Festa. Cultura e sociabilidade na América Portuguesa [1, 1 ed.]
 8527105551, 852710556X

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CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA

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FESTA CULTURA & SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA VOLUME I

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P resid en te C om issão E d ito ria l

P linio M artins Filho

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P linio M artins F ilho (Presidente) Jo sé M indlin L aura de M ello e Souza M urillo M arx O sw ald o Paulo Forattini

D ireto ra E d ito ria l D ireto ra C om ercial D ireto r A d m in istra tiv o E d ito r-a ssisten te

Imprensa Oficial i D ire to r-P residente D ireto r Vice-P residen te D ireto r In d u stria l D ireto r F inanceiro e A d m in istra tiv o C o o rd en a d o r E d ito ria l

S ilv an a Biral E liana U rabayashi R enato C albucci João B andeira

IM P R E N S A O F IC IA L D O E S T A D O

Sérgio K obayashi Luiz C arlos Frigerio C arlos N icolaew sky R ichard V ainberg C arlos T aufik H addad

ISTVÁN JANCSÓ I RI S K A N T O R ORGANIZADORKS

FESTA CULTURA & SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA

VOLUME

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I

Imprensa Oficial í

Copyright O 2001 by István Jancsó e íris Kantor (orgs.)

Dados Internacionais de C atalogação 11a Publicação (C1P) (C âm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Festa : C ultura & Sociabilidade na Am érica Portuguesa, volum e I / István Ja n c só , íris K an to r (orgs.). - São P aulo : H ucitec : E ditora da U niversidade de São P aulo : Fapesp : Im prensa O ficial, 2001 - (Coleção E stante USP - Brasil 500 A nos; v. 3). Vários autores. ISBN: 8 5 -3 14-0620-X (Edusp) 85-271-0555-1 (Hucitec) 85-271-0556-X (Hucitec) 1. Brasil - H istória - 1500-2000 2. Brasil - Usos e cos­ tumes 3. C ultura - Brasil 4. Festas - Brasil - H istória I. Jancsó, István. II. K antor, íris. III. Série.

01-1898

CDD-981 índices para catálogo sistemático:

1. América Portuguesa : Festas : H istória 2. Brasil : Festas : H istória

981

981

3. Festas : Am érica Portuguesa : H istória

981

Direitos reservados à Edusp - E ditora da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano G ualberto, Travessa J, 374 6° andar - Ed. da Antiga Reitoria - Cidade Universitária 05508-900 - São Paulo - SP - Brasil Fax (O xxll) 3818-4151 Tel. (O xxll) 3 8 1 8 -4 0 08/3818-4150 w w w .usp.br/edusp - e-mail: edusp@ edu.usp.br Impresso no Brasil

2001

Foi feito o depósito legal

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Rua da M ooca, 1921 - M ooca Paulo - SP - C E P 03103-902 P a b x : ( O x x l l ) 6099-9800 S A C 0800-123401 E-mail: editorial@ im prensaoficial.com . w w w .im prensaoficial.com .br/livraria São

SUMÁRIO

Falando de festas I

stván

Jancsó

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I

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A FESTA NA EN C R U ZILH A D A DAS TEM PO R A LID A D ES Despedidas triunfais — celebração da morte e cultos de memória no século XVIII A

na

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Teatro em música no Brasil monárquico L

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37

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Veneza, África, Babel: leituras republicanas, tradições coloniais e imagens do carnaval carioca M

17

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FESTA BARROCA E CULTURA PO LÍTIC A N O A N T IG O REG IM E Etiqueta e cerimônias públicas na esfera da Igreja (séculos XVII-XVIII) José

P

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Entradas solenes: rituais comunitários e festas políticas, Portugal e Brasil, séculos XVI e XVII P

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97

S UMÁRIO

VIII

Entre festas e motins: afirmação do poder régio bragantino na América portuguesa (1690-1763) R

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M

e n te s

Uma embaixada africana na América portuguesa S

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K

151

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Entradas episcopais na capitania de Minas Gerais (1743 e 1748): a transgressão formalizada I

127

o n teiro

169

antor

F e sta s barrocas e vida co tid ian a em M inas G erais L a u r a d e M e i. lo e S o u z a

183

A D OCE PERSUASÃO FESTIVA: EVANGELIZAÇÃO E RESISTÊN C IA Festa e inquisição: os mouriscos na cristandade portuguesa dos quinhentos R

ogério

O

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R

liveira

ibas

Da festa tupinam bá ao sabá tropical: a catequese pelo avesso R

V

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M

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227

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História, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil — séculos XVIII e XIX M

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215

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A propósito de cavalhadas M

199

M

ello

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249

ouza

SUBVERSÕES E INVERSÕES DA O RDEM FESTIVA A revolta é uma festa: relações entre protestos e festas na América portuguesa L

uciano

F

ig ueiredo

A serração da velha: charivari, morte e festa no mundo luso-brasileiro M

D

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R

279

riore

O enterro satírico de um governador: festa e protesto político nas Minas setecentistas A

263

301

omeiro

Da festa à sedição. Sociabilidades, etnia e controle social na América portuguesa (1776-1814) L u iz G e r a l d o S i l v a

313

Batuque negro: repressão e permissão na Bahia oitocentista

339

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SUMÁRIO

IX

SO LID A R IED A D ES FESTIVAS E VIDA CONFRARIAL Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas colonial M

M

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agalhães

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guiar

Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres de forros e livres nas Minas setecentistas J

F

únia

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B

ássia

397

urtado

A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745 R

361

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A

419

raújo

V o lu m e II

VIDA M ATERIAL E CULTURA FESTIVA Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconômicos das festas no mundo dos engenhos V

era

L

ucia

A

do

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F

449

erlini

Bebida alcoólica e sociedade colonial

467

JULITA SCARANO

Os gastos do senado da câmara de Vila Rica com festas: destaque para Corpus Christi (1720-1750) C

F

amila

e r n a n d a

G

uimarães

S

Celebrando a alforria: amuletos e práticas culturais entre as mulheres negras e mestiças do Brasil E

F

d u a r d o

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C

505

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Unidade e diversidade através da festa de Corpus Christi B

487

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521

antos

FESTAS NA C O R TE PORTUGUESA L itu rg ia real: e n tre a p erm a n ê n c ia e o efêm ero I a r a L is C a r v a l h o S o u z a

545

O fim da festa. Música, gosto e sociedade no tempo de D. João VI

569

M

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M

o n t e ir o

O Tejuco faz a festa. Festejo cívico no arraial do Tejuco em 1815 C

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587

S U MÁR IO

X

VISÕES D li VIAJANTES EUROPEUS: EXOTISMO E BARBÁRIE Viajantes em meio ao império das festas

603

L ii. ia M q r i t z S c h w a r c z

Viajantes vêem as festas oitocentistas K

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L

623

isboa

A FESTA DOCUM ENTADA: ASPECTOS H ISTO RIO G RÁ FICO S A escrita da festa: os panfletos das jornadas filipinas a Lisboa de 1581 e 1619

639

A na P aula T orres M egiani

Revisitando São Luís do Paraitinga. Continuidades e rupturas

657

Jaime de A l m e id a

Histórias da “música popular brasileira”: uma análise da produção sobre o período colonial

683

M ari ha A breu

A FESTA COM O REPRESENTAÇÃO Palavras em movimento: as diversas imagens quinhentistas e a univ ersalidade da revelação

705

G u i l h e r m e A m a r a l L uz

Sermões: o modelo sacramental A lcir P écora A categoria "representação" nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII

717

735

JoAo A dolfo H ansen

Abuso e bom uso: discurso normativo e eventos festivos nas Cartas Chilenas J o ac 11 P e r e ir a F u r ta d o Expectativa e metamorfose: saudades da Idade de Ouro na América portuguesa

759

775

S ércho A l c i d e s

A MEMÓRIA GESTUAL E SONORA DA VIDA FESTIVA O USO DAS FONTES Música das festas: a memória perdida J osé R amos T inhorão

801

S U M A RIO

A d an ça na fe sta colonial M

F

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811 M

artins

M

onteiro

A Procissão do Enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América portuguesa P

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aulo

829

astagna

A outra festa negra P

XI

D

859

ias

A flauta de mutuiú: registro, memória e recriação musical de festas

no Brasil nos séculos XVI e XVII A na

M aria

891

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FESTAS SINGULARES O festejo dos santos a bordo das embarcações portuguesas dos séculos XVI e XVII: sociabilização ou controle social? F

ábio

P

estana

R

Catolicismo devocional, festa e sociabilidade: o culto da Virgem de Nazaré no Pará colonial G

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M

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935

agalhães

Cavalhadas na América portuguesa: morfologia da festa José A

919

oelho

O Divino e a “Festa do Martírio” B

905

amos

951

onçalves

A PR O PÓ SITO DA FESTA Festa, trabalho e cotidiano N

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Ideologia, colonização, sociabilidade: algumas considerações metodológicas M

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FESTA CULTURA & SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA VOLUM E I

FALANDO DE FESTAS “N o sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. D e toda parte correra uma chusm a de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo. Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas festas clássicas, resto de outras eras, que os escritores do século futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos seus contem porâneos um Brasil que eles já não hão de conhecer.”

Machado de Assis"

C o m o m u i t o d o q u e É de interesse vindo da academia, a trajetória deste livro teve início em sala de aula. Foi durante um curso de graduação em História na Universidade de São Paulo, que duas estudantes revelaram inte­ resse em prosseguir na análise do documento proposto para exercício em classe: a Relação das Faustíssimas Festas, Que Celebrou a Camera da Vil/a de N. Senhora da Purificação, e Santo Amaro da Comarca da Bahia Pelos Augustissimos Desposorios da Sereníssima Senhora D. M aria Princeza do B razil com o Sereníssi­ mo Senhor D. Pedro Infante de Portugal, Dedicada ao Senhor Sebastião Borges de Barros As atividades extraclasse que então tiveram início (estávamos em outubro de 1998) resultaram, um ano depois, no Seminário Internacional “Festa: Cul­ tura e Sociabilidade na América Portuguesa”, e, passado outro ano, nos dois volumes que trazem boa parte do que foi então apresentado. A idéia original do Seminário trazia em si a perspectiva de um balanço do “estado da arte”, matriz de onde o que veio a seguir retirou seu caráter de amostra (ainda que incompleta) do que de relevante se está fazendo em ter­ mos de investigação no Brasil — com o precioso contraponto da contribuição de estudiosos portugueses. Retrato de um momento, o conteúdo deste livro

Em “A parasita azul”, in: Contos/urna antologia (introdução e notas de John Gledson), vol. 1. São Paulo: Com panhia das Letras, 1998, p. 193. 1 D e autoria de Francisco Calmon, publicado em Lisboa na Oficina de Miguel Manescal da Costa, no ano de 1762.

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IST VÁN JANCSÓ

&

IRIS

KANTO R

situa-se tanto em linha de continuidade com distintas tradições presentes na historiografia brasileira sobre festas, quanto contrapõe-se a estas na busca de novas possibilidades interpretativas. Quanto a isso, um lançar de olhos sobre a lenta evolução das grandes linhas que conformam uma tradição de estudos sobre os fenômenos festivos que precedem a recente renovação aqui docu­ mentada pode ter alguma utilidade. Em andam ento cronológico, podemos identificar um primeiro grupo de trabalhos, produzidos a partir do último quartel do século XIX, obras de memorialistas, viajantes, literatos e juristas, buscando nas manifestações lúdicas os fundamentos ontológicos, étnicos e raciais da nacionalidade brasileira.2 N aquele momento, o interesse dos intelectuais pelas culturas populares pa­ gava tributo às teorias racialistas em voga na passagem do século, apesar de, ou até por conta disso, identificarem na mestiçagem em larga escala o traço mais marcante da sociedade brasileira.3 Ao encontro dessa perspectiva natu­ ralista e organicista dos fenômenos culturais, podemos alinhar as incursões dos historiadores que lhes seguiram no interesse pela descrição de cenas da vida cotidiana brasileira de antanho, descrições já então calçadas em docu­ mentação manuscrita inédita, a exemplo de Vieira Fazenda, Basílio de Maga­ lhães, Moreira de Azevedo, Affonso E. Taunay, Wanderlei Pinho, M anuel Quirino, Ernâni da Silva Bruno, entre muitos outros.4

2 Para uma interpretação do pensam ento social brasileiro na passagem do século ver as se­ guintes obras: Antonio Cândido de Mello e Souza. Silvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1978; Roberto Ventura. O estilo tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991; Carlos G uilherm e Mota. A ideologia na cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1978; Renato Ortiz. Cultura popular, românticos efolcloristas. São Paulo: Olho d ’Água, 1992; Flora Sussekind. O Brasil não é longe daqui. São Paulo: Com ­ panhia das Letras, 1990; Lilia M. Schwarcz. O espetáculo das raças. São Paulo: Com panhia das Letras, 1993; Claudia Neiva Matos. “Poesia popular c literatura nacional: os inícios da pesquisa folclórica no Brasil e a contribuição de Silvio Romero”, in: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 28, Rio de Janeiro, 1999; M artha Abreu. “Mello Morais Filho: festas, tradições populares e identidade nacional”, in: Sidncy Chaloub & Leonardo Perei­ ra. A história contada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 3 Sílvio Romero. Folclore brasileiro (incluindo “Cantos populares do Brasil”, de 1883, e “Con­ tos populares do Brasil” de 1885, com o prefácio e notas de Luís da Câmara Cascudo). Rio de Janeiro: José Olvmpio, 1954, 3 v.; Mello Moraes Filho. Festas e tradições populares no Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1979; Tristão de Alencar Araripe Jr. Obra crítica. Rio de Janeiro: MEC-Casa de Rui Barbosa, 1963, 5 v.; José Veríssimo. Estudos sobre a poesia popidar no Brasil, 1888, ou a História da literatura brasileira. Brasília: UNB, 1991 (l.“ ed. 1901); Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, além de O Rio de Janeiro no tempo dos vice-reis. Rio de Janeiro: Conquista, 1956; Nina Rodrigues. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio dc Janeiro: Civilização Brasileira, 1935. 4 José Vieira Fazenda. “Antiqualhas c memórias do Rio dc Janeiro”, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 86, Rio dc Janeiro, volume 140, 1919; Basílio de Magalhães. O folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1939; Afonso d ’E. Taunay. “F esti­ vidades setecentistas”, in: Revista do Arquivo M unicipal de São Paulo, XV, São Paulo, 1935; M anuel Querino. Costumes africanos no Brasil. 2.” ed. Recife: Massangana, 1988; Wanderley

FALANDO

l)E

FESTAS

5

A partir da década de trinta, sob o impacto do movimento modernista e impulso da institucionalização do ensino de ciências sociais no país, configu­ rou-se um segundo momento. Ainda que não seja recomendável opor o mo­ dernismo à em ergente produção universitária que, à sua maneira, nele se integrava,5 é neste âmbito que se dá a atribuição de renovada importância aos estudos sobre as manifestações festivas já nas primeiras gerações de cien­ tistas sociais, dentre os quais Antonio Cândido, Maria Isaura Pereira de Q uei­ roz, Florestan Fernandes, Lavínia Costa Raymond, Oneida Alvarenga, Alceu Maynard Araújo, Mário Wagner Vieira da Cunha, Otávio da Costa Eduardo e outros autores, cujos estudos distinguem-se dos trabalhos precedentes sob diversos aspectos.6 A rotinização do contato com a produção sociológica e antropológica européia e norte-americana pode ser observada nas diferentes formas pelas quais as teorias e técnicas de investigação foram incorporadas, e a partir das quais se procurou dar um tratamento menos folclórico e mais sociológico aos dados coletados nas pesquisas de campo.7 As preocupações dos cientistas sociais centraram-se no impacto sobre as culturas tradicionais dos processos de urbanização acelerada, no papel da mestiçagem, no sincre-

Pinho. Salões e damas do Segundo Reinado. 4.“ ed. São Paulo: Livraria Martins, 1970; Ernâni da Silva Bruno. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984 ( l.a ed. 1954), 3 v. 5 Q uanto a isso vide, de Ricardo Benzaquen Araújo, tanto Guerra e paz. Casa grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, quanto Totalitarismo e revolução. O integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1988. Sobre o diálo­ go entre gerações vide, de Dain Borges, “T h e recognition of afro-brazilian symbols and ideas, 1890-1940”, in: Luso-Brazilian Review, 32(2), 1991. 6 Antonio Cândido de Mello Souza. “Opiniões e classes em T ie tê”, in: Sociologia, São Paulo, Escola de Sociologia e Política de São Paulo, IX (2), 1947 e Parceiros do rio Bonito. Rio de Janeiro: Liv. José Olympio Ed., 1964; Maria Isaura Pereira Queiroz. Sociologia e folclore: a dança de S. Gonçalo num município bahiano. Bahia: Livraria Progresso Editora, 1958, e “D an­ ça de São Gonçalo, fator de homogeneização social numa comunidade do interior da Bahia”, in: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 6, junho 1958. D e Florestan Fernandes. “Mário de Andrade e o folclore brasileiro”, in: Revista do Arquivo Municipal, D epartam ento dc Cultura, São Paulo, CVI, 1946; “Folclore e mudança social na cidade de São Paulo, São Paulo”, in: Anhembi, 1961 (1.* ed. 1942); “Congadas e batuques em Sorocaba”, in: Sociolo­ gia, São Paulo, 5(3); “Sociologia e folclore”, in: Revista do Arquivo M unicipal, São Paulo, 1949, v. 122. De Lavínia Costa Raymond. Algumas danças populares no Estado de São Paulo. São Paulo: FFLCH/USP, 1954. De Oneida Alvarenga. “Comentários a alguns cantos c danças do Brasil”, in: Revista do Arquivo Público M unicipal, 1941, v. LXXI. D e Alceu M. Araújo. Folclore nacional. São Paulo: Melhoramentos, 1968, 3 v.; de Mario Wagner Vieira da Cunha. “Festas dc Bom Jesus dc Pirapora”, in: Revista do Arquivo Público, São Paulo, v. XLI e Festivais and social rhythm in the ligth offuncionalist theories. Chicago, 1944; de Otávio da Costa Eduardo. “Aspectos do folclore de uma com unidade rural”, in: Revista do Arquivo M unicipal, São Paulo, v. CXLIV, 1951. 7 Antonio Cândido de Mello e Souza. “Informação sobre a Sociologia em São Paulo”, in: Ensaios paulistas. São Paulo: Anhembi, 1958; Sérgio Miceli (org.). História das ciências so­ ciais no Brasil. São Paulo: Vértice, 1989; Mariza Corrêa. “Traficantes do excêntrico: os antro­ pólogos no Brasil dos anos 30 aos anos 60”, in: Revista Brasileira de Ciênáas Sociais, 6, 1988.

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IST VÁN

JANCSÓ

&

IRIS

KANTOR

tismo religioso, nos processos de aculturação e integração dos imigrantes es­ trangeiros à cultura local.8 Em relação à visão do período colonial, tais estu­ dos tenderam a conceber o passado colonial como “heranças” 0 11 “persistên­ cias” não superadas no processo de modernização da sociedade brasileira após a revolução de 1930, com esta “herança colonial” explicando a persistência de certos códigos arcaicos presentes nas formas de sociabilidade marcadas na sua origem pelo escravismo. Em paralelo com o avanço da produção universitária, uma geração de estu­ diosos capitaneada por Mário de Andrade,9 Luís da Câmara Cascudo, Artur Ramos e Edison Carneiro, renovava a pesquisa folclórica, estabelecendo no­ vos paradigmas para o estudo das manifestações populares brasileiras.10 Fa­ miliarizada com a produção etnológica européia e americana, a nova safra de folcloristas distanciava-se da perspectiva pitoresca e do costumbrismo oitocentista. Em São Paulo, as pesquisas folclóricas foram divulgadas através da Revista do Arquivo Público Municipal de São Paulo, editada pelo Departam ento de Cultura por iniciativa de Mário de Andrade. No plano nacional, tanto a revista do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, quanto Cultura e Política promoveram a publicação dos estudos folclóricos que contavam com boa acolhida no âmbito do projeto varguista de nacionalização da cultura bra­ sileira.11 Essa alavancagem oficial propiciou a formação de extensa rede na­ cional de associações de folclore e etnografia,12 que paradoxalmente resultou

8 Sylvia Garcia. Sociologia como ciência: liberalismo e radicalismo no período deformação de Florestan Fernandes (1941-1953). Doutoramento em Sociologia. São Paulo: USP, 1997; Fernanda Massi. Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. Doutoram ento em Antropologia. São Paulo: USP, 1998. 9 Mário de Andrade. A arte religiosa no Brasil. São Paulo: Experim ento, 1993; Danças dram á­ ticas. Belo Horizonte: Itatiaia-IN L, 1982; Luiz da Câmara Cascudo. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988; Arthur Ramos. Cultura negra no Brasil. São Paulo: Nacional, 1942; Edison Carneiro. Negros bantus: notas de etnografta religiosa e defolclore. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. 10 Mário de Andrade. “Folclore”, in: M anual bibiliográftco de estudos brasileiros-, Marcos Silva. “Câmara Cascudo e a erudição popular”, in: Projeto História, São Paulo: PUC, 11, 1999; Luís Rodolfo da Paixão Vilhena. Projeto e missão — 0 movimento folclórico brasileiro 19471964. Rio de Janeiro: FGV-Funarte, 1997 e “Os intelectuais regionais: os estudos do fol­ clore e o campo das ciências sociais nos anos 50”, in: Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32, Rio de Janeiro, 1996. 11 Angela dc Castro Gomes. História ehistoriadores. Rio de Janeiro: Fundação G etúlio Vargas, 1996; Maria C lem entina Pereira da Cunha. “Folcloristas e historiadores no Brasil: pontos para um debate”, in: Projeto História, São Paulo, PUC, 16, 1998. Para o período im ediata­ m ente anterior à “era Vargas” e com especial atenção para o papel dc M onteiro Lobato, vide, de Tania Regina de Luca. A Revista do Brasil — Um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Edunesp, 1999. 12 Sociedade de Etnografia/SP, Instituto Brasileiro de Folclore/RJ, Sociedade Brasileira dc Folclore no Rio Grande do N orte e Piauí; Primeiro Congresso Afro-Brasileiro cm Salvador em 1938.

FALANDO

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FESTAS

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ser importante na eoibição da repressão policial às manifestações religiosas populares, numa conjuntura de violenta pressão sobre os cultos afro-brasileiros levada a cabo pelo governo de Getúlio Vargas. A produção do movimento folclórico e etnográfico das décadas trinta e quarenta não se confundiu com a produção acadêmica do mesmo período, ainda que se deva assinalar o diálogo entre folcloristas e cientistas sociais naquele momento. Colaborações mútuas e influências recíprocas entre os dois campos estimularam o debate e apontaram para a necessidade de estu­ dos mais monográfícos e menos generalistas. Artur Ramos, Roger Bastide, Donald Pierson e Gilberto Freire levaram os estudos sobre folclore para den­ tro das universidades já nos inícios dos anos quarenta.13 No que toca aos estudos históricos, vale sublinhar a presença marcante da historiografia francesa entre nós. Em França, historiadores de diferentes áreas dedicaram-se à análise de rituais públicos no Antigo Regime na senda de Marc Bloch, sendo de destacar o estudo de Bernard G uenée sobre as en­ tradas régias, e a seminal coletânea de trabalhos editada por Jean Jacquot, demonstrando o interesse pela teatralidade barroca e suas dimensões políti­ cas.14 Foi a partir dos anos setenta, entretanto, que os fenômenos festivos passaram a configurar um campo específico de interesse da nouvelle histoire que, apesar de abrigar diferentes vertentes teóricas, pautou o retorno à his­ toria “acontecim ental” ao preconizar uma abordagem antropológica dos fenômenos coletivos e da politização da vida cotidiana.15 E videntem ente nada disso deveu-se ao acaso, como lembra Michel Vovelle ao observar que a “redescoberta” da festa pela historiografia francesa

15 Roger Bastide. Ar Américas negras: as civilizações africanas no novo mundo. São Paulo: D ifu­ são Européia do Livro, 1974; As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilização. 3.“ ed. São Paulo: Pioneira, 1989. Donald Pierson. Brancos e pretos na Bahia. São Paulo: Nacional, 1945; Candomblé da Bahia. Curitiba: Guaíra, 1942; Estudos de ecologia humana: leituras de sociologia e antropologia. São Paulo: M artins, 1970. Gilberto Freyre. Sobrados e mocambos. 3.a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. Vide, também , Mário de Andrade. “Folclore”, in: M anual bibliográfico de estudos brasileiros (orga­ nizado por Rubens Borba de Morais & William Berrien). Brasília: Senado Federal, 1998. Arthur Ramos. Estudos de folk-lore — definição e limites: teorias e interpretação (prefácio de Roger Bastide). Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, s.d., e j4j culturas negras no novo mundo. 2.a ed. São Paulo: Nacional, 1946. 14 Marc Bloch. Os reis taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, em especial o capítulo “A realeza maravilhosa e sagrada”. Bernard G uenée & F. Lehoux. Les entrées roya/es françaises de 1328 à 1515. Paris, 1969, e a coletânea editada por Jean Jacquot (org.). Lesfêtes de la Renaissance, 3 v. Paris: CNRS, 1975. 15 Michel Vovelle.Lesmétamorphosesdelafêteen Provence. Paris: Aubier-Flamarion, 1976;Mona Ozouf. Lafêterevolutionnaire(1789-1799). Paris: Gallimard, 1976; Y.-M. Bercé. Fêteetrévolte. Paris: H achette, 1976; Em anuel Le Roy Laduri e. Le Carnaval de Romans. Paris: Gallimard, 1979; M aurice Agulhon. “La révolte de 48, un carnaval éphém ère”, in: Autrement, 7. Paris: Seuil, 1976; Jacques Le Goff & Jean-C. Schm itt (org.). Le charivari: actes de Ia table ronde. Paris: EH ESS/CN RS, Mouton Éditeur, 1978.

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contemporânea se insere numa série de mutações da consciência política de­ correntes dos movimentos de maio de 68.16 Essa preocupação está presente na postura dos autores da coleção História da Vida Privada,17 com sua adesão à perspectiva de tornar crucial a politização das práticas cotidianas por motivo de reconhecerem na emergência de novas formas de sociabilidade privadas e públicas a expressão de processos históricos subjacentes à formação do m un­ do moderno pré-burguês. A historiografia anglo-saxã também apresentou o interesse crescente pelos estudos dos rituais e fenômenos de sociabilidade coletiva a partir dos anos setenta,18 reforçando entre nós a tendência aponta­ da, e valorizando a antropologia política e a teoria crítica da literatura como inspiradoras de modelos interpretativos e de novas formas de narrar o aconte­ cimento festivo. Ao apontarem-se as linhas dominantes que levaram à valorização da festa como objeto de estudo historiográfico nas décadas recentes, seja no Brasil ou no estrangeiro, nunca é demais lembrar o peso da difusão do pensam ento de Mikhail Bakhtin sobre as formas de carnavalização próprias da culturas popu­ lares, e as oposições entre as linguagens oficiais e espontâneas utilizadas nas praças, feiras e festas públicas para as quais apontou.19 E ao seu lado, cabe apontar, também, para o impacto da sociologia histórica de Norbert Elias, das análises da teologia política tardo-medieval de Ernest Kantorowicz, da com­ preensão performativa dos dramas sociais de Victor Turner, e da interpreta­ ção crítica da sintaxe social barroca na perspectiva dc José Maravall, referên­ cias teóricas am plamente presentes na historiografia brasileira contem porâ­ nea sobre as sociabilidades cortesãs e a cultura barroca em particular.20 No Brasil, a partir dos anos setenta, toma corpo um terceiro conjunto de estudos sobre as festas brasileiras nos âmbitos da sociologia, da antropologia, da literatura e da crítica de arte, e que tiveram forte impacto no campo histo­ riográfico, inspirando a nova história cultural brasileira a partir de meados dos

16 M ichel Vovelle. Ideologias e mentalidades. São Paulo, 1987, p. 246. 17 Coleção dirigida por George Duby & Philippe Aries. Aqui nos referimos ao volume 3, organizado por Ariès & Roger Chartier. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 (l.a edição francesa de 1986). 18 Edward Thom pson. “Rough Music” in: Customs in Common. Londres: Penguin, 1991; Roy Strong. Arte e poder: fiestas dei Renacimiento. Madri: Alianza Forma, 1984; N atalie Davis. “T h e reasons of misrule”, in: Past and Present, 50, 1971, e “Rites of Violence” in: Society and culture in early modem France. Stanford, 1975. De Peter Burkc. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 19 Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: H ucitec-Edunb, 1970. 20 N orbert Elias. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1987; Ernest Kantorowicz. I.os dos cuerpos dei rey: un estúdio de teologia política medieval. Madri: Alianza Universidad, 1985; VictorTurncr. Theforestofsymbols. Nova York: Cornell Univcrsity Press, 1967; José Maravall. A cultura do barroco. São Paulo: Edusp, 1999.

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anos oitenta.21 É nesse âmbito que ganha importância a obra de Affonso Ávi­ la, crítico de arte e historiador da cultura que já durante os anos sessenta procurava tratar as festividades públicas mineiras como fatos sociais totais.22 A festa barroca, no entender de Ávila, representa um fato civilizacional, uma form a mentis que se expressa através de uma cultura lúdica, sensorial e persuasória,23 com o que pôs em evidência a complexidade sociopolítica do fe­ nômeno festivo, momento de reiteração da ordem política metropolitana, mas também promotor de novas possibilidades de, por exemplo, integração dos mulatos na sociedade mineradora. Identificando a festa barroca com o carna­ val contemporâneo, ele apontou para a persistência de certas formas estéti­ cas, chegando a anunciar, por meio da aproximação meta-histórica entre a festa barroca e o carnaval contemporâneo, novas possibilidades para a com­ preensão das conexões entre a identidade nacional e a festa.24 A edição crítica de fontes documentais então encetada permitiu a renova­ ção das abordagens e ampliou as possibilidades de reconstituição histórica dos múltiplos aspectos da vida festiva, com o que gerações de estudiosos tornaram-se devedores de José Aderaldo Castello e sua equipe pela publica­ ção, na década dos setenta, dos textos do movimento academicista no Bra­ sil,25 como também o são de Curt Lange por seu extraordinário levantam en­ to da vida musical em Minas Gerais, fundamental para o estabelecimento de novo patamar de qualidade para as pesquisas de historiadores e musicólogos nas últimas décadas.26 C om a construção destes novos instrumentos de pes­ quisa, já se torna visível maior sofisticação das abordagens e a confrontação crítica de diferentes tipos de documentação, envolvendo não só a literatura de viagens, memórias, romances, panegíricos, fontes judiciárias e criminais,

21 Roberto da Matta. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1979; Carlos Rodrigues Brandão. O divino, o santo e a senhora. Rio de Janeiro: Funarte, 1978; Marlyse Meyer. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo, 1993; Maria Lucia M ontes. “Entre o Arcaico e o Pós-Moderno: heranças barrocas e a cultura da festa na construção da identida­ de brasileira” in: Sexta Feira, Departam ento de Antropologia da USP, v. 2, 1998; Olga V. Simpson. “Espaço urbano e folguedo carnavalesco no Brasil”, in -.Cadernos CERU, 1 5 ,1981; Maria Isaura Pereira de Queiroz. Carnaval brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1992. 22 Laura de Mello e Souza. “Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial”, in: Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto-U niversidade São Francis­ co, 1998, p. 30-1. 23 Affonso Ávila. Resíduos seiscentistas em Minas. 2 v. Belo Horizonte: Centro de Estudos M i­ neiros, 1967, e O lúdico e as projeções do barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971. 24 Maria Lucia Montes. Op. cit. 25 José Aderaldo Castello (comp.). O movimento academicista no B rasil (1641-1822). 14 v. São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1969-78. 26 C urt Lange. História da música nas irmandades de Vila Rica. v. 1 e 5. Ouro Preto: Conselho Estadual de Cultura dc Minas Gerais, s.d.; e “Danças coletivas públicas no período colo­ nial brasileiro e as danças das corporações de ofícios em Minas Gerais”, in: Barroco, 1, Belo Horizonte, 1969.

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além de documentos cartoriais, recenseamentos e fontes camerárias e ecle­ siásticas, relação que, percebe-se, está longe de ser completa,27 e à qual cabe acrescentar o crescente recurso à documentação iconográfica, aos objetos de cultura material e aos registros da memória oral e gestual. Não surpreende, portanto, que a relação dos estudos que buscam avaliar o lugar das festas e ritos da vida coletiva na formação da sociedade colonial e pós-colonial tenha ganho em escala e diversidade,28 sendo de notar que essa tendência vem sendo enriquecida pela historiografia da vida privada no Bra­ sil que, recentem ente, tem chamado atenção para a importância do estudo das sociabilidades festivas num cotidiano marcado pela itinerância geográfi­ ca, dispersão espacial, instabilidade econômica e fluidez da sedimentação social.2 K O R O

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nenhum ordenam ento escrito nem em nenhum contrato social, mas sim no coração dos homens.37 5. Até este ponto fizemos apenas referência a dois aspectos da complexa comunicação que tinha lugar durante as entradas solenes: de um lado, a Casa Real, que encarava as entradas como uma boa ocasião para publicitar a majes­ tade régia e para fomentar uma certa pacificação comunitária; do outro, a corporação urbana, a qual tirava partido da presença do monarca para repre­ sentar as suas expectativas e as suas reivindicações. No entanto, insistir ape­ nas nesses tópicos seria redutor, pois não tomaríamos em consideração outras importantes dimensões dessas cerimônias. No início deste texto sugerimos que um dos aspectos mais interessantes das entradas solenes é, precisamente, o diálogo que era encetado entre as diversas entidades que se cruzavam ao longo do cortejo. Vimos que a própria estrutura da entrada solene favorecia esses momentos de diálogo, e que a comunicação política, em semelhantes eventos, não era monopólio da Casa Real, bem pelo contrário, pois muitos dos que participavam nas entradas sa­ biam tirar partido de tais eventos, logrando expressar os seus pontos de vista por meio da linguagem cerimonial. Assim, as entradas solenes, à semelhança do que acontecia com outras co­ memorações promovidas pela Casa Real, não eram imunes a aproveitam en­ tos vários, antes de mais porque constituíam excelente ocasião para que os diversos intervenientes manifestassem publicam ente sua posição diante de qualquer aspecto da situação política do reino. Uma situação política marcada pela pulverização do poder, pela coexistência de diversos pólos de poder em concorrência, por múltiplas corporações dotadas de jurisdições próprias, mas tam bém por facções que competiam entre si de forma muitas vezes im piedo­ sa. Como não podia deixar de ser, sem elhante am biente de pulverização do poder político tinha de refletir-se nestas cerimônias, antes de mais nada no nível da ordem de precedências. Com efeito, nos preparativos para a entrada solene os cerimonialistas da Casa Real procuravam estabelecer, com todo o cuidado, a questão do acompanhamento do rei, pois era importantíssimo de­ finir quem tinha direito a estar mais próximo do monarca. Importa sublinhar que o tema da maior ou menor proximidade da pessoa régia não tinha apenas que ver com uma questão de honra ou de reputação. Ele estava diretam ente relacionado com um aspecto crucial do sistema político da época: a definição do grupo dirigente. As entradas solenes em que o monarca participava eram quase sempre pretexto para reflexões acerca da ordem hierárquica em que assentava a vida 37 Paolo Prodi. IIsacramento deipotere. IIgiuramentopolítico nelta storia costituzionaledell'Occidente. Bolonha: II Mulino, 1992.

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em comum. Em regra, quanto mais transcendente era o motivo que estava por detrás das entradas solenes, mais intensa acabava por ser a reflexão acer­ ca de tal hierarquia e da ordem de precedências dela decorrente, seguramen­ te por se tratar de um dos principais momentos em que os protagonistas do processo político se apresentavam “em espetáculo” — a expressão pertence a Pierre Bourdieu. Todo o investimento nas entradas solenes relacionava-se, assim, com o fato de estas cerimônias serem dotadas de um certo caráter “organizador” das relações comunitárias. “Organizador”, porque, como vi­ mos atrás, a imagética aí exibida obedecia a uma certa ordem, devia represen­ tar uma com unidade ordenada segundo certos princípios, punha a manifesto as razões e as crenças que mantinham unido aquele conjunto de pessoas.-’8 E para além de se tratar de uma cerimônia que falava das relações comunitárias e do seu significado, a entrada solene, por assentar numa estrutura de cortejo, desem penhava papel im portante no que respeita à taxinomia social, pois o posicionamento no cortejo refletia as diferenças de estatuto que vigoravam no seio dessa sociedade corporativa. Este era um aspecto verdadeiramente fundam ental para a sensibilidade coetânea, e a melhor prova disso é que nes­ ses eventos os participantes sempre se preocupavam muitíssimo com o lugar que iriam ocupar, medindo, com todo o rigor possível, a que distância iram estar em relação à pessoa do rei. Essa distância era, na verdade, crucial, pois tornava visível a posição de cada um nessa hierarquia estatutária, e casos hou­ ve em que alguns dignitários chegaram ao ponto de se recusarem a estar presentes na cerimônia, por acharem que o lugar que lhes tinha sido atribuí­ do não era condigno com o seu estatuto social. Ainda a respeito da ordem e das posições no cortejo, importa não esquecer que a ressonância desses eventos era disseminada pelas descrições impressas que sem pre surgiam após cada festividade, nas quais qualquer leitor podia encontrar uma descrição completa e detalhada do que ocorrera, bem como dos lugares e das posições assumidas pelos intervenientes. Este aspecto, como se pode calcular, tornava ainda mais dramática a luta por aparecer numa posi­ ção condigna. As descrições impressas das entradas solenes de um rei ou de uma rainha revestiam-se, assim, de grande importância, sobretudo para os titulares eclesiásticos e da nobreza, porquanto serviam de indicador e de refe­ rência para aferir o posicionamento de cada dignitário na escala hierárquica comunitária. Tais descrições eram tam bém muito importantes para os mestres-de-cerimônias, pois, quando estes se debatiam com alguma dúvida relati­ va a precedências, costumavam consultar a relação impressa de uma das en­ tradas solenes anteriorm ente celebradas, a fim de esclarecerem essa dúvida. Porque fixavam uma determinada ordem de precedências, as instruções 38 Edward Muir. R itual in Early Modem Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 5ss.

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relativas aos que seguiam próximo do rei envolviam, necessariamente, uma série de inclusões e de exclusões.39 No lugar de maior destaque, junto do monarca, encontravam-se, sempre, os oficiais maiores da Casa Real, bem como as principais figuras da nobreza do reino. E esta aparição “pública” do rei rodeado pela aristocracia de linhagem era muito significativa, pois constituía sinal claro de que o monarca continuava a privilegiar a principal nobreza — profana, mas também eclesiástica — para os principais cargos da república e também para as mais avultadas mercês.40 Excluído ficava, por conseguinte, um grupo enorme de vassalos, onde se incluíam, desde logo, os endinheira­ dos, os mercadores e os financeiros, os quais, não obstante o seu poderio monetário — e, até, o seu protagonismo no financiamento da Coroa — , aca­ bavam por não estar representados no grupo que seguia mais próximo da família real. Para o escrutínio público, tal exclusão da “gente da mercancia” demonstrava que o rei não contava com este tipo de homens para o seu servi­ ço de confiança, e significava, para além disso, que o monarca, no tocante ao recrutamento dos seus servidores, continuava a privilegiar o critério do nasci­ mento — nobre — em detrim ento da ascensão social por via do dinheiro. Significava, no fundo, que o rei privilegiava o critério da antiguidade em de­ trim ento da promoção social recente, até porque “em matéria de precedên­ cias”, afirmava o D uque de Aveiro na década de 1640, entre “as Dignidades qualificadas preponderão as mais antigas [,..].”41 É que, para a sensibilidade da época, a antiguidade significava confiança, segurança e lealdade sólida, ao passo que a ascensão recente, por meio do dinheiro, era sinônimo de fortuna, de incerteza e de instabilidade moral. O grupo dos juristas, os chamados “letrados”, eram objeto do mesmo tipo de exclusão. É certo que eles estão presentes em certos momentos das entra­ das régias, mas é muito significativo que o rei nunca se faça acompanhar, nos lugares mais próximos da sua pessoa, de juristas, mas sim, e em vez deles, de grandes figuras da nobreza. Tal opção constituía mais um sinal claro de que o grupo socioprofissional dos “letrados”, apesar de controlar muitos setores da administração da Coroa, continuava a ter de se subordinar à aristocracia e aos seus valores. No entanto, e apesar de tudo o que acabou de ser referido, os organizado­ res da cerimônia possuíam uma certa margem para levar a cabo pequenas alterações ao programa cerimonial, por exemplo mediante a seleção, entre os

39 N orbert Elias & John L. Scotson. The Established and the Outsiders. Londres: Sagc, 1994. 40 Cf. o im portante trabalho de N uno Gonçalo Monteiro acerca desta temática: “O «ethos» da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança. Algumas notas sobre a Casa e o Serviço ao Rei”, in: Revista de História das Ideias (Coimbra), 7^:383-402, 1997. 41 Representação do D uque de Aveiro a D. João IV (post. 1640), Biblioteca Geral da Univer­ sidade de Coimbra (BGUC), cód. 584, f. 143.

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membros da nobreza, dos que iriam surgir em posição de destaque e de maior dignidade, 0 11 seja, mais próximo do rei. Esta era a forma de publicitarem, ante o olhar dos “representantes” dos diversos corpos do reino, a situação de predomínio de um qualquer dignitário clerical ou da aristocracia, já que as posições assumidas pelos diversos participantes refletiam a concorrência en­ tre as várias facções nobiliárquicas, no momento em que tinha lugar a cele­ bração. Em alguns casos podia ser o próprio rei a tomar a iniciativa de operar pequenas mas significativas fugas ao guião preestabelecido da entrada sole­ ne, e uma deferência especial feita pelo monarca a um dignitário, por exem ­ plo, era suficiente para desencadear um mundo de reações e de interpreta­ ções desencontradas. Efetivam ente, o modo como o rei costumava tratar os dignitários refletia “a mayoria, grandeza, e excellençia da pessoa”, tornando manifesta “a superioridade, que tem a outras Esta afirmação surge num parecer sobre cortesias de meados do século XVII, 0 qual explica, também, que era isso que fazia com que o rei “descubra a cabeça aos filhos dos Duques, o que não fas aos Condes porque a estes poem soo a mão no chapeo [,..]”.42 Podia ainda acontecer que a ordem cerimonial que era previamente anun­ ciada não fosse do agrado de alguns dos convocados, e tal costumava levar alguns dignitários a não participarem na solenidade. Como vimos, para esses dignitários era preferível faltar à chamada do que ocupar “publicam ente” uma posição que consideravam indigna do seu status. Para uma sensibilidade nobiliárquica tão vincada como a seiscentista, que tanto valor concedia a ques­ tões de honra e de privilégio, era intolerável participar em tal solenidade ocu­ pando um posto que não se considerava digno da sua posição. Além disso, não podemos esquecer que a insatisfação com o lugar que tinha sido atribuí­ do não era sentida apenas individualmente, podendo ser encarada como po­ tencial ameaça para o conjunto da ordem constitucional. Isso mesmo recorda o D uque de Aveiro, no decurso de uma amarga disputa de precedências com os demais duques, durante a segunda metade de Seiscentos. Nessa ocasião 0 D uque de Aveiro declarou ao rei que 0 desrespeito pela sua dignidade seria uma “diform idade”, e que, a acontecer, seria uma “monstruozidade turbatica da ordem estabeleçida, tanto em a Monarchia ecclesiastica como em a secu­ lar [,..]” .43 Não é de excluir, portanto, que uma parte dos intervenientes não se conformasse com o lugar ou “papel” que lhe tinha sido atribuído, e, nessas circunstâncias, os rituais, em vez de desem penharem função integradora e pacificadora, podiam provocar, pelo contrário, a radicalização de conflitos ou de tensões até aí apenas latentes.

42 “Precedências entre os duques e os condes”, meados do século XVII, BNL, Pombalina, cód. 734, f. 124v. 43 Representação do D uque de Aveiro a D. João IV (post. 1640), Biblioteca Geral da Univer­ sidade dc Coimbra, cód. 584, f. 143.

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Por acréscimo, referimos atrás que o dispositivo alegórico evocado nas en ­ tradas punha em cena uma visão da comunidade obviamente mais favorável ao grupo socialmente dominante, ou seja, a elite nobiliárquica e eclesiástica, a qual via reproduzida, desse modo, um ordenam ento que lhe assegurava, de forma exclusiva, um lugar proem inente junto do monarca. Perante isso, os grupos que, como vimos, não tinham acesso aos principais lugares de gover­ no poderiam mostrar-se avessos a participarem numa cerimônia que subli­ nhava uma situação que lhes era francamente desfavorável. Se tal aconteces­ se, o poder “pacificador” da entrada solene acabava também por se dissipar. Outra das formas de manifestar o desacordo com a cerimônia era a paródia. Na segunda m etade do século XVII Antônio Serrão de Crasto — figura des­ tacada da lisboeta Academia dos Singulares, poeta e autor de uma descrição da entrada da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia em Lisboa (1666) — re­ digiu uma descrição satírica da entrada solene, em Coimbra, do reitor da universidade. Nessa sátira o brasão da câmara de Coimbra surgia com pleta­ m ente adulterado, os professores e os colegiais desfilavam no cortejo sem obedecerem a nenhum a ordem, as divisas e as mensagens trocadas não faziam nenhum sentido, e, por fim, os vários emblemas e epigramas apresentavam uma significação jocosa, tudo isso com a finalidade de ridicularizar o evento. Como resultado desse temerário gesto, e também porque era cristão-novo, Serrão de Crasto acabou por cair em desgraça, sendo até preso, corria o ano de 1672, sinal de que a paródia a uma entrada solene, numa época que tanto valor concedia a esses eventos, podia ser encarada como um gesto subversivo para os fundamentos em que assentava a vida comunitária.44 Tomar parte na cerimônia, por outro lado, não significava o acordo com a mensagem que era aí transmitida. Como tal, em ocasiões de dissensão políti­ ca as várias sensibilidades em presença como que se insinuavam por dentro da comemoração régia, e, socorrendo-se da abundância decorativa e da polissemia da linguagem alegórica que era normalmente mobilizada para esses eventos, conseguiam introduzir imagens — verbais e pictóricas — eivadas de reivindicações, de advertências ou até de ameaças. Como se vê, tocamos aqui num aspecto que nos lembra algo que começamos por referir no início desta apresentação: estas cerimônias constituíam um espaço comunicacional ex­ trem am ente complexo, uma vez que a possibilidade de comunicar, a possibi­ lidade de ter voz durante as entradas solenes não era exclusiva dos promoto­ res do evento. Na verdade, os participantes conseguiam quase sempre emitir mensagens, muitas delas de caráter um tanto ambíguo, porque impregnadas quer por saudações e por declarações de fidelidade, quer por avisos, por ad­ vertências e até por reivindicações.

44 Antônio Serrão de Crasto. Os ratos da inquisição. Ed. por Camilo Castelo Branco. Porto: E. Chardron, 1883, p. 57.

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Assim, boa parte das entradas solenes realizadas no Portugal de Seiscentos constituíram grandiosas “trocas de recados” pluridirecionais e essencialmen­ te alegóricas, durante as quais muitos aproveitavam para enviar mensagens ao rei. Contudo, a comunicação não se ficava por aí, pois muitas dessas m en­ sagens podiam ter como destinatário um qualquer membro da Casa Real; noutros casos, era uma facção do grupo dirigente que constituía o alvo dessas “advertências”. 7'odavia, tal comunicação podia ainda assumir sentido mais horizontal, se um dignitário que se afirmara politicamente usasse a festa para publicitar a sua posição proeminente, ante o olhar dos demais protagonistas do processo político. Em 1619, escrevia uma testem unha da entrada solene de D. Filipe II em Lisboa, numa carta a um amigo, que “não posso passar em esquecim ento a soberba e M agestade com que o famozo Marquez de Vila Real deu assombro aos castelhanos, porque nunqua passeava na rua, ou fazia vizita com menos de 14 lacaios todos homens apessoados, calças e libré ne­ gras ao cortezam, espadas, e guarnições douradas [...], concluindo que o dito Marquês de Vila Real rivalizou até com o próprio monarca, pois nem El Rei saía com a magestade que elle [,..]”.45 Noutros casos, ainda, as diversas parcialidades aristocráticas digladiavamse entre si, envolvendo-se em verdadeiras batalhas alegóricas, nas quais as armas utilizadas eram emblemas ou imagens de significado engenhoso e ve­ lado, esforçando-se por declarar a sua supremacia de modo tão eloqüente quanto possível. Nesses combates alegóricos participavam ativamente as di­ versas academias que então existiam em Lisboa, às quais pertenciam, aliás, muitas das principais figuras da aristocracia e da elite eclesiástica daqueles anos.46 Os círculos acadêmicos eram desse modo mobilizados pelas diversas facções cortesãs, produzindo programas alegóricos que louvavam as virtudes de cada um dos chefes dessas parcialidades. Como se pode facilmente constatar, também no nível do cerimonial con­ cebido para as entradas solenes é notória uma situação de interdependência entre o rei e os diversos corpos que então compunham o reino: o rei necessitava da presença dos corpos do reino, para que essas festas fossem participadas, e para que o seu potencial legitimador se concretizasse, até porque sem a comparência dos representantes dos diversos grupos sociais, essas solenidades dei­ xavam pura e simplesmente de ter razão para existir. Os representantes do reino, por seu turno, utilizavam os recursos da monarquia para se afirmarem politicamente, e as festas em honra do rei não escapavam a esse aproveita­ 45 BNL, cód. 589, f. 60. 4,1 Cf. Sebastião da Fonseca Paiva. Applausos Festivos, E So/emnes Trivmphos com que os Heroes Portuguezes celebrarão ofeliz Casamento dos Dous Monarchas D. Affonso VI e D. M aria Francisca Isabel de Saboya Reys Felicíssimos de Portugal [...] (Lisboa: Antonio Craesbeeck de Mello, 1667); cf. Angela Barreto Xavier & Pedro Cardim. “Reddit quod Recipit. Imagens das festas de casamento de Afonso VI”, in: Festas que sefizeram [...], cit., 1996, p. 29ss.

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mento, bem pelo contrário, pois no decurso das entradas solenes acabavam quase sempre por surgir imagens e gestos verdadeiramente reivindicativos. 6. Os europeus levaram para a colônia brasileira a sua linguagem cerimo­ nial, uma linguagem necessariamente muito diferente da que fora desen­ volvida pelas populações autóctones. E à semelhança do que sucedera em outros territórios não europeus, tal situação gerou não só problemas de com u­ nicação mas também bastantes conflitos, os quais culminaram na repressão de formas cerimoniais autóctones e na imposição de uma série de festas oriun­ das da tradição cerimonial européia.47 No que respeita ao gênero de evento que aqui nos interessa, importa refe­ rir que a introdução da cerimônia da entrada solene na América do Sul aca­ bou por ser paralela à imposição do modelo comunitário europeu, ou seja, à imposição de um conceito de comunidade totalm ente estranho ao mundo sul-americano.48 Na verdade, um dos aspectos mais marcantes da colonização portuguesa em terras brasileiras foi o estabelecimento de uma estrutura co­ munitária fortem ente hierarquizada e discriminatória, com laços de submis­ são claramente definidos e com diferenças estatutárias muito acentuadas. Para além de ter ditado a exclusão de boa parte da população nativa e africana, esse modelo comunitário instaurou um sistema político que relegava as auto­ ridades brasileiras para uma posição de subordinação em relação à metrópole, e as entradas solenes que assinalavam a chegada do representante da Casa Real de Lisboa refletiam, necessariamente, essa subordinação. De uma for­ ma alegórica, tais cerimônias declaravam às entidades governativas brasilei­ ras que lhes estava vedado o acesso a níveis superiores de jurisdição e de comando, e que o seu papel era, e deveria continuar a ser, de subalternização em relação à metrópole.49 Por fim, o ritual apresentava o domínio de Portugal sobre o Brasil como algo de natural e inscrito nos planos da divindade, contri­ buindo, dessa forma, para tornar duradoura essa situação. Por outro lado, nas entradas realizadas em terras brasileiras é possível des­ cortinar a mesma dialética entre poderes concorrentes: de um lado, a Corte

47 Cf. com Inga C lendinnen. “«Fierce and unnatural cruelty»: Cortés and the conquest of Mexico”, in: Representations, 33:65-100, 1991; cf. tam bém James W. Fernandez. “Fang representations under acculturation”, in: P. Curtin. (org.). Africa and the West: Intellectual responses to European cu/ture. Madison, 1972, p. 43ss. 48 Stuart B. Schwartz. Sugar Plantations in the Formation o f Brazi/ian Society. Bahia, 1550-1835. Cambridge: Cambridge University Press, 1985, p. 243ss.; vide, também, dc Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989, p. 32ss. 49 Este estatuto politicamente subalterno do Brasil tem um paralelo no que Laura de Mello e Souza designou de “infernalização da colônia”, em Laura de Mello e Souza. O diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no B rasil colonial. São Paulo: Com pa­ nhia das Letras, 1986.

F, N T R A D A S S O L F . N E S

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de Lisboa, como centro político, e do outro as entidades políticas que opera­ vam num conjunto de territórios que se encontravam sob a alçada do rei de Portugal. Assim, a entrada solene assinalava a chegada do representante de um poder exterior, detentor de uma jurisdição preem inente sobre as auto­ ridades locais, as quais eram detentoras de um certo poder jurisdicional e, sobretudo, de um poder muito efetivo sobre essas vastas terras. Como não podia deixar de ser, tal situação gerava o mesmo tipo de diálogo e de concor­ rência entre os diversos poderes em presença. Da parte do enviado da Corte, a entrada visava apresentar essa figura que falava em nome do rei de Portu­ gal, e reivindicar, para ela, uma posição cimeira no am biente colonial brasilei­ ro. Para as entidades políticas autóctones — como era o caso das câmaras municipais das principais cidades, do oficialato autóctone, dos comerciantes, dos “senhores de engenho” e dos clérigos locais —, as entradas constituíam boa oportunidade para apresentarem as suas pretensões políticas e para ma­ nifestarem as suas reivindicações, a saber: o seu em penho em preservarem, incólume, o seu espaço de intervenção e, eventualm ente, em incrementa­ rem a sua autonomia em relação a Lisboa.50 Com efeito, no decurso desses eventos as entidades políticas brasileiras tinham a oportunidade de declarar — por vezes sutilm ente, noutros casos de forma bem aberta — que estavam cada vez menos dispostas a ver as suas competências cerceadas por uma au­ toridade exterior e estranha aos arranjos políticos locais. Como se pode constatar, e à semelhança do que sucedia em Lisboa, as cerimônias realizadas nesses territórios austrais proporcionavam aos diversos poderes em presença a oportunidade de manifestar as suas expectativas e, até, de contestar a situação de subalternidade política em que se encontra­ vam. E o fato de o monarca português, durante os séculos XVI e XVII, jamais ter visitado a colônia sul-americana, constitui um sinal claro de que a Corte de Lisboa encarava tais territórios como entidades políticas desprovidas de direitos, ou pelo menos detentoras de uma dignidade política diminuta, ao ponto de o rei nunca ter sentido necessidade de se deslocar até essas para­ gens para declarar a sua vontade em respeitar os direitos brasileiros. Ao longo deste texto referimos que a opção régia por visitar apenas algumas cidades, e por nunca se ter deslocado a outras, tinha implicações políticas muito sérias. Com efeito, a visita régia era encarada como um gesto de reconhecimento do rei, de que nessa cidade e na região onde ela estava instalada existiam entida­ des que desem penhavam funções governativas, e que tinham, por isso, o direito a serem respeitadas. Ao decidir não visitar nenhum a cidade brasileira,

50 João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho. Gregário de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Com panhia das Letras, 1984, p. 115ss.; vide também Rodrigo Bentes Monteiro. 0 rei no espelho. A monarquia portuguesa e a colonização da América, 1640-1720. T ese dc doutoram ento. São Paulo: Universidade de São Paulo, “Entre Festas e M otins”, p. 248ss.

124

PEDRO

C A R D IM

pelo contrário, o monarca relegava esse território para um plano secundário. Tal gesto tornava manifesto que o rei não sentia necessidade de ver as cida­ des do Brasil, significava que a realeza achava que esse território era indigno de ser visto, e considerava que as suas autoridades urbanas não eram sufi­ cientem ente preem inentes para terem o privilégio de avistar e de saudar o monarca. Dessa forma simbólica, recusava-se aos vassalos brasileiros a opor­ tunidade de comunicarem com o seu rei em terras austrais, e reiterava-se o seu papel secundário no processo político da metrópole. No mundo do Antigo Regime, por conseguinte, a presença do rei numa cidade tinha o condão de acelerar a dinâmica política e de incrementar o potencial político das corporações urbanas. “A ausência” — pelo contrário — “causa olvido”, dizia-se então.51 No fundo, a ausência do rei era como que a expressão simbólica da subalternização a que as autoridades portuguesas ti­ nham votado os territórios brasileiros, uma subalternização política, como vi­ mos, mas também econômica, comercial, financeira e até, de certo modo, intelectual.52 E não deixa de ser significativo que a única viagem que um rei de Portugal realizou ao Brasil acabasse por acontecer na véspera da definitiva separação política entre esses dois povos. □ □□ P e d r o C a r d i m (L isb o a, 1967), professo r d e H istó ria C u ltu ra l e P o lític a (sé c u ­ los XV a X V III) do D e p a rta m e n to d e H istó ria da U n iv e rsid a d e N o v a d e L isb o a. T e m p u b lic a d o vários artigos e livros acerca da cu ltu ra p o lítica no P o rtu g a l dos sécu lo s X V I e X V II, e n tre ele s o livro Festas que se F izeram Pelo Casamento do R ei D . A fonso VI (L isb o a: Q u e tz a l, 1996), em co-autoria com F e rn a n d o B ouza & A n g ela X avier. R E s u m o . E s te te x to in c id e so b re as im plicaçõ es políticas das e n tra d a s rég ias rea li­ zadas em P o rtu g a l e no Brasil colonial d u ra n te a ép o c a m o d e rn a . O p rim e iro a sp e c to co n sid erad o é o p ap e l d e s e m p e n h a d o p elo m e stre -d e -c e rim ô n ia s. D e se g u id a, a n a li­ sam os a im a g ética e x ib id a d u ra n te tais e v e n to s festivos, e d e d ic a m o s a te n ç ã o e s p e ­ cial às m e táfo ras do am or, da religião e da ju stiça. U m dos asp ec to s m ais su b lin h a d o s é o fato d e o ritual da e n tra d a so le n e - e as p ro m essas feitas n essa ocasião festiv a — se re v e stire m d e e n o rm e im p o rtân cia, n u m a ép o c a em q u e os laços m ais fu n d a m e n ­ tais e n tre o rei e os vassalos eram e s s e n c ia lm e n te m orais e p ré-ju ríd ico s. C o m o tal, d e d ica m o s u m a esp ec ial aten ç ão ao c o n trib u to d esses ritu ais para a re p ro d u ç ã o dos laços co m u n itá rio s, e, para além d e sse asp ecto , analisam o s ta m b é m a articu lação e n ­ tre as e n tra d a s so le n e s e a id e n tifica çã o do g ru p o d o m in a n te . N o final, são lan çad as alg u m as h ip ó te se s in te rp re ta tiv a s re sp e ita n te s às e n tra d a s so le n es q u e os re p r e s e n ­ ta n te s da C asa R eal p o rtu g u e sa realizaram em cid a d e s do Brasil colonial.

51 “Carta que se mandou a um amigo acerca das festas de Filipe I I ...”, BNL, cód. 589 f. 60v. 52 Stuart B. Schwartz. “T h e formation of a colonial identity in Brazil”, in: N. Canny & A. Pagden (orgs.). Colonial Identity in the Atlantic World, 1500-1800. Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 32ss.

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ENTRE FESTAS E MOTINS: AFIRMAÇÃO DO PODER RÉGIO BRAGANTINO NA AMÉRICA PORTUGUESA (1690-1763)1 Ro d r i g o B e n t e s M o n t e i r o

GUERRA

E REVOLTA

N o A n t i g o R e g i m e , a ausência de um rei provocava repercussões no cenário político mundial. Ao iniciar-se o século XVIII, terminava na Espanha o reinado do último Habsburgo, Carlos II, que representava a ruína do pode­ rio desse reino. Ainda o rei moribundo, as potências estrangeiras apressavamse em organizar a partilha da outrora mais poderosa monarquia do mundo. O testam ento de Carlos II legava ao neto de Luís XIV, Filipe, o Duque d ’Anjou, todos os domínios da coroa espanhola. No entanto, para as “potências maríti­ mas” — Inglaterra e Províncias Unidas — reconhecer Filipe d ’Anjou como rei significava ratificar a hegemonia francesa no continente, beneficiando-a com o império castelhano. Propunham então a candidatura do arquiduque Carlos Habsburgo de Áustria. Com a morte do rei infeliz, estava montado o quadro para a Guerra de Sucessão da Espatiha (1701-1713).2

1 O texto e uma adaptação do último capítulo dc minha tese dc doutorado, O Rei no Espelho A Monarquia Portuguesa e a Colonização da América (1640-1720), apresentada ao D epartamen­ to dc História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH /U SP), São Paulo, 1998, p. 248-99, sob orientação da professora Laura de Mello e Souza. Algumas das discussões aqui referidas são mais bem fundamentadas em capítulos precedentes da tese. 2 A promoção do Arquiduque Carlos Habsburgo à herdeiro do Sacro Império em 1711 desa­ gradou às demais potências. Firmava-sc assim pelos tratados de Utrecht em 1713 e 1714 um novo equilíbrio. A dinastia Bourbon era reconhecida na Espanha, mas Filipe V renun­ ciava a qualquer direito à França. E a Inglaterra, reconhecendo Filipe Bourbon no trono, conseguia vantagens no império espanhol, sendo a grande vitoriosa do confronto. Fernando

128

R O D R I G O BRNTKS M O N T E I R O

Portugal via-se em situação crítica. Por um lado, a “aliança inglesa” tinha raízes no casamento de Filipa de Lencastre com D. João I, confirmada em 1661 na união de Catarina da Bragança com Carlos II Stuart, momentos em que a independência portuguesa se encontrava ameaçada pela Espanha; a busca de proteção política acompanhada da concessão de favores comerciais ou de territórios ultramarinos. Conseguia-se assim preservar a autonomia, e a melhor parte — a partir do século XVII — de seus domínios no além-mar: o “Brasil”. Mas o “partido francês” era forte na Corte, após os casamentos dc D. Maria Francisca de Sabóia com D. Afonso VI e com D. Pedro. O governo de D. Pedro II hesitava, terminando por ceder à aliança inglesa, preservando assim os territórios no Ultramar das investidas inglesas ou holandesas. O tra­ tado de aliança negociado por John M ethuen em maio de 1703 acertava as cooperações militares. Em dezembro, seria firmado pelo mesmo negociante o tratado comercial, símbolo da dependência lusa para com a Inglaterra. A adesão de Portugal à guerra implicou um grande dispêndio de forças, com reflexos no Reino e nas conquistas ultramarinas. Nas cidades de Lisboa (1709-1710), Abrantes (1708) e Viseu (1710) ocorreram motins. O peso da guerra, somado à desorganização das finanças do Estado, provocava atraso do pagamento aos fornecedores do exército e soldados, que muitas vezes pro­ moviam insubordinações. A população se queixava do alojamento forçado das tropas, problemas de abastecimento e transportes.3 Na América portu­ guesa, além das invasões francesas no Rio de Janeiro em 1710 e 1711, o pe­ ríodo foi pródigo em conflitos sociais. Nos chamados “motins do M aneta”, em Salvador, 1711, a passagem do cargo de governador-geral favoreceu o tu ­ multo, quando negociantes manifestaram-se contra a taxação sobre os escra­ vos da Costa da Mina e de Angola, e a população gritava pelo aum ento do preço do sal. Em outubro, os revoltosos destruíram as casas de três comer­ ciantes. O novo governador Pedro de Vasconcelos voltava atrás no aum ento dos tributos, concedendo perdão aos rebeldes. Mas outro motim se repetiria, pretextando a formação de uma esquadra que socorresse o Rio de Janeiro ocupado por Duguay-Trouin. Com a partida dos franceses o movimento per­ deu o sentido, e Pedro de Vasconcelos puniu os envolvidos no segundo mo­ tim com o degredo dos três chefes para a África.4

Novais. Portugale B rasil na crise do Antigo Sistema Colonial. São Paulo: H ucitec, 1983, p. 1756. Cf. tam bém Damião Peres. História de Portugal. Barcelos: Portucalense, 1984, v. VI, p. 134-78. 3 Luís Ferrand de Almeida. “Motins populares no tem po dc D. João V”, in: Revista de Histó­ ria das Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1984, v. 6, p. 321-43, c “Os motins de Abrantes e Viseu (1708 e 1710)”, in: Revista Portuguesa de História. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1985, t. XXII, p. 137-48. 4 Laura dc Mello e Souza. M otins, revoltas e revoluções na América portuguesa — séculos XVIIXVIII. São Paulo, 1995 (texto cedido à Unesco, mimeo), p. 27-31.

E N T R E FESTAS E M O T I N S

129

A punição severa era reveladora de como os governantes tentavam “acer­ tar a mão” no castigo ou na concessão do perdão, nem sempre em consonân­ cia com o Reino.5 A busca da “medida” no lidar com as sublevações aparece­ ria também na Guerra dos Mascates em Pernambuco, largamente influenciada pela Guerra de Sucessão. Mas é sobre outro espaço social na América portu­ guesa que concentramos nossas atenções no momento. A descoberta de ouro pelos sertanistas de São Paulo no final do século XVII possibilitaria o surgi­ mento de uma nova região no interior, o sonho do reino europeu na época mercantilista. Mas até que este espaço fosse “regido” pela Coroa, vários mo­ mentos sociais seriam nele vividos. A formação da região das minas pode ser caracterizada pela aventura, pelos conflitos e rebeliões. Tempo de aventura. Além dos paulistas, as minas atraíram uma quantidade enorme de pessoas. Do sertão do rio São Francisco vinham negociantes de gado, da Bahia, comer­ ciantes de escravos. Mas vinham sobretudo novos mineradores em potencial, de outras regiões e do próprio Portugal, para concorrerem com os paulistas nas minas e na administração. O conflito que se anunciava reproduzia o aconte­ cido em Pernambuco, pelo antagonismo existente entre pioneiros paulistas e comerciantes forasteiros. Em abril de 1700, a câmara de São Paulo enviara a D. Pedro II um memo­ rial solicitando que só fossem concedidas datas de terras nas minas aos morado­ res das vilas de São Paulo e suas vizinhas, “os descobridores e conquistadores das ditas minas, a custa e gasto de sua fazenda sem dispêndio da fazenda real” . A linguagem era idêntica à utilizada pela câmara de Olinda no conflito com os mascates do Recife. Mas a pretensão paulistana era impossível de ser atendida. Em pouco tempo, os forasteiros já eram maioria.6 Entre eles, ia-se destacando Pascoal da Silva Guimarães, ex-caixeiro no Rio que se tornara comerciante nas Minas, aliado de outros, como M anuel N unes Viana, comer­ ciante de gado e mercadorias. Esses homens destacavam-se pelos recursos de que dispunham, utilizados especialmente nas técnicas de mineração. T

e m p o

d e

c o n f l i t o s

Vários teriam sido os fatores que haviam contribuído para a guerra, como o antagonismo entre N unes Viana e Manuel Borba Gato, ou a arrematação do contrato dos cortes de carne para as Minas em 1707. A partir de um duelo

5 Para o Conselho Ultramarino, o governador devia ter castigado com o enforcamento no primeiro motim, c não no segundo. Mandava-se assim um novo governador, c a Coroa mais uma vez capitulava diante da rebelião, ordenando que se transportasse livrem ente o sal. Ibidem . 6 Odilon Nogueira de Mattos. “A Guerra dos Emboabas”, in: Sérgio Buarque de Holanda (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985, v. 1, p. 297-8.

130

RODRIGO

BF. NTES M O N T E I R O

entre membros das duas facções, a briga se generalizou, e N unes Viana foi aclamado governador das Minas pelos forasteiros. O governador do Rio de Janeiro, D. Fernando de Lencastre, dirigia-se para Congonhas a encontrar-se com N unes Viana em busca de acordo, sem sucesso. N unes Viana já nomea­ va autoridades controlando a administração local, enquanto o sucessor no governo da capitania, Antônio de Albuquerque Coelho, dirigia-se para a re­ gião em agosto de 1709, a fim de obter a submissão do potentado, que se retirava para as suas fazendas do São Francisco. Os paulistas, no entanto, estavam decididos à vingança, e o conflito ainda se prolongaria por oito dias, sem ter a vitória definida. Como na Guerra dos Mascates, este movimento apresentava um apego dos potentados locais à escolha de autoridades administrativas afinadas com os interesses regionais, em contraposição ao governo da Coroa. Podemos obser­ var ainda a construção de uma tradição — a do bandeirismo paulista — como justificativa para o pleito de determinadas condições de governo, como em Pernambuco. A resposta da Coroa diante do movimento seria definida pela anistia concedida aos participantes, excetuando-se os cabeças M anuel N u ­ nes Viana e Bento do Amaral Coutinho, exilados das Minas. Mas na carta de D. João V a Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, em agosto de 1709, o rei recomendava agir com prudência: “[...] que sempre será mais seguro o recorrer aos meios brandos e suaves para se em endarem e moderarem estes movimentos entre uns e outros vassalos do que dos rigorosos de que podem nascer algumas perturbações, que não tenham depois fácil composição”.7 Segundo Evaldo Cabral de Mello, o Conselho Ultramarino teria sido mais enérgico em Pernambuco do que nas Minas, não somente pela dificuldade de acesso às Minas quando comparadas a Olinda ou a Recife, mas pelo fato de na Guerra dos Etuboabas não ter ocorrido sedição contra a autoridade da Coroa.8 Com efeito, o ocorrido em Pernambuco teria sido mais grave no sentido do desafio à autoridade régia. Mas as diferentes “respostas” da Coroa aos dois movimentos devem levar em conta as variações regionais e suas relações com o poder soberano. N a sedição da nobreza pernambucana, a moral da história consistiu no perdão régio, acompanhado da bipartição do núcleo urbano entre Olinda e Recife. Nas Minas também perdoou-se o conflito, e as instruções da Coroa recomendavam a brandura, reconhecendo de modo insuficiente os paulistas como os seus primeiros povoadores. Mas a criação da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, a elevação da vila de São Paulo a cidade, e nota-

7 “Carta dc D. João V a Antônio dc A lbuquerque Coelho de Carvalho sobre a Guerra dos Em boabas”, 22/8/1709, Documentos interessantes para a história e costumes de São Pauto (DIHCSP), v. 47. São Paulo: Tipografia Aurora, p. 62-5. 8 Evaldo Cabral dc Mello. A fronda dos mazombos. São Paulo: Com panhia das Letras, 1995, p. 317.

E N T R E F E S T A S F. M O T I N S

131

dam cnte a intensa ação urbanizadora nas Minas iniciada por Albuquerque Coelho após o conflito, comprovavam a importância dessa região em forma­ ção para o domínio português, e de maneira alguma podem ser associadas a falta de energia.9 Estas medidas já estavam previstas na carta que designava o governador para a nova capitania. De acordo com Mello e Souza, este docu­ mento reflete a relação entre o estabelecimento da justiça, da administração e a fundação das cidades, retratando ainda o “sistema de prêmio e recompensa” utilizado pelo Estado no seu trabalho de consolidação do poder.10 Pela criação de um sistema de clientela entre colonos e autoridades, a Coroa cooptava os de espírito aventureiro para a sua ordem, impondo o poder régio no seu topo, à medida que Albuquerque Coelho contemporizava com os revoltosos. TEMPO

DE

URBANIZAÇÃO

O novo governador da capitania fundava Vila do Ribeirão de Nossa Senho­ ra do Carmo, Vila Rica de Albuquerque e Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará em 1711. Seu sucessor D. Brás Baltasar da Silveira seria o responsável por São João del-Rei em 1713, Vila Nova da Rainha e Vila do Príncipe em 1714 e Nossa Senhora da Piedade do Pitangui em 1715. Por sua vez, o Conde de Assumar fundaria São José del-Rei em 1718." As idéias de Sérgio Buarque de Holanda encontraram no traçado irregular das ruas das cidades mineradoras a tradução para a sua lógica da colonização portuguesa na América. A silhueta urbana enlaçada com a linha da paisagem aparentava um certo “desleixo” que expressava o interesse mercantil, em contraposição à obsessão pela ordem característica da colonização castelhana.12 Mas a ação do semeador português nas ruas e casas tortas das vilas não significava apenas a fragilidade de um poder na América. O traçado tortuoso seria revelador de outra estratégia, percebida no jogo das relações sociais entre a Coroa e seus súditos coloniais: acomodação de situações, contemporizações, perdão. Es­ tratégias utilizadas como elementos de afirmação da autoridade régia, cooptando potentados locais. Tal como a cidade lusitana colonial, por entre mon­ tanhas e vales.

’ “Carta Régia criando a Capitania de S. Paulo e Minas do Ouro e nomeando governador da mesma a Antônio dc A lbuquerque Coelho de Carvalho”, 9/11/1709, DIHCSP, v. 47, p. 65 c ss, c “Carta dc Antônio dc A lbuquerque Coelho dc Carvalho a D. João V sobre o requeri­ mento da Câmara dc S. Paulo para que fossem restituídas aos paulistas as terras das minas de que haviam sido expulsos pelos Em boabas”, 26/4/1712, ibidem, p. 80-2. 10 Mello e Souza. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 103. 11 Diogo de Vasconcelos. História antiga de M inas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974, v. 2, p. 97-101. n Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, p.61-100.

132

RODRIGO BENTES MON TE IRO

TEMPO

DE

REBELIÕES

Tratava-se de im plem entar um sistema eficaz de tributação do ouro. O novo governador D. Pedro de Almeida Portugal, Conde de Assumar, chegava no final de 1717 e já trazia instruções para encaminhar a cobrança do quinto real mediante a criação de casas de fundição. A nova lei era decretada em fevereiro de 1719, o conde anunciando que as várias fundições seriam abertas em julho do ano seguinte.13 Então, no mês de junho, em Vila Rica grupos de homens mascarados começaram a depredar residências, gritando que o go­ vernador não abrisse as casas de fundição, violência repetida por vários dias. Os desordeiros dirigiram-se a Ribeirão do Carmo, entregando ao conde uma lista de reivindicações, das quais as principais eram a desistência das fundi­ ções e a concessão de um perdão régio ao movimento. Enquanto parecia con­ cordar com os pedidos, o conde-governador informava-se acerca dos envolvi­ dos no levante. Eram eles vários potentados, entre os quais Pascoal da Silva Guimarães e M anuel N unes Viana. Algumas semanas depois o conde prendia os chefes da rebelião, ocupando Ouro Preto com 1.500 homens, ao que parece ateando fogo no morro em que Pascoal da Silva minerava e mandando executar sem julgam ento formal o tropeiro Filipe dos Santos, apaniguado de Pascoal da Silva, ambos portugue­ ses. Essas duas últimas ações são bastante controvertidas historicamente, so­ bretudo a forma de suplício do tropeiro, pois a personagem de Filipe dos Santos viria a ser heroicizada, considerada precursora de outro mito nacional, o Tiradentes, como mártires na luta pela independência do Brasil.14 A destruição total por incêndio do morro do Ouro Podre de Pascoal da Silva em noite de vento (ele teria sido levado preso para Lisboa, de onde moveria processo contra o conde), bem como o esquartejam ento do corpo de Filipe dos Santos por quatro cavalos bravios (ele foi enforcado, talvez depois esquartejado, mas não dessa forma), são provavelmente idéias sem funda­ mento visando caracterizar o despotismo do conde e o clima aterrorizador vivido pelas Minas durante o seu governo. Mas as invenções historiográficas acerca do levante de 1720 podem ter no presente valor de símbolo. Pois pre­ tendiam denunciar uma situação de tirania pela execução sem julgam ento — o que de fato aconteceu — caricaturando dessa forma o abuso de poder nas ações ferozes do Conde de Assumar. Desse modo as alterações do evento de

13 Charles Boxer. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Nacional, 1969, p. 211-3. 14 Mello e Souza (org.). “Estudo crítico”, in: Discurso histórico epolítico sobre a sublevação que nas M inas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p. 13-25. Cf. também Feu de Carvalho. Ementário de história mineira — Filipe dos Santos Freire na sedição de Vila Rica em 1720. Belo Horizonte: Edições Históricas, s.d., e Diogo de Vasconcelos, op. cit.

E N T R E FESTAS E M O T I N S

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1720, ocorridas no século XIX, definiam para os rebeldes as punições — mesmo que consideradas injustas — próprias dos crimes de lesa-majestade no Antigo Regime, na contramão dos argumentos que enalteciam os revolto­ sos como líderes nacionais: fogo e suplício, destruição do corpo do acusado, espetáculo ritual.15 Ao que parece, o acontecido em 1720 foi um motim antifiscal. Mas muito tem po antes das deturpações do Instituto Histórico, o “tom ” sedicioso — até mesmo republicano e de crime de lesa-majestade — já era atribuído ao movi­ m ento de 1720, no próprio discurso produzido pelo Conde de Assumar junta­ m ente com dois padres jesuítas, como justificativa para seus atos nas Minas diante da Coroa portuguesa. Não há necessidade de enveredarmos pelo ca­ minho da discussão sobre a autoria do Discurso Histórico e Político Sobre a Sublevação que nas Minas Houve no Ano de 1720, questão já esclarecida por Laura de Mello e Souza. Destacamos apenas um aspecto, referente às relações dos vassalos ultramarinos com seu soberano. Para o Conde de Assumar, diferen­ tem ente do que havia sido até então a prática da monarquia portuguesa, a tônica da definição do poder do Rei nesta nova conquista ultramarina seria definida pelo castigo, não mais pelo perdão, castigo caracterizado pela quei­ ma do morro de Pascoal da Silva e pela execução de Filipe dos Santos. A segunda parte do documento legitima a punição imposta pelo conde em razão de os revoltosos planejarem a expulsão do governador e de outros fun­ cionários régios, além da fundação de uma república, argumentos falaciosos. A violência constante e os vários motins nas Minas foram atribuídos à falta de castigos impostos pelo rei. Inicia-se então no texto uma relação entre a apli­ cação do castigo e o “crédito de Sua M ajestade”, uma vez que deve ser papel do príncipe punir a rebelião.16 Definiam-se assim as relações perigosas entre o rei, os vassalos das Minas e os potentados locais, pela ausência de “reputação” do soberano na região. Reputação que segundo Botero — como citado no documento — incidiria no “reputado” (o rei) como uma ação passiva, ativa na parte dos reputantes (os vassalos) composta de temor e de amor pelo príncipe. No Discurso..., discor­ dava-se em parte desses argumentos, ao defender-se que tanto os soberanos quanto os súditos concorriam para a reputação dos primeiros, e que na busca

15 O esquartejam ento do corpo pela força de quatro cavalos foi aplicado nos casos dos assassi­ nos dos reis dc França, H enrique III c H enrique IV, em 1589 e em 1610. Em Portugal, não temos informações sobre penas tão brutais antes das reformas pombalinas e a conseqüente ampliação da legislação referente ao crime de lesa-majestade — estendida então aos minis­ tros do rei — , que culminaria no espetáculo dc execução dos Távoras em 1759, acusados dc tramar contra a vida de D. José I. Cf. Robert M uchembled. Le temps dessupp/ices. Paris: Armand Colin, 1992, e Pierrc Chevallicr. Les régtcides. Paris: Fayard, 1989. Cf. também K cnneth Maxwell. Marquês de Pombal, paradoxo do iluminismo, op. cit., p. 69-117. 16 Discurso..., op. cit., p. 146.

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RODRIGO

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de sua fama o príncipe deveria podar o que fosse “supérfluo e indigno” nos seus vassalos: os atrevimentos, as desobediências, as rebeldias. Enfatizava-se desse modo, o recurso ao temor — mais do que ao amor — para a construção da reputação principesca, pois: “[...] não há de estranhar que ignorem os mineiros que há rei que domine este país, onde nunca foi visto o seu raio [...] que com a espada na bainha não é possível sujeitar ao mundo, que só se pode governar com a torrente do sangue humano, concluindo que o príncipe que quiser reinar estabele­ ça, autorize e faça que à custa do sangue dos vassalos se guardem as suas leis [...] porque se não punir as maldades, não é príncipe em realidade, é uma representação e sombra de príncipe. Pois é certo que o decoro real nem se vincula ao cetro, nem se anexa à Coroa, avulta sim nos golpes do m ontante, no estrondo das artilharias, no tropel dos cavalos, e na multidão dos infantes, porque só onde se lhe tem em as forças é despótica a Sobe­ rania.” '7 Essa passagem alude à metáfora do sol como manifestação do poder régio, aspecto característico do reinado de D. João V. Contudo, o sol insinuado no Discurso... seria agressivo como um raio, similar a uma espada, e não propria­ m ente esplendoroso. O brilho régio sugerido no texto seria definido pela for­ ça das tropas militares, comparado ao despotismo, trecho em que percebe­ mos que o conde identificava-se com um perfil de monarquia que só surgiria em Portugal no reinado de D. José I. Se o soberano era comparado ao sol, os vassalos eram “como a flor gigante” que devia seguir seus movimentos.18 Contudo, por esta época o brilho do reinado de D. João V já começava a se manifestar, não propriamente da maneira advogada no Discurso... UM

SOL

DOURADO

No senso comum, o reinado de D. João V tornou-se famoso por suas ex­ centricidades. Rui Bebiano, em D. João V Poder e Espetáculo, realizaria um cotejam ento da historiografia portuguesa sobre esse soberano, tentando si­ tuar a personalidade régia como inserida num contexto mais amplo.19 Desse modo, se na primeira metade do século XIX encontramos trabalhos portu­ gueses comprometidos com o respeito à ordem monárquica, na segunda m e­ tade deste século ocorria uma depreciação deste rei, em consonância ao cres­ cimento do liberalismo político, associando a imagem joanina ao desperdício

17 Ibidem , p. 148. 18 Ibidem , p. 149 e 151. 19 Rui Bebiano. D. João V:poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987.

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das riquezas das Minas.20 Já no quarto decênio do século XX, o recuo do liberalismo em favorecimento de um ideal autoritário e enaltecedor dos valo­ res nacionais encontraria na obra organizada por Damião Peres sua mais di­ fundida expressão. Associava-se, assim, o prestígio do rei e de sua corte à reputação da nação portuguesa no estrangeiro.21 N um tempo mais recente, há coleções de história portuguesa nas quais ainda apareceria a velha tendên­ cia de julgamento em relação a este rei.22 Mas, na tentativa de fugir das caricaturas, Bebiano recorreria a uma conhe­ cida clave interpretativa — a do barroco — que se por um lado seria capaz de ensejar um raciocínio adequado para o contexto, comportaria o risco de levar à generalização de situações ocorridas em diferentes espaços e momentos. Desse modo os reinados de Filipe IV e Filipe V de Espanha, Luís XIV de França, e a Corte de Roma após o Concilio de Trento teriam apenas pontos comuns com D. João V.2-’ Para uma percepção mais afinada da realeza joanina, devemos considerar os dois enfoques aqui apresentados: a personalidade pública do monarca, e o seu meio cultural e político. Vamos analisar esse meio, recortando a situação específica da monarquia de Portugal e de parte de seu império ultramarino. Deixaremos de lado muitos aspectos relevantes para a compreensão deste período, para que não se perca o fio condutor do trabalho, definido pela busca da compreensão do comportamento da realeza portuguesa diante de seus vassalos americanos, bem como da imagem projetada por ela nestas provín­ cias do Ultramar.24 Retornemos ao tempo da aclamação de D. João V, janeiro de 1707, quando o novo rei tinha dezessete anos de idade. A aclamação aconteceria sobre uma

20 Essa tendência foi tipificada por Oliveira Martins: “Foi com eles que D. João V, c todo o Reino, puderam entregar-se ao entusiasmo desvairado dessa ópera ao divino, em que des­ perdiçaram os tesouros americanos. [...] c D. João V, enfatuado, corrompeu, e gastou, per­ vertendo-se tam bém a si e dilapidando toda a riqueza da Nação. Tal foi o rei” . Oliveira Martins. História de Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1988, p. 150. 21 O reinado dc D. João V cra entendido como uma “necessidade instante, uma afirmação de força, de poderio, sem o qual o Estado apareceria apagado, desprezível”. Angelo Ribeiro. “D. João V” , Damião Peres. Op. cit., p. 181-2. 22 Oliveira M arques afirma que esse reinado “[...] ficou famoso pela tendência do monarca em copiar Luís XIV e a corte francesa. O ouro do Brasil deu ao soberano e à maioria dos nobres a possibilidade de ostentarem opulência como nunca anteriorm ente. [...]. Como cm tantas cortes do século XVIII, a depravação moral ocupou lugar preponderante. O Rei — c com ele muitos nobres — gerou diversos filhos em freiras de diversos conventos, muitos dos quais se converteram em centro de prazer”. Oliveira Marques. História de Por­ tugal. Lisboa: Palas, 1985, v. II, p. 351. 23 Bebiano. Op. cit., p. 43-55. C f também José Antônio Maravall. La cultura dei barroco. Bar­ celona: Ariel, 1986. 24 D e acordo com as idéias de N orbert Elias. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, v. 2.

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ricamente decorada galeria de madeira construída no Terreiro do Paço, onde se colocavam as tropas. Muitos nobres também assistiam das janelas e dos balcões. Tapeçarias em homenagem a N uno Alvares Pereira, Nossa Senhora e São João conferiam uma impressão acolhedora ao interior do am biente feito como teatro.25 Seguiam-se então os elogios ao rei, discursos vários, dos quais destacamos as palavras do desembargador M anuel Lopes de Oliveira: “Dia também dos em que o Sol lá dessas altas esferas começa a voltar para este nosso hemisfério seu rosto e seus benéficos raios. E assim El-Rei nosso Se­ nhor, esplendíssimo Sol Oriente da nossa Lusitânia voltando para estes seus vassalos os raios da sua beneficência, queira aceitar os nossos obsequiosos rendim entos”.26 Embora essa aclamação conservasse elementos rituais da tradição monár­ quica portuguesa, ao menos uma novidade — além do maior luxo — tinha surgido. Os infantes D. Antônio, D. Manuel, ainda crianças e portanto deso­ brigados de prestar juram ento de fidelidade, foram no entanto constrangidos a fazê-lo, como o infante D. Francisco, irmão seguinte em idade ao novo rei. Tal disposição aludia ao fato de que, num tempo anterior, o próprio pai do novo rei usurpara o trono do irmão D. Afonso VI, ato este respaldado por pressão “popular”, e confirmado nas Cortes de 1668,1674,1677, 1679 e 1697, quando se legitimava finalmente a sucessão no futuro D. João V. Tratava-se assim, de fortalecer os instrumentos simbólicos de afirmação do poder, para que se evitassem situações análogas.27 Data justam ente dessa época o projeto de sagração do monarca, pondo em prática a antiga bula de Eugênio IV concedida ao Rei D. Duarte e sucessores. O núncio de Lisboa informava a Roma que o coroamento seria para bem cedo, e que o rei seria ungido, pois existiam nos arquivos régios documentos papais acordando este privilégio. Planejava-se, assim, uma situação de igualdade com França e Inglaterra. Contudo, Clemente XI em 1720 não concederia o direito de unção sobre a cabeça, limitando-se a acordar privilégios já concedidos aos 25 Auto do levantamento, e juram ento, que os grandes, títulos seculares, eclesiásticos, e mais pessoas, que se acharam presentes, fizeram ao muito alto e muito poderoso senhor E l-R ei D. João V Nosso Senhor... 11111101. Lisboa: Oficina dc Valentim da Costa Deslandes, 1707; Barbosa M acha­ do (org.). Autos de Cortes, e levantamentos ao trono dos sereníssimos príncipes, e reis de Portugal. s.n.t., t. II, p. 293-308. 26 Ibidem , p. 19. A comparação de D. João V com o sol já tinha aparecido no seu próprio “espelho”, escrito por Sebastião Pacheco Varela. Número vocal, exemplar, católico, epolítico, proposto no maior entre os santos o glorioso S. João Batista;para imitação do maior entre os príncipes o sereníssimo D. João V... Lisboa: Oficina dc Manoel Lopes Ferreira, 1702, p. 97-98. Esta metáfora não seria desenvolvida cm Portugal como cm França. Cf. o artigo — exagerado, em nosso ponto de vista — de Rui Bebiano. “D. João V, Rei-Sol”, in: Revista de História das Ideias. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade dc Coimbra, 1986, v. 8, p. 111-21. 27 Evocava-se neste aspecto ainda o ocorrido em 1385, quando os três estados nas Cortes preferiram a eleição do M estre dc Avis — D. João I — aos seus irmãos, não obstante sua menor legitimidade.

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reis de Portugal, permitindo que o patriarca de Lisboa presidisse a sagração. Frustrado em seus projetos, D. João V abstinha-se de realizar uma cerimônia na qual apareceria em plano inferior às outras cortes européias.28 O casamento de D. João V com D. Maria Ana de Áustria em 1708, irmã do Arquiduque Carlos, então pretendente ao trono espanhol, selava a opção por­ tuguesa na Guerra de Sucessão da Espanha, marcado por cerimônias esplendo­ rosas em Portugal e na Áustria desde o tempo de sua negociação, ainda com D. Pedro II. As festas de recepção em Lisboa foram preparadas durante um ano e meio, e duraram três dias, com o Terreiro do Paço ardendo em fogos de artifício.29 Seguiram-se as festas realizadas em Utrecht pela comemoração dos nascimentos dos príncipes D. Pedro (logo falecido) em 1713 e D. José em 1714, por intermédio da representação do Conde de Tarouca, embaixa­ dor português.30 Pouco depois, D. João V enviava o Conde de Ribeira Gran­ de como embaixador a Paris. Sua entrada pública seria outro momento de espetáculo grandiloqüente da monarquia lusitana, com moedas de ouro e prata com a efígie de D. João V sendo atiradas à população.-’1

28 O relato mais antigo da entronização dos reis de Portugal é de Rui de Pina (1440-1522), na aclamação de D. D uarte (1433-1438). A. Brásio concluía que D. D uarte se teria desinteres­ sado por qualquer cerimônia faustosa após o fracasso dc sua armada cm Tânger, em 1437. Uma cópia do cerimonial da sagração foi obtida em Londres na regência do infante D. Pedro (1438-1446), mas o interesse por este ritual só ressurgiria com D. João V. José Mattoso considerou A. Brásio dependente demais dos docum entos em sua versão de que a Coroa portuguesa não se interessava pela sagração. Cf. Bula que a instância de Eduardo Rei de Portugal lhe concedeu o Papa Eugênio 4 ° no ano de 1436 para ser ungido, e os mais reis de Portugal. Biblioteca Nacional, Lisboa (BNL). Reservados, 10, 1, 27; Antônio Brásio. “O problem a da sagração dos monarcas portugueses”, in: Anais da Academia Portuguesa de His­ tória, 1989, n.° 83, p. 34-43; e José Mattoso. “A coroação dos primeiros reis de Portugal”, in: A memória da Nação. Lisboa: Sá da Costa, p. 187-200. Ramalhosa Guerreiro observaria que docum entos da época da ascensão de D. João V empregavam “coroação” como sinônimo de “levantam ento” e de “aclamação”. O uso do termo seria abusivo, pois o ritual não in­ cluía a imposição da coroa, consagrada a Nossa Senhora da Conceição por D. João IV em 1646. Luís M anuel Ramalhosa Guerreiro. La représentation du pouvoir royalà l'âge baroque portugais (1687-1753). T h èse pour le doctorat en histoire sous la direction du Professeur Bernard Vincent. Paris: École des H autes Etudes en Sciences Sociales, 1995, v. 2, p. 9-65. 29 Relação dos artifícios dofogo, que sefazem no Terreiro do Paço, em obséquio dosfelicíssimos desposórios dos senhores D. João V e de D. M ariana de Áustria. Lisboa: Oficina de M anoel e José Lopes Ferreira, 1708. 30 Nicolas Chevallier. Relation desfêtes queson excellence Monseigneur le Comte de Tarouca a données au sujetdes naissances des deuxprinces de Portugal [...]. Utrecht: Chevallier, 1714; e Cópia de uma carta, que se escreveu de Utrecht a Lisboa, na qual [... ] os excelentíssimos senhores Conde de Tarouca & D. Luís da Cunha, plenipote/iciãrios del-Rei de Portugal no Congresso de Utrecht, cele­ braram o Augusto nascimento do Sereníssimo Príncipe do B rasil... Lisboa: Oficina dc Joseph Lopes Ferreira, 1713. 31 Inácio Barbosa Machado. Notícia da entrada pública quefe z na corte de Paris em 18 de agosto de 1715 o excelentíssimo senhor D. Luís M anuel da Câmara Conde da Ribeira Grande. Lisboa: Oficina de Joseph Lopes Ferreira, 1716. Ainda constituiriam eventos significativos para a demonstração do poder joanino no exterior, a embaixada enviada à China para o fortaleci­

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Manifestações mais grandiosas aconteceriam em Roma, na campanha pro­ tagonizada pelo rei português para a criação do patriarcado de Lisboa. C ontu­ do o fator decisivo para a aceitação da vontade do rei português pela Santa Sé seria a participação das tropas lusas no M editerrâneo contra o avanço dos turcos no Peloponeso. D. João V enviava a pedido do papa uma esquadra de onze navios que se juntaria à armada veneziana, derrotando os turcos em Matapan, junho de 1716. A bula criando o patriarcado de Lisboa seria expe­ dida no mesmo ano, com nova enviatura de embaixada do soberano portu­ guês a Roma, para agradecer a bênção. Em 1717 o primeiro patriarca lisboeta, membro da alta nobreza portuguesa, fazia sua entrada pública na capital do Reino, cerimônia esta de duplo significado, religioso e político.'2 Todas essas representações eram muito superiores em elaboração e dispêndios de riquezas aos casamentos de D. Catarina de Bragança em 1661, D. Afon­ so VI em 1666 e D. Pedro II em 1687, quando a corte de Lisboa ainda era marcada por certa austeridade, envolvida em conflitos internos e externos que limitavam sua exposição. Uma relativa paz e uma demonstração mais enfática da Corte já tinham sido conseguidas no reinado de D. Pedro II, mas ao que parece a personalidade taciturna do monarca era relacionada a um outro m un­ do, passado, e a guerra pelo trono da Espanha iria de novo alterar esta marcha. No tem po de D. João V, especificamente no último episódio mencionado — o da elevação do patriarcado — nota-se uma intenção da realeza portugue­ sa de se aproximar da pompa eclesiástica, fazendo-a muito diferente neste aspecto da realeza secular de Luís XIV. Esta intenção seria manifesta no seu em penho organizador da procissão de Corpus Christi, repleta de elem entos pagãos. D. João V transformaria substancialmente este ritual, convertendo-o num paradigma da associação dos poderes divino, eclesiástico e monárquico, cujo marco inicial seria dado pelo grande desfile em Lisboa realizado em junho de 1719.” A associação de poderes monárquico e religioso seria comprovada em ou­ tros eventos, notadam ente na construção do gigantesco palácio-convento de Mafra, obra iniciada em 1717 de forma solene, como resposta a uma promes­ sa feita pelo rei para o nascimento de um herdeiro — mais uma vez a junção

m ento de Macau em 1727, c a entrada do Marques dc Abrantes cm Madri em 1727, cm função do duplo casamento de príncipes espanhóis c portugueses, por meio da troca dc princesas na fronteira do rio Caia em 1729. 32 Antônio Caetano de Sousa. História genealógica da Casa Real Portuguesa. Lisboa: Oficina Silviana da Academia Real, 1741, tomo VIII, p. 122-6. C ontudo som ente em 1738 o barrete dc cardcal seria entregue ao patriarca dc Lisboa. Bebiano. Op. cit., p. 121-36. 33 Inácio Barbosa Machado. História crftico-cronológica da instituição da festa, procissão, e ofício do Corpo Santíssimo de Cristo no Venerável Sacramento da Eucaristia. Lisboa: Oficina Patriar­ cal de Francisco Luiz Ameno, 1759 (provavelmente manuscrita cm 1719), apud Bebiano. Op. cit., p. 122-9. M ovimento similar cm relação à monarquia francesa c às festas populares é tratado por Yves-Marie Bercé. Fête et révolte. Paris: Fayard, 1990.

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das duas esferas — atendida pelo nascimento da princesa D. Maria Bárbara. Os trabalhos seriam concluídos somente em 1730, constituindo a cerimônia outro estrondoso espetáculo régio e eclesiástico.34 M uito mais do que a caricatura de um reinado, os casos amorosos com freiras mantidos pelo rei e seus conseqüentes filhos bastardos (“híbridos” por assim dizer, das duas esferas) poderiam funcionar hoje como expressivos símbolos de uma vontade política, concretizada no corpo do rei, por meio de sua virilidade.35 Por trás do desejo de se instituir a sagração de D. João V, ou da aproximação crescente dos rituais monárquicos com os litúrgicos, do rei com a Igreja, havia a intenção de conferir mais sacralidade à realeza brigantina. Aspecto inusitado para a monarquia portuguesa, especialm ente no que se referia a um nível formal, institucionalizado e hierárquico, à semelhança dos casos francês e inglês. E não mais relacionado a um sentido popular, repleto de histórias maravilhosas, mais referentes a indivíduos do que a uma linha­ gem régia, como tinham sido os episódios do Milagre de Ourique, da rainha Santa Isabel, do Infante Santo, da princesa Joana ou do sebastianismo, surgi­ dos nas duas primeiras dinastias lusitanas.36 A vontade de sacralizar o poder régio português seria levada ao limite nos episódios concernentes à concessão pelo papa do título de Fidelíssimo aos reis lusos, quando por meio de uma pressão diplomática do secretário de Estado Diogo de M endonça Corte Real em 1733, instruía-se o representante da cor­ te lisboeta em Roma a valer-se dos exemplos análogos: Cristianíssimo para os reis franceses e Católico para os monarcas espanhóis. Segundo os documentos portugueses, esses seriam epítetos mencionados por pontífices passados em ocasiões fortuitas, utilizados como tradição pelos soberanos seguintes, no que foram acompanhados por Roma. Justificava-se assim o pleito da monarquia lusa, que lhe foi atribuído de “moto próprio” em 1748.37

34 Bebiano. Op. cit., p. 133-6. 35 Ao estabelecer curiosas analogias entre as vidas, as representações artísticas e os corpos dos monarcas na Europa moderna, Sérgio Bertelli abriria caminho para este tipo de ilação. Sergio Bertelli. 11 corpo dei re. Florença: Ponte Alie Grazie, 1995. 36 Sobre a esposa de D. Dinis, cf. Diogo Afonso. Vida e milagres da gloriosa Rainha Santa Isabel... Coimbra: João de Bezerra, 1560; Vasco M. Castelo-Branco. Discurso sobre a vida e morte de Santa Isabel... Lisboa: Manoel Lira, 1596; e D. Isabel de Aragão, a Rainha Santa. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993, 2 vols. (ed. fac-similada). Sobre a princesa Joana, irmã de D. João II, cf. Nicolau Dias. Vida da Sereníssima Princesa Joana... Lisboa: Antônio Alvarez, 1594; Lucas de Andrade. “Breve relação do que sucedeu depois da morte da Sereníssima Senhora Dona Joana, infanta dc Portugal” . Lisboa: Antônio Alvarez, 1654; e Barbosa Machado (org.). Notícias das últimas ações e exéquias de reis, rainhas e príncipes de Portugal, s.n.t.., 1.1. Sobre o infante D. Fernando, filho dc D. João I c morto em T ânger em 1437, cf. o artigo de Paulo Drum mond Braga. “O mito do Infante Santo”, in: Ler história. Lisboa: Salamandra, 1994, p. 3-10. 37 Diogo Corte Real escrevia que D. João V rejeitava o título de Propagador da fé, por ser comprido e não se adaptar com “M ajestade”. Sobre os títulos de soberanos, detinha-se no

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ROD RIG O BENTES MON TE IRO

A

FESTA

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Nas memórias que escreveu ao longo de sua vida como homem da Corte entre os reinados de D. Pedro II e de D. João V, o Conde de Povolide deixa transparecer uma mudança de mentalidade. Nos primeiros capítulos, ocupase em contar as intrigas da Corte envolvendo os irmãos D. Afonso e D. Pedro, que disputavam o trono com suas respectivas facções, como se estivesse a contar a história do próprio Portugal, os acontecimentos da Corte misturados a outros de dimensão internacional, mormente a guerra com a Espanha. A corte como microcosmo político do país, o trono frágil como causa — ou refle­ xo — da situação política internacional, sintoma da vulnerabilidade do Rei­ no.38 Contudo, ao terminar a Guerra de Sucessão da Espati/ia, a estabilidade política portuguesa era favorecida pelo afluxo de riquezas minerais oriundas da região americana. Tais fatores compunham um quadro no qual o já idoso conde adquiria um respeito pela figura do soberano, isentando-a dos conflitos entre cortesãos, ao mesmo tempo que aumentavam as descrições do fausto da monarquia m ediante os rituais.39 Parecia então que o rei Bragança tomava consciência do seu poder, e dava conta dele para seus súditos. Essa tomada de consciência vinculava a personalidade pública de D. João V à prática do Estado, quando dizia: — “M eu avô deveu e temeu, meu pai deveu, eu não temo nem devo” , em analogia com Luís XIV. Pois diferentem ente de D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II, D. João V não convocaria cortes em nenhum mo­ mento de seu longo reinado (1707-1750), num expressivo sinal de supremacia do poder régio. Mas não somente. A frase atribuída ao monarca português era reveladora da sua consciência histórica de fortalecimento do poder régio dos Braganças. E essa disciplina, tão incentivada nos espelhos de príncipes, iria motivar a fundação da Academia Real de História em dezembro de 1720. Nobres letrados da Corte encarregavam-se de enviar questionários aos arcebispados e bispados, cartórios eclesiásticos, cabidos, câmaras municipais e

caso franccs, quando a antonomásia dc Carlos Magno tornara-se tradição, c no espanhol, quando Fernando de Aragão e Isabel de Castela foram chamados de Católicos pelo papa. Propunha então o de Fideltssimo, que, apesar de já utilizado pelos reis de Navarra, caíra cm desuso pelo esfacelam ento desta monarquia. Cf. Cartas de 6/8/1733 e de 11/8/1733. Lis­ boa: Biblioteca do Palácio Nacional d ’Ajuda (BPNA), códice 54-XIII-8-295 c n.” 296. Cf. tam bém José Ferreira Borges de Castro (org.). Coleção dos tratados, convenções, contratos e atos públicos celebrados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente. Lisboa: Im prensa Nacional, 1856-1858, t. 2, p. 328-35. Agradecemos ao professor José Pedro Paiva pela indicação. 38 Memórias de Tristão da Cunha de Ataídc, primeiro Conde de Povolide. Portugal, I.isboa e a Corte nos reinados de D. Pedro II e D. João V. Lisboa: Chaves Ferreira — Coleção Fundação Cidade de Lisboa, 1990. 39 Ibidem.

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provedorias de todo o Reino, a fim de se obter informações para a escrita de “uma completa história de Portugal, eclesiástica e secular” sob o patrocínio do rei.40 A Coroa portuguesa apropriava-se de sua própria história, para re­ contá-la no sentido do enaltecimento do poder régio, em associação com a história eclesiástica lusitana. Não há como explicar melhor os destinos ainda tão pouco esclarecidos desta instituição.41 Mas dela surgiriam obras como a História Genealógica da Casa Real Portuguesa, de Antônio Caetano de Sousa, concretização desses ideais. D iferentem ente dos espelhos de príncipes, a pro­ posta da obra, como de toda a Academia Real de História, não estava em dizer mais o que o rei “devia ser”, mas em afirmar o que os soberanos de fato “foram” no passado, ou “eram” no presente, devolvendo para os súditos a imagem régia acabada, como nos espetáculos rituais.42 Eram destacados assim o “santo” D. Afonso Henriques, o “valoroso” D. João I, e D. João II, como Príncipe Perfeito. Em D. M anuel observava-se a sua “fortuna”, em D. João III a sua “m ajestade”. Em caso de falhas dos sobera­ nos, a culpa era atribuída aos “maus conselheiros” ou validos, como nos rei­ nados de D. Sancho II, D. Sebastião e D. Afonso VI. O governo filipino era ignorado na obra. D. João IV era “mártir” por ter aceito a Coroa contrariando sua vontade particular. Dedicava-se então o autor à legitimação da Casa de Bragança, prim eiram ente pela genealogia, atrelando-a ao primeiro rei de Por­ tugal.43 Mas tam bém pela magnificência — dado especialmente interessan­ te para o reinado de D. João V — sobre as “excelências, e glórias da Serenís­ sima Casa de Bragança”. A mesma interpretação era realizada ao observar-se a figura do infante D. Pedro, futuro D. Pedro II: “[...] com aspecto tão ma­ jestoso, que a sua pessoa, vista entre outras, não podia entrar em dúvida que era Real, pela majestade da presença”.44 Desse modo associava-se a aparên­

40 M anuel Teles da Silva, Marquês de Alegrete. História da Academia Real da História Portu­ guesa. Lisboa: Oficina de José Antônio da Silva, 1727; e Maria José Mexia Bigotte Chorão (org.). “Notícias da Conferência, que a Academia Real da História Portuguesa fez em 5 de janeiro de 1721”, in: Revista de História Econômica e Social. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1987, n.° 21, p. 123. 41 Em 1721 foi publicado um volum e com docum entos e memórias da Academia. Em 1727 M anuel Teles da Silva, publicaria o primeiro volume da obra H istória da Academia Real da H istória Portuguesa, op. cit., que não foi seguido de outros. Em 1736, surgia o tomo 16." da coleção de docum entos e memórias. A Academia teria entrado em decadência a partir de 1755, sobrevivendo de maneira honorífica até 1794. “Subsídios para a história da Academia Real da História Portuguesa”, in: Anais da Academia Portuguesa de H istória, II série, p. 43-68. 42 Caetano de Sousa. Op. cit. Cf. também Isabel Maria H. F. da Mota. “A imagem do rei na história genealógica da casa real portuguesa”, in: Revista de História das Ideias. Cultura Po­ lítica e Alenta/idades. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1989, v. 11, p. 103-11. 4;! Caetano de Sousa. Op. cit., t. VI, cap. XX. 44 Ibidem , t. VII, p. 372-3.

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cia à essência, tônica do reinado de D. João V, descrito como “o mais feliz Im pério” a ser garantido pela atual casa reinante.45 Assim como o Conde de Povolide, Antônio Caetano de Sousa e o bibliófilo Diogo Barbosa Machado,46 o conselheiro Antônio Rodrigues da Costa e o Conde de Assumar foram membros da Academia. Essas duas personalidades singulares já tinham revelado muitos pontos comuns em suas idéias sobre a manifestação do poder régio na América portuguesa, seja no próprio Reino, pelos pareceres do Conselho Ultramarino diante da sedição dos senhores de Olinda, seja nas Minas, na defesa do castigo aplicado em 1720. Contudo, na Academia o conselheiro e o conde indicariam uma outra face de suas relações com o poder soberano, na confecção de peças laudatórias e comemorativas.47 Curiosamente, essas obras seriam produzidas quando outra forma de ex­ pressão do poder português se afirmava no mundo ultramarino, maneira esta que não era a apregoada por Rodrigues da Costa e Assumar durante o enfrentam ento de suas “rebeliões”. Embora a rigidez da administração régia no Reino e no ultramar americano fosse aum entando até o ápice na época pombalina, o reinado de D. João V pode ser tipificado como de festas e de repre­ sentações. Festividades como casamentos, entradas e embaixadas no Reino e no estrangeiro, mas também festividades no mundo americano, onde se faz gritante o aum ento numérico e o requinte das solenidades em louvor à mo­ narquia neste período.48 Afinal, a lógica que valeria para o Reino mostrava a sua procedência também para as conquistas. Diante dos am bientes tum ul­ tuados no velho ou no Novo Mundo, era preciso reagir com a criação de uma atmosfera de envolvimento, na qual os súditos fossem contagiados pelo bri­

45 Ibidem , t. VIII, p. 2. 46 Diogo Barbosa Machado (1682-1772), abade dc Sevcr, entre várias obras ligadas à Acade­ mia, ficou conhecido por trabalhos monumentais como a Biblioteca L usitana..., op. cit., uma compilação em quatro tomos de autores portugueses e suas obras dedicada a D. João V. Sua coleção de opúsculos raros do império português organizados cm mais de sessenta volu­ mes foi doada a D. José I após o terrem oto de 1755. Em 1807-1808, este acervo seria transferido para o Brasil, disponível na Biblioteca Nacional — Rio dc Janeiro. Ramiz Galvão. “Diogo Barbosa Machado”, in: Anais da Biblioteca Nacional , Rio de Janeiro (ABN-RJ), 1972, v. 92, t. 1, p. 11-44. 47 Rodrigues da Costa tam bém seria um dos membros fundadores d i Academia. M anoel Teles da Silva. “Elogio de Antônio Rodrigues da Costa [...] na Academia Real dc História Portu­ guesa”. Lisboa Ocidental: Oficina de José Antônio da Silva, 1732; Barbosa Machado (org.). Elogios fúnebres de varões portugueses, s.n.t., t. I., p. 114-9. Q uanto a Assumar, “Panegírico para se recitar no dia 22 de outubro de 1736, cm que se celebraram os anos de El-Rci Nosso Senhor”; Barbosa Machado (org.). Aplausos oratórios epoéticos ao complemento dos anos dos Sereníssimos Reis, Rainhas, e Príncipes de Portugal, s.n.t., t. II, p. 37-46. 4S D c simples portarias para se dar cera para as luminárias, ou cartas solicitando o envio dos donativos para casamentos reais, passa-se no período joanino a festividades mais elabora­ das nas cidades coloniais. Cf. a título de exemplo vários docum entos da série D IH C SP, op. cit., especialm ente volumes 5, 9, 32, 33, 67 e 68 para os reinados de D. Afonso VI e D. Pedro II, c volumes 34, 39, 42, 53, 54 c 65, para D. João V.

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lho dos raios de seu soberano, não somente pelo temor, mas sobretudo pelo amor. Afetos bem expressos nas comemorações da aclamação joanina, nos casamentos, nascimentos de príncipes e até mesmo na morte do monarca português, que teriam lugar sobretudo na Bahia, sede do governo-geral, a partir da primeira m etade do século XVIII.49 Rodrigues da Costa redigira em 1707 um parecer solicitado pelo novo rei, aprovando a descrição de Sebastião da Rocha Pita sobre as exéquias de D. Pedro II na Bahia. Em suas palavras podemos perceber nitidam ente este aspecto, agora enfatizado, de expressão do poder régio no Ultramar, pois: “[...] nas verdadeiras manifestações de sentimento que aqueles vassalos deram naquele fatal golpe, se veja com evidência que a fidelidade portuguesa, e o amor com que esta fidelíssima nação ama aos seus príncipes, é tão constante, e apartado que seja, é poderoso a diminuir-lhe o ardor do seu afeto, e a gran­ deza da sua veneração; antes parece que quanto os portugueses mais se afas­ tam da sua origem e do berço em que nasceram, tanto maior é o obséquio que tributam à M ajestade, imitando nesta parte a natureza dos rios, que quanto mais se apartam de suas fontes, tanto maior tributo, e veneração rendem ao Oceano donde receberam o ser”.50 Pelo raciocínio empregado com relação ao castigo dos motins, desenvolvi­ do por Assumar, a distância entre a conquista ultramarina e o Reino dificulta­ va a manifestação do poder régio e a aplicação da pena, favorecendo as rebe­ liões nos domínios longínquos. Mas, no que tocava às festividades, o sentido da idéia exposta por Rodrigues da Costa era contrário. Elas possibilitariam maior enaltecim ento do soberano inacessível, que por isso seria mais ideali­ zado. As idéias de Antônio Rodrigues da Costa também eram contrárias ao texto do Padre Antônio Vieira, trabalhado por Laura de Mello e Souza.3' O

49 Cf. Memória da aclamação Ho Sereníssimo Rei D. João V na CiHaHe Ha Bahia. Bahia, 4/6/1707; João de Brito. Poema festivo, breve recompilação Has solenesfestas, que obsequiosa a Bahia tribu­ tou em aplauso Has semprefaustas, régias boHas Hos sereníssimos Príncipes Ho B rasil, e Has Astúrias com as ínclitas princesas He Portugal, e Castela, HirigiHas pelo Excelentíssimo Vice-Rei Heste EstaHo... Lisboa: Oficina de Música, 1729, p. 193-215; Castro, Álvaro Pereira de. “Obsequiosa dem onstração, com que as quatro partes do m undo festejaram o feliz nascim ento do Sereníssimo Príncipe D. Pedro augusto filho dos [...] reis D. João V e D. M ariana...”. Lisboa: O ficina de M iguel M anescal, 1713; Barbosa M achado (org.). Genetlíacos Hos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes He Portugal, s.n.t, t. III, p. 30-5; c João Borges dc Barros. “Relação panegírica das honras funerais que as memórias do [...] Senhor [...] D. João V consagrou a cidade da Bahia corte da Amcrica Portuguesa...”. Lisboa: Régia Oficina Silviana, 1753; Barbosa Machado (org.). Notícias Has últimas ações e exéquias He Reis, Rainhas, e Prínci­ pes He Portugal, s.n.t., t. III. p. 4-24. 50 Cf. o parcccr do conselheiro Antônio Rodrigues da Costa na página inicial em Sebastião da Rocha Pita. Breve compêndio e narração Ho fúnebre espetáculo, que a insigne ciHaHe Ha Bahia cabeça Ha América portuguesa, se viu na morte He E l-R ei D. PeHro II... Lisboa: Oficina de Valcntim da Costa Deslandes, 1709. 51 “A sombra, quando o sol está no zenite, é muito pequenina, c toda sc vos m ete debaixo

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RODRIGO

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Padre Antônio Vieira e o Conselheiro Antônio Rodrigues da Costa estavam situados em momentos diversos do exercício do poder monárquico portu­ guês na América. O primeiro, quando imperava a fragilidade — lembremos das propostas do jesuíta de entregar Pernambuco aos holandeses. O segundo, vislumbrando uma outra possibilidade de manifestação deste poder: como se a Corte portuguesa, pelas festas coloniais, desem penhasse papel sem elhante ao realizado anteriorm ente na aurora dos Tempos Modernos, quando ainda era itinerante e se deslocava pelo Reino, afirmando o seu poder perante os vassalos, que a viam assim pela primeira vez.'’2 Essa maior adoração da monarquia na América portuguesa coincidia com o momento em que ela assumia para si a sua função colonizadora, por meio do maior controle administrativo, 0 11 do reforço das representações simbólicas. O rei português e a sua corte deixavam de ser “escondidos” no Reino, estenden­ do então os braços aos súditos de regiões distantes, fazendo-se amados tam­ bém por esses vassalos ultramarinos, à medida que se mostravam para eles. Liberto dos conflitos internos e externos que dificultavam sua maior expres­ são, o rei da dinastia Bragança tomava enfim consciência de sua condição, pas­ sando a exercer seu poder progressivamente com mais firmeza, e demonstran­ do-o de forma espetacular para seus vassalos, até mesmo os de além-mar.53 As demonstrações mais enfáticas da Corte portuguesa no Reino e no es­ trangeiro eram possibilitadas pelas riquezas minerais advindas da América. Nos relatos das representações, eram freqüentes as referências ao ouro e aos diamantes do Brasil como suportes para a magnificência das festas. Nas m e­ mórias do Conde de Povolide, a narrativa das festividades públicas era entrecortada pelo tempo da chegada das frotas do Rio de Janeiro, raciocínio

dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se estende tão im ensam ente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim, nem mais nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está no zênite, não só se m etem estas sombras debaixo dos pés do príncipe, senão tam bém dos seus ministros. Mas quando chegam àquelas índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde sc põe, crescem tanto as mesmas sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis de que são imagens.” Padre Antônio Vieira, apud Mello e Souza. Desclassificados..., op. cit., p. 91. 52 Ana Maria Alves. Aí entradas régias portuguesas. Lisboa: Livros Horizonte, s.d. Tam bém lembramos do “tour de France” na menoridade de Carlos IX trabalhado tanto por Emmanuel L e Roy Ladurie quanto por Yves-Marie Bercé como significativo para a manifestação do poder régio dos Valois perante a França de meados do século XVI. L e Roy Ladurie. 0 Estado monárquico. São Paulo: Com panhia das Letras, 1994, p. 109-202; e Yves Bercé. L eroi caché. Paris: Fayard, 1990, p. 378-415. 53 A designação de “colônias”, percebida na correspondência ultramarina a partir de meados do século XVIII, não estaria som ente relacionada à “tomada de consciência dos colonos de sua condição”. Afirma-se aqui que também os colonizadores, capitaneados pelo rei, ti­ nham tomado consciência de sua condição num tem po anterior recente, durante a primeira m etade dos setecentos. Ilmar Rohloff de Mattos. “A moeda colonial”, in\0tem posaquarem a. São Paulo: Hucitec, 1987, p. 18-33; e Carlos G uilherm e Mota. Idéia de revolução no Brasil (1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979.

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expressivo que associava a região preciosa à riqueza demonstrada pelo reino português.54 A América, como espelho do Rei, refletia o seu brilho. As repre­ sentações simbólicas passariam a desempenhar um papel especial como ele­ mentos organizadores da sociedade nas Minas durante o reinado joanino. De início, festividades religiosas e ao mesmo tempo profanas, caracterizadas pelo congraçamento dos seus grupos sociais e a atenuação dos conflitos, manifesta­ ções da euforia pelas riquezas conseguidas na região, cantada como “a pérola preciosa do Brasil” .55 Nessas festividades, a sociedade colonial era represen­ tada hierarquicamente de forma teatral, enxergando-se a si mesma e dandose a ver de maneira extraordinária.56 D e maneira gradual, os poderes colonizadores evidenciavam-se nesses eventos, nas Minas ou no seu principal porto, a cidade do Rio de Janeiro. A começar pelos eclesiásticos. Ao lado dos párocos e dos bispos, objetivavam-se progressivamente as autoridades governamentais, representantes na Améri­ ca do poder monárquico. A associação entre liturgia e realeza iria mais uma vez manifestar-se, tendo como ponto culminante as exéquias de D. João V em São João del-Rei. Pela celebração litúrgica, na região, da morte do sobera­ no, consolidava-se enfim o poder monárquico português nas Minas.37 A morte de D. João V marcaria o início de uma nova fase de manifestação da realeza lusitana, caracterizada pela maior atuação do Estado na América portuguesa durante o reinado de D. José I. A presença mais opressiva do Estado expressava-se por medidas administrativas, como a instalação de ou­ tro tribunal da Relação em 1750 no Rio de Janeiro — mais próximo das Mi­

54 Memórias do Conde de Povolide, op. cit. 55 Simão Ferreira Machado. “Triunfo eucarístico, exemplar da cristandade lusitana” . Lisboa Ocidental: Oficina de Música, 1734; Affonso Ávila (org.). Resíduos seiscentistas em M inas — textos do século do ouro. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1967, v. 1, p. 131-283. 56 Evento similar à criação do bispado de Mariana em 1748 tinha acontecido no Rio de Janei­ ro um ano antes, na entrada do novo bispo D. Fr. Antônio do Desterro, contando com a participação de Gomes Freire de Andrada, Conde de Bobadela, nesta época governador do Rio e tam bém das Minas, o que bem expressava a relação estreita entre a cidade porto e a região mineradora. Francisco Ribeiro da Silva. “Áureo trono episcopal, colocado nas minas do ouro” . Lisboa: Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1749; Affonso Ávila (org.). Op. cit., v. 2, p. 335-592; e Luís Antônio Rosado da Cunha. “Relação da entrada que fez o excelentíssimo e reverendíssimo senhor D. Fr. Antônio do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: Segunda Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1747; Barbosa Machado (org.). Elogios oratórios epoéticos dos cardeais, arcebispos, bispos eprelados portugueses, s.n.t., t. II (1739-1768), p. 196-206. Cf. também Mello e Souza. “O falso fausto”, in: Desclassificados..., op. cit., p. 19-49; e Affonso Ávila. O lúdico e as projeções do mundo batroco. São Paulo: Perspectiva, 1980. 57 M anoel Joseph Corrêa e Alvarenga. Monumento do agradecimento, tributo da veneração, obelisco funeral do obséquio, relação fie l das reais exéquias [...] do fdelíssim o e augustíssimo rei o senhor D. João V [...] oferecida ao muito alto epoderoso rei D. JoséI, nosso senhor. Lisboa: Oficina de Francisco da Silva, 1751.

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ROD RIG O BENTES MON TE IRO

nas — ou pela transferência da capital, de Salvador para o Rio em 1763 — nova sede oficial do “vice-reinado” — status a dar conta da submissão e da importância adquirida pelo mundo ultramarino americano para a Coroa, tudo isto acontecendo em meio à decadência da produção aurífera. Mas o Estado enfim absolutista também manifestava-se pelo incremento das representa­ ções em louvor à monarquia, quando as festas por natalícios, casamentos e mortes dos príncipes portugueses adquiriam enfim sua expressão máxima.58 Em conclusivo, pode-se afirmar que as festas na América portuguesa afir­ mavam-se como um reforço do poder monárquico brigantino, tanto quanto os motins tinham sido entendidos no sentido inverso, como desafio a este mesmo poder. O processo histórico que passou do tempo dos motins ao tem ­ po das festas coincidia com a maior conscientização da realeza portuguesa, no referente à sua função colonizadora no Ultramar americano. O despotismo do Marquês de Pombal por D. José I exorcizaria o fantasma da tirania, aspecto tão combatido pelos primeiros reis brigantinos, para com os outros e neles mesmos. Essa tomada de consciência do poder régio português manifestavase também no Ultramar americano, onde o rei afirmava-se enfim como o maior de todos os colonizadores. As festas “coloniais” — na plenitude da acepção do termo — surgiam assim como o contraponto que evitava o perigo dos motins, nas relações do poder régio lusitano com os seus leais vassalos de além-mar. □ □□ R o d r i g o B e n t e s M o n t e i r o , mestre e doutor em História Social pela Fa­ culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), é professor de História do Brasil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Colégio Teresiano Cap/PUC-Rio).

R e s u M o . A Guerra de Sucessão da Espanha favoreceria o surgimento de rebeliões na América portuguesa, onde se assistia à formação da região das Minas. Se as revoltas mineiras não podiam ser definidas como antimonárquicas, uma delas foi interpretada

58 “Epanáfora festiva ou relação sumária das festas com que na cidade do Rio de Janeiro, capital do Brasil, se celebrou o feliz nascimento do sereníssimo Príncipe da Beira, nosso senhor”. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1763; e “Relação dos obsequiosos festejos que se fizeram na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro, pela plausível notícia do nasci­ m ento do sereníssimo senhor Príncipe da Beira, o senhor D. José, no ano de 1762...”. Lisboa: O ficina Patriarcal de Francisco L uiz Ameno, 1763; Barbosa M achado (org.). Genetlíacos dos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal, s.n.t., t. V (1761-1767). Cf. tam bém Rodrigo Bentes Monteiro. 0 teatro da colonização - a cidade do Rio de Janeiro no tempo do Conde de Bobadella (1733-1763). Dissertação de mestrado apresentada ao D eparta­ m ento de História da FFLCH-USP, São Paulo, 1993, e o artigo que publicamos com o mesmo título; Maria H elena Carvalho dos Santos (org.). A festa. Lisboa: Sociedade Portu­ guesa de Estudos do Século XVIII, Universitária Editora, 1992, v. I, p. 297-327.

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co m o tal, por p e rso n a g e m ligada à m o n a rq u ia p o rtu g u esa . O d iscu rso do C o n d e d e A ssu m a r é o te s te m u n h o d e c o n c ep ç õ es acerca do p o d e r real, e d e su as relaçõ es com a região m in e rad o ra. D essa m e sm a região surgiria o m e tal p recio so q u e aju d aria na re p re se n ta ç ã o da realeza e sp le n d o ro sa d e D . João V no R ein o , nas re p re se n ta ç õ e s d ip lo m á tic a s e nas c o n q u ista s ultram arin as am erican as, m arco das tran sfo rm açõ es da d in a stia d e B ragança. U m a m a n ifestação m ais en fá tica da C o rte em P o rtu g al, no e s ­ tra n g e iro e nas regiões coloniais c o n trib u iria para o fo rta le c im e n to da im a g em do rei b rig a n tin o , v isan d o ao se u re c o n h e c im e n to e à o b e d iê n c ia dos vassalos. N e s s e s e n ti­ d o in se re -se a fu n d aç ão da Academ ia R ea l de H istória no an o d e 1720, para re c o n stru ir a m e m ó ria e os feito s da m o n a rq u ia lusa. D essa form a, o te m p o das festas s u c e d e o te m p o dos m o tin s nas cid ad e s coloniais, processo c o n c o m ita n te ao c re sc im e n to do a p a re lh o re p ressiv o do E sta d o no rein a d o d e D . Jo sé I.

Johann Moritz Rugendas. A calunga dos maracatus. Foto André Ryoki.

UMA EMBAIXADA AFRICANA NA AMÉRICA PORTUGUESA1 S

i lvi a

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ara

R e l a t i v a m e n t e c o m u n s no cenário político do Antigo Regime, as embaixadas eram enviadas em diversas ocasiões: para negociar a paz ou a guerra, discutir e acordar casamentos, tratados comerciais ou limites territo­ riais entre dois ou mais soberanos. A pompa costumava revestir tais circuns­ tâncias, já que se tratava de confirmar diante de todos não apenas a certeza da investidura dos emissários mas, sobretudo, de ostentar o poder do monarca aí representado. Eram também, com certa freqüência, momentos em que di­ versos interesses se cruzavam, alguns tomando lugar ao lado (ou acima) dos interesses reais. O ritual do cortejo público que acompanhava as conversa­ ções mais reservadas, bem como as próprias questões que estavam em jogo, podiam contribuir para isso. Há inúmeras embaixadas na história portuguesa da época moderna. Pouco conhecidas, entretanto, são as protagonizadas por africanos e que também fizeram parte da história do império colonial português. Logo depois da con­ quista do Congo, Dom M anuel pensou em organizar uma embaixada para que representantes congueses fossem até o Papa Júlio II declarar espetacu­ larm ente a conversão do rei ao cristianismo. As intenções reais prendiam-se claramente ao fortalecimento dos interesses portugueses na expansão ultra­ marina m ediante negociações com Roma. Muitas polêmicas cercam o episó­ dio, que afinal acabou se realizando somente em 1514, sem a participação dos congueses. Em lugar deles, foi apresentada ao papa uma declaração de fé

1 Este texto contém resultados parciais de uma pesquisa mais longa, financiada pelo CN Pq.

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SILVIA

HUNOLD

LARA

cristã assinada por Afonso I (o mani do Congo), levada por uma vistosa comi­ tiva portuguesa.2 Com efeito, esta embaixada não pode ser caracterizada propriamente como africana, especialmente por suas intenções iniciais. Talvez tenha sido, no en­ tanto, a primeira vez que algum potentado africano tenha entrado em contato com esta forma de exposição pública de poder. Apesar da ausência conguesa no cortejo de 1514, sua importância simbólica no universo negro colonial foi enor­ me, em especial para as danças e reinados de congos que ocorriam em festas públicas dinásticas na América portuguesa3 ou para as coroações de reis e rai­ nhas congos nas irmandades negras em diversos pontos do Império.4 Houve porém embaixadas africanas, no sentido pleno da expressão, tal como a relata­ da por Barléus em 1643, quando enviados do rei congo foram a Pernambuco negociar com Maurício de Nassau, que os recebeu com todas as honras.5 Examino aqui uma destas embaixadas, enviada em 1750 pelo Daomé à Bahia, discutindo tanto os acontecimentos ocorridos em Salvador quanto um dos principais documentos que sobre ela se tem notícia, a Relaçavi da Etnbayxada que mandou o poderoso Rey do Angome Kiay Chiri Broncotn, Senhor dos dilatadissimos Sertoens de Guiné, enviou ao IIlustríssimo e Excellentissi/no Senhor D. Luiz Peregrino de Ataide, Conde de Atouguia, Senhor das vilas de Atouguia, Peniche, Cernate, Monforte, Vilhaens, Lomba e Paço da Ilha Dezerta; Comendador das Comendas de Santa M aria de Adaufe; e Vila Velha de Rodam, na Ordem de Christo, Do Conselho de Suam Majestade, Governador e Capitão General quefoy do Reyno do Algarve, e actualmente vice-rei do Estado do Brasil, pedindo a amizade e a alliança do muito Alto e muito Poderoso Senhor Rey de Portugal Nosso Senhor, escrita por José Freire Monterroyo Mascarenhas.6

2 Cf. Frei Antonio Brásio. “Embaixada do Congo a Roma em 1514?”, in: Stvdia, 5