho.

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medida do possível, estabelecer as articulações necessárias e, sobretu­ do, viáveis. Num estudo dessa natureza, as datas são importantes, constituem-se em pontos de referência a partir dos quais pode-se di­ visar um tênue. - porém perceptível - andamento nos estudos historiográficos, em suas formas de abordagem, na estrutura de exposição e nos conteúdos que veiculam. Sempre que possível, procuramos in­ dicar o período de vida do autor referido e, em relação às obras, as da­ tas de suas primeiras edições. Ao longo do texto estaremos utilizando uma abordagem, digamos, histórica, para tratar dos textos de história, pois acreditamos que o que pode eventualmente ser discutível para as outras áreas do conhecimento - realizar ou não unia abordagem his­ tórica - não ocorra da mesma forma quando a preocupação é a história da história. O posicionamento existencial, filosófico e político do historiador interfere na sua produção, por mais “isento" ou "obje­ tivo" que pretenda ser, quando se trata de história. Temos consciência de que existe um debate muito amplo em relação à utilização de uma perspectiva histórica para as Ciências So­ ciais, para a Literatura e que, de alguma forma, ecoa na própria disci­ plina, de tal forma que merece ser explicitado nosso posicionamento. A questão, por exemplo, de se fundar o estudo de obras literárias com uma perspectiva histórica faz parte de uma postura mais ampla, na área das ciências humanas, e mesmo da estética, que envolveu direta­ mente várias áreas específicas do conhecimento (por exemplo, a socio­ logia, a psicologia e a literatura). Os esforços neste sentido de se criar uma "ciência humana diferencial", ou "diacrònica", que dá ênfase à historicidade como seu fundamento, procura buscar na história o necessário anteparo e sustentação epistemologica para legitimar-se em face de posturas consideradas "sistemáticas" ou "sincrônicas". Os de­ fensores da introdução da perspectiva histórica naquelas áreas do co­ nhecimento afirmavam que não era dada a devida atenção a proces­ sos históricos concretos, dando origem a uma ciência humana e a uma estética a-históricas, no sentido de que suas formulações eram sufi­ cientemente amplas e desprovidas de conteúdos específicos que pode­ riam ser válidas em qualquer contexto histórico. Ser chamado de "for­ malista" era, neste contexto, uma avaliação negativa. Muitos que se dedicavam ao campo das ciências humanas e da literatura tiveram, então, sua atenção voltada para a história, buscando nela a legitimida­ de para os seus respectivos trabalhos.4 De uma certa perspectiva, foi 4 Para um a outra perspectiva sobre as relações entre história e literatura vejase: WOLFGANG KAYSER. Análise e Interpretação da Obra Literária. Edição revi­ sada por Paulo Quintela. Coimbra: Arm ênio Amado, 1985. (Ia edição, 1948).

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com satisfação que os historiadores receberam esta atitude generaliza­ da dos especialistas em várias áreas do conhecimento valorizarem a história. Esta postura teve inúmeras implicações. Dificilmente hoje al­ gum curso de nível superior na área das ciências humanas não possui alguma disciplina ou departamento de "História da (...)". Simultanea­ mente ao aumento das pesquisas destas outras áreas que buscavam fundamentar-se na história, aumentaram sensivelmente os problemas decorrentes deste intercâmbio. Em nosso tempo de estudante na gra­ duação eram comuns, por exemplo, em aulas de sociologia, afirmações tais como: A Revolução de 1930 é um marco no processo de modernização do Brasil. De uma maneira geral, o não-especialista em história toma-a com uma positividade que realmente não existe e que, seguramente, não é a maneira do historiador trabalhar. Para o não-especialista, a "abordagem histórica" é a garantia de que sua teoria ou modo de ex­ plicação seja legitimado. Para o historiador, a cada afirmação proferida nesta área será sempre possível contrapor-se um grande número de indagações. O terreno, por natureza, não é firme: é movediço. Do lado dos historiadores também seria saudável que, quando utilizassem con­ ceitos ou recursos das demais ciências sociais, tivessem a mesma pre­ caução para não tomá-las com uma positividade inexistente. Por fim, dentro do campo da história, num texto que envolve juízos sobre a história, neste contexto específico, acreditamos que seja procedente uma abordagem histórica para as histórias gerais da historiografia. No decorrer da pesquisa tivemos de estabelecer uma estraté­ gia de exposição, e esta dependia, entre outros aspectos, por sua vez, do que viria a ser objeto de nossa análise. O eixo condutor envolvia uma perspectiva que tinha como alvos a idéia de história da historio­ grafia, ou, como viemos a chamar, "preocupação historiográfica", bem como as histórias da historiografia propriamente ditas. Para tanto, além de rastrear em quais contextos era possível localizar uma "preocupação historiográfica", elaboramos também um elenco de obras no qual as histórias da historiografia podem ocorrer de várias maneiras. Desta forma, integram o elenco:

I li tendendo a abordagem histórica em sociologia veja-se: CHARLES WRIGHT MII I .S A Imaginação Sociológica. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: / di,ir 1065. (Io edição, 1959). Charles Wright Mills (1916-1962) critica a «oui c'| içiV i di' sociologia tal como é veiculada por Talcott Parsons, (1902-1979) .............. strili um a "sociologia sistemática", esvaziada de conteúdos históricos. • I I Ml (ITI PARSONS. The Structure o f Social Action. New York: The Free I'n , I'lfiK, 2 V, ( I a edição, 1957).

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• Obras não específicas de história da historiografia que, todavia, tiveram um papel importante para a concepção das histórias da historiografia; • Obras envolvendo reflexões sobre a história, de metodolo­ gia ou introdução aos estudos históricos cujos autores nelas incluíram capítulo ou capítulos contendo um panorama da história da historiografia; • Histórias gerais da historiografia. Este elenco, certamente, não possui a pretensão de ser exaus­ tivo, mas acreditamos que seja suficientemente representativo para as finalidades a que nos propusemos. No tratamento do elenco, por sua vez, ficamos indecisos quan­ to ao modo de exposição: dentre os possíveis, estabelecer núcleos te­ máticos e, a partir daí, verificar como estes são abordados ao longo do elenco; ou bem simplesmente adotar um critério cronológico, a partir das datas das primeiras edições, acompanhando o aparecimento ou mesmo uma possível recorrência de núcleos temáticos. A primeira possibilidade possui as vantagens de, no mínimo, se poder observar, dentre os trabalhos selecionados, a emergência de determinados te­ mas, a maneira como são abordados e como são propostas soluções para equacioná-los: por exemplo, verificar ao longo das histórias da historiografia como os temas "nação", "hierarquias sociais", "conflitos sociais" ou "cultura" são tratados. Entretanto, a desvantagem eviden­ te envolve pelo menos dois aspectos: de um lado, a inevitável dose de arbitrariedade na eleição dos temas (por que este e não outro tema?), tornando-se, desta forma, um critério bastante restritivo; um outro problema é a perda da dimensão cronológica que, na presente inves­ tigação, é importante, uma vez que ela pretende, entre outros aspec­ tos, acompanhar, ao longo do tempo, as possíveis alterações na ma­ neira de se conceber as histórias gerais da historiografia e examinar a forma pela qual são incorporadas as novas perspectivas historiográficas. Por estas razões, enfim, optamos pelo critério misto, o qual con­ templa, de um lado, os agrupamentos de obras tal como realizamos em relação ao elenco e, dentro de cada agrupamento, seguimos o cri­ tério cronológico, tomando como referencial, sempre que possível, a data da primeira edição e, com estes critérios, acompanhar suas res­ pectivas temáticas e formas de concepção. Cabe, entretanto, uma outra questão: do ponto de vista de seus respectivos conteúdos, quais estudos historiográficos devem ser objeto de atenção, quais devem compor o elenco? Esta indagação é pertinente se levarmos em consi­ deração que não existe um padrão único de estudos historiográficos.

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I’m (Mudos historiográficós", vale ressaltar, estamos empregando o seu sentido mais amplo, ou seja, o estudo que envolve reflexões, de nuiure/u vária, sobre os historiadores e suas respectivas obras. 1’resentemente, os estudos historiográficos já ocupam o seu devido espaço no contexto da produção historiográfica contemporâ­ nea Alem das já tradicionais revistas históricas, muitas delas funda­ das na segunda metade do século XIX e início do século XX, existem peilódicos mais especializados que dedicam uma parte significativa de seus artigos à teoria e à história da historiografia.' Quanto aos esImios historiográficos propriamente ditos, além de ser possível afir­ mai a existência de uma razoável variedade e quantidade destes ii sins especializados, com graus diferenciados dc qualidade, talvez seja possível estabelecer, mesmo que tentativamente, uma tipologia dos mesmos. Neste sentido, por exemplo, temos: • Os estudos historiográficos que têm como alvo um autor e o conjunto de suas obras, ou uma comparação entre autores e algumas de suas respectivas obras, que pode ter por inte­ resse investigar, por exemplo, a forma ou estilo de escrita, ou a forma que os autores objeto de comparação vieram a tratar de determinados temas, ou dentro de um mesmo período da história da historiografia comparar autores;6 S Veja-se, por exemplo, nos Estados Unidos [History and Theory), na Itália (Storia delia Storiografia), na Inglaterra [Rethinking History), ou, em nosso contexto, entre outras, Estudos Históricos, Revista Brasileira de História, t, Por exemplo: MICHAEL GRANT. The Ancient Historians . New York: Barnes X Noble Book, 1970. MARIA ODILA DA SILVA DIAS. O fardo do homem bran­ co: Southey, historiador do Brasil. São Paulo: Nacional, 1974. MARIA DE LOUR­ DES MftNACO JANOTTI. Jo ã o Francisco Lisboa: jornalista e historiador. São IMulo: Ática, 1977. CAROLE FINK. Marc Bloch: A Life in History. Cambridge: Cambridge University Press, 1991 (Ia edição, 1989). LUCE GIARD, HERVÉ MARTIN, JACQUES REVEL. Histoire, Mystique et Politique: Michel i e Certeau. Grenoble: Jérôm e Millon, 1991. RONALD MELLOR. Tacitus. New York: Roulledge, 1993. ROY PORTER. G ibbon : Making History. London: Phoenix Giants, 1095, ( I a edição, 1988). FRANK EYCK - G. P. Gooch: a study in history an d po­ litic. London: The Macmillan Press , 1982. DAVID D. ROBERTS. Benedetto I 'race and the uses o f historicism. Berkeley: University of California Press, 1987. IIAYDF.N WHITE. Meta-História: A Imaginação Histórica no Século XIX. Tradução de José Laurênio de Melo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1992. (Ia edição, 1973). PETER GAY. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, lllirekhardt. Tradução de Denise Bottm an. São Paulo: Com panhia das Letras, 1990. (Ia edição, 1974). JOSÉ FERRATER MORA. Cuatro visiones de la historia universal: San Agustín, Vico, Voltaire, Hegel. Madrid: Alianza , 1984. (Ia edição, 1982). JACK H. HEXTER. On historians: reappraisals o f some o f the masters o f mo­ dern history. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1979.

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• Os estudos historiográficos nacionais, ou seja, os que pos­ suem por alvo apresentar a historiografia de um determina­ do país, ou estudos historiográficos de uma época, seja no sentido meramente cronológico (historiografia do século XIX, por exemplo), ou no sentido de um critério não rigo­ rosamente cronológico (historiografia do Risorgimento, por exemplo), estudos historiográficos sobre determinada esco­ la histórica ou uma tendência historiográfica envolvendo, neste caso, os vários autores e várias obras que caracterizam o período, ou escola ou tendência;78 • Os de estudos historiográficos que têm por finalidade saber como um determinado tema tem sido tratado ao longo do tempo, por vários autores e várias obras, ou da perspectiva das tendências ou escolas históricas;* • Os estudos historiográficos gerais, mais amplos, que têm por finalidade oferecer um panorama da produção historio­ gráfica como um todo.

7 Por exem plo: BENEDETTO CROCE. Storia della Storiografia Italiana nel Seco­ lo Decimonono. (2 v). Bari: Gius. Laterza &- Figli, 1921. B. SÁNCHEZ ALONSO. Historia de la Historiografia Espanola. (3 v.). M adrid: Revista de Filologia Espa­ nola, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1947. EDUARD ME­ YER. El Historiador y la Historia Antigua. Traducción de Carlos Silva. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1982. (Ia edição, 1910). CHARLES-OLIVIER CARBONELL. Histoire et Historiens. Une mutation idéologique des historiens fra n ­ çais, 1865-1885. Toulouse: Privât, 1976. BERNARD GUENÉE. Histoire et Cultu­ re historique dans l'Occident médiéval. Paris: Aubier-M ontaigne, 1980. JOHN KENYON. The History Men. The Historical Profession in England since the Renais­ sance. op. cit. BLANDINE KRIEGEL. L'histoire à l'Age classique. Paris: Presses Universitaires de France, 1988. (4 v). HARVEY J. KAYE. The British Marxist Historians: An Introductory Analysis, op. cit.. GEORG G. IGGERS. The German Conception o f History. The National Tradition o f Historical Thought from Herder to the Present. Hanover (New Hampshire): W esleyan University Press, 1988. (Ia edição, 1968). JEAN MARIE GOULEMOT. Le Règne de l'Histoire: Discours His­ toriques et Révolutions, XVIle - XVIlIe siècle. Paris: Albin Michel, 1996.

8 Por exemplo: WALTER MATURI. Interpretazioni del Risorgimento: lezioni di sto­ ria della storiografia. Torino: Giulio Einaudi editore, 1962. RENZO DE FELICE . Le interpretazioni del fascismo. Bari: Gius. Laterza & Figli, 1995. (Ia edição, 1969). ALICE GERARD. A Revolução Francesa. Mitos e Interpretações. Tradução de Sérgio Joaquim de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1977. (Ia edição, 1970). FRAN­ ÇOIS FURET . Pensando a Revolução Francesa. Tradução de Luiz Marques e Mar­ tha Gambini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. (Ia edição, 1983). BORIS FAUSTO. A Revolução de 1930. Historiografia e História. São Paulo: Brasiliense, 1970. R. C. RICHARDSON. The Debate on the English Revolution Revisited. Lon­ don: Routledge, 1988. (Ia edição, 1977). ROGÉRIO FORASTIERI DA SILVA. Colònia e Nativismo: a história corno "biografia da nação São Paulo: Hucitec, 1997.

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Interessam-nos particularmente estes últimos por algumas razões: são supostamente mais abrangentes, tendem a incorporar as vertentes mais recentes da historiografia e podem, de certa maneira, ser suficientemente amplos para contemplar, portanto, outras possí­ veis formas de estudos historiográficos, prestando-se mais adequada­ mente à nossa pesquisa. Desta forma, se tomarmos como referencial os modernos estu­ dos historiográficos gerais, existe um relativo consenso entre os espe­ cialistas desta área do conhecimento de que o primeiro esforço impor­ tante no sentido da realização de uma história geral da historiografia deve-se ao historiador suíço Eduard Fueter (1876-1928), autor de uma história da historiografia moderna (Geschichte der neueren Historio­ graphie, 1911) que procura cobrir um vasto campo da produção historiográfica européia, desde a época do Renascimento até o final do século XIX.’’ Pode-se, de certa maneira, considerar o trabalho de Eduard Fueter como o marco inicial dos modernos estudos historio­ gráficos gerais, a partir do qual, como teremos oportunidade de veri­ ficar, observou-se um movimento crescente no sentido da publicação de obras especializadas em historiografia, bem como, na medida em que passaram a se consolidar os cursos de ensino superior de história, dedicou-se cada vez maior atenção aos estudos historiográficos como uma disciplina específica no campo da história. Por esta razão, foi pos­ sível constituir um elenco de estudos historiográficos gerais significa­ tivos publicados ao longo deste período, como também já se pode es­ boçar pelo menos um panorama dos referidos estudos. É legítimo afirmar a existência de um progresso nesta área do conhecimento desde que a produção historiográfica deixou de ser tra­ tada somente em obras tais como bibliografias,"' histórias da literatura"910

9 EDUARD FUETER . Histoire de l'Historiographie Moderne. Traduit de l’Allemand par Emile Jeanm aire, avec notes et additions de l’auteur. Paris: Librairie Félix Alcan, 1914. (Ia edição, 1911). Sobre a avaliação da obra de Eduard Fueter como um pioneiro, veja-se, por exemplo: BENEDETTO CROCE . Teoria e Storia della Storiografia. Bari: Gius. Laterza & Figli, 1973. p.160. (Ia edição, 1917). DENYS HAY. Annalists and Historians: Western Historiography from the Eighth to the Eighteenth Centuries. London: M ethuen , p. v. DONALD R. KELLEY. Versions o f History from Antiquity to the Enlightenment New Haven: Yale University Press, 1991. p. xi. 10 Veja-se, por exemplo, CHARLES-VICTOR LANGLOIS. M anuel de Bibliogra­ phie Historique. Paris: Librairie Hachette, 1896.

11 Veja-se, por exemplo, PAUL ALBERT. Histoire de la Littérature Romaine. Pa­ ris: Librairie Charles Delagrave, 1883.

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e histórias de gêneros literários,'2 para ocupar um lugar específico no contexto da produção historiográfica propriamente dita. Desta forma, os estudos historiográficos deixaram de ser simplesmente bibliografias comentadas, com listas de autores e respectivas obras, e passaram a conter uma periodização própria, análises e interpretações importantes e, sobretudo, foram capazes de ultrapassar os estreitos limites das "his­ tórias nacionais" para tratar de problemas de fundo relativos à produ­ ção historiográfica contemporânea. Deve-se observar também a recor­ rência com que os autores de histórias da historiografia criticam uns aos outros sobre a questão de que muitas histórias gerais de historiografia não passam de "catálogos" ou "listas de obras e autores". Parecem es­ quecer-se de que, pelas próprias características deste gênero de estudo, é inevitável a referência a autores e obras: afinal, eles são o centro da investigação, bem como sua documentação básica. Este, digamos, é o aspecto formal de um estudo historiográfico. Deve-se colocar em dis­ cussão, isto sim, o teor das análises, sua articulação e não a simples jus­ taposição, posto que a listagem de autores e obras, de uma forma ou de outra, seguramente será inevitável num estudo historiográfico. Outrossim, deve-se observar que a própria listagem de autores e obras não é neutra e, dificilmente, será exaustiva. Queiramos nós ou não, ela supõe escolhas e traz subjacente uma visão de história. Nesta área do conhecimento, um dos principais obstáculos é a dificuldade de acesso a esta bibliografia, porque é especializada, porque, quando comparados a outros setores da produção de estu­ dos históricos, os estudos historiográficos gerais são mais esparsos. Por estas razões, consideramos importante para as finalidades de nossa exposição apresentar, neste conjunto, uma exposição sobre os estudos historiográficos gerais, ordenando-os, não só de um ponto de vista cronológico mas, também, no sentido da evolução de seus conteúdos e formas de apresentação em relação à produção historio­ gráfica contemporânea. Neste sentido, em nome de uma maior cla­ reza na exposição, dividi-la-emos em duas partes. A primeira parte procura mostrar que mesmo antes da produção de estudos historio­ gráficos é legítimo afirmar-se a existência de uma "preocupação his­ toriográfica". Ela existe desde a época da historiografia clássica gre­ co-romana e se estende até o início do século XX e que, por sua vez,12

12 Veja-se, por exem plo, LÉON LEVRAULT .Les Genres Littéraires - L'Histoire, évolution du genre. Paris: Librairie Classique Paul Delaplane, 1905. CharlesOlivier Carbonell considéra a obra "une rare m édiocrité". Cf. CHARLES-OLI­ VIER CARBONELL. Histoire et Historiens: une mutation idéologique des historiens français 1865-1885. op. cit. p.19.

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corresponderia, desta forma, a uma pré-história dos estudos historiográficos. Neste sentido, é possível observar, ao longo da história da historiografia, que muitos autores empenham-se, ao tratarem de seus objetos de análise, em oferecer aos seus leitores um panorama historiográfico sobre o assunto que estudam, chegando a indicar o que consideram relevante e o que é criticável, de uma certa manei­ ra, situando sua própria obra no conjunto do que já foi tratado sobre a questão. A segunda parte procura destacar, além dos estudos historiográficos gerais, tendo como ponto de partida o referido trabalho de Eduard Fueter, autores que, mesmo que não estejam propriamente voltados para estudos historiográficos, tenham tido um papel impor­ tante, espedalmente na inovação de posturas sobre a história e, por esta via, mesmo que de uma forma indireta, tenham exercido algu­ ma influência na própria concepção desses estudos. Destacaremos também autores cujas obras envolvem reflexões sobre a história e que inseriram em seus respectivos trabalhos uma perspectiva sobre a história geral da historiografia. Passemos a examinar o desenvolvi­ mento das "preocupações historiográficas".

E m p e n h o s historiográficos Reiterando o que já afirmamos anteriormente, podemos con­ siderar o estudo historiográfico como o estudo da história dos escritos históricos, métodos, interpretações e as respectivas controvérsias. Como um setor autônomo do conhecimento podemos localizá-lo no início do século XX. Entretanto os "empenhos historiográficos", ou seja, uma preocupação propriamente historiográfica existe, pode-se afirmar, antes mesmo da existência dos estudos historiográficos pro­ duzidos com esta finalidade. Observa-se na historiografia antiga e me­ dieval entre historiadores gregos, romanos, expoentes da historiogra­ fia judaica e cristã uma preocupação crescente em situar suas respec­ tivas obras em relação aos seus antecessores ou compará-las com suas congêneres contemporâneas. Desta forma, inadvertidamente, esta­ vam empreendendo um balanço da produção historiográfica da época, mesmo que, com freqüência, criticassem procedimentos que eles mesmos muitas vezes repetiam. O esforço que os historiadores realizavam no sentido de inovar em relação à narrativa e apresentar visões de mundo diferentes da então vigente, por si só exigiam a necessidade de que tais autores assinalassem suas diferenças em

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relação aos seus antecessores ou contemporâneos, produzindo desta maneira, discussões de caráter historiográfico.1’

13 Existe uma bibliografia espedalizada no que tange à historiografia greco-romana e judaico-cristã que serviu de fundam ento para a exposição da primeira parte do presente capítulo. Destacam-se, entre outros, neste contexto: SIMON HORNBLOWER (org.) Greek Historiography. Oxford: Clarendon Press, 1996. (Ia edição, 1994). DENIS ROUSSEL. Les historiem grecs. Paris: Presses Universitaires de France, 1973. JACQUELINE DE ROMILLY. História e Razão em Tucídides. Tradu­ ção de Tomás Rosa Bueno. Brasília: Universidade de Brasília, 1998. (Ia edição, 1956). K. H. WATERS. Heródoto el historiador: sus problemas, métodos y originalidad. Traducción de Eduardo Guerrero Tapia. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. (Ia edição, 1985.(MICHAEL GRANT. The Ancient Historiam. New York: Bar­ nes &■ Noble Books, 1994. (Ia edição, 1970). MICHAEL GRANT. Greek & Roman Historians: information and misinformation. London: Routledge, 1995. JEAN-MARIE ANDRÉ, ALAIN HUS. La historia en Roma. Traducción de Nestor Miguez. M a­ drid: Siglo Veintiuno de Espana , 1989. (Ia edição, 1974). EDUARD MEYER. El historiador y la historia antigua: estúdios sobre la teoria de la historia y la historia econó­ mica y política de la Antigüedad. Traducción de Carlos Silva. México: Fondo de Cul­ tura Económica, 1982 (Ia edição, 1910). JAMES THOMSON SHOTWELL. Histo­ ria de la historia en el mundo anliguo. Traducción de Rantón Iglesia. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. (Ia edição, 1939). DONALD R. KELLEY. Versions o f history from Antiquity to the Enlightenment. New Haven: Yale University Press, 1991. DONALD R. KELLEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Herder. New Haven: Yale University Press, 1998. ETTORE PARATORE. História da Litera­ tura Latina. Tradução de Manuel Losa, S.J. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. (Ia edição, 1983). HAYDEN V. WHITE. The Greco-Roman Tradition. New York: Harper & Row Publishers, 1973. ISRAEL I. MATRJCK . El pensamiento de los profetas. Traducción de Elsa Cecilia Frost. Mexico: Fondo de Cultura Eco­ nómica: 1962. (Ia edição, 1953). ARNALDO MOMIGL1ANO. Ensayos de historio­ grafia antigua y moderna. Traducción de Stella Mastrangelo. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. (Ia edição, 1977). ARNALDO MOMIGL1ANO. L asabiduría de los bárbaros: los limites de la helenización. Traducción de Gabriela Ordiales.

México: Fondo de Cultura Económica, 1988. (Ia edição, 1975). ARNALDO MOM1GLIANO. On pagans, jews, and Christians. Hanover (New Hampshire): Wesleyan University Press, 1987. ARNALDO MOM1GLIANO. The classical foundations o f mo­ dern historiography. Berkeley: University of California Press, 1990. JACOB BURCKHARDT. Del paganismo al cristianismo: la época de Constantino el Grande. Traduc­ ción de Eugenio Imaz. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. (Ia edição, 1853). ROBIN LANE FOX . Pagans and Christians in the Mediterranean world from the second century AD to the conversion o f Constantine. Harmondsworth: Penguin Books, 1986. CHARLES NORRIS COCHRANE. Cristianismoy cultura clássica. Traducción de José earner. México: Fondo de Cultura Económica, 1982. (Ia edição, 1939). HENRY BATTENSON (org.). The early Christian fathers. Oxford: Oxford University Press, 1982. (Ia edição 1956). WERNER JAEGER. Cristianismo Primitivoy Paideia Griega. Traducción de Elsa Cecilia Frost. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993 (Ia edição, 1961). OLOF G1GON. La cultura antigua y el cristianismo. Traduc­ ción de Manuel Carrión Gútiez. Madrid: G redos, 1970. ( Ia edição, 1966). MAR­ TA SORDI. The Christians and the Roman Empire. Translated by Annabel Bedini.

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Heródoto (484-425 a.C.) e Tucídides (4607-400? a.C.) não chegaram a legar reflexões sobre sna própria prática de historiadores. Procuravam expressar o que chamavam de "verdade" tal como a concebiam, estabelecendo de uma certa forma uma cumplicidade com seus leitores, explicitando em seus relatos às vezes testemunhos pessoais, secundários e o ouvir dizer. Já foi observado que ambos constituem as matrizes a partir da qual toda a historiografia ulterior viria a se desenvolver. O primeiro, oferecendo um modelo daquilo que viriamos chamar de "história cultural" e o segundo estaria mais próximo da "história política".*14* Assim, é ao filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), que devemos uma das primeiras tentativas de definição da história no campo do conhecimento humano, quando na Arte Poética estabeleceu, entre outros aspectos, o início de uma discussão que ainda perdura entre aqueles que se dedicam a reflexões sobre a história. Segundo o filó­ sofo, além de se distinguir no plano formal, por ser escrita em prosa, a história descreve algo que aconteceu, enquanto a poesia o que poderia ter acontecido." Acrescentava também que a dependência à cronologia e ao efetivamente acontecido fazia com que esta forma de conheci­ mento fosse inferior ou, pelo menos, subordinada às formas mais elevadas que eram a poesia e a filosofia. Se a tradição consagrou Heródoto como o pai da história, Políbio (2087-125? a.C.) poderia ser considerado provavelmente o primeiro historiador que nos legou registros com preocupações historiográficas. Não ignorava seus antecessores, efetuou de alguma maneira um balanço do que até então se produzira e emitiu juízos de valor sobre os autores que analisou. Políbio tem consciência da importância do tema de que trata: a história da supremacia de Roma, da qual fora contemporâneo. Seu posicionamento em relação a esta London: Routledge, 1994. (Ia edição, 1983). AMBROGIO DONINI. História do cristianismo das origens a Justiniano. Tradução de Maria Manuela T. Galhardo. Lis­ boa: Edições 70.,‘l 980. (Ia edição, 1977). CHARLES GU1GNEBERT. El cristianis­ mo antiguo. Traducción de Néiida Orfila Reynal. México: Fondo de Cultura Eco­ nómica, 1983. (Ia edição, 1921). SANTO MAZARINO. Ofim do mundo antigo. Tra­ dução de Pier Luigi Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1991. (1° edição, 1988). FERDINAND LOT. O fim do mundo antigo e o princípio da Idade Média. Tradução de Emanuel Godinho. Lisboa: Edições 70, 1985. (Ia edição, 1927). R. A. MARKUS. the end o f Ancient Christianity. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. (Ia edição, 1990). 14 DONALD R. KELLEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Her­ der op. d t. |>, 3.

I ') DONALD R. KELLEY . Faces o f History. Historical Inquiry from Herodotus to Herder op. d t. p. 44.

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questão provavelmente exerceu muita influência no que veio a es­ crever. Defendia a política de se manter uma aliança formal com Roma, sem ceder a abusos ou dar pretextos para uma agressão. Sabese que esta política era insustentável, entretanto ela esteve subjacen­ te em seus escritos. O autor em sua obra oferece-nos um panorama e uma crítica dos textos sobre a história de Roma que lhe precede­ ram. Advoga explicitamente uma "história geral" por oposição às "histórias parciais" que conhecia na época.16 Diodoro da Sicília (90-20 a.C.), da mesma forma que Políbio, também constitui um elo entre a civilização grega e a emergente civi­ lização romana. Autor de uma compilação que chamou Biblioteca His­ tórica, elaborada entre 60 e 30 a.C. empreendeu, entre outros aspectos, uma avaliação de seus predecessores, especialmente a historiografia helenística. Sua obra foi criticada pelo fato de utilizar como fontes obras de outros autores, entretanto sofreu uma reavaliação precisa­ mente porque, por intermédio de seu trabalho, foi possível o registro de uma massa de informações e de obras que desapareceram.1718 Dionísio de Halicarnasso (século I a.C.) viveu no intervalo entre a crise da república e o estabelecimento do principado em Roma. Dedicou mais de duas décadas na elaboração de sua Arqueolo­ gia Romana e justificou a existência de seu trabalho por intermédio de uma análise de seus antecessores. Segundo Dionísio era notável a au­ sência de uma vasta síntese sobre a história de Roma que o autor pre­ tendia então preencher a lacuna. Observa-se desta forma, paulatina­ mente, o estabelecimento de urna certa tradição na qual aqueles que empreendiam a elaboração de um texto de caráter histórico deveriam mostrar seus conhecimentos e uma avaliação de seus predecessores.1* Devemos levar em conta, entretanto, que nos primórdios da historiografia ocidental greco-romana, a história deve ser considera16 POLYBE. Histoire. Traduction nouvelle avec une notice et des notes explicati­ ves par Pierre Waltz. Paris: Garnier Frères, 1921.4 v. Veja-se também: MICHAEL GRANT. The Ancient Historians, op. cit. p. 144. (Ia edição, 1970); PETER DEROW. "Historical Explanation: Polybius and his Predecessors". SIMON HORNBLOWER (org.). Greek Historiography, op. cit. p.73; DENIS ROUSSEL. Les historiens grecs, op. cit. p.148. ARNALDO MOMIGLIANO. "La piel del historiador” e "La reaparición de Polibio en Europa occidental" - Ensayos de historiografia antigua y moderna, op. cit. p. 63-71 e p . 72-88. DONALD R. KELLEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Herder, op. cit. p.31 e segs. ARNALDO MOMIGLIANO. La sabiduria de tos bárbaros. Los limites de Ia helenización. op. cit. p. 44. 17 DONALD R. KELLEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Her­ der. op. cit. p. 35-38.

18 DENIS ROUSSEL . Les historiens grecs, op. cit. p. 180-182. DONALD R. KEL­ LEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Herder, op. cit. p. 38-42.

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da, sobretudo, como um gênero literário ” que segundo Cícero,1 92021por exemplo, era um instrumento indispensável para a retórica. Assim entre um compromisso com a verdade e um bom efeito retórico em relação ao público ouvinte, a segunda alternativa sempre era esco­ lhida. Não é pois, sem razão, que uma das características importan­ tes das narrativas históricas greco-romanas está na utilização fre­ quente e muitas vezes abundante de reprodução de discursos, mui­ tos dos quais, dificilmente, seria possível provar sua autenticidade. Por intermédio da oratória os historiadores antigos explicitavam seus posicionamentos, colocando nas palavras de seus personagens, mui­ tas vezes, juízos que lhes eram próprios. Luciano de Samósata (1257-192? d.C.) foi autor de um texto destinado àqueles que pretendiam escrever história intitulado Sobre a maneira de escrever a história (ca. 165 d.C.). Trata-se de uma crítica de caráter historiográfico aos seus contemporâneos, tanto no aspecto formal como no conteúdo. Afirmava que aqueles autores desconhe­ ciam a matéria de que tratavam e produziam volumes e volumes com elogios e comparações descabidas. De acordo com o autor, a ta­ refa do historiador era contar o que aconteceu e não perder tempo com outros alvos que o desviassem de seu compromisso com a verdade. Luciano de Samósata antecipava-se em séculos à concepção de história que seria cara à Escola Histórica Alemã e à Escola Metódica Francesa.2' Se é verdade que a historiografia romana possui como matriz de inspiração os autores da historiografia grega pode-se afirmar que dela se distancia especialmente no que se refere à fontes. A preserva­ ção de registros constituiu-se numa característica importante desde os primórdios do Estado romano. Segundo os costumes, o governo não podia tomar decisões sem saber a vontade dos deuses. Assim, desde tempos remotos os registros eram matéria de preocupação de sacer­ dotes, anotados anualmente, dando origem a um texto característico, segundo Cícero, como Crônicas Pontificiais, que em ordem cronológica registravam tanto os grandes eventos, como guerras, tratados, listas de governantes, como episódios de menor dimensão desde que en­ volvessem os sacerdotes, constituiram-se o fundamento de uma lite­ ratura específica, os Anais escritos sobretudo por muitos senadores ro-

19 JEAN MARIE ANDRÉ, ALAIN HUS. La historia en Rom a. op. cit. p. 9 -1 1. 20 apud JEAN MARIE ANDRÉ , ALAIN HUS. La historia en Roma. op. cit. "El conocimiento de la historia es necesario para el orador y el estadista". p. 209-18. 21 DONALD R. KELLEY. Faces o f History: historical inquiry from Herodotus to Herder, op. cit. p. 47.

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manos. Este formato literariamente tosco influenciou e moldou a es­ crita futura da história romana. Contrastando coma vertente herodotiana da historiografia grega, a romana consagra muito mais espaço à política, às questões de Estado. Entretanto, do ponto de vista de uma preocupação propriamente historiográfica, os grandes expoentes da historiografia romana [Júlio César (c. 100-44 a.C.), Salústio (86-35 a.C.), Tito Lívio (59 a.C.- 17 d.C.), Tácito (55?-117?) e Suetônio (75?150)] não se deram ao trabalho de cotejar o que produziam em relação aos seus pares. As referências, quando existem, possuem na maior parte das vezes o sabor de uma certa forma auto-promocional. Seus autores, de uma maneira geral, são também homens de ação, envolvidos direta ou indiretamente nos negócios públicos. Oferece­ ram, por assim dizer, uma perspectiva de história do ponto de vista daqueles que exercem ou estão muito próximos ao poder.2223 A partir do primeiro século da era cristã desponta entretan­ to a tradição historiográfica judaico-cristã que, para firmar-se fren­ te à historiografia pagã greco-romana empreende por intermédio de alguns de seus expoentes, comentários de caráter historiográfico. Neste contexto destaca-se, para a historiografia judaica, o histo­ riador Flávio Josefo (37?-97?) autor, entre outras obras, de Contra Apião, escrita provavelmente por volta do ano 95. O pretexto da obra é responder autores que detratavam a história judaica em fa­ vor da tradição greco-romana. O resultado final é a composição de um ensaio de caráter historiográfico com a finalidade de destacar a primazia da história judaica sobre a história pagã. Flávio Josefo as­ sinala desta forma a existência de uma nova história, diferente da tradição pagã greco-romana que viria exercer bastante influência na própria definição de uma identidade própria da historiografia cristã medieval inspirando de uma forma notável a visão agostiniana de história.2’ Deve-se notar neste sentido que o cristianismo emerge, no plano das idéias, fora dos parâmetros da cultura clássica greco-roma­ na. Nesta perspectiva pode ser considerado uma vertente das reli­ giões orientais, e dentre elas, especialmente a judaica. Entretanto os grandes escritores do cristianismo, alguns contemporâneos do impe­ rador Constantino, como é o caso de Eusébio de Cesaréia (260/265?337/341?) possuíam consciência da importância da existência de

22 MICHAEL GRANT. The Ancient Historians, op. cit. p.167 23 DONALD R. KELLEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Her­ der. op. cit. p.75-80. MIREILLE HADAS-LEBEL . Flavio Josefo: o judeu de Roma. Tradução de Paula Rosas. Rio de Janeiro: Imago , 1992. ( I a edição, 1989).

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uma monarquia centralizada, com um único idioma, como era o caso do Império Romano para a expansão de sua fé. A princípio, aquilo que veio a ser chamado de cristianismo, não passava de uma seita judaica com seus componentes de convic­ ção essenciais tais como a crença no advento do messias e na salvação do povo eleito. Coube a um dos seguidores de Cristo, Pau­ lo de Tarso, a transformação daquele conjunto de proposições de uma seita judaica para uma “religião universal”. É notável a transfor­ mação que se operou. Para os cristãos, segundo Paulo, o plano de Deus envolvia toda a humanidade, não cabendo qualquer distinção, tal como vemos, por exemplo, formulado na Epístola aos Romanos (10:12):"Porque não há diferença entre judeu e grego; porque um mesmo é o Senhor de todos...” e na Epístola aos Gaiatas (3:28) “Não há judeu, nem grego: não há servo, nem livre: não há macho, nem fêmea. Porque todos vós sois um..." sob o cristianismo. Os ensinamentos de Cristo não deve­ riam ser somente para a salvação dos judeus, porém de toda a h u ­ manidade. Caberia então, não aos judeus, como queria Flávio Josefo, mas aos cristãos, fundar uma nova história. Para tanto era necessário definir um espaço e uma identidade próprias que tinham o propósito de serem concebidas como universais, válido para todos os seres humanos. Evidentemente esta seria uma tarefa de gerações que à força de suas convicções, de sua persistência procuraria esta­ belecer um nexo entre a historiografia cristã e a fundação de uma história universal.24 Envolvia, pelo menos, um duplo esforço: distin­ guir a historiografia cristã da tradição considerada pagã, greco-romana, como também distingui-la da tradição judaica. O fato de a historiografia cristã reivindicar para si um caráter universal (katholike) colocava seus autores em rota de colisão com a tradição historiográfica clássica greco-romana e judaica pois tinham de provar a precedência das tradições cristãs sobre as demais. Assim, obrigavam-se a conhecer os argumentos, comparar e analisar outras tradi­ ções historiográficas fazendo com que seus especialistas fossem força­ dos de alguma forma a se debruçar sobre os autores clássicos e judai­ cos seja para encontrar neles justificativas de seus posicionamentos ou para contestá-los. Um dos principais problemas consistia sobre a forma como deveriam ser lidas e interpretadas as Sagradas Escrituras, literal­ mente ou dar-lhes um sentido alegórico. Em torno das questões de 24 Veja-se a este proposito: PAUL COSTELLO. World Historians and their goals. DeKalb: Northern Illinois University Press, 1994. p. 3-22. ARNALDO MOMI­ GLIANO. "The Origins of Universal History" in On pagans, jews, and Christians. op. cit. p. 31-57.

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precedência, cronologia e interpretação consolida-se ao longo de um grande intervalo de tempo a historiografia cristã medieval. Para a historiografia cristã tratava-se de situar a vida de Jesus Cristo na história judaica, de certa maneira "demonstrar" os nexos entre as profecias messiânicas contidas no Antigo Testamento e sua realização no Novo Testamento, mostrá-lo também nos quadros da antiguidade romana e sobretudo a ultrapassagem destes marcos fun­ dando uma historiografia própria, com uma periodização e historici­ dade específicas que se pretendiam universais. Uma das responsabilidades importantes na fundação desta nova história certamente envolvia a definição de uma nova tempora­ lidade, o estabelecimento de instrumentos de localização no espaço e sobretudo de periodização. Com esta preocupação, um conjunto de autores cristãos notabilizou-se nesta direção. Sextus Julius Africanus (1807-250?) foi autor de uma Chronographia na qual fazia um relato da história desde a criação a. m. (anno ab origine mundi) até o ano 221. Incluía em sua história uma crítica que pode ser considerada de caráter historiográfico orientada contra a tradição histórica judaica. No estabelecimento da nova corrente historiográfica teve um papel de destaque Orígenes (1857-253?) que mesmo não sendo um historiador, foi um erudito importante para a historiografia cristã. Foi reconhecido por seus contemporâneos e pelos estudiosos das gerações seguintes, especialmente por Eusébio, Jerônimo e Agostinho como um dos maiores estudiosos das Sagradas Escrituras, que além do domínio da cultura grega de seu tempo, era um profundo conhecedor do he­ braico e de vários ramos do conhecimento. Não admitiu a verdade li­ teral tanto do Antigo como do Novo Testamento e é notável em seu trabalho o esforço de converter os relatos bíblicos aos conhecimentos disponíveis na época. Muitos sermões sobre a possibilidade de conci­ liação entre a ciência e a religião possuem conteúdos que se encon­ tram na argumentação de Orígenes. Tinha a preocupação em obter do racionalismo que ele respeitava, a negação do ceticismo que lhe é ine­ rente em favor da fé que postulava. A fórmula que encontrou para conciliar Fé e Razão foi emprestar um sentido figurado, alegórico a muitas passagens das Sagradas Escrituras. Segundo Orígenes, "há um significado escondido e secreto em cada palavra isolada, estando es­ condido o tesouro da divina sabedoria em vasilhas vulgares e sem po­ lir as palavras, quando o próprio Apóstolo (Paulo) afirma: 'Possuímos este tesouro em vasilhas de barro’".25 Orígenes possuía conhecimento 25 Apud JAMES THOMSON SHOTWELL . Historia de la historia en el mundo antiguo. op. cit. p. 359.

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suficiente das Sagradas Escrituras para extrair delas o sentido que con­ siderava conveniente para suas interpretações. Foi este erudito que enfrentou na época um dos mais articulados ataques contra o cristia­ nismo que havia sido escrito por Celso (século ff d.C.) Discurso Verda­ deiro Contra os Cristãos, escrito por volta de 178 d.C..26 Escreveu Contra Celso por volta de 248. Retomava cada uma das acusações de Celso, co­ mentava-as e em seguida refutava-as. Demonstra que Celso possuía um conhecimento apenas superficial das Sagradas Escrituras. Quanto à acusação de Celso de que os cristãos possuíam uma fé cega, Orígenes responde que os pagãos também aceitam argumentos de autoridade: se existe Platão para os pagãos, existe Moisés para os crentes. Procura mostrar que a mesma fé que os cristãos possuem nas Sagradas Escri­ turas os gregos possuem sobre Tróia e os romanos sobre a fundação de sua cidade. Não há como provar, mas não há porque negar. Eusébio de Cesaréia (260/2657-337/341?) foi o autor de uma vasta obra dentre as quais se destaca a História Eclesiástica. Trata-se de uma apologia do cristianismo, num amplo painel no qual procura fi­ xar a cronologia cristã, a sucessão de bispos desde Cristo, e o que particularmente nos interessa, do ponto de vista da historiografia, o estabelecimento do cânone dos autores cristãos. Realiza o mesmo pro­ cedimento em relação aos heresiarcas. Assinala também por inter­ médio de sua longa argumentação que os hebreus não devem mais ser considerados o povo eleito e sim os cristãos. É notável em sua ar­ gumentação sobre a antiguidade e a preeminência do cristianismo face a todas outras religiões a inspiração em Flávio Josefo. Contem­ porâneo de Constammo, Eusébio e sua obra consagram uma nova fonte para a história que veicula, constituída nas Sagradas Escrituras. Foi também um dos autores responsáveis no estabelecimento dos nexos históricos e institucionais entre a história romana e o cristia­ nismo. Duas correntes historiográficas eram desta forma fundidas numa só: a "história sagrada" e a "história profana".27 Jerônimo (3477-420) procedeu da mesma forma em seus escritos que envolviam relatos históricos. Suas obras expressam, do ponto de vista do cristianismo, uma síntese dos conhecimentos da época. Foi capaz de incorporar a tradição clássica greco-romana e a judaica em favor da nova fé que se estabelecia. Deve-se a ele o texto

26 Há uma edição recente deste texto. Veja-se: CELSO - E l Discurso Verdadeiro contra los cristianos. Traducdón de Serafin Bodelón. Madrid: Alianza Editorial, 1988. 27 MICHAEL GRANT. The Ancient Historians, op. cit. p.343-57. DONALD R. KELLEY. Faces o f history: historical inquiry from Herodotus to Herder, op. cit. p. 85-9.

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(Ipapel do^ ™ rador q u e traz à tona materiais para que especialistas de outras areas, nerialmente das ciências sociais, os estudem. Para o autor a história sempre esteve ligada ao poder, cun prindo um papel de legitimadora da ordem estabelecida Desta orma considera que as crises do discurso histonco associam-se as fases de evolução das sociedades. Decorre deste suposto que « novo ^ c u rs o histórico, assim como os antigos, adapta-se ao poder e ; ” loeia oue prevalece num determinado momento. Para o autor, os oe S o ? e s dó poder não estão interessados em mudanças; segue-se àue discÓrso histórico da Nova His.ória precisantente acompanha este nuódu, ideológico. Os grandes tentas sobre mudanças ou sao simplesmente suprimidos ot, são relegados num segundo p ano. A Nova História preocupa-se com as permanências torna-se essencial mente etnográfica e cultural. Entretanto, segundo o autor a própria Nova1 mstória não está isenta de crises. No seio da Nova Historia e perceptível a existência de dois grupos distintos. Ha um conjunto de historiadores comprometidos com a eonstruçao de uma h^ton total como a propunha o grande patrono Fernand Braudel. Simultânea mente po ém existem os historiadores adeptos da historia em m ' para o autor torna-se possível distinguir o verdade.ro e o fal­ to na Nova História: os portadores de uma renovaçao do discurso histórico e da verdadeira Nova História sao os adeptos da historia 5 Torna se desta forma premente, em nome da própria historia, oue se Z p a com o "tem poLóvel" para que a disciplinapossa voln r a ser como efetivamente é, uma "ciência da mudança , tal como propunha Marc Bloch. Deve-se fazer renascer o "acontecimento

ó

^ “ ^ m d e S ^ D ^ s s e sobre a Nova História distin­ gue-se das demais em pelo menos dois aspectos: faz uma apreciaçao

319 FRANÇOIS DOSSE - Vhistoire en miettes. ftsA nnalesd la Nouvelle Histoire. op. cit.

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mais ampla e da uma atenção muito maior aos aspectos ideológicos envolvidos nesta tendência historiográfica. Questiona aquilo que in­ cansavelmente os integrantes da Nova História repetem, ou seja, que sao herdeiros dos Atmales, o que para o autor constitui um nexo du­ vidoso. Repete a periodização que os próprios integrantes da Nova Historia fazem de si mesmos, ou seja, a divisão em três gerações com características e tempos distintos. De maneira geral, o autor não questiona os Atmales, naquele intervalo em que esteve sob o controm