Heranças de Derrida (vol.2): Da linguagem à estética
 9788581280363

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Vol. 2 HERANÇAS DE DERRIDA DA LINGUAGEM À ESTÉTICA © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP. 21042-235 Rio de Janeiro RJ FONE [55 21] 3546 2838 [email protected] www.naueditora.com.br Projeto gráfico, capa e editoração: Mariana Lobo Revisão de texto: Miro Figueiredo, Andrea Leal Jardim e Renata Siqueira Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H459 v.2 Heranças de Derrida : da linguagem à estética [recurso eletrônico] / organização Rafael Haddock Lobo ... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2014 recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia

ISBN 978-85-8128-036-3 (recurso eletrônico) 1. Derrida, Jacques, 1930-2004 2. Filosofia moderna 3. Livros eletrônicos. I. I Colóquio Internacional Desconstrução, Linguagem e Alteridade (2011: Rio de Janeiro, RJ). II. Lobo, Rafael Haddock, 1975-. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da editora. Rio de Janeiro - 1ª edição: 2014 Vol. 2 HERANÇAS DE DERRIDA DA LINGUAGEM À ESTÉTICA RAFAEL HADDOCK-LOBO ∙ CARLA RODRIGUES ∙ ALICE SERRA GEORGIA AMITRANO ∙ FERNANDO RODRIGUES (ORGS.) ESCREVEM NESTE VOLUME: VLADIMIR SAFATLE FILIPE CEPPAS LUIZ FERNANDO MEDEIROS DE CARVALHO EVELYN GALIAZO GASPAR PAZ WALTER OMAR KOHAN ALEXANDRE GUIMARÃES FABIO AKCELRUD DURÃO

SUMÁRIO FAZER JUSTIÇA A FREUD: A PSICANÁLISE NA ANTESSALA DA GRAMATOLOGIA

VLADIMIR SAFATLE (USP) TALVEZ HAJA AMOR… DERRIDA E A FILOSOFIA FILIPE CEPPAS (FE/PPGF-UFRJ) A MALÍCIA DO VERSO LUIZ FERNANDO MEDEIROS DE CARVALHO (UFF) LENGUAJE Y MONSTRUOSIDAD. ASALTO ANTROPOGÉNICO Y MANIPULACIÓN CONCEPTUAL DE LA HUELLA EVELYN GALIAZO (UBA) TRAÇOS DERRIDIANOS QUE SE MESCLAM ENTRE AS LINGUAGENS ARTÍSTICA S GASPAR PAZ (USP/FAPESP) O APRENDER PELA FILOSOFIA. ENTRE SÓCRATES E PLATÃO: O PHÁRMAKON... E J. DERRIDA WALTER OMAR KOHAN (UERJ) LÉVINAS E DERRIDA LEITORES DE DESCARTES ALEXANDRE GUIMARÃES (UFU) ADORNO E DERRIDA: UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO FABIO AKCELRUD DURÃO (UNICAMP) FAZER JUSTIÇA A FREUD: A PSICANÁLISE NA ANTESSALA DA GRAMATOLOGIA ¹ VLADIMIR SAFATLE (USP) du kommst nicht zu dir elan I. O SONO ANTROPOLÓGICO NÃO PRODUZ SONHOS

Da gramatologia, Derrida diz que ela “não deve ser uma das ciências do homem, porque coloca de início, como sua questão própria, a questão do nome do homem ” (DERRIDA, 1967a, p. 124 [2008, p. 104]). Esta frase é altamente significativa, pois anuncia a “questão própria” da gramatologia, aquilo que determina o seu campo. Se uma reflexão do tipo gramatológica deve necessariamente colocar em questão o nome do homem, é porque, até agora, todo esforço para conceber as condições de possibilidade de uma objetividade em geral e de uma ciência capaz de satisfazer certas normas de validade encontrou necessariamente seu fundamento em certa antropologia. Trata-se de mostrar neste artigo que o programa crítico apresentado por Derrida pressupõe uma importante articulação com o pensamento de Sigmund Freud. Com efeito, o filósofo verá em Freud um grande interlocutor, a ponto de se questionar: “é inútil lembrar, primeiramente, que desde a Gramatologia (1965) e ‘Freud e a cena da escritura’ (1966) ² , todos os meus textos têm inscrito aquilo que chamarei sua implicação psicanalítica?” (DERRIDA, 1972a, p. 110 [2001, p.91]). Isso pode explicar por que, na Gramatologia, Derrida reconhece “um certo privilégio a uma pesquisa do tipo psicanalítico. Enquanto diz respeito à constituição originária da objetividade e do valor do objeto” (DERRIDA, 1966, p. 132 [2008, p. 110]) –, uma pesquisa que parece ter grandes chances de “desconstituir os conceitos-palavras fundadores da ontologia, de ser privilegiadamente” (idem, p. 35 [p. 26]) e, sobretudo, de homem. Tal como outros autores do pensamento francês contemporâneo, Derrida acredita que uma reflexão sobre as consequências filosóficas da prática psicanalítica poderia nos ajudar a sair do âmbito normativo e reificado das ciências do homem, âmbito ainda dependente dos “conceitos-palavras fundadores da ontologia”. No entanto, para Derrida, essa contribuição maior da psicanálise é ameaçada assim que se tenta, com Jacques Lacan, redefinir a clínica analítica a partir do estruturalismo. Sabemos que a Gramatologia se esforça em mostrar que as noções estruturalistas de signo e significante (entendidos como imagem acústica) são profundamente ligadas a uma “época históricometafísica” que se trata de ultrapassar. De fato, Derrida acredita que onde quer que seja feito o uso da noção de signo, encontraremos sempre um elo fundamental com a metafísica. Podemos dizer que para Derrida qualquer metafísica é uma metafísica do signo, sendo sempre uma redução da linguagem à dimensão do signo. Mas, se é preciso responder brevemente à complexa questão acerca do que Derrida entende por “signo”, talvez possamos simplesmente antecipar: o signo é um modo de presença das coisas. Donde a tese: “A metafísica ocidental, como limitação do sentido do ser no campo da presença, produz-se como a dominação de uma forma linguística [ligada ao império do signo]” (idem, p. 37 [p. 28]). É conhecida a definição clássica que vê no signo aquilo que representa alguma coisa para alguém. Tudo se passa como se Derrida nos lembrasse de que esta representação é, na verdade, a constituição do regime geral de visibilidade dos objetos, a constituição de uma forma “de presença em geral” (DERRIDA, 2003, p. 60 [1994, p. 64]) a partir das idealidades responsáveis pela produção do sentido. Esta forma geral é, por outro lado, a maneira através da qual “alguém” pode aparecer como fundamento para a

determinação de “alguma coisa”. Isso nos explicaria a razão pela qual a reflexão sobre o signo privilegia sempre a linguagem falada. Seja no estruturalismo, seja na fenomenologia, o signo é fundamentalmente o signo falado. Pois falar das coisas é necessariamente impor um domínio técnico sobre o objeto do qual eu falo. Falar das coisas significa colocá-las diante de mim, pô-las em uma espécie de espaço virtual do qual eu sou o fundamento. Neste sentido, a objetividade do objeto seria aquilo que, no objeto, submetese ao meu discurso, como se o meu discurso (que não é apenas o discurso de uma consciência empírica, mas o de um sujeito transcendental) fosse o meio de instituição da objetividade. Pois o discurso tira as coisas do aqui e agora para colocá-las em um espaço ideal de pura presença, que deixa de possuir a forma da mundaneidade. Nesse espaço, eu descubro que “minhas palavras são ‘vivas’, porque parece que elas não me deixam: não caem fora de mim, para fora de minha respiração, em um afastamento visível; não deixam de me pertencer, de estar à minha disposição, ‘sem acessório’” (idem, p. 85 [p. 86]). ³ Neste sentido, o “nome do homem” que a gramatologia quer colocar em questão designa este “alguém” capaz de fundar um modo de presença e de constituição da objetividade. Além dos atributos que normalmente determinam a humanidade do homem (como autonomia, autenticidade, unidade etc.), o “homem” que fala essa linguagem dos signos é, necessariamente, o nome de um modo de ser, o nome de um regime que constitui a presença dos objetos e da autoafecção. Esse homem pode procurar incessantemente seu fim, ele pode incessantemente tentar superar sua finitude ou fazer-se desaparecer, mas seus movimentos serão sempre dependentes desta linguagem da qual ele é o suporte. ⁴ Assim, para Derrida, nós não acordaríamos de um certo “sono antropológico” que assombrou o pensamento francês dos anos 1960, a não ser com a condição de que se aprenda a criticar a linguagem que protege esse sono contra a aurora de um para além do humanismo. Podemos identificar aqui o que constitui a peculiaridade de Derrida. Por um lado, parece que Derrida apenas retoma uma temática corriqueira ao pensamento francês dos anos 1960. Considerem-se, por exemplo, três livros publicados no decorrer dos anos 1966-1967: As palavras e as coisas, de Michel Foucault, Escritos, de Jacques Lacan, e a Gramatologia. É inegável que a problemática comum concernente às ciências do homem pareça ter êxito, ainda que essa problemática conduza a programas muito diferentes. Sendo assim, Lacan dirá: “não há ciência do homem, porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito” (LACAN, 1966, p. 859 [1998, p. 873]). Donde a ideia que: “o objeto da psicanálise não é o homem, mas aquilo que lhe falta” (LACAN, 2000, p. 211). Em um artigo, que foi um marco importante, Georges Canguilhem afirmaria quanto a ele: É inevitável que, ao se propor como teoria geral de conduta, a psicologia faça a sua própria ideia de homem. É preciso, portanto, permitir à filosofia questionar a psicologia sobre de onde ela tirou essa ideia e se não teria sido, no fundo, de alguma filosofia (CANGUILHEM, 2002, p. 367).

Tudo se passa como se Lacan tivesse entendido que esta ideia de homem no coração da psicologia fosse o núcleo de uma normatividade fundadora de uma “época histórico-metafísica”, para falar como Derrida. Época nomeada por Lacan de “era histórica do ‘eu’” (LACAN, 1966, p. 283), a qual a psicanálise desejaria superar. De sua parte, Foucault se perguntava se não seria necessário “renunciar a pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem – e o solo de possibilidade de todas as ciências do homem – na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem?” (FOUCAULT, 1966, p. 397 [2000, p. 535]). Uma renúncia que, para o Foucault arqueólogo das ciências humanas, já estaria em marcha na psicanálise e na etnologia. Pois a psicanálise e a etnologia eram os modelos de uma episteme por vir que já se anunciava, uma episteme liberada da figura normativa do homem, uma episteme das ciências do inconsciente “não porque atingem no homem o que está sob a sua consciência, mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência” (idem, p. 390 [pp. 524-525]). O inconsciente proveria, assim, o sistema estrutural das regras, normas e leis que determinam a “constituição originária da objetividade”. Ora, para Derrida, falta ao Lacan dos Escritos e ao Foucault das Palavras e as coisas uma compreensão mais clara do regime de linguagem pressuposto pelo inconsciente freudiano. Pode-se dizer que Derrida aceita a ideia lacaniana segundo a qual o inconsciente é estruturado como linguagem. Mas ele quer mostrar de que maneira, em Freud, esta linguagem que estrutura o inconsciente não se organiza segundo o modelo estruturalista, isto é, segundo o primado do significante, do discurso e da voz. ⁵ Ao contrário, Freud nos obrigaria a desenvolver um conceito de linguagem próximo do que Derrida tenta pensar na Gramatologia : um conceito de linguagem fundado na noção de “escritura psíquica”. Escritura presente nos sonhos e na memória, capaz de “tornar enigmático o que se julga conhecer pelo nome de escritura” (DERRIDA, 1967, p. 297 [2009, p. 293]); escritura capaz de sustentar o fundamento crítico do regime de presença e de autoafecção arraigado em nossa época histórico-metafísica, fundamento crítico disto que nos aparece como procedimento de “constituição originária da objetividade”. Assim, o recurso a Freud é decisivo para Derrida: ele lhe permite mostrar a estrutura de uma psique que não mais pode ser pensada sob a forma do homem, nem sob a forma da consciência, nem sob a forma do sujeito (termos que Derrida tende a sobrepor). Esta psique abre espaço para uma experiência do objeto que deixa de ser dependente da gramática da presença. Contudo, a fim de melhor compreender a aposta de Derrida, é antes necessário retornar às intenções daqueles que, numerosos nos anos 1960, viam no nome do homem o resultado mais visível da metafísica oculta no coração das ciências humanas. Isso permitirá que a peculiaridade de Derrida seja mais bem compreendida. II. FRANCÊS, AINDA UM ESFORÇO SE QUISERDES SER REPUBLICANO

Duas problemáticas mesclam-se intimamente no interior do debate francês da época: a do transcendental e a do inconsciente. O pensamento francês dos anos 1960 resulta, na verdade, de uma convergência de programas que têm em comum a vontade de liberar a reflexão transcendental dos limites de uma filosofia da consciência através do questionamento sobre o nome do homem. Isso exigiria, por um lado, a denúncia do psicologismo e do antropologismo presentes nos projetos classicamente transcendentais, ainda dependentes do âmbito das filosofias da consciência. A reflexão transcendental teria sido contaminada por uma “confusão entre o empírico e o transcendental”, em que “a análise pré-crítica do que é homem em sua essência vem da analítica de tudo que se pode conferir, em geral, à experiência do homem” (FOUCAULT, 1966, p. 352). ⁶ A crítica dessa confusão pode surgir, em Derrida, como uma necessidade de apagamento. Assim, ele escreve: “é preciso talvez pensar que o que descrevemos aqui como trabalho da escritura elimina a diferença transcendental entre origem do mundo e ‘estar-no-mundo’. Elimina-a produzindo-a” (DERRIDA, 1967, p. 315 [2009, p. 312]). Compreendemos que o trabalho da escritura apaga a diferença transcendental na medida em que expõe a confusão genética entre o ôntico e o ontológico. A escritura demonstra os pressupostos ônticos que determinam a forma da ontologia. Por outro lado, o esgotamento das filosofias da consciência conduz a uma reflexão sistemática acerca do inconsciente. Esse esgotamento dar-se-ia, na verdade, devido à sua incapacidade de dar conta do caráter fundador de uma dimensão propriamente inconsciente, capaz de determinar a forma do pensamento (há toda uma discussão a propósito do que devemos compreender aqui por “determinar” ⁷ ). Tudo se passa como se o comentário de Paul Ricœur a propósito do estruturalismo de Lévi-Strauss como “kantismo sem sujeito transcendental” fornecesse involuntariamente o código capaz de abrir o caminho pelo qual a filosofia francesa dos anos 1960 daria seus próximos passos. Este contexto explica por que é encontrada, na antes-sala do projeto gramatológico, uma renovação da interrogação transcendental através do recurso, dentre outros, a uma reconstrução filosófica do conceito freudiano de inconsciente. Alguns leitores de Derrida talvez se surpreendam com esta afirmação. Eles se recordarão da intenção de Derrida de “ esgotar seriamente a problemática ontológica e transcendental, atravessar paciente e rigorosamente a questão do sentido do ser, do ser do ente e da origem transcendental do mundo” (DERRIDA, 1966, p. 173 [2008, p. 61]). Mas não se pode esquecer que esse esgotamento foi realizado em vista da abertura para o que “comanda toda objetividade do objeto e toda relação de saber” (idem, p. 83 [p. 69]), isto é, para a “formação da forma” (idem, p. 92 [p. 77]). Ocorre a Derrida falar da meditação da escritura como uma “metarracionalidade” ou “metacientificidade” (idem, p. 130 [p. 109]). Sendo assim, tudo se passa como se o esgotamento de um determinado regime de questionamento transcendental pudesse e devesse abrir a via em direção a uma região capaz de indicar, ao mesmo tempo, um fundamento para a crítica da razão e de regimes de saber, e de fornecer um método de constituição dos objetos da experiência que deixam de depender das estruturas formais de síntese, unidade e identidade, inicialmente acessíveis

através da autoafecção da consciência de si. Região onde podemos encontrar “um campo transcendental autônomo do qual todo sujeito atual pode abster-se” (DERRIDA, 1999, p. 84). ⁸ Região em que podemos dizer: Transcendental seria a Diferença (...) Transcendental seria a certeza pura de um Pensamento que, não podendo se colocar em direção a um Telos que se anuncia já avançando sobre a Origem que indefinidamente se reserva, não aprendeu jamais que ele seria sempre por vir (idem, p. 171). Estamos, certamente, bastante longe da clássica definição do transcendental como o conjunto de determinações formais das condições de possibilidade de toda objetividade possível, isto é, das condições que permitem estabelecer o regime de validade de toda representação do objeto por uma consciência ideal. Se o transcendental aparece como a “Diferença”, se ele aparece como um campo do qual todo sujeito atual pode abster-se, é porque ele não mais permite a categorização e a constituição dos objetos da experiência a partir das estruturas formais presentes na autoafecção da consciência de si. A autoafecção da consciência de si não mais provê o princípio que permite a ligação ( Verbindung ) do diverso da intuição sensível nas representações do objeto. Este transcendental, que podemos derivar do projeto da gramatologia, poderia apenas abrir um regime de disseminação sem retorno ou, se quisermos nos servir de um termo de Derrida, um regime “de inquietude transcendental” (DERRIDA, 2003, p. 13) que fragiliza a identidade dos sujeitos e dos objetos. Dessa forma, Derrida pode defender que a vida psíquica é instaurada pela constituição de uma cena além de qualquer divisão entre sujeito (pois “o conceito de sujeito (consciente ou inconsciente) remete necessariamente para o de substância – e, portanto, de presença” (DERRIDA, 1967, p. 339 [2009, p. 336]) e objeto, entre proximidade e distância, entre significado e significante. Uma cena “que não se deixa ler a partir de nenhum código” (idem, p. 310 [p. 307]), pois ela é a manifestação absoluta da irredutibilidade de uma diferença que não mais poderá ser controlada pelos métodos de codificação. Para melhor compreender esta cena, faz-se necessário retornar a Freud. III. ESCREVER A MEMÓRIA Derrida disse querer compreender um dia “aquilo que da psicanálise se deixa dificilmente conter no fechamento logocêntrico” (idem, p. 296 [p. 293]). Com efeito, é o conceito de inconsciente que parece sair, por si só, de tal fechamento. Pois não se trata de dizer com a noção freudiana de inconsciente que este teria conteúdos intencionais expulsos da consciência através das operações de rememoração, de simbolização e de verbalização. O inconsciente não é uma espécie de depósito de conteúdos mentais recalcados e de pulsões não socializadas que seriam acessíveis à consciência apenas depois do processo analítico. Esta noção “vulgar” de inconsciente foi construída a partir do modelo de acontecimentos passados que estiveram presentes à consciência, mas que foram expulsos por conta da forte excitação que produziram. No entanto, Derrida diz que Freud apresentou algo radicalmente novo. Sua noção de inconsciente nos obriga a admitir que há conteúdos e processos

intencionais que não se submetem ao modelo da consciência; que há conteúdos e processos que não se deixam pensar a partir do regime de linguagem próprio à consciência. Por essa razão, são acontecimentos que jamais estiveram conscientes. A análise do inconsciente e de suas formações (sonhos, sintomas, atos falhos etc.) só é possível com a assunção de que elas implicam outro regime linguístico – um regime chamado, por Derrida, de “escritura psíquica”. Esta escritura permite que Derrida desenvolva uma reflexão acerca da peculiaridade do conceito freudiano de inconsciente, bem como sobre o modo com o qual o inconsciente freudiano se coloca para além do amálgama entre vida psíquica e metafísica da presença. Mas isto exige reconsiderar a temporalidade própria à vida psíquica. Desta maneira, Derrida vai levar em conta as considerações freudianas a respeito da memória com o intuito de mostrar como elas estabelecem um funcionamento da linguagem e da temporalidade muito próximo daquilo que a desconstrução descobre por sua conta. É por isso que Derrida pode escrever: “A memória não é, portanto, uma propriedade do psiquismo entre outras, é a própria essência do psiquismo” (idem, p. 299 [p.296]). Esta questão própria à temporalidade da vida psíquica é fundamental. Contrariamente à vida transcendental husserliana, Freud nos forneceria o modelo de vida capaz de reconhecer um “passado absoluto”, isto é, “um passado que não se pode mais compreender, na forma da presença modificada, como um presente passado” (DERRIDA, 1966, p. 97 [2008, p. 81]). Mas, como passado significou sempre presente-passado, são os conceitos de passado, presente e futuro que devem ser postos em questão. Vejamos isto mais de perto. Nós sabemos que Freud afirma: O que desejamos [ao fim do processo de análise] é uma imagem fiel dos anos esquecidos pelo paciente, imagem completa em todas as suas partes essenciais (FREUD, 1998, p. 270). Essa imagem fiel seria importante para revelar as conexões causais que transformaram acontecimentos aparentemente inofensivos em acontecimentos traumáticos, ou seja, em acontecimentos que não podem ser simbolizados nem integrados na consciência. Quando fala desses eventos traumáticos, Freud serve-se constantemente de uma linguagem fisicalista, falando de quantidades de excitação e de energia libidinal cujo controle pelo sujeito é impossível, já que esse não pode uni-las nas representações do objeto. Lembremo-nos, por exemplo, do que disse Freud a propósito desses acontecimentos traumáticos no caso d’ O homem dos lobos. Nesse caso canônico de neurose obsessiva, Freud acredita identificar uma cena originária ( Urszene) vista pelo paciente na idade de um ano e meio: a cena de seus pais fazendo amor três vezes como lobos, isto é, com sua mãe de quatro. Essa cena não pode ser simbolizada (pois ela é incompreensível para o bebê) e, no entanto, por conta do que mobiliza (respiração brusca, gemidos, aparência de violência etc.), ela produz uma quantidade de energia libidinal que não será ligada às representações nem será integrada senão a posteriori. Ela produz somente traços mnésicos fragmentados. Esses traços são constantemente reinscritos. Derrida poderá

então dizer que Freud nos mostra que “é preciso pensar a vida como rastro antes de determinar o ser como presença” (DERRIDA, 1967, p. 302). Não há nada na memória que seja o arquivo do acontecimento. Não há senão o rastro daquilo que nunca foi totalmente presente à consciência. De fato, o caráter traumático da cena é construído a posteriori. Ele resulta da associação entre a cena e os acontecimentos ulteriores (como ouvir uma história em que lobos comem crianças, a ameaça da castração anunciada quando o paciente excita-se vendo alguém limpar o chão de quatro etc.). Essa associação vai se manifestar no sonho angustiante que o paciente teve aos quatro anos, um sonho em que lobos observam-no em sua cama. Freud afirma que, nesse caso, a cena originária é ativada ( Aktivierung ); ela não é rememorada. A rememoração não virá senão na ocasião do relato do sonho feito pelo paciente na situação transferencial da análise. Existem, portanto, três momentos diferentes: o fato tal como ele se apresenta na idade de um ano e meio, com seus traços dispersos; a ativação traumática (feita através do sonho), que provê à percepção um contexto a posteriori de significação, e, por fim, a rememoração, quando o paciente tem 29 anos. Esta temporalidade retroativa é fundamental para mostrar de que maneira o trauma constitui-se pela repetição do acontecimento uma segunda vez. No entanto, é na dimensão onírica e fantasmática que este acontecimento se repete. Isto permite a Freud colocar em evidência a maneira propriamente psicanalítica de reconquistar o passado. Freud reconhece o limite do conceito de memória como arquivo. “O caminho que parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe” (FREUD, 1988, p. 279 [1969, p. 300]). Freud insiste, por exemplo, no fato de que as cenas originárias não são reproduzidas sob a forma da lembrança de algo que apareceu; elas são o resultado de uma “construção”, conceito que mostra a verdadeira natureza do que Freud compreende por rememoração. Através da temática da construção da memória, Freud mostra de que modo a rememoração deve ser entendida enquanto processo produtivo de composição. Faz-se aqui necessário recordar o discurso de um historiador da ciência: As lembranças não são imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado, e em perpétuo remanejamento, que nos dão um sentimento de continuidade, a sensação de existir no passado, no presente e no futuro (ROSENFIELD, 1994, p. 87). Esta afirmação aplica-se perfeitamente à perspectiva freudiana. De fato, Israel Rosenfield mostrou de que modo Freud reconheceu que as lembranças não são arquivadas como impressões de coisas, mas sim como traços e fragmentos. Deste modo, a atualização de uma lembrança nunca é a simples apresentação de um conteúdo anteriormente arquivado. Derrida insiste nisso: O texto consciente não é portanto uma transcrição, porque não houve que transpor, que transportar um texto presente noutro lugar sob a forma de inconsciência. Pois o valor de presença pode também, perigosamente, afetar

o conceito de inconsciente. Não há, portanto, verdade inconsciente para encontrar porque ela estaria escrita noutro lugar. Não existe texto escrito e presente noutro lugar que desse ocasião, sem ser por ele modificado, a um trabalho e a uma temporalização (pertencendo esta, se seguirmos a literalidade freudiana, à consciência) que lhe seriam exteriores e flutuariam na sua superfície (...). Sempre já, isto é, depósitos de um sentido que nunca esteve presente, cujo presente significado é sempre reconstituído mais tarde, nachträglich, posteriormente, suplementarmente (DERRIDA, 1967, p. 314 [2009, p. 310-311]). Assim, a memória é a perpétua atividade de interpretação de um texto que, assim como diz Derrida, nunca esteve presente. Quando atualiza fantasias e complexos, a rememoração abre espaço para as reinscrições singulares daquilo que foi inscrito como rastro . Podemos falar de “reinscrições singulares” porque aqui o problema não diz respeito ao retorno dos conteúdos mentais e das disposições intencionais recalcadas e presentes em “outra cena”, fora do campo da consciência. Ao contrário, não podemos “rememorar o passado”, a não ser com a condição de compreender de que modo o passado foi sempre habitado por uma multiplicidade transindividual de tempo e de acontecimentos. Para melhor compreender este ponto, é preciso lembrar-se de que o acontecimento só se torna traumático através da ativação fantasmática da cena originária. Isto implica sair da dimensão dos fatos presentes à consciência individual. Pois, para Freud, as fantasias são processos relacionados à filogênese da espécie. Elas são as marcas de acontecimentos transmitidos de geração em geração. Podemos dizer que não existem fantasias individuais; não há indivíduo no interior das fantasias; há apenas “fantasias coletivas”, processos transindividuais e supratemporais que perseveram no interior dos indivíduos. Através das fantasias, os sujeitos são aprisionados em camadas temporais que não se esgotam na experiência individual, camadas temporais que serão sempre opacas porque nos colocam diante da questão da significação do desejo daqueles que nos precederam. Que a rememoração seja fundamentalmente rememoração dos traços mnésicos reinscritos no interior da fantasia; eis o que não nos pode deixar indiferentes. Com isso em mente é que nós podemos dizer que o passado nunca foi um “presente passado”. Ele é a dimensão no interior da qual temos a experiência de sermos habitados por questões abertas, questões que vêm de um tempo virtual. Freud diz que não se vive nunca completamente no presente. A história do desejo do sujeito mostra que esta frase vale também para o passado (“O passado nunca esteve completamente presente”). Freud comparava o trabalho analítico de construção e rememoração ao trabalho da arqueologia. Entretanto, não dizia Hegel, por sua vez, que as ruínas não são as marcas de um “presente passado”, de uma época que foi presente, mas que deixou apenas traços, que as ruínas nos mostram, ao contrário, como, desde a origem, o tempo histórico seria habitado pela inquietude ( Unruhe) que fragiliza e destrói toda presença plena (HEGEL, 1962, p. 133)? É possível que esta intuição hegeliana seja muito próxima de certas utilizações dos conceitos de memória e rememoração em Freud. Estas

utilizações levam à reflexão freudiana para além dos limites de uma filosofia em que a memória é o processo fundamental de unificação da experiência temporal da consciência individual. Destas discussões, no lugar do homem como modo de presença emerge o conceito de uma psique que reescreve continuamente os traços sem cena de origem. Esta psique é atravessada pelos textos em disseminação contínua de sentido. Por outro lado, esta reflexão sobre a psique nos explica por que um transcendental liberado da figura da consciência tem todos os traços do inconsciente freudiano. Ela libera um transcendental composto por séries temporais múltiplas, que se atualizam ao tornarem frágil a identidade de sujeitos e objetos. Deste modo, o transcendental não é mais aquilo que determina as condições de possibilidade de qualquer experiência capaz de ser categorizada no espaço e no tempo. Ele é esta dimensão do pensamento, que nos mostra de que maneira toda experiência verdadeira parece nos colocar para além de uma temporalidade assombrada pela presença e pela origem, além de uma identidade fixa constituída a partir de critérios de identidade e de diferença das coisas no espaço. Mas talvez seja preciso assumir com Derrida que “para este mundo por vir e para o que nele terá feito tremer os valores de signo, de fala e de escritura, para aquilo que conduz aqui o nosso futuro anterior, ainda não existe epígrafe” (DERRIDA, 1966, p. 14 [2008, p. 6]). BIBLIOGRAFIA DO TEXTO Referências (tal qual indicadas no original) CANGUILHEM, Georges. Études d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie . Paris: Vrin, 2002. DELEUZE, Gilles. Logique du sens . Paris: Les éditions de Minuit, 1969. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs . Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 2000. DERRIDA, Jacques. De la grammatologie . Paris: Les éditions de Minuit, 1967a. _. L’Écriture et la Différence . Paris: Éditions du Seuil, 1967b. _. Positions . Paris: Les éditions de Minuit, 1972a. _. Marges de la philosophie . Paris: Les éditions de Minuit, 1972b. _. Introduction à l’origine de la géométrie. In: HUSSERL, E. L’Origine de la géometrie . 5. ed. Paris: PUF, 1999. _. La carte postale . Paris: Aubier-Flammmarion, 1980. _. La Voixet le Phénomène . 3. ed. Paris: PUF, 2003. FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses . Archéologie des sciences humaines. Paris: Gallimard, 1966.

FREUD, S. Construction dans l’analyse. In: Résultats, idées, problems I . Paris: PUF, 1998. GUCHET, Xavier. Pensée technique et philosophie transcendantale . Arquives de philosophie, 2003, 66-1, p. 119-144. HEGEL, F. Leçons sur la philosophie de l’histoire . Paris: Vrin, 1962. LACAN, Jacques. Écrits . Paris: Éditions du Seuil, 1966. _. Autres écrits . Paris: Éditions du Seuil, 2000. ROSENFIELD, Israel. L’invention de la mémoire . Paris: Flammarion, 1994. Referências das traduções brasileiras DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. São Paulo: Graal, 2009. _. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1994. DERRIDA, J . A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009 . _. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2008. _. Posições . Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. _. A voz e o fenômeno. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FREUD, Sigmund. Construções em análise. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. In: Obras Completas de Sigmund Freud . Volume. XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969. LACAN, J. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 1 Tradução de Ana Luiza Fay. Texto original publicado como Être juste avec Freud (in: MANIGLIER, Patrice (Org.). Le moment philosophique des années 1960 en France. Paris: PUF, 2011). Sempre que possível, a tradução localizou as referências aos textos nas edições brasileiras, indicadas entre colchetes. 2 Nos dois casos, Derrida está se referindo ao ano em que os livros foram escritos, o que produz uma discrepância em relação às referências bibliográficas, que se valem do ano de publicação. (N. do T.) 3 Assim, Derrida poderá dizer de Husserl: “o idealismo transcendental fenomenológico responde à necessidade de descrever a ob jetividade do ob jeto ( Gegenstand ) e a pre sença do presente ( Gegenwart ) – e a

objetividade na presença – a partir de uma ‘interioridade’, ou antes, de uma proximidade a si, de um próprio ( Eigenheit ) que não é um simples dentro , mas a íntima possibilidade da relação com um lá e com um fora, em geral” (idem, p. 21 [p. 30]). 4 Ver, como exemplo, “Os fins do homem”, Derrida (1972b [2001]). 5 Ao contrário, Lacan seria o responsável por uma “integração do falocentrismo freudiano em uma semiolinguística saussuriana fundamentalmente falocêntrica” (DERRIDA, 1980, p. 349). 6 Encontramos esse diagnóstico também em Deleuze. Ver Deleuze, 2000, pp. 176-177. 7 Sobre uma reflexão a propósito da noção de determinação e da relação entre o fundamento e o fundado, ver, sobretudo, o capítulo IV de Deleuze, 2000 [2009]. 8 Não é por acaso que se encontrará uma fórmula idêntica, alguns anos mais tarde, em Gilles Deleuze. Lembremo-nos de uma afirmação como: “Procuramos determinar um campo transcendental impessoal e préindividual, que não se parece com os campos empíricos correspondentes e que não se confunde, entretanto, com uma profundidade indiferenciada” (DELEUZE, 1969, p. 124 [1994, p. 105]). Por outro lado, podemos lembrar que também para Foucault trata-se de “refazer uma filosofia transcendental ao inscrever o transcendental em outro lugar que não seja a subjetividade, quer dizer, ao dissociar o problema das condições de saber e da experiência do problema das formas a priori da síntese subjetiva (GUCHET, 2003, p. 119). Essas similitudes demonstram que o que conhecemos por “filosofia pós-estruturalista” são, em larga medida, versões “heterodoxas” do questionamento transcendental. TALVEZ HAJA AMOR… DERRIDA E A FILOSOFIA FILIPE CEPPAS (FE / PPGF-UFRJ) O amor desse amor ao saber que é “a filosofia”, o que sabemos sobre ele? Por que o cultivamos? Ou, antes, por que o apego a essa “velha”, “originária” definição de filosofia? Em que medida nossa prática filosófica é, realmente, uma prática de amor ao saber? Que tipo de amor é esse? Trata-se de uma metáfora? E que espécie de saber é esse que nós amamos? Sabemos alguma coisa acerca desse objeto, o saber, com relação ao qual pressupomos poder estabelecer uma relação de amor? É preciso saber algo acerca desse “objeto”, do saber ele mesmo, para saber que tipo de relação amorosa é essa que supostamente estabelecemos com ele? Ou amamos o saber apesar de tudo aquilo que sabemos, como se o saber que amamos nunca estivesse aí para ser amado, como se amar o saber pressupusesse, paradoxalmente, o não saber como uma condição (e não somente uma origem provisória, como na perspectiva platônica do Banquete , por exemplo)? Esse é um texto de filosofia e sobre filosofia. Um texto de alguém que supostamente ama o saber e quer pensar sobre esse amor e sobre o objeto desse amor, o saber. Há duas ou três constatações importantes aqui, mais

imediatas ou evidentes: trata-se de um texto e nele pretende-se inscrever um pensar sobre amar o saber que deve ser, ele mesmo, enquanto pensar filosófico, um amor ao saber. Pode haver amor em um texto? Pode haver amor sem texto? Essa é a nossa dúvida inicial: talvez haja amor… Mas há também uma questão menos evidente, uma questão performativa: alguém, um texto, se afirma , se declara no âmbito da filosofia; ele passa a girar em direção a isso, que seria um “amor ao saber”, em um movimento sempre oblíquo, cheio de desvios e dissimulações (Por exemplo, ele pressupõe um interlocutor, o que já não é óbvio. Esse interlocutor é um cúmplice, uma testemunha dessa declaração de amor, o seu destinatário, um concorrente, ou tudo isso ao mesmo tempo?). Essa declaração de amor ao saber é muitas vezes tímida, envergonhada, sobretudo entre nós, nos trópicos, que somos sempre muito apaixonados, muito afetivos, mas que, diante da filosofia, para falar em nome dela, nos tornamos muito sérios, demasiadamente respeitosos. Entre nós, é de bom tom identificar-se com a figura do professor de filosofia, o que, no mais das vezes, esconde uma estranha falsa modéstia. Isto é, acha-se mais fácil, menos pretensioso, assumir a posição de alguém que professa a filosofia, que acredita poder ensinar o amor ao saber, ou como amar o saber, do que assumir a posição do filósofo, isto é, assumir, de modo talvez bem mais modesto, tateante, inseguro, apenas amar o saber, com toda a vacilação e os erros que o amor comporta. O tom professoral e a seriedade aparecem sempre como álibis para falar em nome desse amor ao saber que é a filosofia. É quase uma perversão, que nos lembra a triste e arquetípica figura de Emannuel Rath, do filme O Anjo Azul , de Josef von Sternberg. Mas, é claro, julgar a perversão, pretensão ou modéstia, nessa divisão entre filósofo e professor de filosofia, depende de nossas concepções e práticas de filosofia e de docência. Podemos (devemos) ampliar a dúvida, evidentemente, para além desse texto, para além de nossas concepções e práticas (levando em conta o caráter problemático desse “para além de”, uma vez que não saímos nunca de nossas concepções e práticas, e que falar em nome do amor ao saber “em geral” é entrar em um universo fantasmático que assombra nossas concepções e práticas): é possível que o amor esteja muitas vezes ausente da própria filosofia em geral; que muito do que se faz em seu nome, isto é, em nome do “amor ao saber”, não comporte nenhum amor. Esta seria uma hipótese razoável, que poderíamos identificar com aquela que Kant enuncia de modo taxativo, na Doutrina Transcendental do Método, de que “a filosofia” é “uma simples ideia de uma ciência possível que não está dada em parte alguma”. Kant afirma muitas coisas nesse parágrafo da Crítica . Primeiro, que “a filosofia”, o amor ao saber, é “o sistema de todo o conhecimento filosófico” e que este sistema é um arquétipo [ das Urbild , o protótipo ou modelo original], uma ideia de uma ciência possível. O amor ao saber seria, portanto, a ideia arquetípica do sistema de todo o conhecimento que poderíamos ter sobre o amor ao saber. Primeira questão: o que significa identificar o amor ao saber com o sistema de todo o conhecimento que poderíamos ter do amor ao saber? A definição da filosofia parece sofrer então uma total inversão, que, de resto, esteve sempre presente, desde Sócrates e Platão: de “amor ao saber” ela passa a ser um “saber sobre o amor”; um saber, sistemático e arquetípico, sobre o amor ao saber (ou do amor ao saber, com toda a ambiguidade que comporta essa contração “do”,

de “pertencendo a” e “a respeito de”). E Kant afirma, no mesmo passo, que este saber é possível e impossível: nós podemos, tanto quanto seja dado a seres humanos , alcançá-lo. Seria preciso, nos diz Kant, descobrir a “única senda” para igualar no arquétipo à cópia até então defeituosa, mas esta “senda” está sempre “bastante obstruída pela sensibilidade”. Fußsteig , senda, atalho, caminho estreito que apenas se percorre a pé. Aquilo que obstrui o acesso a esse atalho é a nossa sensibilidade. O atalho está literalmente muito obstruído, muito emaranhado ( sehr verwaschen ), pela sensibilidade ( durch Sinnlichkeit ). No mesmo parágrafo, Kant afirma que, até encontrarmos essa senda, esse atalho, podemos somente aprender a filosofar. Isto também parece razoável: podemos aprender a amar o saber, mesmo sem saber in concreto o que é esse amor em sua dimensão sistemática, arquetípica. “Amar se aprende amando.” Mas aquela promessa da descoberta do atalho emaranhado, o único pelo qual poderíamos nos aproximar do “saber arquetípico-sistemático do amor ao saber” (é assim, afinal, que Kant renomeia a filosofia, no seu sentido objetivo, no seu “conceito escolástico”, em sua “perfeição lógica”), não deixa de perturbar, de algum modo, nossa aprendizagem, nossa entrega, nosso amar o saber. Pois o que significa dizer que estamos amando, ou aprendendo a amar, se não sabemos que aquilo que sentimos é amor? É o fantasma de Sócrates que reaparece, aqui e sempre que falamos de aprendizagem: como aprender algo que já não se conhece? Somos forçados, portanto, a avançar uma hipótese que resume provisoriamente a questão: essa promessa, essa necessária suspensão de um saber sobre o amor, é a condição mesma para a entrega, para sentir, viver o amor. Vale dizer, seguindo o conceito kantiano de filosofia, aprender a filosofar pressupõe o desconhecimento do que seja a filosofia. Esquema banal, aplicado à própria filosofia, de uma hipótese sobre o aprendizado, à qual Sócrates se contrapõe no Teeteto : é porque não sei o que é a filosofia que me ponho a filosofar, a aprender a filosofar. A natureza paradoxal desta hipótese não é, verdadeiramente, nada banal. Ela implica que a filosofia pode estar totalmente ausente dela mesma: só podemos exercitá-la, amar o saber, sem que o amor ao saber esteja, de fato, presente. Esse paradoxo, com efeito, é essencial ao caráter de promessa da definição kantiana de filosofia, da possibilidade de um dia sabermos o que seja esse amor ao saber, de “igualarmos a cópia defeituosa no arquétipo”, nos termos de Kant, possibilidade de acesso à sua ideia arquetípica, porque, precisamente, mesmo que aí chegássemos, seria impossível evitar a dúvida sobre se a estamos sentindo . É a sensibilidade, afinal, que emaranha tudo! A dúvida quanto a este sentir , ou deste sentir, é constitutiva à promessa, ela a acompanha em todos os seus momentos. Ela é a condição mesma da promessa. Paradoxo constitutivo do amor, de todo amor, e não apenas do amor ao saber: apenas podemos ter certeza, uma certeza emaranhada, sensível, de que existe amor quando não paramos para pensar nele , quando a questão da certeza não se apresenta, quando nenhuma promessa é necessária. Amar não se aprende amando. Amar não se aprende. Não há nenhuma certeza que eu possa ter sobre o amor (e sobre a filosofia) que me ajude a amar (a aprender a filosofar). ¹

No coração deste paradoxo encontra-se uma estrutura ao mesmo tempo muito simples e complexa, já indicada no início desse texto, constitutiva de todo e qualquer texto ou escritura em um sentido amplo: o amor é sempre relação de alteridade, dirige-se sempre a um destinatário, um objeto-sujeito, com relação ao qual estamos sempre, invariavelmente, mais ou menos inseguros. O amor está sempre em relação com a (im)possibilidade da reciprocidade. Quem tem o direito de dizer “nós nos amamos”? Mas há uma origem do amor, outra performance amorosa, que não esta pressuposição? (DERRIDA, 1991). “Eu amo”, portanto, tem a pressuposição do “nós nos amamos” como origem. Lacan, como sabemos, é mais incisivo neste ponto: é o “nós nos amamos” ele mesmo que está na origem e não a sua pressuposição. A pressuposição é da ordem da representação e, como tal, pouco importante. Para Lacan, o amor é sempre recíproco, porque, paradoxalmente, o outro não existe enquanto tal, mas apenas enquanto o grande “Outro”, préconfiguração psíquica, inconsciente, simbólica e estrutural, independente de nossas representações, do nosso imaginário, que é sempre refém dessa estrutura simbólica. O chamado “amor platônico” o exemplificaria paradigmaticamente: minhas representações (tudo aquilo que, de modo desesperado, identifico como sendo o meu desejo não atendido, os motivos do meu próprio desespero, esse outro que não me ama, a eventual crueldade de sua indiferença etc.) são reféns do fato de que o outro corresponde sempre ao meu desejo porque ele nunca corresponde. É porque ele não corresponde que o meu desejo e o meu desespero só fazem aumentar. ² Há uma “mensagem”, o significante, o desejo inconsciente ele mesmo, que vai e volta sempre, indestrutível. Derrida, entretanto, questiona radicalmente essas duas premissas: a natureza simbólico-estrutural da constituição do inconsciente e a indestrutibilidade do significante que estaria na sua base, como garantia de que todos os nossos apelos devem poder encontrar sempre uma resposta nessa estrutura simbólica. Para Derrida, o que há sempre é apenas o envio e a possibilidade incerta, indecidível, da resposta. Nossa carta de amor, nossa declaração de amor, nosso texto filosófico pode ( não pode senão poder, o tempo todo ) rasgar-se, perder-se, extraviar-se, não encontrar o seu destinatário, o seu interlocutor, ou este pode recusá-la, recusar o “nós” do “nós nos amamos” de um modo que não se encontra prefigurado, que não se encontra dado em nenhuma estrutura preexistente. Essa recusa não está nunca presa apenas à lógica do signo, do significante emitido/recebido/não recebido, à lógica do espelhamento do “meu desejo”, nem tampouco na ilusão desse “nós” que pressupomos na origem da relação de amor. Talvez nunca saibamos ao certo quem e o que se recusa nessa recusa, e a possibilidade da recusa, ou do extravio, da perda é constitutiva de toda a pressuposição da correspondência, do “nós nos amamos”. O mesmo acontece com a filosofia já existente, as narrativas do “amor ao saber” que nos foram deixadas como herança, que Kant compara ainda a vermes , sistemas malformados por uma equívoca confluência de conceitos coletados, ou a ruínas sobre as quais deveríamos poder projetar uma

arquitetônica. ³ Duas fortes imagens para esse nosso ofício de amantes: a do coveiro de corpos em decomposição e a do arquiteto que precisa encontrar uma arquitetônica a partir das ruínas. E quem disse que estamos à altura dessas tarefas? Quem poderia amar essas tarefas, se reconhecer nessas tarefas ou reconhecer essas tarefas como um convite amoroso, um amor de cemitérios e ruínas , de destinação incerta, destinerrância , repleto de assombrações, de fantasmas? Esse limite da morte como o horizonte do amor o encontramos também, por exemplo, em Políticas da amizade , quando Derrida explora a concepção aristotélica do amor: Se fôssemos fiéis aqui às categorias de sujeito e objeto, diríamos nesta lógica que a amizade ( philia ) é acessível ao seu sujeito, que pensa e vive, não ao seu objeto, que pode ser amado ou amável sem se relacionar de nenhuma maneira com o sentimento do qual ele é precisamente o objeto. E se dizemos “pensar e viver”, é porque (…) a vida, o sopro, a alma se encontram sempre e necessariamente do lado do amante ou do amar, enquanto o ser amado do amável pode ser sem vida, ele pode pertencer ao reino do não vivo, do não psíquico ou do “sem alma” ( en apsùkhô [ Ética a Eudemo , 1237a 35-40]) . Não se pode amar sem viver e sem saber que se ama, mas pode-se ainda amar o morto ou inanimado que, portanto, nada sabe. É mesmo frente à possibilidade de amar o morto que uma certa amância vem a se decidir (DERRIDA, 1994, p. 26-27). ⁴ Quando morre um filósofo, costuma-se dizer que ele dedicou toda sua vida à filosofia, a amar o saber. Impossível, dir-se-ia, não reconhecer aqui algum tipo de amor e, em maior ou menor medida, tudo o que o amor (e de um modo que só ele) parece implicar: abnegação, entrega, desejo, encontros, desespero, prazeres, desilusões. Mas dizer isso é não dizer nada, é não saber nada sobre esse amor: a quem ele estava destinado? A nós, que o reconhecemos? Somos nós os seus destinatários? E somos capazes de responder a ele? Em que medida esse amor, para estar vivo, necessita de nossa resposta, da reciprocidade, de uma partilha , de nossa correspondência, ela também amorosa? Em uma passagem do filme realizado por Amy Koffman e Kirb Dick, Derrida é surpreendido pelo convite para falar do amor. Ele responde não ser capaz de improvisar sobre “o amor em geral”. Amy Koffman insiste sobre a importância do amor para a filosofia e Derrida reage dizendo que esse tema apenas lhe desperta clichês, mas procura, afinal, improvisar alguma coisa a partir da distinção entre o que ( quoi ) e quem ( qui ). O amor é amor por alguém ( de quelqu’un ) ou por alguma coisa ( de quelque chose )? (…) Amo alguém pela singularidade absoluta que esse alguém é (…), ou amo antes suas qualidades: sua beleza, sua inteligência…? (…) A primeira questão da filosofia é “o que é o ser”, ti es ti . A filosofia começou pela questão a respeito da essência da vida. (…) a questão do ser divide-se, aqui, já, entre o que e quem. A metafísica e o amor estão marcados por uma indecidibilidade entre quem e o que, o ser como a propriedade mais geral, universal, dos entes, dos particulares, como uma não propriedade, como “a singularidade absoluta” para além dos particulares e das propriedades. O que significa dizer que a filosofia pensada como questão do ser está dividida entre uma singularidade

absoluta e as propriedades? As propriedades são aquilo que acreditamos compartilhável, transferível etc. As propriedades são “qualidades móveis” (mesmo aquelas tidas como eternas e imutáveis), que fazem do amor uma coisa vacilante, instável; responsáveis por sua destruição: “eu acreditava que você fosse x ou y, mas agora vejo que você não é nada disso.” Ora, essa destruição é a condição mesma para o surgimento de uma singularidade absoluta, o “quem” para além de todo “o que”. Mas seria possível amar alguém independentemente de que ele seja isso ou aquilo? É possível pensar uma singularidade absoluta? É possível amar uma singularidade absoluta? E toda filosofia, todo amor ao saber, não seria ele senão essa expectativa de um encontro com uma singularidade absoluta, para além (ou na dinâmica) de todo o narcisismo que se esconde nos malabarismos da inteligência, na satisfação por se acreditar digno das alturas de um pensamento, de ver-se no papel de seu porta-voz privilegiado? Como pensar essa partilha ? O que ou quem se com-partilha ? Seja como for, partilhar o amor, partilhar a filosofia é fazer revivê-la , é a sua sobrevida , uma sobrevivência do amor. Pensando a amizade, Derrida explora dois aspectos dessa sobrevivência: a morte do amigo “carrega” minha própria morte e implica uma temporalidade paradoxal. Se a philia vive, e se ela vive no extremo de sua possibilidade, ela vive então, ela devém psíquica, desde este recurso do sobreviver. Esta philia , esta psukhé entre amigos sobre-vive . Ela não pode sobreviver a si mesma como ato, mas ela pode sobreviver a seu objeto, ela pode amar o inanimado. Ela precipita-se também, desde o limiar deste ato, em direção à possibilidade que o amado esteja morto. Há aqui uma dissimetria primeira e irredutível. Mas a mesma dissimetria se partilha , de alguma maneira, em uma topologia irrepresentável; ela dobra-se, revira-se [ se retourne ] e se desdobra ao mesmo tempo na hipótese da amizade partilhada , aquela que se diz tranquilamente recíproca. Eu só sobrevivo ao amigo, só posso ou devo sobreviver a ele na medida em que ele carrega minha morte e a herda como o último sobrevivente. Ele carrega minha própria morte e, de uma certa maneira, ele é o único a carregá-la, esta minha própria morte assim, desde o início expropriada (DERRIDA, 1994, p. 30). Sobreviver é, portanto, ao mesmo tempo, a essência, a origem e a possibilidade, a condição de possibilidade da amizade, é o ato enlutado do amante. Este tempo do sobreviver dá assim o tempo da amizade. Mas um tal tempo se dá ao se retirar. Ele só chega se apagando . Ele se livra e se substrai duas vezes e segundo duas modalidades, como veremos, em dois tempos tanto incompatíveis quanto indissociáveis: a firme ou estável constância de uma parte e, de outra parte, o recomeço, a re-novação , a repetição indefinida do instante inaugural, sempre novamente, de novo, o novo na reiteração (DERRIDA, 1994, p. 31). É preciso pensar essas ideias para além de toda a metaforicidade. O amor, como já o disse de inúmeras maneiras Derrida, reativa todos os paradoxos da presença. O amor não seria, precisamente, um outro nome para o rastro? …o rastro que chega apenas para apagar a si mesmo / que chega apenas apagando-se a si mesmo [ou porque apaga-se a si mesmo], além da

alternativa da presença e da ausência. Saber isso não é somente difícil, é impossível, e certamente não porque sempre há mais para saber, mas porque isso não é da ordem do saber (DERRIDA, 1991). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DERRIDA, Jacques. Pour amour à Lacan. In: Lacan avec les philosophes . Paris: Albain Michel, 1991. _. Politiques de l’Amitié , Paris: Editions Galilée, 1994. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura . Trad. de Valério Rohden e Udo Baldur. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Col. Os Pensadores). 1 Essa concepção parece oposta àquela de Aristóteles, que Derrida analisa em Politiques de l'amitié (a qual voltaremos mais adiante), onde o amar da amizade ( philia ) pressupõe sabê-lo, sempre desde uma perspectiva da superioridade da atividade sobre a passividade. Mas a distinção a que fomos levados, entre uma certeza emaranhada do sentir e a promessa vacilante, reflexiva, do amor talvez possa ser pensada sob o mesmo registro da distinção entre atividade e passividade. "Il est possible d'être aimé (voix passive) sans le savoir, mais il est impossible d'aimer (voix active) sans le savoir. La science ou la conscience de soi se sait a priori comprise, comprise et engagée dans l'amitié de qui aime, à savoir dans l'ami, mais elle ne l'est plus ou ne l'est pas encore du côté de qui est aimé. L'ami, c'est celui qui aime avant d'être celui qu'on aime: celui qui aime avant d'être l'être-aimé, et peut-être (mais c'est autre chose, même si la conséquence est bonne) celui qui aime avant d'être aimé" (DERRIDA, 1994, p. 25). 2 O não responder como correspondência, nesse esquema aqui quase meramente anedótico, implica três questões centrais da psicanálise, igualmente indispensáveis para pensar o amor: a diferença sexual, a escolha do objeto e a repetição, isto é, a pulsão de morte. 3 "Qual vermes, os sistemas [do conhecimento humano, a filosofia aí incluída] parecem ter sido formados, inicialmente de forma mutilada e com o tempo completamente, por uma generatio aequivoca a partir da simples confluência de conceitos coletados. Apesar disso, todos possuíam, como um germe originário, o seu esquema na razão, a qual simplesmente se desenvolve. Consequentemente, não só cada sistema está por si articulado segundo uma ideia, mas também todos estão por sua vez unidos finalisticamente entre si, como membros de um todo, em um sistema do conhecimento humano; isto admite, pois, uma arquitetônica de todo o saber humano que nos tempos de hoje, em que ou já se coligiu material suficiente ou é possível obtê-lo das ruínas dos velhos edifícios desmoronados, não só seria possível, mas também não se revelaria tão difícil assim" (KANT, p. 236). 4 Sobre o neologismo "amância": "Il a au moins la figure de l'autre. La nécessaire conséquence de cette étrange configuration donne à penser. Audelà de toute frontière ultérieure entre l'amour et l'amitié, mais aussi entre la voix passive et la voix active, entre l'aimer ou l'être-aimé, il y va de l' aimance . [Nota: dans le séminaire dont je m'inspire ici, j'avais cru ce mot d

'aimance indispensable pour nommer une troisième ou première voix, dite moyenne, au-delà ou en deçà de l'aimer (d'amitié ou d'amour), de l'activité et de la passivité, de la décision et de la passion" (DERRIDA, 1994, p. 23). MALÍCIA DO VERSO LUIZ FERNANDO MEDEIROS DE CARVALHO (UFF) Em seu ensaio Demeure , Derrida (1996, pp. 21-23) discorre sobre as várias concepções de paixão, incluindo a noção de literatura. Um termo que faz sua entrada no século XIX e percorre vários enfrentamentos por uma trajetória que vai suscitando inúmeras transformações. O que se nota de início é o destaque feito pelo filósofo para o aspecto transitório, o caráter de passagem que o termo suscita ou que ganhou no seu tratamento. Tratar de literatura para o filósofo implica acompanhar um percurso de algo que se desloca, uma passagem que ele chama de paixão. Uma passagem que se despede do seu rastro ao mesmo tempo em que acrescenta: Paixão conota a problemática de um limite indeterminável ou indecidível, quando alguma coisa, algum X, por exemplo a literatura, deve sofrer tudo ou suportar, experimentar de tudo precisamente porque ela não é ela mesma, não tem essência, mas somente funções. Eis a hipótese que gostaria de colocar à prova e submeter à discussão. Não há essência nem substância da literatura: a literatura não é, ela não existe, ela não se abriga em uma morada, em uma identidade de natureza ou mesmo de um ser histórico idêntico a si próprio. Ela não se mantém em sua morada, se ao menos morada designa a estabilidade essencial de um lugar (DERRIDA, 1996, p. 22). ¹ O filósofo Lyotard chamava a atenção para o ato de escrever como uma peregrinação no deserto, uma experiência de suscitar ou estar disponível para o tempo em sua vinda, o tempo como chegante. Peregrinar no deserto implica para ele não o acúmulo de bagagem para receber o inesperado, mas caminhar com o mínimo para interagir com o ambiente que se descortina. Não querer antecipar com o conhecimento acumulado o que ainda está por chegar, e ser disponível à escuta do descortinável que ainda se indetermina ou se inomina. Derrida chama essa travessia pelo deserto de uma experiência de paixão. Sair da terra estabelecida, sair do lugar estatuído e se aventurar pelo chegante do tempo em sua vinda. Essa aventura implica perda de referências, perda do sulco trilhado no caminho, apagamento do rastro. Então escrever é, ao mesmo tempo, passar e destratar o que se vinculou pelo fio do traço. Um avançar que se consome na sua transformação. Fogo e cinza. Foi sempre esse movimento que fascinou o filósofo ao escrever sobre literatura. Não a fixação em uma solidez de arcabouço conceitual, em um território dominado, em uma construção sólida em torno da qual se avizinha do desconhecido. Mas uma construção que se aproxima pela habitação já intuída e pressentida do vizinho na sua estrangeiridade ofertante. Um passo mais e sempre algo fica para trás. E o risco é mesmo a natureza da construção. Um riscado do improvável. Assim o filósofo viu a poesia. Assim escreveu sobre poesia desde sua interpretação de Jabès até a resposta para a revista em Che cos’è poesia ? (DERRIDA, 1992). A poesia é passagem

arriscada que na modernidade se traduz por estrada vertiginosa, On the road , com o movimento de um ser vivo que se arrisca a perder a vida enquanto passa. Essa passagem implica perda da marca na medida em que se está diante do “inantecipado” de uma experiência e da sobrecarga de determinações desse contato com o diferente. Esse contato não é de reconhecimento com o mesmo, mas de entrega ao que pode alterar, em uma hospitalidade arriscada que não tem retorno, e, portanto, não convida à recolecção, ao repatriamento, ao retorno ao lugar estável. O traço não é nada, é trapo, é tão somente essa paisagem desolada de configuração, mas instituidora de um percorrer na direção da promessa como excesso, diante daquilo que vem. Nesse sentido, a poesia se encontra na nulificação da prece, na pura emanação de um encontro com ninguém – para ficar com Paul Celan. A poesia é retrait . Retraço no sentido de retirada que sai de sua bagagem constituinte. E nisso ela é fantasma irrestituível. Ela retraça a retirada de si mesma. Essa componente para além do ser institui a substituição de sua carcaça. Nessa modalidade configura-se como aparição que se desfaz de sua corporeidade quase nula. O fantasma está aqui e agora, mas despido de sua roupagem de outrora. Ele é descarnado em relação ao seu início corpóreo. Ele mantém uma relação descarnada com sua corporeidade e dessa oscilação nutre-se o seu flutuar. Assim quase sempre é o cinema, assim pensa cinema Fellini, quando mostra o erótico na visão do personagem Snáporaz, que vê as mulheres como fantasmas flutuantes. Cinema e poesia aproximam-se por essa desvisão da coisa vista. A coisa vista é só transformação, tendo em vista o por vir. A poesia tem sede do que ultrapassa o inscrito pela mão. Eros está mais além, na nervura de sua ultrapassagem. É por isso que o fantasma não encontra mais a sua residência em um lugar primitivo, primeiro; ele não fala mais a partir desse primado do locus , ele destrata a si mesmo na sua migração. Desta forma, pode-se acompanhar o que diz Derrida acerca da literatura: “O que se chama poesia ou literatura, a arte mesma [...] ou, dito de outro modo, certa experiência da língua, da marca ou do traço como tais , só pode advir enquanto uma intensa familiaridade com a inelutável originariedade do espectro” (DERRIDA, 1992, p. 165). Por originariedade, entende-se a perda da origem, um desfazimento do vínculo com a raiz da forma e da inserção em uma temporalidade pretérita. O retorno é visitação fantasmal, é memória de cego, recriação para dar mais vitalidade ao passar do tempo na sua dimensão de fort/da , ou seja, transformação, teatro de espectros. Assim é a memória, o cinema, a poesia: linguagem de espectros formadores de outra visão para além do perceptível ou encontrado. O pertencimento a essa terra nenhuma é o paradoxo da inscrição em uma nova terra, o poema que se faz. Em Heidegger ainda haveria o movimento de resgatar, restituir uma voz de fundo, heimlich , íntima a uma cultura, a um povo restituído ao seu tonus , à sua tonalidade prístina. Embora tenha afirmado e aberto a possibilidade de se ver na arte a dobra ontológica, a importância da clareira para as coisas que a arte doa, mesmo assim ainda ressoa o apelo da terra e sua historicidade destinal nos seus comentários à poesia de Trakl. A propósito de Trakl, Derrida afirma que Heidegger reconhece o caráter plurívoco da

língua poética, mas com a condição de que esta plurivocidade deva se reunificar em uma univocidade superior. Em sua primeira resposta às perguntas formuladas por Maurízio Ferraris, Derrida compara a sua concepção do poemático construída no texto Che cos’è poesia? a afirmações de Heidegger em vários contextos de sua obra: Eu não sustento um discurso em favor do Witz. Mas o escrito-herisson vincula o aleatório à essência do poemático, não somente o aleatório da língua ou da nomeação, mas o aleatório da marca, e é isto que o vocaciona a um aprender de cor, cuja letra não é de forma nenhuma nominal, discursiva ou linguística (DERRIDA, 1992, p. 315). Derrida comenta nessa entrevista sua concepção de poemático em relação confrontativa com o que pensa Heidegger sobre a obra de arte como mis-enoeuvre da verdade, uma verdade que institui a obra para além da imaginação e da literatura. Derrida confronta aqui a sua concepção disseminante da marca aleatória do poema. O poema não é só retorno, volta; ele também sucede, e o seu suceder é errante em relação a algum programa destinal, é destinerrante. Mas antes de Heidegger, Derrida confronta sua concepção de herrisson com a de Schlegel quando se refere à noção de fragmento: “Semelhante a uma pequena obra de arte, um fragmento deve ser totalmente destacado do mundo em torno. E fechado sobre si mesmo como um ouriço.” Lacoue-Labarthe e Nancy, em sua obra O absoluto literário (teoria da literatura do romantismo alemão) , sublinham a lógica da coesão coerente que comanda este conceito de fragmento. Derrida introduz um comentário a esse endosso de Lacoue-Labarthe e Nancy à concepção de Schlegel: Suas proposições me fazem ainda melhor compreender porque sempre guardei reservas com relação a um certo culto do fragmento e principalmente da obra fragmentária que vem carregada de uma estratégia de autoridade e de totalidade monumental (DERRIDA, 1992, p. 311). Ainda comentando Lacoue-Labarthe e Nancy, Derrida suspende neles a crença nessa lógica do ouriço e os cita: A totalidade fragmentária, conformemente àquilo que se arriscaria chamar a lógica do ouriço, não pode ser situada em nenhum ponto: ela é simultaneamente no todo e em cada parte. Cada fragmento vale por si mesmo e por aquilo do qual se destaca. A totalidade é o fragmento, ele próprio na sua individualidade acabada (DERRIDA, 1992, p. 312). Foi preciso ter citado Lacoue-Labarthe em seus comentários sobre a concepção de Schlegel para compreender o novo ouriço proposto por Derrida. Esse ouriço salva a sua vinda, espera ainda, não está inserido em um plano de destinação historial. Para poder situar esse ouriço em face do modo como Heidegger se apropria da concepção do poético, Derrida precisou recuperar uma genealogia de ouriços: Tendo em vista este ouriço [de Schlegel] e do que ele configura (obra, individualidade orgânica, fragmento total, poesia), aquilo que me foi dado à travessia deste envio ou letra (“Che cos’è poesia?”) parece bem solitário e

sem família; ele não tem a mesma genealogia. Ele não pertence à espécie ou gênero, à generalidade da gens ouriço. Em princípio porque, indissoluvelmente ligado ao aleatório de uma língua e de significantes que desempenham o papel de nome próprio passageiro (inicialmente istrice e depois sua tradução frágil em ouriço), vindo ao ser por um envio ou letra, este ouriço catacrético é quase um nome, não carrega seu nome, ele brinca com suas sílabas, mas não é um conceito nem uma coisa. Enquanto poemático e não poético, ele permanece profundamente estrangeiro à obra e à mis-en-oeuvre da verdade [como pensa Heidegger]. Humilde e perto da terra, ele somente pode expor-se ao acidente procurando salvar-se, sobretudo salvar-se de seu nome e salvar sua vida. Ele não mantém nenhuma relação consigo mesmo – no sentido de uma individualização totalizante – que não o exponha previamente à morte e a ser apropriado (DERRIDA, 1992, p. 312). Maurizio Ferraris (DERRIDA, 1992, p. 310) salienta que Heidegger rebaixa a estética e argumenta que seu discurso em A origem da obra de arte ainda se prende ao idealismo alemão. Derrida estabelece um contraponto com Heidegger diferenciando o seu ouriço poemático da concepção de poíesis . A crítica de Ferraris é muito séria porque articula a concepção de poesia em Heidegger ao seu projeto ético-político. Por enquanto, assinalemos a crítica de Ferraris ao movimento que em Heidegger se desfaz da estética para centrar-se na noção de aletheia como clareira propiciadora de um desdobrar da coisa ôntica, mas que se afasta de qualquer configuração que abandone a configuração séria a que se destina a poesia na perspectiva da instituição ( mis-en-oeuvre ) da verdade. Para Heidegger, na leitura de Ferraris e de certo modo endossado por Derrida, a poesia não se afasta de um centro lógico (do logos), uma vez que busca a reunificação ( versammlung) . Neste ponto Derrida se diferencia de Heidegger na medida em que é hospitaleiro ao aleatório da letra poemática. Esta hospitalidade implica sair da morada, caminhar no deserto, conviver com cinzas, ruínas e ausência de significação destinal para a poesia. O ser constructo poemático desconstrói assim o ensaio A origem da obra de arte, de Heidegger. Desta forma, Maurízio Ferraris interrogou Derrida: Em A origem da obra de arte , e através da ideia de obra como mis-enoeuvre-de-la-vérité , Heidegger acentua o lado sério da poesia, colocando-a ao abrigo da irresponsabilidade característica da literatura e da imaginação: ‘Mas o Poema não é qualquer vagabundagem do espírito inventando aqui e ali aquilo que lhe agrada; não é um deixar ir da representação e da imaginação atingindo o irreal [...]. É somente a partir de um olhar essencial sobre a essência da obra de arte e sua relação com a chegada da verdade do ente que se pode perguntar se a essência do Poema – e isto quer dizer, ao mesmo tempo, do projeto – pode ser pensado com uma abertura suficiente quando se a faz derivar da imaginação em seus diversos graus de intensidade (DERRIDA, 1992, p. 310). Derrida responde a Ferraris enfatizando a diferença de sua concepção de poema:

Tratar-se-ia então de subtrair o que eu chamo de poema (ou poiemata) ao controle ou círculo que o reconduz circularmente ao poíen , à sua fonte poética, ao ato ou à experiência de sua mis-en-oeuvre na poesia ou no poético. Ao se dissociar o poemático do poético, subtrai-se dele, fazendo justiça à experiência em curso, através da qual ele, o poema, subtrai-se ao projeto da mis-en-oeuvre , da poíesis , tradição na qual se inscreve, eu creio, A origem da obra de arte . Mas não devo sobrecarregar de significação esta carta sobre a letra como ouriço: ela deve permanecer elíptica, quase séria também, poemática sob vários ângulos, ao modo do poema de quem ela se alimenta, ou se constitui, ou seja, cega (como se diz deste ouriço que se chama Homero), privada de sentido e de responsabilidade. Se se considera a interpretação do poema como mis-en-oeuvre-de-la-vérité , se se julga irredutível a possibilidade de certo aleatório na letra que expõe o ouriço à catástrofe, de alguma forma fica comprometido o motivo da reunificação ( versammlung ). Quer se trate de Schlegel ou Heidegger, tratase sempre desta reunificação, deste “serum” consigo mesmo, em todas as histórias de ouriços, de individualidade indivisível ou de ser sempre já consigo mesmo, desde a origem ou à chegada de alguma interpretação (DERRIDA, 1992, p. 314). Este é o ponto central da argumentação de Derrida: não há indivisibilidade da marca, o poema se desfaz na sua singularidade itinerante. Enquanto poema, ele retorna em verso, mas não se repete, sempre reitera, ou seja, avança, sucede. Reiterar não é repetir, reiterar abriga a raiz iter , mostrador de sua passagem. Depois desta entrevista concedida a Maurízio Ferraris, pode-se retornar ao texto sobre poesia para mais uma leitura: Tu chamarás a partir de então poema uma certa paixão da marca singular, a assinatura que repete sua dispersão, a cada vez para além do logos, “ahumano”, mal domesticado, nem reapropriável pela família da subjetividade: um animal convertido, rolado em bola, voltado para o outro e para si, uma coisa em suma modesta, discreta, muito próxima da terra, a humildade que tu atribuis, portando-te assim no nome além do nome, um ouriço catacrético, todas as flechas para fora, quando este cego sem idade ouve mas não vê vir a morte. O poema pode rolar em bola, mas é ainda para voltar seus signos agudos em direção ao fora. Ele pode certamente refletir a língua ou a poesia, mas ele não se refere jamais a si próprio, ele não se move jamais por ele mesmo como estas maquinarias de morte. Seu acontecimento interrompe sempre o saber absoluto, o ser dentro de si, na sua autotelia. Este ‘demônio do coração’ jamais se reunifica, ele se distrata, se separa, se esgarça sobretudo (delira ou enlouquece), expõe-se à sorte, ele se deixaria recortar sobretudo por aquilo que vem até ele (DERRIDA, 1992, p. 307). Um poema, então, passa a ser o écran imaginário dessa operação de divisibilidade incessante, sem possibilidade de restituição. I. O DEVENIR ANIMAL DO POEMA

Um filósofo franco-argelino, Gérard Bensussan, apresentou recentemente em um seminário sobre aporia, na Universidade de Brasília, uma reflexão sobre a poética da animalidade e sobre o “a-humano”. Ele indica que há afinidades entre a desconstrução e o romantismo de Iena, entre a escritura derridiana e o fragmento schlegeriano, a partir da noção de incompreensível ( über die unverständlichkeit ). Esta noção já se encontraria em Theodor Vischer, que apresenta o objeto como malicioso. O animal teria um olhar sem palavra ( regard sans parole ), entretanto não destituído de palavra ( non pas privé de parole ), passivo, opaco, malicioso: malícia de quem escapa infinitamente e que significa e designa uma posição muito próxima a de um Friedrich Schlegel sobre incompreensível. Mesmo retomando a crítica derridiana - de que Heidegger inscreve não diferenças, mas um limite oposicional que apaga as diferenças e reconduz ao homogêneo, seguindo a mais resistente tradição metafísico-dialética -, Gerard afirma que a destruição mais radical e a mais bem-sucedida da metafísica, decisiva para toda a filosofia do século XX, não terá sabido propor, nem pensar este desafio, entretanto capital segundo seus próprios [de Heidegger] critérios. Bensussan propõe um alargamento de Heidegger segundo seus próprios critérios. Destaca os seminários de 1955-56 propostos sob o título de “Le principe de la raison”, em que Heidegger comenta o “sans pourquoi” presente nos versos de Angelus Silesius. La rose est sans pourquoi, fleurit parce qu´elle fleurit N´a souci d´elle même, ne désire être vue Heidegger assinala que o “parce que” é mais antigo que o “pourquoi”: Este “parce que” não responde ao “pourquoi”, ele o precede, não oferece a razão, o fundamento, somente designa a estada e a permanência da rosa A rosa não é sem razão enquanto ente (o saber botânico pode perfeitamente torná-la racional, o pensamento calculante pode raciocinar sobre a floração. A rosa é sem pourquoi no seu ser mesmo Bensussan abre caminho por entre o Heidegger que lê Silesius, retoma Theodor Vischer, para reencontrar-se por tangência com Derrida, para mostrar que, em Derrida, há um direito de continuação ( droit de suite ), de uma retomada da coisa mesma da animalidade e poder afirmar que uma meditação sobre o pensamento do animal, na medida em que existe, retorna à poesia e em direção ao poético, ao não cálculo, à meditação muda, à malícia do incompreensível. Para Bensussan,

a poética da animalidade é uma aporética da animalidade, entendida como a experiência da não passagem, de suportar aquilo que se deixa e apaixona nesta não passagem, não se deixando paralisar nesta separação por um modo não necessariamente negativo: diante de um limiar, de uma fronteira, de uma linha, ou simplesmente do tato ou do contato com o outro enquanto tal. E então Bensussan chega junto e converge em direção a Derrida, citando-o: quando nós somos absolutamente expostos sem proteção, sem problema e sem prótese, sem substituição possível, singularmente expostos em nossa unicidade absoluta e absolutamente nua, isto é, desarmados, entregues ao outro, incapazes mesmo de nos abrigar por trás daquilo que poderia proteger ainda a interioridade de um segredo. Um poeta brasileiro se aproxima desse caráter reversível de sua exposição ao outro, fazendo uma meditação sobre o verso, que é um modo de pensar o poema na sua passagem. Pensar o verso é pensar a estada ( séjour ), a permanência ( perdurée ), a demora na fronteira. Citemos então o poema 42 de Armando Freitas Filho: [Poema 42] Destrava o que o ar segura e o chão clama. Instante imprevisto do tempo não sujeito à cronologia. Transpira, transparece se entretém –vide verso livre e único que, do outro lado, ao revés, emite sua aura de animal arisco à mão caçadora e ilumina algumas linhas dando vida, fibra, força à trama do aramado inteiro. (FREITAS FILHO, Raro mar , p. 70) O poema 42 imagina a sua fabricação em um cenário de gaiola, de encarceramento numa trama metálica, porque a linha do verso é revestida de metal, mas verso que tem seu outro, seu outro lado, seu reverso, que retorna e inspira através, transpira. Seu outro é aura de animal arisco que foge à mão caçadora. O verso no modernismo foi proposto como respiração, como suspiro em sua pausa final considerada como fronteira diante da folha,

da página em branco, suspensão ( aufhebung ) e censura, resultando em uma aporia diante do vazio, diante da tentação de falar muito através da pena, em desdobramentos retóricos que, naquele instante, resultaram em abertura, demora na fronteira. Tratava-se de romper com o enjambement , com a “good continuation” parnasiana. Um poema como o de Armando reúne a mão e o verso enquanto animal em fuga. Ambos seres viventes, mais que animais, para além da separação entre o humano e o animal. O sujeito lírico é um ser vivente que encara a dimensão furtiva, maliciosa do verso em sua autonomia de fuga. Fugir é a malícia do objeto, da coisa a ser criada pela mão que, no entanto, não detém nem engendra de per si, de dentro, precisa sempre de um fora, de algo que escapa, como um objeto a que está no seu ambiente, na sua propriedade aérea, no ar, que também pode estar travado. A malícia do objeto criado é esse escape da dimensão calculadora, através da imaginação de um fora necessário para fazer sair da dimensão do ego, de sua instância narcísica, daquele que só se contempla. A malícia do objeto traça a dramaturgia dessa poesia que vive da dimensão erótica da mão que busca mais além (como pensa Lévinas), e do escape do objeto na sua dimensão furtiva, porque necessariamente está a escapar de sua condição de imagem que não se fixa (ainda Lévinas), não se torna semblante, não se torna imagem enrijecida ou crispada, a não ser para produzir farpas para o fora. Assim é pensado o verso livre. Livre para ser fantasmado e virar a sua metafísica, a sua face ontológica. Mas ele é apanhado na trama do aramado inteiro. E está lançado aí na dimensão horizontal do mundo. [Poema 56] O verso livre, feito de ar e músculo O poema 56 dá continuidade à meditação sobre o processo da escrita mentado no poema 42. Como programa de destravar o que o ar segura e o chão clama, o poema retoma a dimensão suspiro e a converte para transpiração, carnalidade de animal que transpira, transparece, entretémse. Ter obtido o artefato como uma posição no entre- lugar, no processo, no vazio de um ter em si, de um fazer construído. O verso é livre, feito de ar e músculo. Essa composição paradoxal do verso apresenta duas dimensões do processo da escrita, a de tentar passar como corpo, como passante, como corpo em passagem por um meio, por um caminho, sulcando, a seu modo – e “a-risco”, ou seja, sem o risco calculado, “a-rítmico”, ao risco e sem o normal do risco, do previsível do risco. Por outro lado, tenta passar por entre três dimensões – duas dimensões já habitadas – o que foi escrito com o que se leu – e mais, com o que é ilegível, ou seja, com o que ainda está do outro lado, no lado oculto da lua, desenhando-se, “à medida que se capta / a primeira vibração, dentro da mão cega”. A mão é cega, porque a mão não controla a dimensão do fora. E essa produção realiza-se “entre paredes verde-água do Rio / na boca, na borda do vaso / onde os gerânios deflagram”.

O verso é livre para debordar, para escapar, e também para dizer o outro lado, o que está ao lado, como, por exemplo, aparece na imagem de um vaso “onde gerânios deflagram”. Deflagram exatamente o quê? Aí está a malícia do verso vivente em sua dinâmica de fuga do tema e do processo. Sobre a malícia do vivente, podemos citar Gérard Bensussan: La passion de l’animal de Derrida: le double génitif objectif et subjectif pourrait bien assigner l’entreprise philosophique de L’animal que donc je suis à un vertige, pour reprendre le mot de Heidegger, à l’abîme d’une malice à chaque fois sienne, pour qui scrute “les animots”, mais qui serait au moins autant celle de l’animal lui- même, depuis le regard porté par le premier venu sur “un regard dont le fond reste sans fond, à la fois innocent et cruel peut-être, peut-être sensible et impassible, bon et méchant, ininterprétable, illisible, indécidable, abyssal et secret: tout autre”. ² A paixão do animal para Derrida: o duplo genitivo objetivo e subjetivo poderia bem atribuir o empreendimento filosófico de O animal que logo sou à vertigem, para retomar um termo de Heidegger, ao abismo de uma malícia que lhe pertence, para quem perscruta os “animots”, mas que seria ao menos do animal ele mesmo, e porque mais que nunca então a “descontrução é a justiça”. Na “guerra em nome da piedade” a que se dedicam “ aqueles que violam não somente a vida animal, mas também o sentimento de compaixão e aqueles que invocam o testemunho irrecusável desta piedade” ela terá constituído, e isto não é seu menor mérito, uma posição filosófica avançada. O animal é o anumano. E o anumano designa um mais além de si, uma espécie de heterodêitica, ou seja, a figura aporética de um traço poético anterior a toda fronteira entre o humano e o inumano. Em nossa tradição ocidental, essa anterioridade só poderia incitar ao engajamento numa meditação com novos relances para além do bem (a humanidade do homem) e do mal (sua inumanidade como bestialidade). Deste anumano que é o animal, Derrida, num só gesto, terá explorado o recurso propriamente poético, a extrema “malícia” de quem ou do que escapa e escapará sempre, desfazendo-se completamente da fonte e da “cadeia” metafísicas (BENSUSSAN, 2012,p.31). Deflagrar implica uma dinâmica com sua própria constituição originária, com seu espectro carnívoro, de planta protocarnívora, na linha de uma evolução para a condição carnívora. O verso é livre para encontrar sua vertente de configuração carnívora, ali onde pode deflagrar a sua condição de vivente, mais do que de animal, de ser vivente. Deflagrar a sua condição de vivente, de ser que se contamina de outros reinos. Nestes dois poemas, vê-se também o que Gumbrecht (2012) atribui à condição animal: a de não realizar a dança do corpo de forma totalmente consciente. Ali onde o animal comparece, algo arcaico se manifesta e escapa à consciência e que poderia ser denominado como a revelação do ser em direção ao ente, como o instante de “graciosidade” na direção do ente e para fora do controle da consciência.

A partir de Gumbrecht, podemos entender o verso como um objeto próximo, na casa, na mão, no oco da mão, um objeto construído que faz parte do sujeito, que na íntegra é o sujeito, na sua proximidade interiorizante. E que pela “graciosidade”, no entanto, escapa de sua constituição de copertença, porque também forma o seu outro, a sua outra margem, a sua outridade, o seu animot que dança para fora da consciência. O verso é livre da consciência e, por isso, malicioso, furtivo, ondulante naquilo que o constitui como metacinética , como a velocidade própria de sua disseminação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENSUSSAN, Gérard. Jacques Derrida – uma poética da animalidade (Sobre o anumano) . In: EYBEN, Piero (Org.). Demoras na aporia: bordas do pensamento e da literatura . São Paulo: Editora Horizonte, 2012. _. Spectres de Marx. Paris: Galilée, 1993. _. Che cos’è poesia ?. IN: Points de suspension. Paris: Galilée, 1992. _. Demeure. Paris: Galilée, 1996. FREITAS FILHO, Armando. Raro mar. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e estagnação . Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. 1 Todas as citações deste texto têm tradução minha. 2 A paixão do animal de Derrida: o duplo genitivo objetivo subjetivo poderia mesmo assinar a empresa filosófica de O animal que logo sou a uma vertigem, para retomar a palavra de Heidegger, ao abismo de uma malícia a cada vez sua, para que escute "os animots", mas que seria pelo menos tanto este do animal ele mesmo, desde o olhar trazido pela primeira vinda sobre um olhar cujo fundo permanece sem fundo, ao mesmo tempo inocente e cruel talvez, talvez sensível e impassível, bom e mau, ininterpretável, ilegível, indecidível, abissal e secreto: absolutamente outro (BENSUSSAN, 2012, p. 50. Tradução Piero Eyben). LINGUAGEM E MONSTRUOSIDADE. ASSALTO ANTROPOGÊNICO E MANIPULAÇÃO CONCEITUAL DO RASTRO EVELYN GALIAZO (UBA) Mas esse “nós”, o monstro é o homem? (DERRIDA, 1987, p. 41) Para o pensamento antigo, os únicos mortais do universo eram os homens. Nossos ancestrais não deixavam passar o fato evidente de que as plantas e os animais pereciam dia após dia por todos lados, mas tais decessos não eram considerados verdadeiras mortes porque suas vidas individuais não tinham nenhuma relevância no mundo grego. Importavam apenas como membros duma espécie, e dado que “a natureza garante às espécies sua

eternidade para sempre por meio da repetição” (ARISTÓTELES (Pseudo), 1968, 1343 b 24), do ponto de vista clássico, os demais seres vivos com os quais os homens compartilhavam a Terra eram eternos. Eternos na ininterrupta sucessão das gerações. Hoje sabemos com certeza que cada uma das espécies que povoa o planeta desaparecerá em algum momento; próximo ou distante, a extinção é seu destino natural, último e inelutável. A ciência tem demonstrado há tempo que a vida média de todos os vertebrados terrestres flutua entre os dois ou três milhões de anos (GOULD, 2010, p. 56 e segs.). Em contraste com a nossa escala temporal subjetiva, em vez de nos parecer desalentador, este período se projeta em eternidades. Em consequência, atribuímos-lhes a estas espécies quase a mesma sobrevivência que os antigos, sem advertir – à margem das milhões de mortes individuais– as numerosas extinções em massa que há séculos se multiplicam e se aceleram a um ritmo incalculável. O extermínio de espécies inteiras que ocorre por diversos fatores, sempre antropogênicos, em só uma geração humana, marca na atualidade uma transformação histórica sem precedentes (GOULD, 1994, p. 1.663 e segs.). A intervenção do homem tem manipulado a temporalidade dos processos naturais e tem provocado acontecimentos catastróficos que atentaram contra a biodiversidade existente, fazendo que aquilo que poderia ter durado milhões de anos desapareça no curso de uma década. No entanto, olhos que não vêem, coração que não sente , as vidas desaparecidas, vidas singulares de espécies extintas, já não sofrerão as consequências da ação humana. Aquelas que sim continuam submetidas por diversas manobras indiscriminadas são, entre outras, as vítimas da tração a sangue, do adestramento em grande escala, da experimentação genética, da inseminação artificial, da clonagem, da cria industrial em condições de superlotação, envenenamento e confinamento, do engorde intensivo, da tortura como entretenimento, e das demais inovações monstruosas, desenvolvidas em saberes, práticas e técnicas cujo objeto é o animal. Estas são as vidas que seguem e seguirão sujeitas pelas mãos do homem. O surpreendente é que a mesma mão que imobiliza ou que maniata, serve tanto para justificar a dominação como para ocultá-la, a fim de proteger a própria visão do horror que ela causa. ¹ Nas páginas seguintes comentarei, muito brevemente, como foi concebida a mão pela metafísica ocidental, desde um ponto de vista científico e filosófico; apresentarei, em termos gerais, a posição heideggeriana e, por último, exporei o modo como Derrida questiona, em especial no texto “La main de Heidegger”, o que ele chama de “lógica da sujeição”, cujos supostos nunca demonstrados deixam claro que o problema da animalidade não somente se toca com a questão do pensamento e da linguagem, mas também, e em profundidade, com tudo aquilo que se desprende duma reflexão filosófica acerca da mão e do sentido do tato. I. A MANI-FESTAÇÃO DO HUMANO Uma das características principais em que a biologia embasa a possibilidade da evolução humana é o desenvolvimento de uma mão multidactilar adequada para a utilização de ferramentas – desenvolvimento que, é claro,

avança em paralelo com o de uma inteligência apropriada para conceber novos e melhores usos dessa técnica. Segundo Erik Jarvik, O traço mais sobressalente do homem é, sem dúvida, seu grande e elaborado cérebro. No entanto, este grande cérebro jamais tivesse aparecido (e, além disso, para que tivesse servido?) se nossos braços e mãos tivessem sofrido uma especialização tão intensa como, por exemplo, a do membro inferior do cavalo ou a da asa do pássaro. [...] Podemos afirmar com certo fundamento que quando, por razões ignoradas, o formato básico da nossa mão de cinco dedos foi fixado nos antepassados osteolopeiformes, também ficou estabelecido o pré-requisito para a aparição do homem e da cultura humana (JARVIK, 1980, p. 587). Além disso, a mão se considera um dos “próprios” sobre os quais a filosofia tem apoiado historicamente sua definição do ser humano em oposição ao resto dos animais. O que quer que seja a mão, ela é uma das peculiaridades exclusivas do homem e, por conseguinte, definidoras da espécie. Na história da filosofia, alguns filósofos se perguntaram sobre as habilidades e aptidões de certas trompas, de certas extremidades anteriores ou de certas antenas especiais, mas invariavelmente chegaram à conclusão de que “o animal” – subsumindo neste termo uma heterogeneidade imensa– não possui nada que possa ser comparado com uma mão. Aristóteles já assinalava em seus escritos biológicos a relação necessária que existe entre a possessão das mãos e da inteligência, instituindo um padrão estabelecido até o presente. Em seu tratado sobre as partes dos animais, lemos: Anaxágoras defende que é por ter mãos que o ser humano é, de todos os animais, o mais inteligente. Mas é mais razoável considerar, pelo contrário, que é por ser o mais inteligente que ele tem mãos. As mãos constituem, de fato, uma ferramenta; e a natureza, como faz um indivíduo inteligente, atribui sempre um órgão a quem melhor o saiba usar. É mais sensato dar flautas a um bom flautista do que ensinar a tocar a quem tem flautas. É sempre aquilo que é mais fraco que a natureza associa ao que é grande e forte, e não o que é superior e maior ao que é mais fraco. Se este é um procedimento preferível, e se a natureza, dentro do possível, privilegia a melhor solução, não é por ter mãos que o homem é a criatura mais inteligente, mas o contrário. (ARISTÓTELES, 2010, 687a 10-20). ² Antecipando-se às razões que mais tarde aportariam os evolucionistas, Engels também atribuiu à mão um papel decisivo no processo de hominização. Para Engels, a forma de vida que os primatas levavam durante a era terciária estimulou a diferenciação das suas extremidades, já que suas mãos e seus pés desempenhavam funções diferentes. Esta distinção tornou possível a posição erguida e logo, com a “liberação” das mãos, a invenção das armas e das ferramentas. Geração após geração, as mãos herdavam e adquiriam maior habilidade e destreza. Por sua vez, o trabalho foi aperfeiçoando gradualmente essas mãos, das quais era um produto, até gerar, no transcurso de centenas de milhares de anos, as diferenças orgânicas entre as mãos dos antropoides superiores e as do ser humano (ENGELS, 1980).

Obcecados com um pensamento do tocar o compreendendo o pensamento como obsessão do tocar, biólogos e filósofos participam duma mesma “tradição haptocêntrica” (DERRIDA, 2011, pp. 25 e 72) e desde suas respectivas disciplinas coincidem no que Focillon resumiu em seu “Éloge de la main”: “O homem fez a mão, isto é, destacou-a pouco a pouco do mundo animal, libertou-a de uma antiga e natural servidão, mas a mão também fez o homem” (FOCILLON, 1943, p. 128). Dada a sua condição utilitária, a mão prefigura a ferramenta, a máquina e a escrita, enquanto esses dispositivos técnicos condicionam sua entidade e a suas funções. A mão transcende a sua substância biológica porque “constitui mundo” e ao fazê-lo eleva ao animal que a possui acima da mera existência natural. II. A MÃO DO RIGOR [FILOSÓFICO] Crítico “das ontologias e das metafísicas regionais” que pressupõem o acesso à essência do vivente, mas, com rigor, jamais o abrem, Heidegger rejeita esta perspectiva que explica a filogenia do Dasein a partir dum conhecimento prático. Embora no plural e como instrumentos, as mãos são a dispersão orgânica e técnica, Heidegger considera que no singular a mão desempenha outra função infinitamente superior que determina seu caráter único. Em Was heisst Denken? [ Que significa pensar? ], afirma que cada movimento da mão, em cada uma de suas obras, acontece no âmbito do pensamento e que toda obra da mão repousa no pensar, porque o pensamento é em si mesmo o mais simples e simultaneamente o mais difícil dos trabalhos manuais (HEIDEGGER, 1971, p. 51). A copertença da mão e do pensamento desprende-se tanto do caráter físico ou corporal que tem o pensar – para Heidegger o pensamento não é um processo desencarnado, puramente cerebral – como do fato de que a mão – no singular – revela e descobre esse ser das coisas que as mãos – no plural – velam e recobrem. Quando é autêntico, o trabalho manual [ Handwerk ] manifesta – e aqui a raiz semântica é decisiva – a essência oculta das coisas. Segundo o exemplo de Heidegger, o verdadeiro aprendiz de marceneiro não só se relaciona com a utilidade dos objetos que busca criar, com os materiais e ferramentas empregados e com a função técnica de suas próprias mãos, como também deve estabelecer uma correspondência com as formar que dormem na madeira. Do mesmo modo, quem de verdade pensa, vincula-se com a plenitude oculta das coisas. E para Heidegger, todo homem procede igual ao artesão, que não somente expressa o que pensa através da mão, mas inclusive pensa com a mão. O pensamento, como todo ofício autêntico, é uma atividade da mão. No entanto, tal prática não está orientada para a procura do proveito nem se direciona a nenhum fim utilitário, senão ao essencial (HEIDEGGER, 1971, p. 50 e segs.). Contudo, embora Heidegger distinga o verdadeiro pensamento da utilização do saber para fins técnicos e, em consequência, a atividade útil, do autêntico emprego da mão, sua crítica não rompe em absoluto com os pressupostos fundamentais das ontologias que ele desacredita. A análise heideggeriana fica presa dentro da tradição que singulariza o homem em virtude de sua mão e determina, a partir dela, seu lugar hierárquico dentro do reino animal. Heidegger observa que frente à relação fenomenológica que o Dasein pode ter com as coisas enquanto tais , as patas, as garras, os

tentáculos, as trompas, os ferrões, as pinças e os tenazes determinam, em contraste, uma mera abordagem empírica a um mundo constituído em e desde a pobreza [ Weltarm ] (HEIDEGGER, 2007, p. 249). Por meio dos órgãos preênseis, os animais só podem agarrar ou empurrar, pegar ou arrancar, desagarrar ou dar um golpe, mas não se vincular com os entes como tais . A experiência que os animais têm das coisas está privada da apertura ao ser das mesmas. Apesar de que o animal reconhece, por exemplo, a comida, e é capaz de diferenciá-la do que não é comestível, não se relaciona com ela como alimento , já que não penetra o “como tal” [ als Struktur ] do ente (HEIDEGGER, 2007, p. 371). Desde a perspectiva heideggeriana, esse saber só arriba por meio da palavra e, portanto, na carência das mãos se joga a mesma inacessibilidade ao sentido do ser que na ausência da linguagem. Essa falta distingue a pata do símio da mão humana. Ainda que em aparência sejam muito parecidas, na realidade são completamente diferentes: diferencia-as o abismo de seu ser (HEIDEGGER, 1971, p. 90). A mão humana, em troca, mantém uma ligação primordial com a palavra. Por isso, unicamente um ser que fale poderá ter essa mão. Uma mão que traça signos é ela mesma um signo (HEIDEGGER, 1971, p. 51). Para provar sua força simbólica basta recordar a linguagem de sinais dos surdos-mudos: um código de posições muito precisas em que as mãos substituem às palavras. Heidegger se refere a um aspecto particular desta “mímica” capaz de suplantar o que se comunica verbalmente: todo o poder semiótico da mão se expressa quando ela aponta e quando indica. Acenando, a mão transcende suas determinações naturais e adquire, segundo Heidegger, um direito legítimo na esfera do sentido. A mão na qual Heidegger reflexiona não é um simples órgão preênsil, e sim um órgão da significatividade. E dado que o homem é essencialmente, como dizia Aristóteles, um zoon lógon echón (ARISTÓTELES, 1994, 1253 a 9-10), a mão exerce a mais própria das funções humanas; uma função que a pata dos primatas superiores não pode desempenhar por mais idêntica que seja à mão humana: “A mão traça sinais, amostra, provavelmente porque o homem é um sinal” (HEIDEGGER, 1971, p. 90). Com a finalidade de esclarecer esta diferença radical que Heidegger observa entre o membro animal e o do homem, Adam Roberts afirma que, se ante um homem e ante um símio alguém sinaliza um objeto apontando-o com o dedo, o homem direcionará seu olhar ao objeto, enquanto que o símio observará o dedo (ROBERTS, 2009, p. 58). Esta aptidão para usar a mão como um dêitico e para compreender o que significa esse gesto – e não devemos nos esquecer que a linguagem gramatical pega os termos “dêitico” e “index” da língua gestual e não vice-versa – é o que abre, para Heidegger, uma brecha irremediável entre o homem e as bestas. III. UM MONSTRO DE CINCO DEDOS A história da escritura se erige sobre o fundo da história do grama como aventura das relações entre a face e a mão (DERRIDA, 1971, p. 112). Derrida reconhece na desconstrução o direito incondicional a formular perguntas críticas tanto sobre a noção do homem e sua história quanto

sobre a noção de crítica e sua história (DERRIDA, 2005, p. 58). Ao indagar estas certezas metafísicas, a história mesma e, com ela, o devir ánthropos do animal humano, pode aparecer como uma narração imposta por uma matriz de pensamento teleológica. Explicar a “evolução” humana a partir do que cremos conhecer sobre a transformação da motricidade manual implica permanecer dentro duma linguagem mecanicista e tecnicista. Como se poderia evitar esta linguagem ao mesmo tempo que se busca encontrar a origem da máquina, do artefato, da escritura e do suplemento em geral? É impossível (DERRIDA, 1971, p. 112). Por isso, apesar de Heidegger tentar decompor este saber familiar, termina não apenas voltando a cair nas suas armadilhas, mas enfatizando-as. Mesmo tendo renunciado à dimensão metafísica do “nós-os-homens” (HEIDEGGER, 1970), o pensamento heideggeriano continua sendo tributário do mesmo antropologismo que põe em questão. Ao substituir a noção do homem, o conceito de Dasein prometia a suspensão de todas as pressuposições metafísicas que constituíam o conceito herdado de “humanidade”, entre as quais se encontra a propriedade da mão. Mas, na “desconstrução” heideggeriana da ontologia clássica essa supressão falha, porque, em última instância, “o nome do homem segue sendo o lugar ou o fio condutor paleonímico que vincula a analítica do Dasein com a totalidade do discurso tradicional da metafísica” (DERRIDA, 1989, p. 164). Uma das formas que assume essa herança no projeto filosófico de Heidegger é, precisamente, a de um forte “humãoismo” [ humainisme ]. Cada vez que na obra derridiana, desde a Gramatologia até Le toucher, Jean-Luc Nancy, surge o motivo da mão, irrompe também a “questão animal” porque Derrida pretende destacar a profunda ingenuidade antropologista que subjaz a todas aquelas reflexões que postulam a exemplaridade da mão humana. Toda filosofia humanista, afirma Derrida, gira em torno a uma determinada hierarquia da mão, mesmo se o autor nunca escreve ou pronuncia a palavra “mão”. (DERRIDA, 2011, p. 73, 223 e segs. e 267 e segs.). E para demonstrar que a destructio heideggeriana não escapa dessa lógica, Derrida analisa a mão de Heidegger. “La main de Heidegger”, conferência de 1985, estuda e revisa em detalhe não somente o pensamento heideggeriano sobre a mão em sua relação com a palavra e o pensamento, mas também a própria mão do filósofo, a coreografia de seus dedos e sua posta em cena numa série de retratos. Uma das fotografias o mostra –“eleição estudada e significativa”, diria Derrida–, tomando a sua caneta com as duas mãos em cima dum manuscrito. Segundo Derrida, a imagem do jogo de mãos sobre a folha escrita opera como uma mise-en-scène de Was heisst Denken? , texto sobre o autêntico trabalho manual (DERRIDA, 1987, p. 43) . Assim como Escher desenhou uma mão que desenha a outra que por sua vez desenha a primeira, Heidegger escreveu sobre a mão que escreve. Que escreve autorreferencialmente, como se ela se tocasse a si mesma. Para Derrida, Heidegger não poderia escrever se não com a pena, com mão de artesão, quase de demiurgo – arrisca-se a insinuar. Caso contrário, não seria coerente com seu próprio pensamento. O filósofo que reflete acerca da mão molda as ideias com a suas mãos, extrai essências da massa do pensamento em bruto e lhes dá vida. É um escultor de arquétipos. Enquanto que, por seu poder destruidor, a garra animal se torna um símbolo teriocatomorfo, associado ao demoníaco (DURAND, 1981, p. 63 e 114), quando

pensa e quando escreve, a mão humana – e sobretudo a de Heidegger – se aproxima ao divino. Paradoxalmente, o primeiro ato desta extremidade anterior que se converte em extremidade superior consiste em arrancar dos demais animais a possibilidade de ter mãos. A mão, instrumento que demonstra, é estranha na natureza, diferente dos demais órgãos preênseis e única em todo o reino animal. Mas não e, por isso, monstruosa num duplo sentido? (DERRIDA, 1987, p. 41). É esta monstruosidade, esta violência, o que Derrida detecta no órgão da mostração. Sua denúncia não pretende que o direito à mão, em tanto tal e com tudo o que ela implica, seja restituído a outros seres vivos, seres cujas patas, antenas e trompas também têm o sentido da percepção exterior imediata, ou seja, o tato, esse sentido que segundo Kant aporta a maior certeza (Derrida, 2011, p. 72). Sua denúncia busca, em troca, lembrar que esta mão elevada que Heidegger atribui ao Dasein não é propriamente humana num duplo sentido. Não é um “próprio” do Dasein já que, por um lado, o direito a essa propriedade nunca fui devidamente fundamentado, não é legítimo; e, por outra parte, porque no exercício do pensamento, a mão do Dasein não o diferencia das demais bestas, no âmbito do pensar ela é tão brutal como a garra mais selvagem. Pensar é uma atividade violenta. Para pensar, como para ler, empregamos uma série de ferramentas que intervém na escrita. Sabemos, desde Nietzsche, que não há apropriação de sentido sem encarniçamento e sangue prometida. Cada interpretação instala-se como um sistema de regras que substitui uma dominação por outra. Como diz Foucault, interpretar é avançar de dominação em dominação, “apropriar-se, subreptícia ou violentamente, de um sistema de regras que, em si mesmo, não tem significação essencial, e impor-lhe uma direção, sujeitá-lo a uma nova vontade, fazê-lo entrar em outro jogo, e submetê-lo a regras secundárias” (FOUCAULT, 2004, pp. 41-42). A interpretação é um trabalho de mão, como afirmava Heidegger, mas este trabalho, esta operação, não desvela uma forma prévia e oculta, senão a impõe. Se “tocar” quer dizer “modificar”, “cambiar” (DERRIDA, 2011, p. 50), então a mão não descobre a verdade nem a faz sair de sua reserva, imprime-a. Como dizia Deleuze: o sentido duma coisa é a força que se apodera dela (DELEUZE, 1971, p. 10). Que se apodera dela ou a atazana ontologicamente. Dentro da conceitualidade destinada a confirmar dogmaticamente o dado de antemão à mão humana, a mostração e a demonstração podem alcançar níveis monstruosos. Com o objetivo de conjurá-los, Derrida recorre a os instrumentos que essa mesma conceitualidade lhe fornece. Em primeiro lugar, resgata a tradução – outro exemplo de manobra, intervenção ou manipulação semântica – que os tradutores franceses de Was heisst Denken? fazem de “Mnenosynè”, o poema de Hölderlin citado por Heidegger nesse texto. O verso “ Ein Zeichen sind wir, deutungslos ”, traduzido, diz: “ Nous sommes un monstre privé de sens ”. A versão francesa tem, para Derrida, a virtude de desviar esse signo que é o mesmo homem, de apartá-lo de sua função normal, já que “monstre” significa, ao mesmo tempo, “signo” e “monstro”. Na forma excepcional na textualidade heideggeriana, o significante não é o que deveria ser ou não se comporta como deveria se comportar. Não apenas porque, sendo um signo não mostra ou não significa

nada, mas especialmente porque mostra o sem sentido que na realidade é. Na tradução do poema, o homem se mostra [ montre ] como sendo um signo monstruoso, um signo que mostrando [ montrant ] está privado de sentido. Tal desvio constitui uma monstruosidade, a monstruosidade da mesma mostração ou significação [ monstruosité de la monstrosité o monstruosité de la monstration ]” (DERRIDA, 1987, p. 41). Por outro lado, temos insistido que Heidegger nega a possibilidade de que a mão “se deixe determinar como um órgão de preensão [“ als ein leibliches Greiforgan ”]. Em Was heisst Denken? , ele afirma reiteradamente, a mão humana não é uma parte orgânica do corpo destinada a tomar ou agarrar; seu télos ou seu érgon não apontam ao querer pegar. Pode fazê-lo, mas sua essência não é essa. Antes, a sua relação é com o pensamento. Diante deste princípio, Derrida demonstra que a estrutura intelectual do entendimento é da ordem do assalto e da sujeição conceitual, do domínio ou do domar [ maîtrisant ] e da manipulação. ³ Os conceitos [ Begriff ] e as ideias se captam, ou seja, se capturam; se a-prendem. O fato de que o conceber ou compreender ( comprendre no francês e begreifen no alemão) implica e supõe o ato sensível de agarrar ( prendre no francês e greifen no alemão), se torna evidente na língua, em quase todas as línguas (DERRIDA, 1987, pp. 46-47). Nas palavras de Valéry: Nosso vocabulário mais abstrato está cheio de termos indispensáveis para a inteligência, mas estes termos só puderam ser fornecidos pelos atos ou as funções mais simples da mão . –Pôr; -tomar; -pegar; -situar; -sujeitar; pousar, e daí: síntese, tese, hipótese, suposição, compreensão ... Adição refere-se a dar , como multiplicação e complexidade se referem a dobrar (VALÉRY, 1957, p. 919) ⁴ . Longe de responder a um acaso idiomático, esta quase homonímia ou quase homografia entre o prendre e o comprendre , entre o greifen e o begreifen ou entre o prender e o compreender é o indício verbal duma necessidade histórica e semântica. Defender, apesar disto – como faz Heidegger –, que o pensamento, concebido como autêntico trabalho da mão, está isento dessa manipulação e dessa relação sensível e animal com a coisa pensada, é o verdadeiro assalto antropogênico do rastro. Se o movimento de se dar a si mesma, esse gesto de ir ao encontro do outro em sinal de entrega, é mais um dos aspectos essenciais que, para Heidegger, garante o vínculo indissociável da mão com o pensar – e, em consequência, também com a língua (HEIDEGGER, 1971, p. 51) –, então é absolutamente necessário entender – ou seja, tomar – isto que a língua dá a pensar, como se nos desse sua mão, através de todas estas expressões ou unidades idiomáticas. Mas o dom, para ser ou operar como tal, não deve mostrar-se (DERRIDA, 1995a, p. 20 e ss.). Um dom que se mostra como tal não é um dom verdadeiro. Heterogêneo ao saber, o dom é um acontecimento. E, como aquilo que rompe absolutamente com a normalidade constituída, não pode se anunciar, se presentar, a não ser com o aspecto da monstruosidade (DERRIDA, 1971, p. 10).

O dom ou o acontecimento só pode ser antecipado na forma do impossível. Segundo Jacques Lacan, este era, por excelência, o predicado do amor. De que modo explicar a transformação do erómenos em erastés ? O amor é algo impossível que, no entanto, acontece. Não se pode dar conta da sua irrupção porque o caráter milagroso do amor escapa a toda lógica. Lacan o ilustra com uma imagem: amor é o que ocorre quando, ao estender a mão para pegar o fruto maduro ou a rosa recém aberta, sai desse fruto ou dessa rosa uma mão que te toma (LACAN, 2003, p. 48). A compreensão e a interpretação são manobras que põem em jogo certas ferramentas e certas técnicas de manipulação. Como transformação do dado a mostração – ou significação – nunca é inofensiva. Sempre será monstruosa em algum sentido. Mais o rastro do monstro não deve necessariamente ser terrível. Ele pode, talvez, gerar a possibilidade para o surgimento de conceitos novos. Conceitos como o de “rastro” [ trace ], que supõe uma experiência inédita da língua, uma experiência que não é a do significante, a de a mostração ou a da mão, e da qual não estariam privados os animais (DERRIDA, 2008, p. 55-56). Em lugar de trabalhar na redução das diferenças, o rastro envolve de forma diferencial a todos os seres vivos (DERRIDA, 2008, p. 125). A todos aqueles seres que deixam a marca de suas garras, de suas patas e de suas pinças sobre a superfície do mundo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Acerca del Alma. Introd., trad. y notas de T. Calvo Martínez. Madrid: Gredos, 1978. _. Historia de los animales. Ed. y trad. de J. Vara Donado. Madrid: Akal, 1990. _. Partes dos animais . Introd., trad. y notas de M. de F. Sousa e Silva. Consultor científico L. Angioni. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidad de Lisboa - Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2010. _. Política. Trad. de M. García Valdés . Madrid: Gredos, 1994. ARISTÓTELES (Pseudo). Économique . Estabelecim. do texto e trad. de A. Wartelle. Paris: CUF, 1968. CAMARGO DA SILVA, Jayme. Sobre a “Tecnificação das mãos” (Zuhandenheit): uma leitura do esquecimento do ser na era da técnica ”. Porto Alegre: PUCS, 2012. DELEUZE, Gilles. La filosofía de Nietzsche . Trad. C. Artal, Barcelona, Anagrama, 1971. DERRIDA, Jacques . Dar (el) tiempo: 1. La moneda falsa. Trad. de C. de Peretti. Barcelona: Paidós, 1995(a). _. De la gramatología . Trad. de O. del Barco. México: Siglo XXI, 1971. _. El animal que luego estoy si(gui)endo. Trad. de C. de Peretti y C. Rodríguez Marciel. Madrid: Trotta, 2008.

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O primeiro viés nos foi incitado pela leitura de Cinéma et philosophie , de Dominique Chateau (2004), especialmente pelo capítulo dedicado às filosofias da diferença, no qual o autor parte de uma pergunta sobre a “desconstrução” e sua possível renovação da análise textual do filme. O segundo viés, concernente à linguagem musical, busca uma abertura perceptiva que vê na “práxis sonora” contemporânea um vasto espaço para a liberdade criativa e a prática da alteridade. Esses aspectos aparecem em nossa exposição na medida em que valorizam a crítica de Derrida ao logocentrismo metafísico, à centralização cultural do Ocidente, bem como a todo tipo de coerção e normatividade. Sabe- se do entusiasmo de Jacques Derrida pela relação entre filosofia e literatura, que o permite, aliás, discorrer mais amiúde sobre o “entre-lugar”, que é justamente o lugar da diferença. Segundo Benedito Nunes, é por esse espaço que o autor de Margens da filosofia (DERRIDA, 1991) chega à ideia de desconstrução, na medida em que almeja “desconstruir os textos, isto é, descentrá-los”, ou seja, vislumbrá-los sem um sentido nuclear. Tal método ou antimétodo se depara com “o continente submerso da literatura e, na literatura, descobre o imprevisível e desprivilegiado movimento dos signos escritos” (NUNES, 2009, p. 64). É, portanto, pela literatura e pela problematização da escrita que a “desconstrução” se vincula a certa tendência estética, como bem ressaltou Dominique Chateau (CHATEAU, 2004, p. 121). Para Derrida, a desconstrução é um dos termos operatórios que, como a diferença, a disseminação e o traço têm um agenciamento de “não conceitos”, já que não possuem a generalidade lógica que um “conceito filosófico” pretende apresentar em sua suposta independência em relação à linguagem cotidiana ou literária. Dessa forma, ele buscava um “não lugar” ou um lugar “não filosófico” no qual pudesse questionar a própria filosofia a partir de outros olhares. E foi dessa inquietação que nasceu uma atitude de desvelamento, de descobrimento, digamos assim. O pensar autrement é uma proposta de alteridade. O interesse que Derrida demonstra pelas linguagens artísticas, pela psicanálise e por autores como Bataille, Blanchot, Artaud e Mallarmé atesta justamente esse desejo. Tais autores, de certa forma, testaram os limites da lógica conceitual, sacudindo a linguagem na medida mesmo em que a tornaram problematizável. Segundo Derrida, por tais vias podemos aceder a um espaço de liberdade e novas perspectivas interpretativas diante da filosofia. Nesse sentido, Derrida procura um discurso que leve em conta “questões filosóficas, fenomenológicas, antropológicas, históricas sobre a escrita, e questões de literatura, da relação entre palavra e escrita etc.” (DERRIDA, 2003 , p. 22). Ou seja, um discurso que se depreende daquilo que Jean-Luc Nancy chamou de um “gesto histórico” e uma “nova crônica do mundo”. Em outras palavras, uma atitude de descentralização, que, ao mesmo tempo, abala o “edifício da tradição filosófica (ou metafísica) e o autoposicionamento histórico dessa tradição” (NANCY, 1990, p. 117). Com o desmontar das estruturas, manifestam-se os traços ou as marcas das rupturas que nos colocam em xeque diante da linguagem, por exemplo, quando em Touner les mots , Derrida comenta a “finitude de toda grafia, em particular, a cinematografia” (DERRIDA e FATHY, 2000, p. 16). Esse instigante livro que Derrida divide com Safaa Fathy nos conduz aos bastidores do filme documentário D’ailleurs, Derrida. Trata-se de um

desmonte interpretativo de diversos aspectos do filme, mediante um abecedário não convencional, onde os autores buscam refletir sobre a linguagem cinematográfica em um sentido metalinguístico. De fato, é a experiência de vida de Derrida, seus posicionamentos político-filosóficos e suas ideias acerca da linguagem que estão em cena. O cenário, diga-se de passagem, é muito peculiar e explora o imaginário, o fictício. E tudo isso anima a ação de “filmar as palavras”, mas também revolvê-las, encontrá-las, inventá-las... Para eles, “o filme é um fato” que procura restituir um diálogo entre imagem e palavra. Assim, a montagem e a découpage do filme são também a montagem e o corte da escrita e da fala. Sob esse ângulo, a filmagem deve contorcer as palavras e, ao mesmo tempo, flagrá-las em sua improvisação, em seu fluir. Isso também significa expô-las em um sentido social e cultural. Dito de outro modo, Fathy e Derrida procuram vivenciar a força poética da invenção verbal, “não para isolar o linguístico ou o discursivo enquanto tal”, mas para compreender a linguagem a partir da “singularidade dos traços sociais, históricos, culturais” (DERRIDA e FATHY, 2000, p. 106). Com o recurso à metalinguagem e a essa espécie de sinestesia e hospitalidade cultural, pode-se perceber cada vez mais o entrecruzamento das experiências de linguagem. Representativa, neste caso, é a relação entre o cinema e a música. Nessa relação, para Derrida, sempre há algo que perdura a partir das potencialidades musicais. Em D’ailleurs, Derrida, a música que constitui o “corpo do filme” e satisfaz o “ator/Derrida” em seus longos trajetos de automóvel é a música judia/árabe/andaluz. Para ele, há uma verdade nesse canto que é, sobretudo, “reconciliação”. É ainda pela intimidade musical que ele sugere que se veja o filme “fechando os olhos” – como o cego de Toledo – para melhor captar sua mundanidade. Essa aposta musical nos é revelada pelo autor já em “ Ce qui reste à force de musique ”, um ensaio em torno do texto do escritor Roger Laporte, “Fugue/suplément” , o qual ele denomina de “música textual”. É a afirmação de um sentimento temporalmente vasto que nos faz pensar na multiplicidade galáxica (se se quiser) da linguagem, “em um espaço em desdobramento onde não há limite externo” (DERRIDA, 1987, p. 98). Por isso, tal linguagem se nutre constantemente. Sempre que se refere à música ou ao cinema, Derrida trata da escrita. Ele se interessava pelo aspecto prático-teórico dessa relação, seu contributo político em certo sentido. Na intuição da música e do cinema, o autor procurou se “emancipar da vigilância panóptica” (DERRIDA, 1987, p. 118). Assim, extenuou a crise da totalização e, com ela, a denúncia contra o logocentrismo. Por isso, a alternativa da “margem” se revela fecunda. Tal olhar para as margens, de acordo com Gerd Bornheim, seria um “apontar ao outro que não ela mesma” (BORNHEIM, 1998). O desafio do escritor e do filósofo é escavar tais significações sem se preocupar demasiadamente com o texto acabado e imbuído de todas as prestezas comunicativas. O deslocamento desse fundamento logocêntrico faz com que a escrita dê “conta da alteridade do outro em sua condição de outro” (idem). É neste sentido que os reflexos derridianos se imiscuem nas expressões artísticas, não para constituir uma estética da desconstrução, claro está, mas para instigar uma reflexão sobre a nossa própria realidade.

Nesse sentido, as expressões musicais e cinematográficas se desenvolvem como um desdobramento dessa realidade. Elas acompanham, por exemplo, a histórica crise do conceito de indivíduo ou da subjetividade. Problematização esta que se alastra até nossos dias, já que a percepção de tais expressões é muitas vezes ancorada sobre “privilégios sociais” e “distanciada do cotidiano” (ARAÚJO, 2007, p. 253). Perceber essas linguagens de forma assistemática é realmente um desafio de alteridade que pressupõe uma disponibilidade ou flexibilidade de percepção do “outro” e do todo cultural e social, o que se contrapõe radicalmente ao intelectualismo subjetivista. Nessa difusão de variantes, as transformações das conjunturas musicais e cinematográficas se apresentam no cotidiano das cidades e nos conduzem a uma reflexão sobre a política das relações sociais. Mas não apenas isso. De fato, elas nos convidam a uma participação mais efetiva nas práticas expressivas. Uma olhadela na produção de dois cineastas contemporâneos, que se preocupam com essa relação entre música e cinema, pode corroborar nossa opinião. São eles Fatih Akin e Júlio Bressane. Ambos procuram – cada qual à sua maneira – experimentar a cinematografia de forma não convencional. E o diálogo com a música e a literatura é muito presente em seus trabalhos. Fatih Akin filma a Turquia como uma fonte de confluências culturais que se transforma e se modula cada vez mais. É interessante o retrato dessa pluralidade no filme Crossing the brigde: the sound of Istambul (Atravessando a ponte: o som de Istambul). Nele, o músico Alexander Hacke percorre as ruas de Istambul para interagir com a diversidade musical da Turquia. Ele esbarra em formações que vão do rock psicodélico, hip hop engajado ou música eletrônica, à música árabe tradicional, em um diálogo com o Ocidente, estimulado em parte pela emergência das vedetes da música árabe e pelo cinema do Egito. É a diversidade da cidade do escritor Orhan Pamuk, antiga capital do Império Otomano, dividida pelo estreito de Bósforo em duas metades, que correspondem à Europa e à Ásia. Esse sincretismo é encarado atualmente de forma natural, e essa pluralidade se engendra cada vez mais no crescimento urbano. A porta de entrada de negociações é por vezes a amostragem cultural, a cerimônia política na qual as negociações são esboçadas ou concretizadas. Por isso, o cenário que se recheia pode representar uma interação cultural, social e econômica. Em uma espécie de etnografia, Akin revive algumas das preocupações frequentes entre os etnomusicólogos: “a rejeição da ideia de um sujeito racional unificado em favor de um sujeito social e linguisticamente descentrado e fragmentado” (Pelinski, 2004, p. 742). Entra em pauta, portanto, a problematização das representações, das formações discursivas, da comunicação, da invalidação dos discursos em torno da dicotomia centroperiferia e a inquietação sobre a falaciosa universalidade racional. Eis que a industrialização e a urbanização crescente implicam o pensar constante sobre a mudança democrática no mundo em que vivemos, principalmente em um mundo polarizado, em que se acentua o desconhecimento do outro e da diferença cultural.

Por sua vez, Júlio Bressane trabalha para extravasar e mesmo recusar a narrativa tradicional. Para Olgária Matos, “Bressane desfaz qualquer ordem linear de acontecimentos e narrativas” (MATOS, 1995, p. 22), e intensifica, assim, como ressaltou Ismail Xavier, a verve do Cinema Novo de “conciliar a invenção estética e a inserção no campo de cinema de mercado, por força de uma vontade de intervenção imediata no debate político” (XAVIER, 2011). Segundo Xavier, Bressane e Rogério Sganzerla, procura um papel mais experimental para o cinema. A câmera de Bressane não se posiciona em um ângulo fixo, “seus filmes dizem o inesperado, abalam a inércia” (MATOS, 1995, p. 25). Ele anseia que as situações cinematográficas transbordem da tela. É isso que procura, por exemplo, quando filma a literatura de Machado de Assis. Assim, Brás Cubas e A erva do rato são filmados em busca dos limiares das situações cinematográficas e das circunstâncias literárias. Ele trata a narrativa machadiana a partir de reversões, avessos, citações, iconografias... São relances, farpas, fragmentos imagéticos, que exploram ao máximo as aproximações e as distâncias focais. É flagrante que essa condensação de imagens e perspectivas apareça nos roteiros de Bressane interligada ao intercurso sonoro de maneira crucial. A música em seus filmes tem um papel muito importante. Tais inquietações são atentas a um claro-escuro musical que faz parte da consecução das imagens. Ele reformula a ideia de Abel Gance, que diz que “cinema é a música da luz”. Para Bressane, “o filme é um fotograma transparente, branco, onde a sombra é que organiza a imagem. A sombra é, portanto, a música” (BRESSANE, 1996, p. 37). Essa concepção caminha junto com a transgressão proposta por seu cinema. Apresentam-se aí, portanto, as possibilidades para outros intercursos interpretativos. E neles, possivelmente, os traços derridianos serão impressos de alguma forma. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Samuel. Música e diferença; uma crítica à escuta “desinteressada” do cotidiano. In: DIAS, Rosa; PAZ, Gaspar e OLIVEIRA, Ana Lúcia de (Orgs.). Arte brasileira e filosofia . Espaço aberto Gerd Bornheim. Rio de Janeiro: UAPÊ, 2007. _ e PAZ, Gaspar. Música, linguagem e política; repensando o papel de uma práxis sonora. Revista Terceira Margem . Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris: Éditions du Seuil, 1973. BLANCHOT, Maurice. Grâce (soit rendue) à Jacques Derrida. La condition critique. Articles 1945 – 1998 . Paris: Gallimard, 2010. BORNHEIM, Gerd. Um filme: Miramar, de Júlio Bressane. Páginas de filosofia da arte. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998. _. O idiota e o espírito absoluto. Rio de Janeiro: UAPÊ, 1998. BRESSANE, Julio. O experimental no cinema nacional. Alguns. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

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WALTER OMAR KOHAN (UERJ) ¹ Ao final dos anos 1970, Derrida encontrou na Biblioteca Bodleiana de Oxford um cartão-postal do século XIII, obra de Matthew Paris, monge medieval. ² O cartão mostra Sócrates sentado, agachado, escrevendo, e Platão atrás, menor, quase no ar, apoiado em um só pé, com o dedo indicador apontado para o alto, justamente indicando, dando uma ordem, assinalando o caminho. Sócrates, de costas para Platão, vê apenas seu indicador e escreve com as duas mãos. Derrida escreveu a propósito desse cartão: “O diabo são eles, ele, o casal Platão/Sócrates, divisível e indivisível, sua interminável partição, o contrato os liga a nós até o final dos tempos” (DERRIDA, 1980, p. 107). E são mesmo. Não há como não lidar com essa dupla em filosofia. Exercício de leitura infinito, interminável, infindável... E, ao mesmo tempo, produtivo, na medida em que ajuda a pensar o que nos importa pensar. Disso trata o presente texto: de pensar, a partir da dupla diabólica Sócrates/ Platão, o sentido de aprender filosofia ou pela filosofia. Para isso, em uma primeira parte, destaca a forma em que a filosofia é apresentada indiretamente, em uma caracterização do filósofo que Sócrates faz dele mesmo em diálogo com Fedro e em outros diálogos de Platão: estão ali em jogo sentidos para um aprender conformado por uma vida filosófica, tal como é entendida por Sócrates; em uma segunda, detalha a condenação de Platão à escrita no Fedro , levando em consideração aportes críticos de J. Derrida para estabelecer o que se passa nessa condenação; em uma terceira seção, mostra os efeitos pedagógicos e políticos dessa condenação e como ela coloca Platão em uma posição surpreendente em relação ao seu próprio mestre, Sócrates. Ao final, o que interessa não é tanto a própria dupla diabólica quanto um problema que é o nosso: qual é o valor educacional da filosofia? O que se aprende em nome da filosofia? I. O FILÓSOFO E AS CONDIÇÕES PARA A FILOSOFIA A vida de Sócrates e sua morte estão marcadas por uma relação muito próxima com o phármakon , traduzido como remédio, veneno, droga, medicina. No Fédon , depois de conversar com seus amigos, Sócrates bebe o phármakon que, cumprindo a condenação, leva seu corpo à morte, mas – ele quer convencer seus amigos – também sua alma a uma nova vida. Não há razões para se entristecer, insiste: a morte é a forma de uma nova vida, mais livre, pura, profunda. No Fedro , o phármakon é um discurso em papiros que leva Sócrates até os confins da pólis para ouvir, do Fedro, o discurso que Lísias proferiu sobre o amor. Ali, afirma que o phármakon é uma das únicas coisas que leva Sócrates a perder o controle de si mesmo, tanto que seguiria Fedro a qualquer lugar a fim de ouvir o que tem para lhe dizer. Uma maior proximidade da vida de Sócrates com o phármakon aparece em outros diálogos. Em uma passagem do Mênon , Mênon acusa Sócrates de têlo enfeitiçado e drogado ( geoteúeis me kaì pharmátteis , 80a). Sócrates o reconhece sem problemas, apenas coloca uma condição: que, se leva todos os outros ao phármakon da aporía, é porque ele está mais em aporía do que ninguém. No Cármides , Sócrates é apresentado por Crítias como conhecedor da droga ( ho tò phármakon epistámenos , 155c) que poderá

curar a dor de cabeça de Cármides (“cuidar da alma com algumas poções”, epoidaîs tisin , 157a). De uma forma próxima a como ele é retratado por outros e por si mesmo, Sócrates retrata Eros no Banquete (203 ss.): daímon , ser intermédio que passa a vida inteira filosofando ( philosophôn dià pantòs toû bíou , 203d), nem mortal (ser humano), nem imortal (deus), feiticeiro terrível, bruxo e sofista, ( deinòs góes kaì pharmakeús kaì sophistés, 203d-e). Parece, sem dúvidas, um autorretrato: em muitas passagens dos diálogos, Sócrates recebe essas características, inclusive de Agatão no próprio Banquete (194a). No Teeteto , Sócrates diz ter a mesma arte da sua mãe, a parteira Fenareta, e também afirma que as parteiras, por meio de drogas ( pharmakía , 149c) e poções, são capazes de provocar ou aliviar dores de parto, parir ou abortar partos difíceis. As parteiras são mulheres que pariram – não poderiam ajudar a realizar algo que nunca experimentaram –, mas já não podem mais parir, tornaram-se estéreis. O mesmo vale, diz Sócrates, para a sua arte de dar à luz: ele mesmo já é estéril, com a diferença de que faz os homens e não as mulheres dar à luz, examinando as almas, mas não os corpos que engendram conhecimentos (150b). O mais importante da arte de Sócrates é sua capacidade, potência, para ser, de qualquer forma, uma pedra de toque ( basanízein dynatòn eînai pantì trópoi , 150c). Embora a forma que Platão descreva esse trabalho sobre o pensamento do jovem seja muito próxima à do Fedro (Sócrates ponderaria se o jovem dá à luz uma imagem – ou simulacro – e uma mentira ou algo fecundo e verdadeiro, eídolon kaì pseudos…góni-mon te kaì alethés , 150c), ele o faz inspirado pela familiaridade com o phármakon , vinda de sua mãe. Essa familiaridade com o phármakon , herdada da mãe parteira, é a condição que permite a Sócrates desenvolver essa capacidade. Como Derrida sinalizara (1991, p. 43 ss.), não há unicidade do phármakon . Ao contrário, ele é contraditório; seu sentido é impossível de ser fixado em um dos contrários sem a presença do outro. Enquanto substância, é a antissubstância: o veneno é sempre remédio; a droga, sempre medicina, a vida, sempre morte... Platão o confirma apresentando, no mesmo Fedro, o remédio (a dialética) como veneno (escrita, graphé ), de modo que a proximidade de Sócrates com o phármakon está também afetada por esse caráter contraditório do phármakon , que lhe outorga tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de ser o que é. Essa proximidade parece também contagiar o próprio Sócrates, impossível de ser fixo em uma identidade sem contradições. Contudo, o phármakon exige um andar mais atento. Vamos mais devagar. Abrimos o Fedro desde o início. O que encontramos? Sócrates e, com ele, um enigma infinito, o da filosofia, ou melhor, o de qualquer professor de filosofia, de todo educador filosofante: o que fazer em nome de uma vida filosófica? Como, por que e com quais sentidos convidar outros a essa vida? Com que direito? Com quais sentidos? O enigma se mostra também sob a forma de uma ausência: encontramos Sócrates e não encontramos Platão. Platão escreve, mas não se escreve. A ausência não é ocasional: como sabemos, Platão só se menciona umas poucas vezes, na Apologia , para

contar-se como um dos que contribuiria a pagar uma eventual multa a favor de Sócrates, e no Fédon , para dizer que estava doente e, por tanto, ausente, na despedida do mestre. Fora delas, sequer aparece mencionado nos diálogos que ele próprio escreveu. Essa ausência marcou decisivamente a filosofia. O mestre, o primeiro a inscrever a filosofia como exercício da palavra com outros na pólis , não escreve. Um discípulo o escreve, se escondendo, por escrito, na máscara do mestre. Essa ausência mostra também o insuportável não lugar de todo aprendiz de filosofia. Como se aprende a pensar? Qual relação estabelecer com o mestre? O que aprender dele? O mestre infinito fala sem escrever e o discípulo desobediente escreve essa ausência. O mestre não escreve e é escrito por um discípulo que condena à escrita e, por escrito, escreve sua filosofia a partir da filosofia do mestre. Repetição e diferença indecifráveis. Assim é a filosofia, uma dupla insuportável. Abrimos o Fedro então e, já no início, encontramos esse enigma da filosofia, um pensamento a ser elaborado e reelaborado até o infinito, um diálogo inverossímel, um mistério perene, o do próprio pensamento em diálogo consigo mesmo, ao mesmo tempo impossível de elucidar, mas também de iludir. Encontramos uma virtualidade que exige ser sempre desdobrada, atualizada, estendida nas mais diversas dimensões, inesgotável, irresolúvel, louca. Lendo o Fedro, dispomo-nos a iniciar mais uma dobra desse movimento, da infinita abertura do pensamento inaugurado por Sócrates e Platão, essa dupla inseparável. Repetimos o gesto de tantos. Não sabemos a intensidade de nossa marca antes de escrevê-la. No momento atual desse movimento, o phármakon da escrita está dentro da própria filosofia. Mais uma vez, é preciso atenuar a velocidade. Voltamos a olhar para o Fedro. O que encontramos? Sócrates encontra Fedro, que está vindo da casa de Lísias, o mais hábil em escrever discursos entre os atenienses. Fedro leva consigo um phármakon, discursos em papiro sob o manto e, com ele, como um ímã, arrasta Sócrates até os confins da pólis. Fedro e Sócrates andam, caminham, estão em pé, em movimento. Já o afirmamos: a filosofia é uma conversa infinita. Buscam, conversando, um lugar mais propício para sentir o discurso de Lísias. Sócrates está perdido. Descoberto o phármakon , faria qualquer coisa para ouvi-lo. O que encontramos no início, então, é o desejo do filósofo de escutar de alguém o que um terceiro, afamado conhecedor, manifesta saber sobre certo saber. Lísias tem discursado diante de Fedro e outros em relação ao amor ( erotikòs ), de uma forma que o próprio Fedro não sabe muito bem como explicar. O tema não é pouco significativo: acerca das coisas do amor é uma das poucas, se não a única, das quais Sócrates reconhece saber nos diálogos (“nada diferente afirmo saber que as coisas do amor”) ( oudén phemi állo epístàsthai è tà erotiká, Banquete 177d). Também diz de quem aprendeu o que sabe do amor nesse mesmo diálogo: de uma mulher, sacerdotisa, estrangeira, Diotima de Mantineia (ibid ., 201d). O filósofo só sabe o que sabe de uma dupla forma de exterioridade, e sabe um saber de relação, de afeto, de paixão.

De modo que o mais valioso dos escritores proferiu um discurso sobre o único saber que o filósofo admite saber, o saber que lhe é mais próprio, um saber que o leva à loucura. É aí a força do phármakon . Rente ele, Sócrates se perde a si mesmo: não pode não querer ouvi-lo. Está tão fora de si que seria capaz de fazer qualquer coisa se Fedro não aceitasse lhe contar o que ouviu de Lísias. Assim, começa então o filósofo: buscando, com outros, um lugar para ouvir o que outros dizem saber sobre o saber que lhe é mais próprio, sobre esse saber sem o qual ninguém que vive segundo a filosofia poderia viver: o amor, um saber de relação, de sensação, de paixão, de encontro com outros corpos e outras almas. Assim, começa, então, a busca de um filósofo: com um desejo, um saber e um caminho a ser percorrido, com outro sobre o que lhe é mais vital, e, ao mesmo tempo, coloca sua vida em questão. O filósofo não conversa com qualquer um. O interlocutor não é um desconhecido. Ao contrário, Sócrates manifesta conhecer Fedro de uma forma tão íntima que não o conhecer significaria também esquecer-se de si mesmo ( Fedro 228a). Não é um detalhe para quem, como Sócrates, se mostra sempre obsessivamente preocupado em conhecer-se a si mesmo. A relação entre conhecimento e esquecimento de si também aparece fortemente em um momento crucial, no início da Apologia de Sócrates (17a), quando, estando sua vida em jogo, e depois de ter ouvido a apresentação das acusações contra ele, Sócrates manifesta que eles foram tão convincentes que, mesmo afastados da verdade, quase conseguiram que ele se esquecesse de si mesmo. O “quase” marca o risco de uma morte talvez mais vital para o filósofo que aquela que está sendo processada. Nos dois casos, o risco de se esquecer de si próprio aparece perante o poder da palavra proferida pelo outro da filosofia, o retórico. Contudo, no início do Fedro , conhecer-se a si próprio supõe conhecer o outro amigo da filosofia com quem se conversa, e ambos os conhecimentos são a condição para ouvir o discurso perigoso do outro da filosofia. Não é apenas Sócrates que conhece Fedro. Também Fedro conhece Sócrates, tanto que ele vai dizer palavras muito semelhantes (236c) a Sócrates logo depois de ler o discurso de Lísias, quando aquele ameaça não querer dizer o que pensa ao respeito. A filosofia é uma conversa entre amigos. Ainda estamos no início do Fedro e não estão dadas todas as condições para começar a filosofar. Não são poucas. É preciso considerar muitas outras coisas: a temperatura externa e a do corpo, o ar que se respira, a tranquilidade do ambiente que permita não ser interrompidos, um som de ambiente agradável, música para os ouvidos. Também, e sobretudo, é necessário tempo. Há que se dispor de tempo para filosofar. Tempo livre, daquele que não pode ser medido pelos cronômetros ou pelos relógios, tempo de inícios sem fim, sem presas, sem condições mais do que as emanadas da própria conversa. Tempo para conversar sobre o que não é urgente e produtivo, tempo compartilhado, comum, tempo de amizade, tempo de verdade. Fedro e Sócrates dispõem desse tempo e encontram também um lugar apropriado para conversar. Uma vez estabelecidas as condições da conversa, o filosofar começa com uma relação a si. Antes de ocupar-se do saber do outro, é preciso explicitar um saber sobre si. Sócrates afirma outra vez seu lugar paradoxal. Manifesta-

se incapaz de se conhecer a si próprio, algumas linhas depois, apenas, de ter afirmado que não conhecer Fedro significaria se esquecer de si próprio. Porém, como é possível que se esqueça do que não se conhece? Só resulta possível para alguém tão próximo do phármakon como Sócrates. Ele parece enfrentar exigências opostas: por um lado, se reconhecesse se conhecer a si mesmo, então já não poderia dedicar sua vida a se investigar a si próprio, como afirma no Fedro e em tantos outros lugares, pois para que iria investigar o que já conhece? Por outro, se não se conhecesse, também não poderia se dedicar a essa vida, pois é esse conhecimento que justifica e outorga sentido a uma vida de busca de si. De modo que Sócrates parece embaraçado: conhecer-se e desconhecer-se são ambos impossíveis e necessários. Como o phármakon, como a filosofia na pólis , como a única vida que faz sentido ser vivida por Sócrates, a que o leva à morte... Talvez por isso Fedro descreva Sócrates como o mais extraordinário, sem lugar e estranho ( atopótatós , 230c) de todos os atenienses, alguém que, embora nunca extrapole os limites da cidade parece mais um estrangeiro sendo guiado ( xenagouménoi , 230c) do que alguém natural de Atenas. Sócrates complementa esta apresentação: reivindica-se como alguém amante de aprender, mais interessado em aprender dos homens da cidade do que das árvores e dos campos. II. A CONDENAÇÃO À ESCRITA Depois de serem estabelecidas as condições da escuta e o saber de si do filósofo, Fedro lê apaixonadamente o discurso de Lísias. Sócrates se volta contra ele em diversos sentidos: na forma, afirma que ele é repetitivo, dizendo as mesmas coisas de uma e outra maneira, como uma criança (235a); no conteúdo, Sócrates cita poetas (Safo e Anacreonte) como possíveis fontes de inspiração para falar melhor sobre o mesmo assunto. Contudo, antes de criticar o discurso de Lísias, volta a falar sobre si: amante como é das palavras ( philológoi, 236e), fala primeiro com a cabeça coberta para evitar a vergonha no olhar de Fedro. A imagem é muito forte: falar sem olhar o amigo um discurso que não resiste às exigências de um cara a cara. Em qualquer caso, Sócrates muda a perspectiva de análise porque, para saber o que Lísias afirma saber, qual seja, se é preciso amar mais a quem não corresponde do que a quem ama, trata-se de deliberar primeiro sobre a essência do amor, sobre o que é o amor. Segue-se um relato do qual, depois, o próprio Sócrates se desculpa e emenda a cara descoberta com outro muito mais poético, que acaba com um exultante elogio a Éros . Assim, a filosofia se mostra como uma forma saber de e sobre o amor. Em seguida, Lísias é criticado, mas a questão não é apenas Lísias senão todos os autores de discursos escritos, os logógrafos. Sócrates o diz claramente: não é vergonhoso escrever, mas sim escrever mal e sem beleza (258d). É preciso então examinar o que significa escrever bem. Antes, Sócrates contará o mito das cigarras, discutirá a relação entre retórica e verdade e analisará em detalhe o discurso de Lísias, através de outros relatos. Também falará outra vez de si: apresenta-se como amante das divisões e das reuniões, que lhe permitem falar e pensar. Chama-se indiretamente de “dialético, capaz de olhar para o uno e o múltiplo” (266b).

No final do diálogo, quando já se considerou o suficiente sobre a arte e a falta de arte nos discursos, Sócrates propõe a Fedro considerar se é conveniente ou não conveniente escrever (274b). Narra então um relato que diz ter ouvido dos antigos e deixa a eles saber sobre sua verdade. O relato conta que uma divindade egípcia, Theuth, inventor de coisas tais como os números, a aritmética, a geometria e a astronomia, o jogo do gamão e os dados, apresentou ao rei Thamuz os caracteres da escrita ( grámmata , 274d) como um aprendizado que tornaria os egípcios mais sábios e com mais memória e, por isso, deveria ser repassado a todos eles. Ele afirma ter descoberto uma droga ( phármakon , 274e) para a memória e o saber. Contudo, o rei questiona a descoberta da divindade. Ele afirma que a escrita teria o efeito contrário, provocando o esquecimento nas almas dos que a aprendem, pois, por confiarem em caracteres externos, descuidariam da memória. Segundo Thamuz, Theuth teria descoberto uma droga ( phármakon , 275a) para a rememoração ( hupomnéseos ) e não para a memória ( mnéme ). O que a escrita oferece aos que a aprendem é aparência de saber, e não verdadeiro saber. Eis a tremenda invenção platônica, seu mito primordial, a divisão do ser em ser em si e ser derivado, em modelo e simulacro, original e cópia. Uma série de duplicações acompanha o movimento inicial no saber, na moral, na política… Em todas elas, a inferioridade do segundo termo diante do primeiro é categórica, fundadora, radical. As consequências são impressionantes: há que conhecer, proteger, admirar as primeiras tanto quanto desapreciar, controlar e combater as segundas. Contudo, o filósofo, querendo ou não, deixa uma deixa para a escrita, por escrito. Com efeito, Platão apresenta uma brecha ainda quando sinaliza sua aparente negatividade da escrita. Por um lado, faz notar várias fraquezas, além da já apontada. Dentre elas, sua dependência: quando é ofendida, a escrita precisa da ajuda de seu pai, pois ela é incapaz de defender-se a si mesma por si mesma (275e). Além disso, ela se oferece indiscriminadamente aos seus leitores sem diferenciar entre os que são capazes de entendê-la e os que não. Finalmente, a escrita parece viva, mas, quando é interrogada, permanece em silêncio (275d), dizendo sempre uma e a mesma coisa. Assim, curiosamente, o questionado phármakon não é pura imperfeição. Platão afirma que ele é sempre um e o mesmo, uma das notas mais destacadas das realidades supremas, em si e por si mesmas, marca de superioridade e perfeição, pois elas não mudam, a diferença das coisas que se geram e se corrompem. Deixa entrever, dessa forma, sua natureza ambivalente, incontrolável, o caráter titânico e provavelmente infrutuoso, que terá a luta por extirpá-lo do ser. Mais ainda, o problema é de família e a dialética não terá um trabalho fácil com sua meia-irmã ilegítima (276a). Efetivamente, a escrita não é apenas exterioridade. Pelo menos como metáfora, sua irmã legítima recebe dela seu nome, ela é também chamada de escrita. Vingança da escrita, contragolpe do phármakon. Platão parece ter caído em sua própria loucura; a dialética é chamada de escrita da alma; o modelo original toma seu nome emprestado da cópia, do simulacro ( eídolon , 276a)! Não é isso, pelo menos não só: a

cópia está encarnada no original, em seu nome. A duplicação está seguida de um julgamento moral (DELEUZE, 2000, pp. 262-4): as imagens dividemse em bem fundadas e bastardas, os pretendentes, em legítimos e ilegítimos. Há que se diferenciar moralmente o mundo surgido da diferença. Em qualquer caso, com esse gesto, a batalha parece perdida antes de começar e justamente às mãos do inferior, pois desse modo confirma-se a antecedência da diferença em relação à unidade. O ser é diferença, mal que pese a Platão. Platão sonharia, afirma Derrida, com uma memória sem suporte, sem signo, sem suplemento (1991, p. 56), absolutamente dona de suas recordações e sua atividade de recordar. Na perspectiva platônica, a escrita, o suplemento, o apoio à memória introduzem uma fissura no ser; a de um ser híbrido, uma cópia, que não pode ser pensado segundo a lógica binária do ser ou não ser, pois ela é e não é ao mesmo tempo. A escrita introduz uma rachadura na inteligibilidade do que é, um desdobramento desnecessário e perigoso da voz, um sintoma externo e debilitado da vitalidade da alma, uma droga ( phármakon ) sedutora que debilita a fortaleza e a integridade da memória e os significados que nela habitam. O lógos , como ser vivo, sofre a invasão externa de um parasita, de um meio-irmão órfão, de uma sobra, de um acréscimo que não faz outra coisa senão corroê-lo. É preciso expulsar este suplemento indesejável, devolvê-lo ao seu lugar, extirpar o parasita, o filho ilegítimo, para limpar a família. A dialética é o caminho platônico da cura. Discurso vivo e animado que se escreve na alma de quem aprende, é capaz de defender-se a si mesma e sabe falar ou calar quando necessário. Frente à dialética, a escrita é tal como uma criança órfã: sofre os efeitos do abandono quando seu pai-escritor não está próximo. Por que Platão critica tão ferozmente a escrita por escrito? Derrida tem sua hipótese: a escrita deve servir para expurgar-se a si mesma; o lógos deve ser curado do parasita da escrita... por escrito. Esta é a ousadia e o risco de Platão, ousadia filosófica, pedagógica e epistemológica, pois não há ciência, epistéme , do phármakon , sua essência é não ter uma essência estável, mas é “o movimento, o lugar e o jogo (a produção) da diferença” (1991, p. 74). O phármakon é, por um lado, uma reserva inescrutável – “fundo sem fundo” – da diferença que “produz” todas as diferenças, o diferir da diferença. Assim, Platão bebe do seu próprio veneno: as oposições do platonismo são derivadas de uma escrita – phármakon anterior, primeira (“arquiescrita”). A escrita é o “jogo do outro no ser” (1991, p. 118). Platão escreve porque o ser não pode ser uno, porque o ser não é presença plena e absoluta. Escreve porque o ser só pode ser se desdobrando, se repetindo no que não é, no simulacro, inscrevendo-se na estrutura da repetição suplementar de uma unidade impossível. Só há ser – e verdade – porque há diferença e repetição. III. A ESCRITA E O APRENDER (PELA FILOSOFIA)

A condenação platônica à escrita é uma condenação a algumas formas de exercer a escrita. Eis um dos problemas principais de Platão: existem rivais que se apresentam como mestres, educando os jovens em uma certa virtude cidadã. Pressupõem que aprender a virtude é possível e a ensinam. Usam a escrita para seus próprios fins: colocam-na em um dispositivo de transmissão, que expressa formas do bem comum muito distantes da que Platão quer para a pólis. Os efeitos da escrita tal como é praticada pelos rivais políticos parecem terríveis ao educador Platão: ela debilitaria a memória e a memória é nada menos do que a fonte do aprender. Assim apresenta-a no Mênon , onde conta uma história segundo a qual aprender é lembrar. Lembremos antes a primeira pergunta, essencial, do diálogo : é possível ensinar a areté (virtude; excelência)? Muitos afirmam que sim e se apresentam como capazes de fazê-lo. Contudo, Platão coloca Sócrates para pôr em questão essa pretensão. Como sempre, Sócrates coloca condições para responder a essa pergunta: há que se saber o que é a areté. Mênon, experto em discursos sobre a areté, pensa que o sabe, mas, depois de algumas perguntas de Sócrates, não sabe mais o que dizer. Mênon está como quem sofre uma descarga elétrica e fica impossibilitado de qualquer movimento. Considera acertado que Sócrates não tenha viajado fora de Atenas, porque, sendo estrangeiro, o teriam julgado como feiticeiro . Sócrates aceita a posição de Mênon com uma condição: “Pois não é por estar eu mesmo no bom caminho ( euporôn ) que deixo os outros sem saída ( aporêin ), senão por estar eu mesmo mais que ninguém sem saída ( aporôn ), assim também deixo os outros sem saída ( aporêin )” ( Mênon , 80c-d). As duas sentenças estão unidas por uma partícula adversativa ( senão ). Em ambas as frases, repete-se a parte final: produzir a aporia nos outros; o que muda é a causa colocada para esse efeito. A contraposição é entre duas eventuais posições de Sócrates, dadas respectivamente pelos prefixos eu (bem, bom) e a (ausência, carência, negatividade) perante a mesma forma póros, que indica movimento, caminho, deslocamento. Sócrates afirma que aturde os outros só porque ele está mais aturdido que ninguém, porque seu saber nada vale, assim como nada valem os saberes dos outros. É possível ensinar a virtude ou excelência? Eis o que o educador Sócrates pensa: ensinar a virtude ou excelência é ensinar que não se sabe o que ela é; não há virtude ou excelência a ensinar, a não ser uma relação inquieta em relação ao saber; uma perturbação com o que se sabe, uma mania erótica por buscar saber sem nunca de fato saber nada, a não ser esse não saber. Só a partir de estar problematizado, um educador pode ajudar os outros a se problematizar. Só um virtuoso pode provocar a virtude. Virtuoso é aquele que não sabe e não se ilude quanto a seu não saber, alguém que não sabe o bom caminho, mas que está sempre em busca do bem caminho, sem jamais possuí-lo. Assim, na perspectiva socrática, só é possível aprender a virtude pelo filosofar. Só alguém muito aturdido pelo perguntar filosofante, que coloque em questão por que vivemos a vida que vivemos, pode provocar, nos outros, esse aturdimento. Por isso, Sócrates nada escreveu, porque não tinha para ensinar nada fixo que pudesse ser escrito. Como escrever uma paixão, uma relação ao saber, um estar sempre incerto em relação ao

caminho a andar, uma forma de se examinar a si mesmo como modo de viver a própria vida? Porém, pôr em questão o que se pensa pode imobilizar o pensamento. Isso acontece com o paradoxo do aprender compartilhado por Sócrates e seus rivais. Aprender parece impossível, pois não se poderia aprender se já se sabe, mas também se não se sabe. Ninguém aprenderia o que já sabe, pois se já o sabe, não há nada a aprender; mas também não poderia aprender o que não sabe, pois como reconhecê-lo se não o sabe? Mênon quer saber como sair da aporia . Sócrates o ajuda, mas não o ajuda como um leitor da Apologia esperaria, com seu saber de não saber. Nesse caso, Platão coloca na boca de Sócrates uma teoria tomada de Píndaro e de outros religiosos, segundo a qual a alma é imortal, e investigar e aprender são totalmente uma reminiscência ( Mênon , 81d). Mênon pede a Sócrates que lhe ensine como é essa teoria. Platão se diverte e faz Sócrates responder: “Agora, tu me perguntas se eu te posso ensinar, a mim que afirmo que o ensino não é senão reminiscência” (82a). Sócrates pede a Mênon que traga um servente (um escravo não adquirido, mas criado na própria casa desde o seu nascimento) que fale grego para mostrar como de fato ele nada ensina. No transcorrer da conversa, o escravo passa de estar certo de um falso saber a uma perplexidade que o leva a querer aprender aquilo que reconheceu como problema; como resultado, aprende um conteúdo novo, matemático, um saber diferente que, na hipótese de Sócrates, ele já sabia, mas não recordava. A conclusão de Sócrates é: “Assim, pois, sem que ninguém lhe tenha ensinado, mas porque lhe perguntaram o que ele sabe, ele mesmo, por si mesmo, recobrou o saber” ( Mênon , 85d). Poderíamos questionar se a conclusão é legítima ou não; se de fato ninguém lhe ensinou e se o servidor aprende o que ele sabe ou o que Sócrates sabe; quais outras coisas ele aprende com Sócrates, além do saber matemático. Porém, o que nos interessa aqui é mostrar que Platão faz Sócrates resolver a aporia do lado do saber com ajuda da memória: só se pode aprender o que já se sabe, porque esse saber está esquecido. Só é possível ensinar o saber que o outro já sabe, fazendo-o lembrar do que já sabe. Eis a saída platônica do paradoxo: aprender é reencontrar-se através de um mestre com um saber que, esquecido, já se possuía. Assim, no estado deteriorado das coisas da pólis , para Platão, aprender se torna não apenas possível, mas imprescindível para encontrar o saber perdido que ajuda o que é a se tornar o que deve ser. Se é verdade que a escrita debilita a memória, então com ela o aprender está em risco, pois sem memória não há aprendizagem. Sem aprendizagem não há possibilidade de sair do que se é para encontrar o que se deve ser, o que verdadeiramente se é, transformar o modo em que se vive para viver uma vida justa, bela, boa. A escrita compromete a memória e, com ela, a aprendizagem necessária para as aspirações platônicas de alcançar uma pólis mais justa, bela e verdadeira. A desqualificação da escrita no Fedro ganha novas dimensões. O embate é vital. A crítica à escrita pressupõe um campo de batalha pedagógico e

político na formação dos atenienses. Curiosamente, o adversário de Platão é também seu mestre que, vimos, ocupa uma posição que contém não só a diferença, mas também a tensão, o paradoxo, a contradição. Assim, Platão embate não apenas os que afirmam saber o que é virtude e como ensiná-la, mas contra o próprio mestre que afirma não saber o que é a virtude e não poder ensiná-la. Derrida sugere (1991, p. 95 ss.) algo interessante: é verdade que Platão condenando a escrita estaria condenando os que acusaram Sócrates por escrito. Porém, estaria também condenando a própria posição de Sócrates, um modo de exercer uma vida filosófica em relação com a vida política, uma relação passiva e estéril na pólis , como a que ele mesmo relata na citada passagem do Teeteto e que outros personagens também criticam nos diálogos, como Calicles, no Górgias, (484c) e Adimanto, na República (VI 487c-d) . A condenação à escrita teria o duplo sentido de condenar os acusadores de seu mestre, mas também a posição dele como filósofo educador, como alguém que a educou em nome da filosofia, sem ensinar, aprendizagens de consequências políticas desaprovadas pelo discípulo que o escreveu. Afinal, é uma disputa sobre o valor político de aprender pela filosofia, de uma vida filosófica. Há duas filosofias enfrentadas: uma que permite aprender a colocar em questão os saberes; outra, um saber afirmativo imprescindível para viver uma vida bela, justa e verdadeira. A filosofia como questionamento da política instituída frente à filosofia como afirmação do saber normativo para outra política na pólis . A posição estrangeira e atópica de Sócrates seria impotente, na visão platônica, para encontrar a positividade política que transforme o estado de coisas. Seriam testemunhos desse enfrentamento platônico à posição socrática a própria escrita (?!) dos diálogos, a fundação da Academia, as viagens a Sicília. Contudo, a batalha também ali parece perdida antes de ser começada. A filosofia, como phármakon, resiste a toda captura. A pretensão política de afirmar um pensamento unitário fracassa uma e outra vez. A diferença não é apenas primeira no ser, mas também na política, na educação e no próprio pensamento. Existe um Sócrates escondido em cada educador platônico. Como um estrangeiro, sorri perante as pretensões formativas da instituição pedagógica da filosofia. Oferece o phármakon da pergunta, do phílos , da diferença. Não sabe o que significam aprender, ensinar, escrever. Não ensina, mas provoca aprenderes. Não escreve, mas gera escritas. Caramba! Melhor parar por aqui, então. Há também um Platão escondido em cada educador socrático... Derrida tem razão: a dupla é mesmo diabólica... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, Gilles. Platon et le simulacre . In: Logic du sens . Paris: Les Éditions de Minuit, 1995. DERRIDA, Jacques. La pharmacie de Platon. In: PLATON. Phèdre. Traduction L. Brisson. Paris, GF-Flammarion, 1968/2000, pp. 255-403. Trad. port.: A Farmácia de Platão . Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 1991. __. La carte postale. Paris: Flammarion, 1980.

KOHAN, Walter Omar. Sócrates & a educação. O enigma da filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. LIDDELL, Henry; SCOTT, Robert. A Greek English Lexicon . Oxford: Clarendon Press, 1966. PLATÃO. Diálogos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 2003. 1 "Uma versão próxima desse texto foi publicada anteriormente como "A Filosofia e seu ensino como phármakon". Educar em Revista, n. 46, 2012, p. 37 - 51." 2 Oxford, Bodleian Library, ms. Ashmole 304, fol 31v o . LÉVINAS E DERRIDA LEITORES DE DESCARTES ALEXANDRE GUIMARÃES (UFU) Para Rafael Guimarães Pinheiro Gostaria de mostrar como a leitura que Lévinas e Derrida fizeram do texto cartesiano nos convoca para uma reformulação da interpretação da filosofia de Descartes, reformulação essa que já se encontra em curso na França há mais de quarenta anos. Inspirados em uma expressão de Jean Greish (2000, p. 15), podemos denominá-la de “olhar fenomenológico sobre o pensamento de Descartes”. Temas como o “sentir” originário, a autoafecção, o “corpopróprio”, a apreensão estética segundo moldes não racionalistas, a experiência do infinito são trabalhados por Michel Henry, Jean-Luc Marion, entre outros. Acredito que um dos pontos principais dessa reformulação do paradigma interpretativo do texto cartesiano seja a reconsideração da noção de pensamento em Descartes. Na leitura tradicional que se faz, a filosofia do referido pensador é considerada uma filosofia da representação. Essa interpretação remonta propriamente a Kant, cuja concepção do cogito é reflexiva e derivada de uma exigência lógica: “Deve o ‘eu penso’ acompanhar todo e qualquer pensamento”(AK, KrV, B 132). Ademais, a categoria elementar do pensamento, para Kant, é a própria representação, gênero que lhe permite transitar da sensação à ideia regulativa (AK, KrV, B 377). O próprio pensar, para ele, consiste em “unir representações”. Heidegger se apropria das teses kantianas, amplificadas pelas neokantianas, que, por sua vez, também influenciaram Husserl, e entende Descartes como um mero precursor da subjetividade transcendental, formulador de um cogito que será realmente explicitado por Kant, pois o filósofo francês se perderia na ontologia realista medieval. Assim, o cogito cartesiano é reflexivo e esclerosadamente intelectualista, como Heidegger vai repetir em sua obra, é um “ cogito me cogitare ”. Mais ainda: Descartes substancializaria o sujeito, de modo a pôr a perder toda a especificidade de sujeito. Tratar-se-ia, portanto, de um cogito caricaturalmente reflexivo, exclusivamente representador, que perde o próprio tema, o do sujeito. Tratar-se-ia de um mero duplo da res extensa , quase uma máquina de pensar, ou, para usar os termos heideggerianos, da confusão do Dasein com o ser, que não é conforme ao Dasein , da perda do Dasein no mundo, do

decaimento por excelência. Por isso, Descartes se torna, para Heidegger, o modelo para pensar a subsistência ( Vorhandenheit ) do mundo, que é domínio da tematização científica e da representação, portanto, da definição puramente ôntica do mundo. Isso posto, vejamos melhor como Heidegger embaçou o olhar fenomenológico sobre a obra de Descartes e, com isso, prejudicou muito a sua compreensão. Heidegger articula a interpretação neokantiana do cogito sujeito e, pior, do substancializado, com a leitura da tese de doutorado de Gilson. Desse modo, o processo de descaracterização da filosofia cartesiana é composto por dois movimentos solidários. A redução do pensamento de Descartes à ontologia medieval facilita a desnaturação do cogito e a sua assimilação ao sujeito kantiano. Cito um estudo sobre esse assunto realizado por E. Faye. Nele, o autor mostra que, em Heidegger, duas são as fórmulas que presidem o deslocamento de teses capitais da filosofia cartesiana do seu contexto original para o escolástico – o que aparece no curso de 23-24, nomeado posteriormente Introdução à Pesquisa Fenomenológica: Assim o cogito sum torna-se “besser” [sic], “die res cogitans qua ens” e a “Cogitatio gleich intentio”, ao passo que é ao contrário inteiramente essencial ver que Descartes tenha, por um lado, renunciado a definir a Filosofia Primeira como ens qua ens e que, por outro lado, tenha abandonado a Psicologia da intentio – que supõe a presença efetiva da coisa antes do ato do intelecto para que ela possa abstrair a forma numa species inteligível (FAYE, 2005, p. 268). Esse quadro permite a Heidegger radicalizar a posição neokantina da substancialização do cogito e da sua interpretação reflexiva, feita pelo próprio Kant, a ponto de, como assinala E. Faye, propor em 1925 nas conferências de Cassel a tese de que Descartes “concebia a consciência como ‘uma caixa com o eu dentro e a realidade de fora’” (ibidem, p. 275). Essa fórmula é pior do que “o fantasma da máquina” de Gilbert Ryle, pois que ela reduz à mera espacialidade e, portanto, ao mecânico o pensamento. Já não se trata de reduzir o pensamento de Descartes a um dualismo, mas de desnaturar por completo o sentido do cogito , criando uma como que máquina de representação. A dimensão do meum corpus , da união substancial, do sentir, do querer, do imaginar é eliminada da sua pauta interpretativa, a fim de construir o inimigo e a filosofia a ser combatida. Temos, assim, o mundo espacializado da representação banal, a ser substituído pelo “mundo-ambiente” ( Umwelt ), o pensar exclusivamente intelectual e representativo pelo “ver-ao-redor” ( Umsicht ). Vejamos, pois, os termos dessa simplificação do pensamento cartesiano. Heidegger, ao querer descrever uma ideia de mundo a ser rejeitada, toma no Ser e Tempo alguns parágrafos dos Principia Philosophiae de Descartes como fio condutor. Embora anuncie uma destruição ontológica do cogito sum em uma parte a ser escrita do tratado, nunca levará a bom termo essa empresa. Limita-se a estudar nos parágrafos 19-21 a res extensa (ibidem, p. 273). Isso é convergente com o esforço de reduzir o cogito à ontologia medieval, pois, na medida em que, segundo ele, Descartes ainda falsearia a noção de sujeito, o seu sujeito seria, de certo modo, também espacializável e poderia ser entendido como mero subsistente. No parágrafo 19, Heidegger

começa a exposição se referindo a uma falta de distinção ontológica entre a res cogitans e a res extensa : Descartes distingue o ego cogito , como res cogitans , da res corporea . Essa distinção determinará ontologicamente a distinção de “natureza e espírito”. Essa oposição, por muitas que sejam ainda as modificações ônticas fixando o conteúdo dessa oposição, a ausência de clareza de seus fundamentos ontológicos e dos próprios membros da oposição, tem sua raiz imediata na distinção efetuada por Descartes. No interior de qual “entendimento-de-ser” Descartes determinou o ser desses entes? Substantia é o termo que designa o ser de um ente que é em si mesmo. Se a expressão designa o ser de um ente como substância, substancialidade, então, o ente ele mesmo é uma substância. Essa dúplice significação de substantia , que o conceito antigo da ousia já trazia em si, não é casual (HEIDEGGER, 1977, p. 120). O interessante é que Heidegger passa diretamente ao exame da res extensa , como que sugerindo que, ao trabalhar o significado de substancialidade e não o significado de uma substância, Descartes vai relegar as duas res ao mesmo modo de ser, o do subsistente. Vejamos: “A determinação ontológica da res corporea exige a explicação da substância, isto é, da substancialidade desse ente como uma substância” (ibidem, loc. cit.). Toda afecção, toda a dimensão sensível, todo “encontrar-se” ( Befindlichkeit ) do mundo é perdido na formação desse subsistente. Descartes vai então, segundo Heidegger, torcer o conceito de substância, para que seja regulado unicamente pela substancialidade. Ademais, não podemos esquecer Guéroult, cuja interpretação intelectualista do cogito , de inspiração espinosana, muito influenciou corações e mentes na França e no Brasil. Talvez o estudo de autores como Heidegger e Guéroult tenha levado Foucault e Deleuze a caracterizarem o pensamento de Descartes como uma filosofia da representação. Na famosa polêmica entre Foucault e Derrida sobre a análise que Foucault faz da Primeira Meditação , Derrida realiza uma leitura do texto cartesiano que não o destitui da sua dimensão fenomenológica originária. De certo modo, o próprio Foucault, cuja proposta filosófica não seria a de fazer “História da Filosofia”, mas de deixar falar os que não tiveram voz na “História”, por assim dizer, das “Ideias”, reconheceu posteriormente a falta de oportunidade da análise de um texto filosófico na História da Loucura (FOUCAULT, 2002, p. 272). Ao dizer que a loucura foi excluída do cogito cartesiano, Foucault entende a filosofia de Descartes como uma filosofia da representação. Derrida, por sua vez, na sua conferência sobre a História da Loucura no Colégio de Filosofia de Jean Wahl, mostra o que há no pensamento cartesiano para além do limiar epistemológico das ideias da época clássica, dando voz a dimensões do cogito que haviam sido olvidadas pela tradição:

Não somente Descartes já não põe a loucura à porta na fase da dúvida radical, não somente ele instala a sua possibilidade ameaçadora no coração do inteligível, mas não permite também a nenhum conhecimento determinado lhe escapar de direito. Ao ameaçar o todo do conhecimento, a extravagância – a hipótese da extravagância – não é uma modificação interna (DERRIDA, 1967, p. 85 e ROCHA, 2011, pp. 103-117). ³ Extravagância é o que reúne a experiência do louco e daquele que sonha ou daquele que se defronta com o gênio maligno. É a condição de exterioridade que arrebata o pensamento diante de uma alteridade radical, em que a razão enquanto o “mesmo” se perde. Derrida explicita a impossibilidade de reduzir a extravagância da loucura ao “mesmo”: “Em nenhum momento o próprio conhecimento poderá então dominar a loucura e controlá-la, isto é, objetivá-la.” Essa impossibilidade de objetivar, de tornar objeto, indica a dimensão não representacional da filosofia de Descartes e, por assim dizer, de uma fenomenologia não objetiva. Derrida sugere então, em seguida, a complexa produção da razão, do “mesmo”, a partir da loucura, do seu “outro”, e ainda assinala o caráter não representacional do cogito : O ato do cogito e a certeza de existir escapam bem, pela primeira vez, à loucura; mas, além disso, já não se trata, pela primeira vez, de um conhecimento objetivo e representativo, já não se pode dizer literalmente que o cogito escapa à loucura porque ele estaria fora de seu alcance, ou porque, como o diz Foucault , “eu que penso, não posso ser louco”, mas justamente porque em seu instante, em sua instância própria, o ato do cogito vale mesmo se eu sou louco, mesmo se meu pensamento é inteiramente louco. Há um valor e um sentido do cogito , como da existência, que escapam à alternativa entre uma loucura e uma razão determinada (ibidem, loc. cit.). Derrida se refere à radicalidade da experiência do cogito como aguda, pois não só se trata de uma experiência intensiva, experiência em sentido próprio – do encontro com que é propriamente outro –, mas é uma experiência de um sentimento extremo em relação ao outro, o do phobos , da rejeição do outro. No entanto, trata-se de uma rejeição que também acolhe o outro, operando uma catarse nos moldes aristotélicos, porquanto sentimentos opostos em relação ao outro convivem. Diante da experiência aguda do cogito, a extravagância, como o diz o Discurso do método , está irremediavelmente do lado do ceticismo. O pensamento já não teme a loucura: “as mais extravagantes suposições dos céticos não são capazes de abalá-lo” ( Discurso , IV a. parte). A certeza assim atingida não está ao abrigo de uma loucura enclausurada; ela é atingida e assegurada na própria loucura. Ela vale mesmo se eu for louco. Suprema segurança parece não requerer nem exclusão nem contorno (ibidem, p. 86).

O temor inicial diante da loucura, que poderia levar a seu enclausuramento na primeira fase da dúvida natural, abre-se para seu acolhimento na sequência da Meditação : Descartes nunca enclausura a loucura, nem na etapa da dúvida natural nem na etapa da dúvida metafísica. Ele aparenta apenas excluí-la na primeira fase da primeira etapa, no momento não hiperbólico da dúvida natural. A audácia hiperbólica do cogito cartesiano, sua audácia louca – e nós já não compreendemos talvez muito bem como audácia porque, diferentemente do contemporâneo de Descartes, nós somos seguros demais, muito mais rompidos com o seu esquema do que com a sua experiência aguda –, sua audácia louca consiste então a retornar a um ponto originário, que já não pertence ao par uma razão e uma desrazão determinadas, a sua oposição ou a sua alternativa. Que eu seja louco ou não, cogito sum. A todos os sentidos dessa palavra, a loucura não é então senão um caso do pensamento (no pensamento). Trata-se de recuar a um ponto em que toda a contradição determinada sob a forma de tal estrutura histórica de fato pode aparecer, e aparecer como relativa a esse ponto zero, em que o sentido e o non-sense determinados se juntam em sua origem comum (ibidem, loc. cit.). Na conclusão de seu estudo sobre a História da Loucura , Derrida fala-nos de uma crise que caracteriza o filosofar; crise à qual acrescentaria o adjetivo trágico, para marcar a tensão dos sentimentos da alteridade. Definir a Filosofia como querer-dizer-a hipérbole é confessar – e a Filosofia é talvez essa gigantesca confissão – que no dito histórico no qual a Filosofia se torna serena e exclui a loucura, ela se trai a si mesma (ou ela se trai como pensamento), ela entra em uma crise e em um esquecimento de si que são um período essencial e necessário de seu movimento. Eu não filosofo senão no terror , como louco confesso. A confissão é ao mesmo tempo, em seu presente, esquecimento e desvelamento, proteção e exposição: economia (ibidem, p. 96). A confissão da razão acolhe o “outro” que atemoriza a razão, porque ela não consegue submetê-lo à sua medida, fazê-lo propriamente seu, assimilá-lo no “mesmo”. Trata-se de uma crise trágica permanente, que, ao mesmo tempo, enlouquece a razão para fundar a própria racionalidade. O razoável, o consentâneo com a razão, já não é capaz de fundar a racionalidade. Nos termos de Derrida: Mais essa crise na qual a razão é mais louca que a loucura – pois ela é nonsense e esquecimento – e em que a loucura é mais racional que a razão, pois ela é mais próxima da fonte viva, embora silenciosa ou murmurante do sentido, essa crise começou desde sempre e é interminável. É suficiente dizer que se ela é clássica; não o é talvez no sentido da idade clássica, mas no sentido do clássico essencial e eterno, embora histórico em um sentido insólito (ibidem, loc. cit.). Sem, no momento, querer pensar as alteridades ao pensamento da Segunda Meditação – como, por exemplo, o homem, cujo conceito o pensamento rejeita, mas que, ao mesmo tempo, acolhe, porquanto seja a sua última referência residual; ou o corpo cuja mecânica e automatismos são rejeitados, mas que, ao mesmo tempo, se inscreve no próprio pensamento

como sentir e “corpo-próprio” –, passemos para a Terceira Meditação , em que ocorre a experiência mais radical, a do absolutamente outro, a experiência por excelência. De modo que poderíamos conferir a Descartes de forma mais própria a designação de empirista; empirista, por certo, não da experiência banal e rotineira, que, a dizer precisamente, não é experiência, mas de uma experiência intensiva, de um encontro radical. Lévinas viu o que realmente aflorava na consideração que Descartes fez do infinito. Infinito em relação ao qual temo vertiginosamente – para usar uma forma popular da religião: temo a Deus; Deus, cuja visibilidade enquanto Deus me aterroriza –, mas que é, ao mesmo tempo, destinatário do meu amor, desejo do invisível, referência do meu prazer e da minha felicidade. Deus, a quem, no seu acolhimento, sinto com, me compadeço, experimento a piedade e, ao me compadecer, sinto a desproporção e a dessimetria entre o infinito e eu. Digamos assim, ao tentar me pôr no lugar dele por acolhimento, percebo a impossibilidade do meu desejo e do meu amor, mas, pelo próprio desejo, entendo o meu lugar e tenho piedade de mim por entender e sentir a minha própria finitude. Essa experiência, pelo seu caráter intenso e radical, não pode ser limitada à categoria da representação. Nesse sentido, inspirando-me nas formulações levinasiana e derridiana, às quais acrescento a contribuição de Michel Henry, procuro sempre mostrar que a ideia não pode ser confundida com a representação. A ideia tem de dar conta da ideia sensível não representativa e da ideia do infinito, que, pelo excesso de luz, cega a representação, torna-se invisível. No próprio texto da Meditação, acredito ter encontrado a hipótese filológica que permitiria reinterpretar Descartes nesse aspecto: trata-se de pensar o repraesentare a partir do exhibere , o repraesentare seria um caso exhibere . O pensamento em Descartes é antes exhibere que repraesentare (SOARES, 2011, p. 307-309). Vejamos como Lévinas, em seu prefácio à edição alemã de Totalidade e infinito , pensa não só o limite da própria representação, mas da própria objetividade intencional: Mas no discurso de Totalidade e infinito não se esqueceu do fato memorável que, em sua Terceira Meditação da Primeira Filosofia, Descartes encontrava um pensamento, uma noesis , que não estava à medida de seu noema , de seu cogitatum . Uma ideia que dava ao filósofo vertigens em vez de se alojar na evidência da intuição. Pensamento que pensa mais – ou que pensa melhor – que pensava segundo a verdade. Pensamento que respondia também com adoração ao Infinito de que era o pensamento. Para o autor de Totalidade e infinito , esse foi um grande espanto após a lição sobre o paralelismo noético-noemático no ensino de seu mestre Husserl, que se dizia, ele mesmo, discípulo de Descartes! Ele se perguntou, então, se ao amor de “o amor da sabedoria”, se ao amor que é a Filosofia vinda dos gregos – não era cara senão quanto à certeza dos saberes que investem o objeto ou à certeza maior ainda da reflexão sobre esses saberes; ou se essa sabedoria amada e esperada dos filósofos não era, para além da sabedoria do conhecer, sabedoria do amor ou a sabedoria em forma de amor. Filosofia como amor do amor (LÉVINAS, 1990, p. IV). Em Descartes temos uma definição de Filosofia como estudo da sabedoria, que poderia ser invertida em sabedoria do estudo, na medida em que os

procedimentos de estudo, a dúvida, o método, a própria definição de teoria e racionalidade se põem em primeiro lugar. No entanto, o estudo expressa no latim uma das formas do amor, que no grego corresponde a spoudé , o amor zeloso. Trata-se, portanto, de um amor pela sabedoria do amor. A Filosofia seria esse amor cuidadoso ou zeloso por esse amor zeloso. A referência desse amor é o infinitamente outro. “Pensamento que pensa melhor que pensava segundo a verdade.” Essa formulação é a chave para entender a fundação da representação pelo exhibere ; ela se faz por uma ideia que é sentida no seu caráter efetivamente exterior, a ideia de infinito. Trata-se da ideia que extravasa a apreensão intelectual, o que permite a Descartes, desde a Carta a Mersenne, de 27 de maio ou 3 de junho de 1630, elaborar a diferença entre saber ou entender e compreender ou conceber: Digo que eu o sei e não que o concebo nem que o compreendo; pois pode-se saber que Deus é infinito e onipotente, conquanto sendo nossa alma finita não o possa compreender nem conceber; assim como podemos tocar com as mãos uma montanha mas não abraçá-la como faríamos com uma árvore, ou qualquer outra coisa que não excedesse de modo algum a grandeza de nossos braços: pois compreender é abraçar pelo pensamento; mas, para saber uma coisa, é suficiente tocá-la pelo pensamento (AT, I, 152). Diferença essa retomada na Terceira Meditação : E não importa que eu não compreenda o infinito, ou que em Deus haja inúmeras outras coisas que não posso de modo algum compreender, nem talvez atingir pelo pensamento ( nec forte etiam attingere cogitatione ). Pois é da natureza do infinito que não seja compreendido por mim, que sou finito, bastando que eu entenda isso e julgue que estão em Deus formal ou eminentemente todas as coisas que percebo claramente e nas quais sei que existe alguma perfeição, talvez também inúmeras outras, que talvez ignore, para que a ideia que dele tenho seja de todas as que estão em mim, ao máximo verdadeira e ao máximo clara e distinta (AT, VII, 46, 18-28 [DESCARTES, 2004, p. 93]). O excesso de luz dessa ideia, como que nos cega e nela se confunde tudo o que percebo claramente e o que posso ignorar em sua eminência. Ideia cuja beleza de sua imensa luz nos afeta e nos comove tão profundamente que nela experimentamos “o maior prazer ( maximam voluptatem ) de que somos capazes nesta vida” (AT, VII, 52). Ideia cujo sentimento, segundo Lévinas, nos faz remontar não só à quebra da própria totalidade, mas à situação que, por quebrá-la, condiciona a própria totalidade. “A situação da quebra é o resplandecer da exterioridade e da transcendência do outro, que, rigorosamente desenvolvido, se exprime pelo infinito” (LÉVINAS, 1990, p. 9-10). Essa ideia permite que Lévinas reconsidere o processo de intencionalidade, pois já não é o pensamento que constitui o mundo, mas é o infinito que constitui o pensamento, e radicaliza a separação entre a ordem da consciência e a da transcendência, invertendo por completo o processo de intencionalidade, no qual já não é o pensamento que vai ao mundo, mas é o infinito que precede e, assim, constitui o pensamento. Essa inversão explicita o fato inverossímil de que a identidade do pensamento se constitui

por aquilo que ele não pode conter nem receber segundo sua própria identidade (ibidem, p. 12. Cf. WOJCIECH, 2012, p. 491-509). Desse modo, ao afirmar que “eu tenho de algum modo primeiramente em mim a noção do infinito e, depois, a do finito” (AT, IX, 36), Descartes estabelece a oposição radical entre as ideias objetivas, que provêm da atividade cognitiva própria, baseada sobre a compreensão de seu conteúdo, e a ideia de infinito, que não pode ser constituída. Há que se dizer que a questão da Terceira Meditação é do caso extremo, o da impossibilidade de que o cogito seja causa da realidade objetiva de alguma de minhas ideias. Pelas noções de causalidade formal e de eminente, todas as representações claras e distintas do extenso foram excluídas da investigação. Já não se trata de cogitar o extenso, de me representar algo clara e distintamente, determinando, segundo a minha plena intelecção, o todo de um objeto. Mas, sim, de encontrar algo exterior que exista necessariamente, mesmo que não lhe possa determinar como objeto de minha compreensão Em uma outra passagem de Totalidade e infinito na qual se refere a Descartes, Lévinas retoma, de certo modo, a tensão trágica da relação para com o outro, do terror e do acolhimento, a inadequação, a dissimetria que, ao ser acolhida, implica uma violência: A violência que consiste para um espírito em acolher um ser que lhe é inadequado contraria o ideal de autonomia que guia a Filosofia, senhora de sua verdade na evidência? Mas a relação com o Infinito – a ideia do Infinito como a chama Descartes – transborda o pensamento em um sentido inteiramente diferente da opinião. Essa se evanesce como o vento quando o pensamento a toca, ou se revela como já interior a esse pensamento. Na ideia do Infinito pensa-se o que remanesce sempre exterior ao pensamento. Condição de toda opinião, ela é também condição de toda verdade objetiva. A ideia do infinito é o espírito antes que ele se ofereça à distinção de o que descobre por si mesmo e de o que recebe da opinião. Nessa passagem, em que temos um eco do “entedimento-toque” e da incompreensão, do inabarcável, do indeterminável, Lévinas explicita esse exhibere fundador da ideia do infinito em relação a toda opinião e ciência. Essa incompreensibilidade é o transbordamento do infinito no pensamento que deseja pensá-lo. A incompreensibilidade assinala a experiência que, embora não objetiva, se mostra a experiência por excelência: A relação com o Infinito não pode, certamente não, se dizer em termos de experiência – pois o Infinito transborda o pensamento que o pensa. Nesse transbordamento produz-se precisamente sua própria infinição , de modo que será preciso dizer a relação com o infinito em outros termos do que em termos de experiência objetiva. Mas se experiência significa precisamente relação com o absolutamente outro – isto é, com o que sempre transborda o pensamento – a relação com o Infinito realiza a experiência por excelência (LÉVINAS, 1990, p. 10). Em uma retomada da ideia cartesiana de Infinito, Lévinas acompanha a contraprova da Terceira Meditação , em que não basta mostrar a exterioridade, mas há que se mostrar também que a exterioridade é propriamente o infinito, o transcendente em termos levinasianos. O infinito é

o ente pleno de determinações, de perfeições, prenhe de ser. Como Espinosa já assinalara no Tratado da Reforma do Intelecto , a sua etimologia é enganosa, pois que é o finito a negação do infinito, e não o contrário. Não se pode fabricá-lo como quererá a hipótese cartesiana da projeção antropomórfica dos atributos divinos, ou a hipótese teológica de Feuerbach ou a constituição husserliana da transcendência. Pode-se, entretanto, tentar deduzir a alteridade metafísica a partir dos seres que nos são familiares, e contestar, desde então, o caráter radical dessa alteridade. A alteridade metafísica não se obtém pelo enunciado superlativo das perfeições, cuja pálida imagem preenche o aqui embaixo? Mas a negação das imperfeições não é suficiente para a concepção dessa alteridade. Precisamente, a perfeição supera a concepção, transborda o conceito, designa a distância: a idealização que a torna possível é uma passagem ao limite, isto é, uma transcendência, passagem ao outro, absolutamente outro. A ideia do perfeito é uma ideia do infinito. A perfeição que essa passagem ao limite designa não remanesce sobre o plano comum, ao sim e ao não em que opera a negatividade. E, inversamente, a ideia do infinito designa uma altura e uma nobreza, uma transcendência. O primado cartesiano da ideia do perfeito em comparação com a ideia do imperfeito conserva, assim, todo o seu valor. A ideia do perfeito e do infinito não se reduz à negação do imperfeito. A negatividade é incapaz de transcendência. Essa designa uma relação com uma realidade infinitamente distante da minha, sem que essa distância destrua, entretanto, essa relação e sem que essa relação destrua essa distância, como se isso se produzisse por relações interiores ao mesmo... (LÉVINAS, 1990, p. 31). Essa relação do “mesmo” com o “outro” – sem que a transcendência da relação corte as ligações que uma relação implica, mas sem que essas ligações unam em um “todo” o “mesmo” e o “outro” – é fixada, com efeito, na situação descrita por Descartes, em que o “eu penso” entretém com o Infinito, que não pode de modo algum conter, e de que é separado, uma relação chamada “ideia do infinito”. Certamente, as coisas, as noções matemáticas e morais, elas também nos são, segundo Descartes, presentes por suas ideias e dessas se distinguem. Mas a ideia do infinito tem isso de excepcional: seu ideatum supera sua ideia, ao passo que, para as outras coisas, a coincidência total de suas realidades “objetiva” e “formal” não é excluída; de todas as ideias, diferentes do Infinito, teríamos podido, a rigor, dar conta por nós mesmos. Sem nada decidir por enquanto da verdadeira significação da presença em nós das ideias das coisas, sem aderir à argumentação cartesiana que prova a existência separada do infinito pela finitude do ser que tem uma ideia do infinito (pois não há talvez muito sentido em provar a existência descrevendo uma situação anterior à prova e aos problemas de existência), importa sublinhar que a transcendência do infinito, em comparação com o eu, que é dele separado e que o pensa, mede, se se pode dizer, sua própria infinitude. A distância que separa ideatum e ideia constitui aqui o conteúdo do próprio ideatum . O infinito é o próprio de um ser transcendente enquanto transcendente, o infinito é o absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum de que não pode haver senão uma ideia em nós; ele é infinitamente distanciado de sua ideia – isto é, exterior – porque infinito.

Pensar o infinito não é pensar um objeto, não é situá-lo em uma distância psicológica ou mesmo geométrica, mas pensar o não objetivo desse modo não é pensar o indeterminado, é pensar o não objetivo não por carência, mas por excesso de determinação e, portanto, transbordante, o completamente estrangeiro, o fora e distante de toda ordem e medida. Como diz Lévinas: Pensar o Infinito, o transcendente, o Estrangeiro, não é então pensar um objeto. Mas pensar o que não tem os delineamentos do objeto é em realidade fazer mais ou melhor que pensar. A distância da transcendência não equivale àquela que separa, em todas as nossas representações, o ato mental de seu objeto, uma vez que a distância à qual se detém o objeto não exclui – e em realidade implica - a posse do objeto, isto é, a suspensão de seu ser (LÉVINAS, 1990, pp. 40-41). A interpretação de Descartes não pode passar incólume pela leitura que Lévinas e Derrida fazem do texto cartesiano. O olhar desses filósofos nos faz ver mais, nos faz descobrir a densidade do filosófico e nos faz repensar a “História da Filosofia”. Um filósofo como Descartes pode ser reconvocado à cena do pensamento e responder ao nosso apelo, Khairos, momento oportuno, para mostrar toda a sua loucura na fundação da própria racionalidade e para mostrar a infinita vertigem em que assenta o próprio pensamento. Trata-se de uma desordem e desmedida que estão para aquém e para além de toda representação. É esse Descartes reconvocado que pode revelar-nos não só ideias encobertas, mas também textos esquecidos, como o seu diálogo La recherche de la vérité , em que nos deparamos com a experiência literária do “outro” nas suas personagens. Dentre elas, é a que se mostra na sua condição mais estranha, mais insólita, ao diálogo científico e filosófico – por não ter estudado na universidade – que confere o sentido ao próprio diálogo. É nesse texto que encontramos uma das poucas referências à consciência em Descartes, mas não se trata da consciência de si, identitária, de Locke ou do idealismo alemão, mas sim da consciência que se quer “ciência-com” o “outro”. É nele também que o cogito não é o cogito , é o dubito , mas também não é o dubito , é antes o dubitas , o duvidar flexionado na segunda pessoa (AT, X, 515). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DERRIDA, J. L’écriture et la différence . Paris: Seuil, 1967. DESCARTES, R. Meditações sobre Filosofia Primeira . Trad. de Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp, 2004. FAYE, E. La pensée métaphysique de Descartes et son «interprétation» par Heidegger. In: ZARKA, Y. C. et PINCHARD, B. (Orgs.). Y a-t-il une histoire de la métaphysique? Paris: PUF, 2005. FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos I . Trad. de Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. GREISCH, Jean. Le cogito herméneutique . Paris: Vrin, 2000.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo . Trad. de Fausto Castilho. Frankfurt: Vittorio Klostermann (Gesamtausgabe), 1977 (mímeo). LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini . Paris: LGF, 1990. ROCHA, Ethel Menezes da. Notas sobre o argumento da loucura na “Primeira Meditação”. Revista Educação e Filosofia. Uberlândia: Edufu, número especial, 2011. SOARES, A. G. T. de. O sentido da “cogitatio” em “A busca da verdade” de Descartes. Revista Educação e Filosofia . Uberlândia: Edufu, número especial, pp. 307-309, 2011. STARZYNSNKI, Wojciech. A ideia infinitatis em Husserl, Sartre, Lévinas et Marion. Educação e Filosofia. número 52. Uberlândia: Edufu, n. 52, pp. 491-509, 2012. 3 A autora, através de uma rigorosa análise lógica e literal do texto cartesiano, chega à conclusão derridiana de não exclusão da loucura. ADORNO E DERRIDA: UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO FABIO AKCELRUD DURÃO (UNICAMP) Je leidenschaftlicher der Gedanke gegen sein Bedingtsein sich abdichtet um des Unbedingten willen, umso bewußtloser, und damit verhängnisvoller, fällt er der Welt zu. Selbst seine eigene Unmöglichkeit muß er noch begreifen um der Möglichkeit willen. Adorno , Minima Moralia. Il y a du disparu dans l’apparition même comme réapparition du disparu. Derrida , Spectres de Marx. I Que comparações entre Adorno e Derrida não tenham ocupado a posição de relevo que lhes seria devida é algo tão plausível quanto surpreendente. Plausível, antes de qualquer coisa, por causa de uma infeliz coincidência no desenvolvimento da filosofia na França e Alemanha. Pois a primeira passou por uma forte onda anti-hegeliana, desde pelo menos o advento do estruturalismo, sendo Hegel a principal referência teórica não apenas para Adorno, mas para a Escola de Frankfurt como um todo; já quanto à Alemanha, ela voltou-se cada vez mais para a produção teórica estadunidense, seja por meio de uma reapropriação da filosofia analítica, seja pela descoberta tardia do pós-modernismo. Derrida, neste caso, seria visto ou como um não filósofo, segundo os analíticos, ou como profeta, para os novos deslumbrados. Some-se a isso que a Escola de Frankfurt, no sentido de seu projeto original – o de Horkheimer, Adorno, Marcuse, Fromm e Benjamin – nunca se firmou na França, e para muitos ela teria sido suplantada pela virada linguística de Habermas e seus seguidores. Em várias situações, é a este que se faz referência quando se fala da “Escola de Frankfurt”, e foi justamente ele o interlocutor privilegiado por Derrida no

contexto alemão. Já em relação ao Brasil, não é de espantar que Adorno e Derrida sejam tidos como referências fundamentais, mas que permaneçam ao mesmo tempo completamente isolados um do outro, uma vez que a polarização ressentida, sem diálogo, entre marxismo e pós-estruturalismo é típica de nosso ambiente acadêmico/intelectual. ¹ Mas a falta de comparações entre Adorno e Derrida é ao mesmo tempo espantosa, dados não apenas os pontos de encontro de seus projetos filosóficos – eles mesmos indicativos de tendências mais amplas, algo como o Zeitgeist de nosso agora –, mas também devido à produtividade advinda da tensão entre os dois filósofos: o confronto entre eles, principalmente em seus desacordos, mostra em que medida buscam algo de semelhante, ainda que com graus diversos de eficácia. Tanto maior é o espanto, porém, quando nos lembramos que o próprio Derrida, ao receber em 2001 o Prêmio Adorno, concedido pela prefeitura de Frankfurt, pronuncia as seguintes palavras: Há décadas ouço em sono, como se diz, vozes. Por vezes, vozes de amigos, outras, não. São vozes em mim. Todas elas parecem dizer-me: por que não reconhecer, clara e publicamente, uma vez por todas, as afinidades entre teu trabalho e o de Adorno? Não és um herdeiro da Escola de Frankfurt? [...] Se a paisagem das influências, das filiações ou heranças, também das resistências, permanecerá sempre atormentada, labiríntica ou abissal, e neste caso talvez mais contraditória e sobredeterminada que nunca, estou feliz, hoje, graças aos senhores [i.e. aqueles que outorgaram o prêmio] de poder e dever dizer “sim” à minha dívida para com Adorno, e em mais de uma matéria, mesmo não podendo, ainda, ser capaz de respondê-la, ou de responder por ela (DERRIDA, 2002, pp. 43-44). ² A dívida é reconhecida, mas não explicitada. Valeria, assim, a pena, ainda à guisa de introdução, listar algumas semelhanças, onze ao todo, que deveriam bastar para persuadir os céticos sobre a relevância de uma aproximação entre Adorno e Derrida: a. do ponto de vista da tradição filosófica, há pontos de contato, principalmente em torno de Husserl, que desempenhou um papel importante na formação de ambos, Derrida com sua introdução à Origem da Geometria , Adorno com Para uma metacrítica da epistemologia ; b. os dois têm como principal oponente aquilo que poderia ser chamado de uma filosofia da identidade (em Derrida relacionada à “presença”, em Adorno, à prima philosophia ); c. tanto Derrida quanto Adorno não apenas valorizam a forma de apresentação, a Darstellung , como parte do conteúdo do que é apresentado, como também concebem o próprio estilo, a assinatura do pensamento, como traço essencial de seu fazer teórico; d. em ambos a escrita – Schrift em Adorno e écriture em Derrida – ocupa um lugar privilegiado no processo de descoberta; e. tanto um como o outro opõem-se ao ideal de uma filosofia da comunicação ou de uma razão comunicativa;

f. os dois praticam uma estratégia micrológica de leitura, que privilegia o detalhe, a ambiguidade ou metaforicidade de conceitos e categorias, e que entra em choque não apenas com a ideia de sistema como organização de pensamento, mas também com o próprio conteúdo manifesto dos textos abordados; g. há vários conceitos-chave comuns aos dois, como os de constelação ou nome, mas, em especial, deve-se enfatizar o admirável paralelismo entre a diferença ( différance ) derridiana e o não idêntico ( das Nichtidentische ) adorniano; h. a arte desempenha uma função fundamental para ambos; ³ i. tanto Adorno quanto Derrida são pensadores interdisciplinares – profundos conhecedores da tradição filosófica, recusam-se a meramente permanecer dentro dela; j. os dois foram marcados pelo exílio, o de Adorno nos EUA durante a Segunda Guerra, o do argelino Derrida, há muito, na metrópole colonial; k. ambos são judeus que foram intensamente influenciados pela mística judaica em seu pensamento. Estas semelhanças encontram-se espalhadas pela parca bibliografia existente, que, por certo, apresenta diferentes graus de penetração, ao mesmo tempo que exibe posicionamentos bem divergentes. No auge da onda desconstrutivista nos EUA, Michael Ryan (1982) tentou oferecer uma “articulação crítica” entre marxismo e desconstrução, dedicando algumas páginas para a comparação entre Adorno e Derrida. O projeto geral era promissor: Uma “articulação crítica” não converte similaridades em identidades, nem mantém distinções com excessivo rigor. Assemelha-se mais a um tecer de fios heterogêneos a gerar um novo produto, do que a uma comparação erudita e desinteressada de massas homogêneas cuja distinção fosse respeitada (RYAN, 1982, p.xiii).

Infelizmente, o texto não fica à altura de seu próprio ideal. O marxismo acaba sendo engolido pela agenda desconstrutivista, sem ganho real para nenhum dos dois; os pontos de encontro – a crítica à metafísica, ao idealismo, à teleologia, e às instituições, e a proposta de modelos igualitários – não avançam uma agenda comum. Pelo contrário, a desconstrução fica desnecessariamente pesada com a bagagem de uma terminologia para ela limitadora (“burguesia”, “operariado”, “forças produtivas” etc.), enquanto o marxismo perde o fio de sua navalha com a disseminação da diferença para além da luta de classes. ⁴ Desconstruir a opo sição entre trabalho manual e intelectual, mostrando sua artificialidade e indecidibilidade, não muda em nada sua natureza realmente existente; dizer que o sistema de crédito “constitui um sistema de ‘indecidibilidade’” (RYAN, 1982, p. 181), ou que, “falando metaforicamente, o sistema monetário internacional tenha se tornado crescentemente ‘textual’” (RYAN, 1982, p. 183), não contribui nem para a compreensão do conceito de texto nem do de crédito. Quanto à comparação entre Adorno e Derrida, Ryan começa apontando para as similaridades: Ambos os filósofos atacam o privilégio idealista da identidade sobre a não identidade, da universalidade sobre a particularidade, do sujeito sobre o objeto, da presença espontânea sobre a retórica, vista como secundária, da transcendência atemporal sobre a história empírica, do conteúdo sobre a forma de expressão, da proximidade tranquilizadora [ self-reassuring ] sobre a alteridade ameaçadora, da ontologia sobre o ôntico, e assim por diante. Para Adorno, isso leva à emergência de um conceito mais radicalmente dialético, mais entregue à não identidade. Para Derrida, isso conduz a um questionamento do conceito de conceitualidade – não a uma noção mais complicada do conceito, que incluísse a não identidade, mas um questionamento dos próprios fundamentos da conceitualização identitária da metafísica, na medida em que esta se baseia no modelo do conceito como uma instituição subjetiva e ideal. O alvo primário de cada um deles é o logos ou a ratio , o princípio de dominação racional por meio da identidade conceitual, cujo funcionamento impossibilita a mediaticidade dialética e a diferenciação (RYAN, 1982, p. 75). Esta descrição não é fiel ao ímpeto da filosofia adorniana. Esta concebe que há algo material para além do logos , pois ele não é visto como uma entidade autônoma, mas como parte de uma dialética da natureza: a ratio é incompreensível, segundo Adorno (e Horkheimer), quando desvinculada da autopreservação do sujeito, um mecanismo natural, de suma importância para a vida na sociedade antagonista. É por desconsiderar isso que Ryan pode concluir: Adorno vislumbra uma heterogeneidade funcionando no interior do sistema homogêneo de equivalência [do capitalismo], apontando para uma utopia da não dominação. No entanto, não crê na ação, e não fornece nenhum método para realizar tal utopia praticamente. Derrida, por outro lado, fornece de fato um método para desbalancear o sistema metafísico de equivalências. A desconstrução constitui um ato agressivo de leitura que subverte as bases da metafísica, em geral, e do idealismo, em particular. E o pivô de tais bases é o princípio de troca, por meio do qual a diferença é reduzida à identidade. [...] Derrida vai além da crítica adorniana da ontologia quando sugere que a

diferença não emerge apenas dentro da ontologia, mas que a própria ontologia é derivada em relação à diferença e ao rastro [ trace ] (a relação “outro” dentro do “mesmo”) (RYAN, 1982, p. 79). ⁵ Stefan Zenklusen (2002) apresenta uma visão oposta, que reconhece o ancoramento na não identidade de Adorno em um processo trans-histórico e material de dominação dos homens sobre a natureza (tanto exterior quanto interior ao sujeito), e sobre outros homens. Com muita propriedade, também chama a atenção para o papel do princípio de troca como pano de fundo para a discussão adorniana da identidade e da diferença. O conceito tem uma longa história que remonta aos primeiros capítulos de O Capital , de Marx, e passa pelo importante ensaio de Lukács, “Reificação e a Consciência do Proletariado”, no famoso História e Consciência de Classe , para ser reelaborado e amplificado por Alfred Sohn-Rethel em seu pouco conhecido Geistige und körperliche Arbeit (1971) [Trabalho Intelectual e Manual]. Adorno promove uma articulação entre a fungibilidade universal levada a cabo pelo mundo das mercadorias, i.e. um mundo onde tudo é equivalente (pensemos no dinheiro como mediador universal), e o desenvolvimento da racionalidade ocidental, no próprio conceito. Ambos estariam sujeitos a um processo de abstração que homogeneíza e reprime o que há de material no objeto, que para Adorno confunde-se com a dor, tanto a da humanidade, trans-histórica, quanto a do indivíduo. Contra isso, volta-se o não idêntico e o pensar capaz de ser-lhe fiel, a dialética negativa, a tentativa, complexa e como que numa corda bamba, de temporariamente se alcançar, com o conceito, um “mais” não conceitual [ nichtbegriffliches Mehr ], e de libertar o pensamento, essencialmente abstraidor e identificador, da compulsão à identidade [ou coerção identificadora, Identitätszwang ] (ZENKLUSEN, 2002, p. 63). Quanto a Derrida, Zenklusen enfatiza, em sua abordagem da desconstrução, aquele da gramatologia, que lê a história da metafísica como um recalque da diferença em prol da presença, da escrita a favor da imediaticidade da voz, do fora pelo dentro, do feminino pelo masculino etc. A différance corresponderia àquilo que se subtrai a tudo isso, uma diferença apenas presente como ausência, uma alteração gráfica que não muda o som da palavra, mas aponta para um diferir e adiar ( différer , em francês). Ela seria índice de uma abertura que a identidade não toleraria. Zenklusen, no entanto, ataca o conceito derridiano em uma dura crítica, que desnecessariamente beira o escárnio. “Deshistorização”, “desrealidade” e “dessocialização” são consequências que identificam no projeto desconstrucionista, que pecaria, ainda segundo Zenklusen, por exibir uma má dialética da subjetividade, uma vez que o discurso de Derrida, notoriamente avesso à categoria do sujeito, dependeria de um forte sujeito da enunciação, de estilo barroco, muito próximo da figura do mestre. Em última instância, a desconstrução representaria um sintoma de um quadro social de enfraquecimento generalizado do “eu”, gerado pelo novo imperativo da acumulação flexível de capital (desestruturação da família como unidade mais ou menos autônoma, intensificação da mobilidade da mão de obra, dissolução dos vínculos locais etc.), um sintoma de uma situação que, ao mesmo tempo, contribuiria para seu agravamento. Por mais correta que tal interpretação possa aparentar ser, sua interpretação de

Derrida como mero sintoma não deixa de ser redutora no sentido mais estrito da palavra. Evitar essas polarizações é um mérito do texto de Holger Mathias Briel (1993); o outro é comparar Adorno e Derrida tendo como base suas interpretações literárias, de Stefan George e Paul Celan, respectivamente. Ainda que julgando “Adorno precursor de Derrida” (p. 7), Briel tece críticas a ambos. No primeiro, censura o suposto confinamento da práxis à arte; sem dúvida, trata-se aqui de um argumento bastante difundido, mas facilmente refutável: ainda que Adorno aposte no conteúdo utópico da arte e discorra sobre a distopia social, em nenhum lugar diz ser a práxis impossível, pois sua própria escrita em certa medida já o é. Salienta, ao invés, a relação dialética e assimétrica entre teoria e práxis, que por sua vez está subordinada a situações concretas. Já em relação a Derrida, Briel desaprova a imanência textual que impossibilitaria correlacionar a poesia de Celan ao Holocausto. Tais críticas, no entanto, são apenas o pano de fundo para o alencamento de interessantes contrastes: O hermetismo de Celan seria uma chave para os dois. Mas divergem na apreciação de Celan. Se Derrida vê nele exemplificada a impossibilidade da presença de um sentido unitário na linguagem em relação com o tempo, Adorno desenvolve a impossibilidade do sentido em Celan a partir da impossibilidade da felicidade no mundo moderno, de sua não liberdade e sua barbárie (BRIEL 1993, p. 104). Briel desenvolve uma interessante lista de temas, ao mesmo tempo, semelhantes e dissonantes, incluindo entre eles o papel do nome, das imagens ( Bilder ) e da morte. De especial relevância, porém, é a divergência na concepção da noção de subjetividade. Por mais que a categoria tenha se tornado problemática, Adorno recusa-se a abrir mão dela: O sujeito é, para Adorno, justamente como fraturado, um microcosmo da sociedade. Ambos concebem sua forma de experiência [ Erfahrung ] como descontínua, direcionada contra um sujeito identificado/ identificador. No entanto, trata-se em Adorno de um sujeito lesado [ beschädigtes ], enquanto que Derrida duvida da própria possibilidade da subjetividade como tal (BRIEL 1993, p. 114). ⁶ As diferenças de tratamento da arte estão diretamente relacionadas a este conjunto de discordâncias. Para Briel, os dois filósofos/críticos têm algo de problemático em suas análises literárias: Derrida cairia em um relativismo que o faria incapaz de lidar com a singularidade de um evento como Auschwitz; Adorno, pelo contrário, pecaria por impor à arte o papel de negação determinada da sociedade, desconsiderando outras funções e possibilidades. Nem um nem outro nem uma terceira posição: Briel contenta-se em ser filologicamente correto, em apontar correspondências e tensões, mas sem ousar formular o que ele pensaria ser o satisfatório. Promover uma comparação que não fosse partidária, mas nem por isso ficasse indecidida, um contraste que, pelo contrário, fosse capaz de deslocar os dois pensadores no mesmo gesto de aproximá-los – isso é o que fazem os textos de Christoph Menke (1991a, 1991b, 2003), que representam a contribuição mais importante para a leitura conjunta de Adorno e Derrida.

Menke insiste no termo “negatividade”, mesmo sabendo que, para Derrida, ele poderia parecer por demais hegeliano; no entanto, sustenta que Derrida teria muito a ganhar com esta categoria, uma vez que o obrigaria a caracterizar mais claramente o que seria o “positivo”, desta maneira situando melhor sua prática teórica. Já em relação à teoria crítica adorniana, Menke descobre no manuseio derridiano da herança linguística/semiológica um importante desafio para o filósofo alemão, o de incorporar o signo como instrumento da prática interpretativa, sem deixar de ser, simultaneamente, objeto de crítica. Da mesma forma, Menke cobra de Derrida uma localização mais precisa da diferença, defendendo a experiência estética como locus da negatividade; por outro lado, diferentemente de Adorno, postula a espectralidade da experiência estética, que potencialmente poderia acontecer ( stattfinden , take place , avoir lieu ) em qualquer lugar. A semelhança fundamental entre os dois residiria em um trabalho processual com o texto, que implicaria uma irredutível negação do sentido: No uso teórico-objetificador do conceito de negatividade, Adorno e Derrida descrevem o estatuto da obra de arte pela sua recusa de apropriação pela compreensão [ Verweigerung verstehender Aneignung ]. Chamam a arte de negativa na medida em que se fecha, em seu caráter errático de letra [ erratischen Buchstäblichkeit ], contra a tradução em seu espírito, em seu livre jogo significante contra a redução à sua significação, em sua superfície opaca contra a passagem a uma essência/ser [ Wesen ] mais profunda. [...] A estética negativa de Adorno e Derrida pode, assim, ser entendida como a tentativa de reformulação do tema esteticizante de uma literalidade liberada [ freigesetzter Buchstäblichkeit ], evitando seu positivismo, i.e. claramente diferenciando a liberação do objeto estético em relação à compreensão [ Verstehen ] e à incompreensibilidade das coisas tout court (MENKE, 1991b, p. 196-197). Quanto ao contraste entre os dois, Menke chama a atenção para a diferença de estruturação da negatividade como processo. Se a descontinuidade é constitutiva para a escrita de ambos, em Derrida ela corresponderia à adição, a uma determinada leitura, de frases que a desfizessem, e em Adorno dar-se-ia pela contraditoriedade, não de dois discursos sobre o texto em pauta, mas no próprio objeto (MENKE 1991a, pp. 131-153). Não resta dúvida de que, justamente devido ao deslocamento que promove nas teorias de Adorno e Derrida, Menke poderia ser criticado por ambos. O termo “negatividade”, bem como seu confinamento na experiência estética, por mais amplamente que esta fosse considerada, não agradaria a Derrida e aos derridianos; o abandono de toda problemática marxista e, principalmente, do princípio de troca como fonte da identidade (e sua dialética) seriam razão de desaprovação para Adorno e adornianos. Não se trata, aqui, de contra-argumentar, mas, pelo contrário, de utilizar os achados de Menke, bem como os dos outros comentadores mencionados acima, para o desenvolvimento de outro tipo de comparação, que una escrita a motivações filosóficas em duas poéticas negativas de pensamento. II

Por mais falhas, parciais ou incompletas que sejam, as tentativas de contraste entre Adorno e Derrida estabelecem um importante ponto de partida para o que se segue. Trata-se, aqui, de tentar relacionar os projetos desconstrutivista e da dialética negativa a concepções filosófico-formais. Para tanto, o texto abaixo segue um percurso dividido em três partes: após apontar brevemente para uma similaridade negativa entre a différance derridiana e a não identidade adorniana, ele tenta caracterizar, em traços bem gerais, a forma de apresentação do pensamento, a Darstellung , em Derrida e Adorno, para, finalmente, arriscar algumas considerações a respeito da motivação subjacente à tal estruturação de escrita em ambos os filósofos. O problema inicial, apenas parcialmente observado na bibliografia citada acima, refere-se a uma armadilha teórica armada tanto por Derrida quanto por Adorno. Pois tanto a différance quanto a não identidade são conceitos que desafiam a conceitualidade, devendo assim ser compreendidos como semi ou “quase-conceitos”. O que isto quer dizer é que nem a différance nem a não identidade podem ser dadas no começo ou pressupostos; na realidade, não deveriam nem poder ser abordadas diretamente em comentário, mas sim surgir como resultado de um processo de leitura. Em certo sentido, então, ambos são índices de autorreferência textual, pois, dados rigorosamente, a posteriori , nomeiam a produção de sentido efetuada, aquilo que foi realizado pela interpretação do próprio texto no qual se encontram. ⁷ Vem daí a dificuldade, idêntica, para os comentadores de ambos os pensadores: definir a différance ou a não identidade representa um paradoxo performativo, caracterizar aquilo que existe como cifra ou signo do que escapa a qualquer caracterização. Neste caso, para ser bemsucedida, a escrita sobre não pode se esquivar de ser uma escrita em ; a ética de comentário, tanto da desconstrução quanto da teoria crítica adorniana, impõe um grau de engajamento, uma reprodução do impulso da escrita, que Derrida chamaria de textualidade tout court e Adorno, de imaginação exata ( exacte Phantasie ). Esse problema interpretativo está ligado à maneira com que tais conceitos articulam-se a formas de exposição. Minha hipótese de trabalho é a de que tanto para Adorno quanto para Derrida há um forte processo de construção textual, que traz como resultado a emergência de uma interessante dinâmica de autorreferencialidade. A não identidade é desenvolvida por Adorno em um tipo de escrita por ele mesmo caracterizado de paratático (cf. e.g. “O ensaio como forma” ou “Parataxis” [1981]). Ao invés da subordinação do “outro” ao “um”, que faria daquele uma função deste, assim não sendo fiel à sua singularidade, “um” e “outro” são colocados lado a lado em um movimento de correção mútua. Se a não identidade corresponde ao trabalho do conceito para exibir aquilo que foge à conceitualidade, faz sentido trabalhar uma forma composicional que coloca os opostos em um mesmo nível, fazendo uso de um mínimo de conectivos adversativos. O ideal desta escrita é desfazer a oposição entre tese e exemplo, universal e particular; em seu limite, ambiciona produzir um tipo de movimento que, pela alternância progressiva dos contrários, produz um centro ausente no meio do texto, que desta maneira adquire uma natureza muito mais coisal. ⁸ Ou como diz o próprio Adorno, nas Minima Moralia (1992), deve-se ambicionar:

a supressão da diferença entre tese e argumento. Desse ponto de vista, pensar dialeticamente quer dizer que o argumento deve adquirir o caráter drástico da tese, e a tese, conter em si a plenitude de seu fundamento. Todos os conceitos que servem de ponte, todas as conexões e as operações lógicas auxiliares que não fazem parte da coisa mesma, todas as deduções secundárias e não saturadas da experiência do objeto devem ser descartadas. Em um texto filosófico, todas as proposições deveriam situar-se a igual distância do centro (ADORNO, 1992, aforismo 44). De fato, muitos dos melhores ensaios de Adorno só fazem isso: expressar seu título (“Engajamento”, “Progresso”, “Pontuação” etc.) através do jogo das determinações contraditórias nele presentes; do acúmulo de opostos colocados lado a lado surge a configuração dos contornos do objeto. O mesmo se dá no título do que seria sua maior obra, a Teoria Estética , que é tanto uma teoria estética quanto uma teoria estética ; seu sentido mais profundo reside na tensão, no espaço vazio presente, já no título, entre substantivo e adjetivo (DURÃO, 2012, pp. 41-70). Este tipo de pensamento/ escrita mobiliza uma mistura sui generis de assertividade e flexibilidade. Assertividade das frases tomadas isoladamente, peremptórias, frequentemente epigramáticas; flexibilidade do fluir do texto que, consistente e rigorosamente, se contradiz, mantendo os contrários juntos em tensão. É difícil achar uma interrogação em Adorno. Derrida apresenta um modelo diverso. Ao invés da constelação de elementos contraditórios, que idealmente pertenceriam ao próprio objeto, ele procede segundo uma lógica que poderia ser caracterizada como a de um tear. Em seus textos, via de regra, o momento da “desfeitura”, do “desconstruir” é precedido por um criativo processo de estruturação. Os temas são lançados, interrompidos, e retomados. Associações, responsáveis pela progressão textual, se dão por metáforas, duplos sentidos, ou simplesmente pela intervenção do sujeito da escrita. É esta etapa inicial que oferece as bases para o que a ela se segue: um tecer da malha argumentativa até o instante em que, por sua própria contraditoriedade, o texto rasgue a si mesmo. A dinâmica de autorremissão, aqui, se dá pela referência do desfazer àquilo que foi composto, do “des-tear” dos fios argumentativos estruturados antes. A força do gesto desconstrutor é assim função de um duplo processo. Em primeiro lugar, é necessário que o momento inicial, o do significado, daquilo que o texto quer dizer , seja verossímil; ele tem que ser convincente, ser fiel, por assim dizer, aderir à superfície significante. Mas é também necessário que o segundo momento, no qual, por meio do detalhe, da ambiguidade, ou metaforicidade, o recalcado volte à tona e se mostre como a própria condição de possibilidade, aquilo que fundamenta e que é anterior ao elemento pretensamente primeiro – é necessário que este momento também seja persuasivo. Isso não significa que os dois momentos correspondam a uma sucessão estrita, ainda que didaticamente a abstração possa ser feita; nem que não haja restos, pois dos fios apresentados no começo, vários não são desenvolvidos, ou apenas parcialmente; há assim um excedente textual em relação ao que seria o “conteúdo” abordado (daí a prolixidade de Derrida), e ao leitor permanece sempre o convite de (re)articular os fios para a construção do sentido. Sob este ponto de vista, os traços tão peculiares do estilo de Derrida, aparentemente secundários, adquirem uma

centralidade inesperada, pois são eles que mantêm os diversos fios juntos. São vários: os adiamentos, as antecipações, o direcionar-se ao leitor, e o maior de todos, as perguntas (retóricas); difícil encontrar uma escrita mais interrogativa que a de Derrida (cf. DURÃO, 2008). Um exemplo interessante para se averiguar: isso é o começo do ensaio “Deux Mots Pour Joyce” (1987) – um título que já joga com a expressão “duas palavras”. O projeto do texto é explodir o sentido de duas palavras do Finnegans Wake : “HE WAR”, em última instância levando à paradoxal constatação de que (as) palavras como entidades ou entes não existem, mas são, ao invés, perpassadas por vários códigos, línguas, ou sistemas. Isso não nos é dado como hipótese – se o fosse representaria uma contradição em termos, afirmar o que faz impossível a afirmação – mas com uma pergunta: “O que é uma palavra?” (DERRIDA, 1987, p. 15). Em seguida, Derrida começa o trabalho de tessitura com uma primeira tradução das duas palavras: “ele guerra”; mas em seguida sugere, também, “ele foi” com “war” como passado do alemão “sein”. Daí vem a associação bíblica: “ele foi aquele que foi. Eu sou aquele que é, que sou, sou quem sou, teria dito Yahwé” (DERRIDA, 1987, p. 16). Um terceiro passo une os dois: “Lá, onde era, ele foi, declarando a guerra. E isso foi verdade [...] wahr . Eis o que se pode guardar ( wahren, bewahren ) de verdade [ en vérité ].” A frase seguinte lança um novo dado, ligado a uma expressão fixa do francês, e do português, para a qual simplesmente não pode haver uma explicação , “declarar guerra”: “Deus evita [ se garde ]. Evita-se assim de declarar guerra” (DERRIDA, 1987, p. 17). Uma guerra entre as línguas, já que Derrida está lidando com o francês e o alemão. “Declarar é um ato de guerra, ele declarou a guerra em línguas, à língua e pela língua” (DERRIDA, 1987, p. 17). “Palavra”, “guerra”, “ser”, “Deus”, “guardar”, “declarar”, mas também “ser breve” ( deux mots ) são todos fios que Derrida irá tecer em sua malha discursiva. E não é de espantar que em seguida, depois de lançálos, observe: “Paro aqui, provisoriamente, por falta de tempo. Outras transformações permanecem possíveis, um grande número, sobre as quais ainda direi duas palavras daqui a pouco” (DERRIDA, 1987, p. 17). Frases que na realidade desempenham o papel de um gesto estruturador do texto; sem elas seria impossível interromper a tessitura e continuar. ⁹ O que é interessante notar é que estas duas formas de composição, estas duas poéticas negativas de pensamento, têm cada uma sua razão de ser, uma motivação filosófica. O tecer/rasgar de Derrida justifica-se pela natureza própria da différance , uma diferença não “entre”, mas “em” suas estratégias retóricas, em outras palavras, almejam oferecer uma via de acesso a algo diferindo/“difer-ente”, nem sujeito nem objeto, mas a condição de possibilidade de sua diferenciação; sem começo ou fim, mas sempre processo; algo que só pode se fazer sentir como presente na medida em que se estabeleça como ausência. Ou, nas palavras de Derrida: O que difere a presença é aquilo a partir do qual, pelo contrário, a presença é anunciada ou desejada em seu representante, seu signo, seu rastro [ trace ] [...] o movimento da différance [...] corresponde assim à raiz comum de todas as oposições de conceitos que escandem nossa linguagem [...] a différance é também a produção, se ainda se pode dizer, de tais diferenças, desta diacriticidade que a linguística inspirada em Saussure e todas as

ciências estruturais que a tomaram como modelo nos lembram ser a condição de toda significação e toda estrutura (DERRIDA 1972b, p. 17-8). A fonte de negatividade, para Adorno, é outra; como já aludido, ela reside na irredutível materialidade do objeto e na impossibilidade de apreendê-lo conceitualmente de forma direta. A escrita, aqui, tenta reproduzir em si a contrariedade presente na própria coisa, que desta maneira é apresentada como não idêntica a si própria. E isso está intimamente ligado ao modus operandi da sociedade. Com efeito, não seria demais dizer que a contraditoriedade do/no objeto é fruto do antagonismo, da luta de classes e competição entre os indivíduos, que seria assim mimetizada na própria escrita de Adorno. Suas abruptas viradas dialéticas teriam um ancoramento no caráter contraditório da sociedade (voltar-se-á a este ponto no final). A escrita de Derrida produz um ser, um “algo” que é consequentemente desfeito, na medida em que deve sua existência àquilo que nega como não existente. O tecer/rasgar derridiano é uma forma de exposição propícia à sua preocupação maior, que poderia ser caracterizada como ontológica: apreender o rastro, o fugidio. A negação em Adorno encontra outra motivação filosófica; de novo, ela vem do conflito que tem sua origem na sociedade. Com efeito, se para Adorno o cerne da vida social é o antagonismo, em última instância advindo do modo de produção, e se ele penetra até as próprias raízes da matéria, pode-se caracterizar seu pensamento, em uma grossa generalização, como epistemologicamente orientado, o que o vincula à prática: conhecer para, de alguma forma, mudar. Para Derrida, a prisão do pensamento é o logofonocentrismo e a tarefa da teoria residiria em mostrar, ainda que furtivamente, seus limites, produzir, repetida e incansavelmente, o impossível de sua momentânea suspensão, como vimos, uma produção resultante de procedimentos textuais específicos. Como já foi dito, prisão do pensamento, para Adorno, é a história do domínio da natureza, tanto externa quanto interna (a referência fundamental aqui é a Dialética do Esclarecimento [1985]), e seu fundamento é o princípio de troca: uma dinâmica subjacente tanto à produção e circulação de mercadorias quanto ao funcionamento do conceito, e que ao mesmo tempo permite que se explique a emergência do sujeito como resultado da interiorização do sacrifício. É apenas depois de mencionar tudo isso que se torna possível lidar com a função da categoria da “metafísica” na escrita de Adorno e Derrida. Como é sabido, Derrida repete um gesto inaugurado por Nietzsche e reencenado por Heidegger, o de estabelecer um elo “trans-histórico” na história da filosofia por meio da metafísica, que deixa de ser uma disciplina filosófica para tornar-se um denominador comum entre todas as formas de pensamento já existentes, de Sócrates/Platão até hoje. Acontece, no entanto, que, tanto em Nietzsche quanto em Heidegger, a denúncia do pensamento metafísico encontrava-se inserida em um projeto cultural mais amplo, o do “espírito livre” para o primeiro, e o da autenticidade para o segundo – projetos cujas ressonâncias políticas chegaram perto do catastrófico. ¹⁰ As implicações culturais do gesto derridiano são mais difíceis de ser localizadas, sendo sentidas talvez apenas no que há de pior do discurso pós-moderno, quando

este se apropria do léxico da desconstrução para postular uma riqueza significativa, independente de qualquer leitura, no mundo como um todo: um delírio perverso diante da miséria oferecida pela indústria cultural. Seja como for, o tecer/rasgar derridiano encontra-se situado neste contexto. À metafísica corresponderia a tessitura, a coerência, o significado, e é apenas sob este pano de fundo que é exibido o acontecimento do rasgar, do diferir. Surge assim, na economia do texto de Derrida, uma desproporção imensa entre dois polos, fruto da própria recusa de qualquer binarismo. Como a metafísica não é função da história, mas, pelo contrário, é a história que é produto da metafísica, esta se configura como completamente homogênea e geral. Aos enunciados micrológicos, de leitura e criatividade, colados ao objeto textual discutido, correspondem proposições abstratas que remetem para além da interpretação, para uma exterioridade do confronto com o objeto, e que se referem à “metafísica”. Com efeito, talvez seja possível determinar o valor de uma análise desconstrutivista – ou averiguar a dissimilaridade entre Derrida e a maioria de seus comentadores – através da proporção entre os dois tipos de enunciados, os que se referem ao objeto, e os que aludem à metafísica. Daí também um critério para a valorização de um Derrida que se prende mais a textos , que faz sua leitura , em oposição um ao outro, que se debruça sobre temas e que pretende deles arrancar o que difere. No caso do texto sobre Joyce aludido acima, isso corresponderia ao contraste entre as diversas associações concretas (guerra, Deus, palavra, Babel) e o gesto, abstrato, de se referir a “um grande número” de transformações. Mas isso não equivale a dizer que o termo seja simples para Derrida. A metafísica não pode ser superada, pois “mesmo nas agressões ou transgressões, lidamos com um cogito ao qual a metafísica está irredutivelmente ligada, de tal maneira que todo gesto transgressor nos confina, e nos mostra isso, no interior de sua clausura” (DERRIDA, 1973, p. 21). Porém, aqui a “metafísica” é objeto de leitura; ela funciona de modo bem diverso na economia do texto derridiano quando não é focalizada de frente, mas invocada como outro do diferente. É neste último caso que atua como elemento de contenção, de fechamento textual, ocupando o lugar de algum outro conceito (como “sociedade” ou “história”) que pudesse explicar por que o mundo não é diferente – como no ensaio sobre Hegel do Marges de la philosophie (1972a), “O poço e a pirâmide”, em que a leitura que magistralmente demonstra o funcionamento maquínico da escrita hegeliana, que abomina a máquina, tem seu efeito enfraquecido pela sua natureza de exemplo: mais um caso de privilégio metafísico da voz, interioridade, tempo (etc.) sobre a escrita, exterioridade, espaço (etc.). Para Adorno, a categoria “metafísica” também é fundamental. Ele a concebe, contudo, de forma mais nuançada, pois a considera em estreita relação com o tempo, como algo aberto e sujeito a mudanças. A metafísica, para ele, corresponderia a um processo contraditório em que um impulso progressista, desafiador e desmistificante, encontrar-se-ia entrelaçado a uma tendência restauradora, de cerceamento e domestificação do poder questionador da filosofia. Esta posição, subjacente à Dialética Negativa (1973), ¹¹ fica bem clara nos cursos ministrados por Adorno nas décadas de 1950 e 1960; nas palestras sobre a metafísica, lemos:

E creio ser algo típico [...] de todos os sistemas metafísicos tradicionais que me são conhecidos, que se por um lado tais sistemas sempre voltaram-se contra quaisquer elementos ou ideias tidos como dogmáticos ou fixos, por outro, tentaram recuperar, apenas por meio do pensamento, aquilo a que essas ideias dogmáticas se referiam (ADORNO, 1998, p. 19). A metafísica, aqui, é parte de uma história universal da dominação, que entrelaça história e natureza. Esta última é histórica, pois seu conceito e sua caracterização sempre variaram com o tempo; a história, porém, é ela mesma uma categoria natural: seu lado invariante é o do extermínio e do sofrimento. Sem dúvida, essa história da qual a metafísica faz parte é universal , mas justamente por ser história pode ter um fim. Apontar sua possibilidade é o objetivo final da escrita adorniana. E aqui a conclusão: tanto Adorno quanto Derrida conseguem, por suas respectivas poéticas negativas de composição, construir algo que se furta à lógica da identidade: Derrida, por meio do trabalho de Sísifo de um diferir fadado, fruto de uma caracterização “a-histórica” e homogeneizante da metafísica; Adorno, através do acúmulo de negações, sujeitas ao tempo, no objeto, tentando mostrar que, em uma sociedade diferente, poderia ser outro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T.W. Metaphysik; Begriff und Probleme. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1998. _. Minima Moralia. Trad. Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992. _. Noten zur Literatur. Gesammelte Schriften 11. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1981. _. Negative Dialektik . Gesammelte Schriften 6. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1973. ADORNO, T.W. & Max Horkheimer. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BRIEL, Holger Mathias. Adorno und Derrida ; Oder Wo Liegt Das Ende Der Moderne? Berlim: Peter Lang, 1993. DERRIDA, Jacques. Fichus. Paris: Galilée, 2002. _. Espectros de Marx. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. _. Deux Mots Pour Joyce. In: Ulysses gramophone. Paris: Galilée, 1987. _. Positions . Paris: Minuit, 1972a. _. Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972b. DURÃO, Fabio Akcelrud. Modernismo e Coerência: Quatro Capítulos de uma Estética Negativa . São Paulo: Nankin Editorial, 2012.

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totalizável. Em jogo está a representabilidade do(s) conflito(s) social(ais) – uma questão fundamental para o marxismo, mas aqui não mais relacionada ao modo de produção social. 5 Isso é também o que diz Gripp (1986, pp. 132-144). Segundo ela, Derrida teria “radicalmente levado não apenas a teoria de Saussure, mas também a filosofia de Adorno, até seu limite” (p. 144). Isto ocorreria devido à insistência de Adorno em não abandonar a categoria do sujeito, que é por Derrida dispensada. Cf. abaixo. 6 Esta é também a crítica de Lyotard (1973), que ataca em Adorno uma “filosofia dialética trágica”, caracterizada por uma crença no sujeito, na representação, e na crítica. Contra isso, Lyotard defende o fluir de uma economia libidal. 7 Isso tem implicações para a interpretação da arte em geral e da literatura em particular. Cf. Durão (2102). 8 Eis aqui uma interessante forma de conceber a primazia do objeto em Adorno [ Vorrang des Objekts ], que responde pela assimetria entre sujeito e objeto: o próprio trabalho textual construindo o texto, ao mesmo tempo como transparência para seu referente e coisa em si. 9 As formas composicionais de Adorno e Derrida podem muito facilmente irritar. Devido à sua peremptoriedade, o primeiro soa para muitos como arrogante e elitista, enquanto que o último parece precioso e afetado. 10 A relação de Heidegger com o nazismo já foi bem trabalhada; para Nietzsche, cf. Pierre-André Taguieff (1991). 11 De especial interesse nesse contexto são as três últimas partes, que constituem a seção “Modelos”, páginas 211-400.