A linguagem da educação

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ISRAEL SCHEFFLER (Da Universidade de Harvard)

A LINGUAGEM DA EDUCAÇÃO Tradução de Balthazar Barbosa Filho (da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo)

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S E T O RI AL E D U C A C A O - UFRGS

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EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SARAIVA S.A. LIVREIROS EDITORES

Título da obra em inglês:

The Language o f Education 8.a impressão — 1971 publicada por CHARLES C. THOMAS - PUBLISHER Springfield, Illinois - U S . A .

Copyright ©1960. by CHARLES C THOMAS - PUBLISHER

FICHA CATALOGRÁFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte, Câmara Brasileira do Livro, SP)

S338L

S cheffler, Israel, 1923— A linguagem da educação; trad . de B althazar B arbosa F ilho. São Paulo, Saraiva, E d. da U niversidade de São Paulo, 1974. Bibliografia. 1. E ducação — F ilosofia 2. E nsino I. T ítu lo .

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índice para catálogo sistem ático: 1. 2. 3. 4.

E ducação : F ilosofia 370.1 E ducação : T eorias 370.1 E nsino 370 Filosofia da educação 370.1

SARAIVA S/A — Livreiros Editores Rua Fortaleza, 53 - CEP 01325 - Fones: 32-1149 - 32-2534 - 32-1627 34-9503 e 34-9685 — Caixa Postal 2362 — End. Telegráfico: Acadêmica São Paulo — Brasil Im pressão:

Sím bolo S . A . Indústrias G ráficas

A Samuel e Laurie e aos seus professores

ÍNDICE

Pag.

Prefácio........................................ v ..............................................

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INTRODUÇÃO..............................................................................

11

I. AS DEFINIÇÕES EM EDUCAÇÃO

.....................................

20

.........................................

46

III. AS METÁFORAS EDUCACIONAIS........................................

59

IV. ENSINAR...............

74

II. OS SLOGANS EDUCACIONAIS

V. ENSINAR E DIZER.................................... UMA PALAVRA FINAL índice analítico

............................................................

..........................................

93 122 129

vu

PREFÁCIO O propósito deste livro é o de elucidar, mediante uma aplicação de métodos filosóficos, alguns aspectos que aparecem com frequência no pensamento e nos debates educacionais. Em particular, o texto apresenta algumas análises da força lógica das definições, slogans e metáforas educacionais, e. nele fazemos um estudo da idéia central de ensino. Espero que as reflexões que seguem possam atrair a atenção, não apenas de estudantes de educação e de filosofia, mas também de todos aqueles que, enquanto cidadãos ou educadores, estão vitalmente interessados na prática das escolas. Muitas das idéias aqui expostas se desenvolveram a partir das aulas introdutórias sobre a filosofia da educação que proferi nos últimos anos; elas talvez possam ser consideradas úteis em cursos que tratem desse mesmo tema. Muitos dos que já entraram em contato com a minha recente antologia Philosophy and Education poderão achar proveitoso este livro, enquanto tratamento auxiliar e sistemático de certos tópicos relacionados com os que foram abordados naquela obra. Desejo agradecer aos editores e à casa responsável pela publicação de American Lectures in Philosophy pelos seus conselhos e cooperação. Fico em débito com os Professores William K. Frankena, Sydney Morgenbesser e Harold Weisberg pelas suas inúmeras sugestões críticas a respeito da forma e do conteúdo. Sou grato, também, à «John Simon Guggenheim Memorial Foundation» pela concessão de um subsídio de estudos que me permitiu completar a versão final deste estudo. Quero ainda agradecer à minha mulher pelo incentivo è pelo auxílio que me prestou na preparação do manuscrito. Desejo, enfim, expressar o meu reconhecimento pelo estímulo que recebi dos meus colegas de Harvard em educação e em filosofia, bem como dos meus alunos, que me ensinaram enquanto eu lhes ensinava. ISRAEL SCHEFFLER

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(7 )

INTRODUÇÃO Este livro constitui uma tentativa em filosofia da educação. Ele trata, primeiramente, de certas formas recorrentes do discurso relacionado com a educação escolar e oferece, a seguir, um exame prolongado do conceito de ensino, o qual ocorre com frequência nesse mesmo discurso. Através de uma análise de enunciados selecionados que figuram em contextos educacionais e sociais, apresentamos algumas estratégias para a avaliação crítica de enunciados desse mesmo tipo e de tipos afins. O estudo do conceito de ensino, por sua vez, envolve o tratamento de tópicos, tais como a natureza das regras educacionais, a relação entre a pesquisa científica e a educação escolar, o desen­ volvimento da conduta moral e a elucidação da discussão em torno do currículo. Por todo o livro, há uma ênfase insistente em vincular a avaliação crítica das asserções aos contextos em que elas aparecem. Sublinhamos, além disso, a necessidade de distinguir os problemas práticos e morais de outros com os quais são frequentemente confundidos. Ver-se-á que essas duas ênfases, assim como várias noções subsidiárias empregadas aqui, são relevantes para uma variedade de temas mais ampla do que aqueles que são especificamente tratados nesta obra. Referir-se a este livro como um estudo na filosofia da educação requer, contudo, algumas palavras de esclarecimento. Há, com efeito, uma ambiguidade na noção de estudo filosófico que, a menos que seja explicitamente resolvida, poderia aqui dar margem a equívocos. Essa noção pode indicar, por um lado, uma investigação em questões filosóficas ou a utilização de métodos filosóficos; por outro lado, pode referir-se ao estudo histórico das conclusões a que chegaram os investigadores de questões filosóficas ou os usuários de métodos filosóficos. Embora portem muitas vezes uma mesma etiqueta, esses dois tipos de 11

empreendimento são bem diferentes. Se empreendermos o primeiro tipo de tarefa, seremos obrigados, nós mesmos, a filosofar, isto é, a tomar uma posição face a problemas filosóficos ou a aplicar instrumentos filosóficos de investigação. Se empreendermos o segundo tipo de trabalho, não seremos obrigados, no mesmo sentido, a filosofar, mas, de preferência, a tentar compreender os resultados e o desenrolar do filosofar passado. O presente estudo em filosofia educacional constitui um esforço do primeiro tipo. Trata-se mais de uma tentativa de aplicar métodos filósoficos a idéias educacionais fundamentais, do que de uma tentativa de fazer o levantamento do de­ senvolvimento e do curso de doutrinas educacionais de tipo filosófico que foram aceitas outrora. A escolha desse caminho, todavia, não repousa sobre uma avaliação negativa do estudo histórico nem, tampouco, das doutrinas filosóficas do passado. Uma parte importante, e certamente necessária, de todo filosofar consiste num estudo minucioso dos escritos dos pensadores passados. E mais a atitude de trabalho assumida frente a esses textos que serve para distinguir a nossa tentativa dos estudos em história das idéias. O exame de tais escritos constitui, para os propósitos deste livro, um instrumento e não um objetivo primordial. Assim, pontos de vista historicamente importantes serão apresentados aqui unicamente em relação a problemas que recebem um tratamento independente, e nenhuma tentativa será feita de fornecer um relato histórico equilibrado. O fato de que aquilo que se encontra aqui envolvido não constitui, entretanto, uma subestimação da história, mas apenas uma atitude de trabalho específica face a doutrinas históricas, é algo que pode, talvez, ser ilustrado pela consideração da seguinte pergunta, ligada ao nosso problema: Qual é a diferença, com relação às doutrinas científicas do passado, entre o historiador da ciência e o cientista praticante? Certamente não é verdade que, ao passo que o primeiro cita os seus predecessores, o outro não o faz. E tampouco um depende, em geral, menos do que o outro dos trabalhos previamente realizados no seu campo. A diferença reside, antes, nisto que o historiador estuda as doutrinas passadas com o objetivo de compreender-lhes a gênese, o desenvolvimento e a influênciá, ao passo que o cientista praticante se interessa, antes de tudo, pela incidência dessas doutrinas sobre problemias presentes dotados de interesse científico independente. Essa distinção entre investigação filosófica e história das idéias é sublinhada aqui, não porque a consideremos par­ 12

ticularmente sutil, mas, sim, porque não tem sido suficien­ temente reconhecida em muitas apresentações recentes de filosofia da educação. Além disso, o surgimento abundante de novos e frutuosos desenvolvimentos no campo da filosofia em geral, em particular nos países de língua inglesa1, indica que o momento atual é especialmente apropriado para insistir no­ vamente na investigação filosófica da educação. Para dar apenas uma ligeira idéia desses desenvolvimentos, seria necessário apresentar um breve relato do rumo que a filosofia assumiu nos últimos anos. Qualquer exposição resumida de um tópico tão vasto será forçosamente impressionista e simplificada em excesso, mas não por isso desprovida de toda força esclarecedora. Sob a condição de que as observações que seguem sejam compreendidas no sentido de representar um mero esboço de um fenômeno rico e complexo, elas poderão servir para introduzir o leitor no clima contemporâneo do trabalho filosófico. Pode-se, numa palavra, dizer que a filosofia busca uma perspectiva geral, sobre uma base racional. Historicamente, aqueles que foram chamados ‘filósofos’ se ocuparam de temas tais como a natureza do universo físico, o espírito, a causalidade, a vida, a virtude, a lei, o bem, a história e a comunidade. Historicamente ainda, eles tentaram discorrer racionalmente sobre esses tópicos gerais e defender os seus pontos de vista apelando para evidências e razões acessíveis a todos. O filósofo deseja ver as coisas em perspectiva, e deseja vê-las nítida e claramente. Esforça-se por alcançar um máximo de visão e um mínimo de mistério. Na sua busca pela generalidade, a filosofia possui, assim, uma certa semelhança com a religião; mas dela difere por apelar exclusivamente a argumentos racionais, ao passo que a religião também recorre a outras fontes de autoridade, tais como a revelação, os escritos sagrados e a tradição. No seu apelo exclusivo à evidência racional, a filosofia assemelha-se às ciências, delas diferindo, no entanto, por ser mais geral, por tentar, não somente compreender o mundo através da ciência, mas compreender também a própria ciência como um modo de compreensão, como 'um aspecto de uma experiência humana variegada. O âmbito de alcance, num momento dado, de qualquer ciência encontra-se restringido de duas maneiras. Em primeiro

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1.

Ver, a esse respeito, Passmore, J. :A Hundred Years o f Philosophy. London, Gerald Duckworth & Co. Ltd., 1957.

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lugar, ela não se interessa, nem precisa estar interessada, em vincular as suas descobertas às outras ciências especiais, nem a campos tão diferentes como os do direito, da vida prática, das artes e do senso comum. Em segundo lugar, ela utiliza, sem, contudo, que ela própria as analise, certas noções básicas que mantém em comum com outros domínios, como, por exemplo, ‘evidência’, ‘teoria’, ‘causa’, ‘propósito’, ‘objeto’. Em suma, o cientista assume certas idéias fundamentais e as aplica a investi­ gações legitimamente abstraídas, tanto de outras investigações, como de tipos diferentes de empreendimento. Essas duas espécies de restrição quanto ao âmbito de alcance são perfeitamente razoáveis do ponto de vista do cientista; na verdade, não devem ser concebidas como limitações arbitrárias impostas ao seu tra­ balho, mas, ao contrário, como convenções que, canalizando as suas energias, as tornam mais eficazes. Elas deixam lugar, todavia, para um outro tipo de tarefa, essa caracteristicamente filosófica. Isto é, o filósofo poderá buscar a sua perspectiva geral precisamente indo além das restrições de alcance que são próprias às ciências especiais. Desse modo, ele poderá lutar pela generalidade, seja construindo a partir de descobertas reconhecidas e de experiências comuns em vários domínios, a fim de elaborar uma imagem do mundo em totalidade, seja analisando as idéias e supostos básicos recorrentes em vários campos especiais. Essas duas formas de busca da generalidade constituem componentes bem conhecidos da tradição filosófica. O desenvolvimento da ciência nos tempos recentes, entretanto, afetou-as de maneira desigual. Com a especialização crescente do conhecimento científico e a maciça acumulação de dados, tornou-se mais e mais difícil encerrar toda a informação disponível numa imagem-do-mundo única e significativa. As imagens-do-mundo que foram tentadas incorreram, então, no risco prático crescente de resultarem superficiais ou gravemente inexatas, ainda que não se tenham teoricamente revelado incapazes de proporcionar algumas significativas iluminações. Assim, os filósofos, em número cada vez maior, tenderam naturalmente a procurar uma perspectiva geral, não através da unificação dos frutos do conhecimento, mas por meio de uma análise das raízes - os conceitos básicos, os supostos, os argumentos e as inferências que caracterizam diferentes domínios. Alguns filósofos passaram, então, a empregar tal análise para a projeção de uma imagem integrada.

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não mais no universo, mas no espírito humano2 ; outros ficaram satisfeitos com a clarificação das idéias mesmas. Os proce­ dimentos e os padrões de análise empregados também variaram consideravelmente. Não obstante, fica suficientemente claro que o foco de atenção filosófica veio crescentemente a cen­ trar-se mais nos conceitos e modos básicos de compreensão, do que na vasta gama de corpos especializados de informação, disponíveis para serem incorporados a qualquer imagem moderna do mundo. O desenvolvimento da ciência, todavia, produziu um efeito ainda mais profundo no rumo da filosofia. Esse desenvolvimento pareceu mostrar, com efeito, que só os métodos experimentais são apropriados para alcançar o conhecimento da natureza. A filosofia não mais poderia —ao que parecia —ser plausivelmente considerada como uma espécie de superciência, revelando os mais profundos segredos da natureza. Os filósofos nao mais poderiam interpretar a própria tarefa como a prova dedutiva de teoremas factuais, sobre a base de axiomas evidentes por si mesmos, revelados na intuição. Obrigados, face a esse desafio, a reinterpretar o próprio papel e a oferecer uma outra e mais aceitável abordagem própria, muitos filósofos começaram, na verdade, por renunciar a toda pretensão a uma intuição su­ perior e, ao mesmo tempo, ao direito profissional de efetuar pronunciamentos intuitivos sobre o mundo. Passaram então a desenvolver, como sua tarefa básica, a avaliação lógica das asserções — o exame das idéias do ponto de vista da clareza e o exame dos argumentos do ponto de vista da validade. Essa reorientação do papel da filosofia fundiu-se com a ênfase nos conceitos básicos que mencionamos anteriormente para dar forma à postura característica de grande parte da filosofia contemporânea. Essa filosofia se esforça por alcançar uma perspectiva geral através de um estudo das idéias e

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2.

Ver, por exemplo, Cassirer, E.: An Essay on Man. New Haven, Yale University Press, 1944, e a sua afirmação (p. 68): “A característica preponderante do homem, a sua marca distintiva, não é a sua natureza metafísica ou física - mas o seu trabalho. É esse trabalho, é o sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo de ‘humanidade’. A linguagem, o mito, a religião, a arte, a ciência, a história são os constituintes, os vários setores desse círculo. Uma ‘filosofia do homem’ seria, portanto, uma filosofia que nos daria uma visão interna da estrutura fundamental de cada uma dessas atividades humanas e que nos tornaria, ao mesmo tempo, capazes de compreendê-las como um todo orgânico” . Ver também, a esse respeito, Langer, S. K.: Philosophy in a New Key. Cambridge, Harvard University Press, 1942; reimpresso por Penguin Books, Inc., First Pelican Books Edition, February, 1948.

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argumentos fundamentais de vários domínios, aplicando e refinando, para esse propósito, uma ampla variedade de instrumentos lógicos, lingüísticos e semânticos. O renascimento e o significativo progresso que os estudos lógicos conheceram em princípios do século e o trabalho pioneiro, nas suas primeiras décadas, de alguns destacados filósofos serviram para colocar alguns modelos atrativos à disposição da nova orientação3. A analise filosófica, no que constitui substancialmente a sua forma atual, se pôs, então, em marcha —interessada fundamentalmente na elucidação das noções e modos básicos de argumento, e não em sintetizar as crenças disponíveis em alguma visão panorâmica global; em apreciar em profundidade as idéias fundamentais, e não em pintar retratos sugestivos mas vagos do universo. Tal concepção da filosofia, embora muito difundida atualmente, não deixa de mergulhar raízes profundas na tradição filosófica. Na verdade, ela já foi sugestivamente comparada à filosofia socrática, representada nos diálogos de Platão como uma procura, mediante a discussão crítica, que pretendia realizar uma compreensão geral de várias idéias fundamentais. Como a filosofia socrática, a análise contemporânea também é aplicável, em princípio, a qualquer tema. E um fato histórico, no entanto, que, desde os seus começos no século vinte, ela tem se con­ centrado largamente em conceitos científicos, matemáticos e éticos. E difícil conquistar certeza a respeito das razões dessa preferência. Não há dúvida de que o exemplo fixado pelos pensadores pioneiros nesse tipo de filosofia desempenhou um papel importante, bem como a posição tradicionalmente central que esses conceitos ocupam nas preocupações dos filósofos em geral. Sejam quais forem as razões, a análise filosófica contemporânea só bem recentemente começou a ser aplicada em âmbito mais amplo, a áreas como as do direito, da religião, do pensamento social e da educação4. Talvez, como sugeriram alguns críticos, o domínio mais estreito e a ênfase fortemente metodológica, apropriados a um movimento jovem e vigoroso,

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3.

Ver Passmore, J., op. cit., especialmente os capítulos 5, 6, 9, 15, 18.

4.

Ver, por exemplo, Flew, A., editor: Essays on Logic and Language. New York, Philosophical Library, 1951; Flew, A., editor: Logic and Language (Second Series). Oxford, Basil Blackwell, 1953; Laslett, P., editor: Philosophy, Politics and Society. Oxford, Basil Blackwell, 1956; Schefflcr, 1., editor: Philosophy and Education. Boston, AUyn and Bacon, Inc., 1958; White, M.: Religion, Politics and the Higher Learning. Cambridge, Harvard University Press, 1959; Benn, S. I. and Peters, R. S.: Social Principies and the Democratic State. London, George Allen & Unwin, Ltd., 1959.

comecem a dar lugar aos interesses mais amplos e substanciais da maturidade. Seja como for, as perspectivas de uma investigação filosófica em educação, no espírito da análise contemporânea e com o auxílio dos seus métodos, parecem realmente encorajadoras. De um lado, tanto educadores quanto teóricos da educação têm afirmado cada vez mais, nos últimos anos, a necessidade de um re-pensamento critico das fundações da sua disciplina; de outro lado, a filosofia tem se consagrado cada vez mais ao desenvolvimento e à aplicação de utensílios analíticos capazes de favorecer tal re-pensamento. Que tipo de paisagem a educação apresenta, então, à análise filosófica? Dentre os seus conceitos centrais, encontram-se idéias fundamentais como ‘conhecer’, ‘aprender’, ‘pensar’, ‘compreender’ e ‘explicar’, as quais figuram, de maneira destacada, 9 jn ão só na literatura filosófica tradicional, como também nos •— afazeres quotidianos e na psicologia científica. Além do que, existem idéias mais especificamente educacionais, tais como ‘disciplina mental’, ‘rendimento’, ‘currículo’, ‘desenvolvimento do caráter’ e ‘maturidade’, que estão intimamente relacionadas com a prática escolar e que constituem, além disso, focos de um debate prático permanente. Esse debate pode servir para nos lembrar de que a educação não é apenas uma questão abstrata e intelectual, mas um campo de esforços práticos e de decisões igualmente práticas, no qual programas insti­ tucionais são propostos, criticados, justificados e rejeitados. A força prática dos argumentos educacionais sugere, além disso, que as idéias educacionais não estão apenas a serviço de funções «descritivas», mas também de funções de «política», de tal forma que o uso disseminado, em pesquisa educacional como em debates sobre as metas, de termos como ‘necessidades’, pode facilitar tão provavelmente a confusão quanto a simplificação5. Em suma, o discurso educacional abrange inúmeros contextos diferentes, perpassando a esfera científica, a ética e a prática, as quais emprestam uma variedade de matizes e de ênfases a noções que são ostensivamente comuns. Uma tarefa fundamental da análise parecería, então, ser a de deslindar os diferentes contextosnos quais se discute e se argumenta sobre a educação, e a de considerar as idéias básicas e os critérios lógicos apropriados que são relevantes em cada um deles. 5. Para análises pertinentes de ‘necessidade’, ver Archambault, R. D.: “The concept of need and its relation to certain aspects o f educational theory” , Harvard Educational Review, 27:38, (Winter) 1957.

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A tarefa é vasta e complexa, e certamente não pode ser levada a termo, de maneira mais ou menos completa, num único volume. O campo que ela define exige cultivo continuado de muitos estudiosos. Assim, o presente trabalho se endereça apenas a alguns aspectos selecionados dessa tarefa, e o seu objetivo não é, evidentemente, dizer a palavra final sobre os tópicos tratados, mas propor algumas análises que possam contribuir para promover uma reflexão crítica sobre os problemas que elas abordam. Os aspectos selecionados para tratamento não foram, entretanto, escolhidos ao acaso. Eles representam características generalizadas no pensamento e na discussão educacionais, e esperamos, em conseqüência, que o seu estudo possa, não apenas servir como um conveniente ponto de partida filosófico, mas ser também de interesse direto para educadores e para outras pessoas preocupadas com a educação. Esperamos além disso, como foi assinalado acima, que muitas das distinções e conceitos introduzidos como instrumentos da presente análise possam resultar úteis na aplicação a uma gama mais ampla de áreas do que aquelas aqui discutidas. O plano do livro é, então, o seguinte: Nos próximos três capítulos, serão examinados três tipos de enunciados correntes em educação, com o fito de apreciar-lhes logicamente o estatuto. São eles: os enunciados de definição, os slogans educacionais e as descrições metafóricas. Enunciados de cada um desses tipos ocorrem repetidamente em debates educacionais, e muitas vezes são tratados, nos contextos diversos, de maneira inteiramente acrítica. Tentaremos analisar alguns modos típicos em que tais enunciados são empregados em circunstâncias igualmente típicas, e propor princípios relevantes para a sua avaliação crítica. Não estaremos preocupados, assim, em fornecer um catálogo descritivo de definições, slogans e metáforas concretos, de uso corrente em educação, mas, ao contrário, em utilizar alguns deles como exemplos analíticos para a apresentação de estratégias de apreciação lógica. Os dois capítulos seguintes se interessam, ambos, pela idéia de ‘ensinar’. O primeiro deles dedica-se a uma análise geral dessa idéia e das maneiras predominantes em que é utilizada. O segundo apresenta uma comparação entre ‘ensinar’ e ‘dizer’ que deverá complementar a análise precedente, oferecendo, ao mesmo tempo, algumas sugestões práticas para esclarecer as discussões sobre o currículo. No seu conjunto, portanto, o estudo se divide em duas partes principais: a primeira, que consiste nos capítulos 1-3, abordando certos tipos de afirmação recorrentes 18

em educação, e a segunda, formada pelos capítulos 4 e 5, fornecendo um tratamento unificado de uma noção educacional básica. A ordem em que os capítulos deverão ser lidos, no entanto, constitui, em larga medida, uma questão individual. Dado que a seqüência dos capítulos 4 e 5 configura uma unidade, poderão ser muito bem lidos, em conjunto, antes dos capítulos 1-3. Por outro lado, a dificuldade relativamente maior que o capítulo 1 apresenta, em comparação com os capítulos 2 e 3, poderá tornar conveniente, para alguns leitores, tentar lê-lo depois —e não antes —dos capítulos 2 e 3.

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CAPÍTULO I AS DEFINIÇÕES EM EDUCAÇAO O presente capítulo e os dois seguintes estarão ocupados em avaliar o papel que desempenham três tipos de afirmação que encontramos com freqüência nos debates a respeito da educação. São eles: as afirmações que enunciam definições, as afirmações que incorporam slogans educacionais e as afirmações que contêm descrições metafóricas da educação. Mediante uma consideração de alguns contextos típicos em que ocorrem tais afirmações, tentaremos elucidar aquilo que pode ser chamado de a lógica da sua operação nesses contextos. Assim, embora façamos livremente referência ao ambiente social que as circunda, nosso objetivo não será sociológico. Interessa-nos, antes, apreciar a for­ ça de tais afirmações quando aparecem em argumentos - exami­ nar a validade das conclusões tiradas com o seu auxílio e propor modos segundo os quais os seus usos inferenciais possam ser pertinentemente criticados. Esses objetivos indicam em que sentido o nosso propósito aqui pode ser denominado ‘lógico’. Passaremos agora ao estudo da definição, o qual deverá nos ocupar no resto do capítulo6 . Já observamos que o discurso educacional interfere em vários contextos, em que poderão estar em jogo diferentes tipos de problemas, conquanto em todos eles reapareçam termos idênticos. Dessa maneira, ao introduzir o nosso tratamento do papel das definições, nao devemos produzir a impressão errônea de que existe algum modo único segundo o qual elas são usadas em educação. Ao contrário, devemos desde o início indicar, ainda que de maneira apenas grosseira, os tipos de contextos que teremos particularmente em mente, deixando para as nossas discussões ulteriores o preenchimento dos detalhes pertinentes. 6. Há uma vasta literatura sobre aspectos variados da definição. Algumas notáveis contribuições recentes estão incluídas em Goodman, N.: The Structure o f Appearance. Cambridge, Harvard University Press, 1951, capítulo I; Hempel, C'. G.: Fundamentais o f Concept Formation in Empirical Science. Chicago, The University of Chicago Press, 1952, Parte 1; Stevenson, C. L.: Ethics and Language. New Haven, Yale University Press, 1944, capítulo IX; Quine, \V. V.: /•'ram a Logical Point o f View. Cambridge, Harvard University Press, 1953.

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Estamos interessados aqui, de maneira geral, em discursos não-científicos, nos quais se oferecem definições de certas noções educacionais; por exemplo, em afirmações referentes a um currículo, em enunciações de programas e objetivos, em interpretações da educação dirigidas ao público em geral e em debates sobre política educacional. Pouco importa que as definições oferecidas em tais contextos sejam ou não baseadas em autoridade científica; o importante é o fato de serem apresen­ tadas como comunicações de ordem geral efetuadas num con­ texto prático, e não comó afirmações técnicas interligadas a uma pesquisa científica especial e com propósitos teóricos. A linguagem das ciências não é, sem dúvida, ela mesma de textura uniforme, e as formas de expressão científica variam largamente com o progresso da investigação, bem como entre os ramos distintos da pesquisa. Apesar disso, o objetivo da ciência é, em todos os casos, construir uma rede teórica adequada a todos os fatos disponíveis. A localização de afirmações isoladas nessa rede constitui, em consequência, uma questão de importância mais secundária. Cada uma dessas afirmações se encontra constantemente à mercê do cientista, interessado em manter e em aumentar a adequação de toda a rede face à quantidade crescente de informação. Por conseguinte, nenhuma afirmação científica está imune a alterações radicais, a modificações do seu papel ou a ser eliminada nos interesses da adequação teórica, não importando qual possa ter sido o estatuto inicial da afirmação em questão, isto é, não importando se foi originariamente adotada como uma definição, uma hipótese, um relato, uma lei ou uma teoria. Assim, as definições científicas, em particular, estão em conexão imediata com as demais afirmações que com elas coexistem nas redes que as circundam, e não poderiam ser adequadamente avaliadas em abstração dessas redes. Mais ainda, elas são avaliadas, em primeiro lugar, em termos das contribuições que fazem à adequação teórica sem que se considere o seu grau de conformidade com o uso habitual ou a sua capacidade de esclarecer o leigo ou os seus efeitos sociais e retóricos. Em resumo, todas as definições em ciência são, num sentido capital, dc teor técnico e exigem um conhecimento especial e o emprego de critérios teóricos especiais para a sua avaliação. Nas comunicações científicas, conseqüentemente, as definições são apresentadas e interpretadas por membros profissionais da comunidade científica. Quando tais definições, entretanto, são extraídas do contexto de uma atividade profissional de pesauisa e são

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Incorporadas em afirmações endereçadas ao público ou a professores ou profissionais de outras áreas, muitas vezes num meio institucional, deverão ser julgadas, nesse papel, da mesma maneira como são julgadas outras definições que se encontram em posição idêntica. O nosso problema atual consiste em dizer mais exatamente como são apropriadamente julgados vários tipos de definição com essa posição. Nós nos referiremos a elas como definições gerais’. Uma definição geral, com freqüência, consiste simplesmente numa estipulação que determina que um termo dado deverá ser compreendido de um modo especifico no espaço de algum discurso ou dentro de vários discursos de um certo tipo. Tal definição pode ser chamada ‘estipulativa’. Uma definição estipulativa exibe um termo qualquer a ser definido e comunica que ele deverá ser tomado, dentro de um contexto particular, como equivalente a algum outro termo ou descrição apresentado. Trata-se de um caso de legislação terminológica que não se propõe a refletir o uso previamente aceito do termo definido —a supor que realmente exista um tal uso predefinicional*. As definições estipulativas podem, por sua vez, ser divididas em dois grupos, dependendo, antes de mais nada, de o termo definido de fato possuir ou não um uso prévio. Em caso negativo, a definição estipulativa pode ser denominada uma estipulação ‘inventiva’. De outra parte, quando a definição estipulativa prescreve uma nova utilização para um termo que já possui um uso prévio e reconhecido, poderá ser chamada uma estipulação ‘não-inventiva’ A estipulação inventiva pode ser ilustrada pela introdução de um sistema de letras arbitrárias (por exemplo, ‘S’, ‘B’, ‘E’) que denotarão as folhas de prova dos alunos, folhas essas cujas notas caem dentro de intervalos especificados; não possuindo nenhum uso reconhecido, anterior à sua introdução, essas letras recebem as suas utilizações por meio de uma estipulação. São destinadas a ser etiquetas taquigráficas que equivalem a certas descrições complexas das provas que caem dentro dos vários intervalos de pontos alcançados pelos alunos. Por outro lado, a utilização, para esse mesmo propósito, de um conjunto de termos «qualitativos» (por exemplo, ‘suficiente’, ‘satisfatório’ etc.) é freqüentemente * Para fins de economia, a expressão ‘predefinitional usage’ será traduzida pela forma pouco ortodoxa ‘uso predefinicional’. Ela indicará, assim como a expressão ‘uso prévio’ (correspondente a ‘prior usage’), o uso habitual que um termo definido possui anteriormente à sua definição (Nota do tradutor).

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14j governada por uma série de estipulações nao-inventivas, «pie são não-inventivas porque os termos já possuem um uso prédefinicional7. Para resumir as distintas categorias de definição discutidas até agora, recordaremos que começamos por segregar as defi­ nições científicas enquanto reconhecivelmente especiais e téc­ nicas em. alcance, e rotulamos as restantes como ‘definições gerais’. Entre essas, destacamos, a seguir, as definições estipulativas, como aquelas que estabelecem convenções para a inter­ pretação de termos dentro de certos contextos, sem levar cm consideração o uso corrente. Por último, dividimos as definições estipulativas em tipos inventivos e não-inventivos, segundo a novidade dò termo definido. Quais são alguns dos motivos típicos que levam à formulação de definições estipulativas? Quando é necessário referir-se a alguma coisa num contexto particular, para a qual a linguagem disponível oferece apenas, no melhor dos casos, a possibilidade de uma descrição extensa, a conveniência aconselha a. introdução de um termo abreviatório. Assim, nos exemplos acima, evita-se a descrição repetida dos vários intervalos de notas pela introdução das letras abreviatórias ‘S’, ‘B’ etc., ou dos adjetivos abreviatórios ‘suficiente’, satisfatório’ etc. Ou, para tomar como exemplo a nossa própria discussão, os termos classificadores anteriormente introduzidos, por exemplo, ‘definições estipulativas não-inventivas’ etc., serviram para nos fornecer etiquetas cômodas com as quais poderemos nos referir a coisas que, de outra maneira, teriam requerido a repetição de descrições complicadas. Tais termos, portanto, foram eles mesmos introduzidos por estipulação, a fim de facilitar a nossa apresentação. Essas abreviações não são teoricamente essenciais, visto que aquilo que é dito com o seu auxílio poderia, ainda que de um modo muito mais incômodo, ser dito sem elas. No entanto, a economia de elocução que elas permitem constitui um poderoso motivo prático a recomendar o seu emprego. Elas são, portanto, recursos familiares, em educação e em outros campos. 7.

Um outro contraste entre estipulação inventiva e não-inventiva é ilustrado pelas maneiras alternativas de etiquetar- classes diferentes numa escola primária. Duas quintas séries, por exemplo, podem ser distinguidas como ‘Avançada’ e ‘Normal’, ou então podemos afixar-lhes duas letras diferentes (as iniciais dos nomes dos seus professores respectivos), precisamente a fim de evitar as sugestões indesejadas transmitidas pelas suas alternativas “qualitativas” . Fico em débito com o Dr. David V. Tiedeman na discussão desse ponto e de questões conexas.

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Visto que o propósito de uma abreviação pode ser executado mediante a utilização, de uma maneira específica, de um termo corrente, como também por meio de um termo in teiram ente novo, as definições estipulativas abreviam igualmente bem de um ou de outro modo, e, de fato, estipulações inventivas e não.-inventivas existem em abundância. Quanto a saber se devemos, numa ocasião dada, escolher um ou outro tipo é algo que dependerá de outros fatores que não a mera vantagem abreviatória — por exemplo, da disponibilidade de um termo familiar que, pelo seu poder sugestivo, estimulará provavelmente a memória sem despertar associações indesejadas, ou da necessidade de deixar desimpedido um termo corrente (que é adequado sob outros aspectos) para outras utilizações dentro do contexto relevante. O que é fundamental, todavia, com respeito a todas as definições estipulativas, é que elas não pretendem refletir o uso predefinicional dos termos que definem. Elas legislam convenções que podem ser mais ou menos úteis para a discussão, que podem ser observadas de maneira consistente ou inconsistente, e qüe podem, tomadas globalmente, ser ou não coerentes. Mas jamais poderão ser justificadas, nem rejeitadas, a justo título, con­ siderando-se a exatidão com que espelham um uso predefini­ cional. Uma vez estabelecido que uma definição estipulativa ou que um conjunto de tais definições é formalmente coerente, e foi bem escolhida do ponto de vista pragmático, é irrelevante seguir argumentando contra ela sobre o fundamento de que não consegue refletir a significação normal do ou dos termos definidos. Nesse sentido especial, pode-se dizer que as definições estipulativas são matéria de escolha arbitrária. Há, no entanto, um outro tipo de definição geral, a que chamaremos aqui ‘descritivo’, em contraste com o tipo estipulativo. Como esse último, as definições descritivas também podem servir para expressar as convenções que governam as discussões; além disso, contudo, elas sempre pretendem explicar os termos definidos por meio de uma explanação do seu uso prévio. De fato, as definições descritivas são frequentemente apresentadas em resposta a pedidos de elucidação. A pergunta «O que significa esse termo? » tenciona, tipicamente, obter como resposta alguma regra explicativa ou alguma descrição do funcionamento prévio do termo, isto é, algo que tem a natureza de uma definição descritiva. Toda definição desse genero pode ser construída como uma fórmula que torna equivalente — de um modo que pretende espelhar o uso predefinicional - um termo definido a outros termos, os definientes. E esse fato de espelhar 24

que — assim se espera — proporcionará a compreensão da significação do termo definido. Uma ilustração nos é dada pela definição do termo ‘doutrinação’ como ‘a apresentação de questões como se elas tivessem uma única face’8. Essa e outras definições análogas de ‘doutrinação’ são constantemente apresentadas numa tentativa de clarificar o termo tal como ele é aplicado ordinariamente e da maneira a mais evidente. Tais definições objetivam derivar uma regra geral a partir do uso prévio do termo, uma regra que possa, ao mesmo tempo, resumir esse uso e clarificá-lo, relacionando-o com o uso de outros termos já familiares; trata se de uma regra que pode, portanto, ser empregada para ensinar a alguém a maneira como o termo é normalmente utilizado. As definições descritivas, por conseguinte, ao contrário das definições estipulai ivas, não são simples expedientes abreviatórios adotados por conveniência e elimináveis teoricamente. Elas não se propõem a economizar a elocução, mas a fornecer elucidações explicativas da significação. Daí resultar que não há nada, entre as definições descritivas, que corresponda à estipulação inventiva, dado que os termos definidos mediante estipulações inventivas não possuem significações prévias a serem explicadas. Entretanto, dado um termo que possui um uso prévio, a estipulação não-inventiva poderá, com o propósito de facilitar a comunicação, aplicá-lo a utilizações não familiares, ao passo que a definição descritiva limitar-se-á a oferecer uma explanação geral do seu uso prévio. Se, à maneira da lógica moderna, encararmos a definição como uma fórmula, na qual o termo definido (definiendum) apa­ rece à esquerda e o termo ou conjunto de termos definientes (definiens) aparece à direita, ambos separados por algum signo espe­ cial (‘ = df ’) colocado entre eles (por exemplo: ‘doutrinação = df a apresentação de questões como se elas tivessem uma única face’), nesse caso, poderemos então encarar a diferença entre definições estipulativas e descritivas como uma diferença na direção do interesse que se atribui à fórmula como um todo. Enquanto o interesse, na estipulação, vai da direita para a esquerda, isto é, volta-se para uma elocução mais condensada que utiliza um vocabulário aumentado, na definição descritiva, ao contrário, o interesse se move da esquerda para a direita, isto é, em direção a uma elocução explanatória dilatada que emprega um vocabulário mais reduzido. 8. Esse exemplo foi tomado de Brubacher, j. S.: Modern Philosophies o f Education. Second Edition. New York, McGraw-Hill Book Coinpany Inc

1950, p. 201.

E D U C A C Â O - UFW33

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E evidente que as definições descritivas não constituem matéria de escolha arbitrária, à maneira como, segundo dissemos, as definições estipulativas o são. Pois, além de considerações formais e pragmáticas, as definições descritivas poderão ser chamadas a responder pela exatidão com que refletem o uso predefinicional normal. Não é irrelevante argumentar, contra uma definição descritiva, que ela violenta esse uso. Poder-se-ia, na verdade, estipular explicitamente que o termo ‘árvore’ deverá ser considerado, enquanto perdurar alguma discussão particular, como equivalente a ‘janela’; tal equação, todavia, violentaria manifestamente o uso prévio do termo ‘árvore’ e deverá, por conseguinte, ser reputada errônea se for oferecida a título de definição descritiva. Esse exemplo, incidentalmente, é adequado para salientar o fato de que uma dada equação definicional pode servir, quer como uma estipulação, quer como uma definição descritiva, dependendo do contexto em que é apresentada e dos propósitos que ela intenta servir. A diferença não é, assim, uma diferença formal ou puramente lingüística; ao contrário, ela está ligada ao ambiente pragmático que circunda a definição. A equação definicional é descritiva se e somente se pretende refletir um uso predefinicional. O fato de espelhar o uso predefinicional é, já o dissemos, o que possui força explicativa com relação aos termos definidos. Mas o nível e o modo das explicações que são tentadas variarão consi­ deravelmente. As definições descritivas podem ser oferecidas na esperança de ajudar alguém a aplicar com eficácia o termo defini­ do. Por outro lado, podem também ser proporcionadas mais como meios de familiarizar alguém com a referência do termo definido, ainda que não na esperança de torná-lo, com isso, apto a aplicar o termo a instâncias concretas —à maneira como se poderia definir o termo ‘vírus’ para uma classe de segundo grau. Essas definições podem também ser formuladas em casos nos quais o termo já vem sendo eficientemente aplicado a instâncias, o objetivo aqui sendo o de extrair o princípio que orienta essa aplicação e o de mostrar a inter-relação do termo com outros termos. Esse último gênero de empreendimento é caracteristicamente filosófico e vem exem­ plificado no trabalho de muitos pensadores desde Sócrates, cuja tentativa consistiu, precisamente, em formular caracterizações gerais que cobrissem as instâncias conhecidas dos termos mais im­ portantes. Essa tarefa, contudo, não está de modo nenhum limi­ tada aos filósofos, encontrando-se, com muita freqüência, em 26

explicações sistemáticas de vários temas de estudo, inclusive a educação. A relação entre a definição descritiva e o uso prévio requer, ainda, algumas observações adicionais, que adiamos até agora para objetivos de simplificação. Não se deve supor que o uso prévio de um termo dado qualquer seja consistente e exaustivo. Em primeiro lugar, os termos ordinários são muitas vezes ambíguos, de tal forma que as definições descritivas exigem ser complementadas, mesmo que apenas pelo contexto, por alguma indicação do uso que será considerado relevante. Por exemplo, o termo ‘banco’ se aplica, em alguns contextos, a certos tipos de assentos e, em outros contextos, a determinados estabeleci­ mentos de crédito, mas em nenhum contexto se aplica aos dois ao mesmo tempo*. Além disso, mesmo depois de eliminadas as ambiguidades, o uso prévio não cobre, em geral, todas as instâncias a serem 18J enfrentadas. Ele determina claramente cada um dos termos que são aplicáveis ou inaplicáveis a certas instâncias, mas deixa as restantes indeterminadas; nesse sentido, ele não é exaustivo. A palavra ‘cadeira’, por exemplo, se aplica nitidamente, de acordo com o uso padrão a certos objetos, como, por exemplo, às peças transportáveis de mobília, feitas de madeira, com quatro pernas, providas de encosto reto, dispostas em volta da mesa de jantar e utilizadas para que os adultos sentem. De outro lado, é igual­ mente claro que ela não se aplica a inúmeros outros objetos; por exemplo, a janelas, cavalos, máquinas, lagos e nuvens. Algumas coisas, todavia, não constituem nem casos evidentes de aplicação, nem, tampouco, evidentes casos de não-aplicação, como, por exemplo, os brinquedos semelhantes a cadeiras, mas feitos de plástico e medindo seis centímetros e meio de altura, assim como certos objetos utilizados para que os adultos sentem, mas desprovidos da forma típica das cadeiras — caixões ou barris, por exemplo. Com relação a esses casos indeterminados ou limítrofes, as definições descritivas guardam inteira liberdade de decidir a aplicação ou a não-aplicação do termo em pauta. Assim, para que uma definição desse tipo seja exata, deverá concordar com o uso prévio unicamente no sentido de não violentar as instâncias evidentes desse uso. Ou seja, quando o uso prévio *

O exemplo original foi alterado, a fim de preservar a ambigüidade desejada. O autor deu como exemplo o termo ‘trunk’, que, em inglês, tanto pode significar um baú ou uma mala, quanto a tromba de um elefante, o que dependerá do contexto. Em nenhum contexto, todavia, a expressão ‘trunk’ se aplica às duas coisas ao mesmo tempo (Nota do tradutor).

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aplica claramente um termo a algum objeto, a definição não po­ derá suprimir a aplicação; e quando o uso prévio recusa clara­ mente o termo a certo objeto, a definição não poderá aplicá-lo. Com respeito aos casos indeterminados, no entanto, a defi­ nição pode servir para legislar em qualquer direção. Dessa maneira, embora cada caso patente de aplicação ou não-aplicação predefinicional de um dado termo forneça uma condição de exatidão que as definições descritivas do termo deverão respeitar, nem toda aplicação decretada por uma definição dessa espécie é regida por alguma condição predefinicional de exatidão. As exigências de exatidão toleram considerável margem de deriva por parte das definições descritivas. Até o momento, distinguimos, então, dois tipos amplos de definição geral: o tipo estipulativo, que não se propõe a concordar com um uso prévio, mas apenas a facilitar o discurso, e o tipo descritivo, que pretende explicar os termos fornecendo uma elucidação do seu uso prévio. Observamos que, ainda que considerações formais sejam relevantes para a apreciação de uma definição de qualquer um dos dois tipos, somente as definições descritivas poderão ser criticadas, de modo apropriado, por não concordarem com o uso predefinicional. Notamos, por conse­ guinte, que o processo de definição estipulativa não se vê limita­ do da maneira específica em que a definição descritiva o é, conquanto mesmo essa última permita, dentro dos limites de exatidão, considerável espaço de variação. Resta-nos agora considerar um outro papel das definições gerais, esse de natureza prática, que é de especial importância em educação; é por intermédio desse papel prático que as definições gerais muitas vezes se inserem, de maneira bem direta, nas práticas sociais e nos hábitos de espírito. Como se poderia descrever o papel prático das definições gerais? Poder-se-ia dizer, de forma um tanto grosseira, que alguns termos (por exemplo, o termo ‘profissão’) destacam certas coisas para as quais a prática social se orienta de uma maneira determinada. (Pode-se supor que essa orientação é exprimível por meio de um princípio geral de ação: Exemplo: «Todas as profissões devem receber um tratamento privilegiado»,) Propor uma definição que passa a atribuir um termo desse gênero a uma nova coisa pode, num determinado contexto ser um meio de comunicar que se deve conferir a essa nova coisa o mesmo tipo de tratamento prático concedido às outras coisas referidas, até então, pelo termo em questão. (Por exemplo, definir ‘profissão’ de tal maneira que o termo se aplique a uma nova ocupação pode constituir um meio 28

de transmitir que essa nova ocupação deve receber um tratamento privilegiado.) De maneira semelhante, propor uma definição que recusa a aplicação de um termo desse tipo a um objeto a que até então se aplicou, é algo que pode ser um meio de veicular que o objeto em questão não deverá mais ser tratado da maneira como as coisas referidas pelo termo têm sido tratadas. E mesmo se for proposta uma definição que confere o termo apenas e exclusivamente aos objetos a que se aplicou até o momento, e a nenhum outro, o ponto em jogo pode consistir em defender a justeza da orientação prática habitual em relação apenas a esses objetos, com exclusão de todos os demais —e não em (ou tanto quanto em) espelhar um uso predefinicional. Quando uma definição se propõe a efetuar uma dessas três coisas, estará atuando como uma expressão de um programa prático, e nós a denominaremos ‘programática’. Como no caso das definições estipulativas e descritivas, as definições programáticas não podem ser reconhecidas como tais pela sua forma lingüística apenas; é necessário fazer referência ao contexto. Uma definição, por exemplo, pode ter o efeito de implicar uma consequência prática quando em combinação hipotética com algum princípio de ação, mas isso não significa que ela é, consequentemente, programática. Isto é, ela pode não pretender veicular a consequência prática em questão; o contexto pode deixar claro que a definição não é destinada a servir como premissa prática. Assim, é a intenção prática da definição numa ocasião particular que revela o seu caráter programático. Uma mesma fórmula que se repete em várias ocasiões poderá, obvia­ mente, ser programática numa delas e não na próxima. Pode-se talvez dizer, com efeito, que uma definição programática veicula a própria conseqüência prática, não se limitando meramente a exprimir uma premissa capaz de produzir, sob condições adequa­ das, essa conseqüência. É essa força prática que algumas defini­ ções possuem em ocasiões particulares que nos interessa aqui. As definições programáticas representam o último tipo de definição geral que distinguiremos para os nossos propósitos atuais9. Dessa maneira, junto com os tipos estipulativo e 9. O tratamento da definição apresentado no texto foi influenciado, sob vários aspectos, pelo importante trabalho de C. L. Stevenson, op. cit. No entanto, o uso do termo ‘programático’ em lugar do seu termo ‘persuasivo’ é motivado por algumas considerações substantivas que marcam uma diferença de abordagem: As definições persuasivas são interpretadas por Stevenson em termos de significação emotiva, isto é, em termos de reações, atitudes e sentimentos psicológicos, ao passo que as definições programáticas são interpretadas aqui em função da orientação da prática social. O tratamento da noção, no presente texto, vincula a força prática das definições às referências

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descritivo as definições programáticas esgotam a classe de definições gerais que examinaremos aqui. A diferença entre cada tipo e os demais não é, como já foi enfatizado, uma diferença formal. Exatamente a mesma equação definicional pode ser estipulativa, descritiva ou programática, dependendo do contexto em que for oferecida. Que tipos de consideração são relevantes para a avaliação das definições programáticas? Consideremos um exemplo parcialmente esquemático. Imaginemos um tipo de trabalho T que, até o momento, esteve manifestamente fora do âmbito do termo ‘profissão’. Suponhamos que seja apresentada uma definição que tem a consequência de aplicar esse termo a T. O contexto evidencia, ademais, que a definição não está sendo utilizada simplesmente para introduzir um artificio abreviatório que pode ser eliminado, destinado a facilitar a comunicação. As propostas de outras abreviações plausíveis, por exemplo, são invariavelmente rejeitadas. Além disso, quando se levanta a objeção de que a definição nao logra concordar com o uso prévio, o seu autor permanece impassível; ele deseja, justamente, apartar-se desse uso. Torna-se claro, então, que a definição não é nem estipulativa nem descritiva. O objetivo do autor é diferente; ele deseja que T seja tratado do mesmo modo como são tratados outros tipos de trabalho que caem dentro do âmbito predefinicional do termo ‘profissão’. Um objetivo como esse requer uma avaliação independente e de natureza prática. Seria certamente irrelevante argumentar que a definição não constitui uma convenção abreviatória de muita utilidade ou que ela não respeita a ortodoxia do uso predefinicional. O que deve ser investigado, ao contrário, é a questão prática ou moral: «Deve-se dos termos constituintes e aos princípios de ação associados a eles, e não às propriedades emotivas dos próprios termos. Assim, essa força prática não é explicada aqui como uma utilização consciente ou inconsciente da definição “num esforço para assegurar, mediante essa interação entre significação emotiva e descritiva, uma reorientação das atitudes das pessoas” (Stevenson, op. cit., p. 210); ela aparece aqui, ao contrário, como um efeito “cognitivo” , como uma função das referências e das relações lógicas existentes entre os termos e as afirmações envolvidas. A ênfase no caráter persuasivo sugere que, quando uma definição vai além da sua função explicativa, a sua função excedente não consiste em suscitar novas questões, mas, antes, em causar novos efeitos no ouvinte. A ênfase no caráter programático, por outro lado, sugere que as incidências de uma definição sobre a prática social podem, muitas vezes, ser exprimidas como questões debatíveis, embora elas não constituam problemas de significação, mas questões práticas ou morais. Enfatizar as definições programáticas de preferência às persuasivas não é negar a importância dessas últimas; mas, pelo menos em parte, constitui uma tentativa de sublinhar a relevância “cognitiva” das definições para a prática social, a qual tem sido, parece-me, indevidamente negligenciada recentemente, a despeito do significativo papel que desempenha no discurso comum.

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conceder a T o tratamento normalmente dado aos tipos de trabalho denominados, até o momento, ‘profissões’? ». As considerações que são apropriadas para essa questão serão relevantes para a apreciação da própria definição proposta10. A partir da discussão precedente fica claro que, embora as definições programâticas se assemelhem às estipulativas por não estarem limitadas pelo uso prévio, diferem, contudo, das estipulações por levantarem questões de ordem moral ou prática. Já assinalamos que mesmo as estipulações não são totalmente arbitrárias. Elas podem ser criticadas segundo considerações formais, tais como as relativas à consistência, e apreciadas com respeito à sua utilidade enquanto expedientes de comunicação; por exemplo, sei auxiliam a memória, se não se prestam a confu­ sões por introduzir associações irrelevantes etc. Mas elas não suscitam questões morais que vão além da discussão imediata; não reclamam uma avaliação da prática, uma apreciação dos engajamentos que poderiam acarretar, ou a feitura de decisões extralingüísticas. Portanto, constitui um erro, em geral, supor que toda definição é inteiramente arbitrária, e é um erro ainda rhais sério supor que todas elas, com exceção das definições descritivas, são limitadas somente por considerações de consistência ou de conveniências de comunicação. As definições programâticas, em especial, podem ser utilizadas para expressar graves decisões morais. Podemos então dizer que as definições programâticas são semelhantes às definições descritivas por provocarem questões que vão além dos problemas de consistência e de conveniência. Mas o gênero de questão que é levantada por um desses tipos de definição difere notavelmente do gênero de pergunta que o outro suscita. De um lado, a questão reside em saber se a definição que temos diante de nós concorda ou não com o uso lingüístico prévio; de outro, ela consiste em saber se o programa exprimido pela definição deve ou não ser adotado. Estamos agora em condições de resumir a comparação entre os nossos três tipos de definição geral, o que podemos fazer afixando uma etiqueta, de maneira aproximada, ao interesse 10.

Para um tratamento de questões conexas, ver Cogan, M. L.: “ The problcm of defining a profession” , Annals o f the American Academy o f Political and Social Science, 297:105, (January) 1955;Cogan, M. L.: “Toward a deflnition ot' profession”, Harvard Educational Review, 23:33, (Winter) 1953; e Lieberman, M.: Education as a Profession. Englewood Cliffs, N. J., Prentice-Hall, Inc., 1956.

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subjacente em cada um deles. O interesse das definições estipulativas é comunicatório, isto é, elas são oferecidas na expectativa de facilitar o discurso; o interesse das definições descritivas é explicativo, isto é, elas se propõem a clarificar a aplicação normal dos termos; e o interesse das definições programáticas é de ordem moral, isto é, elas tencionam dar expressão a programas de ação. Obviamente, não há absolutamente nenhum interesse em opor uns aos outros esses três tipos de definição geral, ou em opor qualquer um deles, ou todos ao mesmo tempo, às definições científicas. Os propósitos a que cada um deles serve sãó todos perfeitamente legítimos, e nãò há necessidade d% decidir-se a favor ou contra algum deles, ou de classificá-los a todos numa escala de valores qualquer. O que é preciso, ao contrário, é que a apreciação crítica de uma definição pertencente a qualquer um dos tipos seja orientada para as questões que estão em jogo na ocasião da sua utilização, e é para esse fim que poderão ser úteis as distinções anteriores estabelecidas entre os tipos de definição. Existem, no entanto, certas complicações que deveremos enfrentar ao considerar as relações entre os vários tipos de defini­ ção geral. Foi sublinhado acima que uma mesma equação ou fórmula definicional pode, em ocasiões diferentes, exprimir uma definição estipulativa, descritiva ou programática, dependendo do contexto. Não poderia haver, além disso, uma superposição de diferentes tipos definicionais numa mesma ocasião e numa mesma fórmula definicional? A mesma definição não poderia, num mesmo contexto, pertencer a mais de um tipo? Se consideramos essa possibilidade, em primeiro lugar com relação às definições estipulativas e descritivas, constatamos que qualquer superposição fica excluída. As definições descritivas, com efeito, se propõem a descrever o uso predefinicional, ao passo que as definições estipulativas não o fazem. Assim, nenhuma equação definicional dada poderá ser estipulativa e descritiva ao mesmo tempo. Mas, e com relação a uma superposição de tipos estipulativo e programático? Se considerarmos, primeiramente, a estipulação inventiva, parece novamente que a possibilidade fica excluída, porquanto o termo que é definido num caso desse gênero, não possuindo absolutamente nenhuma aplicação prévia, não pode, a fortiori, destacar certos objetos para os quais a prática se orienta de um modo particular. Assim, uma definição de um termo como esse é incapaz de exprimir um programa, sugerindo uma alteração ou uma perpetuação da prática que lhe está associada. E 32

tampouco poderá o termo definido, se a frase definiente denota objetos invariavelmente associados a alguma orientação prática, servir para sugerir uma alteração ou uma perpetuação de tal orientação. Com efeito, para fazer isso, ele já deveria possuir alguma aplicação inicial própria que diferisse da aplicação da frase definiente ou que com ela coincidisse. Ora, é essa aplicação inicial, justamente, que falta à estipulação inventiva. Por outro lado, quando examinamos a possibilidade de uma superposição, numa ocasião determinada, de uma estipulação não-inventiva e de uma definição programática, fica evidente que isso efetivamente ocorre com freqüência. Mais ainda: é evidente por que razão ela ocorre, pelo menos em numerosas ocasiões. Para dizê-lo sucintamente: a expressão de um programa particular pode demandar um novo aparato linguístico; e uma definição determinada pode. de um só traço, criar esse aparato bem como, ao mesmo tempo, dar expressão ao programa. Exemplos disso encontram-se abundantemente em escritos que tratarii de temas sociais, mas uma ilustração educacional deverá ser suficiente aqui. Descobrimos muitas vezes, em trabalhos recentes sobre a educação, que o termo ‘currículo’ é definido como se referindo à totalidade das experiências de cada estudante sob a influência da escola11. Ora, essa definição tem sido, a justo título, criticada como vaga e difícil sob inúmeros aspectos. Mas o ponto que nos concerne aqui é bem diferente. Deve-se notar que a definição estabelece, como uma consequência pretendida, que dois alunos quaisquer jamais terão o mesmo currículo e, além disso, que jamais existirão duas escolas com o mesmo currículo, cada escola tendo tantos currículos quantos alunos tiver. Essas consequências violentam, de maneira patente, o uso predefinicional padrão do termo ‘currículo’. Esse uso, com efeito, indubitavelmente nos autoriza a falar com veracidade do currículo (único) de uma determinada escola, ou de várias escolas com o mesmo currículo, autorizando-nos igualmente a dizer que o currículo de uma escola permanece estável por um período maior ou menor, durante o qual a sua população de alunos se modifica completamente. 11. Compare-se com o artigo “Curriculum development’*, contribuição de O. I. Frederick ao trabalho de Monroe, W. S., editor: Encyclopedia o f Educational Research. New York, The Macmillan Company, 1941, no qual se afirma que, “na literatura educacional recente e neste informe, considera-se que o currículo escolar é todas as experiências efetivas dos alunos sob a influência da escola. Sob esse ponto de vista, o currículo de cada aluno é, em certa medida, diferente do currículo de todos os demais. Considera-se que o programa de estudos constitui um sugestivo guia escrito que os professores utilizarão para planificar e ensinar o currículo” (Passagem citada com autorização da Macmillan Company).

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Essa definição não é uma estipulação inventiva, pois o termo ‘currículo’, como acabamos de ver, tem efetivamente um uso prévio. Tampouco se trata simplesmente de uma definição descritiva que acontece ser mal sucedida, uma tentativa defeituosa de espelhar o uso predefinicional. Com efeito, se as transgressões desse uso, que acabamos de assinalar, forem explici­ tadas, elas não serão tratadas como se fossem contra-exemplos de uma hipótese descritiva que foi proposta. Ao contrário, elas serão tipicamente consideradas como sintomas adicionais do caráter deliberadamente distintivo da definição, a qual, então, será de hábi­ to sustentada por outros argumentos. Esses argumentos, em geral, deixam claro que a definição é programática, que o seu objetivo consiste, precisamente, em aplicar de um modo estranho o termo familiar, a fim de canalizar em outra direção a prática que está as­ sociada a ele. Esse objetivo programático reside, em particular, em dilatar a responsabilidade da escola — até então limitada ao seu assim chamado plano formal de estudos —de forma a abran­ ger o desenvolvimento individual, social e psicológico dos seus alunos. A apresentação desse objetivo programático, todavia, im­ põe que se faça referência repetida ao domínio de responsabilida­ de ampliado que se tem em vista, e, para facilitar tal referência, a mesma definição estipula qual é a nova utilização do termo ‘cur­ rículo’ que será apropriada. Assim, numa mesma ocasião, a defini­ ção serve simultaneamente como programática e como estipulativa (no sentido não-inventivo dessa última). Em verdade, a neces­ sidade da estipulação em questão nasce do programa defendido. Ao avaliar essa definição de duplo objetivo é manifestamen­ te fora de propósito insistir sobre o fato de que ela violenta o uso predefinicional. A definição, ao contrário, deve ser apreciada si­ multaneamente enquanto programática e enquanto estipulativa. Devemos colocar ao mesmo tempo a pergunta prática: “ A respon­ sabilidade da escola deve abranger o desenvolvimento individual, social e psicológico dos seus alunos? ” , e a pergunta lingüística: “ O uso estipulado do termo ‘currículo’ é consistente e convenien­ te para os propósitos que animam a discussão do autor? ” . Nenhu­ ma das duas perguntas, por si só, será suficiente para a apreciação da definição, pois uma resposta positiva poderia ser adequada para uma delas mas não para a outra. Ou seja, poderiamos concordar em que o programa é acertado, sem, no entanto, admitir que a estipulação seja consistente e útil para a discussão em pauta. E — o que é mais grave —poderiamos concordar em que a estipulação é formalmente correta e é conveniente para os propósitos da dis- (25 cussão do autor, mas achar, ao mesmo tempo, que o programa ex- ^ — primido é errado. A fim de permitir a manifestação de divergên34

cias tão importantes como essas, torna-se necessário levantar am­ bas as questões com relação a definições do tipo que estivemos considerando. Fica então bem claro que, se o autor de uma definição dessas consegue mostrar que o programa proposto é acertado, ainda não mostrou, com isso, que as suas estipulações são úteis. Nem, seguramente, estará ele, se se concentrar em mostrar quão úteis são as suas estipulações no seu discurso, demonstrando, de modo algum, que o programa expressado vale a pena. A questão linguística e a questão moral ou prática devem ser, uma e outra, ponderadas independentemente. Entretanto, nos casos de uma superposição de definições de tipos estipulativo e programático, sucede com freqüência que os argumentos procedem em direções opostas, porque a necessidade que apontamos acima foi, de fato, esquecida. Desse modo, alguns críticos da definição de ‘currículo’, mencionada há pouco, se concentraram muitas vezes em apontar o seu caráter vago e várias outras dificuldades, ao passo que os seus defensores retrucaram amiúde com recomendações morais do programa que ela veicula. No entanto, no caso de definições em que existe uma superposi­ ção estipulativa e programática, há certos traços típicos que nos ajudam a lembrar da necessidade de uma avaliação dupla. Assim, o caráter estipulativo dessas definições se faz usualmente evidente graças a indícios explícitos no contexto; por exemplo, a defini­ ção pode ser expressamente introduzida como uma convenção com o propósito de facilitar a discussão, sem que haja nenhuma tentativa de justificá-la por referência a um uso predefinicional. E mais: o próprio fato de que esse uso normalmente é alterado por essas definições (não-inventivas) sugere que elas possam ter um outro objetivo, especialmente um objetivo prático. Com efeito, a estranheza mesma do uso estipulado nos põe em alerta, e isso nos leva a perguntar se algo mais do que mera estipulação não podería estar envolvido. Esse tipo de auxílio mnemônico, incorporado à própria defi­ nição, geralmente não se encontra no caso restante de superposi­ ção (e talvez o mais interessante) que ainda precisamos examinar, a saber, o caso de definições que são simultaneamente descritivas e programáticas. É óbvio que não.haverá aqui nenhum dos indí­ cios contextuais que são apropriados para as estipulações; além disso, embora a evidência que for oferecida de uma correspondên­ cia com o uso prévio possa ser apenas esboçada, normalmente ha. verá aqui uma pretensão clara de corresponder a esse uso. É evi26J dente que pode haver violações reais do uso prévio por parte de 35

definições descritivas — o que ocorre quando elas são inexatas. Com efeito, devemos recordar que as definições descritivas são aquelas que pretendem espelhar com exatidão o uso predefinicional; ora, algumas delas não conseguem realizar aquilo a que se propõem. Dessa maneira, as definições descritivas inexatas tam­ bém apresentarão, de fato, violações de um uso prévio, e essas violações poderão (dir-se-á talvez) nos fazer lembrar da possibili­ dade de uma interpretação programática. Mas a nossa convicção de que essa inexatidão é involuntária torna bem menos provável que ela nos alerte e sugira uma interpretação muito diferente, isto é, uma interpretação programática. A definição em questão, afinal, tem toda a aparência de uma fórmula que se pretendia descritiva e que malogrou. O fato de que a violação do uso prévio não ofe­ rece aqui nenhum indício sólido para sugerir uma interpretação programática, constitui, talvez, a razão pela qual os casos de superposição descritiva-programática são, com tanta freqüência, mal interpretados, sendo, por conseguinte, fontes de confusão em debates sobre temas sociais. Passemos agora ao exame dessa forma de superposição. Já assinalamos que uma definição que consigna um dado ter­ mo exclusivamente às coisas, e somente a elas, a que se aplicou até então, mesmo assim pode estar exprimindo um programa. Supo­ nhamos, por exemplo, que alguém queira se opor ao programa ex­ presso pela definição de ‘currículo’ que consideramos anterior­ mente. Visto que aquela definição desvia do uso prévio do termo, veiculando, assim, a idéia de que é desejável expandir a responsa­ bilidade da escola, seria perfeitamente natural exprimir oposição a tal expansão propondo-se uma contradefinição que espelhasse com exatidão o uso prévio e que pretendesse fazer isso, e que, além disso, restringisse, de fato, o currículo ao plano formal de estudos da escola. Ambas as partes, nesse caso, estariam de acordo sobre o princípio de que a escola é responsável pelo currículo, mas, interpretando de maneira diversa o alcance do currículo, estariam aconselhando práticas diferentes por parte da escola. Esse não constitui o único modo, é claro, em que uma tai diferença de programas pra'ticos pode se expressar. Aquele que se opõé à expansão poderia, por exemplo, admitir que se mantenha o sentido estipulado de ‘currículo’. Poderia, então, formular a sua oposição ao programa proposto negando a suposição de que a escola é responsável por todo o currículo. Inversamente, o proponente da responsabilidade ampliada não está obrigado a exprimir o seu programa mediante uma definição estipulativa.

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Poderia admitir, por exemplo, que o termo ‘currículo’ guarde a sua aplicação habitual, passando a argumentar que a escola é 27)responsável por algo mais do que o simples currículo. (Compare-se, por exemplo, o termo ‘atividades extracurriculares’.) Não obstante, enquanto as duas partes conservarem o princípio segundo o qual o currículo é coextensivo à responsabilidade da escola, as suas definições divergentes podem ser portadoras da expressão de programas educacionais contrários. Se é isso o que está realmente em jogo num debate determinado, torna-se então importante não supor que o problema - pelo fato de os pontos de vista em oposição se exprimirem ambos em forma de definição — seja puramente verbal. Tampouco o problema de saber se um debate desse tipo é ou não programático, num caso dado, constitui meramente uma questão formal, a ser determinada pela simples inspeção daquilo que é dito. Muito dependerá do contexto em que o debate se realiza, da maneira como é conduzido, dos princípios práticos que são pressupostos, da disposição dos participantes em aceitar certas reformulações das suas posições respectivas, da plausibilidade com que as definições possam servir como premissas práticas, e assim por diante. Em certos casos particulares, po­ derá ser difícil decidir se o problema em jogo é somente descritivo ou se é também programático. Em tais casos, é de prudência ado­ tar a suposição mais forte, aquela segundo a qual a questão é si­ multaneamente descritiva e programática, e avaliar o debate sob ambas as perspectivas. Consideramos, assim, um exemplo de superposição descritivo-programática; na verdade, tratava-se de um caso em que a definição também é descritivamente exata, e no qual ela se opõe programaticamente a uma estipulação não-inventiva. Nesse exemplo, como num anterior, há duas perguntas que devem ser colocadas à definição descritiva — a pergunta prática: “ A respon­ sabilidade da escola deve excluir o desenvolvimento individual, social e psicológico dos seus alunos? ” , e a pergunta lingüística: “ A definição espelha com exatidão o uso predefinicional do ter­ mo ‘currículo’? ” . Como no caso anterior, essas perguntas são lo­ gicamente independentes, e uma resposta positiva a uma delas não tem absolutamente nenhuma influência com relação à outra. Em particular, mesmo se a definição for, de fato, lingüisticamente exata ou correta, absolutamente nada ficou estabelecido no que concerne ao programa que ela expressa. Passaremos agora a um outro tipo de exemplo de superposição descritivo-programática, exemplo esse em que estão 37

envolvidas instâncias indeterminadas, e no qual duas definições igualmente exatas podem, não obstante, ser opostas programaticamente. Recordar-se-á que acusamos, anteriormente, a existência de instâncias limítrofes, às quais o uso prévio de um termo não aplica nem deixa de aplicar, de maneira inteiramente clara, o termo em questão. Observamos também que, com respei­ to a essas instâncias limítrofes, as definições descritivas têm a liberdade de prescrever qualquer uma das duas alternativas sem prejuízo da sua exatidão. Dessa maneira, essas definições poderão servir, com efeito, tanto para legislar uma nova utilização como para descrever um uso prévio. (Na realidade, é extremamente duvidoso que uma definição descritiva exata qualquer possa deixar de legislar em ambos os sentidos.) Daí resulta que definições alternativas que são igualmente corretas em descrever o uso prévio de um termo, possam diferir entre si ao legislar para casos que estavam até então indeterminados. Se os casos indecisos em questão envolverem práticas alternativas, o ponto em pauta bem poderá ser programático. Essa situação será ilustrada num instante. Nesse ponto, entretanto, é importante assinalar com especial destaque o fato de que definições alternativas podem muito bem ser ambas exatas, e que não devemos, portanto, supor que a cada termo corresponde uma, e somente uma definição correta. De resto, isso não acontece apenas no caso das definições gerais. Mes­ mo em ciência, a rivalidade (pelo menos em relação ao uso cientí­ fico) entre definições exatas alternativas é algo que ocorre com freqüência. Algumas vezes, a escolha, nesses casos, não produz nenhuma diferença científica, podendo, em conseqüência, ser fei­ ta arbitrariamente. Por vezes, a escolha é decidida em função da simplicidade ou da conveniência teóricas, e não em função do fa­ to de poder ser desejável assimilar os casos limítrofes a tal grupo de instâncias e não a tal outro. Em outras ocasiões, todavia, o fato de que isso seja desejável deverá entrar em consideração e, nesse caso, a pergunta relevante torna-se a seguinte: “Como esses casos limítrofes devem ser encarados para objetivos científicos? ” . Tra­ ta-se aqui, se se quiser, de uma questão de prática num sentido amplo, mas é uma pergunta que resta independente de considera­ ções de política social e de ordem moral, caindo, por conseguinte, fora do âmbito da prática tal como a compreendemos até aqui. No caso das definições gerais, porém, essa independência não pode ser dada por admitida. A decisão a respeito de casos limítrofes pode, de fato, constituir precisamente o local em que as diferenças programáticas atingem o ponto culminante. E mais: 38

à diferença do exemplo anterior, no qual uma definição descritiva exata se opunha a uma estipulação que transgredia claramente o uso prévio, a oposição programática relativa a casos limítrofes pode estar incorporada em definições rivais de exatidão inquestionável. Estamos agora em condições de passar a alguns exemplos. Os contextos legais proporcionam exemplos claros de definições que legislam sobre matérias práticas, pretendendo, ao mesmo tempo, resumir o uso (legal) prévio. Suponhamos que uma nova seita seja fundada, a qual não prescreve nenhum credo ou livro sagrado, embora recomende certos rituais e hinos e promova reuniões destinadas a perfeiçoar a conduta e as atitudes éticas dos homens. Deve-se chamar essa seita de ‘religiosa’? O uso prévio poderá ser confuso; mas o fato de a definição legal a ser adotada ter o efeito de aplicar ou não o termo a essa seita é que determinará se ela receberá ou não aqueles privilégios que a lei concede a instituições religiosas. Duas definições de ‘religião’, igualmente corretas nisto que ambas cobrem adequadamente os casos claros do uso predefinicional, podem, mesmo assim, divergir no modo como classificam a nossa seita imaginária. No que respeita à significação padronizada e prévia do termo ‘religião’, ambas as definições seriam corretas; nao poderemos, então, dizer que nenhuma delas é superior à outra apenas sobre a base de considerações de significação. E evidente que essas definições em contextos legais são de natureza tanto programática quanto descritiva, seu objetivo consistindo em orientar a conduta prática com relação a novos casos, bem como, ao mesmo tempo, em resumir o uso anterior. Para escolher uma dessas definições, seríamos obrigados a abandonar o terreno das considerações de significação e apelar para outros tipos de considerações, por exemplo, as de ordem moral e prática. Seríamos obrigados a perguntar por exemplo: “ As conseqüências sociais da classificação da nova seita como ‘re­ ligiosa’ são mais ou menos desejáveis do que aquelas que decorrem da sua classificação como ‘não-religiosa’? A questão envolvi­ da aqui não é, evidentemente, verbal, mas uma questão moral e prática, a ser decidida sobre bases morais e práticas. Constituiría um erro grave estabelecer a exatidão descritiva de alguma defini­ ção proposta e, em seguida, tentar resolver a questão moral ape­ lando exclusivamente para a definição. Problemas de definição do tipo que acabamos de considerar reaparecem periodicamente no direito e no pensamento social em geral. Sua presença, muitas vezes, se manifesta de maneira 39

fulgurante quando as transformações sociais nos defrontam com casos limítrofes dos nossos termos sociais tradicionais, casos esses que exigem urgente adjudicação. Consideremos, por exemplo, os problemas implicados em redefinir ‘propriedade’, ‘direitos eco­ nômicos’ etc., sob as condições sem precedentes criadas pela industrialização, ou pela conquista recente do espaço. Podemos dizer que os nossos termos sociais refletem o meio ambiente social familiar com relação ao qual vieram a cristalizar-se os nossos princípios de ação; as novas decisões sociais podem ser exprimidas mediante a redefinição desses termos, de forma a permitir que as nossas regras tradicionais enfrentem um ambiente modificado. Como foi mencionado anteriormente em outro contexto, não é necessário que a expressão dessas decisões se rea­ lize sempre por meio de redefinições; não obstante, a redefinição é freqüentemente empregada para esse fim e, portanto, será de tipo programático nesses casos. O ponto mais importante que emerge da reflexão sobre esses exemplos consiste nisto que recorrer à exatidão das definições, mesmo quando o recurso é plenamente justificado, nao basta, por si só, para sustentar um programa controvertido qualquer que poderá estar envolvido quando a definição se aplicar a casos limítrofes. Muitos pensadores pretenderam possuir uma visão interna especial das significações autênticas e únicas dos termos sociais, na base da qual poderíam decidir o que deveria ser feito em áreas sociais controvertidas. Conhecendo as únicas definições reais de ‘o estado’, ‘sociedade’, ‘homem’ etc., supuseram que poderíam derivar daí os imperativos sociais que deveríam governar aquelas situações recentemente surgidas que estão a exigir decisão. Se a nossa análise anterior é correta, essa pretensão é totalmente equivocada. Com efeito, em primeiro lugar, existem maneiras alternativas de definir descritivamente ‘o estado’, ‘sociedade’, ‘homem’ etc., todas elas igualmente exatas com relação ao uso ou à significação prévios desses termos, mas diferentes no modo como legislam os novos casos. Em segundo lugar, além disso, há sempre a possibilidade de alterar, com vistas a veicular um programa prático, até mesmo o uso padrão prévio. (Ilustramos essa possibilidade ao discutir a superposição, no caso do termo ‘currículo’, de uma estipulação não-inventiva e de uma definição programática.) Em terceiro lugar, finalmente, as definições dos termos sociais são incapazes, isoladamente, de produzir quaisquer consequências práticas; precisam ser suple­ mentadas contextualmeilte por princípios de ação. (No caso do ‘currículo’, lembremos, por exemplo, o princípio segundo o qual o currículo é coextensivo à responsabilidade da escola.) Somente 40

em ligação com tais princípios é que as definições sociais efetiva­ mente servem para veicular conseqüências práticas. Sempre have­ rá, portanto, a possibilidade de recusar essas conseqüências, acei­ tando a definição como exata mas negando os princípios práticos . que são pressupostos. Em suma; o salto que vai da definição à ação é largo e arriscado, mesmo nos casos em que a definição, en­ quanto elucidação da significação, for inquestionavelmente exata12. As considerações acima são altamente relevantes no que concerne à utilização de definições em discussões de educação. Por exemplo, proporcionar uma definição do termo ‘educação’ em contextos não científicos equivale, com muita frequência, a veicular um programa, bem como, no melhor dos casos, a afirmar uma equação que pode ser exata com respeito ao uso prévio. 31) Ainda quando tal definição for exata, essa exatidão não pode ser utilizada como uma medida do valor do programa educacional expressado. Programas diferentes são compatíveis com a exati­ dão, e a justificação de qualquer programa constitui, portanto, um problema independente. Sem dúvida, as definições de termos em educação não se encontram, em geral, encaixadas numa rede de regras práticas tão precisa como aquela em que estão as definições legais; mas quando em combinação com princípios de ação amplos e informais (embora socialmente fundamentais), elas servem muitas vezes, apesar disso, como veículos para debater novos programas de educação, novos pontos de vista sobre o método, sobre os objetivos ou sobre o conteúdo da educação. Já vimos um exemplo no caso do termo ‘currículo’. Pode-se dizer, então, que as definições em educação assemelham-se às definições em arte, as quais, conquanto desprovidas de qualquer significância legal, também servem, freqüentemente, para exprimir concepções variáveis da tarefa do artista13. Por exemplo, as definições apresentadas pelos inovadores em arte estendem muitas vezes o uso do termo ‘obra de arte’ a novos tipos de objetos; as 12. Karl Popper, no seu trabalho The Open Society and its Enemies. Terceira edição, London, Routledge & Kegan Paul, Ltd., 1957 (Primeira edição, 1945), criticou acerbamente o que ele chama de ‘essencialismo’, ou seja, a busca das significações essenciais dos termos básicos; o presente parágrafo no texto inspirou-se no seu tratamento. Não obstante, o nosso texto diverge da defesa que Popper faz da função exclusivamente abreviatória das definições, nisto que nós admitimos aqui definições descritivas com força explicativa. Apesar disso, o essencialismo é evitado, pois em todo o texto adota-se uma interpretação . extensional da definição descritiva, permitindo definições exatas mas diferentes de cada noção. 13. Os pontos estabelecidos nesse parágrafo, eu os devo a Ziff, P.: “The task of defining a work o f art” , The Philosophical Review, 62:58, (January) 1953.

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contradefinições dos conservadores recusarão, ao contrário, o termo a esses mesmos novos objetos. Ambos os conjuntos de definições, além disso, estão muitas vezes em consonância com a tradição artística, vale dizer, ambos estão em conformidade com o uso prévio. A disputa, nesses casos, não pode, então, ser considerada como uma questão que só concerne à significação de termos. Trata-se, ao contrário, de um problema de programas artísticos divergentes, veiculados por definições programáticas que se encontram em oposição, as quais, ao mesmo tempo, são exatas do ponto de vista descritivo. Uma tentativa de definir uma obra de arte não é, nas palavras de Collingwood, «uma tentativa de investigar e expor verdades eternas acerca da natureza de um objeto eterno chamado Arte»; constitui, ao contrário, uma tentativa de oferecer «a solução de certos problemas que nascem da situação em que os artistas mesmos se encontram, aqui e agora»14. A educação, assim como a arte, a literatura e outros aspectos da vida social, apresenta estilos e problemas cambiantes em resposta a condições cambiantes. Essas últimas exigem decisões que determinem a nossa orientação prática face a elas. Tais decisões podem ser incorporadas na revisão dos nossos princípios de ação ou nas nossas definições dos termos per­ tinentes, ou em ambas ao mesmo tempo. No processo de construção de novas definições para esses propósitos, não existe nenhuma visão interna especial de significações que nos diga como devem ser feitas as revisões e ampliações. O que importa aqui não é uma inspeção das únicas significações autênticas dos termos (se isso fosse possível), mas uma investigação, à luz dos nossos comprometimentos, das alternativas práticas que estão abertas para nós, bem como das maneiras alternativas de levar a efeito as decisões desejadas. O modo como escritos profissionais em educação negli­ genciam muitas vezes esse ponto pode ser ilustrado pela seguinte descrição de um novo programa para a educação escolar secundária: «O currículo estava organizado em torno de quatro tipos de atividades: projetos de narrações, projetos manuais, projetos de jogos e projetos de excursões; oferecia-se a oportunidade para uma avaliação contínua das atividades, sendo tal avaliação dirigida pelos alunos. A organização desse programa escolar derivou naturalmente da crença em que a 14. Collingwood, R. G.: The Principies o f A rt. Oxford at the Clarendon Press, 1938, p. vi, citado in Ziff, op. cit.

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significação fundamental do conceito de educação consiste em auxiliar jovens de ambos os sexos a participar ativamente no mundo que os cerca». A questão é posta aqui em termos de significações fundamentais. Mas o que está, de fato, em jogo? Os casos evidentes do conceito ‘educação’, tal como se achavam incorporados ao uso que pre­ cedeu o advento das inovações modernas, não incluíam os casos em que os jogos e as excursões, assim como a avaliação contínua dos alunos, caracterizavam o programa educacional. Mas alguns dos casos claros, como o do presente exemplo, envolviam institui­ ções especiais, uma direção global exercida por adultos, a avalia­ ção dos rendimentos, e assim por diante. A presente inovação educacional, na realidade, é, ao mesmo tempo, suficientemente semelhante às instâncias passadas evidentes e suficientemente distinta de tais instâncias para constituir um caso limítrofe. Propor uma reforma educacional nas linhas da passagem transcrita acima significa dizer que um procedimento desse tipo deve ser tentado sob a égide das escolas. Pode-se então dizer que essa proposta assimila o caso limítrofe aos casos passados evidentes, deixando intactos todos aqueles princípios de ação que formulam a nossa orientação positiva frente ao empreendimento 33) educacional. Ê o que a definição enunciada tenta justamente " ~ i a z e r , insistindo, realmente, nas semelhanças, isto é , no objetivo comum de ajudar os jovens de ambos os sexos a participar ativamente no mundo que os circunda. Seria fácil, no entanto, confeccionar definições alternativas que se baseassem, ao contrário, nas diferenças, segregando a nova reforma dos casos prévios e evidentes de ‘educação’. A questão, em suma, constitui uma questão de prática e, portanto, exige avaliação em função das nossas preferências e engajamentos, assim como em função dos efeitos esperados. O que se deve fazer com relação a essa reforma educacional proposta é, portanto, da nossa responsabili­ dade prática, e algo que não pode ser decidido por uma inspeção do conceito de ‘educação’. Consideremos agora um último exemplo, de um tipo um tanto mais abstrato. Em discussões educacionais, diz-se muitas vezes que uma definição de ‘homem’ fornece diretivas para a elaboração do currículo e para a avaliação de métodos de educação escolarls . E é realmente verdade que a maneira15 15. A esse respeito, ver, por exemplo, Ducasse, C. J.: “What can philosophy contribute to educational theory? ”, Harvard Educational Review, 28:285, (Fali) 1958. Ducasse pergunta quais são as várias dimensões da natureza do

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segundo a qual organizamos os nossos esforços educacionais e fazemos funcionar nossas escolas é condicionada pelas definições predominantes da natureza humana. Não se trata, como já vimos, de que consequências educacionais práticas possam ser derivadas de definições exatas tomadas isoladamente, mas, ao contrário, de que elas podem ser veiculadas por essas definições em contextos dentro dos quais os princípios de ação relevantes são dados por admitidos. A conclusão que muitas vezes se tira em teoria educacional é a de que devemos, primeiramente, decidir qual é a definição correta de ‘homem’ e que, depois disso, precisaríamos apenas inferir as consequências educacionais práticas por meio de uma aplicação da lógica pura. Essa imagem, contudo, é errônea, não somente por postular uma simples implicação dedutiva entre definições da natureza humana e consequências educacionais práticas, mas também porque deixa de levar em conta os vários pontos assinalados acima concernentes às definições que são ao mesmo tempo descritivas e programáticas. Há um número indefinido de definições alternativas de ‘homem’, um número indefinido de maneiras de dimensionar a sua estrutura e as suas capacidades, todas elas podendo ser igualmente exatas. Escolher um desses dimensionamentos na base da sua exatidão e passar a decifrar daí aquilo que deve corresponder, do ponto de vista do currículo, a cada dimensão, como muitas vezes se faz, significa passar à margem de toda a pergunta. Uma das bases sobre as quais se pode escolher uma definição para propósitos educacionais deve consistir numa consideração das conseqüências mesmas para a prática educacional, que deverão ser esperadas como o resultado da adoção dessa definição. O caráter programático de tal defini­ ção significa que ela exige uma avaliação relativa ao programa que ela veicula. Na verdade, uma avaliação como essa poderá inclusive nos levar a adotar uma estipulação não-inventiva que violenta ma­ nifestamente o uso prévio; e poderá seguramente nos levar a dife­ renciar entre definições descritivas igualmente exatas que veicu­ lam programas diferentes. É precisamente porque as definições desse último tipo são programáticas que a sua adoção deve seguir, e não preceder, uma avaliação moral e prática dos programas que elas transmitem. A inspeção das significações não pode substituirse a essa avaliação. homem, como uma preliminar para a determinação das principais dimensões da educação, que (como diz ele) “correspondem, é claro, às da natureza do homem”.

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Uma observação análoga vale para a transferência de definições da ciência para a educação, transferência essa cujos perigos já notificamos. Observamos que as definições científicas estão em continuidade com as teorias e com as evidências próprias aos seus domínios respectivos, e que o melhor, portanto, é que sejam tratadas à parte. Não poderíam ser incluídas, sem distorções sérias, nas nossas categorias estipulativa, descritiva e programática. Elas devem ser julgadas, grosso modo, pela contribuição que fazem à adequação das suas respectivas redes científicas com relação à explicação dos fatos. Segue-se daí que, adotar uma definição científica para uso programático não significa evitar a necessidade de uma avaliação do programa que esse uso veicula. A adequação científica de unia definição não é um signo do valor prático de tal programa, como não o é tampouco a exatidão com respeito ao uso prévio. Por último, devemos assinalar a verdade inversa. Assim como do fato de uma definição ser exata não se segue automaticamente que o programa que lhe está associado tenha valor, assim também, do fato de uma definição ser inexata não se segue" automaticamente que o seu programa não tenha valor. Já vimos, no caso das definições estipulativas não-inventivas que são ao mesmo tempo programáticas, que é possível que um programa valioso seja veiculado por uma fórmula descritivamente inexata. Apesar disso, alguns autores ocasionalmente argumentam — invalidamente — que as suas definições, visto que os seus programas são dotados de valor, são exatas, provocando assim a réplica, igualmente inválida, de que esses programas não podem ter valor porque as suas definições são inexatas. A questão assim estabelecida, mais do que a exacerbaçao de partidarismos, exige que nela penetremos. Em suma, deve-se reconhecer que a mesma fórmula definicional pode, em dada ocasião, ser ao mesmo tempo descritiva e programática, e que ela exige, portanto, uma dupla avaliação.

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CAPÍTULO II OS SLOGANS EDUCACIONAIS

Os slogans educacionais se distinguem claramente das definições sob muitos aspectos. São inteiramente assistemáticos, de tom menos solene, mais populares, a serem repetidos com veemência ou de maneira tranqüilizadora, e não a serem gravemente meditados. Não constituem figura importante na exposição das teorias educacionais. Não possuem nenhuma forma padronizada e tampouco têm qualquer pretensão de facilitar o discurso ou de explicar as significações dos termos. Falamos das definições como esclarecedoras, mas não dos slogans', os slogans podem ser estimulantes, mas não as definições. Em educação, os slogans proporcionam símbolos que unificam as idéias e atitudes chaves dos movimentos educa­ cionais. Exprimem e promovem, ao mesmo tempo, a comu­ nidade de espírito, atraindo novos aderentes e fornecendo confiança e firmeza aos veteranos. Assemelham-se, assim, aos slogans religiosos e políticos e, como esses, são produtos de um espírito partidário. Posto que os slogans não têm nenhuma pretensão de facilitar a comunicação ou de refletir significações, alguns dos principais pontos do capítulo anterior tornam-se irrelevantes aqui. Ninguém defenderá o seu slogan favorito como uma estipulação útil ou como um reflexo exato das significações dos seus termos constituintes, E ocioso, portanto, criticar um slogan por inadequação formal ou por inexatidão na transcrição do uso. Entre eles e as definições, no entanto, existe uma impor­ tante analogia que deve ser examinada. Dissemos que os slogans fornecem símbolos que unificam as idéias e atitudes chaves de certos movimentos, idéias e atitudes essas que poderíam encontrar alhures uma expressão mais plena e mais literal. Com o correr do tempo, entretanto, muitas vezes os

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slogans passam progressivamente a ser interpretados de maneira mais literal, tanto pelos aderentes como pelos críticos dos movimentos que eles representam. Passa-se a considerá-los, cada vez mais, como argumentos ou doutrinas literais, e não mais simplesmente como símbolos unificantes. Quando isso acontece num caso determinado, torna-se importante avaliar o slogan ao mesmo tempo enquanto uma asserção direta e enquanto um símbolo de um movimento social prático, sem, contudo, confundir uma coisa com a outra. A analogia mencionada entre slogans e definições reside justamente na necessidade dessa avaliação dúplice. Em educação, essa avaliação dupla talvez seja ainda mais importante do que iro caso de slogans políticos e religiosos, pois os educadores, pelo menos nos países ocidentais, não estão submetidos à disciplina de uma doutrina oficial nem estão organizados em grupos confessionais, como os grupos religiosos e políticos16. As idéias educacionais, formuladas primeiramente em textos cuidadosamente elaborados e muitas vezes difíceis, cedo tornam-se influentes em versões popularizadas entre os professores. Não há nenhuma disciplina ou liderança oficiais que preservem as doutrinas iniciais ou alguma elaboração dessas, cuidando de que tenham precedência em conjunturas críticas, sobre as versões populares, ao contrário do que acontece habitualmente em religião e em política. Os slogans educacionais se desenvolvem, com freqüência, em doutrinas operacionais autônomas, que convidam e merecem ser criticadas enquanto tais. É importante lembrar, nesse ponto, que, embora tal crítica seja inteiramente justificada, é necessário que seja complementada por uma crítica autônoma dos movimentos práticos que deram origem aos slogans em questão, bem como por uma crítica das doutrinas de que eles nasceram. Podemos resumir dizendo que o que é necessário é uma crítica do teor tanto literal quanto prático dos slogans; as doutrinas originárias, outrossim, deverão ser independentemente avaliadas. O exemplo da influência educacional de John Dewey é instrutivo. As suas afirmações sistemáticas, cuidadosamente formuladas e bem especificadas, foram rapidamente traduzidas em fragmentos de impacto que serviríam como slogans para as novas tendências progressistas da educação americana. O próprio 16.

Deveria ser óbvio que não estou sustentando que uma tal organização disciplinada seja desejável, mas apenas sugerindo que a sua inexistência torna mais urgente a crítica dúplice dos slogans.

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Dewey criticou as utilizações que foram conferidas a algumas das suas idéias17, e as suas críticas tiveram o efeito de suscitar a reconsideração e a reflexão. Dewey, afinal de contas, era o reconhecido líder intelectual do movimento. E, no entanto, os slogans progressistas foram, cada vez mais, assumindo uma vida própria. Foram defendidos como afirmações literais e atacados como tais. Os críticos, em particular, começaram, muitas vezes, por atribuir os defeitos literais dos slogans progressistas às doutrinas originárias de Dewey, passando, a seguir, a sugerir que o movimento progressista tinha se revelado, por isso, desprovido de valor nos seus objetivos e no seu funcionamento. O fato de que a pretensão literal e a pretensão prática dos slogans devem ser criticadas independentemente pode ser ilustrado pela consideração do slogan «Ensinamos crianças, não matérias»*. Tendo em vista o fato de que essa e outras fórmulas estreitamente análogas foram tratadas, por vezes, como afirmações literais, e não meramente como símbolos unificadores do movimento progressista, deter-nos-emos a examinar a afirmação sob uma perspectiva literal. Terá, assim, algum sentido? Suponhamos que eu diga a você que estive ensinando ao meu filho durante toda a tarde de ontem. Você teria todo o direito de perguntar: «O que é que estava ensinando a ele? ». E você não esperaria necessariamente um único tipo de resposta, tal como o título de alguma matéria acadêmica. Se, em lugar de dizer: «Matemática», eu respondesse: «Como jogar de centroavan-

17. Dewey, J.: Experience and Education. New York, The Macmillan Company, 1938. O slogan original é: “We teach children, not subjects” . Sob essa forma, apresenta uma dupla dificuldade para o tradutor, e não parece possível que a versão brasileira proposta preserve adequadamente todas as dimensões e forças semânticas da sentença inglesa correspondente. De um lado, o verbo 'to teach’ seria melhor traduzido, nesse contexto proposicional, por ‘educar’, o que prejudicaria, contudo, a tradução correta do segundo membro da sentença. Por outro lado, a expressão ‘subjects’ tanto pode significar ‘matérias’, no sentido de ‘disciplinas escolares’, como ‘súditos’ ou ‘vassalos’, o que sugeriría, no caso do slogan, a situação de alunos submetidos passiva­ mente ao ensino e à autoridade do professor, que imporia um aprendizado mecânico, rígido e formalista. O contexto educacional em que surgiu o slogan em questão indica que essa última associação semântica não esteve ausente da sua força operativa e do seu significado. É o que parece sugerir claramente o texto que Scheffler transcreve na p. 40, assim como as observações ali apresentadas (Nota do tradutor).

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te»*, ou: «A ser bem educado», ou: «A importância de ser sério», você ficaria satisfeito com a resposta. Mas suponhamos que eu dissesse, em resposta à sua pergunta, «Oh, nada em especial; esti­ ve simplesmente lhe ensinando, nada mais», imagino que você teria dificuldade em compreender como passamos aquela tarde. Seria como se você tivesse me perguntado: «O que é que você teve por jantar? », e recebesse a resposta: «Oh, nada; eu simplesmente jantei, mas não tive nada por jantar». Nesse último caso, podería,, sem dúvida, ser uma resposta razoável se eu dissesse: «Não consigo lembrar», ou: «Não sei o nome do prato», ou ainda: «Não creio que seja capaz de descrevê-lo para você». Em cada um desses casos, porém, estou reconhecendo que é possível responder adequadamente à sua pergunta nomeando ou descrevendo uma comida qualquer, embora, por uma razão ou outra, eu não a forneça. No entanto, dizer: «Não tive nada por jantar, simplesmente jantei», significa negar que a sua pergunta possua, nesse caso, uma autêntica resposta, e é essa negação, precisamente, que torna impossível compreender a asserção. De maneira análoga - para voltar ao exemplo do ensino —, eu poderia, é claro, dizer: «Não consigo lembrar o nome do livro», ou: «Não sei qual é o nome daquele estilo de natação», ou até: «Não creio que possa descrevê-lo para você agora» (suponhamos que se trate de uma complicada estratégia enxadrística). Todavia, se não respondí nenhuma dessas coisas, insistindo, ao contrário, em que não estive ensinando nada ao menino, você não conseguiría me compreender ou, pelo menos, não poderia acreditar que eu estivesse proferindo algo literalmente verdadeiro. Esse caso deve ser distinguido de um outro, no qual você me pergunta: «O que você ensinou a ele? », isto é, «O que é que você conseguiu ensinar a ele? ». Ê perfeitamente possível que, em resposta a essa pergunta, eu diga: «Nada». E perfeitamente possível que eu tenha estado a ensinar álgebra a alguém a quem não consegui ensinar álgebra. Não lhe ensinei nada, embora tenha estado a ensinar-lhe álgebra; estive tentando leva'-lo a aprender álgebra, mas ele não conseguiu aprender. Perguntar, no entanto, nos termos da nossa pergunta inicial: «O que é que você estava ensinando a ele? », não significa A resposta no original é a seguinte: “ How to play first base”. A expressão ‘first base’ designa uma posição determinada no jogo de baseball. A tradução literal, portanto, seria esta: “Como jogar na primeira base”. Julgamos mais conveniente, entretanto, utilizar um exemplo familiar para o leitor brasileiro (Nota do tradutor).

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prigiiului «O que e que você conseguiu ensinar a ele?». Sljnillleu, ao contrário, perguntar: «O que é que você estava tentando levá-lo a aprender? ». Se, com relação a essa última pergunta, eu respondesse: «Nada; estava apenas lhe ensinando; mas não estava tentando fazê-lo aprender absolutamente nada em particular», creio que você ficaria realmente confuso nesse caso. Seria tão extravagante como se eu tivesse dito: «Passei a tarde de ontem ensinando a nadar» e, em resposta à sua pergunta: «A quem? », eu respondesse: «Oh, a ninguém; estive apenas ensinando a nadar, mais nada». Se é verdade, de um lado, que ninguém pode ensinar alguma coisa sem ensiná-la a alguém, é igualmente verdade, de outro lado, que ninguém pode estar ocupado a ensinar a alguém sem estar ocupado a ensinar-lhe alguma coisa. Retornemos agora à afirmação: «Ensinamos crianças, não matérias». Se tomarmos ‘matérias’, nesse caso, como uma expressão geral, sem restringi-la a disciplinas acadêmicas, fica visível que a afirmação em questão não pode ser interpretada ao mesmo tempo como literal e verdadeira, visto que ela parece dizer, de maneira bastante literal: «Ensinamos às crianças, mas não há nada em especial que tentamos fazê-las aprender». Já vimos anteriormente, é verdade, que a negação de que alguma coisa foi ensinada é legftima quando a pergunta concerne ao êxito do ensino, e não ao que ele intenta. Esse fato, todavia, certamente não nos ajuda em nada a interpretar o slogan que temos diante de nós, pois, numa interpretação desse gênero, a afirmação resultante seria: «Ensinamos às crianças, mas não conseguimos ensinar-lhes nada». Essa última afirmação (que é, de qualquer modo, bastante improvável) dificilmente seria reivin­ dicada como verdadeira pelos proponentes de qualquer movi­ mento educacional. Tomado literalmente, o slogan constitui um malogro manifesto, não podendo ser utilizado como uma premissa séria em nenhum argumento. Alcançar essa conclusão, entretanto, não é avaliar o alcance prático do slogan, os objetivos que ele simbolizava, ou as tendências educacionais com as quais estava associado. Qual era, de fato, o seu propósito prático? O seu objetivo, numa palavra, consistia em dirigir a atenção para a criança, em abrandar a rigidez e o formalismo educacionais, em libertar os processos de educação escolar de uma preocupação indevida com padrões e perspectivas de adulto e das formas mecânicas de ensino, em encorajar uma imaginação mais ampla e em estimular simpatia e compreensão, por parte do professor, em relação ao mundo da

criança. Conhecer o contexto educacional em que tomou forma essa mensagem prática significa compreender a relevância da sua ênfase. Inversamente, a relevância da mensagem não poderá ser percebida sem uma referência ao contexto em que surgiu. A estória é muito longa para que possamos transcrevê-la aqui, mas uma citação extraída de um estudo recente servirá para indicar os seus traços mais salientes. Citando o relatório de Joseph Rice sobre as escolas públicas americanas em 1892, baseado num percurso de 36 cidades, nas quais Rice entrevistou 1.20U professores, L. A. Cremin escreve18: «A estória de Rice trazia todas as marcas distintivas daquele tipo de jornalismo destinado a transformar ‘sensacionalista’ numa palavra doméstica nos Estados Unidos. De cidade em cidade, a apatia do público, a interferência política, a corrupção e a incompetência conspiravam para. arruinar as escolas. . . Um diretor de New York, interrogado sobre se era permitido aos estudantes moverem a cabeça, respondeu: ‘Por que razfio deveríam olhar para trás quando o professor está na frente deles? ’. Uma professora de Chicago, fazendo com que os seus alunos recitassem num ‘exercício de conjunto’, arengava-os com a seguinte ordem: ‘Nao parem para pensar, digam-me apenas o que sabem!’. Em Philadelphia, os ‘mandachuvas locais’ controlavam a nomeação de professores e de diretores; em Buffalo, o inspetor escolar da cidade era o único funcionário para supervisionar setecentos professores. Com freqüência alarmante, a estória era sempre a mesma: mercenários políticos contratando professores não qualificados, os quais, a seu turno, conduziam cegamente os seus inocentes pupilos a exercícios monótonos, à repetição de cor e a uma verbiagem sem sentido». Dada uma situação como essa, torna-se mais do que evidente a relevância de uma insistente ênfase educacional sobre o mundo da criança. E fácil perceber, além disso, que uma avaliação positiva desse tipo de ênfase, que representa o objetivo prático do nosso slogan19, é totalmente independente das críticas que 18. Cremin, L. A.: “The Progressive movement in American education: a perspective”, HarvardEducationalReview, 27:251, (Fali) 1957. 19. Pela relevância do objetivo prático de um slogan, entendo aqui a sua aplicabilidade, dentro do contexto da sua utilização, numa ocasião particular. Ao falar da avaliação ou da justificativa desse objetivo prático, refiro-me à questão de saber se tal aplicação deve ou não ser realmente

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endereçamos ao seu sentido literal. Ou seja: não se comete nenhum erro lógico ao aceitar essas críticas e, ao mesmo tempo, aplaudir aquilo que o slogan enfatiza. Saber se devemos ou não aplaudir essa ênfase constitui uma questão à parte, que requer a consideração de problemas práticos e morais relativos a algum contexto dado. Por último, fica claro também que a relevância prática de um slogan, bem como a aprovação que a ele se concede, podem variar, segundo o contexto, de maneira inteiramente independente do seu objetivo literal. No caso do slogan que temos diante de nós, muitos, na verdade, acham que a sua mensagem prática é bem menos urgente hoje em dia do que poderá ter sido outrora, e que ela é, na situação educacional atual, ou irrelevante, ou então consideravelmente menos justificada. Essa variação nos destinos do alcance prático de um slogan constitui uma função dos tempos que mudam e dos problemas que mudam; ela não pode resultar do malogro do slogan enquanto doutrina literal, pois essa é invariável. Um corolário importante consiste nisto que doutrinas que são mutuamente contraditórias enquanto afirmações literais podem, todavia, em seus objetivos práticos, representar ênfases abstratamente compatíveis, essas podendo, é claro, sofrer, de contexto a contexto, variações independentes, seja quanto à relevância, seja quanto à justificativa moral. Isto é: pode não haver nenhuma causa que nos obrigue a supor que estamos em presença de um conflito irreconciliável de propostas práticas, uma das quais, pelo menos, deveremos rejeitar peremptoriamente. Esse ponto pode ser ilustrado considerando-se uma afirmação que adquiriu o estatuto típico de um slogan em educação, a saber, a afirmação de que não pode haver ensino sem aprendizado. Assim como não pode haver venda sem compra, da mesma maneira não poderia haver ensino sem aprendizado. Um autor recente20 argumentou contra essa afirmação, pedindo-nos efetuada. Para ilustrar a distinção, comparemos o caso dos imperativos, Consideremos o imperativo: ‘Acenda a luz!’, proferido em determinada ocasião. O imperativo será relevante nessa ocasião somente se a luz ainda nlo estiver acesa. Mesmo se for relevante, entretanto, ainda podemos perguntai se a luz deve ou não ser acesa. 20. Broudy, H. S.: Building a Philosophy o f Education. Englewood Clifís, N. J„ Prentice-Hall, Inc., 1954, p. 14. Broudy escreve: “Muitos educadores, um tanto inconsideradamente, repetem a máxima: ‘Se não há aprendizado, nlo há ensino’. Isso constitui apenas uma maneira de falar, pois nenlmm educador acredita realmente que ela seja verdadeira ou, se o fizesse, devei!» recusar-se, com toda a honestidade, a aceitar a maior parte do seu saláiio Existe uma diferença entre ensino bem sucedido e ensino mal sucedido, do mesmo modo como há uma diferença entre cirurgia bem sucedida e cirurgia

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para considerar como um contra-exemplo dela o caso de um professor que tentou, da melhor maneira ao seu alcance, ensinar uma determinada lição aos seus alunos, não conseguindo, contudo, fazer com que a aprendessem. Deveriamos dizer que esse homem não esteve, na realidade, ensinando, que não mereceu o seu salário e que não cumpriu com a sua responsabilidade? E. claro que esse caso mostra que pode haver ensino sem aprendizado. Se tomamos as duas afirmações: «Não pode haver ensino sem aprendizado» e: «Pode haver ensino sem aprendizado», simplesmente como doutrinas literais, devemos admitir que elas são contraditórias. Além disso, devemos concordar que o contra-exemplo apresentado em oposição à primeira dessas afirmações logra mostrar efetivamente que ela é falsa. Se temos diante de nós um caso real de ensino sem aprendizado, devemos então rejeitar a doutrina que nega a existência de tais casos. Ora, o contra-exemplo efetivamente representa um caso real de ensino sem aprendizado. Em suma: aqui parece realmente haver uma nítida contradição entre duas afirmações, uma das quais é, portanto, falsa. Além disso, é fácil perceber, por que razão a afirmação: «Não pode haver ensino sem aprendizado» soa tão plausível como doutrina literal, embora seja, de fato, falsa. Com efeito, se bem que em algumas das suas utilizações o verbo ‘ensinar’ não implique êxito, em outras ele o faz. Já assinalamos a diferença que existe entre perguntar, de um lado: «O que é que você estava ensinando a ele? » («O que é que você estava tentando levá-lo a aprender? ») e, de outro lado: «O que você ensinou a ele? » («O que é que você conseguiu ensinar a ele? »). Podemos dizer que a primeira pergunta contém uma utilização «intencional» do verbo, ao passo que a segunda contém uma utilização de «êxito»21 . E claro que, se o aluno a quem estive ensinando não aprendeu, de fato, coisa nenhuma, poderei responder à segunda pergunta (mas nflo il primeira) dizendo: «Nada». Ou seja, no caso da segunda ppigunla, não posso dizer — a menos que o meu aluno tenha mal sucedida. . . Ensinar significa tentar deliberadamente promover certas •ptrndlzugcns. Quando outros fatores interferem para frustrar tais aprendi­ zagem, o ensino malogra. As vezes, os fatores desse tipo se encontram nu ptofessor; às vezes, no aluno; e por vezes, na própria atmosfera que ambos reipltam; mas na medida em que houve o esforço, houve ensino” .

j I > I?ssm idéias devem muito ao tratamento das palavras de realização que se em unlia em Ityle, G.: The Concept o f Mind. London, Hutchinson’s Utlivpuity l lbrury, 1949. Ver também Anscombe, G. E. M.: Intention. ÜSlutd, llasil Hlaekwell, 1957.

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aprendido alguma coisa — que lhe ensinei algo, isto é: realmente não pode haver (aqui e em todos os casos de utilização de «êxito») ensino sem aprendizado. Algumas ilustrações adicionais poderão ser de utilidade, especialmente tendo em vista que a distinção entre usos de «êxito» e «intencional» é de grande importância, e ressurgirá com freqüência em discussões ulteriores. De toda evidência, se estive ensinando a meu sobrinho como apanhar uma bola de futebol, ele pode, ainda assim, não ter aprendido — e pode até jamais aprender — como apanhá-la. Eu estava tentando, é claro, fazê-lo aprender como apanhar uma bola de futebol, mas não é necessário que tenha conseguido o meu intento. De maneira geral, portanto, podemos afirmar que o esquema «X estava ensinando a Y como. . .»* não implica êxito. Suponhamos, no entanto, que ensinei a meu sobrinho como apanhar uma bola de futebol. Se realmente lhe ensinei, então ele deve tê-lo, de fato, aprendido. E se eu dissesse: «Hoje ensinei-lhe como apanhar uma bola de futebol, mas ele não aprendeu e jamais aprenderá», normalmente pensariam que estou dizendo alguma coisa intrigante. Podemos dizer então que o esquema: «X ensinou a Y como. . .» implica êxito. Esse esquema representa um uso de «êxito» do verbo.‘ensinar’, ao contrário do esquema anterior que, esse, representa um uso «intencional» do verbo. Deve-se notar, incidentalmente, que nem todos os usos do pretérito perfeito simples do verbo implicam êxito, embora o esquema de «êxito» acima contenha essa flexão verbal. E verdade, por exemplo, que alguns professores ensinaram matemática, durante o ano passado, a alguns estudantes que não aprenderam nada de matemática. Deve-se assinalar, além disso, que os usos de «êxito» do verbo ‘ensinar’ não eliminam distinções entre graus relativos de aproveitamento. Ter sido bem sucedido no ensino implica apenas que os estudantes aprenderam de maneira relevante o que lhes foi ensinado, e não que se tenham tornado mestres na matéria. Num acidente de trânsito, No original o esquema é o seguinte: "X has been teaching Khow t o . . . ”. A preposição ‘to’ (para a qual não encontramos um equivalente português adequado para esse contexto) indica aqui que a sentença ou cláusula que completará o esquema deverá ser uma cláusula verbal infinitiva. Isso significa que a formulação inglesa excluirá formações do tipo: “A!j estava ensinando a Y como os protozoários se reproduzem” ou “X estava ensinando a Y como Cézanne concebia a pintura”. Ao contrário, a forma deixa bem claro que as cláusulas completivas serão do tipo: “X estava ensinando a Y como nadar” ou “X estava ensinando a Y como resolver uma equação de segundo grau”, e assim por diante (Nota do tradutor).

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podemos perguntar retoricamente: «Quem foi que ensinou ele a dirigir? », sugerindo que a pessoa em questão, embora tenha aprendido a dirigir, não o faz muito bem. Os usos de «êxito» do verbo ‘ensinar’ normalmente implicam apenas um rendimento mínimo, o suficiente para que possamos dizer justificadamente que houve realmente um ensino. Para terminar, deveriamos notar o fato de que ‘ensinar’ não constitui um caso excepcional por ter ao mesmo tempo utilizações de «êxito» e «intencional». Ao contrário, muitos verbos referentes à ação possuem ambos os usos, visto que aquilo que fazemos é descrito muitas vezes em termos da tentativa de atingir uma meta, cuja consecução define o êxito da tentativa. Dizer que um homem está construindo uma casa não significa que alcançou êxito ou que algum dia alcançará. Está, é claro, fazendo algo com uma intenção determinada e com certas esperanças e crenças; está tentando, em suma, fazer com que exista — ou tornar verdadeiro que exista — uma casa que ele próprio construiu. Além disso, pode-se normalmente pensar que aquilo que ele está fazendo na sua tentativa, é razoavelmente considerado eficaz. Mas do fato de que alguém está construindo uma casa não se pode inferir que há (ou que haverá) uma casa construída por ele. Poderá ter estado construindo (uso «intencional») a casa até que sobreveio uma inundação que varreu a sua obra, depois do que ele jamais completou o seu trabalho. Dessa maneira, ele poderá nunca ter construído (uso de «êxito») a casa que estivera construindo (uso «intencional»). Ou, melhor ainda, pode ser que jamais exista casa alguma cons­ truída (uso de «êxito») por ele, embora tenha efetivamente estado construindo (uso «intencional») uma casa. Nessas circunstâncias, se reconhecemos, com relação ao verbo ‘ensinar’, que ele possui tanto um uso «intencional» como um uso de «êxito», podemos ver que, com respeito a esse último uso, não pode, na realidade, haver ensino sem aprendizado. E, se os nossos exemplos forem todos tirados desses usos, a doutrina segundo a qual não pode haver ensino sem aprendizado parecerá inteiramente plausível. No entanto, a maneira generalizada em que está expressa deixa a doutrina exposta à falsificação por meio de um só contra-exemplo, tal como aquele que foi discutido acima. Voltamos assim, depois de uma longa digressão, à conclusão que havíamos alcançado anteriormente: tomadas como doutrinas literais, as afirmações «Não pode haver ensino sem aprendizado» e «Pode haver ensino sem aprendizado» são contraditórias e, portanto, irreconciliáveis, sendo a primeira delas, além disso, a que deverá ser rejéitada. 55

Por outro lado, contudo, se examinamos a intenção prática dessas duas afirmações, torna-se claro que, ainda que as suas ênfases práticas respectivas não sejam igualmente pertinentes nem se justifiquem de igual modo em todos os contextos, elas não se opõem, tampouco, como alternativas exclusivas. Ao contrário, estão relacionadas com objetivos práticos diferentes que são perfeitamente compatíveis. A intenção prática da afirmação: «Não pode haver ensino sem aprendizado» está estreitamente ligada à do slogan: «Ensinamos crianças, não matérias», isto é, consiste em voltar a atenção do professor para a criança. Mas temos, nesse caso, uma ênfase inconfundível que incide no "aprendizado da criança como o resultado pretendido pelo ensino, o objetivo consistindo aqui em melhorar a eficácia do ensino por meio de uma referência à comparação entre os seus resultados reais e os seus resultados pretendidos. Essa ênfase, hoje em dia, dificilmente impressionará alguém como muito original ou como muito sujeita a controvérsias. Ao contrário, ela parece ser dada por admitida em contextos bem prosaicos. Imaginemos alguém dizendo a um fabricante de sabão: «Olhe aqui, você faria realmente um melhor negócio se estudasse sistematicamente o seu produto e tentasse melhorá-lo. Você não pode realmente se considerar um fabricante de sabão a menos que produza um bom sabão, e isso você não poderá fazer sem cuidar do que está produzindo e sem assegurar-se de que equivale a outros produtos similares». Um pequeno discurso desse gênero pareceria um tanto deslocado no nosso mundo orientado para o consumidor. Os fabricantes de sabão, de qualquer maneira, estão continuamente cuidando dos seus produtos (embora nem sempre, talvez, para produzir um sabão melhor, mas pelo menos para torná-lo mais atraente para os compradores). E nenhum fabricante de sabão supõe que os seus processos de fabricação, exceto pela sua contribuição ao produto final, sejam dotados de qualquer valor intrínseco. Os professores, no entanto, muitas vezes supuseram algo perigosamente parecido com isso. Supuseram muitas vezes que, além dos efeitos que possa produzir sobre os estudantes, o seu ensino possui, exatamente da maneira como eles o exercem habitualmente, um valor intrínseco e, por conseguinte, que ele se autojustifica. Em lugar de realizar, mediante um esforço deliberado os melhoramentos que poderiam ser alcançados, tendem então a negar que quaisquer melhorias, enquanto eles continuarem a ensinar como antes, sejam necessárias ou possíveis. Quando uma inércia educacional desse tipo se torna largamente 56

difundida, como parecia estar, segundo muitos observadores, na época em que o nosso slogan começou a circular, a intenção prática do slogan pode parecer urgente e até revolucionária. Por outro lado, falar do ensino como se fosse vender e do apren­ dizado como se fosse comprar, sugerir que o ensino seja comparado aos métodos de negócios, os quais são suscetíveis de melhora por referência aos efeitos que produzem sobre o consumidor, equivalia a assinalar com impacto o intento de apoiar a reforma do ensino. Em parte porque essa reforma passou a ser largamente difundida, a intenção prática do nosso slogan parece, aos olhos de muitos observadores atuais, ser irrelevante ou pouco justificada. A tais observadores pareceu, inclusive, que o pêndulo, em muitos casos, oscilou longe demais no sentido da orientação para o mundo da criança e de uma preocupação exagerada com os efeitos do ensino sobre esse mundo. As escolas foram apresentadas, sob vários aspectos, como excessivamente preocupadas com os seus consumidores. Os professores, ao sentir que o peso dos conflitos de adaptação e de personalidade de cada estudante repousava sobre os seus ombros fatigados, tentaram, em muitos casos, fazer demais — tornar-se também pais, confidentes e companheiros, além de apenas professores. Passaram então a sentir-se atormentados e até culpados (o que é compreensível, dado que essas aspirações encontravam-se unidas à ênfase sobre as consequências do ensino) por não serem capazes de cumprir com todas as exigências do seu cargo, aceitando, ao mesmo tempo, que recaísse sobre eles próprios a responsabilidade por todos os fracassos no aprendizado22 . Se alguém se dispusesse a levantar o ânimo de tais professores, dificilmente continuaria repetindo, para esse fim, a velha mensagem sob as condições que mudaram. Ao contrário, desejaria, antes, dizer-lhes: «Parem de se sentir culpados, desistam das suas tentativas de onipotência, parem de prestar tanta atenção aos problemas e motivações internos dos seus estudantes. Façam o máximo que puderem ao ensinar a sua matéria e ao examinar os seus alunos. E, quando tiverem feito isso, descansem em paz com a consciência tranqüila». E é isso que constitui, precisamente, a intenção prática da afirmação: «Pode haver ensino sem aprendizado». E a acentuação disso que, a juízo de 22. Ver Freud, A.: “ The role of the teacher” , Harvard Educational Review, 22:229, (Fali) 1952, e Riesman, D.: “Teachers amid changing expectations”, Harvard Educational Review, 24:106, (Spring) 1954.

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muitos autores contemporâneos, parece ser o mais pertinente e o mais justificado na situação presente. Ambas as ênfases, entretanto —a dessa última afirmação e a daquela que se lhe opõe —, são abstratamente compatíveis, a despeito do fato de que poderão ser, em contextos educacionais específicos, desigualmente relevantes ou justificadas. E possível, por conseguinte, sustentar (e até exigir) que o ensino deve ser apreciado e modificado à luz dos efeitos que produz sobre os alunos e, ao mesmo tempo, acreditar (e sublinhar) que há limites àquilo que um professor pode fazer, mesmo quando animado pela maior boa vontade do mundo: por mais que fizer, e faça ele o que fizer, será sempre possível que não consiga realizar junto aos seus alunos o ensino desejado. Em certas situações, todavia, pode-se considerar que é mais importante manter o moral do professor, acentuando os limites da sua responsabilidade, do que tentar melhorar o ensino, acentuando a necessidade de se examinar as suas repercussões. Assim, será realmente em função do contexto que deveremos dizer: «Tente melhorar!», ou então: «Não se preocupe, você fez o melhor que pode!». Mas essas ênfases não são, em geral, irreconciliáveis, e tampouco exigem uma rejeição peremptória de uma ou de outra. Na realidade, ambas podem se dar simultaneamente e podem alternar em urgência. Para resumir: quando os slogans são tomados de maneira literal, merecem crítica igualmente literal. E necessário, contudo, que avaliemos independentemente a intenção prática de cada um, e que o façamos por referência aos seus contextos mutáveis, bem como em relação às doutrinas originárias das quais eles surgiram. Além disso, devemos evitar supor que, quando dois slogans estão em contradição literal mútua, eles representam propostas práticas que se encontram em conflito irreconciliável.

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CAPÍTULO III AS METÁFORAS EDUCACIONAIS Se compararmos as metáforas às definições e aos slogans, alguns contrastes se fazem imediatamente visíveis. As metáforas, normalmente, não têm a intenção de exprimir as significações de termos utilizados, quer segundo a maneira padrão, quer segundo modos estipulados. Ao contrário, elas indicam aquilo que se pensa serem paralelos significativos, analogias e similari­ dades existentes no interior do tema do próprio discurso. As afirmações metafóricas exprimem muitas vezes verdades significantes e surpreendentes, à diferença das estipulações, que não exprimem absolutamente nenhuma verdade, e em contraste com as definições descritivas, que normalmente não surpreendem. Embora frequentemente veiculem programas, como as definições programáticas, as metáforas sempre o fazem sugerindo alguma analogia objetiva, que tem como propósito enunciar verdades descobertas nos fenômenos com que nos defrontamos. Asseme­ lhando-se aos slogans por serem assistemâticas e destituídas de uma forma padronizada de expressão, elas desempenham, entre­ tanto, um papel teórico muito mais importante. Em geral, não podem ser consideradas como simples fragmentos que cristalizam as atitudes chaves de algum movimento social ou que simbolizam as doutrinas explícitas que lhes deram origem. Ao contrário, elas figuram, como componentes fundamentais, nas próprias afirmações teóricas sérias. A linha divisória entre a teoria séria e a metáfora, mesmo em ciência, é bastante tênue — se é que pode sequer ser traçada. Dizer: «Esta mesa é composta de elétrons» equivale claramente a provocar (pelo menos) uma comparação entre a mesa e agregados de minúsculas partículas cujo comportamento será elaborado em detalhe em outras afirmações. Sem dúvida, a metáfora inicial deverá conduzir a refinamentos na comparação, tal como essa foi exprimida literalmente, e à confirmação experimental das predições ou de outras inferências que foram derivadas desses 59

refinamentos. Mas isso vale também para as teorias em geral, e não existe nenhum ponto evidente no qual sejamos obrigados a dizer: «Aqui terminam as metáforas e começam as teorias». Em educação, do mesmo modo, encontram-se freqüentemente afirmações metafóricas em contextos teóricos chaves, tanto quanto em contextos de política educacional. O que transmitem elas, e como o fazem? Passaremos, no que se segue, de algumas observações de ordem geral a uma consideração de algumas metáforas educacionais selecionadas. r Em geral, podemos considerar que a afirmação metafórica indica a existência de uma importante analogia entre duas coisas, sem dizer explicitamente em que consiste a analogia. Ora, duas coisas, sejam elas quais forem, sempre são análogas sob algum aspecto, mas nem todo aspecto desse tipo é importante, Ademais, a noção de importância varia com a situação: o que é importante em ciência poderá não sê-lo em política ou em arte, por exemplo. Para que uma afirmação metafórica determi­ nada seja julgada valiosa ou apropriada, a analogia sugerida deverá ser importante com relação a critérios que sejam relevantes no contexto da sua elocução. Além disso, a afirmação metafórica não enuncia diretamente a analogia, mesmo quando existe uma que é pertinentemente importante. Ela tem, ao contrário, a natureza de um convite a procurar uma analogia, e será èm parte julgada segundo o êxito com que essa busca é recompensada. Também nesse caso o esquema é semelhante ao de uma teoria ou — se se preferir —ao de um pressentimento teórico. Não é de surpreender, portanto, que muitas vezes se tenha dito que as metáforas organizam a reflexão e a explicação em contextos científicos e filosóficos. Em contextos práticos igualmente, as metáforas muitas vezes ser­ vem — analogamente às definições programáticas — como meios de canalizar a ação, embora sempre o façam pretendendo indicar que alguma analogia importante poderá ser encontrada no interior do tema de estudo relevante. Além da avaliação independente dos programas que podem ser veiculados por asserções metafóricas particulares, as metáforas podem ser criticadas, grosso modo, de duas maneiras. Em pYimeiro lugar, podemos chegar à conclusão de que uma dada metáfora é trivial ou estéril, indicando analogiaà que, naquele contexto, são desprovidas de importância. Em segundo lugar, podemos determinar as limitações de uma dada metáfora, os pontos nos quais as analogias que ela indica entram em colapso. Toda metáfora sofre dessa limitação, fornecendo apenas uma 60

certa perspectiva sobre o seu objeto, perspectiva essa que pode ser complementada por outras. Tal limitação não é razão para rejeitar completamente uma metáfora, tampouco como o fato de que sempre existem teorias alternativas não constitui, por si só, uma razão para rejeitar toda e qualquer teoria determinada em ciência. Não obstante, uma comparação de metáforas alternativas poderá ser tão esclarecedora como uma comparação de teorias 49) alternativas, por indicar o caráter plurifacetado do objeto. Tal ^ comparação poderá também propiciar uma compreensão nova da unicidade do objeto, pois saber de que maneiras algo é semelhante a muitas coisas diferentes significa saber muito a respeito daquilo que o faz distinto, diferente de cada uma delas. Finalmente, nos casos em que uma metáfora particular é dominante, a comparação nos ajudará a determinar as suas limitações e a abrir novas possibilidades para o pensamento e para a ação. No restante do capítulo, estaremos interessados em efetuar uma comparação desse tipo entre algumas maneiras metafóricas de falar a respeito da educação, que se encontram habitualmente. Max Black sugere que a metáfora familiar do crescimento é uma que se presta de si mesma à expressão da revolta contra o autoritarismo educacional23 . De que maneira isso acontece? Há uma analogia evidente entre a criança que cresce e a planta que cresce, entre o jardineiro e o professor. Em ambos os casos, o organismo em desenvolvimento passa por certas fases que são relativamente independentes dos esforços do jardineiro ou do professor. Nos dois casos, todavia, o desenvolvimento pode ser auxiliado ou prejudicado por esses esforços. Para um e outro, o trabalho de cuidar desse desenvolvimento parecería depender do conhecimento das leis que regulam a sucessão das fases do desenvolvimento. Em nenhum dos dois casos o jardineiro ou o professor é indispensável para o desenvolvimento do organismo e, depois de terminada a sua tarefa, o organismo continuará a amadurecer.. Os dois estão interessados em ajudar o organismo a florescer e em cuidar do seu bem-estar proporcionando condições ótimas para que operem as leis da natureza. Assim, a metáfora do crescimento incorpora em si mesma uma concepção modesta do papel do professor, o qual consistiría em estudar e, em conseqüência, em auxiliar indiretamente o desenvolvimento da criança, e não em moldá-la em alguma forma preconcebida — o 23.

Black, M.: “Education as art and discipline”, Ethics, 54:290, 1944, reimpresso em Schefflei, I.: Philosophy and Education, op. cit.

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que configura uma outra metáfora, contrária à do crescimento, que consideraremos daqui a pouco. Onde sucumbe a metáfora do crescimento? Ela parece bastante plausível com relação a certos aspectos do desen­ volvimento das crianças, a saber, os aspectos biológicos ou constitucionais. Com respeito a esses, podemos, com bastante segurança, dizer, de maneira aproximada, quais são as seqüências de estágios que poderão normalmente ser esperadas, e de q u e . modo poderá ser auxiliada ou prejudicada, mediante esforço deliberado da parte de outras pessoas, a passagem de um estágio a outro. Nos casos em que não existe esse conheci­ mento relativo a certos detalhes, pode-se presumir que a investigação ulterior será capaz de fornecê-lo. A natureza e a ordem desses estágios do desenvolvimento físico e tempera­ mental, bem como das aptidões de comportamento que eles tornam possíveis, são, na verdade, relativamente independentes da ação de outros indivíduos, embora fatores culturais, mesmo aqui, tenham o seu impacto. No entanto, se alguma vez perguntarmos de que maneira essas aptidões deverão ser exercidas, para o que deverá ser dirigida a energia temperamental da criança, que tipos de conduta e que tipos de sensibilidade deverão ser encorajados, começaremos, então, a perceber os limites da metáfora do crescimento. A seqüência de etapas físicas e temperamentais é, de fato, perfeitamente compatível com um número indeter­ minado de respostas irreconciliáveis a essas perguntas. Para esses aspectos do desenvolvimento, não existem seqüências independentes de estágios que apontem para um único estado de maturidade. Por essa razão, não há nenhum sentido literal em dizer, em relação a esses aspectos: “ Desenvolvamos todas as potencialidades de cada criança” . Essas potencialidades entram em conflito e, portanto, não podem ser todas desenvolvidas. Desenvolver algumas significa impedir outras. Inibir essa ou aquela significa não admitir o pleno alcance da sabedoria da natureza, mas, ao contrário, decidir numa direção em lugar de outra, quando ambas são compatíveis com a natureza; a responsabilidade por tais decisões não pode ser esquivada. Observou-se muitas vezes que considerar a história como se fosse uma planta, cujo desenvolvimento através de certos estágios naturais pode ser apenas facilitado ou retardado pelos indivíduos, constitui um meio de evitar a responsabilidade de influir sobre os acontecimentos sociais através da escolha e da 62

ação24 . Deveria ser mais evidente ainda que o curso do desen­ volvimento social, cultural e moral das crianças não está dividido em estágios naturais que não podem ser alterados fundamentalmente por outras pessoas. É visível que os adultos — pais e professores — fazem muito mais do que simplesmente facilitar o desenvolvimento da criança em direção a um estágio único de maturidade cultural. Ê a percepção intuitiva desse último aspecto que se encontra subjacente a uma outra metáfora educacional familiar: a de conformar, formar ou moldar. Numa das variantes' dessa metáfora, a criança é como argila, sobre a qual o professor impõe um molde fixo, conformando-a às especificações do molde. A iniciativa, o poder e a responsabilidade do professor tornam-se aqui nitidamente destacados. Com efeito, a forma final da argila constitui integralmente um produto da sua escolha de um molde determinado. Não há aqui progressão autônoma em direção a uma forma dada qualquer, ao contrário do que sucede com relaçao ao crescimento das glandes, por exemplo. E tampouco existem moldes aos quais a argila não poderá se conformar. A argila não seleciona nem rejeita, por si própria, nenhuma sequência determinada de estágios nem, tampouco, nenhuma forma final. A pessoa que escolhe o molde é inteiramente responsável pelo resultado. À luz das nossas observações precedentes sobre a metáfora do crescimento, fica patente que essa metáfora da moldagem não se ajusta ao desenvolvimento biológico-temperamental da criança, o qual não pode ser alterado totalmente pela ação dos adultos. A metáfora da moldagem, entretanto, parece real­ mente mais adequada do que a metáfora do crescimento no que toca ao desenvolvimento cultural, pessoal e moral, o qual depende, em medida mais larga, do caráter do ambiente social adulto que circunda a criança. Mesmo nesse domínio, porém, a metáfora da moldagem tem as suas limitações. No caso da argila, a sua forma final constitui integralmente uma função do molde escolhido. A argila não seleciona nem rejeita nenhum molde dado. Além disso, a argila é inteiramente homogênea e inteiramente plástica em todas as suas partes. A forma do molde é fixada antes do processo de moldagem e permanece constante durante todo o processo. Cada 24. Ver, a esse respeito, Popper, K., op. cít„ e Popper, K.: The Poverty o f Historicism. London, Routledge & Kegan Paul, 1957.

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um desses pontos representa uma diferença importante com relação ao ensino. Com efeito, mesmo se não há leis de desenvolvimento cultural, moral e pessoal, existem limites, entretanto, impostos pela natureza dos alunos à gama de desenvolvimentos possíveis. Esses limites anunciam aquilo que não pode sér feito com o material, mas não o que será desenvolvido a partir dele. A natureza humana não seleciona automaticamente, mas ela rejeita algumas formas que os adultos podem ter,,escolhido para ela. Além disso, esses limites variam de estudante á estudante e de grupo a grupo. A população estudantil não é inteiramente homogênea nem inteiramente dúctil em todos os seus pontos. Assim, ainda que as decisões do educador não sejam tomadas pela natureza em seu lugar, tampouco deixam elas de ser limitadas pela natureza; e um estudo desses limites poderá fazer com que as suas decisões sejam mais sábias. Por último, se é verdade que o professor deve realmente fazer atenção à natureza dos seus alunos, é de se esperar que modiíique os seus métodos e objetivos no decorrer do seu ensino, e que faça isso em resposta ao próprio processo de ensino. O seu ensino, portanto, não é comparável a um molde fixo, mas, ao contrário, a um plano que pode ser modificado pelas próprias tentativas de executá-lo. São esses últimos traços do ensino que vêm acentuados no que se poderia chamar de a metáfora da arte, em qualquer uma das suas formas múltiplas; por exemplo, a que se relaciona com a escultura. A estátua do escultor não brota por si mesma da pedra, exigindo apenas nutrição e cuidados por parte do artista; o artista exerce uma autêntica escolha na sua produção, ainda que o seu bloco inicial de mármore não seja totalmente receptivo a qualquer idéia que ele possa desejar lhe impor. O bloco rejeitará algumas dessas idéias em virtude da sua estrutura interna. E nem todo bloco de mármore é equivalente a um outro qualquer. Cada um requer um estudo individual das suas possibilidades e limitações individuais. Finalmente, a idéia inicial do artista não é uma idéia que já está completamente formada de antemão, permanecendo fixa em todo o processo. Ela dá início a esse processo mas, geralmente, é modificada pelo próprio processo, durante o qual o artista está continuamente aprendendo ao mesmo tempo em que está criando. Essa metáfora da escultura parece particularmente apropriada com relação aos traços que acabamos de descrever, mas não se pode dizer que seja perfeita nem, mesmo, que seja melhor, sob todos os aspectos, do que as metáforas que consideramos anteriormente. Por exemplo, a metáfora do 64

crescimento reconhece pelo menos a continuação do desenvolvimento do objeto em questão, mesmo depois que o jardineiro tenha se retirado, ao passo que a metáfora da escultura não o faz; a estátua deixa de crescer quando o escultor a abandona. Por outra parte também, o professor, ao contrário do escultor, não está limitado exclusivamente por padrões estéticos. Os seus objetivos e o seus métodos estão também sujeitos á crítica de ordem moral e de ordem prática. Parece ilusório, portanto, tentar encontrar uma ordem progressiva de metáforas em educação, na qual cada metáfora seria mais adequada e mais compreensiva do que a precedente. E nesse ponto que a própria comparação das metáforas com as teorias científicas entra em colapso. As metáforas educacionais de uso corrente auxiliam na reflexão e na organização do pensamento e da prática sociais relativos à educação escolar, mas não estão presas a processos de confirmação e de predição experimentais. Assim, elas não se desenvolvem cumulativamente, como ocorre com as estruturas teóricas de natureza científica. Ao contrário, deveriamos talvez concebê-las como arranjadas em volta do seu tema comum, cujo complexo individual de traços característicos poderá ser iluminado por meio de um exame comparativo de metáforas. A analogia indicada por uma metáfora determinada poderá, como foi anteriormente sugerido, ser importante num contexto mas não em outro. Uma boa metáfora, portanto, geralmente não é boa em todos os contextos. Esse fato é de grande importância para a nossa discussão presente, visto que a educação constitui, como sublinhamos, o solo comum de uma grande variedade de contextos. E de prudência, por conseguinte, manter uma postura crítica com respeito à aceitação, num contexto determinado, de metáforas que se revelaram esclarecedoras em outro, ainda que seja o mesmo tema que está envolvido em ambos os casos. A transplantação de metáforas pode, realmente, originar confusões, 53J tanto mais que ela poderá obscurecer distinções que são vitais no novo contexto, embora sem importância no contexto original. Os efeitos de um transplante desse gênero podem ser ilustrados por referência a uma explicação metafórica da educação que se encontra largamente difundida e que, conquanto mais inclusiva do que ela, está manifestamente relacionada com a metáfora do crescimento; nós a chamaremos aqui de ‘metáfora orgânica’. Existem inúmeras variantes e utilizações dessa metáfora nos escritos educacionais; limitar-nos-emos aqui a fornecer uma descrição rápida, apenas para os propósitos da

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discussão25 . A cultura, no sentido antropológico segundo o qual ela compreende os costumes, os hábitos populares, a tecnologia, a organização social, a língua, o direito, a ideologia, a ciência e a arte de uma sociedade determinada, é considerada, às vezes, como análoga à vida do organismo individual. Assim como os seres vivos diferem das coisas inanimadas por assegurarem a própria subsistência mediante uma renovação contínua, por reagirem às forças externas de forma a preservar o seu equilíbrio com o meio ambiente, por utilizarem essas forças como meios para continuarem crescendo — assim também as culturas conservam a sua continuidade reagindo às forças externas de maneira a manter o próprio equilíbrio e a crescer adaptativa e criativamente. Embora a vida individual termine com a morte do indivíduo, o mesmo não se passa com a vida cultural. Assim como as inúmeras células e tecidos do indivíduo morrem e são substituídos por outros, enquanto a sua vida prossegue, assim também as «células» da cultura, isto é, os seus membros individuais, morrem e são substituídos sem que seja destruída a vida da cultura. Nos dois casos, as células não morrem todas ao mesmo tempo, mas, ao contrário, de maneira contínua, sendo substituídas também continuamente. Os processos através dos quais as novas células físicas substituem as velhas no organismo individual são responsáveis pela preservação da continuidade biológica. Os processos mediante os quais os novos membros de uma cultura substituem os velhos garantem, da mesma forma, a continuidade cultural. Esses últimos processos constituem a educação, cuja função reside em transmitir a vida da cultura do grupo para cada novo membro, renovando-a, assim, continua­ mente. Ora, a metáfora orgânica, repousando sobre essas analogias que acabamos de mencionar, assimila a educação aos processos mediante os quais os indivíduos assumem a cultura do meio ambiente. Em vários contextos, existe uma pertinência real em tal assimilação. Se considerarmos, em especial, os estudos 25. Essa descrição é sugerida por Dewey, J.: Democracy and Education. New York, The Macmillan Company, 1916, Capítulo I. Ao resumir o capítulo, Dewey escreve, por exemplo (p.. 11): “É da natureza mesma da vida de lutar por continuar existindo. Dado que essa continuação só pode ser assegurada por meio de renovações constantes, a vida é um processo que se auto-renova. O que são a nutrição e a reprodução para a vida fisiológica, a educação o é para a vida social”. O meu propósito, contudo, reside apenas em assinalar os perigos da metáfora orgânica, não em criticar a utilização que Dewey dela faz no capítulo mencionado. (A passagem foi citada com a permissão da Macmillan Company.)

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antropológicos ou históricos em que culturas específicas são, por vezes, tomadas como unidades de investigação, com vistas a determinar-lhes as estruturas internas ou as leis que governam as suas modificações estruturais, poderá ser desejável agrupar os processos de aculturação sob uma rubrica única e estudar a sua localização nos «esquemas de cultura», assim como os seus mecanismos. Também nas investigações psicológicas, em que se tenta descobrir leis de aprendizado interculturais, poderá ser conveniente, como um passo preliminar para essa tentativa, classificar todos os processos de aprendizado social sob uma etiqueta única. Nesses contextos, talvez seja útil a metáfora orgânica, ao comparar os processos de aculturação aos processos regenerativos do organismo biológico. Como esses últimos, os processos de aculturação podem ser estudados enquanto se relacionam a outros fenômenos e enquanto compreendem uma variedade de mecanismos cujas leis devem ser determinadas. Não obstante, quando se transplanta a metáfora orgânica para contextos práticos nos quais está em jogo a política social, ela poderá positivamente induzir em erro, dado que ela não deixa espaço para distinções que são da mais alta importância em questões de natureza prática. Não existem, por exemplo, distinções morais entre os diversos processos regenerativos do organismo individual, ao passo que tais distinções, com relação aos processos «regenerativos» culturais, constituem muitas vezes o centro mesmo das controvérsias sociais. Distinções desse tipo se exprimem, por exemplo, na separação do ensino da força, da propaganda, da ameaça e da doutrinação. Ademais, não se considera, em geral, que os processos regenerativos biológicos estejam submetidos à escolha e ao controle, ao passo que os processos sociais, em significativa medida, estão; e, além disso, é justamente naqueles casos em que escolhas alternativas são consideradas possíveis que as questões de política social tomam forma. Por outro lado, comparar a continuidade das culturas à continuidade das vidas individuais é simplificar ao extremo. Com relação à continuidade individual, existem critérios biológicos bem distintamente definidos, e a margem de variação que permanece em consonância com a continuidade está determinada bastante nitidamente, como, por exemplo, nas descrições do ciclo vital. Km troca, no que concerne às culturas, não existem critérios similarmente definidos, nem leis conhecidas de crescimento ou esquemas normais de ciclo vital. Não somos 67

capazes de prontamente dizer, de antemão, até que ponto uma cultura pode modificar o seu caráter passado sem perder a sua própria identidade. Sem a especificação de algum padrão de continuidade cultural, não fica claro, então, de que maneira a educação é concebida quando ela é explicada em termos de sua contribuição para essa continuidade. A continuidade de qualquer cultura pode ser favorecida sob formas diferentes e conflitantes, de acordo com os diferentes padrões de continuidade que pode­ rão ser escolhidos. São essas diferenças entre padrões que revestem signifícância moral e, por conseguinte, prática, embora todos esses padrões sejam compatíveis com falar, em abstrato, de continuidade cultural. De outra parte, quando se transfere a noção de ‘função’ de contextos biológicos para contextos sociais, o resultado é uma indeterminação análoga26 , de tal maneira que, mesmo com algumas especificaçóes do aspecto sob o qual se deverá entender a continuidade cultural, ainda assim será inadequado dizer que a função da educação consiste em preservar a continuidade cultural. Quando falamos da função desse ou daquele mecanismo biológico, estamos falando, grosso modo, da sua contribuição para o funcionamento normal ou satisfatório do organismo. Dizer, por exemplo, que a função das batidas do coração consiste em fazer circular o sangue pelo corpo equivale a dizer que essa circulação do sangue, realizada, nas circunstâncias usuais, pelas batidas do coração, é indispensável para o funcionamento normal do. organismo em questão. Assim também, falar da função dos processos regenerativos, como a substituição das células velhas por células novas, equivale a dizer que a substituição resultante da operação habitual desses processos é indispensável para o trabalho normal do organismo biológico. Nesses casos, o conceito de ‘funcionamento normal’ é bastante claro. No entanto, se quisermos supor que a continuidade cultural, alegadamente realizada pela educação, é, analogamente, indispensável para o funcionamento normal ou satisfatório da cultura, necessitaremos, analogamente, de uma noção clara desse funcionamento. Infelizmente, essa noção clara está faltando. Desse modo, mesmo deixando de lado, pelo momento, todas as questões relativas à interpretação de ‘continuidade’, ainda assim 26. Para uma análise detalhada dessa questão, análise essa que influenciou o meu tratamento, ver Hempel, C. G.: “The logic o f functional analysis”, in Gross, L.: Symposium on Sociotogical Theory. Evanston, Illinois, Row Peterson and Company, 1959. O exemplo da batida do coração que figura no nosso texto deve-se a Hempel.

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não podemos pretender que as asserções sobre a função da educação sejam claras no sentido em que são claras as afirmações de ‘função’ em biologia. Precisamos, no mínimo, de fornecer alguma especificação autônoma do padrão de funcionamento normal que está sendo suposto. Suponhamos, todavia, que seja fornecida essa especificação num discurso determinado, o qual especifica, ao mesmo tempo, uma utilização especial do termo ‘continuidade’. Num caso como esse, a asserção segundo a qual a função da educação consiste em preservar a continuidade cultural torna-se análoga, do ponto de vista da clareza, às afirmações de ‘função’ em biologia. Não obstante, as distinções morais que são de importância primordial nas questões que surgem nos contextos de política educacional e social, estarão ausentes desse quadro. E o que é pior: a conotação moral positiva do termo ‘função’ (que deriva, talvez, da sua vinculação com o funcionamento biologicamente satisfatório que, em geral, é favorecido) sugere que a noção de função social implica também um valor moral. Se refletirmos, entretanto, fica óbvio que não se pode derivar conclusões morais a partir das atribuições de função social feitas à maneira descrita e, a fortiori, também é óbvio que, nesses casos, não está implicada uma avaliação positiva. Suponhamos, por exemplo, que especifiquemos, em primeiro lugar, que por ‘continuidade’ nos referiremos à manutenção de atitudes constantes de docilidade política e intelectual por parte da população e, em segundo lugar, que, por ‘funcionamento normal’, iremos nos referir ao mando sem oposição dos senhores do momento de uma ditadura determinada. Estaremos agora em condições de agrupar juntos, sob a etiqueta de ‘educação’, todos aqueles processos de opressão, fraude, distorção, doutrinação e ameaça, mediante os quais se obtém a submissão política e intelectual, e poderemos concluir declarando que a função da educação, na sociedade em questão, consiste em preservar a sua continuidade. Dadas as duas especificações mencionadas, a asserção não somente é clara; ela é também verdadeira. Com efeito, a docilidade que resulta dos processos referidos é realmente indispensável para a tranqüilidade de uma ditadura. Mas não se segue daí que tais processos devem ser empregados ou aprovados. Não se segue tampouco que as ditaduras devem funcionar normal ou satisfatoriamente no sentido especificado, isto é, que elas devem permanecer sem oposição. As afirmações de ‘função’ social não somente deixam de sublinhar as questões morais; essas últimas também se tornam muitas vezes confusas 69

pela conotação de valor, socialmente irrelevante, que circunda o termo ‘função’. No exemplo que acabamos de examinar, é evidente que um moralista poderia discutir a especificação que foi dada de ‘funcionamento normal’; poderia também propor uma utilização diferente para ‘continuidade’. Desse modo, poderia estar em condições de reter a asserção de que a função da educação consiste em preservar a continuidade, mas conferindo-lhe uma interpretação totalmente diferente. Ou, então, poderia deixar para outros a asserção de ‘função’ e, em troca, exprimir os seus pontos de vista morais dizendo que o professor possui obrigações que independem da continuidade social nos seus vários sentidos predominantes, a saber, as obrigações de dizer a verdade, de respeitar a inteligência do estudante, de merecer-lhe a confiança sendo sincero e aberto nos seus tratos com ele. Podemos abordar o ponto geral que estivemos enfatizando aqui por meio de uma consideração da noção de ensino, que é consideravelmente mais estreita do que a de aculturação. Podemos dizer que toda cultura normalmente leva os seus membros recém-nascidos a se comportarem em conformidade com as suas normas, pouco importando a maneira como elas são especificadas; e muitas culturas possuem organismos especiais consagrados a essa tarefa. Mas nem todos os modos de levar alguém a se comportar de acordo com uma norma qualquer constitui ensino. Alguns desses modos são puramente informais e indiretos, operando, sobretudo, por associação e por contato, da forma como as línguas são normalmente aprendidas. Mas tampouco constituem ensino todas as maneiras formais e deliberadas. O comportamento pode ser efetivamente levado a acomodar-se às normas através de ameaças, hipnose, suborno, drogas, mentiras, insinuações e violência aberta. O ensino poderá, certamente, proceder mediante vários métodos, mas algumas maneiras de levar as pessoas a fazerem determinadas coisas estão excluídas do âmbito padrão do termo ‘ ensino’. Ensinar, no seu sentido padrão, significa submeter-se, pelo menos em alguns pontos, à compreensão e ao juízo independente do aluno, à sua exigência de razões e ao seu senso a respeito daquilo que constitui uma explicação adequada. Ensinar a alguém que as coisas são deste ou daquele modo não significa meramente tentar fazer com que ele o creia; o engano, por exemplo, não constitui um método ou um modo de ensino. Ensinar envolve, além disso, que, se tentarmos fazer com que o estudante acredite que as coisas são deste ou daquele modo, tentemos, ao mesmo 70

tempo, fazer com que ele o creia, por razões que, dentro dos limites da sua capacidade de apreensão, são nossas razões. Ensinar, assim, exige de nós que revelemos as nossas razões ao estudante e, ao fazê-lo, que as submetamos à sua avaliação e â sua crítica. De outra parte, ensinar a alguém, não que as coisas são deste ou àaquele modo, mas', ao contrário, como fazer alguma coisa implica, normalmente, mostrar-lhe (através da descrição ou do exemplo) como fazê-lo, e não simplesmente estabelecer as condições sob as quais, de fato, ele aprenderá provavelmente como fazê-lo. Atirar uma criança no rio não é, por si só, ensinar-lhe como nadar; enviar a filha a uma escola de danças não 58) significa, por si só, ensinar-lhe como dançar. Mesmo quando se trata de ensinar a alguém a fazer alguma coisa (e não de ensinar como fazê-lo), ensinar, aqui, não significa simplesmente tentar fazer com que ele o faça; significa também tornar acessíveis a ele, em algum momento do processo, as razões e os propósitos que nos levam a fazer com que ele o faça Ensinar, portanto, no uso padrão do termo, é reconhecer a «razão» do aluno, isto é, a sua exigência de razões e o seu juízo a respeito das razões, mesmo se tais exigências não são igualmente apropriadas em cada uma das fases do período de ensino. As distinções aqui debatidas entre ensinar e promover a aquisição de modos de comportamento ou de crença são, podemos dizer, distinções de maneira. Elas dependem da maneira como tal aquisição é promovida. A metáfora orgânica, como vimos, concentra-se na continuidade da vida da cultura — na realidade, ela se concentra nas normas de comportamento e nas crenças que formam o conteúdo da cultura. Essa metáfora não estabelece distinções a respeito da maneira de aquisição desse conteúdo (distinções do tipo que ilustramos por referência ao conceito d e ‘ensino’). Mas são essas distinções, entretanto, que são centrais nas questões morais relativas à política social e educacional. Não se pode pensar que a utilidade da metáfora orgânica em certos contextos mostra que as distinções de maneira a que fizemos referência sejam desprovidas de qualquer importância prática ou moral; que os professores, por exemplo, devem, por quaisquer meios e acima de tudo, adaptar os estudantes à cultura dominante (especificada do modo como se quiser) e assegurar a sua continuidade (pouco importando como a especifiquemos). Se os professores devem ou não fazer justamente isso ou adotar alguma alternativa é algo que constitui uma questão moral independente e grave, que requer atenção

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explícita. Que essa questão não receba nenhuma ênfase na metáfora orgânica é um fato que indica —não que a questão seja sem importância — mas que essa metáfora é inapropriada em contextos práticos. Terminaremos esse exame tentando mostrar em que medida é fundamental a questão de maneira, e, para tanto, faremos novamente referência aqui ao conceito de ‘ensinar’. Já nos e sfo rç a m o s p o r indicar que a noção de ensino é consideravelmente mais estreita do que a de aculturação. O fato de se poder dizer que toda cultura se renova a si mesma fazendo com que os seus membros recém-nascidos se comportem de acordo com as suas normas, decididamente não significa que tal renovação constitua, em todos os casos, um produto do ensino, no sentido padrão dessa expressão que discutimos. Favorecer a mais ampla difusão do ensino como um modo e como um modelo de renovação cultural constitui, de fato, uma significativa opção social de um caráter fundamental, envolvendo a mais ampla extensão possível da crítica, fundada em razões, endereçada à própria cultura. E bem possível, e até altamente provável, que essa opção, em sociedades determinadas, possa conduzir a grandes modificações, em relação à cultura dominante, nas normas, nas crenças e nas instituições sociais fundamentais. Mas essa consequência não deverá se produzir necessariamente em todos os casos. É pouco provável, em particular, que ela ocorra quando a própria cultura institucionaliza procedimentos racionalizados nas suas esferas básicas, quando acolhe o exercício da crítica e do juízo, vale dizer, quando se trata de uma cultura democrática no sentido mais forte. Apoiar a mais larga difusão possível do ensino como um modelo de renovação cultural significa, efetivamente, apoiar algo que se encontra em peculiar harmonia com a democratização da cultura, algo que impõe, ao mesmo tempo, uma ameaça para as culturas cujas normas sociais básicas se encontram institucionalmente subtraídas a qualquer crítica. Tal apoio, portanto, é coerente com a visão de uma cultura em que a compreensão não se encontra limitada, e onde o julgamento crítico das decisões políticas não constitui privilégio institucionalizado de uma classe, onde a mudança de política não é forçosamente arbitrária e violenta, encontrando-se, ao contrário, canalizada através de instituições que operam pela persuasão baseada em razões e pelo consentimento livremente dado. Muitos pensadores sociais, talvez mesmo a maioria, recuaram face a essa visão, argumentando que a cultura não pode

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sobreviver por muito tempo sob uma democracia nesse sentido. Outros, no entanto, sustentaram com urgência a mais plena institucionalização da crítica baseada em razões, inteiramente conscientes de que tal rumo ameaça realmente as sociedades com divisões rígidas de poder, mas negando, ao mesmo tempo, que todas as sociedades estariam ameaçadas em conseqüência disso, e negando que nenhuma cultura que repousa sobre uma crítica livre, intercambiada livremente, podería sobreviver. A questão, em suma, não é de se a cultura há de se renovar, mas de que maneira tal renovação deve ser institucionalizada. É essa questão prática fundamental que não deve ser obnubilada nos contextos práticos por metáforas que são apropriadas em outros.

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CAPÍTULO IV ENSINAR No capítulo anterior, indicamos como a noção de ‘ensinar’ sugere uma distinção crucial com relação à maneira em que o aprendizado pode se realizar. O que se encontrava envolvido nessa fase do nosso exame era, é claro, o uso padrão e quotidiano de ‘ensinar’, e não algum uso estipulado. Esse uso padrão merece uma atenção adicional e mais detalhada, pois a palavra figura no centro de inúmeras discussões sobre a educação, nas quais o contexto deixa bem claro que ela deve ser tomada na sua acepção ordinária. No presente capítulo, passaremos então a um exame do termo ‘ensinar’, numa tentativa de compreender os modos pelos quais é tipicamente aplicado, assim como aquilo a que ele se refere tipicamente. Nossa preocupação, como no caso da definição descritiva que discutimos no capítulo 1 'reside então em proporcionar uma elucidação da significação admitida da noção de ‘ensinar’. Não tentaremos, entretanto, fornecer aqui uma definição explícita, mas apenas urh estudo informal de alguns elementos dessa significação admitida. Podemos começar recordando a diferença, assinalada acima, no capítulo 2, que existe entre os usos de «êxito» e os usos «intencionais» do verbo ‘ensinar’. No uso de «êxito», uma palavra se refere a bem mais do que à simples execução de alguma coisa; refere-se também ao resultado bem sucedido daquilo que se está fazendo ou que se fez. Ter construído uma casa significa mais do que ter se ocupado na atividade de construir; significa também ter alcançado êxito nessa atividade. Da mesma forma ter ensinado a alguém como nadar é bem mais do que ter simplesmente se ocupado em ensinar alguém a nadar; significa também ter obtido sucesso. 74

A fim de simplificar o processo da nossa análise, façamos agora abstração de considerações relativas ao êxito, e vamos 61J restringir a nossa investigação aos usos «intencionais» do verbo. Uma vez suposta essa restrição, podemos classificar o ensino que é referido pelo verbo como uma atividade: trata-se de algo que alguém se dedica a fazer ou que está ocupado a fazer. Silva pode estar dedicado a ensinar a Pereira como manejar uma serra elétrica assim como pode estar dedicado a pintar a sua casa. Na verdade dizer que Silva está ensinando significa normalmente comunicar que ele se dedica a ensinar27. O ensino, além disso, é dirigido para um certo resultado: trata-se de uma atividade orientada para uma meta. Ê importante notar que nem tudo que é verdadeiro a respeito de Silva, e que é suscetível de expressão por meio de um verbo, pode ser descrito dessa maneira. Não se diz normalmente que Silva se dedica a respirar, a sentar ou a passear, embora ele respire, sente e passeie. Embora ele possua propriedades, não se diz que está dedicado a possuir propriedades; e, ainda que tenha alcançado a idade de 57 anos, não o descrevemos, de hábito, dizendo que esteve ocupado em atingir a idade de 57 anos. O ensino é algo a que alguém se dedica, é algo dirigido para uma meta cuja consecução envolve normalmente atenção e esforço, proporcionando, ao mesmo tempo, uma definição relevante de êxito. Respirar, sentar e passear não são orientados para metas segundo maneiras que possam ser especificadas; não falamos do êxito alcançado em respirar, sentar ou passear. Possuir propriedades e atingir a idade de 57 anos não envolvem

27. Esse problema, relativo àquilo que é normalmente transmitido ou compreendido por urna afirmação, se refere a algo menos forte do que aquilo que é implicado pela afirmação. Nowell-Smith discutiu essa noção sob o título de ‘implicação contextual’. (Ver Nowell-Smith, P. H .:Ethics. London, Penguin Books, Ltd., 1954, p. 80.) Ele escreve: “Eu direi que uma afirmação p implica contextualmente uma afirmação q se todo aquele que conhecesse as convenções normais da linguagem estivesse autorizado a inferir q de p no contexto em que elas ocorrem”. Ele sublinha igualmente que as implicações contextuais podem ser expressamente removidas, mas que, a menos que sejam removidas, estamos autorizados a presumir que a inferência em pauta vigora no contexto em questão Não é necessário, é claro, que a noção do que é normalmente transmitido, mas não implicado, por uma afirmação dada, seja interpretada precisamente da maneira como Nowell-Smith a interpreta, O nosso texto utiliza essa noção, mas permanece neutro com relação às explicações variantes que dela são dadas. Para outras análises recentes de ensino, veja-se Smith, B. O.: “On the anatomy of teaehing”, Journal o f Teacher Education, 7:339, (December) 1956, e “A concept of teaehing” , Teachers College Record, 61:229, (Eebruary) 1960.

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esforçar-se por alcançar certas metas; e nem mesmo são descritos como coisas que estão sendo feitas. A pergunta: «O que esta' ele fazendo? » pode ser respondida por: «Estã se sentando», « .. . está passeando», «. . . está caçando», «. . . está ensinando» —mas não por: «Ele está possuindo propriedades», «; . . está atingindo a idade de 57 anos». Nesses últimos casos, na realidade, o gerúndio de hábito, é totalmente inaplicável. Podemos dizer «Ele possui propriedades», mas não «Ele está possuindo propriedades»; podemos dizer «Ele alcançou a idade de 57 anos», mas não «. . . está alcançando a idade de 57 anos». Ao contrário, se Silva está trabalhando num quebra-cabeça, ele está tentando resolvê-lo; se se diz que está pintando a sua casa, entende-se normalmente que ele está tentando fazer com que fique pintada; se o descrevemos dizendo que está ensinando a Pereira como manejar uma serra elétrica, entende-se normalmente que está tentando fazer com que Pereira aprenda o seu manejo. O que ele está fazendo encontra-se, portanto, ligado a uma meta que ele se esforça por alcançar, a qual poderá ou não ser, de fato, atingida. O trabalho de Silva sobre o quebra-cabeça poderá ser infrutífero; talvez seja demasiado difícil para ele. Poderá ter êxito e, além do mais, executar um belo serviço ao pintar a sua casa; e poderá, outrossim, ter êxito em ensinar a Pereira como manejar a serra. Em cada um desses casos, a atividade a que está dedicado encontra-se orientada para alguma meta que define o seu sucesso, e que exige normalmente, para a sua consecução, um esforço continuado. Em cada um desses casos, igualmente, tal consecução fornece um índice de proficiência. Por outro lado, pode-se tentar, é claro, fazer muitas coisas, as quais nem todas são, elas próprias, atividades que envolvem outras tentativas. Pode-se, por exemplo, tentar sentar (numa cadeira determinada), ou tentar respirar (num sala de oxigênio escasso, ou com um pulmão afetado), ou tentar passear (mas ser interrompido por visitas inesperadas). Tais tentativas estão elas mesmas orientadas para certas metas, e podem ou não ser bem sucedidas. Disso não se segue que sentar, respirar e passear constituem espécies da ação de tentar, ou que envolvem, em geral, tais atos de tentar. Não se pode tentar sentar sem tentá-lo, mas muitas vezes nos sentamos sem tê-lo tentado. Por outro lado, é verdade que, em certas ocasiões particulares, o próprio sentar, por exemplo, pode estar associado, de alguma maneira, com tentar. Alguém pode estar sentado num esforço para descansar e recuperar alento, sabendo que exer­ cício em demasia faz mal ao seu coração. Não obstante, as 76

pessoas frequentemente se sentam sem, com isso, tentarem descansar ou fazer coisa alguma. Descrever alguém dizendo que está se sentando não é, em si mesmo, comunicar que ele está tentando realizar algo em particular. Ao contrário, descrever alguém dizendo que està trabalhando num quebra-cabeça é comunicar que ele está tentando resolvê-lo; dizer que alguém está pintando a sua casa é, normalmente, transmitir que está tentando fazer com que seja pintada; dizer de alguém que ele está ensinando a um aluno como manejar uma serra elétrica significa, de hábito, transmitir que está tentando levá-lo a aprender como manejá-la. 63) Um possfvel mal-entendido deve ser prevenido aqui. Trabalhar num quebra-cabeça durante a tarde toda não significa, em todos os casos, tentar resolvê-lo durante essa tarde. Pode tratar-se de um quebra-cabeça muito difícil e que se sabe ser difícil, e a pessoa que com ele se ocupa pode não ter nenhuma esperança de resolvê-lo em poucas horas; é possível, de fato, que ela não esteja sequer tentando resolvê-lo em poucas horas. Mas é impossível dizer que esteve trabalhando no quebra-cabeça, mesmo durante a tarde, a menos que aquilo que ela estava fazendo era feito num esforço em resolvê-lo, com ou sem alguma restrição especial de tempo. De maneira análoga, alguém pode ter estado pintando a sua casa durante todo o dia sem tentar fazer com que ela fique pintada ao cair da noite. Mas, se não estivesse tentando realmente fazer com que jamais ficasse pintada dificilmente se poderia dizer, sem qualificações consideráveis que ele tinha passado o dia a pintar a sua casa. Finalmente, aprender a manejar uma serra elétrica é algo que pode exigir, de fato, muitas lições. Assim, Silva pode estar ensinando a Pereira por uma ou duas horas, sem contudo tentar levá-lo a aprender, em uma ou duas horas, o manejo da serra. No entanto, a menos que aquilo que Silva faz é feito na tentativa de fazer com que Pereira aprenda o seu manejo, não se pode corretamente dizer, em circunstâncias normais, que estava a lhe ensinar como manejar uma serra elétrica. Em suma: a meta de uma atividade pode se encontrar além dos limites da própria atividade ou de um dos segmentos dessa, ou então carecer totalmente de condições temporais. Não obstante, dedicar-se à atividade em questão envolve, em geral, tentar. Por último, dever-se-ia assinalar que foi afirmado aqui que o ensino normalmente envolve um esforço de realizar c aprendizado; a afirmação inversa, entretanto, de fato é falsa. Não se pode dizer, em geral, que os esforços para realizar o 77

aprendizado envolvem o ensino — como já o sublinhamos no capítulo anterior, quando da discussão relativa à maneira. Desse modo, embora a efetivação do aprendizado seja indispensável para o êxito do ensino ela não é por si só, suficiente; é necessário além disso, que o aprendizado se realize da maneira apropriada. Já vimos, então, que o ensino - tal como é normalmente entendido — é uma atividade, exigindo esforço e dando lugar ao exercício e ao desenvolvimento de certa eficiência e, além disso, orientada para uma meta que pode se encontrar além de qualquer um dos seus segmentos. Deveremos agora tornar mais claras as suas características temporais. Enquanto atividade, o ensino toma tempo. Suponhamos que eu diga a você que estive ensinando a João e que você perguntasse: «Quando? ». Se eu dissesse: «Ontem, exatamente às 3:15 da tarde, nem antes, nem depois», essa resposta seria reputada absurda. O ensino não é um evento instantâneo, como um raio ou o lampejo de uma estrela que cai pelo céu. Assim, a pergunta: «Em que momento exato você esteve ocupado em ensinar a João? » não faz nenhum sentido evidente, ao passo que a pergunta: «Durante quanto tempo esteve ocupado em ensinar a João? » é perfeitamente legítima28 . Deve-se agora notar que a pergunta: «Durante quanto tempo esteve ensinando a João? » pode receber, grasso modo, dois tipos de respostas. Uma das respostas pode se referir a períodos relativamente curtos, por exemplo, «duas horas». Uma outra resposta pode se referir a intervalos mais longos, por exemplo, «Três semanas» ou «Dois anos e rneio». Chamemos a todos esses períodos de ‘períodos-de-ensino’, assinalando, ao mesmo tempo, que nem todas as partes de um período-de-ensino qualquer constituem também, elas próprias, um período-de-ensino. Se Sil­ va, durante as três últimas semanas, esteve ensinando a Pereira co­ mo dirigir um automóvel, certamente não esteve lhe ensinando, mesmo durante essas três últimas semanas, nos momentos em que Pereira estava almoçando, durante as suas horas de trabalho, ou quando se encontrava dormindo ou visitando amigos. Esse período de três semanas caracteriza-se, ao contrário, por uma certa estrutura de períodos-de-ensino relativamente unitários, que poderiamos denominar aqui ‘lições’.

28. Questões relacionadas com essa são examinadas in Vendler, Z.: “Verbs and times”, The Philosophical Review, 66:143, (April) 1957.

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Se um período-de-ensino contínuo é de tal sorte que todas as suas partes intermediárias constituem, elas próprias, períodos-de-ensino do mesmo tipo, podemos então conceber aqui uma lição como um período-de-ensino contínuo que não faz parte, ele mesmo, de algum outro período-de-ensino contínuo. Uma seqüência estruturada de lições pode, por sua vez, compor um período-de-ensino complexo, como, por exemplo, um curso de instrução ou parte dele. Embora as lições sejam mais breves do que os cursos, cada lição continua sendo ainda um período, e não apenas um momento, a despeito do fato de que acontecimentos tão importantes como a percepção de um ponto determinado por parte de um aluno podem realmente constituir eventos momentâneos que realçam as lições em que eles ocorrem. Concentremos agora a atenção numa só lição. O que é que caracteriza o ensino durante a lição? O que deveremos observar a fim de decidir que aquilo que está se passando diante de nós constitui um caso de ensino? Já sublinhamos que o ensino é uma atividade que envolve a tentativa de realizar, dentro de certas restrições de maneira, um certo tipo de aprendizado. As implicações desse ponto, todavia, merecem ser explicitadas a fim de que possamos responder às perguntas formuladas acima. Com efeito, supõe-se muitas vezes que todas as atividades 65) podem ser concebidas como esquemas distintivos de movimentos corporais. Já negamos que tudo o que é suscetível de ser exprimido, mediante formas verbais, como uma verdade a respeito de alguém se refira a uma atividade. Evidentemente, será preciso um pouquinho mais de reflexão para constatar que algumas dessas descrições não se submetem facilmente a uma análise em termos de afirmações acerca de movimentos. O fato de que Silva possui atualmente 350 hectares no Texas é completamente independente dos seus esquemas atuais de movimento corporal. O fato de que acaba de completar 45 anos é igualmente independente dos movimentos que realiza presentemente, embora, presumivelmente, possamos esperar alguma conexão de ordem geral entre esse fato e a sua condição fisiológica. E relativamente fácil, contudo, segregar casos desse gênero e rotulá-los de ‘estados’, a fim de sucumbir à tentação de continuar sustentando que as atividades, em contraste com os estados, são todas elas concebíveis como esquemas distintivos de movimentos corporais. Pois as atividades — assim prossegue o argumento — são, afinal de contas, coisas que nós fazemos —e o que é fazer, se não efetuar alguma modificação no meio ambiente por meio da realização de algum movimento? 79

Conquanto esse último argumento seja, de fato, plausível, ele está, todavia, mal orientado. E certo, em primeiro lugar, que os estados em questão não são normalmente classificados como coisas que fazemos. A pergunta: «O que está ele fazendo agora? » dificilmente poderia ser respondida por: «Está possuindo 350 hectares no Texas» ou por: «Acabando de completar 45 anos». De outra parte, também é certo que, dentre as coisas que realmente respondem a essa pergunta, constatamos prontamente que algumas há que se referem a esquemas distintivos de movimentos corporais. Por exemplo: «Está simplesmente sentando», «Respirando regularmente» (dito por uma enfermeira a respeito de um paciente) e «Passeando pelo parque» constituem, todas elas, respostas apropriadas, e todas indicam algum esquema de movimento (quando se entende, da maneira bem ampla, que isso inclui, tanto a postura e a orientação, como a própria moção). Não é menos certo entretanto, que outras respostas apropriadas à pergunta: «O que está ele fazendo agora?» incluem, por exemplo, a resposta: «Trabalhando num problema de geometria», a qual é uma descrição-de-atividade que se manifesta extremamente resistente a toda tentativa de ser interpretada como um enunciado que se refere a algum esquema distintivo de movimentos — como tentaremos mostrar logo a seguir. O ponto que deve ser destacado agora reside nisto que ‘fazer’ constitui uma ampla categoria que inclui, prima facie pelo menos, tanto coisas que podem ser concebidas como esquemas de movimentos, como coisas que não podem sê-lo. E esse fato que solapa o argumento segundo o qual as atividades devem ser esquemas de movimentos, visto que elas são coisas que nqs fazemos. Esse fato, contudo, deverá ser examinado concretamente, recorrendo-se a exemplos. Comparemos, então, o caso de respirar com o de trabalhar num problema de geometria, ambos reconhecidamente constituindo fazeres, em contraste com o que mais acima chamávamos de ‘estados’. Como é possiVel dizer que uma pessoa está respirando durante um período determinado? Observamos, nesse caso, um certo esquema repetitivo de movimentos associado com a seqüência de inspirar ,e expirar o ar durante o período em questão. Comparemos com o caso de um menino que se encontra, durante um período determinado, trabalhando sobre um problema de geometria. Ele deverá estar, é claro, fazendo algo razoável com o objetivo de solucionar o problema. Para que esteja trabalhando no problema, deve estar ao 80

mesmo tempo tentando e fazendo. O que ele poderá estar fazendo de maneira observável pode, além disso, variar de acordo com a situação, mas, em qualquer caso, estará sempre associado com a reflexão. Para saber que o menino que temos diante de nós está deveras trabalhando num problema de geometria, e não simplesmente brincando com uma folha de papel, devemos decidir que ele está realmente pensando; além disso, porém, devemos julgar que aquilo que está fazendo, seja lá o que for, envolve a expectativa de solucionar um problema. Julgar que ele está pensando já significa ir além dos seus movimentos corporais manifestos (embora talvez não signifique ir além de certas modificações internas não observadas). Ademais, a fim de avaliar o que está tentando fazer, deveriamos, de ordinário, ir além dos movimentos corporais que ele realiza durante o presente período. Podemos saber, por exemplo, que está matriculado num curso de geometria na escola, que o problema lhe foi dado como dever de casa, que a solução deverá ser apresentada no dia seguinte, que, no passado, ele sempre entregou pontualmente os seus deveres de casa, e que freqüentemente expressou o desejo de formar-se em matemática. Todos esses itens externos de informação constituem indícios do seu intento no momento, à luz dos quais interpretamos o que ele está fazendo (incluindo os seus movimentos presentes) dizendo: «Trabalhando no problema». Os movimentos observáveis que efetua podem ser em número indefinido. Ele pode medir os passos do assoalho, olhar através da janela, observar um diagrama, virar de um lado para o outro a folha de papel, franzir o sobrolho etc. Cada um desses movimentos, além disso, muitas vezes se reproduz de maneira exata em casos que nada têm a ver com o solucionamento de um problema de geometria. Nenhum deles, portanto, constitui uma condição necessária ou uma condição suficiente desse solucionamento. (Segue-se daí que, tomados todos em conjunto, esses movimentos não podem ser necessários, e que nenhum deles, tomados alternativamente, pode ser suficiente.) Eis aí, por conseguinte, um caso de uma atividade que não pode .ser identificada a nenhuma estrutura distintiva de movimentos, a despeito do fato de se tratar de um «fazer», de algo que é feito. Além do fato de o pensamento estar envolvido, o fazer que é realizado durante o intervalo em questão requer uma interpre­ tação em termos do contexto que o circunda. Voltando agora às questões anteriores, relativas ao ensino durante uma só lição, parece óbvio que esse caso é paralelo ao de Kl

trabalhar num problema de geometria durante um período determinado. Também o ensino envolve tanto tentar como fazer — a saber, tentar levar alguém a aprender alguma coisa. Também aqui, aquilo que é feito de modo observável, sob a forma de esquemas de movimento, pode variar indefinidamente, e reproduzir-se de modo exato em contextos nos quais absolutamente nenhum ensino está envolvido. O professor pode falar ou permanecer em silêncio, pode escrever ou não, pode fazer perguntas ou não, pode ou não utilizar materiais ou equipamentos especiais. Qualquer uma dessas coisas, além do mais, pode ser realizada por pessoas que não estão ocupadas a ensinar. Se um homem está ensinando ou simplesmente criticando, meditando, argumentando, aborrecendo ou distraindo etc. — não constitui, portanto, algo que possa ser visto diretamente nos movimentos que o professor executa durante a lição. Além do problema de averiguar em que consiste o pensamento do professor, a interpretação daquilo que é feito durante a lição dependerá da intenção com a qual isso é feito, e a determinação de tal intenção varia de acordo com a informação que se tem a respeito do contexto da lição. Ensinar, por conseguinte, não pode ser concebido como alguma estrutura distintiva de movimentos executados pelo professor. À luz dessa análise, torna-se manifesto que as tentativas de pensar o ensino em termos behavioristas extremados são, no melhor dos casos, ambíguas e, no pior, totalmente errôneas. Voltando ao exemplo da geometria, poder-se-ia plausivelmente argumentar que o menino não terá, de fato, resolvido o problema até que ele seja capaz de exibir uma prova, sob forma oral ou escrita. Uma vez produzidas, as provas poderão ser controladas quanto à validade. Nesse sentido menos forte, pode se admitir que a evidência «behaviorista» (referente ao produto oral ou escrito dos movimentos do menino) faz parte do nosso juízo a respeito do êxito da sua atividade. Não se depreende daí que a produção de provas possa ser, em geral, caracterizada de antemão, que possamos dizer, em geral, qual é a estrutura de movimentos de fala ou de escrita que constitui uma condição suficiente para a resolução de problemas em geometria ou em matemática. Que tal caracterização é impossível, é algo que pode ser demonstrado exclusivamente sobre fundamentos matemáticos. Essa situação também é generalizada em ciência igualmente, onde não contamos com nenhuma regra geral para a produção de teorias que valham a pena, ainda que as teorias, uma vez formuladas, possam ser avaliadas quanto aos seus méritos 82

científicos. Por conseguinte, conceber a atividade de solucionar problemas como uma sequência complexa de movimentos governados por alguma regra constitui um mito. Daí certamente não decorre que o mero trabalho do menino sobre o problema (enquanto esse trabalho se distingue do fato de solucioná-lo) possa ser explicado como uma sequência desse tipo. E um erro supor que aprender geometria é uma questão de adquirir o domínio de alguns esquemas distintivos de movimento, ou que ensinar geometria consiste em prescrever os movimentos que devem ser efetuados. De maneira análoga, poder-se-ia plausivelmente argumentar que o fato de que uma instância determinada de atividade de ensino teve êxito em realizar o aprendizado, é algo que admite testes behavioriais, sob a forma de algum exame padronizado dos conhecimentos, habilidades ou atitudes dos alunos. Mas não se segue que possamos descrever o ensino, mesmo nos casos em que ele consegue êxito, e muito menos quando não o consegue, como uma estrutura padronizada de movimentos. E engano, portanto, pensar que alguém pode aprender a ensinar simplesmente adquirindo o domínio de algumas estruturas distintivas de movimentos, ou que possamos ensinar as pessoas a ensinar prescrevendo-lhes uma estrutura desse gênero, formulada em regras gerais. O que pode ser razoavelmente feito com vistas a ensinar as pessoas a ensinar apresenta, na verdade, um problema crucial. Bastará observar, por enquanto, que,, sejam quais forem as regras que poderíam ser proveitosamente aplicadas nesse caso, elas serão provavelmente mais comparáveis a regras que são proveitosamente utilizadas no ensino da geometria ou da ciência —e não a regras de ortografia e pronúncia. Para concluir esta fase da nossa discussão: se quisermos decidir se Silva está ou não, durante um período especificado, ocupado numa atividade de ensino, não poderemos nem confiar simplesmente numa só observação momentânea, nem, tampouco, simplesmente confiar nas observações dos movimentos que Silva executa durante o período em questão. Ao contrário, deveremos verificar, à luz de uma informação que normalmente vai bem além do período em pauta, se aquilo que Silva está fazendo tem o objetivo de levar alguém a aprender alguma coisa, se não é pouco razoável pensar que essa atuação seja capaz de efetivar o ensino que se tem por objetivo, e se ela cai dentro das restrições de maneira que são peculiares ao ensino tal como é ordinariamente compreendido — em especial, se se reconhece a suposta capacidade de juízo do aluno, se esse, por exemplo, não é 83

sistematicamente impedido de perguntar ‘Como? ‘Sobre que fundamentos?

‘Por quê? ’ ou

Se Silva está ocupado a ensinar, então ele também está tentando. E evidente que estar tentando fazer alguma coisa nãò significa sempre alcançar êxito. Se o êxito também é atingido, é algo que dependerá de fatores externos ao fato mesmo de tentar: o universo inteiro deve cooperar. Caçar leões é tentar capturar um leão; capturar um leão, porém, significa ter êxito nessa tentativa, e isso é algo que dependerá de bem mais do que simplesmente tentar. Ter sucesso ou ser bem sucedido não constitui uma atividade, segundo o nosso padrão anterior de atividade; não é algo em que alguém se ocupa, nem mesmo algo que se faz. Ninguém se ocupa em ser bem sucedido, por oposição a tentar parecer ser bem sucedido, ou a ser, de fato, bem sucedido. Tampouco, por conseguinte, jamais será apropriado, em resposta à pergunta: «O que é que você está fazendo», dizer: ‘Estou sendo bem sucedido em caçar um leão’, embora seja seguramente correto retrucar: ‘Estou caçando um leão’. A isso caberia ser objetado, com pleno direito, que, conquanto a primeira resposta (que se refere explicitamente ao êxito) seja realmente inapropriada, uma outra resposta, ainda que fazendo referência indireta ao êxito, não o seria: Em resposta a um pedido de dizer o que alguém está fazendo, poderiamos dizer: ‘Está fora, capturando leões’. Ê sem dúvida apropriado dizer que Silva (que saiu numa expedição de caça) está ocupado a capturar leões. Essa objeção, entretanto, supõe erroneamente que existe, em casos como esse, uma referência tácita ao êxito. Sem dúvida, o verbo ‘capturar’ possui utilizações de «êxito», mas possui igualmente utilizações «intencionais», nas quais não implica êxito. Para constatar que as afirmações ilustrativas que foram apresentadas constituem, todas elas, casos de uso «intencional», bastará simplesmente ponderar que nenhuma delas é incompatível com o fracasso. O malogro em capturar um leão não torna falsa a descrição anterior do nosso caçador como alguém que está capturando leões ou ocupado a capturar leões; essa descrição, portanto, não configurava nenhuma predição de que um leão, pelo menos, seria, de fato, capturado. O caso é diferente quando um caçador retorna pretendendo ter capturado um leão; nesse caso, a sua declaração é manifestamente incompatível com o fato de regressar de mãos vazias. Ele não deverá, aqui, ter simplesmente tentado capturar um leão; se ele 84

estiver dizendo a verdade, deverá ter obtido êxito. Assim, permanece de pé a nossa conclusão anterior de que o êxito não constitui uma forma de atividade nem uma espécie de fazer. O êxito, como Ryle sublinhou, constitui, ao contrário, um desfecho apropriado de atividades29 . Mas que exista um desfecho apropriado de uma atividade, isso significa que o fracasso é possível. Tentar é, desse modo, expor-se ao fracasso. As regras apropriadas para uma atividade determinada nos dizem de que maneira devemos conduzir a nossa tentativa a fim de evitar o fracasso, e o que devemos fazer a fim de maximizar a probabilidade de êxito. Tais regras, contudo, não são todas do mesmo tipo. Em certos casos, é possível formular algumas regras úteis que, se forem observadas, garantem êxito; o fracasso na atividade, tomada como um todo, seria ainda 7(n possível, mas nunca ocorrería quando as regras fossem observadas. Chamaremos ‘regras exaustivas’ com relação a uma atividade àquelas regras que garantem êxito. Para ilustrar, consideremos uma criança que, ao escrever, tenta soletrar corretamente a palavra ‘gato’. Poderiamos, nesse caso, formular regras exaustivas úteis da maneira seguinte: «Primeiro (deixando à esquerda o espaço correspondente a uma letra), escreva ‘G’; em seguida, sem deixar nenhum espaço de letra, escreva ‘A’ à direita de ‘G’; ponha depois ‘T’, sempre sobre a mesma linha, à direita de ‘A’, ainda sem deixar espaço; por último, sem deixar nenhum espaço, escreva, na mesma linha, ‘O’ à direita de ‘T’ (deixando agora um espaço correspondente a uma letra à direita de ‘O’)». E possível que a criança, de fato, não observe essas regras, mas elas são exaustivas em relação à atividade e ao contexto em questão, visto que nenhuma criança que as seguir poderá falhar na tentativa de soletrar corretamente ‘gato’ por escrito. Além disso, elas são úteis, dado que uma criança que ignora a ortografia correta de ‘gato’ poderá, não obstante, saber perfeitamente bem como fazer o que as regras dela exigem. Outras regras, pelo contrário, são ‘inexaustivas’. As regras para caçar leões dizem (poderiamos imaginá-lo) aos caçadores o que eles devem fazer ao tentar capturar leões. Tais regras incluem os detalhes de treinamento, de preparação da caçada e de como deverã ser ela conduzida. Poder-se-ia supor que um dos conjuntos que compõem tais regras relativas à caçada seria este: «Aponte a sua arma carregada para o leão; em seguida, quando a distância e 29.

Rylc, G.: The Coneept ofM ind, op. cit.

outras condições forem adequadas, puxe o gatilho». Suponhamos que sejam excelentes o conhecimento e a perícia do caçador, que ele interprete corretamente a adequação das condições, e que siga ao pé da letra esse conjunto de regras, assim como os demais conjuntos componentes. Mesmo assim não fica garantido que algum leão será capturado; o leão poderá saltar para longe exatamente no momento crucial. As regras que devem ser obedecidas ao tentar vencer certos jogos também são, de maneira similar, inexaustivas; alguém pode seguir todas as regras de treinamento e relativas ao jogo e, ainda assim, terminar perdendo o jogo. Também as regras para procurar agulhas em palheiros são, de igual maneira, inexaustivas, pelo menos se se pretende que elas sejam úteis. Por outro lado, como sugerimos anteriormente, as regras para encontrar provas em geometria são identicamente inexaustivas, embora as regras de «computação» da aritmética elementar (as regras de adição, por exemplo) que são ensinadas nas escolas se assemelham mais de perto às regras de ortografia. (Convém notar o fato importante de que as regras matemáticas não são todas de um mesmo tipo.) Sempre é fácil, evidentemente, formular regras exaustivas que não poderão contudo ser úteis. As regras para caçar leões que já foram mencionadas, poderiamos acrescentar, por exemplo, a seguinte: «Mate o leão». Qualquer pessoa que obedecer a essa última regra não pode deixar de capturar um leão; de hábito, contudo, é certo que, se a pessoa não sabe como capturar um leão, tampouco saberá como seguir tal regra. Por outro lado, omitir essa regra inútil tem como efeito deixar inexaustivo o conjunto todo. De maneira semelhante, a alguém que procura conselhos sobre como vencer uma corrida, poderiamos dizer: «Chegue à fita de chegada antes de qualquer um dos outros corredores», e, a alguém que procura uma agulha num palheiro, poderiamos dizer: «Localize a agulha, abaixe-se e pegue-a». E evidente que tais regras não são absolutamente de nenhuma ajuda em situações normais. Infelizmente, não é tão obviamente inútil (embora, de fato, o seja igualmente) dizer a estudantes de geometria que estão procurando uma prova que solucione o problema que têm em mãos: «Encontre uma seqüência ordenada de afirmações que termine com o teorema em questão e que seja tal que, cada afirmação na seqüência, seja, ou um axioma, ou logicamente derivável das suas predecessoras na seqüência». O problema que esses estudantes enfrentam consiste, justamente, em como proceder para encontrar uma seqüência desse gênero, e 86

nenhuma das regras que poderíam ajudá-los a esse respeito é, ao mesmo tempo, capaz de garantir êxito. Considerações análogas poderíam ser aplicadas, como foi sugerido antes, à busca de teorias científicas fecundas. Se voltarmos agora ao caso do ensino, parece claro que, com relação às regras envolvidas, ele se assemelha mais à caça de leões do que à ortografia. Nenhuma regra destinada a aumentar a probabilidade de êxito pode ser simultaneamente exaustiva e útil para o futuro professor — pelo menos até onde possamos enxergar. As regras de ensino podem, no melhor dos casos, melhorar o próprio ensino, no sentido de torná-lo mais eficiente; mas elas não podem eliminar exaustivamente a possibilidade de um fracasso. Podemos, se assim quisermos, chamar o ensino de uma ‘arte prática’, na medida em que ele constitui (falando em termos bem amplos) uma atividade, orientada para uma meta que define o seu êxito, e que se pode melhorar por meio de regras, as quais, todavia, não asseguram êxito. O fornecimento dessas regras é uma das tarefas de maior projeção da pesquisa educacional. Algumas dessas regras excluirão certas formas ineficazes de tentar conseguir êxito no ensino, outras indicarão, dentre as formas Ç* eficazes, quais são aquelas que são relativamente mais eficientes do que outras. Enquanto arte prática, o ensino assemelha-se à medicina, à engenharia e à culinária, por exemplo. Todas essas artes, por outro lado, se distinguem da ciência, entendida como um corpo de afirmações que pretendem ser verdadeiras, sobre a base da me­ lhor evidência disponível. De tais afirmações, faz sentido dizer, que são verdadeiras ou falsas, bem ou mal confirmadas, acreditadas ou desacreditadas. Nenhuma dessas descrições se aplica ao en72) sino, à construção de pontes, aos processos de cozimento ou ao cuidado de pacientes. Essas últimas constituem atividades, e não afirmações. Inversamente, afirmações não constituem algo que se faz ou em que alguém se ocupa*. Quando o termo ‘ciência’ denota um conjunto de afirmações, deverá então ser distinguido dos termos que denotam atividades. Não obstante, as afirmações científicas não aparecem simplesmente, nem crescem por si *

O texto original é: “Conversely, statements are not done or engaged in”. O inglês não autoriza o emprego do verbo ‘to do’ numa cláusula do tipo “ Fazer uma afirmação”, reservando o verbo ‘to make’ para esse contexto. Assim, é incorreto dizer 'X does an statement’, embora seja gramaticalmente impecável dizer ‘X makes an statement’. Nessa passagem de Scheffler, o verbo ‘to do’ significaria um fazer no sentido mais estrito de ‘atividade’, ao passo que ‘to make’, no contexto indicado, seria mais adequadamente traduzido por ‘enunciar’ ou ‘proferir’ {Nota do tradutor).

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mesmas. Elas próprias são produtos da atividade do cientista, para a qual poderiamos empregar o termo ‘investigação científica’. Essa investigação, por sua vez, é ela mesma uma outra dentre as várias artes práticas, como o ensino e a construção de pontes. Também ela constitui algo em que alguém se ocupa, que tem por objetivo o desenvolvimento de teorias adequadas e que se pode melhorar por meio de regras, as quais, entretanto, não as­ seguram o seu êy.ito. Sob esses aspectos, a investigação científica encontra-se no mesmo nível de todas as outras artes práticas. No entanto, há um outro aspecto sob o qual a investigação científica constitui uma atividade central com relação a todas as demais. Os resultados que ela visa são afirmações adequadas a toda evidência factual disponível. E são precisamente afirmações desse tipo que encontramos utilizadas, não apenas para inferências e predições, mas também para a construção de regras de atividade, regras essas, por conseguinte, que são apropriadas a todas as artes práticas, incluindo a própria investigação científica. Essas afirmações fornecem informações a respeito da eficiência relativa dos procedimentos adotados para a realização de determinados resultados, indicando, igualmente, quais são os procedimentos desprovidos de valor. Elas nos dizem, em detalhe, das maneiras nas quais os processos adotados podem entrar em conflito uns com os outros, e das conseqüências que eles possam ter, as quais caem fora do âmbito dos resultados desejados. Toda informação dessa espécie é evidentemente relevante para acentuar a eficácia das atividades em geral. A investigação científica em educação (ou pesquisa educacional), para tomar um exemplo particular, pode produzir afirmações que indicam quais são os processos de ensino mais eficientes, que combinações de procedimentos entram em conflito, quais são os efeitos colaterais, engendrados por determinados procedimentos, que poderão ser esperados. A relação da pesquisa educacional com o ensino poderia, assim, ser comparada à relação da pesquisa física com a engenharia, ou melhor, à relação da pesquisa médica com a prática clínica da medicina. Esse último exemplo, na verdade, serve para lembrar que não se deve simplificar em excesso a relação entre uma arte prática e aquilo que poderiamos chamar de sua ‘ciência subjacente’. Em particular, não se deve supor que a cada arte prática (seja qual for a especificação dos membros dessa categoria vaga) corresponda uma única ciência subjacente. A pesquisa médica não se limita à biologia, e tampouco a pesquisa educacional se restringe à psicologia. As divisões das ciências não 88

são, é certo, muito importantes ou muito constantes em si mesmas; mas seja qual for a realidade que tais divisões possam ter a qualquer momento dado, essa realidade deriva largamente do desenvolvimento autônomo da teoria científica, indepen­ dentemente dos objetivos que definem as artes práticas. Cada vez mais se acredita que a psicologia é relevante para a medi­ cina, a biologia e a química para a psiquiatria, a física para a arte de governar. Não se deve conceber a pesquisa educacional como uma so ciência, mas, ao contrário, como o ponto comum de convergência de várias ciências que incidem sobre a prática educacional. Essas ciências não incluem apenas a psicologia, mas também, por exemplo, a sociologia, a antropologia, a biologia e a economia. Embora não exista nenhuma ciência única, subjacente a cada uma das artes práticas maiores, o grau em que algum corpo de ciência teórica encontra-se subjacente a uma arte determinada constitui um fator importante na determinação do seu grau de profissionalização. Com efeito, as regras que guiam a prática podem incorporar uma certa informação factual, sem que elas, contudo, resultem, em cada caso, de uma investigação científica de um tipo sofisticado. As regras em questão podem pertencer à herança do senso comum, ao folclore, ou à experiência acumulada dos que praticam essas artes. Tais regras, muitas vezes, são de inteira confiança, mas encontram-se isoladas, no sentido de que não estão claramente vinculadas a alguma estrutura teórica de afirmações científicas. Elas são, desse modo, úteis do ponto de vista prático para aquele que pratica a arte em questão, mas elas não o habilitam a compreender ou a explicar, num sentido geral, o que ele está fazendo, ou por que é que os seus procedimentos funcionam30 . Comparemos o conhecimento da eficácia de várias ervas, que outrora guiou a prática médica, com o conhecimento teórico que guia, hoje em dia, a prática médica mais esclarecida. O primeiro encontrava-se isolado, sem proporcionar nenhuma compreensão geral dos procedimentos recomendados. (Isso não significa dizer que tais procedimentos eram ineficazes; em muitos casos, eles anteciparam procedimentos ulteriores e esclarecidos.) A prática médica, em grande parte, deriva o seu estatuto profissional atual das relações que ela mantém com certos corpos 30. Para um tratamento de questões conexas, ver 0 ’Connor, D. J.: An Introduction to the Philosophy o f Education. New York, Philosophical Library, 1957, capítulo 5.

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de teoria científica que progressivamente capacitaram o médico a compreender e a explicar o que ele próprio está fazendo. Essa capacidade significa que o médico não está simplesmente seguindo regras de senso comum, mas, ao contrário, que ele exerce juízo e discernimento práticos ao escolher e ao diversificar o tratamento dos casos individuais à luz do seu equipamento teórico. O problema do estatuto profissional, contudo, é uma questão de grau, e está sujeito a grandes modificações no decorrer do tempo. Já comparamos o primitivo conhecimento das ervas com a pesquisa médica contemporânea. E poucas artes, de fato, podem rivalizar, hoje em dia, com a medicina no que toca ao estatuto profissional. No outro extremo, poderiamos considerar a culinária, a qual ainda consiste, em larga medida, em seguir regras de senso comum, acumuladas por ensaio e erro e (não levando em conta o papel fortemente crescente dós livros de culinária) transmitidas de mãe para filha, de amigo para amigo, de mestre de cozinha para aprendiz, com escassa ou nenhuma compreensão teórica de por que razões os procedimentos recomendados são eficazes, ou de por que se acredita serem eles preferíveis a outros. Evidentemente, não há aqui nenhum continuum definido de maneira precisa, nem tampouco um modo exato de situar as outras atividades, mesmo no nosso grosseiro continuum hipo­ tético, que vai desde a medicina até a culinária. Muitos obser­ vadores, forçados a aventurar uma conjetura a respeito da posição do ensino, localizá-lo-iam no meio, uma pouco mais próximo, talvez, do lado da culinária. Essa atribuição, ainda que correta, constitui, entretanto, uma questão sujeita a modificações, e não há nenhuma razão a priori a impedir que a prática dos professores não seja crescentemente guiada por corpos teóricos de informação científica. Em parte, esse progresso dependerá, de maneira especial, do desenvolvimento autônomo das ciências sociais. Mas também dependerá, em parte, de uma disposição persistente em aplicar a investigação cientí­ fica à prática educacional. Seja como for, a crescente pro­ fissionalização do ensino está, em boa medida, na dependência de tal desenvolvimento, o qual capacitaria mais e mais o professor a julgar e a escolher procedimentos determinados sobre a base de uma compreensão teórica, em lugar de conformar-se simplesmente a especificações de receituários de cozinha, incorporadas à tradição transmitida pelas gerações passadas. Ainda uma vez, isso não significa dizer que essa tradição seja de fato ineficiente, nem que não se deva segui-la na atualidade. Ao 90

contrário, atualmente dispomos, em áreas inteiras da educação, de pouca coisa melhor do que isso em que possamos confiar. E possível, entretanto, manter-uma atitude dupla em relação a essa tradição: estar preparado a seguir a sua orientação na prática cor­ rente, embora encorajando, ao mesmo tempo, o crescimento da investigação científica do ensino e a sua utilização crescente na crítica e na revisão de toda a nossa herança educacional. . Ao concluir essa parte do nosso estudo, é importante que 75J tentemos alcançar, à luz das nossas análises precedentes, uma visão geral da relação existente entre o ensino e a investigação científica. Trata-se de duas atividades ou artes práticas diferentes, reguladas por metas diferentes. Os resultados da investigação poderão ser utilizados para melhorar a prática do ensino, mas os seus objetivos permanecem, no entanto, distintos dos objetivos do ensino. O objetivo da investigação consiste em construir teorias adequadas a todos os fatos, teorias que possam, portanto, ser consideradas como as nossas melhores aproximações das verdades da natureza, e como guias para a ação. No curso do seu trabalho em direção a esse objetivo, a investigação, normalmente, alcança bem mais além do que o mundo prático e quotidiano, ao qual os seus resultados poderão, um dia, ser aplicados. É em virtude dessa abstração do mundo prático que a investigação científica é capaz de propiciar princípios concisos e compreensi­ vos, que explicam o que se passa naquele mundo. Dessa maneira, as metas da investigação levam-na a divergir da esfera das outras artes práticas, cujas preocupações concentram-se no mundo da ação qúotidiana. Os professores, por exemplo, têm por objetivo a realização, aqui e agora, de certos tipos de aprendizado nos seus alunos, e não o desenvolvimento de um aparato teórico capaz de explicar esse aprendizado. Tendo em vista as metas diferentes que operam num e noutro caso, a divergência em questão é compreensível e legítima. O que talvez seja ainda mais importante assinalar, no entanto, é que o aperfeiçoamento da prática não é facilitado mas, ao contrário, retardado pelas tentativas de fechar o hiato entre essas duas formas de atividade. Quanto mais a investigação se restringir a esferas locais e práticas, tanto menos ela será capaz de alcançar uma visão teórica geral e, por conseguinte, de guiar e de explicar a prática. Para que a investigação se relacione eficazmente com a práti­ ca do ensino, a divergência de objetivos dó professor e do pesqui­ sador educacional necessita ser reconhecida como legítima, deven­ do-se também reconhecer que essa divergência exige diferentes 91

distâncias de trabalho em relação ao mundo da prática. Também é necessário, é claro, que exista uma relação de interesse recíproco e de simpatia mútua entre professores e pesquisadores educacionais. Os professores não devem apenas compreender a divergência de objetivos do pesquisador e a sua diferença quanto à orientação prática; devem também ser capazes de compreender as implicações que possuem, para o seu próprio trabalho, os resultados que o pesquisador alcança. Por sua parte, os pesquisadores não devem limitar-se apenas a estimar os objetivos que inspiram o ensino; devem também compreender os seus problemas peculiares que surgem em situações diversas, e estar dispostos a tomar esses problemas como pontos de partida para a pesquisa e como pontos de chegada aos quais os resultados dessa poderão ser aplicados.

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CAPÍTULO V ENSINAR E DIZER O capítulo anterior apresentou algumas considerações gerais relativas ao ensino enquanto atividade. No presente capítulo, tentaremos destacar em detalhe certos traços característicos do ensino, o que será realizado mediante um exame de três paradigmas que representam, cada um deles, usos freqüentes do verbo ‘ensinar’ e, ao mesmo tempo, mediante uma comparação extensa desses usos com utilizações correspondentes do verbo ‘dizer’. Esperamos que essa análise, não somente proporcione uma visão mais plena daquilo a que se refere a palavra familiar ‘ensinar’, mas que ela possa também constituir um auxílio prático, elucidando os debates referentes ao currículo. Começaremos introduzindo três pares de esquemas, cada par constituído por um esquema paradigmático de algum uso de ‘ensinar’ e por um outro esquema, paradigmático de um uso correspondente de ‘dizer’. Na discussão subseqüente, cada esque­ ma será designado por meio da letra que o precede. A. X diz a Y que......................

C. X diz a Y ............................

B. X ensina a Y que................. D. X ensina a Y ..................... E. X diz a Y com o................... F. X ensina a Y como............. * No original, os esquemas são os seguintes: A. “X tells Y t h a t ........................... ” B. "X teaches Y t h a t ..................... ” E. "X tells Y how to

C. “JT tells F t o .......................” D. “X teaches Y t o ..............” ......................”

F. “X teaches Y how to

................”

A preposição ‘to’, que figura nos esquemas C e D, indica que a sentença que completará os espaços vacantes respectivos deverá ser uma cláusula verbal, de força imperativa, do tipo “ . . . to pay his debts” ( .. . que deve pagar suas dívidas), “ . . . to open de window” ( . . . a abrir a janela), “. . . to be honest” ( . . . a ser honesto).

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O verbo ‘dizer’ é particularmente apropriado para a compa­ ração que pretendemos porque, assemelhando-se em flexibilidade a ‘ensinar’, pode ser utilizado das três maneiras representadas pelos três pares de esquemas que temos acima e, por outro lado, porque a sua aplicação relaciona-se estreitamente com a de ‘ensinar’: quase todo ensino, se não todo, envolve um dizer. O verbo ‘instruir’, ao contrário, pode ser utilizado em contextos da forma ‘X instrui a Y. . .’, paralela a D, mas não é utilizado normalmente em contextos da forma ‘X instrui a Y que. . .’ (paralela a B), nem, tampouco, em contextos da forma ‘X instrui a Y como. . .’ (paralela a F). De outra parte, ‘informar’ geralmente é usado em contextos da forma ‘X informa a Y que. . .’, mas não é utilizado nem em contextos da forma ‘X informa a Y como. . .’, nem da forma ‘X informa a Y. . .’. ‘Dizer’, portanto, é mais conveniente como norma de comparação. Comparemos agora A (dizer que) e B (ensinar que). Podemos afirmar que tanto dizer como ensinar envolvem normalmente tentar. À diferença de ensinar, entretanto, dizer não envolve geralmente que X tenta levar Y a aprender. Assim, se X alcança êxito em ensinar a Y que Colombo descobriu a América, Y aprende (em determinado momento) que Colombo descobriu a América. Mas se X logra êxito em dizer a Y que Colombo descobriu a América, não podemos inferir que Y, em dado momento, aprendeu esse fato, ou que alguma vez haverá de aprendê-lo. Para que X tenha êxito em dizer a Y que Colombo descobriu a América (ou seja: para que X lhe tenha realmente dito isso), em geral é preciso, é claro, que certas condições sejam preenchidas pelo ouvinte Y. Por exemplo: Y deveria estar desperto, encontrar-se ao alcance da voz do locutor e ser capaz (pelo menos de alguma maneira; por exemplo, através de intérpretes) de compreender a língua em que a mensagem de X foi expressa. (Se Y está inconsciente, fora do alcance da voz de X, ou é incapaz de compreender a sua língua, poderemos descrever os ativos esforços de X para comunicar-se com Y como um caso de ‘tentar dizer’ ou de ‘dizer’ no seu uso «intencional», recusando nesse caso, todavia, atribuições de êxito.) Não obstanDe maneira análoga, a preposição ‘to ’ também ocorre nos esquemas E e F, exigindo igualmente, como sentença completiva, uma cláusula verbal do tipo : “. . . to swimm” ( . . . como nadar) ou “. . . to bag lions” ( . . . como capturar leões). A preposição nesses casos exclui, por conseguinte, sentenças completivas não-verbais do tipo “. . . Columbus discovered America” (. . . Colombo descobriu a América), essas últimas funcionando como sen­ tenças completivas nos esquemas A e B (Nota do tradutor).

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te, o êxito em dizer certamente não requer que Y aprenda a mensagem de X, nem agora nem em nenhum outro momento. Y pode compreendê-la, e não manifestar nenhum vestígio ulterior da mensagem. Mesmo se Y estivesse distraído em devaneios ou preocupado sob alguma outra forma, e pretende não ter escutado a mensagem de X não é totalmente evidente que, em conseqüência disso, X tenha fracassado em dizer. X poderia replicar: «Sim, eu bem que lhe disse, mas você não escutou — estava muito ocupado a ler o jornal para ouvir». (Mas ele jamais diria, de maneira análoga: Sim, eu bem que lhe disse, mas você estava inconsciente», ou «. . . não entende inglês», ou ainda: «. . .estava muito longe para me ouvir».) De qualquer modo, sejam quais forem as coisas que o êxito em dizer exija, é evidente que o fato de Y aprender não constitui uma delas. Em contraste, que X tenha ensinado a Y (ou seja, que ele tenha tido êxito em ensinar a E) que Colombo descobriu a América é algo que normalmente implica que Y tenha aprendido que Colombo descobriu a América. Em que consiste esse aprendi­ zado, e de que maneira pode ele ser exibido são questões impor­ tantes mas separadas que não nos interessam no momento. E de se presumir que Y deverá ser capaz de enunciar o fato, ou então 78) de aplicar indiretamente aquilo que aprendeu; os detalhes exatos, entretanto, são irrelevantes para os nossos propósitos presentes. Durante quanto tempo Y deverá reter o fato? Também essa cons­ titui uma pergunta cuja resposta precisa (se é que existe tal res­ posta) é independente das nossas preocupações atuais. Y poderá esquecer o fato bem rapidamente, mas, a menos que o retenha durante algum tempo, não se pode dizer com verdade que X al­ cançou êxito em ensinar-lhe que Colombo descobriu a América. A referência à retenção, incidentalmente, indica por que razão testar os conhecimentos adquiridos é relevante para ensinar mas não para dizer. Se, ao submeter-se o aluno a um teste, esse mostra que não houve nenhuma retenção, poderemos razoavelmente inferir (supondo que não houve nenhuma retenção anterior que tenha evaporado no momento do teste) que o ensino não conseguiu êxito. No entanto, em circunstâncias idênticas, o dizer poderia perfeitamente ter alcançado êxito. O que significa, para Y, ter aprendido que Colombo descobriu a América é algo que constitui, como já dissemos, uma questão importante, mas que resta independente dos nossos interesses atuais. Não devemos supor, contudo, que todas as afirmações de forma B são semelhantes quanto ao tipo de aprendizado que é indispensável para o êxito do ensino. Com 95

efeito, algumas dessas afirmações merecem classificação em separado, porque são significativamente diferentes, sendo cruciais em debates educacionais e, além disso, porque servem para distin­ guir melhor as formas A das formas B. Passaremos a nos referir a sentenças do tipo ‘Colombo descobriu a América’ como uma ‘sentença-que-enuncia-um-fato’. É importante agora reconhecer que as formas A e B podem receber, nos seus espaços vacantes respec­ tivos, não apenas sentenças-que-enunciam-fatos, mas também sentenças-que-enunciam-normas, como, por exemplo, ‘Deve-se pagar as próprias dívidas’ ou ‘A honestidade é a melhor atitude’31. As­ sim, podemos falar a respeito de dizer a alguém que ele deve pagar as suas dívidas, ou de ensinar a alguém que a honestidade é a melhor atitude. São afirmações do último tipo que, depois de al­ gumas observações preliminares, nós deveremos examinar. As distinções entre «fatos» e «valores» ou «normas», assim como as distinções entre afirmações «factuais» e afirmações «éticas» ou «morais», têm sido extensamente discutidas pelos . filósofos, e contribuições penetrantes foram apresentadas por (79 muitos filósofos analistas recentes. Essas questões são difíceis e complicadas, e nenhuma solução única conquistou aceitação unânime, embora inúmeros pontos importantes tenham sido trazidos à luz32. A distinção aqui mencionada entre sentençasque-enunciam-fatos e sentenças-que-enunciam-normas não tem, entretanto, a intenção de constituir uma resposta global a esses problemas. Dessa maneira, a distinção que sugerimos aqui deixará inteiramente em aberto a questão de saber se as sentenças-queenunciam-normas são «cognitivas», «verdadeiras ou falsas» ou «empiricamente confirmàveis», deixando igualmente em aberto, por outro lado, a questão de saber se as verdades não possuem, elas mesmas, uma força «normativa». Do começo ao fim da nossa 31. A categoria de sentenças-que-enunciam-normas, introduzida aqui, não somente inclui sentenças como ‘Deve-se pagar as próprias dívidas’, as quais, usualmente, se julga que exprimem princípios morais, mas também sentenças como ‘A honestidade é a melhor atitude’, as quais pode se considerar que exprimem máximas práticas, sem fundamentação em princípios morais propriamente ditos. A categoria de sentenças-que-enunciam-normas, portan­ to, será aqui consideravelmente mais ampla do que em outras interpretações que encontramos habitualmente nas discussões de ética. A interpretação mais ampla é adotada aqui por ser mais apropriada às questões educacionais que constituem a nossa preocupação principal neste trabalho. 32. Para um levantamento crítico dessas questões e das abordagens mais recentes em relação a elas, ver Aiken, H. D.: “Moral philosophy and education” , Harvard Educational Review, 25:39, (Winter) 1955, reimpresso em Scheífler, l.: Philosophy and Education, op. cit.

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discussão aqui, as sentenças-que-enunciam-normas são aquelas que se prestam, de si mesmas, a uma peculiar ambigüidade, quando utilizadas para preencher os espaços vacantes nos contextos da forma 'Y aprendeu que. . Em que consiste essa ambigüidade? Se se afirma que Silva aprendeu que a honestidade é a melhor atitude, em geral poderemos interpretar o que é afirmado de duas maneiras distintas. E é o que poderá ser feito mais ou menos do seguinte modo. De um lado, podemos supor que Silva adquiriu a norma ou padrão de ação a que se fazia referência no enunciado em questão, que ele desenvolveu uma tendência a exercer na sua própria conduta uma política de honestidade, e que aprendeu a comportar-se honestamente ou a ser honesto. Nao é necessário que a aquisição da norma ou do padrão de ação represente, segundo essa interpretação, tudo o que Silva apren­ deu; mas ela constitui uma parte indispensável desse aprendizado, de tal forma que alguma evidência da desonestidade flagrante de Silva seria considerada como uma refutação da asserção segundo a qual ele aprendeu que a honestidade é a melhor atitude. De maneira análoga, qualquer evidência de que um aluno recusou-se desafiadoramente a devolver o dinheiro que ele admite ter tomado emprestado mostraria, segundo essa mesma interpre­ tação, que ele não aprendeu que deve pagar as suas dívidas. No que segue, referir-nos-emos a essa interpretação como ‘ativa’. De outro lado, também poderiamos ter uma interpretação não-ativa das afirmações ‘Silva aprendeu que a honestidade é a melhor atitude’ ou ‘Silva aprendeu que deve pagar as suas dívidas’. De acordo com essa interpretação nãò-ativa, não é necessário, para que essas afirmações sejam verdadeiras, que Silva tenha adquirido os padrões de ação a que nelas se faz referência. Assim, não se suporia que a evidência de que Silva é desonesto refuta a primeira delas, nem se consideraria, tampouco, que a evidência do não-pagamento deliberado de dívidas reconhecidas refuta a segunda afirmação. Tal evidência poderia, no máximo, ser considerada como um signo da fraqueza de vontade de Silva, da sua irracionalidade ou da «inconsistência» entre o seu comportamento e a sua crença. Mas ela não seria considerada incompatível com a verdade das próprias afirmações. No uso corrente, são frequentes ambas as interpretações, ativa e nãoativa, das nossas afirmações sobre o ‘aprendizado’, e é claro que uma e outra são legítimas do ponto de vista teórico. Isso significa, porém, que essas afirmações a respeito do ‘aprendizado’ são ambíguas, e torna-se necessário estabelecer claramente qual das duas interpretações está sendo de fato adotada, se quisermos 97

que decisões unívocas sejam - assumidas a respeito de casos importantes a que tais afirmações se refiram. A ambiguidade que acabamos de assinalar, todavia, ocorre apenas quando certas sentenças preenchem o espaço vacante no esquema 'Y aprendeu que. . .’. São essas sentenças, que resultam na ambiguidade mencionada, que estamos chamando aqui de sentenças-que-enunciam-normas, sem prejulgar a questão de saber se elas possuem ou não um estatuto cognitivo. Todas as demais são sentenças-que-enunciam-fatos, também sem prejulgar a questão de saber se elas possuem ou não um estatuto normativo. Examinemos agora qual é o resultado da utilização de uma sentença-que-enuncia-um-fato para completar o espaço vacante no esquema lY aprendeu que. . .’, e vejamos por nós mesmos um caso em que a ambiguidade assinalada deixa de aparecer. Consideremos, então, a afirmação: ‘Pereira aprendeu que Colom­ bo descobriu a América’. Para que apareça a ambigüidade em questão, é necessário mostrar que, tanto uma interpretação ativa, quanto uma não-ativa, poderão ser aplicadas a essa afirmação. Uma interpretação ativa exigiría que pensássemos que Pereira adquiriu a norma ou padrão de ação a que se refere a sentença que completará o espaço vacante. No nosso exemplo, entretanto, nenhuma norma desse gênero é, de fato, referida por essa sentença. Ou, para dizê-lo de modo mais simples: ao passo que se considera, muitas vezes, que o fato de Silva aprender que a honestidade é a melhor atitude implica que ele aprendeu a ser honesto; e, de igual modo, ao passo que também se considera, muitas vezes, que o fato de Pereira ter aprendido que deve pagar as suas dívidas implica que ele adquiriu a tendência a pagar as suas dívidas — nunca se considera, ao contrário, que o fato de Pereira ter aprendido que Colombo descobriu a América implica que ele aprendeu a ser Colombo ou a ser a América, ou a ser parecido com um ou outro, ou a adquirir a tendência a descobrir a América. A ambigüidade não surge nesse caso, porque é impossível aqui levar a efeito a interpretação ativa. Podemos agora reunir vários fios ao mesmo tempo. Obser­ vamos que certas sentenças (aquelas que enunciam-normas) são capazes de tornar ambíguos alguns dos contextos de ‘aprendiza­ do’ particulares nos quais elas estão encaixadas. Na interpretação ativa desses contextos, o aprendizado a que elas se referem inclui a aquisição da própria norma ou padrão de ação que é indicado pela sentença-que-enuncia-uma-norma. Na interpretação não-ati­ va, ao contrário, tal aquisição não constitui uma parte indis­ pensável do aprendizado que está em questão. Vimos, além disso, que existem outras sentenças (as que enunciam-fatos), com 98

relação às quais a ambiguidade em pauta deixa de aparecer, uma vez que a interpretação ativa fica excluída dos contextos de ‘aprendizado’ em que elas estão encaixadas; a única interpretação apropriada, nesses casos, é a não-ativa no sentido de que a aquisição-da-norma não está implicada pela afirmação de ‘apren­ dizado’. Lembremos agora que ao diferenciar A e B, descobrimos que o êxito em ensinar que. . . implica um aprender q u e ... correspondente, ao passo que o êxito em dizer que. . . não implica nada desse gênero. Para as afirmações de forma A, portanto, não faz nenhuma diferença, com relação às condições de êxito, que as sentenças que preenchem os seus espaços vacantes sejam sentenças-que-enunciam-fatos ou sentenças-queenunciam-normas. Pois a diferença que existe entre sentençasque-enunciam-fatos e as que enunciam-normas é uma diferença relativa ao tipo de aprendizado que está sendo descrito quando elas estão encaixadas em contextos de ‘aprender que. . .’. Dessa maneira, as condições que Y deve realizar a fim de que X tenha tido êxito em dizer-lhe que a honestidade é a melhor atitude são, em geral, idênticas às condições que Y deve cumprir a fim de que X tenha tido êxito em dizer-lhe que Colombo descobriu a América; por exemplo, Y deveria estar acordado, ao alcance da voz de X , capaz de compreender a língua em que a mensagem de X foi transmitida etc. Se nos voltarmos agora para as afirmações de forma B, encontramos, ao contrário, que a substituição, nos espaços a serem preenchidos, de sentenças-que-enunciam-fatos por sentenças-que-enunciam-normas pode produzir, eventualmente, uma diferença com respeito às condições de êxito do ensino que está em questão. Tal êxito, com efeito, implica um aprender que. . . correspondente, e quando a sentença completiva é, aqui, uma sentença-que-enuncia-uma-norma, e que recebe, no contexto, uma interpretação ativa, o aprendizado em questão envolve a aquisição, por parte de Y, da norma ou padrão de ação a que se faz referência. O êxito no ensino, nesse caso, vem a implicar uma espécie de aquisição-de-norma, coisa que não ocorria anterior­ mente com relação às sentenças completivas que enunciam-fatos. Por conseguinte, o fato de que X tenha tido êxito em ensinar a Y que a honestidade é a melhor atitude, passa a implicar algo que não é implicado pelo êxito de X em ensinar a Y que Colombo descobriu a América; com efeito, esse fato vem a implicar a aquisição, por parte de Y, de uma norma ou padrão de ação, o qual é indicado pela sentença completiva correspondente. Pode-se 99

agora testar o êxito obtido no ensino, examinando se a conduta de Y conforma-se à norma em questão; a ausência dessa conformidade excluirá o êxito. A diferença que acabamos de apontar com relação às condições de êxito do ensino (quando se substituem, nos espaços vacantes das afirmações de tipo B, sentenças-que-enunciam-fatos por sentenças-que-enunciam-normas) seria interessante, mas nao tão grave quanto efetivamente é, se não fosse pela ambiguidade que discutimos anteriormente, em conexão com as sentençasque-enunciam-normas. Pois essa ambigüidade resulta, com efeito, da possibilidade simultânea de uma interpretação não-ativa e de uma interpretação ativa dos contextos de ‘aprender que. . . ’, dos quais fazem parte sentenças-que-enunciam-normas. E quando se confere uma interpretação não-ativa ao aprendizado exigido pelo êxito do ensino ao qual se refere uma determinada afirmação B, a aquisição, por parte de Y, da norma que vem referida pela sentença completiva de B não constitui um requisito do êxito do ensino. Uma interpretação não-ativa desse gênero assimila, de fato, a afirmação B dada a afirmações cujos espaços vacantes são completados por sentenças-que-enunciam-fatos, em relação às quais é forçosamente impraticável qualquer interpretação ativa. O que há de mais grave, portanto, na substituição por sentençasque-enunciàm-normas em contextos B, é que esses contextos se vêem, dessa maneira, contaminados de uma ambigüidade acerca do êxito de ensino que está envolvido. Tal ambigüidade é da mais alta importância para o estudo da educação moral e para a relação entre conhecimento e conduta 33, justificando, por conseguinte, uma especial atenção aos contextos B que contêm sentenças-que■enunciam-normas, e, também, que dediquemos esforços especiais a fim de resolver a ambigüidade nesses contextos. Em que consiste o perigo dessa ambigüidade? Se a ambigüidade permanecer não resolvida, seria encorajada uma falácia peculiar, de desastrosas conseqüências, tanto práticas como teóricas. (Vamos supor que, quando for adotada uma interpretação ativa dos componentes que enunciam normas, concordemos, por razões de concisão, em dizer que toda a afirmação de tipo B recebe, por inteiro, uma interpretação ativa, no sentido de que a aquisição da norma por parte de Y constitui, simultaneamente, um objetivo perseguido por X e algo indispen­ sável ao êxito do ensino. De maneira análoga, diremos que toda a 33. Para uma discussão de problemas conexos, ver Roland, J.: “On ‘Knowing how’ and ‘Knowing that’ ”, The Philosophical Review, 67:379, (July) 1958.

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afirmação B recebe, por inteiro, uma interpretação não-ativa quando o seu componente que enuncia uma norma for interpretado de maneira não-ativa, assim como em todos os casos nos 83) quais a sentença que completa o seu espaço vacante for uma y sentença-que-enuncia-um-fato.) Imaginemos agora que tenhamos estabelecido, para a satisfação de todo o mundo, o êxito do ensino a que se refere uma dada afirmação de tipo B que .tem por componente uma sentença-que-enuncia-uma-norma, na sua inter­ pretação não-ativa. (Suponhamos que tenhamos reunido reconhe­ cida evidência desse êxito, evidência de tipos que se presume geralmente serem adequados para afirmações de tipo B com componentes que enunciam fatos; isto é, nós submetemos Y a interrogatório sob as condições controladas, apresentamos várias afirmações para que ele as ajuizasse, fizemos com que exprimisse algumas inferências relativas ao componente em questão, e assim por diante, mas deixamos de examinar a sua conduta no que concerne à aquisição-de-normás.) Seria falacioso inferir que, com isso, teremos estabelecido o êxito da nossa afirmação de tipo B, na sua interpretação ativa, isto é, que se tenha mestrado que Y adquiriu a norma referida pelo componente que enuncia-uma-norma. É possível que a norma tenha sido, de fato, adquirida, mas não se pode supor que isso tenha ocorrido, sobre o fundamento de que Y satisfez um conjunto de critérios de êxito de um tipo completamente diferente. A falácia, nesse caso, se vê facilitada pela ambigüidade das afirmações de tipo B e constitui, talvez, uma das raízes do «verbalismo» que encontramos em educação moral, o qual acredita que o êxito no desenvolvimento do caráter moral é o produto necessário do êxito no ensino (não-ativo) de fórmulas de natureza ética. Uma falácia similar também é encorajada quando, ao refletir sobre os seus objetivos ao ensinar a Y, X não consegue distinguir entre tentar efetivar a aquisição, por parte de Y, de uma certa norma ou padrão de conduta, e tentar fazer com que Y aprenda a norma de uma maneira semelhante ao modo como ele aprende algum fato histórico; em suma, quando X não estabelece claramente se o fato de Y se comportar contrariamente à norma constitui algo que ele, X, está tentando eliminar. Podemos vincular a ambigüidade que está em discussão a um antigo problema de filosofia, ou seja: a questão de saber se a virtude pode ser ensinada. Interpreta-se Sócrates no sentido de

que teria suposto que ninguém, voluntariamente e com pleno conhecimento, decide fazer o mal ou rejeitar o bem 34 . Se alguém sabe o que é o bem, não pode deixar de escolhê-lo. Assim, a virtude pode ser ensinada. Para tanto, será preciso simplesmente que tenhamos êxito em ensinar às pessoas a saber o que é o bem, e isso bastará para assegurar uma conduta virtuosa. Em oposição a esse ponto de vista, a maioria dos demais filósofos sustentou que os homens frequentemente rejeitam aquilo que acreditam ser o bem, e escolhem o mal em pleno conhecimento. As religiões ocidentais, de maneira análoga, sustentaram que o conhecimento não é suficiente para a virtude, e que uma vontade justa também é necessária. Em virtude da sua liberdade, o homem pode pecar deliberadamente, embora sabendo que o objeto da sua escolha é o mal. Diz-se então que o ensino moral não é adequado, posto que ele se limita a iluminar o intelecto; necessitamos também fortalecer a vontade e sensibilizar a consciência. À luz da nossa análise precedente, parecería que o problema, tal como acabamos de formulá-lo, podería não ser tão funda­ mental como se supõe. Se tratarmos lX ensina a Y que a honestidade é a melhor atitude’ em analogia com ‘X ensina a Y que Colombo descobriu a América’, estaremos conferindo à primeira uma interpretação não-ativa, a qual impõe que julgue­ mos que esse ensino foi bem sucedido, mesmo em certos casos nos quais Y não consegue incorporar a norma de honestidade à sua própria conduta. Segue-se daí que a sua aquisição dessa norma não dependerá do êxito do ensino moral ao qual Y esteve submetido. Isso significa dizer que a conduta virtuosa não é automaticamente assegurada por um ensino moral bem sucedido. Por outro lado, se conferirmos uma interpretação ativa à afirmação ambígua: ‘X ensina a Y que a honestidade é a melhor atitude’ (dissociando-a, em conseqüência, da afirmação: ‘X ensina a Y que Colombo descobriu a América’), não será possível, nesse caso, julgar que o ensino ao qual ela se refere teve êxito, a menos que Y adquira a norma de honestidade. Segue-se daí que, se o ensino moral obteve êxito, o aluno efetivamente incorpora a norma de honestidade à sua própria conduta. E isso significa dizer que a conduta virtuosa é automaticamente assegurada pelo êxito do ensino moral.

34. Ver, por exemplo, Frankena, W. K.: “Toward a philosophy of moral education” , HarvardEducatiom lReview, 28:300, (Fali) 1958, especialmente a seção I.

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No entanto, posto que a oposição dos pontos de vista, tal como a explicamos, repousa sobre interpretações diferentes de uma noção ambígua, é engano supor que eles estejam realmente em conflito. Cada um dos pontos de vista reconhece os casos autênticos reconhecidos pelo outro, mas descreve-os diferente­ mente. Falar uma linguagem diferente, contudo, não significa necessariamente discordar. O caso crucial é aquele no qual o aluno Y demonstra que lhe foi ensinado com êxito, no sentido não-ativo, que a honestidade é a melhor atitude; e que continua, mesmo assim, a agir de maneira incompatível com a adoção da norma de honestidade. Ora, os pontos de vista que temos diante de nós não entram em desacordo, entretanto, a respeito desse ca­ so. Cada um deles admite a possibilidade do caso e reconhece que ele pode, de fato, ocorrer. Um dos pontos de vista, todavia, des­ creverá o caso dizendo que a Y, ensinaram-lhe com êxito que a honestidade é a melhor conduta, embora ele não se comporta de acordo com a norma; o outro ponto de vista, ao contrário, descre­ verá o caso dizendo que, conquanto Y reconhecidamente não se comporta de acordo com a norma, tampouco lhe terá sido ela en­ sinada com êxito. Para dizê-lo em termos mais tradicionais: ambos os pontos de vista admitem que a apreensão intelectual de princí­ pios morais e o seu reconhecimento intelectual podem ocorrer juntamente com uma rejeição desses princípios ao nível da con­ duta; um dos pontos de vista, porém, descreve esse caso como um malogro do ensino, ao passo que o outro o descreve como um malogro da vontade. Se for correta a análise que acabamos de fazer, e se esses pontos de vista não entram realmente em conflito com referência a casos reais, então não se poderá dizer, tampouco, que um dos dois seja superior ao outro com relação a esses casos. Qualquer um deles, desde que sustentado de maneira consistente, propor­ ciona uma maneira de descrever os fatos com exatidão. O único transtorno sério (e ele é considerável) surge quando se passa de um ao outro num mesmo fluxo de discurso. Vejamos uma ilustração das consequências de tal passagem. Comecemos, por exemplo, com a opinião segundo a qual a aquisição de uma conduta virtuosa é indispensável para o êxito do ensino moral, isto é, decidimo-nos por interpretações ativas de todas as afirmações de ‘ensinar que. . .’ que possuem compo­ nentes que enunciam normas. A seguir, decidimos que, nas nossas escolas, ensinaremos aos alunos que a honestidade é a melhor atitude, isto é, decidimos fazer com que eles adquiram essa norma. Em consequência disso, poderemos empregar método de 103

exortação e de discussão com o intento de desenvolver a apropriada conduta governada pela norma. Tendo concluído o nosso ensino, descobrimos que constitui um problema extrema­ mente difícil o de decidir se nele fomos bem sucedidos ou não. Pois, para efetuar essa decisão, deveriamos determinar de que maneira os alunos, em geral, estão efetivamente se comportando em situações nas quais poder-se-ia presumir que a norma de honestidade seja relevante. Face a uma dificuldade como essa, é bem possível que nos vejamos tentados a abandonar a interpre­ tação ativa das afirmações de ‘ensinar’, de tal forma que possamos assimilar a testagem de ‘A honestidade é a melhor atitude’ à testagem de ‘Colombo descobriu a América’, enquanto unidades de mesma natureza do repertório que o aluno aprendeu. Sucumbindo a essa tentação, passamos então a interrogar o aluno e a empregar outras técnicas verbais, a fim de determinar se, na interpretação não-ativa de ‘ensinar’, tivemos realmente êxito. A seguir, entretanto, voltamos (de maneira mais ou menos incons­ ciente) à interpretação ativa, e passamos a pretender, sem dispor de outras evidências, que estimulamos o comportamento honesto e, inclusive, que o asseguramos. Com efeito, como podería alguém ter sido ensinado exitosamente o que é o bem e, ao mesmo tempo, rejeitá-lo voluntariamente? Ignoramos, assim, o fato de que a obviedade retórica dessa pergunta nada mais é do que o produto da interpretação ativa, a qual, para começo de conversa, já abrange uma conduta apropriada. O perigo prático reside, nesse caso, em confundir exortações e testes verbais com o desenvolvimento efetivo de uma conduta moral determinada. Voltemo-nos agora para uma outra comparação entre afirmações de tipos A e B. Vimos anteriormente que o êxito que X obtém em dizer ã Y que as coisas são deste ou daquele modo não exige que Y aprenda que as coisas são deste ou daquele modo, ao passo que um aprendizado correspondente é exigido para que X tenha êxito em ensinar a Y que as coisas são deste ou daquele modo. Dessa maneira, X poderá ter tido êxito, por exemplo, em dizer a Y que Colombo descobriu a América, sem, contudo, ter êxito em ensinar-lhe que Colombo descobriu a América. Nós passaremos a exprimir sucintamente esse fato dizendo que Á não implica B. (Fica entendido, é claro, que, em todas essas comparações entre duas formas de sentenças, as duas cláusulas que completam os espaços vacantes respectivos deverão ser consideradas como idênticas, e que deveremos, ao mesmo tempo, supor que os dois ‘P s nomeiam a mesma pessoa, e que os dois ‘P s , igualmente, referir-se-ão a uma mesma pessoa.) 104

Será verdade, contudo, que B implica A? Por exemplo: se X teve êxito em ensinar a Y que Colombo descobriu a América, poderemos inferir daí que X teve êxito em dizer a Y que Colombo descobriu a América? Muitos parecem ter defendido essa opinião. Aparentemente, tais autores imaginaram uma boa parte do conteúdo do aprendizado de Y como se ele fosse composto de fatos ou idéias impressos em sua mente pelos professores, mediante uma atividade tal como a de dizer. O aprendizado de fatos foi, por conseguinte, interpretado como uma espécie de duplicação, por parte do aluno, das idéias ou das afirmações produzidas originariamente pelo professor35. Embora muitos casos de ensino realmente envolvam uma atividade de dizer, a inferência generalizada de B a A parece injustificada. Suponhamos, por exemplo, que o professor não diga realmente ao aluno que Colombo descobriu a América, dizendo-lhe apenas certas coisas que, com o auxílio de outras ^ afirmações que se presume que o aluno já conheça, lhe permitirão 87) inferir tal informação. Suponhamos, inclusive, que o professor não diga nada dessa espécie ao estudante, mas providencie para que esse leia textos que afirmem ou impliquem que Colombo descobriu a América. E suponhamos, finalmente, que as afirma­ ções com as quais o estudante é confrontado simplesmente sugerem, mas não implicam, que Colombo descobriu a América. Deveremos negar, em cada um desses casos supostos, que o professor tenha sido bem sucedido em ensinar ao aluno que Colombo descobriu a América? Existem, sem dúvida, muitos casos concretos como esses, nos quais atribuímos um ensino bem sucedido a alguém que jamais disse ao aluno aquilo que foi ensinado com êxito a esse último. Não se pode, portanto, dizer que B implica A. Dizer que X disse a Y que isso e aquilo significa, grosso modo, dizer alguma coisa a respeito das elocuções efetivas de X\ significa referir algumas dessas elocuções em citação indireta. Por outro lado, dizer que X ensinou a Y que isso e aquilo, não significa referir, nem mesmo indiretamente, às elocuções de X. Já-assinalamos que A não implica B, visto que (resumida­ mente) B, para que tenha êxito, requer o aprendizado, enquanto que A não inclui tal exigência. A força desse fato reside nisto que existem casos em que o aprendizado não se realiza e, por 35. A esse respeito, ver, por exemplo, Price, K.: “On ‘having an education’ ”, Harvard Educational Review, 28:320, (Fali) 1958.

TOS

conseguinte, em que não houve ensino bem sucedido, e nos quais, entretanto, efetivamente houve êxito na atividade de dizer. Não se deve pensar, todavia, que, todas as vezes em que se realizaram tanto o aprendizado como o êxito no dizer, o êxito no ensino também teve lugar. O seguinte exemplo, mostrando o contrário, nos apresentará, portanto, uma outra razão para negar que A implica B. Imaginemos que Silva, no dia 3 de junho, se encontre na sala de espera do gabinete de um médico. Depois de algum tempo, a enfermeira aparece para dizer-lhe que o médico achou prudente suspender o tratamento planejado para aquele dia. E vamos supor que ela tenha sido bem sucedida em dizer-lhe isso. Suponhamos, além disso, que Silva não apenas escutou o que disse a enfermeira, mas que também o aprendeu, e que ele guarde durante vinte anos esse fragmento de informação. (Podemos suspeitar de que existem razões profundas para um tão longo aprendizado, relacionadas com o psiquismo de Silva.) E pouco provável que queiramos descrever essa situação dizendo que a enfermeira ensinou a Silva que o médico achou prudente suspender o tratamento marcado para o dia 3 de junho, mesmo se estivermos bastante inclinados a afirmar que a enfermeira disse a ele que o médico achou mais prudente suspender o tratamento daquele dia de junho. Embora um aprendizado tenha, de fato, ocorrido aqui, a enfermeira não estava tentando produzi-lo. Na realidade, ela estava dizendo a Silva algo cujo propósito, naquela ocasião, era de fazê-lo deixar o gabinete. O aprendizado que, de fato, ocorreu, não é um signo de êxito no ensino, pois não houve ensino, tal como o entendemos normalmente. (Constitui um fato geralmente importante, entretanto, que aquilo que é dito por X sem a intenção de realizar um aprendizado por parte de Y, pode, mesmo assim, resultar num aprendizado por parte de Y.) Se passarmos agora, depois dessa longa discussão, a um exame dos esquemas C (dizer a)* e D (ensinar a)*, estaremos em O texto original é o seguinte: “ If we turn now, after this long discussion, to a consideration of the C (telling to) and D (teaching to) schemas. . A preposição ‘to’, que figura nesses esquemas, indica que a sentença que completa os espaços vacantes respectivos deverá necessariamente ser uma cláusula verbal, de força imperativa, do tipo: “. . . to pay his debts” ( . . . que deve pagar as suas dívidas), “. . . to open the window” ( .. . a abrir a janela), “. . . to be honest” ( . . . a ser honesto) etc. A diversidade de funções impede que essa preposição receba uma tradução unitária e adequada em português. Apenas e exclusivamente para evitar que se considere a possibilidade de uma sentença completiva do gênero “ X tells Y a story” ("X conta uma estória a r ’) ou “X teaches Y mathematics” (“X ensina matèmática a 7 ” ), decidimos traduzi-la arbitrariamente pela preposição ‘a’, a menos, é claro, que o contexto imponha outra versão (Nota do tradutor).

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condições de assinalar certas analogias importantes e, ao mesmo tempo, certas divergências igualmente importantes desses dois esquemas com relação ao par de esquemas A (dizer que) e B (ensinar que). No que toca às relações de implicação entre C e D, podemos dizer, desde logo, que elas são as mesmas que entre A e B, isto é, não há implicação em nenhum dos dois sentidos. Assim, pode se ter êxito em dizer a alguém que ele deve ser honesto, sem que ele aprenda a ser honesto, ao passo que não se pode ter êxito em ensinar a alguém a ser honesto sem que ele aprenda a ser honesto. Por conseguinte, nos casos em que aprender a ser honesto não se realiza, o êxito em dizer pode ainda ocorrer, mas não o êxito em ensinar. Isto é, C não implica D. Além disso, há casos em que foi ensinado com êxito às crianças a serem honestas sem, no entanto, que se tenha dito a elas que deveríam ser honestas, assim como existem casos análogos (pelo menos alguns) em que elas foram ensinadas a ser atenciosas, serviçais ou amáveis com as outras pessoas sem que jamais se tenha dito a elas que fossem atenciosas, serviçais ou amáveis com os outros. E ainda que esses casos fossem contestados, havería certamente um acordo unânime em que algumas pessoas foram ensinadas a apreciar música sem que jamais alguém lhes tivesse dito que apreciassem música. Qualquer caso desse gênero, uma vez reconhecido, é suficiente para mostrar que D não implica C. Poderiamos agora construir, com relação a C e D, um exemplo paralelo ao caso do tratamento médico de Silva que foi cancelado, a fim de mostrar de que maneira dizer algo para algum objetivo imediato (que não o aprendizado) pode, contudo, mesmo sem envolver ensino, resultar no fato de Silva aprender? A tentativa nessa direção poderá pôr em cena algumas divergên­ cias interessantes dos esquemas C e D com relação ao par de esquemas A e B. Imaginemos que Silva está esperando na ante-sala do dentista e que a enfermeira agora consegue dizer-lhe que passe para o gabinete. Dificilmente afirmaríamos, nesse caso, que ela ensinou-lhe a entrar no gabinete, conquanto tenha obtido êxito èm dizer-lhe que o fizesse. Ao contrário do nosso exemplo anterior, porém, tampouco poderiamos supor aqui que Süva aprendeu a entrar no gabinete. Dizer que Silva aprende a entrar no gabinete implica, normalmente, que ná muitas ocasiões envolvidas, isto é, significa sugerir a existência de alguma cláusula tácita de tipo ‘sempre-que’. Mas os termos mesmos do nosso exemplo excluem a- possibilidade de tal implicação no caso que temos diante de nós, A enfermeira está dizendo a Silva que entre no gabinete no momento mesmo da sua elocução, e nenhuma 107

cláusula geral de tipo ‘sempre-que’ está ligada a essa elocução. Silva pode ou não escutar a enfermeira mas, seja qual for o caso, ele não aprende, nessa única ocasião, a entrar no gabinete. (Do mesmo modo, não se podería dizer que lhe ensinaram, nessa única ocasião, a entrar no gabinete.) As afirmações de ‘aprender a’ e de ‘ensinar a’ exigem, normalmente, uma certa generalidade com respeito às ocasiões de ação, mas esse requisito não é válido nem para as afirmações de ‘aprender que’ e de ‘ensinar que’, nem, tampouco, para o dizer. Alguns exemplos adicionais dessa exigência de generalidade poderão ser oportunos. Em cada um dos exemplos que seguem, as circunstâncias são de tal sorte que elas eliminam a plausibilidade de uma cláusula tácita de tipo ‘sempre-que’, excluindo, por conseguinte, a generalidade em questão. Ao passo que ‘dizer que se deve’* continua sendo aplicável nesses casos, ‘aprender a’ e ‘ensinar a’ não se aplicam. Consideremos, em primeiro lugar, o caso seguinte: ‘Ela disse a ele que abrisse a janela, pois estava ficando muito quente na sala’. O objetivo que a levou a dizer essas palavras está ligado à temperatura do momento; ela não está lhe dizendo que abra a janela sempre que fizer muito calor na sala, nem, tampouco, está lhe dizendo para sempre abrir a janela. Ao contrário, ela quer que ele abra a janela nesse momento. Nesse caso, ele poderá ou não abrir a janela, mas jamais diriamos ‘Ele aprendeu (naquele momento e naquela ocasião) a abrir a janela porque estava ficando muito quente na sala’, nem ‘Ela ensi­ nou-lhe a abrir a janela porque estava ficando muito quente na sala’. Consideremos, finalmente, esse outro exemplo: ‘Ele disse a eles que esperassem por quinze minutos’. Suponhamos que isso seja dito a respeito de um homem que deixa seus amigos a fim de transmitir um recado, sem saber se isso tomaria mais de quinze minutos, atrasando assim o passeio que faziam juntos, ou não. Diz a eles que lhe esperem por apenas quinze minutos e que con­ tinuem sem ele se não estiver de volta até então. Também nesse caso, não está subentendida nenhuma cláusula do tipo ‘sem­ pre-que’. Ele não está lhes dizendo que sempre (sempre que surgir uma ocasião qualquer) esperem quinze minutos, ou que sempre o

Traduzimos a expressão original ‘telling to’ por ‘dizer que se deve’ para melhor exprimir a força imperativa que ela possui no presente contexto (Nota do tradutor).

façam sob certas circunstâncias especificadas. Ele quer que aguardem quinze minutos apenas nessa ocasião. Nesse caso, não poderemos dizer, seja o que for que fizerem, que ‘Eles apren­ deram a esperar quinze minutos (nessa ocasião)’, ou então ‘Ensinou-lhes a esperar por quinze minutos’. Nesses exemplos, ‘dizer’ é inteiramente apropriado, mas não o são nem ‘aprender a’, nem ‘ensinar a’. Dizer que X disse a Y 90) que deve. . .* significa (como já foi previamente notado com relação a ‘dizer que’) citar indiretamente a elocução de X\ independentemente do que X tenha dito, quer seja de alcance geral ou específico, essa citação indireta do conteúdo daquilo que foi dito sempre permanece exequível. Por outro lado, no entanto, dizer que X ensinou a Y a. . . ou que Y aprendeu a . . . não significa dizer nada sob a forma de uma citação das elocuções particulares que X tenha proferido; significa, ao contrário, dizer alguma coisa acerca dos «esquemas de ação» de Y, alguma coisa que abrange mais do que uma única ocasião. Significa dizer o que é que se pode esperar de Y em outras ocasiões, se o aprendizado, de algum modo, não se perdeu. Se ele aprendeu a levantar-se sempre que uma senhora entra na sala, pode se esperar que, sob essas circunstâncias, Y levantar-se-á (a menos que tenha, de alguma forma, esquecido esse aprendizado, de alguma maneira que presume-se seja possível especificar independentemente). Assim, a generalidade das afirmações de ‘aprender a’ e ‘ensinar a’ é algo que não tem contrapartida direta nas afirmações de tipo B e nas afirmações de ‘aprender que’, cujas sentenças completivas não fazem referência (em todos os casos) àquilo que pode se esperar de Y. Por exemplo, ‘Y aprendeu que Colombo descobriu a América’ não diz que pode se esperar de Y que ele descubra a América; nesse caso, não há lugar, portanto, para uma especifica­ ção geral das condições em que poderia ocorrer tal descoberta. Seria fácil, por conseguinte, forjar um caso como o exemplo do tratamento de Silva que foi cancelado, no qual houvesse um aprender que . . . , embora a sentença que preenche o espaço vacante seja bem específica e, ademais, embora ela seja dita a Silva apenas para realizar algum objetivo particular numa única ocasião. Mas quando tentamos arranjar um exemplo similar para ‘aprender a’, encontramo-nos bloqueados pela exigência de generalidade que foi examinada. Poderiamos, contudo, encontrar *

“To say that X told Y to...” Cf. a nota de.tradução precedente. 109

algum outro caso que seja paralelo ao exemplo do tratamento cancelado? Isto é: comecemos por tentar satisfazer a exigência de generalidade, admitindo, portanto, que se possa dizer que Silva aprende a . . . Em segundo lugar, tratemos de encontrar uma circunstância na qual a mesma coisa lhe seja dita, mas sem a intenção de fazer com que ele aprenda. Nesse caso, deixaríamos de ter ensino, embora tenhamos aprendizado. Em suma, teríamos aqui o nosso paralelo desejado. A dificuldade está em preencher todos esses requisitos ao mesmo tempo. Se cumprimos com a exigência de generalidade (digamos, por exemplo, que Silva aprende a entrar no consultório do médico sempre que se acende uma luz vermelha em cima da porta), o problema reside em supor que a enfermeira lhe tenha dito isso sem ter a intenção de que ele aprendesse a entrar no consultório sempre que a lâmpada vermelha sobre a porta fosse acesa. Se ela lhe disse isso, no entanto, ela pretendia, presumível- U)1 mente, que ele seguisse as suas instruções; ora, seguir instruções ' ' gerais consiste, justa e exatamente, em aprender a fazer deter­ minadas coisas em ocasiões particulares. Se esse argumento for realmente correto, então é totalmente impossível construir um exemplo paralelo para C e D. Que esse argumento é impecável, é algo, além disso, que está sugerido pelo fato de que, no caso que acabamos de considerar, pode-se razoavelmente dizer que a enfermeira ensinou a Silva a entrar no gabinete do médico sempre que a lâmpada vermelha sobre a porta for acesa. s/ Descobrimos, então, alguns fatos importantes a respeito de C e D, relativos, notadamente, ao que foi denominado ‘exigência de generalidade’. Ambas as sentenças que completam os espaços vacantes em C e D são imperativas do ponto de vista da forma gramatical. As afirmações imperativas, no entanto, variam quanto ao seu grau de generalidade. ‘Espere aqui durante quinze minutos!’ demanda uma ação determinada na ocasião única da sua elocução, ação essa que poderá ou não estar próxima. Não há, contudo, aprendizado envolvido nesse caso, a menos que se entenda que está em questão aqui um certo «esquema geral de ação», que se reitera sob circunstâncias repetíveis; ora, lá onde o aprendizado não está envolvido (mesmo teoricamente), o ensino, tampouco, não poderá estar envolvido. C, portanto, não tendo nenhuma relação com o aprendizado, nem enquanto meta, nem enquanto condição de êxito, tanto pode receber, nos seus espaços vacantes, imperativos gerais como não-gerais, ao passo que D, que envolve claramente o aprendizado, sob uma e outra forma, só tomará imperativos gerais como sentenças completivas. A genera110

lidade poderá, é claro, não ser explícita, mas apenas dada por entendida. Assim, em lX ensinou Y a ser honesto’, entende-se que o imperativo aqui é geral, e até universal: ‘Seja honesto sempre’. Em outros casos, o contexto pode deixar claro que é um imperativo não-universal que está envolvido, embora o imperativo permaneça ainda geral; por exemplo, ‘Sua mãe ensinou-lhe a dizer «obrigado»’ pode ser interpretado mais adequadamente como: ‘Sua mãe ensinou-lhe a dizer «obrigado» sempre que lhe dão alguma coisa’. No sentido ilustrado pelos vários exemplos que estivemos considerando, poder-se-ia então dizer que ensinar (a) envolve regras36 , e não simplesmente ordens específicas, e que a confusão que habitualmente se faz entre essas duas categorias (enquanto ambas podem ser gramaticalmente enunciadas em forma imperativa) constitui um erro. Ordens específicas limi. tam-se a uma única situação. Embora possam ser emitidas pelo 92J professor durante o período de ensino, a meta do professor não consiste meramente em assegurar obediência exclusivamente nas ocasiões da sua emissão. Ele deseja, ao contrário, que os seus alunos adquiram «esquemas de ação» que deverão sobreviver ao período de ensino e que, na sua estabilidade, tornarão supérflua (mesmo se esta fosse concebível) uma série especifica e contínua de ordens. Há um mundo de diferença entre esses «esquemas de ação» e a obediência a ordens específicas, entre o desenvolvi­ mento de tais «esquemas» e a emissão de tais ordens. Tendo comparado B a A e D a C n o que toca à «implicação» tal como a explicamos acima, apliquemo-nos agora a uma comparação transversal dos dois esquemas de ‘ensino’ B (ensinar que) e D (ensinar a). B, evidentemente, não implica D, nem D implica B, visto que a gama de sentenças-completivas admissíveis em B é diferente, do ponto de vista dos fatos gramaticais, da gama de sentenças-completivas admissíveis em D. ‘X ensina a Y que Colombo descobriu a América’ torna-se, quando passamos de B a D conservando a sentença-completiva de B, ‘X ensina a Y a Colombo descobriu a América’. De outra parte, passando de D a B com a sentença-completiva de D, obteríamos, por exemplo, a transição de: X ensina Y a ser sempre cortês’ para: X ensina a Y que ser sempre cortês’. O segundo membro de cada um desses 36. Para uma maneira diferente, embora relacionada com a nossa, de explicar as regras no ensino, ver Hare, R. M.: The L anguage o f M orais. London, Oxford at the Clarendon Press, 1952, p. 56, reimpresso em Scheffler, I.: P h ilo so p h y a n d E d u ca tio n , op. cit. 111

pares não é gramatical, e permanece não-gramatical quando substituímos X ensina etc.’ por ‘X tem êxito em ensinar etc.’. O primeiro membro de cada par, entretanto, não é agramatical e, além disso, é muitas vezes verdadeiro. E mais: a troca, no primeiro membro de cada par, de X ensina etc.’ por X tem êxito em ensinar etc.’, também será muitas vezes verdadeira. Assim (dito em termos aproximativos), o êxito com relação a B ou com relação a D não acarreta êxito com respeito ao outro, nos casos em que se tratar, como sempre, das mesmas sentenças-completivas. Considerações análogas vigoram para A e C. Existe, no entanto, um ponto de algum interesse que uma comparação transversal permite assinalar aqui. Vimos que são ambíguas as afirmações de tipo B que possuem componentes que enunciam normas, e que, no caso de uma interpretação ativa, o êxito do ensino ao qual essas afirmações se referem implica uma aquisição-de-norma que deverá ser de um tipo apropriado. Em certos casos, essa aquisição-de-norma se exprime por intermédio de afirmações de forma D. Consideremos, por exemplo, X ensina a Y que se deve ser honesto’ na sua interpretação ativa, conforme a qual o êxito exige que Y adquira a norma, isto é, que ele aprenda a ser honesto. Num caso como esse, poderiamos muito bem dizer que ensinar a Y que se deve ser honesto implica ensinar a Y a ser honesto. A implicação, nesse caso, não é do tipo que discutimos até aqui, porquanto as sentenças-completivas são diferentes, e a especificação precisa da gama de afirmações B, para as quais vale o presente tipo de implicação, configura um problema que nem sequer tentamos enfrentar aqui. A razão pela qual mencionamos, neste lugar, esse tipo de implicação reside em considerar as suas incidências sobre a educação moral. Para tal propósito, necessitamos considerar apenas alguns exemplos sele­ cionados, como aqueles que examinamos acima, e, por exemplo, a implicação de X ensina a Y que se deve pagar as próprias dívidas’ para X ensina a Y a pagar as suas dívidas’. A questão de saber se as implicações inversas são válidas em tais exemplos é de grande interesse para a educação moral. Ensinar a Y a ser honesto implica ensinar a Y que se deve ser honesto? Ensinar a f a pagar as suas dívidas implica ensinar a Y que se deve pagar as próprias dívidas? (Em ambos os casos, é claro, daremos uma interpretação ativa à cláusula ‘ensinar que’.) Ê possível conseguir ensinar a Y a ser honesto sem no entanto conseguir fazer com que Y aprenda que se deve ser honesto? Isto é: pode Y aprender a ser honesto sem aprender que ele deve ser honesto? Pode ele aprender a pagar as suas dívidas sem aprender 112

que se deve pagar as próprias dívidas? Essas duas últimas são as perguntas cruciais e, se refletirmos, constataremos que elas recebem respostas afirmativas. Há pessoas que aprenderam, de fato, a ser elas mesmas honestas, mas que jamais aprenderam que se deve ser honesto, que jamais acreditaram nisso, tendo, inclusive, descrido de tal princípio. Há pessoas que aprenderam a pagar as suas dívidas, mas que jamais acreditaram que se deve pagar as próprias dívidas. Aprender a ser honesto significa adquirir uma certa norma, um « padrão de conduta». Não ha' crença implicada aqui. A noção de crença não é nem mesmo aplicável em tais casos. Aprende-se a ser honesto, mas não se acredita ser honesto37 . Pelo contrário, aprender que Colombo descobriu a América significa (sejam quais forem as outras coisas envolvidas) vir a acreditar que ele o fez. De maneira análoga, aprender que se deve ser honesto significa vir a acreditar que se deve sê-lo (sejam quais forem as outras coisas que estiverem envolvidas —nesse caso, pelo menos a aquisição da norma). Ensinar a alguém que se deve ser honesto envolve, portanto, não apenas ensinar-lhe a ser honesto (mesmo 94) na interpretação ativa), mas, ao mesmo tempo, tentar fazê-lo adquirir a crença de que se deve ser honesto (fazê-lo adquirir tal crença dentro das restrições de maneira que são apropriadas ao ensino e que foram discutidas anteriormente). Pode-se dizer, por conseguinte, que as afirmações de tipo B, em contraste com as afirmações D, nunca se referem somente à aquisição de normas, mas também a uma crença na norma, a alguma espécie de reconhecimento intelectual da sua autoridade. Ensinar a Y que se deve ser honesto, portanto, não significa simplesmente tentar fazer com que Y seja honesto; significa também fazer com que Y seja honesto por sua própria convicção. A distinção examinada aqui é de especial importância para a educação moral. Há tipos de conduta ou «padrões de ação» que desejamos que os alunos adquiram e, com relação aos quais, não nos importa particularmente quais bases racionais eles possam adotar ou, até, se sequer adotam alguma justificação qualquer. São desse gênero, por exemplo, as formas mínimas de cortesia. Também há tipos de conduta que, sem nenhuma hesitação, apoiamos por referência ao interesse próprio de cada um; por exemplo, as práticas de segurança ou a preparação para uma

37. Ver Scheffler, I.: “Comment”, H arvará 1958.

E d u c a tio n a l R e v ie w ,

28:337, (Fali) 113

vocação determinada. A conduta moral, por outro lado, num sentido importante do term o, é algo mais do que meramente um comportamento que se conforma a alguma norma inde* pendentemente especificada, é algo mais, também, do que um comportamento desse tipo governado por qualquer justificação que sustente a norma. A sua justificativa deve, num certo sentido, ser «objetiva», «imparcial» ou «desinteressada» na sua susten­ tação da norma. O que isso significa constitui algo notoriamente difícil de caracterizar, mas encontra-se refletido na linguagem geral e impessoal dos juízos morais (por exemplo: ‘deve-se’), os quais normalmente são utilizados para exprimir algumas justifi­ cações, mas não outras. A justificação da condüta moral de um homem necessita, poderiamos talvez dizer, ser exprimível por ele na linguagem dos juízos morais38. Um exemplo bastará para ilustrar esse ponto. Três pessoas podem ter, todas elas, aprendido a ser honestas; a primeira, contudo, pode ser honesta sem sê-lo de maneira reflexiva, simplesmente porque foi criada num ambiente protegido, no qual nunca foi permitido que a opção de agir desonestamente se apresentasse; a segunda pode ser honesta porque acredita ser a honestidade essencial para o seu progresso na profissão que adotou, ou porque acha que a desonestidade ser-lhe-ia emocional­ mente onerosa; ao passo que a terceira pode ser honesta simplesmente porque acredita que se deve ser honesto. O comportamento das duas primeiras conforma-se à norma de honestidade, mas dificilmente poderia ser caracterizado como uma conduta moral (ou tampouco imoral), no sentido do termo que estivemos considerando aqui. Se a conduta moral constitui a nossa meta em educação moral, estamos, na realidade, nos empenhando em realizar não somente a aquisição, na prática, de normas de um tipo determinado, mas também em realizar o apoio consciente a normas desse tipo, de maneira «objetiva» ou «imparcial». Ensinar a honestidade como se se tratasse de uma espécie de regra de segurança ou de uma forma convencional de cortesia, é algo que pode realizar eficazmente o primeiro objetivo, sem, contudo, promover em nada o segundo objetivo. Por outro lado, não se pode negar que uma tentativa séria de realizar o segundo objetivo 38. Um artigo importante, com o qual estou em débito pelo seu tratamento dessas questões e de outras com elas relacionadas, é o de Frankena, W. K.: “Toward a philosophy of moral education”, H arvard E d u c a tio m l R e view , op. cit. 114

pode retardar ou até impedir a realização do primeiro. (Encorajar uma crítica reflexiva e imparcial das normas pode conduzir a uma rejeição das nossas normas.) Como professores, podemos tentar promover ambos os objetivos submetendo as próprias normas em que estamos interessados no primeiro objetivo ao tipo de inspeção reflexiva que encorajamos no segundo. Já estabelecemos previamente que C e D tomam imperativos como sentenças-completivas, e que C constitui um relato indireto da elocução efetiva proferida por alguém. Vimos igualmente que D não implica C, que se pode ter conseguido ensinar a alguém a ser honesto sem que se tenha dito a ele que seja honesto, ou ter conseguido ensinar a alguém a apreciar música sem que se tenha dito a ele que deve apreciar música. Devemos agora assinalar que alguns dos imperativos admissíveis em C acarretam consigo, entretanto, a sugestão de que X foi desarrazoado em ter proferido aquilo que tais imperativos estão sendo usados (em C) para indiretamente relatar; ao mesmo tempo, nenhuma sugestão de que X não foi razoável é veiculada pelo uso desses mesmos imperativos dentro de contextos do tipo D. Por exemplo: é «irrazoável», num sentido importante, dizer a alguém que aprecie a música, que deve gostar de Shakespeare, que compreenda a condição dos pobres, visto que as coisas exigidas por tais dizeres não são coisas que normalmente possamos decidir fazer. Não obstante, se alguém de fato dissesse a Y: ‘Aprecie a música!’, ‘Goste de Shakespeare!’, ou ‘Compreenda a condição dos pobres!’, as suas elocuções poderíam ser repor­ tadas por meio de uma afirmação de tipo C. A afirmação C: X disse a Y que compreenda a sorte dos pobres’ está correta, limitando-se a reportar o imperativo proferido por X. Mas 96) (acreditando na afirmação C)r pensaremos que X não foi razoável " ao proferir um tal imperativo. As afirmações D correspondentes, todavia, não acarretam nenhuma sugestão correspondente da irrazoabilidade. (Compa­ re-se: ‘X ensinou Y a apreciar música’, ‘ . . . a gostar de Shakespeare’, ‘. . . a compreender a condição dos pobres’.) Talvez possamos dizer que tais exemplos reforçam a não-implicação de D a C. Pois não somente são eles casos de ensino bem sucedido (tal como é referido por D) que não são, ao mesmo tempo, casos de um dizer bem sucedido (tal como vem referido por C), mas eles constituem, também, casos em que esse dizer sugeriría a irrazoabilidade de X. Não apenas existem pessoas a quem se conseguiu ensinar a apreciar Bach, e às quais jamais se 115

disse, de fato, que apreciassem Bach; mas se isso lhes tivesse sido dito, aqueles que lhes dissessem seriam tidos por irrazoáveis. Tais exemplos ressaltam a independência do ensino em relação ao dizer, pelo menos no que toca aos casos De C. Ensinar a alguém a apreciar Bach, a compreender a teoria quântica, a gostar de ballet, a simpatizar com os oprimidos, constitui algo inteiramente diferente de dizer-lhe que faça tais coisas. E possível, na verdade, que alguém lhe diga essas coisas, mas esse dizer seria considerado irrazoável, enquanto que o ensino correspondente não o seria. O ensino, de fato, não procede normalmente, aqui, por meio da emissão de imperativos para­ lelos, mas mediante vãrios outros meios, através dos quais emergem e florescem a estima, a fruição e a compreensão. Acabamos de examinar os imperativos considerados desarrazoados por exigirem coisas que ninguém pode simplesmente decidir fazer. Há um outro sentido, mais fraco e relativo, em que os imperativos também podem ser irrazoáveis, embora não irrazoáveis no sentido forte ou absoluto que já foi discutido. Por outro lado, contudo, essa irrazoabilidade relativa é peculiarmente importante em conexão com o ensino. Suponhamos que você, enquanto professor, tivesse que apresentar uma lista de proble­ mas elementares de aritmética a um menino e que lhe dissesse: Resolva-os!’. Não se pode dizer que você exigiu que ele faça algo que ninguém pode simplesmente decidir que vai fazer. Mas pode muito bem acontecer que este menino em particular não recebeu o conhecimento aritmético prévio que é necessário (estava doente quando o método apropriado para solucionar esses problemas foi explicado, e jamais aprendeu como resolvê-los). Este aluno certamente não pode decidir fazer aquilo que você exigiu-lhe que faça. Ou então imaginemos o imperativo (não irrazoável no sentido forte) seguinte: ‘Traduza para o grego a passagem que você tem diante de si!’, endereçado a um aluno que ainda não estudou grego. Esse aluno não pode decidir que vai fazer aquilo que o imperativo exige dele. Os dois imperativos de ambos os exemplos são irracionais em relação às pessoas respectivas às quais eles são endereçados, e também em relação aos momentos respectivos em que são emitidos. A relatividade com respeito ao momento é importante, pois, com o aprendizado apropriado, o menino poderá mais tarde tentar resolver os problemas, e o aluno que antes não estava em condições de pôr-se a traduzir a passagem para o grego poderá, mais tarde, tornar-se capaz de se ocupar dessa tarefa. Desse

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modo, imperativos que não são fortemente ou absolutamente irrazoáveis, podem, mesmo assim, ser irrazoáveis para certos alunos em determinadas circunstâncias, e essa irrazoabilidade relativa poderá depender, pelo menos em parte, da natureza do ensino prévio. Quando o ensino apropriado é bem sucedido, ele servirá então para tornar razoáveis, em relação aos alunos, um grande número de imperativos que, anteriormente, não eram razoáveis em relação a esses alunos. Vimos acima que, no caso de imperativos irrazoáveis, no sentido forte, que são componentes de afirmações de tipo D, o ensino normalmente procede por outras vias que não pelo dizer correspondente. Fica claro agora que, mesmo quando não se trata de imperativos irrazoáveis no sentido forte, eles podem, apesar disso, ser irrazoáveis em circunstâncias particulares, nas quais um apropriado ensino (como) preliminar poderá servir para torná-los razoáveis numa ocasião ulterior. Dizer (que se deve)* mostra-se aqui, não como um modo de ensinar (como), mas como um produto de ensinar (como). (Evidentemente, é verdade, no entanto, que o dizer, que o ensino prévio tornou razoável, pode, por sua vez, converter-se num modo de ajudar a ensinar coisas novas,ou de reforçar coisas já sabidas.) Na discussão que acabamos de concluir, vimos a importância de ser capaz de decidir fazer aquilo que um imperativo exige, e vimos, além disso, que essa capacidade pode depender, pelo menos em alguns casos, de já ter aprendido como fazer o que é exigido. A afirmação de tipo F (ensinar como) encontra-se, portanto, relacionada com a afirmação C, no sentido de que o ensino bem sucedido de como fazer alguma coisa (referido por F) pode tornar razoáveis certas atividades de dizer que algo deve ser feito (referido por C). Essas atividades de dizer que algo deve ser feito podem, por sua vez, constituir modos de ensinar a fazer essas mesmas coisas; mas C, como já vimos, não implica D. Devemos agora comparar, de maneira sistemática, F com os demais esquemas e, muito particularmente, com D. E fácil dar-se conta de que E (dizer-como) não implica F (ensinar-como), e que tampouco F implica E, mesmo quando, no caso de habilidades complexas, dizer-como pode ser mais ou menos necessário a ensinar-como. Também é óbvio, além disso, que B não implica F, nem F implica B, visto que as sentenças completivas de F são imperativas, ao passo que as sentenças completivas de B são indicativas. A comparação mais importante * O texto original é o seguinte: “Telling (to) is here shown not as a . . . ”. Sobre as razões da versão adotada, ver a nota de tradução à p,106 (N o t* d o tra d u to r). 117

aqui é a de F com D, pois esses esquemas são muitas vezes confundidos, como já veremos em detalhe. Devemos reconhecer, desde o início, que uma forma D é frequentemente utilizada como abreviação de uma forma F. Ensinar alguém a resolver problemas de aritmética consiste, normalmente, em ensinar-lhe como resolvê-los; ensinar alguém a nadar consiste (tal como geralmente o entendemos) em ensi­ nar-lhe como nadar. Não estaremos aqui interessados nessas abreviações e, por conseguinte, quando nos referirmos a D, estaremos nos referindo àquelas afirmações de tipo D que não podem ser reproduzidas, com equivalência, por afirmações F correspondentes. Poder-se-ia talvez sugerir que não existe nenhuma afirmação D desse gênero. Consideremos, entretanto, o caso seguinte: X ensina a Y a pagar as suas dívidas’. Essa afirmação não pode (normalmente) ser substituída por 'X ensina a Y como pagar as suas dívidas’. A primeira pode referir-se à formação do caráter, ao passo que a segunda pode referir-se a instruções sobre o uso adequado de talões de cheque, de ordens de pagamento e assim por diante. A consideração desse exemplo mostra, além disso, que, embora ensinar alguém como fazer alguma coisa seja, por vezes, necessário para ensinar-lhe a fazê-la, certamente não é suficiente. Inúmeras pessoas, peritas no uso adequado de talões de cheque e de outros instrumentos similares para o pagamento de dívidas, não pagam, contudo, as suas dívidas, não adquiriram à norma de pagar dívidas. F, portanto, não implica D,‘enquanto D, por sua vez, tampouco implica F. Com efeito, mesmo se o fato de saber como pagar dívidas é essencial para pagá-las, ensinar Y a pagá-las não envolve, em todos os casos, ensinar Y como pagá-las; é possível que ele já saiba como fazê-lo. F e D são distintos, conforme acabamos de dizer. Por razões de conveniência, podemos dizer (de maneira aproximada) que D trata de normas e de aquisição-de-normas, ao passo que F trata mais de habilidades e de aquisição-de-habilidades. Com frequên­ cia, ao discutir as matérias do currículo, confundimos os dois. Por exemplo, falamos de «cidadania» como se se tratasse de um conjunto de habilidades, ao passo que o nosso objetivo educa­ cional consiste, na realidade, não simplesmente em ensinar aos alunos como ser bons cidadãos, mas, em especial, em ensinar-lhes a ser bons cidadãos; não simplesmente como fazer para votar, mas a votar. Falamos em proporcionar-lhes as «habilidades requeridas para uma vida democrática», quando, na verdade, 118

99) estamos interessados em que adquiram hábitos, normas e inclinações democráticas. Para tomar um outro exemplo: falamos de propiciar aos alunos a «capacidade de pensar criticamente», quando o que realmente desejamos é que eles adquiram os hábitos e as normas do pensamento crítico. Talvez um motivo para assimilar a aquisição-de-normas à aquisição-de-habilidades resida nisto que as habilidades, num sentido importante, são moralmente neutras, ao passo que as normas não o são; as habilidades, para o seu exercício, exigem decisões suplementares, ao passo que as normas caracterizam os próprios padrões de decisão. Ampliar a categoria das habilidades significa, na verdade, parecer reduzir o alcance da responsabi­ lidade moral do professor. Tal responsabilidade, todavia, não pode ser esquivada por uma simples troca de nomes; ela pode apenas ser encoberta ao olhar. O inculcar hábitos, normas e inclinações é algo que permeia todas as práticas educacionais conhecidas, e essas práticas não constituem, portanto, uma mera questão de habilidades. Contrariamente a um dito da autoria de Ryle, ensinar não consiste apenas em equipar deliberadamente3y . Os exemplos que acabamos de considerar ilustram uma utilização prática dos nossos esquemas na elucidação das discus­ sões curriculares. Há outras utilizações desse gênero que serão ilustradas mais adiante. Todas elas se articulam em função da tradução de conversações curriculares abstratas em uma ou outra forma específica representada pelos nossos esquemas. Podemos começar mencionando a tentativa de Ryle de desintelectualizar a nossa concepção das habilidades, de negar que um desempenho habilidoso seja governado por uma referência explícita a regras ou a informações precedentes40. Saber como nadar não é ter memorizado uma grande quantidade de informações sobre a 39. Ryle, G.: op. cit., p. 310, reimpresso em Scheffler, 1., Philosophy and Education, op. cit., p. 133. Oque está em questão, portanto, não é - ao que me parece - saber se a inculcação de normas deverá ter lugar, mas, antes, saber quais normas deverão ser inculcadas, e de que maneira deverão sê-lo; por exemplo, se as nossas normas devem ser restritivas ou generosas, autoritárias ou democráticas, se elas devem ser dogmaticamente instiladas pelas nossas instituições educacionais ou se devem ser ensinadas - explicadas e submetidas ao juízo independente dos alunos em momentos cruciais durante os períodos de ensino apropriados. Aesse respeito, ver Perry, R. B.: “Education and the science of education”, in Realms o f Value. Cambridge, Harvard University Press, 1954, reimpresso em Scheffler, 1.: Philosophy and Education, op. cit., p. 15. 40. Ryle, G.: op. cit., capítulo II, reimpresso em Scheffler, I.: Philosophy and Education, op. cit., p. 92. 119

natação e de regras de natação, a serem continuamente consultadas durante o ato de nadar. As informações e as regras podem auxiliar a iniciar o aprendizado de uma habilidade, mas não se deve, por isso, identificar o exercício da habilidade com uma referência contínua à informação e às regras. Em suma: saber-como constitui algo distinto de saber-que. Ao colocar a questão dessa maneira, toma-se fácil constatar que Ryle está introduzindo uma cunha entre as afirmações de tipos B e F. Manter, esses esquemas diante dos nossos olhos e tentar traduzir as nossas discussões a respeito do ensino e do currículo nas for­ mas específicas que eles representam, é algo que provavelmente tornará mais fácil de evitar o erro que Ryle está atacando. Em discussões a respeito dos objetivos curriculares, nada é mais fácil e, ao mesmo tempo, nada confunde mais do que rotular toda uma área com algum substantivo abstrato. A tradução de tais discussões abstratas nas formas particulares dos nossos esquemas suscitará, muitas vezes, problemas de decisão curricular que, até então, permaneceram ocultos. Freqüentemente, por exemplo, tomamos «ciência» como um elemento do currículo, e passamos imediatamente a discutir o «seu» papel e o «seu» peso relativo no currículo. Suponhamos que tivéssemos que traduzir as nossas idéias nas formas B, F e D. Seríamos então forçados a esclarecer os nossos objetivos em relação a esse elemento putativo. Tentaremos ensinar que a ciência é desta ou daquela maneira, que ela nos diz isto e aquilo a respeito do mundo? Ou, ao contrário, tentaremos, antes de tudo, ensinar como pensar cientificamente? Ou então tentaremos, na reali­ dade, ensinar aos nossos alunos a serem científicos no seu pensamento e no seu modo de abordar os problemas? Ê claro que não estamos sugerindo aqui que uma, e somente uma, dessas perguntas deverá ser respondida afirmativamente. Nosso propó­ sito foi simplesmente o de assinalar que os esquemas forçam o surgimento de questões como essas e, indiretamente, obrigam a ordenar, em conseqüência, os valores e a escolha das técnicas requeridas para responder a elas. Para tomar um exemplo afim: a «religião» freqüentemente é tomada como um elemento curricular, e os debates a respeito da política educacional se exaltam sobre o lugar desse elemento. Ora, a expressão ‘ensino da religião’ é ambígua. Se a conside­ rarmos de acordo com B (com componentes que enunciam-fatos), nós a conceberemos no sentido de que X ensina a Y que a religião é desta ou daquela maneira, isto é, no sentido, aproxima120

damente, de fornecer informações relativas à religião como um conjunto de instituições, doutrinas e atitudes históricas. Se a tomarmos segundo D, nós a entenderemos no sentido de que X ensina Y a ser religioso — o que é bem diferente do caso anterior41 . E óbvio que alguém pode, consistentemente, ser a favor de ‘o ensino da religião’ em um dos dois sentidos e, ao mesmo tempo, opor-se a ele no outro. Ser claro a respeito dos debates soore a religião no currículo exige uma clareza elementar com relação à interpretação que deverá ser conferida à frase ‘o ensino da religião’. Em resumo: os esquemas que formaram a base para as discussões do presente capítulo tinham o duplo propósito simultâneo de, por um lado, oferecer importantes pontos de enfoque para uma análise da idéia de ensino e, por outro lado, de apresentar alguma utilização prática na elucidação das discussões relativas ao currículo.

41. Ver White, M.: “Religion, politics and the higher learning", Confluence, 3:402, 1954, reimpresso em Scheffler, I.: Philosophy and Education, op. cit., p. 244, e em White, M.: Religion, Politics and the Higher Learning, op. cit. 121

UMA PALAVRA FINAL E possível acrescentar uma palavra final às discussões precedentes, mas nenhuma palavra final pode ser dita sobre os problemas com os quais elas se ocuparam. Pois as tarefas da elucidação filosófica, assim como as da investigação científica, são intermináveis. Dar por terminado um empreendimento de qualquer um dos dois tipos significa encontrar-se imediata­ mente confrontado com uma grande variedade de empreendi­ mentos conexos que estão a reclamar insistentemente a atenção. Chegados a este ponto, podemos simplesmente assinalar o que aqui foi feito, e tentar situá-lo num contexto, sublinhando a sua estrutura geral e vinculando o que foi realizado a questões que ainda aguardam um tratamento ulterior. Na primeira parte deste estudo, tentamos analisar a força lógica de três tipos de afirmações que ocorrem repetidamente nas discussões educacionais. Examinamos vários tipos de definição, ocupamo-nos dos slogans educacionais e consideramos algumas metáforas de educação escolar que aparecem com grande frequência. Em cada um desses casos, desenvolvemos certas maneiras gerais de manipular as afirmações em questão. Assim, por exemplo, distinguimos as definições estipulativas, descritivas e programáticas, sugerimos a conveniência de considerar de maneira independente a intenção literal e a intenção prática dos slogans, e indicamos a comparação de metáforas alternativas como um modo de determinar as suas limitações, bem como de esclarecer o seu tema comum. Em todo esse estudo, sublinhamos a importância do contexto para a determinação dos critérios pertinentes de apreciação lógica, fazendo referência especial às discussões educacionais que incidem transversalmente sobre as esferas científica, prática e ética da ação humana. Em conseqüência, advertimos, por exemplo, do perigo que representa transplantar acriticamente metáforas de contextos científicos para contextos 122

(j02)

práticos, e sublinhamos a possibilidade de que, com a modifi­ cação das circunstâncias sociais, varie também a apreciação moral das ênfases práticas dos slogans. Conseqüentemente, também, indicamos que submeter uma definição científica a uma utilização programática não elimina, mas, ao contrário, exige urgentemente uma avaliação moral autônoma do programa que essa utilização veicula. Em geral, enfatizamos repetidas vezes a significação que reveste a distinção entre as questões de ordem prática e moral, e outras questões, com as quais elas são frequentemente confun­ didas. A esse respeito, por exemplo, distinguimos as questões relativas à conveniência de uma definição ou à sua exatidão descritiva, dos problemas referentes ao valor do programa que tal definição pode veicular. Nessa mesma linha, igualmente, argu­ mentamos que a crítica dos slogans tomados como doutrinas literais, e a crítica das doutrinas que lhes deram origem necessitam ser. complementadas por uma apreciação autônoma das suas intenções práticas e dos movimentos práticos com os quais eles estão associados. Nosso principal propósito nessa primeira parte do livro foi o de apresentar algumas estratégias gerais para a apreciação crítica de definições, slogans e metáforas educacionais, e de desenvolver aquelas categorias e distinções que poderiam facilitar essa apreciação. Ao tentar realizar esse objetivo, concentramo-nos em diversos exemplos particulares, dissecando tais espécimes, não tanto por eles mesmos, mas pelo intuito de ganhar uma compreensão interna da anatomia lógica da espécie, embora vários desses espécimes (por exemplo, a metáfora ‘orgânica’ e as definições divergentes de ‘currículo’) possuam um evidente interesse direto de tipo educacional. Fica claro, por conseguinte, que o que foi feito nesses primeiros capítulos nos leva diretamente a uma grande variedade de questões específiôas referentes ao estudo intensivo de outros espécimes de tipos afins. Isto é: as categorias e estratégias gerais que foram aqui apresentadas necessitam ser aplicadas a casos proeminentes; e talvez seja melhor considerá-las como hipóteses destinadas a dirigir a nossa análise e a nossa crítica de tais casos. Enquanto hipóteses, elas não pretendem ser definitivas; encon­ tram-se sujeitas a refinamentos e a revisões no curso de sua aplicação a outras instâncias. Não obstante, como no caso de outras hipóteses, elas organizam o nosso tratamento dessas instâncias, permitindo-nos alcançar um controle inicial sobre o nosso material. Na medida em que facilitam a análise crítica desse 123

material, elas terão cumprido com o seu propósito, mesmo se, mais tarde, cederem lugar a instrumentos de análise mais detalhados e mais refinados. Algo que pode, entretanto, muito bem ser desde agora compreendido com o seu auxílio, é a análise, em profundidade, de grupos específicos de definições, slogans e metáforas que figuram de maneira proeminente em discussões educacionais, e, ao mesmo tempo, a extensão de tais análises a outros tipos de discurso a respeito da educação. Seria plausível esperar que tais análises realizariam, não somente a clarificação de questões práticas de máxima urgência que surgem em política educacional, como também a elucidação das asserções funda­ mentais que figuram em teoria educacional. Ê evidente que não existe nenhuma maneira, de que possamos prontamente dispor, de fornecer uma lista sistemática de tais questões e asserções. Podemos, no entanto, citar alguns poucos problemas ilustrativos que poderíam ser analisados: (a) as definições divergentes das matérias acadêmicas, dos tipos de currículos, da inteligência e do rendimento; (b) os slogans e contra-slogans envolvidos nas controvérsias sobre a educação moderna, sobre a supressão da segregação, sobre os estudos científicos e humanísticos, e sobre a liberdade acadêmica; e (c) os papéis educacionais de metáforas, tais como ‘a escada para a liderança’, ‘os muitos caminhos do currículo’ e ‘o controle do aprendizado’ — essa última, uma metáfora transplantada da psicologia. Uma análise em profundidade desses problemas, relacionando as afirmações em questão a outras que ocorrem em discursos adjacentes, bem como aos seus contextos educacionais respectivos, poderá servir, não apenas para exibir nitidamente as questões práticas subjacentes que estão a exigir decisão, mas também para possibilitar a avaliação do valor teórico das noções constituintes. Na segunda parte do nosso estudo, concentramo-nos em detalhe sobre a idéia de ensino, discutindo algumas características básicas do ensino enquanto uma atividade, e relacionando-o com certos traços gerais da pesquisa educacional. Concluímos essa parte do estudo dividindo o discurso que envolve a noção de ‘ensino’ em três tipos básicos, e proporcionando uma comparação extensiva com a noção de ‘dizer’, focalizando, ao mesmo tempo, com alguns detalhes, certas questões relativas à educação moral. Nosso objetivo aqui não consistia apenas em lançar alguma luz sobre a noção de ‘ensino’ tal como ela é tipicamente compreen­ dida, mas também em sugerir de que maneira um tratamento análogo das discussões curriculares poderia engendrar conseqüên124

cias práticas úteis com relação à elucidação das metas e políticas a serem adotadas. Nesse ponto, merecem ser recordados, em virtude do seu interesse geral, vários aspectos da nossa discussão sobre o ensino. Enfatizamos o fato de que o ensino é uma noção consideravel­ mente mais estreita do que a noção de favorecer a aquisição de modos de comportamento ou de crença, que ele acarreta consigo restrições de maneira, exigindo o reconhecimento do senso de razões do aluno. O ensino, portanto, não pode, como sugerimos, ser assimilado a noções psicológicas, tais como ‘estabelecer as 105) condiçoes sob as quais o ensino ocorrerá da maneira a mais efi­ caz’, nem, tampouco, a noções sócio-científicas, tais como ‘acul­ turação’ ou ‘transmissão do conteúdo de uma cultura’. Essas últimas noções poderão ser legítimas em certas investigações científicas, mas elas obscurecem aquelas distinções de maneira que são fundamentais para a avaliação moral de uma política educacional. Distinguimos, além . disso, os usos «de êxito» e os usos «intencionais» que a noção de ‘ensinar’ possui, e mostramos como algumas controvérsias derivam, em parte, de uma falta de atenção a essa distinção. Concentrando-nos nos usos «inten­ cionais» de ‘ensinar’, interpretamos o ensino referido por esses usos como sendo uma atividade, negando que ele deva ser, por conseguinte, entendido de maneira behaviorista, como algum esquema de movimentos corporais. Argumentamos, a seguir, que é possível mostrar, de maneira independente, que tal interpre­ tação behaviorista é inadequada, e que não se pode pensar, portanto, que aprender a ensinar constitua apenas uma questão de dominar algum esquema de movimentos característico. Sustentamos que o êxito do ensino depende de fatores externos ao fato de tentar ensinar, e que se pode procurar regras que tornem mais eficiente tal tentativa. Essas regras, tanto no caso do ensino como no caso da procura de teorias científicas fecundas, são, no melhor dos casos, inexaustivas, embora elas sejam úteis, isto é, elas são capazes de melhorar os nossos esforços, embora não sejam capazes de assegurar o êxito. Aperfeiçoar a arte prática do ensino, mediante o fornecimento de regras apropriadas, constitui unia das principais tarefas da pesquisa educacional, concebida não como uma ciência única mas como o ponto de intersecção de vários domínios científicos relacionados entre si. 125

Afirmamos que o grau segundo o qual o ensino está apoiado pela pesquisa científica constitui um importante fator para a determinação do seu estatuto profissional. O desenvolvimento contínuo de tal pesquisa, bem como a sua aplicação à prática do ensino, depende não somente do desenvolvimento autônomo das ciências pertinentes mas também da continua disposição de aplicar essas ciências à pratica. Sugerimos que isso também dependerá do reconhecimento da diversidade das orientações do professor e do pesquisador, assim como da compreensão mútua de suas respectivas metas divergentes. A nossa comparação entre ensinar e dizer levou-nos a distinguir os dois, a despeito das suas íntimas relações no terreno prático. Sugerimos que o discurso que contém a noção de ‘ensinar’ seja distinguido conforme envolve‘ensinar que’, ‘ensinar a’ ou ‘ensinar como’. Sublinhamos que aquelas sentenças-queenunciam-normas que são componentes de afirmações de ‘ensi­ nar que’, sentenças essas do tipo ‘Deve-se pagar as próprias dívidas’, estão sujeitas a uma ambigüidade peculiar entre uma interpretação ativa e uma interpretação não-ativa, dependendo de se o êxito do ensino exigir ou não a conformidade da conduta com a norma. Essa ambigüidade, como sugerimos, é perigosa na esfera da educação moral, por encorajar a confusão da exortação verbal com o desenvolvimento efetivo do caráter moral. Descobrimos que ‘ensinar a ’ envolve um certo tipo de generalidade que não é requerido por ‘dizer que se deve’*, embora ambos exijam imperativos para completar as suas formas respectivas. Tais imperativos, portanto, não podem, em geral, ser interpretados como comandos ou ordens específicos. ‘Dizer que se deve’ pode envolver ordens desse gênero, com o objetivo de assegurar um cumprimento imediato, ao passo que ‘ensinar a’ objetiva desenvolver esquemas de conduta estáveis e gerais. Sugerimos também que esses esquemas de ação não esgotam, todavia, a educação moral. Argumentamos, com efeito, que aprender a ser honesto não envolve, em todos os casos, aprender que se deve ser honesto, não envolve chegar a adquirir uma crença de tipo moral, vir a agir honestamente a partir de

* O texto original é o seguinte: “ ‘Teaching to’, we found, involves a certain sort of generality not required by ‘telling to’, . ..”. Embora com prejuízo da simetria com a tradução de ‘teaching to’ (‘ensinar a’), o contexto e a clareza indicam que é mais adequado traduzir ‘telling to’ por ‘dizer que se deve’. A esse respeito, veja-se a nota de tradução à p. 106 (N o ta d o tra d u to r). 126

uma convicção moral. Essa distinção é fundamental para a educação moral, pois ignorá-la significa correr o perigo de confundir o ensino da honestidade, por exemplo, com o ensino de regras de segurança ou de formas convencionais de cortesia, ao passo que reconhecer a distinção significa, ao contrário, confron­ tar-se de imediato com o delicado problema educacional de tentar desenvolver simultaneamente esquemas de conduta e uma reflexão imparcial sobre eles. Com respeito aos imperativos, argumentamos que alguns deles são fortemente irrazoáveis, por exigirem que se façam coisas que ninguém pode simplesmente decidir que vai fazer, e que outros são irrazoáveis num sentido mais fraco, por exigirem que alguém faça alguma coisa que, naquele momento, ele não pode decidir fazer. Essa irrazoabilidade fraca ou relativa de certos imperativos poderá depender da existência de lacunas no ensino prévio e, correlativamente, naqueles casos em que o ensinarcomo foi efetivado, esse fará com que um grande número de imperativos se tornem, pela primeira vez, razoáveis. Dessa maneira, a emissão de imperativos mostra-se aqui, não como um método de ensino, mas como algo que depende, para a sua utilização razoável, de um ensino prévio. Sustentamos, finalmente, que ‘ensinar como’, dirigido à aquisição-de-habilidades, se distingue de ‘ensinar a’, dirigido à aquisição-de-normas, e sugerimos que ampliar o alcance do primeiro às expensas do último constitui, com frequência, um meio de fugir à responsabilidade por aquelas normas de ação para as quais o ensino está, de fato, dirigido. Traduzir as propostas curriculares, nos casos em que essa distinção é relevante, em uma ou outra das formas mencionadas, constitui um meio de localizar com extrema precisão as questões que estão envolvidas. De maneira análoga, empregar as três formas esquemáticas de ‘ensinar’, em outras deliberações relativas ao currículo, poderá nos ajudar a clarificar os nossos próprios objetivos e a avaliar as decisões que estão em jogo. Como no caso das estratégias gerais que foram apresentadas na primeira parte do livro, as considerações expostas na segunda parte se prestam, de si mesmas, a ser utilizadas em aplicação a outros casos que não foram discutidos neste trabalho. A questão de maneira, envolvida na noção de ensino, pode, por exemplo, ser adotada em relação a outras concepções alternativas do ensino, distintas das concepções psicológicas e sócio-científicas que men­ cionamos acima. Da. mesma forma, também, as distinções entre 127

usos «de êxito» e usos «intencionais», entre regras exaustivas e não-exaustivas, entre interpretações ativas e não-ativas, e entre imperativos razoáveis e irrazoáveis, são distinções que poderão muito bem, todas elas, ser aplicadas a uma grande variedade de questões educacionais que não foram abordadas aqui. Ainda como no caso da primeira parte do livro, também, os exemplos que efetivamente estudamos possuem o seu próprio interesse educacional direto. Assim, por exemplo, a nossa crítica das interpretações «behavioristas» do ensino e da educação do professor, a nossa ênfase sobre o reconhecimento do senso de razões que possui o aluno, o nosso tratamento da pesquisa educacional e as nossas análises da educação moral —todos esses temas tratados incidem sobre várias questões importantes da teoria educacional. Existe, no entanto, todo um conjunto de problemas que exigem investigação, não no sentido de aplicar-lhes as noções aqui desenvolvidas, mas, antes, no sentido de explorar um território diferente, conquanto relacionado com o nosso. Afinal de contas, concentramo-nos na idéia de ensino. Mas há outras idéias educacionais que, de igual modo, estão a exigir urgentemente análise. Assim, por exemplo, as noções de disciplina, de maturida­ de, de aprendizado, de compreensão e de explicação, as quais se aproximam tanto da filosofia do espírito como da filosofia do conhecimento, necessitam ser consideradas a partir da perspec­ tiva da educação. De idêntica forma, as noções de autoridade, de responsabilidade e de institucionalização da conduta, que se aproximam tanto da filosofia da moralidade quanto da filosofia social, poderiam ser proveitosamente analisadas sob o vantajoso M( ponto de vista das preocupações educacionais. Tais investigações, assim como as aplicações a que alu­ dimos anteriormente, bem podem conduzir à revisão ou ao refinamento das concepções apresentadas' no corpo do presente estudo. Essas concepções — é necessário repeti-lo — foram apresentadas, em todo o livro, como hipóteses, sem pretenderem ser absolutas, auto-evidentes ou definitivas; elas foram apresen­ tadas, ao contrário, na esperança de que poderão fazer avançar a análise crítica dos problemas da educação.

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ÍNDICE ANALÍTICO

Nota: Os números indicados em todas as diferentes rubricas deste índice analítico se referem à numeração das páginas da edição original em língua inglesa. Essa numeração se encontra nas margens das páginas desta tradução. A, afirmações de tipo, 76, 77, 78, 92 Aculturação, Processos de, 54, 57 - e educação, 54 Aiken, H. D., 79 Ambigüidade - de afirmações de tipo B, 82 - e ensino moral, 84 - no estudo filosófico, 3 - de sentenças que enunciam nor­ mas, 79 - de termos ordinários, 17 Ameaça, 54, 57 Anscombe, G. E. M., 42 Aprendizado, 77, 79 - contexto de, 80, 81 - como duplicação, 86 - e esquemas de ação, 90-94 - e a exigência de generalidade, 89 - como impressão, 86 - ‘Não pode haver ensino semapren­ dizado’, 41 - resultado do ensino, 44 - v er ta m b é m Educação Aquisição de habilidades, 98 Aquisição de normas, 79-82, 84, 92, 93, 95, 98 Archambault, R. D.. 9 Arte

- definição em, 31 - metátora da, 51 - prática, 71 Ativa, Interpretação, 79 Atividade, 61, 62, 65, 66 - extracurricular, 27 - regra de, 69 B, afirmações de tipo, 76-78, 92,98,100 - ambigüidade de afirmações de ti­ po, 82 Bach, J. S., 96 Behaviorista, Interpretação - do ensi­ no, 67 Benn, S. I., 8 Black, M., 49 Broudy, H. S., 41 Brubacher, J. S., 15

C, afirmações de tipo, 76, 88, 91, 92, 95, 97 Casos indeterminados. V er Casos limí­ trofes. Casos limítrofes, 18, 27-29 Cassirer, E., 6 Cidadania, 98 Ciência - como arte prática, 71 - no currículo, 100 - definição em, 28 - divisões da, 73 - ensino da, 68,100 - e filosofia, 5-7 - linguagem da, 12 - metáfora e teoria, 47, 52 - objetivo da, 12, 75 - e a prática educacional, 74 - regras e teoria, 67 Cogan, M. L., 21 Collingwood, R. G., 31 Consistência de uso, 17 Contexto - de aprendizado, 81 - de atividade, 66 - de definição, 17, 20 - de definição estipulativa, 25 - de definição programática, 19, 27 - do discurso educacional, 9, 11 - e imperativos, 91 - da metáfora, 48, 52 - e princípios de ação, 30 - do slogan, 40 - na solução de ambiguidade, 17 Contextual, Implicação, 61 Cremin, L. A., 40 Crença, 93, 94 Crescimento, Metáfora do, 49 Crítico, Pensamento, 99 Culinária, 71 Cultura - conteúdo da, 58 - continuidade'da, 53 - e democracia, 59 - e função, 55 - funcionamento normal da, 55 129

Currículo, 24-27, 32, 98-100 - e definição do homem, 33 - definição ilustrativa de, 23

D.

afirmações de tipo, 76, 88, 91, 92, 9 5 ,9 7 ,9 8 , 100 Definição, 11-35 - em arte, 31 - em ciência, 12, 28 - transferência para a educação de, 34 - comparada com a metáfora, 47 - comparada com os slogans, 36 - em contextos legais, 28 - descritiva, 15, 22, 25-28, 31, 34, 60 - direção do interesse na, 16 - com duplo propósito, 24 - de educação, 30, 33 - estipulativa, 13, 22, 25 - inventiva, 13, 22 - não-inventiva, 13, 23, 27, 34 - como fórmula, 16 - geral, 13, 22, 28 - papel prático da, 18 - de homem, 33 - para objetivos educacionais, 34 - persuasiva, 20 - programática, 19, 22-27, 31, 34

- revisão de, 32 -

superposição de, 22, 23, 25-27, 29, 31 Definido, Termo, 22 ver também Deflniendum Definiendum, 16 Definiens, 16 Definiente, Frase, 23 ver também Definiens Democracia, 59 - habilidades de, 98 - normas de, 99 Descritiva, Definição. Ver Definição, des­ critiva, Dewcy, J., 37, 38, 53 Dizer, 76-101 Doutrinação, 54 - definição ilustrativa de, 15 Ducassc, C. I , 33

E, afirmações de tipo, 76, 97 Educação - e aculturação, 54 - e ciência, 74 - e continuidade cultural, 53 - definição de, 30, 33

130

-

e discussões curriculares, 99 filosofia da. Ver Filosofia, da educação. - e filosofia do conhecimento, 107 - e filosofia do espirito, 107 - e filosofia moral, 107 - e filosofia social, 107 - e função, 55 - moral, 82, 83, 85, 93-95 - progressista, 37, 38 ver também Aprendizado ver também Educacional, Pesquisa ver também Ensino Educacional, Pesquisa, 71 Engenharia, 71 ‘Ensinamos crianças, não matérias’, 38-41 Ensino, 57, 60-75 - e aculturação, 57 - da apreciação, 88, 96 - características temporais do, 63 - de ciência, 68, 100 - de compreensão, 96 - e dizer, 76-101 - ‘Ensinamos crianças, não maté­ rias’, 38 - a ensinar, 68 - êxito, 39, 77, 85 - e generalidade. 9,1 - de geometria, 68 - a gostar, 96 - intentar, 39 - interpretação behaviorista do, 67 - c maneira, 58 - 'Não pode haver ensino sem aprendizado’, 41 - objetivos do, 83, 98, 100 - orientação para metas, 75 - de ortografia, 68 - período de, 64, 92 - da religião, 100 - resultados do, 44 - e simpatia, 96 ver também Orientação para metas - da virtude, 83, 85 Escultura, Metáfora da, 51 Esquema de ação. Ver Normas, aquisição de; Aprendizado; Fundamentos; Jus­ tificação. Esquemas de movimentos, 65, 67 Estado, 65 Estipulativa, Definição. Ver Definição, estipulativa. Exaustividade do uso, 17 Êxito, 68, 69 - em dizer, 77 - no ensino, 77 - no ensino moral, 85 usos de, 42, 43, 60, 69 Extracurriculares, Atividades, 27

I-, afirmações de tipo, 76, 97, 98, 100 Fato, Sentença que enuncia um, 78, 80 Fazer, 65, 66 Filosofia, 5 - e análise, 6, 7 - e ciência, 5-7 - do conhecimento, 107 - contemporânea, 7, 8 - da educação, 3, 8 - empreendimento característico da, 17 - do espírito, 107 - moral, 107 - social, 107 - socrática, 8 Flew, A., 8 Força, 54, 57 Formação, Metáfora da, 50 Frankena, W. K„ 83, 94 Frederick, O. I., 23 Freud, A., 45 Função, 55 Funcionamento normal, 55 Fundamentos de esquemas de ação, 94

Interpretação - ativa, 79 - behaviorista do ensino, 67 - não-ativa, 79 Inventiva, Estipulação. Ver Definição, estipulativa.

Justificação - de esquemas de ação, 94 -- da intenção prática dos slogans, 40-41

Langer, S. K., 6 Laslett, P., 8 Lição, 64 Lieberman, M., 21 Limítrofes, casos, 18, 27-29

Habilidades, Aquisição de, 98 Hare, R. M„ 91 Hempel, C. G., 11. 55 Homem, Definição de, 33

Maneira, distinções de, 58 Medicina, 71 Metáfora, 47-59 - da arte, 51 - em ciência, 47 - de conformar, 50 - do crescimento, 49 - duas maneiras de criticar a, 48 - da escultura, 51 - de formar, 50 - de moldar, 50 - orgânica, 53-59 - transplantação de, 52 Metas, orientação para, 43, 61, 62 - da ciência, 75 - condições temporais das, 63 - do ensino, 75 ver também Tentar Monroe, W. S., 23 Moral, Educação. Ver Educação, moral. Movimentos, esquemas de, 65, 67

Imperativos, 40, 91, 97 - gerais, 91 - irrazoabilidade dos, 95 - relativa irrazoabilidade dos, 96 - universais, 91 Implicação contextual, 61 Indeterminados, easos. Ver Casos limítro­ fes. Informar, 77 Instruir, 76 Intencional, Uso, 42, 43, 60, 69 Intento no ensino. Ver Ensino, intentar.

Não-ativa, Interpretação, 79 Não-inventiva, Estipulação. Ver Defini­ ção, estipulativa. ‘Não pode haver ensino sem aprendiza­ do’, 41-46 Norma - aquisição de, 79-82, 84, 92, 93, 95. 98 - sentenças que enunciam uma, 7 8. 80 Normal, Funcionamento, 55 Nowell-Smith, P. H., 61

Generalidade - e aprendizado, 89 - e ensino, 89 - exigência de, 90 - em filosofia, 5, 6 Geometria - ensino de, 68 - e regra, 71 Geral, Detiniçâo. Ver Definição, geral. Goodman, N., r 1 Gross, L., 55

131

0’Connoi, D. J., 73 Ordens, 91 Orgânica, Metáfora, 53-59 Orientação para metas, 43, 61, 62 - em ciência, 75 - condições temporais da, 63 - no ensino, 75 ver ta m b é m Tentar Ortografia, 68, 70 - ensino da, 68 Passmore, J., 5, 7 Pensamento crítico, 99 Período de ensino, 64, 92 Perry, R. B., 99 Persuasiva, Definição. V er Definição, persuasiva. Pesquisa educacional, 71 Peters, R. S., 8 Platão, 8 Popper, K., 31, 50 Pratica, Arte, 71 Price, K., 86 Princípio de ação, 19, 26, 27, 29, 33 - contexto que fornece um, 30 - revisão de, 32 Problema - solução de, 62, 66, 67 Processos regenerativos, 54 Proficiência, 43, 62 Profissão, 19-21 - e arte prática, 73 Programática, Definição. Ver Definição, programática. Progressista, Educação, 37, 38 Propaganda, 54 ^ Quine, W. V., 11 Razões, 57 - e crítica da cultura, 59 ^Regenerativos, Processos, 54 'Regras, 26, 67, 91, 99 - de atividade, 69 - exaustivas, 70 - e geometria, 71 - não-exaustivas, 70 - de ortografia, 70 i - e teorias científicas, 67 f - úteis, 69 *Religião i - no currículo, 100 - definições divergentes de, 29 f - e o ensino da virtude, 84'. - e filosofia, 5 I 132

Retenção, 78 Rice, J., 40 Riesman, D., 45 Roland, J., 82 Ryle, G., 42, 69, 99 Scheffler, I., 8, 49, 79, 91, 93, 99, 100 ‘Sempre-que’, Cláusula em, 88, 89 Shakespeare, W., 95 Significação - emotiva, 20 - e escolha de definições, 29, 34 - e revisão de definições, 32 - e termos sociais, 30 Slogans, 36-46 - aplicabilidade de, 40 - avaliação do intento prático dos, 40 comparados com as metáforas, 47 contradição literal de, 41 intento literal e prático dos, 37, 38 justificação do intento píático dos, 40 - relevância do intento prático, 40 Smitb, B. O., 61 Social, Filosofia, 107 ver também Filosofia Sócrates, 17, 83 Socrática, Filosofia, 8 Solução de problemas, 62, 66, 67 Stevenson, C. L., 11, 20 Superposição de definições, 22, 23, 25-27, 29, 31

-

Tentar, 43, 62, 66, 68 - dizer, 77 ver ta m b é m Orientação para metas Tiedeman, D. V., 14

-

consistência de, 17 exaustivo, 17 de êxito, 42, 43, 60, 69 intencional, 42, 43, 60, 69

Vendler, Z., 64 White, M., 8,1 ™ Ziff.P., 31 UFRGS

05848033