Greve na fábrica

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Coleção L I T E R A T U R A E T E O R IA L I T E R Á R I A vol. 31 Direção de: Antonio Cullado Antonio Cândido

Ficha catalográfica

C IP- B ra sil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R J.

L728o

Linhart, Robert. Greve na fábrica / Robert Linhart; tradução de Miguel Arraes, com a colaboração de Lydia H. C al­ das. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (Coleção Literatura e teoria literária; v. 31) Tradução de: L ’ Etabli 1. Romance francês I. Título

78-0662

C D D - 843 C D U - 840-31

E D IT O R A P A Z E T E R R A

( 'onsriho lülilorial:

Antonio Cândido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

II. Série

ROBERT LI NHART

GREVE NA FÁBRICA

Trad u ção de M ig u e l A rraes (com a colaboração de Madalena Arraes e Lydiu H. Caldas)

PAZ E TERRA

Copyright

by

© Les Éditions de Minuit, 1978 Titulo do original em francès:

L'Établi

Capa. M ario Roberto Corrêa da Silva

Revisão: Ldson Rodrigues

Direitos adquiridos pela K D IT O R A l’A Z L T L R R A S.A . Rua André Cavalcanti. 86 I ãlima. Rio de Janeiro. R J. que se reserva a propriedade desta tradução.

I97K Impresso 1 1 0 Brasil

/‘rimed in Brazil

A A li. filho de marabu e irabalhudor braçal em Citroen

Os personagens, os acontecimentos, os objetos e os locais descritos são reais. Mudei apenas alguns nomes de pessoas.

S U M A R IO 1 - O primeiro dia. M u lu d ................................................... 2 - As luzes da grande linha de montagem ....................... 3 - A comissão de base ...................................................... 4 - A greve ................................................................ 5 - A ordem Citroen ........................................................ 6 - 0 sentimento do mundo ................................................ 7 - A banca ................................................................

II 25 51

7‘:

97 Ill 127

O P R I M E I R O DIA. M U L U D .

“ Mostre pra ele, M ulud.” O homem de blusão branco, o contramestre G ravier, como depois me disseram, planta-me ali e desaparece, atarefado, na dire­ ção da sua gaiola de vidro. Olho o operário que trabalha. Olho a oficina. Olho a linha de montagem. Ninguém me diz nada. Mulud não me presta atenção. O contramestre foi embora. Observo, ao acaso: M ulud, as carcaças de 2CV * que passam diante de nós, os outros operários. A linha de montagem não corresponde à imagem que dela eu tinha. Na minha mente era como uma seqüência nítida de avanços e paradas diante de cada posto de trabalho: um carro anda alguns metros, pára, o operário faz a operação que lhe cabe, o carro segue, outro pára, nova operação, etc. N a minha cabeça, a coisa devia ter um ritmo rápido - o das cadências infernais de que falam os panfle­ tos. “ A )inha de montagem” : tais palavras evocavam um encadea­ mento sacudido e vivo. ' 2CV - Carro dito "2 cavalos vapor", o dc menor custo de fabricação francesa.

1I

A primeira impressão, ao contrário, é a de um movimento len­ to, embora contínuo, de todos os carros. Quanto às tarefas, elas me parecem feitas com uma espécie de resignada monotonia mas sem a precipitação que eu esperava. Ê como um longo deslizar glauco, do qual se desprende, depois de um certo tempo, uma espécie de sono­ lência ritmada por sons, choques, clarões, ciclicamente repetidos, regulares. A música informe da linha de montagem, o deslizar das carcaças cinzentas de chapas brutas, a rotina dos gestos: sinto-me progressivamente envolvido, anestesiado. O tempo pára. Três sensações delimitam este novo universo. O cheiro: um cheiro acre de ferro queimado, de poeira de ferragem. O barulho: as brocas, o rugido dos maçaricos, as marteladas nas chapas. E o cin­ zento: tudo é cinzento, as paredes da oficina, as carcaças metálicas dos 2CV, os macacões e as roupas de trabalho dos operários. Até seus rostos parecem cinzentos, como se nos seus traços estivesse ins­ crito o baço reflexo das carroçarias que desfilam diapte deles. A oficina de soldagem, para onde acabam de me designar ( “ Ponha ele na 86, pra experimentar", havia dito o chefe de setor), é bem pequena. Uns trinta lugares de trabalho, dispostos em semi­ círculo ao longo da linha de montagem. Os 2 C V chegam sob a for­ ma de carroçarias pregadas, nada mais que pedaços de metal: é aqui que são soldados uns aos outros, que as junções são niveladas, as brechas recobertas; mas mesmo assim, ainda é um esqueleto cinzen­ to (uma “ caixa” ) que deixa a oficina, porém um esqueleto que já pa­ rece feito de uma só peça. A "caixa” está pronta para os banhos químicos, a pintura e o resto da montagem. ^ Sigo, em detalhes, as fases do trabalho. O posto de entrada da oficina é ocupado por um gulndasteiro. Com sua máquina ele levar.ta as carcaças do pátio, penduradas num cabo (estamos no primeiro andar, ou melhor, numa espécie de sobreloja que tem um dos lados abertos), soltando-as com brutali­ dade no ponto de partida da linha de montagem, em cima de uma plataforma que ele engancha num dos grossos ganchos que vêm avançando lentamente ao nível do chão, espaçados de um a dois metros, constituindo a parte emersa dessa engrenagem em constan­ te movimento, chamada "linha de montagem". Um homem de blu­ são azul, que se acha ao seu lado, controla o ponto de partida da li­ nha de montagem e, de vez em quando, intervém para acelerar as 12

operações: "Vam os, ande, engate agora!" Várias vezes, no dccorrer do dia, vè-lo-ei neste lugar, apressando o guindasteiro para meier mais carros no circuito. Fico sabendo depois que ó Antoine, o chcle de equipe. £ um corso, pequeno e nervoso. "E le faz muito barulho mas não é mau sujeito. Tudo isso é medo de Gravier, 6 contra­ mestre". O barulho da chegada de uma nova carroçaria, a cada três ou quatro minutos, marca o ritmo do trabalho. U m a vez enganchada à linha, a carroçaria começa seu semi­ círculo, passando sucessivamente diante de cada posto de soldagem ou de outras operações complementares: limagern, polimento, martelagem. Com o já disse, é um movimento contínuo, que parece len­ to: à primeira vista, a linha dá quase uma ilusão de imobilidade, sendo necessário fixar o olhar num carro determinado para vê-lo deslocar-se, deslizar progressivamente de um posto a outro. O carro não pára; são os operários que se devem deslocar para acompanhálo durante a execução do trabalho. Assim, cada um tem uma área bem definida para executar os gestos que lhe são impostos, embora as fronteiras sejam invisíveis: logo que um carro nela entra, o ope­ rário desengata seu maçarico, empunha seu ferro de soldar, agarra seu martelo ou sua lima e começa a trabalhar. Algumas marteladas, alguns clarões, os pontos de solda estão feitos e já o carro está sain­ do dos três ou quatro metros do posto. E o seguinte vai entrando na área de operação. E o operário recomeça. As vezes, se ele trabalha depressa, sobram-lhe alguns segundos de descanso antes que che­ gue um novo carro: ele pode aproveitá-los para respirar um pouco ou. ao contrário, intensificando seu esforço, ele "avança na linha", dc modo a acumular uma pequena vantagem, isto é, põe-se a traba­ lhar fora da área normal, ao mesmo tempo que o operário do posto que o precede. Um a ou duas horas depois, quando tiver economiza­ do o fabuloso capital de dois ou três minutos de avanço, terá o tem­ po de fumar um cigarro - voluptuoso capitalista de mãos nos bolsos, que olha passar sua carroçaria já soldada enquanto os outros traba­ lham. Felicidade efêmera: o carro seguinte já vem chegando; é pre­ ciso trabalhar de novo no seu posto normal; e a correria recomeça para ganhar um metro, dois metros e "avan çar” na esperança de fu­ mar tranqüilamente um cigarro. Se, ao contrário, o operário traba­ lha devagar demais, ele “ se afunda", isto é, encontra-se progressi13

váme-nte levado para longe do seu posto, continuando sua operação quando o operário seguinte já está realizando outra. Tem então de acçlerár o ritmo para tentar recuperar o tempo perdido. E o lento deslizar dos carros, que me parecia tão próximo da imobilidade, ‘tòmà-.um aspecto tão implacável quanto a impetuosidade de uma t"o’rrent,e que não se consegue conter: cinqüenta centímetros perdi•dos,>um metro, trinta segundos de atraso sem dúvida, esta junção rebelde, o carro em que se trabalha tão longe, e o seguinte que já apareceu no ponto de partida normal do posto, avançando com a reg’ularidade estúpida de massa inerte, percorrendo metade, do ca­ minho'antes de poder ser atingido, só podendo ser abordado quan­ do já está passando ao posto seguinte: acumulação de atrasos. É o que eles chamam “ se afundar” e por vezes é tão angustiante quanto um afogamento. Foi em seguida, ao longo de várias semanas, que aprendi a vida na linha de montagem. Nesse primeiro dia só fiz adivinhá-la: através da tensão de um rosto, de um gesto de irritação, da ansieda­ de de um olhar lançado na direção de uma carroçaria que vai che­ gando quando a precedente ainda não está acabada. Agora, obser­ vando os operários, um depois do outro, começo a notar uma certa diversidade naquilo que, à primeira vista, assemelhava-se a uma mecânica humana homogênea: um, comedido e preciso, o outro, nervoso e suando, os avanços, os atrasos, as minúsculas táticas de posto, os que largam suas ferramentas entre cada carro e os que as conservam na mão, “ os desligamentos” ... E o perpétuo deslizar dos 2CV, lento e implacável, que se constrói de minuto em minuto, a cada gesto, de uma operação a outra. O furador. Os clarões. /Cs brocas. O ferro queimado. Terminado o circuito, ponto final do semicírculo, a carroçaria é retirada da plataforma e tragada por um túnel rolante que a leva para o setor de pintura. O estrondo de uma nova “ caixa” no ponto de partida da linha anuncia a chegada de uma substituta. Nos interstícios desse deslizar cinzento, entrevejo uma guerra de usura da morte contra a vida e da vida contra a morte. A morte: a.engrenagem da linha de montagem, o imperturbável deslizar dos c.arros, a repetição de gestos idênticos, a tarefa jamais terminada. Úm carro está pronto? O seguinte ainda não está e apresenta-se logo para ser soldado, exatamente no lugar onde se acabou de sol14

dar, rugoso exatamente onde se acabou de polir. A solda está feita? Não, precisa ser feita, f eita definitivamente, desta vez? Nào, deve ser feita de novo, nunca está acabada - como se não houvesse m ovi­ mento, nem os gestos contassem, nem existissem mudanças, mas apenas um simulacro absurdo de trabalho que se desfaz logo após terminado, sob o efeito de uma m aldirão qualquei. E se nos disser­ mos que nada disso tem importância, que basta habituar-se a fazer os mesmos gestos de uma maneira sempre idêntica, num tempo sempre idêntico, aspirando unicamente à plácida perfeição da má­ quina? Tentação da morte. Mas a vida revolta-se e resiste. O orga­ nismo resiste. Os músculos resistem. Os nervos resistem. Alguma coisa, no corpo e na cabeça, defende-se contra a repetição e o nada. A vida: um gesto mais rápido, um braço que cai inoportunamente, um passo mais lento, um sopro de irregularidade, um movimento em falso, o “ avanço", o “ afundam ento", a tática de posto; tudo o que nesse irrisório reduto de resistência contra o vazio eterno que é o posto de trabalho faz com que ainda haja acontecimentos, embora minúsculos, que haja ainda um tempo, mesmo se monstruosamente prolongado. Esta imperícia, este deslocamento supérfluo, esta súbi­ ta aceleração, esta solda imperfeita, essa mão que a refaz duas ve­ zes, esta careta, este “ desligamento" - é a vida que se aferra. Tudo o que, nos homens da linha de montagem, grita silenciosamente: “ Eu não sou máquina” ! Justamente, dois postos depois do de M ulud, um operário - ar­ gelino igualmente, mas de traços mais acentuados, quase asiáticos está "se afundando” . Foi se afastando progressivamente na direção do posto seguinte. Seus quatro pontos de solda o enervam. Observo seus gestos mais agitados, o movimento rápido do maçarico. De re­ pente, ele não agüenta mais. G rita ao guindasteiro: “ Ei, mais deva­ gar, pára um pouco as ‘caixas’, não dá!” E ele desengata da plata­ forma 6 carro sobre o qual trabalha, imobilizando-o até o gancho seguinte que o retoma alguns segundos depois. Por sua vez, os ope­ rários dos postos precedentes desengatam também a fim de evitar uma carambolagem das “ caixas” . Respira-se um instante. Esse inci­ dente provoca um vazio de alguns metros na linha - um espaçamen­ to um pouco maior do que os outros - mas o argelino cobriu o seu atraso. Desta vez Antoine, o chefe de setor, não diz nada: Faz uma hora que “ carrega" ao máximo; tem três ou quatro carros de vanta­ 15

gem. Mas em outras ocasiões intervém, persegue o operário que “ se alunda” , impede-o de desengatar ou, se isto já foi feito, corre para reengatar a plataforma no lugar. Foi preciso este incidente para que eu compreendesse como o tempo é curto para cada operação. No entanto, a marcha dos car­ ros parece lenta e, em geral, não há precipitação aparente nos ges­ tos dos operários. Eis-me então na fábrica. Intregrado na produção. Obter o em­ prego foi mais fácil do que havia pensado. Tinha inventado cuida­ dosamente a minha história: empregado num armazém de um tio imaginário em Orléans, depois armazenista durante um ano (certifi­ cado de trabalho obtido de favor), serviço militar no corpo de E n ­ genharia de Avignon (relatei o caso de um camarada operário de minha idade, alegando ter perdido o meu certificado). Nenhum di­ ploma. Nem mesmo o certificado de estudos primários. Podia pas­ sar por um parisiense de origem provinciana, perdido na capital, a quem a ruína da família obrigava a trabalhar numa fábrica. Res­ pondi brevemente às questões, taciturno e inquieto. Minha pobre cara não devia destoar do aspecto geral do lote de novos contrata­ dos. Não havia fingimento: o progressivo desgaste das convulsões do após maio de 1968 - um verão de tumultos e de querelas - ainda estava inscrito nos meüs traços, como outros, entre os meus compa­ nheiros, carregavam a marca visível da dureza de suas condições de vida. Não se fica à vontade quando se vai mendigar um pequeno emprego manual - o que dê apenas para comer, por favor - e que se responde timidamente "n a d a " às perguntas sobre os diplomy^j, as qualificações, sobre o que se sabe fazer de especial. Eu podia ler nos olhos dos meus camaradas da fila de emprego, todoW."migrantes, a humilhação desse "n ad a". Quanto a mim, tinha o ar suficientemen­ te acabrunhado para passar, sem suspeitas, por um candidato a operário. O Senhor Empregador deve ter pensado: "O lh a ai um semicamponês atônito, bom indício de que não criará problemas” . Deu-me a autorização para o exame médico. Passou ao seguinte. Aliás, por que a contratação de um operário seria urr^i operação complicada? Noção de intelectual, habituado a recrutamentos com­ plexos, à apresentação de títulos, de “ perfis de trabalho". Isto é as­ sim quando se é alguém. Mas quando não se é ninguém'.’ Aqui tudo se passa rapidamente: dois braços, avalia-se rapidamente. Vi16

si tu médica sumária, com o pequeno grupo de imigrantes. Alguns movimentos musculares. Radiografia. Pesagem. Define-se logo o ambiente ( “ Ponha-se a li!” “ Tire a camisa!” “ Você aí, depressa!") Um médico faz algumas cruzes numa ficha. Pronto. Aprovado para o serviço da Citroen. O seguinte. Momento favorável: neste cometo de setembro de 1968 C i­ troen devora mão-de-obra. A produção marcha a todo vapor; pre­ enchem-se as vagas que o mês de agosto provoca nos efetivos dos imigrantes: alguns não voltaram das férias em lugares distantes, ou-, tros chegarão atrasados e descobrirão, desesperados, que foram despachados (" N ã o temos nada que ver com suas histórias de mãe velha e doente; está despedido!") e já substituídos. Substitui-se sem contemplação. De qualquer forma, o trabalho na Citroen é instá­ vel; entra-se depressa, sai-se depressa. Duração média de um operá­ rio na Citroen: um ano. Um "turnover” elevado, dizem os sociólo­ gos. Em outras palavras: é um desfile. Para mim não houve proble­ ma, arrastado que fui na fornada que entrava. Parti do escritório de contratação de Javel, na sexta-feira, mu­ nido de um papel: designado para a fábrica dá Porte de Choisy. "A presente-se segunda-feira, às sete horas, ao chefe de setor". E nesta segunda de manhã, os 2 C V desfilam na oficina de soldagem. Mulud continua sem dizer nada. Observo seu trabalho. Não parece muito difícil. Em cada carroçaria que chega, as partes metá­ licas que formam a curva superior da janela da frente estão justa­ postas e pregadas, mas deixam aparecer uma fenda. O trabalho de Mulud consiste em fazer desaparecer essa fenda. Com a mão es­ querda ele pega um bastão de uma matéria brilhante; com a mão di­ reita. o maçarico. A chama é lançada. Uma parte do bastão fundese em um montículo de matéria mole na junção das placas de metal. M ulud espalha cuidadosamente essa matéria, valendo-se de uma es*pátula de madeira que pegou logo após ter largado o maçarico. A fenda desaparece: agora a parte metálica acima da janela parece composta de uma só peça. Mulud acompanhou o carro dois me­ tros; abandona o trabalho já feilo e volta para o seu posto, ao pon­ to de estacionamento, esperando o seguinte. Mulud trabalha com bastante rapidez para ter um inteivalo de alguns segundos entre cada carro, mas não os aproveita para "avançar". Prefere esperar. U m a carroçaria vai chegando. Bastão brilhante, chama do maçari­ 17

co, a espátula, alguns gestos para a esquerda, para a direita, dc bai­ xo para cima... M ulud anda enquanto trabalha no carro. Uma últi­ ma fricção com a espátula: a solda está lisa. Mulud volta na minha direção. Um a nova carroçaria avança. Não, o serviço não parece muito difícil: por que ele não me deixa experimentar? A linha pára. Os operários tiram os lanches. " A pausa", me diz Mulud, “ são oito e quinze". Som ente?Tinha a im p 'essão que horas se tinham passado nesta oficina cinzenta, preso ao monótono desli­ zar das carroçarias e aos clarões baços dos maçaricos, Esse intermi­ nável fluxo intemporal de chapas, de ferragem: somente uma hora e quinze? Mulud propõe dividir comigo o pedaço de pão que tirou cuida­ dosamente de um embrulho de jornal. "N ã o , obrigado. Não estou com fome” . - Você é de onde? - De Paris. - É o seu primeiro trabalho na Citroen? - E, e também numa fábrica. - Ah, bom. Eu... eu sou cabila. A mulher e os meninos estão lá. Tira a carteira, mostra uma fotografia amarelada da família. Digo-lhe que conheço a Argélia. Falamos das estradas sinuosas da Grande Cabília e das abruptas falésias da Pequena Cabília, que caem no mar perto de Collo. Passaram-se os dez minutos. A linha de montagem recomeça a andar Mulud empunha o maçarico e di­ rige-se para a primeira carroçaria que avança. Continuamos a falar intermitentemente, entre um carro e ou­ tro. v ’• " P o r enquanto basta ficar olhando", me diz Mulud. "Está vendo, é a solda a estanho. O basvão é de estanho. Tem que pegar o jeito: se você põe estanho demais, faz um caroço na carroçaria e não serve. Se você não bota estanho bastante, não cobre o buraco e também não serve. Repare como eu faço, de tarde você experimen­ ta” . E depois de um silêncio: “ Será mais do que cedo...” E falamos da Cabília, da Argélia, da cultura de oliveiras, da rica planície da M itidja, dos tratores e dos trabalhos do campo, das colheitas irregulares e do pequeno vilarejo na montanha, onde ficou a família de Mulud. Ele manda trezentos francos por mês para eles e cuida de não gastar muito consigo mesmo. Este mês as coisas não 18

vão bem: morreu um companheiro argelino e os outros se cotiza­ ram para pagar o repatriamento do corpo e enviar um pouco de di­ nheiro à família. Isso desequilibrou o orçamento de Mulud mas ele tem orgulho da solidariedade entre os argelinos e, particularmente, entre os cabilas. "N ó s nos sustentamos mutuamente como irmãos". Mulud deve ter uns quarenta anos. U m pequeno bigode, têm­ poras grisalhas, a voz lenta e pausada. Fala como trabalha: com precisão e regularidade. Nenhum gesto supérfluo. Nenhuma pala­ vra supérflua. As carroçarias desfilam, Mulud solda. Maçarico, estanho, mo­ vimentos deespátula. Maçarico, estanho, movimentos de espátula. Meio-dia e quinze. A cantina. Três quartos de hora para co­ mer. Quando volto a meu lugar, um pouco antes de uma hora, Mulud já está lá. Fico satisfeito de rever seu rosto, já familiar, no meio dessa oficina cinzenta e suja, dessa ferragem baça. Ainda não é uma hora: espera-se que o trabalho recomece. Um pouco mais longe, um agrupamento formou-se em torno do operá­ rio argelino de traços asiáticos que eu vi "se afundar” de manhã. " E i, Sadok, mostra. Onde você arranjo u?" Chego para perto. Sadok exibe, rindo, uma revista pornográfica, dinamarquesa ou coisa parecida. N a capa, uma dona chupa um pênis em ereção. Tudo em destaque, em cores agressivas, realistas. Acho a coisa muito feia mas Sadok parece encantado. Comprou-a a um dos motoristas de caminhão que, não só transportam chapas, motores, peças de má­ quinas, e carros acabados para a Citroen, mas abastecem a fábrica com um pequeno tráfico de charutos, cigarros e objetos diversos. Mulud, que percebeu com um olhar a causa de toda essa agita ção, não se mexe. Alguém grita: “ Ei, M ulud, venha ver bunda, isso la/ bem". Ele não se altera e responde: “ Isso não me interessa". E a mim, que tinha voltado para perto dele, diz, mais baixo: “ Não fica bem. Eu tenho a mulher e os meninos lá, na Cabília. N ão sou como Sadok. Ê solteiro, pode se divertir". A revista pornográfica na poeira da ferragem e o sujo dos ma­ cacões acinzentados dão uma impressão penosa. Fantasmas de pri­ sioneiros: Fico satisfeito porque M ulud não se aproximou para ver. Ruído de chapas, cada um retoma o seu lugar, a linha de muiitagem recomeça a funcionar.

containers

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"V á , agora, você", me diz Mulud. "V o cê viu como se deve fa­ zer". E ele me entrega o maçarico e o bastão de estanho. “ ...Não! Assim não! E bote as luvas, senão você se queima. Ei! Atenção com o maçarico! M e dê...” Ê o décimo carro com o qual eu me esgrimo em vão. Mulud faz o possível, adverte-me, guia minha mão, passa-me o estanho, segu­ ra o maçarico, não consigo. De uma vez, inundo o metal de estanho porque pus o maçarico perto demais do bastão e durante muito tempo: Mulud tem que ras­ par tudo e refazer a operação precipitadamente quando o carro já está quase saindo de nossa zona. De outra vez, não ponho estanho bastante e o primeiro movimento da espátula faz reaparecer a fenda que devia cobrir. E quando, por milagre, ponho uma quantidade mais ou menos conveniente de estanho, espalho-a desajeitadamente - ah, essa maldita espátula que meus dedos recusam-se obstinada­ mente a dominar! - que a solda toma jeito de uma montanha russa, exibindo um infame caroço no lugar em que M ulud conseguia reali­ zar uma curva perfeitamente lisa. Confundo a ordem das operações: é preciso pôr as luvas para usar o maçarico, tirá-las para usar a espátula, não tocar o estanho em brasa com a mão nua, segurar o bastão com a mão esquerda, o maçarico com a direita, a espátula com a direita, as luvas que se acaba de tirar, na esquerda, juntamente com o estanho. Tudo pare­ cia simples quando Mulud o fazia, com gestos exatos, coordenados, sucessivos. Eu... eu não consigo, entroem pânico: dez vezes, estou a ponto de me queimar e é um gesto rápido de Mulud que afasta a chama. Cada uma das minhas soldas tem que ser refeita^Mulud reto­ ma os instrumentos e tira o atraso, três metros adiante. Estou suan­ do e Mulud começa a ficar cansado: seu ritmo foi quebrado. Ele não manifesta qualquer impaciência, continua a fazer esse duplo trabalho - guiar o meu, depois refazê-lo - mas “ nos afundamos” . Deslizamos inelutavelmente para o posto seguinte, começamos a nova carroçaria com um metro de atraso, depois com dois; acaba­ mos, ou melhor, Mulud acaba, às pressas, três ou quatro metros adiante, o fio do maçarico esticado quase ao máximo, no meio das ferramentas do posto seguinte. Quanto mais tento andar depressa, mais entro em pânico: derramo o estanho em toda parte, deixo cair

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a espátula, volto-me com a chama do maçarico ameaçando Mulud que a evita por um triz. "N ã o ! é assim, olhe!” N ão adianta. Meus dedos são rebeldes, minha inabilidade incurável. Fico esgotado. Meus braços tremem. Apoio demais sobre a espátula, não domino minhas mãos, gotas de suor começam a me baçar a vista. O ritm o das carroçarias pareceme louco, impossível tirar o atraso; Mulud consegue-o com dificul­ dade cada vez maior. “ Olhe, não adianta você se afobar assim. Pare um pouco e re­ pare como eu faço” Mulud pega as ferramentas e retoma o ritmo regular de seu irabalho, um pouco mais rápido do que antes para recuperar pro­ gressivamente o nosso atraso; alguns centímetros em cada carroça­ ria; no fim de umas dez acha-se quase no lugar de costume. Retomo o fôlego, vendo-o trabalhar. Seus gestos têm um ar tão natural! Que têm suas mãos que as minhas não têm? Por que seus braços e seus dedos sabem trabalhar e os meus não? Um a carroçaria: estanho, maçarico, movimento de espátula e, no lugàr onde a curva metálica tinha uma fenda, existe agora uma superfície perfeitamente lisa. Por que ele sabe trabalhar e eu não? Pausa de três e um quarto. Mulud sacrifica-a por minha causa. Os outros desentorpecem as pernas, formam grupos, batem papo, vão e vêm, sentam-se sobre os tambores ou encostam-se às carroça­ rias imóveis. M ulud recomeça suas explicações. O carro que está diante do nosso postò não se move, é mais fácil. Veja a que distân­ cia você deve segurar o maçarico. Veja como os dedos devem ser colocados na espátula. Aqui. Apoiando o polegar para envolver a curvatura do metal. No meio é preciso apoiar levemente, para não espalhar o estanho e, progressivamente, apoiar mais e mais enquan­ to você a afasta: é assim que se obtém o degradado. A espátula, pri­ meiro para a esquerda, depois para a direita. Em seguida, um pe­ queno movimento para cima e outro para baixo. Mulud refaz o ges­ to lentamente: quatro vezes, cinco vezes. Agora é a minha vez; ele guia minha mão, coloca meus dedos na madeira. Assim. Pronto! Bem, talvez dê... Tudo isso. minha cabeça parece compreender: mas as mãos, obedecerão? Fim da pausa. Tudo recomeça. A barulheira da linha de mon­ tagem. U m a nova carroçaria avança, lenta e ameaçadora. Vai ser 21

preciso refazer os gestos pra valer. Depressa, o maçarico. Ah. não. esqueci-me primeiro as luvas. Onde está o estanho? Puxa! como ela avança rápido, já está no meio do percurso, a chama - merda! esta­ nho demais, é preciso apanhá-lo com a espátula, está todo espalha­ do... Mulud toma a espátula. Tento novamente... Não, não dá. Fico consternado. Devo ter lançado um olhar desesperado a M u ­ lud; ele me diz; " N ã o se chateie, é sempre um pouco duro no co­ meço, descanse, deixe que eu faço” . Mais uma /ez estou de lado, o olhar impotente. A linha de montagem rejeitou-me. No entanto, parecia avançar tão lentamente... Mulud desiste de me dar novamente as ferramentas; "A m an h ã vai ser melhor, não se preocupe” . Falamos sobre quando ele começou a trabalhar no posto, há muito tempo: ele aprendeu, os movimentos rapidamente, mas no começo não foi fá­ cil. Agora tem uma grande experiência na soldagem com estanho e faz tudo automaticamente. Dizem que soldador é uma profissão. Quais as qualificações de M ulud? Pergunto-lhe como a Citroen o classifica. " M 2 " , responde ele, lacônico. Trabalhador manual. Espanto-me. Ele é apenas trabalhador manual? Afinal de con­ tas, não é nada fácil assim soldar com estanho. E eu, que não sei fa­ zer nada, fui contratado como “ operário especializado" (OE2, diz o contrato): O E , na hierarquia dos que não são grande coisa está, no entanto, acima de trabalhador manual... Mulud não parece inte­ ressado em prolongar a conversa. N ão insisto. Logo que seja possí­ vel tomarei informações a respeito dos princípios de classificação da Citroen. Alguns dias mais tarde um outro operário me explica tudo. Existem seis categorias de operários não qualificados. De bai­ xo para cima: três categorias de trabalhadores manuais ( M l, M^, M3): três categorias de operários especializados (Q E I, OE2, OE3). Quanto à distribuição, ela é feita de maneira extremamente simples: ela é racista. Os pretos são M I , no mais baixo escalão. Os árabes são M2 ou M3. Os espanhóis, os portugueses e os outros imigrantes europeus são, em geral, O E1. Os franceses são, auto­ maticamente, O E2. Torna-se O E3 conforme a cara e a vontade dos chefes. Eis por que sou operário especializado e Mulud siínples trabalhador, eis por que ganho mais alguns centavos por hora, em­ bora seja incapaz de fazer o trabalho dele. E depois farão sutis es­ tatísticas sobre o “ quadro de classificações” , como dizem os espe­ cialistas. 22

Pronto. Mulud terminou seu último carro. O centésimo qua­ dragésimo oitavo do dia. Faltam quinze para as seis. A linha de montagem imobiliza-se. O barulho cessa. “ S a lve !" - diz Mulud "A té amanhã: N ão se preocupe que a coisa vai melhorar” . Desapa­ rece na direção do vestiário. Fico um instante na oficina que se es­ vazia, a cabeça zunindo, 2 S pernas bambas. Quando chego na esca­ da. sou o último; não se vê mais ninguém. As luzes foram apagadas e as carroçarias estão imobilizadas, massas sombrias que esperam o amanhecer para recomeçar. Volto para casa esfalfado e ansioso. Por que doem todos os meus membros? Por que as costas me incomodam, as coxas? Afinal de contas, o maçarico e a espátula não eram tão pesados assim... Sem dúvida, a repetição de movimentos idênticos. E a tensão para dominar a falta de jeito. E por ter ficado em pé tanto tempo: dez horas. Mas os outros fazem a mesma coisa. Estarão eles tão exaus­ tos quanto eu? Penso na inaptidão do intelectual para o esforço físico. Inge­ nuidade. N ão se trata apenas de esforço físico. O primeiro dia na fábrica é aterrador para todo mundo, disseram-me depois vários colegas, muitas vezes cheios de angústia. Qual o espírito, qual o corpo que pode aceitar sem um movimento de revolta a submissão e esse ritmo aniquilador, contra a natureza, da linha de montagem? O desgaste físico e mental da linha é sentido com violência por to­ dos: o operário e o camponês, o intelectual e o manual, o imigrante e o francês. N ão é raro que um novo contratado peça suas contas ao fim do primeiro dia de trabalho, enlouquecido pelo barulho, pe­ los clarões, pelo monstruoso prolongamento do tempo, pela dureza do trabalho indefinidamente repetido, pelo autoritarismo dos che­ fes e a secura das ordens, e a sombria atmosfera de prisão que gela a oficina. Meses e anos lá dentro? Com o imaginá-lo? N ão, antes a fu­ ga, a miséria, a incerteza dos pequenos biscates, seja o que for! E eu, o integrado na produção, será que resistirei? O que acon­ tecerá se amanhã continuar sem conseguir fazer as soldas? Vão me despedir? Que ridículo! U m dia e meio na empresa e posto na rua por incapacidade! E os outros, os que não têm diplomas, não são fortes, nem têm habilidade manual, como se arranjam para ganhar a vida? 23

De noite. O sono não chega. Quando fecho os olhos, vejo des­ filar os 2CV, procissão sinistra de carroçarias cinzentas. Revejo a revista pornográfica de Sadok no meio dos sanduíches e dos galões de óleo e da ferragem. Tudo é feio. E estes 2C V, esta fila infinita de 2CV... O despertador toca. Já são seis horas? Estou extenuado, tãó esgotado como ontem à tardinha. Que fiz eu da minha noite?

•l

AS L U Z E S DA G R A N D E LINHA DL M O N T A G EM

Não tinha motivo para me preocupar. Não se cogitava de me pôr na rua. A Citroen pode muito bem utilizar dois braços a quatro francos por hora, mesmo que não sejam formidáveis. Inapto para a soldagem com estanho? Não tem importância, existem tantos ou­ tros serviços equivalentes, tantos parafusos a apertar, tantos obje­ tos a transportar! Se fosse preto ou árabe, certamente não teria di­ reito a uma outra tentativa: poriam uma vassoura nas minhas mãos ou carrinhos sobrecarregados a empurrar. Mas sou francês. Mesmo O I:, mesmo desajeitado, devo poder fazer algo mais do que varrer. Às sete horas da manhã, quando a linha de montagem come­ çou a funcionar, Mulud tentou mais uma vez me ensinar o traba­ lho. Às sete e meia desistiu definitivamente. " N ã o tem importância eles vão achar outra coisa para você fazer. Além disso, talvez você saia ganhando. Sabe? Este não é um bom posto. O estanho faz mal à saúde. Todos os meses me fazem um exame de sangue. Transferiram o operário que estava aqui antes de mim porque ele começou a ficar doente. Mas não reconheceram sua. doença comO profissional. Isso, não. Puseram ele em outro lu­ 25

I

gar; nada mais. Não admitem que há uma doença profissional do estanho. Mas então, por que tirar sangue?... Quando eu estiver cus­ pindo pedaços de ferro, me mudarão daqui... Não se preocupe, vo­ cê não perderá grande coisa” . Cerca de oito horas o contramestre G ravie; aparece. "Então, Mulud, ele consegue?" Gravier é alto e forte, gênero bonilão. com um pouco de vulgaridade na voz, só para lembrar a sua condição de ex-operário. E brutal e temido. " E le consegue? Pode assumir o lu­ gar sozinho? - Eh... ainda não dá, chefe, não sei se poderá". M ulud está confuso, não quer me prejudicar. Em todo caso, acrescenta: " E le faz o que pode, chefe, não é fácil, no começo..." Gravier cortalhe a palavra e decide: "Bem , deixe". Depois, voltando-se para mim: "Venha. Siga-me” .

containers.

Escada. Corredores entupidos de Barulho estron­ doso das prensas. Galerias onde se precipitam os empilhadores. Es­ cadas. Desvios. Baforadas de frio. Rajadas de calor. Empilhadeiras. Salas atravancadas. Escada. Enfim, uma sala que me parece imen­ sa; uma explosão de ruídos estridentes e de cores berrantes. Postos de trabalho em toda parte, uma linha de montagem interminável do lado mais longo de um vasto retângiílo e outras linhas menores, perpendiculares, transversais, oblíquias; pequenas bancas com gen­ te revestindo, furando, cortando, aparafusando. Um movimento de coisas em todos os sentidos: no chão, na altura de um homem, no teto. E o desfile de carros coloridos, brilhantes, vivos. Essas cores me agridem, são um choque após o cinzento das chapas brutas da oficina de soldagem. Os ruídos também, muito mais diveráos e dis­ cordantes. Um choque, sim, e bem desagradável: essa luz artificial e esse barulho infernal são tão difíceis de suportar quanto o desliza­ mento das chapas e a repetição cíclica dos ruídos no setor de G ra ­ vier. Lá, só havia metal. Aqui é diferente: uma oficina de acaba­ mento em que os carros chegam pintados, rutilantes, onde são "ves­ tidos” : forra-se o interior, colocam-se os assentos, os faróis, as partes cromadas, põe-se o bloco do motor sobre o chassi, os vidros, montam-se as rodas. Percebi tudo isto de passagem. N ão havia tempo para detpr-me: corria atrás do blusão branco sujo de Gravier. E n ­ tramos num escritório, grande gaiola de vidro, no centro. Um outro contramestre está sentado atrás de uma mesa: pequeno, gordo, meio calvo. Gravier apresenta-me em duas palavras e sai. O outro: 26

"Espere aí“ . Mergulha novamente nos papeis. Eles tratam todos os operários de você, numa intimidade forçada. Por quê? Por que esse tom áspero? É a autoridade que exige isso. Ê o sistema. E uma pe­ quena parte do sistema Citroen. Assim 1’« lato de ignorar as pessoas ao passar, as ordens secas, a maneira de dizer a um terceiro, em sua presença: “ Bote ele neste posto". As mil maneiras de repetir, a cada instante do dia que você não é ninguém. Menos que um acessório de carro, menos que um elo da linha de montagem (presta-se aten­ ção a tudo isso). Você? Você não é nada! Espero, em pe - ninguém me disse para sentar; já pensou? um operário sentado durante as horas de trabalho, seria o cúmulo: Já basta tolerar que ele não faça nada entre dois postos - de cinco a dez francos de pagamento per nada - seria inimaginável, além do mais, fazê-lo sentar-se! Espero sem dizer nada e sem me mexer. Es­ tou chateado com meu fracasso no estanho. Não quero chamar a atenção sobre mim mesmo. O contramestre está engolfado nos seus papéis. Ê Huguet, um homenzinho muito arrumado, a quem a gravata e o paletó sob o blusão branco bem passado dão um acentuado aspecto de homem de negócios. Não é qualquer um, Huguet: reina sobre a 85, a grande linha de montagem, a maior oficina da fábrica de Choisy. Tem vá­ rias centenas de pessoas sob suas ordens. N o momento ele me expõe sua fronte calva, rosada e luzidia. Banca o importante. Faz algo de importante. Os efetivos. E impor­ tante, a questão dos efetivos. Saber quem está, quem não está. Quem chegou no relógio de ponto com dez minutos de atraso. Ou mesmo dois minutos de atraso. Puxa vida! Dois minutos de atraso. Você pode correr até perder o fôlego, enfiar a roupa de trabalho às carreiras, atravessar o vestiário como uma flecha, chegar ao posto de trabalho esbaforido, no momento exato em que a linha de mon­ tagem começa a funcionar, pegar no trabalho exatamente ao mes­ mo tempo que os outros, seu cartão de ponto já foi tirado pelo guarda e aterrisou entre as mãos do Senhor agente de setor, do Se­ nhor contramestre. Indeléveis, estes dois minutos. E preciso dar ex­ plicações, meu chapa. E se já for a terceira vez no mês, atenção! A gratificação é cortada, isto quando não vem a suspensão. Você di/ para você mesmo dois minutos, dois minutinhos - comecei ao mes­ mo tempo que os outros, a Citroen não perdeu um segundo por mi­ 27

nha causa, nem um milésimo de 2CV, nem um centavo. Então, por que minha gratificação deve ser cortada, por quê? E a disciplina? Onde fica a disciplina? Para que serve um contramestre, se não foi, antes de mais nada e sobretudo, para fazer respeitar a disciplina? Eis por que seu nome está sendo examinado por Huguet, que fecha a cara e consulta os papéis com um ar severo: “ Gonçalves, Antonio... Gonçalves, Antônio... Ele já não teve um atraso esse mês?” Ê importante saber a quem fazer uma advertência por um segundo atraso injustificado. Ou quem deve ser suspenso por um terceirp. E quem se pode despedir por não ter enviado a tempo o atestado mé­ dico. Tudo isso é muito importante! Depois, é preciso saber quan­ tos carros foram feitos durante a primeira hora (ah!, como é bom conseguir arrancar um a mais que na véspera!). E verificar se os ma­ teriais encomendados chegaram realmente. E ver se o problema da estocagem dos motores foi resolvido. E enviar à seção de métodos o relatório sobre a cronometragem dos tempos no estofamento. Tudo isso é importante, um contramestre é muito importante. N ão é de admirar que ele não tenha um instante para me atender. Quanto a mim, não estou apressado. Espero. N ão é possível que não haja uma pausa entre todas estas tare­ fas importantes. De repente o blusão branco tira alguns segundos para se ocupar de minha humilde pessoa. Nesta instante, um blusão azul aparece para saber as notícias. O blusão branco: “ Dupré! Tem aqui um novato. Tente colocá-lo no carrossel das portas, onde está faltando gente. Não esqueça de mandar a lista dos principais reto­ ques de pintura de ontem, vou falar com Haulin mais tarde” . E após estas importantes palavras, respeitosamente ouvídas, a fonte calva mergulha de novo nos papéis. Sem dúvida alguma, um con­ tramestre é uma pessoa muito importante. “ Está bem, senhor H u ­ guet” , respondeu, com deferência, o blusão azul Dupré. Dirigindo se a mim, secamente: “ Siga-me!” . Saímos. Dupré é chete de equipe e está apressado. Ele me entrega a um ajustador. Cascata hierárquica. "M o stre a ele os vidros” , diz o blu­ são azul ao ajustador. “ Siga-me” , diz o ajustador. O ajustador é um chefezinho, o menos importante, logo acima do operário qualifica­ do. Chama-se “ ajustador” porque, em princípio, ele devia “ ajus28

tur" as peças, mas na realidade é um rendição e às vezes substitui um operário num posto de trabalho, se há um galho ou uma ausên­ cia provisória. Ele não usa blusão, o que o distingue dos chefes, mas passa uma boa parte do tempo a passear sem fazer aada, exatamen­ te como eles. H Esse “ ajustador" tem os traços marcados como os do: o horário é_prolongado de quarenta e cinco minutos, uma metade dos quais é paga de acordo com a tarifa normal e a outra metade é pura e simplesmente gratuita. Esse regime tinha sido imposto do começo de setembro a meados de novembro, mas depois foi suspenso pela direção (menos encomendas?). O horário diário voltou a ser de nove horas e quinze. Podia pensar-se que a pretensa dívida de maio de 1968 (como se os operários pudessçm ter “ dívidas” do patronato!) tinha sido liquidada. Pura ilusão! Diante do pequeno texto impresso da nota, um tumultuoso agrupamento se forma, durante a pausa. Murmúrios. Alguns pe­ dem que o texto seja traduzido. Espanto, confusão. “ A ind a!” , di­ zem as expressões e os gestos.

vis-a-vis

“ A partir de segunda-feira, 17 de fevereiro de 1969, o horário de trabalho será aumentado para dez horas, fixando-se o fim da jo r­ nada às 17h45m. A entrada continuará a ser feita às 7 horas e a du­ ração da refeição do meio-dia em 45 minutos. A metade dos 45 mi­ nutos de trabalho suplementar, por dia, será retida a título de reeembolso dos adiantamentos concedidos ao pessoal nos meses de maio e junho de 1968.” Lê-se e torna-se a ler, como se existisse uma cláusula secreta. No entanto, não é difícil compreender. Decidiram que trabalhare­ mos novamente dez horas por dia, porque isso lhes convém e por­ que, além do mais, forneceremos vinte minutos de trabalho oficial­ mente gratuitos: mais uma exploração além do resto. E se isso não lhe agrada, rua! Prim o, consternado, foi logo ver Klatzman, o delegado sindi63

cal em quem tinha mais confiança, para perguntar-lhe como a C G T tinha intenção de reagir. Klatzman é um padre operário, discreto e dedicado, mas muito sobrecarregado de trabalho. Conce­ be sua missão mais como uma série de intervenções, caso por caso, a fim de tentar solucionar os mais escandalosos, do que como um trabalho de agitação. Seu modo de falar, hesitando na escolha das palavras, dá-lhe um ar de pessoa tímida, o que ele não é. Na con­ frontação com a direção da fábrica, mostra-se sempre firme. K latz­ man é honesto - não tenho dúvida - mas acho-o excessivamente respeitosó da hierarquia sindical para atrever-se a tómar iniciativas vigorosas. Prefiro outros padres operários do 13? distrito, militan­ tes de base nas suas fábricas, ardentes admiradores de Guevara, sedentos de justiça e de ação, junto aos quais vou por vezes reto­ mar coragem e pedir conselhos.

Che

Klatzm an prometeu a Prim o que discutiria o problema da re­ cuperação na próxima reunião do organismo da C G T . Passados dois dias trouxe a resposta. Klatzm an, muito confuso, explicou a Primo que tinha consultado os organismos da C G T das outras fábricas Citroen (a “ recuperação” devia atingi-las também, a partir de 17 de fevereiro) e havia constatado que a correlação de forças não permitia o desenvolvimento de uma ação. Já uma vez, no outo­ no de 1968, os sindicatos tinham convocado uma greve para contes­ tar a recuperação e tal iniciativa tinha sido um fracasso: apenas al­ guns militantes tinham parado o trabalho, sem que os outros os se­ guissem. N ão era possível dar-se ao luxo de reeditar tais operações, que desencorajavam os sindicalistas de base. Ainda por cima, a si­ tuação do organismo da C G T , na fábrica, era difícil: a C G T , apoiada por chantagens e pressões da direção, tornava-se cada vez mais ameaçadora e a mínima falsa manobra da C G T poderia pre­ judicar as futuras eleições para o C E (Comissão de Empresa). Em suma, o sindicato não podia fazer nada. Prim o replicou que a con­ vocação do outono de 1968 não tinha sido convincente, que em cada “ dia nacional de ação da metalurgia” o sindicato não deixava de convocar os operários a uma suspensão do trabalho, sabendo muito bem que só umas trinta pessoas responderiam ao apelo. Que dessa vez a questão era muito mais séria. Que era deixando a dire­ ção agif* sem qualcjuer reação que se encorajava a C F T , etc. Klatzman deu-lhe a entender, com um gesto de impotência que não 64

cru ele quem tomara a decisão e que nada podia fazer para modi-ficá-la. A cantina. Primo relatou-me essa conversa. Geralmente, ele não perde o sangue frio, mas desta vez seus gestos exaltados fazem tremer a mesa. " N ã o é possível. A gente não pode se deixar enro­ lar!" É verdade, não há dúvida que se precisa fazer alguma cois'- O tempo urge. Operários, com bandejas nas mãos esperam em pé. Ce­ demos nossos lugares. Nos veremos mais tarde. na saída. Durante toda a tarde, rumino planos, sem prestar atenção a meus gestos maquinais. "Q u e é que há?", pergunta-me Simon entre duas viagens, surpreso dc r.ie ver tão preocupado. Digo-lhe que es­ tou furioso por ter de trabalhar de novo, dentro em breve, dez ho­ ras por dia. Ele me diz que ele também, e acrescenta que todo mun­ do está descontente. Já escutou várias conversas nesse sentido. Encontro Prim o no bar. Encolhemo-nos num canto para falar tranqüilamente. Dessa discussão nasce o projeto de nos organizarmos indepen­ dentemente do sindicato e de reunir todos os que se opõem à "recu­ peração" a fim de fazer greve quando o dia chegar. Fico encarrega­ do, com a ajuda de camaradas do exterior, entre os quais Yves, que Primo já conhece, de mimeografar e distribuir panfletos que redigi­ remos em comum. Explico a Primo minha situação pessoal, o fato de que me “ in­ tegrei na produção” a fim de contribuir para a luta dos operários dentro da fábrica. Ele não se surpreende. Já ouviu falar da "integra­ ção na produção” e acha que é uma boa coisa. Pode ajudar a alar­ gar os horizontes dos operários e a levar os intelectuais dos grupos revolucionários, demasiadamente inclinados à abstração, a porem os pés na terra. Todo mundo sairá ganhando. E o da juventude com respeito à classe operária não o deixa indiferente: os estudantes mudaram, atualmente existem herdeiros da burguesia que rejeitam seus privilégios e escolhem o campo oposto. Primo vê esses novos acontecimentos com esperança. Mas o que conta, claro, é o que se pode fazer concretamente. Fazemos um rápido balanço de todas as pessoas que podemos contatar. Primo pensa poder contar com cinco ou seis camaradas da oficina de pintura e com alguns outros espalhados pela fábrica. D o meu lado, falarei com Christian, com Simon, com os iugoslavos

elan

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c com os camaradas do setor de Gravier. Falta fixar uma data para a reunião. Escolhemos a sexta-feira porque, nesse dia. o trabalho termina mais cedo e porque, no desafogo do fim de semana, será mais fácil obter de cada um o tempo necessário. Reunir-nos-emos no Café dos Esportes, um grande café moderno que faz cintilar seus neons do outro lado dos bulevares exteriores e cujo dono empresla de boa vontade, o subsolo a grupos, desde que se consuma. Preparar a reunião. Começo imediatamente, aproveitando as pausas, a cantina, os vestiários, marcando encontro em duas pala­ vras, na confusão do fluxo de entradas e saídas em torno dos reló­ gios de ponto. E, freqüentemente, no café. Ao mesmo tempo, ponho-me a explicar minha “ integração na produção" a todos aqueles que julgo conhecer suficientemente. Se devemos agir em comum, dissimulá-lo seria desonesto. Já tinha falado a Sadok sobre isto, quase por acaso, porque o assunto veio á baila numa conversa, na fábrica. Disse-lhe que não era realmente um operário, tendo acabado meus estudos pura tor­ nar-me professor. Ele escutou-me com um ceticismo indulgente, era evidente que não acreditava que se pudesse escolher semelhante vida sem ser a isso qbrigado. U m pouco como a reação do preso a quem o novo, acabando de chegar na cela, proclama: “ Sou um caso à parte, sou inocente!” Pode falar, meu velho, pensa o antigo, o papo é conhecido. Depois, quando veio morar comigo alguns dias, por ter sido posto na rua pelo seu hospedeiro, as pilhas de livros e de papéis o convenceram. "En tã o , você podia mesmo ser professor ou trabalhar num Es­ critório? N - Podia.” Ele nada respondeu mas seus olhos diziam: “ Você é d oid o!" Essa reação extrema de Sadok foi um caso isolado. A maior parte dos outros não se chocou com o fato. Os iugoslavos registraram-no sem fazer o menor comentário. Simon disse: “ Vocês são muitos nesta situação?” Seu rosto expressivo mostra que está encantado, como quem vai ouvir maravilhas. Mas, mal lhe tinha respondido e já ele falava de outra coisa. Quanto a Christian, fezme perguntas sobre a situação nas faculdades e sobre as relações en­ tre os grupos revolucionários. E em seguida, rapidamente, tudo isso

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passou a integrar o quadro geral das características individuais, às quais, por hábito, não se dá mais atenção. Ninguém me falou mais no assunto. N o exterior, a “ integração na produção” parece uma coisa es­ petacular, os jornais fabricam um mito. Visto da fábrica, não é fi­ nalmente grande coisa. Cada um dos^que aqui trabalham tem uma história individual complexa, muitas vezes mais apaixonantee mais atormentada do que a do estudante transformado provisoriamente em operário. Os burgueses imaginam deter sempre o monopólio dos itinerários individuais. Que farsa! Eles têm o monopólio de fa­ lar em público e nada mais. Eles se exibem. Os outros vivem sua história com intensidade, mas em silêncio. As pessoas não nascem O E eles se tornam O E . Aliás, aqui na fábrica, é raríssimo que al­ guém se refira a outro como "o operário que....” Não. Diz-se: “ A pessoa que trabalha na soldagem” , “ A pessoa que trabalha nos pá­ ra-choques". A pessoa. Não sou nem “ o operário ", nem “ o integra­ do” . Sou a pessoa que trabalha no posto dos ganchos de suspensão. E a minha característica de “ integrado’' ocupa seu lugar anódino no turbilhão dos destinos e dos casos particulares. A única diferença real com relação aos meus camaradas de fábrica - entre os quais se encontram vários operários improvisa­ dos, vindos do campo ou de outros países - é a seguinte: poderei, quando quiser, retomar minha condição de intelectual. Cumpro mi­ nha pena como eles mas continuo livre para fixar a sua duração. Sinto fortemente essa diferença como uma responsabilidade pes­ soal. N ão posso apagá-la. Seja qual for a repressão, ela nunca me atingirá tão duramente quanto a eles. Prometo a mim mesmo permanecer na fábrica enquanto não me puserem para fora, seja qual for o resultado de nossa luta, seja qual for a repressão. Não pedirei minhas contas em nenhuma hipó­ tese. Sexta-feira, quatro e meia. Somos cerca de vinte reunidos no subsolo do Café dos Esportes. Como previsto. Primo trouxe alguns camaradas da seção de pintura. Em seguida, verei com freqüência um deles: Mohamed. Pastor na Cabília, é apaixonado por poesia e pôs-se a estudar como autodidata. Veio para a França na esperança de fazer estudos lite­ rários. Sem família, sem bolsa, sem apoios, não tinha qualquer pos67

sibilidade. Acabou como O S em Citroen. Conserva, no seu modo de falar doce e estranhamente rebuscado, a lembrança de seus pro­ jetos literários. É muito jovem e tem um ar tímido. Primo o apre­ sentou como um dos mais ativos da oficina de pintura. Georges e mais cinco iugoslavos estão presentes. Simon tam­ bém. Sadok chegou atrasado. Penso que desejava ter certeza de que haveria muita gente na reunião, antes de se decidir a participar. Lá de cima, lançou um olhar furtivo, dirigiu-me um sorriso ã guisa de saudação e de desculpas, desceu e sentou-se meio afastado. Mulud não veio. Quando fui avisá-lo, disse-me que não viria mas que estava de acordo conosco e que se houvesse uma greve contra a “ recuperação” , participaria. N ão conheço vários dos operários presentes: espanhóis, ne­ gros - do M ali e do Senegal. Christian chegou com um camarada francês, Jean Louis, um jovem do Sul, louro e de barbicha. São muito amigos e muito dife­ rentes. Enquanto Christian, um feixe de nervos, está constantemen­ te à beira da confrontação violenta com o sistema Citroen, Jean Louis leva seu barco com cuidado. Um pé no sindicato da C G T , que espera apresentá-lo às eleições para delegados do pessoal; outro pé na fila de promoção interna da Citroen, onde segue um curso no­ turno na esperança de se tornar profissional. M ora num alojamento da Citroen, cujo diretor é um antigo militar de carreira e onde a dis­ ciplina é rigorosa. Tenta navegar entre todas essas armadilhas e evi­ ta avançar demais. Veio mais por amizade a Christian e pa,r curiosi­ dade do que para se opor à “ recuperação” . Quase não abriu a boca durante nossa reunião, senão para dizer q u e ‘-tória bom avisar a C G T a respeito de nossa ação. Todo mundo concordou. A reunião é rápida. Primo e eu apresentamos o objetivo: organizar a recusa da “ re­ cuperação” através de uma greve, preparar-se para parar o traba­ lho todos os dias às cinco da tarde, a partir do dia 17 de fevereiro. A primeira coisa a fazer é contatar o maior número de pes­ soas possível. Ê preciso, portanto, redigir um panfleto. Que pensam disso os camaradas? Georges é o primeiro a falar. Declara-se de acordo, mas cético quanto ao resultado. Sem .perder tempo em considerações gerais,

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põe-se a descrever a situação tal como podemos razoavelmente pre­ ver. Ele próprio pensa poder agrupar uma quantidade importante de iugoslavos. De qualquer forma, Stepan, Pavel e ele pararão às cinco horas no dia 17 de fevereiro, e estão certos de arrastar com eles dois portugueses do “ carrossel” : paralisarão, portanto, a pro­ dução de portas. Bom. M a s'h á um estoque de reserva para bem mais de três quartos de hora. Logo, isso não bastará para bloquear a oficina 85. Simon e eu paralisaremos o posto dos ganchos de sus­ pensão. Mas qualqu'*'-chefe ou ajustador nos substituirá imediata­ mente, restabelecendo prontamente a distribuição de peças na gran­ de linha de manutenção. O estofamento também não é um poste decisivo. Christian deixará, sem dúvida, de fazer assentos, mas isso não terá efeito imediato, tendo em vista o estoque de reserva, mes­ mo que o argelino e o negro, seus vizinhos, parem também (é pouco provável que a mulher o faça). Conclusão: tudo isso é insuficiente. O essencial, na oficina 85, é a grande linha de montagem. Se ela pa­ rar, ganharemos. Caso contrário, todas as demais paralisações não bloquearão a produção. Ora, nessa reunião, quem trabalha na grande linha? Ninguém. Daqui até a próxima reunião temos de contatar o pessoal da grande linha de montagem, sem o que nossa meta não será atingida. Enquanto isso, Georges quer saber com quais pessoas se pode contar exatamente, nas outras oficinas. N ão apenas em números globais, mas do ponto de vista da capacidade de bloquear a produção. Porque, se em toda parte for como na 85... E depois desse comentário, esmaga sua ponta de cigarro e calase. Silêncio. Seu pequeno discurso fez o efeito de uma ducha fria. N ão há dúvida que uma vintena de pessoas, entre mil e duzentas, é muito pouco. E mesmo quarenta, se incluirmos aqueles com os quais sabemos poder contar ao certo. Sabíamos disto vagamen­ te. Georges acaba de nos obrigar a tomar consciência concretamente. A fábrica é um monstro a paralisar. E se ela continuar tranqüila­ mente seu caminho, indiferente à nossa agitação? Georges tem ra­ zão. U m a verdadeira greve consiste em bloquear a produção, fazêlos perder os 2CV. Se isso for conseguido, atingiremos realmente a diretoria, a ação terá um sentido aos olhos de todos. Se não, sere69

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mos esmagados, virá o desencorajamento, o sistema Citroen sairá reforçado. A avaliação das oficinas é rapidamente feita. N a pintura. Pri­ mo pensa que é possível párar completamente, desde que haja um acordo com alguns profissionais militantes da C G T . N a oficina de soldagem de Gravier? Sadok faz um gesto de descrença. U m tunisiano de cara bexigosa, soldador na oficina 86, também parece ter as suas dúvidas. Gravier é temido; a oficina é pequena e constante­ mente vigiada. Os empilhadores? Ninguém. Os guindasteiros? N in ­ guém. Os “ motoristas” , que retiram e estacionam os carros pron­ tos? Ninguém. Esses são postos chaves, através dos quais podemos esperar poder bloquear as atividades internas. N ão temos qualquer influência sobre eles, por enquanto.

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Em suma, tudo está por fazer. Esta greve tem que ser construída. Pacientemente. Posto por posto. Homem por homem. Oficina por oficina. E a primeira vez que vejo a questão sob esse ângulo. A guerra de classes ao nível da trincheira. O nível mais baixo. Christian intervém então'. E se um grupo decidido for cortar a corrente no ponto de partida da grande linha, exatamente às cinco horas, pronto a defender-se contra os chefes que tentarão restabele­ cê-la?

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Georges afasta a proposição com um gesto. E então? Serão seis ou sete pessoas despedidas imediatamente, por desordem dentro da fábrica, sem que se tenha sequer a certeza de paralisar a produção r mais de cinco minutos. De qualquer forma, se as pessoas que­ rem recuperar, você não pode impedi-las. O problema é delas. Não, é preciso chegar a um acordo com um número suficienté,dfc pessoas a fim de bloquear a fábrica, ponto final! N ão houve réplica. Ê o que se deve fazer. Primo: “ Bom, falta um mês. N a grande linha de montagem da oficina 85, tem argelinos, marroquinos, tunisianos, iugoslavos, es­ panhóis, portugueses, malianos, camaradas de outros países ainda. A gente deve fazer um bom panfleto pra explicar pra eles o que que­ remos fazer. O panfleto deve ser traduzido em todas as línguas do pessoal trabalhando na linha pra que todos os que sabem ler com ­ preendam e possam dizer pros outros o conteúdo do panfleto. De­ pois, vamos ver um por'um pra discutir” .

Essa idéia do panfleto em várias línguas agrada a todo mun­ do. Não tem somente uma função utilitária. É um sinal de respeito a cada uma das culturas representadas na fábrica. Ê uma maneira de pedir às diferentes comunidades de imigrantes que assumam suas responsabilidades na ação. * Agora, redigir o texto, ü por que recusamos a "recuperação". As explicações jorram. Pode falar-se do cansaço de um dia de tra­ balho de dez horas. Os que têm uma hora de transporte para ir e vir não terão mais nenhuma vida fora da fábrica. A fadiga multiplica os acidentes. Cada mudança de horário é uma ocasião para in­ tensificar as cadências. Por que não aproveitar para lembrar certas reivindicações particulares? A qualificação dos pintores, dos solda­ dores. Kalar também dos locais insalubres. E o racismo dos chefes? E a remuneração das horas suplementares? Puxa! Já não é um pan­ fleto que se vai redigir, mas um verdadeiro romance... Primo outra vez: “ Mas não vale a pena contar todas essas his­ tórias. Se o patrão quer fazer a gente trabalhar dez horas novamen­ te, com vinte minutos gratuitos, é pra nos humilhar. Querem mos­ trar que as grandes greves se acabaram e que a Citroen faz o que ela quer. Ê um ataque contra nossa dignidade. Que é que a gente é? C a ­ chorros? “Kaça assim, faça assado e cale a boca!’ N ão dá. Vamos mostrar que eles não podem tratar a gente desse jeito. Ê uma ques­ tão de honra. Isso todo mundo compreende, né? Basta dizer isso e acabou-se.” O conteúdo do panfleto foi achado. Redijo rapidamente, num canto da mesa, o que Primo acaba de dizer duma tirada. Leitura. Trocam-sc duas ou trcs palavras, versão final: todo mundo aprova. O panfleto será traduzido em árabe, espanhol, português, iugoslavo. Acho que essas palavras ressoam fortemente em todas as línguas: “ insulto” , “ dignidade", “ honra" .. Reproduziremos a versão francesa em mil exemplares, para distribui-los no portão. Reproduziremos as traduções numa cente­ na de exemplares em cada língua: colaremos os panfletos em todas as partes da fábrica, nos vestiários e nas oficinas, fazendo-os circu­ lar de mão em mão. É preciso ter uma assinatura. Decidimos botar: "Com issão de base de Citroen-Choisy” . 71

Faremos nova reunião na próxima sota-feiru, com uma maior presença, se possivel. para dar um balanço. Terminado. Subimos. O Café dos Esportes está fervilhando na excitação das sexta-feiras à noite. Fumaça. Estilhaços de vozes, gritos e risos. Grupos que tratam de preparar apostas na loteria es­ portiva. Trocas de saudações. A rua. Faz muito frio. A neve cai molhando a calçada escorre­ gadia. A noite já cobriu os bulevares, onde desfilam os carros, na debandada habitual dos fins de semana. Do outro lado, a fábrica é apenas uma massa sombria. Inerte até segunda-feira. Os camaradas apressam-se para tomar o metrô, a gola do sobretudo ou do paletó levantada. Fico imóvel um instante. Vazio, de repente. Por causa da se­ mana, por causa da reunião. Penso: Chegou a hora! Será que vai dar certo? Um a palpitação nascente, um estremecimento. A luta que começa aqui, agora. Essa coletividade que se forma. Tantas es­ peranças... Isto embriaga. "E n tã o , vamos preparar o espaguete?" Primo me puxa pelo cotovelo, sorridente. È mesmo, tínhamos resolvido ir jantar juntos em casa, esta noite. Vamos. Construímos nossa grave. Descubro que o posto dos ganchos de suspensão é um pon.J,o estratégico. Ê de lá que partem os elementos da carroçaria que Simon distribuirá ao longo da grande linha de montagehVDe agora em diante, os panfletos seguirão o mesmo caminho. Simon, conten­ te, esconde-os debaixo da roupa com gestos de conspirador. Essa tarefa subterrânea vai-lhe muito bem. Levou as capotas, traz de volta o carrinho vazio: os espanhóis têm os seus panfletos. Um a viagem ao setor das portas: os panfletos em árabe estão entregues ao marroquino dos faróis dianteiros. Cochicha-me detalhes, descre­ ve sumariamente as reações. Durante o lanche, ficamos de lado para dar um balanço. Os panfletos causaram forte impressão. È nossa dignidade que se quer atingir com esse trabalho suplementar eratuito. repetem to72

dos os dias em todas as línguas: é mais importante do que o cansa­ ço, o salário e tudo o mais: não tem preço. O negro dos assentos leu-o em árabe, lentamente, e depois veio apertar minha mão. Prometeu parar às cinco horas. Pregamos panfletos por toda parte. Os mictórios são ótimos para isso: pode ler-se tranqüilamente ao abrigo dos olhares indis­ cretos. A coisa começa a pegar um pouco na grande linha de montaeem. Aqui e lá, uma promessa de parar às cinco horas. Será o bas­ tante'? N a segunda reunião da comissão de base, somos cerca de trin­ ta. Notamos as presenças, contamos, confrontamos reações, faze­ mos a análise das razões apresentadas pelos hesitantes, preparamos as respostas. Compomos uma lista dos postos difíceis e importantes para a produção. Os postos que a Citroen terá dificuldade em fazer funcionar em dois minutos, em caso de paralisação. G uardo desse período a lembrança de um funcionamento nor­ mal, quase pacífico. E creio que aconteceu o mesmo com a maior parte dos camaradas. As ocupações rotineiras da luta nos liberta­ vam em parte da angústia e da amargura. Tudo passava a ter senti­ do. Agora, as feridas e as humilhações da vida cotidiana não se per­ diam mais no poço sem fundo de nossa raiva impotente. Os chefes podiam insultar, explorar, roubar, mentir. Nós lhes havíamos aber­ to uma conta secreta e, cada vez que nela depositavam uma nova injustiça, nós pensávamos: esperemos o 17 de fevereiro. Tínhamos, enfim, um horizonte comum, tomamos o hábito de alargá-lo. Pela manhã, na pausa de oito horas e quinze, instaláva­ mo-nos no terceiro degrau da escada de ferro que sobe da nossa ofi­ cina para a oficina de pintura. Lá, no meio de manchas de graxa e dos sanduíches desembrulhados, fazíamos pequenos comícios polí­ ticos, a seis ou sete. Lembro-me com exatidão de uma dessas con­ versas e de uma réplica de Georges. Simon estava se exaltando ao evocar a lutura revolução: “ É preciso atacar imediatamente os quartéis, para conseguir armas...” Georges o interrompeu, com uma ponta de ironia: “ Em casos como esse, não são as armas que faltam irias a coragem de usá-las. Arm as sempre se arranja..." S i­ mon fez uma expressão engraçada de menino de escola apanhado em flagrante e calou-se. 73

Entre a difusão dos panfletos, nossos pequenos comícios de oficina, as reuniões da comissão de base, a verificação febril de nos­ so avanço - este mês de propaganda, feitas as contas, foi um mês de felicidade.

A GREVE

Segunda-feira, 17 de fevereiro, quatro e cinqüenta e cinco. Será que vai dar certo? Estou suando e não é de cansaço do tra­ balho. Respiração difícil, palpitações surdas no peito: a angústia. Nesse momento exato, a idéia de uma derrota é-me insuportá­ vel. As razões turbilhonam em minha cabeça. Os meio-surdos das prensas, os asfixiados pelos gases da pintura, os pelegos da C F T , as revistas dos guardas, as chantagens de Junot, os minutos de des­ canso roubados, o médico do trabalho corrompido... Atingi-los na sua segurança e na sua insolência de bem nutridos. Os G ravier, os Junot, os Dupré, os Huguet e outros Bineau, todos os de cima que nem sequer chegamos a ver. Dois minutos para as cinco. Pela honra, dissera Primo. Pela dignidade, tínhamos colocado nos panfletos. N o fundo, todas as greves se reduzem a isto! M ostrar que não conseguiram nos vergar. Que continuaremos homens li­ vres. Tem de dar certo, é absolutamente necessário que a fábrica pa­ re. Examino os rostos. Como saber? Teríamos explicado suficiente75

mente a jogada? Talvez tivesse sido bom distribuir panfletos na por­ ta dos alojamentos? Ou talvez fazer uma reunião especial dos empiIhadores? Sim, mas através de que contatá-los? Mareei, o gordo? Kala pouco. Será que os malianos vão parar como, ao que parece, disseram? Contanto que os chefes não passem imediatamente à intimida­ ção! Olho em torno de mim. Nenhum blusão azul à vista. Nenhum blusão branco, tão pouco. Eles assumem uma atitude de desprezo: “ não damos a mínima aos seus panfletos; a fábrica não será parali­ sada pois a temos bem controlada; os vinte ou tiinta que suspende­ rem o trabalho serão substituídos e os 2 C V sairão normalmente” . É isso, nos tratam com desprezo. Mas estou certo de que estão vigi­ lantes nas suas gaiolas de vidro, prontos a acorrer se as coisas se de­ teriorarem. Georges faz-me um sinal. Só faltam trinta segundos. A baruIheira da oficina está ao máximo. Estridências, barulho de sirenas, sons de verrumas, parafusos, vilabrequins, martelos, polidoras, per­ furadoras, empilhadeiras... Apenas mais alguns instantes. Pronto! São cinco horas! Paro os ganchos de suspensão e tiro minhas luvas. Lentamen­ te. ostensivamente, para fazer ver em torno de mim que suspendo o trabalho. Simon imobilizou-se também. A barulheira? Parece-me que está diminuindo. Uma olhadela ao carrossel das portas: está parado. Georges larga seus instrumentos. Stepan e Pavel fazem o mesmo. Escuto, com todas as minhas forças, a grande linhal de montagem! Sim, ela faz cada vez menos barulho. De posto em pos­ to, vejo os homens que a deixam. ; ’ Ainda algumas pancadas isoladas de verrumas, de martelos. E depois, o silêncio. Ah! Esse silêncio, como ressoa nas nossas cabeças! Cinco horas e um minuto. A oficina da grande linha está para­ da. Mas nem tudo está feito. É necessário agir rapidamente. Alg u ­ mas dezenas de operários deixaram seus postos. As ausências para­ lisaram a esteira. Mas muitos outros continuam nos seus lugares, hesitantes. Não trabalham mais, estão esperando para ver o que vai acontecer. Já chefes, piustadores. contramestres surgem de toda

parte, intervindo. Ajustadores c chefes de equipe vão substituir os que se ausentaram c tentar repor em funcionamento as máquinas. É agora que precisamos estender ao máximo a suspensão do trabalho, antes que eles consigam fazer funcionar as máquinas de novo. Georges e os iugoslavos compreenderam-no. Christian também, que reage rapidamente. E eis-nos formando um pequeno cortejo de uns cinqüenta operários, avançando para a grande linha de m onta­ gem, de posto em posto, para convencer os camaràdas a suspende­ rem o trabalho de verdade, a seguirem para os vestiários “ Ei, pare, venha conosco. Você está vendo que tudo está blo­ queado. Além disso, a partir de agora, você está trabalhando de graça pro patrão. Não abandone os camaradas que pararam .” As linhas de montagem começam realmente a se esvaziar. A l ­ guns seguem para os vestiários, outros vêm aumentar nosso cortejo. Faz-se um enorme zunzum. Já fazem bem uns três minutos que tudo parou e eles ainda não conseguiram fazer recomeçar. “ Temos de ir à máquina de transferência, tentar fazer parar Théodoros” , diz Georges. Ê um posto chave, difícil: a fixação do motor no chassi. O ope­ rário que o ocupa, Théodoros, é iugoslavo. Se ele parar, os dois :omponentes da grande linha ficarão bloqueados. Corremos para lá. Eis-nos em torno dele. Todo mundo fala ao mesmo tempo. Georges fala em iugoslavo, calmamente, esforçando-se para convencê-lo. Ele èstá com medo. E o que nos responde e o que se vê. Ainda está com as ferramentas na mão, o longo cabo com o inter­ ruptor que comanda a máquina de transferência, as chaves para a fixação. Parece petrificado, falando com dificuldade. Seus olhos correm de um ponto a o u tra da oficina. Fazem apenas alguns ins­ tantes que lá estamos, quandu »urgem os chefes. Correram atrás de nós para tentar desfazer o efeito da manifestação e liquidar a parali­ sação. Procuram abrir caminho na direção de Théodoros. H á Huguet, que franze a testa e espicha-se o mais que pode; D u p ic, que resmunga qual juer coisa de inaudível em que se distinguem apenas “ ... esse circo” ; e sobretudo Junot, o chefe de setor, vermelho, in­ chado de cólerá, quase apoplético, que rosna: “ Deixem as pessoas trabalhar! É um entrave à liberdade de trabalho! Estou anotan­ do os nomes! Estou anotando os nomes! Vocês não têm o direito!” Agora está bem perto de Théodoros. Tenta nos empurrar, afastar 77

Georges. Estamos decididos a não brigar. Sabemos muito bem que é isso o que ele quer: um golpe, uma discussão violenta e será a de­ missão imediata. Mas ficamos ali, aglomerados, enquanto ele esbraveja e lança perdigotos, com sua “ liberdade de trabalho" ha boca. N o instante em que escrevo, conservo dentro de mim, essa ima­ gem: um porco engravatado, vindo de sua poltrona berrar o direito à “ liberdade de trabalho" a-um operário cansado e angustiado, que a Citroen decidiu fixar à linha de montagem por mais três quartos de hora. O operário hesita, observa o chefe de setor, olha para nós. Pa­ rece ultrapassado pelos acontecimentos. Algo semelhante ao deses­ pero aparece um instante nos seus olhos. Em seguida, repentina­ mente, Théodoros larga suas ferramentas e põe-se a gritar: “ Me deixem! M e deixem!” U m a espécie de crise de nervos. Ele é muito grande e está agitado por tremores. Junot, espantado, recua. Um pequeno empurrão, para ter um motivo de suspensão, seria bpm, mas Junot não está disposto a levar uma verdadeira surra! O grito selvagem de Théodoros acabou de desorganizar a li­ nha. Os operários acorrem de todos os lados. Nossa pequena tropa cresceu de repente. A oficina parou de vez. U ns trinta camaradas da oficina de pintura vêm descendo a escada: Ê uma verdadeira mani­ festação de uns duzentos operários que percorre a fábrica imobili­ zada. As máquinas emudeceram, aeora só se escutam os nossos gri­ tos. Saída tumultuosa. Yves e os camaradas do exterior nos espe­ ram com impaciência. Efusões. Funcionou! A fábrica inteira"está parada. Até mais tarde, para os panfletos. , . Reunião agitada no Café dos Esportes. Fazemos e refazemos os cálculos no zunzum do sobre-solo. A 84. A 85. A 86. Todas as ofi­ cinas pararam. H á mais de quatrocentos grevistas. Nenhum carro saiu depois das cinco horas. Agora, é preciso agüentar. Redigimos um panfleto: o número dos grevistas, um apelo. De novo as tradu­ ções. O mimeógrafo. Tudo está pronto de noite, já tarde. N ão consigo dormir. Rápidos cochilos entrecortados de visões. As favelas alastram-se até Neuilly. Um a grande festa de proletários nos Campos Elísios. 78

Nosso mundo enterrado jorra e se derrama sobre o outro. Como um Continente perdido, bruscamente revelado, e o movi­ mento tumultuoso e massivo das águas que provoca sua emersão. A velha sociedade, atacada de tétano, vê incrédula espalhar-se uma alegria inédita, incompreensível. H Quebraremos os muros da fábrica para que ali penetrem a luz e o mundo. Organizaremos nosso iraoalho, produziremos outros objetos, seremos todos sábios e soldadores, escritores e lavradores. Inventa­ remos novas línguas. Dissiparemos o embrutecimento e a rotina. Sadok e Simon não terão mais medo. U m a aurora jam ais vista. Pálida e fria, a aurora de fevereiro, a verdadeira, corta o sonho. É preciso voltar para a fábrica. U m único pensamento, nos meus pesados movimentos: essa tarde, às cinco horas. Terça-feira, 18 de fevereiro. A fábrica é concebida para produzir objetos e esmagar ho­ mens. Nessa terça-feira de manhã, desde as primeiras horas, a má­ quina antigreve da Citroen começou a funcionar. Ontem, os chefes trataram-nos com desprezo. Hoje, mudaram de tática: estão pre­ sentes. E que presença! A fábrica inteira ressoa com seus gritos, seus vaivéns e suas intervenções minuciosas. Surgem de todos os la­ dos. Então, havia tantos assim, enterrados nas suas tocas de vidro! Blusões azuis, blusões brancos, blusões cinzentos, até mesmo os de paletó acorrem sob diversos pretextos. Tudo constitui motivo para importunarem os operários: esta solda, não presta! Esta pintura, não presta! Esta junção, malfeita! Nada presta! O que não presta, sabemos nós: é a greve de ontem. Mas, por en­ quanto, dela não falam. Transtornam nosso trabalho e lá se plan­ tam para nos intimidar. Vigiam-nos sem disfarce. Vamos ver se às cinco horas a massa dos operários ousará suspender o trabalho no­ vamente, no nariz'deles, a dois passos! Junot passeia em todos os sentidos e sem motivo, com sua ca­ beça congestionada de ajudante etílico. V ai falar com os guardas, vem consultar os papéis com o contramestre, dirige-se ao relógio de ponto, volta com um monte de fichas individuais de ponto e os que o vêem passar, assim mergulhado na lista dos nossos nomes, não 79

podem deixar de pensar: o que é que ele está tramando? Será minha ficha, meu nome, que ele está olhando neste instante? N ada disso, ele está apenas fazendo o seu trabalho. N ão é ele, ' Junot, o chefe oficial da repressão na fábrica? Liquidar a greve é sua missão; trata de excutá^la. Está sempre ativo, à frente de suas tropas. Alerta, contramestres e chefes de equipe! Alerta, serviço de guarda! Alerta, C F T , o sindicato amarelo! A Citroen mobiliza. Meio-dia. N a cantina, trocamos notícias rapidamente. Por toda a parte, todo mundo em pé de guerra. Prim o pensa que os pin­ tores agüentarão firme. Os camaradas da 86 são menos otimistas. Gravier, o contramestre, e Antoine, o chefe de equipe, estão enfure­ cidos. Têm reações de reizinhos. Surpreendidos e irritados com a paralisação de ontem, estão decididos a impedir que isso aconteça novamente esta tarde. Aumentam ao máximo a cadência, inventam a todo instante soldas malfeitas que eles obrigam os operários a re­ fazer. Chegaram mesmo a ameaçar de demissão um tunisiano, por considerarem seu rendimento insuficiente. Detalhes semelhantes afluem das outras oficinas. Fazem tudo para nos envenenar a exis­ tência. Os empilhadores pararam ontem? M u ito bem, eles vão ver. Descobrem sem cessar peças que devem ser removidas, que precisam ser mudados de lugar, peças a entregar. Transportes esquecidos há quinze dias tornam-se urgentes. Têm de ser feitos na hora seguinte. O carrossel das empilhadeiras foi inferna'l durante toda a manhã. Esse tráfego desenfreado exaspera os condutores e ameaça-nos a cada deslocamento: não se pode andar vinte metros dentro da oficina sem beirar um acidente. E de tarde a coisa prome­ te ser pior, tantas são as ordens acumuladas que submergeffi os cmpilhadores. Todos os trabalhadores tiveram o seu quinhão. Mesm o os varredores são postos em situação difícil: os contramestres com ­ binaram uma reclamação em coro contra uma sujeira que fingem descobrir.

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Esmigalhado, despedaçado em gestos insignificantes, repetidos indefinidamente, nosso trabalho pode ser um suplicio. Esquecemonos, às vezes, quando- o relativo torpor e a regularidade da oficina oferecem-nos o frágil refúgio do hábito. Mps eles, os chefes, não o esquecem. Sabem que o mínimo aumento de pressão, a mínima aceleração da cadência do trabalho, a mínima provocação da parte deles, fazem voar em pedaços esse fino invólucro onde às vezes 80

achamos refúgio. N ão temos mais nenhuma proteção. E eis-nos de novo feridos a vivo, o cansaço multiplicado pela exasperação, en­ frentando em cheio este trabalho de O E como ele é: insuportável! Há uma chantagem implícita em toda essa agitação dos chefes. Ah! vocês se recusam a trabalhar quarenta e cinco minutos a mais? M uito bem. Vamos mostrar a vocês que podemos fazer durante as nove horas e quinze em que estão sob nossa autoridade: elas re­ presentarão o dobro, esgotarão vocês muito mais do que as dez ho­ ras “ normais" que lhes desejamos impor! Vamos ver quem se can­ sará primeiro. (Alguns meses mais tarde, o contramestre G ravier dir-me-á abertamente o seguinte: “ Vocês são pacientes mas nós so­ mos ainda mais pacientes; veremos quem se cansará prim eiro". Subentendido: temos mil maneiras de tornar a vida de vocês insu­ portável e de obrigá-los a partir.)

b

O sistema funciona segundo uma lógica rigorosa: o trabalho é esgotante mas a greve o é ainda mais. A fadiga física das dez horas? Talvez. Mas sem problemas. Deve-se abrir o caminho da submissão como sendo o do repouso. Onde vão eles buscar, com tanta preci­ são, essas técnicas de poder? Passamos a manhã tentando conter essa compreensão. Difun­ dir panfletos, discutir. Aproveitar as pausas. Tentar reaviva* a alegria de ontem à tarde: "Passamos eles pra trás, hein? Você viu as caras deles? E hoje de tarde vai saí a mesma coisa!" De duas em duas horas os pintores têm dez minutos de descan­ so, numa pretensa sala de repouso (algumas cadeiras de ferro num recanto sujo, um pouco distante dos vapores químicos): com um copo de leite por dia, para fingir que impedem a degradação fisioló­ gica que cada um sabe inelutável. Primo aproveitou essas pausas para correr de um ponto a outro da fábrica, em todos os lugares onde tinha gente conhecida. M as é preciso ter cuidado. A vigilância é grande. Georges aproveitou a hora do lanche pura ir ao setor de G ra ­ vier. falar a dois soldadores espanhóis. M al fazia um minuto que ele lá estava e já G ravier tinha saído de seu escritório como o diabo de uma caixa, intimando-o a retirar-se ("Q u e bordel é esse? Aqui não e a casa da sogra, não quero ninguém estranho à oficina!") Foi embo­ ra negligentemente, com um sorriso irônico nos lábios, mas sem sa81

ber o que farão os dois espanhóis estu tarde. Ficou impressionado com a atmosfera carregada que reinava na 86. Ninguém dizia nada. Reinava um pesado silêncio. Felizmente, Simon manteve contato com a grande linha de. montagem através do vaivém de seu carrinho de peças. Fizemos a recontagem: há defecções mas, no conjunto, parece que funcionará. Alguns não grevistas de ontem chegaram mesmo a dizer que esta­ riam conosco esta tarde. Terça-feira à tarde. Logo que o trabalho recomeçou, houve uma nova entrada em cena: os intérpretes. A h ! Como se pode engordar gente explorando os operários da linha de montagem! Os intérpretes da Citroen... Elegantes, descontraídos, bem-falantes, esses burgueses marroquinos, iugoslavos, espanhóis, são os instrumentos de um temível controle. Carteira de estrangeiro, car­ teira de trabalho, contratos, previdência social, tudo passa por eles. Para os imigrados que ítüo falam ou que falam mal o francês, os in­ térpretes da empresa constituem um elo indispensável entre eles e as instituições oficiais, tão complicadas, tão desconsertantes, com seus formulários, seus escritórios, suas regras misteriosas. O Senhor in­ térprete vai resolver isso. O Senhor intérprete é seu amigo, portavoz, na sua língua, da boa vontade do patrão. Hoje, mostram o que a “ ajuda” deles é, na realidade. Espalharam-se por todas as oficinas. De posto em posto, empenham-se em conversar com os grevistas. Em todas as língwas, o mesmo discursinho: “ Escuta, Mohamed (ou M iklos.ou M ’ Ba, ou Gonçalves, ou Manuel), ontem, você fez uma bestfeira: você sabe muito bem que atualmente o trabalho termina às cinco e quarenta e cinco e que você não tem o direito de sair às cinco horas. Bem, por essa vez, não se fará nada. Mas, se você recomeça, vai ter grandes aborrecimentos. Para começar, não venha mais me ver quando pre­ cisar de arranjar um papel ou outra coisa qualquer. Se você larga hoje às cinco horas, não conheço mais.você. Pense bem!” Terrível ameaça. Quem pode ficar indiferente? Ficar sem intérprete é encontrar-se bruscamente no escuro, surdo-mudo, incapaz de menor iniciativa, rejeitado pela adminis­ tração, pela sociedade inteira. Com o escapar, de agora em diante, 82

às mil e uma armadilhas da burocracia francesa, à esmagadora inér­ cia de um mundo hostil? “ Se você larga-hoje às cinco horas, não conheço mais você." Eles têm uma lista. Controlam metodicamente grevista por grevista. Estão descansados e dispostos, à vontade. Falam várias línguas, fazem certamente estudos de direito, ou estão no fim dos estudos universitários. Preparam-se para ser funcionários ou poli­ ciais nos seus países, quando já não o são. Esses burgueses vêm para cá sabotar as greves dos proletários de seus países. A o vê-los agir melosos e insinuantes, sinto uma espécie de náusea. Um deles está a vinte metros de mim, bem perto do posto dos 'grampos de suspensão. Está "trabalhando” o pessoal do carrossel das portas. Bronzeado, cabelos pretos, já meio gordo, tem um jeito de ator de segunda categoria - sorriso estereotipado, mostrando os dentes brancos. Seu terno marrom deixa entrever um colete; livra a sua lábia com gestos de corretor de seguros e, para terminar, dá um tapinha paternal no ombro do operário que trabalha sem nada di­ zer. Abjeto! Ê assim que a máquina antigreve funciona. Ela se pôs a andar sem peripécias, como se tivesse sido posta em marcha automatica­ mente pelo alerta de segunda-feira à tarde. Estava lá, lubrificada, inteiramente pronta para entrar em função, encoberta pela baruIheira das outras, suas homólogas de ferro e ferro fundido. Não! Ainda não está funcionando a todo vapor! Possui vários recursos, vários outros mecanismos que o sistema de transmissão não pôs ainda em movimento; os espancamentos, as demissões, a entrada da polícia, a expulsão dos “ instigadores” imigrantes para seus paí­ ses de origem (e o coitado que os inspetores vierem buscar no escri­ tório do chefe de setor encontrar-se-á vinte e quatro horas mais tar­ de, nas prisões de Franco ou de Hassan II), a caça aos “ feiticeiros" nos alojamentos... Todo mundo sabe que tudo isso existe, que já aconteceu e pode ocorrer novamente. Está simplesmente na reser­ va. Por enquanto, a máquina antigreve ronrona brandamente. Per­ seguição no trabalho, mobilização da chefia, chantagem dos intér­ pretes, ameaças. A rotina. E assim que os automóveis são fabricados. Há máquinas que moldam a chapa, outras que amassam a matéria hurtpna. A fábrica 83

é um todo. Os homens e as mulheres da oficina trabalham em silên­ cio, seus rostos nada dizem. É sobre eles que agora pesa a engrena­ gem. Como avaliar essa resistência? Às cinco horas em ponto, sabe­ remos. A tensão aumenta à medida que o momento se aproxima. T ro ­ cam-se interrogações mudas. Que fará o vizinho? Que farei eu? T o ­ mar sua coragem em mãos, tomar sua decisão. Observa-se o chefe de equipe, o contramestre, bem à vista, a alguns metros, tão perti­ nho... E depois tudo se passa rapidamente. Cinco horas: de toda par­ te operários dirigem-se na direção dos vestiários: imobilização de um terço dos seus efetivos. Os outros não podem fazê-la funcionar de novo. Há vagas demais a preencher. Barulho de vozes. O contra­ mestre Huguet postou-se na saída e lança um apelo a um grupo de negros que vão embora: "Escuta aqui, não está na hora! Vocês vão ver!" De seu lado, Dupré agita-se no estofamento. M as já é t&rde demais. A onda de grevistas escoa-se em silêncio. Sinto no peito um súbito /1 de a d m ira ^ "

ela

Novamente o Café dos Esportes e seu subsolo enfumaçado. Logo após ganhamos nossa toca e ali nos amontoamos. Precisamos dar um balanço. Todos nós sentimos a diferença dessa paralisação silenciosa. Ontem, foi uma explosão de alegria, uma grande confu­ são, uma surpresa por sermos tão numerosos. Hoje. cada grevista deixou seu posto sem uma palavra, sem um gesto. Os rostos esta­ vam sérios. Durante todo o dia sentimo-nos vigiados. A s discussões refugiaram-se nos mictórios, nos cantos dos corredores. A fábrica encolheu-se: cochichos do nosso lado e a voz dos chefes, que não parou de troar, de ocupar o terreno. É como um garrote colocado pela manhã: hoje, terça-feira, primeiro aperto. O que será o segun­ do'’ Oficina por oficina, fazemos a conta dos grevistas. Quase tre­ zentos. Cem a menos do que ontem é, afinal de contas, pouco,quando se toma em consideração a mobilização feita pela diretoria. De qualquer forma, é um freio. O movimento não se desenvolve. Sonhávamos com uma avalancha, porém somos obrigados a cons­ tatar que fizemos o rpáximo no primeiro dia: agora, é a erosão que começa. Outro golpe duro: afora Choisy. nada ocorreu nas fábricas 84

de Citroen na região parisiense. A "recuperação" começou a fun­ cionar em toda parte, sem incidentes. Estamos isolados. Com o ganhar novamente o terreno perdido? Os camaraaas opinam, um por um. Primo, o siciliano, Georges, o iugoslavo, Sadok, o argelino, Christian, o bretão, Boubakar, o maliano... É Mohamed, o pastor cabila da oficina de pintura, quem fala mais longamente, com sua voz monótona e sua estranha maneira de es­ colher palavras literárias. Am anhã de manhã, falaremos aos grevis­ tas de segunda-feira que não suspenderam o trabalho hoje; talvez se possa recuperar os trânsfugas, contrabalançar em parte o efeito das ameaças dos chefes. Mas isto somente não basta. É preciso tentar alargar a base do movimento, procurar todos os apoios possíveis. A seção da C G T distribuiu, na semana passada, um panfleto contra a “ recuperação". Mas na segunda e na terça-feiras ela não se ma­ nifestou de modo algum. Ele, Mohamed está pronto a ir vê-los, em nome da comissão de base, e a pedir-lhes para tomar a palavra na cantina, ao meio-dia. Os delegados do pessoal podem representar uma proteção legal, uma instância de recurso. Concordamos que devemos pedir aos delegados da C G T para intervir. Outra coisa, leniaicm os discutir com os ajustadores e deter­ minados chefes de equipe. Os iugoslavos sugerem que se faça úm panfleto destinado especialmente aos agentes de controle. Apelarse-á para eles. no sentido de pão agirem como furadores de greve. Discussão animadji. A!',uns pensam que esta ação será inútil. Christian diz que a mí..oria dos chefes pertence à C G T ; são fura­ dores de greve oficiais. E verdade, talvez, mas não todos. E impor­ tante mostrar que sabemos fazer a diferença e reconhecer os chefes que permanecem relativamente neutros. Finalmente, a idéia do panfleto é aprovada com uma condição que Primo propõe: deve-se denunciar nominalmente os chefes que fizeram intimidações aber­ tas e dirigiram ameaças aos operários que suspenderam o trabalho às cinco horas. Mas, ao mesmo tempo, dirigir-nos-emos a todos os quadros, agentes de controle, chefes de equipe, ajustadores, dizendo-lhes: o trabalho de vocês não devia ser um trabalho de intimida­ ção; para vocês também, é uma questão de dignidade. O direito de greve existe. Entrar em greve é uma questão de consciência, é um direito individual. Respeitem os operários que suspendem o traba­ lho às cinco horas. 83

Redação trabalhosa. A reunião foi longa, com muitos detalhes e muitas repetições. È o cansaço que começa a minar, prolongando demais as inlevenções. N ão se escuta bem, as pessoas se irritam, fala-se alto... Bem. Enfim, pronto! Só falta agir. Mohamed e Simon saem para procu­ rar Klatzman no meio da noite (ele mora num H L M * em Yvry). Primo, Christian e eu vamos mimeografar os panfletos com Yves. Estênceis. Erros de datilografia. É necessário rebater. O mimeógrafo. Seu ronronar cadenciado. Parece-me escutar um trem que se vai dentro da noite, pacificamente. Imagens de ou­ tros lugares. A noite decorre entre cheiro de tinta e atrito das resmas de pa­ pel. E já a manhã se precipita! Diante da fábrica, quinze para as sete. A excitação palpitante que sucede às noites em claro. Percepção aguçada, inquieta, dos sons, dos rostos, das luzes da noite que se acaba. O metal do pprtão, a aresta escorregadia da calçada, a massa simétrica dos edifí­ cios da fábrica, o desfile silencioso dos candidatos a um emprego, a fina nuvem das respirações e dos cigarros no ar gelado. Distribuímos nossos panfletos. A coisa acontece rapidamente. Como um soco na barriga. Quatro sujeitos avançam. Brutalidade. Panfletos que voam pelo ar. Um a qüeda na calçada. Pancadas. Vislumbres de casacões na noite. Gritos. Eles berram: “ Caiam fora! os operários querem rabalhar!” Reconheci um rosto, um ajustador da oficina de forjatura estampada. Precipitamo-nos. Entrevejo Christian atracado com um tipo, Yves com um outro. Agarro um forro (ie casaco, apa­ rece uma cara grossa, deformada pela raiva, depois desaparece ra­ pidamente na confusão. Movimentos. Alguns operários nos apoiam. Ouço: “ São chefes, são os tipos da C F T ! ” E também: “ Há um ferido!” Um dos distribuidores de panfletos sangra. Outro, saindo da confusão, protege seu pacote de panfletos. Alguém grita aos sujeitos: “ Vocês não são operários, são policiais do patrão!” Rechaçados, entram na fábrica, ameaçando: "Voltarem os com mais gente e vocês serão liquidados!” I * “ IIIM '

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sfio conjuntos Residenciais do iipo “ B N I I . ”

Respiração ofegante de fim de briga. As vestes desfeitas são ajeitadas. O rapaz que sangra botou um lenço na testa. A distribuição recomeça. As respirações acalmam-se progressivamente. Este foi o segundo aperto - o dia será duro. Junot volta ao ataque às sete e meia. O lugar onde descarrego os ganchos de suspensão está situado na entrada da oficina, bem em frente ao escritório do chefe de setor. Vejo. de meu lugar, a alguns metros de distância, a gaiola metálica verde oliva, guarnecida de vidros opacos, que se destaca do muro da oficina, como uma saliência. Lá pelas sete e meia, começa uma manobra que excita a minha curiosidade. Um ajustador substitui o maliano dos chassis, na gran­ de linha de montagem e manda-o para o escritório. O maliano pas­ sa lentamente diante de mim e entra, hesitante, na gaiola de vidro. Dois ou três minutos depois, vejo-o sair, como se tivesse sido mas­ sacrado, e retomar seu lugar. Em seguida, o ajustador substitui um português do posto do carrossel das portas. O escritório. Quando sai de lá, tem um ar acabrunhado. Depois, é a vez de Stepan, o iu­ goslavo das fechaduras, que vejo voltar com os dentes trincados, respirando rápido, com raiva. U m outro. Um outro ainda. N a pausa de oito e quinze, corro para saber as noticias. Ê a convocação individual dos grevistas. A todos o chefe de setor fez o mesmo discurso: deixar o posto às cinco da tarde é ilegal, é uma violação do contrato de trabalho. “ Você sabe, pelo menos, o que quer dizer “ contrato de trabalho” , em francês? Você deve se infor­ mar. Não estamos num país de selvagens, aqui existem leis” . Con­ clusão: em tais casos, a direção tem o direito de demitir sem aviso prévio. E aos que moram em alojamentos da Citroen lembra que se trata de uma concessão da direção, que ela pode anular esse privilé­ gio a qualquer momento. “ Tenha cuidado, a França acolheu você mas você tem que respeitar suas leis. Pode ir” . Só os imigrantes são chamados. De qualquer forma, é a maio­ ria esmagadora. Durante toda a manhã, vejo-os sucederem-se um a um no es­ critório de Junot. De cada vez, imagino a cena que se está desenro-

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lundo atrás do vidro opaco. O chefe de setor sentado, bem acomo­ dado na sua poltrona, atrás da papelada. O paletó de aber­ to. Hm frente, o sujeito, em pé. constrangido dentro de sua roupa suja, ainda todo impregnado das marcas da linha de montagem que acabou de largar, sentindo-se encurralado num desi­ gual. Que atitude tomar? Fixar a vista nos olhos do chefe de setor? Fie julgará que é uma provocação: Baixar a cabeça, olhar para o chão? Como aceitar essa humilhação suplementar? Deixar errar o olhar à esquerda, à direita, ao longe? Sintomático, não é mesmo, es­ ses imigrantes que têm o olhar fugidio: pode-se lá confiar nessa gen­ te... Na boca do chefe de setor, até o tratamento de “ senhor" carre­ ga uma ameaça implícita. Ao contrário dos outros chefes e dos con­ tramestres, que nos falam diretamente e sem rodeios, Ju n ot chamanos pelo nome de família e tem o cuidado de dizer “ senhor". " T e ­ nha cuidado, senhor Benhamud..." Não se iluda. N ão há nisso qualquer traço de respeito. De resto, tudo mais na sua atitude e na sua linguagem, indica permanentemente que você é um “ cabra sxfado". Não, se ele assume esses modos excepcionalmente cerimonio­ sos. é para que se veja na sua admoestação e linguagem oficial das cartas registradas, com aviso de recepção. Advertências, suspen­ sões, demissão.

tweed

tête-à-têtc

Na saída, tento adivinhar o resultado em cada rosto. Será que agüentará? Ou não? Aquele ali parece acabado. Nos traços daquele outro parece-me que a colera predomina. Eis um que sai encolhen­ do os ombros, fatalista. Georges afasta-se com escárnio e ainda por cima detém-se para acender um cigarro. Um argelino sai de ta+ for­ ma chocado que parece não saber mais o caminho a,seguir: para voltar a seu posto e erra alguns instantes, ao acaso', na oficina. A o meio-dia, cerca de trinta operários já foram chamados. Os outros esperam sua vez. Ansiedade difusa. Cantina. A missão a cargo de Mohamed e de Simon, junto á seção da C G T , foi bem-sucedida. Um delegado vai falar. Já vem abrindo caminho, com seus ombros largos, paletó de couro. E Boldo, um profissional francês, bem-falante e antigo na empresa. Alg u ­ mas palavras gritadas, para que todo mundo escute. Denuncia as manobras de intimidação, lembra que a greve é legal, pede aos ope­ rários que mantenham os delegados a par das violações do direito

de greve nas diferentes oficinas, E ouvido num silêncio quebrado apenas pelo barulho das bandejas e das cadeiras dos que vão che­ gando. Terminada a fala, o zunzum recomeça e. em cada mesa. tra­ dutores improvisados explicam o que ele disse. A cada meia hora refaz a mesma intervenção, a fim de atingir todos os operários das diversãs oficinas que vêm ao

self-scrvice.

Enfim ! A C G T comprometeu-se pela primeira vez desde o começo da greve. Sabemos que ouve uma acalorada discussão no escritório da seção. Alguns participantes não queriam ouvir falar nessa ação, lançada pelos “ esquerdistas". Galice, um dos dirigentes da seção, o mais virulento contra nós, atacou "esses estudantes que vêm dar lições à ciasse operária" (é contramestre responsável da cronometragem no setor dos métodos). Mas acabou se formando uma maioria para apoiar a greve. O pessoal da pintura e Klatzman ganharam a parada. O velho Jojô, meu vizinho de vestiário, chegou a me dizer que nos apoiava e que insistira para que o sindicato se manifestasse. Essa intervenção da C G T dará, sem dúvida, uma espécie de cobertura legal à nossa greve, aos olhos de um certo número de operários. Isso é muito importante. Mas será que bastará para anu­ lar as ameaças cada vez mais precisas que a direção está fazendó a cada grevista? È duvidoso. Depois do almoço. Junot.continua. Convocação. Advertência “ Pode ir". Seu método é simples e eficaz. Cada grevista deve sentir-se pes­ soalmente marcado, visado. É necessário arrancá-lo da relativa proteção da ação coletiva, durante a qual pode se considerar fundi­ do na massa, quase anônimo. É preciso que ouça seu nome ser pro­ nunciado. que o veja com um círculo vermelho em volta, na lista de Junot. que sinta, mesmo se apenas por alguns instantes, toda a má­ quina da Citroen pesar unicamente sobre ele, entre as quatro pare­ des desse escritório nu. metálico, onde ressoa o barulho das linhas que lhe são vizinhas. I re/entos recalcitrantes é ainda muito. Um quarto da fábrica: mais até, contando-sc apenas os operários. Por isso. ataca-se o con­ junto, ponto por ponto, para dele destacar primeiro alguns elemen­ tos. E preciso reduzir essa massa. Em dois ou três minutos, cada um 89

dos que desfilam no escritório de Junot sente a passagem da "p la i­ na". Há tantas palavras, na linguagem da produção, para designar essa operação de nivelamento: aplainar, esquadrar, aparar, polir, li­ mar, laminar... Pranchas de madeira, blocos de pedra, lingotes de aço, chapas de ferro. Eem relação ao homem, essa matéria especial, a qual Junot trabalha, como se diz? Outro setor: os chefes. Será que nosso panfleto surtiu algum efeito desse lado? Nos intervalos do trabalho, tentamos calcular o impacto. Segundo Simon, alguns chefes acalmaram-se. Os contra­ mestres não, é claro. Nesse nível, supremo na hierarquia da oficina, só existem os incondicionais do sistema Citroen. Huguet na oficina 85, G ravier na 86, seus homólogos da pintura e da forjadura estam­ pada, sem fraquejar, sua política de perturbação: presença, repri­ mendas, multiplicação das peças recusadas e dos trabalhos suple­ mentares. Mas abaixo, no entanto, ao nível dos chefes de equipe e dos ajustadores, parece haver uma certa hesitação. Dupré mostrouse um pouco mais discreto do que ontem. E o ajustador ruivo coTn ar de irlandês, da 85 (o que me havia iniciado, sem sucesso, no re­ vestimento de vidros) chegou mesmo a deixar escapar para Simon. como quem mastiga um cachimbo imaginário, engolindo metade das palavras: ... Não quero saber de nada... cinco horas, quinze pras seis... não é comigo... estou aqui pra trabalhar... não pra ques­ tão de horários...” . Simon, triunfante, deu-nos a notícia durante a pausa de três e quinze. Georges assinalou que esse ajustador sempre foi um caso especial. Não se deve ter muitas ilusões. Vamos ver o que farão os chefes às cinco horas. Em todo o caso, há uma vaga es­ perança que seTão menos ameaçadores do que ontem na hora da suspensão do trabalho. Tanto mais que souberam logb da interven­ ção do sindicato, na cantina, contra os atos de intimidação da che­ fia. Perto das cinco horas, quando começam os últimos minutos de intensa espera, é impossível prever o que ocorrerá. Será que conse­ guiremos ganhar terreno? Ou, ao contrário, Junot e seus homens conseguiram intimidar um número suficiente de operários para que a greve se desfaça? E se acontecesse uma reviravolta geral, com mais grevistas do que no primeiro dia? De vez em quando, livro-me ao sonho dessa avalancha que faria ceder a Citroen, obrigando-a a renunciar à “ recuperaçáo” ... Não! È necessário raciocinar. Avaliar. 90

Mas nesta quarta-leira, centro de gravidade da semana, nossa greve tornou-se tão mais complicada com tantas intervenções e aconteci­ mentos! A agressão da C F T contra a distribuição de panfletos pela manhã, a operação “ plaina" do chefe de setor, a ameaça de ex­ pulsão dos alojamentos e de demissão, o pronunciamento da C G T na cantina, as oposições no interior da seção sindical, os ruídos contraditórios sobre o estado de espírito dos chefes. E a irri­ tação dessas parada« r í :" ■, y‘ 'A chefia está atacada dé um'ligeiro àcesso dé febré:‘Tòr'ná-se mais: visível ' ob oJlxo

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'•'n : Há rriudánçasr, transferências?Vèagfupàmen'tos. ;;:' !''i H;S “ Modificações'são’féhasrhà pròdiiçãó? &;! ‘ M! Em nossas linhas de montagem dé-2 O V ; i'ntroduziram'novos carros; Os A m i 8 .«Para cada quatro òu cinco 2 G V ;’um A m i 8. De repente, alguris'postos foram modificados, trouxeram "novas ferra'-mentas ou .substitüiram as'antigasV üfifalK nwwi/* .?erir>Do ík iju í. Racionalização,.com.o eles dizem! !.u Cronometra-se (disfarçadamente: o blusão branco passeia córii o cronômetro' no bolso, coloca-se atrás do isujeito. que. trabalha, no bolso,’ o rfulano faz seus móvimentpsrhabituais. Wac no fim da operação, ninguém .viu, ninguém soube;’agora é só afastar-se com passos lentos e ir Jer, .à parte, tranqüilamente, .o resultado; está re? gistrado). Põe-se tudo isso em fichas, somos decompostos e recom­ postos quase que'em décimos de segundo e, um belo dia, desürpresa, vêm alterar riosso; padrão de ,produtividade.'.‘‘ É; elesrefizÇram os'cálculos lá em cima.rmeu velhò. Olhe aqui suas novas cadências. - Mas.;..(gesto.cansado do.blusão branco,' hipócrita). :Não tenhò >'nada a ivêr com. íssoM.íç retira-sé- rapidamente, /1 i í n O .ornulbeí :.íi v!Racionalização; rnàiijjr.in i; cbiui ubsq o&n ab r::-■ up .:,-'^P,or. que.agora?;Ê o momento aproprjadoimao fazem, nada pór ;acaso.;íTêm. sociólogos,/èstudos,>ie^tatÍ£ti;cas,i.especialistasjde, rel.ar ■ções.humanas, estiídante? de ciências +iumanas^indicadores,: iritér,pretes, sindicalistas amarelos, uma chefíaqüe.tateia o terreno; cojv :frontam;a lexperrêqcià dcíGhdisyrcom;a;xleiJavçl,^dc-:Lcv4 llois e de -Glichy,- consultàmj outros;patrões,.>fazèm, conferências, ,distribuero verbas para conhecer melhor :|udo. isso, -- faça.-me, um,estudo..d.o? -conflitos; do.comportamento .d.a;mão-de-pbra.iimigrada, da menta­

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l‘132 C*

õ avião especial, o navio, a terceira classe;-a viagem nòrconvés'òü em grupos de cento e cinqüenta, num vôo salto de pulgàMârselháOran. É a balbúrdia nas agências de viagem, rias companhias marí­ timas,' nas reservas de aviões. A fábrica c atacada de ümaïfebre de ^iagem. N b lanche, na cantina/parece a Bolsa: ümà id á W ò lt á a Batfta a tanto, Paris-Argel mais barato, umia passagem1 grupo Marselha-Argel, mai é precisor qúé-sejam dez :ao''mésmò' témpã. Para a I u^oslávia, há um ótimõ negócio nias'a data' dâ'pàrtida'éS? de julho,' três dias antes do fechamento'da fábrica! OsqúV-áábèm que não poderão partir/porque naô 'têm :diritíèiro'’du pôïq'üe não têm ninguém parà ver nos sèus países, erram còmo àlmas’mortàs, in­ diferentes tudo, magóados co m -èssa agitação rque ros ?exòÍúi in­ voluntariamente. Os que tentarão partir só pensam nlssò. A.cabeça já está lá: na aldeia cabila ou croata, nos subúrbios de Argèl ou de Barcelona, nas pequenas propriedades de Trás,Os Montês/ou-rios oliveiráis dó Alentejo. A cabeça já èstá entre os pescadores é vinha­ teiros, no.meio do rebanho dê carneiros ou nas barracas dos sapateiros, na praca da aldeia por ocasião das co.nversas,!quando.osol se escopde docemente por detrás das colinas. A cabeça está com ós pais' com a mulher, çom os filhos, .com os irmãos,;Çom as irmãs, com os tios, com as tias, com os primos, còm osíamigos.iLá/Aqúi só.está o corpo, à disposição da Citroen.-Mas, para Citroen; o cor­ po basta. Tanto melhor se a cabeça estiver longe; vamos aproveitar. Vai-se arrancar ainda mais um pouco doicorpo. A ocasíâo é favoráVèl.- i . 1 ï. • ’ .J.1 : íTlOti f .i'J.' O’iîO l *.' .OCiV-jV Racionalização. ; - * . v u;>v ivl'.tiv uv'r: o:o.:
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. r:; Agitam-se durante alguns minutos, fuçam por (todos ,ps lados da -oficina.,Bjneau os reúne., Fazem ,um círculo,, escutam. Depóis, num belo.movimente) de conjupto, dingem-se para, o posto ae Demarcy. Devia dizer, pára cima de Dçrnarcy, pois tanto seagluíinam e se colam nele que mal lhe deixam o espaço mínimo necessário para quç possa fazer .os seus movimentos.-, . ’ ! .Eis então.a dezena de figurões, em círculo, que olharp o,,y,elho trabalhar..-Bineau diz ajnda .ajgurnas.palavras de e^plica^ão,(estou longe, com Kamel, mas escuto pedaços;7>.. exemplo^de mqderniza-141)

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ção do equipamento... sistema de regulagem... normalizar os postos fora da linha... métodos... generalizar... operação piloto.,.-, r e v e n s objetivos... em seguida multiplicar... concentrar... repartir./, orça­ mento das ferramentas... resultados... em seis meses...” ). De quan­ do em vez, mostra Demarcy que está trabalhando. Parece-me en, tão assistir a uma demonstração num hospital, com professor, in­ ternos, enfermeiras, onde o velho seria o cadáver r ou a una visjta, çom guia, ao zoológico, na qual Dem arcy seria o macaco. Mostra também a banca nova em folha ou uma porta defeituosa (da qual se apodera sem cerimônia, no nariz do retoçadpr).,0 termina mas eles lá permanecem, olhando o velho trabalhar. . , Alargaram um pouco o círculo - amontoados, como estav.am,, o calor começava a incomodá-los - desapertam ,um pouco mais as gravatas, assumem poses e arranjam apoios mais confortáveis pança para frente, braços cruzados, rriãos juntas na pasta.-.seguem atentamente os gestos do retocador, observando suas mãos, obser­ vando sua nova bancU e suas ferramentas. Às vezes, Bineau exami­ na o martelo que Demarcy acaba de largar, ou então o maçarico, ou ainda uma porta - sem jamais dirigir-lhe a palavra. Aliás, que poderia ele dizer? Algo assim: “ M uito bem! Continue! Faça.como se não estivéssemos aqui” . Para que: De qualquer maneira, Bineau não parece ter a fibra paternalista, não há motivo para .desperdiçar sua saliva. . . ,, O espetáculo poder-se-ia ter desenrolada desse mpdoaté o fim. do dia, sem incidente.,.,., . ... ... , ,. . . Infelizmente, Demarcy começa a perder o pé.,..^; . Para ele, não resta dúvida, o dis* é terrível. Já peja^m.anhã, hou-: ve a chegada do novo engenho de ferro fundidç e.o .dçsaparççimçn-, to de sua velha banca. ■ Anos de hábito, conhecidosí.»de cor, ex-' ■•. l; ' . ,•; l.-. . . ••' • •Jgestos • *•I t- I «i 1•J -•/.>>/•. % I I I»•r» periência, liquidados de uma vez. Bem, ele .tentop, er\fren.tar.e-u.ltra-. passar o obstáculo, concentrando-se, apegarid.OçSe,.tentando,inventar a pada movimento -.contra essa gròssa.je bruta.máquina^saída diretamente da cabeça de um burpçrata qu^nunça,.empunhou.um martelo ou .uma .lima...Mas .precisava de toda ,sua,.atenção.,,-Mas como çonserváTla agora que esse banho, de chefes, amontoados em torno dele, inquieta-o, confunde-o,.pe.rturba-p? .Tenta conservar sua cabeça inclinada sobre a bancá, mas não pode,deixar.de lançar pequenos olhares por debaixo e.de estremecer a,cada pipoco da voz, de Bineau. Svias mâòs estüo.menos seguras. Não sabe mais em.que

briejjrig

ordem deve efetuar as operações. Não havia uma nota explicativa sobre a máquina, lá em cima, cujo conteúdo esqueceu há muito tempo? O que fazia instintivamente, tenta fazer segundo as prescri­ ções e como está previsto em função dessa maldita máquina. Atrapalha-se. Começa a martelar sèm ter fixado dos dois lados - a porta desliza, recomeça, uma solda, outra (a mão que segura o ferro de soldar treme), para a terceira solda é preciso revirar, desatarracha os tornos, torna a aparafusar, solda... sim, mas do outro lado teria sido preciso martelar... desatarracha, revira a porta, reparafusa, martela, fica vermelho, aborrecido por ter percebido que fez uma operação a mais, coisa que não deve ter escapado a seu temível público: deveria ter acabado um lado, solda e martelagem, antes de revirar a porta e de escorá-la novamente mas deixou-se levar por seus velhos hábitos na velha banca quando, livre de passar à vonta­ de por cima ou por baixo, fazia primeiro todas as soldas, depois a martelagem e por fim a lixação... O círculo de altas personagens murmura. Bineau franze as sobrancelhas. Demarcy, muito vermelho, suando, tenta não vê-los, procura trabalhar colado nos seus retoques para reencontrar o autodomí­ nio, debruça-se mais, quer andar mais depressa, mas o enorme en­ genho de ferro fundido corta suas iniciativas, esmaga sua margem de manobra. Operações inúteis novamente, a mesmá porta revirada três ou quatro vezes (e a cada vez: desatarrachar, cunhar, aparafu­ sar), as soldas malfeitas, os retoques menos precisos... Os cabelos brancos de Dem arcy colam-se na sua testa, emaranhados, rçspira como um boi, gotas de suor correm pelo seu pescoço, molhando a gola azul do seu blusão... •"

'

O bando de Bineau deve ter feito estragos noutros lugares, além da soldagem. N a'o ficin a de pintura, o pessoal está furioso. Mohamed, o pastor cabila, pintor a pistola, veio mé vér. Falou-me que é preciso resistir. Ê preciso relançar a comissão; Fazer panfle­ tos. Descrever ò que está acontecendo.' Prepãràr uma ação. Imedia­ tamente, não: só faltam alguns dias para as férias, não serviriá para nada, não se pode mais movimentar á fábrica. Mas,.depois das fé­ rias. Logo na primeira semana de setembro.’ Estou de, acordo, Mohamèd. Logo em setembro, começaremos.- As distribuições dos panfletos, as reuniões no subsolo; :o trabalho de agitação durante as pausas, nos vestiários,.ná cantina,'no café,‘r.as moradias. Os pa­ péis ém todas as línguas,’afixados nos mictórios, circulando nas li-,nhas;passados de mão em'mão,' decifrados em Voz baixa parà os analfabetos. Contra a intensificação do trabalho e os caprichos.do escritório de métodos. E também contra as transferências arbitrá­ rias por ocasião do fecharnentó de Choisy. Que os operários rece­ bam postós equivalentes 'nas ^outras fábricas da região parisiense. Jojô, o velhò profissional da oficina de pintura, diz qúe a C G T vai também- desencadear uma ação nesse sentido. . j 1 ■. Começo imediatamente e Mohamed também, de séu lado. Pro­ curo todos os que conheço' pára lhes falár sobre õ assunto. O tunisiano de rosto bexigoso da oficina de soldagem. Sadok; Mulud. U m 144

espanhol. Um trabalhador braçal maliano - novato, com o qual já discuti um pouco. Gente do estofaménto que vejo de vez em quan­ do! Simon. Balanço com Mohamed, no Café dos Esportes: Sim, o contra-ataque é possível, logo depois de terminadas as férias. A su­ perfície está aparentemente calma mas, no fundo, uma nova vaga se forma, que vai se avolumar e jogar-se contra eles. Quarta-feira, 30 de julho de 1969. Fim da tarde. M aisalguns minutos de trabalho e para-se por um mês. Sou convocado'aò escritório central. / 1 . Autorização. Subterrâneo. Prédios administrativos do outro lado da avenida de Choisy. Escritório. Papéis. Sou demitido com aviso prévio (que “ dispensá-me dé fazer o trabalho” ). " . , , “ Redução do pessoal” . Recuso-me a assinar a “ quitação", (“ Como quiser, isso não tem importância” ), pego no envelope, corro para ver Klatzman, o delegado da C G T (ele trabalha desse lado da avenida, na seção das ferramentas, um posto isolado onde foi colocado pela direção para que nada possa fazer fora das horas em que exerce a delega­ ção: em caso de urgência, é preciso vir proçurá-lo áli). Klatzman lê todos os papéis,-pede-me alguns detalhes. Nada pode ser feito do ponto de. vista legal. Citroen respeitou as formas.; Quanto a tentar uma ação, um panfleto...: a fábrica está fechando suas portas por um mês! •; .. . .,f. , . . ;; >Vi .,,n Klatzman tem razão. Pegaram-me de jeito. N ada a fazer. Teria preferido uma demissão mais épica. ' Mas a vaga de reVolta que se prepara crescerá de qualquer rriodò.' E,' âlém delá, haverá òUtras:' * ; :,t ■ ''* : Agrádeço'a Klatzman; ver-rios-emos novamente. Voltò pàra déspedir-me dos camaradas da oficina. Tarde démais. Já fazém.al­ guns miniitòs qúé a fábrica está fechada, todo mündó çórreu para á saída, ós vestiários esvaziaram-se num fechar de dlhos;’Um nrnêsJ ao lõrigé. Que venha! Rápido! Rápido! «“

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1A fábrica está fechada.' •• • O pátio .vazio, limpo. Nem caixas,-nem carros prontós/riem émpílhádeirás- nem nem reboqués.' Um pátio com o'bütro qualquer. Algumas dezenas de metrós quadrados dé asfaltoTde

còríiainérd,

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um cinzento mais claro que de costume, sob um sol de julho. O por­ tão continua entreaberto. O guarda desabotoou sua farda, tirou o gorro, coça a cabeça. Vê-se, atrás dele, um tipo atravessar o pátio em diagonal, com as mãos nos bolsos, sem pressa. Um a impressão de repouso. Apenas quinze minutos antes a produção de 2 C V funcionava a todo vapor, mil e duzentas pessoas esfalfavam-se, no barulho e na fornalha. Agora, o silêncio. Os últimos operários afastam-se, virando a esquina do bulevar. Ninguém mais. Olho a fábrica. Vista da rua, tem um ar inofensivo, com seus prédios cinzentos de altura média, embutidos na paisagcui. Moças passam de vestidos leves. O sol bate duramente. As cores, as férias. Acendo um cigarro. Vou na direção do Café dos Esportes, a passos lentos. Olhe só quem está lá, Kam el! O guindasteiro em traje civil Sempre com ar de gigolô. Vestido espalhafatosamente, calças boca de sino, incrível gravata multicolor. Rebola, ao me ver chegar. Dirse-ia que me espera. O que deseja Kam el? . . . '♦t N ão estou com muita vontade de falar com ele. Há tantos ou­ tros que gostaria de encontrar nesse momento e acont^Ce que é jus­ tamente Karnel que me espera! De noite irei ver Mohamed no seu alojamento, para comunicar-lhe minha demissão. Só verei Simon no Hm das férias. Sua mulher está melhor, saem de férias pela pri­ meira vez depois de muitos anos. Vão ver a família de sua mulher, perto de Melun, (" O campo” , diz ele como se falasse da Am azô­ nia!). H á uma semana que não pode conter a impaciência: hoje. prefiro deixá-lo tranqüilo. Encontrarei Sadok esta noite; sei onde estará. Os outros camaradas desapareceram. Uns fecham nervosa­ mente as malas ou já se apertam nos ônibus e nos trens. Outros espalham-se pelos bairros do Norte de Paris, para esquecer, ao menos por uma noite, que não partem.

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Nenhum amigo com o qual desabafar. Gostaria tanto de falar a Primo, a Georges, a Christian, a Mulud, a Ali, a Sadok, a Simon. a Jojô. Ninguém! E preciso esperar. Apenas Kam el, lá, em frente ao Café dos Esportes, em pleno sol. G ravu ra de moda. Kam el, o bajulador, que passava o tempo a me aporrinhar, a bancar o chefe, a forçar a cadência. Kamel, a quem nada tenho a dizer. Ele, ao contrário, parece querer conversar. Mais alguns passos. Çhego até ele. O que é que ele deseja? Digo-lhe, secamente: “ Fui posto na rua.” Ele: " E u sei, Me disseram...” Silêncio. Kam el outra vez: “ Escuta...” Pára, muda de posição como se tivesse formigas nas pernas. Ruído do tergal de suas calças bocas de sino. Ele me irrita, gingan­ do deste jeito. Recomeça. Kamel: “ Escuta, eles queriam me pagar para arranjar uma bri­ ga com você, queriam te botar para fora desse jeito." Eu: “ En tã o ?" Kamel: “ Então; não aceitei.” Eu: “ Por quê?” Kamel: Porque... porque não preciso de dinheiro. Não desse tipo de dinheiro” . Sua arrogância desapareceu, parece meio sem graça - por qué? Por terem pensado nele para fazer um trabalho tão sujo? Por me ter contado? De repente, despede-se e desaparece na esquina. Tenho a certeza de que disse a verdade. N ão duvido sequer que tenha sido . Danglois o autor da proposta; Digo a mim mesmo: Kam el também é a classe operária.

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GREVE NA FÁBRICA L’Etabli Robert Linhart

Um livro que descreve a experiência de um intelectual que se engaja na produção como operário, a fim de exer­ cer uma ação política que não pode ser exercida apenas com palavras - uma ação que deve ser desenvolvida através do trabalho e da convivência com o operariado, ação capaz de impor transformações no sistema social. “Greve na Fábrica” reflete o relacionamento dos ho­ mens entre si através dos objetos. Esta edição está valorizada pela tradução feita pelo líder político brasileiro Miguel Arraes. Durante seus longos anos de exílio, teve a oportunidade, em breves estada's no continente europeu, de apreender a realidade da vida de sua classe operária, além de conviver com grande nú­ mero de intelectuais. Entre eles, está Robert Linhart, com quem discutiu este livro e sua tradução.

MAIS UM LANÇAMENTO PAZ E TERRA UMA EDITORA A SERVIÇO DA CULTURA