O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana 9788501078162

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O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana
 9788501078162

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D A N I E L N. STE RN

0 MO ME N T O P R E S E N T E NA PSICOTERAPIA E NA VIDA COTIDIANA

Tradução de CELIMAR DE OLIVEIRA LIMA Revisão técnica de MARIA DE MELO

___ A E D I T O R A RI O

DE

JANEIRO

2007

R E C O R D •

SÃO

PAULO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ.

S858m

Stem, Daniel N., 1934O momento presente na psicoterapia e na vida cotidiana / Daniel N. Stem; tradução de Celimar de Oliveira Lima; revisão técnica de Maria de Melo. - Rio de Janeiro; Record, 2007. Tradução de; The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life Apêndice Inclui bibliografia ISBN 978-85-01-07816-2 I. Stem, Daniel N., 1934- . 2. Psicoterapia. I. Título.

07-1221

CDD - 616.8914 C D U - 615.851

Título original THE PRESENT MOMENT IN PSYCHOTHERAPY AND EVERYDAY LIFE

Copyright © 2004 by Daniel N. Stem, M.D. Publicado mediante acordo com Lennart Sane Agency AB

Capa: Olga Loureiro Design

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Direitos desta tradução adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 -Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil ISBN 978-85-01-07816-2 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

e d ito r a a f ilia d a

Em memória de Jerry

Para ver o mundo num grão de areia e o paraíso numa flor-do-campo Guarda o Infinito na palma de tua mão E a Eternidade numa hora WlLLIAM BLAKE

Sumário

Prefácio

11

Agradecimentos

19

Parte I EXPLORANDO O MOMENTO PRESENTE 1. O problema do “agora” 25 2. A natureza do momento presente

45

3. A arquitetura temporal do momento presente

63

4. O momento presente como uma história vivida: sua organização 77

Parte II CONTEXTUALIZANDO O MOMENTO PRESENTE 5. A matriz intersubjetiva

97

6. A intersubjetividade como um sistema motivacional básico e primário 119 7. Saber implícito

135

8. O papel da consciência e a noção de consciência intersubjetiva 145

O MOMENTO PRESENTE

Parte III VISÕES DO PONTO DE VISTA CLÍNICO 9. O momento presente e a psicoterapia 10. O processo de seguir adiante

159

175

11. O entretecer do implícito com o explícito na situação clínica 213 12. O passado e o momento presente

Prefácio

223

13. Mudança terapêutica: um resumo e algumas implicações clínicas gerais 247

Apêndice A ENTREVISTA MICROANALÍTICA 257 MUITAS

Glossário

271

Referências bibliográficas índice remissivo

297

277

das

IDÉIAS para escrever este livro teimaram em seguir-me

por várias décadas, algumas desde o início de minha carreira, e ou­ tras desde que consigo lembrar. Talvez a mais insistente delas, que permeia todo o livro, seja o foco nos pequenos acontecimentos momentâneos que formam nos­ sos mundos de experiências. O meu interesse aumenta quando esses momentos penetram a consciência de alguém e são compartilhados entre duas pessoas. Essas experiências constituem os momentoschave de mudança na psicoterapia e os pontos nodais nos relacio­ namentos íntimos cotidianos. Esses são os momentos presentes do título. Ressalto que este livro não trata do significado no sentido clíni­ co mais comum de explicar o presente em termos do passado e de estabelecer ligações associativas que possam ser interpretadas. Ele aborda a experiência no momento em que está sendo vivida. É es­ sencial ter isso em mente. Meu interesse pelo momento presente surgiu nos anos 1960-70, quando comecei a usar filmes e vídeos, que funcionaram como uma espécie de microscópio, para estudar a interação mãe-bebê e vê-la se desdobrar. Um mundo fascinante se abriu. Aos poucos percebi quantas coisas acontecem em apenas poucos segundos. Comecei a pensar nesses momentos como os blocos de construção básicos da experiência. Quando passei a dominar essas técnicas (por exemplo, 11

0 MOMENTO PRESENTE

congelamento da imagem, câmera lenta, repetições de segmentos), pude usá-las, de forma não sistemática, em tempo real, por perío­ dos breves, para ver meus pacientes de psicoterapia de modo dife­ rente. Eu estava apenas iniciando minha carreira de terapeuta. Alguns momentos na terapia começaram a revelar aspectos do processo terapêutico diferentes dos que eu estava treinado para ver. Minhas anotações durante um encontro com uma paciente em 1969 ilustram isso: “Ela entra no consultório e senta-se na cadeira. Desa­ ba sobre ela. A almofada afunda rapidamente e ela leva mais cinco segundos até se acomodar. Ela claramente espera por isso, mas, antes que a almofada exale seu último suspiro, cruza as pernas e transfere o peso de quadril. Novamente a almofada se esvazia e se reequilibra. Esperamos que ela termine. Na verdade, ela espera, está ouvindo, sentindo. Estou pronto desde que ela chegou, mas agora aguardo também. É difícil saber quando a almofada exauriu todo o ar. Mas tudo espera. Será que ela sente que está esperando, ou ganhando tempo? Tudo espera que ela esteja pronta. Percebo que estou restringindo meus movimentos até que ela termine. Qua­ se como se eu tivesse de prender a respiração para apressá-la, para melhor julgar quando o ponto de quietude for atingido e a sessão puder ‘começar’. Quando finalmente penso que seu corpo e a al­ mofada estão prontos, que o som e a sensação de acomodamento cessaram, começo a me mexer na poltrona, em antecipação, respi­ rando mais livremente. Mas ela ainda está ouvindo o som refluir e ainda não está pronta. Minha mudança de posição é interrompida pela espera dela. Sinto como se tivesse sido surpreendido numa brin­ cadeira de ‘estátua’. É ridículo. E posso perceber uma irritação cres­ cer em mim por ter meus ritmos tão perturbados e controlados. Devo deixar que ela continue? Comentar o assunto? Ela nem ima­ gina que já encenamos os temas principais da sessão, e um tema importante da vida dela.” Antes da minha experiência com o mundo micromomentâneo dos acontecimentos implícitos, nada disso viria para o primeiro plano. Passaria despercebido, esperando que ela falasse. 12

PREFACIO

Tais experiências me levaram a criar a entrevista microanalítica como um modo de chegar mais perto da experiência subjetiva vivi­ da no nível micromomentâneo. É claro que ninguém consegue che­ gar a essa experiência e nela permanecer enquanto fala sobre ela. Mas isso não me impede de pensar sobre ela nem de me aproximar o máximo possível. Este livro é sobre a experiência subjetiva — especialmente aquelas que acarretam mudanças. Como as experiências fazem isso? De que são feitas? Quando é que acontecem? A natureza da experiência é um tópico vasto. Meu interesse se limita a um pequeno quadrante: a saber experiências que provocam mudanças na psicoterapia e nos relacionamentos pessoais da vida cotidiana. O pressuposto básico é o de que a mudança baseia-se na experiên­ cia vivida. Compreender, explicar ou narrar algo verbalmente, por si só, não é suficiente para provocar alterações. É preciso também que haja uma experiência real, um acontecimento vivido subjetiva­ mente. Um acontecimento precisa ser vivido, com sentimentos e ações ocorrendo em tempo real, no mundo real, com pessoas reais, num momento de presentidade. Dois exemplos simples de uma experiência vivida são: olhar nos olhos de outra pessoa que está olhando para você e respirar fundo enquanto está falando com al­ guém. Ambas são ações com sentimento. A idéia de presentidade é chave. O momento presente que pro­ curo é o da experiência subjetiva na hora em que ela ocorre — e não quando é remodelada por palavras mais tarde. O momento presente é a unidade de processo das experiências que nos interes­ sam mais. Um primeiro passo em direção à compreensão da expe­ riência é explorar e compreender esse momento. Este livro narra essa exploração, que objetiva modificar sua visão sobre o que está acontecendo numa sessão de psicoterapia e, por conseguinte, mu­ dar sua forma de abordá-la e mostrar o que você pode fazer duran­ te essa sessão. Um esboço das alterações que fiz no título do livro enquanto o escrevia pode ajudar a prepará-lo para essa compreensão. Os títu­

0 MOMENTO PRESENTE

los provisórios capturam a idéia central que é o foco da atenção num determinado período e numa fase específica de um trabalho. Considerados em conjunto, os títulos provisórios deste livro reve­ lam as idéias por trás dele. Embora seja em parte um resumo de algumas idéias nas quais trabalhei durante anos, acrescido de ou­ tras recentes, o livro é, sobretudo, uma nova integração. A medida que essa integração evoluía, um novo título substituía o anterior. Ao considerar o micromundo do momento presente, pensei pri­ meiro no título preliminar Um mundo num grão de areia , de William Blake. Além de poético, capturava a dimensão do pequeno mundo revelado pela microanálise e ao mesmo tempo atraía a atenção para o fato de que muitas vezes é possível ver o panorama mais amplo do passado e da vida atual de alguém nos pequenos comportamen­ tos e atos mentais que compõem esse micromundo. Além do mais, e de importância vital, ver o mundo nessa escala de realidade muda o que pode ser visto e, portanto, muda as nossas concepções básicas. O micromundo experimentado sempre penetra a consciência perceptiva, mas só às vezes penetra a consciência (consciência perceptiva verbalizável). Trata-se muito mais de um saber implícito do que um conhecimento explícito e verbalizado. Quando a importân­ cia do mundo implícito tornou-se mais evidente para mim, brin­ quei com o título A face obscura da Lua, numa referência à natureza do saber implícito. O aspecto temporal do momento presente (como o mundo num grão de areia) precisa ser abordado. O que a arquitetura temporal de tais momentos nos diria? E como a experiência fenomenal da presentidade poderia ser discutida? Afinal, a presentidade da expe­ riência vivida é essencial. Essa pergunta lançou-me numa extensa viagem de aprendizado ao reino da filosofia fenomenológica, um terreno novo e estranho para mim. Foi então que veio à tona o fato oculto, mas óbvio, de que estamos psicológica e conscientemente vivos apenas agora. O que mais me intrigou foi a seguinte indaga­ ção: por que a psicologia clínica não tomou como ponto de partida a experiência vivida diretamente no presente? (Os terapeutas o fi­ 14

PREFÁCIO

zeram mais recentemente.) Isso é, certamente, um desvio radical do caminho historicamente seguido pela maioria das psicologias, que dão ênfase ao passado e a sua influência. Também implica que a cons­ ciência, mais do que o inconsciente, é o mistério-chave, outro desvio radical (possibilitado pelo enorme volume de trabalhos já realizados sobre o funcionamento do inconsciente). A luz desse questionamento, o título seguinte foi Uma visão fenom enológica da experiência psicoterapêutica. Entretanto, a fenomenologia era somente uma perspectiva necessária e útil, e não o assunto do livro. Outra característica do momento presente que me intrigava era o fato de ele ter um trabalho psicológico a fazer. É preciso aglome­ rar e entender o momento enquanto ele está passando, e não de­ pois, e voltar para a próxima ação. Com isto em mente, o título seguinte foi Kairos, a palavra grega para o momento propício ou o momento em que algo vem a ser. Kairos é uma unidade de tempo tanto subjetiva quanto psicológica. Claramente, o momento pre­ sente precisa ter aspectos de kairos porque necessita entender o que aconteceu no passado, o que está acontecendo agora e como agir em relação a isso. Ele requer uma completa apreensão dos aconte­ cimentos no instante em que eles se desdobram. Isso reforçou a necessidade de examinar a arquitetura temporal do momento pre­ sente e de ver que ele compõe uma breve “história vivida” emocio­ nal. Kairos também era atraente como título porque sugere o encontro de elementos independentes e não relacionados num de­ terminado ponto do tempo, fazendo emergir momentos especiais. E isso é exatamente o que o Boston Change Process Study Group (BCPSG) estava descobrindo no processo clínico à medida que pro­ curávamos momentos que levassem à mudança terapêutica. Entre­ tanto, kairos não poderia ser um título, pois normalmente nasce no âmbito de uma psicologia individual. E eu estava verificando em nosso trabalho no Boston Group que o material clínico é ampla­ mente co-construído — que estamos lidando com uma psicologia de duas pessoas.

0 MOMENTO PRESENTE

Daí o título seguinte, O momento de encontro. Em nosso traba­ lho clínico conjunto, a importância da subjetividade (ou seja, a mente lendo os pensamentos, sentimentos ou intenções do outro) era cada vez maior. Motivações intersubjetivas mostravam-se responsáveis pelo fluxo de pequenos movimentos dos parceiros durante uma sessão. Além disso, O momento de encontro descrevia a natureza da co-criatividade e a ampliação do campo intersubjetivo servindo de contexto principal para outras mudanças no tratamento. A medida que eu buscava a importância da intersubjetividade na terapia e em toda experiência íntima e bem coordenada de grupo, ficava claro que a intersubjetividade era um útil processo intermental e também constituía em si mesma um sistema motivacional importante, es­ sencial para a sobrevivência humana — semelhante ao apego ou ao sexo. As implicações de elevar a subjetividade a tal status não pode­ riam ser completamente analisadas sem que eu escrevesse um livro diferente. As reflexões sobre a intersubjetividade como matriz de uma psi­ cologia de duas pessoas também levaram ao conceito de uma possí­ vel nova forma de consciência: a “consciência intersubjetiva”, um modo de reflexividade que surge quando nos tornamos conscientes do conteúdo de nossa mente por ser este refletido para nós pela mente do outro, simultaneamente. O momento de encontro tinha outra grande vantagem como título. Ele reunia o momento presente, a noção de kairos, a inter­ subjetividade e a co-criação no processo terapêutico. Além disso, por ser um acontecimento que se desenrola no presente, fica claro que algo afetivo tem de acontecer e ser compartilhado naquele momento a fim de alterar o campo intersubjetivo implicitamente sentido. O que é compartilhado num momento de encontro é uma história vivida. Ela é física, emocional e implicitamente partilhada, e não apenas explicada. As noções de “afetos de vitalidade” e de “viagens de sentimento compartilhadas”, apresentadas mais adian­ te no livro, foram necessárias para dar substância à idéia de uma história vivida de forma compartilhada. Eu precisava de tais mo­ 16

PREFÁCIO

mentos, também, para chegar a um tipo de consciência que fosse terapeuticamente utilizável. Aqui, surgiu a consciência intersubjetiva que acompanha a viagem de sentimentos compartilhada. Em última análise, porém, o momento de encontro é apenas um tipo especial de momento presente. Então cheguei ao título O m o­ mento presente na psicoterapia e na vida cotidiana , que continuava a reaparecer quando outros títulos provisórios eram abandonados. E o mais abrangente deles, englobando todos os outros, e o que melhor mantém o foco na integração dessas diversas idéias e no papel do tempo e da presentidade. Reflete, ainda, com precisão, a noção de que o ponto de vista do livro é microanalítico e fenomenológico. Essa visão granular talvez seja a característica mais exclu­ siva das descrições fornecidas. A realidade fenomenal do momento presente captura isso. Todos os passos na evolução dessas idéias estão representados no plano do livro. Cada capítulo tenta estabelecer um aspecto es­ sencial do momento presente como a unidade de processo de expe­ riências que pode conduzir a mudanças. Eis o plano: A parte I do livro é uma exploração do momento presente. O primeiro capítulo trata do problema do “agora”. Afinal, é quando um momento presente acontece. O capítulo 2 aborda a natureza do momento presente, enquanto o capítulo 3 examina a arquite­ tura temporal do momento presente e o capítulo 4 discute sua organização. A Parte II contextualiza o momento presente, explorando três das noções mais importantes para situá-lo no processo terapêutico: intersubjetividade, conhecimento implícito e consciência. Duas (ou mais) mentes podem se interpenetrar e compartilhar quase as mesmas experiências. São capazes de intersubjetividade (especialmente entre paciente e terapeuta). Os momentos presentes de mais interesse ocorrem quando duas mentes se encontram. O capítulo 5 descreve a intersubjetividade penetrante na qual os trata­ mentos são conduzidos e a vida social é vivida. O capítulo 6 sugere

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a importância adaptativa da intersubjetividade tanto para a evolu­ ção como para a psicoterapia. Muito do que é apreendido no momento presente pertence ao domínio do conhecimento implícito. Conseqüentemente, é neces­ sário olhar de perto essa forma de conhecimento. Este é o assunto do capítulo 7. Por fim, a posição do momento presente ao longo da dimensão da consciência é essencial para quem deseja examinar como as ex­ periências que estão ocorrendo “agora” podem ser recordadas, in­ fluenciadas, verbalizadas e narradas. Isso é discutido no capítulo 8. A parte III compreende uma visão de como o momento presen­ te opera na situação clínica. O capítulo 9 apresenta a operação do momento presente no setting clínico. No capítulo 10 é explorado o que ocorre numa sessão, momento a momento. Discute a imprevisibilidade e a “desordem” do processo terapêutico e suas duas mais importantes propriedades emergentes resultantes: o momento agora e o momento de encontro. Isso envolve uma descrição fiel do que acontece no nível local e no micronível do momento presente. Esses são os aspectos práticos do fluxo de uma sessão. O capítulo 11 fala do entretecer do implícito com o explícito. Muito do que acontece em psicoterapia é explicado na linguagem, inclusive nas interpretações. As influências mútuas entre o implícito e o explícito são exploradas. O capítulo 12 discute o passado e o momento pre­ sente. Analisa como o momento presente é influenciado pelo passa­ do e debate a necessidade de ser capaz de abarcar um passado assim como um presente, sem o qual não há base para um pensamento psicodinâmico, examinando as maneiras de realizar isso. Finalmente, o capítulo 13 resume o papel do momento presente na mudança psicoterapêutica e fornece implicações clínicas. Devo começar, então, pelo problema do agora como o primeiro passo na exploração do momento presente, nosso microscópio para observar como a mudança acontece.

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Agradecimentos

M eu PRIMEIRO CONTATO com o arauto do momento presente se deu quando comecei a aprender sobre o mundo micromomentâneo da interação mãe-bebê que ocorre naturalmente. Na época, muitas décadas atrás, eu conhecia alguns outros pesquisadores e clínicos que estavam explorando esse pequeno mundo com técnicas de ci­ nema e TV. Entre eles encontravam-se Lou Sander, Colwyn Trevarthen, Berry Brazelton, Ed Tronick e Beatrice Beebe. Este pe­ queno grupo mantinha contato e compartilhava um entusiasmo comum. Afora isso, era um trabalho solitário, mas sou grato a eles por encorajarem-se mutuamente e ajudarem a formar uma massa crítica que explorou o micromundo.

Quase simultaneamente, conheci um grupo de coreógrafos de Nova York que estava fazendo experiências com técnicas semelhantes na dança: repetições de seqüências curtas, imagens congeladas, apre­ sentação retroativa dos acontecimentos etc. Eles iam ao meu labo­ ratório na Universidade de Colúmbia, no Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York, para assistir a algumas de minhas análises de filmes sobre a interação mãe-bebê, e eu ao centro da cidade, obser­ var o trabalho que eles desenvolviam com os bailarinos que, à pri­ meira vista, me pareceu pouco promissor em termos de aprendizado e inspiração. Mas não a um segundo olhar mais atento. Nesse con­ texto, tive a sorte de fazer amizades duradouras com o coreógrafo Jerome Robbins e com o ator de teatro Robert Wilson, o que me 19

O MOMENTO PRESENTE

permitiu ver espetáculos de dança e de teatro tomarem forma des­ de sua concepção, passando pelos ensaios, até a estréia. Seguiu-se uma troca que durou décadas. Para mim foi uma incrível oportuni­ dade de aprender sobre os reinos não verbais. Quero agradecer tudo que eles me ensinaram. Então, nove anos depois, alguns de nós deram início a uma rica colaboração. Os campos da psicoterapia, psicanálise, psicolo­ gia do desenvolvimento e pediatria estavam representados. E sur­ giu o Boston Change Process Study Group. Durante o tempo em que formulei e escrevi o livro, os membros do grupo eram: Nadia Bruschweiler-Stern, Alexandra Harrison, Karlen Lyons-Ruth, Alexander Morgan, Jeremy Nahum, Louis Sander e Edward Tronick. Muitas das idéias importantes inseridas neste livro emer­ giram dessa colaboração. Tornou-se evidente que, quando trabalhávamos em grupo — o que fazíamos intensivamente — um poderoso processo de cocriação se instalava. Retrabalhávamos uma idéia que havia se ori­ ginado de um de nós, transformando-a num conceito diferente ou mais elaborado, ou ligando-a a uma idéia que viera de outra pes­ soa para formar uma noção completamente nova. Ficava impossí­ vel desembaraçar sua história. É por esse motivo que decidimos publicar trabalhos coletivamente após nossos dois primeiros li­ vros. Como estávamos examinando o processo de co-criação em psicoterapia, talvez não fosse surpreendente encontrar o mesmo processo em nosso trabalho conjunto. Ou quem sabe não seria o

AGRADECIMENTOS

da forma mais cuidadosa possível as publicações tanto do grupo como de seus membros isoladamente, conforme elas se relacionam com o assunto em pauta. Agradeço profundamente a esses colegas e expres­ so o prazer que tive ao trabalhar com eles. Este livro teria sido dife­ rente sem o Boston Change Process Study Group. Duas pessoas de grande conhecimento leram o livro em está­ gios preliminares: Elizabeth Fivaz-Depeursinge, em Lausanne, e Daniel Siegel, em Los Angeles, e suas críticas, sugestões e incentivo tiveram valor inestimável. Quero agradecer em especial à minha editora, Deborah Malmud. Depois de ler a primeira versão, ela me escreveu uma carta de sete páginas, em espaço simples, repleta de sugestões, questionamentos, pedidos de esclarecimentos e idéias para a reordenação das seções. Ainda assim, era encorajadora. A princípio fui pego de surpresa e não fiquei muito contente. Após muitas leituras, comecei a apreciar a carta, mas não exatamente a gostar dela. Quando voltei ao traba­ lho, levando em conta o que ela escrevera, passei a me apoiar cada vez mais em seus conselhos. Acabei não só por gostar da carta, mas também por considerá-la um brilhante trabalho de edição. Graças a ela, o livro ficou mais fino e mais claro. Por fim, agradeço o estímulo dado por minha família, parti­ cularmente minha mulher, Nadia, que lê partituras com grande sen­ sibilidade e um ouvido soberbo, tanto para o tom quanto para o conteúdo.

caminho inverso? O material clínico é o que mais diretamente deriva de nosso tra­ balho conjunto, particularmente mostrado nos capítulos 10 e 11, que se baseiam amplamente em nossas publicações coletivas. Entretanto, dei a esse material um viés bem diferente, e muitos dos conceitos ou ênfases não estão necessariamente de acordo com os que o grupo pode ter desenvolvido. Além disso, alguns membros podem discor­ dar das fontes de onde obtive dados. A fim de respeitar as contribui­ ções do grupo e de seus membros individualmente, tentei mencionar 20

21

EXPLORANDO O MOMENTO PRESENTE

Capítulo 1

O PROBLEMA DO "AGORA"

A IDÉIA DE UM MOMENTO PRESENTE é proposta como uma forma de lidar com o problema do “agora”. É notável como sabemos pouco sobre as experiências que estão ocorrendo exatamente neste instante. Essa ignorância relativa é especialmente estranha à luz do seguinte: Primeiro, estamos subjetivamente vivos e conscientes apenas agora. E agora é quando vivemos nossa vida diretamente. Em tudo mais há uma separação de segundo ou terceiro grau. A única hora de realidade subjetiva crua, de experiência fenomenal, é o momen­ to presente. Segundo, a maioria das psicoterapias concordam em que o tra­ balho terapêutico no “aqui e agora” tem maior poder de provocar mudanças. Isso significa onde e quando se dá um contato mutua­ mente consciente entre a mente do terapeuta e a do paciente. Além disso, nos relacionamentos cotidianos, os eventos nodais que alte­ ram o curso da vida normalmente ocorrem num momento que é experimentado como chave, não só depois que aconteceu, mas tam­ bém enquanto está ocorrendo. Apesar disso, ainda precisamos fa­ zer a pergunta: o que é o agora} Terceiro, as teorias psicodinâmicas de mudança terapêutica baseiam-se na idéia de que o passado tem papel fundamental na deter-

O MOMENTO PRESENTE

minação do presente e, num certo sentido, está no centro do palco. Conseqüentemente, sabemos muito sobre como eventos passados influenciam a experiência atual. Mas não prestamos a mesma aten­ ção à natureza da experiência atual quando ela está sendo influen­ ciada e está acontecendo. Como ficariam a psicoterapia e a mudança terapêutica se o momento presente assumisse o centro do palco? E é exatamente isso que este livro faz. Posiciona o momento presente no centro do palco e o conserva ali. Isso empresta outra aparência ao processo de psicoterapia e altera nossas concepções sobre como se dá a mudança terapêutica. A maneira pela qual con­ duzimos a psicoterapia vai se modificar, porque nossa visão sobre o que está acontecendo será diferente. Também podemos descobrir que nossa visão da experiência diária se enriquece. Estes são os ob­ jetivos do livro. Entretanto, antes de passar a esses objetivos mais abrangentes, precisamos explorar a natureza da experiência atual e depois aplicála à situação clínica. A pesquisa começa com algumas questões im­ portantes sobre o momento presente ou a agoridade. Quando é o agora? O que é o agora? O agora existe e, se existe, o quanto ele dura? Como o agora está estruturado? O que ele faz? Como se relaciona com a consciência e com o passado? Como conduz a sig­ nificados? Por que ele ocupa um lugar tão especial na psicoterapia? E, relacionado a estas indagações, como o agora é experimentado quando é co-criado e compartilhado com alguém? Finalmente, que papel o agora desempenha na mudança? Em resumo, como imagi­ namos um momento presente? Existe outro aspecto do agora subjetivo que é tanto surpreen­ dente quanto óbvio. O momento presente não passa zunindo e se torna observável apenas depois que se foi. Na verdade, ele cruza o palco mental mais devagar, levando alguns segundos para se desdo­ brar. E, durante sua passagem, encena um drama emocional vivido que, à medida que se desenrola, traça uma forma temporal, como uma frase musical transitória. Como veremos, isso é de grande im­ portância, porque o momento presente devolve tempo à experiência. 26

0 PROBLEMA DO "AGORA'

“Devolver o tempo à experiência” é uma frase curiosa. Eis o que se encontra por trás dela: é fácil pôr um tempo linear, de reló­ gio (chronos), em histórias sobre nós mesmos — o antes, o depois e o meio-tempo de nossas narrativas. Mas não é tão claro como se faz para se colocar o tempo subjetivo (o que quer que isso se revele ser) nas experiências que estão acontecendo agora. E sem ele é im­ possível ligar os muitos acontecimentos seqüenciais que ocorrem durante o momento presente e formam uma experiência coerente inteira. A vida seria descontínua e caótica mesmo na pequena esca­ la temporal do presente. A questão do agora tem uma história mais longa. Na verdade, esta é somente uma parte da história maior do tempo. Não entrarei neste tema extenso a não ser para demonstrar certos pontos relacio­ nados com o problema do agora subjetivo. Primeiro, vemos o tem­ po como algo que surge de nossas sensibilidades humanas. Ele é uma invenção da nossa mente. Nada sabemos sobre o tempo das coisas , se é que se pode imaginar algo assim. Nas ciências naturais e no gerenciamento da programação diária da vida, usamos a antiga concepção grega de chronos, que é a idéia de tempo objetiva usada não só na ciência mas também na maioria das psicologias. No mun­ do do chronos, o instante presente é um ponto em movimento no tempo em direção apenas a um futuro. Não importa se seu curso é visto como uma linha reta ou um círculo ou uma espiral, pois ele está sempre em movimento. Enquanto se move, devora o futuro e deixa o passado em seu rastro. Mas o instante presente em si é muito curto. E uma fatia quase infinitesimal de tempo durante a qual muito pouco pode acontecer sem tornar-se passado de imedi­ ato. Efetivamente, não existe presente. Há outras construções humanas de tempo. No tempo narrati­ vo, a ordenação dos eventos é criada pelo narrador de uma histó­ ria, independentemente da seqüência cronológica (Ricoeur, 1984-1988). O complexo tempo psíquico de Freud despreza a su­ cessão linear, troca a velocidade de passagem, dá meia-volta e do­ bra-se para a frente sobre si mesmo — um tempo que Green (2002) 27

0 MOMENTO PRESENTE

chamou de fragmentado. Existem várias formas de heterocronicidade com diversos tempos paralelos. E há estados meditativos nos quais o tempo não se move, mas passa da existência para um “agora” homogêneo e contínuo. No entanto, quando se considera a psicoterapia e a vida como normalmente vivida, essas concepções apresentam problemas. O pro­ blema com chronos é que, se não existe um agora longo o bastante para que algo se desenvolva dentro dele, não pode haver experiência direta. Isso não é aceitável em termos intuitivos. Além disso, a vidacomo-vivida não é experimentada como um fluxo inexoravelmente contínuo. Na verdade, ela é sentida como descontínua, feita de inci­ dentes e eventos separados no tempo mas também conectados de algum modo. A idéia de tempo da narrativa também apresenta problemas, pelo menos para os nossos propósitos. As narrativas selecionam episódios da vida e os marcam no tempo: antes, depois, de novo e assim por diante. Os episódios são então rearrumados, não neces­ sariamente em ordem histórica, mas para contar a história mais coerente sobre como foi a vida. As narrativas visam à verossimi­ lhança da vida, não à verdade histórica. Dessa forma, nos devolvem a sensação de continuidade na vida. Elas domam chronos, fazem a passagem do tempo parecer familiar e tolerável, e fazem-nos sentir coerentes ao longo dessa dimensão infinita (Bruner, 1990, 2002b; Ricoeur, 1984-1988). Entretanto, elas não domam o momento pre­ sente. Apesar da grande façanha de fazer a narrativa, o agora não cabe num relato narrativo, exceto como ponto de referência. Numa narrativa, o agora do qual se fala já aconteceu. Ela cria uma relação entre os agoras passado e futuro. Não é uma experiência direta. •VApenas a narração está acontecendo agora. No tempo psíquico fragmentado de Freud, assim como no tem­ po narrativo, pouca atenção é dada à estrutura temporal do agora. Ele não é visto como temporalmente dinâmico, dentro dele mesmo — isto é, traçar um perfil temporal de pequenas mudanças à medi­ da que ele se desenrola. No tempo psíquico, o principal interesse •jh

O PROBLEMA DO "AGORA'

no agora reside em sua relação com outras partes do tempo, não em sua própria natureza. Assim, o que deve ser feito com o agora enquanto a vida está de fato sendo experimentada — enquanto o presente ainda está se des­ dobrando? A concepção subjetiva de tempo dos gregos, kairos, pode ser útil aqui. Kairos é o momento transitório no qual algo acontece à medida que o tempo decorre. E o nascimento de um novo estado de coisas, e isso ocorre num momento de consciência perceptiva. Ele tem suas próprias fronteiras e transcende a passagem do tempo linear ou dela escapa. No entanto, também contém um passado. É um parêntese subjetivo destacado de chronos. Kairos é um momen­ to de oportunidade, quando os acontecimentos exigem ação ou são propícios para agir. Os acontecimentos se reuniram nesse momen­ to e o encontro penetra a consciência perceptiva de tal forma que uma medida tem de ser tomada, agora, para alterar o destino de alguém — seja pelo minuto seguinte ou pela vida inteira. Se nada for feito, o destino será mudado mesmo assim, mas de modo dife­ rente, porque a pessoa não agiu. E uma pequena janela de devir e oportunidade. Uma das origens da palavra provém de pastores ob­ servando as estrelas. A medida que a noite avança e as estrelas per­ correm o céu, elas parecem nascer e depois se esconder no horizonte. O momento em que uma estrela atinge o apogeu e parece mudar de direção de ascendente para descendente é o seu kairos (Kathryne Andrews, comunicação pessoal, 23 de novembro de 2000). Tanto na vida real como na situação clínica, um momento pre­ sente poderia ser chamado de um momento de microkairos, por­ que apenas decisões menores sobre o curso da vida e caminhos curtos do destino estão em jogo. Este livro tenta mostrar por que todos os momentos presentes são também momentos de kairos, qualquer que seja sua magnitude. A narrativa nos proporciona um caminho psicológico para ajus­ tar a vida à realidade de chronos. Vamos explorar o momento presen­ te como uma abordagem psicológica para compreender a experiência de kairos.

O MOMENTO PRESENTE

O PONTO DE PARTIDA Dada a posição única e fundamental da “agoridade” subjetiva na experiência de todos nós, a proposta é começar uma exploração da prática e da teoria clínicas, bem como da vida subjetiva cotidiana, posicionando o “agora” fenomenal no centro — como nosso ponto de partida. A teoria existencialista e algumas teorias da Gestalt por certo fizeram exatamente isso, mas em grandes pinceladas. Estamos propondo fazê-lo no micronível do momento presente que está pas­ sando. À primeira vista, iniciar tal investigação tendo o momento presente como a lente de aumento para observar a psicoterapia e a experiência cotidiana parece difícil e improvável. Mas o momento presente é nossa realidade subjetiva primária, então, por que não começar por ele? Por onde mais? Pode ter implicações interessantes não apenas para as psicologias clínicas mas também para as neurociências. Essa concepção do momento presente se apóia em grande parte em uma perspectiva fenomenológica. A fenomenologia é o estudo das coisas como elas aparecem à consciência, como elas se apresen­ tam na mente. Inclui: percepções, sensações, sentimentos, lembran­ ças, sonhos, fantasias, expectativas, idéias — o que quer que ocupe o palco mental. Esse estudo não se concentra na maneira pela qual essas coisas se formaram ou surgiram na mente. Também evita qual­ quer tentativa de explorar a realidade externa que corresponda ao que está na mente. Diz respeito apenas à aparência das coisas como elas se apresentam ou se mostram à nossa experiência. Trata da paisagem mental que vemos e em que nos encontramos em deter­ minado momento. Isso é realidade fenomenal (ver Moran [2000] para uma introdução abrangente). Portanto, este livro aborda os pequenos mas significativos acontecimentos afetivos que se desdo­ bram nos segundos que formam o agora. Existe, porém, uma ampla questão. O momento presente, en­ quanto é vivido, não pode ser apreendido pela linguagem que o (re?)constitui pós-fato. O quanto a versão lingüística é diferente da 30

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originalmente vivida? Neste ponto, mesmo as neurociências podem fazer apenas sugestões limitadas. Mesmo assim, grande parte do livro é sobre o momento presente inatingível. Essa experiência vivi­ da tem de existir. E o referente experiencial sobre o qual a lingua­ gem se constrói. E o inapreensível acontecer da nossa realidade. Portanto, tem de ser explorado exaustivamente, para pensarmos melhor sobre ele e imaginar abordagens terapêuticas. A entrevista analisada a seguir é exatamente uma dessas abordagens. Há cerca de 15 anos, comecei a realizar um tipo especial de entrevista que ajuda a identificar momentos presentes e os aconteci­ mentos afetivos que ocorrem durante eles. Inicialmente denominada “entrevista do café-da-manhã”, hoje chamada de entrevista microanalítica. (Uma explicação mais extensa sobre como conduzir uma entrevista microanalítica encontra-se no Apêndice.) Eis como ela acontece. Pergunto aos indivíduos: “Que experiências vocês viveram hoje no café-da-manhã?” (Faço esta pergunta diversas horas depois do fim do desjejum.) Em geral, eles respondem: “Bom, para dizer a verdade, nada.” Eu insisto até que se lembrem de algo. Procuro por qualquer acontecimento que tenha início e fim claros (boas frontei­ ras). Este é um exemplo do que eles podem recordar: “Eu me lembro de ter pego o bule para me servir de chá. Na verdade, não me lem­ bro de pegá-lo, mas devo ter feito isso. Enfim, enquanto estava me servindo, lembrei-me de algo que aconteceu na noite passada. Nes­ se instante, o telefone tocou e tomei consciência de estar servindo o chá porque me perguntei se eu devia terminar de encher a xícara ou pousar o bule e atender ao telefone. Pousei o bule, levantei-me e atendi ao telefone.” (Tudo isso levou cerca de cinco segundos.) Em seguida, faço uma entrevista de, aproximadamente, uma hora e meia, sobre o que foi experimentado naqueles cinco segundos. Pergunto o que fizeram, pensaram, sentiram, viram, ouviram, em que posição seu corpo estava, quando mudou, se posicionaram-se como ator ou como observador em relação à ação, ou entre um e outro. Peço-lhes que criem um filme da experiência, como se pu­ déssemos fazer uma montagem do que estava em seu palco mental. 31

0 MOMENTO PRESENTE

Eles são o diretor, e eu, o operador de câmera, e têm de me dizer o que fazer com ela. Essa tomada é um close-up ou um plano geral? Como devo cortar de uma cena para a seguinte? Onde está po­ sicionada a câmera e qual o seu ângulo em relação à ação? Em ou­ tras palavras, questiono sobre qualquer coisa que me passar pela cabeça a fim de capturar sua experiência subjetiva do modo mais completo possível. A entrevista se desenrola de um modo especial. Os sujeitos do estudo e eu tentamos desenhar ou representar num gráfico a expe­ riência ao longo de uma linha de tempo, onde esse tempo se esten­ de no eixo horizontal e a intensidade, o esforço e a plenitude do evento/sentimento/sensação/pensamento/afeto/ação são delineados no eixo vertical. O resultado surge em diversas curvas, cada uma um contorno temporal da distribuição da intensidade do que quer que tenha sido vivido ao longo do tempo (ver Figura 1.1). Conduzo os sujeitos por muitas passagens através da experiência. Por exem­ plo, pergunto se alguma lembrança foi evocada durante a experiên­ cia. Se a resposta for positiva, a lembrança é acrescentada ao gráfico. Indago-lhes que experiências afetivas tiveram. Estas são desenha­ das pelos sujeitos com um contorno ao longo do tempo que repre­ senta as mudanças na intensidade do afeto à medida que este ocorria. Esses contornos do afeto são então também adicionados ao gráfico. A cada passagem, todo o desenho pode ser revisto, se necessário. E normalmente é. Depois de muitas passagens, obtemos um registro que se parece muito com uma partitura musical sinfônica com mui­ tas coisas acontecendo simultaneamente. Continuidades e descontinuidades são registradas com cuidado e divididas nas seguintes unidades: Episódios de consciência são períodos contínuos de consciência separados por buracos no fluxo da consciência, non-CS holes, e feitos de um ou mais momentos presentes demarcados por uma mudança na cena (lugar, tempo, personagens, ação) ou no ponto de vista da narrativa. A identifica­ ção de momentos presentes e as fronteiras entre eles são escolhidas pelos sujeitos. 32

O PROBLEMA DO "AGORA"

Vale notar que os momentos presentes no gráfico não são os originais. Na verdade, são lembranças contadas de fatos ocorridos, mais cedo, naquela manhã, momentos presentes vividos realmente. Obviamente, não se pode obter um relato verbal de uma experiên­ cia no instante em que ela ocorre sem interrompê-la. O objetivo é desenhar um quadro com que um momento presente provavelmen­ te se pareça. Mais uma observação: no relato, existem na verdade os dois momentos presentes envolvidos, o momento presente original e não narrado, vivido durante o café-da-manhã, e o momento presente da narração que me foi feita, mais tarde. Por enquanto, estou inte­ ressado somente no momento presente originalmente vivido. Pos­ teriormente abordarei o momento presente da narração. À medida que a entrevista prossegue, insisto veementemente que o sujeito faça a distinção entre o que deve ter acontecido e o que foi realmente experimentado conscientemente naquela manhã (só o úl­ timo é registrado no gráfico). A entrevista chega ao fim quando o indivíduo sente que o registro gráfico tem a verossimilhança adequa­ da ao que ele se recorda de ter experimentado. Esse processo pode parecer entediante, mas na verdade gera grande interesse e curiosidade tanto no sujeito quanto em mim, apesar da aparente banalidade dos eventos. Embora comuns, os momentos presentes são acionados pela novidade, pelo inesperado ou por uma perturbação ou problema em potencial. Deles são fei­ tos os pequenos dramas diários. Buscamos o desvelar com uma es­ pécie de cumplicidade entusiasmada crescente. E ficamos cada vez mais espantados com tudo que é recordado como acontecido em períodos tão breves de momentos da vida cotidiana e como os microdramas são resolvidos. A seguir, apresento quatro exemplos de momentos presentes, que na verdade apenas se aproximam furtivamente do fenômeno do momento presente por motivos que se tornarão evidentes mais adiante. Entretanto, esclarecem algumas das questões-chave. Os dois primeiros são de situações nas quais eu estava conduzindo entrevis­ 33

O PROBLEMA DO "AGORA'

O MOMENTO PRESENTE

tas microanalíticas. O terceiro é um exemplo clínico, e o quarto, um exemplo tirado da vida comum.

EXEMPLO 1* Momento presente 1 (O sujeito entrou na cozinha, ligou o rádio e foi até a geladeira. Abriu a porta da geladeira, procurando a manteiga para passar no pão. Fez tudo isso de modo automático, sem estar especificamente consciente de seus atos. Então começou seu primeiro momento de consciência.) Percebi que o chanceler Kohl, da Alemanha, estava sen­ do entrevistado no rádio, ouvi a voz dele, depois desviei-a da minha cabeça. Procurando na geladeira, não encontrei a manteiga. Pensei comigo mesma: “Não tem manteiga.” Ao ver que não achava a man­ teiga comecei a sentir uma frustração leve, porém crescente, e uma espécie de sentimento negativo, algo entre a decepção e a irritação. Esses sentimentos aumentaram. (Isso durou cerca de três segundos. Depois houve uma transição para o momento seguinte sem quebra da continuidade da consciência.)

Momento presente 3 Pensei com igo: “Posso colocar m el.” (O mel estava no lugar da manteiga. Normalmente, ela só comia mel aos domingos. Era uma tradição familiar. O mel era algo especial, e não para os outros dias. Era terça-feira.) Perguntei a mim mesma: “Será que eu ouso pegar o mel?” Primeiro, quando pensei nisso, senti uma onda de surpresa diante dessa idéia inesperada. Depois, uma sen­ sação de bem-estar me invadiu, e com eçou a crescer, por ter re­ solvido o problema da falta da manteiga. Enquanto isso acontecia, vi em minha mente o pote de m el em seu lugar de costume, no armário atrás de mim (e fora da vista), em sua exata posição na prateleira. (Ainda sem se voltar.) Decidi então agir e pegar o mel. (Ela se virou, abriu a porta do armário e apanhou o pote de mel, mas sem estar consciente desses atos rotineiros.) Depois, com o mel na mão, com ecei a sentir uma culpa cada vez maior e uma sensação de cobiça porque ia com er mel numa terça-feira. (Este momento demorou cerca de cinco segundos. Houve então uma lacuna na consciência de sua experiência e depois ela ficou cons­ ciente de novo.)

Momento presente 4 Momento presente 2 Então pensei: "Ah, tudo bem, melhor para a minha dieta.” Quando pensei isso, a frustração e a irritação passaram e experimentei uma onda de alívio que continuou a crescer um pouco. (Isso durou três segundos, aproximadamente. Em seguida ela passou a agir fora da consciência por um período. Logo depois, começou a recordar um terceiro momento de consciência.)

Estou segurando uma fatia de pão, ainda sem o m el Mas o pão é de um tipo diferente do que costumo comprar. Sinto-me estranha e isso me surpreende. Penso: “O que faço com este pão?” Um sentimento negativo discreto aparece. (Este momento durou em torno de três segundos. Ela então espalha mel no pão sem estar conscientemente atenta ao ato. Um novo momento começa, adjacente ao anterior.)

Momento presente 5 * 0 itálico é usado para indicar tudo que o sujeito relatou como sua experiência conscien­ te. Tudo de relevante que deve ter acontecido mas não penetrou na sua consciência, prova­ velmente porque era algo rotineiro e automático demais, foi descrito entre parênteses. Consulte a Figura 1.1 à medida que o diálogo se desenrola.

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Estou ciente de morder o pão com mel. Gosto da textura e penso: “Até que não é ruim. ” E com isso começo a me sentir melhor. De­ 35

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pois tomo novamente consciência da entrevista no rádio. (Este mo­ mento demorou três ou quatro segundos.)

vações e quedas analógicas. Em outras palavras, são afetos de vitalidade realizados (formas-de-tempo-dinâmicas) que contor­ nam a experiência temporalmente.

Este breve exemplo, por banal que possa ser, ilustra algumas das questões sobre a experiência que precisam ser abordadas. E verda­ de que o relato é (re)construído após o evento e é uma narrativa de experiências recordadas reunidas de maneira incomum, e não uma narrativa espontânea. Nem jamais foi ensaiada. Foi desmembrada e reconstruída peça por peça em passagens sucessivas. É uma narrati­ va desconstruída e progressivamente co-construída em seguida, re­ formada em camadas progressivas. Apesar desses problemas e com a cautela apropriada, podem ser feitas as seguintes afirmativas so­ bre momentos presentes vividos enquanto se desdobram, e não en­

• Uma história vivida se desenrola dentro de cada momento pre­ sente. Ela é feita de muitas experiências pequenas reunidas no presente subjetivo. O enredo, ainda que mínimo, desloca-se so­ bre a forma de sentimento temporal dos afetos contornados. A micro-história que se desdobra resolve a novidade ou o pro­ blema.

quanto são recordados e narrados. • Momentos presentes são incrivelmente ricos. Embora durem apenas um curto espaço de tempo, muitas coisas acontecem. • Momentos presentes ocupam o agora subjetivo. O momento pre­ sente é visto como o que quer que esteja na mente agora, seja objeto da atenção mental real ou virtual. (A visualização da loca­ lização do mel às costas dela foi uma experiência virtual.) • O momento é um acontecimento completo, uma gestalt. O tema psicológico é o todo, não as pequenas unidades que o compõem. • Ela experimentou esses eventos num agora que identificou e li­ mitou com fronteiras. • O momento presente é breve. Neste caso, cada um dos cinco mo­ mentos presentes durou entre três e cinco segundos, como esti­ mado pelo sujeito. • A consciência é o principal critério utilizado para identificar epi­ sódios contendo momentos presentes. Neste exemplo, eles pro­ vavelmente acionaram a consciência por serem violações do esperado. Eram inovações, e isso constituía um problema. • Os sentimentos experimentados (por exemplo, frustração e pra­ zer) traçam uma forma-de-tempo (um perfil temporal) com ele­ 36

• Tais momentos não são separados do restante da vida, isola­ dos e desconectados. Na verdade, eles capturam um sentido do estilo, da personalidade, das preocupações ou dos confli­ tos do sujeito — em outras palavras, de suas experiências do passado. Cada um desses momentos é psicodinamicamente relevante. Este último ponto merece uma discussão mais extensa. Veja o exemplo da manteiga. O sujeito pareceu confeccionar pares afetivos/ morais: • Não tem manteiga. Isso é ruim. /Ah, sim, estou de dieta, então é bom. • Posso usar mel. Ficaria gostoso. /Ah, mas seria pecado. • Que pão esquisito é este? /Ah, até que não é tão ruim. Ela está constantemente tentando equilibrar bom/ruim, moral/ imoral, agradável/desagradável. Será que manter essa espécie de balancete é um modo característico de ser consigo mesma no mun­ do? Não sabemos, mas ela deu essa impressão fora do experimen­ to. (Dados externos à experiência presente não são necessários para estabelecer um momento presente. São necessários, porém, para estabelecer a relação do momento presente com o passado ou com eventos psicológicos contínuos.)

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O MOMENTO PRESENTE

O PROBLEMA DO "AGORA"

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EXEMPLO 2 Este exemplo demonstra melhor como o momento presente é uma amostra de padrões passados e futuros, que ganham importância quando o momento presente desempenha um papel numa concep­ ção psicodinâmica abrangente. Em uma “entrevista do café-da-manhã”, G.S., um jovem aluno de pós-graduação, contou dois momentos presentes que se destacaram durante a manhã. Eis uma transcrição parcial.

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Figura 1.1. Uma representação esquemática de episódios de consciência e m o­ mentos presentes conforme recordados e co-construídos usando uma entrevista microanalítica. A ordenada é a intensidade subjetiva da experiência numa escala que vai de 1 a 10. A abscissa é o tempo estimado conforme recordado pelo sujeito. O início e o fim de cada episódio de consciência e de momento presente são determinados pelo sujeito. Onde as curvas ficam mais grossas, ele está relati­ vamente certo de ter tomado consciência do acontecimento. E comum o sujeito dizer: “Sei que estava sentindo isso e aquilo antes (ou depois), mas mais ou me­ nos aqui isso penetrou a consciência [a linha engrossa] ou deixou a consciência [a linha afina].”

G.S.: Bom, abri a porta da geladeira, assim. (Ele fez um gesto mos­ trando como abriu a porta.) D.S.: (Fiquei intrigado quando ele fez um gesto para mostrar como abriu a porta. Normalmente, a abertura da porta de uma ge­ ladeira não exige explicação gestual.) Por que você me mos­ trou como abriu a porta? Há algo especial nisso? G.S.: Há, sim. A porta está meio quebrada. Se eu a puxo muito devagar, ela fecha sozinha. E se eu a puxo com força demais, ela abre até o fim e bate no armário ao lado. Então tenho de abri-la com a força exata, nem muito fraco, nem muito forte, para que fique aberta, repousando num ponto de equilíbrio. Estou consciente ao fazer isso porque é como um jogo que requer atenção. [Pausa] Depois acho que apanhei o suco de laranja. Não me lembro disso, mas é automático. Devo ter levado o suco até a mesa, pegando um copo no caminho. D.S.: Sim. G.S.: A próxima coisa de que estava consciente foi de pôr suco no copo. D.S.: Ah. E com o faz isso? G.S.: Normalmente encho o copo ao máximo, mas não até a bor­ da. Numa altura suficiente para que esteja cheio, mas não tanto que derrame quando levá-lo à boca. Isso exige que eu aja conscientemente. D.S.: Ah.

O MOMENTO PRESENTE

G.S.: É uma espécie de jogo. O que é interessante sobre esses dois momentos é que eles são re­ presentações do mesmo tema: saber encontrar o exato equilíbrio entre ir longe demais e não ir longe bastante. Curiosamente, G.S. per­ cebeu isso espontaneamente e mencionou que na noite anterior a esse café-da-manhã ele estava tentando terminar o capítulo de dis­ cussão de sua tese de doutorado. O que estava dificultando a reda­ ção era o fato de não conseguir se decidir sobre até que ponto ele ousava levar suas descobertas e conclusões. Pensara nisso a noite inteira. Ele disse: “É como a porta da geladeira e o copo de suco.” Vale acrescentar o que sei sobre esse rapaz, que foi um sujeito de pesquisa e ex-aluno, não um paciente. Ele tinha uma tendência forte e saudável de levar quase tudo ao limite, de ousar e ver até que ponto podia ir. Era uma vantagem mas também tinha o poten­ cial de criar problemas. Portanto, os dois momentos de consciência (porta e suco), sua preocupação da noite anterior e seu temperamento (e talvez seus conflitos), todos diziam o mesmo: “Eu testo e brinco com a frontei­ ra entre o de mais e o de menos. Estico os limites. Existe nisso algo intrigante e importante para mim.” Isso não é um mundo sendo refletido num grão de areia? Eu estava preparado para ver o comportamento presente como uma representação de padrões psicológicos e comportamentais mais amplos. Essa é a essência da hipótese psicodinâmica. Entretanto, fiquei surpreso ao ver padrões psicodinâmicos mais amplos refleti­ dos em unidades tão pequenas quanto momentos presentes. Perce­ ber isso abriu-me o caminho para considerar o momento presente, assim como o sonho, um fenômeno que merece ser explorado mais profundamente com fins terapêuticos. Tal visão acrescenta mais um caminho para seguir clinicamente. Retomarei este ponto nos capí­ tulos que tratam de aplicações clínicas. Este livro aborda amplamente determinados momentos que podem mudar o curso da psicoterapia, assim como a vida normal. 40

O PROBLEMA DO "AGORA'

Olhar mais de perto tais momentos proporciona uma visão dife­ rente do processo de psicoterapia, que será explorada por suas im­ plicações clínicas e teóricas.

EXEM PLO 3 Um terapeuta que conheço tinha o hábito de apertar a mão dos pacientes quando entravam no consultório. Era um modo de dizer olá antes de começarem a trabalhar. E, ao fim de cada sessão, quan­ do o paciente se preparava para sair, apertavam-se as mãos nova­ mente como despedida. Um dia, o paciente contou uma série de eventos muito comoventes que o afetaram (assim como ao terapeuta) profundamente. O paciente estava triste e quase prostrado. Ao fim da sessão, durante o aperto de mão de despedida, o terapeuta pou­ sou a mão esquerda sobre a mão direita do paciente, que ele já estava apertando, num aperto de duas mãos. Eles se olharam. Nada foi dito. O episódio durou alguns segundos. Também não foi men­ cionado em sessões subseqüentes. Entretanto, o relacionamento havia se deslocado em seu eixo. Algo vital foi somado ao que quer que tenha sido dito na sessão — alguma coisa tão essencial que toda a sessão foi alterada. O momento penetrou a consciência e foi me­ morável. Na verdade, aquele aperto de mão pode se destacar como um dos momentos mais memoráveis de toda a terapia. Muitas ve­ zes quando perguntamos a alguém, cinco ou dez anos após a con­ clusão de uma terapia bem-sucedida, quais foram os momentos mais importantes ou nodais da terapia que mudaram as coisas, podemos muito bem ouvir: “Um aperto de mão que trocamos certo dia, quan­ do eu estava de saída.” Quero assinalar diversos pontos deste caso que vão se somar ao que foi descrito para as entrevistas do café-da-manhã: • O que quer que tenha ocorrido nesse momento foi entendido implicitamente por ambos e nunca precisou ser discutido para 41

O MOMENTO PRESENTE

ter efeito. Criou-se um conhecimento implícito sobre o relacio­ •







namento deles. Cada um sentiu a experiência do outro, e ambos sentiram a par­ ticipação mútua na experiência do outro. Houve, nesse sentido, uma interpenetração de mentes — um novo estado de intersubjetividade foi criado entre eles. Embora o momento tenha sido preparado por múltiplos eventos nos minutos e provavelmente semanas e meses precedentes, o exato instante de seu aparecimento não foi planejado nem previ­ sível. Surgiu espontaneamente. A vida muda em saltos. Durante o momento em questão, uma história se desenrolou, ainda que muito curta, mínima e concentrada. Ela foi direta­ mente experimentada, e não escrita ou contada. O momento criou um “mundo num grão de areia” que nasceu no instante em que o momento era vivido, e não depois. O momento ficou gravado na mente de ambos. Mesmo sem ser verbalizado, penetrou na memória, pôde ser recordado e tornarse consciente.

EXEMPLO 4 Este exemplo é muito menos carregado; na verdade, é bastante ba­ nal. Aconteceu depois que um grupo de desconhecidos e eu teste­ munhamos uma divertida discussão entre um talentoso mímico de rua e uma transeunte. Eu estava sentado nos degraus de um museu, virado para a calçada, onde o mímico andava atrás de diversos tran­ seuntes por dez ou vinte metros (vários segundos), imitando o an­ dar, a postura e o aparente estado de espírito das pessoas — rapidamente “capturando” algo a respeito delas. Os transeuntes nor­ malmente não se davam conta de que estavam sendo imitados e que eram alvo de uma brincadeira. Continuavam caminhando. Então o mímico parava, dava meia-volta e seguia o próximo passante, vol­ tando na direção contrária. E assim por diante, para a frente e para 42

O PROBLEMA DO "AGORA"

trás. As pessoas sentadas nos degraus se divertiam. Ele então seguiu uma mulher. Mas ela logo percebeu o que estava acontecendo, e parou, voltou-se, encarou o mímico e começou a repreendê-lo. Ele começou a imitar a repreensão. E ela, a imitar a imitação que ele estava fazendo dela. Ele prosseguiu até que os dois caíram na gar­ galhada. Trocaram um aperto de mão e se separaram. Todos aplau­ diram. (Isso não é o exemplo — embora pudesse ser, pois um momento foi compartilhado entre o mímico, a mulher e os especta­ dores. Isso é apenas o prólogo.) A essa altura levantei-me para ir embora e um casal desconhecido, sentado à minha esquerda, fez o mesmo. Nós nos entreolhamos, sorrindo, levantamos as sobrance­ lhas, inclinamos a cabeça de um jeito engraçado, fizemos uma espé­ cie de expressão facial indescritível e abrimos as mãos, as palmas viradas para o céu — como se disséssemos: “É um mundo louco e divertido.” Eles seguiram seu caminho e eu, o meu. O importante sobre o momento presente que compartilhei com o casal foi que um contato particularmente humano havia sido fei­ to — um contato que reafirmou minha identificação com membros da minha sociedade, mental, afetiva e fisicamente. Eu não estava só na Terra, eu era parte de algum tipo de matriz humana intersubjetiva e psicológica. O efeito durou pouco. Mas foi um bom quebra-galho. Este livro é sobre esses momentos, particularmente sobre como operam na psicoterapia para provocar mudanças. Diversas características da abordagem adotada aqui são relati­ vamente únicas. Primeiro, o livro explora o arquipélago de ilhas da consciência, os momentos presentes, que formam nossa experiência subjetiva, mais do que a cadeia montanhosa submarina inconscien­ te (seja ela a psicodinâmica ou a circuitaria neural) que ocasio­ nalmente perfura a superfície para formar as ilhas, que são o primeiro plano psicológico, a realidade primária da experiência. O presente e a consciência são os centros de gravidade, não o passado e o in­ consciente. A exploração que o livro faz do processo terapêutico é microanalítica e ajustada ao tamanho do momento presente. Vai de 43

0 MOMENTO PRESENTE

um pequeno evento a outro na escala dos segundos. É aí que o momento presente é revelado e onde vamos encontrar uma visão das coisas diferente. Finalmente, meu maior interesse reside nos momentos presen­ tes que surgem no contexto da interação de duas os mais pessoas. Afinal, nosso interesse principal é o processo psicoterapêutico que envolve duas pessoas. Os exemplos da entrevista do café-da-manhã se referiam a alguém só. Mas, mesmo quando está sozinha, essa pessoa está dirigindo sua atividade mental consciente a outro al­ guém. Pode ser a uma platéia imaginária, a um outro específico ou a um de seus selves dependentes de contexto. A idéia central sobre momentos de mudança é a seguinte: du­ rante esses momentos uma “experiência real” emerge, inesperada­ mente. Essa experiência acontece entre duas (ou mais) pessoas. Diz respeito ao seu relacionamento. Ocorre num período de tempo muito breve que é experimentado como agora , que é um momento presente com uma duração na qual um microdrama, uma história emocional, sobre esse relacionamento se desdobra. Essa experiên­ cia vivida em conjunto é compartilhada mentalmente, no sentido de que cada pessoa intuitivamente toma parte na experiência do outro. Esse compartilhar intersubjetivo de uma experiência mútua é apreendido sem precisar ser verbalizado, e se torna parte do co­ nhecimento implícito do relacionamento. O compartilhar cria um novo campo intersubjetivo entre os participantes que altera seu re­ lacionamento e lhes permite tomar direções diferentes juntos. O momento penetra uma forma especial de consciência e é codificado na memória. E, muito importante, reescreve o passado. As mudan­ ças na psicoterapia (ou em qualquer relacionamento) ocorrem por meio desses saltos não-lineares nos modos-de-estar-com-o-outro. A idéia geral é desenhar uma figura da experiência vivida um pouco diferente do que normalmente é encontrado no processo psicoterapêutico. Eu espero que essa nova visão, através do espelho do momento presente, mude muitos aspectos de como pensamos e praticamos a terapia. 44

Capítulo 2

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

A PRESENTIDADE DA VIDA SUBJETIVA parece evidente. Como poderia ser diferente? Entretanto, a noção permanece problemática. As pes­ soas encaram a idéia de viver subjetivamente apenas no presente como algo contra-intuitivo. Por exemplo, quando nos lembramos de um acontecimento passado, podemos ficar ligeiramente surpre­ sos ao nos darmos conta de que toda a experiência de recordar está ocorrendo agora. Podemos estar revivendo algo, mas o reviver está acontecendo agora. Intuitivamente sentimos que não estamos de volta àquela época. Mesmo a narração de algo que acabou de acon­ tecer está na verdade ocorrendo agora. A narração é uma experiên­ cia do agora, ainda que se refira a um momento presente que ocorreu no passado. Temos expectativas em relação ao futuro, mas elas, também, estão sendo experimentadas agora. O mesmo vale para fantasias, sonhos e revisões pós-fato. Esse estrito confinamento da experiência no presente é um aspecto básico de qualquer aborda­ gem fenomenológica. O sentido de presentidade propõe um desafio às neurociências. Como sabemos que algo ocorreu no passado, e quando? Como re­ conhecemos o agora presente? Como o futuro está marcado? Como o marcador temporal é inserido no traço de memória e em que

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

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lugar do cérebro isso ocorre? Estes são velhos problemas suscita­ dos de várias formas por muitos, por mais de um século (Bergson, 1896/1988; Husserl, 1964; James, 1890/1972; Merleau-Ponty, 1945/1962). Recentemente, Dalla Barba (2001), entre outros, propôs que a consciência não é uma dimensão unitária, mas um conjunto de modos distintos de abordar o objeto da consciência. Ele sugeriu dois modos: a consciência conhecedora e a consciência temporal. A primeira aborda o objeto a fim de conhecê-lo. Já a segunda aborda o objeto a fim de temporalizá-lo, em termos de passado, presente e futuro. Outros fizeram sugestões semelhantes (por exemplo, Chalmers, 1995; Damasio, 2002). É provável que os distúrbios pato­ lógicos de memória resultem de uma dissociação desses dois modos. São inícios promissores, mas provavelmente a mais difícil tarefa de marcação de tempo será saber que estamos no presente. Há muitas perguntas sobre a fenomenologia da presentidade para as quais uma base neural se mostraria interessante. A presentidade é algo semelhante a um afeto existencial. As neurociências precisam entendê-la e enfrentá-la. Isso é de grande importância clínica porque estados de dissociação patológicos po­ dem influir no senso de presentidade. O enactment de memórias traumáticas é um caso relevante. Parece haver uma perda do senso existencial de ser num presente ou passado sentidos. O sentido de presentidade parece também exigir um senso de self. E o que é isso neurofisiologicamente? (Retornarei em breve a esta questão.) É comum que alguém se sinta apenas parcialmente no mo­ mento presente. Mas, então, onde mais está você? Por exemplo, você pode estar presente num compromisso qualquer, aqui e ago­ ra, mas ao mesmo tempo estar preocupado com algo que aconte­ ceu ontem ou está acontecendo agora na sala ao lado. Nessas ocasiões, você se sente apenas ligeiramente no momento presen­ te, como se parte de você estivesse em outro lugar, em algum ou­ tro espaço temporal. Mas não existe nenhum outro espaço de

tempo subjetivo. Você ainda está no momento presente, só que existem duas experiências (pelo menos) acontecendo em parale­ lo, como um dueto. Uma experiência pode colidir com aquela que está em primeiro plano e empurrá-la para o segundo plano, mas você não escapou do presente. Fenomenologicamente, não há como se esquivar. Na verdade, experiências no presente podem ser polifônicas ou politemporais. O momento presente é uma unidade de processo subjetiva e psicológica da qual se está ciente. A maneira como ele começa e termina pode às vezes ser difícil de definir. Merleau-Ponty (1945/ 1962) descreveu a chegada de um momento presente diante de nós como a irrupção de um presente novo em folha — a repentinidade de uma lembrança ou um novo pensamento ou nova percepção. Não estamos cientes de como ele chegou ali porque o compusemos inconscientemente, intuitivamente. Essa irrupção também pode es­ tourar sobre nós como uma onda, ou aparecer quase sem aviso e depois desaparecer como uma ondulação no mar.

A DURAÇÃO DO AGORA Como pode o agora ter uma duração longa o suficiente para algo acontecer dentro dele? Ou: como pode devolver o tempo ao mo­ mento presente para que ele seja um acontecimento vivido analogicamente em tempo real? A duração do agora depende de como concebemos a passagem do tempo. Aqui, precisamos retornar à distinção entre chronos e kairos. Em geral, tanto a psicologia quanto a psicanálise têm sido capazes de viver com a concepção do presen­ te descrita por chronos. Entretanto, a experiência comum — nosso senso objetivo da vida como vivida no nível local do segundo-asegundo — não se dá bem com a idéia de que o presente não tem espessura temporal. A experiência de ouvir música, assistir a dança ou interagir com alguém requer um presente com uma duração (con­ forme veremos), e assim também a vida no nível local. 47

O MOMENTO PRESENTE

Momentos presentes psicológicos precisam ter uma duração na qual coisas aconteçam e ao mesmo tempo ocorrer durante um agora único e subjetivo. Um exemplo de música esclarece essa aparente contradição: uma frase musical curta é a unidade de processo básica da experiência de ouvir música. Uma frase é o análogo musical de um momento presente da vida comum. Uma frase musical é intuiti­ vamente apreendida como uma unidade global com fronteiras. Tem a duração que é sentida (normalmente entre dois e oito segundos). O mais interessante é que a frase musical, quando ouvida, é sentida como se ocorresse durante um momento que não é instantâneo, ou tampouco parcelado no tempo em pedaços seqüenciais como as ano­ tações escritas. Na verdade, é um todo contínuo e analógico que flui durante um agora. Normalmente, apesar de não estarmos cientes da passagem do tempo durante um agora, o fluxo de tempo está sendo registrado de alguma maneira fora da consciência. A frase constitui uma entidade global que não pode ser dividida sem perder sua gestalt. Não se pode tirar o equivalente a uma foto­ grafia de uma frase musical ouvida no instante em que ela passa. Não é um sumário das notas que a formam. A mente impõe à frase uma forma à medida que ela se desenrola. Na verdade, seus finais possíveis são intuídos antes que ela seja concluída, enquanto ainda está passando. Isso eqüivale a dizer que o futuro está implícito em cada instante da viagem da frase através do momento presente. O mesmo se aplica a agrupamentos semelhantes a frases no com­ portamento verbal e não-verbal observado na vida cotidiana e na psicoterapia. Mas retornemos ao problema de encontrar tempo suficiente dentro do presente em movimento para que um momento presente dure e se desdobre. Como podemos arrombar chronos para criar um presente longo o suficiente para acomodar kairos ? Durante séculos esta questão preocupou vários filósofos, entre os quais Santo Agostinho (1991), Husserl (1964), Heidegger (1927/ 1996), Merleau-Ponty (1945/1962), Ricoeur (1984-1988) e Varela (1999). Husserl (1913/1930/1980, 1930/1989, 1931/1960, 1962, 48

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

1964) forneceu a concepção-chave para encarar o problema. Ele pro­ pôs um momento presente que tem uma duração e que se compõe de três partes: um presente-do-momento-presente (não muito diferente do instante presente de chronos, o ponto passageiro do tempo em movimento), um passado-do-momento-presente e um futuro-domomento-presente. Husserl chamou o passado-do-momento-presente de “retenção”. Trata-se de um passado imediato que ainda está eco­ ando no instante atual. Ele o descreveu como a cauda de um cometa. ✓ E importante notar que esse passado retido ainda se encontra dentro do presente sentido. Ainda não foi separado do instante atual pelo esquecimento ou afastamento da mente. Assim, não é como a memó­ ria operacional, que pode ficar fora da mente por um breve período de tempo mas é prontamente recordada. Nenhuma recordação é necessária para o passado-do-momento-presente porque ele ainda está no momento presente. O futuro-do-momento-presente foi cha­ mado de “protensão”. Este é o futuro imediato, que é esperado ou está implícito no que já ocorreu durante o passado e o presente-dosmomentos-presentes. Esse futuro-do-momento-presente faz parte da experiência do momento presente sentido porque seu prenúncio, ain­ da que vago, está atuando no instante atual e dá direcionalidade e, por vezes, um senso do que está por vir. Talvez o ponto mais essencial sobre o momento presente com­ posto de três partes seja o fato de que todas as suas partes se mantêm juntas, subjetivamente, como uma experiência global, única, unificada e coerente, que ocorre num agora subjetivo. (Ver também Varela [1999] para uma recente discussão sobre o presente de três partes.)

PROTEGENDO O MOMENTO PRESENTE DO PASSADO E DO FUTURO, E ENCONTRANDO UM LUGAR PARA ELE O momento presente pode tornar-se refém tanto do passado quan­ to do futuro. O passado pode eclipsar o presente, jogando sobre ele uma sombra tão densa que só resta ao presente confirmar o que já 49

O MOMENTO PRESENTE

era sabido, pouco podendo acrescentar. Ele é essencialmente apa­ gado. O passado psicodinâmico corre esse perigo. Este é um dos motivos pelos quais a psicanálise tem sido capaz de minimizar a importância do presente. Ele é visto como apenas mais uma repre­ sentação de padrões passados. O passado se apresenta de muitas formas influentes, entre as quais não só a história pretérita do paci­ ente, mas também os objetivos de longo prazo do terapeuta e as expectativas do paciente em relação ao tratamento. O futuro também pode aniquilar o presente reorganizando-o tanto e tão depressa que ele se torna efêmero e quase morre. Aque­ les que propõem um papel abertamente determinante para a re­ construção verbal/narrativa pós-fato enfrentam esse risco, porque agem como se a única realidade psicológica clinicamente relevante fosse concedida quando a experiência é verbalmente transmitida. O desafio está em imaginar o momento presente numa espécie de equilíbrio dialógico com o passado e o futuro. Se não estiver bem ancorado num passado e num futuro, o momento presente vai flutuar para longe como um ponto sem sentido. Se estiver exageradamente ancorado, torna-se diminuído. Além disso, o presente tem de ser capaz de influenciar, talvez até o mesmo ponto, tanto o passado quanto o futuro, da mesma forma que eles o influenciaram. Mais uma vez o exemplo de uma frase musical pode nos ajudar a começar a abordar alguns destes problemas. Suponha que a frase seja ouvida na ausência de qualquer experiência musical passada; em outras palavras, é isenta de valores culturais. Evidentemente, isso é impossível. No entanto, estamos biologicamente programa­ dos para sermos capazes de formar uma idéia de como o fim da passagem poderia ser (enquanto a frase ainda está se desdobrando) com um mínimo de experiência anterior. Princípios de organização perceptual (provavelmente universais), como proximidade, boa continuação, destino comum e similaridade, foram identificados pela psicologia da Gestalt. Estes permitiriam formar futuros possíveis, dos quais qualquer um poderia se realizar, à medida que a frase se desdobra. A frase então poderia assumir algum tipo de forma sem 50

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

experiência anterior. Outras restrições e tendências perceptuais são menos ou não absolutamente isentas de valores culturais (ver Deutsch, 1999a, 1999b). Embora não existam platéias musicais isentas de valores cultu­ rais, um interessante experimento se aplica à questão. Schenellenberg (1996) mostrou que a certa altura de uma nova frase musical temos a habilidade de prever seus finais possíveis. Criamos e impomos uma forma à medida que ela está acontecendo, enquanto escuta­ mos, e o fazemos sem pensar. Conforme a frase passa, mas não ainda completamente, construímos em nossa mente várias implica­ ções imediatamente futuras do que ainda estamos ouvindo agora. Estas noções baseiam-se no modelo de implicação-realização de Narmour (1990). Em termos específicos, se pedirmos a diversas pessoas, separa­ damente, que escutem apenas uma parte de uma frase e depois que adivinhem como ela pode terminar, elas concordarão em relação aos diversos finais possíveis. Na verdade, ocidentais pouco habitu­ ados à música chinesa, dotada de uma escala tonal diferente, po­ dem concluir uma frase incompleta de música tradicional chinesa, imaginando aproximadamente os mesmos finais possíveis para a frase que os ouvintes chineses (que também nunca escutaram a fra­ se antes). Quando o experimento é feito ao contrário, o desempe­ nho do ouvinte chinês é tão precário quanto o do ocidental na tentativa de prever finais possíveis de uma nova frase de música tradicional ocidental. (Músicos experientes se saem melhor.) Nesse sentido, uma frase musical contém um passado e um fu­ turo imediatos. A forma da frase musical é revelada e capturada pelo ouvinte enquanto a crista do instante presente imediato passa do ainda ressoante horizonte do passado (do momento presente) para o prenunciado horizonte do futuro (do mesmo momento pre­ sente) (Darbellay, 1994). Grande parte do charme de se ouvir músi­ ca reside nas surpresas que o compositor oferece, inventando caminhos finais que nos surpreendem mas não violam abertamente as implicações que percebemos. 51

O MOMENTO PRESENTE

Parte das composições de música contemporânea é feita exata­ mente para brincar ou romper com nossas implicações que criam tendências, ou mesmo paralisá-las. O ato de dar forma à frase enquanto ela está acontecendo é de grande interesse, pois contribui para esclarecer a natureza do ago­ ra, em particular o problema da influência do futuro no presente. Em outras palavras, a relação entre acontecimentos e (re)construções de acontecimentos. Em música, a forma de uma frase não espera que as frases subseqüentes ganhem vida. Alguns pensadores sugeri­ ram que a forma da frase musical só é evidente depois que ela pas­ sou e é captada de novo pela mente. Se isso fosse verdade, nunca escutaríamos nada. Apenas “pensaríamos” música. No entanto, essa é a posição radical de alguns pensadores psicanalíticos ao conside­ rar o diálogo terapêutico. Eles afirmam que não existe aconteci­ mento (coup) até que este seja apresentado simbolicamente depois. Há somente uma (re)construção (après-coup ). Só então a experiên­ cia assume sua forma subjetiva pela primeira vez. Pelo menos na música, a frase assume uma forma unitária e coe­ rente na mente enquanto está acontecendo. E este vai ser o caso de muitos outros aspectos da experiência. Também é verdade que a (re)construção ocorre de modo penetrante na música, bem como em outras experiências da vida. Muito da riqueza da música deve-se ao fato de cada frase subse­ qüente recontextualizar a anterior, e vice-versa, ad infinitum. Varia­ ções e estruturas tem áticas mais amplas contextualizam e recontextualizam todas as frases, repetidamente. Todas as recontextualizações modificam os fenômenos, mas não os criam. E este é o ponto crucial. Uma experiência coerente foi apreendida durante o momento presente, ainda que ela possa ter múltiplos destinos. Mas o que dizer da ação do passado na determinação da forma do momento presente, tanto na música como na vida? Vejamos, por exemplo, o estudante de pós-graduação da entrevista do caféda-manhã. O ato de despejar o suco de laranja no copo foi em gran­ de parte determinado por suas preocupações da noite anterior e

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

por seus traços de personalidade há muito tempo estabelecidos. O passado assume muitas formas: por exemplo, esquemas, represen­ tações, modelos, predisposições, expectativas, fantasias originais. Estas estruturas do passado encontram os eventos que se desenro­ lam no presente. Um diálogo dinâmico tem início. (O presente tem sempre um quê de novidade; possui condições locais próprias e únicas. Mesmo que fosse apenas uma repetição exata de algo que aconteceu antes, o presente conta com a diferença de ocorrer pela segunda vez, o que em si o torna único.) Ele vem sob forte controle do passado, que pode ser percebido, alterado ou mesmo surpreen­ dido pelo presente. Da mesma forma, o presente determina quais partes do passado serão escolhidas para serem reanimadas e mon­ tadas. Ambos estão sempre atuando um no outro. Narmour (1990, 1999) defende isso veementemente para a música no presente em movimento. Em resumo, o momento presente nunca é totalmente eclipsado pelo passado, nem completamente apagado pelo futuro. Ele retém uma forma própria, embora seja influenciado pelo que se passou antes e pelo que vem depois. Ele também determina a forma do passado que é trazida para o presente e os contornos do futuro imaginado. Esse triálogo entre passado, presente e futuro se dá quase continuamente de momento em momento na arte, na vida e na psicoterapia.

CARACTERÍSTICAS DO MOMENTO PRESENTE O momento presente tem sido relativa mas não totalmente ignora­ do pela psicologia. Alguns dos trabalhos mais importantes sobre o assunto, essenciais para que eu pudesse escrever este livro, foram elaborados no século passado. Em suas recentes investigações sobre a consciência, a psicologia redescobriu a perspectiva fenomenológica. Mas o momento presente como uma entidade psicológica já existia muito antes disso, com diversos nomes diferentes: o “presente es­

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pecioso” (James, 1890/1972); o “presente pessoal” (W Stem, 1930), o “presente real” (Koffka, 1935) e o “presente percebido” ou “pre­ sente psicológico” (Fraisse, 1964). Ele é uma entidade crucial na fenomenologia da percepção (Merleau-Ponty, 1945/1962) e nas concepções atuais da consciência. Todos eles capturam aspectos li­ geiramente diferentes dessa experiência subjetiva. Algumas dessas unidades de processo são mais orientadas para o significado, outras mais voltadas para a percepção, e há aquelas que têm seu foco so­ bretudo na natureza da consciência. Mas, em todo caso, todas ten­ tam identificar uma unidade de processo que estou chamando de momento presente. Algumas das características fenomenológicas do mundo subjeti­ vo, descritas quase um século atrás por Husserl, são bastantes cla­ ras; outras continuam a me surpreender e até mesmo a me espantar. Ao mesmo tempo, são tão óbvias que normalmente passam desper­ cebidas. Estão ocultas à vista de todos. Eis uma lista mínima das características de um momento pre­ sente relevante clinicamente. 1. A consciência perceptiva ou a consciência é uma condição ne­ cessária ao momento presente. O momento presente se desen­ rola durante um período de consciência perceptiva ou de algum tipo de consciência. Entretanto, momento presente e consciên­ cia não são a mesma coisa. O momento presente é a experiên­ cia sentida do que acontece durante um breve período de consciência. 2. O momento presente não é o relato verbal de uma experiência. Ele é a experiência como vivida originalmente. Fornece a ma­ téria-prima para uma possível narrativa verbal posterior. 3. A experiência sentida do momento presente é o que quer que esteja na consciência perceptiva agora, durante o momento sendo vivido. Neste ponto é preciso retornar à perspectiva feno­ menológica. O conteúdo de um momento presente é simples — consiste no que está no palco mental agora. A experiência 54

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

subjetiva não “chega” passivamente à consciência perceptiva nem nela aparece de súbito completamente formada. Ela é construída de modo ativo por nosso corpo e nossa mente trabalhando jun­ tos (Clark, 1997; Damasio, 1994,1999; Sheets-Johnston, 1999; Varela, Thompson e Rosch, 1993). Subjetivamente, porém, o atual conteúdo da mente contido num momento presente parece des­ lizar sem ser notado ou às vezes saltar para a consciência perceptiva sem que se reconheça que está sendo composto. Acei­ tamos isso como algo totalmente natural. Com freqüência o momento presente é difícil de capturar porque muitas vezes saltamos da atual experiência em anda­ mento a fim de assumir o ponto de vista objetivo, de terceira pessoa. Tentamos apreender o que acabamos de experimentar transformando-o em palavras ou imagens no momento seguin­ te. Essas tentativas de introspecção (retrospecção imediata) pa­ recem objetificar a experiência. E, dessa posição mais distante, podemos perguntar: “Esse fato não pode ser explicado por isso e aquilo?” ou “O que aconteceu na verdade foi...” O que nor­ malmente deixamos de ver é que, quando saltamos de um mo­ mento presente simplesmente, caímos em outro momento presente (o seguinte) — neste caso, a nova experiência atual de se perguntar sobre a última experiência atual. Mas agimos como se a segunda experiência estivesse numa perspectiva objetiva em comparação à primeira. Na verdade, trata-se ainda de uma experiência em primeira pessoa sobre tentar assumir uma re­ presentação em terceira pessoa em relação a algo que acabou de acontecer. Foi por causa desse problema natural que Husserl insistiu que, para capturar a experiência fenomenal e examiná-la por si mesma, é preciso colocá-la entre parênteses (a époché de Husserl) para evitar que ela seja “reduzida pela explicação” em outro nível. E isso que faz a experiência subjetiva tão difícil de apreender. Ela é evidente demais, como o oxigênio no ar que respiramos.

O MOMENTO PRESENTE

4. Momentos presentes têm curta duração. O momento presente tem uma duração de diversos segundos. (Conte quatro segun­ dos em voz alta. É um tempo surpreendentemente longo.) As definições de dicionário de “experiência” fazem referência a “passar por” ou “submeter-se pessoalmente”, implicando a idéia de duração. Existem vários acontecimentos breves que duram bem me­ nos de um segundo que também experimentamos, como o re­ conhecimento imediato de um rosto familiar. Mas normalmente não estamos conscientes dessas experiências quando elas ocor­ rem, a menos que perdurem na mente por alguma razão por mais de diversos segundos. Conseqüentemente, elas não se qua­ lificam como momentos presentes. Vou me aprofundar nesta questão no próximo capítulo, que discute os aspectos tempo­ rais do momento presente. O momento presente não só tem uma duração como tam­ bém sentimos, de alguma forma, que o que está acontecendo agora está acontecendo no intervalo de tempo da presentidade imediata. 5. O momento presente tem uma função psicológica. Uma expe­ riência subjetiva deve ser suficientemente nova ou problemáti­ ca para penetrar a consciência e tornar-se um momento presente. Momentos presentes se formam em torno de eventos que rom­ pem a banalidade ou violam o funcionamento regular espera­ do. Portanto, requerem uma ação mental (e talvez física). Como algo deve ou pode ser feito para lidar com o penetrar na cons­ ciência, esses momentos carregam um sentido de conseqüência e compromisso com o mundo. Mais uma vez, pense em kairos. Dito de outra forma, o momento presente carrega uma inten­ ção implícita de assimilar ou acomodar a novidade ou resolver o problema. Isso pode ser experimentado como um senso de movimento ou inclinação para a frente em direção a um objeti­ vo não revelado mas progressivamente implícito, à medida que o momento presente é atravessado. 56

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

Tudo isso pode acontecer com magnitudes muito pequenas de novidade ou problema. Por exemplo, na primeira entrevista do café-da-manhã do capítulo 1, o primeiro momento presente começa com um problema implícito, que não é exatamente novo mas é inesperado. “Não tem manteiga.” Dificilmente consiste numa violação grave de expectativa, mas ainda assim é uma violação. Até agora referimo-nos apenas ao significado psicológico da intenção, especificamente a realizar uma ação (mental ou física) tendo um objetivo em mente. O significado filosófico de intencionalidade refere-se à ação puramente mental da mente que “tenta pegar” ou “se estica” na direção de algum conteúdo da mente — uma lembrança, uma imagem etc. Por exemplo, o que acontece quando alguém diz: “Pense na lua”? Sua mente vai “tentar pegar” uma imagem. Há uma finalidade envolvida. O momento presente diz respeito a essa forma de inten­ cionalidade também (Brentano, 1874/1973). O momento presente, portanto, tem um trabalho psicoló­ gico a fazer, que é a própria tarefa móvel de constantemente lidar ou preparar-se para lidar com o que está acontecendo num mundo quase sempre em mutação. Ele pega as seqüências de eventos pequenos e que ocorrem em frações de segundos que o mundo atira sobre nós e os reúne em unidades coerentes que são mais utilizáveis para adaptação. 6. Momentos presentes são acontecimentos holísticos. O momen­ to presente é uma gestalt. Ele organiza seqüências ou agrupa­ mentos de unidades perceptíveis menores (como notas ou fonemas) que passam abaixo da consciência focalizada em uni­ dades de categoria superior (como uma frase com sentido). Considere a experiência de dizer “alô” a alguém de quem você não gosta. Essa experiência pode ser desmembrada se você sair de si mesmo, digamos assim, e observar-se na terceira pessoa. Dessa perspectiva afastada, você pode dividir a experiência em componentes separados: afetos, cognições e uma seqüência de

O MOMENTO PRESENTE

ações, percepções e sen ações. Cada um desses componentes pode ser observado separadamente. Mas a experiência em pri­ meira pessoa não é desmembrada assim; ela é sentida como um todo. 7. Momentos presentes são temporalmente dinâmicos. Grande parte de nosso pensamento acerca dos fenômenos psicológicos tem sido indiferente ao tempo ou ignorado a dinâmica tempo­ ral da experiência vivida (Sheets-Johnstone, 1999). Entretan­ to, o momento presente tem uma dinâmica de tempo marcada, assim como uma frase musical. Como observado antes, essas formas de tempo dinâmicas são denominadas afetos de vitali­ dade (discutidos no capítulo 4 ; ver também Stern, 1985; Stern, Hofer, Haft e Dore, 1984). Considere dois exemplos bastante diferentes: ver fogos de artifício subirem ao céu, explodirem e se abrirem em leque; ou alguém dizer a você: “Acho que você não está falando a verda­ de”, seguido por alguns segundos de silêncio. A medida que esses momentos presentes se desenrolam, ocorrem micromudanças em frações de segundo na intensidade ou na quali­ dade de nossos sentimentos. No exemplo dos fogos de artifício, há uma excitação e uma expectativa crescentes quando o fo­ guete sobe, uma súbita descarga de sensações quando ele ex­ plode, depois um declínio do entusiasmo e, com ele, um deslumbramento e prazer crescentes quando as luzes se espa­ lham num leque e caem. Simultaneamente, há uma resposta variável de nossos movimentos (por exemplo, modulações na tonicidade ou na tensão, na posição) e flutuações de interesse, força intencional etc. Essas mudanças constantes traçam um perfil temporal, como uma frase musical. Os afetos de vitalida­ de emergem à medida que o momento se desdobra. Isso é cap­ turado em termos como acelerar, diminuir, explodir, instável, tentativa, vigoroso etc. Esses sentimentos temporalmente con­ tornados poderiam ser associados a afetos, movimentos, tor­ rente de pensamentos, sensações e a qualquer e a toda atividade, 58

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mental ou física. Diversas formas-de-tempo poderiam estar avançando simultaneamente. Em vez de vermos essas diferen­ tes formas-de-tempo como não relacionadas entre si, nós as vemos como polifônicas e polirrítmicas. Esta característica é fundamental, porque os afetos de vitalidade desempenham um papel importante ao fornecer um contorno de tempo que auxi­ lia o processo de aglomeração, essencial para compor um mo­ mento presente. Faz isso envolvendo o aglomerado e, desse modo, marcando-o e agregando-o como uma unidade. Uma perspectiva temporalmente dinâmica é crítica para muitas das idéias apresentadas nos próximos capítulos deste livro, especialmente: “momentos agora”, “momentos de en­ contro”, “formas de sentimento temporais” e “viagens de sen­ timento compartilhadas”. Por certo tempo a noção de afetos de vitalidade circulou sob diversas formas, mas, até onde sei, ainda não foi seriamente aproveitada pelas ciências clínicas, comportamentais ou pelas neurociências, embora tais noções nos ajudem muito a compreender a experiência fenomenal en­ quanto ela se desdobra, é recordada e é comunicada. Graças aos avanços na produção de imagens do cérebro e nas técnicas de registro neurofisiológico, as neurociências es­ tão hoje numa posição que lhes permite lançar luz sobre estas questões. Dois tipos de dados são necessários: a cronometragem precisa da atividade cerebral correlacionada a experiências fe­ nomenais; e a cronometragem das mudanças analógicas de in­ tensidade ou magnitude do disparo neural durante as mesmas experiências fenomenais. Bastaria isso para que se pudesse pro­ por um correlato científico para a experiência subjetiva dos afetos de vitalidade. Mais importante, uma tipologia de formas-de-tempo de atividade neural relacionada a várias experiên­ cias surgiriam. Tal tipologia poderia ser de valor inestimável na exploração mais profunda do funcionamento da memória, das ligações em rede e da formação do padrão associativo, em ter­ mos tanto neurocientíficos quanto mentais. Por exemplo, são 59

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os qualia temporalmente dinâmicos de “crescendo” ou “diminuendo” ligados ou ligáveis através das modalidades, atra­ vés do tempo, através de contextos? Se forem, muitos problemas de memória e de associação têm outra condução, que clara­ mente funciona no nível clínico. Uma tipologia de qualia temporalmente dinâmicos conta com mais um atrativo. Essa tipologia concerne a experiências sobre­ tudo afetivas e de sentimento. Até agora, faltam aos afetos e sen­ timentos muitas características ou marcadores como possuem os objetos físicos que permitem associações, tais como forma, ta­ manho, cor, textura etc. Os qualia temporalmente dinâmicos, em contraste, fornecem afetos com marcadores que são muito mais altamente marcados, e por isso podem permitir atividade associativa. Exatamente onde é necessário um número maior de características para uma base de associação. Em resumo, a dinâ­ mica temporal é um fenômeno insuficientemente estudado. Além disso, usando a capacidade de cronometragem e as capacidades de tipificação de afeto de vitalidade das neurociências, aspectos da intersubjetividade poderiam ser explora­ dos. Até que ponto duas mentes podem compartilhar a mesma experiência, pelo menos como medidas pela forma temporal dos afetos de vitalidade vista no nível da atividade neural? Isso cria novas oportunidade de explorações a respeito de contágio mental, ressonância, identificação, empatia, afinidade etc. Uma questão correlata diz respeito a como os aspectos tem­ porais da experiência polifônica e polirrítmica são tratados no nível neural e coordenados no nível fenomenal. Cabe lembrar que grande parte de nossa atividade mental subjetiva é polifônica e polirrítmica, mesmo quando estamos sós, quanto mais ao interagir com alguém. Por exemplo, a metáfora, e o que mais tarde chamarei de apresentações multitemporais, saltando en­ tre o primeiro e o segundo planos, e as progressões relacionais, todas dependem de manter em ordem dois ou mais dados pro­ cessados ao mesmo tempo, enquanto estão sendo comparados. 60

A NATUREZA DO MOMENTO PRESENTE

Um diálogo aprofundado entre o fenomenal/descritivo e os ní­ veis científicos sobre esses pontos poderia ser importante. 8. O momento presente é parcialmente imprevisível à medida que se desdobra. Você não sabe exatamente aonde vai dar o mo­ mento presente porque está sendo levado em sua crista e o pas­ seio ainda não terminou. Cada pequeno mundo de um momento presente é único. E determinado pelas condições locais de tem­ po, espaço, experiência passada e pelas particularidades das condições em constante mutação nas quais ele toma forma. Portanto, não é possível conhecê-lo com antecedência. 9. O momento presente envolve certo senso de self. Durante o mo­ mento presente, você é o único experimentador de suas próprias experiências subjetivas. Você sabe que é você que as está experi­ mentando. A experiência não apenas pertence a você, ela é você. Nossas experiências subjetivas mentais estão tão profundamente incorporadas em nossas ações e movimentos, e nas mudanças fisiológicas que permitem, variam e acompanham a experiência, que não é de estranhar que saibamos exatamente o que estamos experimentando (Clark, 1997; Damasio, 1999; Sheets-Johnstone, 1984, 1999). Embora isso seja auto-evidente, suas bases neurocientíficas ainda precisam ser esclarecidas. (Algumas expe­ riências subjetivas são exceções em potencial que vamos abordar mais tarde.) Há outro problema. Considera-se que a subjetivida­ de, em si, é construída a partir da experiência. Por outro lado, há também uma posição essencialista que afirma que a subjetivida­ de é um fato humano, e que o construtivismo precisa de uma base sobre a qual possa se desenvolver (Zahavi, 2002). Acredito que ambas as visões sejam verdadeiras. 10. O self experimentador adota um ponto de vista em relação ao momento presente. Um “ponto de vista” se refere ao distan­ ciamento ou à proximidade da experiência, ao grau de envolvimento, à participação, ao interesse, ao investimento emocional e à avaliação do que está acontecendo. Mais uma vez, não está claro como sentimos e registramos nossa posição 61

O MOMENTO PRESENTE

em relação às ações que vivemos, mas mesmo assim fazemos isso sem esforço e sem pensar. Aqui, também, as bases neurocientíficas continuam ainda por elucidar, pois envolvem aspectos do self subjetivo e do self experimentador. 11. Momentos presentes diferentes têm importâncias diferentes. Existe um amplo espectro de momentos presentes, desde o raro e importante (kairos com K maiúsculo), no qual o largo alcance de uma vida pode mudar, até o quase inconseqüente. Depen­ dendo do contexto local e do que está em jogo, esses diversos momentos recebem muitos nomes: “um momento no tempo”, “um momento fora do tempo”, “o momento decisivo” (ao ti­ rar uma fotografia, Cartier-Bresson, 1952), “um momento de definição” (como ao capturar a essência de uma situação), “um momento de verdade” (como na tourada), um “momento mui­ to esquisito” (como no jargão policial quando uma vida ou um relacionamento se equilibra numa decisão momentânea, ao es­ tilo do escritor Scott Turow [1987]), e um “momento agora” (em terapia, Stern, Sander, Nahum e colegas [1998]). Existem também momentos presentes extremamente banais (microkairos) que alteram o curso de uma vida, de momento em momento, de modos ínfimos porém possíveis de rastrear: “Não tem manteiga.” Eles são a matéria, as peças de nossa ex­ periência em andamento e, muito importante, são o que traz a mudança em nível local na psicoterapia.

Capítulo 3

A ARQUITETURA TEMPORAL DO MOMENTO PRESENTE

Pa r a COMPREENDER AS INTERAÇÕES humanas que se desenrolam em tempo real, como ocorre com quase todas elas, é necessária uma unidade de processo com uma duração. Leva tempo para analisar o que está acontecendo quando se observa alguém fazendo ou dizen­ do algo. Leva tempo para reunir as unidades do próprio comporta­ mento. E é preciso um período de exposição para que eventos causados por seres humanos aflorem à consciência. O momento

presente é essa unidade de processo. É fundamental conhecer seus parâmetros temporais. O momento presente abrange entre um e dez segundos, com uma duração média de três ou quatro segundos. Há três razões prin­ cipais para este intervalo de tempo. É o período necessário para que se formem agrupamentos significativos dos estímulos mais perceptuais que emanam das pessoas, para compor unidades fun­ cionais de nossos desempenhos comportamentais e para permitir que a consciência aflore.

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O MOMENTO PRESENTE

AGRUPAMENTOS DE ESTÍMULOS PERCEPTUAIS Os seres humanos podem perceber eventos separados numa seqüên­ cia que dura apenas de 20 a 150 milissegundos. Estas são as unida­ des de percepção básicas. No entanto, por si sós, elas não conferem sentido à vida. Somos bombardeados com seqüências quase cons­ tantes dessas pequenas unidades. Se considerássemos cada uma das unidades perceptuais como um evento potencialmente importante e significativo, que requerem atenção e consciência perceptiva, se­ ria como estar continuamente sob o fogo de uma metralhadora. Essas seqüências precisam ser agrupadas em unidades maiores, mais adequadas à adaptação. Embora os momentos presentes sejam geralmente experiências não-verbais, a fala fornece o exemplo mais estudado da aglomera­ ção de unidades perceptuais menores em todos os significativos maiores. Os fenômenos são as unidades perceptuais básicas da fala. Duram em média de 40 a 150 milissegundos. Há também unidades (tais como uma palavra) numa faixa intermediária, de 150 a 1.000 milissegundos. (As palavras, porém, têm um significado limitado fora do contexto da frase.) Diversas palavras se aglomeram e for­ mam um agregado psicológico único, a frase, que é um agrupamen­ to altamente significativo que dura diversos segundos. A duração de um momento presente é a duração de uma frase. Esta hierarquia temporal é um fenômeno geral (ver Trevarthen, 1999/2000; Varela, 1999). Uma importante tarefa para a mente é entender o fluxo de estimulação quase ininterrupto. A frase é a menor aglomeração que nos fornece o máximo de significado para que possamos nos entender no mundo da linguagem. Encontramos os mesmos parâmetros de tempo na música, na poesia, na dança, nos gestos, na cínética e no discurso. Cada disciplina que lida com o fluxo de eventos em série no tempo teve de lidar com esse problema em seus próprios termos. Por que o momento presente não dura mais do que dez segun­ dos? Na verdade, isso pode acontecer em condições especiais. Bus­ 64

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cam-se momentos presentes contínuos mais longos em estados medi­ tativos atingidos por meio de várias técnicas praticadas em tradições como o vedanta, o budismo, o taoísmo e a do monge Hsuan-Tsang (ver Kern, 1988; Lancaster, 1997; Shear e Jevning, 1999; Wallace, 1999), ou quando se entra no que foi denominado “fluxo” de expe­ riência ótima (Csikszentmihalyi, 1990). De modo semelhante, alguns dos momentos que Virginia Woolf (1977) chamou de “momentos de ser” podem durar muito mais. Tais estados mentais, contudo, são diferentes do que estamos chamando de momentos presentes. Nos estados meditativo ou de fluxo, a idéia é perder o senso de s e lfe que a consciência mante­ nha um foco concentrado, relativamente impermeável a outra esti­ mulação. Por outro lado, durante os momentos presentes que nos interessam, a atenção e a consciência tendem a esvoaçar e focali­ zar um único acontecimento por períodos de tempo mais curtos, enquanto permanecem abertas a toda e qualquer outra estimulação potencialmente interessante ou distrativa. Como diz William James: “Como a vida de um pássaro, [o fluxo de consciência] pa­ rece ser feito de uma alternância de vôos e pousos” (modificado por Bailey, 1999 [citando James, 1890/1972], p. 243). Os mo­ mentos presentes são os pousos. Os vôos são os espaço entre os momentos de consciência que fazem parte do momento presente. Esses “vôos” são inacessíveis e inapreensíveis. Assim, a consciên­ cia fica livre para desviar seu foco de um momento presente para o seguinte, e o senso de seif com o experimentador nunca é inter­ rompido, embora os pousos sejam descontínuos. Os momentos presentes são a matéria da subjetividade durante estados mentais comuns. O limite de tempo de dez segundos dos momentos presentes não significa que não existam unidades de tempo maiores formadas por vários momentos presentes aglomerados. Este é claramente o caso da música, entre outros. Trevarthen (1999/2000) argumentou que existe uma unidade maior de cerca de 30 segundos vinculada a ciclos de ativação do sistema nervoso autônomo. No meu entender, 65

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estas unidades maiores são normalmente formadas por variações de diversos momentos presentes em seqüência que aprofundam ou prolongam a experiência. (Esta idéia será abordada novamente nos capítulos sobre aplicações clínicas quando discuto as “progressões relacionais”.) Mas o momento presente permanece como a unida­ de fundamental. Em resumo, o fluxo de estimulação perceptual deve ser aglome­ rado em unidades significativas mais bem dimensionadas para nos tornar mais adaptativos, de modo rápido e eficiente. Aglomerar é o trabalho do momento presente. E o bloco de construção básico de experiências subjetivas psicologicamente significativas que se pro­

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dentemente, os fonemas e as palavras exatas são registrados e po­ dem ser recordados depois com uma fidelidade bastante boa por um curto período. O significado da frase, porém, é muito mais duradouro. Embora a lingüística tenha se concentrado nestas unidades do ponto de vista de sua contribuição para o significado, existe tam­ bém uma dimensão temporal. Sob essa luz, é instrutivo fazer um breve levantamento da duração de algumas unidades de análise do significado na fala, bem como da duração de agrupamentos que regulam o discurso verbal em situações diádicas (Jaffe e Feldstein, 1970; Trevarthen, 1999/2000). Em geral:

longam no tempo.

UNIDADES FUNCIO NAIS DE DESEM PENHO COM PORTAM ENTAL A segunda razão pela qual os momentos presentes não duram mais do que dez segundos é porque o comportamento humano significa­ tivo (comunicativo, expressivo etc.) parece ser naturalmente pro­ duzido/desempenhado/comprimido em unidades de um a dez segundos. A seguir, alguns exemplos de diferentes domínios.

A duração do momento presente na linguagem A lingüística enfrentou, com bastante sucesso, o problema de even­ tos hierarquizantes de durações diferentes: o fonema, a palavra, a frase (oração), o período, o parágrafo e assim por diante. Embora os dois níveis de freqüência alta (o fonema, 20-150 milissegundos, e a palavra, 150-1.000 milissegundos) sejam ouvidos, a frase é a unidade usada para analisar o sentido do que está sendo dito. Ouvese além dos fonemas e das palavras, digamos assim, para chegar à frase, que é a gestalt básica da fala que é ouvida. E a unidade na qual a sintaxe é revelada e o sentido funcional, apreendido. Evi­ 66

• A maioria das frases faladas dura cerca de três segundos. Senten­ ças faladas mais longas raramente duram mais de quatro ou cin­ co segundos (Trevarthen, 1999/2000). • Ao escutar uma fala normal gravada, um sujeito vai interromper o fluxo para relatar o que acabou de ouvir aproximadamente a cada três segundos — em outras palavras, nas fronteiras das frases. A frase atua como um aglomerado de processamento (Wingfield e Nolan, 1980). • Demora-se em média três segundos e no máximo cinco para re­ citar em voz alta um verso de poesia (Turner e Põppel, 1988). • Demora em média de dois a três segundos para que duas pessoas alternem a vez de falar (isto é, a vocalização de um falante, mais a pausa de troca depois que o primeiro falante parou e antes que o segundo comece) Oaffe e Feldstein, 1970). • Um ciclo de respiração (uma inspiração e uma expiração) de­ mora cerca de três segundos (e ocorre por volta de 15 vezes por minuto). Aparentemente, a unidade fisiológica para produzir um agrupamento de sons (o ciclo de respiração), a unidade mental para analisar a fala (a frase) e as unidades do discurso que governam a conversa (a vez) têm durações semelhantes. É provável que as unidades tempo­ 67

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rais para a produção da fala, para a análise de significado e para o diálogo tenham evoluído todas juntas. Qualquer outro arranjo se­

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verdadeiro na fala; após uma pausa de três segundos, a vez ou o tópico tende a mudar.)

ria muito difícil de manejar.

A duração do momento presente nas ações A duração do momento presente na música A música teve de resolver os mesmos problemas gerais de agrupa­ mento, mas aqui a dimensão do tempo está na linha de frente. Em vez de fonemas e palavras, temos notas, tempos e compassos, que devem ser agrupados em frases (ou motivos), sejam elas dominadas por uma linha melódica ou padrão rítmico. E aqui, também, assim como na linguagem e na vocalização, a faixa de 3-4 segundos pare­ ce ser a mais comum. Eis alguns exemplos reveladores: • Na música, o presente perceptual é considerado um período de tempo durante o qual o conteúdo do presente está ativo e direta­ mente disponível sem qualquer mediação da memória (o presen­ te de três partes de Husserl). Uma frase musical percebida como uma gestalt preencheria tal presente perceptual. Se o presente perceptual pode ou não ser visto em termos de memória operacional é uma questão discutida mais tarde (Clarke, 1999; Michon, 1978). • Fraisse (1978) sugeriu que o presente perceptual na música dura não mais do que cinco segundos. • Clarke (1999), estudando diversos autores, situou o presente perceptual na música em torno de dois a oito segundos. • A sensação subjetiva de movimento para a frente na música só é sentida se dois eventos tonais ocorrem dentro de um intervalo de três segundos. Após um silêncio de três segundos, sente-se parar o deslocamento para a frente (Whittman e Poppel, 1999/ 2000). Alguns músicos modernos violam estes limites de tempo separando eventos tonais por mais de três segundos, criando com isso efeitos tais como mudanças nas superfícies e texturas tonais no lugar do movimento para a frente. (Um efeito semelhante é 68

O mesmo problema de agrupamento precisa ser resolvido para ati­ vidades como movimentos, rituais e danças. Isso é especialmente verdade no caso da dança moderna, que fica fechada num tempo musical com menos freqüência do que, digamos, o balé clássico. Com o movimento, diversas unidades de tempo diferentes podem atuar para compor unidades de significado: o ciclo de respiração (três segundos); o ciclo de contração-relaxamento (variável na dan­ ça moderna, mas normalmente entre um e dez segundos); e as limi­ tações temporais impostas por tamanho, velocidade, extensão, abdução/adução e força das partes do corpo. A freqüência de muitos movimentos, sejam eles gestos, passos, expressões faciais ou outros, encontra-se na faixa intermediária de 150-1.000 milissegundos. Por exemplo, numa caminhada rápi­ da, um passo demora 300-700 milissegundos; num ritmo mais tranqüilo, 700-1.500 milissegundos (Trevarthen, 1999/2000). In­ teressante notar que temos a tendência de criar agrupamentos de séries de passos. Assim, muitas vezes, quando alguém toma cons­ ciência de estar andando, seus passos se sincronizam com o ciclo de respiração. A tendência é de dois passos por inspiração e dois ou três por expiração. O resultado é de quatro ou cinco passos por agrupamento. E se os passos ocorrem em intervalos de 700 milissegundos, serão 2,8 a 3,5 segundos para cada agrupamento. Chegamos mais uma vez à duração média da frase de um momen­ to presente. (Estas frações mudam de acordo com a velocidade e o esforço.) Outro exemplo de agrupamento é facilmente encontrado no âmbito militar. Para sincronizar a marcha, alguém conta o tempo em voz alta. São quatro tempos por agrupamento — em outras palavras, quatro passos por frase, com o pé esquerdo no som mais 69

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forte (por exemplo, UM dois, TRÊS quatro). Acabamos com um agrupamento de dois ou três segundos. (Na verdade, os quatro tem­ pos não precisam ser acentuados uniformemente; a psicologia da gestalt demonstra que, quando dois tempos iguais são ouvidos, o primeiro é sentido subjetivamente como enfatizado.) A dança e o ritual podem usar som (música), ciclos de respiração, ciclos de contração-relaxamento, agrupamentos naturais ou qualquer combinação destes elementos para criar suas frases. Novamente a fraseologia corresponde à faixa temporal de um a dez segundos. Por exemplo: um ritual de cumprimento completo de dois amigos que se encontram consiste em sorrisos mais ou menos simultâneos, elevação das sobrancelhas e da cabeça, vocalizações e alguns gestos de mão ou abraço compartilhados (Kendon, 1990). Este processo físico e mental leva diversos segundos e estabelece um novo con­ texto de significado local para o que vem a seguir. “Algum proble­ ma?” ou “Você parece feliz hoje”. Em interações parcialmente ritualizadas e culturalmente mol­ dadas entre díades, há uma hierarquia de movimentos que vai de pequenos a grandes (desde os olhos até a cabeça, o tronco, a pélvis ou as partes que sustentam o peso do corpo). Os movimentos maio­ res e mais lentos delimitam os menores (Fivaz-Depeursinge, 1991; Frey, Hirsbrunner, Florin, Daw e Crawford, 1983; Frey, Jorns e Daw, 1980). Por exemplo, durante uma conversa entre duas pessoas sentadas, quando uma delas muda de posição na altura da pélvis, descruzando uma perna, transferindo o peso do corpo de quadril, cruzando a outra perna e reacomodando o tronco e a cabeça, uma mudança significativa no estado interativo é sinalizada. Toda a pos­ tura é reposicionada. Isso é análogo a fechar um parágrafo e abrir outro. Um novo ou alterado tópico ou atitude interpessoal está sen­ do introduzido. Um novo momento presente entrou. Mudanças nesse nível levam cerca de dois a cinco segundos. A imitação é um complexo ato perceptual, motor e proprioceptivo de comunicação e pertencimento. Pode ser de ações ou de vocalizações (que também são ações). Kugiumutzakis (1998, 70

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1999) relatou que episódios de imitação entre adultos e bebês em suas primeiras semanas e meses de vida duram cerca de dois a sete segundos. Nadei (1986) e Nadei e Peze (1993) encontraram surtos de imitação entre crianças mais velhas com uma duração de aproxi­ madamente quatro segundos. A imitação é particularmente interes­ sante sob esta luz porque requer a montagem da percepção do outro com um movimento do self proprioceptivamente guiado. A mente dispõe de estratégias tanto inatas quanto culturais para agrupar esses conjuntos e descontinuidades em unidades significa­ tivas maiores — em todos coerentes. Um estudo recente de Zacks e colegas (2001) demonstrou que ambas podem operar juntas. Eles mostraram aos sujeitos gravações de televisão de atividades rotinei­ ras, tais como passar uma camisa ou outras ações menos óbvias, e registraram a atividade neural em regiões específicas do cérebro usando imagens de Ressonância Magnética funcional (RMf). Quan­ do foi solicitado aos sujeitos que segmentassem a atividade em uni­ dades, houve um aumento da atividade neural em torno das fronteiras dos movimentos funcionais, o que sugere que o conheci­ mento deles acerca da atividade estava dirigindo a análise durante essa visualização ativa. Entretanto, quando foi pedido aos mesmos sujeitos que assistissem à televisão sem ter em mente qualquer ins­ trução nem tarefa (ou seja, visualização passiva), eles mostraram uma atividade neural aumentada nas mesmas fronteiras. Isso suge­ re que existem muitas pistas que um processo inato poderia seguir, tais como mudanças na densidade, na direção ou na velocidade do movimento, mesmo quando o sujeito não está familiarizado com a função da atividade nem prestando atenção a ela.

A duração do momento presente na interação mãe-bebê não verbal Desde o princípio da vida, os bebês são expostos a várias formas da fraseologia humana com duração aproximada de três segundos:

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• As alternâncias de vocalização entre mães e crianças não verbais (balbucios e fala infantilizada recíprocos) demoram cerca de dois a três segundos (Beebe, Jaffe, Feldstein, Mays e Alson, 1985; Jaffe, Beebe, Feldstein, Crown e Jasnow, 2001; Malloch, 1999/ 2000; Stern, 1977). • Frases curtas nas canções que as mães cantam para seus bebês encontram-se na mesma faixa (Malloch, 1999/2000; Trevarthen, 1999/2000). • Durante uma brincadeira face-a-face com crianças pequenas, as mães fazem séries curtas de expressões faciais exageradas ou ca­ deias de gestos ou seqüências de toques. Estes grupos de movi­ mentos (e sons) maternais fornecem o espetáculo de estímulos que pais e filhos usam para regular mutuamente o estado de aler­ ta e ativação do bebê de momento em momento. Estes grupos duram cerca de dois a cinco segundos (Beebe etal., 1985; Beebe, Stern e Jaffe, 1979; Stern, 1974, 1977; Stern eta l., 1985; Weinberg e Tronick, 1994). • Fivaz (comunicação pessoal, 12 de janeiro de 2002) constatou que os episódios de atividade na tríade (mãe, pai, bebê) duram em média 3,5 segundos, numa faixa de dois a dez segundos. • Bebês aprendem com rapidez, mas a situação de aprendizado deve respeitar a duração do momento presente. Aos três meses de ida­ de, eles adquirem um repertório de comportamentos instrumen­ tais (para obter uma resposta), tais como o sorriso social e a vocalização. Esses comportamentos são facilmente reforçados pelos pais num ambiente natural. Entretanto, para que esse tipo de condicionamento funcione, o reforçador dos pais (um sorriso ou uma vocalização de retribuição) deve ser feito até três segun­ dos após o comportamento do bebê. Se o lapso entre o comporta­ mento desejado e o reforçador for maior, não haverá aprendizado (Watson, 1979). Em outras palavras, o comportamento e seu reforçador devem ocorrer no mesmo momento presente para que o bebê os associe. É como se o movimento para a frente da música cessasse para o bebê. 72

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Duração do momento presente em operações mentais gerais Muitos sugeriram que o presente psicológico (isto é, o momento presente) é, em essência, o mesmo que memória operacional. A memória operacional é o armazenamento de curto prazo que guar­ da uma pequena quantidade de informações em armazenamento ativo por um tempo limitado. Enquanto se encontram no ar­ mazenamento ativo, as informações podem ser recuperadas e usa­ das conforme a necessidade (Baddeley, 1986, 1989). A duração do armazenamento ativo (sem repetição) é aproximadamente a mes­ ma do momento presente. Novamente, o tempo de espera da me­ mória depende de uma multiplicidade de variáveis, assim como a duração do momento presente. Há muitos motivos, no entanto, para não se igualar momento presente e memória operacional. Em primeiro lugar, o momento presente é uma unidade de processo subjetiva. A memória operacional é objetiva. Além disso, uma noção básica da memó­ ria operacional é que ela contém ao menos dois componentes: o material que está atualmente sob o foco da atenção ativa e o mate­ rial que está fora do foco da atenção, mas permanece ativado e pode ser recuperado ou reconduzido ao foco da atenção, durante um período de tempo limitado (Cowan, 1988). O momento pre­ sente, ao contrário, não tem nenhum elemento fora do foco de atenção. Se algo pode ser reconduzido à atenção, onde isso estava fenomenologicamente antes de ser recuperado? Não poderia es­ tar no momento presente. A memória operacional decai rapidamente ao longo dos dois segundos iniciais e depois mais devagar por outros 15 a 30 segun­ dos (Baddeley, 1984, 1989; Cowan, 1984, 1988). Ela pode, po­ rém, ser mantida por mais tempo mediante repetições. E por este motivo que a maioria dos experimentos sobre a memória operacional utiliza paradigmas de interferência, nos quais a informação é apre­ sentada e, em seguida, informações não relacionadas (interferen73

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tes) são expostas para evitar a repetição antes que a recuperação da informação original seja testada. Tal procedimento contraria a idéia central de um momento pre­ sente, especificamente, de que um evento contínuo coerente preen­ che toda a sua duração. O momento presente é um todo único. Concerne a eventos analógicos. A memória operacional, por outro lado, normalmente diz respeito a uma série de informações não relacionadas (isto é, eventos digitais), algumas das quais podem ser reconduzidas ao foco da atenção depois que a mente se distraiu. Existem diversos desenhos bem conhecidos que podem ser vis­ tos de dois modos muito diferentes. Um é um vaso ou duas pessoas: vista de um modo, a imagem parece ser um vaso no centro da figu­ ra; vista de outro modo, parece ser o perfil de duas pessoas uma de frente para a outra. Podemos ver apenas uma das duas imagens por vez, mas também alternar entre ver o vaso e os perfis. Normalmen­ te leva de um a três segundos para que a troca tenha efeito (quando não se tem prática). Isso sugere que certas manipulações mentais também exigem um período de um a alguns segundos para criar um novo todo (Kelso, Holroyd, Hovarth, Raczaszek, Tuller e Ding,

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da mais uma segunda ou terceira sobre a original é o que abre a porta para o fenômeno da consciência. A primeira volta do circuito de reentrada é rápida, e a ativação do circuito tende a ser muito curta. Sua duração fica em torno de um quarto de segundo. Este é o tempo que se leva para se ter atra­ ções ou aversões intuitivas inconscientes. Se, entretanto, existem diversas voltas em torno do circuito de reentrada, sua ativação pode ser estabilizada por um tempo longo o bastante para que a experiên­ cia fenomenal da consciência desperte. Se houvesse quatro ou mais voltas no circuito, estaríamos na faixa de tempo de um momento presente. A ativação estabilizante continuada do circuito de reentrada que dura um ou mais segundos tem a função de proteger a mente de tornar-se consciente dos acontecimentos a cada fração de segundo. Os eventos precisam, digamos, ganhar consciência tornando-se su­ ficientemente proeminentes (carregados de valor) para estabilizar momentaneamente um circuito de reentrada. O momento presente é o tempo necessário para que esse circuito esteja estabilizado o bastante para dar margem à consciência.

1994; Rubin, 2001).

O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA É preciso um certo tempo para que a estimulação recebida alcance a consciência. Conforme discutido no capítulo 8, acredita-se que a consciência desperte, em termos neurais, por meio do processo de reentrada (por exemplo, Edelman, 1990). Dito de maneira muito simples, quando um grupo de neurônios é ativado por um estímulo de entrada, este pode mandar um sinal para outro grupo de neurônios. O segundo grupo então reativa (leva em resposta para) o primeiro, e um circuito de reentrada ou recursivo é criado. Isso poderia em seguida espalhar-se para um terceiro grupo que respon­ deria ao primeiro e ao segundo. Esta combinação de uma experiên-

É tentador pensar que o tempo necessário para aglomerar estímu­ los perceptuais, desempenhar unidades de comportamento funcio­ nais e se tornar consciente de um evento devia ser o mesmo para todos: por volta de três ou quatro segundos. Caso contrário, seria muito mais difícil tornar nossa experiência coerente. Os seres hu­ manos parecem ser construídos de modo a dimensionar na mente os eventos em unidades básicas de momentos presentes: as unida­ des fundamentais para compreender as experiências temporalmen­ te dinâmicas que ocorrem entre as pessoas. Dependendo do que está sendo agrupado exatamente, pode­ mos esperar variabilidade na duração, dentro de limites. É uma unidade psicobiológica flexível, e não rigidamente fixa. Fatores como modalidade, número ou freqüência de eventos a serem agrupados, complexidade, se o tempo (ou espaço) está vazio ou cheio, familia­

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ridade, entre outros, podem influenciar a real duração do processo de agrupamento. Por este motivo, é mais sensato pensar em termos de uma faixa de aproximadamente um a dez segundos para o mo­ mento presente. Momentos presentes são reunidos de maneiras extremamente variáveis, e pode ser difícil determinar o tempo entre dois desses momentos. Às vezes, lacunas na consciência os separam (como os vôos do pássaro da consciência de William James rumo ao próximo pouso). Outras vezes eles estão apertados em seqüências de mo­ mentos adjacentes, com transições breves como um corte brusco para uma nova cena na montagem de um filme. Nossa consciência perceptiva destas transições é, na melhor das hipóteses, vaga e nor­ malmente inexistente. Mas a seqüência pode traçar um tema, uma progressão direcional ou algum outro padrão. Adicionalmente, o tempo entre os momentos presentes varia amplamente, dependendo do que está acontecendo. Em algumas situações de concentração focalizada ou carga altamente afetiva, os momentos presentes parecem suceder-se em intervalos curtos. Ou­ tras vezes parecem prolongar-se bem além dos dez segundos. Exa­ minando mais de perto, porém, parece haver uma renovação do “mesmo” momento presente a cada intervalo de diversos segun­ dos. Por exemplo, ao observar algo fascinante, mas relativamente constante, como um eclipse do sol, uma pessoa pode parecer per­ der-se na mesma cena do momento presente por longos períodos — 30 segundos ou mais. Entretanto, dentro desse período de 30 segundos, a cada poucos segundos há uma ligeira mudança nos pen­ samentos, sentimentos, ações, posições etc., o que rapidamente re­ nova ou reocupa a mente. A unidade básica do momento presente é preservada; ele só é reaplicado algumas vezes. Agora que temos uma idéia do que queremos dizer com agora , do quanto dura um momento presente e do que ele realiza nesse tempo, podemos perguntar, no próximo capítulo, como os momen­ tos presentes estão organizados.

Capítulo 4

O MOMENTO PRESENTE COMO UMA HISTÓRIA VIVIDA: SUA ORGANIZAÇÃO

Um MOMENTO PRESENTE contém os elementos essenciais para com­ por uma história vivida. Este é um tipo especial de história porque é vivido quando acontece, e não quando é colocado em palavras posteriormente. Ela é não-verbal e não precisa ser posta em pala­ vras, embora isso pudesse ser feito, com alguma dificuldade. E de curtíssima duração comparada à maioria das histórias. E feita prin­ cipalmente de sentimentos que se desdobram, uma espécie de nar­ rativa emocional não contada. Certos termos precisam ser esclarecidos. O form ato narrativo é uma estrutura para organizar mentalmente (sem linguagem) nossa experiência com comportamento humano motivado. Histórias vi­ vidas são experiências moldadas narrativamente na mente mas não verbalizadas nem contadas. Uma história contada — ou seja, uma narrativa — é a narração a alguém sobre a história vivida. Um olhar sobre o desenvolvimento infantil pode ajudar a escla­ recer estas distinções. Em primeiro lugar, a criança precisa ser ca­ paz de analisar e moldar sua experiência no formato narrativo — numa história vivida. Isso ocorre muito cedo, antes da linguagem, bem antes dos 18 meses de vida. A idéia central é a de que os bebês,

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muito cedo na vida pré-verbal, tendem a analisar e experimentar o mundo humano em termos de intenções, como fazem os adultos. É uma tendência natural da mente. O formato narrativo é concebido para construir significados em torno das intenções (existem signifi­ cados emocionais, bem como cognitivos). Foi isto que Bruner (1990) quis dizer, em linhas gerais, quando defendeu a primazia dos “atos de significação” em nossa análise das interações sociais humanas. Em segundo lugar, a criança precisa tornar-se verbal, empregando razoavelmente bem os tempos verbais (isto é, passado, presente, futuro). Isso acontece durante o segundo ano de vida. Por último, a criança tem de adquirir a capacidade de transformar em linguagem a história vivida na forma de uma história contada. A partir dos 3 ou 4 anos, as crianças começam a contar narrativas autobiográfi­ cas. Suas histórias contadas continuam bastante primitivas até por volta dos 6 anos (Favez, 2003; Nelson, 1989; Peterson e McCabe, 1983). Esta seqüência de desenvolvimento de histórias vividas, de­ pois linguagem, depois histórias contadas, é bem conhecida no de­ senvolvimento em que a compreensão aparece muito antes da produção. A história vivida e a história contada (bem como o formato nar­ rativo) têm elementos essenciais em comum. No momento presen­ te, alguns podem aparecer de forma incompleta, como descrito a seguir. Primeiro, deve haver um motivo para criar a história ou tornarse consciente da história sendo vivida. Algo precisa acontecer para trazê-la para a vida psicológica. O gatilho pode ser uma novidade, algo inesperado, um problema, um conflito ou algum tipo de afli­ ção ou aborrecimento que requer uma solução. Não pode ser sim­ plesmente uma lista de acontecimentos. É por isso que as histórias nos cativam. Uma história depende de uma suposição implícita so­ bre como o mundo funciona e o que pode ser normalmente espera­ do (Bruner, 2002a, 2002b). Quando a expectativa normal não se confirma ou é contrariada pelos acontecimentos, é feita uma tenta­ tiva para normalizar a situação. E, finalmente, uma coda é necessá­

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ria para ajustar a expectativa original, levando em conta o que aca­ bou de ocorrer (Bruner, 2002). (E como a necessidade de assimilação e acomodação concebida por Piaget.) Bruner forneceu um exemplo do que se quer dizer com contrariar. “Estava andando na rua quando um homem chegou para mim e perguntou: ‘Gostaria de comprar um mito pessoal?”’ A questão viola a expectativa normal de que mitos pessoais não são vendidos (Bruner, 2002). A coda poderia ser algo simples como pensar: “O mundo é esquisito às vezes.” O que então desencadeou os momentos presentes identificados nas entrevistas do café-da-manhã do capítulo 1 ? Elas parecem ex­ tremamente banais. E são, mas cada uma delas é acionada por uma aflição, ainda que insignificante, do mundo cotidiano. “Onde está a manteiga?” e os sentimentos negativos que acompanham a pergun­ ta refletem a violação de uma expectativa diária comum. “Ok, não tem problema — é bom para a dieta” e a inundação de boas sensa­ ções resolve isso. “O que faço com este pão?” é a reação à novida­ de, e daí em diante. A estrutura da situação é mais ou menos a mesma, ainda que a magnitude da conseqüência varie muito. Em segundo lugar, as histórias são estruturadas em torno de um enredo. Elas contêm um quem, por quê, o quê, quando, onde e como que fazem com que todos os seus elementos fiquem coesos. Na faculdade de jornalismo aprende-se a posicionar os elementos da narrativa de forma a capturar rapidamente o interesse humano respondendo às perguntas de quem? o quê? onde? quando? por quê? e como? logo nas primeiras frases. Os detalhes são completa­ dos mais tarde. Estas perguntas fornecem as informações que pren­ dem a atenção das pessoas. São a espinha dorsal do formato narrativo usado para entender e falar sobre comportamento motivado (Burke, 1945). São a matéria da fofoca, aquela forma quintessencial de com­ preender e relacionar certos assuntos humanos, bem como a maté­ ria de romances, mitos, processos criminais (Bruner, 2002) e de narrativas de vida clínicas (Schafer, 1981; Spense, 1976). Finalmente, uma história precisa ter uma linha de tensão dra­ mática que age para levar e empurrar a história para a frente desde

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sua construção, passando pela crise, até a solução (Labov, 1972). Isso amarra a história temporalmente. Não deve ser surpresa o fato de que possa ser contida num momento presente; afinal, o formato narrativo é nosso modo fun­ damental de perceber e organizar (bem como de falar sobre) o com­ portamento humano motivado. Este parece ser o caso nas menores das unidades de experiência coerentes bem como nas maiores, e para experiências emocionais e cognitivas. O momento presente como uma história vivida também pode ser compartilhado. Quando isso acontece, a intersubjetividade co­ meça a ganhar corpo. No momento em que alguém pode participar da história vivida de outra pessoa, ou pode criar uma história mu­ tuamente vivida com eles, um tipo diferente de contato humano é criado. Houve mais do que uma troca de informações. Este é o segredo do aqui e agora. Voltaremos a esta questão mais tarde. O momento presente carrega em sua breve existência uma his­ tória vivida, uma espécie de “mundo num grão de areia”. Normal­ mente, o tamanho ou a duração de uma estrutura narrativa contada é maior e mais longa. Isso é especialmente verdade no domínio clínico, onde falamos de narrativas de vida ou mesmo de narrativas transgeracionais. Mesmo assim, estruturas narrativas maiores são feitas de estruturas menores que nelas se encontram embutidas. Normalmente, o tamanho dessas histórias de vida menores não é explorado em detalhe. O que acarreta a pergunta: existem histórias vividas mínimas a partir das quais se constroem todas as estruturas narrativas maiores? Vou responder que sim, e proponho que os momentos presentes sejam os blocos de construção básicos. A idéia inicial de um momento presente que contém uma histó­ ria vivida foi apresentada de forma preliminar sob o nome de “en­ velope protonarrativo” (Stern, 1994). O antepositivo proto foi empregado porque supunha-se ser o envelope mais primitivo do que a linguagem e anterior a ela. No entanto, aqui, não vejo absolu­ tamente este fenômeno como primitivo, mas sim um aspecto total­ mente desenvolvido, normal e penetrante da vida de crianças e

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adultos. Além disso, considero-o mais uma narrativa emocional sen­ tida do que uma história cognitivamente construída verbalizada. Por estes motivos, troquei o nome de envelope protonarrativo para história vivida. A seguir, uma exploração de cada um dos elementos necessários a uma história vivida que segue o formato narrativo e a forma que assumem dentro dos estreitos confins de um momento presente.

OS ELEMENTOS DO ENREDO Quem? Durante o momento presente, de algum modo temos a consciência perceptiva em segundo plano de que somos nós que estamos viven­ do a experiência. (Os “sentimentos de fundo” do corpo, de Damasio [1999] — sua posição, seu tônus, despertar etc. —, seriam essenciais para qualquer senso de self existencial.) Esta consciência perceptiva também está de acordo com idéias atuais do self como um produto da mente incorporada (Clark, 1 9 9 7 ; Schore, 19 9 4 ; SheetsJohnstone, 1999; Varela, Thompson e Roach, 1993). Tem-se sus­ tentado que a diferenciação precoce de um s elf que realiza a experiência talvez ocorra desde o nascimento (Stern, 1985). O sen­ so de um self experimentador sobrevive às muitas experiências que obliteram parcialmente as fronteiras mentais entre as pessoas, tais como contágio emocional, empatia, identificação, identificação projetiva, imitação, compartilhamento intersubjetivo, organismo sexual, entre outras. Independentemente, ou talvez ao lado, dessas explicações alta­ mente plausíveis, permanece a realidade fenomenal de que estamos cientes de nosso status como experimentadores. Isso é particular­ mente verdade durante um momento presente quando o pássaro da consciência de James está pousado e uma nova paisagem presen­ te se abre. Também é verdade, mas não tanto, quando o pássaro da

O MOMENTO PRESENTE

consciência de James está em vôo, porque há pouca experiência formada à qual ele possa se segurar, apenas o processo. O quem somos nós, como donos da experiência. Dependendo da natureza da experiência, o selfé sentido como sujeito, agente ou paciente. Esta consciência perceptiva da experiência fica suspensa em segundo ou primeiro plano durante todo o momento presente.

Quando? Argumentei que o momento presente é sentido como algo que ocorre durante um agora prolongado, com um passado imediato, presente e futuro. Mas não abordei a realidade fenomenal de que “conhece­ mos” ou sentimos que a experiência que estamos vivendo está acon­ tecendo agora, não importando se ela se refere a um acontecimento passado ou futuro. Husserl e outros descreveram isso amplamente, e não pretendo me estender nesta questão, exceto para apontar que o momento presente está claramente situado fenomenologicamente no tempo. Possui um quando, mesmo que este quando seja comple­ xo (por exemplo, “Ontem me lembrei de que na semana que vem vou encontrá-la na estação”). O presente vivido é ao mesmo tempo o ponto de referência e o momento da experiência — em outras palavras, é quando a recordação da lembrança de ontem sobre o futuro está ocorrendo.

Por quê? A pergunta “Por quê?” indaga sobre intenções. Intenções são fun­ damentais, tanto para narrativas quanto para o momento presente como uma história vivida. Intenções fornecem o impulso. Vamos examinar isso mais de perto. Um fluxo-sentimento de intencionalidade corre pelo momento presente. Uma vez que um novo presente se encontra diante de nós, sua intencionalidade começa a se desdobrar durante seus segundos no palco. O que quer que seja experimentado durante o novo mo­

O MOMENTO PRESENTE COMO UMA HISTÓRIA VIVIDA: SUA ORGANIZAÇÃO

mento presente é temporalmente dinâmico. Flui em tempo ana­ lógico. Não há seqüenciamento de entidades separadas e distintas; apenas um todo contornado no tempo — como numa frase musi­ cal. Esse desdobrar-se tem uma sensação de movimento para a frente, de direcionalidade orientada para alguma meta que se torna mais específica no caminho. O momento presente está indo a algum lu­ gar. Ele pode chegar ao destino ou parar abruptamente e nunca chegar. Pode ser de tão pouco interesse que não o guardamos para a viagem. Independentemente do resultado, ele tem um ímpeto. Em outras palavras, o momento presente tem a sensação de intencionalidade em movimento (mesmo que a intenção seja de nada fazer, nada dizer, nada pensar e se manter imóvel). Vou chamar este senso de movimento de “fluxo-de-sentimento-intencional”. Entre­ tanto, mesmo no sentido filosófico de intenção ou temática há uma direcionalidade, um “tentar pegar” ou “esticar-se” da mente em direção a algo. A mente foi posta em movimento mental, digamos. A literatura sobre desenvolvimento infantil, em particular, preo­ cupou-se em definir os critérios necessários para uma “verdadeira” (psicológica) intenção, para que eles possam razoavelmente per­ guntar quando as intenções despertam em termos de desenvolvi­ mento. Há um consenso de que as intenções verdadeiras devem ter um propósito e ser direcionadas para a meta, o que significa ajusta­ da até as extremidades, e ter alguma existência mental anterior à ação. Todos estes critérios são satisfeitos por volta dos 18 meses de vida (ver Zelazo, 1999). Vale a pena avançar um pouco mais na questão das intenções verdadeiras versus proto-intenções ou intenções parciais, não só porque os bebês parecem ter muitos comportamentos semelhantes a intenções bem antes dos 18 meses, mas também porque intenções não-pensadas, não-verbalizadas e implícitas, bem como àquelas que não são verdadeiras (nas quais nem todos os critérios estão presen­ tes), também existem em adultos. E provável que exista muito mais destas intenções do que das verdadeiras, dada a natureza ad hoc e ad libitum da maior parte da vida.

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Sejam quais forem os critérios usados para definir uma inten­ ção verdadeira, a psicologia vê os elementos desses critérios como entidades distintas e separadas que formam as partes de uma se­ qüência. Por outro lado, da perspectiva fenomenológica, o fluxode-sentim ento-intencional é form a-de-tem po analógica da experiência. Ele corre como uma frase completa por baixo do con­ teúdo específico da intenção. E isso, em parte, que faz com que a intenção dê a sensação de estar se inclinando para a frente. Ele acrescenta aquilo que chamamos de linha de tensão dramática à medida que a ação se aproxima do ponto final. E parte da dinâmi­ ca temporal da experiência. Em resumo, podemos considerar o lugar das intenções — o por quê — um dos principais elementos do momento presente.

O quê, como e onde? Estes elementos da estrutura narrativa começam a se encaixar em virtude das especificidades do contexto exato do nível local em que o momento presente ocorre e das possibilidades que ele apresenta. Resumindo, os elementos essenciais do enredo podem ser dis­ cernidos num momento presente.

A UNHA DE TENSÃO DRAMÁTICA: AFETOS DE VITALIDADE Os contornos temporais e os afetos de vitalidade estão no coração da dinâmica microtemporal e do senso de tensão dramática, crucial para as histórias vividas. Os afetos de vitalidade foram inicialmente introduzidos para explicar a harmonização afetiva da mãe com seu bebê como uma forma precoce de intersubjetividade (Stern et al., 1984; Stern, 1985). A idéia, contudo, tem uma aplicação muito mais ampla. Há duas noções complementares envolvidas. A primeira concerne 84

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à estimulação que invade o sistema nervoso pelo lado de dentro ou de fora. A maior parte das estimulações é contornada em tem­ po real. Tem uma forma ou contorno temporal que consiste em mudanças analógicas (de fração de segundo em fração de segun­ do) na intensidade, no ritmo ou na forma do estímulo. (Recorde o exemplo dos fogos de artifício comentado anteriormente.) Isso foi mencionado antes como uma forma-de-tempo. Vou reservar o termo contorno temporal para a forma-de-tempo objetificável de um estímulo. Por exemplo, um sorriso visto no rosto de outra pessoa tem um contorno temporal distinto que demora para se formar. Ele aumenta (pode-se dizer que em crescendos) em cerca de um se­ gundo, talvez; atinge seu ápice de completude, que é mantido por um momento com pequenas modulações; e depois desaparece em, digamos, um segundo. Este desaparecimento pode ser rápido, como uma parada, ou lento, como um esmaecimento, ou algo entre os dois. A performance completa flui junto, como um só pacote de estímulos ininterrupto de diversos segundos. Há um desdobrar analógico, não uma seqüência de estados ou eventos distintos. E uma frase comportamental capturada num momento presente único. Existe, é claro, um milhão de sorrisos. E a diferença entre eles reside, em parte, em seus contornos temporais. Tais diferenças não são triviais porque muito do valor de sinal reside na orquestração do contorno temporal da performance, e não no simples fato de que é um sorriso com um sentido convencional. Imagine que al­ guém que você conhece o cumprimenta na rua com um sorriso. O tempo crescendo do sorriso (ele é explosivo ou chega devagar?) pode indicar um prazer instantâneo ou uma surpresa culpada ao ver você. A duração da sustentação do ápice pode refletir o nível de prazer. A velocidade de desaparecimento pode indicar a autentici­ dade da expressão e assim por diante. A forma convencional de um sorriso é somente um esqueleto no qual a parte verdadeiramente importante da comunicação é preenchida no formato de seu con­

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torno temporal: até que ponto eles estão realmente contentes de ver você? Estão surpresos por vê-lo simplesmente ou por vê-lo na­ quele lugar ou naquela hora? Querem algo de você que você não esperava? Seu relacionamento com eles foi alterado de alguma for­ ma desde que vocês se encontraram da última vez? O mesmo se aplica a gestos e à maioria dos comportamentos humanos. As palavras são apenas exceções parciais. A referência simbóli­ ca é capturada tão depressa que é impossível falar do contorno temporal da transmissão do símbolo. Mas a palavra quando fala­ da, como um som, é muito rica em contornos temporais, por cau­ sa da presença da paralingüística. Isso fica evidente na vida cotidiana e na psicoterapia (Crystal, 1975; Knoblauch, 2000). Sem contornos, as palavras soariam como se fossem pronunciadas por um robô. Como se comenta, não é o que você diz, mas sim como você diz. Tudo que fazemos, sentimos e ouvimos das pessoas tem um con­ torno temporal. Também atribuímos contornos a muitos eventos na natureza. Estamos imersos numa “música” do mundo no nível local — uma complexa cerca polifônica e polirrítmica onde dife­ rentes contornos temporais movem-se para a frente e para trás en­ tre o primeiro e o segundo planos psicológicos. Estes contornos temporais de estimulações agem sobre e dentro do nosso sistema nervoso e são traduzidos como contornos de sen­ timentos em nós. São estes sentimentos contornados que estou cha­ mando de afetos de vitalidade. Eles são o complemento dos contornos temporais. Em outras palavras, contorno temporal são as mudanças objetivas (ainda que pequenas) ao longo do tempo (ainda que curto) na intensidade ou na qualidade da estimulação (interna ou externa). Afeto de vitalidade consiste nas mudanças ex­ perimentadas subjetivamente nos estados de sentimento internos que acompanham o contorno temporal do estímulo. A qualidade de sentimento dos afetos de vitalidade é mais bem captada por termos cinéticos tais como surto, esmaecer, de­ saparecer, explosivo, provisório, esforçado, acelerar, desacelerar, 86

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culminar, estouro, prolongado, alcançar, hesitar, inclinar-se para a frente, inclinar-se para trás etc. Desde o momento em que nas­ cemos, somos expostos contínua e diariamente a essas experiên­ cias na forma de respirar, sugar, mover-se, defecar, engolir, sentir cólicas etc. Cada um tem seu próprio contorno temporal e afeto de vitalidade. Os afetos de vitalidade são intrínsecos a todas as experiênci­ as em todas as modalidades, domínios e tipos de situação. Ocor­ rem tanto na presença como na ausência dos afetos dos princípios darwinianos. Por exemplo, um ímpeto de raiva ou alegria, uma repentina inundação de luz, uma acelerada seqüência de pensa­ mentos, uma onda de sentimento evocada por uma música, um espasmo de dor e uma dose de narcótico podem todos ser senti­ dos como “ímpetos”. Eles compartilham uma distribuição seme­ lhante de excitação/ativação ao longo do tempo, um padrão de fluxo-de-sentimento semelhante — em outras palavras, um afe­ to de vitalidade semelhante. E, por causa de nossa capacidade de tradução multimodal, um afeto de vitalidade evocado por uma modalidade pode ser associado a um afeto de vitalidade de qual­ quer outra modalidade ou de qualquer outro tempo ou situação. Assim como os símbolos, os afetos de vitalidade prestam-se à formação de redes associativas. Eles refletem a maneira pela qual um ato é realizado e o sentimento por trás do ato que lhe dá forma final. Exatamente como o sistema nervoso executa a transformação dos contornos temporais da estimulação para os afetos de vitalida­ de dos nossos sentimentos subjetivos ainda não foi totalmente com­ preendido. Tomkins (1962) sugeriu que o contorno temporal da estimulação evoca um contorno temporal correspondente da den­ sidade do disparo neural no sistema nervoso. Além disso, ligou padrões específicos de disparo neural a emoções darwinianas espe­ cíficas distintas, sugerindo que, seja qual for a modalidade da estimulação, um aumento rápido na intensidade do estímulo (por R7

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exemplo, uma motocicleta que não se vê acelerando a pequena dis­ tância) provoca medo, um aumento mais lento provoca interesse e assim por diante. Há uma espécie de isomorfismo temporal entre o contorno do estímulo e o contorno da atividade neural. Clynes (1978) propôs um modelo semelhante, mas associa a forma tempo­ ral de estimulação a uma paleta de sentimentos diferente. A transposição dos contornos temporais observados no com­ portamento do outro para os afetos de vitalidade evocados no ob­ servador está se tornando mais explicável à luz da pesquisa sobre neurônios-espelho, osciladores adaptativos e mecanismos internos de cronometragem (por exemplo, a teoria do tau). A noção básica por trás dos afetos de vitalidade vem circulan­ do há tempos. O filósofo Langer (1967) falou em termos de “for­ mas de sentimento” na experiência da música. Em movimento, música e dança, a noção de “forma de esforço” descrita por Lamb (1979) e os métodos de Dalcroze (Bachmann, 1994; Boepple, 1910) estão essencialmente baseados na intuição de afetos de vi­ talidade. Kestenberg (1965a, 1965b, 1967) desenvolveu um siste­ ma de análise de movimento para crianças com vários distúrbios, usando o trabalho dos autores supracitados, particularmente o de Laban (1967). Os afetos de vitalidade também são uma característica pene­ trante da dança moderna, sob várias roupagens e estilos (Jowitt, 1988). Tustin (1990) descreveu as “formas de sentimentos” experi­ mentadas por crianças autistas durante seus comportamentos mo­ tores estereotípicos. Minha noção de afetos de vitalidade é menos específica do que a de Tomkins ou Clynes, mais geral em termos situacionais do que a de Langer ou Tustin e focaliza mais os senti­ mentos do que os movimentos. Presumo que os afetos de vitalidade resultem de toda e qualquer experiência, e o tipo de sentimento evocado não é inato nem estritamente vinculado à natureza do con­ torno temporal da estimulação. Os “sentimentos de fundo” identi­ ficados por Damasio (1999) parecem sobrepor-se aos afetos de 88

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vitalidade. No entanto, ele está menos preocupado com os aspectos diacrônicos e analógicos, concentrando-se sobretudo, mas não ex­ clusivamente, nos sentimentos que emanam do corpo. Os afetos de vitalidade também estão na base da apreciação da maioria das formas de arte abstrata que são formalmente desprovi­ das de “conteúdo”, como a maior parte da música e grande parte da dança (ver Jowitt, 1988; Langer, 1967; Stern, 1985). Qualquer pessoa envolvida com arte tem isso como certo. Ainda assim, pode ser instrutivo examinar o nível local momentâneo no âmbito das artes performáticas. Dado que na música a frase é a unidade de processo no nível local, é fascinante escutar um maestro dar forma à performance de sua orquestra. Muitos programas de rádio transmitem ensaios ou aulas magnas. O maestro diz coisas como: “Não, ataquem estas primeiras notas com mais intensidade, ta ta taaa... Isso, bom. Ago­ ra, mais pianíssimo logo depois, e na frase seguinte também... Agora, aqui, prossigam mais devagar, de-va-gar... Não, não parem de todo, as notas vão esmaecendo, assim...” Coreógrafos fazem o mesmo tipo de modelagem e refinamento. E novamente isso se dá no nível do gesto e da frase. “Quando vocês viram a cabeça ali, não basta virarem depressa. Ela tem que girar bruscamente para o outro lado, como se tivessem levado um tapa... Aqui, esperem só um momento, atrasando o tempo, antes que avan­ cem juntos, e depois explodam, bam... Parem como se estivessem surpresos... Não, aquela posição está sólida demais; façam como se estivessem debruçados num penhasco e pudessem cair...” Este polimento de notas escritas ou passos de dança envolvem o ajuste dos afetos de vitalidades incorporados nas frases. É isso que produz uma interpretação e o que distingue uma performance ar­ tística de uma técnica. A diferença é a de ritmos elásticos versus ritmos formais. A magia dos ritmos elásticos está na modelagem precisa dos afetos de vitalidade de modo a expressar os sentimen­ tos exatos que se encontram por trás dos atos transmitidos ao pú­ 89

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blico. E a magia numa sessão de terapia ou nas relações íntimas, por trás ou por baixo dos significados explícitos, também está ali. E

mitindo ao olho viajar por seus detalhes sem obstáculos” (Melikian, 2002, p. 9).

onde reside a autenticidade.* Todos estes aspectos são altamente relevantes, porque uma de nossas perguntas mais importantes é: “Como transmitimos aos ou­

O pintor David Hockney explorou conscientemente esta reali­ dade, criando colagens de fotografias do “mesmo” tema de vários ângulos e distâncias levemente diferentes. Sua idéia é que a atividade de ver, especialmente bem de perto (por exemplo, olhar o rosto da pessoa que está na cama com você), envolve muitas visões diferen­ tes do mesmo objeto por um curto período de tempo, de modo que a realidade é mais como uma pintura cubista (Hockney, 1986). E quanto mais se olha, mais os padrões de varredura mudam. Além do ato físico de ver, que tem um contorno temporal, exis­ tem dois atos mentais diferentes que ocorrem quando se está diante de uma imagem estática. Ambos têm uma dimensão temporal. O pri­ meiro é a interação entre percepção imediata e memória imediata. A visualização de uma seção de uma pintura durante um instante ocor­ re com a memória imediata de outra seção que acabou de ser vista, e assim por diante. O caminho de varredura tem um desdobramento memorial-perceptual. Não é tão diferente da situação na música. O segundo ato mental envolve imaginar uma linha narrativa temporal. Isso fica mais evidente na fotografia, que captura uma ação ou “história” no meio ou, como Cartier-Bresson (1952) deno­ minou, o “momento decisivo”. O que é fascinante sobre o momen­ to decisivo é que o espectador fornece, na imaginação, a ação que leva ao momento decisivo e à ação decisória. Um contorno tempo­ ral imaginário é adicionado enquanto alguém observa uma imagem estática. Torna-se uma pequena narrativa emocional — novamente, “um mundo num grão de areia”. A forma como uma imagem estática é enquadrada e centralizada também pode evocar uma experiência temporal. Por exemplo, um pergaminho japonês de um peixe num rio, criado por Maruyama Okyo (1733-1795),* levou a três diferentes sensos de movimen-

tros o que sentimos e como é sermos nós?” Muitas artes visuais como a pintura e a fotografia parecem não ter contorno temporal, porque congelam uma imagem no tempo que se torna eterna. Embora isso seja verdade para a obra, não se pode dizer o mesmo para os atos de ver, físicos e mentais. Fisica­ mente, existem movimentos de varredura oculares, ajustes de cabe­ ça e às vezes mudanças de posição necessárias para “ver” a obra (Clark, 1977; Sheets-Johnstone, 1984; Varela, Thompson e Rosch, 1993). Estes levam tempo para serem executados, e normalmente o artista constrói a obra para que o olho siga certos caminhos de var­ redura com formas-de-tempo próprias, baseadas em complemen­ tos ou contrastes de cores, linhas de força, movimentos entre primeiro e segundo planos etc. Estes caminhos de varredura são frases visuais-motoras-afetivas-cognitivas que produzem afetos de vitalidade temporalmente preenchidos. O pintor impressionista Bonnard supostamente teria dito: “Um quadro é uma sucessão de gotas que se ligam e que acabam por dar sua forma ao objeto, per­

*A distinção entre performances técnicas e interpretações artísticas sempre foi considera­ da importante, até mesmo essencial. Ela tem uma interessante história técnica na evolução da música “gravada”. No fim do século X IX , os pianos acionados por tiras de papel dobra­ das com endentações estavam bem avançados. Produziam um ritmo mecânico característi­ co. Para capturar o som temporalmente dinâmico de uma interpretação, um welte-mignon foi projetado em 1904. Consistia num piano dotado de uma máquina que girava um papel e, sempre que uma nota era tocada, ela desenhava uma linha no papel. Artistas famosos eram convidados a tocar suas interpretações de clássicos da música nessa máquina e, assim, seu estilo temporal ficava fielmente registrado. Posteriormente, as linhas que as notas produziam enquanto o artista estava tocando eram recortadas, deixando um papel endentado que podia ser tocado novamente num piano especialmente adaptado e produzir uma répli­ ca da interpretação real, com todos os afetos de vitalidade característicos do artista (Benhôte, 1972). O fonógrafo logo tornou obsoleto o welte-mignon. Mas os esforços aplicados di­

* “Truta de água doce no outono e no verão”, em Exposição de arte japonesa da coleção de Mary Griggs Burke, Metropolitan Museum of Art, Nova York, de 2 2 de março a I o de

zem muito.

junho de 2000.

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O MOMENTO PRESENTE

to: o fluxo rápido da água, o movimento circular do peixe a favor e contra a correnteza e, o mais extraordinário, o desejo do observador de mover a cabeça e os olhos. A figura está enquadra­ da de tal modo que se vê apenas uma parte muito pequena do rio, como se você estivesse na margem, curvado sobre o rio e inclinan­ do a cabeça. Você sente que no segundo seguinte você terá de se endireitar e erguer a cabeça para olhar rio acima ou rio abaixo para situar a cena. Mas, é claro, você é mantido ali pelo enqua­ dramento. Uma dinâmica muscular é desencadeada com seu pró­ prio afeto de vitalidade. Os contornos temporais e afetos de vitalidade fazem parte de todas as nossas experiências, banais e estéticas. Elas formam não só o estilo ou jeito de fazer as coisas, mas também fornecem o senti­ mento por trás de nossa experiência. Elas devolvem o tempo dinâ­ mico à experiência. O estilo em que as performances são realizadas, todos os dias ou não, requer muito mais atenção do campo da psi­ cologia. Envolve dinâmica temporal (ver Sheets-Johnstone, 1999). Os afetos de vitalidade fazem parte do que tem faltado às nossas psicologias. Temos sido surpreendentemente cegos em relação à dinâmica temporal, especialmente à dinâmica microtemporal, apesar de a vivermos a todo momento e de não podermos começar a ex­ plicar a peculiaridade de uma performance interpretativa sem ela. Agora podemos retornar à sensação de mover-se ou inclinar-se para a frente que atravessa o momento presente. Recorde o movi­ mento para a frente de uma frase musical em direção a uma resolu­ ção. Os afetos de vitalidade, como frases musicais, carregam a sensação de inclinar-se para a frente através do momento presente. Em suma, os afetos de vitalidade que atuam com o fluxo-desentimento-intencional fornecem uma linha de tensão dramática que dá uma coerência-de-sentimento ao desenrolar do momento presente. Os afetos de vitalidade atuam como uma espinha dorsal temporal da qual pende o enredo. Também auxiliam o processo de aglomeração ao conter a frase dentro de um envelope. Dão ao mo­ mento presente a sensação dramática de uma história vivida. 92

O MOMENTO PRESENTE COMO UMA HISTÓRIA VIVIDA: SUA ORGANIZAÇÃO

CONTRARIANDO EXPECTATIVAS OU "PERTURBAÇÃO" Não se pode falar de contrariar o esperado ou perturbação na nar­ rativa a menos que os elementos da estrutura narrativa estejam cla­ ros, seu equilíbrio intuitivamente medido e sua não-canonicidade detectada. No entanto, fenomenologicamente, enquanto se está no meio do desdobramento de um momento presente, seu resultado exato é imprevisível e se acha aberto a toda sorte de eventualidades e contrariedades. Nesse sentido existe uma incerteza inerente em relação ao que pode acontecer. Isso é um tipo de perturbação não específica e potencial. Há também contrariedades específicas de afetos inesperados ou indesejáveis que afloram à medida que o momento se desenrola. Em resumo, o momento presente é subjetivamente experimen­ tado como uma história vivida. E pode ser objetivamente descrito como uma experiência que tem um formato narrativo, estrutural e temporalmente. Conforme veremos mais tarde, isso o faz mais uti­ lizável como fenômeno clínico. Agora, deve-se proporcionar um contexto ao momento presente para que sua relevância em situações clínicas se torne mais evidente.

93

Parte II

CONTEXTUALIZANDO O MOMENTO PRESENTE

Capítulo 5

A MATRIZ INTERSUBJETIVA

Os MOMENTOS PRESENTES que mais nos interessam são aqueles que afloram quando duas pessoas fazem um tipo especial de contato mental — especificamente, um contato intersubjetivo. Isso envolve a interpenetraçâo mútua de mentes que nos permite dizer: “Eu sei que você sabe que eu sei” ou “Eu sinto que você sente que eu sin­ to”. Há uma leitura do conteúdo da mente do outro. Tais leituras podem ser mútuas. Duas pessoas vêem e sentem mais ou menos a mesma paisagem mental ao menos por um momento. Estes encon­ tros são responsáveis por grande parte da razão de ser da psico­ terapia. Também propiciam os acontecimentos que mudam nossa vida e se tornam as lembranças que compõem a história de nossos relacionamentos íntimos. Conseqüentemente, os momentos de con­ tato intersubjetivo entre as pessoas se tornam um contexto extre­ mamente relevante para o nosso exame. Momentos de criação intersubjetivos são momentos presentes especiais. Volto à questão levantada no início do livro. Como o ago­ ra, ou o momento presente, é experimentado quando é co-criado e mpartilhado com alguém num momento de contato intersubjetivo? Somos capazes de “ler” as intenções de outra pessoa e de sentir em nosso corpo o que o outro está sentindo. Não de forma mística,

O MOMENTO PRESENTE

mas ao observar seu rosto, seus movimentos e postura, ao escutar o tom da voz e notar o contexto imediato do seu comportamento. Somos muito bons nessa “leitura de mente”, embora nossas intuições precisem ser verificadas e refinadas (Whiten, 1991). A natureza projetou nosso cérebro e nossa mente para que pos­ samos intuir diretamente as possíveis intenções do outro ao obser­ var suas ações direcionadas a um objetivo (mesmo sem saber qual é ele). Quando alguém leva a mão à lateral da cabeça, imediatamente supomos que a pessoa vai coçar a cabeça, ajeitar os óculos, mexer na orelha ou ajeitar o cabelo. Quando a mão chega mais perto e começa a se posicionar para o objetivo escolhido, nós o adivinha­ mos. De forma semelhante, vendo-lhe a expressão facial, postura e movimentos, podemos sentir diretamente algo muito similar ao que o outro está sentindo. E, enquanto falamos com ele e ele escuta em silêncio, podemos sentir suas reações ao que estamos dizendo, ob­ servando os pequenos movimentos dos traços do rosto, a direção da cabeça e do olhar, e o tom dos sons de fundo de sua voz. Expres­ sões afetivas dizem o que estamos pensando bem como o que estamos sentindo. E, quando a pessoa se move, podemos sentir como deve ser mover-se daquele jeito. Sentimos em nosso corpo e sentimos em nossa mente, junto. Também podemos apreender o que um grupo está experimentando. Nosso sistema nervoso é construído para ser captado pelo siste­ ma nervoso dos outros, para que possamos experimentar os outros com o se estivéssemos em sua pele, bem como na nossa própria. Uma espécie de rota de sentimento direta para dentro da outra pes­ soa está potencialmente aberta e nós ressoamos a experiência do outro e dela participamos, e ele da nossa. (Fornecerei em breve as evidências que sustentam esta visão.) As outras pessoas não são apenas outros objetos, mas são imediatamente reconhecidas como tipos especiais de objetos, ob­ jetos como nós, disponíveis para compartilhar estados internos. Na verdade, nossa mente funciona naturalmente para buscar nos outros as experiências que podemos ressoar. Analisamos automa­ 98

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ticamente o comportamento dos outros em termos dos estados internos que conseguimos apreender, sentir, tomar parte e, por­ tanto, compartilhar. Isso deve ser observado à luz do fato de sermos animais extre­ mamente sociais que em geral passam a maior parte da vida na presença de outros, reais ou imaginários. Às vezes nossos compa­ nheiros imaginários são presenças vividas; outras, são vagas figuras em segundo plano, platéias ou testemunhas que flutuam entrando e saindo de nossa percepção. Mas eles estão lá, mesmo assim. Quando juntamos tudo isso, um mundo intersubjetivo emerge. Já não vemos nossa mente como tão independente, separada e iso­ lada. Não somos mais os únicos donos, mestres e guardiães de nos­ sa subjetividade. As fronteiras entre o self e o outro permanecem claras, porém mais permeáveis. Na verdade, um self diferenciado é uma condição da intersubjetividade. Sem ele haveria somente uma fusão (Rochat e Morgan, 1995; Stern, 1985). Vivemos cercados por intenções, sentimentos e pensamentos dos outros que interagem com os nossos, de modo que a distinção entre o que é nosso e o que pertence aos outros começa a ceder. Nossas intenções são modifi­ cadas ou nascem no diálogo com as intenções sentidas dos outros. Nossos sentimentos são moldados pelas intenções, pensamentos e sentimentos dos outros. E nossos pensamentos são co-criados em diálogo, ainda que num diálogo com nós mesmos. Em resumo, nossa vida mental é co-criada. Este diálogo co-criativo contínuo com outras mentes é o que chamo de matriz intersubjetiva. A idéia de uma psicologia de uma só pessoa ou de fenômenos puramente intrapsíquicos não mais se sustenta sob essa luz. Num passado recente, o pensamento corrente em psicanálise atravessou uma grande distância de uma psicologia de uma pessoa para a de duas pessoas (Renik, 1993). Estou sugerindo aqui que nos deslo­ quemos ainda mais. Costumávamos pensar a intersubjetividade como uma espécie de epifenômeno que aparece ocasionalmente quando duas mentes separadas e independentes interagem. Agora vemos a nn

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matriz intersubjetiva (que é um subconjunto especial da cultura e da psicoterapia) como o cadinho prevalente no qual mentes em interação assumem sua forma atual. Duas mentes criam intersubjetividade. Mas, igualmente, a intersubjetividade dá forma às duas mentes. O centro de gravidade mudou do intrapsíquico para o intersubjetivo. De modo semelhante, a intersubjetividade na situação clínica não pode mais ser considerada apenas como uma ferramenta útil ou uma das muitas maneiras de ser com o outro que vem e vai conforme necessário. Ao contrário, o processo terapêutico será vis­ to como algo que ocorre numa matriz intersubjetiva contínua. To­ dos os atos físicos e mentais serão vistos como dotados de um determinante intersubjetivo importante porque estão embutidos nesse tecido intersubjetivo. Evidentemente, algum material se ori­ gina do repertório (passado e presente) de um indivíduo, mas, mes­ mo assim, seu momento de surgimento na cena, a exata forma final que ele assume e a coloração de seu significado ganham forma na matriz intersubjetiva.

EV ID ÊN CIA S DA MATRIZ IN TERSUBJETIVA Quais são, então, as evidências da matriz intersubjetiva? A discus­ são que se segue tenta responder a esta pergunta. Não pretende ser exaustiva, mas simplesmente dar apoio à idéia.

Evidências neurocientíficas A descoberta dos neurôtiios-espelho foi crucial. Eles fornecem possí­ veis mecanismos neurobiológicos para a compreensão dos seguintes fenômenos: ler estados de espírito de outras pessoas, especialmente intenções; ressoar a emoção do outro; experimentar o que o outro está experimentando; e captar uma ação observada para que se possa imitá-la — em resumo, criar uma empatia com o outro e estabele­

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cer contato intersubjetivo (Gallese e Goldman, 1998; Rizzolatti e Arbib, 1998; Rizzolatti, Fadiga, Fogassi e Gallese, 1996; Rizzolatti, Fogassi e Gallese, 2001). Os neurônios-espelho são adjacentes aos neurônios motores. Eles disparam num observador que não está fazendo nada além de assistir ao comportamento de outra pessoa (por exemplo, estender a mão para pegar um copo). E esse padrão de disparo imita o exato padrão que o observador usaria se ele próprio estivesse estendendo a mão para pegar o copo. Em resumo, a informação visual que re­ cebemos quando observamos as ações de outra pessoa é mapeada na representação motora equivalente em nosso cérebro pela ativi­ dade dos neurônios-espelho. Isso nos permite participar diretamente das ações de outra pessoa sem ter de imitá-las. Experimentamos o outro como se estivéssemos executando a mesma ação, sentindo as mesmas emoções, fazendo a mesma vocalização ou sendo tocados como ele. Estes mecanismos com o se foram descritos por Damasio (1999) e Gallese (2001). A “participação” na vida mental do outro cria um senso de sentir/compartilhar com/compreender a pessoa, em particular, suas intenções e sentimentos. (Estou propositalmente usando o termo sentimentos em vez de afetos a fim de incluir impressões, sensações sensoriais e sensações motoras, junto dos afe­ tos darwinianos clássicos.) Claramente, o sistema de neurônios-espelho pode nos levar longe na compreensão (no nível neural) de contágio, ressonância, empatia, simpatia, identificação e intersubjetividade. Neste ponto, a evidên­ cia para este sistema de ressonância é sólida para ações das mãos, da boca, do rosto, da voz e dos pés. Alguns enfatizaram um possível papel para os neurônios-espelho na aquisição da linguagem. Acre­ dito que este seja um caminho menos interessante do que sua im­ portância para a subjetividade em geral. Este sistema tem outra característica: é particularmente sensível a ações direcionadas a um objetivo (isto é, movimentos com uma intenção que possa ser prontamente inferida). Além disso, a per­ cepção de uma intenção atribuível parece ter uma localização pró­

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pria no cérebro — uma espécie de centro de detecção de intenções (Blakemore e Decety, 2001). Por exemplo, o centro cerebral detector de intenções é ativado se a ação, em seu contexto, parece ter uma intenção. Se exatamente o mesmo movimento é visto num contex­ to diferente em que nenhuma intenção pode ser atribuída, o centro cerebral não será ativado. A idéia, há muito existente, de uma tendência mental humana para perceber e interpretar o mundo humano em termos de inten­ ções é reforçada por estas descobertas. E a leitura das intenções do outro é fundamental para a intersubjetividade. Outra descoberta pode servir como um correlato neural para a intersubjetividade. Para ressoar com alguém, você pode ter de estar inconscientemente em sincronia com essa pessoa. Vocês po­ dem se movimentar em sincronia, como fazem os apaixonados quando se sentam a uma mesa frente a frente e esboçam uma dan­ ça quando simultaneamente aproximam e afastam o rosto um do outro ou unem as mãos ao mesmo tempo. Ou vocês podem coor­ denar a velocidade e a taxa de mudança dos seus movimentos a fim de juntos criarem algum tipo de pas de deux prático cotidiano — por exemplo, você lava os pratos e o outro enxuga. Você passa o prato limpo molhado para o “enxugador” num único e suave movimento conjunto, sem pausas. E vocês se olham apenas com um olhar periférico. Alguns mecanismos precisam estar disponíveis para esta coor­ denação diádica. A descoberta dos osciladores adaptativos pode fornecer uma pista. Estes osciladores atuam como relógios dentro do nosso corpo. Podem ser reiniciados diversas vezes e seu ritmo de disparo pode ser ajustado para coincidir com o ritmo de uma estimulação recebida. Estes relógios internos usam as propriedades de tempo real de sinais de entrada (por exemplo, de alguém que lhe estende um prato) para “acertar” seus osciladores adaptativos de forma que eles imediatamente sincronizem seu próprio ritmo de disparo neural com a periodicidade do sinal de entrada (Port e van Gelden, 1995; Torras, 1985). O resultado é que o braço esten­

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dido de quem está enxugando os pratos é perfeitamente coordena­ do no tempo com a mão estendida de quem está entregando o pra­ to. Lee (1998) concebeu modelos elegantes (teoria do tau) para descrever como este tipo de coordenação e sincronia diádica pode ocorrer. A necessidade de tal mecanismo fica evidente quando se pensa na extraordinária coordenação temporal de que seres humanos e animais são capazes. Pense em como é fácil para nós chutar uma bola de futebol em movimento enquanto corremos ou agarrar uma bola no ar. Nas interações interpessoais os problemas de coor­ denação temporal podem ser ainda mais complexos, porque altera­ mos trajetórias mais rápida e imprevisivelmente do que bolas em movimento. Ainda assim, quando duas pessoas movem a cabeça ao mesmo tempo para trocar um beijo, mesmo que seja o primeiro, repentino e apaixonado, raramente terminam quebrando o dente da frente. Em geral, ocorre uma suave aterrissagem. Outro trabalho recente sobre sincronização de fases e in­ tegração em larga escala no cérebro promete esclarecer estes fe­ nômenos em níveis fundamentais (Varela, Lachaux, Rodriguez e Martinerie, 2001). O ponto essencial é que, quando se movem sincronicamente ou em coordenação temporal, as pessoas estão participando de um as­ pecto da experiência do outro. Estão vivendo parcialmente a partir do centro do outro. Até agora, estas evidências se aplicam à intersubjetividade de mão única (“Sei o que você está sentindo”). Mas e a intersub­ jetividade de mão dupla, ou completa? Uma aparente redundância? (“Eu sei que você sabe que eu sei o que você está sentindo, e viceversa.”) Isso requer outra etapa. Seriam suficientes os mecanismos anteriormente descritos? Pelo menos duas “leituras” do outro são necessárias para a intersubjetividade de mão dupla. Entretanto, algo mais do que um mecanismo de ressonância, ainda que reiterado, pode ser necessário. Vamos abordar este ponto mais adiante, como uma questão do desenvolvimento.

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Há um problema. Se esses mecanismos funcionam bem a ponto de vivermos completamente numa matriz intersubjetiva, por que não somos constantemente capturados pelo sistema nervoso dos outros e permeados pela experiência deles? Agora que sabemos que existem mecanismos claros para permitir a intersubjetividade, a questão não é mais como fazer isso, mas como parar. Evidentemen­ te o sistema precisa de freios. Na verdade, existem três conjuntos de freios. O primeiro é a seleção. É preciso haver um controle da atenção para que o outro seja suficientemente recebido e retido pela mente ou seja excluído do processo. Outro conjunto é necessá­ rio para garantir que a ativação dos neurônios-espelho não se espa­ lhe, acionando os neurônios motores correspondentes e resultando em imitação automática ou reflexiva, como visto em pacientes de­ mentes que sofrem de ecopraxia, ou “comportamento imitativo” (citado em Gallese, 2001). Um terceiro conjunto é necessário para inibir, ou melhor dizendo, dosar o grau de ressonância com o ou­ tro. Esta é uma área com grande potencial, tanto em termos neurocientíficos quanto clínicos. Lembre-se de que muitos distúr­ bios psiquiátricos são caracterizados em parte por falta de empatia e incapacidade de adotar o ponto de vista do outro. Não estou pen­ sando no caso extremo do autismo, mas em personalidades narcisísticas, lim ítrofes e anti-sociais, onde essa falta pode ser surpreendente e causa aos pacientes problemas que os conduzem à psicoterapia. Mesmo dentro de uma faixa normal, as pessoas diferem enor­ memente na manifestação de certas formas de intersubjetividade. Estariam comprometidos seus mecanismos básicos de ressonância? Ou seus sistemas de freio e inibição da imersão intersubjetiva estão sobrecarregados? Qual o papel da experiência durante o desenvol­ vimento, ao estabelecer esses parâmetros? Este tema ainda requer muita pesquisa.

Evidências do desenvolvimento Iniciando logo depois do nascimento, formas precoces de intersub­ jetividade podem ser observadas em bebês. Isso argumenta em fa­ vor da natureza fundamental da matriz intersubjetiva na qual nos desenvolvemos. Diversos pesquisadores descreveram comportamen­ tos intersubjetivos em crianças pré-verbais e pré-simbólicas. Essa manifestação muito precoce de intersubjetividade está vinculada à questão do inatismo. Beebe, Knoblauch, Rustin e Sorter (2002) analisaram e compararam de forma brilhante três abordagens para­ lelas da intersubjetividade precoce. Trevarthen (1974, 1979, 1980, 1988, 1993, 1999/2000; Tre­ varthen e Hubley, 1978) encontrou a intersubjetividade primária em crianças muito pequenas observando a estreita coordenação mútua do comportamento de mãe e bebê em situação de brinquedo livre: a sincronia dos movimentos, a formação das expressões faciais e a antecipação das intenções do outro. Por exemplo, num experi­ mento, a mãe e o bebê interagem por intermédio de um aparelho de TV — eles estão em cômodos separados mas se vêem e se ouvem um ao outro num monitor, como se estivessem sentados frente a frente. Entretanto, se o atraso de uma fração de segundo no som ou na visão da mãe é introduzido experimentalmente, a criança rapi­ damente nota e a interação se quebra. A correspondência já é espe­ rada no contato inter-humano. Correspondência é a palavra-chave que leva Trevarthen a falar de “intersubjetividade primária”. A imitação precoce foi outra rota principal para se proporem formas precoces de intersubjetividade (Kugiumutzakis, 1998,1999, 2002; Maratos, 1973; Meltzoff, 1981,1995; Meltzoff e Gopnik, 1993; Meltzoff e Moore, 1977, 1999). Meltzoff e colegas começaram enfocando recém-nascidos imitando ações vistas no rosto de um experimentador (por exemplo, mostrar a língua). Como explicar tais comportamentos quando o bebê, mesmo sem saber que tinha um rosto e uma língua — quando ele via somente uma imagem visual do gesto do experimentador —, respondeu com um ato mo­ 105

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tor guiado pelo seu próprio feedback proprioceptivo (não visual)? E quando não houve testes de aprendizado prévios para estabelecer essa imitação (invisível)? A resposta está num modo precoce de intersubjetividade baseado em transferência transmodal de forma e sincronia. Outros exemplos de imitação precoce foram encontra­ dos. Meltzoff e colegas concluíram que os bebês absorvem algo do outro no ato da imitação, o que solidifica o senso de que o outro é “como eu” e “eu sou como eles”. Eles especulam ainda que, para que um bebê aprenda sobre (faça representações internas de) obje­ tos inanimados, ele necessita manipulá-los ou levá-los à boca, mas, para aprender sobre (e representar) pessoas, a mente do bebê usa canais diferentes e, então, ele precisa imitá-las. Meus colegas e eu tomamos uma terceira rota (Stern, 1977, 1 9 8 5 ,2 0 0 0 ; Stern et a i , 1984). Interessei-me mais em saber como a díade faz para que ambas as partes conheçam seus estados de sentimentos internos. Por exemplo, se um bebê expressasse um com­ portamento afetivo após um evento, como poderia a mãe demons­ trar que ela captou o que ele fez e também o sentimento que ele experimentou, que está por trás do seu comportamento? A ênfase deslocou-se do comportamento aberto para a experiência subjetiva subjacente. Propus a harmonização afetiva, uma forma de imitação transmodal e seletiva, como o caminho para compartilhar estados de sentimentos internos, em contraste com a imitação fiel como direção para compartilhar o comportamento aberto. Jaffe e colegas (2001) acrescentaram mais uma evidência su­ gestiva. Eles mostraram como crianças não-verbais (de 4 e 12 meses) e mães cronometram com precisão o início, o término e as pausas de suas vocalizações para criar um acoplamento rítmico e uma coordenação bidirecional de seus diálogos vocais. Isso impli­ ca que eles “captaram” não só a própria cronometragem como também a do outro. A questão da cronometragem coordenada é obviamente es­ sencial para a sincronicidade e o acesso à experiência do outro. Watson (1994) e Gergely e Watson (1999) encontraram um cami­ 106

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nho fascinante em que a criança torna-se sensível ao comporta­ mento e à cronometragem dos outros. Eles propõem que nós e os bebês possuímos “analisadores inatos de detecção de contingên­ cia”. Estes módulos medem até que ponto o comportamento de alguém é exatamente síncrono ou responsivo em relação ao nos■80. Eles descobriram que, antes dos 3 meses, os bebês estão mais interessados em eventos que são perfeitamente contingentes ao seu comportamento. Isso os tornaria mais sensíveis a si mesmos. Entre 4 e 6 meses, ocorre uma mudança. As crianças se interessam por eventos que são muito, mas não completamente, contingentes ao próprio comportamento. Isso é exatamente o que uma outra pessoa interagindo faz. Eles agora ficam mais interessados na cronometragem comportamental dos outros, usando a si mesmos como padrão. O trabalho de muitos outros autores também contribui signifi­ cativamente para estas questões (por exemplo, Emde e Sorce, 1983; Klinnert, Compos, Sorce, Emde eSvejda, 1983; Sander, 1975,1977, 1995b; Stern, 1971, Stern e Gibbon, 1978; Tronik, 1989; Tronick, Ais e Adamson, 1979; Tronick, Ais e Brazelton, 1977). O mais im­ portante é que todos eles concordam que os bebês nascem com mentes especialmente afinadas com outras mentes, como seu com­ portamento expressa. Isso se baseia em grande parte na detecção de correspondências na cronometragem, na intensidade e na forma que são transponíveis intermodalmente. O resultado é que, desde o nascimento, se pode falar de uma psicologia de mentes mutuamen­ te sensíveis. Além disso, esses pesquisadores também estão de acordo que durante a infância pré-verbal o bebê é especialmente sensível ao comportamento de outros seres humanos; eles usam diferentes ha­ bilidades perceptuais e expectacionais nas interações interpessoais, comparadas a interações consigo mesmos ou objetos inanimados. Eles consideram os outros e esperam que sejam semelhantes a eles, mas não idênticos. Formam representações pré-simbólicas dos ou­ tros ou de estar-com-os-outros. Podem participar do estado de es­ 107

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pírito de outra pessoa. Em resumo, uma forma precoce de inter­ subjetividade está presente. Nenhum estudo sobre neurônios-espelho ou osciladores adaptativos foi realizado com crianças dessa idade. Entretanto, tais osciladores, ou algo muito semelhante a eles, devem estar presentes. Depois dos 7 a 9 meses, aproximadamente, o cenário muda um pouco. A criança se torna capaz de uma forma mais elaborada de intersubjetividade — aquilo que Trevarthen e Hubley (1978) chamaram de “intersubjetividade secundária” (ver também Stern, 2000) — , que se instala bem antes de a criança desenvolver capaci­ dade verbal ou simbólica. Os estados mentais compartilháveis co­ meçam a incluir intenções direcionadas a um objetivo, foco de atenção, afetos e avaliações hedônicas e, como antes, a experiência da ação. Cada um é um domínio parcialmente separado da intersubjetividade. A participação nos sentimentos do outro é apenas um deles. Existem muitos outros mecanismos em operação relativos ao compartilhamento do foco de atenção a fim de triangular um ob­ jeto, no qual a criança “passa através do outro” para alcançar esse objeto. Este é um aspecto mais cognitivo da intersubjetividade neces­ sário à simbolização e à linguagem (por exemplo, Hobson, 2002). Nosso interesse está mais voltado para o domínio dos senti­ mentos/experiência da intersubjetividade. Nesse domínio, a leitura de intenções merece especial menção, porque as intenções são fun­ damentais para as formas de subjetividade que vão nos interessar mais clinicamente. Em resumo, o argumento é que a capacidade de ler intenções aparece muito cedo na criança. Em todas as perspectivas sobre a atividade humana motivada, a intenção é essencial. E necessário um elemento psicológico para empurrar, puxar, ativar ou de alguma maneira desencadear os even­ tos. As intenções se ocultam sob muitas aparências e variações. Na psicologia popular, usando os exemplos do jornalismo e da fofoca, elas são o motivo — o por quê? — que impulsiona a história. Na psicanálise, o desejo ou a vontade. Na etologia, a motivação ativa­ da. Na cibernética, o objetivo e seu valor. Nas teorias narrativas, 108

podem ser o desejo, a crença, o objetivo, o motivo ou o conflito. As intenções, sob uma forma ou outra, e num estado de completude ou não, estão sempre lá, atuando como o motor que impulsiona para a frente a ação, a história ou a mente. Vemos o mundo humano em função das intenções. E agimos em função das nossas. Você não pode se relacionar com outros se­ res humanos sem ler ou inferir seus motivos ou intenções. Essa lei­ tura ou atribuição de intenções é nosso guia principal para reagir e iniciar uma ação. A capacidade de inferir as intenções do compor­ tamento humano parece ser universal. É um primitivo mental. É como analisamos e interpretamos nosso ambiente humano. Quan­ do alguém é incapaz de inferir as intenções dos outros, ou não tem absolutamente nenhum interesse em fazê-lo, tem uma atitude fora do padrão. Os autistas foram enquadrados nessa posição, assim como alguns esquizofrênicos. (Para uma discussão sobre autismo na esquizofrenia de uma perspectiva fenomenológica, ver Parnas, Bovet e Zahavi [2002].) Reconhecer e decifrar a intencionalidade é um razoável ponto de partida para a adaptação e a sobrevivência. Existe outro motivo para dar tamanho peso à análise do com­ portamento em termos de intenções como um tipo de primitivo mental: o ato de perceber/inferir intenções nas ações humanas co­ meça muito cedo na vida. Meltzoff (1995; Meltzoff e Moore, 1999) descreveu duas situações nas quais crianças pré-verbais apreendem a intenção da atitude de alguém, mesmo quando nunca viram a intenção completamente encenada, ou seja, após ter alcançado seu objetivo pretendido. Em tal situação, apreender a intenção exige uma inferência. Em um experimento, uma criança pré-verbal observou enquan­ to um experimentador pegou um objeto e “tentou” colocá-lo den­ tro de um recipiente. Mas ele deixou o objeto cair no meio do caminho e o objetivo pretendido não foi alcançado. Mais tarde, quando foi trazida de volta à cena e recebeu o mesmo material, a criança pegou o objeto e colocou-o diretamente no recipiente. Em outras palavras, ela encenou a ação que presumiu que era pretendi­ 109

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da, e não a que viu. A criança preferiu a intenção não-vista e presu­ mida à ação vista e real. Em outro experimento semelhante, uma criança pré-verbal ob­ servou um experimentador agir como se quisesse tirar a esfera de um objeto semelhante a um halter, sem ter êxito. Mais tarde, quan­ do recebeu o objeto, a criança de imediato tentou tirar a esfera. Conseguiu, e pareceu contente. Quando, porém, um robô assumiu as funções do “experimentador” e executou as mesmas ações frus­ tradas, a criança não tentou puxar a esfera. As crianças parecem supor que apenas pessoas, e não robôs, têm intenções que valem a pena inferir e imitar. Gergely, Nadsasdy, Csibra e Biro (1995) e Gergely e Csibra (1997) realizaram um experimento correlato com crianças mais novas, usando desenhos animados na televisão. Também neste caso as crianças assistindo ao desenho interpretaram a cena em função das intenções que inferiram, e não das ações que viram. (O fato de os objetos serem animados — isto é, de agirem como pessoas — é certamente crucial.) Rochat mostrou a mesma primazia das inten­ ções inferidas sobre a ação vista em bebês de 9 meses (Rochat, 1995, 1999; Rochat e Morgan, 1995). Em todo caso, a leitura de intenções (em qualquer nível do de­ senvolvimento) é possível e necessária desde muito cedo na vida. Mais uma vez, pode-se fazer uma pergunta neuroanatômica. Não haveria um centro já desenvolvido no cérebro do bebê, como existe nos adultos, que é ativado na presença de um comportamento ao qual uma intenção direcionada a um objetivo pode ser atribuída? Teria de haver. Braten (1998a, 1998b) aperfeiçoou a evidência de desenvolvi­ mento acima na criança pré-simbólica, cunhando o termo partici­ pação alterocêntrica. Com isso ele quis dizer que a intersubjetividade está disponível na infância em virtude da habilidade inata de pene­ trar a experiência do outro e participar dela. Braten sugeriu que a mente humana é construída para encontrar “outros virtuais” e, evi­ dentemente, outros reais. Suas conclusões ajustam-se bem à pre­ 110

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sença de mecanismos subjacentes de neurônios-espelho e osciladores adaptativos. A noção de outros virtuais serve aqui como um prelú­ dio da perspectiva fenomenológica discutida no fim do capítulo. Aos 12 meses, o “referenciamento social” é observado na crian­ ça (Emde e Sorce, 1983; Klinnert, Campos, Sorce, Emde e Svejda, 1983). Um exemplo comum é quando uma criança que está apren­ dendo a andar cai e leva um susto, mas não se machuca de fato. Ela vai olhar para o rosto da mãe para “saber” o que sentir. Se a mãe expressar medo e preocupação, a criança vai chorar. Se a mãe der um sorriso, ela provavelmente vai rir. Em outras palavras, em situ­ ações de incerteza ou ambivalência, o estado afetivo mostrado no outro é relevante para como a criança vai se sentir. Após 18 meses, quando a criança se torna verbal, novas formas de intersubjetividade são rapidamente acrescentadas (Astington, 1993). É provável que, tão logo possa fazer, sentir ou pensar por si mesma, ela participe do que é feito, sentido ou pensado por outros. A amplitude da intersubjetividade da criança aguarda apenas seu próprio desenvolvimento. (Há uma interessante pergunta sem res­ posta aqui. Poderia um bebê participar da experiência de outra pes­ soa antes mesmo que ele possa fazê-lo por si mesmo? Esta é uma dúvida legítima, pois, como uma regra do desenvolvimento, as ca­ pacidades receptivas aparecem antes das produtivas.) A psicologia cognitiva pressupõe que as crianças, por volta dos 5 anos, adquirem uma “teoria da mente” mais geral, desenvolven­ do uma capacidade mais formal de representar estados mentais de outras pessoas. Diversas versões da teoria da mente em crianças estão atualmente em discussão (por exemplo, Baron-Cohen, 1995; Fodor, 1992; Goldman, 1992; Gopnik e Meltzoff, 1998; Harris, 1989; Hobson, 2002; Hobson e Lee, 1999; Leslie, 1987). Um im­ portante ponto de discordância é se (e até que ponto) a capacidade de representar outras mentes é um processo cognitivo formal ou se depende da capacidade de ressonância ou de imitação que permita algum tipo de acesso de sentimento direto à experiência do outro. Certamente um poderia reforçar o outro à medida que o desenvol­ 111

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vimento avança. Mas não consigo imaginar nenhuma base funda­ mental para a intersubjetividade sem a ressonância, ou empatia, por seja qual for o mecanismo. Em última análise, é uma questão de sentimento, e não de cognição (ver também Widlocher, 1996). Há outros dois pontos que merecem ser mencionados. A intersubjetividade diádica requer algum tipo de participação recursiva ou representação da mente do outro. A teoria da mente pode ser útil em tais considerações, ao menos após a infância. Por exemplo, a intersubjetividade de mão única “Eu sei/sinto que você...” não exige uma teoria da mente. Entretanto, a reiteração intersubjetiva necessária à intersubjetividade de mão dupla — “Eu (ou nós) sei (sabemos)/sinto (sentimos) que você sabe que eu (nós) sei (sabemos)...” — também pode não precisar de uma teoria da men­ te, mas seria extremamente realçada por ela quando se desenvol­ vesse. (A nitidez da distinção que formulei entre a intersubjetividade de mão única e a diádica é excessiva, especialmente na prática. Na maioria das situações, é mais frutífero pensar em termos de graus de simetria e assimetria, que representam os pólos de um espectro.) Acredito que muitos conhecedores da teoria da mente estabele­ çam critérios rígidos demais em relação a quando uma verdadeira teoria da mente pode ser presumida, muitas vezes usando a capaci­ dade de representar falsas crenças nos outros como o único e fun­ damental critério (por volta dos 5 anos). No entanto, os trabalhos de Dunn (1999) e de Reddy e colegas (Reddy, 1991; Reddy, Williams e Vaughn, 2002) sobre crianças mais novas fazendo piadas, provo­ cações, pregando peças, mentindo e praticando maldades sugere que formas ainda mais precoces de teoria da mente são fre­ qüentemente vistas em situações naturais. Em suma, as evidências do desenvolvimento sugerem que, co­ meçando no nascim ento, a criança penetra numa matriz intersubjetiva. Isso está assegurado porque formas básicas de in­ tersubjetividade manifestam-se de imediato. À medida que novas habilidades são desenvolvidas e que novas experiências se tornam disponíveis, a criança é tragada pela matriz intersubjetiva, que tem

uma ontogenia própria. A amplitude e a complexidade dessa ma­ triz se expandem rapidamente, mesmo durante o primeiro ano de vida, quando o bebê ainda é pré-simbólico e pré-verbal. Depois, quando a criança atinge o segundo ano e é capaz de novas experiên­ cias, como, por exemplo, as emoções “morais” de vergonha, culpa e constrangimento, estas emoções são atraídas para a matriz intersubjetiva como algo que ela pode agora experimentar dentro dela e em outros. A riqueza intersubjetiva se expande novamente com o advento de mais habilidades cognitivas desenvolvidas duran­ te a infância. E, mais uma vez, a cada fase do desenvolvimento da vida, a matriz intersubjetiva fica mais profunda e mais rica. O trabalho de Hofer (1994) forneceu uma espécie de análogo neurobiológico para a matriz intersubjetiva. Ele descobriu em ra­ tos, no relacionamento mãe-filhote, que o comportamento da mãe (por exemplo, lamber, tocar, vocalizar) tem um papel crucial na regulação da fisiologia da cria (freqüência cardíaca, temperatura corporal, digestão, níveis hormonais). O mais surpreendente é a especificidade segundo a qual cada comportamento materno regu­ la determinados mecanismos fisiológicos. Estas descobertas são aná­ logas no sentido de que os filhotes de rato que estão desenvolvendo uma homeostase fisiológica podem parecer estar sob o controle de seus próprios mecanismos reguladores — uma biopsicologia de um rato. Ao contrário, eles estão também sob o controle dos compor­ tamentos abertos das mães — uma biopsicologia de dois ratos. De forma semelhante para a intersubjetividade, as intenções e os senti­ mentos estabelecidos no bebê humano em desenvolvimento são al­ tamente regulados pela influência da experiência que a mãe expressa e sujeitos a ela.

Evidências clínicas sugestivas O mundo experimentado pelos autistas continua a causar espanto. O que os torna tão estranhos e ao mesmo tempo fascinantes é o fato de parecerem totalmente humanos mas violarem tanto do que se 113

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espera dos humanos. Parecem viver do lado de fora da nossa co­ nhecida matriz intersubjetiva. Existem diversos relatos comoventes dessa situação. Alguns, como o retrato autobiográfico de Temple Grandin — com introdução de Oliver Sacks — , dizem respeito a adultos com síndrome de Asperger, uma subcategoria mais funcio­ nal do espectro autista. Tais relatos são os mais eficazes, porque na síndrome de Asperger o quadro clínico não está tão repleto de incapacidades e outras formas patológicas observadas em muitos ou­ tros tipos de autismo quando algum grau de transtorno invasivo de desenvolvimento encontra-se presente. Outros relatos focalizam mais as crianças com várias formas de autismo (por exemplo, Baron-Cohen, 1995; Happé, 1998; Hobson, 1993; Maestro, Muratori, Cavallaro et al., 2002; Nadei e Butterworth, 1999; Nadei e Peze, 1993; Sigman e Capps, 1997). Mas nesses estudos, também, o fato de essas crianças evitarem o contato visual (a janela para a alma e a mente do outro), a relativa ausência de resposta ao contato humano (físico e psicológico) e seu desinte­ resse ou incapacidade de se comunicar verbal ou não-verbalmente (exceto de modos instrumentais) são invariavelmente mencionados. Em relação ao último aspecto, um exemplo pode ser ilustrativo. Quando, no fim do primeiro ano de vida, as crianças começam a apontar, pode-se distinguir duas situações: apontar para ter algo e apontar para mostrar algo interessante ou novo. Apenas o segundo tipo de situação é intersubjetivo, no sentido de que a intenção é compartilhar a mesma experiência. Algumas crianças autistas apon­ tam, mas somente para ter algo que querem, muito raramente para compartilhar uma experiência. O que mais chama a atenção sobre os autistas é que eles não estão imersos numa matriz intersubjetiva. Parece haver uma falha de “leitura da mente”. Ademais, tem-se a impressão de que não há interesse em ler o comportamento ou a mente do outro, como se este não tivesse qualquer atrativo especial ou potenciais, não mais do que um objeto inanimado. Outros, como Tustin (1990), afirma­ ram que esse “desinteresse” e desatenção às coisas humanas são 114

A MATRIZ INTERSUBJETIVA

formas de defesa, para protegê-los de limiares dolorosamente bai­ xos para a estimulação humana. Mesmo que essa explicação esteja correta, absolutamente em alguns casos ou parcialmente em ou­ tros, o resultado é o mesmo. O mundo humano não é considerado especial, “como eles”. Há uma extensa falha na intersubjetividade nos autistas, que parecem ser “mentalmente cegos”. E isso que faz com que muitas vezes sejam vistos como “esquisitos”, ou “de outro mundo”, como diz Sacks ao descrever Temple Grandin como uma “antropóloga de Marte” que luta para compreender os outros humanos que a cer­ cam. Não há deficiência intelectual nela. É uma Ph.D. de renome mundial em sua especialidade; no entanto, precisa se lembrar de perguntar se alguém está com fome ou com sede porque isso não lhe ocorre diretamente, empaticamente, mas sim como uma proba­ bilidade lógica dadas as circunstâncias. Um dos acontecimentos humanos que mais a intrigam é a brincadeira entre crianças. Ela não entende o que as faz rir ou brigar de repente. Também não se envolve em amizades sociais íntimas, que considera muito compli­ cadas e incompreensíveis. De fato, muitos dos esforços educativos com autistas altamente funcionais são direcionados para a interação social do tipo mais instrumental, como quando se deve dizer “obrigado”, “não há de quê”, “gostaria de sentar-se” etc. Normalmente, estas respostas fluem diretamente ao participarmos da experiência do outro. Braten (1998b) forneceu um caso clínico a este respeito. Quan­ do a mãe levanta as mãos, com a palma virada para a frente, a tendência é que seu bebê normal também estenda as mãos, de modo que as palmas se toquem (gestos preliminares para a brincadeira de bater palmas). Isso é uma imitação? Sim, no sentido de que a criança fez o que a mãe fez. No entanto, a criança está vendo a palma, e não as costas, das mãos da mãe. Por que ela não põe as costas de suas mãos contra a palma das mãos da mãe, e assim poderia ver a palma das próprias mãos da mesma maneira que está vendo a das mãos da mãe? É exatamente isso que muitas 115

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crianças autistas fazem. Crianças normais imitaram do ponto de vista da mãe, do qual elas participaram. Crianças autistas imita­ ram do seu próprio ponto de vista, com uma participação apenas parcial da experiência da mãe. A existência do autismo não é, em si, evidência da matriz inter­ subjetiva. Entretanto, a imagem de pessoas vivendo sem estarem imersas numa matriz intersubjetiva dá uma perspectiva sobre a matriz em que vivemos normalmente. Essa matriz é como o oxigênio. Nós o respiramos o tempo inteiro sem notar sua presença. Quando con­ frontados com o autismo, podemos sentir o mundo sem oxigênio, e sofremos um choque.

Apoio da fenomenologia Eu tinha esperança de encontrar um deus ou uma deusa da Antigüi­ dade que tivesse o dom de ler as mentes (não o de prever o futuro) e pudesse oferecê-lo aos seres humanos. Esse dom tornaria transpa­ rente a mente do outro. Ainda continuo em busca de tal divindade. Meus colegas entendidos nesses assuntos me asseguraram que mi­ nha procura é vã. Ao menos na Antigüidade ocidental, a mente não estava confinada nem aprisionada na cabeça ou no coração da pes­ soa. A mente circulava mais livremente, constantemente recebendo contribuições da natureza e dos deuses. Ela não pertencia à pessoa como uma propriedade privada e secreta. Havia pouca necessidade do dom de tornar a mente do outro transparente. Em termos históricos, nós, no Ocidente moderno, cientifica­ mente orientado, isolamos a mente do corpo, da natureza e das outras mentes. Nossa experiência com nosso corpo, nossa natureza e outras mentes tem de ser construída particularmente e, quem sabe, bastante idiossincraticamente dentro de nossa própria mente. Até recentemente, essa visão foi a dominante e seguia imune a questionamentos, exceto por filósofos. Agora, estamos experimentando uma revolução, não de volta às concepções da Antigüidade, porém mais próxima delas, inspira­ 116

A MATRIZ INTERSUBJETIVA

da em grande parte no trabalho do filósofo da fenomenologia, Edmund Husserl (1931/1962,1930/1980,1930/1989,1931/1960, 1964). A abordagem fenomenológica foi revitalizada por filósofos contemporâneos e incorporada por alguns cientistas às atuais con­ cepções alternativas da natureza humana que estão rapidamente ganhando força (por exemplo, Beer, 1995; Clark, 1997, 1999; Damasio, 1994, 1999; Freeman, 1999a, 1999b; Gallagher, 1997; Marbach, 1999; Sheets-Johnstone, 1999; Thompson, 2001; Varela, 1996, 1999; Zahavi, 1996, 1999, 2001). Essa nova visão supõe que a mente está sempre incorporada na atividade sensório-motora da pessoa e por ela é possibilitada; que está entretecida no ambiente físico imediato que a cerca e é cocriada por ele; e que se constitui por meio de suas interações com outras mentes. A mente assume e conserva sua forma e sua nature­ za a partir desse tráfego aberto: emerge e existe, de processos autoorganizadores intrínsecos, interagindo com outras mentes. Sem estas interações constantes, não haveria mente reconhecível. Uma das conseqüências desta visão de “cognição incorporada” é o fato de ser a mente, por natureza, “intersubjetivamente aberta”, pois que parcialmente constituída através de sua interação com outras mentes (Husserl, 1931/1960; Thompson, 2001; Zahavi, 1996, 2001). Isso significa que os seres humanos possuem um pri­ mitivo mental descrito como “a experiência passiva (não iniciada voluntariamente) e pré-refletida do outro como um ser incorpora­ do como ele mesmo...” (Thompson, 2001, p. 12). Em termos neurobiológicos, essa experiência pré-reflexiva de abertura intersubjetiva pode ser vista como emergindo de mecanis­ mos tais como neurônios-espelho, osciladores adaptativos e outros processos semelhantes que devem ser encontrados em breve. No nível da experiência, porém, essa abertura intersubjetiva cria as con­ dições para a intersubjetividade primária (sincronia, imitação, harmonização etc.) vista na primeira infância, e para as manifesta­ ções de intersubjetividade secundária (tais como a empatia “verda­ deira”) vista mais tarde. É neste sentido, creio eu, que Braten (1998a) 117

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escreveu sobre a criança ser feita pela natureza para encontrar “ou­ tros virtuais”. Somos preparados para entrar na matriz intersubjetiva, que é uma condição de humanidade. Qualquer consideração sobre o processo de psicoterapia deve levar em conta estas premissas. A existência de uma matriz inter­ subjetiva define o contexto psicológico no qual o relacionamento terapêutico toma forma. Transferência e contratransferência são apenas casos especiais de um processo constante. A idéia de uma psicologia de uma só pessoa é impensável nessa situação. Estas considerações jogam outra luz sobre os momentos pre­ sentes. Encontros intersubjetivos têm duração relativamente curta. São criados em um ou vários momentos presentes. Assim, o mo­ mento presente permanece como uma unidade de processo funda­ mental na co-criação da matriz intersubjetiva.

Capítulo 6

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

A INTERSUBJETIVIDADE É UMA condição de humanidade. Sugiro que é também um sistema de motivação inato e primário, essencial para a sobrevivência da espécie e que goza de status comparável ao do sexo ou do apego. O desejo de intersubjetividade é uma das mais importantes mo­ tivações que impulsionam uma psicoterapia. Os pacientes desejam ser conhecidos e compartilhar como é ser eles. Evidentemente, esta vontade é em parte contrabalançada por várias trepidações. Quan­ do olhamos de perto o processo terapêutico descobrimos que ele é mais facilmente compreendido como a regulação do campo intersubjetivo entre terapeuta e paciente. O desejo de ser conheci­ do e a contínua regulação do espaço intersubjetivo também são ca­ racterísticas essenciais de qualquer amizade íntima. Estas considerações levaram-me a examinar a intersubjetividade de uma perspectiva ainda mais ampla do que a psicoterapia e a verificar se ela é mais bem visualizada como uma necessidade hu­ mana básica. Um sistema motivacional básico deve ser uma ten­ dência universal a se comportar de um modo característico de uma 118

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espécie, que deve favorecer enormemente sua sobrevivência. Deve ser universal e inata, embora possa exigir uma modelagem ambiental importante. Precisa ter uma qualidade de preempção para que seu valor para o organismo tenha precedência e os comportamentos possam ser arrolados, montados e organizados conforme necessá­ rio. Não é uma pressão constante, mas pode ser ativada e desativada. Até que ponto a intersubjetividade preenche estes requisitos?

CONFERINDO A VANTAGEM DE SOBREVIVÊNCIA A intersubjetividade faz três contribuições principais ao asseguramento da sobrevivência: promove a formação de grupos, aper­ feiçoa o seu funcionamento e garante a coesão do grupo ao criar moralidade. O mesmo impulso que contribui para a sobrevivência das espécies também pode servir para tornar possível a psicoterapia e a intimidade psíquica entre amigos.

Formação de grupos Os seres humanos são uma espécie relativamente indefesa. Sobrevi­ vemos graças ao nosso cérebro e à atividade coordenada dos gru­ pos. A sobrevivência humana depende da formação de grupos (famílias, tribos, sociedades) e da coesão quase constante deles. Nós somos os mais hipersociais e interdependentes de todos os mamífe­ ros. Muitas capacidades e motivações diferentes atuam em conjun­ to para formar e manter os grupos: vínculos afetivos, atração sexual, hierarquias de dominação, amor, sociabilidade. A intersubjetividade deve ser adicionada à lista. Independentemente de como a definimos, a intersubjetividade tem de operar tanto para grupos como para díades. O casal é um subsistema das unidades básicas da adaptabilidade evolutiva: a fa­ mília e a tribo. A este respeito, o trabalho de Fivaz e do Grupo de Lausanne (Fivaz-Depeursinge, 2001; Fivaz-Depeursinge e Corboz-

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

Warnery, 1998) assume particular importância. Eles demonstraram que, nas primeiras fases da formação da família, quando o bebê tem apenas de 3 a 6 meses de idade, começa-se a ver o início de uma intersubjetividade de mão tripla entre mãe, pai e bebê, que tem de existir entre três assim como entre dois, a fim de forjar uma tríade psicológica com reciprocidade, ainda que assimétrica — em outras palavras, uma família intersubjetivamente íntima. Esses autores mostraram por exemplo que, quando um bebê de 3 meses, a mãe e o pai estão sentados num triângulo, uma fascinan­ te interação de mão tripla pode ocorrer, sugerindo uma inter­ subjetividade triádica. Por exemplo, enquanto eles atuam juntos como um grupo, é provável que o bebê alterne rapidamente suas orientações e sinais afetivos entre os pais, como que para comparti­ lhar seu prazer e interesse, ou frustração, com ambos. Ora, quando o bebê atua com, digamos, o pai e algo excitante e prazeroso trans­ pira entre eles, a criança tende a voltar-se para olhar para a mãe, como se dissesse: “Você viu isto?” Mais interessante ainda, se algo inesperado ou estranho acontece entre o bebê e um dos pais, o bebê tende a voltar-se para o outro, como um olhar que diz: “O que é isto?” Aqui podemos estar testemunhando uma forma primitiva de referenciamento social. Aos 9 meses, o referenciamento social de mão tripla (triangu­ lar) já foi diferenciado; o bebê vai “consultar” regularmente o rosto dos pais sobre o que está acontecendo entre eles ou no ambiente. Os processos pelos quais eles respondem — leitura da mente do bebê, harmonizando-se afetivamente com os sentimentos dele, às vezes acertando, outras, errando — vão permanecer no modo im­ plícito e podem constituir momentos-chave de criação de significa­ dos como um trio. O domínio da experiência intersubjetiva da família cresce com o tempo. Ele ganha novas dimensões com o desenvolvimento (por exemplo, com o advento de emoções morais e em seguida co-narrativas) e também com o tamanho da família. Os mesmos fenôme­ nos observados no triângulo emergem na unidade familiar quando

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esta aumenta para quatro membros ou mais (F. Frascarolo, comu­ nicação pessoal, 8 de abril de 1998). Essa história compartilhada é parte da cola que define a identi­ dade e o status da família como uma unidade única. As famílias podem, na verdade, atingir níveis notáveis de riqueza e sutileza intersubjetiva. Isso fica muitas vezes evidente quando uma pessoa de fora senta-se a uma animada mesa de jantar de uma família. A linguagem flerta com particularidades da experiência compartilha­ da da família, fazendo apenas referências passageiras. São abun­ dantes os curtos-circuitos, as elipses e os códigos. Seus membros imediatamente entendem o que está na mente dos demais. E a pes­ soa de fora, embora tenha compreendido o significado de cada pa­ lavra, não consegue entender os momentos em que todos caem na gargalhada ou quando ocorre uma mudança no tom afetivo. Em termos gerais, o sistema motivacional intersubjetivo diz res­ peito à regulação do pertencimento psicológico versus solidão psi­ cológica. Os pólos deste espectro são, num extremo, a solidão cósmica e, no outro, transparência mental, fusão e desaparecimen­ to do self. O sistema motivacional intersubjetivo regula a zona de conforto intersubjetivo em algum ponto entre os dois pólos. O exa­ to ponto de conforto depende do papel que se tem no grupo, de com quem se está e da história pessoal do relacionamento que desá­ gua naquele momento. O ponto no continuum tem de ser mano­ brado ininterruptamente com ajustes segundo a segundo. Há muito em jogo para que não seja assim. Em jogo estão a intimidade e o pertencimento psicológicos que desempenham um poderoso papel na formação e na manutenção do grupo. O pertencimento psicológico é diferente de vínculos físi­ cos, sexuais, afetivos ou de dependência. E uma ordem separada do parentesco. É uma forma de pertencer a um grupo que ou é exclu­ siva dos seres humanos ou deu um enorme salto quantitativo e qua­ litativo em nossa espécie. Pode-se argumentar que o salto é a linguagem, e que, entretanto, sem a intersubjetividade não poderia se desenvolver. 122

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

O sistema motivacional intersubjetivo pode ser considerado se­ parado e complementar em relação ao sistema motivacional de apego — e igualmente fundamental. Clinicamente, vemos comportamen­ tos sexuais ou de apego a serviço do pertencimento intersubjetivo (e vice-versa). (Para uma discussão mais detalhada destas questões, ver Domes, 2002; Lichtenberg, 1989; e McDonald, 1992.) Na teo­ ria do apego, existem dois motivos e pólos opostos: num extremo, proximidade/segurança e, no outro, distância/exploração-curiosidade. O sistema de apego faz a mediação entre estes dois pólos. A vantagem de sobrevivência básica reside em manter-se fisicamente próximo para se proteger contra os perigos do meio ambiente, se­ jam eles tigres, automóveis, tomadas ou outras pessoas, e ao mes­ mo tempo permitir a exploração para aprender sobre o mundo. O sistema de apego é concebido mais para a proximidade física e liga­ ção do grupo do que para a intimidade psicológica. Muitas pessoas que são “fortemente” ligadas não compartilham uma proximidade ou intimidade psicológica (na verdade, é o contrário). O sistema de intersubjetividade é necessário para isso. Estou estabelecendo uma distinção clara entre os sistemas motivacionais de apego e de subjetividade, embora eles possam apoiar-se e complementar-se mutuamente. O autismo oferece algu­ mas evidências para esta distinção. Crianças autistas apresentam habilidades intersubjetivas extensamente deficientes, mas são ape­ gadas aos pais. Shapiro, Sherman, Calamari e Koch (1987), bem como Sigman e Capps (1997), relataram que crianças autistas apre­ sentam comportamentos de apego claros e identificáveis, mesmo que com padrões fora do normal. A pesquisa sobre o apego não mede a sua força, apenas os padrões comportamentais usados para apegar-se, mas ninguém sugere que as crianças autistas parecem desapegadas ou frouxamente apegadas. Separar os dois sistemas motivacionais é importante tanto teórica quanto clinicamente. As pessoas podem ser apegadas sem compar­ tilhar intimidade intersubjetiva, ou ser íntimas intersubjetivamente sem serem apegadas, ou ambos, ou nenhum dos dois. Para a máxi123

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ma conexão entre as pessoas, apego e intersubjetividade são neces­ sários, além do amor. Na situação clínica, a intersubjetividade é essencial, o apego e o amor nem tanto. Contudo, existe em geral uma mistura dos três, as proporções variando amplamente. Em todo caso, apego e intersubjetividade apóiam-se um ao ou­ tro. O apego mantém as pessoas juntas para que a intersubjetividade possa desenvolver-se ou aprofundar-se, e esta, por sua vez, cria con­ dições que conduzem à formação dos apegos. No desenvolvimen­ to, é difícil dizer qual surge primeiro. Sabemos que a sensibilidade e a receptividade do cuidador nos primeiros meses da vida são tanto uma manifestação de intersubjetividade quanto uma precondição para tornar seguro o apego (Fonagy, 2001). Os dois sistemas motivacionais atuam em conjunto para garantir a coesão do grupo ne­ cessária para a sobrevivência. Apesar da grande colaboração mútua, eles permanecem como sistemas independentes. Em algumas sociedades, a mente individual não é vista como particular, única e independente. O conceito do self é menos indivi­ dualista e mais conectado à matriz intersubjetiva do grupo. Nessas situações, o pertencimento é mantido mais por intermédio de ri­ tuais e atividades do grupo (danças, movimentos, cantos, narração de histórias, cânticos) do que de trocas intersubjetivas diádicas ver­ bais isoladas. Em tais situações, ser expulso ou marginalizado pelo grupo causa uma alienação que é uma mistura de apego rompido e solidão psíquica. Na maioria das culturas ocidentais, o pertencimento físico é atin­ gido em grande parte por meio de contatos intersubjetivos familia­ res e diádicos. Não somos apenas uma espécie muito social, somos também uma espécie muito particular, na qual a intimidade mental é a chave dos relacionamentos. Na maior parte das nossas concep­ ções ocidentais modernas de amor e amizade, a intersubjetividade talvez seja o elemento indispensável. Com o desenvolvimento, as pessoas com quem buscamos mais avidamente um parentesco intersubjetivo mudam: dos pais para os amigos, na adolescência; ao ser amado, na juventude. E, quando estamos sofrendo mentalmen­ 124

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

te, procuramos um terapeuta para formarmos um parentesco subjedvo, o que às vezes pode significar a sobrevivência.

Funcionamento do grupo Para sobreviver, os seres humanos precisam agir em conjunto. A capacidade de ler intenções e sentimentos das outras pessoas propi­ cia uma coordenação da ação em grupo extremamente flexível. A capacidade de se comunicar rápida e sutilmente no âmbito do gru­ po, mediante o uso de movimentos intencionais, sinais e lingua­ gem, expande a eficiência e a velocidade de ação do grupo — em outras palavras, sua adaptabilidade. A própria linguagem não po­ deria emergir se não tivesse uma base intersubjetiva. Você só fala com alguém porque acredita que ele pode compartilhar sua paisa­ gem mental e agir de acordo com ela. Supõe-se ser esta uma das razões pelas quais crianças autistas têm tanta dificuldade com a aqui­ sição da linguagem. Além da linguagem, os seres humanos possuem o mais altamen­ te desenvolvido e rico repertório de expressões faciais e vocais (paralingüísticas). Estas, também, assumem uma capacidade intersubjetiva dentro do grupo que vai além da simples decodificação de sinais ou comunicação instrumental. Os seres humanos também passam um tempo enorme tornan­ do-se eficientes em intersubjetividade e praticando-a em termos do desenvolvimento. Somos a mais imitativa das espécies. Nadei (1986) relatou que a imitação recíproca constitui a principal forma de brin­ cadeira entre crianças de até cerca de 3 anos. (Isso prossegue após os 3 anos, mas com menos freqüência.) Na mesma idade, a provo­ cação, a gozação, as travessuras etc. tornam-se atividades infantis importantes (Dunn, 1999; Reddy, 1991). Estes comportamentos tam­ bém têm uma base intersubjetiva (ver Nadei e Butterworth [1999] para estudos sobre comunicação em mão tripla na primeira infân­ cia). Somos a espécie mais brincalhona e passamos anos afiando essas habilidades. Como seria de se esperar, crianças autistas, com 125

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seu relativo déficit intersubjetivo, têm dificuldade em provocar, pregar peças, “fazer bobagens” e em brincar normalmente com as outras. Estão menos aptas a aumentar sua capacidade intersubjetiva extremamente reduzida. E quanto à intersubjetividade dentro dos grupos? É mais fácil ver como a intersubjetividade diádica emerge do que ver a inter­ subjetividade de grupo. Com grupos, existem dois aspectos: como eles agem em conjunto ou mesmo em sincronia, e como são lidos como uma unidade, mesmo num olhar de relance. Lemos os grupos como uma unidade na nossa vida cotidiana. Por exemplo, numa discussão de grupo ou numa sessão de terapia de família, conferir se todos estão “ali”, presentes na conversa e compartilhando a co­ municação afetiva do grupo, é algo que se faz com facilidade, em segundos. Terapeutas de família desenvolveram teorias e técnicas para melhorar o compartilhamento intersubjetivo da família, em particular reintroduzindo rituais na vida familiar para ajudar a re­ solver transições ou perdas difíceis (Imber-Black e Roberts, 1992). Mas a complexidade envolvida na comunicação de grupo obstruiu as pesquisas, apesar dos trabalhos pioneiros de Scheflen (1973), Kendon (1990) e Reiss (1981). (Para uma aplicação à terapia de casal, ver de Roten, Fivaz-Depeursinge, Stern, Darwish e CorbozWarnery [2000].) O aprofundamento destas questões está além do escopo deste livro, exceto para dizer que a intersubjetividade de grupo acontece e que a sobrevivência da espécie através do grupo está em jogo. Além disso, considere o papel do altruísmo na sobrevivência da espécie. Este é um assunto complexo, mas aspectos ou etapas do comportamento altruísta entre os seres humanos podem repousar

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

condição básica para a moralidade. As “emoções morais” (vergo­ nha, culpa, constrangimento) são provenientes da capacidade que temos de nos vermos nos olhos do outro — em outras palavras, percebemos que o outro nos vê. O relato de Freud da origem da moralidade via superego — o olhar internalizado dos pais — faz a mesma suposição. A intersubjetividade desempenha um papel essencial no surgi­ mento da consciência reflexiva. A idéia de consciência reflexiva como originária da interação social não é nova. Alguma forma de um “outro” é sua característica fundamental. O outro pode ser externo ou interno, mas a experiência primária deve ser compartilhada de um segundo ponto de vista. (O capítulo 8 aborda esse problema na criação da consciência reflexiva.) O advento da consciência reflexiva, ao lado da linguagem, é considerado fundamental para o sucesso evolutivo da espécie hu­ mana. A consciência reflexiva e a linguagem aperfeiçoam a adapta­ bilidade ao dar à luz novas opções que podem transcender padrões de ação fixos, hábitos e algumas experiências passadas. Em suma, a intersubjetividade contribui para a sobrevivência do grupo. Promove sua formação e coerência. Permite-lhe funcionar com mais eficiência, rapidez, flexibilidade e coordenação. E forne­ ce a base para que a moralidade atue mantendo a coesão do grupo e que a linguagem aja na comunicação do grupo.

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UMA MOTIVAÇÃO COM VALOR DE PREEMPÇÃO

sobre a base da intersubjetividade.

Coesão mediante pressão moral A coesão dentro de grupos humanos é extremamente intensificada pela persuasão moral. Vou argumentar que a intersubjetividade é a

Um sistema motivacional precisa conter motivações experienciadas subjetivamente que organizem e direcionem comportamentos para um objetivo valorizado. Quando alguém busca um objetivo e se des­ loca em direção a ele, há uma experiência subjetiva de preempção, sentida como desejo ou necessidade. Quando se atinge o objetivo, há 127

O M OM ENTO PRESENTE

um sentimento subjetivo de gratificação ou de relativo bem-estar ou, minimamente, uma desativação da motivação. Podemos falar de uma motivação intersubjetiva com a qualidade subjetiva de preempção? Existem dois desses motivos intersubjetivos. O primeiro é uma necessidade de ler as intenções e os sentimentos do outro, que serve ao propósito de descobrir “Onde vocês dois estão?”; “O que está acontecendo?”; “Em que pé estão as coisas?”; “Onde eles devem ir?”. Essa sondagem da imediata situação diádica ou do grupo e de suas possibilidades ocorre num encontro e em seguida é continua­ mente atualizada, muitas vezes segundo a segundo ou minuto a minuto, conforme necessário. É uma forma de orientação. Se não podemos nos orientar no tempo e no espaço, ficamos confusos e ansiosos, e comportamentos de busca são postos em ação para re­ solver o desconforto. O mesmo se aplica à orientação subjetiva no espaço psíquico. Precisamos conhecer nossa posição no campo intersubjetivo em relação a um indivíduo, uma família ou um gru­ po. A “orientação intersubjetiva” também é um acontecimento con­ tínuo vital em psicoterapia. Ela é buscada e tem alto valor afetivo. Cada uma das manobras para procurar e ajustar a orientação intersubjetiva é um momento presente. São momentos de kairos porque é necessário agir de acordo com o estado intersubjetivo; é preciso explorar o campo intersubjetivo para descobrir/criar “onde você está”. A necessidade de ser orientado intersubjetivamente é sentida como uma “força” de preempção que mobiliza o comporta­ mento. Motivações são postas em ação. Essa questão é discutida mais detalhadamente na parte III. A orientação intersubjetiva é uma necessidade básica no contexto do contato social direto. Quando não somos orientados intersub­ jetivamente, surge a ansiedade, e os mecanismos de enfrentamento ou de defesa são mobilizados. Essa ansiedade poderia ser chamada de ansiedade intersubjetiva. A psicologia dinâmica e outras psicologi­ as exploraram de forma profícua aquilo que é melhor chamar de “ansiedades ou medos básicos”. Estar só sempre aparece na lista, mas não costuma ficar claro se trata-se de solidão física ou mental. Exis­

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

tem claramente dois medos diferentes. O medo da solidão psíquica pertence à nossa condição intersubjetiva. Essa sondagem do estado da díade é uma forma de “psicoetologia”. Imagine dois cães se encontrando. Eles iniciam um rico repertório de sinais e comportamentos a fim de explorar e estabele­ cer seu relacionamento imediato (por exemplo, sexual, agressivo, brincalhão, dominante e uma mistura matizada destes). Agora, ima­ gine que os dois cães são duas pessoas “atadas” (por convenções) às suas respectivas cadeiras num consultório, ou paradas de pé, educadamente, num coquetel. A maioria das ações de exploração e de estabelecimento do atual status entre elas terá de ocorrer na for­ ma de comportamentos que foram mentalizados, e não postos em ação. Há também signos e sinais (por exemplo, linguagem corporal e tom de voz) que podem ser lidos claramente com a intersub­ jetividade de mão única (uma pessoa lê a outra). Quando a intersubjetividade de mão dupla (duas pessoas lêem uma a outra) é adicionada, a leitura fica mais minuciosa, mais quente afetivamente, e adquire mais nuances. Existe ainda outra característica: o status do relacionamento que está sendo criado é revelado no instante de sua criação. Uma segunda necessidade sentida de orientação subjetiva é de­ finir, manter ou restabelecer a auto-identidade e a autocoesão — a fim de fazermos contato com nós mesmos. Precisamos dos olhos dos outros para nos formarmos e continuarmos a existir. Aqui, tam­ bém, a necessidade do olhar do outro pode ser preemptiva. Prisio­ neiros do sexo masculino em confinamento solitário com sentenças muito longas ou perpétuas apresentam um exemplo interessante. Falar não vai lhes garantir uma liberdade condicional nem absolvêlos, e não há ambiente sob seu controle ao qual necessitem se adap­ tar. Mesmo assim, com freqüência eles querem falar com alguém, compartilhar seu mundo interior. Por quê? Um motivo pode ser o fato de que precisam de encontros intersubjetivos para se mante­ rem em contato consigo mesmos. No isolamento da prisão, cerca­ dos por um ambiente de tão poucas escolhas e atitudes próprias,

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eles precisam do olhar intersubjetivo do outro para reencontrar e manter sua identidade (Colette Simonet e Phillip Jaffe, comunica­ ções pessoais, 23 de fevereiro de 2000 e 27 de abril de 2000). Sem receber alguma informação contínua de uma matriz intersubjetiva, a identidade humana se dissolve ou se desvia do cur­ so de estranhas maneiras. Não importa se esse contato é feito na forma de troca de idéias diádica, rituais de grupo ou de algum ou­ tro modo. Estamos familiarizados com a idéia de selves múltiplos ou selves distribuídos que mudam consideravelmente, dependendo de com quem se está ou do contexto predominante. Isso é conside­ rado normal. Mas quando é que a agulha da bússola aponta para o “self verdadeiro”? Ou esta é uma questão sem sentido? Em todo caso, o olhar do outro ajuda a fixar nossa autoposição relativa e a encontrar nosso senso de self verdadeiro (mesmo que este seja ilu­ sório). Na cultura ocidental, o senso ou mesmo a ilusão de um self mais ou menos verdadeiro pode ser uma condição vital. A esse respeito, é fascinante considerar que a maioria das crian­ ças entre 6 e 12 anos nas várias culturas ocidentais estudadas tem “amigos imaginários” (Pearson et al., 2001). O número é mais alto entre as meninas, mas provavelmente há mais meninos do que o relatado. Por que tantas crianças? Na maior parte das vezes existe alguma forma de diálogo com esses amigos. Eles parecem ser cria­ dos para complementar, estabilizar, validar ou orientar a identida­ de da criança por meio de um relacionamento wteriwfra-subjetivo. O ato de apaixonar-se fornece outra situação para explorar a força do impulso subjetivo. Apaixonar-se tem uma ampla variabili­ dade cultural e histórica. Entretanto, é um estado bastante invasivo, com um número de características comuns suficiente para justificar um exame. Antes de tudo, poderia ser chamado de um estado espe­ cial de organização mental porque reúne numerosos e diversos com­ portamentos, sentimentos e pensamentos num conjunto integrado que é prontamente reconhecido. Na verdade, o “diagnóstico” de uma pessoa que está se apaixonando é muito mais nítido do que a maioria das categorias no Manual diagnóstico e estatístico de trans­

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

tornos mentais — IV e provavelmente é composto de uma organi­ zação mental igualmente específica, com “representações neurais” características. A seguir, alguns dos elementos do apaixonamento que são movidos por um motivo intersubjetivo (muitos destes são compartilhados tanto por namorados como por pais em relação a seus bebês): apaixonados podem se olhar nos olhos, sem falar, por minutos a fio — uma espécie de mergulho na “janela da alma” para encontrar o outro interior. Não apaixonados (nesta cultura), por outro lado, não conseguem suportar a intensidade crescente de um olhar mútuo silencioso por mais de 7 a 9 segundos sem brigar, fazer amor ou virar o rosto. Também há uma atenção minuciosa em rela­ ção às intenções e sentimentos do outro, não só para lê-los correta­ mente, mas também para adivinhá-los. Existe uma ludicidade que envolve muita imitação facial, gestual e postural. E há a criação de um mundo particular, uma espécie de espaço intersubjetivo privile­ giado do qual somente os dois têm as chaves: palavras especiais com significados específicos, siglas secretas, rituais e espaço sagra­ dos etc. Tudo isso cria um nicho psicológico no qual a intersub­ jetividade pode florescer. Person (1988) ressaltou que neste processo criamos um mundo de duas pessoas no qual um casal se forma e onde nos recriamos a nós mesmos. Somos atirados num processo turbulento de autotransformação (se permanente ou não é outra questão). A situação é quase oposta à do prisioneiro perpétuo, na qual nada pode mudar e ele só pode permanecer o mesmo, com esforço. O apaixonado tam­ bém precisa dos olhos do outro para verificar e validar sua meta­ morfose, para mantê-lo em contato consigo mesmo, com sua identidade movediça. O olhar do outro ajuda a manter a autocoesão em face do desejo de comunhão e fusão. O poder e a freqüente convocação do contato intersubjetivo para situar e confirmar a identidade não são suficientemente reco­ nhecidos. Por exemplo, a participação em rituais, apresentações artísticas, espetáculos e atividades coletivas, como dançar ou cantar em conjunto, tudo isso pode resultar num contato intersubjetivo

O MOMENTO PRESENTE

(real ou imaginado). Todos os participantes presumem que os ou­ tros experimentam o que está acontecendo mais ou menos da mes­ ma forma que eles. Eles (mesmo que estranhos) se olham e um contato intersubjetivo imaginado ocorre entre eles, e, junto com esse contato, um senso de pertencimento psíquico. Não só eles se divertiram num evento, mas também imergiram na matriz intersubjetiva humana e confirmaram sua auto-identidade.

INATO E UNIVERSAL Um sistema motivacional básico tem de ser inato e universal, ainda que diverso em seus modos de expressão. As evidências apresenta­ das no capítulo 3 sobre as bases neurobiológicas e de desenvolvi­ mento da intersubjetividade avançam até certo ponto na abordagem da questão do inatismo — pelo menos da capacidade humana para a intersubjetividade. A maneira como essa capacidade é usada em qualquer sociedade ou cultura é um assunto fascinante, mas não é tratado aqui. Basta dizer que não consigo imaginar a capacidade não sendo usada de alguma forma adaptativa em todas as sociedades. Nas modernas sociedades ocidentais existem grandes diferen­ ças individuais e culturais no talento intersubjetivo. Evidentemente há fatores constitucionais. O caso de certas formas de autismo dei­ xa isso claro. Existem períodos sensíveis? Gunnar (2001) sugeriu que crianças que foram tremendamente privadas de convívio social durante o primeiro ano de vida, como observado em alguns orfana­ tos, sofrem conseqüências afetivas mais tarde na infância, inclusive redução das habilidades intersubjetivas, tais como a empatia. Alguns podem argumentar que a intersubjetividade é uma condição humana e não um sistema motivacional em si mesmo, porque ela é não-específica e é usada em quase todos os sistemas motivacionais. Neste sentido, o motivo intersubjetivo seria mais equivalente à “moti­ vação para a competência”.

A INTERSUBJETIVIDADE COMO UM SISTEMA MOTIVACIONAL BÁSICO E PRIMÁRIO

Meu contra-argumento é que, embora a intersubjetividade pos­ sa estar a serviço de outros sistemas motivacionais, ela é fortemente ativada em situações inter-humanas altamente específicas e impor­ tantes nas quais é o estado final desejado em si mesma. Estas situa­ ções são: quando surge a ameaça da desorientação intersubjetiva, acompanhada da ansiedade intersubjetiva (por exemplo, quando o lugar ou a posição de alguém num grupo é questionado ou se torna indefinido); quando o desejo de intimidade psíquica é grande (como no apaixonamento); quando é necessário um funcionamento de grupo rapidamente coordenado e essa coordenação tem de ser alte­ rada espontânea, rápida e flexivelmente de um momento para o outro (por exemplo, caçando um perigoso animal selvagem); e quan­ do a auto-identidade é ameaçada e é necessário imergir na matriz intersubjetiva para evitar a autodissolução ou fragmentação. Em tais situações, o contato intersubjetivo se torna específico e primário. Para os nossos propósitos, o motivo intersubjetivo também está atuando, direcionando a regulação segundo a segundo do processo terapêutico, no qual o compartilhamento das paisagens mentais é desejado e precisa ser negociado. É nesse contexto que o momento presente assume seu papel e relevância como o movimento básico de negociação ou como o passo para determinar a natureza do es­ paço intersubjetivo na psicoterapia.

Capítulo 7

SABER IMPLÍCITO

COMO O MOMENTO PRESENTE é mentalmente apreendido enquanto

ainda está se desdobrando, o saber que se tem a respeito dele não pode ser verbal, simbólico e explícito. Estes atributos somente são anexados depois que o momento passou. Sob que forma, então, é o momento original apreendido? Isso pertence a um domínio chama­ do “saber implícito”. Durante os anos 90, a psicologia começou a dar mais ênfase ao conhecimento implícito em comparação ao conhecimento explíci­ to (Bucci, 1997; French e Cleeremans, 2002; Lyons-Ruth, 1997, 1998; Lyons-Ruth, Bruschweiler-Stern, Harrison et al., 1998; Schacter, 1994,1996). Esta concepção emergente do saber implícito foi extremamente enriquecida não só por observações de bebês, mas também por um considerável trabalho anterior sobre comunicação não-verbal que preparou o caminho (Bánninger-Huber, 1992; de Roten et al., 2000; Frey et al., 1980; Frey et al., 1983; Gendlin, 1 981,1991; Kendon, 1990; Krause e Lütolf, 1988; Krause, SteimerKrause e Ullrich, 1992; Scheflen, 1973; Scherer, 1992; Steimer-Krause, Krause e Wagner, 1990). Esta mudança altera nossa maneira de ver o momento presente, bem como de pensar sobre consciência e

O MOMENTO PRESENTE

inconsciente. As implicações na teoria e na prática terapêuticas se­ rão imediatamente evidentes. Primeiro, entretanto, é preciso esclarecer a distinção entre o implícito e o explícito. Simplificando, o conhecimento implícito é não-simbólico, não-verbal, procedural e inconsciente no sentido de não ser reflexivamente consciente. O conhecimento explícito é sim­ bólico, verbalizável, declarativo, capaz de ser narrado e reflexiva­ mente consciente. Vou desenvolver brevemente estes pontos. Anos de pesquisa observacional sobre bebês e suas mães, em paralelo à prática psicoterápica com adultos, tornaram-nos sensí­ veis à importância do conhecimento implícito. Bebês só se comuni­ cam no registro explícito verbal depois dos 18 meses de idade, aproximadamente, quando começam a falar. Conseqüentemente, todas as interações ricas, analogicamente matizadas, sociais e afetivas que têm lugar nesse período de vida ocorrem, por padrão, no do­ mínio não-verbal implícito. Além disso, todo o considerável conhe­ cimento que o bebê adquire sobre o que esperar das pessoas, como lidar com elas, como se sentir em relação a elas e como estar-comelas se insere nesse domínio não-verbal. (A natureza foi sábia ao não apresentar os bebês à linguagem simbólica antes dos 18 meses de vida, para que tivessem tempo bastante para aprender como o mundo humano realmente funciona sem a distração e a complica­ ção das palavras, mas com a ajuda da música da linguagem [Stern, 1977, 1985].) Esse conhecimento nos tornou sensíveis ao domínio implícito, mesmo quando este está entretecido com o mundo explícito da lin­ guagem. Ele responde, em parte, pelo fato de darmos primazia aos acontecimentos implícitos que ocupam o momento presente no processo terapêutico que tem sido menos estudado. O que é, então, o domínio implícito do conhecimento e o que ele contém? Muitos vêem os domínios implícito e explícito como dois sistemas de conhecimento e memória separados, paralelos e parcialmente independentes que emergem juntos. Mais do que um conhecimento implícito que passa a conhecimento explícito com o

SABER IMPLÍCITO

desenvolvimento, os dois vivem lado a lado e crescem pela vida afora (Fischer e Granott, 1995; Mareei, 1983). O conhecimento implícito não se restringe ao rico mundo da comunicação não-verbal ou dos movimentos corporais e das sensa­ ções, mas também se aplica aos afetos e às palavras, ao menos ao que se encontra nas entrelinhas. Por exemplo, se alguém diz repeti­ damente “Sim, mas...” você rapidamente percebe que esse “sim” é um cavalo de Tróia para penetrar seus muros. O “mas” libera os soldados. (A pessoa poderia ter transmitido a mesma mensagem implícita jogando a cabeça para trás.) O saber implícito é muitas vezes considerado mais limitado e primitivo do que o conhecimento explícito, e as primeiras noções sobre este o equiparavam aos procedimentos físicos ou à inteligên­ cia sensório-motora (por exemplo, levar o polegar à boca). Acredi­ tava-se que o conhecimento implícito dominava as fases iniciais do desenvolvimento e que em seguida era amplamente superado e trans­ formado em conhecimento verbal e simbólico à medida que o de­ senvolvimento (isto é, a aquisição da linguagem) avançava. Nossa concepção atual é diferente. Hoje vemos o saber implícito como extremamente rico e não apenas ligado a procedimentos motores. Ele também inclui afetos, expectativas, mudanças na ativação e na motivação, e estilos de pensamento — tudo aquilo que pode ocor­ rer durante os poucos segundos de um momento presente. Por exem­ plo, os padrões de apego vistos entre mãe e bebê de apenas 1 ano de idade (bem antes da fala) foram avaliados no momento de encontro quando a mãe retornava após uma breve separação (Ainsworth, Blehar, Waters e Wall, 1978). O bebê sabia implicitamente o que fazer com seu corpo, rosto, sentimentos, expectativas, excitação, inibições, redirecionamento de atividades e assim por diante. Ele “sabia se devia” aproximar-se dela, levantando os braços para ser abraçado e ter contato físico, ou se devia não se mexer e fingir que sua volta não tinha importância, ou se devia exagerar seu desejo e necessidade de contato para receber mais dela. Ele “sabe” se deve deixar de lado a brincadeira ou continuar a se concentrar nos brin­

O MOMENTO PRESENTE

quedos, mesmo que desinteressadamente. Ele “sabia” se devia es­ perar uma gratificação físico-psicológica ou tolerar um estado de estresse. Ele “sabia” quando se aproximar dela, se não o fez de ime­ diato, e com que velocidade, e com passos que não eram nem tão largos ou tão rápidos que a fizessem rejeitá-lo. Este é um rico paco­ te de saber implícito (por exemplo, Lyons-Ruth, 1997). O “modelo funcional” de apego de Bowlby (1969), que é a representação do que a criança não-verbal vai esperar, fazer, sentir e pensar quando ameaçada de algum modo, é implicitamente conhecido. Similarmente, a noção de que durante o desenvolvimento o sa­ ber implícito será traduzido para o conhecimento verbal explícito quando a linguagem entrar em cena é questionável. E mais prová­ vel que a maior parte de tudo que sabemos sobre como estar com os outros resida no saber implícito e ali permaneça. Isso é especial­ mente verdade se presumirmos a existência de dois sistemas parale­ los relativamente independentes, como sugerido anteriormente. Duas sugestões interessantes foram feitas para redividir os do­ mínios implícito/explícito. Bucci (1997, 2001) dividiu-os em três categorias: o código subsimbólico e não-verbal (consistindo em ex­ periências contínuas e analógicas, tais como pintar um quadro); o código simbólico e não-verbal (consistindo em experiências e in­ formações não-verbais, tais como o conhecimento imagético do rosto de alguém); e o código simbólico e verbal (consistindo em pala­ vras). Este retraçar das fronteiras é de extrema utilidade e será usa­ do periodicamente neste livro. Na maior parte das vezes, porém, ficaremos com a divisão mais bruta estabelecida entre implícito e explícito. Fogel (2001, 2003) propôs outra interessante e útil divi­ são da memória implícita em dois tipos. O primeiro é uma “memória implícita reguladora” que nos permite negociar, não-conscientemente, nossas respostas aos aspectos sensoriais, motores e afetivos do nosso meio ambiente físico e social. Isso está vinculado, por exem­ plo, a padrões de apego (Siegel, 1999) e à formação de um self “nuclear” (Stern, 1985), de um self “primário” (Damasio, 1999), de um “self dialógico” (Fogel, de Koeyer, Bellagamba e Bell, 2002);

SABER IMPLÍCITO

ou de um self objetivo (Rochat, 1995), bem como à formação da origem afetiva do self (Schore, 1994). A segunda categoria de Fogel é a “memória participativa”, que é ativada em contextos específicos e traz à tona uma memória implícita que vem do passado, mas é experimentada como acontecendo no presente. Um exemplo seria uma memória traumática (Siegel, 1995, 1996). Em geral, não há motivo para colocar o implícito em palavras. Ele permanece silencioso a menos que os acontecimentos forcem uma descrição verbal. E então apenas uma pequena porção de toda a base do conhecimento implícito é traduzível em palavras. Bollas (1987) cunhou a expressão “conhecido não pensado” como uma importan­ te realidade clínica. Este é um rótulo muito apropriado, porque o conhecimento implícito, embora não-consciente, em geral é potenci­ almente consciente e portanto potencialmente verbalizável. (Estas distinções serão esclarecidas mais tarde.) Por este motivo, uso o ter­ mo saber em vez de conhecimento implícito. Saber oferece uma im­ precisão construtiva e, ainda, um conceito mais dinâmico de saber em andamento em oposição a conhecimento estático, que pode ser visto como estando no passado. Stolorow e Atwood (1992) usaram outra expressão adequada, muito conhecida na psicologia clínica: o consciente pré-reflexivo (que no entanto não precisa ser considerado “pré” em nenhum sentido de desenvolvimento).

O RELACIONAMENTO COM O INCONSCIENTE A relevância clínica do saber implícito aparece imponente. Ele é “descritivamente (topograficamente) inconsciente”. O termo “in­ consciente” deve ser reservado para o material reprimido no qual existe uma barreira defensiva à entrada na consciência. Mais preci­ samente, o saber implícito é não-consciente. Não é reprimido. Em contraste, o “inconsciente dinâmico” psicanalítico é não-conscien­ te porque a força da repressão o mantém ativamente fora da cons­ ciência. Pode-se supor que a repressão não esteja atuando no saber

O MOMENTO PRESENTE

implícito. Por conseguinte, o implícito é simplesmente não-consciente, ao passo que o material reprimido é inconsciente. O implícito inclui uma vasta gama de saberes nos quais a vida social cotidiana se baseia. Por exemplo, o que você faz com a dire­ ção do seu olhar quando está escutando outra pessoa? Quando você está falando? O que você faz com seu corpo e com o tom da sua voz quando está falando com uma figura de autoridade ou com um terapeuta pela primeira vez? Como faz com que saibam que você está prestes a encerrar uma discussão sem dizê-lo, ou que discorda da pessoa mas não quer polemizar? Como sabe quando alguém gosta de você? Como sabe que a pessoa sabe que você gosta dela? Grande parte desse saber implícito nem mesmo pode ser tradu­ zido em palavras. Existem casos clínicos em abundância. Por exem­ plo, pacientes quando descrevem sua infância podem mencionar jantares de domingo que reuniam toda a família. O que acontecia a cada domingo era implicitamente conhecido: o papel de cada mem­ bro da família, os lugares à mesa, como a ação fluía, como as dis­ cussões brotavam e como eram abortadas ou resolvidas, quem bancava o bobo da corte para o alívio cômico — em outras pala­ vras, o roteiro da família (ver Byng-Hall, 1996; Reiss, 1989). Em terapia, esse paciente e seu terapeuta poderiam passar horas, ao longo de semanas e meses, para juntar todas as peças numa forma narrativa coerente, completa, consistente e contínua. Isso requer muito trabalho. E a versão final só será adequada para alguns as­ pectos realçados da construção da narrativa e da interpretação; o restante permanecerá implícito. Uma citação do romancista Alessandro Baricco (2002) vai mais diretamente ao cerne da questão (leia saberes implícitos no lugar de

idéias): Idéias são como galáxias de pequenas intuições, uma coisa confu­ sa... que está mudando continuamente... elas são belas. Mas são bagunçadas... em seu estado puro são uma bagunça maravilhosa. São aparições provisórias da infinitude. Idéias claras e distintas são 140

SABER IMPLÍCITO

uma invenção de Descartes, são uma fraude, idéias claras não exis­ tem, idéias são obscuras por definição, se você tem uma idéia clara não é uma idéia... Eis o problema... Quando expressa uma idéia, você lhe dá uma coerência que ela não possuía originalmente. De algum modo você tem de lhe dar uma forma que é organizada e concisa, e compreensível para os outros. Enquanto você se limita a pensar nela, a idéia pode permanecer a bagunça maravilhosa que é. Mas quando você decide expressá-la (em palavras) você começa a descartar uma coisa, a resumir algo mais, a simplificar isto e cortar aquilo, a pôr em ordem impondo uma certa lógica: você trabalha um pouco nela e no fim tem algo que as pessoas podem entender. Uma idéia “clara e distinta”. A princípio você tenta fazer isso de forma responsável: procura não jogar fora coisas demais, gostaria de preservar a total infinitude da idéia que tinha na cabeça. Você tenta. Mas eles não lhe dão tempo, estão em cima de você, eles querem saber... (p. 206-7) (Note que a noção de uma idéia para Baricco é um conceito amplo que abarca o implícito, a captura sem palavras de certos aspectos essenciais de nossa vida ou do universo. Por este motivo senti-me à vontade para substituir idéia por saber implícito.) Momentos pre­ sentes como experiências no domínio implícito são como as idéias de Baricco. Da perspectiva clínica, precisamos examinar esta concepção do modo implícito porque a regulação do campo intersubjetivo, em terapia, momento presente a momento presente, ocorre em grande parte não-verbalmente, não-conscientemente e implicitamente. Grande parte da transferência insere-se na categoria de saber implí­ cito de um tipo ou de outro. Apenas parte dele pode e será tornada verbal, quando necessário. Nas terapias mãe-bebê, é muito comum para o terapeuta deixar grande parte do saber implícito transferenciai da mãe exatamente onde está, sem tentar interpretá-lo para tornálo explícito e consciente. A natureza psicológica particular da ma­ ternidade precoce defende essa solução terapêutica como a mais benéfica (Stern, 1995). 141

0 MOMENTO PRESENTE

Esta nova concepção de saber implícito propõe um importante problema para a psicanálise tradicional. Isso porque o saber implí­ cito não é dinamicamente inconsciente e, portanto, não é mantido fora da consciência por resistências. Ele é não-consciente por ou­ tros motivos. O conceito de resistência ou repressão não se aplica aqui. Parece que a parte principal do material descritivamente nãoconsciente permanece não verbalizada por motivos outros que não a resistência. Conseqüentemente, a “resistência” fica restrita ape­ nas àquelas situações em que o material inconsciente dinâmico re­ primido está envolvido — ou seja, a menor parte do trabalho terapêutico. Isso constitui uma considerável limitação para um im­ portante aspecto do esforço psicanalítico. Tal limitação ganha im­ portância ainda maior quando consideramos o enorme escopo do saber implícito tanto na vida cotidiana quanto na psicoterapia. Lem­ branças e representações reguladoras implícitas desempenham um papel constante na moldagem da transferência e do relacionamen­ to terapêutico, em geral, bem como na constituição de boa parte de nosso passado vivido e presente sintomático. Existem duas agendas principais na situação clínica. A primeira diz respeito ao conteúdo verbal explícito que aflora na sessão. Em “terapias através da conversa”, é sobre isso que o paciente fala: o passado, o futuro, sonhos, fantasias, problemas fora do consultório (por exemplo, trabalho, família, sentimentos negativos, pensamen­ tos perturbadores). Este é o tema tradicional que tem a prioridade na maior parte do tempo. Poder-se-ia também chamar isso de agen­ da narrativa. Vamos chamar de “agenda explícita”. Quando lidam com a agenda explícita, terapeuta e paciente ficam lado a lado, di­ gamos, olhando para um terceiro elemento — o conteúdo externo a seu relacionamento imediato. A procura é por significado, coconstruído por paciente e terapeuta num formato narrativo. A agenda explícita também pode ser percebida nas terapias de corpo, movimento, expressiva, gestalt-terapia e dramaterapia. Por exemplo, as respostas a indagações tais como “O que você está sen­ tindo agora?” ou “Em que parte do corpo você sente isso?” são 142

SABER IMPLlCITO

verbais. O conteúdo verbal aflora de fontes implícitas e não-verbais, mas em seguida é conectado à agenda explícita da construção da narrativa. A segunda agenda refere-se à regulação do estado implícito do relacionamento entre terapeuta e paciente. Isso inclui muito da alian­ ça terapêutica, do ambiente de apoio, da aliança de trabalho, do relacionamento de transferência/contratransferência e do relacio­ namento “real”. Co-criar e regular esses relacionamentos fora da consciência perceptiva constitui a “agenda implícita”. A regulação do campo intersubjetivo imediato é o aspecto da agenda implícita que mais nos interessa. A agenda implícita é fun­ damental, pois ela contextualiza a agenda explícita e restringe e determina o que pode ser conversado — em outras palavras, seus graus de liberdade. Na psicoterapia, a principal tarefa implícita é regular o campo intersubjetivo imediato. Isso é realizado na seqüência de momentos e momentos presentes que são os pequenos passos na negociação e sintonia fina do campo intersubjetivo. Em cada momento presente, fazemos a regulação sondando, testando e corrigindo a leitura do estado mental do outro à luz do nosso. Este processo diádico de leitura paralela e simultânea de paciente e terapeuta ocorre em gran­ de parte de maneira não-consciente. Momentos presentes são, por­ tanto, dedicados a perguntas intersubjetivas, tais como “O que está acontecendo aqui e agora entre nós?”; “O que eu percebo ou sei sobre como você me experimenta, agora?”; “O que você sabe sobre como eu agora experimento você?”; e assim por diante. Num nível mais local, estas questões se reduzem a perguntas menores: “Você entendeu o que acabei de dizer?”; “Mas você entendeu mesmo?”; “Não quero continuar com este assunto agora, ainda não”; “Sinto que você não gostou do que eu disse e recuou”; “Você está chegan­ do perto demais, por favor, não faça nada”; “Pare de me pressio­ nar"; Você está me ouvindo?”; “Você não respondeu totalmente”; “Estou entendendo o que você quer dizer?”; ou “Não sabemos de verdade o que fazer agora, sabemos?” Ao lidarem com essa agenda 143

O MOMENTO PRESENTE

de processo relacionai, paciente e terapeuta já não ficam lado a lado olhando para um terceiro elemento. Estão frente a frente, olhan­ do um para o outro, mesmo que seja com o canto do olho, ou estão lado a lado, olhando para si mesmos, olhando um para o outro, ou alternando entre as duas posições. De um ponto de vista clínico, qualquer saber implícito sobre o relacionamento vai influenciar a agenda explícita e vice-versa. Um não pode ser considerado independentemente do outro. Este livro, porém, enfoca intensamente o domínio implícito do saber, em par­ ticular o campo intersubjetivo entre terapeuta e paciente, e mais especificamente como esse campo é regulado momento a momento durante os momentos presentes — nossa unidade básica da experiên­ cia subjetiva. Em terapia, essa área não foi tratada tão profunda­ mente quanto a explícita. O fato de o saber implícito não ser consciente reflexivamente nem tampouco inconsciente dinamicamente nos leva a considerar a distinção entre consciente e não-consciente, em relação ao implíci­ to e ao explícito, para a qual agora nos voltamos.

Capítulo 8 O PAPEL DA CO NSCIÊN CIA E A NOÇÃO DE CO NSCIÊNCIA INTERSUBJETIVA

ElS O PROBLEMA: formar o momento presente à medida que ele se desdobra é um processo implícito, e, no entanto, para uma experi­ ência qualificar-se como um momento presente ela precisa pene­ trar a consciência perceptiva ou outro tipo de consciência. Mas qual? Um olhar sobre a questão geral da consciência e seu histórico pare­ ce necessário a esta altura.

HISTÓRICO Historicamente, a psicologia acadêmica tem se interessado apenas periodicamente pela consciência, até muito pouco tempo. As teorias psicodinâmicas se interessaram muito mais pelo inconsciente. Freud (1926/1959) pressupôs que a consciência não precisava ser discuti­ da porque era evidente e não deixava espaço para dúvidas. Ele en­ tão passou a explorar a estrutura do inconsciente dinâmico, o qual, na época, não era tão evidente e aceito como é hoje. Esta aborda­ gem negligenciou o momento presente e as experiências fenome­ nais em geral, já que estas estão entretecidas com a consciência. 144

O MOMENTO PRESENTE

Mas uma ênfase no momento presente nos deixa frente a frente com a questão da consciência. Afinal, o momento presente é o con­ teúdo fenomenal de um período limitado de consciência perceptiva ou consciência. Ele existe apenas durante um momento de consciên­ cia perceptiva. Ou precisa ser um momento de consciência? E qual a diferença? Existem várias maneiras de pensar sobre consciência perceptiva e consciência. Consciência perceptiva concerne a um foco mental num objeto de experiência. Consciência refere-se ao processo de perceber que você está percebendo, ou metapercepção. Os desenvolvimentistas foram forçados a definir variados tipos de consciência, a fim de descrever a ontogenia da consciência desde a infância. Usando um modelo que chama de Modelo de Níveis de Consciência, Zelazo (1996,1999) listou os primeiros três níveis da seguinte maneira: consciência mínima (normalmente chamada de “consciência perceptiva”), consciência reflexiva (às vezes chamada de consciência “secundária” ou “recursiva”) e autoconsciência. A distinção entre consciência perceptiva (consciência mínima) e cons­ ciência (consciência reflexiva) é o que mais nos interessa. Em ter­ mos desenvolvimentistas, a consciência perceptiva é considerada uma forma primitiva de consciência confinada nas fronteiras do momento presente no qual a experiência está ocorrendo. Como diz Zelazo: “Um bebê está consciente [leia-se: percebe] daquilo que vê, mas não está consciente de ver o que vê, muito menos de que ele (como um agente) está vendo o que vê” (1999, p. 98). A experiên­ cia, portanto, não é refletida, é limitada ao presente, permanece sem relação com o self e não penetra na memória. Portanto, é irrecuperável. A consciência, por outro lado, é reflexiva — em ou­ tras palavras, percebe que percebe. Graças à reflexividade, este tipo de consciência pode ser recordado, penetra na memória explícita e pode ser verbalizado. (Por enquanto, vou me ater aos níveis mental e comportamental enquanto tento desembaraçar estes termos, ig­ norando os relatos neurocientíficos.) Os filósofos têm lutado com distinções semelhantes expressas 146

0 PAPEL DA CONSCIÊNCIA E A NOÇÃO DE CONSCIÊNCIA INTERSUBJETIVA

de formas diferentes. A distinção entre consciência perceptiva e consciência é remodelada como a distinção entre consciência feno­ menal e consciência introspectiva. A consciência fenomenal diz res­ peito à experiência direta, “a sensação crua” (Rorty, 1982), à maneira pela qual as coisas parecem estar no “palco da mente”, “como é” (Nagel, 1998) e à experiência dos qualia (por exemplo, rubor). A consciência introspectiva, ou consciência de acesso (Block, 1995), é a consciência perceptiva de ter a experiência fenomenal. (Ver Block, Flanagan e Guzeldere, 1997, para uma discussão completa sobre estas distinções de muitos pontos de vista.) Nos debates filosóficos, a distinção entre consciência perceptiva e consciência é menos evi­ dente, em parte porque pode-se ter uma experiência de consciência fenomenal sem percebê-la (Dretscke, 1998). A fronteira entre estes dois tipos de consciência não é muito clara. Entretanto, pode-se argumentar que a consciência reflexiva encontra-se necessariamen­ te num contexto temporal diferente daquele da consciência perceptiva, por esta ser pós-fato. Descrições do fluxo da consciên­ cia na literatura não esclarecem as fronteiras tênues entre consci­ ência e consciência perceptiva. Um problema da distinção entre consciente/não-consciente quan­ do aplicada à situação clínica é que paciente e terapeuta estão sem­ pre lidando com duas agendas simultâneas que interagem. Existe a agenda explícita do conteúdo do que eles estão dizendo e seu signi­ ficado, que é, sem dúvida, um material reflexivamente consciente porque é acessado verbalmente. Muitas noções clínicas de consci­ ência apóiam-se extensamente na linguagem como elemento indis­ pensável. Extremamente falando, não pode haver consciência introspectiva ou reflexiva sem um rótulo para os objetos da experiên­ cia na forma de linguagem ou símbolo. A maior parte da teoria psicanalítica abraçou essa idéia em algum grau, maior ou menor. Esta dependência da linguagem, entretanto, é problemática, por­ que grande parte da ação clínica envolve “objetos de experiência” não-conscientes — especificamente, enactments e a agenda implíci­ ta que microrregula o campo intersubjetivo terapêutico. 147

O MOMENTO PRESENTE

Normalmente, as terapias através da conversa enfatizam a cons­ ciência introspectiva ou reflexiva, o que é quase sempre sinônimo de acesso verbal. Por outro lado, nas terapias de movimento, dramaterapias e terapias com orientação existencial, a consciência fenomenal é enfatizada e em geral é sinônimo de enactments.

CONSCIÊNCIA INTERSUBJETIVA Retorno à questão central: como pode um momento presente que é apreendido implicitamente tornar-se consciente? E com que tipo de consciência? A solução que proponho aqui envolve uma nova forma de consciência que vou chamar de consciência intersubjetiva. Ela é muito adequada aos intensos contatos diádicos característicos da psicoterapia. Quando duas pessoas co-criam uma experiência intersubjetiva num momento presente compartilhado, a consciência fenomenal de uma sobrepõe-se à consciência fenomenal da outra e parcial­ mente a inclui. Você tem sua própria experiência mais a experiên­ cia do outro da sua experiência, como refletida em seus olhos, corpo, tom de voz etc. Sua experiência e a do outro não precisam ser exa­ tamente a mesma. Elas têm origem em loci e orientações diferentes. Podem ter coloração, forma e textura ligeiramente distintas. Mas são semelhantes o bastante para que, quando as duas experiências são mutuamente validadas, uma “consciência” de compartilhar a mesma paisagem mental aflora. Isso é consciência intersubjetiva. E o que acontece durante momentos presentes especiais na psico­ terapia. Tronik (1998) chamou a atenção para um fenômeno seme­ lhante observado no relacionamento mãe-bebê e paciente-terapeuta. Ele o denominou “consciência diádica expandida”. Isso se refere mais ao escopo ampliado do compartilhamento, como se este fosse uma crescente base de conhecimento conjunta que existe sem es­ pecificar quando está existindo na consciência real e quando é ape­ nas uma parte potencialm ente utilizável do conhecim ento 1Afl

O PAPEL DA CONSCIÊNCIA E A NOÇÃO DE CONSCIÊNCIA INTERSUBJETIVA

compartilhado. É uma espécie de consciência potencial. Isso con­ funde consciência diádica com saber implícito diádico, ou implica que eles são sinônimos. Em contrapartida, estou usando “consciên­ cia intersubjetiva” para me referir apenas ao que está acontecendo agora num momento presente específico, e não como um espaço potencial de saber compartilhado. A consciência não se estende além do agora. Portanto, a consciência intersubjetiva só pode ser criada agora — e não expandida para um futuro (mesmo um futuro ao alcance da mão) que ainda não está na consciência. Somente o cam­ po intersubjetivo de saberes implícitos pode ser expandido por atos da consciência intersubjetiva. Antes de prosseguir com a definição de consciência intersub­ jetiva, é preciso examiná-la de diversas perspectivas. Cabe lem­ brar que as explicações neurocientíficas para a consciência têm uma perspectiva intrapsíquica. Dentro de um cérebro, um agru­ pamento neuronal inicial é ativado por uma experiência. Esse agru­ pamento, em seguida, ativa um segundo agrupamento neuronal no mesmo cérebro, que então se reporta ao agrupamento inicial, reativando-o e criando um circuito de reentrada. Tais circuitos podem se estender a outros agrupamentos neuronais que se reativam mutuamente, criando uma rede recursiva. A experiência original, assim, é tratada sob diferentes perspectivas (em termos de circuitaria neural). Esta reiteração multifocada (uma forma de metaatividade) faz surgir uma experiência mais elevada no nível mental — especificamente, a consciência. Já a consciência intersubjetiva é vista como um evento interpsíquico que exige duas mentes. Uma experiência é vivida por um indivíduo. Isso é sentido diretamente. Ativa quase a mesma experi­ ência em outro indivíduo, via compartilhamento intersubjetivo. Isto é, então, refletido de volta para o primeiro indivíduo pelo olhar e comportamento do segundo indivíduo. Quando eles se encontram mutuamente nesse momento presente compartilhado, um circuito de reentrada é criado entre as duas mentes. Em particular, o olhar mútuo deixa que o circuito de reentrada intersubjetivo reverbere e 149

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permaneça ativado pelos diversos segundos necessários para que o momento presente faça seu trabalho. Essa recursão intersubjetiva envolvendo a perspectiva de duas pessoas dá origem a uma expe­ riência “mais elevada” em ambos (exatamente como a reiteração neurológica dá origem a uma experiência mais elevada). Essa expe­ riência mais elevada é a consciência intersubjetiva. Estou sugerindo uma concepção mais social da consciência. Que conceitos e evidências levam a essa direção? Na pesquisa da consci­ ência, existe uma antiga questão sobre para qual estrutura cerebral ou para a estrutura cerebral de quem nossa experiência está sendo relatada para torná-la consciente. As primeiras idéias cartesianas sugeriam que um homúnculo existente na nossa cabeça observava os objetos de experiência atravessarem uma espécie de palco men­ tal. Muitos trabalhos deixaram bastante claro que tais soluções não se sustentam (por exemplo, Block, 1995; Chalmers, 1996; Damasio, 1994; Dennett, 1998; Nagel, 1998). Ainda assim, a questão sobre a existência ou não de um relator persiste (Cotterill, 2001). A perspectiva neurobiológica faz a versão moderna da pergunta de Descartes: que estruturas cerebrais “recebem o relatório” para de alguma forma torná-lo consciente sem a intervenção de um homúnculo? Até hoje, não há um local central da consciência no cérebro aceito. E muitos sugeriram que esse local não existe — ao contrário, que a consciência é um atributo coletivo do corpo intei­ ro em seu envolvimento mental e motor com o meio ambiente (por exemplo, Cotterill, 2001; Freeman, 1999b; LeDoux, 1996; SheetsJohnsone, 1999). Um envolvimento com o meio ambiente inclui, sobretudo, interações com a mente das outras pessoas, bem como com a cultura. Essa linha de raciocínio leva a uma perspectiva mais social, na qual a pergunta “Quem recebe o relatório?” se abre para além da mente ou do cérebro de uma pessoa. E sob essa luz que a teoria do espelho social sugere que a consciência reflexiva tem origem social e depende de um mundo experiencial compartilhado e de uma reflexividade social (por exemplo, Whitehead, 2001). Como assi­ 150

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nala Whitehead, estas idéias são baseadas numa longa tradição estabelecida por Dilthey (1976), Baldwin (1895), Cooley (1902) e Mead (1934/1988). Num viés semelhante, Vigostski (1934/1962) argumentou que a linguagem é socialmente construída — que sua aquisição somente ocorre em interação com outros falantes da lin­ guagem, que a linguagem pública precede a linguagem privada, que o uso da linguagem está inevitavelmente imerso na participação cultural. Bruner, Olver e Greenfield (1966) chegaram à mesma con­ clusão sobre a construção do significado. Os significados são coconstruídos a partir da interação com mentes e artefatos da cultura circundante. Feldman e Kalmar (1996) defenderam o argumento de que a identidade é socialmente construída. Mesmo memórias autobiográficas que são contadas e recontadas a outros em forma narrativa são socialmente modeladas. Portanto, podemos adicionar a consciência intersubjetiva à lista de fenômenos que parecem ter uma origem social muito significativa. Estas sugestões abrem um escopo mais amplo de questões para as neurociências. Como explicamos os circuitos recursivos que se estabelecem entre dois cérebros? Segundo a teoria do espelho social, não pode haver espelhos na mente se não há espelhos na sociedade: tornamo-nos cientes de nossos estados internos quando descobrimos que outros também os têm. Mais ainda, outra pessoa pode perceber um estado existen­ te dentro de nós e expressar essa percepção de seu ponto de vista (Whitehead, 2001). A consciência reflexiva não vai ocorrer a me­ nos que haja um “outro” presente para testemunhar o fato de viver­ mos uma experiência fenomenal — em outras palavras, para desempenhar o papel do homúnculo sentado no teatro da mente. A reentrada ocorre por meio da sua experiência da experiência do outro vivendo uma experiência sua (na qual a experiência do outro é apreendida intersubjetivamente). O outro tem de ser diferente do se/^-que-está-vivendo-aexperiência. Existem diversos “outros” que podem cumprir esta função. Pode-se comparrilhá-la com outros aspectos do self. Hoje é i