Festa. Cultura e sociabilidade na América Portuguesa [2]

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Festa. Cultura e sociabilidade na América Portuguesa [2]

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CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA

FESTA CULTURA & SOCIABILID ADE NA AM ÉRICA PO R TU G U ESA V O L U M E II

E stante USP - Brasil 5 0 0 A nos

ESP

n“ 3

UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

R e ito r

Jacq u es M arcovitch

V ice-reito r

A d olpho José M elfi

|e d u sP EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

P resid en te Com is sã o E d i to rial

P linio M artins Filho (Pro-tempore) P linio M artins Filho (Presidente) José M indlin L aura de M ello e Souza M u rillo M arx O sw ald o Paulo Forattini

D iretora E d ito ria l D iretora C om ercial D ireto r A d m in istra tivo E d i to r-a ssisten te

Im p r e n s a O f ic ia l 3 D ireto r-P residente D ireto r V ice-P residente D ireto r In d u stria l D ireto r F inanceiro e A d m in istra tiv o C o o rd en a d o r E d ito ria l

S ilv an a Biral E liana U rabayashi R en ato C albucci João B andeira

IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO

Sérgio K obayashi Luiz C arlos Frigerio C arlos N icolaew sky R ichard V ainberg C arlos T aufik H addad

ISTVÁN JANCSÓ IR I S K A N T O R O R Ci A N I /, A I) O R K S

FESTA CULTURA & SOCIABILID ADE NA AM ÉRICA PO R TU G U ESA

VOLUME

3

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II

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Imprensa Oficial í

C o p y r i g h t O 2 0 0 1 bv I s t v á n J a n c s ó e ír is K a n t o r (o rgs.) D ire ito s de p u b lic a ç ã o re s e rv a d o s à E d ito ra H ucitec Ltda. R u a G il E a n e s , 7 1 3 - B r o o k l i n 0 4 6 0 1 - 0 4 2 - S ã o P au lo -S P -B rasil F a x (O x x l 1) 5 0 9 3 - 5 9 3 S Tel. (O x x l 1) 2 4 0 - 9 3 1 S / 5 5 4 3 - 5 S 10 E - m a il: h u c i t e c @ t e r r a . c o m . b r \v\v\v. h u c i t e c . c o m . b r E d ito ra ç ã o e letrô n ica: O u ríp c d c s G allene

D a d o s I n t e r n a c i o n a i s de C a t a l o g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o (CIP) ( C â m a r a B r a s i l e i r a d o L i v r o , SP, Brasil )

F e s ta : C u l t u r a Sc S o c i a b i l i d a d e n a A m e r i c a P o r t u g u e s a , v o l u m e II / I s t v á n J a n c s ó , ír i s K a n t o r ( o r g s . ) . -

São P aulo

: H u c ite c : E d ito ra da U n iv e rs id a d e de São P a u lo : F a p c sp : I m p r e n s a O f i c i a l , 2 0 0 1 - ( C o l e ç ã o E s t a n t e U SP - B ra sil 5 0 0 A n o s ; v. 3). V ários autores. IS BN : S 5 - 3 1 4 - 0 6 1 9 - 6 ( E d u s p ) 8 5 - 2 7 1 - 0 5 5 5 - 1 (H u c i t e c ) 8 5 - 2 7 1 -0557-S (H ucitec) 1. tum es

B rasil - H i s t ó r i a - 1 5 0 0 - 2 0 0 0 3. C u l t u r a - B ra si l

J a n c s ó , István.

2. B ra si l - U s o s e c o s ­

4 . F e s ta s - B ra sil - H i s t ó r i a

II. K a n t o r , ír is.

I.

III. Série.

01-1913

C D D -981

índices p a ra c a tá lo g o sistem ático: 1. A m e r i c a P o r t u g u e s a : F e s ta s : H i s t ó r i a 2. B ra si l : F e s t a s : H i s t ó r i a

9S 1

9S 1

3. F e s ta s : A m é r i c a P o r t u g u e s a : H i s t ó r i a

9S1

C o-edição com E d u s p - E ditora da U niversidade de São P aulo

Im

Av. Pr o f. L u c i a n o G u a l b e r t o , T r a v e s s a J, 3 7 4

R u a da M o o c a , 1921 - M o o c a

prensa

O

f ic ia l d o

Estado

6° a n d a r - E d . d a A n t i g a R e i t o r i a - C i d a d e U n i v e r s i t á r i a

S ã o P a u l o - SP - C E P 0 3 1 0 3 - 9 0 2

0 5 5 0 8 - 9 0 0 - S ã o P a u l o - SP - B rasil

Pabx: (O x x ll) 6 0 9 9 -9 8 0 0

Fax (O x x ll) 3818-4151

SAC 0 8 0 0 -1 2 3 4 0 1

T e l. ( O x x l l ) 3 8 1 8 - 4 0 0 8 / 3 8 1 8 - 4 1 5 0

E-m a il: e d i t o r i a l @ i m p r e n s a o f i c i a l . c o m . b r

w w w . u s p . b r / e d u s p - e -m a il : e d u s p @ e d u . u s p . b r

w w w .im p ren s a o fic ia l.c o m .b r/liv ra ria

I m p r e s s o n o B ra si l

2001

Fo i feito o d e p ó s i t o legal

SUMÁRIO

Falando de festas Istyán J ancsó &

I ris K a n t o r

A F E S T A NA E N C R U Z I L H A D A DAS T E M P O R A L ID A D E S D espedidas triunfais — celebração da morte e cultos de memória no século XVIII A na C ri st i n a A raújo

Teatro em música no Brasil monárquico L orenzo M ammI

Veneza, África, Babel: leituras republicanas, tradições coloniais e imagens do carnaval carioca M aria C l e m e n t i n a P ereira C unha

F E S T A BARROCA E C U L T U R A P O L ÍT IC A N O A N T I G O R E G IM E Etiqueta e cerimônias públicas na esfera da Igreja (séculos XVII-XVIII) J o s é P e d r o P ai va

Entradas solenes: rituais comunitários e festas políticas, Portugal e Brasil, séculos XVI e XVII P edro C ardim

S II MA K I O

V III

Entre festas e motins: afirmação do poder régio bragantino na América portuguesa (1690-1763)

127

R od rigo B e n t e s M on teiro

Uma embaixada africana na América portuguesa S ilvia H u n o l d

151

L ara

Entradas episcopais na capitania de Minas Gerais (1743 e 1748): a transgressão formalizada

169

I RI s K a n t o r

Festas barrocas e vida cotidiana em Minas Gerais L aura de M ell o

e

183

S ouza

A D O C E PERSUASÃO FESTIVA: EV A N G ELIZÀ Ç Ã O E R E S IS T Ê N C IA Festa e inquisição: os mouriscos na cristandade portuguesa dos quinhentos

199

R o g é r i o d e O l i v e i r a R ibas

D a festa tupinam bá ao sabá tropical: a catequese pelo avesso

215

R o n a l d o V ainfas

A propósito de cavalhadas

227

M arlyse M eyer

História, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil — séculos XVIII e XIX M arina de M ello

e

249

S ouza

SU B V E R SÕ ES E IN V E R S Õ E S DA O R D E M FESTIV A A revolta é uma festa: relações entre protestos e festas na América portuguesa

263

L uciano F igueiredo

A serração da velha: charivari, morte e festa no m undo luso-brasileiro

279

M ary D e l P r i o r e

O enterro satírico de um governador: festa e protesto político nas Minas setecentistas

301

A driana R omeiro

D a festa à sedição. Sociabilidades, etnia e controle social na América portuguesa (1776-1814)

313

L u i z G e r a l d o S i lva

B atuque negro: repressão e permissão na Bahia oitocentista J oão J osé

R eis

339

S U MÁ R I C)

IX

S O L ID A R IE D A D E S FESTIVAS E VIDA C O N F R A R IA L Festas e rituais de inversão hierárquica nas irmandades negras de Minas colonial

361

M arcos M agalhães de A guiar

Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fúnebres de forros e livres nas Minas setecentistas

397

J únia F erreira F urtado

A redenção dos pardos: a festa de São Gonçalo Garcia no Recife, em 1745

419

R ita de C ássia B arbosa de A raújo

Volume II VIDA M A T E R IA L E C U L T U R A FESTIVA Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconômicos das festas no m undo dos engenhos

449

V era L ucia do A maral F erlini

Bebida alcoólica e sociedade colonial

467

J U L I T A SCARANO

Os gastos do senado da câmara de Vila Rica com festas: destaque para Corpus Christi (1720-1750)

487

C amila F ernanda G uimarães S antiago

C elebrando a alforria: amuletos e práticas culturais entre as m ulheres negras e mestiças do Brasil

505

E d u a r d o F r a n ç a P aiva

Unidade e diversidade através da festa de Corpus Christi

521

B eatriz C atão C ruz S antos

F E S T A S NA C O R T E P O R T U G U E S A L it u r g ia real: e n tr e a p e r m a n ê n c ia e o e f ê m e r o I a r a L is C a r v a l h o S o u z a

545

O fim da festa. Música, gosto e sociedade no tem po de D. João VI

569

M aurício M onteiro

O Tejuco faz a festa. Festejo cívico no arraial do Tejuco em 1815 C arla S imone C hamon

587

x

S U M Á R IO

VISÕES DE VIAJANTES EUROPEUS: EXOTISMO E BARBÁRIE Viajantes em meio ao império das festas

603

L ima M oritz S chwaroz

Viajantes vêem as festas oitocentistas

623

K aren M ackn ow L isboa

A FE S T A D O C U M E N T A D A : A S P E C T O S H IS T O R IO G R Á F IC O S A escrita da festa: os panfletos das jornadas filipinas a Lisboa de 1581 e 1619

639

A na P aula T o rres M egiani

Revisitando São Luís do Paraitinga. Continuidades e rupturas

657

J aime de A lm eida

Histórias da “música popular brasileira” : uma análise da produção sobre o período colonial M a r t h a A b reu

683

A FE S T A C O M O R E P R E S E N T A Ç Ã O Palavras em movimento: as diversas imagens quinhentistas e a universalidade da revelação

705

G u i l h e r m e A m a r a l L uz

Sermões: o modelo sacramental

717

A lcir P écora

A categoria “representação” nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII J oão A d o l f o

735

H anskn

Abuso e bom uso: discurso normativo e eventos festivos nas Cartas Chilenas

759

J oaci P er eira F urta do

Expectativa c metamorfose: saudades da Idade de Ouro na América portuguesa

775

S érgio A lcides

A M E M Ó R IA G E S T U A L E SO N O R A DA VIDA FESTIVA: O USO DAS F O N T E S Música das festas: a memória perdida J osé

R amos T inhorão

801

A dança na festa colonial M auianna F kangisca M artins M o n teir o

A Procissão do Enterro: uma cerimônia pré-tridentina na América portuguesa P aulo C astagna

A outra festa negra P aulo

D i as

flauta de mutuiii: registro, memória e recriação musical de festas no Brasil nos séculos XVI e XVII

A

A n a M a r i a K i k i -t k r

FE S T A S S IN G U L A R E S O festejo dos santos a bordo das embarcações portuguesas dos séculos XVI e XVII: sociabilização ou controle social? F ábio P estana R amos

Catolicismo devocional, festa e sociabilidade: o culto da Virgem de Nazaré no Pará colonial G eraldo M ártires C oelho

O Divino e a “Festa do Martírio” B eatriz R icardina de M agalhães

Cavalhadas na América portuguesa: morfologia da festa J osé A rtur T eixeira G onçalves

A P R O P Ó S I T O DA FE S T A Festa, trabalho e cotidiano N o r b e r t o L uiz G ua rin e llo

Ideologia, colonização, sociabilidade: algumas considerações metodológicas M arco A n t o n i o S ilveira

FESTA CULTURA & SOCIABILID ADE NA AM ÉRICA PO R TU G U ESA VOLUME II

Assentamento no Brasil 1654. Óleo sobre madeira, 51 x 70 cm. Netherlands Maritime Museum, Amsterdam, Holanda. Fundação Bienal de São Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: o olhar distante. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos, Artes Visuais, 2000, p. 90. Foto André Ryoki.

FOLGUEDOS, FEIRAS E FERIADOS: ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS DAS FESTAS NO MUNDO DOS ENGENHOS V kra

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as festas ligam-se ao universo da econo­ mia. T endo suas origens nos ritos que buscavam interferir nos ciclos naturais para o provimento da subsistência, eram m omentos de agradecimento ou de súplicas à natureza, elos de ligação entre o imponderável, visto como divino, sagrado e o hom em impotente. O vínculo com a economia, porém, é ainda mais profundo que o dos ritos propiciadores de chuvas, fertilidade, boas co­ lheitas, celebradores da germinação, do sol, do calor. A necessidade de sobre­ vivência, de melhor domínio dos recursos naturais, levou os seres hum anos à vida em grupo. Esta, se bem geradora de melhores condições, implica ren ú n ­ cias, tensões, competições e conflitos. As festas, neste caso, constituem im­ portante espaço de sociabilidade, com suas alegorias, representações e elabo­ rações dos conflitos, um a espécie de válvula de escape, que torna possível a vida comunitária. Por meio da fantasia, da criação/re-criação livre, as revanches são retrabalhadas em espaço lúdico, as frustrações e reivindicações são expressas. E o m om ento de desarranjo/rearranjo que equilibra a sociedade e torna possível sua m anutenção e reprodução. A periodicidade da economia agrária, ligada aos ciclos da natureza, estabe­ leceu em todas as culturas um calendário de festividades, em que a com uni­ dade se congregava para celebrar, agradecer ou pedir proteção. Essas formas de culto a divindades protetoras da natureza estão na origem das festas portu­ guesas, transplantadas mais tarde para a colônia. O combate à religiosidade s KN r i D o

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450

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popular que marca a Igreja da Contra-Rcforma buscou suprimir e sincretizar os cultos agrários pagãos, dando-lhes roupagens cristãs.1 No mundo colonial, porem, as festas adquirem sentido mais amplo c m es­ mo inovador. Em primeiro lugar, para que a exploração/produção de riquezas se concretizasse, uma ampla teia de mediações fazia-se necessária. Era preci­ so reiterar os padrões de dominação, os vínculos de solidariedade a unir a população para cá transplantada, baseados no poder da Coroa e da Igreja.-’ As festas permitiam o encontro, a visibilidade, a coesão dentro de com em ora­ ções que recriavam os padrões metropolitanos, dando a identidade desejada, trazendo o descanso, os prazeres e a alegria e introjetando valores e normas da vida em grupo, partilhando sentimentos coletivos e conhecimentos c om u­ nitários.’' Visitando a área dos engenhos nordestinos, Rugcndas assinalou: “A m onotonia dessa existência só é interrompida, de quando em q u a n ­ do, pelas festividades religiosas; a importância destas aum enta ainda pelo fato de se tornarem uma oportunidade para a reunião de todos os colonos da região; eles surgem a fim de terminar seus negócios ou iniciar outros. Não há nada mais animado do que um domingo num a aldeia ou vila, que possua uma imagem venerada de santo. As famílias dos colonos chegam de todos os lados. Os homens vêm a cavalo, as senhoras igualmente, ou em liteira conduzidas por bestas ou escravos. As grandes festas da Igreja são celebradas com muito aparato: há fogos de artifício, danças c espetáculos, que lembram as primitivas representações mímicas e nos quais as chalaças grosseiras dos atores satisfazem plenam ente os espectadores. Nessas oca­ siões, não se economizam as bebidas alcoólicas; entretanto, se os assisten­ tes nem sempre se m antêm dentro dos limites da temperança, os excessos e violências, que acontecimentos idênticos provocam na maioria das na­ ções européias, são aqui infinitamente mais raros.”4

1 Sobre o tem a, consulte-se: P eter Burke. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. port. São Paulo: C o m pan hia das Letras. 1989; Roger Charticr. .4 história cultural entre práticas e repre­ sentações. Irad. port. Lisboa: Difel, 1990; Robert M u chem bled . Culture populaire et culture des é/ites dans Ia France Modeme (X le -XYIIIe sièc/ej. Essai. Paris: Flam marion. 1978: Rov Strong. Lesfètcs de Ia Renaissancel/ 450-1650). Artetpouvoir. Paris: Solin. 1990; Keith Thom as. Reügion andtheDeclineofMagic. Londres: P enguin Books, 1976: André Varagnac. C kiüsation traditionnelle etgenres de fie. Paris, 1948. : Sobre o sentido das festas nas colônias, veja-se íris Kantor. “ Festas públicas e o Ultramar", in: Pado festivo em Minas colonial. Dissertação d e mestrado. São Paulo, F F L C H . 1996. So­ bre a relação entre reprodução cultural e exploração econômica, veja-se Florestan Fernandes. “A sociedade escravista no Brasil", in: Circuito fechado. São Paulo: H ucitec, 1978. Cf. Mary D el Priorc. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense. 1994. 4 João Maurício Rugcndas. Viagem pitoresca através do B rasil (1835). Trad. port. 1S cd. São Paulo-Belo Horizonte: Edusp-ltatiaia. 1976, p. 117.

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451

Assim, principalmente as festas de Natal e da Páscoa constituíam m o m e n ­ tos de congraçamento das populações rurais e urbanas nos engenhos, quando se organizavam grandes comemorações, com muitos convidados, que perm a­ neciam por v ários dias nas propriedades. Desse período nos dá conta Debret, que observava: "tendo o cuidado de convidar poetas sempre dispostos a improvisar lindas quadrinhas e músicos encarregados de deleitar as senhoras com suas modinha/.inhas. Os donos da casa também escolhem, por sua vez, alguns am i­ gos distintos, conselheiros acatados do proprietário na exploração da fa­ zenda que visitam dem oradam ente com ele, ao passo que, ao contrário, os jovens convidados, ágeis e turbulentos, entregam-se a essa louca alegria sempre tolerada no interior. Aí todos os dias começam, para os homens, com uma caçada, uma pescaria ou um passeio a cavalo; as mulheres ocu­ pam-se de sua toilette para o almoço das dez horas. A uma hora todos se reúnem e se põem à mesa; depois de saborear, durante quatro a cinco ho­ ras, com vinhos do Porto, Madeira ou Tenerife, as diferentes espécies de aves, caça, peixes c répteis da região, passam aos vinhos mais finos da Europa. Então o cham panha estimula o poeta, anima o músico, e os prazeres da mesa confundem -se com os do espírito, através do perfum e do café e dos licores. A reunião prossegue em torno das mesas de jogo; à meianoite serve-se o chá, depois do qual cada um se retira para o seu aposento, onde não é raro deparar com móveis, perfeitam ente conservados, de fins do século de Luís XIV. N o dia seguinte, para variar, vai-se visitar um ami­ go num a propriedade mais afastada; tais cortesias aum entam ainda os prazeres dessa semana que sempre parece curta demais. Alguns amigos ínti­ mos, que dispõem de seu tempo, ficam com a dona da casa, cuja estada se prolonga durante mais de seis semanas ainda, em geral, depois do que todos tornam a encontrar-se na cidade.’" N a América portuguesa, os engenhos, eixos da produção açucareira, consti­ tuíam microcosmos, verdadeiras agências de colonização, no dizer de Olivei­ ra França, condensando populações e articulando, à moda de cidade, funções econômicas, militares, religiosas e administrativas.'' Cada engenho possuía uma capela dedicada a um santo, patrono da propriedade. Ao redor dos e n ­ genhos, pouco a pouco, estabeleciam-se ainda freguesias, com suas paró­ quias, centralizando e supervisionando as atividades religiosas e constituindo-

Jean-Baptistc D cbrct. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil O im pedim ento aos folguedos, danças e festas dos escravos era comum nos engenhos baianos, no início do século XVIII, e Antonil advertia: “Negar-lhes totalm ente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saú­ de. Portanto, não lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestam ente em alguns dias do ano, e o alegra­ rem-se inocentem ente à tarde depois de terem feito pela m anhã suas fes­ tas de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e do orago da capela do engenho, sem gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade aos juizes e dando-lhes algum prêmio do seu continuado trabalho. Porque se os juizes e juízas da festa houverem de gastar do seu, será causa de muitos inconvenientes e ofensas a Deus, por serem poucos os que o po­ dem licitamente ajuntar. “O q ue se há de evitar nos engenhos é o emborracharem-se com garapa azeda, ou água ardente, bastando conceder-lhes a garapa doce, que lhes não faz dano, e com ela fazem seus resgates com os que a troco lhes dão farinha, feijões, aipins e batatas.”20 Sobre a festa do Rosário, a mais tradicional dentre as festas dos negros, deixou-nos Koster importante relato: “N o mês de maio, os negros celebraram a festa de Nossa Senhora do Rosário. E nesta ocasião, que têm por costume eleger o Rei do Congo, o que acontece quando aquele que estava revestido dessa dignidade morreu d u ­ rante o ano, quando um motivo qualquer o obrigou a demitir-se, ou ainda, o que ocorre às vezes, quando foi destronado pelos seus súditos. Perm item aos negros do Congo eleger um rei e uma rainha de sua nação, e essa escolha tanto pode recair num escravo como num negro livre. Esse príncipe tem,

19 “Tratado proposto a M anuel da Silva Ferreira pelos seus escravos du rante o te m p o em qu e se conservarão levantados” , apud: Stuart Schwartz. “Resistance and accom m odation in E ig h tc c n th C c n tu ry Brazil: T h e slaves’ view o f slaverv” , in: HAHR, 57(1):69-81, fev. 1979. 211 A ndré João Antonil. Cultura e opulência Ho Brasil, p o r suas drogas e minas (1711). Paris, 1965.

458

VI'. R A Ll l CIA AMARAL !• K R I, 1N I

sobre seus súditos, uma espécie de poder que os brancos ridicularizam e que se manifesta principalmente nas festas religiosas dos negros, como, por exem ­ plo, na da sua padroeira Nossa Senhora do Rosário. () negro que ocupava essa posição no distrito de Itamaracá (cada distrito tem seu rei), desejava abdicar por causa de sua idade e, por essa razão se elegera um novo rei, um velho escravo da fazenda Amparo; mas a velha rainha não tinha intenção de abdicar e se conservou de posse de sua dignidade. “O negro, que devia ser coroado durante o dia, veio de manhã cedo à casa do pároco para apresentar-lhe a homenagem da sua veneração. «Muito bem senhor», respondeu em tom de brincadeira, «serei pois, hoje, vossoesmoler». As onze horas fui à Igreja com o capelão c não demorou muito vimos chegar uma multidão de negros, bandeiras despregadas, ao som dos tambores. H o­ mens e mulheres usavam vestimentas das mais vivas cores que haviam e n ­ contrado. Quando se aproximaram, distinguimos o Rei, a Rainha e o Minis­ tro de Estado. Os primeiros usavam coroas de papelão, recobertas de papel dourado. O Rei tinha uma casaca verde, um colete vermelho, calças amare­ las; tudo talhado à moda mais antiquada. Na mão carregavam um cetro de madeira dourada. A Rainha vestia um vestido de cerimônia de seda azul. Quanto ao pobre Ministro de Estado, podia vangloriar-se de brilhar com tantas cores quanto o seu senhor, mas não fora tão feliz na escolha das rou­ pas: a calça era demasiado estreita e curta, e o colete comprido demais. As despesas da cerimônia deviam ser pagas pelos negros, por isso haviam colo­ cado na Igreja uma pequena mesa à qual estavam sentados o tesoureiro e outros membros da Irmandade Negra do Rosário, os quais recebiam os do­ nativos dos assistentes dentro de uma espécie de cofre. Mas, as oferendas eram parcas e raras, demasiado raras, na opinião do pároco, pois a hora de seu jantar já havia soado. Por isso adiantou-se com impaciência para o tesoureiro e avisou-o de que não procederia à realização da cerimônia antes de serem cobertas as despesas; e logo depois, apostrofou os negros que o cercavam, censurando-lhes o pouco zelo que mostravam em contribuir para a solenida­ de. Apenas deixou ele o grupo, os negros que o acompanhavam se expandi­ ram em discussões e altercações, acompanhadas de gestos e de expressões muito cômicas mas em desacordo absoluto com a santidade do lugar. Final­ mente, chegou-se a um entendimento. Suas Majestades negras se ajoelha­ ram diante do altar e o serviço divino começou. Terminada a missa, o Rei devia ser solenemente investido nas suas funções, mas o pároco estava com fome e sem escrúpulo encurtou a cerimônia «agora, Senhor Rei, vai-te e m ­ bora». Disse-o, e imediatamente correu para a sua casa. Os negros partiram com gritos de alegria e foram ter à fazenda Amparo, onde passaram o dia e a noite entregues aos prazeres da bebida e da dança.”21 21 H en ry Kostcr. Viagem ao Nordeste do Brasil ( 1816). São Paulo: Nacional, 1942.

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M esm o controlado, proibido, motivo de escândalo para muitos, os folgue­ dos escravos eram constantes e, após os trabalhos do dia, os negros buscavam diversão, cantando e dançando. Para muitos, era surpreendente terem eles ainda energia para seus batuques, após um dia de trabalho: “mais bulhentos prazeres produzem sobre o negro o m esmo efeito que o repouso. A noite, é raro encontrarem-se escravos reunidos que não e s te ­ jam animados por cantos e danças; dificilmente se acredita que tenham executado, durante o dia, os mais duros trabalhos, e não conseguimos nos persuadir de que são escravos que temos diante dos olhos.” ” Importante notar como o trabalho de escravos, relacionado nessa socieda­ de a sofrimento, a purgação para salvação, era entendido como incompatível com a alegria, com a diversão e a alegria dos escravos, em seus batuques, era vista como expressão de sua lascívia, de sua barbárie, que muitas vezes con­ tagiava os brancos, como nos relatam muitos viajantes. “A dança habitual do negro é o batuque. Apenas se reúnem alguns n e ­ gros e logo se ouve a batida cadenciada das mãos; é o sinal de chamada e de provocação à dança. O batuque é dirigido por um figurante; consiste em certos movimentos do corpo que talvez pareçam demasiado expressivos; são principalmente as ancas que se agitam; enquanto o dançarino faz esta­ lar a língua e os dedos, acompanhando um canto monótono, os outros fa­ zem círculo em volta dele e repetem o refrão. Outra dança negra muito conhecida é o «lundu», tam bém dançada pelos portugueses, ao som do violão, por um ou mais pares. Talvez o «fandango», ou o «bolero», dos espanhóis, não passem de uma imitação aperfeiçoada dessa dança. “Acontece muitas vezes que os negros dançam sem parar noites intei­ ras, escolhendo, por isso, de preferência, os sábados e as vésperas dos dias santos. “E preciso mencionar, tam bém, uma espécie de dança militar: dois gru­ pos armados de paus colocam-se um em frente do outro e o talento consis­ te em evitar os golpes da ponta do adversário. Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a «capoeira»: dois cam pe­ ões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais 011 menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortem ente cabeça contra cabeça, o q ue faz com q ue a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entram em jogo ensangüentando-se [...].” ”

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R ugendas. O p. cit., p. 154.

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YKUA 1.1'OIA AMARAL FKRI. INI

N a vida rural da América portuguesa podia-se observar o rico e curioso sinceríssimo das comemorações tradicionais camponesas européias, travcstidas pelo cristianismo c adaptadas aos costumes dos cativos. O carnaval, anti­ go rito, transformado em período de catarse, antes do recolhimento da qu a ­ resma, era um espetáculo de manifestações de negros, com suas brincadeiras e danças: “Para o brasileiro, portanto, o Carnaval se reduz aos três dias gordos, que se iniciam no domingo às cinco horas da manhã, entre as alegres m ani­ festações dos negros já espalhados [...]. Vemo-los aí, cheios de alegria e de saúde, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a água gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco réis. Com água e polvilho, o negro, nesse dia, exerce im punem ente nas negras que encon­ tra toda a tirania de suas grosseiras facécias; algumas laranjas de cera rou­ badas aos senhores constituem um acréscimo de munições de Carnaval para o resto do dia. “Mas os prazercs do Carnaval não são menos vivos entre um terço pelo menos da população branca brasileira; quero referir-me à geração dc meiaidade, ansiosa por abusar alegremente, nessas circunstâncias, de suas for­ ças e sua habilidade, consumindo a enorme quantidade de limões-de-cheiro disponíveis.” ’, O dia de São José, 19 de março, em plena Quaresma, marcava, no N ordes­ te, o início das águas, tão esperadas c confundia-se com as súplicas por boas safras. Ao final da Quaresma, uma nova forma dc catarse era permitida, na malhação do Judas, de variada simbologia nessa sociedade colonial, marcada pelas normatizações da Contra-Reforma. Dela nos dá conta Debrct: “E ao primeiro som de sino da Capela Imperial, anunciando a ressurrei­ ção do Cristo e ordenando o enforcamento do Judas, que esse duplo moti­ vo de alegria se exprime a um tem po pelas detonações do fogo de artifício, as salvas da artilharia da marinha e dos fortes, os entusiásticos clamores do povo e o carrilhão de todas as igrejas da cidade. E preciso confessar que essa oportunidade de um contraste tão marcado, tirado de um m esm o ob­ jeto e que, term inando devotadam ente a quaresma, apaga no espaço de dez minutos, de um modo igualmente engenhoso, a austeridade de suas formas, constitui o triunfo da imaginação num povo vivo e infinitamente impressionável. Passando aos preparativos da cena, vemos a classe indi-

r ’ D ebret. Op. cit., p. 220.

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gente, que se presta faeilmente às ilusões, armar um Judas e n c hendo de palha uma roupa de hom em a que se acrescenta uma máscara com um boné de formar a cabeça; algumas bombas colocadas nas coxas, nos braços c na cabeça servem para deslocar o boneco no m om ento oportuno; uma árvore nova trazida da floresta faz, as vezes de uma forca econômica, e o povo do bairro sente-se satisfeito. Observe se que é de rigor fazerem-se esses preparativos durante a noite, a fim de estar tudo pronto pela manhã. Nos bairros comerciais a ilusão é mais completa mas tam bém mais d isp e n ­ diosa. Os empregados se cotizam para mandar executar, pelo costureiro e fogueteiro reunidos, uma cena composta de várias peças grotescas, a u m e n ­ tando consideravelmente o divertimento sempre terminado com o enfor­ cam ento do Judas pelo Diabo que serve de carrasco; nec plus ultra da fic­ ção poética e da imitação dos movimentos do grupo das duas figuras, cujos balanços c oscilações são provocados e variados pelo arrebentar dos fogue­ tes que os consomem finalmente, excitando a última bom ba o mais ruido­ so entusiasmo. Q uanto ao detalhe, as peças de que se compõe o fogo de artifício são pequenos grupos de figuras grotescas, engenhosam ente fabri­ cadas com simples folhas de papel coladas e coloridas, sem pre fixadas a um pequeno tabuleiro girando horizontalmente. A figura indispensável, capital é a do Judas, de blusa branca (pequeno dominó branco de capuz, usado pelos condenados); suspenso pelo pescoço a uma árvore e seguran­ do um a bolsa suposta cheia de dinheiro, tem no peito um cartaz quase sem pre concebido nestes termos: eis o retrato de um miserável, supliciado por ter abandonado seu pais e traído seu senhor. Um Diabo negro, o mais feio possível, a cavalo sobre os ombros da vítima, faz as vezes de carrasco e parece apertar com o peso de seu corpo o laço que estrangula o desgraça­ do. Mais engenhoso ainda é o Diabo amarrado pela cintura, de modo a escorregar pela corda do Judas, e suspenso três ou quatro pés acima da cabeça do boneco por meio de uma outra corda que se distende repentina­ m e n te .”-4 Por ocasião de Pentecostes, realizava-se a festa do Divino Espírito Santo que dava aos negros a oportunidade de recriação de hierarquias simbólicas, com o imperador, eleito para a ocasião. Debret, que observou as festividades no Rio de Janeiro, nos dá sua descrição, para o início do XIX: “Chama-se no Rio de Janeiro folia do Imperador do Espírito Santo, um grupo de jovens folgazões, tocadores de violão, de pandeiros e de ferrinhos precedidos de um tambor; o grupo alegre escolta um porta-bandeira, cujo

’4 Ib id cm , p. 191-2.

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VKRA I. ü C'. 1A AM ARAI. !•' K R I, I N I

chapéu ricamente enfeitado de flores e de fitas se assemelha ao dos d e ­ mais membros mais modestos da bandinha. Percorrem os rapazes as ruas da cidade cantando quadrinhas ajustadas ao motivo religioso para os fiéis que sustentam o trono do Imperador do Espírito Santo (menino de oito a doze anos). Este os segue gravem ente a alguns passos de distância, dando a mão a um dos dois irmãos da confraria, que o acompanham. E durante a semana anterior à festa de Petencostes que se realiza essa coleta aparatosa, destinada a estimular a generosidade dos fiéis caridosos. O p equeno im pe­ rador veste a casaca vermelha, calção da mesma cor e colete branco borda­ do a cores. Usa chapéu armado e de plumas debaixo do braço, espada à cinta, meias de seda branca, sapatos de fivela de ouro; tem a cabeça empoada e carrega uma sacola. Traz como condecoração um crachá e, p e n ­ dente do pescoço, uma espécie de custódia dourada no centro da qual destaca-se uma pomba prateada. Vários irmãos pedintes precedem e seguem o cortejo.”-7'’ A vida urbana, sem duvida, permitia maior proximidade e congraçamento das populações, mas, no âmbito rural, com a expansão da produção e a criação de freguesias, com suas matrizes e arraiais, gradativamente, nos domingos c dias santos, a reunião religiosa implicava a possibilidade de comércio, de fei­ ras, provedoras de gêneros, trocados por roceiros e escravos. Se temos os resquícios desses espaços de trocas, de festividades, faltamnos ainda maiores dados concretos sobre as feiras, exceção das ligadas ao co­ mércio de gado. Abre-se aqui uma perspectiva interessante de investigações que poderia se valer dos registros das câmaras municipais (que possivelmen­ te regulamentavam os eventos), dos registros judiciais (sobre querelas na oca­ sião). Nesses espaços, com o passar do tempo, realizavam-se as grandes fes­ tas, principalmente as do mês de junho, que marcavam o final da safra, e que deram origem a umas das mais poderosas tradições festivas do Nordeste, a festa do interior. □ □ □ L uc i a A m a r a l F k r l i n i , doutora em História Econômica, é profes­ sora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu­ manas, da Universidade de São Paulo, e autora de A Civilização do Açúcar e Terra, Trabalho e Poder.

V e ra

R k s u m o . Reproduzindo, na Colônia, ritos e festas do calendário cristão europeu, domingos e feriados santos propiciavam momentos de encontro, sociabilidade, tro­

25 Ib id em , p. 215.

F o \. a u !■:n o s , f f i r a s f f v. r i a d

o s

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cas e n e g ó c io s . P a ra a p o p u l a ç ã o c s c ra v a , p o r é m , o d e s c a n s o , n e s s e s d ias, n ã o e ra a s s e g u r a d o . P r e s s i o n a d o s p e l o r i tm o d as safras c d a s frotas, os s e n h o r e s t e n d i a m a m a n t e r os e s c r a v o s n o e it o e nas fábricas, i m p e d i n d o - o s d e u s u f r u í r e m d o e s p a ç o d a s fe s ta s. D a í as c o n s t a n t e s a d v e r t ê n c i a s d o s religio sos p ara q u e fo s se r e s p e i t a d o o d e s ­ c a n s o s a g r a d o , t a m b é m p a ra os escrav o s, c q u e se l h e s p e r m i t i s s e , e m d a ta s e s p e c i a is , r e a l iz a r e m s e u s f o l g u e d o s e d a n ç a s . A lé m d o e n g e n h o , n o s v ila re jo s q u e , p o u c o a p o u c o , c r e s c e r a m c m s e u e n t o r n o , as f e s ta s d a v a m e n s e j o a g r a n d e s feiras, a m p l i a n d o a c o n o t a ç ã o social e s i m b ó l ic a d as c o m e m o r a ç õ e s .

Jean-Baptiste Debret. Asesta (parte da obra O jantar — a sesta), 1834-1839. Litogra­ fia colorida à mão, 49 x 34 cm. Coleção particular. Fundação Bienal de São Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos, 2000, p. 125. Foto André Ryoki.

BEBIDA ALCÓOLICA E SOCIEDADE COLONIAL J

U L IT A

SCAR A N

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O M o D o D E !•: N c a r a r a bebida alcoólica na América portuguesa, e em especial no século XVIII, apresenta características próprias, traz uma visão mais clara e específica da maneira como determinadas questões da vida coti­ diana eram valorizadas ou desclassificadas e nos mostra certas peculiaridades dessa sociedade. E m nossos dias, questões relativas à alimentação, incluindo ou não a bebida alcoólica, vêm suscitando interesse dos estudiosos que buscam c om preender e mostrar o quanto tais aspectos refletiram e influenciaram a vida social em diferentes períodos. Hábitos alimentares, comidas utilizadas e proibidas, bebidas de vários tipos condicionaram e foram divulgadas em fun­ ção de peculiaridades e de características das várias sociedades e as marcaram profundam ente. Assinalam tam bém as diferenças sociais, as questões de so­ lidariedade e as de divergências. Não dizem respeito apenas ao alimento em si, isto é, o que visa a m an u ­ tenção, a conservação da vida, mas tam bém à fruição, ao prazer gustativo e que constitui um aspecto significativo da vida social, cultural e m esm o políti­ ca de diferentes períodos históricos. A questão do álcool, por exemplo, da bebida alcóolica, vai salientar, no Brasil, as diferenças entre as maneiras como a Colônia e a M etrópole, os di­ versos estratos da população, encaravam aspectos que poderiam ser vistos como secundários, mas que tinham implicações mais profundas do que apa­ rentavam. Note-se que tais implicações eram pressentidas pelos governantes m etro­ politanos e não som ente o preconceito, que existia, e, sem dúvida, norteava

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leis c costumes, mas a noção, mesmo vaga, de que aspectos subjacentes não deixavam de ter significado, os levava a olhar questões de produção, consu­ mo e distribuição de bebidas alcoólicas com desconfiança. A

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VA LO R

O vinho ocupa significativo papel dentre as bebidas alcoólicas e seu uso c valorização vêm desde tempos imemoriais. Na mais remota antigüidade já se nota a utilização de bebida produzida pela uva e na Grécia e em Roma, ju n ta ­ m ente com o pão e os produtos da oliveira, o óleo e a azeitona, formam a grande trindade alimentar imprescindível. Gomo regra quase geral, os povos da bacia do M editerrâneo basearam sua alimentação em produtos oriundos da oliva, do trigo e tam bém da bebida fabricada pela uva. A idéia de que esses produtos são capazes de trazer saúde e longevidade a seus consum ido­ res tem remota origem e ainda não perdeu validade. Além do grande papel que tiveram e ainda têm no consumo alimentar, tam bém sem pre manifestam importantes aspectos correlatos, de grande influência na vida econômica e tam bém social daqueles povos. E o vinho que Cristo transforma em seu sangue na Santa Ceia, ele vem sendo consagrado nas missas no decorrer desses vinte séculos c essa consa­ gração do pão e do vinho constitui a cerimônia central do catolicismo. Basta­ riam esses aspectos para dar ao vinho grande sacralidade. Assim, toda a cultu­ ra de origem cristã, bem como as referências e a importância do vinho na Antiguidade clássica, na Grécia e em Roma, explicam por que foi e continua a ser tão valorizado. M esmo o fato de haver esporadicamente crítica ao exces­ so de seu consumo, como na Bíblia em se tratando da embriaguez de Noé, por exemplo, esses aspectos não afetam a visão positiva que o vinho vem tendo desde tanto tempo. E o vinho constitui, desse modo, a mais significati­ va e divulgada bebida nas terras portuguesas e cm suas colônias. Outras bebidas de origem européia são muito populares cm nossos dias. A cerveja, por exemplo, que aliás tinha pouco significado no Brasil português, foi por muito tem po considerada, não apenas em nossa terra, como mais pró­ pria para consumo dos bárbaros, no sentido greco-romano do termo. N esta terra tornou-se valorizada em épocas posteriores ao período em estudo. Q uanto à bebida destilada, ela passa a ter popularidade maior a partir do século XVI e foi mais bem difundida sobretudo em épocas posteriores. Logo tam bém se tornou popular no Brasil. Além disso, em cada país e região surgiu um outro tipo de bebida alcoólica, algumas similares ao vinho, produzidas com o emprego de outros frutos, preparadas de diferentes maneiras. Logo a bebida destilada tornou-se sempre mais apreciada e divulgada e encontrou grande aceitação. E m Portugal, ao lado do vinho, não como seu substituto, passou a ser consumida regularmente. Nesse país e em outras terras há inú­

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meros tipos dc aguardente, obtidas por meio de frutas variadas c preparadas de modo típico a cada diferente cultura. Partindo do norte e do leste da Europa, a aguardente passou a ser difundi­ da notadam ente do século XVI em diante e já tinha papel significativo no século XVIII. Vista tam bém como energizante e capaz de dar forças para q u e m tivesse de e m p reender trabalhos pesados, além dc outras vantagens para a saúde, ela foi consumida por europeus e tam bém enviada para a A m é­ rica. A aguardente vinda de Portugal era fabricada com produtos vistos como nobres, ou seja, uva, como o vinho, ou frutos originários e c o m u m e n te consu­ midos na Europa. A outra era produto subsidiário da cana, considerada es p ú ­ ria, apesar do valor atribuído ao açúcar. Há, nesse caso, como em inúmeros outros, a valorização do produto europeu, em nosso país, sobretudo o portu­ guês, considerado bom; o local é desconsiderado. A crença de que um p equeno copo de bebida alcoólica tomado pela manhã torna as pessoas mais aptas e propícias ao trabalho é bastante antiga. T a m ­ bém se julga que tal bebida possa ter bom efeito, até m esm o curativo. Nos séculos XVII e XVIII, a literatura e as fontes manuscritas e impressas, tanto européias como americanas, nos mostram o álcool bastante valorizado como meio de cura, um energizante que deveria ser fornecido quando da realização de um trabalho difícil. Brillat-Savarin, q ue viveu na segunda m etade do sécu­ lo XVIII e nos inícios do XIX e escreveu um livro clássico a respeito da comi­ da, P/iisiologie du Goüt,x diz que ele traz conforto e efeito benéfico quase ins­ tantâneo e narra que um soldado quase morto, isto é, apare n te m e n te morto, tornou a viver quando o fizeram beber um elixir alcoólico. Aliás, esse autor com enta em outra passagem que a uma pessoa fatigada, dando-se um copo de vinho ou de “eau-de-vie, à 1’instant m êm e il se trouve m ieux et vous le voyez renaítre” . Essa crença vem de épocas muito anteriores, e Brillat-Sava­ rin afirma que todos os povos, m esm o os mais selvagens e originários de luga­ res remotos, inventaram um meio de ferm entar frutos ou outras substâncias a fim de produzir bebida alcoólica. N o caso dos primitivos habitantes de nosso país sabemos q ue preparavam uma bebida acidulada e fermentada, de milho ou de aipim, que usavam em determ inadas ocasiões. Interessante é notar que não misturavam comida com esse tipo de bebida. Ou comiam ou bebiam. Outros povos de outras regiões tam bém tinham o m esm o hábito. Estudos mais recentes mostram a veracidade da afirmação empírica em iti­ da pelo escritor francês de que há vantagem em se consumir m oderadam ente algum álcool. Ao m enos o vinho é por alguns considerado fator de saúde e o

1 A nth elm c Brillat-Savarin. Phisiologie du goüt. Paris: Flammarion, 1982. E m “História da alimentação: balizas historiográfieas” dc U lp ian o T . Bezerra de M e n e z e s & H e n riq u e Car­ neiro, in: Anais do Museu Paulista, História c C ultura Material, vol. 5, jan.-dez. 1997 e n c o n ­ tramos expressiva bibliografia sobre o assunto alimentação e bebida.

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SOARANO

fato de os povos da bacia mediterrânea o consumirem diariamente tam bém c encarado como algo positivo. A convicção de que se deve fornecer aguardente para os que pretendem realizar um trabalho visto como difícil, foi comum a vários períodos. Como um exemplo prático do século XVIII, entre outros que poderiam ser citados, na França, na região do Auvergne, isso fazia parte do ritual corriqueiro. M ui­ tos camponeses, como um outro exemplo, os da Sicília, tinham o hábito de beber vinho antes dos trabalhos mais penosos. Como o vinho era considerado um poderoso energizante, esse costume foi bastante divulgado desde o fim da Idade M édia c, em certas áreas, se m antém até nossos dias. No Brasil, uma vez que trabalhos penosos eram realizados por escravos, a eles se fornecia bebida, geralmente aguardente, antes de uma tarefa dessa categoria. E m Minas Gerais, com clima mais frio e o trabalho muitas vezes dentro de rios, como acontece na mineração, se estabeleceu tal hábito, consi­ derado necessário para produzir energia e para evitar doenças pulmonares. Q uando se buscava salitre em Bom Sucesso, Minas Gerais,J bem como na procura de ouro e de diamantes, se recomenda dar aos escravos aguardente do Reino a fim dc evitar doenças. Aliás, na Medicina de Gabriel Dellon, escrita cm 1685, se preconiza o uso do álcool para vários fins, tratando o vinho como um medicinal, de resto cren­ ça comum a vários povos. Aliás, o vinho ocupa o primeiro lugar entre as be b i­ das consideradas vantajosas, superando largamente todas as demais. A alimentação constituía um dos meios de se cuidar dos enfermos e era usual lhes fornecer o que se considerava bom para ajudar na cura de d o e n ­ ças,3 e desse modo é natural que o álcool, o vinho em primeiro lugar, fosse encarado como um medicinal, ao menos como coadjuvante nos tratamentos. N o período, tam bém o fumo era visto como uma vantagem. M anda-se forne­ cer bebida e fumo para os escravos que deveriam trabalhar nas catas,4 bem como para os doentes. Buscava-se um modo de compensar os possíveis males trazidos por lugares vistos como mefíticos por razões de clima, um idade e outras, ou tarefas consideradas trabalhosas. De certo modo era tam bém como um consolo prévio que se dava, quase um prêmio antecipado. O fumo tão criticado, com efeitos nocivos mais conhecidos em nossos dias, era visto como valioso coadjuvante nos tratamentos e derivativo para os feri­ dos até praticam ente o decorrer da segunda guerra mundial. E comum, nos filmes realizados na época, ver soldados oferecendo cigarro como um conso­ lo, uma quase compensação, aos companheiros feridos. E um exem plo entre outros de como se transforma a visão de determinados produtos que foram

2 Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino, M G , c. 42 (antiga), ms. ’ Julita Scarano. Cotidiano esolidariedade. São Paulo: Brasilicnsc, 1994. 4 Lisboa, A H U , M G , ibidem, ms.

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encarados como curativos ou encrgizantes em alguns m omentos, às vezes não muito distantes. Em certas áreas e em diversos países se m antém o costum e de se tomar uma porção de bebida alcoólica nos momentos de tensão e em nossa terra, cm alguns lugares, ainda se toma um cálicc de cachaça ou similar pela manhã, com a finalidade de dar forças. Trata-se de costumes bastante arraigados e ainda seguidos por muitos. Por outro lado, o álcool tam bém servia para outros fins; além de sua inges­ tão, era aplicado para curar a sarna, por exemplo, e possivelmente outras do en ­ ças de pele. N esse caso tam bém tinha utilização medicinal, ao lado de outras funções práticas. Essas funções aum entavam seu valor. O aspecto curativo e energizante, além de preventivo, tão vulgarizado no Brasil do século XVIII, entra em contradição com outro modo de ver a q u e s ­ tão, não relacionada com a saúde, mas enfatizando o perigo que a bebida oferecia. Por inúmeras razões julgava-se que o perigo era maior em se tratan­ do de pessoas de determinados grupos, m orm ente os escravos e os desfavo­ recidos. Além desse aspecto contraditório em si, que será explicitado a seu tempo, há tam bém uma questão francamente discriminatória. Há uma v ertente etnocêntrica no fato de se julgar vantajosa e boa a aguar­ d ente vinda do Reino, que, depois do vinho, será recom endada como energi­ zante e curativa, da qual a local seria apenas mero e pobre substituto. Uma vez q u e os portugueses e tam bém os grupos dom inantes consideravam sem ­ pre melhores as coisas vindas da Europa, é natural que isso acontecesse, mas outros fatores acentuam essa importância. A

BEBIDA

EXTRAÍDA

DA

CANA

Julgavam-se significativos e valiosos os produtos desta terra que se p u d e s ­ se exportar e principalmente quando cumprissem o seu fim determinado, e fossem valiosos e sem similar na Europa. O açúcar era o grande produto da terra, ainda muito valioso na época na qual a mineração tinha primazia, e o álcool da cana constituía apenas um subproduto da grande riqueza de expor­ tação. Aliás, como se privilegiava apenas o que podia ser m andado para o exterior, esse álcool, fabricado para consumo local, muitas vezes de modo clandestino, não podia ser visto como alguma coisa que merecesse cuidados.5 Assim, a produção do açúcar, baseada geralmente em grandes proprieda­ des e tendo como ponto central o engenho para seu fabrico, era, ao lado de outros produtos em menores proporções, a grande riqueza do litoral brasilei­

Há obras q u e tratam da cachaça como a de Câmara Cascudo. Prelúdio da cachaça. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar c do Álcool, 1986 c a de Francisco Julião. Cachaça. Recife: Ed. N ordeste, 1921 c outras.

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ro. Algumas pequenas fazendas gravitavam cm torno dos engenhos e para ele forneciam as canas, com plem entando a cultivada na grande propriedade. C) cultivo da cana em áreas açucareiras com a finalidade dc produzir cachaça era considerado um mal. Segundo as autoridades locais e m esm o as metropolita­ nas, isso derivava os agricultores do cultivo dc plantas úteis, necessárias à subsistência, tam bém dos escravos, tais como a mandioca, o milho e outras, ocupando as terras de maneira pouco significativa. Como regra geral, o cultivo da cana para a produção do álcool tinha lugar apenas nas pequenas propriedades, ou, quando nas maiores, de maneira margi­ nal e quase clandestina 011 muitas vezes apenas para consumo local. A mão-deobra escrava tinha alto preço e seria contraproducente empregá-la em trabalho de pouco valor, com escasso lucro. Aliás, mesmo para a subsistência havia res­ trições dos senhores de engenho em empregar mão-de-obra em outra cultura diferente da cana 011 na atividade de produção do açúcar. Desse modo, no pon­ to de vista da produção, o fabrico de bebida ocupava posição extrem am ente secundária. Ela constituía o meio dc vida do meeiro, do pequeno proprietário, tendo assim, em relação à fabricação e ocupação das terras, papel pouco valori­ zado, à margem da grande produção. Constituía tam bém uma cultura e uma elaboração muito útil aos quilombolas, que podiam com relativa facilidade ven­ der seu produto aos negros, sobretudo. Nas Minas Gerais, por exemplo, C unha Matos afirma em 1837/’ que havia grande quantidade de engenhos de moer cana que tinham sido plantados com a finalidade dc fabricar aguardente e rapa­ dura. Conforme se pode ver, não havia em determinadas regiões vantagem em fabricar açúcar uma vez que faltava interesse econômico para a sua exportação. Eram áreas à margem da grande produção agrícola. Q uanto aos locais onde o açúcar não era a principal riqueza, como acontece nas terras de mineração, as áreas ocupadas pela cana destinada ao fabrico da aguardente se localizavam ao redor das terras onde se processava a valiosa produção de ouro ou cata de diamantes, ocupando suas fímbrias. Apesar dc que se deveria obter licença para um estabelecim ento de um engenho, isso nem sempre acontecia. Dificilmente essas pequenas áreas de plantio chega­ vam a ser detectadas, pois muitas delas se escondiam pelos matos e apenas com uma mais difundida ocupação da terra se passou a ter maior notícia de sua localização. Pequenos proprietários, plantadores clandestinos e tam bém quilombolas, ocupavam suas terras com 0 cultivo de cana para fabrico de b e ­ bida. Apesar da proibição, as autoridades locais, ao escreverem a seus s u p e ­ riores, assinalam que pequenos engenhos e engenhocas existem por toda a parte e m antêm ativo comércio regional. Aliás, mesmo em Minas Gerais, onde havia mais fiscalização, desde os inícios do Setecentos se reclama da manu-

h Francisco José da C u n h a Mattos. Corografia histórica r/a província He Minas Gerais, vol I. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1979.

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tcnção dc engenhos e engenhocas. Nessa área, em 1734, se condena a exis­ tência dc terras ocupadas com quantidade de engenhos para fabrico de be b i­ da, pois, naqueles momentos, se preconizava apenas o uso de aguardente do Reino, uma das fontes de lucro para o governo, e se julgava prejudicial para o Fisco a concorrência do produto local, além de outras desvantagens. Entretanto, mais tarde, dada a grande quantidade de escravos e a dis­ tribuição de bebida para os trabalhos difíceis, tornou-se atraente para os p e ­ quenos proprietários o plantio de cana a fim de fabricar cachaça. Q uando o produto mais lucrativo de uma área tinha sua produção diminuída, caso dos minerais, ou sofria concorrência, como acontece com o açúcar do Nordeste, aum entava grandem ente o fabrico de aguardente. Aliás ela tornou-se lucrati­ va, um meio de vida para os pequenos proprietários que, muitas vezes, não tinham outras possibilidades dc subsistência. A produção era geralmente para consumo local, mas esta muitas vezes não bastava e assim havia áreas especializadas que a vendiam para outros pontos do país para suprir as necessidades. Por isso muitos engenhos e engenhocas se espalham por toda a parte, apesar de que certos locais se tornam mais característicos desse mister agrícola e na fabricação de bebidas, como é o caso de Parati, por exemplo. Dada a grande quantidade de pessoas qu e se diri­ giam para esse porto para o comércio do ouro, a bebida de Parati se difundiu por toda a parte. M esm o assim, há documentação assinalando, criticando e afirmando q u e o cultivo com o específico fim de fabricar bebida se espalha por todo o país, não se restringe apenas a algumas áreas. A possibilidade de aum entar o consumo de forma barata aparecia como um problema bastante sério para os governan­ tes. Mas para os proprietários de escravos, por exemplo, era um meio pouco dispendioso de fornecer bebida a seus trabalhadores e, ao m esm o tem po, um perigo, dada a sua fácil divulgação. E m Minas Gerais, foram inúmeras as proibições, o que mostra que elas não eram obedecidas e por isso se viam periodicam ente reiteradas. Apesar de uma repetição dessa proibição em 1789, um alferes possuía terras o nde culti­ vava cana e fabricava cachaça ainda em 1799. Conforme se vê, até m esm o as pessoas que participavam do governo não seguiam as leis. Essa, portanto, foi mais um a das leis não seguidas e cumpridas, com a conivência das autorida­ des locais que tinham interesse nisso. Entretanto, em São Paulo, já nos inícios do século XIX se pensava na pro­ dução de açúcar, não apenas na de cachaça; aliás, desde 1805, se julgava im­ portante a cultura da cana na vila de Itu e se procurava incentivá-la em outras vilas.7 T a m b ém nos arredores do Rio já se encontram, por essa época, fazen­

7 Documentos interessantespara a história e costumes de São Paulo, vo\. 95. São Paulo: Ed. U nespSecretaria do Estado da Cultura, Arquivo do Estado de São Paulo, 1990.

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das produzindo açúcar. A partir desse período c que a produção do açúcar no Sudeste vai substituir e ocupar o lugar da da cachaça e nesse m om ento o cultivo da cana deixa de ser marginal e acaba, bem mais tarde, entretanto, por competir com o N ordeste no cultivo da planta e na produção açucarcira. O u ­ tros engenhos, de maior porte e importância, passam a competir com as e n ­ genhocas produtoras de bebida, e algumas se voltam para o fabrico do açúcar. É possível estabelecer-se uma linha imaginária que situa a produção e o fabrico do açúcar como prerrogativa dos habitantes de elevada categoria so­ cial e econômica e os fabricantes de cachaça como proprietários de pequenas glebas e engenhos, pertencentes a um outro estrato populacional, mas não destituído de bens, obrigatoriamente. Portanto há uma distinção econômica e sobretudo social entre o produtor de açúcar c o de bebida. A

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Q uanto ao distribuidor de bebida alcoólica, o importador, ou seja, o que vende o produto vindo de Portugal, ocupa categoria mais elevada, exercendo significativo papel na economia, ao menos regional, isso sem mencionar os grandes importadores. Esses importadores cm geral não se atêm à venda e distribuição de bebida, mas se dedicam tam bém a outros ramos, exercendo muitas vezes um comércio em grande escala, o que os torna pessoas gradas, econômica e socialmente. Bem diferente é a situação do distribuidor do pro­ duto local, especialm ente de cachaça. Este se situa em outra categoria, quase sempre participa dos grupos marginalizados. N o Brasil português, a distribuição de produtos, notadam ente os locais, mas m esm o os vindos de fora, mesmo os mais baratos, era feito por meio de lojas que vendiam alimentos, sejam eles comestíveis ou bebida. A maior par­ te das lojas de porta aberta que vendiam tais produtos comerciavam com tecidos, ferragens, variados objetos, produtos de toda a sorte, e poucas eram especializadas. São classificadas geralmente como “lojas grandes” , ao menos nas Minas Gerais. O comércio em escala miúda era realizado por meio das que eram chamadas de “pequenas lojas”, assim classificadas tam bém para o Fisco. Eram bastante numerosas nas Minas Gerais, por exemplo, m esm o em vilas e arraiais e algumas autoridades as consideravam m esm o excessivas e as olhavam com desconfiança. Outro tipo de distribuição e venda era realizada nas ruas, feitas em geral pelas negras de tabuleiro. Esse comércio am bulante era em grande parte exercido por essas m ulheres que, quer por conta própria, quer a m ando de seus donos, especialm ente de suas donas, iam vendendo vários produtos miúdos pelas ruas de vilas e arraiais, chegando m esm o a inva­ dir as catas, nas terras onde havia mineração. A bebida era um dos produtos mais procurados e vendidos. Apenas com a chegada da imigração nos últimos decênios do século XIX é que pessoas de outros grupos passaram a realizar

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tal comércio, ncssc caso partindo do litoral ou dc alguma cidadc dc maior porte. Os mascates tomaram o papel das negras dc tabuleiro, com a diferença dc irem para lugares bem mais distantes. Mas isso sucede notadam ente em épocas mais próximas. N o século XVIII, sobretudo, esse comércio am bulan­ te era realizado por alguns homens, mas principalmente pelas assim cham a­ das negras de tabuleiro. As negras de tabuleiro m antinham comércio basicamente local e, sc as lojas mais importantes vendiam produtos vindos de outras áreas e m esm o da Europa, as pequenas, especialmente, faziam um comércio dedicado aos pro­ dutos da região, com algumas exceções. Muitas vezes comércio clandestino, conforme as autoridades timbram cm afirmar. Nas vendolas, a cachaça era um dos produtos de grande procura, além do fumo e de alguns outros. T a m ­ bém se afirmava que nas terras de mineração havia trocas dc metais c dia­ mantes por tais produtos. E sempre se julga que há muito de oculto e dc clandestino nas transações realizadas sobretudo pelas lojas m enores q u e po­ deriam passar mais despercebidas. N o caso da troca de comestíveis, bebidas e outros por ouro 011 diamantes, os vendedores eram geralm ente pessoas vin­ das de fora com o específico fim de realizar tal comércio. Consta qu e os que vendiam cachaça davam tiros para o ar para assinalar sua presença e realizar seu mister ilegal. Atraíam assim os compradores de bebidas alcoólicas e m ui­ tas vezes as vendas se faziam em troca de ouro e pedras, conforme se afirma reiteradam ente nas cartas e nos informes às autoridades. Elas julgam ser a bebida uma grande impulsionadora do contrabando. Aliás, na Biblioteca Nacional de Lisboa,8 encontram-se inúmeros docu­ m entos assinalando que a cachaça é uma das causas do extravio de diamantes e é para consegui-la que os escravos os roubam. Afirma-se tam b é m que as lojas ficam abertas até tarde da noite e que nelas se processa ativo comércio clandestino, no qual essa bebida ocupa privilegiada posição. Para coibir tal comércio era com um a expulsão de pessoas que se dedicavam a transportar cachaça,9 não apenas dos que se encontravam envolvidos com o contrabando. Mas, apesar da freqüência das críticas, nunca se chegou a resolver essas q u e s ­ tões, que eram vistas como grave problema pela administração. Além de atacar os donos das lojas, indiscriminadamente, afirma-se que muitos deles são pretos ou mulatos e aliás, m esm o em meados do século XIX, considera-se que os mulatos constituem o maior contingente de v e n d e ­ dores de bebidas. E possível que isso fosse real, uma vez que muitos m esti­ ços se dedicavam a um pequeno comércio e tinham dificuldade em conse­

" Lisboa, Biblioteca Nacional; aí encontram os ab u n d a n te docu m entação q u e trata do assun­ to, sob retu do na Coleção Pombalina. Aliás, esse c um tem a c om um na correspondência com Portugal. (> Lisboa, Biblioteca Nacional, Coleção Pombalina, doc. N. 697, 1775, ms.

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guir outros produtos para tal. Dc resto, o comércio de bebidas era lucrativo, relativamente, e mais interessante para os pequenos proprietários do que o de produtos mais corriqueiros. Por outro lado, sempre houve o hábito de se acusarem pretos e mulatos de todas as malfeitorias, buscando assim livrar as pessoas gradas do local de perseguições e de problemas. Como as cartas eram escritas pelas autoridades 011 por quem ocupava significativo papel na socie­ dade local, todas essas pessoas se exim em de culpa e sempre acusam alguém das categorias mais desfavorecidas de tudo o que se faz de malfeito e poderia ser suscetível de castigos. Entretanto, algumas pessoas desses grupos perseguidos, reclamando por meio de suas irmandades religiosas que tinham tam bém a finalidade dc d e ­ fender e proteger seus membros, 011 por outros meios, escrevem para a Corte tentando mostrar que isso não é verdadeiro 011 real e chegam a acusar pessoas de elevada categoria como autores de desmandos e causadores de problemas. Algumas vezes, sobretudo quando se tratava de questões relativas a contra­ bando e roubo de metais e pedras, tais acusações foram levadas a sério. Mas isso não foi usual. Negros e mulatos, bem como brancos pobres, tinham pou­ cas oportunidades de se defender. As autoridades locais m antinham interes­ ses similares ao das pessoas mais ativas economicam ente e as portuguesas sc encontravam muito distantes para agir efetivamente. Malefícios e problemas trazidos pela bebida destinada aos brancos 011 a pessoas dos grupos mais abonados são geralmente esquecidos na d o c u m e n ­ tação. Não encontramos críticas a tal respeito. E videntem ente, esse é um aspecto que não interfere com a vida diária, ao menos no setor público, não m erecendo que se cuidasse do assunto. Isso nos mostra o quanto havia outras implicações na questão referente às bebidas alcoólicas, não se procurando sanar ou diminuir um mal particular ou de saúde. Há, por parte de autorida­ des governamentais, mesmo as locais, uma preocupação que abarca apenas o perigo de deixar que pessoas descontentes com sua sorte se e m b e b e d e m e passem a praticar excessos. Ou então esboçar movimentos perigosos e fazer arruaças capazes de “pôr em perigo o sossego das g entes” , conforme costu­ mavam dizer. Entretanto, na Medicina Teológica de Francisco de Melo Franco"’ escrita em 1794, se nota maior preocupação, e 0 capítulo XX é dedicado à “bebedice” . T em o seguinte título: “A bebedice é uma grande enferm idade que n u n ­ ca se cura com remédios morais e dificilmente com os físicos” , o que mostra que esta não deixava de constituir um problema, m esm o não sendo especifi­ cam ente tratada nos documentos oficiais. A preocupação destes docum entos diz respeito aos escravos ou a outras pessoas desfavorecidas porque a intem-

10 Francisco dc M elo Franco. Mediana teológica. São Paulo: Kditora Giordano, 1994.

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perança dos outros não interferia diretam ente com a vida local, não consti­ tuindo problema para os governantes. Apesar de essa obra afirmar enfatica­ m ente que o uso moderado do vinho constitui grande rem édio c que ele contribuiu para a grandeza dos povos, como aconteceu com os gregos, confor­ me assinala, seu abuso causa numerosas enfermidades. Considera quase im­ possível tratar o mal do abuso de bebida alcoólica, seja a cachaça, seja outra qualquer, e põe nessa mesma categoria aguardente e demais licores e vai citando as doenças que surgem como conseqüência dessa “b c b e d ic e ” . Não deixa de sugerir alguns remédios capazes de minorar esse mal. Tal asseveração, cm um livro que trata de doenças e aconselha aos confes­ sores maneiras dc lidar com cias, nos mostra que o assunto era do interesse de alguns elem entos da população, interesse relativo, pois a preocupação de autoridades c dc governantes dizia respeito às conseqüências políticas, so­ ciais e do “sossego público” , perturbado pelo abuso do álcool. Pouco tem po depois, alguns viajantes que estiveram no Brasil trataram da questão da bebida em relação aos hom ens brancos e aos proprietários. Burmeister," por exemplo, falando da alimentação no interior, conta que se re­ gavam as refeições com água ou um pouco de aguardente e não menciona nada relacionado a abuso alcoólico. Outros afirmam que, apesar de a comida brasileira ser muito pesada, isso não afeta grandem ente a saúde um a vez que nas refeições se bebe um pouco de vinho e de aguardente, o que ajuda a digestão. Walsh,12 por sua vez, comenta que os brasileiros não se entregam a b e b e ­ deiras aos domingos, o que com um entç acontecia com os ingleses, seus com ­ patriotas, ou europeus de outras nacionalidades. Ao que parece não havia hábito difundido e enraizado de se embriagar, ao m enos em público, pois essa questão não se vê tratada com grande freqüência nos docum entos que pudem os compulsar. M esm o memórias de paulistas do século XIX, que, e n ­ tretanto, fazem tam bém referências ao século anterior, não tratam especifica­ m ente de abusos do álcool; aliás o assunto não m erece a atenção dessas pe s­ soas de elevada categoria social, que, narrando a vida na capital paulistana ou nas fazendas, não julgam que a questão da embriaguez mereça especiais con­ siderações.1’ O assunto é quase sempre ignorado. O que acontece e m relação aos escravos é que, em falta de outros derivativos, muitos bebiam e causavam apreensão e tem or a seus donos, sobretudo porque em determ inadas épocas, como o século XVIII em geral, quando a população de pretos e mulatos, conforme os cálculos realizados, ultrapassava muito a do brancos, em certas

11 H e rm a n n Burmeister. Viagem ao Brasil. 12 R. Walsh. Notícias do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1985. 13 N a obra Vida cotidiana em São Paulo no século X IX , organizada por Carlos E ugênio Marcondes d c Moura, Atelier Editorial, 1999, p odem os notar essa ausência.

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áreas com grande diferença numérica. N esse caso, o combate à bebida alcoó­ lica seria um modo de controlar os cativos c os desfavorecidos, mais do que uma aversão à embriaguez propriamente dita. Aliás, os capitães-do-mato que não gozavam de boa fama por inúmeros motivos eram considerados, no período, os maiores bebcrrões. M esm o as au­ toridades que os empregavam c se utilizavam de seus serviços, os julgam negativamente, não apenas pelo elevado consumo de álcool, mas por não os considerarem dignos de confiança. Tendo uma vida de certo modo desligada da do grosso da população e se internando pelos matos, eles deveriam buscar derivativo no alto consumo de álcool. Assim, se nota que a bebida alcóolica, no caso a cachaça, se via criticada e seus vendedores perseguidos, ao menos teoricamente, por motivos outros que não os trazidos pelos habituais males das bebidas, mas sobretudo por razões políticas c de controle econômico. Julgava-se que, além de serem motivo de roubos e de contrabando, traziam perigo público, pois a gente dc cor, con­ forme se dizia no período e nos é transmitido pela documentação, bebendo nas festas e comemorações, promovia arruaças capazes de trazer enorm e p e ­ rigo. Esse aspecto tam bém é bastante reiterado nas cartas e demais docu­ mentos que encontramos nos arquivos portugueses e brasileiros. O tem or desses perigos faz com que se procure organizar e estabelecer controle nas festas, onde o consumo de bebida era mais comum c fácil. D e modo geral, as festas é que proporcionavam real oportunidade para as pessoas desfavoreci­ das poderem beber com certa liberdade e com afrouxamento de controle. A bebida, ao lado da comida, fazia parte integrante das festas, tanto reli­ giosas quanto profanas, das comemorações, das reuniões. Não havia festa sem seu consumo. M esmo a embriaguez parecia natural e permitida nessas oca­ siões,14 se houvesse uma boa intenção, como o desejo dc homenagear os san­ tos e os valorizar. Ao menos essa era uma crença bastante divulgada. A bebida servia como uma real hom enagem e mesmo alguns excessos pareciam dignos de perdão. Esse era o costume difundido, sem, entretanto, o beneplácito da Igreja. Nas Constituições do Arcebispado da Bahia,IS por exemplo, se condenam os clérigos que abusam do vinho, criticam-se os que com isso perdem o juízo ou sejam destemperados. Portanto, se percebe que nas tabernas havia exces­ sos, não apenas dos clérigos, mas tam bém dos demais freqüentadores. E n ­ tretanto, talvez as autoridades não eclesiásticas que não lidavam com q u e s ­ tões relativas a pecados, não se incomodassem muito com bebedeiras portas adentro. Nos velórios, por exemplo, a bebida tam bém se faz presente e não deixa

14 Mary dcl Priorc. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliensc, 1994. Sebastião M onteiro da Vide. Constituições primeiras Ho ArcelnspaHo Ha Bahia. Sínodo de 1707. São Paulo: Typographia 2 d e D ezem bro, 1853.

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dc ser um modo dc homenagear os mortos, ao menos era encarada dessa maneira. Com a distribuição dc bebidas, o velório se transforma quase em uma festa, uma hom enagem ao defunto. O quentão, ainda comum em de te r­ minadas áreas de nosso interior, é usual nos velórios, além de outras bebidas. Assim, mais uma vez se nota a contradição entre dois diferentes valores, duas divergentes maneiras dc ver uma questão. A

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Um outro aspecto em relação à bebida alcoólica não pode ser esquecido ou minimizado. Trata-se da possibilidade dc convívio entre iguais e da com pre­ ensão dc que a bebida propicia alegria c companheirismo. Até m esm o na Europa havia divulgação desse modo de ver e muitas sociedades báquicas se criaram, tendo o vinho como ponto central. A mesma valorização acontece em nosso país, certam ente de outra maneira, sem a organização de socieda­ des especiais, e isso não suscitava um especial desfavor. Entretanto, no Brasil, além desse difuso companheirismo, o álcool propor­ cionava uma solidariedade entre os escravos e as pessoas m enos favorecidas, e esse aspecto desagradava as autoridades. A bebida permitia tam bém convi­ vência com pessoas de diferentes categorias, impossível em outras circuns­ tâncias. T e n d e a criar encontros que eram vistos como indesejáveis. Assim, se nota que o que se tentava evitar era acima de tudo o que sairia das regras que consideravam boas e válidas. Falando da alimentação dos escravos que trabalhavam nas minas de ouro, E schw ege16 nos conta que os conterrâneos ou amigos se assentavam juntos, comiam da mesm a gamela e com enta que os que possuem algo m elhor ou conseguem bebida a dividem com os companheiros. Constituía assim um poderoso fator de solidariedade, um meio de unir grupos de uma m esm a etnia ou m esm o de outras, que, trabalhando em com um e participando da m esm a triste sorte, podiam encontrar pontos de união. Por outro lado, as festas tinham no álcool um motor capaz de dar mais vigor às danças e aos cânticos, estreitar, m esm o que tem porariam ente, as amizades e fazer com que as pessoas tivessem alguma oportunidade de dar vazão a seus sentimentos, participar do m undo circundante, mostrar enfim sua h u ­ m anidade. T a m b é m constituía o p o rtunidade de m anifestar sen tim e n to s muitas vezes mantidos secretos, isto é, combinar levantes 011 preparar fugas. Todos esses aspectos eram temidos pela população das vilas e dos arraiais, das fazendas e das catas, e isso é o que causa apreensão, tem or nas autorida­ des e nos habitantes brancos.

Ifl W. L. von Eschwegc. Pinto brasiliensis, 2 vols. São Paulo: Nacional, Coleção Brasiliana, 1944.

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O fato de haver uma simbiose conhecida, mas nem sempre detectada e conseqüentem ente punida, entre os contrabandistas de ouro c de pedras e o comércio de bebida alcóolica era outro fator de preocupação. Dizia-se, sem conseguir muitas vezes prová-lo, que tais vendedores sc dirigiam às terras minerais com esse determ inado fim, e esse aspecto parecia c era extrem a­ m ente grave para o Fisco, conforme mencionado. E m terras onde não havia mineração tam bém se falava em contrabando, mas eram questões que se jul­ gavam menos preocupantes, mas mesmo assim sérias. T am bém a acusação de que escravos e libertos, bem como pessoas de outros grupos desfavoreci­ dos, praticavam roubos com o fim de trocar seu produto por fumo e especial­ m ente por bebidas levava a uma perseguição c vigilância, nem sem pre com bom resultado. O curioso é a duplicidade das questões relativas ao álcool, pois os donos dc escravos muitas vezes forneciam bebidas para as comemorações e depois al­ guns se queixavam de arruaças ou de embriaguez. Os escravos, tam bém por sua vez, tinham meios de comprar bebidas, quando conseguiam obter algum dinheiro, o que não era extrem am ente raro, ou de trocá-las por produtos dc seu engenho 011 mesmo por contrabando c roubo. Assim se com preende que elas constituíam parte integrante das festas e das comemorações, fossem es­ tas religiosas 011 de outra origem. Portanto, a bebida será um fator de solidariedade, seja grupai, isto é, reu­ nindo pessoas da mesma etnia para seu consumo, seja acentuando os liames entre companheiros de trabalho ou de situação social; as autoridades locais se mostram incapazes de tomar medidas eficazes, conforme assinalado,1' para impedir essa distribuição informal. Constituía assim um poderoso fator de convívio e de solidariedade, até mesmo 011 sobretudo entre os grupos mar­ ginalizados. Esse tam bém era um aspecto temido; as reuniões, sob que pretexto fosse, constituíam fontes de problemas para os proprietários e as autoridades, mas, muitas vezes, na prática, não se levava em conta aspectos teoricam ente vistos como perigosos. Cham a a atenção de quem analisa a bebida alcoólica no Brasil dos prim ei­ ros séculos a ambigüidade de costumes, de leis e de pareceres, isto é, de um lado se considerava o álcool bom, curativo, lucrativo, valioso presente para pagar favores ou trabalhos recebidos, e de outro, viam-se apenas os malefícios produzidos. Esses malefícios, entretanto, não diziam respeito aos males tra­ zidos para o indivíduo em si, ou seja, saúde, por exemplo, mas para a socieda­ de constituída e sobretudo para a vida política. N esse sentido, o álcool era considerado um produto que já em si, pelo seu cultivo e distribuição, escapa­ va do controle de Lisboa, sendo muitas vezes trabalho de marginais, de qui-

17 Julita Scarano. Cotidiano e solidariedade. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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lombolas c dc clandestinos. Por outro lado, fazendo com que as pessoas agis­ sem fora das normas estabelecidas c das relações Colônia/Metrópole, abria cunhas para cscapes dc várias ordens, uma vez que a primeira existia e d e v e ­ ria trabalhar em prol da segunda e o álcool cortava o fio que deveria m anter pessoas e coisas cm lugares determinados pela Coroa. T am bém possibilitava que se tornasse manifesta a discrepância entre os interesses das autoridades locais e as metropolitanas, uma vez que, para aquelas, o pequeno plantio c fabrico, o comércio miúdo oferecia algumas vezes interesse econômico e isso contrariava os desígnios da Metrópole. Q uanto à população cm geral e o governo local, tam bém encontramos manifestações divergentes: cada proprietário de escravo, cada autoridade lo­ cal cuidava de seus próprios c p equenos interesses c, conforme as circunstân­ cias, ora fechava olhos, ora perseguia os fabricantes e os vendedores do pro­ duto clandestino. Além de que muitas vezes se estabeleceram conluios entre esses contraventores e os habitantes para proveito de ambas as partes e detri­ m ento da Coroa. O que se temia e se esconjurava, sobretudo entre os habitantes das vilas c dos arraiais, eram as bebedeiras e as arruaças que punham a população em pânico. N esse aspecto, há realmente uma visão negativa da bebida local. O álcool importado serviria apenas para embriagar os benestantes e os proprie­ tários, e isso não era visto como grande mal. Assim, a discriminação entre produto europeu e produto local, que certam ente existia, não constituía o mais grave motivo da valorização de um e da desconsideração do outro. A cachaça fabricada no Brasil era barata, bem distribuída e divulgada, podendo ser adquirida m esm o por escravos, ao passo que a outra ficava restrita a pes­ soas mais ligadas à administração e ao poder, ao grupo dos proprietários, m e ­ nos propícios a pôr em perigo a situação do país. D esse modo, a bebida alcóolica servia para marcar e diferenciar as cate­ gorias econômicas, mas sobretudo as sociais. Q uem ocupava um posto rela­ tivam ente elevado na sociedade, fosse um hom em branco (não encontrei menção de mulheres em relação à bebida, apesar de que certam ente deveria haver consumidoras, talvez secretas, do produto), em suma, um branco que não fizesse parte da categoria dos brancos pobres, consumia o produto trazido de Portugal e isso não era visto como algo condenável. Havia contínua impor­ tação de vinho e m esm o de aguardente do Reino. Lisantiis encontrou in ú m e ­ ros exemplos em suas pesquisas. Desse modo é fácil com preender que não m ereceram considerações especiais ou críticas nos docum entos compulsados, não há preocupação em relatar problemas trazidos pelo excesso de be b i­ da em pessoas desses grupos benestantes.

IK Luis Lisanti. Negócios coloniais. São Paulo: D ep artam en to do Arquivo do Estado. 1973.

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Escravos, forros c demais desfavorecidos se contentavam com o produto da terra, a popular cachaça. Por razões sobretudo políticas, econômicas e dc ordem pública, cies se tornaram criticados e m esmo perseguidos, postos, tam ­ bém nesse aspecto, na marginalidade. E curioso notar que não se acentua que as bebedeiras prejudiquem o trabalho do dia seguinte ou tornem os b e ­ bedores contumazes sujeitos a doenças. A expectativa de vida era muito curta, não haveria tempo para o apareci­ mento de cirrose e outros males relativos ao abuso do álcool c tam bém havia desconhecimento de seus efeitos a longo prazo. Os males longínquos não eram cogitados, e nesses casos, antes que pudessem afetar ou prejudicar a saúde, o paciente já havia morrido por inúmeras razões relativas ao trabalho c ao rigor da vida diária. O trabalho excessivo c perigoso, a insalubridade das funções que escravos e pessoas miseráveis deviam realizar, doenças várias e inúmeros fato­ res bastante conhecidos, levavam a um alto índice de mortalidade. Poucos con­ seguiam envelhecer e sofrer o resultado de suas intemperanças. Tudo o que interessava aos donos de escravos e mesmo às autoridades eram os problemas do momento, o contrabando, os roubos, as bebedeiras e arruaças e mesmo revoltas, acentuadas ou trazidas pelos efeitos do álcool. Esses eram problemas que governantes c proprietários enfrentavam c os que desejavam resolver. Isso sem deixar dc oferecer um copinho dc bebida a seus trabalhadores, ou de dá-la como um prêmio cobiçado ou permitir seu uso nas festas e comemorações. Visto como um deus bifronte, tendo uma face vantajosa, boa enfim, e uma outra cheia de perigos, capaz dc trazer apenas problemas, o álcool cxerccu d u ­ plo papel, podemos dizer teve inúmeros papéis contraditórios. Era desejado e por ele se cumpriam ordens, se faziam trabalhos difíceis, se obedecia c agrada­ va. Por seu lado, com ele os proprietários pagavam as ações que consideravam meritórias, o usavam para ajudar a sanar seus doentes, inclusive seus escravos. Mas constituía tam bém a fonte, 011 melhor, o coadjuvante dos males que afetavam a vida do país, sobretudo na visão de autoridades e de proprietários de escravos, e tam bém para os habitantes das vilas e arraiais. Para a população mais pobre e desvalida, era o meio de se fugir da realidade escorchante, o pretexto de encontros e de amizades, m esm o o coadjuvante de conluios, o contrário do que era visto pelos governantes que o considera­ vam fator das malversações, dos roubos e crimes, das desordens, de proble­ mas. Mas um mal necessário. Sem ele não haveria prêmios n em boa vontade, não se curariam doenças, a vida pareceria mais complicada e monótona. Esses males de cunho político e social, entretanto, eram contínua fonte de preocupação. Afetavam ou temia-se que viessem a afetar profundam ente a sociedade estabelecida e que se desejava imóvel, estável e perm anente. □ □ □

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S c a r a n o c p r o f c s s o r a - a d j u n t a d c H is t ó r i a d a C i v i li z a ç ã o B ra sile ira d a U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l P a u l i s t a ( l l n c s p ) e p ro f e s s o ra v i s i t a n t e d a U n i v e r s i d a d e d e

J u l i i a

W is c o n s in , M a d i s o n , E .U .A . P u b li c a ç õ e s : D evoção e escravidão. S ã o P a u lo : N a c i o n a l , C o l e ç ã o B rasilia n a , 1." e d iç ã o , 1976, 2.a e d iç ã o , 1979; C otidian o e solidariedade. S ã o P a u lo : B ra s ilie n s e , 1994; F é e milagre. S ão P a u lo : E d i t o r a P a ç o d a s A rte s , n o p re lo , a l é m d e n u m e r o s o s c a p í t u l o s e m livros, b e m c o m o a rtig o s e m r e v ista s e jo r n a is. O b r a s d e ficção: S aím os a rever estrelas. S ã o P a u lo : E d . T e r r a Boa, 1986; L ir a nas m ãos dos ventos. S ã o P a u lo : P a u l i n a s , 1990, e o u tr o s c o n to s c p o e m a s , e m r e v is ta s e jo r n a is. R K s li M o . A b e b i d a alc oó lica n o Brasil d o s s é c u lo s X V I I I e in íc io s d o X I X , p o r u m la d o p a r e c i a n e c e s s á r i a p ara fo r ta le c e r os t r a b a l h a d o r e s e os a n i m a r n a s t a r e f a s d if í­ ce is , m a s , ao m e s m o t e m p o , c o n s t i t u í a f o n t e d c a rru aça s, s o b r e t u d o p o r q u e e s c r a v o s é q u e e x e r c i a m f u n ç õ e s ag rícola s c m i n c r a d o r a s . P o r t a n t o h a v ia u m a a m b i g ü i d a d e e m r e la ç ã o à b e b i d a alcoólica: ela e ra v is ta c o m o u m c o m p l e m e n t o d a s fe s ta s , u m elixir, u m c u ra t iv o , u m p r ê m i o , m a s t a m b é m c o m o f o n t e d o s m a i o r e s p r o b l e m a s . M o t i v o d c r o u b o s e c o m o m a t e r i a l d e tro ca n o s ca so s d e c o n t r a b a n d o . P o r o u t r o lado, ao p a s s o q u e o v i n h o e r a m u i t o v a lo r iz a d o , a b e b i d a p r o d u z i d a n o B rasil e r a v is ta m a i s c o m o m a le fíc io . D o p o n t o d e v is ta d a p r o d u ç ã o , os p r o p r ie tá r io s d e te r ra s e d o s e n g e n h o s s e d e d i ­ c a v a m ao fa b r ic o d o a ç ú c a r q u e s e r v ia p a ra e x p o r t a ç ã o , ao p a s s o q u e a c a c h a ç a d e cana era p ro d u z id a por d o n o s d e en g e n h o c a s, p e q u e n o s p roprietários e q u ilo m b o la s e u t i li z a d a p e l a p o p u l a ç ã o local m a i s d e s f a v o r e c i d a . E m r e la ç ã o à d is tr i b u iç ã o , os q u e v e n d i a m v i n h o o u p r o d u t o s v i n d o s d e P o r t u g a l o c u p a v a m p o s iç ã o c a t e g o r i z a d a , ao p a s s o q u e os v e n d e d o r e s d a c a c h a ç a local e r a m as n e g r a s d e t a b u l e i r o e o u t r o s d e b a ix a c a te g o r ia . P o r t a n t o a b e b i d a a lc o ó lic a u t i li z a d a c o n s t i t u í a fa t o r d e s e p a r a ç ã o e d is c r im in a ç ã o .

Vestimentas de escravas pedintes na festa do Rosário, c. 1776. Desenho aquarelado. Carlos Julião. Riscos ilu m in ados de figu rin h as de brancos e negros d e ttzos d o R io de Janeiro e Serro F rio. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1900. Biblioteca Guita/José Mindlin. Foto Lucia Mindlin Loeb.

OS GASTOS DO SENADO DA CÂMARA DE VILA RICA COM FESTAS: DESTAQUE PARA CORPUS CHRISTI (1720-1750) C AM I L A

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F. R N A N D A

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T IAG O

festivas num a perspectiva de longa dura­ ção revela macromudanças de sentido e significados que devem ser conside­ radas pelo pesquisador do tema. N a Idade Média, até os limites do Renasci­ m ento, as festas eram m om entos de diversão irrestrita. Seus elem entos e ritos c o m punham intenção ampliada de inversão, carnavalização, troca de papéis sociais. As hierarquias sociais eram suspensas, todos igualavam-se num impulso anunciador do novo, renovador, rejuvenescedor. Inauguravam um tem po alegre, alheio aos temores medievais. N o transcurso dos anos, como bem trabalha Bakhtin, as pulsões carnavalizantes dos festejos, concatenadas em símbolos e rituais, foram gradativamente extirpadas de sua composição, com destaque nas celebrações religiosas, mi­ grando para uma versão compacta do carnaval, persistente em nosso calendá­ rio contem porâneo.1 A festa barroca, objeto de análise desse estudo, exalava um sentido diverso das catarses populares medievais, não obstante conservasse vários de seus constitutivos e significados. A intenção maior, reverenciar a figura divinizada do rei inserindo-o n um complexo de símbolos apropriado, saudava e engran­ decia o monarca. Ele era o centro dos rituais, e estes mobilizavam o povo rumo a um a representação social hierarquizada, reabilitando, em novas ba­ ses, uma matriz organizacional medieval. A presença real era, na maioria dos O

e s t u d o

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d i n â m i c a s

1 Mikhail Bakhtin. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François Rabe/ais. T radução d c Yara Fratcschi. São Paulo-Brasília: H u c ite c -E d u n b , 1987, p. 190.

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casos, simbólica. Nas festas a que o rei comparecia, sua presença física inscre­ via-se num a áurea mistificadora instalando uma distância abissal entre sua suposta natureza transcendental c os súditos. Servindo aos propósitos do espetáculo político, a festa barroca primava por oferecer uma representação social ideal aos desígnios do poder. Alocando o rei no epicentro, trabalhava no sentido dc sua “representatividade pública” , con­ ceito forjado por Habermas para explicar a imersão do monarca num universo simbólico capaz de, ao mesmo tempo, divinizá-lo, afastando-o das proprieda­ des humanas, e mostrar o lugar socialmente devido aos súditos. Habermas uti­ liza esse conceito, sobretudo, para precisar o sentido de público na Idade M e ­ dia, quando público e privado não se diferenciavam claramente, advindo todo o poder dos proprietários de terras. Estes dignitários ostentavam publicamente seu poder por meio de insígnias, trajes adequados, modos de comportamento, ctc. A representatividade pública não se referia a uma esfera institucionalmente delimitada, mas à pura exaltação pública da dominação.-’ Com o advento do Estado Moderno e conseqüente delimitação mais pre­ cisa de público e privado, a possibilidade de representar-se publicam ente restringiu-se ao monarca, ápice do complexo administrativo. Nesse sentido, as festas deveriam maravilhar, arrebatar os sentidos dos espectadores (propriedade popular nesses eventos) desvendando o poder régio em promover tamanho espetáculo. Só reiteravam seu sentido supracitado sc fossem grandiosas, esplêndidas, surpreendentes! Ao povo cabia curvar-se diante de uma demonstração de poder e riqueza de tal monta, e n te n d e n d o a monarquia como capaz de transformar a paisagem cotidiana e edificar um am biente feérico. Para isso, contribuíam a iluminação, os fogos de artifício, as arquiteturas efêmeras, a música, a decoração das ruas, e muito mais! A mag­ nanim idade do Rei era evidenciada nesses momentos. Enfocar os rituais barrocos dessa forma nos leva à conclusão dc que os gastos exacerbados com festas, tão referidos pela historiografia sobre o tema, com põem um mosaico de atitudes culturais colaboradoras com o poder abso­ luto do Antigo Regime. A face lusitana mais clara de toda essa organização política/cultural foi o período de D. João V. De acordo com Rui Bebiano, referência indispensável, o gosto joanino pelo luxo revelara-se desde os mais tenros anos do reinado, m om ento marcado pelo esplendor do casamento do rei com D. Maria Ana da Áustria, em 1708. Vislumbrando a corte de Versalhes, apesar de peculiar apro­ ximação da pompa religiosa, D. João V em penhou-se no desenho de sua ima­ gem pródiga, magnânima, caridosa e fidelíssima. Episódio notável foram as

2 Jürgen H ab erm as. Mudança estrutural na esfera pública; investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. T radução d c Flávio R. Kothe. Rio dc Janeiro: T e m p o Brasileiro, 1984, p. 19.

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celebrações do casamento dos infantes, em 1729, D. José e D. Maria Bárbara, com os filhos de Filipe V de Espanha, D. Maria Ana Vitória e D. Fernando. A bem dizer, todos os nascimentos de seus filhos e netos, assim como os casa­ mentos, foram suntuosam entc comemorados no reino e no ultramar. Os estipêndios com a representatividade pública assentaram-se sobre o revigoram cnto econômico português advindo das descobertas do ouro das M inas.' Destacamos a festa de Corpus Christi como reatualização periódica da re­ presentação real. Singularizava-se por aproximar a grandeza religiosa à régia por meio da associação entre a mitologia solar eucarística e o monarca, o reisol. D. João V era bastante cioso da configuração desse festejo, prescrevendo como deveria ser. O rei fazia-se representar em toda a extensão do seu império. Os órgãos de administração local na America portuguesa, as câmaras, eram responsáveis por d esem penhar esse papel atuando na promoção de festejos ordinários — cadenciados anualm ente de acordo como o calendário litúrgico — e extraor­ dinários — como as celebrações referentes a nascimentos, casamentos e e x é ­ quias da família real. A historiografia pertinente aponta gasto relevante com tais funções. D e certo, m ontante considerável dos cofres públicos, sobretudo aos nos­ sos olhos contemporâneos, destinava-se à representação real. N o entanto, negligenciar os meandros que sancionavam essa prática no intuito de racionalizá-la (de acordo com a m entalidade da época) pode conduzir a um a ima­ gem estereotipada do reinado de D. João, tal qual a desenhada por José Saramago em Memorial do Convento. Aí, o rei aparece como com pletam ente alheio à realidade econômica do reino.'4 Menciona-se pouco a faceta real de adm i­ nistração econômica, de “chefe da casa” .5 O objetivo do presente trabalho é aclarar os limites impostos aos gastos destinados a delinear a estam pa de um rei pródigo e magnânimo no ultramar — festas, teatros, esmolas, procissões. Concentrar-nos-emos nos estipêndios com as festas, especialm ente Corpus Christi, embora a documentação consul­ tada seja fértil tam bém para um enfoque sobre a dimensão misericordiosa e caritativa do monarca, as esmolas. A consulta morosa e criteriosa das Listas de Receita e Despesas do Senado da Câmara de Vila Rica conservadas pelo Arquivo Público Mineiro revela, no período do governo de D. João V, vários pontos de conflito entre os ouvidores da comarca de Vila Rica e os oficiais da câmara, os primeiros cerceando os gastos do senado com as festividades que lhes cabiam promover.

' Rui Bebiano. D. João V — poder e espetáculo. Aveiro: Livraria E stam pa Editora, 1987. 4 José Saramago. Memorial do convento. Lisboa: Cam inho, 1982. 5 José Subtil. “Os poderes do ce n tro ” , in: José Mattoso (org.). História de Portugal vol. 4. Lisboa: Editorial Estam pa, 1993.

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CAMILA l-KRNANDA GUIMAUÃKS SAN TI AC O

Para validar nossa análise, aproximar-nos-emos de algumas considerações dc Raimundo Faoro acerca da administração lisboeta na America portuguesa. Não pretendem os enveredar por discussões teóricas no que diz respeito à obra desse estudioso, enfocada amplamente. Apenas pinçaremos sua acep­ ção da administração lusa como extrem am ente centralizada passando, quase todas as vicissitudes e ordens, pelo crivo régio. Assim, os administradores das possessões transatlânticas seriam “sombras do rei” agindo, a princípio, de acordo com os desígnios do monarca, do poder público.'’ As câmaras seriam o primeiro estrato, cm proximidade popular, dessa m on­ tagem administrativa verticalizada com origem no próprio rei. Não somos ingênuos em afirmar um controle e funcionamento total desse aparato, mas apenas o identificamos como o princípio organizacional do império. Precisar essa concepção acerca da administração portuguesa contribui para relativizarmos idéias que consideram os conflitos entre as autoridades colo­ niais totalm ente alheios às rédeas do poder real. Percebemos, não como ex­ ceção, em vários aspectos e momentos, o florescimentos de em bates e con­ junturas não prescritas pelo conjunto administrativo central. Tais episódios dizem respeito mais às circunstâncias da vivência nos territórios ultramarinos do que à intenção primeira do complexo administrativo. N o caso específico dos gastos com festas, feitos pelas câmaras, percebe-se uma interlocução in­ tensa com o rei, como bem demonstra uma afirmação recorrcntc do escrivão da ouvidoria sobre a conferência do ouvidor das contas do senado de Vila Rica: “E assim houve ele dito Ministro nesta forma esta Conta por tomada que não aprova nem Reprova por haver dado conta a sua M ajestade que Deus guarde sobre este particular...” .7 UM A

A P R O X IM A Ç Ã O

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A pesquisa centrou-se nas Listas de Receita e Despesas do Senado da Câmara dc Vila Rica referentes às décadas de 1720, 1730, 1740, período contido no reinado dc D. João V. Não contemplamos as fontes relativas aos primeiros dez anos após a instalação da vila, pois elas não se encontram no Arquivo Público Mineiro. A contabilidade de alguns anos, no período em pauta, não foi localizada. Isso é particularmente com um nos m om entos em que o livro do registro das despesas era substituído. Assim, temos as listas de 1721, 1722, 1723 reunidas no códice C.M.O.P. 12. O próximo códice pertinente, C.M.O.P. 21, inicia-se com o arrolamento de 1725, ou seja, não encontramos o docu­ m ento relativo a 1724. Os anos vinte, a partir de 1721, estão completos. O docum ento seguinte é de 1734. Os anos subseqüentes, assinalados pela pes-

6 R ay m un do Faoro. Os donos do poder. São Paulo: Globo, 1991, p. 171. 7 A.P.M., C.M.O.P. 21, f. 24v.

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quisa, contam com suas despesas registradas e conservadas. Trabalhamos, ao todo, com 25 listas de despesas organizadas em quatro códices no A.PM. O arrolamento dos gastos não era feito à medida que eram realizados, mas organizado e redigido pelo escrivão da câmara nos últimos dias de dezem bro m ediante reunião dos recibos: era o Termo de Ajuste de Contas. No ano seguinte, cabia ao ouvidor da comarca conferir o livro de contas, os recibos e endossálos ou não. Caso considerasse algum gasto desnecessário, além das atribuições do senado, ou detectasse alguma irregularidade no seu registro (ausência dc recibo, de provisão régia, etc.), a despesa era glosada. Com o ela já havia sido feita, os oficiais da câmara que haviam servido naquele ano deveriam restituí-la aos cofres do conselho. Esse docum ento da ouvidoria era chamado/W/Vj de Contas. Os autos de contas são fontes fundam entais para avaliarmos os limites da prodigalidade joanina. Referem-se a um m om ento de conflito entre duas esferas do poder administrativo. Revelam, assim, muito da estrutura subja­ cente da época sobre a qual o confronto se edificava e tomava formas. O acom panham ento das finanças da câmara favorece o esboço da consti­ tuição gradativa do calendário festivo em Vila Rica. A primeira lista consulta­ da, de 1721, menciona os gastos com a festa de Corpus Christi do ano anterior. N esse m omento, essa celebração era a única patrocinada pelos cofres do se­ nado. Apenas na lista de 1723 aparece um segundo festejo, São Sebastião, mas a menção refere-se a sua realização no ano seguinte, 1724. A partir dessa data, torna-se impossível o acom panham ento preciso dos estipêndios exclu­ sivos com Corpus Christi através dos anos, pois o mais comum é a referência conjunta aos gastos nessas “duas festas anuais” . E m anos de comemorações extraordinárias, por vezes, determ inada despesa era m encionada em relação a esse evento, Corpus Christi, e São Sebastião: “Por mandado corrente da quan­ tia de duzentos e vinte mil-réis pagos ao Licenciado Antônio de Sousa Lobo procedida esta quantia das músicas das festas do ano e da Sereníssima Infan­ ta” .” Percebe-se que é impossível precisar o m ontante pago unicam ente à música do ritual do Corpo de D eus nesse ano de 1740. Essa forma de registro conjunto é mais a regra do que a exceção! Dificuldades dessa natureza nos impossibilitaram processar a abordagem quantitativa do despendido com a festa eucarística. Deparamo-nos com a inviabilidade e m estabelecer, ano a ano, os gastos totais com essa festividade bem como acompanhar determ inado gasto (cera, música, sermão) ao longo do período. R etom ando a configuração do calendário festivo, ao longo de quase todo o reinado joanino, São Sebastião e Corpus Christi foram as únicas celebrações

“ A.P.M., C .M .O .P 34, f. 49v.



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anuais patrocinadas pelo Senado da Câmara de Vila Rica. Som ente na lista dc 1749 foram incluídas as festas de Santa Isabel c Anjo Custódio do Reino nas quais se gastou, além de 48$000 de música, “trinta e quatro mil quinhentos c noventa e quatro réis, que Se mandaram dar a Caetano Pereyra Luis de uma arroba e seis libras de cera, e uma libra de incenso para a festa de Santa I/.abel, e Anjo Custódio do Reyno [...]” .9 Recém-inseridas na contabilidade da câmara, tais festas dem andaram pou­ cos réis em comparação com as outras duas, já recorrentes desde a década de vinte. O preço pago pela música das comemorações do Corpo de D eus e Mártir São Sebastião, nesse mesmo ano, foi 90$000. O quanto Corpus Christi era favorecida pelos cofres do senado pode ser m ensurado com base na se­ guinte comparação: em 1750, ostentou no seu ritual cinco arrobas c sete li­ bras de cera e uma libra de incenso, perfazendo um gasto de 141 $521! Por sua vez, as festas de Santa Isabel e Anjo Custódio do Reino, juntas, contaram com 57 libras de cera dc 1 libra de incenso, totalizando 49$009,5."1 Acreditamos ser particularmente profícuo um trabalho mais detido sobre a paulatina definição de um ciclo festivo anual em Vila Rica, que contem ple todo o século XVIII, com base nos Livros de Despesas e dos Termos de Acórdãos e Vereações da Câmara (vale destacar: um em p re en d im en to dessa natureza não abarcaria as festividades promovidas pelas irmandades leigas e ordens terceiras). Além dessa possibilidade de abordagem, a documentação levantada perm ite vislumbrar uma imagem do ritual seteccntista de Corpus Christi. N o decorrer dos anos, o incremento do núm ero de festas e das atri­ buições do senado, advindas do crescimento urbano de Vila Rica e seu termo, restringiram as referências minuciosas aos gastos com o Corpo de Deus. As listas tornaram-se complexas na gama de assuntos tratados, mas em p o b re ce ­ ram na precisão das informações. O primeiro docum ento consultado, a lista de 1721, é deveras esclarecedor sobre a forma do festejo. Aí constam os seguintes gastos: 32 oitavas de ouro pelo sermão de Corpus Christi do ano de 1720; quatro oitavas pelos reparos à imagem dc São Cristóvão que vai na procissão; 110 oitavas pela música do ano de 1720; 12 oitavas pelo conserto dos gigantes que vão na procissão; uma oitava e 3/4 por uma libra de incenso; ao diácono, subdiácono, e reverendo vigário, da assistência à ação de Corpus Christi, 32 oitavas; 25 oitavas pelo sermão desse ano; 70 oitavas pela música; 49,5 oitavas de três arrobas e duas libras de cera; 16 oitavas pagas à Irm andade de Santo Antônio pelo em présti­ mo da armação; seis oitavas pagas aos negros que carregaram São Cristóvão e os gigantes; 3/4 de oitava pelo vinho da missa de Corpo de D eus."

9 A.P.M., C.M.O.P. 51, f. 113v. 10 A.P.M., C.M.O.P. 51, f. 131f. 11 A.P.M., C.M.O.P. 12, f. 02-05

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O total despendido pelos oficiais da Câmara naquele ano foi 4.233,5 oita­ vas de ouro c 120 réis. Com a festa em questão, 359 oitavas, ou seja, algo em torno de 8,5% do m ontante total dos gastos serviu, dentre outras, à função de representar a figura real. Nossas contas, é importante aclarar, só consideram os valores cuja finalidade, festa de Corpus C/iristi, está expressa nas fontes. O arrolamcnto de 1721 apresenta estipêndios sem definir seu rumo, tais como 52 libras de cera a 26 oitavas. Mas, apesar de bastante provável que essa cera tam bém se tenha destinado à celebração eucarística em análise, não a com ­ putám os como tal por isso não estar explícito no documento. Outro procedi­ m ento metodológico adotado foi a soma dos valores destinados à festa de 1720. O intercurso entre valor c tem po na sociedade do Setecentos não ob e ­ decia à mesma racionalidade contemporânea, pautada em relações capitalis­ tas. C om um era o pagamento de um serviço ou produto muito posteriorm en­ te à sua execução ou aquisição. Tentar realocar cada gasto na festa do ano no qual o serviço ou o produto foi utilizado romperia com a dinâmica própria das fontes, tornando impossível a comparação dos gastos com determ inada fu n ­ ção e o total despendido naquele ano. A contabilidade do senado foi registrada em oitavas de ouro até 1723, pas­ sando a adotar réis após esta data. Para além de uma aproximação econômica, esse d ocum ento de 1721 eluci­ da diversos aspectos da festa colonial do Corpo de Deus. Evidenciamos dois momentos: um solene, feito no interior da igreja, requerendo o pároco para o sermão, o vinho para a missa e cera; outro, que percorria as ruas da vila, a procissão, com suas imagens, cera, música. Se no primeiro a dimensão espa­ cial do tem plo limitava o núm ero de participantes, restrito às maiores dignidades da região, a procissão, mesmo não aglutinando em sua configuração solene a totalidade da população, era um espetáculo aberto a todos especta­ dores. Daí concluirmos ser o cortejo locus privilegiado de representação social hierarquizada tendo em vista a exaltação e m anutenção da ordenação hierár­ quica da sociedade. N esse sentido, emblemática é a presença de negros car­ regando imagens gigantescas, ou seja, confirmando representativam ente sua condição de trabalhador braçal, tão degradante nas Minas do Ouro. Gigantes e São Cristóvão no corpo do desfile processional m erecem estudo cuidadoso. São reminiscências simbólicas de longa duração, herdados da cultu­ ra popular, capazes de transvestir Corpus Christi em mais um tem po alegre de carnavalização, inversão da ordem opressora, catártico. Bakhtin refere-se aos gigantes como elementos fundamentais da constituição tradicional do cortejo, que se peculiarizava por exaltar uma dimensão grotesca do corpo, enfatizando suas propriedades materiais prenhes de uma potência renovadora.12 A existên­

12 O p. cit., p. 199.



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cia dessas representações em Vila Rica relativiza a intenção primordial do préstito de referendar o poder instituído. Nosso objeto de estudo revela-se riquíssi­ mo ao divisarmos a profusão dc símbolos, representações, intercursos intencio­ nais, etc. Se a cultura barroca imprimiu um propósito ordenador ao festejo, objetivando mirar a estampa divina do rei, conviveu com elementos de longa duração que carregam consigo a dimensão grotesco-carnavalizante de suspen­ são da ordem em vigor. Michel Vovelle esboça uma possível cronologia européia sobre tais figuras burlescas. De acordo com o autor, a segunda m etade do século XV marcou-sc pela multiplicação das imagens tratadas no seio das festas e procissões, prin­ cipalmente Corpus C/iristi. O correr dos séculos XVI c XVII foi palco da pro­ fusão considerável dessas representações, já decadentes no XVIII. Identifica na Contra-Reforma, no Iluminismo e na Revolução Francesa os impulsos históricos-chave do processo “descarnavalizador’'. 1’' Atribuímos aos desdo­ bramentos do Concilio de Trento um reforço da dimensão simbólica de tais figuras, no seio do cortejo, dc elem entos vencidos pelo triunfo da religião. Re-significaram esse viés num a proposta pedagógica mais evidente tendo em vista a exaltação da Igreja. São Cristóvão aglutina uma ambivalência singular no em bate do sagrado com o profano, pois é um santo da Igreja católica, mas possui forma gigantes­ ca, exacerbadora da materialidade corporal. Recusando-sc a jejuar, note que sua lenda repõe a dimensão corporal; passou a servir a Cristo transportando os desejosos de atravessar determ inado rio. Nessa ocasião, transpôs as águas com o M enino Jesus nos ombros, carregando o Corpo de Cristo. Daí, talvez, sua presença na procissão de Corpus Christi. Ao longo de sua vida, foi respon­ sável por converter muitas almas à religião cristã, simbolizando a vitória sobre o paganismo.14 E m Lisboa, a primeira referência aos gigantes compondo a procissão de Corpus Christi é de 1493. Segundo Rui Bcbiano, D. João V em penhou-se em extirpar esses elem entos populares, potencialm ente questionadores da or­ dem, do desfile eucarístico, visando uma configuração adequada a altear seu poder e as hierarquias sociais. O cortejo de 1719, ali, sofreu dem asiadam ente com essa intenção do rei magnânimo, refletindo a forma festiva adequada ao poder.15 Não sabemos, ainda, o impacto de tais determinações régias nos confins do Ultramar. Trabalhos vindouros debruçar-se-ão nesse aspecto. Nas fontes

13 Michel Vovelle. Imagens e imaginário na história, fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Média até o século XX. Tradução de Maria Julia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1997, p. 108-09. ,4 Santiago dc Ia Voragine. L a leyenda dorada. Madri: Alian/.a, 1984, p. 405-09. 15 Op. cit., p. 126-9.

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trabalhadas, os gigantes e São Cristóvão são referidos pela última vez cm 1726 “pela armação da Igreja na festa do Corpo de Deos, gigantes c São Cris­ tóvão cento e quarenta e quatro mil-réis” ."’ Não podemos afirmar se depois dessa data eles não saíram mais na procissão. Voltando aos valores gastos com a festa cm questão, a impossibilidade de um acom panham ento ininterrupto do despendido com determ inado aspecto do festejo não nos im pede de traçar algumas considerações gerais. A variação na quantidade e preço total dc cera percebida entre o período inicial e final da pesquisa merece ser apresentada. Em 1721, o rito contou com três arrobas e duas libras dc cera, num preço de 49,5 oitavas dc ouro. N o ano seguinte, quatro arrobas e 27 libras foram gastas, a um valor de 127 c 1/4 oitavas, esta cera era mais cara. Considerando a oitava 1$500 (padrão de conversão contro­ vertido), no primeiro ano tratado, o senado despendeu 74$250 em cera, c no segundo, 190$875. Os anos que comportam uma comparação são 1744, 1745, 1746, pois os gastos com a cera de Corpus Christi aparecem desvinculados de outras festas. Oito arrobas c sete libras de cera foram gastos em 1744 perfa­ zendo o total de 153$562. E m 1745, nove arrobas e 2,5 libras, pelo preço de 190$452 e, em 1746, 189$000 foram gastos com nove arrobas de cera. O maior valor c o d a cera de 1722, apesar de a quantidade ainda ser modesta em com ­ paração com o gasto na última década da pesquisa. Isso em razão do preço superior da cera comprada nesse ano e de tratarmos de um m om ento caracte­ rizado por um processo inflacionário mais agudo do que na década de 1740. Percebe-se aum ento considerável na quantidade de cera usada na festa. A forma como era em pregada nas celebrações do Setecentos mineiro, de m a­ neira geral, pode ser avaliada pela referência sobre a sua distribuição na festi­ vidade real, extraordinária, feita em 1745: “em propinas, e gasto de Igreja a saber ao Excelentíssimo governador duas arrobas, e Secretário Doutor Ouvidor, Juizes, vereadores, Procurador e es­ crivão da Câmara uma arroba cada um, Tesoureiro do Senado meya arroba. Porteiro do Senado, e os dois Almotacéis atuais oito libras cada hum. Por­ teiro do Auditório quatro libras, Alcaide oito libras, a qu e m carregou o es­ tandarte nesta e outras funções do Senado oito libras que foi o Capitão Francisco da Silva N e to com as Luminárias da casa da Câmara Catorze libras e meya, e na Igreja com trono, nixos, Banqueta, Altares, Senado, e bons da governança três arrobas e setenta e sete libras e meya [.,.].” 17 Esse largo e m p re en d im en to financeiro na aquisição de velas para as “fun­ ções do senado” , não só Corpus Christi, foi alvo de reprimendas do ouvidor da

lh A.P.M., C.M .O.P. 21, f. 20 f. 17 A.P.M., C.M .O.P. 51, f. 60 f.

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CAMILA FERNANDA GUIMARÃES SANTIAGO

comarca. Isso pode ser detectado cm diversos m om entos nas fontes. D e ­ monstra a prodigalidade dos oficiais, por vezes excessiva aos olhos dc instân­ cias administrativas supostam ente superiores, c, portanto, mais próximas da vontade real. Já em 1735, no fim do auto de contas sobre o ano anterior, o ouvidor fez uma advertência aos oficiais da câmara. D entre outros aspectos, prescreveu que “a despesa da cera seja comedida não se dando mais do que as pessoas de distinção, aliás se lhe não levará em conta, e fará pela dos que fizerem a despesa todo e qualquer excesso” .18 Das contas de 1740, o ouvidor glosou 187$500 despendidos com 200 libras de cera por ocasião de festa não especificada, alegando que foram mal gastos.14 N o ano seguinte, glosou 37$500 empregados em 50 libras dc cera dc um total de 352$874 (!) que nesse ano se despendeu com a cera das festas anuais c alguns outros gastos não definidos. Justificou esse ato “por não constar se gas­ tasse tanta cera, nem ser naturalmente possível esta distribuição por vela a cada um ” .20 Podemos conjeturar, com base na observação do ouvidor, se o senado declarou um gasto com cera efetivamente não realizado, existindo aí prática de corrupção. Essa despesa foi confirmada com recibo, pois o ouvidor não recla­ mou a falta desse documento. Assim, ou o recibo encobria um desvio de verba ou realmente os oficiais compraram toda essa vela e não a utilizaram de forma “racional”. T endemos a corroborar a segunda assertiva, baseados cm outro do­ cumento, do auto de contas de 1749, referente às contas de 1748: “Alem disto eu vejo umas notáveis despesas principalmente em distri­ buições de cera, em q ue haverá daqui em diante outro Cuydado Será obri­ gado em todas as Festas que faz este Senado, o Tesoureiro a saber por n" certo as velas que são precisas tanto para o trono, e mais altares, como as que se costum am dar aos Sacerdotes, e esse mesmo n" fará pesar, e com ­ prar, e se Satisfará dando-se lhe uma conta individual de tantos para o altar maior, que pesaram tanto, tantos para tantos altares, que pesaram tanto e o m esmo aos sacerdotes, por que nesta forma se evita o não saber aonde vai parar a cera [...].”21 Vislumbramos, tendo em vista esses em bates acerca dos gastos com cera, que os estipêndios com a representatividade real eram avultados e zelados pelas autoridades administrativas em diversas instâncias. Mas havia a m ensuração dessas despesas com o fim de mantê-las nos limites suportáveis pelas contas públicas, encabeçada, nas fontes contempladas, pelo ouvidor. A prodi­

,R 19 20 21

A.P.M., C.M.O.P. 34, f. 10 f. A.P.M., C.M.O.P. 34, f. 52 f. A.P.M., C.M.O.P. 34, f. 61 f. A.P.M., C.M.O.P. 51, f. 103 f.

CASTOS

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SENADO

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CÂMARA

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VII.A

RICA

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El i S T AS

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galidade não poderia ser desm edida c sofria sanções claras quanto a isso. Se­ guimos demonstrando outros exemplos em que a posição do ouvidor chocouse com a dos oficiais da câmara de Vila Rica. OS

I.IMI T KS DA

I> R O D I Ü A I . I D A D E

JOA N IN A

Em 1728, deparamo-nos com o primeiro episódio de confronto entre o ouvidor da comarca, João Pacheco Pereira, e os oficiais que serviram no Sena­ do da Câmara de Vila Rica em 1727. No auto de contas daquele ano, o ouvi­ dor balizou suas atitudes num a ordem real emitida em 7 de fevereiro de 1727. N ovam ente, evidenciamos a onisciência do “rei-sol” sobre as atitudes restri­ tivas aos gastos municipais. Assim procede o ouvidor: “não levava em conta assim as propinas que levaram os oficiais da Câmara e mais pessoas na ocasião das festas que se fizeram nesta vila com a notícia dos felizes desposórios dos sereníssimos príncipes como tam bém a d e s p e ­ sa que se fez com as ditas festas extraordinárias de touros cavalhadas e comédias em a mesma forma a que se fez com um Arco Triunfal que se fabricou de fronte da porta do dito Senado na ocasião da entrada do ilus­ tríssimo Bispo A soma desses valores glosados, expressa no documento, foi de 3:809$900, quantia bastante elevada. As festas extraordinárias, comemorativas da família real, nos anos em que eram feitas, angariavam um montante dos cofres públi­ cos superior ao das festas anuais. A maior capacidade representativa do rei em tais ocasiões era diretamente festejada, explica tal constatação. M esmo assim, a exorbitância do gasto supracitado impediu seu endosso pelo ouvidor. N u m estreito lapso de tem po de dois anos, ouvidor e oficiais da câmara chocaram-se novamente. O ouvidor apoiou sua atitude em provisão de D. João V datada de 8 de junho de 1729. O auto de contas aqui tratado é de 1730. As contas conferidas são de 1729. O rei, na referida provisão, transcrita no auto de contas, atestava a pouca clareza dos docum entos que lhe foram enviados pelo ouvidor anterior sobre as contas das vilas da comarca do Ouro Preto “na forma que se observa todos os anos, como eu tenho ordenado [...]” . Segue prescrevendo as exigências devidas ao se conferir os livros das contas dos senados: “e q u e as despesas feitas em obras públicas, se devem provar no ato das contas, com os termos das arrematações, e recibos dos Arrematantes, cons­ tando, que as obras são na forma que se arremataram; e que as propinas, e 22 A.P.M., C.M .O .P. 21, f. 34 v.

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CAMILA KKRNANDA (II1I MAl(Ã KS SANTIACO

obras voluntárias, se não devem aprovar sem Provisão minha, para se faze­ rem; e as esmolas que os oficiais da Câmara dão devem ser pelos seus próprios bens, e não pelos dc seus sucessores, assim sou servido ordenarvos, que nesta forma tomeis estas contas, c as mais posteriores, e mc dareis conta do que aprovastes ou glosastes [... D epreende-se do vestígio acima o quão o Rei se preocupava com o patri­ mônio do reino, buscando manter-sc a par de sua contabilidade. As câmaras eram as únicas instâncias administrativas gestoras de rendim entos próprios advindos dos tributos cobrados relativos ao termo das vilas, propriedades co­ merciais, entradas, etc. Ter sempre em vista essa singularidade c essencial à análise aqui desenvolvida. Como em 1727, aqui as propinas foram novamente alvo de controvérsias. Eram recebidas pelos oficiais das câmaras como restituição/retribuição por algum serviço prestado, uma vez que os cargos do senado não rendiam salá­ rios a seus ocupantes. Por ocasião das festas, cabia aos oficiais comparecerem em “corpo de câmara” : devidam ente distintos ostentando as insígnias da ad­ ministração local, representando seu poder e, por extensão, o poder régio. Recebiam em troca a propina. Esses gastos são extrem am ente difíceis de seguir na documentação levantada, pois o escrivão geralmente os listava sem maiores especificações. Inviável separar, dc ccrto valor em propinas, o relati­ vo ao comparecimento em festas. Ostentar o atributo de misericordioso, caridoso, era primordial à construção da estampa pública do rei. Tecia um complexo mecanismo de intercursos clientelares com a finalidade de angariar o agradecimento do pólo recebedor de uma graça, mantendo-o submisso ao poder do doador.-4 Já referimos quanto as sanções a esmolas dadas pelo senado são recorrentes no corpo documental con­ sultado. Pretendemos amadurecer esse estudo em oportunidades futuras. Diante da provisão joanina, o ouvidor procedeu à tomada das contas dc 1729 com extremo rigor, inquirindo sobre os recibos, a necessidade dos gas­ tos, cobrança de tributos c muito mais! Cham ado a depor, o escrivão da câ­ mara apresentou o arrolamento de todos os livros de registro utilizados pelos oficiais até aquele presente ano, não só de contas, mas de acórdãos, registro de cartas régias, cartas dos governadores, etc. Interessante cotejar essa rela­ ção com o que consta conservado no Arquivo Público Mineiro avaliando pos­ síveis perdas da documentação. O ouvidor dividiu os gastos em três categorias: os que ele levou em conta, ou seja, considerou justos e adequados; os glosados; e os reservados até res­

" A.P.M., C.M.O.P. 21, f. 60 v. 24 Angela B. Xavier & Antônio M. Hespanha. “As redes clientelares” , in: José Mattoso (org.) História fie Portugal, vol. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

GASTOS

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posta real (sobre estes ele consultou diretam ente o monarca). Glosou a gran­ de maioria das propinas, até mesmo as relativas às festas, ordenando aos que as haviam recebido devolvessem ao tesoureiro do senado sob pena de terem seus bens penhorados e arrematados cm prol dos cofres do conselho. A única despesa com festas efetivam ente glosada foi 19$200 pagos ao reverendo de assistência das festas reais e Corpo de D eus do ano de 1727. O motivo foi a não-apresentação dc recibo.-'’ “todas festas ficassem em Reserva até decisão dc sua M ajestade a quem portando das contas com os documentos de glosado em virtude da dita Provisão para se Seguir nas ditas despesas duvidadas o que o dito Senhor for Servido mandar [...].” Assim, os gastos a saber ficaram em suspeição: 24$000 da armação de São Sebastião; 30$000 do sermão da mesma celebração; 60$000 da música de São Sebastião de 1726; 48$000 da música da festa de Corpus Christi; 120$000 da música da mesma festa no ano de 1727. Os estipêndios com festas reais fo­ ram todos levados em conta; possivelmente amparavam-se em provisão real, como de costume. O portunam ente, o docum ento ainda nos apresenta o m om ento em que parte de um a despesa foi glosada dada a constatação de ter sido marcada por corrupção. Refere-se a 200 libras de cera compradas a 150 oitavas de ouro, mas sobre seu arrolamento evidencia-se uma superfaturação, claramente per­ cebida. O ouvidor considerou somente o acima relatado. “o como dele se vê, que o primeyro assento eram 200 Libras e a im portân­ cia destas se vê serem 150/8a preço em que certam ente correspondiam a Razão de 3/4 como se [ileg.] custara, e sobre as duas cifras de 200 lhe for­ maram 54 e sobre o cinco das cento e cinqüenta oytavas lhe formaram hum nove Nos anos em que o ouvidor não baseava a tomada de contas em um a pro­ visão real recente, seu parâmetro principal era o costume. Devia-se gastar com determ inado serviço o que era costumeiro naquela vila. N o auto de con­ tas relativo a 1734, o ouvidor insere o gasto com a música de São Sebastião, 96$000, entre as “desnecessárias e injustas” . E observa: “Nas músicas se não deve desp en d e r mais do que ordinariamente costum am ganhar os Músicos em festas sem elhantes [...]” .26

25 O auto dc contas aqui trabalhado encontra-se no códice C.M .O.P. 21, f. 59v-74f. 2í’ A.P.M., C.M .O.P. 34, f. lOf.

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CAMILA

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Em 1741, ele glosou o exato valor destinado ao sermão de São Sebastião, do ano anterior, que excedia o tradicionalm ente previsto: desconsiderou 24$181 do total de 6 1$781, sobrando 37$500.-7 Um erro nas contas da ou­ vidoria. N o mesmo ano, vários gastos com festas — cera, sermão — foram glosa­ dos. Ao fim do documento, interessante são as considerações do ouvidor: “Visto em Correição Vejo por estas Contas a grande prodigalidade com que os oficiais da Câmara gastam as Rendas do Conselho, e as adm inis­ tram tão desordenadam ente, Reparo que tendo a Câmara de R e n d im e n ­ tos o ano passado mais de vinte e três mil cruzados nem estes bastaram para lhe Satisfazer os Seus apetites; e ainda ficaram devendo ao tesoureiro Setecentos e tantos mil-réis... não podem gastar mais do que têm de ren­ da; e isso em obras precisas e necessárias para o bem comum; c a mais despesa que fizerem que exceda o Rendim ento dos bens do conselho há de fazer por sua Conta; que o mais não é administrar, é destruir [...].”:s Um funcionário régio bastante zeloso das contas do senado, da economia do reino é o que emerge do trecho acima. Limitar os dispêndios tão-somente com obras necessárias e obrigar os oficiais a arcarem com despesas além do m ontante arrecadado em certo ano são medidas racionais até para os olhos contemporâneos. CONCLUSÃO

As reflexões aqui procedidas miram lançar luz a m omentos da história da América portuguesa em que uma peculiar racionalidade econômica cerceou gastos considerados excessivos, ou além do costume, em preendidos com as festividades promovidas pelo Senado da Câmara de Vila Rica. O pressuposto de possuírem as festas papel específico na amplidão de esforços ten d e n tes a enaltecer e divinizar a figura do rei justifica nosso recorte temporal, incluso nos anos de brilho do “rei-sol” . D. João V é rememorado pela historiografia como o rei lusitano que mais investiu no delineam ento de sua acepção públi­ ca como magnânimo, caridoso, pródigo, grandioso. Lam entam os o abandono dos primeiros dez anos de administração m u n i­ cipal, decorrente do provável desaparecimento dos livros de receita e d e s p e ­ sas relativas a esse período. Esperamos a clareza de compreensão de não sermos interpretados como

27 A.P.M., C.M .O.P. 34, f. 52f. 2" A.P.M., C.M .O.P. 34, f. 50f-v.

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propagadores dc uma imagem parcimoniosa do reinado joanino no condizen­ te à rubrica festas. Longe disso! Temos intenção, apenas, de trabalhar nos interstícios dos mecanismos que encabeçavam as despesas com festividades avaliando seus limites. D e matriz primordialmente adequada a uma aproximação própria à histó­ ria econômica ou administrativa, as fontes vasculhadas revelaram-se m atéri­ as-primas riquíssimas para uma abordagem cultural. Apontar para essa d e s­ considerada faceta da contabilidade da câmara seteccntista foi, tam bém , alvo desse em preendim ento. FONTES

PRIMÁRIAS

Livros dc Rcccita e D espesas da Câmara de Vila Rica das dccadas 1720, 1730, 1740, reunidos nos seguintes códices, conservados no Arquivo Público Mineiro sob o fundo C âmara M u nici­ pal dc O uro Preto: C.M.O.P. 12; C.M.O.P. 21; C.M.O.P. 34; C.M.O.P. 51.

□ □ □ C A m i i . A S a n t i a g o é monitora de História da Arte no Departamento de Histó­ ria da Universidade Federal de Minas Gerais (prograd-UFMG); bolsista de iniciação científica/FAPEMIG no projeto Pompa Barroca e Semana Santa na Cultura Colonial Mineira (1700-1850); atualmente é mestranda do Departamento de História da UFMG e bolsista do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). presente trabalho debruça-se sobre os Livros de Receitas e Despesas do Senado da Câmara de Vila Rica preenchidos nas décadas de 1720, 1730, 1740. Intenciona aclarar aspectos peculiares à celebração de Corpus Christi nesse período marcado pelo reinado de D. João V, o rei fidelíssimo. Avalia, também, os limites postos aos gastos feitos pela administração local com as festas que lhe cabia promover, im­ postos por uma peculiar racionalidade econômica e pelo costume. R esum o.O

T

J

Baiana. Museu Paulista, São Paulo. Procedente da capela de São José da antiga Sé Primacial do Brasil, Bahia. Óleo sobre tela, século XVIII. Foto Eduardo F. Paiva.

CELEBRANDO A ALFORRIA: AMULETOS E PRÁTICAS CULTURAIS ENTRE AS MULHERES NEGRAS E MESTIÇAS DO BRASIL E d u a r d o

F r a n ç a

P a i v a

“J o rg e s e n t o u praça na cavalaria, e u e s t o u feliz p o r q u e c u t a m ­ b é m so u d a sua c o m p a n h i a ” (oraç ã o d c d o m í n i o p o p u la r).

A T E M Á T IC A

a b o r d a d a neste texto não abrange os ritos festivos coloniais, n e m inclui as grandiosas festas ocorridas na América portuguesa. O que mais interessa aqui são os objetos e os códigos de celebração de conquistas cotidianas experim entadas principalm ente por m ulheres negras e m esti­ ças, tanto escravas, quanto libertas, no Brasil escravista. Práticas às vezes explícitas e em outras vezes camufladas que adquiriram significados p e c u ­ liares em um a realidade forjada e n tre hibridismo, im perm eabilidades e su­ perposições culturais. Para a m elhor imersão nesse conjunto de práticas e de representações culturais julguei essencial percorrer épocas e regiões diferentes. Assim, a partir de u m microcosmo mineiro, busquei atingir com ­ p o rta m e n to s e imaginário qu e vin h am sendo m oldados d u r a n te vários séculos, por meio de contatos entre tradições culturais, as mais diversas. Ligando-as por apropriações forjadas a cada tem po e ao gosto e à necessida­ de de cada grupo social, o s passeurs cu/ture/s' aqui são os amuletos, sobretu­ do os confeccionados em coral, em bora não exclusivam ente. São eles que aproximam, às vezes de maneira inesperada, viajantes/com erciantes p o rtu ­ gueses do século XV às cortes africanas do século XVI, aos pintores renas­

1 Sobre esse conceito ver os textos publicados cm Bcrta Ares Q ucija & Serge Gru/.inski (coord.). Entre dos mundos; fronteras cultura/esy agentes mediadores. Scvilha: Publicaciones dc Ia Escucla dc Estúdios Hispano-Americanos de Sevilha, 1997.

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FRANÇA

RAIVA

centistas da Europa c às m ulheres forras usuárias dos balangandãs, nas M i­ nas Gerais do Setecentos. Mas, antes de invocar o testem unho das libertas mineiras, é preciso enfocar duas das mais importantes regiões dc entrada de africanos no Brasil. Desde, portanto, o século XVI, a Bahia, sobretudo Salvador, assim como P e rn am b u ­ co, se haviam transformado em importantes centros receptores dc heranças e práticas culturais africanas, que chegavam com os milhares e milhares de es­ cravos traficados de um lado para o outro do Atlântico. Centros receptores, mas tam bém produtores e exportadores de cultura, uma vez que dali os cati­ vos eram transferidos para várias regiões da colônia. Durante o século XVIII boa parcela desse tráfico interno foi dirigido para a região das Minas Gerais, que chegou ao final do Setecentos com a maior população, escrava e liberta, da colônia.2 Para a área de mineração foram levados ainda muitos escravos nascidos no Brasil, além de homens e mulheres livres e forros que para lá se encaminharam. Inicialmente, o maior chamariz era o ouro, mas rapidamente passou a ser a economia dinâmica e diversificada que se desenvolvera na capitania, aliada a uma malha urbana bastante extensa e a importantes áreas de agropecuária. A mobilidade física e cultural constituiu-se, a partir daí, em característica basi­ lar dessa sociedade. O encontro de tradições culturais muito diferentes ocor­ reu intensam ente e assumiu dimensões extraordinárias. A população mestiça era grande e o hibridismo cultural atingiu todos os grupos sociais, embora a impermeabilidade de certos costumes tam bém se fizesse presente, ainda que camuflada. Enfim, formara-se nas Minas setecentistas um quadro social pro­ pício à efervescência cultural, à formação de pecúlio pelos escravos, à compra da alforria e até m esmo à ascensão econômica de alguns forros com mais sorte. E essa situação existiu desde as primeiras décadas de ocupação da re­ gião.-1

:

Km 1776 a capitania contava com uma população total dc 319.769 indivíduos. A Haliia, segunda colocada, tinha 288.848 habitantes. Ycr Dauril Alden. L ate colonial Bra/.il, 17501808, in: Leslie Bcthell (cd.). Colonial Brazil. Oambridgc: C am bridgc Univcrsitv Press, 1991, p. 286. O m esm o autor (p. 290) demonstra qu e Minas m antinha a posição dianteira no fim do período colonial e tinha 494.759 moradores, dos quais 23,6% eram brancos, 33,7% eram africanos c mestiços livres, 40,9% eram escravos c 1,8% eram índios. ’ E m 1732, o C o n d e das Galvcias, então governador da capitania, escrevia ao rei sobre a vida dos forros na região. E m relação aos negros forros, “ordinariam ente são atrevidos, mas no mesm o tem p o trabalham todos nas lavras do ouro, nas dos diamantes, nas roças e c o m u m en te faíscam para si d c q u e se segue a Vossa M ajestade a utilidade dc seus quintos qu e seriam m enos sc eles não minerassem [...]” , dizia clc. Ver Arquivo Público M in eiro /C M O P — códice 35 — Registro dc editais, cartas, provisões e informações do Senado dc petições c despachos — 1735-1736, f. 118-118v. Sobre o quadro dc mobilidade física c cultural nas Minas, sobretudo no qu e se refere à população forra, ver E duardo França Paiva. Escravos e libertos nas Minas Gerais Ho século XVIII; estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablum e, 1995 c Por meu trabalho, serviço e indústria: histórias de africanos, crioulos

c: F. I, K H K A N I) O

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Bárbara G om es dc Abreu e Lima, uma crioula que saiu cscrava dc Sergi­ pe del-Rei em direção às Minas, experim entou dessa m obilidade com muita perspicácia. Ela protagonizou um caso exemplar, parcialm ente registrado cm seu testam ento. Corria o ano dc 1735, quando Bárbara decidiu registrar em cartório seus legados testamentais. Nesses papéis declarava q ue se havia forrado nas Minas, aludindo à sua autocompra — por meio, possivelm ente, da coartação4 — c que tam bém havia comprado a casa onde morava, locali­ zada no largo da igreja matriz da Vila dc Sabará, endereço nada modesto. Sua rede dc amizades cra tam bém notável: além de ampla, espalhava-se por várias regiões das Gerais e pela Bahia. Ela tinha negócios distribuídos por toda essa área, em bora n e n h u m a palavra tenha sido dedicada a explicálos. Para cuidar desses seus interesses indicou doze hom ens de sua confian­ ça como testam enteiros. E ntre eles, um capitão-mor, o vigário da vara da comarca do Rio das Velhas, um m estrc-de-cam po, dois sargentos-mores e um tenente-coronel. N e n h u m dos doze indicados era negro ou mestiço e não parecia haver pobres entre eles. Esse núm ero de testadores e as várias praças onde atuariam é fato raro m esm o nos testam entos de hom ens b ran­ cos e ricos e apenas isso já acusa a singularidade do caso. Mas o c onjunto de p e q u e n o s bens materiais listado pela testadora é o que cham a a atenção. Tratava-se, em boa m edida, dos c om ponentes de um a penca de balangandãs"1 qu e se encontravam espalhados, em penhados na mão de algumas pe s­ soas próximas de Bárbara. E ntretanto, em m om ento algum houve referên­ cia ao objeto original. C om uns entre as negras escravas e forras na Bahia, essas pencas de pequ e n o s am uletos eram m uito m enos usadas nas Minas e p o d e estar aí um dos motivos qu e obrigaram Bárbara a fragm entar a que possuía. D e toda forma é claro o desejo de fazer com que todos os berloques reintegrassem a penca após a sua morte, como se pode constatar na transcrição do trecho seguinte. Ela dizia ter:

e mestiços na colônia — Minas Gerais, 1716-1789. T ese dc d ou toram ento apresentada à U n i­ versidade dc São Paulo, 1999. 4 A coartação foi prática recorrente em Minas e, resu m idam en te, significava o pa gam ento parcelado da alforria, efetuad o pelo próprio escravo. Tratava-se de acordo estabelecido d iretam en te en tre senhores c escravos. Ver sobre o assunto E. F. Paiva. Escravos..., op. cit.; “Coartações c alforrias nas Minas Gerais do século XVIII: as possibilidades de libertação cscrava no principal centro colonial” , in: Revista de História, USP-São Paulo, /.í.í:49õ7. 1995 c “U m aspecto pouco conhecido das alforrias: a coartação cm Minas Gerais no século XV1I1”, in: Cariemos do Laboratório Interdiscip/inar de Pesquisa em História Social, Rio de Janeiro, U F R J, 2\47-53, 1995. Ver, ainda, Laura de Mello e Souza. Norma e conflito; aspectos da história de Minas no século X V lll. Belo Horizonte: Ed. U F M G , 1999, p. 151-74. Sobre esses objetos, o uso deles e os significados a eles atribuídos ver Raul Lodv. Pencas de balangandãs da Bahia; um estudo etnográfico das jóias-amuletos. Rio de Janeiro: F unarte/Instituto Nacional do Folclore, 1988 c Raul Lody. O povo do santo; religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e caboclos. Rio dc Janeiro: Pallas, 1995.

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“seis cordões pesando cento e uma oitavas, um sc acha em p en h ad o na mão de T hereza de Jezus, m ulher dc Antonio Alves por vinte oitavas e três na mão de Jozé Ferreira Brazam donde se acham dois cordões em endados que fazem um, quarenta oitavas, um cordão com uma águia, um pente, uma estrela, uma argola solta, um coração, tudo em ouro, tam bém e m p e ­ nhado na mão de Jozé Ferreira Brazam, um cordão dc ouro, um feitio de m enino Jesus de ouro pesando cinco oitavas, umas argolinhas de ouro p e ­ sando quatro oitavas, uma senhora dc feitio de Nossa Senhora da Concei­ ção pesando três oitavas e meia, uns brincos de aljôfar e uns botões de ouro, umas argolinhas dc ouro pequenas, uma bola de âmbar, uma volta de corais engranzados em ouro, um coral grande com uma figa pendurada, tudo de ouro, quatro colheres dc prata pesando oito oitavas cada uma, q u a ­ tro garfos dc prata e uma faca com cabo dc prata, duas memórias de em beressadeiras [jt/V], dois pares de botões de anáguas abertos no buril, tudo em penhado na mão de Manoel dc Magalhaens por sete oitavas, o que meus testamenteiros desempenharão. Item tenho e m penhado mais um cordão de ouro com o peso que sc achar na mão dc Jozé Rodrigues de Souza por vinte oitavas que meus testamenteiros desempenharão. [...] um tacho gran­ de de cobre e outro pequeno, doze pratos de estanho e dois grandes, uns corais, quatro saias, duas de seda preta c uma dc rossa [.svV] grana [.v/V] parda e uma de camelão e a roupa branca que se achar [...] três panbs de dois côvados, um preto, um azul e um verde, um colchão de lã O tal Jozé Ferreira Brazam, com quem a maior parte da coleção de penduricalhos se encontrava guardada, era capitão-mor e um dos testamenteiros indicados por Bárbara para defenderem seus interesses na Vila de Sabará. Aliás, eram o mesmo local e época cm que viveu Luzia Pinta,7 uma africana forra acusada de heresia e presa pela inquisição. Não é difícil imaginar que as duas se tenham conhecido c até mesmo compartilhado experiências c práti­ cas culturais afro-brasileiras. O receio dc futuros problemas com a inquisição é outro motivo que deve ter levado Bárbara a desm em brar sua penca e a espalhar os pequenos pingentes entre alguns amigos, retirando o sentido trans­ gressor do conjunto. Mantê-los em penhados nas mãos de amigos poderosos era, portanto, uma boa estratégia de defesa. Afinal, a forra havia e x p erim en­ tado ascensão econômica notável e a penhora não tinha sido motivada, certa­ m ente, por necessidades financeiras.

6 M u seu do Ouro dc Sabará, M O / C P O - T E S T — códicc 2, f. 86v-91. T e sta m e n to de Bárbara G om es de Abreu e Lim a — Sabará, 12 jul. 1735. Sobre o processo de Luzia Pinta e sobre sua atuação cm Sabará ver Luiz Mott. “O calundua n g o l a dc Luzia Pinta: Sabará, 1739” , in: Revisto Ho IAC, Ouro Preto, UFOP, /:73-82, 1994, e Laura d c Mello c Souza. O Hiabo e a Terra He Santa Cruz;feitiçaria e re/igiosiHaHepopular no B rasil colonial. São Paulo: C o m pan hia das Letras, 1986, p. 267.

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Trazer os balangandãs à cintura, como era dc costume, servia para proteger a portadora. N o geral, os pingentes eram representações de fertilidade c da sexualidade femininas e eram emblemas do poder exercido pelas m ulheres sobre o processo de formação das famílias c de outros grupos sociais. Alguns dos penduricalhos, porém, podem ter tido significados particulares para os iniciados em práticas religiosas africanas c afro-brasileiras. O que parecia, portanto, ser um adorno sem especial importância para uns, era indicador dc autoridade, de poder, dc devoção e de proteção para outros. E estes signos maquiados estendiam-se, também, à indumentária e ao corte e arranjo dc cabelo.8 Guardiã de tradições ancestrais, sacerdotisa c exemplo inequívoco de au­ tonomia, mobilidade e poder femininos influenciado por experiências a n te ­ riores e inspirador dc novos casos. Este perfil ajusta-se, sem sobras, ao caso da crioula Bárbara. De uma das m ulheres que formavam a minoria da massa de escravos brasileira, ela, ao forrar-se, elevou o núm ero de m ulheres libertas, que constituíram o grupo majoritário entre os forros da colônia e do império. Vários dos badulaques inventariados representavam e celebravam seu triun­ fo pessoal, isto é, a alforria e a ascensão econômica, não obstante a ostentação deles ser prática coletiva e recorrente entre as forras. Forras e escravas demonstravam prestígio, exibiam veladam ente devoções e representações e p unham em prática códigos de comportamento, de hierar­ quia e de poder, por meio de seus balangandãs. N esse jogo teatral desenvol­ vido no espaço público, mas tam bém exercitado na esfera do privado, muito do que era encenado e concretizado sob os olhares senhoriais passava desper­ cebido ou era relevado pelos proprietários e proprietárias. Isso tam bém fazia parte das relações cotidianas: acordos, ainda que implícitos, e certa tolerân­ cia. As trajetórias desses vários escravos e escravas, condensadas em boa m e ­ dida no caso de Bárbara, retratam bem as rotas culturais engendradas no Bra­ sil colônia. O caso da liberta Bárbara indica o grau de integração mercantil alcançado durante o século XVIII. Aliás, é preciso sublinhar a interligação do mundo, de maneira consolidada já nessa época e a posição central das várias regiões

" Ver sobre os assuntos C éline Baduel & C lau de Meillassoux. “M odes et codes de la coiffurc ouest-africaine” , in: UEthnographie. Société d ’F.thnographic dc Paris. Paris: Gabalda, 1975, p. 11-59; Sígrid Porto de Barros. “A condição social e a in du m entária fem inina no BrasilColônia” , in: Anais do Museu Histórico Nacional, Rio dc Janeiro, 17/7:117-54, 1947; Silvia H un old Lara. Sedas, panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador (século XVIII). Campinas: s.l., s.d.; Sob o signo da cor: trajes femininos e relações raciais nas cidades do Salvador e do Rio de Janeiro, ca. 1750-1815. Campinas: s.l., s.d. c “T h e signs of color: w o m e n s dress and racial rclation in Salvador and Rio dc Janeiro, ca 1750-1815” , in: Colonial Latiu American Reviev\ 6(2):205-24, 1997; João José Reis. “Magia jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto da Cachoeira, 1785” , in: Revista Brasileira de História. São Paulo: Anpuh, 7(5:57-81, 1988.

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da África nessas trocas financeiras e culturais, que aproximavam oriente e ocidente. Entre os objetos descritos no testam ento da crioula, vários eram os itens de grande valor no comércio internacional setecentista, que os habitan­ tes das Minas ajudaram a fomentar.,J Aljôfares (pérolas pequenas), corais, âmbar e certos tecidos, por exemplo, chegavam nas Gerais, em quantidade ainda não mensurável, depois de atravessarem o mundo. Navegadores e comerciantes portugueses e brasileiros tratavam dc trazê-los da África, do Oriente Médio, da índia e da China e os primeiros foram mesmo pioneiros desta empresa. D esde o século XV eles desenvolveram relações comerciais com os moradores dessas regiões e a partir do século XVI abasteceram sua colônia do Novo M undo de especiarias e de outros artigos.10 D urante a explosão aurífera e comercial do Setecentos brasileiro o merca­ do nessa região americana ampliou substancialmente sua dem anda e transfor­ mou-se em endereço privilegiado para produtos europeus c orientais. Junto com eles, claro, chegaram representações e modos de uso, que foram apro­ priados e reconstruídos entre a população da colônia lusa da costa oeste do Atlântico. Grande parcela da mercadoria aportada aí tinha percorrido extensa trajetória e vinha da África impregnada de valores que, às vezes mais intensa­ mente, às vezes menos, continuaram sendo cultivados no Brasil. N o início do século XVI, por exemplo, o livro dc bordo da caravela Santa Maria da Concei­ ção trazia registrada a variedade da mercadoria trazida do O riente e negocia­ da na África, assim como os produtos africanos do continente, comercializa­ dos e levados para a ilha de São Tomé, rota que, mais tarde, se estenderia até o Brasil. A embarcação saía de São Tom é e entrava na região do Benin através dos rios pouco profundos da região e, por isso, era de peq u e n o porte, não ultrapassando as trinta toneladas. Nela, levava-se para a chamada Costa dos Escravos ou Costa da Mina, entre outros itens, cauris indianos (uma espécie de búzio), manilhas de cobre, pérolas e contas de tipo diverso, tecidos e tou­

'* K bastante esclarecedor sobre o assunto o texto de E rncstinc Carreira. “Au X VIIIc sicclc: 1’occan Indicn et la traite négrière vers le Brésil” , in: K. dc Q. Mattoso (dir.). Esc/avages; histoire d'une diversitéde !'océan Indien à /'At/antiquesud. Paris: L H a r m a tta n , 1997. A autora afirma q ue d esde meados do scculo XVII existiram cm D am an e e m Diu, possessões por­ tuguesas na índia, fábricas especializadas em tecidos destinados ao mercado brasileiro e q u e a partir do século XVIII, com a descoberta do ouro c o crescim ento demográfico, a de m and a brasileira sofreu “uma evolução brutal” (p. 58-9). 10 E. Carreira. “Au X V IIIe” ..., op. cit., demonstra a in tensidade do comércio rcali/.ado pelos portugueses com o O riente e, tam bém , como os comerciantes fixados na Bahia, cm Minas Gerais c no Rio d e Janeiro mantiveram e aum entaram suas relações comerciais com as possessões portuguesas do occano Indico. Sobre a transformação do Rio d e Janeiro na mais im portante praça comercial colonial, chegando em de term inados m om en tos a suplantar a im portância de Lisboa, ver tam b ém E. Carreira. “Au X V II Ie ...” , op. cit. c Luís Lisanti. Negócios coloniais. Brasília-São Paulo: Ministério de Fazenda-Visão, 1973, 5 vols. Ver tanto a correspondência referente ao Rio de Janeiro, no volume III (p. 275-7 especialm ente), quanto à relativa a Minas Gerais, no volume I (p. 227-33 especialm ente).

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cas c chapéus vermelhos (de corais?). Das terras continentais trazia-se, além dc escravos para trabalhar cm São Tomé, marfim, coris azuis (um tipo de conta), vime e argila, entre outras mercadorias." N o ano dc 1600, décadas após os negócios realizados pela tripulação da p e q u e n a caravela da Conceição, o cosmógrafo-maior dc Sua M ajestade o Rei Filipe II da Espanha c dc Portugal, João Batista Lavanha, escreveria a Reda­ ção do Porto do Rio de Çanaga do Capitão João Barbosa. O capitão Barbosa fornecera as informações que Lavanha acabou por registrar na Redação. Bem no início do docum ento sublinha-se a importância do Çanaga (Senegal). Tra­ tava-se dc um rio grande da região da Guiné, navegável por mais de duzentas léguas, conhecido, ao sul de sua embocadura, como rio Gâmbia. Diante dessa condição estratégica para o comércio com os povos africanos continentais, o rio despertara o interesse de outros reinos europeus, desde cedo. Nas pala­ vras dc Lavanha: “N este Rio resgattaõ há muitos anos franceses, Ingreses e olandeses grande soma de Courama, marfim, e sera, e nelle estanciaõ cõ grande se­ gurança os seus navios; comunicando muv amigavelm ente cõ os Negros, q por esta continua conversaçaõ vaõ à frança, falaõ francês, e há algüs casa­ dos com francesas, e daly correndo os Cosairos todos os Rios de Guiné, e Costa da Malagueta, resgataõ dos Negros, e dos Tangos maos, muito ouro, Ambar, Malagueta, e escravos, q já começaõ à levar à índias de Castella e os seus navios roubaõ os nossos, q navegaõ aquellas costas, para as quaes naõ há estancia segura nellas.” 12 Além dos itens que os corsários levavam dessa região africana para comer­ cializá-los no N ovo M undo, o Brasil incluído, que se encontrava sob o dom í­ nio espanhol nessa época, outras mercadorias eram negociadas. Marfim e goma eram tomados dos africanos e, em troca, eram oferecidos a eles produtos de procedência diversa, tanto da Europa, quanto do Oriente, principalm ente da índia. N e ste último caso incluíam-se: contaria, panos vermelhos, pacharis da índia, brincos de vidro e algum vinho europeu, que não valia muito “porq saõ estes negros da seita de m afamede pella comunicaçaõ q tê dos H arues” .u As mercadorias orientais e, tam bém , as européias saíam em direção à África con­ tinental do grande empório insular do Atlântico africano, isto é, as ilhas de

11 Ver R aym ond Mauny. “L e livre d e bord du navirc Samta Maria Da Comçeiça (1522)” , in: RulletinderinstitutFondamentald'AfriqueNoire, Dakar, Série B, Sciences Humaines,X.Y/A'(34):512-35, 1967. Ver Jean Boulègue. “Relation du port du fleuve Sénégal d e loão Barbosa, faite par João Baptista Lavanha (vers 1600)” , in: Bul/etin de l'Instituí Fondamental d'Afrique Noire, Dakar, Série B, Sciences H um aincs, XX7X(3-4):496-511, 1967 (p. 498 c 500). Ver J. Boulègue. “R e la tio n ...”, op. cit., p. 508.

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Cabo Verde. Muito do que saiu do grande armazém cabo-verdiano em dire­ ção aos reinos do continente africano poderá ser encontrado, durante os sécu­ los seguintes, entre a gente do Brasil. Nas Gerais do Setecentos algumas lojas e outros(as) negociantes a m bulan­ tes trataram de fornecer essas mercadorias aos consumidores. Houve casas de comércio muito sortidas, onde se podia comprar quase tudo o de que n e ­ cessitava aquela sociedade. E claro que elas eram mais comuns e possuíam mais o que oferecer aos clientes nas vilas e arraiais mais populosos, onde existia maior demanda. Na loja do bracarense João da Fonte Barros (que tam ­ bém era boticário), os clientes mais abastados do arraial da Borda do Cam po (futura Barbacena), podiam, em 1762, encontrar mercadoria de vinda de vá­ rios lugares do m undo. E ntre os itens negociados por Barros, podiam-se encontrar tecidos, como linho, linhagem c riscado de linha de Hamburgo, li­ nhagem de Holanda, peças dc Bretanha, de Cambraia, baetas, barbarisco, bo-caxim, brim, camelão, chitas, encerados, galão, lãs, riscados e sedas. Além disso, compravam-se linhas em meadas de Guimarães, cobertores ingleses, cha­ péus de Braga, ligas de calções, meias de vários tipos, fitas e luvas de pelica. Entre os utilitários, tinham canivetes de cabo de chifre, cravos dourados, facas flamengas, lápis, martelos, navalhas, pentes dc marfim, pregos de pau-a-pique e, ainda, pólvora e chum bo.14 Na vila dc São João del-Rci, sede da comarca do Rio das Mortes, outro português, agora um lisboeta, mantinha, em 1744, uma loja ainda mais sortida que a do conterrâneo, que, anos mais tarde, esco­ lheria a Borda do Campo. N o estabelecim ento de Antônio dos Reis Lisboa, era possível comprar, além de artigos similares aos mencionados acima, baeta de cochinilha, panos finos de Holanda e coloridos, sarja de França, ruão, meias italianas, brilhantes de seda, chamalote, crepe, fustão, gala, lemiste, nobre­ zas, primaveras, saietas, saragoça, serafina, tafetá, veludo, rendas, meias de algodão e de raxa “para m enino” , sapatos, barretes de Malta, plumas de cha­ péu, luvas de “castores” , de camurça e de “canhão”, botões de prata, aboto­ aduras, pentes “da terra” e dc tartaruga, escovas, chapas de gravata, fivelas de sapatos, espelhos, agulhas e alfinetes, dedais, “tesouras estrangeiras” , carretilhas, colheres, garfos e facas, anzóis, berimbaus, tinteiros, bofetes, mouchos e preguiças, óculos, compainhas, dobradiças e fechaduras e, ainda, cominho, alfazema, galha e marea.1' Nas vendas, casas mais simples que as lojas, os artigos à venda eram bas­ tante diferentes e menos diversificados. Na vila de São João del-Rei, outro bracarense, Antônio de Moura Bastos, mantinha uma dessas vendas, em 1762.

14 M u s e u Regional d c São João del-Rci, M R /IN V — caixa 30. T e sta m e n to dc João da F o n te Barros — Borda do Campo, 29 nov. 1762. 15 M R /IN V — caixa 297. T estam en to de Antônio dos Reis Lisboa — São João del-Rei, 9 d c / 1744.

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Algum tecido posto à venda era adquirido no Rio de Janeiro, mas nada de muito significativo. No inventário post-mortem foram listados entre os “tras­ tes da venda” : caixão de madeira, frascos e copos de vidro, frigideiras e pa­ nelas de barro, funis de folha (latão), balanças c pesos, “uma coarta e meia coarta de pau de m edir” , “uma barruma grande de furar barris” , barris des­ tampados e “uma vara de medir fum o” . A loja funcionava na parte térrea do sobrado em que Bastos morava e entre os clientes da venda, cujas dívidas se encontravam assentadas no livro de razão, encontravam-se alguns hom ens forros.1'' Os libertos e as libertas das áreas urbanas mineiras recorriam a essas vendas e a comerciantes sem estabelecim ento fixo. Eles próprios e elas, so­ bretudo, chegaram ao fim do século XVIII responsáveis e/ou proprietários de parcela bastante significativa das vendas e do pequeno comércio instalados em vilas e arraiais.17 O angolano forro, José Machado Afonso, era “viandante com seus negócios” e tinha contatos comerciais em Pernam buco e na Bahia. Afonso morava no arraial de Taquaraçu, próximo da vila de Sabará, em 1770, mas seu testam ento tinha sido registrado na cidade do Rio de Janeiro.IH Este caso aponta para a possibilidade de esses negociantes terem transportado todo tipo de mercadoria, além de terem feito transitar tradições e com portam ento culturais. Outro aspecto notável, que salta desse registro testamental, é a mobilidade desse forro, que, de resto, foi experim entada por muitos hom ens e m ulheres libertos na colônia, e, tam bém , pelos livres. Foram, talvez, co­ merciantes como Afonso, os responsáveis, por exemplo, pelo fornecimento dos corais tão apreciados nas Minas e que não podiam ser comprados nas lojas e vendas; pelo m enos é o q ue dem onstram os inventários post-mortem desses hom ens e m ulheres de negócios. Ainda que não se pudessem comprar corais, âmbar, contas, pedraria e m ate­ rial similar nessas lojas e vendas, seus proprietários podem, entretanto, ter desem penhado o papel de intermediários nesse comércio. Inácia Ribeira, pre­

16 M R /I N V — caixa 323. T estam en to de Antônio de M oura Bastos — São João dcl-Rei, 23 set. 1762. 17 A penas para exemplificar, pode-se vislumbrar esse quadro, ainda na primeira m e tad e do século XVIII, na comarca do Ouro Preto, tanto e m Vila Rica, q uan to nos arraiais em torno. Alguns livros, o n d e foram registradas as “Listas dos contribuintes para o Real D onativo e conta dos provedores” são pródigos em d em onstrar a q ua ntidad e expressiva de vendas controladas por m u lheres e h om ens forros e cativos, além do n úm ero de escravos possuí­ dos por eles. Ver Arquivo Público Mineiro, APM/C MOP, códices n.“ 23, 24 e 26. Para a comarca do Rio das Velhas c do Rio das M ortes consultar E. F. Paiva. Escravos..., op. cit. c Por meu trabalho..., op. cit. Para a comarca do Serro do Frio ver Júnia Ferreira Furtado. Homens de negócio — a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: H ucitec, 1999. Ver, ainda, Cláudia Maria das Graças Chaves. Perfeitos negociantes, mercadores das Minas setecentistas. São Paulo: A nnablum e, 1999. IS M O / T E S T — livro 52, f. 58 a 62v. T esta m e n to dc Josc M achado Affonço — Rio dc Jan ei­ ro, 27 out. 1770.

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ta forra moradora do arraial do Pompéu, no termo da vila de Sabará, mantinha ali uma venda. Os “trastes” da referida venda, registrados em testamentos, dão a dimensão de sua simplicidade: uma balança de pesar ouro, com pesos de ferro fundido. Entretanto, alguns dos objetos pertencentes à casa, listados no mesmo documento, podem ter sido usados, também, na venda. Entre eles: tachos e bacias de cobre, almofariz, duas gamelas, cinco pratos dc estanho c dois tamboretes. Além desses itens a dona dessa bitaca possuía uma barra de ouro pesando oitenta oitavas (valor aproximado dc 120$000, isto é, cento e vinte mil-réis), trinta e quatro oitavas de ouro lavrado (valor aproximado de 51$000 réis) e, o que mais interessa aqui, “uns corais engranzados, que têm fora os corais” , no valor de dez oitavas dc ouro (algo em torno de 15$000 réis).1'1 Muitas das peças rubras chegadas às Minas foram consumidas e negocia­ das por mulheres forras como Inácia Ribeira. Elas as ostentavam engranzadas em ouro 011 em prata e, como já sugeri, as tomavam como adornos e, tam bém , como objetos de celebração. Mas eles são, ao m esmo tempo, m edia­ dores culturais ou, para manter o conceito original,passeurs cultureh. Por isso, os corais que Inácia 011 que Bárbara possuíam nas Minas setecentistas nos servirão, a partir de agora, como guias de uma viagem a tem pos mais remotos e a espaços muito diversos. O uso de corais na colônia cra, então, comportamento que sumariava longos e antigos trajetos. Material orgânico marinho, não cra explorado nas costas brasileiras, mas no m editerrâneo e no oceano Indico. Os mercadores venezianos, por exemplo, traficavam-no entre o ocidente e o oriente e os incluíam nos negócios com o norte da África desde o século XV. O coral era mercadoria apreciada e cara em toda essa região e deu origem a variada sorte de adornos corporais, de objetos decorativos e de amuletos. Os pintores renascentistas italianos, com freqüência, punham colares e pulseiras de corais vermelhos em contas polidas em suas inúmeras representações da “Virgem com o M e n i­ no Jesus” . Em vários desses casos, uma rama de corais apareceu pend e n d o no colar em torno do pescoço do menino, como amuleto contra mau-olhado e contra outros males. Em vários desses quadros eles foram associados a romãs, a cachos de uvas e ao aleitamento sugerindo a fecundidade materna. D esde o século XIII, entretanto, na mesm a península itálica, o sangue que vertia do Cristo flagelado e crucificado, era pintado sob as tortuosas formas dos corais in natura, e Giovanni da M odena, no Quatrocentos, juntava os dois e le m e n ­ tos no peito do Cristo menino, em tela guardada no M useu do Louvre.20 Representações semelhantes foram realizadas por vários pintores da H olan­

''' M O / T E S T — livro 52, f. 69v-75. T estam e n to de Inácia Ribeira — Arraial do P o m p éu , 15 fev. 1777. Giovanni da M odena, conhecido e m Bolonha, entre 1398 e 1456. A tela à qual m c refiro, A Virgem e 0 Menino, foi pintada en tre 1420 c 1425.

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da c da Flandrcs dos séculos XVI e XVII. N o mesmo século XVII, pintores franceses c flamengos associavam grandes e viçosas ramas de coral à Améri­ ca, alusão ao “exotismo” , à fertilidade e às riquezas da região. N o continente africano, o uso dos corais foi muito difundido desde o sécu­ lo XV e os portugueses foram grandes fornecedores do material. N o antigo Reino do Benim, parte da atual Nigéria, desde o século XV eram feitas cabe­ ças de cobre, que tinham o pescoço com pletam ente cobertos por voltas de corais polidos, engranzados, sob a forma de pequenos cilindros. As vezes, toucas de coral com fios do mesmo material pend e n d o delas, tudo moldado em cobre, cobriam as tradicionais cabeças feitas pelos artistas do Benim, essa região que, a partir do século XVI, forneceria grande núm ero de escravos ao Brasil. Os navegadores portugueses estabeleceram contatos comerciais, feitorias e fortalezas em toda essa área do golfo de Guiné desde a primeira m e ­ tade do século XV e em troca do ouro aí existente deixaram, entre outras mercadorias, grande quantidade de corais. Tratava-se de item precioso na África, assim como na Europa, e os portugueses sabiam disso perfeitamente. Um comentarista luso, chamado Duarte Barbosa, registrou o interesse dos portugueses pela mercadoria rubra em um livro publicado pela primeira vez em Veneza, no ano de 1518. Ele descrevia os vários tipos de coral comer­ cializado pelos portugueses e o valor pago por eles.21 Os corais trazidos do O riente M édio e da Ásia pelos portugueses e vindos, tam bém , do M editerrâneo (Itália, Espanha, Argélia, Tunísia) transformaramse em objetos de uso corrente da corte beninense e em várias regiões da África central. N o Reino de Benim, historicamente, as contas de coral “eram enfiadas juntas em um fio da cauda de um elefante, animal estreitam ente associado à realeza e à força” . E desde o reinado do guerreiro Evuarê (século XV) era realizada a cerimônia anual do coral, “rito que tinha como objetivo renovar os vínculos sagrados e políticos do Benim, mas, tam bém , com em ora­ va a aquisição das primeiras contas de coral de Olokun [deus da saúde e do mar] e o nascente comércio com a E uropa” .22 O rei Esigiê do Benim, no início do século XVI, fomentou o comércio com os europeus, comprandolhes muito bronze e latão e tornou-se famoso por ler e falar português. Os corais eram igualmente apreciados no reino ashanti ou Costa da Mina (atual Gana) e nos reinos do Daom é (povo fon) e Ioruba (atual Nigéria). A eles e a outros tipos de contas coloridas (cada cor ou mistura de cores sim bo­ lizando um deus) muitas vezes foi associado o ouro, existente em quantidade significativa nesses reinos. Era, aliás, a busca desse ouro que vinha instigan­

21 Ver Livro do que viu e ouviu no Oriente Duarte Barbosa. Lisboa: Publicações Alfa, 1989, p. 159 e 168. 22 As afirmações reproduzidas foram retiradas da tradução francesa de S uzanne P reston Blier. U art royalafricain. Trad. Paris: Flammarion, 1998, p. 47 e 55.

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do os portugueses a, cada vez mais, se fazerem presentes nas terras africanas, tanto na costa, quanto no interior.-' Mercadorias do oriente eram muito bem aceitas pelos africanos em troca do seu ouro, como chegou a atestar o já m e n ­ cionado Duarte Barbosa.-4 Depois de introduzidos na África esses produtos receberam novos signifi­ cados e propriedades. Ora, os usos seculares, os costumes e representações arraigadas entre os povos ashanti, ioruba, fon e, tam bém , do Congo, dc Ango­ la e de M oçam bique iriam atravessar o Atlântico e entrar no Brasil junto com os milhões de hom ens e mulheres escravizados levados da África. E muitos desses costumes foram mantidos, na América portuguesa, quase que inalte­ rados, embora praticamente invisíveis aos olhares mais teim osam ente euro­ peizados. Aliás, essas permanências são excelentes pontos de partida para uma reflexão mais aprofundada sobre sincretismos e impermeabilidades cul­ turais no Brasil. A incidência de corais e de tecidos coloridos de enorm e variedade de tipos é notável nos testamentos e inventários post-mortem mineiros.-’'' E, ressaltese, tanto de homens, quanto de mulheres e tanto de livres, quanto de forros. Fios de contas, é outro item listado com freqüência nessa documentação, embora não haja, na maior parte das vezes, identificação delas. Os brincos de aljôfares aparecem de maneira recorrente. O âmbar é, entre esses produtos, o mais raro.2íl Além de terem propriedades mágicas e místicas esses objetos eram parcela importante da riqueza acumulada na colônia. E os corais engranzados em ouro eram, sem dúvida, os mais incidentes desses itens.

2i N ão c por acaso 011 por coincidência q ue os escravos oriundos da região aurífera da Costa da M ina formavam um grupo m uito numeroso, talvez o maior, cm Minas Gerais. Eram ho­ m ens c m ulheres qu e tinham boa experiência cm atividade mincratória e e m outras liga­ das a ela e, por isso, foram in tensam ente levados para as Gerais. S egundo S. P. Blicr. V.art..., op. cit., p. 139, as mulheres, no reino ashanti, monopolizavam a faiscação do ouro. Essas mulheres dominavam, tam bém , o comércio de alimentos feito nas ruas, assim como ocorre­ rá em Minas Gerais e em outras áreas do Brasil e, ainda, no Caribe. Q u a n to a esse tem a, ver Barbara Bush. S/ave Women in Caribbean Soriery — 1650-1838. H ingston: H e in e m a n n Publishers, 1990, p. 48-9 c Paiva, E. F. E scravos..., op. cit., p. 78-84. 24 Ver L ivro ..., op. cit., p. 46, 47, 49, 65, 66. U m bom inventário dos tecidos c das cores mais encontrados nas Minas setecentistas foi organizado por Maria Eliza dc C am pos Souza. A indumentária setecentista das Minas do Rio das Velhas nos inventários post-mortem. Belo Horizonte: U F M G , s.d. (mimeo). Ver, tam b ém , Lisanti, 1973. 2,1 A priori, essa raridade causa certa surpresa, uma vez qu e Pêro M anuel d c Gândavo. Tratado da terra do Brasil; História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. 1576. Organização de L eonardo Dantas Silva. Recife: F und aj-E d. Massangana, 1995 (p. 16) acu­ sava a existência de m uito âmbar na costa marítima brasileira nas últimas décadas do século XVI; e no verbete “âm bar” de Luís d e A lbu qu erqu e (dir.). Dicionário de história dos desco­ brimentos portugueses. Lisboa: C aminho, 1994, 2 vols., afirma-se q u e Lisboa, no século XVI, passou a ser o centro distribuidor para a Europa dessa valiosa resina vegetal trazida do oriente.

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E ntre as forras e os livres que faziam uso dos corais deve ter havido gran­ des diferenças no que se refere à apropriação do material, ao uso ritual dele e aos significados a ele atribuídos. Usá-lo cm contas, à maneira dos africanos da Costa da Mina, 011 em ramas, à moda dos amuletos europeus ou, ainda, trans­ formá-los em figas, que, não obstante serem consideradas objetos de origem africana, chegaram ao Brasil pela Europa, foram opções pessoais e de grupos. Misturá-los a diferentes contas dc várias tonalidades, usá-los juntos a outros fios c cordões, foi escolha estética, mas foi, tam bém, indicativo de devoção, de vinculação religiosa, de guarda de tradições culturais, de autoridade e dc poderes. Mas será que todos os corais foram usados como amuletos? Raul Lody observa com razão que qualquer amuleto deve “passar por uma preparação, quer dizer, uma impregnação de propriedades mágicas, de modo que o obje­ to possa realm ente desem penhar seu papel de símbolo possuidor de valores mágicos” .’7 As representações incorporadas a objetos de culto e de uso mági­ co nunca foram facilmente apreendidas por observadores leigos. E isso atin­ ge tanto o cronista antigo quanto o historiador moderno. Os amuletos, sejam de coral, de âmbar ou de qualquer outra matéria são, contudo, pequenos frag­ mentos que podem esclarecer práticas culturais e relacionamentos sociais no passado e no presente. Eles ajudam a desvelar teias do imaginário e compor­ tam ento de grupos. Dem onstram , tam bém , como certos grupos e certos indi­ víduos construíram alternativas de sociabilidade e de distinção social, como atribuíram poderes aos símbolos e como escolheram símbolos para os p o d e ­ res. Receptores dos mais diferentes desejos dos crentes e de terríveis esconjuros dos temerosos, esses objetos podem tornar-se, tam bém , fontes de inú­ meras indagações dos historiadores. Sobretudo dos historiadores da cultura, qu e d evem estar preparados para escutar as respostas dadas por eles, como diria T hom pson. Preparados, tam bém , para as respostas enigmáticas, cifra­ das e confusas ou, até mesmo, para o silêncio. E aqui, portanto, que o histo­ riador deve distinguir-se do curioso leigo ou do cronista mais interessado em seguir registrando suas impressões, que em deter-se diante de algumas dúvi­ das. E preciso, pois, que ele avance contra as versões cristalizadas, às vezes ingênuas, outras vezes derivadas de julgamentos religiosos e político-ideológicos. E necessário, ainda, que ele transforme em elem ento de reflexão as incom preensões deixadas por “estrangeiros” que, em muitos casos, valem mais q u e várias descrições minuciosas dos envolvidos. Com o disse no século XIX o protestante norte-americano T hom as Ew bank, “pode haver um a su-

-7 Ver R. Lody. O p o v o ..., op. cit., p. 212. Ver, tam b ém , R. Lody. Pencas..., op. cit. e T h o m a s Ewbank. Vida no B rasil ou Diário de uma visita à terra do cacaueiro e da palmeira, com um apêndice contendo ilustrações das artes sul-americanas antigas. Trad. Belo H orizonte-São P a u ­ lo: Itatiaia-Edusp, 1976, p. 103-04.

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gestão filosófica no brinco". Q uando clc visitava a Rua dos Ourives, no Rio de Janeiro, onde eram confeccionados vários tipos dc amuletos, deparou-se com uma peça de coral encastoado e quis saber mais informações sobre cia. A dificuldade enfrentada pelo estrangeiro, no sentido mais amplo do termo, diante de representações pouco familiares, emerge nitidam ente em seu re­ gistro seco e objetivo: “o artista explicou suas virtudes mas eu não o com pre­ en d i” . E bem provável que o arguto E w bank não tivesse sido admitido ao grupo de usuários cariocas (entre eles, iniciados cm religiões afro-brasileiras) do amuleto de coral. Daí a incompreensão da explicação proporcionada pelo “artista” , segundo o autor.

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v e r s i d a d e F e d e r a l d e M i n a s G e ra is , d o u t o r c m H is t ó r ia Social p e la U n i v e r s i d a d e d e S ã o P a u l o c e s p e c i a li s ta e m H is t ó r ia C u l t u r a l p e la E H E S S , P aris. F’ n t r e s u a s várias

Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século A T / / / ( A n n a (Strugg/cforSynthesis — The Total Work of Art in the / Th and IS1'1Centuries, 1999) e .4 Escravidão no Brasil p u b licaçõ es d e sta c a m -se

b l u m e , 1995), O U n i v e r s o C u l t u r a l c o B a rro c o c m M i n a s G e r a is ( M o d e r n a , 2000). R Ks u

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A t e m á t i c a e s t u d a d a n e s t e t e x t o n ão a b r a n g e os ritos fe s tiv o s c o lo n ia is ,

n e m in c lu i as g r a n d i o s a s fe s ta s o c o rr id a s na A m e r i c a p o r t u g u e s a . O q u e m a i s i n t e r e s ­ sa a q u i são os o b j e t o s e os c ó d ig o s d e c e l e b r a ç ã o d c c o n q u i s t a s c o t i d i a n a s e x p e r i m e n ­ t a d a s p r i n c i p a l m e n t e p o r m u l h e r e s n e g r a s c m e s ti ç a s , t a n t o e sc r a v a s, q u a n t o lib e rta s , n o B rasil e sc r a v ista . P rá tic a s às v e z e s e x p lí c it a s c e m o u tr a s v e z e s c a m u f l a d a s q u e a d q u i r i r a m s i g n ifi c a d o s p e c u l i a r e s e m u m a r e a l i d a d e fo rja d a e n t r e h i b r i d i s m o , im p e r m e a b i l i d a d e s e s u p e r p o s i ç õ e s c u lt u r a i s . P a ra a m e l h o r i m e r s ã o n e s s e c o n j u n t o d e p rá t ic a s e d e r e p r e s e n t a ç õ e s c u l t u r a i s j u l g u e i e s s e n c ia l p e r c o r r e r é p o c a s e r e g i õ e s d i f e r e n t e s . A s s im , a p a r t ir d e u m m i c r o c o s m o m i n e ir o , b u s q u e i a t i n g i r c o m p o r t a ­ m e n t o s e i m a g in á r io q u e v i n h a m s e n d o m o l d a d o s d u r a n t e vários s é c u l o s , m e d i a n t e c o n t a t o s e n t r e tr a d i ç õ e s c u lt u r a i s , as m a is d iv e rsa s. L i g a n d o - a s a tr a v é s d e a p r o p r i a ­ ç õ e s fo r ja d a s a c a d a t e m p o e ao g o s t o e à n e c e s s i d a d e d e c a d a g r u p o social, os passeias

culturels

a q u i são os a m u l e t o s , s o b r e t u d o os c o n f e c c i o n a d o s e m coral, e m b o r a n ã o

e x c l u s i v a m e n t e . S ã o e l e s q u e a p r o x i m a m , às v e z e s d e m a n e i r a i n e s p e r a d a , v ia j a n t e s / c o m e r c i a n t e s p o r t u g u e s e s d o s é c u l o X V às c o r t e s a fr ic a n a s d o s é c u l o X V I, aos p i n t o ­ res r e n a s c e n t i s t a s d a E u r o p a e às m u l h e r e s forras u s u á r ia s d o s b a l a n g a n d ã s , n a s M i ­ n a s G e r a is d o S e t e c e n t o s .

f MISSA C j feftividade^^

DO COJRPO de DEU AõSrCapitao Mor OSKPH TIMOTEO, 5EREIRA,d eBASTOS

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CAETANO da SYUA Coaego naCadiedrál de OLINDA. . 17 72 .

Missa Na festividade do Corpo de Deus que Aõ S\ Capitão Mor Joseph Timotheo Pereira de Bastos O.D.C. Caetano da Sylva, Conego na Cathedral de Olinda, 1772. Não faço nada sem alegria: a biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin. Catálogo da exposição realizada no Museu Lasar Segall. São Paulo: Museu Lasar Segall-IPHANMinC, 1999, p. 43. Foto André Ryoki.

UNIDADE E DIVERSIDADE ATRAVÉS DA FESTA DE CORPUS CHRISTP B e a i r i z

C a t ã o

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S a n t o s

“ [... ] pura v e r L i s b o a d c u m a v e z fui v e r a p ro c is sã o d o Corpo de D e u s” J o s k

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C u n h a

B r o c h a d o 2

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f e s t a d e Corpus Christi na América portuguesa era, em muitos aspec­ tos, sem elhante à praticada no Reino.3 Todavia, tenho como hipótese que se produziram diferenças no espaço colonial. Tratar dos aspectos da festa reali­ zada nas cidades coloniais comuns a Portugal já não constitui tarefa fácil, p rete n d er indicar diferenças entre a festa de Corpus do reino e a da América portuguesa, assim como entre as das diversas cidades coloniais é ainda menos

1 E ste texto (de março, 1999) c um a versão simplificada do seg un d o capítulo, a p res en ta­ do na qualificação da te s e de doutorado, q u e d esenvolvo pela U n iv e rsid ad e F ederal F lu m in e n s e sobre a festa do Corpo de D e u s da América portuguesa, no século XVIII. Suprimi citações e referências bibliográficas para dar prioridade aos argum entos e a deq uar o texto à d e m a n d a do seminário Festa: Cultura e Sociabilidade Festiva na América Portuguesa. 2 Cartas d e José da C u n h a Brochado escritas ao C o n d e de Viana, in: 0 investigadorportuguez em Inglaterra ou jo rn a l literário, político, & c. Londres, T. C. Hansard, 1816, p. 431(1." dc ju n h o d e 1709), apud: Rui Bebiano. D. João V;poder e espetáculo. Aveiro: Livraria Estante, 1987, p. 128. 3 Vários autores q u e trataram do tem a reconheceram suas sem elhanças: Vieira Fazenda. “A ntiqualhas e memórias do Rio d e Janeiro” , in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. T o m o 86, v. 140, 1919, p. 134; Affonso d e Escragnolle Taunay. História da cidade de São Paulo no século XVIII. 1735-1765. São Paulo: Arquivo Histórico, 1949, p. 189, v. 1, p. 108, 186; Mello Morais Filho. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1979, p. 160; Carlos Ott. Formação e evolução étnica da cidade de Sa l­ vador; o folclore bahiano. Salvador: Tipografia M anú, 1955, p. 32-3; c íris Kantor. Pacto festi­ vo em Minas colonial; a entrada triunfal do primeiro bispo na S é de Mariana. Dissertação dc mestrado. São Paulo: U niversidade de São Paulo, 1996, p. 49.

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fácil, cm função da precariedade dc docum entos.4 Para realizar este desafio e descrever a procissão do Corpo dc Deus do século XVIII recolhi registros sobre ela em Salvador, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Vila Rica, cm Belém, entre outras localidades. E escolhi narrar três situações, que teriam acontecido em cidades coloniais diferentes: no Rio de Janeiro (entre 17731774), em Salvador (em 1757) e em Belém (1735). Com base nessas três ocor­ rências e fazendo menção a outras, pretendo discutir aspectos sem elhantes c indicar particularidades, que emergiram nas festas de Corpus Christi da socie­ dade colonial durante o século XVIII, quando as regiões já apresentavam diferenças entre si. Na minha descrição e em função das três situações escolhidas, certas par­ tes do ritual que ocupava a rua vão prevalecer - — o Estado de São Jorge, a oferta de moedas ao cabido da catedral c o próprio percurso da Procissão — sobre outras, assim como certos temas, tais como as obrigações por status, a

4 Ate este m o m en to não encontrei n en h u m a relação do conjunto procissão de Corpus da America portuguesa do século XVIII, tal como nos c acessível para a ocorrida cm Lisboa, 1719 (cf. Inácio Barbosa Machado. Historia Critico-Chrono/ogica da Instituiçam ttn Festa, Procissam, e üffirio (to Corpo Santíssimo /te Christo no Venerava! Sacramento da F.nc/iaristia. Lisboa: Off. Patriarcal dc Francisco Luiz Ameno, 1759) ou tal como o Triunfo F.uc/iaristico, dc Simão Ferreira Machado para a festa de transladação do Santíssimo Sacram ento para a nova matriz, cm Vila Rica, 1733 (apud: Resíduosseiscentistas em Minas; textos dn Século de Ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte: C en tro de Estudos Mineiros da U niversida­ de Federal de Minas Gerais, 1967. A precariedade dc informações sobre as festas dc Corpus Christi decorre de vários fatores. N o caso da cidadc do Rio dc Janeiro há até m esm o um intervalo de registros da câmara d ecorrente do incêndio (cf. Vieira Fazenda. Op. cit., p. 134). C ie n te da dificuldade de d ocum entos d esde o início da pesquisa selecionei dados sobre a festividade d urante todo o período colonial, apesar dc dar maior atenção ao século XVIII e, cm particular, ao reinado de D. João V (1708-1750) c rccolho descrições sobre a festividade de Corpus Christi cm diferentes tipos dc docum entos, co m p o n d o um rico n ú ­ cleo docum ental. São “fragmentos” da festa retirados dc cartas, editais das câmaras, relatos de viagens, legislação eclesiástica. Estou ciente dc q ue movida pelo gosto de me aproxi­ mar do qu e se passou o trabalho do historiador do passado está marcado pela impossibilida­ de, no sentido de uma ruptura com algo q ue não mais existe e qu e não se pode tocar. N cssc sentido, poderei narrar partes da festa dc Co/pus (cf. Paul Ricocur. História e verdade. Rio dc Janeiro: Forense, 1968). T a m b é m procurei selecionar dados q u e me informavam sobre o ritual público deixando dc lado, na maioria das vezes, descrições q u e informavam sobre a celebração no interior do templo. A maioria dos d ocu m en tos stricto sensu, selecionados estão relacionados às câmaras coloniais. Charles Ralph Boxcr supõe a realização da festa de Corpus Christi cm todas as cidades do m u n d o português, d esde o reinado de D. M anuel I (cf. Portuguese Society in the Tropics; the municipal Counci/s o f Goa, Macao, Bahia a n d Luanda. 1510-1800. Madison: University o f Winconsin Press, 1965, p. 39). D eve-se distinguir as ordens da Coroa e de seus representantes para q u e a festa se realize, de sua eficácia c existem notícias de sua não-realização e m d eterm inadas ocasiões (cf. “Carta a C âmara do Rio de São Francisco” fls. 212, C ódice 70 v-5 ANRJ, Balthazar da Silva Lisboa. Anais do Rio de Janeiro, v. 4, p. 218-9). C o m u m e n tc há “faltas” no ritual, para usar um a expressão utilizada por agentes q u e se e m p en h a v am pela festividade, em diferentes regiões colo­ niais (cf. M arquês do Lavradio. “Carta ao S enado da Câmara desta c id a d c ” , cm 2 d e maio d e 1771, fl. 185 C ódice 70 v-5 ANRJ).

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participação dos mestres de ofícios c as disputas por precedências e posições. C ontudo, a importância da festa na sociedade colonial justifica sua escolha como tem a de pesquisa e o conseqüente enfrentam ento da documentação fragmentária. Com o tratar da relação entre a procissão de Corpus Christi e as cidades colo­ niais? Com ecem os pelo terreno comum. Charles Boxer, que localiza as câma­ ras entre as duas principais instituições que integravam o Império Marítimo Português indica, entre suas funções a “ [...] regulamentação de feriados p ú ­ blicos c procissões, e a responsabilidade pelo policiamento, pela saúde e sa­ nidade públicas” .5 As câmaras organizavam a procissão de Corpus Christi, já que esta era tida como “festa real” . Segundo o autor, “[...] desde o reinado dc D. M anuel I que a festa de Corpus Christi veio sendo celebrada com parti­ cular pompa e circunstância em todas as cidades do m undo português, uma distinção que m anteve até o fim do século XIX.”'’ Acho interessante o historiador demarcar que a festa de Corpus e seu es­ plendor são encontrados não só na América, mas em todo o m undo portu­ guês. Esta festa é elem ento comum na América, na Ásia e na África por­ tuguesa, ou, mais precisamente, nas cidades subordinadas ao Reino.7 Este e lem ento com um é possível através das Câmaras, justam ente porque elas constituem , segundo o historiador, um dos principais elos de ligação do im­ pério marítimo português. N o caso da América portuguesa, em linhas gerais, as câmaras conservam sua organização até início do século XIX, quando dei­ xam de arcar com a organização da festa.8 Entretanto, como indiquei, é necessário avaliar a efetividade da celebra­

5 Charles Ralph Boxcr. O império colonial português. 1415-1825. Lisboa: Edições 70, São P a u ­ lo: Martins Fontes, 1974, p. 308; Portuguese Society in the Tropics; the municipal Counci/s of Goa, Macao, Bahia e Luanda. 1510-1800, p. 9-10. h Charles Ralph Boxcr. Portuguese Society in the Tropics; the municipal Counci/s of Goa, Macao, Bahia e Luanda. 1510-1800, p. 39. A referida “distinção” desta festa, com relação a outras, é indicada tanto para Salvador, qu anto para Goa. 7 Ver espec ialm en te a conclusão, na qual Boxer arrola en tre as características co m u ns dos conselhos municipais do império marítimo português a festa de Corpus Christi c os custos d espendidos com ela (cf. Ibidem, p. 144). David Cahill, q u e anãWsâ Co/pus Christi em Cusco, du ran te o século XVIII, a define como uma das principais festas hispânicas transplantadas para a América c, sim u ltan eam en te, festival andino (cf. “Popular religion and appropriation: th e ex am p le o f C orpus Christi in E ig h te e n th -C e n tu rv C uzco ” , in: Latin American Research Review, J/(2):67-110, 1996. C om base n este e cm outros autores, é possível identificar a tradição desta festa na América espanhola. R S eg u n d o Pierrc Sanchis, e n tre outros autores qu e traçam a relação e n tre as câmaras c a festa cm Portugal, en tre os séculos XVI e XIX, Co/pus Christi era oficialmente organizada pela m unicipalidade e, seguindo seu modelo, um a série d c outras festividades religiosas c com em orações da monarquia ta m b ém o eram (cf. “A cam inhada ritual” , in: Religião & So­ ciedade, P: 17, jun. 1983. Para a organização da festa no Rio dc Janeiro e a legislação imperial q u e reorganiza a câmara, em 1828, associada ao fim de tradições festivas, cf. Vieira F a z e n ­ da. O p. cit., p. 136.

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ção, apesar da ordem régia. O Marquês do Lavradio, vicc-rei entre 1769 e 1779, em carta aos vereadores da Vila dc São Francisco reconhece que procis­ são de Co/p//s não ocorrera e, ao mesmo tempo, cobra deles a justificativa para tal falta: “Sendo-m e presente, que nesta Vila se não fazem as Procissões do Cor­ po de Deus, São Sebastião, Patrocínio de Nossa Senhora, São Francisco dc Borja contra o que determ inam as Reais Ordens de El-Rci meu Senhor a este respeito, Vossa M ercê me darão a razão porque não fazem as ditas Procissões; na forma em que são obrigados em execução das mesmas or­ dens, tendo para isso possibilidade. Rio de Janeiro a 6 de agosto de 1771// Marquês do Lavradio//Senhores Juizes Ordinários, e mais oficiais da C â­ mara da Vila do Rio São Francisco.//”1' Por este testem unho mais uma vez a festa é localizada entre as “festas reais” , ordenada pelo Reino e à qual todo morador deveria comparecer.10 F a­ lemos em primeiro lugar dos vereadores da câmara, a quem o representante direto de Sua M ajestade na América destinava sua carta. Trata da obrigação dos vereadores “em fazer a Procissão” , a qual sabemos, deviam participar cm função do seu status, sua posição. Diz-se que cumpriam a contento, mas “sc as Câmaras mostravam alguma tendência a fugir de suas obrigações, eram duram ente reprovadas pelos governadores locais, ou eventualm ente, na oca­ sião, pela própria Coroa.” 11 Os membros do senado da câmara distinguiam-se dos demais por uma série de privilégios e a procissão de Corpus Christi constituía ocasião em que estes se destacavam. Para além das propinas que recebiam por delas partici­

9 “Carta a Câmara do Rio dc São Francisco” (ver Nota 4). 111 As Ordenações determ inavam q ue todo morador, a menos de uma légua da vila ou cidade cm q u e sc fi/.essc uma procissão, cra obrigado a dela participar, sob pena de sanções. Tam­ b ém definiam as datas solenes dc cujos festejos a população devia comparecer, entre elas, Corpus Christi e Visitação. Apud: E m m an u e l Araújo. 0 Teatro dos vícios; transgressão e transi­ gência na sociedade urbana colonial. Rio d c Janeiro: José Olympio, 1993, p. 130-2. A Câmara ordenava a participação nesta “festa real” . O título XVI “Da Solene Procissão do C orpo dc D eus, e qu e pessoas a d ev em acom panhar” (§496 ao §501) das Constituições ta m b é m pres­ creve a participação dos “clérigos” e do conjunto dos “fiéis” e “súditos” na Procissão do C orpo de D eus. E a participação é definida, por esta legislação eclesiástica, como “obriga­ tória” . Q u e m não a observasse estaria sujeito a penas de excom u nh ão c dinheiro (cf. Cons­ tituições primeiras do arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo ilustríssimo, e reverendissimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, 5.° arcebispo do dito Arcebispado, e do conselho de Sua Magestade: propostas e aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 dejunho do anno de 1707). Esta não é a única prescrição cm q ue se pode p erc eb er um encontro da legislação eclesiástica com a do Reino e, com as posturas da câmara (Ibidem , §500, p. 195). 11 Charles Ralph Boxer. Portuguese Society in the Tropics; the municipal Councils of Goa, Macao, Bahia e Luanda. 1510-1800, p. 144.

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par, ocupavam no cortejo uma posição próxima ao Santíssimo Sacramento e portavam “uma vara ou bastão com as armas reais [quinas] num a das extre­ midades, como distintivo do seu cargo.” 1- Segundo o Sargento-Mor Luís D ’Alincourt, os privilégios dos oficiais da Câmara de Vila Rica eram os ordi­ nários, e não os qu e destacavam os da Câmara do Porto no m undo português, desde 1611: “C um pre-lhe o regimento da terra, segundo as ordenações ré­ gias. Afora os privilégios gerais da lei, nenhum outro particular com pete aos que servem na governança. Consta-nos de seus registros antigos terem re­ querido a el-rei os concedidos à Câmara do Porto, do que lhes restam boas esperanças, quando continuem a distinguir-sc no real serviço, como lhes foi concedido. Não tem a Câmara tratamento distinto. As suas regalias reduzemse a sair dos paços do conselho em corpo, com suas varas, e estandarte arvorado, para todas as funções, a que deve ser presente por aviso do 1." de abril de 1752. T am bém por decisão régia é obrigado o diácono a dar-lhe duetos, e o subdiáconotf/w s em missas solenes, a que assistem. Por costume antigo deve o pároco recebê-la e despedi-la à porta de sua igreja, assim na entrada como na saída, a repique de sinos, o que foi introduzido na sua criação em obséquio das armas reais, de que usa seu estandarte. Em festas púb/icas pertence-lhe o camarote a direita do governador e capitão-general, conforme a real decisão a este respeito, que existe em seus arquivos.” 1’ E interessante lembrar a observação de Taunay a propósito do desfecho de um caso ocorrido em dia de Corpus Christi. N a cidade de São Paulo, em 1742, a câmara, como de praxe, convidara um pregador para a festa. Todavia, a indi­ cação do Padre Angelo da Siqueira não foi aceita de bom grado pelo vigário. Não vem ao caso discutir as razões do conflito desencadeado entre o vigário e os vereadores, mas o fato é que, segundo Taunay, a câmara diante das alterca­ ções do vigário manifesta seu descontentam ento recolhendo-se e negandose a participar da procissão de Corpus Christi, naquele ano. D iante daquela configuração, Taunay tece o seguinte comentário: “[...] não figurou o estan­ darte real no préstito. Esteve Sua M ajestade ausente àquela festa que era tão essencialmente sua” ,14que atualiza a definição da festa de Corpus Christi como “festa real” e na qual o rei se apresenta por meio do senado. A ausência da câmara na procissão de Corpus de São Paulo, em 1742 eqüivalia à ausência de Sua Majestade. A partir da documentação sobre Corpus, especialm ente a relacionada às câmaras pode-se ampliar, destrinçar as funções da câmara, tal como indicadas 12 Cf. Boxcr. O império colonial português, 1415-1825, p. 308-09, no qual há um a descrição dos privilégios q u e distinguiam os oficiais da câmara. 13 Cf. “D escobrim ento d e Minas Gerais” (2/6/1834), in: Revista do Instituto Histórico, geogrdphico e etnográfico do Brasil. T om o 29, 1866, p. 34 (grifos meus). 14 Affonso dc Escragnolle Taunay. História da cidade de São Paulo no século XVIII. 1735-1765. Vol. 1. São Paulo: Arquivo Histórico, 1949, p. 189.

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por Charles Boxer. Da “regulamentação” e “policiamento” mencionadas pelo autor pode-se indicar a definição do percurso da procissão, o reparo das ruas, a indicação da data, a convocação dos moradores (os avisos, os bandos), o convite ao cabido da catedral, os custos com velas, com sermões, com altares, com carros. Uma extensa lista, que poderia ser continuada.15 Contudo, cm vez de listar, prefiro identificar o trabalho da câmara, com base nos fragm en­ tos localizados e lembrar que, à primeira vista, parece apontar para a unidade da festa. Como havia indicado, a maioria dos documentos que utilizo, neste texto, está relacionada à câmara. São editais, bandos, cartas, atas. Tive acesso dire­ to, na maior parte, aos relacionados à cidade do Rio de Janeiro. Se tomarmos um conjunto nomeado Editais do Senado da Câmara (1788-1821) c outro, o Bando do Senado da Câmara e Procissão do Corpo de Deus, posso escolher um docum ento de cada um destes conjuntos, porque nos editais se encontram prescrições aos moradores para a festa e procissão de Corpus Christi pela C â­ mara que sc repetem, quase literalmente a cada ano."’ Prescrições estas co­ muns em outras cidades, como São Paulo, a partir das descrições de Taunay,17 e que já ocorriam em Portugal. O Bando é um conjunto dc docum entos re­ lativos às festas de Corpus Christi, entre 1812 e 1817, não ordenados em su­ cessão cronológica, subscritos em sua maioria por Luciano José Gomes, o Alcaide Pequeno, e por Vasco José da Costa. Este segundo conjunto de do­ cumentos, conforme resumo (em anexo e posterior, dc 1916) constitui “R e­ querim ento e mais papéis de Vasco José da Costa, pedindo o pagam ento da despesa que teve como o lançamento de folhas verdes, para o fim de passar incorporado o Senado e a Procissão do Corpo de D e u s ” . O Bando apresenta as contas, porém o que importa é sublinhar que, como nos Editais, a repeti­ ção, a semelhança entre os documentos nos anos mencionados apontam para o caráter cíclico da festividade de Corpus Christi, e para o costum e repetido. O que não descarta, em hipótese alguma, a identificação de dados diferentes que indiquem o rom pim ento da rotina, uma ocorrência do ano ou ainda, uma diferença local. “O Senado da Câmara faz saber que no dia 21 de junho deste ano se há de fazer a procissão do Corpo de D eus nesta Corte e determ ina o mesmo Senado que os moradores da Rua Direita, dos Pescadores, da Quitanda, da

11 Sobre o assunto: William d e Souza Martins, cf. Arraiais eprocissões da Corte;festas e civiliza­ ção na cidade do Rio de Janeiro (1828-1860). Dissertação de mestrado. N iterói: U niversidade Federal F lu m inen se, 1996, p. 29. u' E ste conjunto con tém os anos 1790, 1789, 1800, 1802, 1810, 1811, 1812, 1813, 1817, 1818 (dois, no mês d e abril e maio), 1819, 1821, cf. Editais do Senado da Câmara (1788-1821) Códice 16-4-21 AGCRJ. 17 Affonso d e Escragnolle Taunay. História da cidade de São Paulo no século XVIII, p. 183-7.

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Sucuçarará c da Cadeia c das suas respectivas travessas m andem caiar as frentes de suas Casas, armar dc cortinados os seus portais, limpar as ruas ante as suas portas, deitar-lhe areia e folhas, e o que assim o não executar ficará incurso na pena de seis mil-réis, e trinta dias de cadeia. E para que chegue a notícia a todos mandou o mesmo Senado afixar o presente E d i­ tal. Rio 23 de maio de 1810. Antônio Martins Pinto de Britto “Participo a vossa mercê por ordem do Senado da Câmara desta Corte, que pela manhã do dia vinte e quatro, até o meio dia há de vossa mercê assear desde a porta da Casa da moeda [...] sopé do Paço até a porta da nossa Soberana, que foi em outro tem po porta da Relação tudo bem as­ seado, que na tarde do m esmo dia há de passar o Senado da Câmara em correição e deve já achar a sua testada já distribuída bem asseada e no dia seguinte que se contam vinte e cinco do corrente pelas matinas o tiro de peça há de vossa mercê botar no mesmo lugar as tantas folhas verdes bem espalhadas com igualdade possível para se não com prom eter com o arrum am ento da tropa, a fim de passar a procissão do Corpo de Deus, Com pena de não fazendo ser preso e da prisão pagar seis mil-réis de condena­ ção, e as custas na conformidade da ordem de que participo a vossa mercê. Rio de Janeiro vinte de maio de 1815.” ,IJ Os dois trechos citados, ainda que do início do XIX, podem nos informar sobre como se realizavam as procissões de Corpus durante o século XVIII. No primeiro, o senado “faz saber”, ou seja, divulga a data da procissão e parte do seu percurso. Como em outros editais deste conjunto, menciona ruas localiza­ das no centro da cidade colonial, naquela parte em que a cidade se faz mais “pública” , mais “urbana” .20 E tam bém uma demanda aos “moradores”, deste núcleo, para “caiar as frentes de suas Casas, armar de cortinados os seus portais, limpar as ruas ante as suas portas, deitar-lhe areia e folhas” . N o segundo trecho,

IK Editais do Senado da Câmara. Códicc 16-4-21 (1788-1821) AGCRJ. Atualizei a ortografia, em todos os d o cum entos citados, excetuando-se os títulos c as maiúsculas. “ Registo do Edital a respeito da limpeza das ruas para a procissão do corpo de D e u s ” 23/5/1810, p. 120. Para a festa d e Corpus cm 21/6/1810. O escrivão qu e subscrcvc c assina é o m esm o que confirma o Regimento do Compromisso da Irmandade de São Jorge, de 1790. 19 Cf. B ando do S en ad o da C âm ara e procissão do corpo d e D eu s. C ó dice 40-2-5, 1817, A G C R J fl. 8. 20 E stou aplicando para a cidade colonial um a observação q u e Renata de Araújo usou para a Lisboa q uinh entista, a partir da análise da aclamação d e D. João II, e m 1481. E m sua análise ela destaca as ruas percorridas pelo cortejo e os pontos de paragem da cerimônia (R enata d c Araújo. Op. cit., p. 55). C on tud o, no corpo do texto, preferi o verbo “fazer” em lugar do “ser” , em pregad o pela autora, porque aquele dá a idéia d c q ue a cidade se torna mais “pública” c “u rban a” na ocasião da festa. Assim, su ponho estar send o mais precisa na descrição d e um contexto (sociedade colonial) cm q u e os conceitos tanto dc “público” , q u a n to dc “u rban o” d ev em ser repensados.

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podc-se também identificar as funções da câmara relativas a limpeza c orna­ mento por onde passaria o cortejo do Corpo de Deus. E digno de nota que nele se faz menção ao papel “de correição” exercido pela câmara e, em caso de falta, ela é tam bém uma instância de julgamento.21 Mas, neste texto, como no con­ junto do Batido, provavelmente dirigido aos vereadores, outros dados são acres­ cidos acerca da ocupação das ruas em Corpus Christi: são mencionados a Casa da Moeda, o Paço, a antiga Relação, edificações do núcleo da cidade colonial c representativas do governo. E ainda indica a realização de outras práticas, como os tiros de peça,-7’ que ajudam a demarcar o tempo de festa. Pela leitura destes dois trechos, considerando o dado da repetição que mencionei e as diversas funções atribuídas à câmara na organização da procis­ são de Corpus Christi, pode-se concluir que as câmaras exerciam um papel no e nquadram ento2’ deste ritual, pois recortavam um espaço-tem po particular para a procissão. Contudo, não devemos esquecer que a câmara não era a única instituição a fazê-lo.24 Muito há que se escrever sobre a relação entre a festa do Corpo de D eus c a cidade colonial. N o que diz respeito ao senado da câmara, seguindo o m o­ delo “m agnificentc” do rei,2'’ arcava com os recursos c organizava a “festa

21 E interessante lembrar qu e a câmara tcni não só o poder de cobrar multas em função das faltas relativas às festas religiosas, como tam bém , com base na d o cu m entação q u e analisei, é instância He poder, por o nd e passam inúm eros conflitos. U m a m aneira de c o m p re e n d e r estas funções é pensar sobre a relação en tre as câmaras coloniais c a representação do poder na sociedade colonial, cm certos privilégios dos vereadores da câmara, como o de escrever para o rei e na relação entre a definição do poder no Antigo Regim e c a justiça (cf. Angela Barreto Xavier & Antônio M anuel H espanha. “A representação da sociedade c do P o d e r” , in: José M attoso (dir.). História de Portugal. Vol. 4. Lisboa: Estam pa, 1994, p. 122-3). 22 Localizei alguns do cum entos qu e indicam a prática dc salvas em outras cidades da capita­ nia do Rio de Janeiro, e m Corpus Christi-, cf. “Carta a Câmara de M acacu” , fls. 188, Códice 70, v. 5, Salva (Guarda?) Corpus Christi. Códice 87, v. 14, fl. 158 A NRJ, Salva [...] para festividade dc C orpus Christi. Códicc 87, v. 14, fl. 15 ANRJ. 23 Retirei a idéia dc “en q u a d ra m e n to ” dc Marv Douglas, para q u e m o rito cria c controla a experiência. Na sua reflexão, aponta o “e n q u a d ra m e n to ” como um mecanism o de con tro ­ le, de concentração encontrado no ritual. Cf. Purity an d Danger. Londres: R o utledg e c Kegal Paul, 1978, p. 63. 24 A Igreja t am b é m participava do e n q u ad ra m en to para o ritual dc Corpus Christi, assim como as irm andades (cf. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo ilustríssimo, e reverendissirno senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, 5.”arcebispo do dito Arcebispado, e do conselho de Sua Magestade: propostas e aceitas em o Sinodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 170, §500, p. 195). E as irm andades (cf. Compromisso ou estatuto da Irmandade do S.S. Sacramento da Catedral do Rio de Janeiro estabelecido e novamente celebrado no ano de 1785. Códice 758-01, v. 1785 ANRJ; Regimento de Compromisso da irman­ dade de São Jorge da irmandade dos Ferreiros desta Cidade do Rio de Janeiro [1790]. Arquivo do Distrito Federal. Rio dc Janeiro, 4, 1897, p. 131-40). Pierre Sanchis já observara a regula­ mentação e interferência d e diversos agentes sociais na procissão de Corpus Christi cm Portugal (cf. Op. cit., p. 16). 25 Angela Barreto Xavier & Antônio M anuel H espanha. “As redes clien telarcs” , in: José Mattoso (dir.). História de Portugal. Vol. 4. Lisboa: Estampa, 1994, p. 389.

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real” . Como indiquei, fornecia um e nquadram ento para a procissão do Corpo dc Deus. E, algumas vezes, o nascimento da cidadc colonial é simultâneo à emergência da festividade. N o ano da fundação da cidade de Salvador, em 1549, há registro — da câmara e de Manuel da Nóbrega26 — da procissão, em Princesa, na região das Minas, o reconhecimento real da criação da vila s u p u ­ nha a instituição da cerimônia — como “para as outras vilas do m esm o E sta­ do do Brasil” 27 — e em Santo Antônio dc Sá a construção da casa da câmara e cadeia, talvez a dc alvenaria, se mistura à celebração. “Vista a informação que vossa mercê leu no requerim ento dos morado­ res da Santíssima Trindade Distrito da Vila de Santo Antônio de Sá, devo dizer a vossa mercê que sendo tão necessária a feitura da ponte na passa­ gem chamada do Pinheiro pela utilidade, que resulta ao bem comum, que é indispensável deixar de ser atendido, vossa mercê ordenará a Câmara da dita Vila, que tirando uma pequena parte da consignação aplicada para a obra da Cadeia, e Casa da mesma Câmara outra da que está tam bém apli­ cada para a festa do Corpo de Deus, que não precisa fazer-se com Luxo, e só sim com a decência devida, sem deixar de se acudir a Essa e outra cousa, se faça logo a referida Ponte com o dinheiro tirado destas duas aplica­ ções, que deve ser quanto custa, para as despesas dela, pois sendo tão n e ­ cessária, não pode se escusar a feitura da mesma, para evitar o prejuízo, que da sua falta segue a todos os moradores do Sobredito distrito. D eus o guarde a vossa mercê. Rio de Janeiro 23 de abril de 1770//Marquês do Lavradio//Sr. Ouvidor da Comarca Antônio Pinheiro Amado.” 28 A vila que no ano anterior oferecera suas boas vindas ao M arquês do Lavradio,29 recebe do mesmo em 1770, por meio do ouvidor da comarca, um conselho: a câmara deve dividir seus recursos entre as obras e a festa do Cor­ po de Deus, “sem deixar de se acudir a Essa e outra cousa” . Como se pode entrever na discussão sobre os recursos, Corpus Christi já era celebrada na q u e ­ la localidade, o M arquês do Lavradio apenas sublinhava a sua continuidade — “que não precisa fazer-se com Luxo, e só sim com a decência devida” —

2h Sobre os registros da câmara e o do Padre M anuel da N óbrega, respectivam ente: apud: Boxer, Charles Ralph. Portuguese Society in the Tropics; the municipal Counci/s of Goa, Macao, Bahia e Luanda. 1510-180, Cartas do Brasil e mais escritos. Coimbra: Universidade d c Coimbra, 1955, p. 41. 27 Cf. “Declaração das procissões, e festividades, q ue a C âmara desta Vila d eve ordenar, e assistir e acompanhar, e das propinas, q u e nos mesmos dias poderão receber, conforme as ordens dc Sua Alteza Real” , in: Revista do Arquivo Público Mineiro. O uro Preto, ano I, 1886, p. 481-2. 2R “C arta ao O uvidor da C om arca” , fl. 33, C ódice 70, v. 5 ANRJ. “C arta da Vila de Santo A ntônio d e Sá” , C ódice 70, v. 5 ANRJ.

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e, quem sabe, fazia ressalva às condições locais. O fato de as obras de Santo Antônio de Sá se misturarem, como disse anteriormente, à celebração do Corpo de D eus não era uma particularidade desta cidade. A festa w / da cidade colo­ nial, de sua administração, dc seu comércio c, algumas vezes, consumia gran­ de parte de suas receitas. Como já indiquei, algumas vezes, a emergência da festa dc Corpus Christi é simultânea à da cidade colonial. Este fato aponta, por um lado, para a impor­ tância da celebração nas cidades da América, assim como no reino. A sua observância, tal como prescrita para a Vila de Princesa, em Minas, constituía uma medida de semelhança, um meio dc identidade entre as cidades do E s­ tado do Brasil. Por outro lado, não se deve esquecer que a cidade colonial de que se trata é sobretudo a cidade, centro administrativo c comercial, ponto de interseção dos monopólios dos colonizadores e colonos. Esta definição de limar Rohloff de M attos,'1 vem ampliar uma percepção de Charles Boxer, que apontava para o desenvolvimento dc interesses locais, na Bahia do sécu­ lo XVIII e para autonomia desta elite diante do Reino. Com o tam bém abre para refletirmos sobre os “descam inhos” que poderiam ocorrer com as or­ dens régias c tradições vindas de Portugal e dc Castcla. No m eu entendim ento, há que se refletir sobre a importância particular que a festa de Corpus Christi adquiriu nos países ibéricos c nos que seguiram suas tradições. Uma questão para se pensar é o fato dc estas terem sido as

N as Posturas (to Senado da Câmara da Bahia, podcm -sc identificar prcscriçõcs dirigidas aos vereadores da câmara, assim como aos alm oçatés c aos ofícios em b and e irad os sobre como d evem “acom pa nhar” as procissões reais. Apesar do do cum ento não mencionar Corpus, sabc-sc q u e estava entre as procissões reais. Porem, m c importa destacar q u e as prcscri­ çõcs estão localizadas num conjunto dc posturas, qu e regulam entam o comércio d c p ro d u ­ tos (carne, mel), a agricultura (plantação de mandioca), a criação (porcos), a limpeza, as obras, o uso dc atabaques, o custo do trabalho dos oficiais mecânicos (ferreiros, corriciros, serralheiros, tinturciros), enfim, entre os diversos assuntos da cidade (cf. Posturas do Senado da Câmara da Bahia fielm ente copiadas dc um livro manuscrito q u e nela serve, o qual traz a inscrição = cópia das posturas do Liv. 3 aprovadas no ano dc 1716. 1785, C ódice 90, v. 1 34, fls. ANRJ). Charles Ralph Boxer faz referência à costumeira falta dc recursos das câmaras m u nici­ pais do império português para estradas, pontes, pavim entação, c outros trabalhos p ú b li­ cos, q uand o elas destinavam grandes somas cm cerimônias (p. 144). Acredito q u e esta cra uma direção valorizada no Antigo Regim e c, q u e será criticada posteriormente, tam b ém pela historiografia portuguesa após 1930 (cf. Rui Bcbiano. Op. cit.). Os dois autores, q u e m encionei, fazem referência à situação deficitária da Câmara dc Lisboa cm decorrência da Procissão de Corpus, de 1719. David Cahill indica o Bando de Mugica (1819) contra as danças cerimoniais então existentes na Corpus Christi de Cusco. Para o autor, o bando a te n ­ tava para o “perigo moral e político” representado pelas danças e criticava a festa, defin in ­ do-a como “derram a” financeira (cf. Op. cit., p. 94). Por esta indicação, c possível afirmar qu e na América espanhola, ou pelo m enos em Cusco, a im portância e solenidade da procis­ são dc Corpus tam b ém é revelada no dispêndio. 31 limar Rohloff de Mattos. O tempo saquarema. São Paulo: H ucitec, 1987, p. 29.

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primeiras nações a e m p reender a colonização. Existiria alguma relação entre a importância desta festa — um ritual que supõe a produção da presença real do Corpo dc D e u s '2 — c sua instituição em contextos culturais tão diversos, cm que o domínio pela burocracia é insuficiente? No que diz respeito ao império português já houve quem nele identificasse, à diferença dos impérios da tradição clássica européia e do espanhol, o desenvolvimento e a coexistên­ cia de uma pluralidade de instituições administrativas, para fazer frente à vastidão e a diversidade de regiões submetidas. Na definição c classificação dc Santos c H espanha das diversas formas de sc estruturar politicamente do império marítimo português, as câmaras constituiriam poderes tradicionais, localizados em regiões nas quais a Coroa tinha em vista p e r m a n e c e r . E , como vimos, a festa do Corpo dc Deus não era, durante o período colonial, “encargo c em presa” 14 da câmara? A “festa real” do Corpo de Deus supunha a participação de todos. D entre os corpos sociais que dela participavam dediquei-m e, até o m omento, ao se­ nado da câmara. Contudo, é possível saber mais sobre a festa investigando acerca das irmandades e confrarias. Estas eram organizações da cidade colo­ nial e, como se pode perceber pelo comentário Saint-Hilaire sobre a Semana Santa, com grande importância nas Minas. Segundo o viajante, a riqueza dos seus ofícios dependia dos recursos das irmandades.35 Por este e outros teste­ m unhos, é possível dizer que as irmandades tinham papel ativo nas festivida­ des e, m esm o ciente da particularidade destas organizações em Minas e da procissão que estudo, há que se lembrar “das opas vermelhas, brancas e azuis das diferentes irm andades” que coloriam o cortejo do Corpo de D eus em diversas regiões.’6 E ntre os viajantes do início do século XIX, com base nos quais podemos nos aproximar da festa de Corpus Christi do século XVIII, temos John Luccock, que deixou observações preciosas sobre as cerimônias religiosas e pro­

32 As reflexões d e H ans Ulrich G u m b re c h t (cf. Epiphany ofFonn; on the Beauty ofTeam Sports. Stanford, 1998) chamaram minha atenção para a importância do conceito de produção dc presença para pensar determ in ado s fe nôm enos da vida social e m lugar do conceito de representação. O e n te n d im e n to da eucaristia gerando um a “presença real” c, seg un do o autor, um a referência da cultura ocidental para a produção de presença (Ibidem , p. 522-3). A eucaristia só seria transformada d e celebração em ato de comem oração por ocasião da Reforma. N esse sentido, considero procissão do Corpo de D eu s na América portuguesa como u m a comem oração q u e supõe a presença real do corpo de Deus. 33 Cf. Maria Catarina Santos & Antônio M anuel H espanha. “Os poderes de um império oceâ­ nico” , in: José M attoso (dir). História de Portugal. Vol. 4, especialm en te p. 395, 398, 399, 401. 34 Cf. Pe. Jo seph Burnichon. Le Brésil aujourd'hui. Paris: Perin, 1910, p. 330. 3” Auguste d e Saint-Hilaire. Viagem petas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. São Paulo: Nacional, 1938, p. 294. 3h João Vampré. “Factos e festas na tradição; o São João e a procissão de Co/pus Christi c m São Paulo” , in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Pauto, v. 13, 1908, p. 303-04.

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cissões. Para clc, havia “grande regularidade na freqüência aos seus serviços [das cerimônias religiosas e procissões] de que porém parece estar o coração ausente” ,-,7 assim como sobre a própria procissão do Corpo dc Deus: “[...] as procissões dos Sacramentos eram menos comuns e feitas com maneiras mais respeitosas; as imagens por vezes surgiam à rua, com gran­ de aparato, despertando profunda veneração. As irmandades, esse impor­ tantíssimo ramo da disciplina católica, se fundaram 011 foram preenchidas; tinha-se todo o hom em por obrigado a pertencer a alguma delas e até aos negros permitia-se vestir a opa de uma ordem, em punhar a vara dc prata e sair em procissão de mistura com príncipes e princesas, a fidalguia da terra e a nobreza dos céus. “No dia de Corpus Christi, a principal dentre as festas católicas, resol­ veu-se realizar uma demonstração que provocasse impressão profunda e generalizada. O povo contem plou o M enino Salvador conduzido ao Egito, com a maior das pompas, escoltado por príncipes c dignitários, tanto cléri­ gos como leigos, juntam ente com toda a guarnição militar por guarda e todas as insígnias que 0 pudessem representar como o Rei dos Reis e So­ berano do M undo. Contemplaram a seu próprio Sacerdote principal, que acompanhava, apertando ao seio aquilo que tem por verdadeira essência da divindade, e seu próprio Soberano, que consideram o maior dos monar­ cas, levando uma vela, hum ildem ente ao lado. Os olhos, assim assediados, despertam a imaginação e dominam o espírito; todos os joelhos se dobra­ ram, todas as cabeças se descobriram, todas as bocas em udeceram ; e toda

17 John Luccock esteve no Brasil entre 1808 e 1818 e sua obra é definida, no prefácio, como um conjunto dc “notas qu e venham interessar e instruir” . O trecho dc L uccock q u e cita­ mos trata de suas percepções sobre as cerimônias religiosas em geral, exemplificadas atra­ vés da observação dc uma procissão cm Vila Rica (cf. Notas sobre 0 Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: Itatiaia-Edusp, 1975, p. 338). C o m os devidos cuidados, c possível o uso dos viajantes do início do século XIX na investigação sobre a festa dc Corpus da sociedade colonial, durante o século XVIII. N o trecho citado, pode-se ver o olhar crítico de Luccock diante das cerimônias religiosas realizadas no Brasil, pois, segundo o autor, há ausência de correspondência entre a presença de fiéis, a solenida­ d e e a devoção. Há matizes, mas é recorrente uma visão crítica dos viajantes eu ro peu s diante das festas e cerimônias da sociedade colonial, como tam b é m a distinção, a nãocorrespondência entre devoção c solenidade. Esta crítica não em erg e n este m om ento , exis­ tem te s tem u n h o s anteriores n um sentido sem elhante. C o ntu do , talvez g an h em maior re­ forço durante o século XIX. A crítica dos viajantes, no caso, advém dc europeus, q u e se alheavam dc suas próprias tradições ou q u e possuíam outra religião. Ao passo q u e o dado da “d e so r d e m ” pode ser relacionado à presença da mistura social/racial encontrada por eles nestas festas c ao exagero na manifestação. Há q ue sc deslocar da oposição e n tre solenida­ de/devoção c passar a descrever a procissão, pois o qu e sc q u e r é tom ar a procissão dc Corpus do século XVIII cm sua materialidade mais imediata e não considerar o ritual como manifestação, exteriorização do sen tim en to religioso.

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aquela turba reunida, por um instante ao menos, foi religiosa, sem se dar conta disso.”-™ A descrição dc Luccock é muito rica: compara as procissões do Sacram en­ to a outras; informa como as irmandades organizavam os hom ens c suas fes­ tas; c caracteriza a festa de Corpus como a “principal” ; enfim, suscita diversos comentários. Todavia, quero sublinhar, cm primeiro lugar, que em sua des­ crição de Corpus todos estão presentes: no cortejo, as autoridades (o bispo, o monarca), “príncipes e dignitários, tanto clérigos como leigos, ju n ta m e n te com toda a guarnição militar” , numa certa coreografia. Pode-se entrever, por exemplo, a atitude do “Sacerdote principal, que acompanhava, apertando ao seio aquilo que tem por verdadeira essência da divindade” . Segundo L u c ­ cock, “o povo contem plou” . E, em segundo lugar, que esta escrita favorável às reformas introduzidas na cidade do Rio de Janeiro, crítica diante das práti­ cas festivas da sociedade colonial, reconhece a procissão de Corpus Christi como meio de catequese, que ainda produz efeito: os sentidos e os corpos da “turba ali reunida” teriam sido afetados. Luccock faz lembrar que, por princípio, a festa do Corpo de D eus é para todos, assim como Vampré não seria o primeiro, nem o último a definir os festejos de São Jorge como “com unhão” , pela presença simultânea de ho­ m ens com posições sociais diferentes.-*9 A presença e o envolvimento de “to­ dos” , da “m ultidão”40 na procissão do Corpo de Deus, não constituem alguns dos elem entos que perm item pensar num a “abertura” proporcionada pelo ritual de Corpus ChristfíM Para falar sobre a participação das corporações de ofícios, na procissão de Corpus, pode-se partir do testem unho de Froger a seu respeito na Bahia de 1696. O viajante faz referência aos “Corpos de mesteres, Confrarias e Religio­ sos, ridículos por seu bando de Máscaras, de Instrum entos e de dançarinos, q ue por suas posturas lúbricas atrapalham a ordem desta santa cerimônia” ,4’ C ontudo, aquilo que lhe parecia “ridículo” , já se praticava no reino.43 Pouco

3S 30 40 41

John Luccock. Op. cit., p. 164-5. João Vamprc. Op. cit., p. 304. Cf. Jo hn Luccock. Op. cit.; João Vampré. Op. cit. E possível encontrar no ritual público dc Corpus Christi alguns aspectos da “c o m m u n itas” (ou “abe rtu ra” ) elaborada por Victor Turner (cf. O processo ritual; estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974, entre outros textos “teóricos” , não monográficos). E v id e n t e m e n ­ te, a elaboração de um vínculo tipo “co m m un itas” na procissão do Corpo dc D eus, não significa a ausência d c hierarquia. 42 S ieur Froger. Re/acion ct'un voyage fa it em 1695, 1696, & 1697 attx Côtes d'Âfrique, Détroit de Magellan, BrésH, Cayenne & Is/es Autil/es, p a r un Escadre de Vaisseaux du Roi, commandeéepar Monsieur de Gennes. Faite p a r te Sieur Froger, Ingénieur Vo/ontaire sur le Vaisseau du Ftacon Angtois. Paris: Nicolas L c Gras, 1699. BNRJ. 41 E m Portugal, seg u n d o Picrrc Sanchis, as corporações dc ofício estavam entre as principais

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CATÃO

CRUZ

SANTOS

sabemos a respeito da coreografia destes grupos, com base na qual podería­ mos indicar particularidades na procissão de Corpus da America portuguesa.'14 Eram danças fornecidas pelas corporações c confrarias, podiam receber apoio da câmara e, a despeito da opinião de Froger, tal como no reino, faziam parte da seqüência ritual desta “santa cerimônia” . Como indiquei no início do texto, ocorreram situações no século XVIII dignas de se recontar por que apontam para iniciativas pessoais, locais4" e/ou disputas de interesse relacionadas à procissão de Corpus Christi. Situações que p odem ter introduzido diferenças no ritual cíclico e repetido, que percor­ ria as ruas no dia do Corpo de Deus. EM

SÃO

SEBASTIÃO

DO

RIO

DE

J A N HI R O

N o Rio de Janeiro, em 1773, conforme os Autos da Irmandade dc São Jorge, os irmãos Domingos Jerônimo e José Vieira Gomes, oficiais serralheiros da Casa da M oeda desta cidade, não acompanharam o Estado de São Jorge, na procissão do Corpo de Deus. Esta atitude foi tida como falta, então foram autuados pela câmara. Esta confirmava os eleitos que deviam acompanhar o santo a cada ano, cobrava a presença destes irmãos e do juiz e escrivão das irmandades4*’ e ainda, em caso de ausência, como teria ocorrido no Rio de 1773, funcionava como instância de poder pela qual passava o processo, regis­ trando os argumentos das partes, fazendo petições, anotando os estatutos da Casa da Moeda, do Compromisso da Irmandade de São Jorge e das provisões régias e, enfim, julgando. No processo que localizei é possível ter acesso, a

instituições locais, q ue constituíam a procissão dc Corpus Christi. “[...] elas forneciam os atores para as «folias», danças de caráter profano c ate guerreiro comemorativas de aco nte­ cim entos históricos (Op. cit., p. 16). E digno dc observar q u e na descrição do autor as danças e figuras fornecidas ã festa dc Co/pus são diferentes, nas cidades mencionadas. 44 Há registros c comentários sobre as danças na procissão dc Corpus Christi cm Salvador, em São Paulo, fornecidas pelos mecânicos, com base nos quais se pode pensar sobre s e m e ­ lhanças c diferenças com relação a Portugal (cf. Carlos Ott. Op. cit., p. 174-5, v-1; Affonso de Escragnolle Taunay. História fia cidade fie São Paulo no século XVIII. 1735-1765. São Paulo: D e p a rta m e n to d e Cultura, 1949, p. 183-4, v-1). Localizei artigos q u e analisam o m esm o assunto em diferentes regiões da America espanhola (cf. Luís Arturo D om íngucz. Diablos danzantes en San Francisco cie Yare. Los l e q u e s , 1984; Gonzalo Mcjía Ruiz. “ Las fiestas populares dei Corpus dc G u a tem a la” , in: Tradicionesde Guatemala. G uatem ala, 1977, p. 9-43; Rosângela Adoum & M agdalena Gallcgos de Donoso. Danzantes d c Corpus Christi. Quito, 1985). Estas referências ampliam a perspectiva comparativa entre a festa na A m éri­ ca portuguesa e na América espanhola. 45 N o século XVI, o donatário d e Porto Seguro, Pêro do C am p o C outinho, parece ter sido um caso de tentativa d e interferência local no calendário da festa dc Corpus Christi, negada por rep resen tan tes do papa. Laura de Mello e Souza indica outros delitos por ele praticados, q u e resultaram e m processo por crime dc heresia e blasfêmia (cf. Inferno atlântico;demonologia e colonização, sécu/osXVI-XVIII. São Paulo: C om pan hia das Letras, 1993, p. 48). 4,1 Cf. Vieira Fazenda. Op. cit., p. 135.

U N ID A D H

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DIVKRSIDADIÍ

ATRA V KS

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partir da câmara e, mais precisamente por intermédio de André Martins Britto, escrivão desta casa, a alguns dos envolvidos no processo, aos argumentos dos requerentes, dos acusados quanto aos costumes c normas que tocavam à festa de Corpus Christi, ao tem po dc duração do processo e ao seu resultado. Vejamos algumas dc suas partes: “ [...]. Senado da Câmara “Dizem c representam a Vossa Merccs o Juiz c mais irmãos da Irmandade do Senhor São Jorge desta cidade que os seus antecessores foi determinado por o mesmo Senado que eles com os mais mesários elegessem quatro Ir­ mãos mestres quer dos ofícios ou anexos a mesma para que estes uniforme­ m ente vestidos de encarnado acompanhassem ao mesmo Santo no dia do Corpo de Deus pegando estes nas estribeiras e rédeas do Cavalo cm que vai o mesmo Santo; c já antecedente suposto que não uniformes como vedes mas sim que pegassem em traje comum os Irmãos que em Mesa sc assen­ tam assim determinou o Senhor Doutor Presidente c Provedor da mesma Antônio de Matos [...] que então serviu o que consta do Compromisso e que se observasse com pena de dez mil-réis paga de cadeia, e como agora sc acham Irmãos que se repugnam tendo por desprezo o pegarem no Santo protetor quando o deviam e devem mostrar o afeto que se deve fazer de semelhante ação de grande Festividade e recomendada de Sua Majestade que D eus o guarde o qual deve os Senhores Magistrados fazer observar inviolavelmente e por tudo se querem os suplicantes e suplicam a Vossas Mer­ cês se sirvam determinar e mandar por sua especial ordem que o juiz com os mais mesários legam em quatro Irmãos mestres dos Ofícios a ela anexos desta mesa ou fora dela para que em uniformes vestidos como se tem obser­ vado nos mais anos acompanhem ao Santo pegando na estribeira e rédeas e nomeados que sejam o Escrivão da Mesa os avise por carta com as declara­ ções necessárias e o que repugnar e não cumprir será preso logo incontinente e pagará para o mesmo Santo dez mil-réis como está determinado e se me fechará a tenda para não usarem do ofício com ela aberta sem primeiro assi­ nar termo de cumprir com obrigação [...] eleito e esta nova determinação se lance no livro para a sua observância enquanto Sua Majestade não mandar o contrário no Compromisso que resulta que na consulta do dito Sr. se acha para a nova [...] com a resposta deste mesmo Senado ofereceu ao mesmo Senhor. Rio em Câmara 9 de maio de 1773.”47 Por este trecho dos Autos, o juiz e mais irmãos da irmandade são os agentes do requerim ento contra os irmãos Domingos Jerônimo e José Vieira Gomes. E, em dem anda à câmara, fazem referência ao Compromisso da irmandade a

47 Autos da Innandade de São Jorge, 40 fls. Códice. 45-2-11 fl. 2. AGCRJ.

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que pertencem , para confirmar a regra da presença c o protocolo da procissão e referendam que caso os acusados “não cumpram com a obrigação devida” , estarão sujeitos à prisão, multa e “se fechará a [sua] tenda” . Pelo registro da câmara, se pode supor que os irmãos requerentes da Irm andade de São Jorge reafirmavam o poder da câmara. Mas, como sabemos da questão apenas por meio dos seus registros, poderíamos deles desconfiar. Seria possível uma po­ sição diferente, contudo há que se demarcar uma possível concórdia, ou ao menos, um espaço de negociação entre a câmara e os ofícios embandeirados. Lem brem os, ainda, que, em algumas cidades coloniais, os mecânicos “eram ouvidos pelo Senado” através de seus procuradores.4” Nesse sentido, quem quebra a regra são os irmãos Domingos Jerônimo c José Vieira Gomes, como se pode supor com base no Regimento do Compromisso da Irmandade de São Jorge dos ferreiros da cidade do Rio de Janeiro?' O Compromisso prescrevia aos seus irmãos “Compor anualmente a Imagem do senhor São Jorge para ir na Procissão do Corpo dc D eus” , entre outras obri­ gações, assim como descrevia o ritual em que deveriam desfilar o Estado e os irmãos. Se cruzarmos as indicações que temos através do Compromisso dc 1790 com os Autos mencionados, pode-se dizer que a irmandade de São Jorge sela um acordo com a câmara, na configuração da Procissão do Corpo de Deus. A participação compulsória dos diversos ofícios embandeirados vinha de Portugal, assim como era costume os irmãos de São Jorge armarem o santo para a procissão. Por que recuperar este processo? Porque aponta para um costum e que a cidade colonial tornou seu, conservando até inícios do XIX. Através dos Autos da Irmandade de São Jorge, sabemos, a despeito dos argu­ mentos dos réus — que justificavam a ausência50 na procissão de 1773 seja

4H A expressão é utilizada por Vieira Fazenda, q u e faz referência ã participação política dos oficiais mecânicos na cidade do Rio dc Janeiro. N este m o m ento, não vem ao caso analisar esta forma de participação política que, se gundo Vieira Fazenda, era encontrada na cidadc do Rio d c Janeiro, cm determ inados m om en tos c cm cscala variável. F q u e se pode locali­ zar na cidadc da Bahia (cf. Affonso Ruv; Charles Boxer. Portuguese Society in the Tropics; the municipal Councils of Goa, Ma cao, Pa/tia e Luanda. 1510-1800). Im porta-m e destacar q u e a câmara e a Irm andade de São Jorge, q ue com pu nh a a imagem dc São Jorge c, sob qual confraria, sc organizavam “os ofícios dc serralheiros, ferreiros, cuteleiros, espingardeiros, latoeiros, pilhereiros, funileiros, caldcirciros, cepadeiros, douradores c seleiros” (cf. Vieira Fazenda. O p. cit., p. 135) se relacionavam c tinham acordos a cumprir, dc ambas as partes, no tocante à procissão de Corpus Christi. 4'' Regimento do Compromisso da Irmandade de São Jo/ge dos ferreiros da cidade do Rio de Janeiro (1790). Arquivo do Distrito Federal. Rio d e Janeiro, 4, 1897, p. 134. S egu nd o Vieira F a z e n ­ da, o Compromisso de 1790 não foi o primeiro da irmandade. N a sua história da Irm andade de São Jorge, o autor diz q u e fora criada por ordem de D. João V, em 1741. O primeiro compromisso e sua confirmação só viriam em 1758, com D. José I (cf. Vieira Fazenda, p. 203-06). O novo Compromisso (1790) é o qu e nos é acessível para pesquisa. 50 Cf. Autos da Irmandade de São Jorge, fl. 4. Nos Autos, pode-se ver o req u e rim en to dos réus, te n tan d o sustar o processo.

UNIDADK

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ATRAVÉS

l)E

CORPUS

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por não terem sido convocados, seja pelo fato de gozarem do privilégio de moedeiros,51 e prometiam participar no ano seguinte — que a falta gerou processo entre maio de 1773 a julho de 1774, passou pela vista de diversas autoridades, alcançou o “nosso Soberano Vice-Rei, e lugar te n e n te de Sua M ajestade nesta América”52 e, ao final, foram os réus condenados. Com base na sentença, pode-se entrever o valor pedagógico da sua publicação.’5 Era costume, verificado tanto pela irmandade, quanto pela câmara, os ir­ mãos de São Jorge comporem o Estado e acompanhá-lo na procissão. E não era particularidade do Rio de Janeiro. Nesta cidade, saiu São Jorge até 1833 à custa da Casa Real,54 excetuando-se o ano de 1822 quando parece ter estado ausente. O Estado dc São Jorge cra tradição vinda de Portugal, e há registros seus na procissão de Corpus Christi de Salvador, de São Paulo, assim como se pode ver a velha imagem proveniente do século XVIII, em Minas Gerais.M EM

SÃO

SALVADOR

E m Salvador, no século XVIII, era costume o tesoureiro da Casa da Moeda oferecer esmola ao Santíssimo Sacramento na procissão do Corpo de Deus. Segundo o texto do Conselho Ultramarino, datado de 1757, a oferta anual,

51 Os réus arg um entam q u e o fato dc serem funcionários da Real Casa da Moeda, os eximiria da obrigação d e acom panhar a procissão (Ibidem , fls. 5, 8, 9, 19). O argum ento, no caso, foi derru bad o em favor do poder dos vereadores da câmara (cf. Ibidem, fl. 21) e pelo fato dc “privilégio de M ocdeiros não gozem os servidores, q ue servirem na Casa da M o eda por Jornal ” (cf. Ibidem , fl. 23). 52 Autos da Irmandade de São Jorge, fl. 17. Pela data do d ocu m en to p o dem o s supor qu e o vicerei referido é o M arquês do Lavradio, q u e já m encionam os neste texto. 53 T erm os de conclusão e publicação dos Autos, entre 9 e 18 de ju lho de 1774 fl. 38-40. “ [...] para os ex cipicntes [...] e sujeitos à bandeira, [...] C omprom isso de São Jorge, [...] foram eleitos para c om p arecerem com o Santo q uan do este saiu na Procissão do Corpo de D e u s e por não qu e re re m obedecer, [...] o Senado [...] m andou fixar [...] José Vieira a porta da loja, q u e tem na rua da Cadeia, c lhe fez im por a pena de prisão” (cf. Ib id em , fl. 39). 54 A partir de 1808, no Rio de Janeiro, o Estado de São Jorge passa a ser fornecido pela Casa Real e deixa de sê-lo pelos comerciantes (cf. Vieira Fazenda. Op. cit., p. 206). Isto sim constitui característica particular da procissão ác. Corpus fiím/V da cidade do Rio d e Janeiro, d esd e q u e passara a abrigar a Corte. S egundo VVilliam de Souza Martins a im agem e o Estado de São Jorge saíram pela última vez e m São Paulo, no ano de 1872 e na Bahia, em 1875 (apud: Ernâni da Silva Bruno. História e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984, p. 239; Luís da C âmara Cascudo. Dicionário. Vol. 2, p. 403-04 cf. William de Souza Martins. Op. cit., p. 216-7). 55 T erm o de Resolução assento e obrigação qu e fizeram os juizes de ofícios c mais pessoas nomeadas a q u e m se encarregou as insígnias e mais obrigações q ue tocam a cada um dos ofícios” Atas da Câmara. 1194-1100. Salvador: Prefeitura do Município de Salvador, 1949, v. 6, p. 374-6; Affonso de Escragnollc Taunay. História da àdade de São Paulo no século XVIII (1135-1165), p. 182. N o caso de Minas Gerais, estamos fazendo referência à im agem de São Jorge, em madeira policromada, exposta à visitação no M useu da Inconfidência (Ouro Preto) e atribuída a Aleijadinho (apud: G erm ain Bazin. O aleijadinho. Rio de Janeiro: Record, 1971).

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que se dava “//o ato da procissão [teria sido suspensa] 11a forma acostumada".5h Este é o segundo caso, de que quero tratar. “Que não há dúvida que pelo regimento da Casa da M oeda se m anda fazer aquela oferta, e assim sc praticou sempre nesta Corte, e durou o m esmo louvável costume enquanto se fez a procissão do Corpo de Deus, estabelecida na Sé (hoje Santa Maria Maior), e era oferecida a oferta no ato da mesm a procissão, a qual parava no fim da Rua Nova, onde se punha um altar portátil, em que custódia descansava. “Chegava logo o Provedor da Casa da Moeda acompanhado de seus ofi­ ciais, ali tam bém se aproximavam três Anjos, cada um com sua bandeja, em uma delas ia o dinheiro de prata, em outra dinheiro de ouro e na outra di­ nheiro de cobre, e depois de feitas as genuflexões devidas, cada um dos anjos apresentava a sua bandeja, e o dinheiro contendo nelas era recebido na aba da sobrepeliz de um sacerdote, deputado para este efeito. “Q ue com a divisão das Sés sc aboliu aquela cerimônia, mas que sem ­ pre se ficou pagando a oferta, cujo pagamento se faz por um oficial do Conselho da Fazenda, para entregar ao 7'esoureiro da Igreja Patriarcal.”57 A situação, de acordo com a documentação gerou “uma disputa” , “uma controvérsia excitada pelo Juiz e Irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacra­ m ento da Igreja da Cidade da Bahia contra o reverendo cabido” ,5” envolven­ do o provedor da moeda, o procurador da Fazenda, o desembargador chance­ ler daquele estado, enfim diversos agentes, e alcançou Sua Majestade, por meio da petição em que os irmãos pediam a solução para o caso — “a quem se deve entregar a oferta anual de 24$000 réis [?]” .w Ao tesoureiro do Cabido da catedral, como sempre se praticou na Corte, 011 ao tesoureiro da Irm anda­ de do Santíssimo Sacramento da Cidade da Bahia? Quero demarcar que a mudança ocorre no cerimonial. O texto é muito claro: a oferta seria mantida, mas o ritual é “abolido”1’11e sua forma produziu a polêmica. As questões eram: a quem entregar? À “pessoa secular ou eclesiás­ tica” ? A título de “oblação” , “para o culto do Santíssimo Sacram ento” ou “para uso do C abido” ? Como entregar?61 A cerimônia observada na Corte e

Acerca cia oferta anual que pela Real Fazenda é costume oferecer ao tesoureiro da Casa da Moeda ao Santíssimo Sacramento na procissão do Corpo de Deus. Bahia, 18/5/1757 (cópia extraída do Arquivo do C onselho Ultramarino, IH G B , p. 277-81). Ibidem. Ibidem . Ibidem . Ibidem . Pus sob a forma d e questões os argum entos relativos às partes, basicam ente a Irm andade do Santíssimo Sacram ento e o C abido da Catedral (cf. Ibidem).

u n i d a n k

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que se realizava, segundo a documentação, na Bahia do século XVIII s u p u ­ nha que o pagamento em dinheiro ao Santíssimo Sacramento fizesse parte do ritual. Pouco sabemos das razões do fim desta cerimônia, mas interessa sublinhar a descrição do ritual anual da oferta de esmola, que ocorria em Salvador tal como cm Lisboa, num a cidadc que havia pouco perdera o lugar de capital. A narrativa do conselho registra o tem po suspensão de um ritual,'’2 em meio à procissão dc Co/pus Christi e que tinha, também, o sentido de fomentar o culto ao Santíssimo. Porém, ao prescrever a m anutenção do ritual, ou seja, a oferta da esmola, “no ato da procissão na forma acostum ada” poderíamos supor que o texto do conselho propõe o ritual, cujo sentido está na sua pró­ pria realização. D esconhecem os o fim desta história, mas a quebra do ritual anual da oferta de esmola gerou um registro que demandava a m anutenção de uma cerimônia qu e assemelhava Salvador a Lisboa, c quem sabe a diferenciava das demais cidades da América. EM

SANTA

MARIA

DE

BELÉM

A terceira situação que quero narrar teria se dado em Belém, no ano de 1795. T ê m -s e notícias dela pela correspondência trocada entre o senado da câmara e D. M anuel de Almeida, bispo do Pará. Tanto a carta da câmara dirigida ao bispo, como a resposta perm item dizer que se instaurou uma con­ trovérsia sobre q u e m deveria “pegar nas Varas do Pálio na real Procissão do Corpo de D eus que há de celebrar quinta-feira quatro de junho desde o Altar-Mor ate à saída da porta da Igreja”63 e que foi desencadeada pelo fato de o senado ter aprovado que a referida pegada seria realizada pelo governador e capitão-general do estado e, por meio da carta, notifica sua resolução ao bispo: “ [...] essa volta desde esta até aquele lugar à semelhança daquela prática na Corte, nas cidades e vilas do nosso Reino, mais civilizados. E como até agora estas pegadas os faziam os reverendos beneficiados motivo porque nós resolvemos participá-lo V.Exa. Rma. pedindo-lhe com a devida subm is­ são, queira V.Exa. mandar dar as providências para que esteja o pálio no hl O texto faz referência a 6 dc setem bro do ano anterior, cm q ue o chanceler da Bahia era inform ado de q ue o tesoureiro da Irm andade era o rcccbcdor da Oferta. D o n d e se conclui, q u e a polêmica está viva, pelo menos, d esd e o ano anterior ao registro (1756); cf. Acerca da oferta anua! que peta Real Fazenda é costume oferecerão tesoureiro da Casa da Moeda ao Santíssimo Sacramento na procissão do Corpo de Deus. Bahia, 18/5/1757. M Carta q u e escreveu o senado da câmara do Pará ao bispo do m esm o estado (30/3/1795) P. Brasil Avulso maço 4 Doc. 3. Torre do T om bo, 5 fl. E atribuída a Joaquim Joze Freire Pereira Soares, provavelm ente o escrivão. Subscrcvcm-na: “//Luis Joaquim do [Trota]? de Almeida//José M e n d e s Leitc//João da Fonscca Frcitas//M anuel Joze Roiz//” .

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CRUZ

SANTOS

lugar C o m petente para S.Exa. Rma. lhe pegar igualmente conosco, fican­ do por esta causa cessando a pegada dos Reverendíssimos beneficiados; porque desde o sair da porta até a entrada da mesma, temos dado as provi­ dências do C ostum e.”w Apesar de a decisão do senado em câmara estar fundam entada, segundo a escrita, cm prática corrente no reino, ela introduz uma mudança no ritual, que “inibiu os Beneficiados desta Catedral de pegarem nas Varas do Pálio dentro da S é” .'0 Eram comuns tanto no reino, como na América portuguesa conflitos de precedência, especialm ente na real festa do Corpo de Deus. E pegar nas varas do pálio sob o qual se expunha o Santíssimo constituía um privilégio. Selecionei esta disputa entre o senado e os reverendos porque há uma tentativa da câmara de quebra do costume, verificado na região, “dos reverendos beneficiados pegarem as Varas do Pálio” , porque os argumentos das partes, sobretudo os do religioso, são muito ricos e porque informam so­ bre a procissão na rua c no interior do tem plo.1’1’ A partir da citação pode-se ver que “desde o sair da porta até a entrada da m esm a” , ou seja, no espaço da rua, a regra que funcionava era o costumc. O que gerou conflito foi a decisão do Senado cm conceder as varas do pálio aos “grandes” c ao governador dentro do templo, ferindo a autoridade religiosa. Há quem diferencie Corpus Christi cm festa do tem plo e festa da rua, atri­ buindo nesta classificação as decisões do primeiro à esfera religiosa e da segunda aos leigos/’7 N o m eu entendim ento, esta classificação pode ser flexi­ bilizada pois estas esferas na sociedade colonial e na festa se misturavam. Efetivam ente, a Câmara tinha papel preponderante na organização da pro­ cissão de Corpus Christi — a festa real no espaço da rua — mas outras institui­ ções, irmandades, confrarias, ordens, e outros agentes da sociedade colonial interferiam no cortejo.

M Ibidem (grifos meus). Resposta dc D. M anuel de Almeida, bispo do Pará nas vésperas do dia marcado para a procissão (3/6/1795). O Bispo responde ao senado da câmara, propondo a con tin uid ade do co stum c dc a pegada entre o altar-mor c a porta ser realizada pelos reverendos beneficiados — “imemorial c p ere n e C o stu m c da Lei q u e manda p e g u em nas Varas do Pálio dentro da Sé as D ignidades, Capitularcs, Beneficiados ou os Missionários” — c, da porta p ara a m a, as varas são “co n­ cedidas” aos “grandes” , aos “nobres” . “[...] concedem os a Vossa M ercês a faculdade de p egarem nas Varas de Pálio tão so len em e n te a porta da Santa Sé para irem pelas ruas da cidade p roccssionalm entc” . C om o argum ento alega os costumes, a tradição, a fé, a paz entre o império e os eclesiásticos, o modelo do cerimonial romano “q u e sc pratica e m todo o O rbe cristão” e cita diversas leis canônicas e do reino português. A resolução do Bispo distingue a festa do tem plo e da rua e nega a dem a nd a anterior dos cameristas, c onsideran­ do u m “abu so”, um a intromissão (cf. Resposta de D. M anuel dc Almeida, bispo do Pará (3/ 6/1795) — (grifos meus). 1,7 William d e Souza Martins. Op. cit.

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Podc-sc afirmar que a disputa é tam bém entre leigos c eclesiásticos. Como responde o próprio bispo, cuja carta pode scr lida como uma declaração pelo poder episcopal em matéria “dos ritos e cerimoniais da Igreja” / ’* “bem d e se ­ java eu evitar aquela discórdia [...], que ordinariamente perturba a paz, uni­ do entre o Império e o Sacerdócio” .^ A meu ver, a tentativa da câmara de entrar na igreja, descrita pelas cartas, aponta sobretudo para conflitos e acor­ dos comuns em todo o reino, cm ocasião da festa do Corpo de D eus e, quem sabe, da problemática específica dc uma região, em que os religiosos tiveram importante papel de colonizadores. Este texto traz a marca da inconclusão resultante do estado atual das q u es­ tões c da pesquisa. Nesse ponto, com base nos fragmentos recolhidos sobre a festa em diversas cidades coloniais da América portuguesa pode-se já afirmar que a procissão de Co/pus Christi, no século XVIII, era uma festa real, cujo enquadram ento era fornecido pela câmara e, por isso, tendia a elaborar a uni­ dade do reino português. N o Rio de Janeiro, em Salvador e em Belém, como descrevi, parece ter havido tentativas de quebra no ritual de Corpus Christi. N o Rio de Janeiro, os irmãos da Irm andade de São Jorge, por se ausentarem no cortejo do ano de 1773 foram punidos exem plarm ente. Não se conhece o fim da história movida pela suspensão do ritual anual da oferta de esmola, que se praticava em meio a procissão do Corpo de Deus, na Bahia, de 1757. Todavia, sabe-se que sua interrupção gerou controvérsia entre diversos agen­ tes e registro acerca da cerimônia e de sua manutenção. E m Belém, no ano de 1795, autoridades leigas decidem assumir a pegada do altar-mor até a por­ ta da igreja. A carta do bispo, em resposta ao senado da câmara, é uma escrita que preconiza a continuidade da cerimônia, o privilégio dos religiosos e a distinção entre o ritual do tem plo e o da rua. A procissão de Corpus Christi, que ocupava a rua em diversas localidades da América portuguesa, no século XVIII, fazia um redesenho da cidade colonial tanto ao tornar as cidades semelhantes entre si e as do reino, quanto por abrir para a introdução de dados extraordinários no seu roteiro cíclico e circular. A procissão percorria as ruas centrais, visitava os prédios das autoridades leigas e eclesiásticas e retornava à matriz. O ritual do Corpo de D eus tinha um roteiro sujeito a inúmeras interferências, pois pulsava na vida social. □ □ □ Bk a t r i z C a t ã o C r u z S a n t o s é professora de História do Brasil da Ponti­ fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, desde 1993; é mestra pela Universida­ de Federal Fluminense, em 1994. Atualmente desenvolve tese de doutorado sobre a

1,8 Cf. Resposta dc D. M anuel de Almeida, bispo do Pará. Ibidem. Ibidem.

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p ro c is s ã o d o C o r p o d c D e u s d a A m é r i c a p o r t u g u e s a , n o s é c u l o X V I I I . E n t r e su a s p u b l i c a ç õ e s , 0 Pináculo do Temp(l)o; o Serm ão cio P a d re Antônio Vieira e o M aran h ão do século X V II. Brasília: U n B , 1997. R i- s u m o . O t e x t o o b j e t i v a re la c io n a r a f e s ta d e C orpus C hristi à c i d a d e c o lo n ia l e t e m c o m o h i p ó t e s e q u e , c o m b a s e n as n a rr a tiv a s s o b r e a p ro c issã o , r e d e s e n h a - s e u m a c i d a d e c o lo n ia l q u e é, ao m e s m o t e m p o , m e d i d a d a u n i d a d e e d i v e r s i d a d e d o r e i n o p o r t u g u ê s . P r e t e n d e - s e a i n d a i d e n t i f i c a r s e m e l h a n ç a s e d i f e r e n ç a s d e s t e ritu al p ú ­ b lic o e n t r e as d iv e r s a s c i d a d e s co lo n ia is d a A m e r i c a p o r t u g u e s a e tr a ç a r a l g u m a s c o m ­ p a r a ç õ e s c o m a m e s m a fe s ta n o m u n d o p o r t u g u ê s c fora d e l e ( p a r t i c u l a r m e n t e , c o m o i m p é r i o e s p a n h o l ) . O artig o c o n s t i t u i v e rs ã o inicial e s i m p l i f i c a d a d o s e g u n d o c a p í ­ t u l o d a te s e , q u e ora d e s e n v o l v o s o b r e a p ro c is s ã o d e C orpus C hristi d a A m é r i c a p o r t u ­ g u e s a , n o s é c u l o X V I I I , p e la U n i v e r s i d a d e F e d e r a l F l u m i n e n s e .

Alegoria do nascimento da Infanta D. Maria Teresa em 1798. Des. Francisco Leal Garcia. Grav. Gaspar Fróis Machado. Gravura a buril e água-forte, 54 x 60 cm. Lisboa BP, inv° 52.4. D. João VI e seu tempo. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemora­ ções dos Descobrimentos, 1999, p. 186. Foto André Ryoki.

LITURGIA REAL: ENTRE A PERMANÊNCIA E O EFÊMERO I a k a

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" R e i n a r s o b re c o ra çõ e s li d u a s v e z e s re in a r. ” 1 “T a n t o p o d e u m a re tó ri ca b e m d e d u z i d a ! A t a n t o c h e g a m as for ças d c u m a r g u m e n t o b e m t r a t a d o . " :

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a r t e E F ê m e r a , entre os séculos XVI-XIX, nascia sob o signo do pro­ visório, vivendo assim em sua atualidade e duração. E m sua concepção e realização, instaurava um espaço cenográfico e corroborava na construção da tem poralidade festiva. Assumia-se como transitória dentro de uma cerimônia pública estruturada e muito codificada por excelência — como se via na pra­ xe da liturgia real do Antigo Regime. Significava francamente um a transitoriedade dentro de uma dada temporalidade. Necessariam ente, a arte efê­ mera era m ediada pela imagem, significava algo que não estava presente, trazendo a coisa, o ser ausente, para dentro desta cena pública e política. Assim, tal arte, por natureza, substanciava-se na imagem. N o intuito de fazer breve análise da arte efêmera, atentando específica e unicam ente para este elem ento festivo, estuda-se a liturgia real entre os go­ vernos de D. João V e D. Pedro I, da dinastia brigantina. Trata-se de um tempo forte das festas reais. C om D. João V, elas ganham

1 Dístico da iluminação d c casa do C o m en d ad o r Luís d c Sousa na Rua Direita. B. A. F. Souza. Relação fios festejos, que a feliz aclamação fio muito alto, muito poderoso, e fide/íssimo S r D. João VI. Rio d c Janeiro: Typ. Real, 1818. 2 F.pantífora festiva ou Relação sumária das Festas, com que na cidade do Rio de Janeiro capita! do B rasil se celebrou o feliz nascimento do sereníssimo príncipe da Beira N. S. Lisboa: Off. Miguel Rodrigues, 1763.

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fausto, pompa, sendo uma prática cada vez mais im plem entada pelo rei na América portuguesa, aproxim ando o vassalo e o rei, unindo-os num rito cí­ vico. E m seu governo, a festa se expande em núm ero e opulência, sendo um modo do rei de estar na colônia, marcar e circunscrever seu território.5 As festas continuam grandiosas nos governos de D. José I e I). Maria I, sendo as datas reais celebradas com variações nas localidades e regiões do Brasil. A transplantação d aC o rte, em 1807-1808, promove festas, cm Salva­ dor e no Rio de Janeiro, com a própria presença real, aquilatando sua m ajes­ tade e visando estreitar os elos entre o governante e o g overnado.1 Bem como pode-se indicar seu uso político em D. Pedro, com entradas reais em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, aclamação, coroação e distribui­ ção do seu retrato pelo Brasil, fundando o país in d e p e n d e n te e um pacto político entre o imperador e o súdito-cidadão.5 Logo, entre D. João V c D. Pedro I, não há decadência ou ascensão das práticas festivas, antes diferem na definição da monarquia, em virtude do liberalismo constitucional e n v ie ­ sado em D. Pedro I, o caráter absolutista ilustrado de D. José I e esta feição mais bem acabada de monarquia m oderna celebrizada em D. Luís XIY encontrada e querida em D. João V. Pode-se observar um vocabulário se­ m elhante de signos, imagens, conjunto de metáforas que transitam nestas liturgias reais. Pela primeira vez com a morte de D. João Y, celebraram-se as exéquias reais em todo o império. De Goa ao Pará, criando enorm e sim ultaneidade festiva. Seguia-se praticamente o mesmo programa dc atividades e difundiram-se as mesmas alegorias em torno do rei c da figura da morte. De um lado.

’ C om o bem observou Pedro Cardim: “ [...] a partir de 1706 — ano do início do reinado de D. João V — passou a ter lugar, apenas, o juram ento do rei c dos participantes nesse e v e n ­ to, ou seja, “nobreza, títulos seculares e eclesiásticos, e mais dignidades” , não sen do c o n ­ vocados os representantes do “terceiro estado” , seguia-se a aclamação popular. A cerim ô­ nia de ju ra m en to e aclamação autonom izou-sc assim das cortes, estas deixaram de ser convocadas na ocasião do “levantamento dc um novo rei, indício de q u e o grupo dirigente estava apostado em restringir o âmbito daqueles que poderiam ter uma voz decisória acer­ ca dc assuntos tão sensíveis” . In: Cortes e cultura política no Portugal do Antigo Regime. L is­ boa: Cosmos, 1998, p. 114-5. Pode-se pensar na grandeza da cerimônia como um modo dc com p ensar a ausência das cortes e conformar a participação do súdito. Ver ta m b é m R. B. Monteiro. O rei no espelho: a monarquia portuguesa e a colonização na América (1640-1120). T ese de doutoramento. São Paulo: Univcrsiadc dc São Paulo, 1999. 4 Para análise mais detalhada da liturgia real cm D. João VI: I. L. C. Souza. “ D. João VI no Rio de Janeiro. E ntre festas c representações” , in: Anais do Seminário Internacional D. João VI. Um Rei Aclamado na América. M u seu Histórico Nacional/M inistério da C u ltu ra/IP H A N , 2000. J. Malcrba. A Corte no exílio. Interpretação do B rasil joanino (1808 a 1821). T ese dc D outoram ento. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. K. Schultz. Tropical Versail/es: the transfer o f the Portuguese Court to Rio de Janeiro, Monarchy a n d Em pire (1808-1821). Nova York: N e w York University, 1998. 5 I. L. C. Souza. Pátria coroada. O Brasil como cotpo político autônomo. 1180-1831. São Paulo: Editora U nesp, 1999.

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cm D. João V encontra-sc este apreço e esta dinâmica que tenta unificar o império por meio dapersona real, buscando reforçar os elos de pertencim ento do súdito a este corpo político. Em outra ponta, vê-se a fratura entre Brasil e Portugal com o engendram ento da soberania em D. Pedro I, inaugurando o país in d e p e n d e n te .6 Existe no início da década de 1820 uma reabilitação dc signos e alegorias que significam o governante. Trata-se portanto de uma primeira varredura deste material na expectativa dc entrecruzar tanta do­ cum entação festiva, observando algumas convenções nas quais o efêm ero adquire sentido. Este texto não se atém a um comcço, meio e fim de algum gênero festivo. Trabalha-se com esta diversidade, que permite entrever uma recorrência ao passado, os signos citados, a tradição da distribuição das tarefas na preparação da festa ou, então, a seqüência dc atividades festivas, os cortejos e procissões em que o motivo de seu amor e/ou ardor vai à frente 011 no centro. Trabalha-se, aqui, a repetição em meio à diferença. Em outra direção, este recorte político-cronológico, perm ite trabalhar o efêmero dentro de uma estética barroca tanto quanto num gosto em que predomina o neoclássico.7 Pois se o efêm ero ganha notáveis proporções, acabamento, grandiosidade com o barroco,8 não fala exclusivam ente de dentro deste diapasão. Há longeva presença destas alegorias e signos no início do século XIX, convivendo com uma arte neoclássica, sobretudo com a vinda dos artistas franceses em 1816. Porque embora seja um a mesma estrutura falante, um mesma figura de Minerva por e x e m ­ plo nos moldes de Cesar Ripa, seu uso e eficácia diferem por demais entre D. José I e D. Pedro I. O uso e a correlação com os outros signos acabam mol­ dando com preensões diversas, embora o signo, a alegoria, a figura recitada pareçam um a volta do passado, do já visto, uma evocação da tradição. Presentifica-se por meio do transitório e da imagem uma noção de pe rm a n en te que acaba conferindo peso ao passado. N a longa duração, percebem -se algumas mudanças, continuidades, a re­ petição dos temas, das alegorias, notando mesmo alguns deslocamentos. Nesta direção, indicam-se algumas relações entre a festa e a memória coletiva. Esta análise orienta-se mais por uma interpretação morfológica do efêmero, mas não perde de vista ou ignora a sua historicidade. Não se prende, portanto, a uma única festa particular, embora privilegie as festas reais. Reconstitui-se esta morfologia dialogando com sua historicidade, tentando não imobilizá-la

h N ão se trata de desm ere cer a extensão desta fratura, descontinuidade e passagem dc uma m onarquia do E stado m oderno a um a constitucional. C abe indagar como os signos vão send o reinventados, seus usos e finalidades, os reabilitados e os esquecidos, os q u e ga­ n h a m dim ensão coletiva e os dc ordem individual. 7 M.-L. Biver. Fêtes revolutionaires à Paris. Paris: PUF, 1979. " M. DclTArco l'ag iolo & S. Carandiri. Ueffimero barocco. Stmtture delia festa nelta Roma del’600. Roma: Bul/.oni Editore, 1977.

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em alguma leitura esquemática ou cristalizada. Assume-se que se trata de tímida aproximação com o tema. 1. A festa consiste num evento que foge do cotidiano, todavia tem aí sua origem e preparação. Principia com a chegada de decretos burocráticos e reais, das notícias vindas da Corte para alguma instituição e/ou autoridade local, em geral, a câmara, igreja, bispo, em penhados em armar a festa, apres­ sar os preparativos, distribuir tarefas, recom endar gestos, indum entárias, percursos, cumprir datas, compulsoriamente custeada pelas câmaras. K or­ ganizada pelo m undo do trabalho em sua rotina, todavia instala um outro tempo, excepcional, que evoca o deleite, orienta-se por regras próprias, tem duração e significado específicos. E xtrem am ente ritualizada, ganha sentido na sua seqüência. Nada pode ser subtraído, desprezado ou arbitrariamente acrescentado sob pena de perverter a festa ou mediocrizá-la, subvertendo sua função social. E ao fim e ao cabo, retorna ao cotidiano. Na América portuguesa, as festas reais abarcavam o nascimento, casam en­ to, entrada, aclamação, morte, dos membros da família real, recobrindo seu ciclo da vida e rem etendo a uma cronologia narrada nos anais da história. No pacto celebrado entre o rei e o corpo social c político residia a causa e origem indissolúvel desta sociedade. O corpo místico e político comunga de uma teologia divina, um cosmos estritamente católico, organizada por uma série de analogias e jogos de espelhamento, instaurando uma necessária mimese entre eles. A perda, fraqueza, doença do rei — considerado a cabeça deste corpo político — reverberavam em toda sociedade, pois um é gêm eo do ou­ tro. Ao contrário, sua prudência, temperança, sabedoria, justiça, virilidade ensejavam a sociedade, a modelavam e traziam felicidade. As festas reais contavam a história de uma vida, de um governo, dc um corpo social, todos entrelaçados e análogos. Uma metáfora recorrente da arte de governar, nos manuais e espelhos reais, consiste na colmeia ou no formigueiro, dada a har­ monia entre o governante e o governado, e a sociedade se assemelha a uma obra perfeita, em que cada um desem penha sua tarefa, seu papel intransferí­ vel, e juntos promovem uma genérica noção de bem-comumP Uma festa ligava-se à outra, e reforçavam m utuam ente seus sentidos. Realçava-se a importância da aclamação quando se inaugurava um novo reinado,

9 F. A. d e N. N ovaes. 0 Príncipe Perfeito — emblemas de João de So/órzano. Prefácio, in tro d u ­ ção, com entário e índices por M. H. d e T. C. U. Prieto. Lisboa: In s titu to dc C u ltu ra c L ín g u a P ortuguesa, 1985; M. Senellart. Les arts de gouvem er — du régimen medieval au conceptdegouvernement. Paris: Seuil, 1995; R. B. M onteiro. Op. cit., e sp e c ia lm e n te cap. 4: “Sobre o R e i” .

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um novo governo c reitera-se o pacto entre o governante e o governado que funda a ordem social, sua estabilidade c harmonia.1" Ela instaurava laços e n ­ tre o poder real, seu povo c seu súdito, visando instaurar e consolidar uma identidade entre eles. Daí seu caráter cívico. Gomo evento, sobretudo real, a festa encontrava uma narrativa que lhe impõe uma organização estrita, evita falar da desordem, do acidental ou im­ provisado. A Relação de festa busca ordenar este evento, sem deslize ou falha, silenciando sobre estas ocorrências, estabilizando o evento e definindo seu enunciado. O texto escrito segundo uma retórica polida, com decoro, tenta recuperar toda a programação festiva ao descrevc-la na minúcia. Fala do trans­ correr da festa, sua graça e ordem. Insistir nesses pontos mostrava a grandeza da festa, o esforço coletivo para sua realização, a participação da comunidade, asseverando a presença real naquela localidade, por mais distante que o rei e a Corte estivessem. Atualizava-se o encontro entre o monarca e o vassalo/súdito/súdito-cidadão," reite­ rando, em tese, a obediência e a fidelidade quando os espectadores e prota­ gonistas são as mesmas pessoas do cortejo, procissão e da festa. A festa trazia o monarca para a localidade, tornando-o seu senhor, amarrando e consolidan­ do os vínculos entre a localidade e o governante.12 Havia preocupação em avaliar os efeitos desta distância entre o monarca e o seu vassalo num império de vastas e partidas possessões. D e um lado, o afastam ento poderia suscitar o esquecim ento, a orfandade do vassalo e, pior dos males, a revolta; no reverso, ju sta m e n te devido à distância, o vassalo expandia seu c o n te n tam e n to na festa, expressando sua fidelidade e o b e ­ diência. i;’

111 Algumas festas católicas são tão vincadas pela realeza, sua presença, atuação, culto, q u e participam do calendário real: Santa Isabel, Corpo d e Cristo, Anjo Custódio, São Sebastião — este último, espec ialm en te no Rio de Janeiro. 11 E n tre o governo de D. João V c D. Pedro I, há uma m udança na nomeação da figura do governado, alterando substancialm ente a definição do p o der monárquico, no en tan to continuam -se usando certos atributos para designar e qualificar o governante. ,2 Para d e b a te a respeito do império e a localidade no m u n d o português, centro e periferia: A. M. H espanha. “C en tro c periferia nas estruturas administrativas do Antigo R e g im e ” , in: Ler História, 8 , 1986; yL vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal século XVII. Coim bra: Alm edina, 1995. N u m a outra vertente, não necessariam ente oposta à a n te ­ rior: J. Russcll-Wood. “C en tro e periferia no m u n d o luso-brasileiro, 1500-1808” , in: Revista Brasileira de História, J 6 (\8 ), 1998. O parecer do C onselheiro Antônio Rodrigues da Costa no Breve compêndio e narração do fúnebre espetáculo, que a insigne cidade da Bahia cabeça da América portuguesa, se viu na morte de El-Rei D. Pedro II... Lisboa: Officina de Valcntim da Costa D eslandes, 1709, escrito por Rocha Pita, dizia: “parece q u e qu anto os portugueses mais se afastam da sua origem e do berço cm q u e nasceram, tanto maior é o obséquio qu e tributam à M ajestade, im itando nesta parte a natureza dos rios, q ue qu anto mais sc apartam de suas fontes, tanto maior tributo, e veneração ren d em ao oceano d on de receberam o ser. Era Assunto Primeiro, dc

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A relação de festa funciona como um dispositivo da sua memória, é seu docum ento perm anente, busca abertam ente vencer o olvido e, dessa m anei­ ra, lega à posteridade a figura real. A Relação do casamento dos príncipes, em 1810 no Rio de Janeiro, arrola uma estrofe, em tese, pronunciada pelo povo, posta em sua boca, que diz: “Ouves, Príncipe, soando Do teu Povo aclamações Q ue irão sempre redobrando Nas futuras gerações.” Há um encontro entre o príncipe e o súdito, de modo que a aclamação c repetida incessantem ente e, dessa maneira, o príncipe ganha a posteridade. Afora a própria relação, os sermões, os panegíricos que tratam da festa, a pró­ pria festa, em si, tenta celebrizar o rei, com seu nom e e efígie. A festa atuali­ zava a persona real e, ao mesmo tempo, celebrava seu nom e no porvir, e n ­ grandecendo sua majestade, caráter heróico, e explicitando que, em parte, pela aclamação geral e presença dc seu povo, ele será lembrado. Por fim, a relação chega ao rei na Corte, fechando um circuito entre a localidade-corte. Pois a relação narra o acontecimento, sai à luz, publicada e autorizada, circu­ lando como impresso e, pela escrita, fixa a versão deste evento. A relação ganha estatuto de verdade histórica e política, torna-se uma peça política ver­ dadeira que atesta o bom governo e felicidade dos governados, apaziguando a consciência cristã do rei que ajusta e presta contas a Deus. A relação elencava quem financia a festa, faz-se presente, a comanda, pode, num a economia de favores, calcar um pedido de mercê, uma graça recebida, uma retribuição real. Este texto atestava a participação de cada um no evento e justificava estas solicitações e atenções reais. Em contraposição a este texto que, por princípio, tudo quer reter e falar, há a prática do esquecim ento aos lesa-majestades c revoltosos, condenados ao silêncio perpétuo,14 supressão da documentação, casas demolidas, esquar-

iima academia da colônia: Gloriar-se o Senhor D. João II de ter c on hec im e nto dos seus vassalos” . In: J. A. Castello. O movimento academicista no Brasil. 1641-1820/22. São Paulo: Conselho Estadual da Cultura, v. 1, t. 2, 1969. José Arthur Teixeira Gonçalves indica o seguinte assunto na Academia Brasílica dos Renascidos: “Qual em p resa de maior glória: celebrar Lisboa a conservação e vida dc el-rei nosso Senhor na sua presença ou celebrá-lo a Bahia na sua ausência” . In: Cavalhadas. Das lutas e torneios medievais às festas no Brasil colonial. Dissertação d e mestrado. Assis: Unesp, 1998, p. 62-3. Há uma concordância dc que, na ausência, ocorrem as maiores demonstrações festivas. Sobre a orfandade real, ver, por exemplo, as reclamações de portugueses a D. João VI sobre a decadência do reino e a ausência do rei: A N T T , Ministério do Reino, G overnadores do Reino, Registro de Cartas ao Príncipe R eg ente, Livros 314, 317, 318. 14 L. R. de A. F igueiredo. Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa. Rio de

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tejam cntos ciuc ensinam , no imediato e na localidade, a punição exemplar, mas, por outro lado, procuravam não deixar rastro do desaparecido, silen­ ciando e negando sua efígie — peça tão cara à realeza. M esm o a execução pública de um lesa-majestade funcionava como ocasião qu e celebrava o restabelecim ento da ordem e a fidelidade real. Sermões, luminárias, missas e te-d e u m saudavam a descoberta do transgressor, suas m aquinações m al­ dosas, e revalidavam a obediência ao monarca, reafirmando o pacto de su­ jeição. A justiça15 assim é espetacular em sua punição, ocupando a praça pública, com ritos e mesuras próprias. Esta pedagogia do poder, da face e mão severas do rei, qu e condena tam bém ao e sq uecim ento e serve ao que se deseja exceção — revoltas, tumultos, comoções — ,lfi parece-m e, com ­ p lem e n ta a e participa da mesm a lógica de uma liturgia real qu e atinge a posteridade pela festa real, considerada como norma da m onarquia q u e ci­ m en ta e estreita os elos entre o rei e o vassalo. C onvém dizer que é mais fácil encontrar o efêm ero descrito nas relações de festa centradas na realeza do que nas punições, cm que tam bém madeira, estuque, cera foram usados. Q uanto mais esta arte efêmera fale do rei, nele se referencie, mais a descrição ganha em detalhe, volume, esforço de bem dizer, domínio do topos retórico, polidez. Já os m omentos festivos de cunho mais popular e profano tendem , nestas relações, a deixar este assunto para o final, procurando por vezes abreviar seus aspectos. Aí, o efêm ero ficava mais no plano das vivências, contudo não mereceria um lugar tão memorável. E m 1763, dizia-se de uma farsa de pardos da saída de rei de congo no Rio de Janeiro: “muito ao uso daqueles Africanos, descontando o bom senso, não deixavam de divertir o ânimo por estranhos. E outra lá a formosura; muito diverso o bom canto. Só a virtude se conforma ao palato de todas as nações. Fizeram-no pois os nossos Pardos com toda a propriedade, e agenciaram com

Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1161. T ese de doutorado. São Paulo: Universidade dc São Paulo, 1996. Ver ta m b é m a introdução de Sílvia H un old Lara às Ordenações Filipinas. Livro V. São Paulo: C om pan hia das Letras, 1999. 15 Eram tarefas cruciais do rei: exercício da justiça, da área militar, do fisco amarrado à sua figura por uma burocracia q ue as movimentava c geria. E. L. R. Ladurie. 0 Estado monárquico. França 1460-1610. São Paulo: C om pan hia das Letras, 1994. 16 A câmara d c Vila Rica, depois da prisão de T irad entes, honrou a rainha com um a missa na matriz dc Nossa Senhora do Pilar de O uro Preto, com canto, hino, te-d éum , mais lu m iná­ rias por três noites. N a câmara o primeiro vereador, Bacharel Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, proferiu um a Falia com a presença dos moradores desta vila, Sabará, São João e São José, na qual afirmava: “A experiência b re v e m e n te persuadiu q u e o poder doméstico não era bastante a prover as necessidades e a conseguir a precisa segurança dos homens: Eis aqui os fu n d am en to s da Monarquia, do governo d c um só, d e q u e o paterno foi o modelo, o mais antigo, o mais próprio c o mais acomodado à natureza. A privação d c uma liberdade indefinida sucederão os cômodos da segurança. Dificultósamentc, se alcançaria este fim, tirada a obrigação de o b e d e c e r” . Revista do Arquivo Público Mineiro, O uro Preto, Im prensa Oficial d c Minas Gerais, ,J:405, 1896.

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ela o aplauso, que pode franquear-se a uma imitação”.17 E nquanto o m esmo autor derrama palavras e mais palavras, esculpe a escrita, mostra sua retórica ao discorrer sobre os outros carros, danças, arte. Em 1760 na Bahia, houve uma grande festa de congo nos desposórios de D. Maria. N u m a espécie de m undo de ponta-cabeça, reinou uma majestade negra no relato de Francisco Calm on.18 Já Padre Manuel de Cerqueira Torres apenas diz que dois dias da festa foram dedicados aos pretos por ordem do senado da câmara'1' e justifica: “Não fazemos mais especial individuação por não pertencer propriamente ao nosso instituto” . O efêm ero ganha sentido nesta vontade de perm anecer transcrito em tex­ to. T am bém se relaciona com o perm anente uma vez que sua arquitetura alude às qualidades metafísicas e atemporais da realeza, do seu corpo místico e vale-se das alegorias lastreadas na Antiguidade clássica e na Bíblia, asso­ ciando, por vezes, um elem ento a outro num a semântica própria, segundo repertórios e associações específicas que convidam à decifração — sobretudo letrada. A repetição coletiva, anônima e dispersa, desta semântica, vocabulá­ rio e morfologia, vai conformando um repertório imagético com um àquela coletividade. Logo, não se poderia introduzir, toda vez ou assiduamente, algo novo, inédito, pois esta repetição ajudava a presentificar o já visto, a fixar os enten dim entos e estabilizava a compreensão do poder, instaurando uma cer­ ta noção de tradição e permanência da monarquia. Nesse sentido, a própria relação impressa poderia funcionar como um manual que ensinava como fa­ zer um maquinário, descrevia as luminárias, discorria sobre os arcos triunfais, os carros alegóricos, as flores, falava da fatura das obras e seus efeitos lum ino­ sos, coloridos, seus movimentos. A relação ensinava, por vezes, como cons­ truir e/ou ainda informava sobre o gosto em voga.20

1' Fpanáfora festiva ou Relação sumária rias Festas, com que na cidade du Rio de Janeiro capita! do B rasil se celebrou o feliz nascimento do Sereníssimo Príncipe da Beira N.S. 1,isboa: OIT. Miguel Rodrigues, 1763. In: J. A. Castcllo. Op. cit., v. III, t. 4, 1976. 18 Relação das Faustíssimas Festas. Rcpr. fac-similar da edição de 1762. Introdução e notas de O n evd a Alvarenga; transe, de Ronaldo Menegaz. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. ]l> Pode-se pensar na recepção e simpatia da realeza en tre os negros/africanos/pardos e os motivos q u e levaram a câmara a cede r dois dias dc festa a esta camada. J. A. T. Gonçalves. Op. cit. assinalou uma tendênc ia à dim inuição das cavalhadas no começo do século XIX an te meados do XVIII, havendo lenta supressão d este m o m en to festivo, da disputa c n e s­ te m om ento, mais ao final do dia e da festa, poder-se-ia vislumbrar mais viva e sistem atica­ m e n te um a participação popular. 20 M estre Inácio Ferreira Pinto, armador na festa da comemoração do nascimento do prim ei­ ro varão de D. João e D. Carlota Joaquina no Rio d e Janeiro, tinha em sua livraria uma estampa do M on um ento d e Mafra e 25 cadernos de estampas e desenhos. Apud: N. C avalcan­ ti. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: as muralhas, sua gente, os construtores (17101810). T ese de doutoramento. Rio d e Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências H um anas, U niversidade Federal do Rio dc Janeiro, 1998. Isto é, não sc pode desconsiderar o próprio acervo destes artífices/artistas q ue sc ocupavam da programação estética da festa. Bem

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2. A data da festa e o local de sua encenação são elem entos decisivos para o efêmero. O primeiro abre o tem po do rito, remete a uma dada carga simbólica ao sincronizar-se com o calendário católico-cristão. D. João VI negociou com o papado a data das Chagas de Cristo em 1818 para coincidir com sua aclama­ ção. D. Maria I forçava as coincidências com o dia dc Nossa Senhora da C o n ­ ceição e D. Pedro I o uso reiterado do 12 dc outubro, data da descoberta da América e dc seu aniversário. Tais escolhas calçavam a repetição destes te ­ mas e uma (re)citação visual destas figuras. As festas reais na America portuguesa privilegiam o espaço público e cole­ tivo. Pautam-se pelo bando, pelos cortejos que organizam hierarquicamente a sociedade, dispondo-a ordenadam ente diante de si mesma, dc acordo com sua identidade social e jurídica, que poderiam e n te n d e r com lacunas, dispari­ dades, conflitos aquele cortejo, aquela solenidade. Ocioso dizer que esta hie­ rarquia nada homogeneiza, antes unifica a desigualdade e marca suas distin­ ções. D e dia, o cortejo, procissão, entrada desenham um percurso dentro da vila, que, em geral, liga as principais instituições públicas. Com seus corpos, de pé, montada, no seu melhor uniforme, ereta, hierarquizada, a tropa cria um traçado que designa o caminho do cortejo e, na praça, a circunda — junto com as janelas alcatifadas e arte efêmera — que circunscrevem o palco do ato principal. E entre o início do cortejo e seu m om ento final, designa-se um grande signo que marca o motivo da comemoração. Como na recepção à fa­ mília real no Rio de Janeiro, em 1808, na qual o cortejo se estende do porto ao palácio, com parada para missa e te-déum; sempre tendo a rainha e seu her­ deiro ao centro. D e noite, porém, as luminárias não repetem necessariam en­ te este percurso diurno, embora repitam pedagogicamente o tem a da festa, mostrem a efígie real, cerquem D. João com a figura dócil da América e uma Lísia chorosa. Já em 1826, na última grande entrada no Rio de Janeiro de D. Pedro I, ao voltar da Bahia pacificada, as alas se distribuíam desde o arsenal da Marinha, da Rua Direita ao Paço da Cidade, Rua do Ouvidor, Largo da Constituição, Cam po da Aclamação até o rossio da Cidade Nova. As luminárias da intendência de polícia e da casa do intendente, senado da câmara, Cam po da Acla­ mação, Academia Imperial Militar, Arsenal da Marinha, se destacavam, esta-

como, havia possibilidade dc um a Relação conter cm um texto à parte dedicado à arte efêm era, como Monumento do Agradecimento, tributo de Xeneraçam, Obelisco Funeral do Obsé­ quio na Relaçam F ieldas Reaes Exéquias que a defunta Majestade do fide/íssinio e Augustissimo rey o Sr. D. João I7, do padre Mathias Antonio Salgado, publicada em Lisboa em 1751, pela Officina dc Francisco da Silva.

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belecendo um outro circuito, sem contar as casas do Coronel Antônio José da Silva, do presidente do senado da câmara, a igreja dc São Francisco de Paula, pórtico da capela imperial.-1Dc todo modo, cria-se um cenário dentro da vila, cidade, localidade, cheio de novidades que incita à participação, a par das punições aos faltosos prescrita na legislação c costume vigentes. Esta entrada portava um forte sentido constitucional que liga o súdito-cidadão ao impera­ dor, fundando um pacto entre eles. A festa se situa nas ruas atapetadas com janelas ornadas, arcos do triunfo distribuídos pelo trajeto, alcançando a praça pública onde, muitas vezes, o ápice da festa ocorre, indo então à igreja entoar te-déum , ouvir sermões. Na igreja, a arte efêmera ocupa o altar, cobre ou exalta determ inado santo, arru­ ma os camarotes, redistribui a sociedade. A noite prossegue com luminárias, música, comes e bebes, bailados, danças e outras invenções. Prolonga-se ain­ da nas touradas, duelos, pequenas batalhas, óperas, poesia, às vezes distribui­ ção de esmolas, estendendo-se por prazos que oscilam de três dias a um mês. O efêm ero monta um cenário em geral justaposto ao casario de fachadas regulares e proporcionais, câmara, cadeia, igreja, fortaleza, arsenal, palácios, quartéis, convento, colégio, chafarizes, aquedutos, talhas c altares das igrejas, tetos, azulejaria, construções sólidas e duradouras. Russell-Wood apontou como esta transplantação de uma arquitetura ibérica, do traçado das vilas, com a praça, câmara, igreja, concorria, em parte, para o engendram ento dc um sentim ento de pertencim ento ao império português e instaurava uma certa semelhança espacial no império." O efêm ero é construído sobre este fundo, configurando um cenário e um palco das comemorações coletivas, valendo-se por vezes de uma fachada, do mármore ao fundo, dos sinos das igrejas, das embarcações, fortalezas e quartéis, interagindo e recortando com esta arquitetura a ponto de transformá-la em parte do cenário. Este cenário inscrito na vila torna-se palco de representações de forte atividade dramática, delineada pelo cerimonial e etiquetas, exem plarm ente vistos na aclamação e entrada. Assim, teatraliza-se o pacto de sujeição. Dc palavra escrita nos tex­ tos políticos, o pacto de sujeição se transforma em ato público, num a imagem do poder que o representa. Este termo efêmero abrange uma variedade de materiais, desenhos, risca­ dos, trabalhos, ornamentos, decorações, luzes, cores, cheiros,2' sons, cristais,

-1 Relação dos públicosfestejos que tiverão lugar do dia 1 de abril até 9 peto feliz regresso de S.S.M.. M. I. /. e A.I. voltando da Bahia a Corte Imperial do Rio de Janeiro..., Rio dc Janeiro: Imp. Typ. dc Plancher, 1826. ” “Os portugueses fora do Im pério” , in: F. B ethencourt & K. C h au d h u ri (dir.). História da expansão portuguesa. A formação do império. Lisboa: Círculo dc Leitores, 1998, v. I. O cheiro não caracteriza um e le m e n to do efêm ero, por ex em p lo , pois a cerâm ica do piso da sacristia da igreja d e São Francisco e m João Pessoa, “foi argamassada co m essência de mirra. O atrito das sandálias dos frades no chão p erfum ava todo o recinto ” . Quatro séculos

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espelhos. Usa ramos e galhos de árvores, flores, ervas, para traçar um percur­ so, atapetar as ruas, com tigelinhas fabrica luminárias. Sobre festa em honra ao casamento dc D. João em 1786, Tomás Antônio Gonzaga escreveu: “N este sítio Um formoso passeio se prepara: Ordena o sábio chefe que sc cortem D e verdes laranjeiras, muitos ramos, F m anda que se enterrem nesta praia, Fingindo largas ruas. Cada tronco, T em , debaixo das folhas, um a tábua sem lavor, nem pintura, q u e sustenta Doze tigelinhas no grosseiro barro. N o meio do passeio estão abertas Duas pequenas covas, pouco fundas, Q ue lagos se apelidam Sobre as bordas Ardem 1.000 tigelinhas.”24 O efêm ero rem ete diretam ente à cultura material da festa, fazendo dos materiais rotineiros, nem sempre baratos — como a cera consumida à farta — , grandes obras. D eve explorar o fausto, ser carregada de ornamentos, transfi­ gurando os materiais em elem entos nobres, imitando-os. T e m liberdade para conjugar e stuque e ouro, prata e flores, cera e retrato a óleo, misturando os materiais e suportes. O efêm ero delineia-se pelo campo imagético — arquitetura, pintura, e s­ cultura — com um forte senso de decoração. A decoração aqui não é adorno descartável, penduricalho, antes participa do ser, constituindo-o. Não pode ser abolida ou negada sob pena de perder, corroer e implodir o próprio ser. Pode-se conjugar os e lem entos do efêm ero de formas variáveis, recombinando-os de formas várias e em m om entos díspares, sem necessariam ente seguir um a única regra prescrita. Mas sem pre dentro de um determ inado topos retórico q u e não pode ser quebrado, sofrer ruído, gerando m al-entendido. O efêm ero conjuga ainda bailados, danças, coreografias, combates, máscaras, bailes, paradas, desfiles, procissões, comes e bebes, bandas de música, fogos de artifício. Tais elem entos acabam por lhe conferir forte con­ teú d o e apelo visuais q u e casam o m ovim ento contido, frenético, ritmado,

de História da Arte. A igreja de São Francisco, o convento de Santo Antonio e a Capela da Or­ dem Terceira do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro-João Pessoa: Bloch-G ovcrno do Estado, 1990, p. 79. 24 Cartas chilenas. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, especialm en te p. 233-55.

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alvoroçado, constante, dos bailados, das luzes, dos fogos, dos lenços com as construções estáticas. O arco de triunfo, arquitetura-chave na entrada e casamento reais, ocupa lugar definido e de destaque no cortejo. Do alto, gênios, querubins, a Fama podem derrubar flores, ervas, anunciar com trombetas o motivo da festa c som ente quando o príncipe — c/ou seu retrato — o ultrapassa, pode-se pro­ nunciar os vivas. Entre a voz alta, exaltada, o aceno do lenço branco e o arco há uma combinação entre movimento c estático. Ou ainda os carros alegóri­ cos que andam, puxados a cavalo, soltando fumaça, vinho, fogos e água, com personagens enfeitadas, caracterizadas como mouras, das arábias, da África, de índio ou m esmo fantasiadas de animais. O efêmero recorre à alegoria na construção de seu significado, no modo de definir o rei, a monarquia, ao estabelcccr os laços com a localidade. A alegoria é uma operação, em si, polissêmica, que participava de um m étodo imagina­ tivo que construía a arte efêmera. A retórica e alegoria não se restringiam a uma figuração circunscrita, localizada, fcchada, individualizada, antes relaciona-se com o conjunto. Cada peça desta construção efêmera — arcos, car­ ros, luminárias, dísticos — precisa estabelecer uma coerência entre si. uma relação orgânica como se fosse um grande livro lido nas ruas, praças, na ceno­ grafia e no cortejo. Surgia uma ordem discursiva presente no todo da festa, que desejava evitar qualquer sentido estrangeiro ao bom governo ou ao justo rei, daí a prem ente vigilância da câmara. 3. A arte efêmera será considerada tanto mais bela quanto mais for grandiosa, pela quantidade de materiais e recursos usados, pelo artifício do objeto e engenho do autor, pela capacidade de exacerbar a sensibilidade dos p rese n ­ tes, aguçar a curiosidade intelectiva do letrado, de usar com propriedade a alegoria para a ocasião, compatibilizando-a com o aparato visual da festa. Pa­ dre M anuel de Cerqueira 'Forres mesurava: “Admiração grande causou a todos que concorreram a ver engenhosa fábrica, o seu raro artifício, porém maior tiveram, quando ao som de trom ­ betas, charamelas, trompas, atabales começaram a correr foguetes soltos pelo ar dando muitas ocasiões de riso, pois p retendendo voar sem asas, ícaros desgraçados se precipitavam da maior altura. Outros lisonjeavam o gosto no brilhante de suas luzes e outros despertavam o contento dos que viam que subindo com alegres faíscas, desciam com tristes lágrimas. A traçaria com seu estrondo parecendo salva despertava as atenções, dos circunstantes para afirmarem ser régia a festa, pois real era a salva. Enfim pegaram fogo as candeias de pólvora que servindo de luminárias deram

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luzes para se ver, como incendiando-se os morteiros e girândolas com vio­ lentos ímpetos punham em graciosa desordem as figuras que rodeando no mais alto do aéreo elem ento com a claridade das chamas q ue delas saíam c com o estrondo que faziam queriam publicar a festa, que aplaudiam. N e s ­ te m esm o tem po se abriram muitas bombas, que não deixaram de divertir com o seu festivo estrondo.” ' 1 Estes recursos modelam o programa retórico da festa, expressando os atri­ butos reais e os compromissos entre aquela comunidade e o rei. Procuravam tocar e convencer pelo sensível o vassalo/súdito/súdito-cidadão — ator e es­ pectador. Aceleravam e exacerbavam os sentidos, tocando-os simultaneamente com fogos, vivas, salvas de canhão, tiros ao alto, gestos. A sim ultaneidade constitui-se num m étodo para obter a anuência do vassalo/súdito/súdito-cidadão, convencendo-o por meio dc uma economia afetiva criada entre o go­ vernante c o governado, bem como esta conjunção de fatores (tudo ao mesmo tempo agora) argamassavam a grandeza. Tal economia afetiva insistia na ami­ zade e no amor, desautorizando e repudiando a inimizade, o ódio, o rancor, a comoção. Tentavam, assim, controlar a sedução, ao tem po que a exerciam, pois causam pasmo, susto, delícia ao olhos, gosto aos ouvidos, choro pela morte, prazer aos corações, geral contentamento. Esta formulação semântica do efêmero permitia que se recorresse às ima­ gens do passado e do presente, projetando-as para o futuro. Condensava, assim, tem pos distintos, atualizando-os. Igualmente, a alegoria portava uma ambivalência de significados, remetia a um plano sobrenatural, metafísico, de emblemas, extrem am ente moralizado e que tenta induzir condutas. Tor­ na prese n te o ausen te (rei), ao transfigurá-lo num signo-ser. A imagem, assim, podia condensar e/ou sintetizar outras imagens. Logo, o efêm ero d e ­ signa e abarca uma série de elem entos diversos entre si, porém juntos, recombinados, com um maior ou menor núm ero de elem entos fazem a festa. Precisava-se da diversidade a fim de não cansar o ator-espectador, renovan­ do seu interesse e no intuito de não reiterar o igual, embora funcionasse na analogia, sem elhança e repetição, explorando-os. Esta multiplicidade cadenciava-se e temperava-se pela simbólica da monarquia/corpo místico e da teologia católica/cosmos cristão que conformavam a substância, a forma, o signo deste m undo e seu ideal de sociedade harmônica e hierarquizada. Aliás, no conjunto, o espetáculo imagético da festa configurava esta sociedade, poder e norma. A soberania, assim, expressava um poder que se retraduzia em matérias sensíveis, e estas têm capacidade de renovar constantem ente as formas pelas quais se manifestam.

25 J. A. C astcllo. O p. cit., v. III, p. 226.

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A arte efêmera não significa, contudo, improviso no uso das imagens, esco­ lha aleatória ou independente. Nesse período, recupera um conjunto dc gra­ vuras, ilustrações, discursos, tratados de arquitetura e pintura difundidos que informavam a construção de mausoléus, obeliscos, templos. A imagem ativa­ m ente participava desta retórica da persuasão c mediava a compreensão da política. Pela primeira vez, com a morte de D. João V em 1750,26 celebraram-se as exéquias reais em todo o império português e em algumas capitais européias, com destaque para os ritos realizados na igreja dc Santo Antônio dos P ortu­ gueses em Roma. Sua sombra recobriu o império dc Goa a Belém, Rio dc Janeiro, Salvador, passando por Lisboa, Viseu, Porto, São Paulo dc Luanda. Instaurava-se uma simultaneidade festiva que reverenciava o passamento real, tornando-o u m a persotia onipresente ao explicitar seu corpo místico. O volu­ me e a grandeza das festas atestavam a majestade do rei. Tem a preferencial da festa barroca,27 a morte em si denota a provisoriedade da vida. D esde o início, seu movimento leva inexoravelmente ã morte. Há um jogo de contrá­ rios entre a vitalidade e o inerte, a par de seu conteúdo metafísico, cristão c sagrado. O assunto já enfatizava o caráter efêmero da vida e, na forma, valeuse da arquitetura efêmera com forte presença dos mausoléus. Aí, o esqueleto representava a morte, lembrando um elem ento demasiado humano, que to­ dos portam em vida, mas, descarnado, torna-se em blem a da morte. N o m au­ soléu erguido na capela de Santana em Paracatu nas exéquias da infanta D. Maria Francisca Dorotéia, um dos quatro esqueletos ameaçava e mostrava a força enigmática desta senhora: “Q ue és vivo, e que hás de morrer E certo, e ninguém o ignora; Mas quando há de ser a hora Não o podes tu saber.” 2*

R. Cl Smith. “Os mausoléus dc D. João V nas quatro partes do m un do ", in: Revista rta Faculdade de Letras. Universidade dc Lisboa, t. XXI, 2.J serie, n." 1, 1955. J. M. Tedim . Festas barrocas no Brasil colonial. Exéquias de D. João V em S. Salvador da Bafa e S. João delRei. Texto do autor. \ cr tam bém : Relação das solernnissimas exéquias, que a Catedral de Santa M aria de Belém do Grao-Práez a saudosa memória do seu augusto fundador ofdelissim o monarca D. João I' (1752); Re/ação panegyrica das honras funeraes, que à memória do muito alto, e muito poderoso senhor reyfidelissimo D. João 1,' consagrou a cidade da Bahia (1753), Gemidos seráficos, demonstrações sentidas e obséquios dolomsos nas exéquias funerais, que pela morte do fidelissimo, e augustissimo rey o senhor D. João Vfes celebrar nos conventos da provincia de Santo Antonio do Brasil, entre Bahia e Pernambuco (1755). - O gosto pelo barroco de D. João V patrocinou a igreja patriarcal dc Lisboa, o C o n v en to dc Mafra, a biblioteca da Universidade de Lisboa, além de ter assistido a entrada do barroco italiano em Portugal. R. C. Smith. Op. cit.: R. Bebiano. D. João K o espetáculo epoder. Aveiro: Livraria Estante, 1987. -h Exposição F ú n e b re c Simbólica das exéquia s q ue a memorável morte da Sereníssima Sra.

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Os esqueletos-1' ladeavam m onum entos fúnebres a D. João V em Salvador, São João dcl-Rei, e D. Maria I em Salvador no início do século XIX. R e peti­ dos, os esqueletos lembravam a cada um o destino inevitável, inspirando res­ peito e temor. Estam pas do castrum f/oloris feito cm 1707 para as exéquias dc D. Pedro II em Roma dc Carlos F o ntana’" circulavam pelo reino, informando as construções dos mausoléus no Brasil.’1 Para as exéquias de D. João V, o arquiteto Paulo Franco da Silva baseou-se nele para o mausoléu em Salvador, convertendo o mármore e as pedrarias cm madeira, panos pintados, estuque. Já o d esenho do mausoléu de São João del-Rei riscado pelo engenheiro mili­ tar Antônio de Morais Sarmento foi gravado por G. F Debrie — autor da estam pa de Viseu — , difundindo-se pelo reino. Esta arte efêmera do mausoléu joanino seguia uma regra comum: o féretro — catafalco — sob um baldaquino cncortinado, é encimado por uma coroa que se dcstaca no dossel. Os esqueletos carregam a coroa, o manto púrpura e o cetro, objetos reais e a coroa, de grande proporção, presentificam o rei e lem bram que não pertence mais a este mundo. O mausoléu dentro da igreja ligava-se às figuras da morte, panos pretos estendidos, estátuas da Fé, Cari­ dade, Justiça, painéis que misturam o rei, santos, Deus, Cristo, retratos do defunto, tarjas com textos laudatórios, figuras dos atributos reais. A repetição desta regra formal unificava e homogeneizava uma dada realeza, reforçando seu caráter onipresente. Repare-se que estes textos informavam a construção imagética, definiam padrões estéticos, difundiam um dado gosto, de modo que a imagem impres­ sa — gravura — funcionava como uma via de comunicação do efêmero. Ser­ via para informar e alimentar este circuito, sendo Cesar R ipa’’’ assiduam ente consultado, como um catálogo imagético das alegorias e seus significados, o

D . M aria Francisca D orotéia Infanta dc P o rtu g al... por João dc Souza Tavares. In: J. A. C astello. O p. cit., v. III, t. 4, 1976, p. 238. R obcrt S m ith afirm a sobre a novidade do esq u eleto : “prática c e rta m e n te in tro d u zid a em Portugal pelo escu lto r C láudio de L aprade, q u e execu to u o tú m u lo do bispo d c M iranda cm Vista A legre". O p. cit., p. 127. Im p o rtan te arq u iteto barroco italiano, m estre cm cenografia rom ana e pom pas fúnebres. Usa a coroa para finalizar o m ausoléu, em seu cu m e c centro. ” E ncontra-se na B iblioteca N acional ainda um a série destas estam pas. N ircu C avalcanti arrola um a série d e autores e obras de arq u itetu ra mais anunciadas pelos livreiros no Rio de Janeiro setccentista; destaco: Architectureà la mor/e, ousont/esnouveauxdessinspourladecora tion des bâtiments et jardins. De la distribuition et décoration des maisons plaisance, Dictionnaire d'architecture Civile et MUitaire, Le petir galerie de Louvre dessinée, Le sacré de Louis A T dar/s 1’Eg/ise de Reiws, Manière d'eclairer les n/es pendant la nu ir, Manière de graver à !'eau forte. Dictionnaire historique et mithologique des emb/èmes, allegories, in: .4 cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: as muralhas, sua gente, os construtores (1710-1810). O p. cit.. p. 459-60. ’’ R. S m ith. O p. cit. ■ ” Baroque a n d Rococo — P ictural Imagery. E d w ard A. M a se r (ed .). N o v a York: D o v e r Publications Inc., 1972.

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que acabava definindo um acervo imagético e as interpretações possíveis e/ 011 autorizadas. Dessa maneira, tentava-se estabilizar o signo e seu significa­ do, dicionarizando-o. Ainda a Relação dc 1826 a propósito da entrada de D. Pedro I descreve uma figura da Providência “designada, como indica Cesar Ripa, por uma matrona de dois rostos, por presente o Passado e o Futuro, coroada de espigas de trigo e cachos dc uvas, tendo cm uma das Mãos as chaves e na outra o leme. Ou ainda as alegorias dos coches reais de 1829 no Brasil seguiam a iconologia de Cesar Ripa” .'4 As imagens, retratos, luminá­ rias, mausoléus, obeliscos, templos, gênios, repetidos, decalcados c/ou ins­ pirados nas gravuras, amplificavam e difundiam o significado do efêmero, pautando-se por interpretações letradas e artísticas. Há preocupação em estabilizar o signo. No início do século XIX, sobre­ tudo com a transplantação da corte para o Brasil, enfatiza-se a relação harmo­ niosa entre o governante e a América. Ela é representada com a figura de indígena, cercada pela natureza tropical, ao lado de Lísia, da Europa, Ásia e África. Ela surge na arte efêmera, cm arcos do triunfo, luminárias, transpa­ rências, na rua, na praça tanto quanto em peças teatrais encenadas nas noites de determinadas festas: aniversário dc D. João e D. Pedro e suas aclamações. Nessas peças, a América é um personagem, não apenas um lugar ou um cená­ rio, ela fala e explicita sua lealdade ao governante, seu horror à revolução ou à ausência do rei, ela sabe que progride porque conta com o rei. ’5 Em uma iluminação erguida em 1808, a América, de manto real, acompa­ nhada da África, que, de joelhos, oferecia suas riquezas, ofertava nas mãos seu coração para o príncipe, cujo retrato estava iluminado ao lado. Em outra ponta, Lísia chorava sua partida. Cada vez mais, enlaçava-se a figura da América a de D. João. O senado da câmara do Rio providenciou uma iluminação no Largo do Paço com este tema. N o arco central, surgia uma efígie do príncipe regente cercado por dois gênios que indicavam o Brasil, “o qual na figura de um gentil, e engraçado índio, todo absorto de prazer, ofertava de joelhos a S. A. os seus tesouros, para os quais apontava com a mão esquerda; e sustentando com a mão direita o coração oferecia ao mesmo real senhor com estas palavras, que se liam, como saindo-lhe da boca: — Mais que tudo o Coração V a Ao longe, via-se a

14 F. M. dos S. Santos. “A rtistas do Rio d c Janeiro C olonial”, in: Terceiro Congresso He História Nacional. Rio d e Janeiro: Im prensa N acional, v. 8, 1942, p. 437-8. A resp eito d c textos im pressos do século X V III q u e inform am a pin tu ra sacra: L. Jardim . “A pin tu ra decorativa em algum as igrejas antigas de M inas” , in: Revista Ho Patrimônio Histórico e Artístico Nacio­ nal, 3 , 1939; H annah Levy. “M odelos europeus na pintura colonial” , in: Revista Ho Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 8, 1944. 33 G. F. da C outinho. 0 triunfo Ha América. Rio de Janeiro: Im p. Régia, 1810. “ L. G. dos Santos (P adre P erereca). Memórias p ara se rvirá História Ho Reino Ho Brasil. Belo H orizonte-São Paulo: Itatiaia-E d u sp , 1981, t. I, p. 181. Ver tam bém : Preparativos no Rio d e Janeiro para receb er a fam ília real. B N R J, M n. 11-35, 4, 1. E sta sen te n ç a Mais que tuHo o

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entrada do porto do Rio, embarcações, o Pão de Açúcar e a nau Príncipe Real, que passava, saudada pelas fortalezas. A iluminação divulgava sua efígie, pon­ do-a cm circulação, e inventava cenas povoadas de gênios, além de emblemas e figuras enraizadas na realidade empírica na qual se inseria o soberano. Em 1815, a América passa a portar a coroa — quando da elevação do Brasil a reino. Tal mudança retira a América do estado de natureza, de uma dada infância, fazendo-a adentrar o reino da política à medida que compartilha de um símbo­ lo desta magnitude e que define a realeza. Padre Perereca dizia: ”Já o índio Brasil havia deposto o cocar, e as plumas, com que se adorna­ ra até o dia 16 de dezem bro dc 1815, e recebido da m unificente mão do sr. D. João VI a brilhante coroa com que cinge hoje a sua fronte, e o real manto de púrpura, com que cobre a sua antiga nudez.” '7 E m 1818, na aclamação de D. João VI, uma luminária da casa do C onse­ lheiro Amaro Velho da Silva, destacava à esquerda “a América largando o cocar, e em ação de pôr a Coroa Real na cabeça” . A América aparecia em luminárias, hinos, poesia, arcos do triunfo, povoando a cidade. N o m om ento da independência, a América jura fidelidade a D. Pedro, repudia o despotismo lusitano, lamenta o passado e inaugura um novo te m ­ po. Parece importante que várias peças teatrais da década de 1810 definis­ sem o papel e a sorte da América. Na União Venturosa,38 apresentada em 1810, a América entra no palco n um carro majestoso puxado por americanos, num a arte efêm era bastante com um à festa do dia. Ora, estas caracterizações tea­ trais, nas alegorias pintadas nos murais de algumas residências — como da M arquesa de Santos — ,39 em meio ao cotidiano e que se repetem , vão estabi­ lizando um significado da América,pacífica, leal, obediente, que reconhece sua infância política e o quanto precisa do monarca. Os gênios, os emblemas, as alegorias espalhavam-se em discursos e ima­ gens. N ecessariam ente formulavam o ser: indivíduos, lugares, figuras morais — como o Rio de Janeiro, a dinastia de Bragança, a Justiça — misturando-se ao m undo visível e perceptível. N o entanto, aludiam à esfera do espírito, correlata a cada uma das coisas elencadas e, parecia, os acompanhava desde o seu nascimento, zelando por seu destino. Por isso, tais representações reme-

coração será im en sa m e n te reiterada pelas figuras da A m érica e do índio Brasil a D. Pedro nas celebrações cívicas em torno d e ste im perador. 37 O p. cit., t. II, p. 151. 38 A. B. L eite. A união venturosa. Rio de Janeiro: Im pressão Régia, 1810. T am b é m com pensa conhecer: L. A. da S. Souza. A discórdia ajustada. Rio d e Janeiro: Im pressão Régia, 1819, na qual o Brasil aparece na figura d e um índio com plum as, arm ado de lança, arco c seta, cocar na cabeça com arm as do Brasil. 39 F. M. dos Santos. O p. cit.

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ciam à moral, evidenciando qualidades, dando a conhecer ao espectador-ator que o m undo não se resumia no empírico, ao que se percebia à primeira vista. No seu volume c conjunto, tais representações contribuíam para reforçar e reiterar o caráter metafísico do governante, seu corpo místico. 4. N o efêmero, destacava-se um gosto pelo artifício e novidade, sobretudo fabricar carros, arcos, luminárias, transparências, ritmando o fogo, a água, a fumaça, controlando o movimento. Um aspecto pouco visível — o maquinário — era motivo de elogio e servia tam bém para avaliar esta arte. Elogiava-se o engenho que engendra o artifício e resulta num a novidade, algo pouco visto que suscitava comentários e encantamento.'"1A m áquina que levou a estátua de D. José I ao Terreiro do Paço em Lisboa m ereceu atenção à parte, transformando-se num espetáculo anterior a sua inauguração, que mobilizou a ci­ dade e seu engenho qualificava a própria estátua e seus autores. Uma boa descrição de carros alegóricos — arte efêmera em movimento — revelava suas engrenagens c como produzia o movimento. Os carros alegóricos solta­ vam fumaça, jorravam água, com mecanismos que despertavam a curiosida­ de do espectador/ator e, pelo seu efeito, encantavam. A construção dos carros, a distribuição das danças, touradas, cavalhadas, encamisadas, ficava, em geral, a cargo dos ofícios mecânicos,'11 ordenadas pela câmara, que cobrava resultados e recomendava punição em caso de desobe­ diência. N esta fabricação tinha brecha para invenção, não sendo obrigatoria­ m ente barata ou qualquer coisa. C onstantem ente reclamava-se do custo da cera e do tem po necessário para preparar a festa. A câmara responde pela organização da festa, sua notícia pela vila e arredores, distribui as tarefas, e n ­ com enda riscos, seleciona os desenhos. O preparo da arte efêmera envolvia uma porção de ofícios e trabalhos, sendo o riscado uma tarefa importante atribuído em geral ao artista, cenógrafo, mestre-de-obras,42 todos na localida­ de, de maior proeminência. A aprovação do riscado e sua realização au m e n ta ­ vam o prestígio daquele artista, sendo mais vezes convidado a participar des­ tes eventos, bem como vai construindo uma obra.43 A arte efêm era chama

40 J. A. Maravall. La cultura dei barroco. Ana/isi de una strutura storica. Bolonha: II M ulino, 1985. 41 Por ocasião da aclam ação d c D. João, a câm ara de Sabará lem brava: “os ju izes c oficiais m ecânicos segu n d o o antigo co stu m c são obrigados a dar um a dança p ú b lica” , cobrando tam bém um a q u an tia em espécie. “ 1817 — casam ento d c D. P ed ro — F estas cm Sabará” , in: Revista do Archivo Público Mineiro. Belo H orizonte: Im prensa Official, 1906, p. 722-4. 4- N ireu C avalcanti elen ca vinte cenógrafos c onze g ravadores/desenhistas a tu an tes no Rio d e Janeiro e n tre 1751-1810. O p. cit., p. 488. 41 C abe ressaltar a dificuldade c raridade, na A m érica p ortuguesa c no Brasil dc início do

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para si um m undo do trabalho anterior à festa, envolve uma negociação com a câmara para obter pagamentos, definir preços e custos, de armações, ceno­ grafias, fogos, luminárias, trabalhadores dc vários ofícios: fogueteiro, escul­ tor, músico, pintor, ator, cantor, bailarino, bufo, mestre-de-dança, mestre-deobra, riscador, pedreiro, carpinteiro, costureira, alfaiate, cuteleiro, sapateiro e o tem po dos preparativos.44 Uma contrapartida deste trabalho que envolve tempo, material, esforço de cada um, aparecia na realização das danças, contradanças, cavalhadas, touros, na apresentação dos carros, mais do que os arcos erguidos, as ruas atapetadas e janelas alcatifadas, pois na noite com as luminárias, entre música, comes e bebes ou nestas apresentações, os oficiais mecânicos, os negros e mulatos por vezes protagonizam mais a cena, são o centro das atenções e da ação. Bem como e ao final, a fartura de comes e bebes se contraporia à cupidez do coti­ diano do m undo do trabalho. 5. E m meio à arte efêmera aparecia o motivo desta festa: o retrato do rei, que funcionava como um dispositivo que o trazia à localidade. Como diz Louis Marin sobre o retrato: “il est re-présentation d ’un absent dans 1’érection de son m o n u m e n t... Ce portrait dans son mystère serait ce corps sacramentei qui à la fois opérerait le corps politique du royaume dans le corps historique du prince e t relèverait le corps historique dans le corps politique” .43 O efêm ero privilegiava a imagem inerente ao conceito, à idéia, tornando-a uma via comunicativa que educa os hom ens e seus sentidos. O retrato apare­ cia conjugado a uma série de elem entos que ao circundá-lo — porque, basi­ camente, ocupa o centro — encerram o seu significado. Via-se nos retratos o busto do governante ou, num a imagem com um à realeza (portuguesa), o monarca de pé, estende a mão direita, como se cedesse a um beija-mão e/ou abençoasse algum objeto. O rei aparecia nas transparências, com seus títulos escritos nas luminárias, entre os arcos, com o retrato a óleo, presentificando-o em cada ocasião. A noite, as luminárias recontam o tem a do dia, saúdam com m onum entos de

século X IX, de o efêm ero ultrapassar esta condição, erigindo-se num a arte ou m o n u m en to perm an en te. 44 E m bora provisório, o efêm ero exigia cuidado na sua construção. O cenário da celebração do nascim ento do p rim ogênito de D. M aria I levou mais ou m enos cem dias em sua arm a­ ção. A pud: N . C avalvanti. O p. cit., p. 532. 45 Le portrait du roi. Paris: M in u it, 1981, p. 255. Tradução: “ [...] ele é (re)presentação da fundação de seu m o n u m e n to ... E ste retrato no seu m istério seria o corpo sacram ental que sim u ltan eam en te operaria o corpo político do reino no corpo histórico do príncipe e rev e­ laria o corpo histórico no corpo político” .

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curta duração, feitos para durar o tem po da festa. Dessa maneira, esgotava-se a materialidade da festa, o fogo, a água, a cera, consumia-se o pavio, podia-se reaproveitar a madeira, o estuque, os panos, mas havia os rasgos, os pregos, as perdas. Ora o provisório era ditado pelo tem po dc duração destes materiais, ora pela sua pouca durabilidade, feitos para servir a ocasião, 'lodavia, alcgoricamente, esta arquitetura falante referia-se a um corpo perm anente e está­ vel: a monarquia e seu rei. Estes não se esgotavam ou pioravam porque o efêmero findava, estavam assim dissociados um do outro cm duração. N a economia moral do dom e dos afetos,46 os atributos reais aparecem na arte efêmera. Cercado pelas figuras da Caridade, Fama, Justiça, Triunfo, pin­ turas nos tetos das varandas, da América, a festa real marca c assegura o vín­ culo corporativo e pessoal entre a vila, o súdito-rei. Por ocasião das exéquias de D. João V, a câmara de Vila Rica recomendava que os mais pobres usassem uma insígnia preta no chapéu, um ramo dc fumo, amarrando este elo pessoal com o defunto.47 Na aclamação e coroação de D. Pedro I usou-se à farta, sob a batuta do Estado, o verde e amarelo. Nesta economia moral pesava o dar, receber, retribuir, elaborada por meio de uma série de predicados que acom­ panhavam o rei, mesuras no falar, expressões de amizade, amor, carinho, jus­ tiça, direcionando a sedução do espetáculo, evitando que se perdesse num m undo caótico de sentimentos. Tais mesuras e etiquetas exigiam um contro­ le de si,4s abafavam e constrangiam a espontaneidade, transformando esta economia moral num a cadeia dc atos e trocas que vão estruturando as rela­ ções políticas e sociais. N e m mesmo o rei escapava destas contingências im­ postas pela economia de favor, embora dela muito se beneficiasse. Os corpos, gestos, atos, transcreviam visualmente esta obediência real. A festa assim ritualizava as relações sociais, celebrando a continuidade do poder e a estabi­ lidade das instituições em que cada um representava seu papel. A arte efêmera vinha modulada por uma carga discursiva que adjetivava os

4h A. M. H cspanha & A. B. Xavier. “A representação da sociedade e do p o d er” , in: História de Portugal. Lisboa: C írculo d e L eitores, v. 4: “O Antigo R egim e (1620-1807)” , 1993. Esta discussão tam bém tem ocupado o N úcleo de E stu d o s H istória e L in g u ag en s Políticas: Razão, S en tim en to s e S ensibilidades, sediado na U nicam p c coordenado pela Professora Stella Bresciani. 47 “F u n eraes de D. João V — Auto dc V eneração” , in: Revista do An/uivo Público Mineiro. Belo H orizonte: Im pren sa d e M inas G erais, 1906. 48 Várias construções efêm eras, so b retu d o ilum inações, possuíam um passeio público, c as relações indicavam a sua construção e serviam com o áreas dc circulação. O perfeito pedagogo na arte de ensinar d e João Rosado deV illa-Lobos Vasconcelos. Lisboa: T yp. R ollandiana, 1784, ensinava ao tra n se u n te com o sc portar n este espaço, com civilidade, m odéstia, sisu ­ dez, gravidade tan to no corpo com o nos vestidos, cuid an d o para não falar dos d efeito s na conversação. Ver tam b ém M. do C. T. Rainho. “A distinção c suas norm as: leituras e leito ­ res dos m anuais d e etiq u e ta e civilidade — Rio dc Janeiro, século X IX ” , in: Acervo — Revista do Arquivo Nacional, 8(Vz), 1995.

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sujeitos à farta: a “Bahia pacificada, Minas consternada, América lacrimosa, iluminação decorosa, multidão dc todas as classes, pasmosa, vestida luzida e dec en te m e n te, decente iluminação, serviçais asseados, povo g e m e ” , sendo um m om ento capital o do “público regozijo” , quando o rei e seu povo se encontram num só sentimento, atados cm seus corações, afetivamente. Este instante pode ser qualificado pela expressão do povo, não há “rumores, tu ­ multos, vozerio” , desencontro e discórdia das vozes, antes são “vozes inteli­ gíveis: É impossível descrcver-se a Enfase, o Calor, e a imensidade dos Vivas, que então subirão ao C é u ” .49 O u então o “público regozijo” transparecia naquela simultaneidade de e le­ m entos efêmeros: canhões das fortalezas, salvas das embarcações, vivas, fu­ maça, fogos dc artifício, bandas, cornetas, acenos com lenços, lágrimas nos olhos, contidos gestos do rei, neste instante presum e-se um encontro inefá­ vel entre o m ando paternal e a obediência filial, que teatraliza publicam ente esta economia afetiva entre o monarca e o governado, esta economia moral do dom, atravessada por expressões emotivas que exaltavam determ inados sentimentos. O “público regozijo” configurava-se pelo efêmero, em sua si­ m ultaneidade, inscrevendo-se no corpo da vila, na experiência de cada um e estabelecendo um laço político.111 Dessa maneira, as cerimônias perm item entrever os mecanismos sociais de comunicação e consolidação do poder monárquico. E m outra direção, a arte efêmera participava da memória de cada um e coletiva. D espertada por algum elem ento empírico, material, um índice do presente, a memória remetia ao passado, ao visto ali, naquele lugar, fosse arco, luminária, transparência, que ativava a fala daquele que lembra e passa a recontar o q ue viu e sentiu. A imagem detona a memória, a instila, e con­ densa as imagens que portam esta carga afetiva. N u m a sociedade fortem ente marcada pela oralidade, esta memória acesa sobretudo pela percepção visual, podia condensar vários m om entos do passado. Todos, a princípio, erguidos em honra do rei. O tem po rememorado vinha carregado de espacialidades, suportes materiais, representações, porque naquele lugar tinha-se visto esta ou aquela armação, este ou aquele carro, um belo arco de triunfo. O efêm ero aí voltava para a esfera das vivências, sem necessariamente ordenar-se pela escrita de uma relação. Este recontar, esta rememoração, ensinava ao visitan­ te, aos filhos, lembrava aos vizinhos, o que tinha se passado naquele lugar e, em tese, reatualizava a figura real.

4,) José Paulo D ias Jorge. “ F estas no T iju co em 1822” , in: Revista do Arc/iivo Público Mineiro. B elo H orizonte: Im p ren sa O ficial, Fascículo III e IV, 1900, 810. 3,1 Ver a descrição feita por P ad re P erereca do público regozijo na aclam ação de D. João VI no Rio dc Janeiro, in: O p. cit. I. L. C. Souza. “ D. João VI no Rio de Janeiro: e n tre festas e rep resen taçõ e s” . T ex to ap resen tad o no S em inário Internacional D. João VI: um Rei Acla­ m ado na A m érica. M useu H istórico N acional, 1999.

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Ora, num império oceânico de vastas e partidas possessões, o efêm ero c sua abertura para materiais: flores, folhas, ervas, madeira, e no âmbito da memória social poderia abrir uma brecha para a cor local, entrelaçando o rei c a localidade. Mantinha-se uma prática festiva em toda parte, sem perder um certo tom local que adensava e mediava a noção de pertcncim cnto a um dado corpo político.

□ □□ I a r a

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C a r v a l h o

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é m e s tra e m M u ltim c io s c d o u to ra e m H istó ria

S o cial, títu lo s o b tid o s n a U n iv e r s id a d e E s t a d u a l d e C a m p i n a s ( U n ic a m p ) . P ro fe s s o ra d a U n i v e r s i d a d e E s t a d u a l P a u lis ta ( U n e s p ) d e H is tó r ia M o d e r n a c H is tó r ia S o cial d a C u ltu ra e n tr e 1988-99, in te g ra n d o , a tu a lm e n te , se u P ro g ra m a d e P ó s -G ra d u a ç ã o c m H i s t ó r i a . P u b l i c o u P á tria C oroada. 0 B r a s il Como C orpo P olítico A utônom o. 1 7 8 0 -1 8 3 1 . S ã o P a u l o : E d i t o r a U n e s p e A Independência do B ra sil. R i o d e J a n e i r o : Z a h a r .

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o . T ra ta -se d e u m a p rim e ira in te rp re ta ç ã o da categ o ria do e f ê m e r o d e n tro

d a litu rg ia real, e n t r e 1 7 0 8 -1 8 2 0 n o m u n d o lu so -b ra s ile iro . A t e n t a - s e às c a r a c te r ís ti­ cas do e fê m e ro , à su a elab o ra ç ã o c se u f u n c io n a m e n to d e n tro da a rq u ite tu ra do p o d e r m o n árq u ico .

Forro da nave de autoria de Manuel da Costa Ataíde. Capela da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Adalgisa Arantes Campos. Roteiro sagrado: monumentos religiosos de Ouro Preto. Belo Horizonte: Tratos Culturais-Editora Francisco Inácio Peixoto, 2000. Foto André Ryoki.

O FIM DA FESTA. MÚSICA, GOSTO E SOCIEDADE NO TEM PO DE D. JOÃO VI M

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a u r í c i o

o n t e i r o

“ F e s t a c u m jo go, m a s u m jo g o s o l e n e , r e g u l a m e n t a d o , s ig n ific a ­ tivo, i m a g e m d o q u e n ã o é o rd in á ri o, d e u m e s t a d o e m q u e os e sf o r­ ços, são rit m o s d e r e d e n ç ã o . C e l e b r a - s e a l g u m a c ois a c u m p r i n d o - a , o u r e p r e s e n t a n d o - a n o s e u m a is p u r o c b e l o e s t a d o . A f e s ta a c a b a d a , n a d a d e v e sob rar: C in z a s , g u i r l a n d a s p is a d a s . ” P

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Tel Quel,

1942

1. O s f r a n c e s e s , ou o mar? Para a família real portuguesa, não existiram dúvidas. Certo de qu e seria o melhor caminho para Portugal e para a h e g e ­ monia sobre as colônias, o Príncipe R egente D. João VI embarcou pelo Atlân­ tico rumo à mais próspera e maior possessão lusitana, o Brasil. Junto com a esquadra inglesa e seu séquito monárquico, trouxe o que de mais significati­ vo havia para o restabelecim ento e reestruturação da Corte em terras e mares já dantes conquistados e navegados. Trouxe tam bém riquezas em forma dos numerários e trajes; trouxe ainda — o que não seria a primeira preocupação de um monarca — sua biblioteca e um a série de costumes e práticas cujas raízes se entrecruzavam com as mais refinadas tradições das monarquias e u ­ ropéias. A vinda e a instalação da Corte provocou euforia cultural na colônia e par­ ticularm ente na cidade do Rio de Janeiro, que não tinha vivido todo esse m ovim ento em três séculos de colonização. Um lugar que se assemelhava, “fazendo-lhe muito favor” , segundo Luís dos Santos Marrocos, aos distritos

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“mais porcos c imundos", do Bairro Alto dc Lisboa, passara a ter “planos e projetos literários” .' Ao desembarcar no Rio de Janeiro em 1808 a família real teve recepção das mais faustosas, uma mistura tropical de obrigação de vassalagem com d e ­ monstração da curiosidade colonial. Até aqui, compreensível. Se, para os ha­ bitantes do Rio de Janeiro, a procissão real, a rainha e seu príncipe exibiram modos diferentes, para a Corte, era preciso, no mínimo, transformar o com ­ portam ento colonial para suportar o exílio. Além disso era im portante re­ construir o cenário do Rio dc Janeiro para torná-lo um espaço possível de sc viver. O inglês John Luccock, que esteve no Brasil entre 1808 e 1818, observou que o Rio de Janeiro já apresentava um certo desenvolvim ento do que ele imagina ser típico comportam ento urbano: a maneira mais cerimoniosa de viver e se relacionar com as pessoas. “São os brasileiros de classe média aqueles que com mais agudeza sentem e sinceram ente percebem esta alteração. T am bém os pobres partilham, pois sempre que os senhores e os patrões se reúnem , seus subalternos e escravos o acompanham, sustendo c fazendo uma corte mais hum ilde, mas com desenvoltura sem elhante e urbanidade imitada. Entre seus superio­ res, as cartas, as músicas c as frutas preenchiam o serão [...].” ’ A instalação da família real no Brasil começou a mudar os hábitos e os costumes dos colonos, a sugerir um novo tipo de gosto por determ inadas for­ mas de andar, freqüentar reuniões, comer e ouvir música. Tudo isso era o reflexo do desenvolvimento urbano proporcionado pela instalação da Corte. Foi a época do cerimonial em detrim ento dos ajustes ocasionais. Se as regras de com portam ento foram comuns para as monarquias e nobrezas, para as camadas populares, objeto de imitação ou conjuro. Imitava-se o modo da an­ dar, de sentar, comer e ouvir música, ou execrava-os! A tradição portuguesa com as práticas cortesãs remonta a uma historicidade que se funde à própria história da monarquia. O envolvimento dos m onar­

1 L uís Joaquim dos Santos M arrocos. C arta n.“ 6 dc 24 dc o u tu b ro dc 1811. Anaes Ha Biblio­ teca Nacional, Rio de Janeiro: M E C , ZJ7:29-446, 1939. Cf. João C ruz C osta. “As idéias novas” , in: Sérgio B uarque dc H olanda (org.). História geral Ha civilização brasileira, tom o II, vol. 1. 6.J cd. São Paulo: D ifel, p. 181-2. Sobre a qu estão do gosto, é im p o rtan te verifi­ car: W aldenyr Caldas. Uma utopia Ho gosto. São Paulo: B rasiliensc, 1988, 140 p.; E d m u n d B urke. Uma investigação filosófica sobre a origem He nossas iHéias do sublime e Ho belo. T radução d c E nid A breu D obránszky. São P aulo-C am pinas: P apirus-U nicam p.; L uc Fcrry. Honio aestheticus — a invenção Ho gosto na era Hemocrãtica. Tradução: E liana M aria d c M elo Souza. São Paulo: Ensaio, s.d. 2 John L uccock. Notas sobre o Rio He Janeiro e partes meridionais Ho Brasil. Belo H orizonte: Itatiaia, 1975, p. 64.

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cas portugueses com a prática da música foi tão forte, solene e duradouro que houve, já no reinado de D. João V, incentivo à ida de compositores italianos para Portugal. Um dos episódios dessa investida portuguesa foi a contratação do compositor italiano Alessandro Scarlatti, um dos maiores representantes da ópera napolitana e romana. Scarlatti foi professor de Carlos Seixas c da infanta Maria Bárbara, mestre da capela real, onde dirigiu um grupo de aproxim adam ente oitenta músicos, entre cantores e instrumentistas. Entre os cantores, é importante ressaltar o gosto por um determ inado timbre, que algumas décadas depois ainda podia scr observado na corte dc D. João VI no Brasil: “Entre os cantores estava representada a elasse dos castratti, como em todas as capelas que se prezassem. Muitas crianças do sexo masculino foram desvirilizadas nesses tempos na Itália, com o consentimento, quando não por expressa vontade, das pessoas que deviam olhar por elas. A probabili­ dade de virem a ser cantores excepcionais era pequena, mas se tivessem essa sorte fariam a fortuna da família, porque o negócio dos castratti se tornara rendoso.” ’ Era importante ter e manter entre os músicos da Capela Real os melhores intérpretes que fosse possível contratar; essa medida, na verdade um ato para o brilhantismo da nobreza e da vida cortesã punha o monarca e seu séquito no patamar das melhores e mais opulentas cortes européias. C om D. Maria I, a vida musical teve uma certa retração, mas continuou a m anter a opulência cortesã dos portugueses. Dom enico Cimarosa, Antonio Salieri e Giovanni Paisiello foram os compositores mais influentes e que mais tiveram obras interpretadas no breve reinado de D. Maria. N esse período, particularm ente a partir de 30 de junho de 1793, foi inaugurado o Teatro de São Carlos, cujo modelo veio da Itália de um a outra casa de m esm o nome. O envolvim ento da Corte portuguesa com o gosto pela ópera foi tão tradicional qu e chegou ao Brasil na instalação da Corte e se refletiu no seu compositor mais ilustre — pelo m enos o mais bajulado — em terras tropicais: Marcos Portugal. N o Brasil escravista e estamental as festas com suas músicas de corte e gala serviram para reunir as pessoas, atenuar as diferenças sociais e em segui­ da, dispersar. A música encom endada servia tam bém para divertir a alta clas­ se da sociedade, para dar profundeza ao culto coletivo e intensificar o e sp le n ­ dor das atividades públicas. As representações foram intensas nos inícios do

3 João de F reitas Branco. História da música portuguesa. Lisboa: E uropa-A m érica, s.d., p. 100 (grifo m eu).

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século XIX e visaram, dc certa maneira, reerguer o poder real e sua prática de corte, que já vinha sendo corroída e enfraquecida desde os tem pos do todopoderoso Marquês de Pombal. Nesse sentido, na funcionalidade e na m u ­ dança de gosto e sentimento, reitera Arnokl Hauscr: “As lágrimas que se verteram no século XVIII, provocadas por roman­ ces, peças de teatro, composições musicais, não são apenas indícios de uma alteração no gosto e da passagem dos valores estéticos do delicado e reser­ vado para o violento e indiscreto; assinalam ao m esmo tempo, o início de uma nova fase no desenvolvimento dessa sensibilidade européia de que o gótico foi o triunfo inicial c o século XIX viria a ser o ponto mais elevado por ela atingido.”4 Nos treze anos de permanência da Corte no Brasil esses costumes se fixa­ ram e deram popularidade à Corte de D. João VI e, essa sensibilidade de que fala Arnold Hauser, penetrou no fluxo das emoções dos colonos que, se não puderam ver e ouvir as práticas da Corte, pelo menos souberam delas.

2. A música de entretenim ento, com suas sinfonias e aberturas, árias e can­ ções, já havia herdado um outro estilo, tam bém considerado, segundo o musicólogo Charles Rosen,1 como um “gênero novo e muito m oderno” : a ópera italiana. O gosto pela ópera clássica era um dos hábitos cultivados pela famí­ lia real portuguesa, sobretudo pelo príncipe regente e depois rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, D. João VI. Gostar do gênero operístico significava decodificar as estilísticas do virtuosismo vocal e instrumental e ainda com preender as dramatizações da narrativa clássica. A ópera italiana do final do século XVIII e da primeira m etade do século seguinte reservava o caráter virtuosístico predom inantem ente aos cantores castratti. Com o e x te n ­ são desse gosto, D. João VI incentivou a vinda desses cantores para a colônia, transportando, assim, o cenário da prática musical cortesã para o Rio de Janeiro. Os compositores Marcos Portugal, o preferido da Corte de D. João VI e Sigismund Ritter von N eukom m , o aluno predileto de Franz Joseph Haydn, trouxeram, respectivamente, o estilo operístico italiano e o classicismo vienense. O Rio de Janeiro já se encontrava com uma vida musical intensa, e nom es de compositores atuantes e importantes para essa prática sobressaí­ ram-se do vasto núm ero de anônimos, como José Maurício N u n e s Garcia e Gabriel Fernandes da Trindade. O primeiro, mestre-de-capela, compositor e

4 A rnold H auscr. História social tia literatura e Ha arte. São Paulo: M estre Jou, 1972, p. 719. 5 C harles Rosen. L estile classique — HayHn, M ozart et Beethoven. Paris: G allim ard, 1978.

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organista, tornou-se uma das maiores expressões da História da Música no Brasil e o outro, violinista e compositor, foi um dos mais prolíficos instrum en­ tistas da colônia e do Brasil reino. A vida musical dos profissionais e diletantes no Rio dc Janeiro joanino foi pensada quanto à organização e à habilidade do músico, em uma sociedade estam ental e escravista, preconceituosa em tudo. Primeiro a cor, depois as posses e o status\ nessa ordem, ela estabeleceu diferenças e reservou os espa­ ços dc cada um. Os barbeiros, os negros e os mestiços; os brancos pobres c os confrades de Santa Cecília “dissidentes dc Icaraí” ,'’ tiveram seus espaços, suas ocasiões dc audiências e seu status conveniente. A sociedade colonial tam bém se articulou da sua maneira: cm determinas ocasiões entrecruzou-se com todos e permitiu a festa. Em outras ocasiões, cm outros espaços, a sociedade estamental, com o gosto e o costum e de sua corte, entretia-se, ostentava suas vaidades e rezava por outros acordes, por uma música específica do culto, mas que tam bém demonstrava as influências operísticas c clássicas. Na Quinta da Boa Vista, na capela e câmara reais, na Fazenda Santa Cruz e no Real Teatro São João, a nobreza portuguesa teve seus profissionais — de quem alguns diziam: “os melhores da América” . Nas casas e fazendas mais abastadas, principalmente, de comerciantes e funcionários administrativos, ouvia-se música por e n tre te ­ nimento, e foram eles, muitas vezes, que as cantaram e tocaram. Com vida musical intensa, com um gosto para ser atendido, foi preciso conseguir recursos técnicos para produzir a música correspondente e, sobre­ tudo, alguém que pudesse pagar por ela. Por meio da Gazeta do Rio de Janeiro essa procura poderia ser atendida. São inúmeros os anúncios vendendo ou anunciando materiais que chegaram da Europa para a prática da música, ou m esm o convocando público para espetáculos. E m 17 de janeiro de 1810, por exemplo, um comerciante anunciou a venda de “um excelente pianoforte, de bom autor e de excelentes pedais” .7 N o mesmo ano, via-se o anúncio de um “cravo de penas de cinco oitavas e muito boas vozes” .8 Havia preocupa­ ção m uito corrente em identificar as qualidades do instrumento, como recur­ sos, extensão e, sobretudo, sua utilidade. Com o passar dos anos, a exigência da escolha do instrum ento acompa­ nhou o cuidado nos anúncios. Os comerciantes fizeram questão de sublinhar

h E sse episódio refere-se a um a rixa e n tre os m úsicos inscritos na C onfraria de Santa C ecília e m oradores do Rio dc Janeiro com os m úsicos da m esm a confraria, porem m oradores cm Icaraí. A fastados p ro v av elm en te por não residirem na cidadc do Rio ou pelas suas q u alid a­ des técnicas, os m úsicos de Icaraí p reten d iam criar um a co n g ên ere em sua vila, e n c o n tra n ­ do resistência dos confrades do Rio. A q u estão é estatu tária c tom ou proporções reais. Vem sen d o discutid a em m inha tese d e d o utoram ento. 7 Gazeta Ho Rio He Janeiro, 17/1/1810. s Ib id cm , 17/2/1810.

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a marca e a origem. No dia 5 dc novembro de 1814, o inglês Alexandre Mac Groutbers anunciou: “vender todas as costumadas fazendas como tam bém uns pianofortes, dois grandes pianos direitos e um órgão elegantíssimo que se toca com os d e ­ dos, que bem podia servir para uma capela ou igreja, e tudo se vende por preços cômodos.”l) Um outro comerciante, John Fergusson, “inglês de nação e vindo dc L o n ­ dres” , anunciou em 19 dc março de 1817 vários produtos musicais, como “uma grande porção de pianos-fortes muito modernos e de bom autor, um órgão muito bom para qualquer igreja, uma porção de rabecas e solfas, encordoações [í /V!] de pianos e rabecas e afinadores de piano, [por preço] muito cômodo, na Rua de S. José n." 10.” 10 Dois anos mais tarde, o mesmo inglês, Fergusson, já em outro endereço com seu estabelecim ento comercial, registrou que vendia “uma nova partida de pianos, chegados de próximo, do melhor autor, que se intitula, Guillaume Stodart, aprovado por todos os melhores mestres em música, e o mesmo promete ter sempre bom sortimento de pianos e demais instrum entos.” " O fortepiano ou pianoforte foi criado em 1709 por Bartolomeu Cristofori, com o nom e inicial de Gravicembalo cot Piano e co! Forte, que poderia ser tra­ duzido e, mais que isso, compreendido por um cravo com piano e forte. Até aproxim adam ente os fins do século XVIII, os pianos de Cristofori estavam bem desenvolvidos, e não sofreram alterações estruturais profundas. Até a morte de Mozart, o instrumento não teve aceitação favorável, em detrim ento do uso do cravo e do que ele representava para os compositores, intérpretes, mecenas e ouvintes da sociedade clássica. Paralelamente aos avanços da mecânica na Áustria e na Alemanha, os in­ gleses tam bém começaram suas interferências. John Broadwood e outros cons­ trutores criaram a mecânica inglesa, de onde deriva a mecânica dos pianos atuais. A maioria dos pianofortes que chegaram ao Rio de Janeiro eram da marca inglesa Broadwood, um dos mais aceitos pelos músicos europeus. O construtor, John Broadwood, começou a imaginar o instrum ento com

9 Ib id em , 5/9/1814. 10 Ib id em , 19/3/1817. " Ib id em , 12/1/1820.

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base nos modelos dc Anton Walter e de Johann Andreas Stein, entre 1791 e 1804. A adaptação de Broadwood usava cordas mais pesadas e mais tensas, o que implicava uma caixa de estrutura mais sólida. O instrum ento dc Broad­ wood era o preferido de Beethoven. A preferencia pelos instrumentos ingle­ ses, pelo menos para o Brasil, deve-se às facilidades e privilégios que os bri­ tânicos obtiveram com o comercio do Brasil. Era mais fácil comprar — e ini­ cialmente só era permitido esse tipo de comércio — um produto inglês que de outro país. A época coincide com a grande aceitação do instrum ento e da forma sonata na Europa. O pianoforte surgiu para suprir uma lacuna na sono­ ridade do cravo. Com mais dinâmica e expressividade, o piano tornou-se o tipo de instrum ento ideal para concertos e recitais em salas maiores que as salas aristocráticas. Pode-se dizer que o pianoforte representava para a classe mercantil e burguesa o que o cravo era para a aristocracia barroca. O pianoforte, depois somente piano, representou a Era Clássica. C o m p o ­ sitores como Beethoven, Muzio Clcmcnti, Havdn e Mozart criaram obras para esse instrum ento.1- Para as classes mais abastadas, ir a um concerto onde houvesse um piano, ou mesmo ter um instrum ento desse em casa, era sím bo­ lo dc status; para a colônia, era tam bém sentido de progresso. Outros anúncios da Gazeta chamam a atenção e são importantes para com­ preender a vida musical no Rio de Janeiro joanino. Vendia-se música, como no caso do comerciante português, que no dia 17 de outubro de 1814 dizia que “q u e m loja de de São que se

tiver precisão de musica de qualquer qualidade que seja, dirija-se à M anuel Joaquim da Silva Porto, na Rua da Quitanda, à esquina da Pedro, que ali se tomarão as encom endas e se dirá a solução delas prom ete fazer com a maior brevidade e por preços módicos.” 15

Gallet e Fallason, comerciantes estabelecidos na Rua Direita, n.° 55, di­ ziam “aos curiosos das artes” em 1818, que “receberam m odernam ente de Paris um sortimento de violas de diferen­ tes preços, com cordas para viola, rabeca e fortepiano, assim como todas as peças de música nova dos melhores mestres italianos, franceses e alemães:

12 “T h e nam es pianoforte and fortepiano cam c inco use First in C en tral and N o rth G erm an y in th e 1740s, b u t they w here no t used w ith any eonsistency until near th e en d o f th e centurv. [...]. R ather, th e in stru m e n t was variously c a lle d à m balodi pianorforte. cembalo dim artellati. cembato, davincembalo. rhn erin, instrument. fliigel. cft/vier. fiammeirlavicr. hammerfliigel e hammer harpischord. [...]. H aydn, M ozart. and th e irc o n te m p o ra rie sstill u s e d chnier ar remba/o Cf. Sandra R R osenblum . Performances Practins in C/assic Piano Musir. B loom ington: In ­ diana U nivcrsity Press, 1988, p. 6. Gazeta do Rio de Janeirv. 17/S/1814.

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e igualmente, papel pautado para escrever música, tudo vindo das fábricas mais famosas daquela capital.” 14 Um outro anunciante oferecia “na Rua do Sabão, pegado à Candelária, em uma loja de livreiro, [...] papel pautado para solfa, do melhor, além de obras poéticas dc M anuel Joaquim Ribeiro, e vários folhetos a preços cômodos.” 11 Como não se bastassem os anúncios referentes à prática musical, onde se ofereciam sobretudo pianofortes, cravos, órgãos e papéis pautados, ofcrcciamse tam bém aulas de todas as espécies. N o caso dos instrumentos musicais, pode-se observar a predominância dos instrumentos de teclado ingleses e portugueses, como os pianofortes de Broadwood e os cravos de Matias Bostem, dois conhecidos luthiers da Europa setecentista. Ao lado de M iguel Ângelo Vila, Joaquim José Antunes e M anuel Antunes, Matias Bostem, construtor português de cravos, usava dos métodos e da m e ­ cânica italiana, provavelmente exigência do Padre Antônio Soler e de Dom enico Scarlatti. Os instrumentos ibéricos tinham uma característica própria: maior extensão nos agudos. As madeiras para a construção desses instrum en­ tos eram “geralmente vindas do Brasil, como a macacaúba, mas tam bém madeira de pinho e de árvores de frutos do país. A cor exterior verde é tam bém característica dos cravos nacionais [portugueses].” u> N o dia 15 de abril de 1812, pôde-se observar o seguinte anúncio: “Q uem quiser aprender a tocar flauta procure a Miguel Cardoso, na travessa que volta da Rua de São Pedro para São Joaquim; casa térrea da parte esquerda, núm ero 55, o qual se tem proposto a ensinar pessoas par­ ticulares, tanto estrangeiras, como portuguesas e de todos tem tido boa aceitação” .17 N o Rio de Janeiro joanino podem-se observar tam bém outros tipos de instrum entos aperfeiçoados na Europa e os instrumentos populares, já difun­ didos na colônia americana. Dos instrumentos europeus, pode-se falar dos

14 15 Ifl 17

Ib id em , 24/10/1818. Ib id em , 13/8/1814. A N R J. L uis H en riq u e. O p. cit., p. 186. Gazeta do Rio He Janeiro, 15/4/1812.

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convencionais, como o violino — chamado no Brasil de rebeca ou rabeca, as violas de cordas pulsadas, as trompas, os clarinetes, tímpanos, guitarras — falase de guitarra portuguesa, instrumento dc cordas dedilhadas, espinetas e oboés. Um outro instrum ento que está relacionado às práticas populares e que aos poucos foi sendo absorvido pela Corte, cm razão do repertório é o que N e u k o m m e Freycinet denominaram de viola francesa ou cavaquinho. No caso das interpretações das modinhas, Freycinet lembra que Joaquim M a­ nuel da Câmara “era superior ao célebre Fernando Sor que encantou Paris” . A interpretação do mestiço brasileiro na sua viola francesa, “tinha um encan­ to inexprimível que nunca encontrei nos guitarristas europeus” . A viola fran­ cesa, ou cavaquinho ou ainda guitarra, “já não é um instrumento vulgar, é uma harmonia desejada e deliciosa que se diria vir do céu e que é impossível conceber sem tê-lo ouvido.” 18 E ntre simbologias e funcionalidades, os instrumentos musicais que c h e ­ garam ao Rio de Janeiro foram imprescindíveis para o exercício desse novo gosto. A partir desse momento, ampliou-se a orquestração, procuraram-se efei­ tos sonoros que correspondessem a uma sensibilidade. Enfim, fez-se música com uma nova compreensão de mundo. 3. Quinta da Boa Vista, Fazenda Santa Cruz, Capela e Câmara Reais, Teatro São João, Teatro do Rocio, casas abastadas... Essa geografia que se mapeava na malha urbana do Rio de Janeiro expressava as práticas e o centro das atra­ ções musicais dos cortesãos e das famílias mais bem favorecidas. As ruas e os espaços públicos eram reservados para as práticas populares e para a repre­ sentação do poder e dos costumes da Corte. D entre esses espaços, a Capela Real era a q ue mais se destacava pelo núm ero e pela qualidade dos músicos. Oliveira Lima refere-se a ela de forma que não deixa dúvidas sobre os inte­ resses de D. João VI sobre a música: “A Capela Real passou a refletir as magnificências da patriarcal de Lis­ boa, de cujas regalias se viu em parte dotada.” 19 Jean-Baptiste Debret, quando viu o conjunto da capela real e a qualidade da música que ali se fazia, anotou nas suas viagens pitorescas e históricas pelo Brasil:

18 L uis N orton. /I Corte de Portugal no Brasil. São Paulo: N acional, 1938, p. 144. ''' M anuel dc O liveira Lim a. O p. cit., p. 221.

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“o conjunto musical da Capela é constituído de excelentes artistas dc to­ dos os gêneros, virtuoses castrados c cantores italianos. A parte instrum en­ tal é magnífica, com dois maestros. Avalia-se em 300.000 francos os venci­ mentos dos artistas que com põem .”-11 N o quadro das atividades, foi preciso remodelar o cenário. Para as práticas musicais religiosas, como mandavam as regras da civilidade cristã, D. João VI transformou o convento dos carmelitas em sua capela real, reorganizando o quadro de músicos. Criou ainda o Real Teatro São João, com um suficiente núm ero de profis­ sionais sob uma administração que controlava o pagamento e o trabalho de maquinistas, carpinteiros, atores e músicos, muito embora não agradasse a todos. E m 1814, a Gazeta fez uma anúncio que era mais uma retratação: “H avendo pessoas mal-intencionadas que andam desacreditando a ad­ ministração do Real Teatro de São João, o proprietário faz público que abrindo este espetáculo no dia 12 de outubro do ano passado, pagou um mês adiantado à companhia cômica e de dança, e que a 15 e 17 do corren­ te, pagou o terceiro mês que se venceu a 12, vindo por esse modo a estar de contas justas com todas as pessoas que trabalham dentro dele, a saber, cômicos, cantores, dançarinos, músicos, pintores, alfaiates, comparsas, car­ pinteiros e porteiros e etc.”-’1 A administração do Teatro de São João conseguiu, apesar de alguns mal­ entendidos, m anter um núm ero suficiente de profissionais e responder por vários espetáculos. A temporada lírica, por exemplo, intensa num período compreendido entre 1814 e 1821, dentre vários compositores, apresentou obras de Rossini, como AureHano em Palmira c L a Cenerentola\ de Marcos Portugal, L ’Oro no» Compra Am ore e Merope\ de Vincenzo Puccitta, L a Vestale e A Caçada de Henrique IV e ainda de Antonio Salieri, com Axur, Rei de Ormuz. Lirismo, representação e dramas formaram, aliás, as oportunidades do prín­ cipe e depois rei, de mostrar ao séquito e vassalos não som ente a presença da Corte e da coroa, mas tam bém a opulência e o fausto que cercavam os reis. Se no Teatro não couberam todos, se nem todos puderam ir ver as repre­ sentações e viver um dia faustoso, nas ruas, nas igrejas e nas praças, as classes m enos favorecidas se encontravam. Sob o aspecto da religiosidade, vale lem ­ brar que houve várias festas, em cada irmandade, para cada santo. Robert Southey lembra que

20 J.-B. D eb rct. O p. cit., p. 16. 21 Gazeta (to Rio de Janeiro, 28/1/1814.

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“cada português tem seu santo. Cada santo tem seu dia, e no dia de cada santo convidam os seus devotos, os músicos; acompanham-nos até a igreja ou capela do seu ídolo, muitas vezes por água.”2’ A circulação de músicos estrangeiros no Rio de Janeiro joanino fez com q ue a estilística européia do final d o settecento — e concomitante à Europa dos inícios do século XIX — se aproximasse mais ainda da colônia, ou que por ele fosse im ediatam ente absorvida. A vinda dos cantores castrados, o serviço pres­ tado por Marcos Portugal e cm seguida a vinda de Sigismund von N eukom m , foram acontecim entos importantes que transformaram a idéia da criação e da recepção musical. O bviam ente que o gosto de D. João VI, no caso o mecenas “generoso” , pelo menos com os músicos, contribuiu para a afirmação desse novo gosto musical. 'Iodas essas mudanças ocorridas nos níveis sociais, cul­ turais, administrativos e sobretudo mentais, ditas nos capítulos anteriores, criaram um outro espaço e uma outra forma de audiências das obras no p e ­ ríodo joanino. O virtuosismo vocal italiano e o classicismo vicnense estiveram nos trópi­ cos e foram absorvidos pelos músicos coloniais, sobretudo por José Maurício N unes Garcia. Essas mudanças no gosto podem ser observadas tanto nas obras sinfônicas ou puram ente instrumentais, quanto nas obras religiosas. Ao m es­ mo tempo, isto é, no processo histórico que remonta aos fins do século XVIII e inícios do século seguinte, as idéias novas, surgidas ou não da Revolução Francesa, começaram a mudar a compreensão do mundo: “First there is the question of intellectual roots. N ew ideas sweeping E urope in the eighteenth century directly or indirectly influenced m usi­ cal taste, and hence aesthetic choice.”2, M udanças diretam ente relacionadas às práticas musicais, como a publica­ ção do Les Beaux Arts Réduits à un Même Príncipe, de Charles Batteux (1746), as Observations sur la Musique et sur la Métap/iysique de FArt, de M ichel Paul Guy de C habenon (1779), as teorias contidas na Encyclopédie de J.-J. Rosseau, o advento de novos instrumentos — como o fortepiano e o clarinete, am pla­ m ente difundidos no Brasil joanino — e novas formas musicais, citam-se a sonata, o quarteto de cordas e a sinfonia, construíram o gosto clássico. Uma das percepções mais importantes nessa nova estilística foi a predom i­ nância da melodia sobre a harmonia. A melodia traz movim ento e dinâmica,

22 R obert Southcv. História Ho Brasil, 3 vols. Belo H ori/.onte-São Paulo: Itatiaia-E d u sp , 1981, p. 435. 23 M ichael Broylcs. “O rganic form and binarv re p e a t” , in: lh e Musica! Quarter/y, N ova York, A K A I T I N Cí A

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des à militarização do Estado c da socicdadc, cimentando a coesão necessária à repressão contra o sindicalismo revolucionário e contra qualquer resistência da com unidade sertaneja à modernização. Tentei recuperar o sentido de fes­ tas em que adivinhava a resistência da p equena propriedade, a luta dos traba­ lhadores, a trajetória dos estratos médios empobrecidos, etc. Mas a pesquisa limitada à documentação escrita levou a uma certa hiperpolitização da leitu­ ra, já q ue tais fontes foram produzidas e conservadas em função das exigênci­ as do poder. E m março de 1888 a comemoração da emancipação dos escravos de Tau­ baté, organizada pelos abolicionistas, confundiu-se intencionalmente com a festa de Bom Jesus de Trem em bé. Perto daí, em Guaratinguetá, reprimiamse cruelm ente os escravos foragidos e as atividades dos abolicionistas. No domingo do entrudo, o delegado de polícia, irmão do presidente da provín­ cia, proibiu a exibição de um bloco de máscaras representando capitães-domato a conduzir um escravo pelas ruas. N a mesma semana santa em que os caifases de Antônio Bento mostravam escravos torturados por seus senhores nas procissões de algumas cidades paulistas, mais comoventes que as ima­ gens e m seus andores, um fazendeiro recuperou um escravo foragido duran­ te a procissão da sexta-feira santa, conduzindo-o amarrado de volta à fazenda. Nossa Senhora Aparecida, padroeira daquela cidade tomar-se-ia em breve a grande devoção dos negros e dos pobres de todo o Brasil.42 São Benedito, patrono dos negros e dos pobres, raramente se comemorava em seu dia, 4 de abril, porque se dizia que, se ele não viesse à frente das procissões dos outros santos, faria chover na certa. Por isso, São Benedito aparecia sem pre acoplado à alguma festa religiosa maior. Esta dispersão no calendário favorecia a afirmação da presença negra e mulata em todas as fes­ tas. D e sd e o seu surgimento, e sobretudo após a Abolição, a imprensa regio­ nal procurou conter e ridicularizar a tradição que assegurava aos negros o direito de ocupar o primeiro lugar em todas as procissões. A festa do santo negro adquire brilho excepcional na região. E m Guaratinguetá, após a Aboli­ ção, a Cavalaria de São Benedito admitiu ginetes negros; em São Luís, os negros executam uma dança de cunho militar evidente, o moçambique, mas dançam como peões de infantaria. Maio era o mês da Santa Cruz, evocando o poder colonial da Ordem de Cristo. E m 1895, em Taubaté, essa festa ainda era tipicamente urbana con­ gregando multidão suficiente para atrair empresários de espetáculos, como o Circo Atlântico. T am bém em São Luís do Paraitinga a festa de Santa Cruz ligava-se aos negócios urbanos. D ez anos mais tarde, ela já recuara para os bairros rurais. A imprensa católica exigia que a polícia as proibisse d e n u n ­

42 0 Liberal Taubateano, 5.

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cio atingiram um grau inusitado. A Casa da Festa serviu comida à vontade a toda a população durante oito dias; ao final, os 28 degraus do casarão tinham dois dedos de comida pisoteada; cento c cinqüenta leitoas, além das muitas reses e aves, foram abatidas. Contra tais excessos, o vigário Inácio Gioia proi­ biu o sorteio do próximo festeiro e suspendeu alguns divertimentos profanos e a distribuição de comida. Em 1918, já não houve festas profanas; desde então o vigário celebraria os ofícios religiosos no domingo de Pentecostes, perm itindo apenas a realização da festa de São Luís ao final do mês de agos­ to, com procissão e leitão, mas sem as cavalhadas, gigantes e refeição coleti­ va. A tradição só foi retomada em 1940.46 A contrapartida clerical, na ofensiva contra os excessos da festa tradicional, eram as conferências vicentinas, com novas formas de organização religiosa leiga e toda uma outra atitude diante da pobreza. E m 1912, um corso carna­ valesco com carros alegóricos, banda de música, automóveis, cavaleiros, ci­ clistas e prêmio para os melhores carros angariou recursos para os pobres do hospital Santa Isabel, do asilo e das conferências de São Vicente de Paula. O balanço das atividades dos vicentinos em São Luís do Paraitinga no ano de 1920 mostra quase duzentas pessoas organizadas para a assistência aos po­ bres, realizando 1.116 visitas domiciliares e distribuindo 1.114 cartões ou va­ les para compra de gêneros. A receita do conselho particular e das conferên­ cias cresceu 253% entre 1916 e 1920. Calculei que cada uma das pessoas assistidas teria recebido naquele ano o equivalente ao produto de uma sema­ na de trabalho de u m jornaleiro; cada família teria contado com o equivalente a dois m eses de salário de um trabalhador rural.47 Indagando pelo sentido da reação plebéia e rural ante os avanços da mo­ dernização, examinei processos criminais, como o que foi movido em 1891 contra o liberto José Monteiro, ex-escravo de um médico de Taubaté. O réu dirigia um a irm andade da Alma supostam ente ligada à Irm andade de São Miguel e Almas de São Luís do Paraitinga. Esta, fundada em 1855, organiza­ va as solenidades do dia de finados e assegurava o enterro de seus membros qu e pediam esmolas, acompanhados por crianças vestidas de anjo, para o cofre das Almas. Acusado de feitiçaria e charlatanismo, José Monteiro organi­ zara um culto no qual invocava uma santa (talvez a Alma, ou Nossa Senhora das Brotas) m anipulando rosários, crucifixos e outras imagens de santos não identificados.48 Os processos contra feiticeiros mostram em primeiro lugar os

4ft O L uizense, 5 0 0 (X I V ) : 3 , 1 7 /5 /1 9 1 7 , P ro g r a m a d a F e s ta d o D iv in o E s p ír ito S a n to ; 5 5 J (X V ):2 , 2 2 /8 /1 9 1 8 , F e s t a d e S ã o L u ís ; 5 5 5 (X V ):3 , F e s t a d e S ã o L u ís . B a la n c e te ; O Correio d a Serra,

2 2 ( I I) :3 , 2 4 /5 /1 9 8 0 , O i oi o i o J o ã o P a u lin o , oi oi oi a M a ria A n g u . 47 O L á b a ro , 1 7 0 ( I V ) :2 , 2 7 / 3 /1 9 1 3 , P r ó - c a r i d a d e . O “ c o r s o ” d e d o m i n g o ; O L uizense, < W ( X V I II ):2 , U m a c a rta ; p. 3, I n s t i tu iç ã o d e c a r id a d e . 4B C a r tó r io d o 2." O f íc io d e S ã o L u ís d o P a r a itin g a . A u to s d o a n o d c 1891.

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rosários, mas penso que o niimero de cruzes e crucifixos fosse maior. A ima­ gem e invocação de Santo Antônio é a mais citada nos processos; além da Alma e de Nossa Senhora das Brotas, aparecem uma imagem dos Passos (cena da via-sacra), São João, São Bom Jesus, o Espírito Santo e Nossa Senhora dos Remédios, num a sensível predominância de entidades masculinas. A Alma é feminina, mas evoca o vulto másculo do arcanjo Miguel. As muitas cruzes, crucifixos e a imagem dos Passos indicam forte presença da figura de Cristo nesses ritos de cura sertanejos. O rosário pode não rem eter diretam ente a Maria, pois nas rezas de Santa Cruz se recitava o nom e de Jesus em lugar das ave-marias. Vimos que os ritos de morte caipiras tam bém criavam uma at­ mosfera de sacralidade dominada por entidades masculinas em q ue se desta­ cava o Cristo. Identifiquei assim uma sacralidade viril no universo dos ex­ cluídos, uma forte mentalidade patriarcal legitimando o poder dos chefes de família em defesa de sua pequena propriedade caipira/quilombola ameaçada pela expansão dos poderes sediados na cidadc. Pagando salários inferiores aos dos cafezais do oeste paulista, os patrões tentavam pela intimidação, reprimindo curandeiros e feiticeiros, reter a mãode-obra dos negros libertos e apoderar-se do espaço controlado pelos quilom ­ bos. Já em 1912 os fazendeiros luisenses solicitavam ao governo estadual se­ m entes de capim para dedicar-se à pecuária leiteira. N esse contexto, festas como o 13 de Maio de 1914 revelam graves tensões sociais. N o bairro rural do Barranco, cerca de mil pessoas, reunidas sob uma grande cruz, ouviram o missionário Frei Angelo afirmar que o sangue dos escravos se mesclara ao sangue de Cristo, o mal era a impiedade que acumula riquezas condenadas a converter-se em misérias. Em Pindamonhangaba, no m esm o dia, o 53." Bata­ lhão de Caçadores não prestou continência ao som do hino nacional, o povo protestou, estalaram tiros e reluziram navalhas; os soldados fugiram no trem noturno, mas foram seguidos por seus perseguidores; um soldado se atirou do comboio em movimento e perdeu a vida. E nquanto as procissões de recondução solene dos crucifixos aos tribunais do júri de cidade em cidade, pontuando a marcha dos católicos romanos na conquista da hegemonia, antigos militantes abolicionistas estimulavam a politização da com unidade negra, organizando marchas noturnas, revalorizando o jongo e outras danças. A penetração da pecuária na região expropriava pri­ m eiram ente as formas precárias de propriedade dos negros libertos, quando o país exportava carne para a Europa em guerra; os negros se politizaram e se exacerbou o racismo em meio à campanha patriótica e militarista das ligas. Apontando mais diretam ente contra os negros, a agressividade nacionalista das ligas alcançava tam bém Jeca-Tatu, personagem típico do m undo caipira. E ste fugia do recrutam ento militar e fazia bons negócios nos mercados de domingo, aproveitando a crise de abastecimento e a carestia provocada pela guerra. E neste m undo de Jeca-Tatu que surgiu a santinha do Paraitinga. Um

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frade capuchinho que percorreu os bairros rurais de São Luís do Paraitinga pregando missões ao final dc 1917 (época de aparições milagrosas, final de guerra, revoluções na Rússia c no México, gripe espanhola) deve ter sido quem alertou o vigário Inácio Gioia e o bispo de Taubaté contra a jovem Maria Antônia de Jesus. Em maio o delegado de polícia de São Luís do Parai­ tinga foi até o bairro do C hapéu e viu a moça, vestida como Nossa Senhora das Dores, dormindo profundam ente num caixão. Os caipiras acorriam em romarias para agradecer à menina santa pequenos milagres como a cura de bicheiras cm seus animais ou a chuva em suas roças de milho. Trinta soldados da Força Pública recolheram a jovem Maria Antônia de Jesus após vencer a resistência de seus pais. Uma enorme multidão acompanhou em procissão o corpo de Maria Antônia desde o bairro do C hapéu até a Santa Casa de M ise­ ricórdia. A polícia receou uma rebelião, mas o cortejo foi pacífico. Despertada a custo do seu sono letárgico, a jovem suplicou à polícia que não maltratasse seus pais, rezou e recaiu em seu misterioso estado. Levada ao hospital Santa Isabel em Taubaté, cedeu à insistência das freiras e aceitou um copo de leite e, no dia seguinte, uma gemada. Transportada em vagão especial à capital, a jovem esteve quase sempre desacordada, indiferente ao tumulto que se veri­ ficava em cada estação por onde passou o trem. Da estação do Norte, tomada pela multidão, um a ambulância a conduziu rapidamente à presença do delegado-geral de polícia que a interrogou logo que ela recobrou os sentidos. Maria Antônia disse ter dezoito anos e que nunca saíra do bairro do C ha­ péu onde seus pais tinham uma pequena fazenda: nunca vira até então um automóvel, nem a estrada de ferro; era analfabeta mas sabia de cor as orações. H á três meses, ao rezar como era de seu costume, à sombra de uma limeira ao meio-dia, deparou-se com um turbilhão de anjos. Um anjo de grandes asas diáfanas aconselhou-a a passar sete anos em jejum encerrada num caixão diante do altar de uma capela. Por isso deixara de se alimentar; explicou que aceitara o leite que as freiras de Taubaté lhe haviam oferecido porque elas lhe haviam assegurado que leite não era alimento, e que o menino Jesus mamara o leite sagrado de sua divina mãe. Intimada a submeter-se a trata­ m ento médico, Maria Antônia comprometeu-se a obedecer às freiras do sa­ natório Santa Catarina, para onde a levaram ao final do interrogatório.49 Aí esteve sob os cuidados do clínico-geral Raul Sá Pinto e de Olavo de Castilho, especialista em moléstias das vias urinárias e sífilis. Não encontrei registros do tratam ento prescrito, salvo sessões de hipnotismo. Nos hospitais, a moça esteve sempre rodeada de freiras e enfermeiras católicas, crucifixos, quadros e imagens de santos. Assistiu provavelmente a missas e outras rezas na capela do sanatório Santa Catarina, onde terá observado nos vitrais as ima­

J9 A Gazeta, 3 .7 2 6 Ú , 1 9 /6 /1 9 1 8 , O s c a s o s c u rio s o s : “ S a n ta ” d c S ã o L u ís d o P a r a itin g a .

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gens de Santa Valburga, Santa Catarina, Santa Isabel, o Sagrado Coração de Maria, Pôncio Pilatos a lavar as mãos. Um jornal comparou Maria Antônia a Jacobina, a extática líder dos muckers no Rio Grande do Sul em 1874, exage­ rando suas façanhas e recomendando: “O povo de São Luís do Paraitinga agradeça à polícia o ter providencia­ do em tem po rem ovendo a «santa» para São Paulo, do contrário teria que, em breve, assistir às vandálicas explorações de outros «muckers» desta vez na pele dos paulistas do Norte desta terra.” '’0 Sintomaticamente, imprensa, literatura e autoridades evitaram contextualizar o próprio m om ento em que se desenrolava o drama da santinha caipira de São Luís do Paraitinga. Ao apontar para o risco de um conflito social, evo­ caram situações mais distantes, como a dos muckers, em vez de se referir à guerra camponesa do Contestado, cujas cinzas ainda estavam q u e n te s em 1818, ou à tragédia de Canudos, de 1897. O primeiro encontro de Maria An­ tônia com o curandeiro cego Rodolfo ocorreu em janeiro de 1914, quando na guerra santa no Contestado o vidente Joaquim, de doze anos, sucedia à vir­ gem Teodora na liderança dos redutos sertanejos, sendo logo suplantado pela virgem Maria Rosa. N o Ceará, os sertanejos da cidade santa de Juazeiro do Padre Cícero resistiam a duas expedições repressivas e logo marchariam con­ tra Fortaleza. N o México, Pancho Villa e Emiliano Zapata comandavam exér­ citos camponeses contra a ditadura do General Huerta. E m seguida explodia a guerra mundial. A população caipira da região, já amedrontada por boatos de recrutam ento e pela militarização da classe média nos tiros-de-guerra, sofreu a repressão policial desencadeada contra a vagabundagem após a leitura obrigatória de um manifesto do presidente da República em todas as escolas, em setem bro de 1917. O manifesto anunciava a declaração de guerra contra a Alemanha e exigia o Fim das divergências internas, rígida disciplina, redução dos gastos e intensificação do trabalho, autocensura da imprensa e alerta contra os es­ piões. A paranóia patriótica resultante voltou-se contra a greve geral operária de São Paulo qu e começara em julho. Logo mais, a geada destruiu os últimos cafezais da região. Por outro lado, a luta entre facções do Partido Republica­ no Paulista na disputa pela prefeitura de São Luís do Paraitinga se radicali­ zou com a ruptura de um acordo firmado para as eleições de novem bro de 1916. A oposição, controlando a coletoria estadual, cobrava impostos a torto e a direito, até m esmo sobre os mendigos, intimidando os caipiras qu e passa­ ram a vender seus produtos no mercado de Taubaté, prejudicando as finan-

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ças da prefeitura. A polícia proibiu qualquer jogo ou reunião de pessoas nas praças e ruas sob pena de prisão por vagabundagem. Os editais do recruta­ m ento militar foram arrancados dos muros da cidade. Circularam boatos de greve contra os impostos municipais e de ataque à Coletoria de Rendas Esta­ duais quando o destacam ento de polícia local foi requisitado para reprimir a greve e m São Paulo. A tensão subiu até que as duas facções se enfrentaram à bala nas eleições de abril de 1919 e a oposição foi silenciada. Definida pela ciência, pela Igreja, pela polícia e pela imprensa como uma histérica, a santi­ nha caipira foi reduzida a um corpo enfermo — um corpo com útero — e um espírito ingênuo sugestionado por um charlatão (o cego Rodolfo) a serviço de seu próprio pai. Os discursos com petentes se entrelaçavam reduzindo o fe­ nôm eno a um simples “caso curioso” e prescrevendo a cura: fazer desapare­ cer a “santa” , reconduzir Maria Antônia ao anonimato e à normalidade bur­ guesa do indivíduo em sua esfera familiar. Os jornais paulistas deixaram de explorar a curiosidade dos leitores a partir de 20 de junho; Maria Antônia, que estava sendo atraída por seus hipnotizadores à vida profana, já não podia mais ser notícia. E m Taubaté, a polícia apreendeu duzentos exemplares de um livro de cordel escrito por Teotônio Meireles. O livro de registros do sana­ tório Santa Catarina assinala a partida de Maria Antônia de Jesus no dia 30 de junho, mas a moça demorou mais tempo para retornar a São Luís do Paraitinga. O corpo de Maria Antônia expelira inicialmente impurezas que teriam sido “plantadas” por um a feiticeira, segundo ela mesma e sua família acredita­ vam. U m ano mais tarde, graças à presença do cego Rodolfo na casa, os “plan­ tados” já não estavam em seu corpo; o curandeiro os fazia sair da cozinha, do quarto de dormir de Pedro Claro e Maria Francisca de Jesus — locais espe­ ciais de reprodução da família e produção dos alimentos, locais anualm ente abençoados pela bandeira do Divino Espírito Santo — e da encruzilhada, ponto de encontro das forças misteriosas que rondavam a casa. Pedro Claro e sua m ulher recorreram ao cego Rodolfo para endireitar suas vidas, e acredita­ vam qu e ele efetivam ente eliminou as “tranqueiras” que impediam a pros­ peridade da casa e salvou a vida de Maria Antônia. O corpo da moça já não expelia mais répteis, pregos, maços de cabelo e outras impurezas, e passara agora a expelir imagens santas. Assim, Maria Antônia era a casa e a terra: seu corpo traduzia os males sofri­ dos ou a sofrer pela família Claro e, agora curado, seu corpo abençoava a casa, a terra, as árvores frutíferas, os animais. A casa converteu-se em palco e altar, ali Maria Antônia de Jesus cantava e rezava m antendo acesa a convicção de um contato com as potências benfazejas dos santos. Na quinta-feira santa de 1915 apareceu em sua cama uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, reve­ lada prim eiram ente aos dedos tateantes do cego Rodolfo, seu padrinho e com­ padre, que viera dar-lhe a bênção ao amanhecer. Maria Antônia buscava a morte, freqüentando as cruzes que marcavam o lugar das almas na geografia

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da fazendinha. Trazia dali rosários que não podiam mais, tendo sido rezados pelos mortos, pertencer aos vivos. O corpo de Maria Antônia se subm etia a um minucioso rito de separação. Longam ente anunciada, sua santificação interrompeu o curso profano do tem po ao seu redor. C om andando o processo de sacrifício do próprio corpo, a moça subm eteu-se a um ritual de velório que subvertia o sentim ento de passagem do tempo, já que seu prolongamento era motivo de alegria e de orgulho para a família, que não trajava luto. Pedro Claro alimentava e hospedava os romeiros que acorriam à capelinha que ele edificou exatam ente onde a filha queria, junto de sua casa, que se converteu, assim, em Casa da Festa. A única preocupação de Maria Antônia, quando lograram despertá-la e começaram a reintroduzi-la no m undo profano, foi com seus pais. Suplicava que não lhes fizessem mal, e chorava dc saudade. Maria Antônia oferecia-se em sacrifício para cimentar a paz e a prosperidade de sua casa, protegendo-a de todos os perigos que a rodeavam, e mergulhando para sempre no aconche­ go de um ninho construído para ela por seu pai, onde mamaria inconsciente­ m ente, talvez, no seio de sua mãe. A intervenção das forças da ordem resta­ beleceu o fluxo do tem po profano, dissolvendo a concentração dos sertanejos junto de sua p equena santa, fazendo-os retornar ao trabalho e às sujeições da vida ordinária. A recente experiência adquirida na guerra santa do C ontesta­ do terá sido bem aproveitada pela cúpula do aparato de repressão, o que ex­ plica a cautela das autoridades nos contatos com a família Claro, com os ro­ meiros no bairro do Chapéu, com as multidões que se formaram à passagem da mocinha adormecida. Maria Antônia teve frustrada sua vontade de sacrifício pela inesperada ir­ rupção da ordem profana. A jovem terminou por aceitar a alternativa impos­ ta, o desenlace banalizante. A generosa insistência das freiras, estimulada pela estratégia dos médicos e da polícia, levou-a a sacrificar, agora, sua aura de santidade, nutrindo novamente seu corpo de camponesa e admitindo re­ tornar à m odesta condição de simples vivente do século. O delegado-geral de polícia acenara com a ameaça velada: apenas dessa forma poderia ela de fato ser útil a seus pais. Se, para o público leitor dos jornais, o “caso interessante” term inou com a supremacia da razão diante da superstição, o tem po perm a­ neceria suspenso para a família Claro, procurando e esperando por sua filha; e tam bém para a população de São Luís do Paraitinga que esperava, além da moça, o desfecho do processo instaurado pelos poderes públicos contra o cego Rodolfo. Este, na prisão, seguia exercendo seu ofício, curando um policial. Sua absolvição em outubro suavizou os m omentos finais do atorm entado rito de agregação iniciado em junho com a operação policial no sertão do Chapéu. O drama nos aproxima da experiência da com unidade caipira na passagem do século, ante a expansão do Estado e da grande propriedade. M esm o sem a dimensão trágica dos muckers, Canudos, Contestado, Caldeirão e outros mo-

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vimcntos milenaristas, a santinha do Paraitinga convida-nos a procurar nos arquivos e nos espaços vazios da historiografia a fala dos silenciados. Trans­ gredindo normas, ultrapassando fronteiras, corpos e espíritos recusam por vezes submeter-sc à razão. O corpo virginal de Maria Antônia de Jesus, so­ frendo as dores da terra caipira, assumiu suas culpas e a purificou, oferecendo-se como intermediário, pronto a deixar-se consumir pelo desejo do sagra­ do cm troca do recncantam cnto do m undo.11 □ □ □

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R e s u m o . O te x to a p r e s e n ta u m a e x p e r iê n c ia d e e s tu d a r as fe s ta s c o m o p a rte in te ­

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p a u lis ta n a p a s s a g e m d o s é c u lo (1 8 8 8 -1 9 1 8 ), u tiliz a n d o e x c lu s iv a m e n te f o n te s e s c ri­ ta s e a d o ta n d o p r o c e d im e n to s a n á lo g o s a o s e m p r e g a d o s n o e s tu d o d a s f e s ta s c o lo ­ n ia is . A in q u ie ta ç ã o m a io r é e v ita r p r e e n c h e r as la c u n a s d a s f o n te s c o m u m a id é ia p r e c o n c e b i d a d e c o n t i n u i d a d e , e f a z e r fa la r o s ilê n c io , in d a g a r p o r s u a s ra z õ e s . N a p e n u m b r a d o s a r q u iv o s , a c h a ta d a s e m u d a s n a e s tr e ite z a d a s v e lh a s fo lh a s d e p a p e l, a s f e s ta s m o r ta s n ã o p e d e m q u e v e n h a m o s c o n h e c ê - la s ta is c o m o e x is tir a m ; m a s n ó s p o d e m o s s o p r a r a fa ís c a d o s e u im p u ls o in s tin tiv o n o i n s ta n te d o p e rig o .

51 In terp retação baseada em R oger Caillois. Elhom brey Io sagrado. M éxico: Fondo de C ultura E conôm ica, 1944; D uglas T eixeira M onteiro. Os errantes do novo século. São Paulo: D uas C idades, 1984; José d e Souza M artins. “A m orte e o morto: tem p o e espaço dos ritos fú n e ­ bres da roça” , in: José de Souza M artins (org.). A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: H ucitec, 1983; Jean D uvignaud. Festas e civilizações. Fortaleza-R io de Janeiro: Ed. U F C -T cm p o Brasileiro, 1983.

Negra ao violão, padre dançando, c. 1829. Aquarela, guache e tinta ferrogálica, 18 x 23,5 cm. Coleção particular. Fundação Bienal de São Paulo. Nelson Aguilar (organi­ zador). Mostra do Redescobrimento: negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p. 251. Foto André Ryoki.

HISTORIAS DA “MUSICA POPULAR BRASILEIRA”: UMA ANÁLISE DA PRODUÇÃO SOBRE O PERÍODO COLONIAL “ O m i s t é r i o d c nos sa m ú s ic a é o m i s té r io d o Brasil m e s m o , d i z - m e o q u e c a n t a s e e u te d ir e i q u e m és. M a s n ó s c a n t a m o s t a n t a coisa e tã o d i f e r e n t e s . . . Q u e s e r e m o s nós?” R knato

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Revista Movimento Brasileiro, 1928

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uma pesquisa, que procura inventariar e avaliar a produção de folcloristas e memorialistas sobre “festas, danças e músicas populares” , entre 1850-1950, localizamos uma importante discus­ são, comandada por intelectuais ligados à música, envolvendo as definições e os significados do que entendiam como a “música popular brasileira” .1 C on­ sagrada a partir das décadas de 30 e 40 por Mário de Andrade e Gilberto Freire como “a mais forte criação de nossa raça” e “arte mais totalmente nacional”,2 foi possível perceber que, desde o final do século XIX, já existiam importantes esforços de valorização e resgate da “música popular”, acompa­ nhando de perto as polêmicas criações sobre o caráter nacional brasileiro. Se é válida a utilização dos termos música popular — e também cultura p o p u la r — na pesquisa ou no ensino da História, como costumo defender, estou certa de que é importante que se aprofunde a História desses concei­ R

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1 E ste trabalho só foi possível graças à contribuição dos bolsistas dc iniciação científica (C N Pq), N ívea M aria da Silva A ndrade, Sim onc Pereira C arneiro, L enardo da C osta F erreira, c da bolsista de ap erfeiçoam ento (C N P q), Rita dc Cassia Paula Pereira, no levantam ento biblio­ gráfico c nas periódicas discussões sobre as várias histórias da música popular no Brasil. - H crm ano Viana. O mistério do samba. Rio dc Janeiro: Z ahar-E d. U F R J, 1995, p. 33.

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tos, no Brasil, para que sejam identificados os juízos de valor, as idealizações, as homogeneizações e as utilizações político-ideológicas que sempre os acom­ panharam, tais como local da autenticidade, do conservadorismo, da resistên­ cia e, no caso em questão, da alma nacional. Ao aprofundar mais especifica­ m ente a história do conceito de “música popular” , pretendo realizar uma operação que subverte os seus sentidos universais, a-históricos, ideológicos c políticos que costum eiram ente lhe são atribuídos. Como afirma N éstor Canclini, devem-se desconstruir as operações científicas e políticas que puseram em cena o popular.3 O maior objetivo deste artigo é, então, propiciar uma reflexão sobre a exis­ tência de um tipo de produção intelectual, entre o final do século XIX e os anos vinte, que investiu na complicada construção (ou invenção) da versão musical (talvez uma das mais fortes visões) da suposta identidade nacional brasileira. Esses trabalhos tiveram a singular e sem elhante pretensão de pro­ duzir u ma síntese histórica da “música popular brasileira” , definindo-a positiva e orgulhosamente como um produto da mestiçagem racial de índios, portu­ gueses e negros. Apesar da pretensão, deixaram evidentes os limites e as impossibilidades de sistematização e homogeneização das características ge­ rais desta “música popular” . O resultado do esforço ten d e u a ser a reprodu­ ção geral da teoria da mestiçagem sobre uma realidade musical múltipla e multifacetada, demonstrando como o recurso da “fábula das três raças”4 foi (e é) recorrente tam bém nas construções sobre a brasilidade musical, o que torna difícil, sem boa dose de crítica e atenção, o aproveitamento destes tra­ balhos pelo historiador. Os trabalhos selecionados para análise são: A Música no Brasil (1908), de Guilherm e T. P. de Mello, A História da Música Brasileira, de Renato Almeida (1926), e Estudos de Folclore (publicado em 1933, mas com textos datados de 1928), de Luciano Gallet. Grande parte dos estudos acadêmicos sobre a história do pensam ento social brasileiro não privilegiou a análise de autores que investigaram a “música nacional” . D e u preferência aos trabalhos de intelectuais que, preocupados com as questões da mestiçagem, da herança ibérica, da qualidade da nature­ za (flora, fauna, terra, clima) ou do hom em em am biente tropical, sem pre em busca das raízes do sentim ento nacional, se dedicaram ao discurso científico (médicos e juristas), à literatura (tais como Sílvio Romero, Lim a Barreto, Euclides da Cunha, João do Rio, Olavo Bilac, os modernistas, etc.), ao p ensa­ m ento político (Joaquim Nabuco, Eduardo Prado, Afonso Arinos, Graça Ara­ nha, etc.), a ensaios sociológicos (Manuel Bonfim, Álvaro Bomilcar, Alberto

3 N esto r C anclini. Culturas híbridas. São Paulo: E d usp , 1997, p. 205-54. 4 Ver L ilia Schwarcz. “C om plexo de Z é Carioca, notas sobre um a id e n tid a d e m estiça c m a­ landra” , in: Novos Estudos Cebrap. São Paulo: E d. Brasileira d e C iências.

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Torres, Jackson de Figueiredo, Cassiano Ricardo. Monteiro Lobato, F ernan­ do Azevedo, Gilberto Freire, etc.) ou à história nacíortai ‘ Raul Pompéia, Afonso Celso, Gonzaga D uque, Afrânio Peixoto, etc.j. Certamente, nomes como os de Melo Morais Filho, Francisco José de SantaAna Néri, Alexina de Magalhães Pinto, Guilherme de Melo, Augusto Pereira da Costa, Luciano Gallet são bem menos conhecidos do que os anteriormen­ te citados. Para além da terra, região e raça, intelectuais ligados à música, entre o final do XIX e primeiras décadas do XX, estavam engajados na defi­ nição sobre a música popular e na construção de uma história da música bra­ sileira, sempre valorizando seus traços mestiços.'1 Para a avaliação da dimensão dos trabalhos em questão, deve-se conside­ rar q ue suas pioneiras versões sobre a “música popular brasileira”, origens e características, mantiveram-se presentes nos trabalhos sobre o tema, nas d é ­ cadas posteriores.6 Ainda no final dos anos 80 (do século XX), a idéia do his­

5 A pesar da rep resen tativ id ad e dos trabalhos q u e selecionei, e de seu papel central e singu­ lar na form ulação d e um a d eterm in ad a id en tid ad e m usical brasileira, é bom deixar claro q u e seus autores não estavam sozinhos no interesse pela “m úsica popular” . Até o m o m en ­ to, ten h o enco n trad o um nú m ero significativo de autores (a maioria deles m úsicos) que, e n tre o final do X IX e as prim eiras décadas do XX, de algum a forma, se preocuparam com a definição, pesquisa, e a té m esm o com a produção de um a m úsica eru d ita baseada na “m úsica pop u lar” . D e n tre esses pesquisadores, podem os com eçar a lista com M elo Morais Filho, no final do X IX. E m boa p arte de seu livro sobre Festas e Tradições Populares do B rasi! o auto r descreve com en tu siasm o várias músicas e danças com o frutos da positiva m estiçagem racial e cultural brasileira (ver m eu artigo sobre o autor, “Festas, Tradições P opulares e Id e n tid a d e N acional” , in: C halh o u b , S. & Pereira, L. A. A história contada. Rio de Janeiro: N ova F ronteira, 1998). A inda teríam os de destacar, com o pesquisadores e cole­ tores de m úsicas e danças, Sílvio R om ero, S an t’Ana N éri (Folclore Brasileiro, 1889), q u e realizou com Basílio Itib erê registros musicais; L uís T enório C avalcante A lbu q u erq u e (Sub­ sídio ao Folclore Brasileiro, 1897), q u e anotou cantos populares; José Rodrigo de C arvalho (Cancioneiro do Norte, 1903), P ereira da C osta (Folclore Pernambucano, 1908), Afonso Arinos ( “M úsica P o p u lar” , 1908), A lexina de M agalhães P into (Cantigas das Crianças e do Povo, Danças Populares, 1916) e O sório D u q u e E strada ( Trovas do Norte, 1915). N a década de 20, já m arcada pela discussão do m odernism o, novas revistas apresentaram a q uestão do folclo­ re m usical brasileiro e contariam com a presença d e artigos assinados por im portantes m ú ­ sicos e folcloristas. D e n tre eles, A m adeu Amaral, R enato A lm eida, Basílio Itib e rê e M ário de A ndrade. A inda se poderia destacar um grupo d e m aestros que, a partir do final do XIX, passam a preocupar-se com tem as brasileiros e com a pesquisa folclórica para a m úsica erudita. D e n tre eles, A lexandre Levy, que compôs Tango Brasileiro e Samba, e A lberto N ep o m u cem o q u e , além d e inaugurar o canto erudito em português, com pôs a Série Bra­ sileira para o rquestra, form ada d e quatro partes: alvorada na serra, interm édio, a sesta na red e e b atu q u e. h Ver os trabalhos d e M arisa Lira, O neid a Alvarenga, Ulisses Paranhos, L uís H eito r e Valdenir C aldas. José R am os T in h o rão não se encontra nesta lista, pois a riqueza d e suas pesquisas e a im portância d e seu trabalho m ereceriam análise bem mais aprofundada. Os estu d o s e as construções sobre a história da “m úsica p opular” e “nacional” não se encerraram na década d e 20. Após esta década, novas polêm icas envolveram os debates, incorporando discussões sobre as diferenças e n tre a m úsica popular, popularesca, folclórica, cultura de massa, in­

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tórico mestiçamento musical continuava recorrente, como se pode verificar pela afirmação de Valdenir Caldas no pequeno mas divulgado livro da série Princípios sobre iniciação à Música Popular Brasileira-. “A nossa música, de acordo com seus estudiosos, aparece, ju n ta m e n te com os primeiros centros urbanos, no Brasil colonial do século X V III... Mas é só a partir do final do século XIX que se configura a síntese da nossa expressão musical urbana através do hibridismo de sons indígenas, negros e portugueses. ”7 Bibliotecário do Instituto Nacional de Música, e autodenominando-se pro­ fessor de Música, Guilherme de Melo escreveu A Música no Brasil, em 1908. Logo de início, avisa ao leitor que não produziu uma história completa da m ú ­ sica no Brasil, posto que seriam necessários muitos recursos c a visita a diversos estados. A maior parte de seus exemplos refere-se à Bahia, Nordeste e Rio de Janeiro, e a pesquisa, declara o autor, concentrou-se no Instituto Geográfico da Bahia e no Real Gabinete Português de Leitura. Apesar desses limites, afirma, bem entusiasmada e pretensiosamente, que realizou o livro... “com o desejo ardente de mostrar-vos com provas exuberantes, de que não somos um povo sem arte e sem literatura, como geralmente dizem, e que pelo menos a música no Brasil tem feição característica e inteiramente nacio­ n a l”s (grifos meus). Dando algumas pistas para se com preender as razões q ue o levaram a con­ siderar a “música popular” um fator de identidade nacional, Guilherm e de M elo parte de uma constatação de que a música é a “arte mais sociológica” , a “mais leal do sentim ento hum ano” . Sendo assim, o autor defende que o “sen­ tim ento música” é muito diferente entre diferentes partes do mundo. D e ­

fluência do rádio, m úsica popular urbana c rural, au te n ticid ad e e valor artístico. E n tre ta n ­ to, os paradigm as sobre a “m úsica m estiça” , criados no m o m en to em foco, não foram in te i­ ram en te substituídos. 7 W aldenyr C aldas. Iniciação à música popular brasileira. São Paulo: Atica, 1989, p. 5. s G u ilh erm e M ello. A música no Brasil. Bahia: T ipografia S. Joaquim , 1908, nota ao leitor, prim eira página. Para se te r idéia geral, o livro está organizado cm cinco capítulos. O p ri­ m eiro capítulo ap resen ta a influência indígena e je s u ític a (“o período da form ação” ), o segundo, a influência portuguesa, africana e espanhola ( “período da caracterização da m ú ­ sica nacional brasileira” ). O terceiro capítulo é sobre a “influência b rag an tin a” (influência artística dos reis d e Bragança, do século X V III ao final do período m onárquico, com um inventário sobre a m úsica mais erudita). O quarto refere-se ao “período da d egradação” (após a G uerra do Paraguai, com a im portação e valorização excessiva da m úsica francesa e européia), e q u in to dedica-se à “influência rep u b lican a” (período q u e teria resgatado os tem as nacionais).

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pe n d e do indivíduo e da raça a que pertence. Reconhecer-se-ia a arte musical dc um país consultando-se a “influencia dos povos que contribuíram para a constituição de sua nacionalidade” . Aplicando suas premissas com muito otimismo, declara que no Brasil não haveria dúvidas da grande vitalidade da “música popular brasileira” (011 da “música nacional brasileira” ). O “nosso estilo característico” (independente se na cidade ou na zona rural) — a modinha, o lundu e a tirana — ter-se-ia constituído da “fusão do elem ento indígena com o português, o africano e o espanhol.”9 Para o autor, o Brasil era a terra por excelência da música, onde não se sabia dizer qual a qualidade mais exuberante, se a flora, se a fauna, se a música. M esm o as formas mais pobres de harmonia ou menos ricas de melodia, m e­ nos ritmadas ou com m enos temas não deveriam ser desprezadas ou abando­ nadas. Todas teriam seu valor relativo conforme o lugar em que são executa­ das e a sua aplicação histórica.10 Dialogando com o Melo Morais Filho, que defendia a existência de “m ú­ sica popular” m esm o nas coletividades “mais bárbaras”, Guilherme de Melo reafirma a existência de uma música (popular) brasileira, da mesma forma que existiria um a espanhola ou russa. Assim, aproximando a “música nacio­ nal” de outras marcas da nacionalidade, pergunta-se... “como pois não termos uma música essencialmente nacional desde quan­ do temos um a tradição, u m clima e uns tantos costumes precisamente bra­ sileiros.” 11 O livro de Renato Almeida, História da Música Brasileira, já incorporando a perspectiva modernista, que levará muito longe a idéia de a “música popu­ lar” ser a base para a formação da “moderna música brasileira” , aproxima-se de muitas afirmações de G uilherm e de Melo. Considera a “música popular” um fruto da mestiçagem e a marca positiva da identidade nacional (e viceversa). Para o autor, qu e se tornará nas décadas seguintes um dos maiores articuladores do M ovim ento Nacional do Folclore, o “canto popular” , no Brasil, como n e n h u m a outra manifestação, expressa a nossa alma, a dor do conquis­ tador e do conquistado, de portugueses e negros, diante do magnífico cená­ rio. N a avaliação de Renato Almeida, ainda estava cedo para se definir a in­ fluência da música indígena no canto popular.12

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in t e le c tu a is id e n t if ic a r e m a c ria ç ã o d e e s tilo s n o v o s e o r ig in a is — a p e s a r d a in d is f a r ç á v e l e p r o b le m á t ic a in f lu ê n c ia n e g ra — c o m as m a rc a s d c u m a p r e ­ te n s a id e n t id a d e n a c io n a l. P r o c u r a n d o h a r m o n iz a r m u s ic a lm e n t e as m e lo d ia s s e m re g is tro s e r u d ito s , os in t e le c tu a is d a m ú s ic a a n a lis a d o s p a r e c ia m m e s m o q u e r e r h a r m o n iz a r — a g o ra n o s e n t id o d e c o n c ilia r e c o n g ra ç a r — as d ife r e n te s e v a ria d a s m a n if e s ­ ta ç õ e s m u s ic a is d o s s e to re s p o p u la r e s n u m p r o je to m a is a m p lo d e c o n s tr u ç ã o d a “ m ú s ic a n a c io n a l” e d e s u a h is tó ria . G u ilh e r m e d e M e lo a fir m a v a , e m 19 08 , c o m c o n v ic ç ã o , q u e n a E u r o p a a “ m ú s ic a p o p u la r ” h a v ia c o n t r ib u íd o p a ra a lg o m a io r. O s g r a n d e s m e s tr e s (B a c h , M o z a r t, H a y d n , G l in k a e G r ie g ) ter-se-iam b a s e a d o e m m e lo d ia s p o p u la r e s . P a ra R e n a t o A lm e id a , já e m u m a p e r s p e c tiv a m o d e r n is ta , a “ m ú s ic a p o p u la r ” era a “ v o z d a te rra ” , a “ m a s sa r u d e ” q u e h a v e r á d e m o ld a r a a rte b r a s ile ir a .'1 CONSTRUINDO UMA

ANÁLISE

SOBRE

UMA O

HISTÓRIA:

PERÍODO

COLONIAL

N o s te x to s a lis a d o s , c o m o v im o s , a lé m d a v a lo r iz a ç ã o d o m e s tiç a m e n to m u s ic a l, o u tr a p r e o c u p a ç ã o c o n s ta n te fo i c o m a c o n s tr u ç ã o d e u m a h is tó r ia d a “ m ú s ic a p o p u la r ” . S e r v in d o d e le g it im id a d e p a ra o n a c io n a l, a b u s c a d a o r ig e n s to rn o u - s e u m a ta re fa f u n d a m e n t a l, m e s m o c o m to d a s as d if ic u ld a d e s — c o m o , p o r e x e m p lo , a lo c a liz a ç ã o d e fo n te s — q u e e n v o lv ia m a m is s ã o . N o to c a n t e aos m a rc o s d iv is ó r io s d e s s a h is tó r ia m u s ic a l, os a u to r e s a n a lis a ­ d o s a p r o v e it a r a m as d iv is õ e s p o lític a s tr a d ic io n a is , c o lô n ia , m o n a r q u ia e re ­ p ú b lic a , e t e n d e r a m a fa z e r c o in c id ir a “ m ú s ic a b r a s ile ir a ” c o m os m a rc o s d a fo r m a ç ã o d o E s t a d o n a c io n a l. P a ra o p e r ío d o c o lo n ia l, c o m d e s t a q u e p a ra o s é c u lo X V I I I , fo i a t r ib u íd o u m s e n t id o e s p e c ia l, e m f u n ç ã o d a s b u s c a s so b re e v id ê n c ia s a n tig a s , o r ig in a is e típ ic a s , d o q u e os a u to r e s p r o c u r a r a m d e f in ir c o m o m ú s ic a p o p u la r b ra s ile ir a . A s s im , c o m b o a d o s e d e m o n o t o n ia , d e s fi­

31 A lm eida. O p. cit., p. 15-6. D epois d esta visão geral sobre as prim eiras tentativas de se defin ir e historicizar a m úsica popular, um grande au sen te req u er com entários: M ário de A ndrade. E m 1928 c 1929 publicou textos específicos sobre o assunto: Ensaio sobre Música Brasileira c Compêndio de História da Música. N eles tam b ém associou a existência de um a “m úsica brasileira” às “características m usicais das raça” (form ada pela m istura d e índios, negros e portugueses), encontradas na “música popular” . Posteriorm ente, Mário de A ndrade foi q u em mais ap rofundou teo ricam en te c cm pesquisa esta relação, p rin cip alm en te por estar preocup ad o com a produção da m úsica artística brasileira. Pelos lim ites d este trabalho c im portância posterior de sua obra, será im possível tratá-lo a d eq u ad am en te aqui. D c q u a l­ q u e r form a, d ev e ficar registrado q u e, nos dois trabalhos m encionados, apesar do p eq u en o espaço q u e ded ico u à “m úsica p o p u lar”, tam bém d esenvolveu a análise com base nas positivas “influ ên cias” am eríndia, portuguesa, africana (essas duas últim a dc maior peso) e espanhola.

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lam nos textos as seguintes temáticas: influência indígena, influência jesuítica, influência portuguesa e africana (às vezes espanhola). G uilherm e de Melo explicitamente estabeleceu os atributos relativos aos tempos coloniais: período de formação e caracterização. Tudo o que viria d e ­ pois seria apenas “desenvolvim ento” . Os traços básicos estariam definidos muito antes de se iniciarem as preocupações com o que seria a música popu­ lar (e antes mesmo de existir o próprio Brasil). Renato Almeida não ficou muito longe desta perspectiva, ao estabelecer o título “a música popular” para o primeiro capítulo dc seu livro, já que o se­ gundo tinha como marco cronológico inicial “o começo do século X IX ” .í: A impressão com que ficamos, após a leitura dos textos, é a de que a “música popular” (brasileira) de alguma forma já existia desde o estabelecim ento da colonização. G uilherm e de Melo argumenta que, no século XVII, já se observava “a fusão dos costumes e do sentim ento musical”" entre indígenas, portugue­ ses, espanhóis e africanos, começando, então, a caracterização do que o autor considera como os “três tipos populares da arte musical brasileira: o lundu, a tirana e a m odinha” . Cada estilo teria sido importado dc uma região d iferen­ te, África, Espanha e Portugal, respectivamente, mas aqui “se propagaram entre os mestiços, se identificaram com o sentim ento pá­ trio, com o nosso meio, nosso clima e o nosso gênio, produzindo, no caso do lundu, a nossa chula, o nosso tango ou o nosso lundu propriam ente dito” . Todas elas, “receberam as tintas e os traços do sentim ento nacio­ nal” , se “caraterizaram” , “mais tarde”, “brasileiras” .'4 Para Renato Almeida, a origem de uma outra característica de “nosso can­ to” , a melancolia, tam bém podia ser atribuída aos tempos coloniais, em fun­ ção das condições de vida enfrentadas por índios, portugueses e negros. N a perspectiva do autor, a alma do brasileiro guardaria esse “fundo trágico em que o hom em tem e a natureza e procura vencê-la pela imaginação exaltada, caindo depois em abatimento e langor” .'5 Em suas palavras: “Melancólico era o índio fugidio e indolente, que vivia a vida cheio de nostalgia, num perpétuo espanto pelas coisas que o cercavam; melancólico era o lusitano, ousado mas triste, vivendo no mar e com a saudade da pátria

32 33 34 35

Ver na N ota 12 a tem ática dos outros capítulos. G. M ello. O p. cit., p. 29. Ib id em , p. 31-3. A lm eida. O p. cit., p. 24.

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sempre no coração; melancólico era o negro. caçado, roubado e escraviza­ do que sofreu no cativeiro uma dor irremediável e aniquilante.” 1'' A música dos portugueses, por sua vez, de fidalgos ou imigrantes plebeus, é vista como marcada por “árias sentimentais e comovedoras, que depois haveríamos dc transformar, fazendo-as brasileiras". Sobre a "raça preta", como já mencionei, Renato considera que “deu as notas mais vibrantes dos nossos cantos populares” . “O batuque dos negros, os recursos dos seus tim ­ bres, os elem entos fortes e diferentes de sonoridade, foram de uma riqueza admirável” .™N o mestiço essas qualidades teriam aprimorado a "alma nacio­ nal” , perdendo o batuque a sua violência e ganhando lugar uma “melodia langorosa e sensual” .'’9 A melancolia e a lascívia seriam as maiores marcas da “nossa” “música popular” . O mestiço ter-lhe-ia dado ainda mais volúpia.4'1 Luciano Gallet, apesar de não precisar especificamente um tem po colo­ nial, estabelece que a influência m útua entre negros e brancos — e a própria mistura racial e musical — possuía séculos. Alguns exemplos poderiam ser as festas das Pastorinhas, no início portuguesa, e o carnaval, antes europeu e mais tarde com grande presença negra. Entre o “povo” assistia-se ao bater das mãos com o ritmo sincopado; o mulato tinha trazido, “pela fusão de raça, o início da modificação do feitio” .41 N a avaliação do autor, no início do século XX, já não era mais possível distinguir especialmente as raízes de certos fatos e manifestações” :42 “todos esses elem entos misturaram-se em nós de hoje e m dia, e formaram material puram ente brasileiro” . D e n tre as inúmeras manifestações musicais citadas pelos pesquisadores em discussão, os lundus e as modinhas foram os gêneros escolhidos como exemplos contundentes da “música popular brasileira” nos tempos coloniais. N estes gêneros, apresentam expressões otimistas da miscigenação em mais de um sentido: português-negro e negro-português. Sobre o lundu, os autores, de forma unânime, precisam a origem negro/ africana e o posterior abrasileiramento, ainda no período colonial. Mário de Andrade, no final dos anos 20, chegou a considerá-lo como “canto e dança populares” no Brasil durante o século XVIII. Teria sido marcado pela sincopa e umbigadas, observando-se uma certa influência espanhola.4’

M‘ I b i d e m , p . 24. ” I b i d e m , p . 3 0. ■'* I b i d e m , p . 3 2. •” I b i d e m . 40 I b i d e m , p. 51. 41 G a l l e t . O p . c it., p . 5 3 . 42 I b i d e m , p . 54. 43 M á r io d e A n d r a d e . Dicionário m usical brasileiro. S ã o P a u lo : U S P , 1 989, p. 2 9 1 .

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A modinha recebeu mais atenção, talvez por ter sido apontada como um gênero de variados trânsitos: apesar das polêmicas, lhe era atribuída uma ori­ gem portuguesa mais erudita, cuja versão depois se popularizou, para retor­ nar de novo aos salões nobres tanto em Portugal, como no Brasil. Em geral, a m odinha é avaliada como tendo brilhado no século XVIII (e tam bém no sé­ culo XIX). N a corte portuguesa de D. Maria I, comenta-se que chegou a arrebatar os corações.44 Entretanto, apesar de todo este charme aristocrático, Renato Almeida con­ sidera que “a modinha é do caboclo, do moleque, que lhe sabe transmitir todo o langor, todo o enfeitiçado de sua alma de mestiço. D e todas as composições populares, ao lado dos lundus, dos fandangos, dos sambas e outras mais, a modinha é das mais características e sua melodia longa, nas serenatas, 011 nas noites de luar, parece um som da própria terra, que se perde no vago indefinível de nossa emoção... /L modinhas de Cláudio Manuel da Costa, Inácio Alvarenga Peixoto, Tomás Antônio Gonzaga, João Leal, [...], entre m ui­ tas outras, ganharam celebridade”45 (grifos meus). Pelas informações sobre lundus e modinhas divulgadas por Guilherm e de Melo, Renato Almeida e Luciano Gallet, é possível concluir qu e toda a mis­ tura racial e musical atribuída a esses gêneros é avaliada como se o processo fosse naturalm ente determ inado e construído: o inexorável caminho (e histó­ ria) da “música popular brasileira” . As formas e os estilos de música e dança, em detrim ento das ações e criações musicais dos agentes sociais, é que ga­ nhavam vida própria: misturavam-se e diversificavam-se, num sentido clara­ m en te predeterminado. Nas análises dos autores em destaque, não havia espaço para as questões conjunturais ou considerações sobre os conflitos e subversões q ue envolviam essas transposições, usurpações e apropriações de estilos realizadas por dife­ rentes sujeitos sociais. L u n d u s executados nas ruas e nos salões, e modinhas cantaroladas por escravos certam ente possuíam significados m uito diferen­ tes dos previstos e não foram vistos por contemporâneos d e forma tão unívoca. M uito m enos como indícios da salutar mistura produzida pela “música popular brasileira” .46 Os resultados alcançados pelos estudiosos da história da

44 G . M e llo . O p . c it., p. 1 3 9 -5 4 ; R e n a to A lm e id a . O p . c it., p. 2 3 -4 1 . 45 R . A lm e id a . O p . c it., p . 3 9 . M á rio d e A n d r a d e t a m b é m c o n s id e r a q u e , p e lo m e n o s d e s d e o f in a l d o s é c u lo X V I I I , a “ m o d i n h a é d o d o m ín io d e g e n t e p o p u l a r ... d o p o v o c o lo n ia l d o B r a s il” . C a ld a s B a rb o s a , o m e s tiç o q u e fa z ia s u c e s s o c o m s u a s m o d in h a s c m P o r tu g a l e n o B ra s il, c o r p o rif ic a a e m e r g ê n c i a d a “ m ú s ic a p o p u la r b r a s ile ir a ” ( A n d r a d e . O p . c it., p . 3 4 7 ). 46 S o b r e d i f e r e n t e s s ig n if ic a d o s so c ia is p a ra p r á tic a s c u ltu r a is c o m u n s , v e r M a r th a A b r e u . O

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“música popular” estão, na verdade, muito próximos de uma projeção ao pas­ sado das angústias do presente, onde se buscava construir uma identidade mestiça e musical. Nas histórias da música criadas, o século XIX chegou a merecer destaque, e m função das transformações operadas na música erudita, a partir do estabe­ lecimento da corte portuguesa no Rio de Janeiro e da posterior organização do país in d ependente. Os tem pos coloniais, com maior destaque para o sécu­ lo XVIII, certam ente pelo peso que é dado ao aprofundamento da mestiça­ gem, pelo maior dinamismo da vida urbana e pela maior disponibilidade de fontes, são tratados como um único grande tempo, onde conviveram e se misturaram, gradativa e harmonicamente, índios, portugueses e negros, suas músicas e ritmos para a formação da “música popular brasileira” .47 j&Sta

Todas estas visões e versões sobre a música popular no período colonial, por incrível que possam parecer, perm aneceram de alguma forma presentes em vários estudos que seguiram aos dos pioneiros, como os de Oneida Alva­ renga, Marisa Lira, Ari Vasconcelos e Valdenir Caldas. E razoavelmente unâ­ nim e entre os autores a idéia de que os tempos coloniais aparecem como o período de formação — de amálgama e fusão — de “nossos cantos popula­ res” mestiços. O neida Alvarenga, por exemplo, discípula predileta de Mário de Andrade, afirma, na década de 50, que o docum ento mais antigo comprovando a exis­ tência de um lundu de “brancos e pardos” é de 1780: uma carta escrita pelo governador de Pernam buco ao governo português sobre as danças de negros brasileiros denunciadas ao Tribunal da Inquisição. Considerado muito inde­ cente, o lundu teria chegado aos salões ainda no século XVIII, mas principal­ m ente no Primeiro Reinado. Segundo Oneida, “O lundu foi a primeira forma de música negra que a sociedade brasileira aceitou e por ela o negro deu à nossa música algumas características importan­ tes dela, com a sistematização da sincopa e o emprego da sétima abaixa­ da”48 (grifos meus).

império do divino, festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. R io d e J a n e i ­ ro: N o v a F r o n t e ir a , 1 999. 47 E v i d e n t e m e n t e , o s p e s q u is a d o r e s a n a lis a d o s r e c o n h e c e m a e x is tê n c ia d e e s tilo s m u s ic a is q u e p e r m a n e c e m lig a d o s a g r u p o s é tn ic o s e s p e c ífic o s , c o m p a s to ris , c u c u m b is , r a n c h o s , c h e g a n ç a s , c o n g o s , r e is a d o s , e tc . 48 A lv a r e n g a . O p . c it., p . 150.

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Estas duas “constâncias da música brasileira” , Mário de Andrade teria e n ­ contrado, segundo Oneida Alvarenga, em um lundu canção escrito por C â n ­ dido Inácio da Silva, em 1834, fornecendo elem entos para ambos concluírem que, por essa época, “tais elem entos já estavam perfeitam ente fixados como caracterizadores da música afro-brasileira” .4y Apesar de marcar a transformação do lundu dança em canção como condição para a aceitação da “sociedade colonial” , a autora não levou em conta a possibi­ lidade de completa mudança semântica a partir dessa sutil variação. Parecidos, lundus poderiam ter significados completam ente diferentes. Oneida apenas ressalta que, neste outro ambiente, foram introduzidos a comicidade e o sorriso como disfarces psicossociais. A louvação da negra e da mulata, marca registrada dos lundus mais “brancos”, é vista pela autora, sem nenhum a dose de problematização, como uma “condescendência com os amores da terra” . A figura citada como importante divulgador do lundu — “e outras doçuras mestiças” — para diferentes ambientes, não poderia deixar de ser o mulato Domingos Caldas Barbosa, filho de pai português e mãe angolana. Outro bom exemplo é o de Ari Vasconcelos que, na década de 1970, afirma já existir, entre 1500 e 1780, uma música tocada e cantada no Brasil como fruto de um “processo de caldeam ento” . Entretanto, ela era anônima e fol­ clórica. Argumenta que José de Anchieta teria possivelmente composto cateretês; Gregório de Matos teria escrito e cantado lundus, apesar de as peças não mais serem encontradas nos dias de hoje. Para o autor, é apenas após 1780 que “efetivam ente começam a aparecer as primeiras formas populares — o lundu e a m odinha — e a surgir, em maior escala, nomes de compositores, cantores e músicos, quando... nasce a musica popular brasileira, isto é, ela se põe a correr em leito próprio... E é tam bém quando se vai começar a dispor da documentação a ela relativa.”50 Ari Vasconcelos declara, em tom muito animado, que o Brasil ainda era um a colônia de Portugal e já com punha “encantadoras modinhas e saborosos lundus” .51 E m destaque, o sempre mencionado Domingos Caldas Barbosa (1740-1800). Ao iniciar a segunda e maior parte de seu livro — Raízes da Música Popular Brasileira — que se refere aos personagens, o subtítulo esco­ lhido foi, nada mais nada menos, “Música Popular Brasileira na Fase Colo­ nial (1500-1808)” .52

49 I b i d e m , p . 150. 50 A ry V a s c o n c e lo s . R aízes d a música p o p u la r brasileira. S ã o P a u lo : M a r tin s , p . 14. 51 I b i d e m , p . 15. 52 P a r a o s é c u lo X V I, d e s c r e v e F r a n c is c o d a s V acas, J o s é d e A n c h ie ta ; P a r a o X V I I , P e . L o u -

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Para mencionar o trânsito social de determinados estilos musicais, o autor menciona que, em 1871, muitos lundus e modinhas antigos teriam sido compendiadas na coleção “Prazeres do Baile” . Como de costume, não em ite comentários sobre as evidentes modificações, ao menos de significado, que estas harmonizações devem ter sofrido. A “música brasileira” e seus estilos pairavam sobre épocas, agentes sociais e novas versões. Esta foi d mesm a forma como Marisa Lira tratou o lundu. De início, afirma que a música cra simples e tinha mais marcação que harmonia. Entretanto, como os “tem pos foram m udando”, passou-se das agruras da escravidão e dos negros para um lundu que “cantava a mestiça” , com entusiasmo. “O lundu não se deixou ficar nas senzalas, os moços brancos seduzidos pela letra desabusada e pela música desenvolta... trouxeram-no para a alegria das se­ renatas” .5'’ Para a autora, “a música brasileira” tam bém é o resultado do “amálgama” da “cadência do negro” e da “harmonia do europeu” . A modinha, em sua opinião, ocupa papel de relevo, pois foi a mais expressiva forma de música popular: “cantava lindam ente a índole e os costumes do povo, dominando na casa do pobre e imperando no solar dos morgados” . Assim, definiu o estilo: “A m odinha é o Brasil de ontem, Brasil-colônia, quando o povo começa­ va a se caracterizar.”54 Por fim, para completar o quadro das visões sobre a gênese e origens (títu­ lo do primeiro capítulo) da “música popular brasileira”, o livro de Valdenir Caldas é especial pela sua atualidade e circulação. Para o autor, produtor de um a espécie de síntese sobre toda essa historiografia clássica que valoriza o mestiçam ento racial (e tam bém social), a “nossa música” surge com “os pri­ meiros centros urbanos, no Brasil colonial do século XVIII, por volta de 1730. Acrescenta, contudo, que a “síntese” m esmo “da nossa expressão musical urbana, através do hibridismo de sons indígenas, negros e portugueses” , só se configuraria a partir do final do século XIX.55 E m sua perspectiva, dentre os ritmos de maior significação “na formação

r e n ç o R ib e ir o c G r e g ó r io d e M a to s ; p a r a o X V I I I , A n tô n io J o s é d a S ilv a , D o m in g o s C a ld a s B a rb o s a , T o m á s A n tô n io G o n z a g a , P e . D o m in g o s S im õ e s d a C u n h a , M a rc o s P o r tu g a l, P e . J o s é M a u r íc io , D a m iã o B a rb o s a , J o ã o P a u lo M a z z in o tti. 53 M a riz a L ir a . B ra sil sonoro. R io d e J a n e iro : A N o it e , p . 75 e 76. 54 I b i d e m , p. 12 c 13. 55 E s t a p o s iç ã o s o b r e o fin a l d o s é c u lo X I X a p a r e c e ta m b é m e m M á rio d e A n d r a d e e e m O n e i d a A lv a r e n g a , m a s n ã o é d o m i n a n te , n e m a p a g a o p a p e l a tr ib u íd o a o p e r ío d o c o lo n ia l, c o m o o p r ó p r io t e x to d o a u t o r m o s tr a ( C a ld a s . O p . c it., p. 5). É c u r io s o q u e C a ld a s c h e g a a a d m i t i r q u e o e s t u d o d a m ú s ic a e x ig e a d is c u s s ã o s o b r e a s m u d a n ç a s n o t e m p o e n o s p e r ­ m i t e c o n h e c e r m e l h o r a s o c i e d a d e d a é p o c a . E n tr e t a n t o , m a n té m to d o s o s p a r a d ig m a s d o s p r im e ir o s h is to r ia d o r e s d a m ú s ic a .

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da cultura musical brasileira” , continua valorizando o lundu, ao lado do caterctê e da habanera. A modinha, apesar de não constar neste primeiro patamar, logo aparece como originada daquelas, assim como o maxixe c, posterior­ mente, o samba. Ou seja, desde o período colonial, haveria linhas dc filiação, dando sentido a todas as “nossas” variações musicais. O lundu, registrado desde o século XVII, com Gregório de Matos, teria tido para Valdenir Caldas o seu “esplendor” no final do século XVIII c início do XIX. Paulatinamente, registra o autor, foi penetrando nos salões, mas como canção. O lundu teria sido a primeira manifestação musical negra aceita pela sociedade brasileira, “apesar dos limites” . Valdenir Caldas admite que, no momento de “ascensão” , o lundu perderia suas características próprias, tornando-se com pletam ente diferente, sem os movimentos coreográficos típicos. Entretanto, não consegue escapar de um comentário preconceituoso sobre o lundu negro ou popular, ao declarar que, chegando aos salões, “desapareceriam do lundu a bolinagem, a sensualidade, a malícia, enfim, toda a sutileza erótica e estética inerente ao lundu-dança” ."’'’ A atribuição destas características e adjetivos, envolvendo a pretensa sensualida­ de dos lundus negros, é fruto de julgamentos externos (geralmente censurá­ veis e condenáveis) aos próprios dançarinos e inventores de lundus. Ao dedicar-se a explicar a modinha, o autor passa definitivam ente a repro­ duzir, certam ente de forma mais sofisticada, as tradicionais visões sobre a história da “música popular brasileira” . Procurando datá-la no final do século XVII, a “música popular” teria realmente se popularizado no século XVIII, com o famoso Caldas Barbosa, que havia escandalizado, em 1775, a rainha de Portugal pela forma “direta e maliciosa de seus versos” . Segundo Valdenir Caldas, muito próximo ao lundu, apesar de ter passado por um processo in­ verso a este estilo, a modinha conseguiu unir a “aristocracia com o hom em do povo” . Em suas próprias palavras: “A aristocracia passava, então, a dividir com o h om em do povo o prazer de dançar e de cantar os versos da m odinha.”57 Mais adiante, ao procurar convencer o leitor de qu e existiam duas m odi­ nhas, a vulgar e a aristocrática, não consegue escapar da tentação de afirmar que a segunda manteria a “erudição européia, embora já com a indisfarçável presença do «sotaque» brasileiro” .58 A primeira, a vulgar, “vararia o tempo, continuaria viva, pois era o seu destino histórico” .59

56 C a ld a s . O p . c it., p . 8 -1 3 . 57 I b i d e m , p . 1 9-2 3 . 58 I b i d e m , p. 21. 59 I b i d e m .

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Produzindo explicações com base em misturas raciais, de harmonizações de estilos e de uma pretensa identidade nacional, grande parte da literatura sobre música popular brasileira m antém as versões e as premissas dos primei­ ros articuladores de uma “música nacional” . Todas aquelas versões, como procurei explicitar, tinham em comum a busca de uma identidade nacional musical mestiça, desde o período colonial, maior preocupação com os estilos musicais do que com os significados da produção cultural dos agentes sociais, e a visão de que os processos culturais ocorrem sem conflitos. Apesar dos problemas, o resgate crítico destas obras pioneiras permanece um a tarefa necessária ao historiador, preocupado com a história da música popular, seja nos tem pos coloniais, no século XIX ou no século XX. E não apenas pelo fato de indicarem importantes fontes e estilos musicais, mas tam ­ bém pelas suas recorrentes presenças em produções atuais sobre o tema. Para além da necessidade, estas obras trazem aos historiadores de hoje grandes desafios. Com o interpretar e e ntender os constantes e observáveis trânsitos e sincretismos musicais entre negros e brancos, escravos e livres, populares e senhores, nascidos no Brasil e em Portugal, sem o viciado viés do “mito das três raças” e da identidade nacional mestiça? Se a discussão desses desafios não cabe nos limites deste artigo, vale a pena registrar que modinhas, lundus, cateretês, chulas, sambas e maracatus abrem novas possibilidades de pesquisa e são bons motivos para se buscar com preender historicamente as manifestações e os hibridismos culturais pro­ duzidos por diferentes agentes sociais. Estes velhos estilos, certamente, m e­ recem novos olhares e novas problematizações, livres dos indicadores das marcas inconfundíveis de uma pretensa identidade nacional, mestiça. □ □ □ a r t h a A breu é professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense e autora dos seguintes livros: M eninas P erdidas, os po p u la res e o cotidian o do a m o r no R io de Janeiro d a B elle Epoque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; O Im pério do D iv in o , fe sta s religiosas e cultura p o p u la r no R io de Janeiro, 1 8 3 0 -1 9 0 0 . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

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R k s u m o . Fundado em importantes trabalhos sobre a história da “música popular brasileira”, este artigo tem como objetivo discutir a construção (ou invenção) da ver­ são musical da identidade nacional brasileira e o papel atribuído ao período colonial.

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Com licença do Ordinário & do Prepofíto geral da Companhia dc I E S V. Em Coimbra per Antônio de Mariz. 1595#

José de Anchieta. Arte da grammatica da lingua mais usada na costa do Brasil 1595 Coimbra: Antonio de Mariz. Impresso sobre papel 15 x 10 cm. Évora, Biblioteca Pública de Évora, inv. n.° Res. 274. Brasil-brasis: cousas notáveis e espantosas (A cons­ trução do Brasil: 1500-1825). Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 96. Foto André Ryoki.

PALAVRAS EM MOVIMENTO: AS DIVERSAS IMAGENS QUINHENTISTAS E A UNIVERSALIDADE DA REVELAÇÃO’ G u i l h e r m e

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E n t r e o s m a i o r e s desafios encarados por missionários jesuítas nas festas religiosas do século XVI na América portuguesa, figurava a proclama­ ção do testem unho cristão ao heterogêneo público que as freqüentava. As práticas de representação e dramatização alegórica apresentavam-se como elem entos capazes de enfrentá-lo. Os recursos disponíveis para tanto eram vários, a começar por suas combinações, no espaço e no tem po da festa, com vários elem entos artísticos, simbólicos, litúrgicos, ritualísticos, devocionais e retóricos. O chamado “caderno de Anchieta” oferece-nos hoje a possibilida­ de de ter contato com um riquíssimo m undo religioso composto por imagens alegóricas constituídas por palavras. Trata-se de textos fragmentários possí­ veis de serem combinados de múltiplas formas, d e p endendo do contexto festivo nos quais seriam utilizados e que, quando proclamados, teriam a tare­ fa de afetar os participantes, movendo-os à devoção e revelando-lhes a “ver­ d a d e ” bíblica. Pretendem os problematizar dois aspectos fundamentais dos textos para

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C o m le v e s a lte r a ç õ e s , e s t e te x t o c e x c e r to d o te r c e ir o c a p ítu lo d e m in h a d is s e r ta ç ã o d e m e s tr a d o : G u il h e r m e A m a ra l L u z . / L festas e seus papéis: as representações e dramatizações alegó­ ricas no interior das festas religiosas do Brasil quinhentista. C a m p in a s : U n iv e r s id a d e E s ta d u a l d e C a m p in a s , 1 999. A g r a d e ç o ao s p r o fe s s o r e s P a u lo M ic e li, L e a n d r o K arn al e A lcir P é c o ra a c o la b o ra ç ã o , s u g e s tõ e s e le itu ra s , e m b o r a to d a a r e s p o n s a b ilid a d e p e lo c o n te ú d o a p r e s e n ta ­ d o s e ja e x c lu s iv a m e n te m in h a . A g ra d e ç o e s p e c i a lm e n te à F u n d a ç ã o d e A m p a ro à P e s q u is a d o E s t a d o d c S ão P a u lo ( F a p c s p ) p e lo f in a n c ia m e n to d o p r o je to q u e r e s u lto u n e s te tra b a lh o .

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dar conta da heterogeneidade do público ao qual se dirigiam suas m ensa­ gens: a pluralidade de línguas — privilegiando a utilização do léxico indígena — e a redundância moral, que, recorrentemente, aparece cm várias alegorias presentes em um único texto. Interessamo-nos, assim, pela confecção da dramaticidade alegórica das festas presente nos diálogos, nas canções, nas repre­ sentações, nos entrem ezes e nos autos como integrante de um projeto evangelizador, no qual a “boa-nova” haveria de ser proclamada para todos dc for­ ma legítima, devota, verdadeira e bela. P L U R A L ID A D E E

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E comum encontrar, no “caderno de Anchieta”, textos polilíngties, mistu­ rando o português com o espanhol e o “tupi” . Acham-se tam bém textos escri­ tos em uma ou duas dessas línguas e outros escritos em latim e português. Segundo a interpretação dc Leandro Karnal, a muldvocidade presente nos textos deve ser entendida em total relação com um sentido unificador do Catolicis­ mo. Sobre isso diz: “há multivocidade sutil, através da sintaxe tupi dos versos com a métrica ibérica; há multivocidade estratégica ao integrar demônios indí­ genas ao mundo ínfero cristão, misturando-se cosmogonias. Porém, o sentido maior advém de que todas estas vozes permanecessem associadas a um senti­ do unificador, como uma espécie de «ponto de fuga» da pintura renascentista. O ponto unificador e imposto pelo autor é, exatamente, o Catolicismo. Som en­ te o Catolicismo poderia, na colônia, integrar tantos elementos num único dis­ curso” .1Abre-se, assim, um campo de investigação para quem busca com preen­ der as particularidades do cristianismo fundado na ação missionária: o da apro­ priação da língua indígena para a revelação de sentidos cristãos.2 A incorporação de palavras ou radicais da “língua geral” ao discurso cristão só é possível pela crença na universalidade da Revelação. N esse sentido, é importante lembrar o trabalho de Ronald Raminelli, segundo o qual, nos sé­

1 L eandro Karnal. Teatro da fé. Representação religiosa no B rasil e no México do século XVI. São Paulo: H ucitec, 1998, p. 102. 2 Tal apropriação, q u e foi co n stan te nos esforços m issionários jesuíticos c p articu larm en te e n tre os povos “tu pis-guaranis” , não se resum ia apenas à sistem atização dc um léxico, abran g en d o tam b ém estu d o s a resp eito dc “gram ática” c dc padrões “discursivos” ou “retóricos” . Além disso, cra recorrente a utilização de autoridades indígenas com o p reg a­ dores c in térp re tes. Várias posturas p eran te ela têm surgido. É o caso, por exem p lo , do artigo recen te d c M aria L eônia C. de R esen d e, no qual se p erceb e com o essa estratég ia foi fun d am en tal para a ação m issionária ser aceita e n tre os guaranis no século X VII, q u an d o os jesu ítas tiveram d c ce d e r aos padrões “retóricos” locais, um a vez q u e “a soberania e au to ­ ridade eram reconhecidas pelos guarani [...] pela forma q u e [o chefe] proferia sua arenga, sua fala” . Ver M aria L eô n ia C haves d e R esende. “Jesuítas: os m estres do N e e n g a tú ” , in: Estudos Ibero-Americanos, PU C R S , X XV (\):2W , ju n h o de 1999.

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culos XVI e XVII, acreditava-se na origem comum entre indígenas e euro­ peus, tendo ambos vivido a “primavera dos tem pos” , embora os indígenas teriam depois se degenerado graças a uma “segunda q u e d a ” . Seguindo nas pistas de Raminelli, a tarefa do missionário seria reverter o processo de degeneração da “cultura” indígena, extirpando-lhe os “maus hábitos” e ensi­ nando os verdadeiram ente cristãos. Como toda criatura “racional” , os índios estariam aptos a apreendê-los.' 'le n d o participado da Revelação, os índios não seriam totalm ente despro­ vidos de algum conhecim ento da “verdadeira religião” . Contudo, ele teria sido deturpado pela oralidade e pelo estado de “degeneração” de seus costu­ mes ou de “diferença de criação” . Isso é o que sugere H élène Clastres, quan­ do afirma que os “viajantes”4 do século XVI não viram os indígenas do tronco tupi-guarani como idólatras ou fetichistas, restando “neles ver cristãos balbuciantes, que só teriam retido de uma antiga revelação fragmentos mais ou m enos corretam ente retransmitidos de geração em geração” .5 Com base nes­ sa pré-concepção a respeito da origem dos indígenas, os relatos identificam, nas histórias míticas dos tupis-guaranis, correspondências e deturpações em relação à Escritura. Surgem associações, por exemplo, entre Sutné e São To­ mé, tupã e o D eus cristão, anhangá e o demônio, entre outras.6 D e algumas palavras encontradas que pudessem corresponder, mesmo que de forma “deturpada” , à cosmogonia cristã, derivavam outras. O caso mais instigante é o do grupo formado a partir da palavra tupã. Alfredo Bosi, bus­

' Ver R onald R am inelli. “G en tio s e religiosos” , in: Imagens da colonização: a representação du índio de Caminha a Vieira. Rio dc Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 23-52. O famoso Diálogo sobre a conversão dos gentios (1557) do P adre M anuel da N óbrega é um bom exem plo da crença a q u e nos referim os. N e le, a personagem M ateus N ogueira, um irmão da C o m p a­ nhia de Jesus, te n ta co n ven cer outro, G onçalo Álvares, de que os índios são aptos a serem convertidos ao cristianism o. S eu principal argum ento é a universalidade da Revelação. R ecom endam o s com o referência a edição publicada por Serafim L eite em 1954: M anuel da N óbrega. Diálogo sobre a conversão do gentio. Introdução e notas de Serafim L eite. L is­ boa: E dição C om em orativa do IV C en ten ário dc São Paulo, 1954. Já acerca das hipóteses q u in h en tistas c seiscen tistas a respeito da origem do hom em am ericano, sugerim os o arti­ go: W alter C ardoso. “O im aginário ibérico dos séculos XVI e XVII, na origem do hom em am ericano” , in: Estudos de História, Franca, 5(l):121-34, 1998. 4 G rafam os o term o viajantes e n tre aspas por se tratar dc um term o da autora a q u em nos referim os. Para H élè n e C lastres, o term o engloba cronistas e m issionários de várias origens européias d istintas e de religiões d iferen tes q u e escreveram sobre os tupinam bás na costa brasileira ou sobre os guaranis da região do prata e n tre os séculos XVI e XVII. 5 H élcn e Clastres. Terra sem mal: o projetismo tupi-guarani. São Paulo: Brasiliensc, 1978, p. 22. h N o livro d e H é lè n e C lastres, tem os exem plos dc algum as destas associações. Ver Ibidem , p. 23-32. T am b ém Sérgio B uarque de H olanda se d etém , em um de seus capítulos de Visão do Paraíso, cm um a das associações e n tre m itos indígenas e cristãos. É o caso de “ Um mito luso-brasileiro” , no qual o autor discorre a respeito do m ito dc São T om é. Ver Sérgio B uarque d e H olanda. Visão do paraíso. Os motivos edênicos do descobrimento e colonização do Brasil. 5.J cd. São Paulo: B rasiliense, 1992, p. 108-29.

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cando a possível relação entre essa palavra e Deus, diz que “tupã era o nome, talvez onomatopaico, de uma força cósmica identificada com o trovão, fenô­ m eno celeste que teria ocorrido a primeira vez com o arrebentam ento da cabeça de uma personagem mítica, Maíra-Monã” . Bosi critica a apropriação dessa palavra para significar Deus, chamando-a de aleatória, pois haveria um salto muito grande de significados entre ela e o conceito de um D eus uno e trino, onipotente e nascido de uma virgem.7 Contudo, parece-nos que seria digno de maior espanto caso os jesuítas tivessem achado uma palavra indígena perfeitamente adequada à noção de Deus cristão. E preciso que com preenda­ mos o sentido da associação, notando como a palavra tupã revela-se como Deus aos olhos cristãos, servindo de radical para a formação de outras palavras. Bosi indica-nos uma pista. A morte de Maíra-Monã liga-se a uma faceta importante de tupã que, como diz Clastres, rem ete à imagem de um Deus destruidor: causa de todos os cataclismos, entre os quais o “dilúvio” , que, assim como outros eventos míticos indígenas, teria sido associado ao seu “cor­ respondente” cristão/ O Deus que aparece na figura dc tupã e o D eus da providência, da “casualidade” destruidora, suscitando o tem or pelo seu po­ der. N o entanto, para converter o indígena, era necessário expandir tal con­ ceito “precário” de Deus, ensinando seu “verdadeiro” significado. Para isso, apelava-se para a derivação de outros substantivos, partindo de tupã, que ampliassem o reconhecimento da Revelação. Os vocábulos que surgem são significativos. É o caso de tupã-tuba, Deus pai, e tupã-taíra, Deus filho. A respeito das palavras indígenas sobre filiação, diz Varnhagen que: “o pai denominava ao filho taíra ou «o procedente do seu sangue»; e a mãe chamava-lhe membira, «o seu parido», o procedente de seu seio. Assim as escravas que os tupis tomavam por mulheres não eram somenos das demais, e aos filhos delas só passava a condição do pai. Filho de escra­ vo ficaria escravo: e se o pai havia sido inimigo, ainda que a mãe fosse filha de um principal, havia de ser sacrificado” .9 Da maneira como foi traduzido para a língua geral, “D eus filho” (tupã-taíra) assume, diretam ente, a conotação de um filho que herda somente a condição do pai {tupã-tuba), o D eus da Criação, que deve ser suavizado. Sua mãe, assim, seria mera tutora. A mãe de Deus, traduzida literalmente por Tupatisy, seria a mediadora entre o pai e o filho, o que não significa assumir um papel secundário na história sagrada, como evi­ denciam os seguintes versos:

7 A lfredo Bosi. “A nchieta ou as flechas opostas do sagrado” , in: Dialética Ha colonização. São Paulo: C om pan h ia das L etras, 1993, p. 65-6. * H élèn e C lastres. Terra sem m a l..., op. cit., p. 27-8. 9 Francisco Adolfo d e Varnhagen. “Idéias religiosas e organização social dos tupis: sua p ro ce­ d ên cia”, in: História geral do Brasil. Antes da sua separação e independência de Portugal, 'lo m o I. 9.a ed. São Paulo: M elhoram entos, 1975, p. 48.

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“Tupã ci porãgete oropab oromanomo orc moingobe yepe ndc mem bira monhiromo inõgatuabo orc raro mo ore anga piçiromo.” 10 Percebe-se, na tradução de Cardoso, que, embora a natureza de tupã-taíra seja herdada tão-somente do Pai, é a sua mãe quem teria a incumbência de torná-lo manso e compassivo: misericordioso. A suavização de tupã seria a condi­ ção da salvação da alma dos que entoariam a canção, o “nós outros” (ore), pe­ dindo o auxílio dctupansy. E de grande valia repararem um termo que Cardoso não traduziu: porangeté. Sugerimos para ele a seguinte tradução: “verdadeira­ m ente bela”, de modo que todo o sintagma poderia ser traduzido como “Mãe de D eus verdadeiramente bela” .11 Mas o que significa uma “beleza verdadei­ ra” ? Só é possível descobrir caso a polissemia da palavra etéseja avaliada. Sugerimos considerar quatro vocábulos: tapyreté, cãoy etê, temiricô etêe abaeté.n Léry, em sua Histoire, traduz tapyr por asnovaca, sugerindo que o animal exótico da terra assemelhava-se a uma mistura de dois conhecidos, o asno e a vaca.13 Cardim, em seus Tratados, define tapyreté da seguinte forma: “Estas são as antas [...]; parecem-se com vaccas e muito mais com mullas” .14 Gândavo tam bém compara antas a mulas e vacas, dizendo que “são da feição de mulas, mas não tam grandes” .15 A mesma comparação é encontrada em An-

111 José de A nchieta. Poesias. Transcrição, tradução e notas de Maria dc L urdes dc Paula M artins. Belo H orizontc-S ão Paulo: Itatiaia-E d u sp , 1989, p. 25. N a tradução de A rm ando Cardoso: “M ãe dc T upã, o teu brilho/a nós todos nos conforte/na hora da nossa m orte,/fa/.endo m an­ so teu F ilho/e com passivo;/que teu auxílio/salve nossa alma do exílio” . (José dc A nchieta. Teatro (te Anchieta. T radução versificada, introdução c notas dc A rm ando Cardoso. São P au ­ lo: Loyola, 1977, p. 246.) 11 Maria de L ourdcs d c Paula M artins traduziu o sintagm a, dc forma sem elhante à que propo­ mos, por “M ãe de D eus m uito form osa”. Ver: José dc Anchieta. Poesias..., op. cit., p. 569. A dvertim os, aqui, ao leitor q u e as palavras em língua geral encontradas cm textos d ife re n ­ tes variam de grafia e q u e não tem os intenção de hom ogeneizá-la. As razões para a varieda­ de de grafias é sim ples. C om o as línguas dos indígenas brasileiros não eram escritas, os cronistas, m issionários c colonos precisavam registrar sons, valendo-se, para isso, dos m orfem as próprios de suas línguas natais ou do latim. D essa forma, por exem plo, um falante do francês escreveria um a palavra tupi dc forma d iferen te da de um falante do português. 1,1 Jean Léry. Viagem à terra (to Brasil. T radução dc Sérgio M illiet. São Paulo: Biblioteca do E xército E ditora, 1961, p. 125. 14 F ernão C ardim . “D o clim a e terra do Brasil” , in: Tratados da terra egente do Brasil. 3.J ed. São Paulo: N acional, 1939, p. 26. 15 P êro d e M agalhães G ândavo. “H istória da província d c Santa C ru z” , in: Tratado da terra do B rasil e História da província de Santa Cruz. Belo H orizontc-São Paulo: Itatiaia-E d u sp , 1980, p. 104.

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chieta, mas esse informa que os índios as chamam de tapitara}1' E m outro m omento, contudo, diferencia tapiíretêác tapyruçú, sendo o primeiro relativo à anta e o segundo relativo à vaca ( “anta grande” ).17 Q uanto ao vocábulo cãoy etê, Anchieta o diferencia dc cãoy áyà da seguinte forma: “a seu vinho chamam cãov etê, vinho legítimo verdadeiro, à diferença do nosso a que chamam cãoy áyà, vinho agro”.18 Temiricôetê, traduzido por Anchieta para o latim, transformase em uxoruera, esposa legítima, admitindo ele ser o resultado da evangelização, q ue possibilitara ao índio destacar, dentre suas mulheres, uma preferida, mais querida e, por fim, única e legítima e s p o s a . J á abaeté, no dicionário de Silveira Bueno,20 significa “hom em verdadeiro, de palavra, honrado” . Nossas considerações bastam para mostrar que a palavra eté, além de signi­ ficar verdadeiro, traz implicações de legítimo, local em relação ao estrangei­ ro, bom, honrado e, até mesmo, “sagrado” . A beleza, portanto, de Tupansy (mãe de Deus) não é comum, mas fundam ental e legítima, irradiando sobre todos aqueles que, no m om ento da canção, p edem auxílio para a salvação da alma, invocando-a. A beleza verdadeira de Maria demonstra seu significado na relação entre “D eus pai” e “D eus filho” ; e seu culto é tam bém à miseri­ córdia e à possibilidade de salvação.21 Após essas breves considerações sobre o vocabulário de raiz tupi referente a Deus dos textos do “caderno de Anchieta” , percebemos que a apropriação da língua indígena não é aleatória e que os novos vocábulos gerados não revelam um sentido cristão precário. As palavras religiosas derivadas de radicais “tupis” anunciam imagens que descortinam o cristianismo específico que aflora no seio da experiência missionária jesuítica entre seus “alvos catequéticos” pri­ meiros: os índios. Combinados a palavras com origem em outros idiomas, os vocábulos “tupis” passam a integrar um mundo lingüístico que se expandia no século XVI: o do cristianismo, já menos preso ao latim elitizado dos teólogos da Igreja Romana. Devemos incluir a multiplicidade de línguas presente nos tex­ tos para representação no ambiente religioso em que Michel de Certeau identi­ fica a “fábula mística” como um modus loquendi, quando a unidade perdida pela fragmentação do latim em várias línguas vernáculas “gerou um trabalho de

16 José de A nchieta. “F azen d o a descrição das innum eras coisas naturaes, q u e se enco n tram na provincia de S. V icente hoje S. P aulo” , in: Cartas inéditas. Rio d e Janeiro: In stitu to dc D ocum entação /E dito ra da F undação G etú lio Vargas, 1989, p. 30-1. 17 José d e A nchieta. “Inform ação dos casam entos dos índios do Brasil” , in: Textos históricos. São Paulo: Loyola, 1989, p. 79. ,s Ib id em . 19 Ib id em , p. 78-9. 20 Silveira B ueno. Vocabulário tupi-guarani português. 6.“ ed. São Paulo: É feta E ditora, 1998. 21 E m alguns m om entos o adjetivo porangeté é utilizado com referência ao m en in o Jesus, tam b ém ressaltando sua docilidade, m isericórdia e am abilidade. Ver o poem a q u e se inicia com Pitangi Porangeté, traduzido por M aria de L o urdes de Paula M artins. José de A nchieta. Poesias..., op. cit., p. 601-06.

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combinar e aproximar aqueles dialetos rompidos como fragmentos de uma simbologia” .22 As novas formas de comunicar o mito tornam-se, segundo Certeau, práticas de tradução que respondem a situações específicas de interlocução.2' PALAVRAS ALEGORIAS

li M M O V I M E N T O : E REDUNDÂNCIAS

Textos maleáveis e recombináveis, repletos de marcas de oralidade, escritos em uma pluralidade de línguas é o que encontramos no “caderno de Anchieta” . N o mundo desses textos, as palavras se movimentam, combinam-se, ge­ rando imagens, por meio de recursos variados, como a escatologia cômica — que marca a composição de personagens demoníacas— , a docilidade lírica das figuras da Virgem e do menino Jesus, a maldade ignorante e patética dos peca­ dores e imperadores romanos, o tom imploratório dos que rogam pela salvação, o heroísmo estóico dos mártires e a onipresença da imagem de Cristo crucifica­ do. Recursos imagéticos que compõem mais uma dramaticidade religiosa do que propriamente teatral, mediante uma linguagem alegórica e redundante. Nas trilhas de Lukács, para Alfredo Bosi, “a alegoria exerce um poder sin­ gular de persuasão, não raro terrível pela simplicidade das suas imagens e pela uniformidade da leitura coletiva. Daí o seu uso como ferramenta de acul­ turação, daí a sua presença desde a primeira hora da nossa vida espiritual, plantada na Contra-Reforma que unia as pontas do último Medievo e do primeiro Barroco. A força da imagem alegórica não se move na direção das pessoas, como sujeitos de um processo de conhecimento; move-se de um foco de poder ao m esm o tem po distante e onipresente, que os espectadores anônimos recebem, em geral passivos, não como um signo a ser pensado e interpretado, mas como se a imagem fora a própria origem do seu sentido” .24 Destacando a alegoria como característica fundamental do que ele conside­ ra como “literatura de Anchieta”, Bosi acaba por reforçar uma concepção que aliena a artística das festas de seus fins religiosos e, ao mesmo tempo, subordina a primeira aos segundos. A alegoria, para Bosi, é o pilar de susten­ tação de um “instrum ento catequédco” , não de uma linguagem religiosa es­ pecífica. Apesar de discordarmos da posição instrumentalista de Bosi, compartilha­ mos com ele a idéia de que a alegoria é a grande marca dos textos do “cader­ no de A nchieta” e que ela realmente se apresenta como impessoal e imagética. Todavia, nada disso deve sugerir que as imagens alegóricas levam a uma atitude passiva do espectador, como se fossem vozes solitárias impostas a

22 M ichel d e C ertea u . La fable mystique (XVIe -XVIIesiècle). Paris: G allim ard, 1982, p. 160. 2,1 Ib id em , p. 165-79. 24 A lfredo Bosi. “A nchieta ou as flechas opostas do sagrado” ..., op. cit., p. 81.

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uma interpretação unívoca à leitura coletiva. As imagens alegóricas dos tex­ tos do “caderno de Anchieta” devem ser entendidas como algo a ganhar cor­ po na performance de um “público-ator” : personagens c tam bém espectadores que se reconhecem na dramatização da alegoria. Nas festas, as representações e dramatizações alegóricas não se distanciam dos participantes, que, a sua ma­ neira, atualizam o mito original, presentificando-o, realizando a alegoria. Não há passividade: a alegoria não precede ■â.peifonnance, com ela constitui um evento único que se repete, sempre de forma diferente, a cada reatualização. A alego­ ria permite a comunicação religiosa entre os diversos participantes da festa. De maneira indireta e enigmática, revela inteligivelmente para todos a “verdade” do testem unho cristão. A alegorização da mensagem é o pilar da universalidade do Evangelho. N o “caderno de Anchieta”, proporciona imagens de inspiração bíblica mesclada com experiências missionárias, juízos teológicos e morais, além de valores cristãos privilegiados pela atuação missionária. Ilustramos nosso argumento com a alegoria do “pelote domingueiro”, m etá­ fora da “queda do primeiro hom em ” . A queda c representada pelo furto, reali­ zado por Lúcifer, do “pelote domingueiro” (vestes de gala) de Adão, que apa­ rece no poema como um moleiro. O trigo aparece, em sentido figurado, como “natureza hum ana” . Mal trabalhado, ele gera mau alimento, tornando o molei­ ro vulnerável e fraco em relação a Lúcifer. O “domingueiro” de Adão, por sua vez, aparece como a “Graça”, de modo que temos a seguinte imagem da q u e ­ da: Adão (o moleiro), que recebera a graça (domingueiro), por não ter cultivado bem a sua natureza (o trigo), acabou por corrompê-la (produzindo má farinha), perdendo sua condição paradisíaca (suas vestes para o Demônio).23 Tal imagem da “q u e d a ” revela aspectos interessantes da alegorização. Percebe-se que ela se dá dialogicamente no horizonte da experiência missioná­ ria. O diálogo com o “índio” é visualizável na inversão da imagem da nudez. O índio nu, despido, pode ser visto como marca de um “hom em caído” , ao contrário da nudez do primeiro homem, em blem a de sua pureza ingênua. O diálogo com a situação colonial fica evidente na analogia entre a falta de zelo pela alma e a má produção da farinha, m antim ento importante para a sub­ sistência da colônia e para as expedições guerreiras. T am bém o calendário festivo é tangido pela alegoria, já que o adjetivo “domingueiro” , significando “solene” , refere-se ao dia reservado para a celebração de missas especiais com música. Os diálogos vão, assim, atualizando o evento bíblico, trazendo-o ao m om ento da performance de maneira nova, embora m antendo o te s te m u ­ nho “original” da Santa Escritura e adequando-o às formas convenientes de proclamação ao público da festa. Ainda, ela destaca juízos morais e “lições” a serem apreendidas por ele: no caso, a culpa de Adão por ter-se tornado presa

25 Ver José d e A nchieta. Lírica portuguesa e tupi. Introdução, notas c tradução vcrsificada dc A rm ando C ardoso, S.J. São Paulo: Loyola, 1984, p. 95-101.

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fácil para Lúcifer, deixando evidente que o caminho para evitar o pecado e a queda é o zelo pela natureza humana e pela graça divina. Sendo as alegorias constituídas dialogicamente, de acordo com uma exe­ gese própria da tradição bíblica, hagiográfica e teológica a partir de uma ex­ pectativa de público, como elas seriam capazes de dirigir mensagens a uma com unidade religiosa tão heterogênea como a do Brasil no século XVI? Seria cada alegoria forjada cm relação a um único público universal? A presença de diversas alegorias com eixo moral comum no interior de um único texto suge­ re que não. Essa redundância é observável nos diálogos mais extensos pre­ sentes no “caderno de Anchieta” , como no que ficou conhecido como “Na Festa de São Lourenço” . Nele, Décio (imperador romano) diz primeiro em espanhol: “Bien e ntiendo/q este fuego, en q meciendo/meresce mi tyrannia/ pues cõ tal cruel porfia/los christianos persiguiendo/cõfuego los destruya” .2'’ Depois, diz em tupi: “Xe racubete co mã/Xe reçi lore cae./Xe morubixaba biã,/eri, xerapi Tupã/oboia repicanhe” .-7 As duas falas têm um sentido moral comum; ambas sugerem que o poder na terra não é garantia de salvação, a não ser se balizado por valores cristãos. O fogo, nas duas falas, aparece como símbolo da condenação e da pena, destino, no primeiro caso, do tirano perseguidor dos cristãos e, no segundo, do morubi­ xaba, carrasco de São Lourenço. A princípio, diríamos que as duas passagens só se diferenciam quanto à língua; no entanto, são, na verdade, alegorias distintas sobre um mesmo tema — os tormentos infernais — , cada qual constituída numa relação dialógica distinta. A primeira, tendo em vista um “público” formado por colonos, a segunda, a um “público” índio. Se, no primeiro caso, temos um D eus que faz justiça às perseguições do “tirano” perseguidor de cristãos; no segundo, temos tupã, que se vinga, como um guerreiro tupinambá, de um ini­ migo canibal por ter matado “um dos seus”: São Lourenço. Dessa maneira, os diálogos vão dirigindo-se alternadam ente a diversos públicos em passagens diferenciadas, sugerindo, redundantem ente, m ensa­ gens próximas; mas, ao m esm o tempo, apresentando um multicromatismo de imagens heterogêneas, ou seja, fragmentos que, “bricolados” , conformam um a unidade para a Revelação e evidenciam um de seus mais importantes atributos: a universalidade. B IB L IO G R A FIA

A n c h ie ta , J o s é d c .

Teanv de Anchieta. T r a d u ç ã o v c rsific a d a , in tro d u ç ã o e n o ta s d c A rm a n d o C a rd o so . São

P a u lo : L o y o la , 1977.

26 José de A nchieta. Poesias..., op. cit., p. 182-3. 27 Ib id em , p. 185. N a tradução d e M aria de L ourdes d c Paula M artins: “— O , eu abraso aqui!/A ssa-m e L ourenço qu eim ad o ./E m b o ra eu seja um soberano,/ai! D eu s abrasa-m e,/ vingando o seu servo” (Ib id em , p. 734).

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rle gramática da língua mais falada na costa brasileira. A p re se n ta ç ã o d e C arlo s D r u m m o n d e

a d ita m e n to s d e A rm a n d o C ard o so . S ão P a u lo : L o y o la, 1984. ----------- Textos históricos. P e s q u is a , in tr o d u ç ã o e n o ta s d c H é lio A b ra n c h e s V io tti. S ão P a u lo : L o y o la , 1984. ----------- Lírica portuguesa e tupi. In tro d u ç ã o , n o ta s e tra d u ç ã o v c rsific a d a d e A rm a n d o C a rd o so . S ão P au lo : L o y o la, 1984. ----------- Poesias. T ran sc riç ã o , tra d u ç ã o c n o ta s d e M aria d c L u r d e s d e P a u la M a rtin s. B elo H o riz o n tc -S ã o P au lo : Ita tia ia -F .d u s p , 1989. -----------Cartas

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□ □ □ G lilhkrm k

A m a r a i . L u z é mestre em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), escrevendo a dissertação Ar Festas e seus Papéis: as Representações e Dramatizações Alegóricas no Interior das Festas Religiosas do Brasil Quinhentista. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1999. Atual­ mente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universi­ dade, sendo financiado pela Fapesp. R e s u m o . O objetivo deste artigo é investigar os sentidos do modo alegórico na composição de textos para representação e dramatização no interior de festas religio­ sas promovidas pela Companhia de Jesus no século XVI na América portuguesa. W alegorias, a incorporação da língua indígena ao discurso cristão desempenha papel de relevo, gerando imagens que, no interior da multiplicidade cultural do ambiente missionário, aglutinam-se para evidenciar a crença cristã na universalidade da Reve­ lação.

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tisÂ'-fA.vtír 0 Padre Vieira pregando ira Igreja de Snixko Antonio da Bahia , celebra o Trium£o alcancado na defeza da mesma cidade .

Portugal, João da Cunha Neves e Carvalho, 1784-1856. O padre Antônio Vieira pre­ gando na igreja de Santo Antônio da Bahia, celebra o triunfo das armas portuguesas alcançado na defesa da mesma cidade, atacada pelos holandeses [. . .]. Galeria pito­ resca da história portuguesa ou vitórias, conquistas, façanhas [. . .]. Paris: em casa de J.-P. Aillaud, 1842, p. 170-7. BN G.H. 5509 P. Padre Antônio Vieira, 1608-1697: catálo­ go da exposição. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1997, p. 130, ilustração 147. Foto André Ryoki.

SERMÕES: O MODELO SACRAMENTAL A lcir

P écora

C o n s i d e r a d o e m s e u s termos estruturais básicos, o sermão católico que organiza a fé no Novo M undo atinge seu apogeu ao longo do século XVII e ordena-se segundo um modelo sacramental, que supõe a projeção perm anen­ te de D eus nas formas de existência do universo criado. Aqui, não se pode interpretar o m undo recusando-se a sua natureza histórica particular, nem supondo a sua autonomização em face do divino. Fundam ental nessa perspectiva do pensam ento católico é a noção de mis­ tério, q u e refere a mediação por excelência, segundo três aspectos semanticam ente indissociáveis: primeiro, o da representação do povo perante o seu Deus; segundo, o da existência de um “organismo institucional de media­ ção” ; terceiro, o da revelação do futuro, uma vez que o mistério mediador avança a intelecção e o cum prim ento dos desígnios ocultos da Providência (Spicq, p. 680-7). Trata-se ainda de reconhecer o “mistério” no cerne mesmo da natureza, que ele não nega, ao contrário. A sua tendência é ressaltar o peso do conhecim ento dos “efeitos” naturais para o reconhecimento adequado daquilo que os causa e dirige para uma Finalidade própria. Resulta daí uma noção de real que é natural e sobrenatural conjuntamente. O vocabulário católico em torno da tópica do mistério sacramental p re te n ­ de dar conta dessa conjunção, na qual a sucessão dos dias realiza uma crôni­ ca da Providência que se atualiza a cada momento. Aqui, os acontecim entos históricos e suas redes de causas exigem ser interpretados como articula­ ções de um relato tão inspirado quanto o das Escrituras. Daí a importância, para os oradores sacros, de associar a tradição cristã da exegese bíblica, como

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IMÍCOItA

ciência da interpretação alegórica dos sentidos das Escrituras, à da retórica antiga, mais restrita à análise dos enunciados persuasivos. Para eles, a inter­ pretação exegética não se distingue essencialm ente da herm e n êu tica que interpreta os acontecim entos da história como figurados anteriorm ente nas Escrituras. N o signo-coisa da Bíblia ou na coisa-signo da história, os objetos q u e se apresentam ao intérprete têm o m esm o estatuto d c figuras qu e p re ­ cisam ser lidas como fatos históricos, mas tam bém como m ensagem provi­ dencial. N o modelo católico da oratória sacra dos séculos XVI e XVII, pois, as Escrituras estão refiguradas nos eventos, de tal modo que a história con­ tem porânea aos pregadores é, especularm ente, a versão mais atualizada do Texto, tanto no sentido de ser mais recente no tem po, quanto no sentido de efetuar um avanço na destinação providencial do universo criado. O pró­ prio m ovim ento da sucessão histórica implica maior núm ero de profecias cumpridas; à m edida qu e ocorre, a história fornece uma base gradualm ente mais segura para novas interpretações de sua causa e finalidade. D e outra maneira, pode-se dizer q u e os fatos históricos, como atos, discursam sobre os planos de D eus para os homens. E isto com igual propriedade e mais atualidade interpretativa do que as palavras testamentárias, no sentido de conter maior quantidade de figuras misteriosas decifradas. A Verdade per­ m anece igual a si mesma, e v id e n tem e n te , mas o discurso variado e sucessi­ vo da história reúne um repertório maior de referências circunstanciais a p ­ tas para a elucidação das figuras misteriosas em pregadas por D e u s para co­ municar-se com os homens. Sob esse aspecto, quando Auerbach considera que a exegese, para o cris­ tão medieval, torna-se u m “m étodo geral de apreensão da realidade” (p. 13), isto vale perfeitam ente para os pregadores contra-reformistas; com uma es­ pecificação, contudo: não se trata apenas de que a herm enêutica deva recu­ perar nos fatos a Verdade anunciada nas Escrituras, mas tam bém de que, ao lidar com o registro dos fatos contemporâneos, na sua progressão histórica, ela possua instrumentos ainda mais eficazes do que antes para reconhecê-la. As Escrituras não apenas se projetam sobre a totalidade da história, como esta, em cada um de seus passos e ocorrências, tem papel a cumprir na eluci­ dação das primeiras. Nessa perspectiva, pode-se com preender que o tem po seja “o m elhor intérprete das Escrituras” , como o enunciou certa vez o Padre Antônio Vieira (1608-1697), em sua História do Futuro (p. 150). Atento a esta questão-chave entre os oradores católicos, que estabelece estreita correspondência entre a exegese bíblica e a narrativa histórica, Antô­ nio J. Saraiva observa que “o esforço do pregador exegeta [...] deve convergir tanto para as coisas como para as palavras”, de modo q u e obrigue “as coisas a se mostrarem e a se declararem” (p. 79); considera ainda que “a explicação das coisas é tam bém um a explicação do texto” (p. 80), e o pregador “apro­

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pria-se de fatos naturais ou históricos” e os “subm ete a uma verdadeira exe­ gese textual” (p. 81). Mas se é verdadeiro que os fatos deixam-se ler como registros do Ser, como recolha de seus sinais, eles apenas podem fazê-lo por sua efetiva condição factual: som ente figuram o Ser porque realmente ocorrem. Assim, quando Saraiva diz que “qualquer acontecim ento”, na “retórica das coisas” dos pre­ gadores engenhosos do XVII ibérico, “pode ser reduzido” a um enunciado, isto não pode ser interpretado no sentido de que os acontecimentos sejam apenas símbolos ou imagens de uma verdade externa a eles: os acontecimentos são factualmente, em seu próprio processo de ocorrência, a significação da verda­ de de que participam. Apenas por existir como movimento e ato, podem sinalizar o Ser. Os fatos históricos, desse ponto de vista, não são símbolos de Deus: são o lugar específico da presença que Deus lhes comunica. Ou, de outra maneira, é porque os hom ens realmente são e agem — e perm anecem ser em ação — q u e a história vivida por eles pode indiciar a realidade divina. N esse sentido, a ação é a “medida da imitação” (Gilson, p. 203), com maior ou m enor proporcionalidade, do Ser divino. A “retórica de coisas” , que é o sermão, descobre e opera esses índices da imitação. Dito de outra maneira: o sermão constitui-se analogamente à retó­ rica divina impressa, desde sempre, nas coisas criadas, que a hermenêutica, todavia, apenas descobre gradualmente, no discurso do tempo. A partir daí, tam b é m é possível considerá-lo, para tocar um outro ponto ineludível da es­ trutura do sermão, que ele se constitui como uma ação verbal de descoberta e atualização dos sinais divinos ocultos na ação do mundo, tendo em vista a produção de um movim ento de correção moral no auditório dos fiéis. Ainda mais sinteticam ente, quanto a uma preceptística do gênero, pode-se dizer que o sermão atua como uma herm enêutica factual cuja interpretação preen­ che os lugares da invenção retórica. N a pregação da Igreja militante, pensa-se a enunciação de Deus na histó­ ria tendo em vista a salvação do hom em , isto é, o seu enunciado histórico está necessariamente recoberto de um a finalidade salvífica. A questão relevante da história é a de sinalizar o divino como Providência orientada para a reden­ ção do próprio hom em ; ou, de outra forma, os sinais que com maior pertinên­ cia e ocasião podem ser lidos na história são proporcionados à condução histó­ rica da cristandade. Isso significa que, entre os seus intérpretes autorizados, se destacam os mais comprometidos com a conversão dos homens, entre os quais, em primeiro lugar, estão os pregadores, cuja exegese descobre e atua­ liza os sinais da oração divina original. Assim, o modelo sacramental da pregação m antém a noção de verdade do sermão figurada em uma dupla instância irredutível, na qual nem a história pode ser e n tendida autonom am ente (sem constituir-se, ao m esmo tempo, como relato inspirado da incansável atividade divina que a sustenta), nem é

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possível admitir exclusivamente a realidade dos vestígios divinos na história dos hom ens (sem admitir tam bém a inteira realidade dela, por mais decaída ou distante que se apresente da perfeição). Por outro lado, tam bém deve ficar claro que os sentidos das Escrituras respondem à urgência dos acontecimentos. A exegese não trata apenas de, por assim dizer, espiritualizar os fatos narrados nas Escrituras, mas de guardar o seu sentido literal de ato — não para recusar obviam ente a dimensão//^-///»/ das Escrituras, mas para evitar a resolução dos seus sentidos pertinentes numa dimensão a-histórica. Não é apenas do sentido espiritual dos relatos bíblicos que caberia esperar a eficácia atual na conversão dos homens, mas de sua conciliação com as ocasiões em que se efetiva a história. N o caso de Cristo, cuja pessoa efetua ontologicamente o encontro do divi­ no e do humano, as suas ações devem então ser tomadas pelo pregador não apenas como índices de uma verdade metafísica, mas de uma ação exemplar capaz de enfrentar as mais contundentes questões históricas. Isto significa dizer que os atos de Cristo, adequadam ente interpretados, revelam-se úteis para a formulação de uma política cristã na história, sobretudo através dos organismos hierárquicos da Igreja e do Estado. Tais atos se constituem, e n ­ tão, como verdadeiro “docum ento aos príncipes”, como “razão de E stado” que convém ser conhecida mesmo por aqueles que, como os príncipes e os políticos, agem menos pelo voluntário da fé que pelo prudente da razão. Como se sabe, entre os teólogos e conselheiros católicos, a razão de Estado não se pode separar da virtus cristã e do governo do bem comum, mas isto não implica a condenação da idéia do cálculo político\ bem ao contrário, tal asso­ ciação constitui a condição própria de seu emprego legítimo. Pode-se dizer que, no modelo sacramental dos sermões, não som ente se acentuam os sinais da divindade no m undo das criaturas, mas tam bém a propriedade delas na condução e governo deste mundo. A primeira teologia é política. Os te s te m u ­ nhos que a divindade dá de si não dissolvem as práticas do mundo; antes, reafirmam a possibilidade de compor progressivamente o m undo e a cristandade. O mistério da manifestação divina encoberta nas espécies terrenas não apenas orienta para Deus, como obriga a considerar que, para alcançá-lo, há um percurso real no interior dessas espécies a ser cumprido. Mas é possível especificar domínios mais restritos dessa impregnação do infinito divino no finito histórico, tal como é pensada no âmbito da parenética católica. O mais relevante deles para os sermões diz respeito diretam ente à celebração dos sacramentos, e, entre todos, o do Sacramento Eucarístico ou da Com unhão. Com efeito, o mistério da Eucaristia, como figura central da presença encoberta da divindade, formula uma espécie de síntese da doutri­ na católica em combate contra o livre exame individual e a invisibilidade da congregatio fidelium dos reformados. Operando a favor da Igreja institucional, o mistério eucarístico prevê não a representação de Deus, mas a sua presença

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integral nas espécies consagradas pelo sacerdote, a quem cabe organizar a mediação visível entre o hum ano e o divino. Para e n te n d e r essa mediação, composta estreitam ente pelo sacramento, o sacerdócio e o sermão, cabe ressaltar que, entre os sentidos associados à E u ­ caristia (a saber: refeição de despedida, presença de Cristo, renovação da aliança, ordem ou entrega de poder), os sermões muitas vezes acentuam o caráter sacrificial do Sacramento Eucarístico, o seu sentido de “memorial de morte expia­ tória” (Stoeger, p. 389-405). Se na Paixão há a dor terrível dos ferimentos do corpo, no Sacramento Eucarístico o sofrimento é amplificado pelos pregado­ res, em vez de extinguir-se. Sob este aspecto, Cristo, ao sacramentar-se, re­ nova a via crucis da Paixão e Morte, renovando, ao mesmo tempo, a sua en tre ­ ga voluntária como objeto de martírio para reconciliação do mundo. Esta fi­ guração do Sacramento, em torno da qual os pregadores católicos tendem a construir fortes argumentos afetivos, é e v identem ente adequada para acen­ tuar o custo doloroso da presença eucarística. Tal derivação patética dos passos da Paixão para o Sacramento Eucarístico certam ente confirma a formulação de Vovelle de que não se pode com preen­ der a Igreja triunfante da Contra-Reforma sem a composição de uma Igreja ostensivam ente “souffrante” (M ourir). Seja como for, uma tendência notável dos sermões é reaproximar a idéia neotestamentária da “expiação substituti­ va” à da antiga linguagem sacrificial dos ritos hebraicos, cujo efeito primeiro é dram atizar o sacramento. Essa dramatização, por sua vez, implica um artifí­ cio básico: o de que a razão oculta das correspondências misteriosas a ser des­ coberta pelo sermão, apenas se revele após a ponderação das dificuldades para estabelecê-la. A preceptiva retórica que dá melhor conta deste processo é a Agudeza y Arte de Ingenio, de 1642, escrita pelo jesuíta aragonês Baltasar Gracián: “Es gran em inencia dei ingenioso artifício llevar suspensa la m ente dei que atiende, y no luego declararse; especialmente entre grandes oradores, está m uy valida esta arte. Comienza a empenarse el concepto, deslumbra la expectación, o la lleva pendiente y deseosa de ver dónde va a parar el discurso, que es un bien sutil primor, y después viene a concluir con una ponderación im pensada” (p. 434). A revelação inesperada da correspondência profunda entre os termos tra­ tados no sermão, como desfecho das dificuldades que o próprio sermão põe em jogo, prete n d e significar a manifestação atual da verdade da palavra divi­ na na ocasião m esm a da pregação. O gesto dramático da revelação aguda, que se segue ao esforço de suspensão do auditório, dá-se como evidência da corre­ ção do sermão como paráfrase e comentário do discurso divino original que lhe dá fundam ento.

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Esse tipo de prova argumentativa, que, muitas vezes, equivoca o sentido usual dos termos cm busca dc relações menos óbvias ou prováveis, d e s e m p e ­ nhando ponderações entre objetos extremos ou incongruentes, recebeu poste­ riormente a acusação de construir-se como pura busca de efeitos “retóricos” , no sentido romanticamente vulgar do termo. O seu método demonstrativo é tomado como exibição de virtuosismo lingüístico ou arranjo hiperbólico tor­ tuoso, ao suposto gosto “barroco” da época. Hoje, contudo, afora a eventual utilidade histórica das formulações, tal crítica já não parece despertar interes­ se. Está claro que o pregador quer produzir efeitos em seu auditório, e isto é verdadeiram ente decisivo: há uma dimensão pragmática inelutável no ser­ mão e pregadores da militância contra-reformista não deixariam de atendêla. Mas essa busca retórica de efeitos, de modo algum, pode ser pensada como um conjunto frívolo, nem sequer festivo ou literário, dc impactos ornam en­ tais sem função política 011 justificação hcrmenêutico-teológica. Para os pregadores católicos do período, o ato analógico que produz corres­ pondências entre objetos distantes e preside toda a ornamentação discursiva não pode ser concebido como sendo indep e n d e n te do m ovim ento que se encontra fundado nas leis da natureza, nos fatos da história e nas figuras do Ser divino. Admitir a autonomia dos efeitos oratórios em relação à h e rm e n ê u ­ tica ou à política, como exclusiva técnica verbal, seria o mesmo que ente n d e r como catolicamente aceitável que o sinal divino na matéria pudesse ser ape­ nas aparência ilusória da matéria, 011 que a identidade do Ser se esgotasse nos signos sensíveis que deixa na matéria. As hipóteses, entretanto, são inveros­ símeis para um pregador católico. Os atos de invenção, que geram proporcionalidades formais, têm sua legitimidade de p e n d en te da relação especular que guardem com a comunicação da verdade divina aos hom ens — que, ademais, pressupõe a revelação de preceitos adequados a uma política cristã na história. E m suma, o discurso do pregador não pretende oferecer ne nhum a novida­ de ontológica, nem sequer formal, em relação ao ato divino criador das coisas. O jogo analógico está presente no sermão disposto segundo a arte sagrada para produzir efeitos convincentes, assim como está presente no m undo com ­ plexo, vário de objetos, mas que não pode sustentar-se fora dos efeitos de um D eus único. Autonomizar a bela forma dos efeitos eficazes ou a festa dos seus fundam entos graves, destituir a técnica e o artifício da finalidade natural que os rege, eqüivaleria a imaginar um m undo subm etido ao engano herético de que a matéria se basta a si mesma e recusa o acréscimo desnecessário de D eus (posição sem elhante a um materialismo ateu), ou, no sentido inverso, de qu e a matéria contém inteiramente Deus, isto é, que a alma da matéria eqüivale à matéria animada (posição próxima a um animismo imanentista). Desse ponto de vista, em termos exemplares, convém reavaliar a celebra­ da repreensão do Padre Antônio Vieira, no Sermão da Sexagésima, de 1655, ao uso do estilo “culto” pelos pregadores dominicanos do Paço, muitas vezes

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interpretada num a chave anacrônica de tipo pré-iluminista (como se Vieira estivesse a favor de um estilo mais simples e de mais bom senso) ou m esmo pré-romântica (como se defendesse a sinceridade ou espontaneidade das pala­ vras). Aliás, esses anacronismos correntes levam, em seguida, à consideração freqüente, mas desta vez contrária ao jesuíta, de que não teria seguido de maneira coerente seus próprios conselhos, entregando-se tam bém aos jogos asiáticos dos ornatos em seus sermões. Ora, tais leituras parecem localizar mal a questão: é historicamente inve­ rossímil que Vieira critique a ornamentação discursiva como procedimento retórico inadequado apriori. Em primeiro lugar, porque as figuras e ornatos são recursos próprios da oratória e conhecê-los faz parte do domínio abran­ g ente dos seus meios disponíveis; um orador técnico, como Vieira, não poderia considerá-los como um mal senão quando seus usos e efeitos particulares resultassem malsucedidos, por emprego de recursos inadequados ao decoro particular admitido pelo gênero da oratória sacra. Daí acusar os pregadores contem porâneos de trocarem o púlpito em palco de “comédia”, o que põe a perder a sua gravidade (vol. I, p. 86). Vieira tampouco p retende negar a arte do sermão, ou o sermão como arte ao propor a sua admirável fórmula do sermão como uma “arte sem arte” (vol. I, p. 65). E do interior da arte retórica, como do interior da ciência teológica, q u e faz seu ataque contra os “estilos m odernos” . É verdade que, em termos contra-reformistas, o esforço de “recristianização do orador clássico” e im pe­ dim ento de sua laicização por meio da eloqüência clássica, como o diz Marga­ rida V. M endes, fez recrudescer a “cautela devota contra os perigos da arte pagã e laica por excelência” . A entrada em cena dos jesuítas, porém, altera o ângulo dessas preocupações. Com a sua formação humanista, estavam con­ vencidos de que a pregação apostólica não poderia prescindir da arte, e o caso, aqui, era sobretudo o de conciliar ambas as tradições: celebrar “o orator retoricamente com petente, e, ao m esmo tempo, imitador de Cristo, dos Após­ tolos e de S. Paulo” (M endes, p. 66). A oratória sacra assim praticada não recusa, pois, o ornato dialético ou o conceito engenhoso como procedimentos ar­ tísticos inadequados em si, apenas submete-os à conveniência específica da parenética, de maneira que a sua má aplicação não impeça que o sermão frutifique. N e ste ponto, a aplicação decorosa da arte ao pregar cuida exemplar­ m ente para que nada no sermão fira a dignidade de que se reveste a pessoa do orador eclesiástico, cujo valor público interfere na eficácia da pregação. Tal recomendação cristianiza o tópico da retórica aristotélica relativo às provas qu e incidem sobre ocaráteráo orador (p. 175), as quais Quintiliano interpreta como provas morais constituídas pela imagem de seus costumes, que têm grande força persuasiva sobre o público (p. 262). N o caso de um auditório cristão, segundo Vieira, o fracasso dessa imagem pode quebrar o deconim do gênero, fazendo com que o púlpito tome ares de “comédia”, senão pior:

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“N a comédia o rei veste como rei e fala como rei, o lacaio veste como lacaio e fala como lacaio, o rústico veste como rústico e fala como rústico, mas um pregador vestir como religioso e falar como... não o quero dizer por reverência ao lugar. Já que o púlpito é teatro c o sermão comédia, se­ quer não faremos bem a figura? Não dirão as palavras com o vestido e com o ofício?” (vol. I, p. 87). E há uma segunda razão pela qual Vieira não critica os recursos retóricos em si mesmos, fora de seu eventual uso impróprio ou ineficaz. É que, pensa­ dos em função de sua base analógica, como atos de revelação de relações ocultas dispostas entre as coisas criadas, os ornatos e figuras são perfeitam en­ te parte da natureza e, portanto, da razão em que esta foi criada. O que prin­ cipalm ente Vieira ataca no Sermão da Sexagésima, de que a falta de decoro constitui apenas mais uma evidência, é precisamente a ruptura da relação essencial entre o ornato e a sua base natural, entre os conceitos engenhosos e os sinais divinos no mundo, entre as figuras da técnica discursiva e as do sistema finalista e providencial. Os dominicanos do Paço, d u ram ente repreendidos por ele, não são cul­ pados de usar tropos ornamentais, onde há propriedade técnica e não cabe culpa: são culpados de rom per o vínculo fundam ental entre a dialética dos ornatos e os signos factuais do divino. N essa perspectiva, são pregadores q u e já não buscam descrever a substância oculta nesses sinais, a orientação tra n sc en d e n te qu e os dispõe e justifica, contentando-se em tratá-los como matéria verbal autônoma, cujo mistério se dissolve na aplicação exclusiva das regras “cultas” em uso. Ou seja, é intolerável a separação en tre a retórica e o projeto teológico-salvífico suposto nas analogias. Perdido o decoro e autonom izada a forma fora de sua razão, o aplauso do auditório eqüivale a um a condenação, pois celebra um “falso te s te m u n h o ” da palavra de D eus (vol. I, p. 84). Uma reflexão análoga poderia ser feita em relação à celebração eucarística, clímax da festividade solene da missa, alcançado no m om ento em qu e a m e ­ mória dos atos de Cristo produzida na pregação presentifica-se no pão e no vinho ali visíveis. A pompa litúrgica — assim como a ornamentação retórica, pom pa discursiva — , faz parte da construção do impacto da conversão e está perfeitam ente ajustada ao teatro da fé. Contudo, a magnificência da cerimô­ nia não pode ser pensada, como aplicação de critérios doutrinários ad eq u a­ dos, fora de sua integração na liturgia do ato persuasório total de q u e o ser­ mão faz parte. E xatam ente como no caso da retórica das figuras cultas, a discretio — palavra “inaciana por excelência” (Barthes, p. 57) — que organiza o espetáculo da missa, deve necessariamente articular tal espetáculo ao m ode­ lo sacramental da presença divina nas espécies materiais. A dissociação entre a pom pa festiva e a sua função litúrgica, ou entre a função litúrgica e a reali­

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dade da presença divina, implica o fracasso inteiro da cerimônia, e o da inte­ ligência do mistério eucarístico em particular. A própria arquitetura das igrejas projetadas por construtores a serviço da Contra-Reforma, como Jacopo Vignola e Giacomo Delia Porta, articula rigo­ rosam ente a magnificência dos templos à celebração sacramental: “a distribuição da luz feita pela maneira usada nos palcos, com acentuados contrastes entre as capelas laterais deixadas na penum bra e o fluxo de luz que da cúpula se derrama por sobre o altar-mor, exerce uma atração quase, diríamos, física sobre o visitante, que é arrastado em direção ao Santo Sa­ cramento, e parece feita para pôr a alma de imediato em um estado de arrebatam ento e de fé jubilosa” (Miller, p. 467). N a m esm a direção interpretadva, que reconhece a força integradora do mistério na cena litúrgica, Howard Hibbard observou a unidade das repre­ sentações iconográficas de capela a capela, assim como da nave ao cruzeiro. Para o autor, isto se deve ao esforço dos arquitetos contra-reformistas para organizar a construção segundo uma discretio semelhante à que fornece o es­ q uem a básico das analogias parenéticas: “ut picturae serm ones” (p. 40). O pressuposto da conclusão, naturalm ente, é a precedência da pregação, notó­ ria entre os jesuítas, sobre as demais artes de conversão e salvação de almas (Sebastián, p. 275). N e s te ponto, para c onhecer a com plexidade do m odelo sacramental dos sermões, ten d o em vista sobretudo a figura doutrinariam ente privilegiada da Eucaristia, será preciso considerar o argum ento recorrente de que a es­ sência revela-se pela noção de “com unhão” . Para tanto, retom em os Vieira, cujos serm ões são o mais espetacular da língua portuguesa no chamado “p e ­ ríodo colonial” . N o qu e refere a comunhão, seus discursos usualm ente atnplificam, por m eio da eloqüência do sacrifício, o efeito de união produzido pelo sacramento eucarístico. Trata-se aqui de conceber o divino como m e ­ diação capaz de conciliar suas diferenças de desejos individuais em torno de um a id en tid a d e divina de qu e todos participam. Assim, a com unhão sa­ cram ental enseja um a “dupla união” (vol. XV, p. 281): uma, entre a alma única de cada ho m em e Deus; outra, entre a coletividade dos hom ens e a presença divina nela. A com unhão não se efetiva p lenam ente sem que, à experiência individual com D eus sacramentado, articulem-se os nexos de um a id en tidade hum ana coletiva: um corpo natural, racional e político em que, contudo, a própria imagem divina figura mais nitidam ente. O u seja, a experiência mística, por meio do mistério sacramental, põe num a relação específica de id en tidade os qu e igualm ente participam dele. Para demonstrá-lo, Vieira lança mão do “m étodo etimológico” (Saraiva, p. 16), larga­ m e n te utilizado nos sermões da época, cujo propósito é rem ontar à raiz

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misteriosa das palavras bíblicas, para projetá-la dc volta como razão oculta entre termos ou objetos do p resente histórico: “Pergunto: que quer dizer comunhão? O nome com unhão — communio — não é inventado por homens, senão imposto por D eus e tirado das Escrituras sagradas em muitos lugares do Testam ento Novo. E que quer di­ zer communio? Q uer dizer communis unio: união comum. Assim explicam sua etimologia todos os intérpretes. De maneira que dando Cristo nom e à Com unhão, não lhe pôs o nome da união particular que temos com ele, senão da união com um que causa entre nós” (vol. XV, p. 282). O Sacramento efetua, portanto, a identidade essencial com um aos que individualm ente buscam a Deus, encoberto nele. A com unhão descobre o ser comum entre os homens, que, por sua vez, não pode ser descrito fora de sua relação com Cristo. Essa descoberta da essência com um da coletividade é lugar fundam ental da oratória sacra e não é difícil ver que seus termos são indissociavelmente teológicos e políticos. Os topoi tradicionais da unio wystica projetam-se na própria organização do corpo coletivo, que, ao reunir as vonta­ des individuais num a vontade única, realiza o “corpo místico” por excelên­ cia. A “divina essência” do hom em que vive em D eus relê-se aqui segundo o conceito de universitas formulado pelo jesuíta Francisco Suárez, que refere a capacidade das pessoas de reconhecer o comum em si, e, então dispor-se a, como resum e Skinner, “to engage univocally in the performance of corporate legal acts” (vol. II, p. 165). O pressuposto desta fórmula neotomista é o de que os homens, em seu estado de natureza, não são simples aglomerados de indivíduos, mas partici­ pantes de uma natureza comum, conquanto relativa a seres irredutíveis entre si. N esse sentido, fica claro por que o modelo sacramental não se resolve com o estabelecim ento de múltiplas relações individualizadas entre os hom ens e Deus, da m esm a maneira que não se resolve com a certeza interior do reforma­ do, pois trata-se de obter o reconhecim ento e a restauração da união natural entre os homens; de produzir uma reunião de seres, intrinsecam ente justa e razoável, na m edida em que tem como fundam ento ontológico a com unhão com o Ser. Desse modelo, em que a mediação entre o hum ano e o divino identifica a substância com um à razão e vontade dos homens, decorre a idéia de ser natu­ ral seu desdobram ento num a associação hierárquica e institucional. Vale di­ zer, a conciliação dos seres num a identidade com um constitui um “corpo místico” ao qual o Estado cristão deve a legitimidade de sua existência. A partir dessa base teológica, o modelo sacramental pode radicalizar, em maior ou m enor grau, a sobrenaturalização da identidade moral e voluntária do corpo místico. Por vezes, a presença divina parece próxima do corpo poli-

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tico a ponto de atuar dentro dele, a fim de favorecer a sua coesão e perm a­ nência. Ademais, pode aproximar, bem mais do que aconselha a orientação doutrinária da C om panhia de Jesus, o conceito de corpo místico de uma con­ cepção qu e atribui pleno poderá um Estado cristão particular, ainda que inva­ riavelm ente com finalidade universal. Nos sermões de Vieira, por exemplo, a com unidade essencial identifica, antes de mais nada, a constituição do Esta­ do católico português. Por outro lado, não é razoável imaginar que a tendência de Vieira em ad­ mitir a plenitudepotestatis da monarquia portuguesa o aproxime das teses ma­ quiavélicas favoráveis à razão autônoma de Estado, isto é, assentadas nas idéias de separação entre religião ou moral e pragmática política, ou de adoção de leis positivas do Estado justificadas exclusivamente pela conveniência do príncipe e sustentação do governo. Ao contrário, a sua posição permanece ortodoxa e supõe q ue qualquer doutrina política, faça ou não referência a um contrato entre os mem bros da coletividade à qual sc aplica, deve estar basea­ da na lei natural instituída por D eus na Criação para não ser exterior à Graça. Mas há mais alguma coisa a precisar sobre essa questão de que os pregado­ res católicos encarecem a união de homens em termos teológicos e igualmente em termos históricos. Isso se dá, em primeiro lugar, porque a noção de união, aqui, assinala uma forte analogia entre a Providência, que ordena o mundo criado para seu fim, e a ação voluntária do hom em disposto a fazer, neste m esm o mundo, as correções q ue o preparam para a Salvação. Ou seja, a tópi­ ca da união de homens significa, no âmbito da pregação jesuítica, a exortação a um a ação apostólica providencial, isto é, a uma missão no mundo. Em segun­ do lugar, porque am ar ao próximo, sentença exemplar da pastoral da união, não refere apenas um comando à consciência do indivíduo, mas, como se viu, alega a fundam entação ontológica da organização institucional em que a união se dá historicamente. Q uer dizer, a máxima amorosa implica a idéia de forta­ lecim ento do Estado católico como lugar privilegiado de comunicação entre a vontade hum ana e a divina. Por tudo isso, pode-se dizer que a união de homens afirma a necessidade de adesão dos indivíduos à ação providencial dos organismos constituídos da cristandade, em sua própria hierarquia e divisão, supostas como naturais no âmbito da história. Uma ética cristã da concórdia, do amor ou da amizade não se pode compreender, nos sermões deste período, dissociada da idéia de uma inserção ativa num organismo de poder. Encaminha-se, assim, para a consoli­ dação de um Estado cristão, que guarda fortes analogias com a organização monárquica da Igreja, pois, nesta perspectiva, não pode haver Estado dura­ douro ou futuro não fundado na vontade de Deus, que, ao reunir os homens no seu amor fino, obriga a que se am em entre si. E n quanto tópica católica tradicional, o am orfm o ou desinteressado opõe-se por definição ao amor vulgar do homem. A literatura cisterciense, sobretudo,

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fornece a base próxima desse vocabulário apropriado pelos pregadores dos séculos XVI-XVII, mas ela já o tomara, por sua vez, de uma fecunda matriz estóica e ciceroniana. Nesta, o conceito de amor assimila noções como a de benevolentia, vale dizer, o desejo do bem do amado, pelo próprio amado e não por vantagem sua, e a d econsensio, q ue pensa a amizade como um bem e ssen­ cialmente recíproco (Gilson. T/téologie, p. 13). Ora, tais metáforas amorosas entre os pregadores católicos, longe de restringir-se à referência a uma paixão ou afeto individual, são básicas para o repertório da teologia política que defi­ ne cláusulas do dever cristão adequadas à prudência do Estado. Justam ente por isso, são igualmente adotadas por pensadores políticos do período. Saavedra Fajardo (1584-1648), escreve por exemplo: “Todas las obras de la Naturaleza se m antienen con la amistad y concordia. Y en faltando desfallecen y mueren, no siendo otra la causa de la muerte que la disonancia y discórdia de las partes que m antenían la vida. Así, pues, sucede en las repúblicas” (vol. II, p. 830). O conselho pressupõe tanto que a virtude, análoga a uma essência teológi­ ca, possui virtualidade para instituir-se politicamente, quanto que as institui­ ções, os organismos jurídicos de amor e poder, não se podem sustentar sem essa verdade. O que é transcendente permeia a história, e esta, por isso m es­ mo, apenas pode ser pensada como misto político e teológico. O topos da união dos hom ens proporcionada pelo sacramento não se esgota aí, contudo. Os sermões de Vieira propõem que a coletividade, assim consti­ tuída, dá testem unho de uma Encarnação comum, isto é, de uma “segunda Encarnação”, em que o divino se presentifica nessa disposição dos hom ens para unir-se entre si. N u m Sermão do Mandato, do ano de 1655, comparando as instituições do Sacramento e da Encarnação, diz o seguinte: “É verdade que D eus na Encarnação não tomou a natureza hum ana em comum, senão um a hum anidade particular [a de Cristo], mas essa mesm a hum anidade e essa mesma carne, unida à divindade, fê-la Cristo universal e comum, dando-a no Sacramento a todos os fiéis, e unindo-os realm ente consigo; e como ficam unidos, e encarnados com Cristo, a m esm a Encar­ nação do Verbo se estende e multiplica em todos nós” (vol. VII, p. 101). Resta perguntar que tipo de reunião de homens cumpriria mais a dequada­ m en te sua função nesta “segunda Encarnação”, mais amorosa e mais univer­ sal do q u e a restrita a Cristo. O bviam ente, do ponto de vista dos pregadores contra-reformistas, ela não poderia identificar-se com a comunidade invisível dos reformados, alheia à idéia de Igreja juridicamente constituída como “grê­ mio de cristãos declarados” (Green, p. 185). A com unidade adequada a esta

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“segunda Encarnação” apenas pode estar compreendida pelo corpus rnysticum da Igreja organizada, hierárquica e institucional — principatus apostolicae sedis — “qui est destine a remplir Ia rnission qui a eté d'abord confiée à Pierre" (Courtine, p. 92). Mas, como se viu, a definição do corpo místico não se restringe ao edifício eclesial ou ao sacerdócio militante. A pedra fundamental da Igreja, que se manifesta, como herança, em sua visibilidade hierárquica, prolonga-se natu­ ralm ente até o organismo do Estado católico. N este momento, não há respos­ ta para o problema da encarnação coletiva de Cristo que não avance até a discussão da origem e soberania do Estado, cujos atos históricos resultam providenciais e em q ue as noções d zcristandade e política não se contradizem. E im portante notar ainda q ue essa união de homens consagrada por D eus no centro do Estado apenas tem êxito ao considerar-se a própria hierarquia das ordens sociais ou estados da monarquia, que não são dissolvidos. Como obser­ va Saavedra Fajardo, por vezes convinha ao Rei incentivar as disputas entre um a ordem e outra a fim de fortalecer a sua autoridade: “L a discórdia que condenamos por danosa en las repúblicas es aquella hija dei odio y aborrecimiento: pero no la aversión que unos estados de la república tienem contra otros, como el pueblo contra la nobleza, los solda­ dos contra los artistas; porque esta repugnancia o emulación por la diversidad de sus naturalezas y fines tiene distintos los grados y esferas de la república, y la m antiene, no habiendo sediciones sino cuando los estados se u n e n y hacen com unes entre sí sus intereses, bien así como nacen las tem pestades de la mezcla de los elementos, y las avenidas de la unión de unos torrentes y rios con otros” (vol. II, p. 833). E um a vez q u e a harmonia dos estratos sociais, e não a dissolução deles, é a q u e mais convém ao príncipe cristão, então parece claro que a concórdia deve ser e n tendida prioritariamente como adesão comum aos lugares da hie­ rarquia. A união coletiva, nacional e divina ao mesmo tempo, apenas pode vir a ser unidade quando, de um lado, inclui a participação das vontades de todas as ordens (dospés à cabeça do reino) em um todo unificado, e, de outro, q u a n ­ do essa participação é determ inada por estamentos ou ordens estáveis. Isso faz com q u e o topo da hierarquia, ou — para perm anecer fazendo uso das metáforas tradicionais do organicismo político escolástico — a cabeça do corpo místico constitua-se na melhor figura de sua unidade. Isto esclarece o sentido teológico-político de um importante passo de Vieira: “os príncipes e a nobreza é o tudo dos reinos. Escolheu Cristo aos nobres e senhores para que o tirassem do afrontoso suplício e fizessem as honras a seu corpo, porque honrar o corpo de Cristo afrontado, é ação que anda

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vinculada à nobreza. E quando assim trouxe a si a nobreza, diz que havia de trazer a si omnia, e não on///es; tudo, e não todos, porque os nobres não são todos, mas são tudo” (vol. I, p. 180-1). N u m universo sacramentado não é relevante contestar-se as hierarquias, testem unhas elas próprias da Hierarquia de leis a reger o m undo desde a criação, mas sim criticar seus vícios corrigíveis e admoestar o corrupto de seus costumes. Ou seja, se não há identidade entre a nobreza espiritual, divina, m orale a nobreza d csangue e título herdada pelas famílias principais do reino, tam bém não se pode dizer que a relação entre elas seja arbitrária, de acordo com os autores de formação escolástica. A sua tendência majoritária c ad­ mitir, que “[inherited] wealth is capable of promoting virtue” (Skinner, vol. I, p. 59). Todavia, o propósito dos pregadores ibéricos dos séculos XYI-XVII, não é, em termos gerais, favorecer a ampliação do poder da nobreza no conjunto da república, mas sim o seu alinhamento num a hierarquia monárquica centrali­ zadora, e, nesse sentido, promover o seu relativo enfraquecim ento, ou a sua maior dependência como ordem particular, em face do lugar do rei e de sua máquina de governo. Tal posição atualiza a de Santo Tomás, para q u e m a monarquia hereditária era a melhor forma de governo e a única apta a cuidar do bem comum, em torno do qual se ordena a disposição racional que é o prin­ cípio básico da lei; a única apta, pois, para evitar o facciosimo de grupos e interesses que ameaçam dividir a coletividade. N o âmbito desse repertório, afirmar que à nobreza convém a união, certam ente implica persuadi-la de qu e precisa mover-se para dentro de algo q ue a confirme como nobreza, tan­ to segundo um modelo de virtus cristã, que a propõe como exem plar para as demais ordens, quanto segundo sua adesão ao ideal de concórdia, que a su b ­ m ete hierarquicam ente a um poder acima dela. Para reforçar os argumentos favoráveis a essa posição, Vieira pesa cuidado­ sam ente os termos mais usuais de união (empregado por ele correntem ente na expressão união de homens) e de unidade (que utiliza c o m u m e n te para refe­ rir a unidade das pessoas divinas) e utiliza outro termo, “aunado” , que supõe talvez mais preciso para referir a duplicidade na fronteira dessas duas gramá­ ticas. A expressão, “aunados com Cristo, entre nós e conosco” (vol. XV, p. 320), identifica justam ente o processo essencial de reunião em tori/o de um , vale dizer, de congregação de todos no superior com um e único, cujo análogo principal é, como se viu, os mistérios sacramentais, que ao consagrar a pre­ sença divina tornam-se igualmente “as melhores fortificações dos reinos” (vol. I, p. 182). N e ste modelo da oratória sacra, com preende-se que teologia, retóri­ ca e política constituam uma indissolúvel unidade semântica, a operar uma economia de salvação. Ao pregador “digno do n o m e ” cabe necessariamente examinar os signos divinos nas coisas, ordená-los como provas discursivas

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capazes de mover vontade e razão dos fiéis e, enfim, sistematizá-los como política voltada para o triunfo histórico do corpo místico. Se vamos falar de sermões, em termos historicamente verossímeis ao gênero constituído pela tradição, a propósito de investigarmos os sentidos possíveis do conceito de “festa” no período, acredito que tais sentidos devam articular-se nos limites dessa unidade semântica. BIBLIOGRAFIA

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A CATEGORIA “REPRESENTAÇÃO” NAS FESTAS COLONIAIS DOS SÉCULOS XVII E XVIII Jo

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A d o l f o

H a n s e n

I n i c i a l m e n t e , v o u tratar da categoria representação nos relatos lusobrasileiros de festas dos séculos XVII e XVIII e depois falar dos livros de em blem as que fornecem os modelos imitados neles. Começo com uma defi­ nição de “festa” proposta por Louis Marin: “um processo coletivo que simul­ tan e a m e n te manipula o espaço por meio de certos movimentos em um certo tem po e produz seu espaço específico segundo regras e normas determ ina­ das que ordenam esses movimentos e esse tem po valorizando-os. Pode-se dizer o m esm o do tempo: o desfile, o cortejo ou a procissão, ordenando-se no tem po cronológico, estruturam-no segundo a temporalidade que lhes é pró­ pria e por isso m esm o produzem um tem po específico que simultaneam ente interrom pe o tem po cronológico e em certa medida o completa ou o funda” .1 A definição de Marin inclui o cortejo, a entrada, a parada, o desfile, a pro­ cissão e outras modalidades de festejos. A definição tem duas articulações: um a delas é sintático-semântica, correspondendo à ordenação espácio-temporal e à significação das imagens que compõem o evento. A outra é pragmá­ tica, relacionando o ver e o ser visto de atores e espectadores em várias posi­ ções e funções. N o caso, como propõe Roger Chartier, é fundamental pensar em duas lógicas articuladas e heterogêneas: a que produz e interpreta os e n u n ­ ciados dos relatos das festas e a que rege as ações e as suas condutas. As duas lógicas devem ser consideradas quando se faz uma história que relaciona a

1 L ouis M arin. “M anifestation, cortègc, dcfilc, proccssion” , in: De la représentation. Paris: Seuil/G allim ard, 1994, p. 48.

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construção discursiva ou simbólica do m undo social com as coações objetivas que limitam e possibilitam a produção das representações.2 K preciso lem ­ brar algumas dessas coações que no século XVIII atuam na preparação dos festejos e nos seus relatos. Coações institucionais, como a censura, principal­ m ente a do Santo Ofício da Inquisição e a do Paço, que im punham os limites da ortodoxia às representações, tornando-as adequadas à reprodução das ver­ dades da “política católica” portuguesa. Ou coações materiais, como as im­ postas pelas matérias-primas, madeiras, barro, graxas, pastas, vegetais e tin­ tas, que imitavam 011 substituíam materiais de difícil obtenção por serem caros, raros 011 proibidos, como veludos, sedas, marfim, alabastro, mármore, ouro, diamantes, esmeraldas, etc. T am bém as particularidades de gosto e dc ideário das irmandades que geralmente rivalizavam umas com as outras im­ prim indo as orientações específicas das rivalidades às representações c impondo limites à invenção dos autores e à participação da população nos festejos. Tam bém os estereótipos sobre a “limpeza dc sangue" e a vileza dos trabalhos manuais que faziam com que a manufatura das representações dos festejos fosse quase sempre delegada a mulatos c a negros. As adaptações e deformações de modelos metropolitanos na representação plástica feita por artesãos negros e mulatos provavelmente tinham um sentido “de baixo para cima” diverso do que ocorria com as representações discursivas produzidas “de cima para baixo” , quase sempre, por letrados brancos pertencentes ao clero e ao aparelho burocrático da administração colonial. Além de lembrar essas coações, é fundamental particularizar, ainda que muito superficialmente, a categoria “público” . N a sociedade portuguesa do século XVIII, doutrinada teológico-politicamente como “corpo místico” , obviam ente não correspon­ dia ao conceito iluminista e liberal de “opinião pública” , em que “público” significa o espaço da expressão da particularidade dos interesses privados de um grupo ou de uma classe que vêm “a público” , como se diz, para exercer seu direito de reivindicação e de crítica, entrando em conflito ou em contra­ dição com outros interesses privados. Na sociedade portuguesa do século XVIII, as esferas de “público” e “privado” se superpunham e confundiam; então, n e nhum grupo, estam ento ou ordem tinham autonomia definida como particularidade de direitos políticos isenta do “pacto de sujeição” ao monar­ ca. Por isso, deve-se pensar que, no ato de inventar as representações das festas e dos relatos das festas, seus autores se autorizavam a si mesmos como artífices engenhosos, quando se apropriavam de modelos retóricos e teológico-políticos autorizados pelo costume e que especificavam o sentido ortodo­ xo das representações nos eventos locais. Em decorrência, as representações com punham os destinatários ou seu público como um testemunho da autorida-

2 R ogcr C hartier. “ Al borde dei alcantilado” , in: Pluma de ganso, libro rle letras, ojo viajem. M éxico: U niversidad Iberoam ericana, 1997, p. 85.

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representação. A procissão do Triunfo Eucarístico foi realizada como encômio e louvor da Virgem do Pilar; logo, as formas usadas no relato da procissão por Simão Ferreira Machado pertencem ao gênero demonstrativo, específico do louvor dc tipos c ações superiores. As cenas alegóricas e as formas de deuses c princípios abstratos que preenchem o relato de Simão Machado imitam, por sua vez, as alegorias de vários livros de emblemas que circularam no Bra­ sil do século XVIII, fornecendo modelos de virtudes, vícios, estações do ano, astros, scrcs fantásticos, deuses, princípios abstratos, etc. Entre eles, é funda­ mental o Iconologta (1593), de Cesare Ripa, de que vou falar adiante. E m quarto lugar, deve-se lembrar que na sociedade portuguesa do Antigo Estado a forma da representação ou a aparência efetuada pela representação eram im ediatam ente relacionadas à posição social; logo, a forma e o recorte que a forma produz no espaço e no tem po eram imediatamente significativos de posição e tam bém dos conflitos de representações relacionados à posição. E m 1648, por exemplo, os oficiais da Câmara de Salvador escreveram cartas ao rei de Portugal, pedindo providências contra o bispo D. Pedro da Silva. Segundo os vereadores, na procissão de Corpus Christi daquele ano o bispo teria saído para o adro da Sé sem esperar que o governador e a Câmara che­ gassem para m andar a procissão sair. Ele teria ordenado a um “hom em bom ” do local, que no ano anterior tinha sido vereador, que levasse o guião da C â­ mara para junto das “bandeiras e insígnias das mecânicas afrontosa e escan­ dalosam ente” . O “hom em bom ” teria reclamado da falta de decoro da posi­ ção, mas, gritando, conforme a Câmara, D. Pedro da Silva o teria ameaçado com a excomunhão. Segundo a Câmara, o “hom em b om ” passou a andar com as mecânicas, m uito humilhado, sendo desonrado porque foi visto em posi­ ção inferior pela gente de condição vulgar, que se tornou avalista dele e da sua posição, num a evidente inversão de papéis. A carta afirma que o governa­ dor chegou às pressas e ocupou seu lugar na cabeça do cortejo, disfarçando a ofensa para não dar ocasião à murmuração do povo. Porque seu guião foi desonrado, a Câmara de Salvador exige reparação.'1 Assim, o term o representação aplicado às festas coloniais significa processos miméticos substancialistas, coletivos e anônimos, de produção simbólica. Eles utilizam várias espécies de signos recortados em várias substâncias para presentificar várias coisas ausentes. As várias espécies de signos produzem a pre­ sença metafórica de coisas e de instituições imediatamente ausentes. A pre­ sença efetuada é uma aparência cuja forma é condicionada pelos materiais disponíveis, pela circunstância institucional ou informal do uso das imagens e pelo gênero retórico-poético da representação e, ainda, pela maior ou m e ­ nor perícia técnica dos artesãos, que a deformam segundo vários procedi-

h C arta dc ju lh o dc 1648, in: Cartas (to Senado 1638-1673. D ocum entos H istóricos do A rqui­ vo M unicipal. Salvador: P refeitura do M unicípio do Salvador, Bahia, 1951, 1." vol., p. 18-9.

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mentos, finalidades, aptidões e inépcias. O bviamente, por isso, a forma muica é natural: é um produto, um artifício, subordinado à prescrição retórica de um gênero determ inado e de um uso específico. A forma e seu estilo atualizam princípios invisíveis, D eus e o “corpo místico” do Impcrio, tornando-os visí­ veis nas várias posições hierárquicas correspondentes a tipos, situações e va­ lores na hierarquia. Logo, sua encenação tam bém classifica e distingue, diferencialmente, outros tipos, outras situações e outros valores. A representação assim produzida põe em cena tópicas da concepção corporativista do Estado português como “corpo místico” de vontades subordinadas ao rei no pacto dc sujeição, reiterando que as instituições existentes são não apenas legais, mas principalmente legítimas, porque são a expressão visível da lei natural da Graça inata. A representação da hierarquia desse “corpo místico” era um saber-fazer especificado como uma arte retórica anônima ordenada por prcccitos técni­ cos coletivizados. E m Minas, passavam de pai para filho, sendo aplicados pelos artesãos a serviço das irmandades e das instituições oficiais promotoras dos festejos. Eram aplicados com conhecim ento das ocasiões decorosas do uso dos vários estilos, como arte que tam bém evidenciava hábitos do e n te n ­ dim ento prático dos autores e comandatários, fundindo ética, teologia, políti­ ca e retórica. Segundo a doutrina, a eficácia persuasiva da técnica aplicada à representação relaciona-se com a prudência dos artífices. A prudência é e n ­ tendida como a virtude principal, pois é hierarquizadora e fica im ediatam en­ te evidenciada nas representações adequadas, uma vez que o decoro retórico aplicado aos estilos para torná-los convenientes aos temas representados evi­ dencia tam bém o decoro ético-político da representação da subordinação dos participantes à hierarquia. Como se dizia nos séculos XVII e XVIII, a repre­ sentação é um teatro do juízo prudente. A categoria representação é uma estrutura passível de ser reconstruída a partir do exam e de sua ocorrência em vários relatos de várias cerimônias par­ ticulares. L em bro algumas delas, no recorte 1641/1808.7 E m todas, represen­

7 Por exem plo: Relação da Aclamação de D. João IV (1641); Sentimentos públicos na morte do Infante Dom Duarte ( 1650); Oração fúnebre nas exéquias da Sereníssima Princesa Dona Isabel Luísa Josefa (1691); Breve Compêndio e narração do fúnebre espetáculo na morte de lil-R ei Dom Pedro II (1709); Diário Histórico das Celebridades no Casamento dos Príncipes de Portugal e de Castela (1719); Triunfo Eucarístico (1733); Áureo Trono Episcopal... notícia da criação do novo Bispado Marianense (1749); Monumento do Agradecimento... nas Exéquias de Dom João V ( 1751); Relação das Festas que se fizeram p o r ocasião da Aclamação de Dom José / (1751); Gemidos Seráficos na morte de D. João V (1755); Relação das Faustíssimas Festas peto desposório da Sereníssima Senhora Dona M aria (1762); Catágrafo Epipomptêutico dos Aplausos Soleníssimos (1764); Relação das Festas Públicas em louvor de Santa Ana (1770); Relação das Festas quefez a Câmara da Vila Real de Sabará (1794); Relação das festas que fizera m ... quando o Príncipe Regente e toda a sua Família Real chegaram pela primeira vez àquela Capital (1810). E tc. (Os textos citados estão publicados nos tom os 3 e 4 d e C astello, José A deraldo. O movimento

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tação é uma estrutura de longa duração específica da “política católica” da monarquia absoluta entre 1580 e 1750 ou mais. Realizada segundo as arti­ culações referidas — uso de signos valendo por outra coisa, produção da pre­ sença simbólica da coisa ausente, forma simbólica da presença, posição hierárquica dramatizada na forma — a representação existia em sistemas de representação, ou seja, em práticas sociais de produção de representações. Pode-se reconstruir a estrutura dos sistemas simbólicos contemporâneos da representação colonial por meio dos vários usos particulares, visíveis nos ob­ jetos que chegaram ao presente, dos materiais sociais. E possível reconstruir os modelos que foram imitados por meio da observação dos usos locais dos mesmos rastreáveis nos relatos particulares de festas que chegaram ao pre­ sente. As matérias sociais transformadas nos usos coloniais da representação eram sedim entações variadas, algumas delas de longuíssima duração, caso das referências gregas, platônicas e aristotélicas. Tam bém das referências poéticas, filosóficas, historiográficas, retóricas e artísticas latinas. Ou as au­ toridades cristãs, os métodos patrísticos e escolásticos de interpretação alegó­ rica da Bíblia e as hagiografias; ou as várias doutrinas medievais do poder monárquico; as referências cortesãs quinhentistas e seiscentistas, como os tratados italianos sobre as maneiras de Corte; os tratados de pintura e poesia; e, ainda, as próprias artes dos séculos XVI e XVII, principalmente os livros de em blem as e empresas. N a sociedade colonial, não eram conhecidas — e isso deve ser óbvio — as formas da subjetividade liberal, os direitos humanos, a propriedade autoral, o mercado de bens culturais, os direitos autorais, a originalidade e o público como “opinião pública” . A representação era regrada pela prescrição aristotélica q u e faz as artes imitar padrões anônimos e coletivos, repondo em cada situação os modelos das autoridades dos vários gêneros que demonstraram a excelência técnica de seu desem penho. Cada gênero tem um estilo específi­ co; cada estilo aplica uma verossimilhança e um decoro específicos, tam bém com um a adequação específica de procedimentos técnicos aos assuntos re­ presentados e às circunstâncias do uso da representação — no caso, um uso neo-escolástico. ê&S*eSfc, O lugar-comum teológico do conhecimento angélico, sistematizado por Santo Tomás de Aquino na Sutnma Theologica, é um dos principais funda­ m entos doutrinários da representação colonial. O Anjo é um ser puram ente espiritual q u e contem pla Deus diretamente; por isso, comunica os conceitos diretam ente, sem a mediação de signos. Os conceitos angélicos são totalmen-

academiàsta no Brasil: 1641-1820-22. São Paulo: C onselho E stadual dc C ultura, 1969, vol. III, tom o I-II.)

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te atuais: o Anjo não fala, não escreve, não usa imagens — não representa, enfim. D iferentem ente do que ocorre com os homens, que têm um conheci­ m ento apenas analógico ou indireto, sendo por isso obrigados a usar signos como mediação da imagem mental dos conceitos e da expressão exterior d e ­ les. Nos séculos XVII e XVIII, a tópica era fundamental, pois era por meio dela ou em contraposição a cia que se doutrinava a natureza das imagens artísticas como imagens indiretas 011 metáforas e alegorias dos conceitos, supondo-se que o conhecim ento hum ano não é angélico, mas análogo 011 se m e ­ lhante. A tópica fundam enta a doutrina do desenho interno, a doutrina italiana quinhentista do disegno interno, que define a representação como um desígnio de D eus ou segno di Dio, signo dc Deus. No século XVI, foi apropriada pelos jesuítas, que passaram a classificar a representação em geral como teatro sa­ rro, theatruw sacrum, uma exteriorização 011 cvidenciação da luz natural da Graça inata que ilumina a consciência de poetas e artesãos, aconselhando-os no ato da invenção. A doutrina propõe que o desenho — (a imagem 011 a representação mental que homens engenhosos fazem das matérias a que apli­ cam o pensam ento) — evidencia a participação análoga 011 proporcionada da sua m ente na substância divina. Os conceitos humanos participam na subs­ tância metafísica de D eus fundindo lógica — definida como dialética, anato­ mia ou análise, com que o juízo faz definições e contradefinições das matérias tratadas — e retórica — definida como técnica dos lugares-comuns da inven­ ção, da disposição das partes e da ornamentação em geral. Falar, escrever, pintar, esculpir, dançar, cantar, gesticular, etc. são m anei­ ras e formas de representar exteriormente as imagens interiores q ue revelam a presença de D eus na m ente aconselhando o livre-arbítrio. A imagem inte­ rior do pensam ento pode ser figurada exteriormente em substâncias diver­ sas, o que perm ite que uma arte traduza outra ou seja equivalente a outras, realizando o m esm o tem a em meios materiais diversos. Assim, a pintura re­ presenta temas épicos e históricos da poesia e da prosa e suas imagens devem ser vistas e interpretadas como as imagens de um discurso. A poesia d e s e n ­ volve tópicas da pintura, produzindo metáforas visualizantes, por isso é lida como se fosse uma imagem plástica. Em todos os casos, a representação e x te ­ rio r— arquitetura, sermão, poema, pintura, talha de igreja, imagem esculpi­ da, música, gesto, procissão, festa, etc. — é metáfora ou alegoria. Todas as imagens da representação devem antes de tudo setboas imagens, reguladas e controladas em regimes de adequações verossímeis e decorosas. Sendo pré-cartesiana, a representação não está subordinada a uma razão sufi­ ciente, como o cogito, mas às imagens mentais da fantasia chamadas de fantas­ mas. D iferentem ente do cartesianismo, a representação das festividades lusobrasileiras dos séculos XVII e XVIII não distingue ou opõe inteligível e sensí­ vel, ou conceito e imagem, nem hierarquiza o conceito como “superior” e a imagem como “inferior” , pois pressupõe que, m entalm ente, antes da repre­

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sentação exterior, os conceitos são imagens ou definições ilustradas, como escrevc Ccsarc Ripa no “Proêmio” do Iconologia, dc 1593. Assim, os conceitos são definições porque são entimem as ou silogismos retóricos; e são definições ilus­ tradas, porque têm a forma de imagens. E m todas as artes que hoje são anacronicamente classificadas como Bar­ roco, a forma-matriz da definição ilustrada é a metáfora, pois todas as imagens são produzidas associativamente, substituindo e condensando outras, que são fornecidas à imaginação pela memória dos usos autorizados dos signos. A doutrina da representação é neo-escolástica, por isso afirma que o atributo do Ser divino se aplica a todas as coisas da natureza e eventos da história, tornan­ do todos os seres convenientes e sim ultaneam ente diversos e diferentes e n ­ tre si. Todos são convenientes ou semelhantes pela sua ordenação em relação ao Um ou Máximo, como diz Santo Tomás de Aquino, pois todos são criados pela m esm a Causa; logo, todos são análogos e, em cada um deles, como aná­ logo, a U nidade divina é posta como definição de todos os outros. Todos os seres e todas as palavras se correspondem; por isso, podem valer uns pelos outros, como metáfora. E, deve ser óbvio, como todos são semelhantes, 011 seja, não idênticos, todos são diferentes. Com o ocorre na Eucaristia, a linguagem é um corpo fantástico onde a se­ melhança prolifera por emanação e participação. Na doutrina da linguagem da representação luso-brasileira dos séculos XVII e XVIII, a analogia é por assim dizer irradiante. Corpuscular, ela espraia-se por todos os intervalos e diferenças dos signos, diversamente do que ocorre nas atuais teorias lingüís­ ticas discretas ou binárias. Assim, a substância da expressão e a substância do conteúdo, qu e nas teorias contemporâneas não têm pertinência, significam, no século XVII e XVIII, tanto quanto a forma da expressão e a forma do conteúdo, porque a substância sonora das línguas, a substância material das coisas e a substância espiritual da m ente são tidas como efeitos criados ou signos da Causa Primeira. E o que Francisco Leitão Ferreira propõe, em 1718, no seu Nova Arte de Conceitos'. “Os Símbolos, Hieróglifos e Empresas são tam bém sinais sensíveis dos conceitos: são engenhosos, porque alusivos; e figurados, porque metafóri­ cos. N eles uma coisa se vê e outra se entende: manifestam o corpo, e ocul­ tam a alma; os olhos admiram a figura e o figurado só o entendim ento o percebe; e por isso semelhantes sinais são uns quase contraditórios sensí­ veis, pois a vista conhece o objeto e ignora o significado: está evidente e parece enigma; a alusão veste-se de ilusão.”*

K F ranciso L eitão Ferreira. N ova arte de conceitos. L isboa: Im p ren sa Regia, 1718, 2 vols., vol. 1.

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Kantorowicz demonstrou que, nos séculos XVI, XVII e, no caso dc Portu­ gal, ainda no século XVIII, sob a autoridade do papa como princeps e verus itnperator, o aparelho hierárquico da igreja romana mostrou uma tendência a se tornar o protótipo perfeito de uma monarquia absoluta e racional sobre uma base mística, enquanto que, ao mesmo tempo, os Estados católicos m a­ nifestaram mais e mais uma tendência a se tornarem uma quase-Igrcja c uma monarquia mística sobre uma base racional. A fusão de teologia e política faz com q ue mesmo a empiria tenha as marcas de Deus e seja racional. Assim, se as coisas da natureza apresentam os vestígios da lei eterna dc Deus, tam bém evidenciam profeticamente a destinação católica do Brasil. Ao contrário dos lugares luteranos, calvinistas, maquiavélicos e hobbesianos, onde a luz natu­ ral da Graça inata está ausente, nenhum a representação católica feita nas fes­ tas do Brasil nos séculos XVII e XVIII deixa de incluir teologemas testam entários q ue definem a eficácia do que é lido, ouvido e visto como manifestação da luz da Graça. O próprio meio material da linguagem deve ser percebido na experiência da representação como presença divina, daí a tendência à satura­ ção dos espaços intermediários das formas com o acúmulo de signos que re­ presentam a L uz e a emanação da L u z nas instituições. Os tratadistas que se ocuparam do desenho interno nos séculos XVI, XVII e XVIII, como Gilio, Possevino, Ripa, Peregrini, Pallavicino, Tesauro, Gracián e Francisco Leitão Ferreira, afirmam que a imaginação, quando produz as imagens dos objetos ausentes, transforma os fantasmas da m ente produzidos por imagens fornecidas pela memória e, para isso, é aconselhada pela luz natural da Graça inata. Na representação, a semelhança dos seres com D eus é definida como decorrência da analogia de proporção c da analogia de pro­ porcionalidade. A proporção é uma relação lógica e metafisicamente deter­ minada dos entes e Deus; a proporcionalidade, uma relação indeterminada. Logicamente, assim como é determ inada a relação entre 2 e 4, pois são pares próximos, os poetas podem escrever que a boca é um cravo, pois ambos os termos participam em coisas vermelhas ou na idéia mesm a de Ivennelhoj. A relação entre 2 e, suponha-se, 157, é indeterminada, assim como é semanticam ente indeterm inada a metáfora maio significando serpente em um soneto de Botelho de Oliveira. Em bora 2 e 157 sejam convenientes como números, assim como serpente e maio são convenientes como nomes, não é clara a pro­ porção lógica que os relaciona semanticamente. Mas é a proporcionalidade (que estabelece a semelhança indireta e a distância infinita entre os seres criados e a identidade divina) que assegura aos atributos de D eus um signifi­ cado positivo e uma verdadeira realidade, sempre aludidos na representação como sublime da participação de todos os seres na sua Causa. Os principais tratados retórico-poéticos italianos e ibéricos dos séculos XVI, XVII e XVIII doutrinam os modos mais adequados de figurar exteriormente, por meio de signos, essa Presença que brilha como luz da Graça no interior da

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consciência. É preciso novamente dizer que não se trata de “representação” no sentido empirista-positivista-psicologista de “cópia” , “reflexo” e “expres­ são da subjetividade” , mas de um pôr em cena dos rastros fugidios da Presen­ ça que faz o m undo ser e desejar o Ser. Um pôr em cena não só do definido da forma, no sentido do desenho wolffliniano, mas tam bém da sua labilidade, lateralidade e porosidade, espaços e interstícios em que a luz irradiada pela unidade divina na sua semelhança roça, atravessa ou penetra as semelhanças de outras formas tam bém irradiantes. Em todos os espaços qualificados pela Presença, as semelhanças reiteram a presença de Deus no tempo; simulta­ neam ente, reiteram que é irrepresentával o corpo místico e glorioso de Cris­ to, referência fundante do “corpo místico” do Estado. Reiteram que o corpo místico de Cristo só pode ser presentificado em figurações alusivas, que o representam profeticamente como substância espiritual atravessando e tangenciando todas as imagens — sem nunca confundir-se com nenhuma delas — como idéia de Deus. Analogamente, o corpo místico da comunidade é invisí­ vel, devendo ser figurado em formas alusivas que propõem a homologia de religião, política e retórica como imitatio veritatis, imitação da verdade. Por isso, a representação na festa colonial evidencia justam ente o m om en­ to da conformação, em q u e se produz no destinatário a presença dos afetos relacionados à recepção da Graça. Em L!Express:on des Passions (1668), Le Brun propõe que o fim da representação é figurar os movimentos da alma através dos gestos dos corpos para que, vendo as imagens pintadas e esculpi­ das, o espectador exercite a imaginação, produzindo em si mesmo a presença de um afeto cuja forma deve ser a mais semelhante possível da forma do afeto figurado na gesdculação do corpo esculpido, pintado, dançado, escrito ou verbalizado.9 O m om ento representado na conformação é justam ente o do instante inefável do contato com Cristo ou o momento da recepção da Graça, q u e os teólogos chamam de conformação afetiva, sublinhando seu caráter pas­ sional.10 E m chave neoplatônico-agostiniana, tanto a representação verbal quanto a representação plástica figuram a infusão mística da Luz. Conforme o modelo da Eucaristia, figuram a incorporação da luz natural da Graça pelos corpos dram aticam ente deformados como dispositivos de produção da pre­ sença divina."

9 Charles L e Brun. L’expression des passions & autres conférences. Correspondance. Paris: D cdalc M aiso nn euv e et Larose, 1994. 10 N os séculos XVII c XVIII, “afeto” cra diferente dc “ação” . C om o no poema dc John D on ne, em q u e a personagem afirma a D eus q ue nunca poderá scr livre c casto a menos q u e Ele o estup re — nevershallbefree/Nor ever rhaste, exreptyou ravish tnee— “estar apaixo­ n ado ” significava deixar q ue outra vontade agisse sobre o corpo, produzindo nele a presen ­ ça de sua força deformante. 11 Giovanni Carcri. “El artista” , in: Rosário Villari (cd.). Elhom bre barroco. Madri: Alianza Editorial, 1993, p. 335.

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E n q u a n to repõe a hierarquia e os signos de posição, a representação das festas coloniais dem onstra que o sentido com pleto do qu e c visto, ouvido e agido está além — e que o espetáculo da vida só é legítimo q u ando o corpo individual se integra em tal sentido como parte subordinada no corpo mís­ tico da com unidade. O bviam ente, o corpo nunca pode apresentar um grau zero de si mesmo, pois desde sem pre é um objeto semiótico, culturalm ente marcado. A representação dele nas festas coloniais segundo a metafísica da luz é homóloga da figura do “corpo místico” nos tratados dos juristas contra-reformistas, como o De Legibns ou o Defensio Fidei, de Francisco Suárcz. A doutrina afirma que os corpos individuais integram-se na vontade unifi­ cada do corpo místico do Estado, segundo a doutrina do pacto de sujeição estabelecido como a quasi alienatio da com unidade que transfere o poder para o rei, declarando-se súdita 011 subm etida, conforme o m odelo jurídico da escravidão. A doutrina tam bém dá sentido às três faculdades constituti­ vas do hum ano — memória, vontade e intelecto. Na representação luso-brasileira, o corpo é visível, dizível e representável porque sua forma exterior dem onstra espetacularm ente qu e as três faculdades se integram hierarqui­ c a m ente no “bem c o m u m ” do Estado absoluto. Não há n e n h u m a noção de subjetividade psicológica, como hoje; a posição do “e u ” na representação das festas coloniais é im ediatam ente a de uma subordinação da vontade, da m em ória e do intelecto como livre-arbítrio de tipos q u e agem p r u d e n te ­ m e n te ao reconhecer sua posição estam ental no todo do Reino. Parece pa­ radoxal, pois é uma liberdade definida como subordinação. Mas é subordi­ nação dos apetites à unidade estóica da “tranqüilidade da alm a” dada a ver e a ler nos signos espetaculares da luz; subordinação da alma pacificada à concórdia coletiva, dada a ver no todo do espetáculo da festa; em decorrên­ cia, subordinação à paz geral do todo do corpo político do Reino efetuada pela subordinação das partes e do todo à repetição festiva do D itado divino atualizado pelo papa e executado pelo rei. O corpo individual representado nas festas coloniais e nos relatos de feste­ jos é efetuado segundo critérios éticos, retóricos e teológico-políticos que o com põem como corpo hierarquizado, corpo homólogo do corpo místico do Estado definido nos tratados de juristas contra-reformistas, como Botero e Suárez. O corpo é uma forma com duas articulações: por uma delas, é efeito parcial e m om entâneo de um afeto ou paixão. As paixões são achadas na Etica Nicomaquéia e são racionalmente construídas e aplicadas. O esquem a é g e n e ­ ralizado transnacionalmente, aparecendo, por exemplo, no título do tratado que o oratoriano Jean-François Senault dedicou a Richelieu, em 1644, De l ’Usage des Passions, Sobre 0 Uso das Paixões. A mecânica das paixões fixa o m om ento em qu e uma ação qualquer atravessa ou deforma um gesto como um instantâneo q u e congela a ação escolhida em um elenco prefixado de ações. Construído como sucessão ou simultaneidade de várias paixões, o cor­

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po c hierarquizado conforme as prescrições do gênero aplicado para repre­ sentá-lo. Há o corpo cômico, baixo e deformado de vulgares, assim como há o grave e elevado de discretos. Há o corpo louvado c o vituperado. Um corpo místico c um corpo mortal; um corpo sagrado c um corpo temporal; um corpo em glória e um corpo pecador, etc. Pela outra articulação, o corpo efetuado no cortejo faz ver o próprio proces­ so produtor do efeito. O estilo evidencia para o destinatário a presença de um mecanismo óptico que faz o espectador que ocupa a posição do destinatário lembrar o elenco de ações possíveis e a escolha feita pelo juízo do autor da representação. E m todos os casos, a representação teatraliza a memória de usos coletivos, anônimos e autorizados dos signos que fazem com que tam ­ bém seja uma memória autorizada. A representação da festa tem, por isso, a estrutura de uma racionalidade não psicológica que aplica paixões tecnica­ m ente. Por outras palavras, a paixão representada em vários personagens e ações nunca é expressiva ou psicológica, mas sempre retórica, formalizada como uma técnica de produção de efeitos que imita as imagens e os discursos dos livros de emblemas. Como se sabe, estes propõem uma relação de ima­ gem e de discurso, ou de pintura e poesia. eíáí& s t t t í i ( " á í *

E m uma carta para o pintor holandês Justus Sustermans, que lhe pedia explicação sobre Os Horrores da Guerra, tela pintada entre 1637 e 1638, R u­ bens informa qu e imita tópicas homéricas e que deve não só ser vista, mas lida e interpretada como uma alegoria: “A figura principal é M arte que, deixando aberto o Tem plo de Jano (era um costum e romano deixar o Tem plo de Jano fechado em tem pos de paz) avança com seu escudo e sua espada manchada de sangue, arra­ sando as nações com grande devastação e dando pouca atenção a Vênus, sua am ante que, acom panhada de seus Cupidos e amores, tenta pará-lo com carícias e abraços. Do outro lado, Marte é acompanhado da Fúria Alecto, segurando um a tocha na mão. Perto aparecem monstros, repre­ sentando a P e ste e a Fom e, companheiras inseparáveis da guerra; no chão jaz um a m ulher com um a lira quebrada, significando a harmonia, que é incom patível com a discórdia da guerra; tam bém há uma Mãe com seu filho nos braços, d enotando que a fecundidade, a geração e a caridade estão pisoteadas pela guerra, que corrompe e destrói todas as coisas. Ain­ da há um arquiteto, q u e jaz com seus instrumentos na mão para de m o n s­ trar q u e o qu e é construído para a comodidade e ornam ento da Cidade está reduzido a ruínas e subvertido pela violência das armas. Eu acredito que, se m e lem bro bem, você tam bém achará no chão, entre os pés de

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Marte, um livro e alguns desenhos sobre papel para dem onstrar qu e ele pisoteia as letras e as outras artes. T a m b ém existe, acredito, um feixe de flechas com a corda que as amarra desatada, porque quando atadas elas são o em blem a da Concórdia; e eu tam bém pintei, ao lado delas, ocaduceu e a oliveira, o símbolo da paz. A Matrona lúgubre vestida de preto e com o véu rasgado, despojada de suas jóias e de qualquer ornamento, c a infeliz Europa, afligida por tantos anos de rapina, ultraje e miséria que, por se ­ rem tão nocivos para todos, não precisam ser especificados. O atributo de E uropa é aquele globo segurado por um m enino (putto) e encim ado por um elmo q u e significa o orbe cristão. Isso é tudo que lhe posso dizer” .12 R ubens não diz que a pintura é a poesia ou vice-versa, mas que c idêntico o modo como a poesia e a pintura imitam os mesmos temas em substâncias diversas. Se compararmos sua carta com o relato do Triunfo Eucarístico publi­ cado em 1734 por Simão Ferreira Machado, observaremos o m esm o pressu­ posto mimético. Por exemplo, na descrição de Marte: “Vinha Marte em dis­ tância de dois passos: armava-lhe a cabeça um capacete de prata de lavores de pedraria, rematado num precioso cocar de plumas brancas, e encarnadas; vestia de seda branca de prata; o peito em campo da mesma seda, bordado de ouro [...] na mão direita em punhava uma espada nua de guarnições de prata, e lavores de ouro; e na esquerda um escudo de prata [...]” .u Se compararmos o texto de Simão Machado com outros que narram ou descrevem festas colo­ niais encontraremos a mesma unidade de procedimento, que faz com que Simão escreva a representação do Triunfo Eucarístico imitando imagens da pintura, assim como Rubens pinta sua tela imitando tópicas da poesia. Em todos os casos, a poesia mostra, como se fosse uma imagem pictórica, e a pintura significa, como se fosse um discurso poético. Dois gêneros hoje mortos, mas extrem am ente importantes nos séculos XVI, XVII e XVIII — o dos livros de em blem as e o dos livros de empresas — relacionam pintura e poesia. Em Portugal e no Brasil, foram as obras de Alciato, Horapolo, Valeriano e Ripa, principalmente, além da Antologia Grega, os epigramas latinos e a Bíblia que difundiram o gênero e m blem ático q ue se acha imitado na representação das festas coloniais.

12 P. R ubens. “Carta a Justus S ustcrm ans” . Cit. por E. H. Gombrich. ícones symbolicae. 2nd. impression. Londres: Phaidon, 1993, p. 123. Simão Ferreira Machado. Triunfo eucarístico, Exemplar da Cristandade Lusitana em pública exaltação da Fé na solene Trasladação do Divintssitno Sacramento da Igreja da Senhora do Rosá­ rio, pa ra um novo Templo da Senhora do Pilarem Vila Rica, Corte da Capitania das Minas aos 24 de maio de 1733 etc..., in: Josc Adcraldo Castello. O movimento academicista no Brasil: 16411820/22, op. cit., p. 212.

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mar, como técnica construtiva, c declarar, como técnica interpretativa.21 Uma definição escrita tem poucos termos e sua imitação pela pintura tam bém deve ser sintética, diz Ripa. A imagem plástica deve ter semelhança com a defini­ ção, por isso uma coisa que é definida pode scr figurada pela sua diferença específica ou por diferenças gerais 011 acidentes. Quando 0 artesão já conhece as causas, os atributos essenciais e os acidentes de uma coisa definida m en ­ talmente, precisa achar uma semelhança nas coisas plásticas para figurar o que já definiu com a imagem mental. A semelhança funciona, no caso, como a analogia de proporção: a : b :: c : d. Por exemplo, se o artesão quer figurar o conceito de IForçai, pinta uma Colu­ na, porque a coluna suporta todo o peso do edifício sem vacilar. Metaforica­ m ente, pode-se dizer que o homem forte, que supera todas as dificuldades, é uma coluna. Da mesm a maneira, a Espada e o Escudo são semelhantes à Retórica: assim como o soldado ataca com a espada e se defende com o escu­ do, o orador combate opiniões contrárias e sustenta opiniões favoráveis com os argumentos. Assim, quando Ripa propõe que: A Beleza se pinta com a cabeça oculta entre nuvens, a imagem de uma nuvem cobrindo a cabeça de um corpo fem inino significa que não existe nada que mais dificilmente se possa repre­ sentar com a linguagem mortal e que menos se possa conhecer com o intelec­ to hum ano que a Beleza, pois nas coisas criadas não é outra coisa (em sentido metafórico) que um esplendor emanado da luz do rosto de Deus, como di­ ziam os platônicos. □ □ □ J

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1983 e d o u t o r a d o e m 198 8 e m L it e r a t u r a B ra sile ira n a

U n iv e rs id a d e d e S ão P au lo . P u b lic o u S á tira e 0 Engenho. Gregário de M atos e a B ah ia do Século X V II. S ã o P a u l o : C o m p a n h i a d a s L e t r a s , 1 9 8 9 , 5 1 1 p . ( P r ê m i o J a b u t i 9 0 n a c a te g o ria E n saio ). R

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. O e n s a i o d e f i n e a c a te g o r ia “ r e p r e s e n t a ç ã o ” , n o B rasil d o s s é c u lo s X V I I

e X V I II , e x e m p lif ic a n d o su a s a rtic u la ç õ e s retó ricas e teo ló g ico -p o líticas c o m o te x to d a p r o c i s s ã o d o Triunfo E ucarístico ( 1 7 3 3 ) , a t ó p i c a h o r a c i a n a d o u tp ic tu r a poesis e a e stru tu ra das im ag en s em b lem áticas.

21 C csarc Ripa. Iconotogia. A cura tli Picro Buscaroli. Prcfazionc di Mario Praz. Milano: 1 F.A, 1991.

O ESPREITADOR

M U N D O NOVO. OBRA CR ITIC A , M O RA L, E DIVERTIDA,

FOLHETO= I.

JANEIRO.

A Velhice procura o Mundo velho ,

Sagaz Espreitador indaga o novo , Ambos absortos ficão ; porque encontrao Outro trato, outros usos , outro Povo. POR

JOSÉ DANIEL RODRIGUES DA COSTA. LISBOA, M. nccctr..

NAOFFjc.

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FERREIRA.

C'ont Licença da Meza do Dcsembargn do Peço.

Frontispício de O espreitador do Mundo Novo. Obra crítica, moral, e divertida Folheto=I. Janeiro. Por José Daniel Rodrigues da Costa. Lisboa, M. DCCCII. Na offic. de Simão Thaddeo Ferreira. Claude Maffre. L'oeuvresatiriquedeNicolau Tolentino. Paris: Cen­ tro Cultural Calouste Gulbenkian, 1994, p. 785. Foto André Ryoki.

ABUSO E BOM USO: DISCURSO NORMATIVO E EVENTOS FESTIVOS NAS CARTAS CHILENAS J o a c i

P e r e i r a

F u r t a d o

o m p r e e n d i d a , sf. g u n d o as preceptivas da retórica, como subgênero do gênero epidítico, a sátira produzida no mundo luso-brasileiro da se­ gunda m etade do século XVIII objetivava um fim essencialmente moralizante.1 Ou, como diria Francisco José Freire (mais conhecido como Cândido Lusitano) em sua Arte Poética, em 1759:

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“a matéria da Satyra saõ as acções humanas, imitadas por meyo do riso, e graciosidade, naõ para alegrar, e divertir os animos, como a Comedia, mas para reprehender, e arrancar os vicios por modo suave, a fim de naõ escan­ dalizar ao leitor. E ntendem os por estes vicios, v. g. os de hum lisonjeiro, de

1 O u, nas palavras dc João Adolfo Hanscn, “o estilo dc que a sátira é um gênero difunde-se por países da área m editerrânea, principalmente os da península Ibcrica, como uma koiné. S im u lta n e a m e n te artifício literário engenhoso e padrão distintivo do discreto, potcnciali/.asc nas produções poéticas da época como dispositivo sensibilizador da correção das m anei­ ras, da moral e da boa ordem política” (João Adolfo Hanscn. A sátira e o engenho; Gregário de Matos e a Bahia do séru/o XVII. São Paulo: C om panhia das Letras, 1989, p. 31 — grifo no original). E m outro texto, di/. o mesm o autor: “E preciso lembrar qu e os estilos correntes no século XVII são supra-individuais c supra-nacionais. Então, nas belas letras, pois a lite­ ratura não havia sido inventada; c na pintura, que deixou de ser artesanato e tem a dignida­ d e d c uma arte liberal, a produção e a recepção são retóricas. Nesse lugar simbólico, q ue é desprovido da noção dc individualidade ou subjetividade psicológica própria das artes fei­ tas depois da segunda m etade do século XVIII, aparece aauctoritas, a autoridade do m o d e ­ lo ou do gênero q u e é imitado segundo a racionalidade técnica ou não-psicológica do au ­ tor” (J. A. Hanscn. “Arte no século XVII: p lenitude dc sinceridade estilística” , in: Guia do Ouvinte Cultura FM, São Paulo, n." 136, jul. 1998, p. 4.

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hum fallador, de hum ingrato, dc um luxurioso, &c. E daqui vimos a con­ cluir, que o officio da Satyra he com o sal dos versos preservar da corrupção dos vicios as doenças dos animos, e deleitar por meyo da irrisaõ, que sc faz dos defeitos alheyos; c que igualmente o seu fim he reduzir os hom ens à pratica das virtudes, apartando-os de seus vicios.”Concebida como mescla de estilos, estruturalmente sem unidade para figu­ rar a falta de unidade dos vícios, a sátira parodia convenções dc outros gêneros, não se limitando a formas exclusivas e se manifestando em prosa ou verso onde se misturam preccptivas da lírica, do encômio e da epopéia. Assim, poemas herói-cômicos como as Cartas Chilenas são imitações satíricas do épico, confor­ me define Manuel Inácio da Silva Alvarenga no prefácio dc 0 Desertor. “O poema heroi-comico, porque abraça ao m esmo tem po uma e outra especie de poesia [o épico e o cômico], é a imitação de uma acção comica heroicam ente tractada. Este poema pareceo monstruoso aos criticos mais escrupulosos; porque se não póde (dizem elles) assignar o seu verdadeiro caracter. Isto é mais uma nota pueril, do que bem fundada critica; pois a mistura do heroico, e do comico não involve a contradição, que se acha na tragicomedia, onde o terror e o riso m utuam ente se destroem. “Não obsta a autoridade de Platão referida por muitos, porque quando este filosofo no Dialogo 3 de sua Republica parece dizer que são incom pa­ tíveis duas diversas imitações, falia expressam ente dos autores trágicos e comicos, que já mais serão perfeitos em ambas.” 5 Assim, longe de uma função estritamente descritiva, de relicário de ilustra­ ções que enchem nossos olhos com cenas vivas do passado colonial, os e v e n ­ tos festivos descritos nasCartas Chilenas, poema herói-cômico atribuído a Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), são antes de tudo palcos onde apersona satírica vozeia as convenções do decoro — repostas pela fala do narrador Critilo — e a subversão delas — representada pela figura de Fanfarrão Minésio. Constituídas por elementos da murmuração local contra a gestão de D. Luís da C unha Pacheco e M eneses no governo da capitania de Minas Gerais, entre 1783 e 1788, as festas narradas nas Cartas Chilenas são cenários privilegiados para a atuação do olhar corretivo do poeta, que evidencia pelo comportamento de Minésio o antimodelo do discreto.4 O retrato que dele pinta Critilo obedece

- Francisco José Freire (C ândido Lusitano). Arte poética. 2.‘ ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco L uiz A meno, 1759, t. 1, p. 249. 3 M a nu el Inácio da Silva Alvarenga. “O desertor, poem a heroi-comico” , in: Obras poéticas d e... Rio dc Janeiro: Garnicr, 1864, vol. 1, p. 6-7. 4 É bastante presente, nas Cartas Chilenas, o modelo do discreto constituído por obras do jesuíta espanhol Baltasar Gracián y Morales (1601-1658) — cujo E lCriticón é c m ulado no

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a convenções como as encontradas no capítulo dez do livro quinto da Instituição Oratória dc Quintiliano," que previam a constituição de personagens caricatu­ rais cujas figuras traduziam cm sua própria aparência o princípio aristotélico do disforme como moralmente mau.'1Néscio porque tirano, a vida pública do antiherói nada mais é que a extensão dc seu proceder vulgar na intimidade, já que, na perspectiva da persona satírica, as duas esferas — política e vida privada — não sc separam.7 Aliás, como lembra Baltasar Gracián, “Há também defeitos de estirpe, do estado, do ofício e da idade, que, se coincidem todos num indiví­ duo e não são prevenidos pela atenção, criam um monstro intolerável” .8 Logo na “Carta l .a” — “Em que se descreve a entrada, que fez Fanfarrão em C hile” — a combinação monstruosa dos defeitos da personagem de F a n ­ farrão é dramatizada no “congresso” habitualmente promovido por seu ante­ cessor — agora em despedida — e ao qual comparece o novo governador. Contrastando com o “benigno Chefe,/Q ue o Governo largou” , Minésio entra “N a casa do recreio; e reparando Nos mem bros do Congresso, a testa enruga, E vira a cara, como quem se enoja: Por que os mais junto dele não se assentem, Se deixa em pé ficar a noite inteira; Não se assenta civil da casa o dono; Não se assenta, (que é mais), a Ilustre Esposa; Não se assenta tam bém o velho Bispo, E a exemplo destes o Congresso todo.”lJ Já que o “mau modo tudo estraga, até a justiça e a razão”,"1ao não depor “os melindres da grandeza” nesse evento festivo o anti-herói das Cartas Chi­ lenas revela a inadequação de seu “gênio” à sua condição de fidalgo, estando

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poem a satírico atribuído a Gonzaga. As virtudes da prudência, do herói e do discreto estão elcncadas c com entadas nas seguintes obras dc Gracián: /I m ie da prudência. Trad. Ivone Castilho Bencdetti. São Paulo: Martins Fontes, 1996, 172 p.; EIhéroe — EI discreto. 7.a ed. Madri: Espasa-Calpc, 1969, 141 p. Quintiliano. Institution oratoire. Ed. fr. H cnry Bornecque. Paris: Garnicr, [1933], vol. 2, p. 155-205. J. A. Hanscn. “Sátira: ars laudandi et vituperandi — gênero epidítico” [Notas para a pósgraduação], mimeo., 1997, p. 1. Ver, a respeito, Ronald Polito. A persistência das idéias e das formas; um estudo sobre a obra de Tomás Antônio Gonzaga. Dissertação de mestrado. Niterói: D epartam ento dc História da U niversidade Federal F lum inense, mimeo., 1990, p. 103-04, 141-2. B. Gracián. A arte da prudência, p. 34. T om ás Antônio Gonzaga. Cartas chilenas. 2.a ed. São Paulo: C om pan hia das Letras, 1996, p. 59. B. Gracián. Op. cit., p. 36. F. prossegue, na mesma página: “ fi grande o papel do como nas coisas, e o bom jeito é o taful das coisas. O b elportar-sc é gala do viver, d esem peço singular dc to do bom term o ” (grifos no original).

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por isso “próprio/Para nascer Sultão do Turco Im pério” ." Sua “tolice, c vã soberba” cega-o para as obrigações com os padrões dc distinção aristocrática e as regras de precedência hierárquica que Critilo ao mesmo tem po rem em o­ ra e prioriza: “Pensavas, Doroteu, que um peito nobre, Q ue teve Mestres, que habitou na Corte, Havia praticar ação tão feia Na casa respeitável de um Fidalgo, Distinto pelo Cargo, que exercia, E mais ainda pelo sangue herdado?” 1J Na cerimônia de posse na igreja, narrada em seguida, Fanfarrão repete o m esm o comportamento, desta vez com a afetação indecorosa dos “maus C o­ mediantes, quando fingem/as pessoas dos Cirandes no teatro” , entesando o pescoço, concertando os pés em “ar de m in u e te ” e arqueando o braço es­ querdo sobre a ilharga1' — para depois voltar para casa, acompanhado de seu antecessor, sem prestar as devidas reverências sequer aos “Cidadãos” do “Luzido, N obre Corpo do Senado” que o acompanha em cortejo e são por ele deixados à porta “quais lacaios”.14 O fato é im ediatam ente atacado pelo arsenal de normas de conduta virtuosa mobilizado pelapersona satírica contra o antiexem plo de Minésio, esquecido — segundo o poeta — de q ue até m es­ mo os reis não deixam de ser “uns bons Monarcas” quando “honram aos Vassalos” c que para sc conquistar o respeito — que “nunca nasce/Do susto, e do temor, que aos povos m etem/injúrias, dcscortcjos, c carrancas” 15 — é preciso o indispensável concurso das virtudes.1'’ Outro evento festivo, entretanto, oferecerá ocasião para que, em duas “car­ tas” consecutivas, Critilo encene com mais demora as ações viciosas de F a n ­ farrão, enfatizando seu desprezo pela lei e pela etiqueta, acrescentando-lhe traços de crueldade que visam acentuar a repulsa moral do leitor. Trata-se das comemorações do que a persona satírica chama de “desposórios de nosso Se­

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T. A. Gonzaga. Op. cit., p. 60. Ibidem, p. 59-60. Ibidem , p. 61. Ibidem , p. 62. Ibidem , p. 63. Afinal, ensina Gracián, “Muita coisa é conseguir a admiração com um , porém mais a afei­ ção: tem algo dc estrela, e mais de indústria; começa com aquela e prossegue com esta. N ão basta excelência nos dotes, embora sc suponha ser fácil ganhar o afeto g anh an do o conceito. Requer-se, pois, para a benevolê ncia a beneficência: fazer b em a mancheias, boas palavras c melhores obras, amar para ser amado. A cortesia é o maior feitiço político dc grandes personagens. A mão há dc se este n d e r primeiro para os feitos, depois para as plumas; da folha às folhas, pois há graças de escritores, e são etern as” (1?. Gracián. Op. cit., p. 48).

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reníssimo Infante com a Sereníssima Infanta dc Portugal” — alusão ao duplo matrimônio celebrado entre as coroas ibéricas cm 1786 que com preendeu o casamento do príncipe português D. João com a princesa espanhola D. Carlota Joaquina.17 A vituperação de Minésio é reposta já na afetação da “e xten­ sa Carta/Em ar dc Majestade, em frase Moura” , que se escrcve ao “Senado” ordenando-lhe a realização das cavalhadas, a preparação dc “bravos touros” ao “gosto das Espanhas” e que “Os três mais belos Dramas se estropiem,/ Repetidos por bocas de mulatos” . Entretanto, os “grandes festins” em que M inésio quer ver arder “a terra toda” , à custa “do Senado, e povo” , são contrastados com a exaustão das minas dc ouro na “nossa Chile” e com a “ Lei própria/Que aos festejos Reais prescreve a norma”, ordenando modera­ ção no gasto das “rendas” — que devem ser aplicadas “em cousas santas” . O episódio perm ite à persona satírica não só condenar a desobediência aos “D e ­ cretos dos Augustos” e a irregularidade no emprego das verbas públicas, mas tam bém evidenciar conseqüências cruéis do mau uso destas — uma vez que “se devem/Parcelas numerosas impagáveis/Às consternadas amas dos expos­ tos” . Ao menosprezar as ordens do monarca e ameaçar os “pobres Senado­ res” que lhe replicam com a “sábia L e i”, Fanfarrão subverte a dignidade de seu posto, ao qual com pete defender os decretos do soberano, e falta com o devido zelo pelo “bom Vassalo,/Que intenta obedecer ao seu Monarca” . O qu e leva Critilo a lamentar a infelicidade dos que habitam “Conquistas de seu dono tão rem otas” , já que a distância impede a chegada ou faz soçobrar os “gem idos” do “povo” que clama ao “Trono” .18 Ainda na mesm a “carta” , descrevendo “a grande Missa” que inaugura os festejos, o poeta volta a dramatizar a empáfia de Minésio, que assiste à ceri­ mônia da tribuna e que — ironiza a persona satírica — “tendo posto/O seu chapéu em cima da cadeira,/Pudera duvidar-se, se devia/O Bispo ter a Mitra na C abeça” .19 O proceder indecoroso do “C hefe” , entretanto, se repete com o fim da “função”, quando, acompanhados da “nobreza da terra” , o bispo e o governador tomam seus lugares na sege. Ao deixar o templo, Fanfarrão “Vai passando por todos, sem que abaixe/A empoada cabeça, qual Mandante,/Que passa pelo meio das fileiras”, para logo se acomodar na “parte direita do as­

17 Os gastos com as comcm oraçõcs do casamento dc D. João com D. Carlota Joaquina são objeto d c controvérsia en tre o Governador C u n h a Meneses, o Senado da Câmara dc Vila Rica, a ouvidoria local e a Coroa. Ver, a respeito, Carlos Ycrsiani. “As Cartas chilenas" e as festas dc 1786 cm Vila Rica (a história oculta sob os versos de Gonzaga)” , in: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, ,? I- G T A T I V A

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a dignidade do hom em estava na sua capacidade de elevação espiritual. Viver apenas para o necessário ao corpo era aproximar-se da animalidade. Orisênio concordava com Glauceste: “Tristes de nós neste País grosseiro!”. Mas logo eles avistam um cortejo luminoso descendo os penhascos e convertendo toda a paisagem em verdejantes colinas, ao som dc doces acordes musicais. Era Lucina, que vinha anunciar a chegada do maioral Daliso àqueles montes. Embora lamentasse perder sua companhia, em Lisboa, a ninfa prognosticava uma total transformação da paisagem e da situação que tanto desagradava a Glauceste e Oriscnio: “Por ele em doce agouro/verão como se cobre/igual do trigo louro/o campo, ou já do rico, ou já do pobre”, dizia aos dois pastores, extasiados. Os animais pastarão contentes pela relva, cessariam as tempestades que desfa­ ziam as sementeiras, seria como se a terra se banhasse “ou já do branco leite, ou do mel doce” . O povo viverá contente, e assim desaparecerão a traição e a aleivosia. Enfim, dizia ela: “Tudo delícias vejo/no Ribeirão ditoso” . Term inada a écloga, a bateria de sonetos reforçaria ainda mais os auspícios da ninfa, e nos ajudaria a confirmar a impressão de que ela estava na verdade falando de um retorno da Idade de Ouro. Tal é o tema da sexta composição da série, cujo cabeçalho diz o seguinte: “Restitui-se à Terra a Justiça e se torna fecundo de metais o país das Minas” . Logo na primeira quadra, o louvador afirma: “Direi que torna a nós a Idade de Ouro”. A estrofe seguinte descre­ ve o novo estado de felicidade geral. E o primeiro terceto expõe a causa: “Nas­ ce tanta abundância (não me engano)/da Ventura que às Minas lhe tem vindo/ do novo Herói no mando soberano” . E no fecho de... ouro, anuncia-se a volta da deusa da Justiça ao convívio dos homens: “Astréia se está para nós rindo” . Nessas passagens citadas, tanto na écloga quanto no soneto, vemos que Cláudio M anuel não deixou de recorrer ao mito clássico da Idade de Ouro num a ocasião qu e praticamente o impunha. O herói louvado, sendo um m an­ datário político, devia ser adequadam ente associado à regeneração que livra­ ria o ser hum ano da decadência do mundo e da sociedade, trazendo de volta um tem po de paz, justiça e fartura. O que impressiona, neste caso, é que não se nota n e n h u m a relação de necessidade entre os “feitos” do governador e os do herói que o representa no encômio. Se na écloga mantém-se o retorno da Idade de Ouro como um prognóstico, uma visão antecipadora do futuro, no soneto citado e em outras passagens da sessão encomiástica esse milagre era presente; na posse do herói já se louvavam os resultados do seu heroísmo. Valadares tinha então algumas semanas de governo; ainda não havia muitos “feitos” , som ente “a-fazeres” — e entre estes Cláudio Manuel gostaria de ver o fomento às artes e letras, à cultura letrada, enfim, na sua pretensão de autonomia, prestígio e ingerência política. Como explicar, então, que fosse cabível apresentar em poesia o retorno de uma época ideal se, na prática, m esm o qu e tivesse de fato essas boas intenções, o governador não teria se­ q uer tido tem po para agir? Como percebeu Sérgio Buarque de Holanda, ao

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analisar um outro poema encomiástico dc Cláudio Manuel, o retorno da ép o ­ ca áurea aí cra “uma expectativa — c ainda aqui de cunho metafórico — c não uma realidade atual” (S. B. de Holanda, ca. 1955:370). N o espaço de jogo da ficção encomiástica, a transformação da expectativa em realização era um lance previsível. Na verdade, o poeta não se referia a medidas governa­ mentais objetivas já tomadas, que seriam por assim dizer afins a um suposto “conteúdo” do lugar-comum sobre a Idade dc Ouro; manifestava-sc com seu artefato retórico-tópico um conjunto dc expectativas socialmente constituí­ das no âmbito de uma incipiente cultura letrada, ciosa dc suas aspirações, mas frustrada por seu desajuste na situação colonial. O que estava fazendo a cultura letrada numa terra que ficava a dois meses c meio de viagem do prelo utilizável mais próximo? E o que era o letrado na América portuguesa, se quisermos recorrer ao modelo desenvolvido por li­ mar Rohloff de Mattos (1987:18-33): colonizador, aquele que vem exercer o mando real c reproduzir o monopólio do Rei sobre suas conquistas, ou colono, aquele sobre o qual sc projeta esse mando, c que é afinal o “primeiro produ­ to” da colonização? Sem dúvida, era colonizador, como súdito leal do Rei que em seus domínios do ultramar ocupava os “lugares de letras” da máquina administrativa ou da magistratura, desem penhando funções restritas aos ho­ mens de formação superior. Mas e como cidadão da república das letras, su­ posto praticante do bom gosto e cultor da poesia, das artes, da conversação galante? E como pretenso integrante de uma elite de intérpretes da virtude, do bem, do justo? Era como colono que o letrado vivenciava a instabilidade e o desconforto de sua condição em terras americanas, não importando se nelas tinha nascido ou para elas viera por nomeação régia. E era a partir dessa posi­ ção que ele reunia certas expectativas políticas e morais em vista do espaço exíguo que o estatuto colonial reservava à cultura letrada fora de suas funções oficiais. ’ Tais expectativas voltavam-se sobretudo para a constituição de “aber­ turas” por onde os letrados obtivessem maior autonomia e reconhecim ento na sociabilidade local, onde estavam inseridos tem porariam ente ou não. O teatro era uma frente de ação importante. O mesmo se poderia dizer de uma academia poética estável e relativamente in dependente como as “arcádias” do século XVIII, mas o projeto de Cláudio Manuel não teve muito sucesso. Acima de tudo, pretendia-se que o Estado reconhecesse a autoridade prescritiva dos homens cultivados, e os recompensasse como a uma elite indis­ pensável — reserva espiritual da política e da moral. A manifestação encomiástica dessas expectativas não sc resumia à simples

’ Creio q u e este ponto pode ser abordado como uma modalidade colonial do “controle do imaginário identificado c problematizado na obra dc Luiz Costa Lima; o texto inaugural desse trabalho e o primeiro capítulo do volume inicial de sua trilogia sobre o assunto (L. Costa Lima, 1989:11-71).

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sugestão metrificada de medidas que o herói louvado deveria tomar no exer­ cício de seu mandato. Uma parte fundamental da eficácia do encômio estava na própria encenação das maneiras dc corte e dos ritos acadêmicos com os quais aqueles letrados se identificavam e dos quais estavam “saudosos” ou carentes. Para usar um conceito de Paul Zumthor, que é neste caso decisivo, a performance do encômio cra indissociável de sua significação. Diante dessa circunstancialidade da operação encomiástica, o próprio recurso aos tópicos da tradição clássica permitia ajustes, adaptações e mesmo distorções ate o limite intersubjetivo imposto pelo próprio conjunto dos letrados. Nesse mesmo caso de que estamos tratando, a apropriação que Cláudio Manuel fez do mito da Idade de Ouro contrastava frontalmentc com suas versões clássicas em pelo menos dois pontos. O primeiro é a tomada dos “a-fazeres” por “já-feitos”, nos termos q ue comentei acima. E o segundo — na verdade o mais chocante aos olhos do crítico atual — é a compatibilização entre a atividade mineradora e redenção nos tempos áureos. Quanto ao primeiro ponto, Cláudio Manuel ia contra Virgílio; quanto ao segundo, desafiava seu querido Ovídio. O mito da Idade de Ouro tem suas raízes perdidas nas primitivas civiliza­ ções indo-européias (cf. H. F. Bauzá, 1993:18). Em linhas gerais, ele remete a um tem po inaugural de inocência, quando havia abundância de alimentos e os hom ens conviviam fraternalmente com os deuses. É um tempo fundador da sociabilidade, mas anterior ao Estado e à menor sombra de opressão, por­ que todos viviam em harmonia. Em certas versões, é o desacordo entre os deuses que produz o declínio desse mundo delicioso. Em outras, a decadên­ cia se dá por causa da soberba dos homens que, insatisfeitos com os limites de sua felicidade, põem tudo a perder. Os deuses então se retiram, um por um, e a “vil necessidade” estabelece o trabalho. O surgimento do crime e da violência torna indispensável a imposição de um mando superior, e assim, das rachaduras do paraíso, começam a se distinguir as formas próprias do pú­ blico e do privado, à sombra de uma lei que já não é a da natureza. O mito aparece nas obras de Hesíodo e Platão, mas foi sobretudo através de autores latinos que ingressou na corrente vital da cultura letrada no Ocidente. Com variações e em diferentes perspectivas, ele é referido em várias partes da vasta obra de Virgílio, tam bém mais de uma vez por Ovídio, na poesia lírica de Horácio e Tibulo e num a sátira de Juvenal. As fontes “canônicas”, por assim dizer, mais conhecidas eram a quarta bucólica de Virgílio e os versos 89-150 do primeiro canto das Metamorfoses, de Ovídio. A versão ovidiana está inserida numa espécie de cosmogonia ou síntese da geração dos deuses, do mundo e do homem, com que o poeta introduz o leitor às fábulas que integravam o patrimônio mitológico greco-romano. Oví­ dio apresenta a Idade de Ouro como “a primeira cra da criação . Nao havia lei nem rei entre os homens, mas todos viviam em segurança, porque ainda não tinha sido inventada a guerra. Tampouco havia a fome, porque a terra

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frutificava sem ser arada; os rios corriam de leite e néctar, e o mel escorria dos troncos como se fosse orvalho. N inguém precisava trabalhar nem escrever poemas encomiásticos. Entre os deuses, o regente era Saturno, mas seu filho Júpiter depois o destronou, dando início à decadência. Veio a Idade de Prata, que acabou com a eterna primavera. Depois, na Idade de Bronze, aparece­ ram as armas e o crime. E, por fim, a Idade dc Ferro, que está cm curso, trouxe tudo o que os deuses reprovam: o pudor, a franqueza e a lealdade já eram; em seu lugar estão a fraude, o dolo, a perfídia e o “cclerado amor à posse” . Começaram as navegações. E não era só o alimento que os hom ens precisavam arrancar do solo; agora eles penetravam as próprias vísceras da terra, em busca dos tesouros que até então estavam escondidos nas profun­ dezas infernais, e que são a fonte de todos os males. Nas palavras de Ovídio: “Extraídos o ferro nocivo, e ainda mais nocivo, o ouro, provinham com eles a guerra, que a ambos utiliza nos com bates” . A mineração, portanto, era pró­ pria da época mais degradada. A virgem Astréia, última presença divina entre os homens, enfim se retirou da terra. A quarta bucólica de Virgílio prevê a redenção desse ciclo d ecadente, com o retorno de Astréia e da Idade de Ouro. E uma écloga encomiástica que comemora a ascensão de Polião ao consulado romano no ano 40 a.C. O poeta compara o novo governo a um m enino que ao crescer trará de volta os tempos dourados. Diz Virgílio: “E justo sob o teu consulado, sim, ó Polião, que isto tudo há de acontecer” . Mais para o final do texto, o poeta volta a se dirigir ao cônsul da seguinte maneira: “Ó quem me dera ver meus últimos dias de vida prolongados! Q uem me dera ter fôlego bastante para celebrar teus grandes feitos!” O encômio, então, é um prognóstico erguido sobre os “a-fazeres” do cônsul, e o encomiasta espera viver o suficiente para um dia louvar tam bém os seus “já-feitos” . Mas a pintura da Idade de Ouro em Virgílio não difere muito do quadro que vimos em Ovídio. A terra dará o alimento sem cultivo. As cabras virão sozinhas até as casas, para oferecer a todos suas tetas repletas de leite. O gado pastará no meio dos leões, e por aí afora. Todo esse quadro não demoraria a ser assimilado às concepções judaico-cristãs do paraíso, da queda e da red e n ­ ção messiânica (cf. S. B. de Holanda, 1959:169). A apropriação cristã do mito da Idade de Ouro está eivada de culpa. É à sombra do Pecado Original que ela se fez. A perda da Idade de Ouro se associa à perda do Éden, graças à desmesura de Adão. Agora era preciso cuidar da subsistência e da segurança; a “vil necessidade” obrigava ao cultivo da terra, e m esmo a reprodução d e ­ pendia do pecado. Esse complexo que entrelaçava mitos de origem diversa sob o signo da cruz chegou aos tempos modernos mais vivo do qu e nunca, mas com inflexões especiais. A idéia de “desobediência” adquiria uma nova importância, como fator determ inante para o declínio — em correlação evi­ d ente com o princípio de obediência que era tão estrutural para a monarquia.

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E se o imaginário medieval se deixou impressionar pela fartura de alimentos nos quadros da época áurea, nos tempos modernos valorizava-se mais a paz e a segurança ali retratados: benefícios em que se amparava o monopólio da força pelo Estado. Daí a conveniência da imagem convencional do rebanho que pastava tranqüilamente entre animais vorazes como o lobo 011 o leão, que aparece em Virgílio, como vimos, e em Isaías: “O lobo e o cordeiro pastarão juntos/c o leão comerá feno como o boi”, dizia o profeta (Is., 65,25). O mito da Idade de Ouro, assim, era particularmente cabível como tema encomiástico nos tempos modernos. Estava pronto para o uso dos poetas: a própria tradição se encarregara de estabelecer a sua compatibilidade com 0 cristianismo e com a teologia política que dava apoio ideológico à centraliza­ ção do Estado. Do ponto de vista da cultura letrada, sobretudo no século XVIII, ele tinha muito menos de escapismo do que à primeira vista podemos supor. A evocação dos tempos áureos, nesse contexto, podia ser uma inter­ venção política bem definida, uma declaração de engajamento na causa de algum dos diversos interesses em jogo na sociedade. Buscava-se um efeito no presente, um efeito político e moral ao mesmo tempo. E claro que isso não impedia que a apropriação moderna do mito desse vazão, talvez involuntária, à nostalgia de uma certa percepção do tempo como um presente perpétuo, em contraste com a linearidade do tempo moderno, irreversível e fatal. Ve­ mos tam bém projetar-se na Idade de Ouro uma saudade do convívio com os deuses, que ora recupera concepções do neoplatonismo renascentista, ora manifesta sim plesm ente o desamparo de quem está diante de uma natureza m uda e imprevisível. M esmo assim, essa própria nostalgia reforça a argumen­ tação em favor de um modelo presente do bem, do decoroso, do razoável, que é apresentado retórico-topicamente como parâmetro de sociabilidade, justiça e governo. Nota-se na vasta produção encomiástica de Cláudio Manuel da Costa como 0 contato com esse modelo tem sobre a paisagem mineira o efeito de uma metamorfose, que expulsa a melancolia dos penhascos e toma finalmence possível a representação de um locusamoenus naquela paisagem de exílio. Na écloga encenada para Valadares, por exemplo, diz Glaucesce: "Tudo parece novo já no m onte,/de nova gala as árvores vestidas,/risonha a rior. risonha a clara fonte” . O que era penhasco se transforma em “monte . o que era turvo se esclarece, e mesmo o pobre ribeirão agora merece a designação suave de “fonte” . Combina-se a metamorfose da natureza com as expectativas de um grupo de letrados acerca de um novo governo na capitania das Minas. Meta­ morfose e expectativa: tal é a costura retórico-tópica da poesia encomiástica. e é nesses termos que ela se apropria do mito da Idade de Ouro. Ao pedir a proteção de Valadares para a sua pretendida Arcádia, Cláudio Manuel deixa­ va o jogo ainda mais explícito: “Se agora por V E x.1 se vêem amparadas as Musas, converter-se-ão com maravilhosa metamorfose a barbaridade em po­

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lícia, a incultura cm asseio, e o desalinho em gala” . Note-sc que essa transfor­ mação mágica, desta vez, não podia ser atribuída somente à ação do herói louvado; sutilmente, a lisonja encobria uma reivindicação: o próprio poder das Musas cra por si só civilizador, e quem entendia dc invocações poéticas não era o governo e sim a cultura letrada. Retomava-se assim a estreita iden­ tificação, nos tempos modernos, entre o retorno da Idade de Ouro e o próprio exercício da eloqüência (cf. M. Fumaroli, 1980:22). Mas o governador era um jovem prudente. Uma colônia da Arcádia de Roma na capital da colônia aurífera dc Portugal? Não consta que Valadares tenha oferecido o menor estímulo à academia sonhada por Cláudio Manuel da Costa, com a participação de letrados nascidos americanos radicados no Reino, como José Basílio da Gama e o médico Joaquim Inácio de Seixas Bran­ dão, árcades romanos dc papel passado (cf. A. Cândido, 1992). Tam pouco é certo se havia um número significativo dc letrados residentes na capitania das Minas Gerais que manifestassem o mesmo entusiasmo que Cláudio M a­ nuel pela idéia. A maioria sc dedicava de modo menos arrevesado ao cultivo de uma idade de ouro mesmo, dc preferência em pó ou em barras.

2. De todo modo, no contexto de Cláudio M anuel cra indispensável reconci­ liar a Idade de Ouro com a exploração aurífera, contrariando o mito clássico. Mas o mito não é uma fala roubada, como dizia Roland Barthes? Isso basta para legitimar as liberdades tomadas pelo poeta ao se apropriar de uma “fer­ ram enta” mitológica que vinha passando de mão em mão há milênios. E, depois, ladrão que rouba ladrão... Uma coisa é certa: Cláudio Manuel não foi o primeiro a distorcer o m eca­ nismo de funcionamento clássico da Idade de Ouro. O exame minucioso de outras ocorrências desse mito nas letras da América portuguesa sugere que a distorção era a norma. Engajados na ocupação dos espaços e sobretudo num projeto de viabilidade civil para essas conquistas do rei de Portugal, os letra­ dos fizeram o possível para “aclimatar” as Musas e validar aqui, neste estra­ nho “lugar”, os “lugares” da tópica clássica; a Idade de Ouro sim plesm ente tinha de retornar, de qualquer jeito, e tinha de ser na América. Essa fatalidade letrada não pode ser remetida de modo direto aos quadros da edenização e/ou demonização da natureza americana, tão bem estudados por Sérgio Buarque de Holanda e Laura de Mello e Souza. O retorno da Idade de Ouro, visto pelo ângulo da poesia encomiástica, não era uma “visão do paraíso” , um vislumbre do reino da inocência sobre a terra, e sim uma projeção acerca da presença do Estado e da civilidade num determ inado ce­ nário em in e n te m en te político e moral. É assim que vemos a ocorrência do mito já na velha Prosopopéia, escrita por Bento Teixeira em Pernambuco, por

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volta dc 1593, segundo as estimativas de Capistrano de Abreu (cf. J. A. Gonsalves dc Mello, 1986:52), c publicada cm Lisboa em 1601. O espaço que para muitos cra paraíso terreal e para outros inferno gentílico aparece aqui tacitam ente associado a uma idade dc ferro cujo curso é interrompido e redi­ mido pela chegada do primeiro donatário da capitania de Pernambuco, Duar­ te Coelho. Assim diz Proteu, a entidade que na mitologia greco-romana prog­ nosticava os feitos dos heróis: “Vejo [...] O tem po de Saturno renovado, E a opulenta Olinda florescente, Chegar ao cum e do supremo estado. Será dc fera e belicosa gente O seu largo distrito povoado. Por nom e terá Nova Lusitânia, Das leis isenta da fatal insânia.” [oitava 26] Se Cláudio M anuel pintou uma Idade de Ouro compatível com a explora­ ção aurífera, aqui ela era compatibilizada com a própria guerra! A Nova Lusi­ tânia vivia “isenta das leis da fatal insânia” porque o “largo distrito” de Olin­ da seria “povoado de gente fera e belicosa”, que daria o devido combate à barbárie. E assim como Virgílio em sua écloga falava de uma nova geração descendo dos Céus, Bento Teixeira retratou com Duarte Coelho e seus filhos uma nova geração de habitantes e povoadores do Novo Mundo, trazendo o valor e o heroísmo, “instruindo na Fé, dando esperança”, acossando “o Fran­ cês im paciente” , “eclipsando o nome à Romana gente” . Mas que geração era essa? A dos dois filhos do casamento do primeiro donatário com D. Brites de Albuquerque, D uarte de Albuquerque Coelho e Jorge de Albuquerque Coe­ lho, ambos nascidos em Olinda. A nova geração que trazia a Idade de Ouro para a Nova Lusitânia trazia tam bém a Fé católica e o rei de Portugal, com a sua Lei. Seus trabalhos heróicos consistiram em “dilatar” o território subme­ tido à soberania portuguesa. Isso significava explorar e conquistar efetiva­ m ente as terras de que receberam o senhorio mediante o sistema das capita­ nias hereditárias, criado em 1534 por D. João III. Era um meio de estender a soberania portuguesa até o Novo M undo apelando a formas de controle polí­ tico há m uito em decadência no próprio Reino, e que deram margem a que alguns historiadores o caracterizassem como feudal — Capistrano de Abreu, para citar apenas um exemplo (J. C. de Abreu, 1954:94). Por outro lado, como dem onstrou de modo cabal Raimundo Faoro, sob o aspecto externo, a dinâ­ mica do mercantilismo impunha a orientação das terras para a economia ex­ portadora (cf. Faoro, 1973:127-33). Era preciso expulsar os invasores france­

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ses, de um lado, e “domesticar” o gentio, de outro, convertendo-o ao cristianis­ mo. Ao mesmo tempo, no entanto, os donatários lvaviam de explorar a terra economicam ente em benefício da Metrópole. Bento Teixeira não escondia a dureza desses feitos: ao contrário, deixava claro que, se os meios pacíficos não bastassem, a violência das armas seria prontam ente utilizada. Para trazer de volta a Idade de Ouro, era necessário antes fazer terra arrasada da Idade de Ferro, passando por cima dc franceses c indígenas; como lemos nas oitavas 31 e 32, as mais brutais do poema, e talvez tam bém as mais bonitas: “Os braços vigorosos e constantes, Fenderão peitos, abrirão costados, Deixando de mil membros palpitantes Caminhos, arraiais, campos juncados. Cercas soberbas, fortes repugnantes Serão dos novos Martes arrasados, Sem ficar deles todos mais memória Que a que eu fazendo vou em esta história. Quais dois soberbos Rios espumosos Que, de montes altíssimos manando, Em T é tis de meter-se desejosos, Vêm com fúria crescida murmurando, E nas partes que passam furiosos Vêm árvores e troncos arrancando, Tal Jorge d ’A lbuquerque e o grão Duarte Farão destruição em toda a parte.” [oitavas 31 e 32] Nessa estranha Idade de Ouro, o principal valor, portanto, era a guerra, e não a brandura. Q ue contraste entre as cenas descritas por Ovídio e Virgílio! Cadê os rios que corriam de leite e néctar? N o seu lugar estão os caudalosos heróis, que vão arrancando tudo o que encontram pela frente, despenhados lá da altura de sua valentia. Cadê a risonha Astréia? E m vez dela, vieram dois “novos M artes” . Cadê as cabras, as ovelhinhas, a campina verde, o pasto sos­ segado? Aqui, os campos estão semeados de mem bros hum anos decepados, ainda palpitantes depois da batalha redentora. N o século XVI, já não se faziam Idades de Ouro como antigamente. A delicadeza dos pastores da Arcádia, sempre associados aos felizes súdi­ tos de Saturno, nada tinha a ver com o estabelecim ento do senhorio de Duar­ te Coelho e seus filhos em Pernambuco. N e m esses personagens se senti­ riam à vontade com a fantasia de pastores; “ócio com dignidade” para eles era puro tédio, assim como o locus amoenus não seria cabível para a representação

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da Nova Lusitânia. Na verdade, os dois irmãos vinham de uma linhagem que já tinha certa tradição na prática de duas atividades que segundo as fontes originais eram totalm ente avessas à Idade de Ouro: a navegação e a guerra. O avô era o navegador c cosmógrafo Gonçalo Coelho; o pai tinha sido navega­ dor e militar com larga experiência no Oriente c na América, que segundo alguns cronistas estava na frota de Cabral, em 1500. Duarte Coelho foi dos primeiros a aceitar o desafio das capitanias hereditárias, e se transferiu para o Novo M undo com a família e quatrocentos colonos. Fundou as vilas de Igaraçu e Olinda, estabeleceu os primeiros engenhos de açúcar, combateu os ín­ dios bravos e deu início tam bém à exploração do trabalho de homens negros escravizados, vindos da Guiné. O disfarce pastoril caía bem em heróis cortesãos como o Conde de Vala­ dares. D uarte Coelho era um cavaleiro à moda antiga; seus filhos Duarte e Jorge de A lbuquerque Coelho tiveram de conciliar os valores cavaleirescos transmitidos pelo pai com a educação que receberam em Portugal. Mas no decurso de suas muitas aventuras não há dúvidas de que prevaleceram os valores da ação, sobretudo armada. O coroamento de suas carreiras se deu na cam panha tresloucada de D. Sebastião em Alcácer Quibir, em 1578. Ambos foram levados para os cárceres de Fez com graves ferimentos; Duarte não resistiu, e Jorge ficou aleijado das duas pernas (cf. Vicente do Salvador, ed. 1931:204). Resgatado em 1580, o irmão sobrevivente herdou a donataria, cujo governo nunca foi assumir, deixando-o a cargo de lugares-tenentes e capitães que nomeava à distância. Estava inválido, sem recursos e, em tempos de Filipe II, sentia-se mal recompensado pelos membros perdidos e pelos atos de bravura ao lado de D. Sebastião. A história de D uarte Coelho e seus filhos confirma o que escreveu Capis­ trano de Abreu sobre os donatários beneficiados por D. João III em 1534: “saíram e m geral da pequena nobreza, dentre pessoas práticas da índia, afei­ tas ao viver largo da conquista, porventura coactas nas malhas acochadas da pragmática m etropolitana” (J. C. de Abreu, 1954:92). Pelos finais do século XVI, todo o imaginário que se constituiu ao redor da figura de Jorge de Albu­ querque Coelho reforçava o vínculo de sua linhagem com o heroísmo antigo, os valores senhoriais e a devoção cristã de cruzado. Seu currículo de herói ainda incluía trabalhos de mar e guerra passados em 1565, quando regressava de Olinda ao Reino, a bordo da nau “Santo Antônio” — que deu margem à redação de um dos “naufrágios” mais famosos da História Trágico-Marítima, publicado no último quartel do século XVI e reimpresso em 1601, junto com a Prosopopéia, de Bento Teixeira. O filho de Duarte Coelho dividia com a providência divina o papel de protagonista do relato; em todas as dificulda­ des, era ele q u e m estimulava os demais tripulantes a resistir e dar combate, ora ao mar, ora aos franceses, e ora à discórdia, ora à fome, confiando sempre no valor da bravura e na intervenção providencial para recompensá-lo. Se­

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gundo Almeida Garrett, esse naufrágio teria inspirado o romance popular da N au Catarineta, que no Brasil converteu-se numa linda dança dramática que Mário de Andrade caracterizou como “nau-símbolo” que celebra “os traba­ lhos do mar português” (M. dc Andrade, 1941:330 c 333], O conjunto de valores cavaleirescos que estrutura o herói do “naufrágio” da nau Santo Antônio reforça a afirmação desmistificadora de Eduardo Lourenço, para quem os conquistadores portugueses “não eram «marinheiros» à Drakc” e sim “nobres cavaleiros que nos navios que comandavam se comportavam como se fossem fronteiros em Ceuta ou Arzila, indiferentem ente" (E. L ouren­ ço, 1978:37). Mas não há dúvida de que as circunstâncias políticas, econômicas e até culturais da conquista imbricavam esses seres quase medievais numa situação moderna, forçando uma negociação dc valores c condutas. Essa ambi­ güidade marca profundamente a Prosopopéia, sob muitos aspectos. As últimas oitavas que citci, por exemplo, são o elogio da bravura dos guer­ reiros, que fazem “destruição em toda a parte” . E tam bém manifestam um culto à virilidade que beirava o erotismo aberto: é muito sugestiva a imagem dos “rios espumosos/[...] em T é tis de meter-se desejosos” . C oerentem ente, todas as histórias aventurescas acerca de Jorge de Albuquerque encontram eco no poema de Bento Teixeira, sejam as referentes ao naufrágio, sejam as relativas a Alcácer Quibir. Por outro lado, tudo isso recebe uma formatação em oitava rima, metrificada em decassílabos — numa opção nítida pelo “es­ tilo novo” que não tinha sequer um século de tradição nas letras ibéricas, opção essa que tam bém indicava por parte do poeta o desejo de distinguir-se dos bardos populares que cantavam as mesmas aventuras na “m edida velha” dos romances peninsulares, a tradicional redondilha maior, sobre a qual a própria N au Catarineta navegava. A ambivalência do poema correspondia de certo modo à própria condição social do autor, que de modo algum poderia ser considerado um “letrado” stricto sensu. Bento Teixeira passou por vários colégios jesuíticos, mas não che­ gou a ir para a universidade; tirou apenas o título de mestre de Artes. No fundo, foi um pobre cristão-novo que, num a remota conquista de Portugal, sobrevivia de aulas de gramática e pequenos negócios ou serviços de porta em porta. Pode-se dizer que a Prosopopéia estava para as belas-letras assim como Bento Teixeira estava para a cultura letrada: a meio caminho, um tanto desajeitada diante de grandes portentos como Os Lusíadas, enfeitada demais, tentando afetar um cultivo que no fundo lhe era artificial — mas talvez venha desse jeito gaúche e provinciano o charme que faz com que a sua leitura hoje seja tão gostosa. Esse estar “no meio do caminho” , a m eu ver, condiciona o advento da Idade de Ouro no poema de Bento Teixeira. O poeta vivia num espaço im­ pregnado pelas histórias de heroísmo acerca do donatário, seu irmão martirizado e seu pai (aliás, um pai fundador). N o entanto, o estado de pobreza da

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capitania e os desmandos dos lugares-tenentes de Jorge de Albuquerque pa­ reciam desafiar esse imaginário cavaleiresco a cada instante do cotidiano. O autor da Prosopopéia chcgara a Pernambuco já adulto, em 1586 (cf. Gonsalves dc Mello, J. A., 1986:18); o donatário tinha partido definitivamente para o Reino dez anos antes. Em 1593, Bento 'Peixeira louvava um maioral que nunca vira. Em várias partes de seu poema, tomava as dores de Jorge de Albuquer­ que contra o rei ingrato, que não recompensava os seus cavaleiros; por tabela, dava um jeito de culpar a monarquia pelas mazelas de Pernambuco: “A con­ dição do Rei que não é franco/o vassalo faz ser nas obras manco” (oitava 20). Era a famosa “má língua” de Bento Teixeira, que haveria de levá-lo à morte nos cárceres da Inquisição, em Lisboa, poucos anos depois. N aquela altura, na capitania de Pernambuco, o Estado lhe era inacessível, mas a casa dos Albuquerques Coelhos talvez não. Além de não ter títulos de letras válidos para ingressar na máquina administrativa estatal, a própria pre­ sença desta era aí muito tíbia, diante da instituição senhorial da donataria. Assim, o poeta preferia apresentar-se como servidor de um senhor poderoso a se arriscar como vassalo do rei espanhol. Na luta entre essas duas instâncias de poder, a Prosopopéia tomava o partido mais familiar; Jorge de Albuquerque não lhe exigiria títulos universitários, e o poeta podia confiar somente no seu talento para impressionar o donatário. Na oitava 34, o poema volta a insistir no ressentim ento dos maiorais pernambucanos, desta vez referindo-se aos descendentes de Jerônimo de Albuquerque, tio de Jorge, que governara a capitania até a morte, em 1583: “ Deste, como de Tronco florescente, Nascerão muitos ramos, que esperança Prometerão a todos geralmente, D e nos berços do Sol pregar a lança. Mas quando virem que do Rei potente O pai por seus serviços não alcança O galardão devido, e glória digna, Ficarão nos alpendres da Piscina.” (oitava 34) E como estas há outras passagens do poema, que de louvação a um herói distante transforma-se em lamento sobre o desperdício de seus feitos, por falta de estímulo régio. Daí a Prosopopéia falar de uma Idade de Ouro a meio cami­ nho, que morreu na praia ou, quem sabe, “nos alpendres da Piscina”, quer dizer, junto do tanque onde eram lavados os animais que iam para o sacrifício.4 E é justam ente esta a especificidade da ocorrência do mito no belo poema de 4 N a verdade, a “ piscina” referida por Bento Teixeira é a “piscina probática do Templo de

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Bento Teixeira: não se trata tanto do retorno da Idade de Ouro quanto dc sua rápida degeneração, pouco depois de ter efetivamente retornado. A louvação, afinal, era uma queixa que pretendia chegar lisonjeiramente aos ouvidos do donatário aposentado, como que num a “indireta” para que ele tomasse as devidas providências (de preferencia rem ediando tam bém a penúria pessoalmente vivida pelo poeta encomiástico). Mas, no fundo, quem “capitalizou” os dividendos d a Prosopopéia foi o seu próprio destinatário; anos depois de a ter recebido, quando precisou mais uma vez relembrar ao rei espanhol de seu valor, decidiu incorporá-la a uma segunda edição do “naufrá­ gio” da nau Santo Antônio, juntam ente com outros louvores menores (dois sonetos anônimos). Bento Teixeira, nesse exato m omento, morria à míngua, humilhado pelo sambenito, e possivelmente não foi sequer avisado de que receberia as honras do prelo. 3. Uma característica específica da ex-Idade de Ouro da Prosopopéia, portan­ to, é o seu caráter “patrimonial” (entre aspas), a sua inteira dependência diante do regime imposto pelo seu fundador — que era o donatário da capita­ nia — e ainda a sua sujeição às contradições próprias desse regime: o Saturno de Pernam buco era vassalo de Sua Majestade e estava com prom etido com ela; em última instância, era dela que dependia a permanência da eterna pri­ mavera na Nova Lusitânia. Seria de se esperar uma situação muito diferente no Rio de Janeiro, um século e meio depois. O grande afluxo do ouro das Minas dera novo impulso ao desenvolvimento da cidade, cuja população ia se diversificando mais que em outras partes da América portuguesa, à medida que se consolidava aí o principal porto da vasta conquista. E m meados do século XVIII, q u e m estava à frente do governo era Gomes Freire de Andrada, que tam bém regia as capi­ tanias de Minas Gerais e São Paulo. O general introduzira importantes m e ­ lhoramentos na infra-estrutura urbana da capital, e o organismo administrati­ vo local já era bastante complexo, o que significa q u e havia muitos “lugares de letras” a serem preenchidos por homens de formação superior. T am bém o clero se via forçado a maiores estudos, em virtude da emulação das várias ordens religiosas instaladas no Rio. Mas nada disso impedia que a cultura letrada local fosse tão acanhada como a de Vila Rica ria mesm a época, 011 até mais. E quanto ao caráter “patrimonial” da louvação praticada em P ernam ­ buco nos finais do século XVI, aqui ele apenas recebia as adaptações necessá­ rias à sua incorporação entre as práticas do clientelismo do Estado.

Jerusalém, o nd e se guardava a água para lavar os animais qu e seriam sacrificados; no verso citado, “ficar nos alpendres da Piscina” significa “ser sacrificado” , “ser desp erd içado ” ; é m esm o um sentido b e m parecido com a atual expressão popular “morrer na praia” , ainda q u e não equivalente.

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N ão havia uma cultura letrada com vida própria, em condições de fundar uma sociabilidade específica e constituir um meio propício ao cultivo das belas-letras, que merecesse do Estado atenção e aquiescência em vez de vi­ gilância e repressão. Como tampouco havia uma corte, que dependesse por sua vez do brilho dos homens sábios e dos poetas habilidosos, nenhum espa­ ço restava aos letrados do Rio além do próprio salão de gala do palácio de Gom es Freire. Por sorte, o governador era homem paciente, e às vezes con­ sentia em ser hom enageado pelos vates locais, em academias descartáveis, fundadas para durar apenas um dia de festejos e declamações. Só isso já bastava para trazer a Idade de Ouro à lembrança daqueles letra­ dos ansiosos por visibilidade. Tolhidos como grupo, cada um tinha uma boa razão pessoal para se exibir para o general diante dos outros. E foi assim com a Academia dos Seletos, convocada a pretexto de louvar o governador por ter sido destacado para representar Sua Majestade Fidelíssima na comissão que decidiria com os castelhanos o contencioso das Missões, no Sul. O resultado foi publicado em Lisboa num volume intitulado Júbilos da América, um docu­ m ento precioso, que inclui, além dos poemas, a correspondência que antece­ deu a reunião acadêmica e, depois, a publicação. Por meio dela, ganhamos um a noção m uito nítida do modo instantâneo pelo qual essas reuniões po­ diam ser organizadas, desde que o homenageado concordasse. A troca de car­ tas entre os organizadores começou no dia 29 de dezembro de 1751. O secre­ tário da academia seria o Dr. Manuel Tavares de Sequeira e Sá, ex-ouvidor da comarca de Paranaguá que aguardava no Rio um despacho do governador. E o presidente seria o Padre Francisco de Faria, mestre do Colégio dos Je­ suítas. Juntos, eles fizeram detalhada pauta de temas para inspirar os convi­ dados, e marcaram o recital para a tarde de 30 de janeiro de 1752, no paço governamental. A carta-circular com o convite aos vários letrados e clérigos selecionados só correu na primeira semana do ano; nela, o secretário solicita­ va q ue as contribuições lhe fossem enviadas impreterivelmente até o dia 25. Alguns poetas relapsos atrasaram a sua contribuição até o dia 28. E assim, em questão de duas semanas, uma quantidade torrencial de versos se criou, sufi­ cientes para encher um livro de mais de trezentas páginas. A data da solenidade sugere alguma relação com a sucessão de D. João V, morto em 1750. E m finais do ano seguinte, os letrados do Rio já deveriam ter percebido que muita coisa iria mudar no reinado de D. José I, e convinha que tomassem algumas precauções. Como o desamparo era total, “sobrou” para a Poesia. Rei morto, rei posto, e a disputa por prestígio recomeçava do zero, sobretudo para q u e m estava tão longe da Corte. Além disso, o governador estava de partida para as Missões, mais uma vez, e não se sabia por quanto tempo; todos queriam ver suas pendências com o governo da capitania resol­ vidas antes de sua partida. Para não piorar a Idade de Ferro, o melhor era invocar a miragem da Idade de Ouro. O curioso é que, como a situação era de

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instabilidade e insatisfação para todos, uma academia instantânea servia para uma ação conjunta, c por isso a louvação não sc restringe ao governador, tam ­ bém ocorrendo elogios mútuos; como notou Antônio Cândido: “Aqui, ao lado dos encômios dcscabelados a Gomes Freire, há dcscabclados encômios recí­ procos” (A. Cândido, 1957:1, 74). Ao todo, 22 convidados aceitaram participar da tertúlia. F n tre eles, muitos já gozavam dc algum prestígio nas letras lusitanas; cinco eram citados na B i­ blioteca Lusitana, a célcbrc bibliografia organizada em 1741 por Diogo Barbo­ sa Machado,5 e três eram cavaleiros professos na Ordem de Cristo.1' Muitos eram autoridades importantes, à frente dc postos muito prestigiosos na Pro­ curadoria da Coroa, na Magistratura ou na Administração direta. Estes pre­ tendiam conservar seus cargos, ao passo que outros tinham sido re c e n te m e n ­ te despojados dos seus e aguardavam no Rio os desígnios de Sua Majestade. Era o caso do secretário da academia e organizador da publicação dos Júbilos da América, Manuel Tavares. Ele foi justam ente um dos que recorreram ao mito da Idade dc Ouro na sessão encomiástica, mas num contexto absoluta­ m ente surpreendente. O pobre magistrado era natural do Alentejo, onde tinha servido por alguns anos na Vila do Redondo. Viera para o Novo M undo há dez anos, nomeado ouvidor-geral da comarca dc Paranaguá, na capitania de São Paulo, sob o go­ verno de seu herói. Agora, removido de sua posição, estava no Rio na incerte­ za de seu futuro próximo. Entre os quilométricos elogios que preparou para a tarde de 30 de janeiro, escreveu um curioso romance heróico intitulado “M e ­ morial M étrico” , em que, afinal dc contas, o herói era ele próprio. N o meio da louvação, encontrou meios de narrar poeticamente toda a sua trajetória de serviços ao louvado e à Coroa, e não perdeu a oportunidade de pedir explici­ tam ente a indicação de seu nome para algum cargo que lhe permitisse re­ gressar ao Reino e esquecer sua passagem pela América. E ainda chegou a insinuar-se para uma posição qualquer no staff de José Antônio Freire de Andrada, irmão de Gomes Freire, recém-nomeado governador interino da capitania das Minas Gerais. Lá, M anuel Tavares esperava ter maiores possi­ bilidades de ver recompensados os seus trabalhos no Novo M undo. Depois de lembrar sua retidão como juiz de fora no Redondo, ele em endava assim suas estrofes, falando de si próprio na terceira pessoa: 1 Eram cies: o jurista P rancisco dc Almeida Jordão, Cavaleiro da O rd em dc Cristo, bacharel cm Cânones (liib l Lus., II, 101); o frade seráfico M anuel da Encarnação (ibidem , III, 249); o pregador tam b ém seráfico Frei M anuel de Nossa Senhora do M on te C arm elo (ibidem, III, 325); o médico M ateus Saraiva, Cavaleiro da O rd em de Cristo, m em b ro da Real Socie­ d ade d c Londres, cirurgião-mor da capitania do Rio d c Janeiro (ibidem, III, 451-2); c Simão Pereira d c Sá, procurador da Coroa c da I'a/.cnda no Rio d c Janeiro, bacharel cm C ânones (ibidem, III, 720), todos nascidos no Reino, exceto o último, natural do Rio dc Janeiro. Além de Francisco dc Almeida Jordão c M ateu s Saraiva, já citados, o bacharel reinol F ern and o José da C u n h a Pereira, ex-ouvidor-gcral de Luanda.

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M KTAMORFOSH

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“ D este lugar saindo, despachado N o de Ouvidor-Geral foi, cm Concurso, Do ignoto Parnaguá, Comarca pobre, Dc onde pobre saiu, mas limpo, e puro. K passando, debaixo dos auspícios Vossos, para este Rio, aqui segundo D espacho espera, por que aos Pátrios Lares Possa ainda voltar com honra, e lucro.” E m suma, ele deixava claro que para ele o eldorado do Novo M undo tinha sido uma decepção. E revelava uma identificação com o velho espírito dos adventícios que atravessavam o Atlântico a fim de acumular tesouros e re­ gressar ao Reino em condição remediada — coisa que ele até então não tinha conseguido, e que tam bém se chocava com a sua posição oficial de coloniza­ dor integrado à magistratura não para contabilizar “honra e lucro” e sim para servir ao Estado. E continuava: “N a esperança de obter melhor fortuna, Só em Vós confiado vive, e tudo O que dela obtiver, a Vós devido Protesta confessar Venerabundo.” Traduzindo, 011 desembaraçando as palavras: Manuel Tavares declarava confiar todas as suas esperanças de recompensa no herói louvado; tudo o que obtivesse da Fortuna, em seu benefício, atribuiria à influência do governa­ dor. O relatório prosseguia com uma menção caprichosa ao irmão do louvado, governador interino das Minas. Só então o pobre homem revelava o seu so­ nho dourado: “Se elevado com ele ao Áureo Empório For, das Minas Gerais, prudente auguro, Q u e em seu favor ao M undo torna Astréia, Tornam tam bém os Reinos de Saturno.” M anuel Tavares simplesmente prognosticava aí um retorno da Idade de Ouro para si próprio, perfeitamente privada, pessoal e intransferível: se rece­ besse algum cargo no novo governo das Minas Gerais, por influência de Go­ mes Freire com o irmão, seria para ele uma nova Idade de Ouro, como se Astréia finalmente lhe sorrisse, depois de dez anos de infortúnios na Améri­ ca. O encomiasta poderia ser legitimamente acusado dc metrificar em causa própria; e ainda chamava isso de um augúrio “prudente” .

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Ao que se saiba, Gomes Freire não atendeu aos anseios desse bacharel. Manuel Tavares tinha ido longe demais com a louvação. Deixou dc cumprir o principal preceito dessa prática que era aquela ficção de igualdade de que falava Starobinski (1971:63); com isso, impossibilitou a cumplicidade entre esses dois lados e estabeleceu um problema de “decoro” — conceito de ori­ gem clássica que no século XVIII constituía uma interseção fundam ental entre a poética e as boas maneiras. M anuel Tavares não soubera “m aquiar” c “vestir” convenientem ente seus interesses pessoais, segundo os moldes re­ comendados pela civilidade; com isso, desnudara a fraude por trás do encômio. E falhou, porque assim, despida, a equação “palavras ,v favores” não funcionava.

Os esforços de Cláudio Manuel em Vila Rica falharam da mesma forma, mas por razões distintas. M anuel Tavares tinha quebrado o protocolo da poé­ tica encomiástica; Cláudio Manuel, com seus projetos acadêmicos, ameaçava (sem perceber) quebrar o próprio estatuto que regia a cultura letrada sob a condição colonial. Do ponto de vista da Metrópole, uma academia literária autônoma na América pareceria tão suspeita quanto uma tipografia. E assim como os prelos de Antônio Isidoro da Fonseca foram confiscados, no Rio, na década de 1740, a Arcádia ou Colônia Ultramarina ficou no papel — e não se falou mais nisso até a década de 1780, durante o vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa. Q uanto à Idade de Ouro que todos esperavam, na verdade seria melhor falarmos em “idades de ouro” . Da Prosopopéia de Bento Teixeira às prosopopéias de M anuel Tavares, e destas à metamorfose imaginada por Cláudio M anuel da Costa vimos que as expectativas dos louvadores acerca de seus louvados variavam muito — e estas é que determinavam o jogo, e não um suposto conteúdo inscrito nesse mito desde a noite dos tempos. Mas se as idades de ouro eram muitas, a Idade de Ferro era a mesma em pelo menos alguns aspectos decisivos: a instabilidade da presença das letras no Novo Mundo; a falta de um mínimo de autonomia para a cultura letrada e seu esta­ tuto subsidiário fora das funções burocráticas; os limites imprecisos entre es­ paços públicos e privados, que dificultavam o surgimento de um “público” representativo; e sobretudo o comportamento dos próprios letrados, que ab­ dicavam de formar eles mesmos esse público, em troca do caminho que lhes parecia mais curto até a segurança social e econômica, que era o vínculo de dependência ante o poder político vertical mais próximo, quer fosse o Esta­ do, quer fosse a Casa de um donatário ou potentado local.

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m ente os carros triunfais da Virgem Mártir Santa Bárbara e da Senhora do Bom Parto. N o carro triunfal, num plano abaixo da Virgem, dois suaves orfeus cantavam suaves melodias. Os deuses pagãos catequizados pareciam assim estar a serviço das duas santidades cristãs. N esse bale, a alegoria moral foi apresentada com toda a força c o deus antigo surgia como uma face do santo cristão. Os deuses pagãos foram absorvidos em suas formas sensíveis, segundo as prescrições do decoro e da verossimilhança. Mercúrio com asas, caduceu e capacete, Apoio com a lira, a Fama com seu clarim.20 As figuras, sejam elas alegorias morais, deuses pagãos, 011 quaisquer outros seres, ao lado do movimento e do gesto, eram consideradas parte essencial do balé, a serem construídas com trajes, máscaras, símbolos, gestos e m ovim en­ tos precisos. O uso determinava muitas dessas marcas, não havia quase nada que inventar. Já no século XVI, um dos criadores do primeiro “Ballet de Cour” , o “Ballet C om ique de la Reine” , definira o papel da invenção na criação dos balés. Graças a invenção, os balés devem ter sempre um caráter de novidade sem que todas as danças, entradas, alegorias, precisem necessariamente ser novas.21 A dança aproxima-se da comédia; pela articulação múltipla, pictóri­ ca, poética e musical, transforma-se em balé, em gênero dramático sui generis, embora não tão bem adaptado às exigências da poética aristotélica. N egando que Aristóteles e Averróis tivessem pensado o balé com as mesmas regras do drama, M énestrier dirá: “N e n h u m dos Autores fala de unidade de ação, mas som ente de unidade de tema. Assim poderíamos fazer um balé das ilusões que seria de várias ações mas de um só tem a.”22 O balé barroco, tanto na América portuguesa quanto na França desenvolveu-se no interior de uma poética que articulava a linguagem dos emblemas, das divisas, das luminárias, das alegorias, dos sonetos, dos sermões, da com ­ posição coreográfica e musical, em torno de um tema. Com o bem apontou Richard Alewyn, “cada festa barroca é um a composição vasta e equilibrada, formada por múltiplos elem entos. A diversidade e a variação afastam o perigo de satu­ ração e cansaço. Cada hora tem seu próprio aspecto, cada dia possui um novo «lema». Por outro lado, todavia, tudo está subm etido a um a vas­ ta composição, todas as coisas animadas ou inanimadas, até o último la-

20 N o q u e p u d e observar, as alegorias pagãs mais fre q ü e n te m e n te achadas nos cortejos colo­ niais foram os p lanetas, os deu ses do O lim po: V cnus, C upido, M arte, Vulcano, Saturno, Júpiter, M ercúrio. A Fam a é figura quase q u e obrigatória, aparecc ju n to dos bandos, no m om ento do anúncio da festa, ou na cabeceira do cortejo barroco; vem na m aior p arte das vezes acom panhada de cortejo eq ü estre. 21 Cf. Selm a Jean C ohen. Dance as a Theatre A r t— Source Reac/ings in Dance History from 1581 to the Present. Princeton: Princeton Book C om pany P ublishers, 1992. 22 C laude-F ranço is M énestrier. O p. cit., p. 137.

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caio do palácio, até a última laranjeira, tudo é fragmento de um plano im enso” .23 Todavia, não estamos na corte. No Balé Ambulatório, o que se organiza para a dança é toda uma vila. Os lacaios do palácio são os “escravos de guiné” . Mas, na procissão barroca, tanto quanto no Balé de Corte, as relações simbó­ licas expressam-se como formas teatrais de organizar símbolos e, por meio deles, reafirmar posições sociais. No lugar dos “nostálgicos” nobres da pasto­ ral cortesã européia,24 são os mestiços, os negros e os índios os personagens desse teatro da religião, que é também teatro da opressão, da guerra contra o infiel e do martírio cristão. A Antiguidade clássica traz elementos para os cortejos brasileiros, eviden­ tes nos personagens vestidos à trágica, na escolha das figuras alegóricas dos deuses do paganismo. Mas o processo é circular. O balé português, tanto na metrópole, quanto nas colônias, vigoroso, retrato vivo da situação da moder­ nidade, teatro da religião vencedora do infiel, também alimentou a imagina­ ção dos criadores do “Ballet de Cour”, da “Opéra Ballet”e da “Comédie Bal­ let” . A presença do índio, do mouro, nos balés europeus é recorrente, e o cortejo famoso em Ruão é apenas o exemplo mais conhecido. N o cortejo colonial, a presença do escravo, do índio, do mulato e do negro fazia da procissão um m omento da administração efetiva de forças sociais em tensão. Com a participação efetiva das irmandades, da câmara e das corpora­ ções de ofício e milícias, modificava-se em profundidade o sentido da festa barroca no Brasil que passava a ser concretização no plano espetacular e sim­ bólico da missão atribuída a Portugal por Deus. As figuras alegóricas alinhavavam as danças, cantos e poemas, ao teatro da sociedade q ue se expõe como corpo político. O balé, invenção da renascença italiana, além de ligar-se à sociabilidade de corte, ao processo de “refinamen­ to” de costumes paralelo ao desenvolvimento da vida de corte, tem outra face, liga-se às comemorações públicas, como parte de estratégias de caráter religioso e político. N o caso do Brasil colônia e de Portugal, as comemorações públicas devem ser compreendidas como parte integrante de estratégias de governo de um estado teológico-político escravista e colonialista. E mani­ festação que se concebe pela, por e para a República pretendendo integrar hierarquicamente todas as classes da sociedade, conforme modelo político ibérico, em resposta às invetivas de Maquiavel e da Reforma. O sentido político do balé jesuítico, tanto quanto do Balé de Corte e dos

R ichard Alewyn. Lunivers (tu barroque. T raduzido por mim em Noverre: Cartas sobre a Dan­ ça, p. 35. 24 Cf. o conceito de nostalgia romântica, desenvolvido por N o rb ert Elias, em sua obra La Societé de Cour.

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Balés Ambulatórios, cncontra-sc subjacente à atividade da invenção poética e, nesse sentido, o que interessa no jogo das alegorias e no baile do Casto José são os mecanismos da invenção poética, tal como se vinham imbricando com as diferentes tradições de dança. Partindo da natureza propriamente poética dos balés, acabamos tematizando a sua função política e fugimos da perspec­ tiva que pensa a dança a partir das danças. Todavia, num segundo momento, sob o pano de fundo já estabelecido, as formas coreográficas propriamente ditas passam a interessar. E m meio ao espetáculo total sacro-profano da procissão barroca, a repre­ sentação dos segmentos mais baixos da sociedade, os ofícios manuais e a cscravaria, se dava pelas danças promovidas pelas corporações. Será justam ente por meio delas que terá lugar, na festa barroca, o prodígio coreográfico, que encantará os contemporâneos, à vista dos “sobas” no cortejo do rei e rainha congos; das emboscadas nas guerras dc índios e/ou de negros; das chacotas, das folias, das mouriscas, das contradanças, das “pírricas” , com espadas ou obra de pauliteiros; dos vilões, dos fandangos, das sarabandas, das danças de mouros, do caracol, da suíça, da galharda e do tordião.-’1A todas essas de n o m i­ nações muitas outras poderão vir a se somar; a questão, todavia, torna-se mais complexa quando nos aventuramos além do nome das danças e imaginamos os conteúdos motores nelas contidos. Vã esperança, doce ilusão positivista. Há no entanto uma série de parâmetros a permitir que avancemos na inter­ pretação do sentido dessa nomenclatura tão fluida. Richard Alewyn, na obra já citada, identifica um processo de curialização das danças populares, de origem camponesa, e ressalta a hipótese de q ue tais danças, quando sobem ao palácio, modificam-se profundam ente, tornandose sobretudo mais lentas. Observamos, além disso, ao longo desse ensaio, o papel da dança em espetáculos a serviço de um estado monárquico, em fun­ ção de uma missão teológico-política, e vimos como se fizeram acompanhar de mudanças na forma poética do balé; no interior de um enredo, realizadas por personagens. A criação de escolas de dança em Portugal, desde o século XVI, tanto quanto a mais tardia criação da “Académie de Dance e t M usi­ q u e ” , por Luís XIV, na França, apontam para uma nova fase, na qual a q u e s ­ tão da normatização e institucionalização das formas de expressão artística deixam cada vez mais de d epender do mero controle censório para se confor­ mar à normatização acadêmica. São questões correlatas, a da domesticação das danças populares quando se convertem em dança de um cortejo politicam ente controlado e a da codi­

25 C u rt L ange em seu artigo sobre as danças das corporações dc O fício ap resen ta um a lista exaustiva d e todas as danças por ele en contrada na docu m en tação m ineira. “As danças coletivas e públicas no período colonial brasileiro e as danças das corporações d c ofício cm M inas G erais”, in: Barroco, 1. Belo H orizonte: U niversidade F ederal d c M inas G erais.

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ficação das danças de corte, nas academias. Se bem estudadas e analisadas, fazem-nos avançar no exame das possíveis mudanças ocorridas em seus as­ pectos propriam ente formais, sem que se tenha modificado sua nom en­ clatura. A questão se põe, a meu ver, num quadro dinâmico, em que danças apa­ recem, transformam-se, tornam-se latentes, reaparecem a partir de uma temporalidade própria, nem sempre linear. O gesto, a memória do gesto, por vezes surpreende, pelo que parece ser sua inusitada capacidade de perma­ nência; é material, a disposição, por séculos e séculos, de inúmeras combi­ nações; não respeita limites de tempo, geografia; circula pelo erudito, pelo popular, pelo sagrado, pelo profano, pelo antigo e pelo moderno. Gosto de pensar as Mouriscas, mas também as Folias, as Sarabandas e as Chacotas, sem necessariamente tirá-las dessa “zona” de indeterminação histórica e geográfica (acredita-se que circulam da América para a Europa e vice-versa). Discutir o que sejam, exatamente, só a partir de pistas muito convincentes. Se o panegírico se cala, estamos nas mãos de frágeis supo­ sições. A título de exemplo, vejamos mais de perto alguns desses casos. O minueto, por exemplo, figura ao lado das danças das corporações de ofício, nos bailes, comédias e óperas, representados por negros, mulatos e brancos, como parte das comemorações nas colônias. É o caso de indagarmos se o m inueto, tal qual era dançado na América portuguesa, correspondia a práti­ cas eruditas já estabelecidas, na França, na virada do século XVII para o XVIII, onde era dançado no Baile Real de Luís XIV, estando exaustiva­ m e n te codificado.-6 N u m im portante manual de dança do 1700, Le Maitre a Dancer,1' apare­ cem codificadas as danças do baile tal como deveriam ser praticadas em Versailles, e o M inueto aí figura, com destaque. Fazia-se acompanhar de reverências, desenhando no espaço figuras convencionais, que se chama­ vam de “figures obligées” . O M inueto de Corte aparece na Crítica às Fes­ tas28 delas, referência que trabalhamos para a América portuguesa e, curio­ sam ente, no docum ento colonial, aparece também o qualificativo figurado aplicado ao M inueto. Um outro caso são as Mouriscas, que podem ter sido trazidas pelos cruza­ dos, ou vindas de antigas danças célticas, ligadas à tradição da Morris Dance.

lb As danças dc cortc em voga na Europa, a partir do século XVIII, foram codificadas c registradas por um a notação e passaram a chamar-sc “Bellc D anse” num a clara referencia a preten são de finalm ente scrcm incluídas en tre as Belas-Artcs. Ficou tam bém conhecida com o “D ance d ’É co le” já q u e ensinada na Academia Real de Dança e Música. 27 Pierre R am eau. Le maitre a danser (1725). Nova York: Broude Brothers, 1967. 2,1 P ublicada por Carlos Francisco M oura cm O teatro em Mato Grosso no século XVIII. Cuiabá: U niversidade F ederal do M ato Grosso, 1976.

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MARIANNA

1'RANCISCA

MARTINS

MONTKIKO

H á referência a ela num banquete, como “e n tre m e ts ” , na corte burguinhã. A docum entação existente, ora ressalta a riqueza dos trajes c a teatralidade dos personagens, ora seu caráter “pírrico” e guerreiro. T h o in o t Arbeau, na Orquéseographie ( 1588), separa as “M orisques” , dança de guizos e batidas de pé, dos “M attachins” (ou “Bouffons” ), dança dc espada e escudo. Há, ain­ da, o próprio sentido do term o q u e impele a associá-la a q ua lq u e r rep re sen ­ tação que evolva personagens de M afoma, coisa aliás corriqueira nos corte­ jos portugueses que, desde o século XIII, incluía, na procissão dc Corpo dc Deus, a participação de mouros e judeus, especialm ente convocados para dançar. A mesma questão se põe para o termo Contradança, que teria o significado de dança de pares, vis-à-vis; ou viria do inglês, “Country D ance” . Oneida Alvarenga2‘J prefere a primeira hipótese, eu a segunda. Parece-me mais im­ portante o fato de abandonar a forma antiga do baile, introduzindo agora a dança de muitos pares simultâneos, típica do campo inglês, do que a natureza das figuras coreográficas (depares vis-à-vis), que pouca novidade apresentam em relação aos usos da simetria em tempos de Jean-Baptiste Lully. A in­ fluência inglesa tam bém me parece plausível e corresponde a um amplo m o­ vimento cultural do século XVIII. Do M inueto à Contradança, na Europa, configura-se um movim ento cujo sentido é a “desteatralização” do baile.’11Já na festa colonial brasileira é a cena que parece sair fortalecida quando mulatos, brancos e pretos ensaiam pa­ drões cultos, contrafazem galãs e damas à cortesã, simulando um salão abso­ lutam ente original em um baile radicalmente teatralizado. B IB L IO G R A F IA

C a s te lo , A d c ra ld o J o sé .

E

F O N T li S

Movimento academicista th Brasil — I64I-IS20I22. S ão P a u lo : C o n s e lh o E s ta d u a l

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Cf. edicão fac-sim ilada das Faustíssimas festas... Rio dc Janeiro: F u n arte, 1982, nota 10. E in teressan te notar q u e essas danças, m inuetos, “passepieds” , etc., desapareceram dos salões franceses a partir da m etad e do século X V III, talvez porque exigissem g rande d e s­ treza do bailarino.

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D A N Ç A

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I'K S T A

C O L O N I A L

825

/./■ m m tr e a t t tim r r (1725). N ova York: B ro u d c B rothers, 1967. Trajei tória da dança teatral rm Portugal. Lisboa: In s titu to dc C u ltu ra P o rtu g u e sa , 1979. S e /.n ec , J c a n . La sit/vfcanre des diet/x amir/ues. Paris: F la m m a rio n , 1993. T b o i n o t A rb e a u . l.’or//tie'seuf;ra/)/iie. (1588). L an g rcs: D o m in iq u e G c n io t R cp rin t. R a m c a ii, P ic rrc .

S a s p o rte s, J o sé .

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M a r t i n s

M o n t k i r o

g ra d u o u -se e m C iê n c ia s

S o c ia is p e la U n iv e rs id a d e d e S ão P a u lo . D u ra n te d e z a n o s tra b a lh o u c o m o a triz e b a ila rin a . O b te v e o títu lo d e m e s tra e m F ilo so fia p e la U n iv e rs id a d e d e São P au lo c o m a d is s e rta ç ã o N a tu reza e Artifício no B a lé de Ação. P u b lic o u Noverre — C artas sobre a D an ça, p e la E d ito r a d a U n iv e rs id a d e d e S ão P a u lo (E d u s p ), e m 1998. R e c e b e u o p r ê m io d a A sso c ia ç ã o P a u lis ta d e C rític o s d e A rte (A P C A ) M elhor Pesquisa em D ança, 1998. E a tu a l m e n t e d o u to r a n d a d o D e p a rta m e n to d e F ilo so fia d a USP, co m a in v e s ­ tig a ç ã o M a trizes Renascentistas e B atro ca s d a Dança P opu lar Brasileira. R k s u m o . E s te e n s a io p ro c u ra a n a lisa r a p re s e n ç a d a d a n ç a nas fe sta s p ú b lic a s das p rin c ip a is c id a d e s e v ilas d o B rasil c o lo n ial. A d a n ç a é v ista co m o u m g ê n e ro e s p e c í­ fico c o m o q u a l se o c u p a ra m os p rin c ip a is te ó ric o s se is c e n tis ta s d o b a lé , so b a d e n o ­ m in a ç ã o d e b a lé am bu latório. E m m e io às p ro c issõ e s e p rática s relig io sas d e m a n e ira g e ra l, a d a n ç a p õ e -s e a se rv iç o d a ação d ra m á tic a . Id e n tific a -s e co m p ro ce sso s c o n tra ­ d itó rio s q u e v isa m s im u lta n e a m e n te se p a ra r a d a n ç a d a litu rg ia, m as a p ro v eitá-la co m o e l e m e n to d a in fla ç ã o d e sím b o lo s p lá stic o s e g e stu a is c a ra c te rístic a d a fe s tiv id a d e re lig io sa b a rro c a . A d a n ç a n o B rasil co lô n ia , e m b o ra in s e rid a n a tra d iç ão e u ro p é ia do b a lé , p a r e c e d e s e m p e n h a r o u tro p a p e l. N o lu g a r d e a firm a ção d c p o siç õ es sociais nas re la ç õ e s d e c o rte , a d q u ir e u m o u tro s e n tid o e se p õ e a serv iço d a d o m in a ç ã o e da a d m in is tra ç ã o d a s re la ç õ e s d e d o m in a ç ã o típ ic a s d e u m E s ta d o te o ló g ic o -p o lític o , e s c ra v is ta e c o lo n ia lista .

443

O E CX3L KI I I S T Í O » fW5T*’u i b o

— T c , fumma Deus Trinitas , C ollau d ct omni* Spiritus : Q j o s per Crucis myfterium - Salvas f "rege per fascula. Amen.

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Acabédâ a Mijfá fe cçfluma fa z e r a ProciffaS dê Enterro , na qual fe cantardS os verfos feguintes muito de -va^ar . e com fiaufa.

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* Efle f e m p r e jt deve reprtir dtpbis de Cada bum dot que fe feguem. •, . . — v-

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Bernardo da Conceição. O Eclesiástico instruído [. . .]. Lisboa: Francisco Luis Ameno, 1788, p. 448.

A PROCISSÃO DO ENTERRO: UMA CERIMÔNIA PRÉ-TRIDENTINA NA AMÉRICA PORTUGUESA* P aulo

AP

C astagna

é uma celebração religiosa de origem medieval, praticada ainda hoje em Portugal e no Brasil, como a última ceri­ mônia religiosa da Sexta-feira Santa. Embora em franco declínio, o costume ainda é observado em Portugal, sobretudo em Braga, como informa a publi­ cação lusitana Festas Religiosas r o c i s s ã o

do

E n t er r o

“D urante séculos senhorio dos arcebispos, Braga conserva nos seus mo­ num entos muita de sua grandeza medieval. Nas imponentes Festas da Sem ana Santa, além das cerimonias que decorrem na Catedral românica, salientam-se as grandiosas procissões de «Senhor Ecce Homo», na noite de Quinta-feira e a do «Enterro do Senhor», na Sexta-feira Santa, num percurso que acompanha as muralhas da velha cidade romana ao longo dos «passos», autênticos altares de rua; [...].” O Brasil é a região na qual esta devoção está mais difundida e preservada, sendo praticada m esm o em grandes cidades, como São Paulo, onde ocorre

E ste texto é um a versão m odificada da comunicação “A Procissão do Enterro de Sextafeira Santa: subsídios para as reconstituições m usicais” , apresentada no III Simpósio L ati­ no-A m ericano d c M usicologia (Curitiba, 21-24 jan. 1999). A pesquisa faz parte da tese de do u toram ento O estilo antigo na prática musical religiosa paulista e mineira nos séculos XVIII e X IX , sob orientação do Prof. Dr. Arnaldo Daraya Contier, na Faculdade dc Filosofia L e­ tras e C iências H um anas da U niversidade de São Paulo. ' Portugal. Festas religiosas. Lisboa: IC E P [c.1990], p. 4-5.

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C A S T A 0 NA

todos os anos cm vários bairros, cantando-se, cm alguns deles (como na Lapa), música com textos que remontam, pelo menos, ao século XVIII. E m Minas Gerais, entretanto, a Procissão do Enterro é mais freqüente e mais tradicio­ nal, especialm ente na cidadc dc São João del-Rci, que, para a ocasião, atrai centenas de pessoas dc cidades vizinhas e mesmo de outros estados. Existem muitos detalhes envolvidos nessa devoção. Em termos gerais, a cerimônia inclui um ou dois sermões alusivos à Paixão (o Sermão do Desccndim ento e o Sermão da Soledade),- no lugar em que está instalada a repre­ sentação da crucifixão dc Cristo, diante de uma das igrejas da cidade. Junto ao local, postam-sc pessoas que, com o auxílio dc vestes e símbolos, repre­ sentam personagens do Antigo e do Novo Testamento, como evangelistas, profetas, apóstolos, soldados romanos, etc. Ao final da pregação, a imagem do Cristo morto é retirada da cruz por personagens que representam José de Arimatéia e Nicodemo c colocada em um csquifc. O coro começa a cantar o texto Heu! Heu! Domine! Heu! Salvator noster/, normalmente sem acompa­ nham ento instrumental, c o csquifc c seguido pelos personagens bíblicos, pelos membros das irmandades que promovem o ato c pelo povo, por várias ruas da cidadc. Ao terminar a procissão, o csquifc é depositado cm lugar apropriado, no interior de uma outra igreja, iniciando-se a segunda parte da cerimônia, na qual a imagem do Senhor Morto é incensada, enquanto o coro canta, geral­ mente, o Sepulto Domino (existem outros textos para a incensação do senhor Morto, como veremos adiante), sem o concurso do povo. A cerimônia term i­ na com a visitação dos fiéis à imagem, os quais passam diante dela cm silên­ cio. Embora encerrada a Procissão do Enterro, no Domingo da Ressurreição (ou dc Páscoa) os mesmos personagens retornam para a Procissão do Santís­ simo Sacramento, cuja temática é agora a da ressurreição dc Jesus. or

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Uma das raras notícias conhecidas sobre a origem esta celebração encon­ tra-se no Thezouro de Ceremonias (1734), de João Cam peio dc Macedo, segun­ do o qual a Procissão do Enterro surgiu no convento de Vilar de Frades, que existiu no bispado de Braga, em Portugal, nos séculos XII e XIII, então ocu­ pado pelos cônegos de São João Evangelista.' Dc acordo com o cerimonial de

" JorKc d c C am pos T clcs inform a que, cm Lisboa, após a Procissão do E nterro, era feita a Procissão do Regresso d e N ossa Senhora, no antigo convento dc São Francisco dc X abregas, encerrada pelo canto do Stabat Ma ter c pelo Serm ão da S oledade, lá tam b ém co nhecido com o Serm ão das Lágrim as d c N ossa Senhora. Cf. Jorge dc C am pos T clcs. A Paixão He Cristo na Hevoção popular lisboeta. Lisboa: Rei dos Livros, 1999, p. 132. 3 “O m osteiro d c S. Salvador d c Vilar dc F rades, b en ed itin o , constava nos século X II e X III, segundo os livros d c linhagens desta época, ter sido fundado por um próccr da região, D.

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P R O C I S S Ã O

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K N T K R R O

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Maccdo, embora não conste dos livros litúrgicos tridentinos, a Procissão do Enterro não se opõe às rubricas e, por ser “uso pio e devoto”, não foi proibida pela Igreja:1 “Porém, como a Procissão do Enterro, que neste dia [Sexta-feira Santa] se faz neste Reino, é tão pia e devota, e em nada encontra as rubricas do Missal, e Cerimonial Romanos, antes sc conforma muito com eles, e com as Bulas da sua aprovação, porque permitem todas as cerimônias e pios usos, que não sc opuserem às rubricas e Cerimonial a quem esta Procissão sc não opõem, porque se não proíbe, e é uso pio e devoto, e representação muito conforme à realidade do ato que representa, inventada neste Reino pela devoção dos Religiosos dc Vilar de Frades, introduzida e praticada nas mais Igrejas deste Reino pela piedade católica dos seus naturais.” Antônio de São Luís, no Mestre de Ceremonias (1789), confirma as informa­ ções de João Cam peio dc Macedo, acrescentando que, já em fins do século XVIII, essa cerimônia possuía algumas variantes:5 “N o Convento de Vilar de Frades dos Cônegos de S. João Evangelista teve princípio esta Procissão do Enterro do Senhor; e daí se propagou e estabeleceu tanto neste Reino, que são poucas as igrejas seculares e regulares em que se não faça. O modo, porém, de se fazer é diverso, porque em algumas partes se faz com o Santíssimo Sacramento, em outras com uma imagem do Senhor morto. Este segundo modo é o mais perfeito e o que sc deve praticar, para nem se inverter a ordem dos ritos da Igreja, nem se desprezarem as determinações da Sagrada Congregação [dos Ritos], que refere Piton e outros. [...].” O estudo musicológico mais significativo sobre essa devoção foi realizado por Solange Corbin, no Essai sur Ia Musique Re/igieuse Portugaise au Moyen Age (1100-1385),'' situando a Procissão do Enterro nas cerimônias próprias do bis­ pado de Braga, em Portugal.

G odinho Viegas [...], o q ue pode aliás corresponder, como geralm ente sucedia, a uma restauração. [...].” Cf. Grande enciclopédia portuguesa e brasileira', ilustrada com cerca dc 15.000 gravuras e 400 estam pas a cores. Lisboa c Rio dc Janeiro: Kditorial Enciclopédia, s.d., vol. 35, p. 801-09. ■* Cf. João C am p eio dc M accdo. T/iezouro deceremonias... Braga: 1'rancisco D uarte da M atta, 1734, p. 533, § 2. 5 A ntonio d e São Luiz. Mestre de ceremonias, que ensina o Rito Romano, e Seráfico aos religiosos da Reformada, e Real Província da Conceição no Reyno de Portugal, exposto em d u a s únicas classes p ara utilidade também dos mais ecclesiasticos, quepraticão os mesmos ritos [...]. Lisboa: Simão T h a d d e o Ferreira, 1789, Lição LXX, § 1025, p. 306. '■ Solange C orbin. Essai sur ta musique re/igieuseportuguaise au Moyen Age (1100-1385). Paris.

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l ' A U I. O

C A S T A (INA

A liturgia bracarense surgiu no século VI, mas foi substituída pela liturgia hispânica após o quarto concilio de Toledo (século VII) e pela liturgia romana após o concilio de Burgos (século XI). Ressurgindo entre fins do século XII e inícios do século XIII, a liturgia bracarense subsistiu após a Bula Quoda Nobis (9 de julho de 1568) de Pio V, que permitiu a m anutenção das liturgias que já fossem praticadas há mais de duzentos anos.7 O período de ressurgimento da liturgia bracarense e as informações dos autores dos cerimoniais citados perm item supor, portanto, uma origem da Procissão do Enterro entre os séculos XII e XIII, embora a mais antiga d e s­ crição conhecida do ato, como adiante veremos, encontre-se cm um missal bracarense de 1558. Jorge dc Campos Teles, assim como os autores dos ceri­ moniais acima referidos, sustenta a origem dessa devoção no convento de Vilar de Frades, com base em uma cerimônia trazida de Jerusalém:8 “Esta Procissão começou por ser feita em Portugal em finais do século XV e início do século XVI. Utilizando-se uma das hóstias consagradas na missa solene de Quinta-feira Santa. A sagrada Partícula ficava exposta até o dia seguinte e, na Sexta-feira Santa de manhã, era levada em procissão e encerrada num cofre ou «túmulo» até Domingo de Páscoa. “O padre Paulo de Portalegre, da congregação dos Cônegos seculares de São João Evangelista parece ter sido o responsável pela instauração do cortejo em território português. A Procissão terá sido trazida de Jerusalém, tendo começado a fazer-se no Arcebispado de Braga, mais concretam entc no convento de Vilar de Frades, a partir do qual se espalhou um pouco por todo o reino.” A mais antiga descrição da Procissão do Enterro foi localizada por Solange Corbin, na edição de 1558 do Missale Bracharense, com música em cantochão (Exemplo 1). A autora informa ter encontrado descrição da mesma cerimônia em um processional cisterciense de 17579 e no Methodo da Liturgia Bracharen-

Societé (TÉdition “L es B elles L e ttre s” , 1952. L ivre II (É tu d e s de tex tes), G ap. V III (L es pièces caractéristiques d c la liturgic dans les livres portugais), item “ La d epositio C hristi, au V endredi S ain t” , p. 302-10. 7 Cf. A ntônio C oelho. Curso de liturgia romana. 3.J cd. N egrclos: E dições “O ra c t L abora”/ M osteiro dc Singeverga, 1950, vol. 1, p. 231. K Jorge de C am pos Teles. A Paixão de Cristo na devoção popular lisboeta. Lisboa: Rei dos Livros, 1999, p. 102. '' Processionale/cisterciense/reverendissime DD/Abbatis/Generalis/Reformatoris/Congregationis Lusilania/S. Bemardi/Fidelissimi Regis/Consiliarii, eleemosinarique M aximi/Nati etc. etc./Jussum editumlLisbona MDCCLV’/ / / Apud Josephum da Costa CoimbraK',um facultate Sueriorum. A pud: C orbin, Solange. O p. cit., p. 307.

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k n t k r r o

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se (1837), dc Antônio Tomás dos Reis (Exemplo 2),111ambos com música em cantochão, além dc um manuscrito da Biblioteca da Universidade de Coim­ bra (Portugal), datado de 1825, com o título Mottetos a Quatro Para o Enterro de Jesus Christo, p o r Toscano e Música em Canto de Órgão, ou seja, em música polifônica." A quantidade de espécimes conhecidos em acervos brasileiros, entretanto, é bem maior que os até agora descritos em Portugal. E x e m p lo 1. E s trib ilh o c p rim e iro v e rsíc u lo d a P rim e ira P a rte da Procissão d o E n terro , d c acordo com o

Missa/e Bracharense (1 5 5 8 ), f. x ev i, n o q u a l c o n sta m as in d icações “pnerí' (m eninos, ou rip/es) e “rtionis" (co ro ). T ra n s c riç ã o e m n o ta ç ã o m o d e rn a .

H c -u !

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E x e m p lo 2. E s trib ilh o e p rim e iro v e rs íc u lo d a P rim e ira P a rte da Procissão d o E n terro , d c a cordo com o

Methodo da Liturgia Bracharense (1837), d c A n tô n io T o m ás dos R eis. T ran scrição c m notação m o d ern a.

Hc - u!

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Do - mi - ne!----

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Sal - va - tor

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A origem do cantochão apresentado no Missa/e Bracharense (1558) e no Methodo da Liturgia Bracharense (1837) de Antônio Tomás dos Reis ainda m erece novos estudos. Existe, entretanto, nítida semelhança dessas melo­ dias com a versão romana do primeiro tom salmódico (Exemplo 3). A corres­ pondência é ainda maior com o tom de recitação utilizado na terceira Lição (ou Oração do Profeta Jeremias) das Matinas do Sábado Santo e aplicado, entre outros, à frase “Pupilli facti sumus absque patre, matres nostras quasi

10 A ntonio T h o m a s dos Reis. Methodo da l.iturgia Bracharense, ou modo de celebrar com a devida perfeição o Sacrossanto Sacrifício da Missa. Braga, 1837. Apud: Corbin, Solange. Op. cit., p. 309-10. 11 T rata-sc, dc acordo com José Carlos M iranda, dc Antônio Vaz Toscano (p-1633), m cstrc-dccapela da Sé dc C oim bra. Cf. José Carlos M iranda. Programa da Temporada Ançã-ble 19911998 [ Portugal], p. 5.

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vidua” , a única dessas matinas que tam bém aparecc (com modificações) na primeira parte da Procissão do Enterro. A análise de uma versão portuguesa pré-tridcntina,i: da versão tridentina1' e da versão restaurada pelos monges do Mosteiro de Solesmcs (impressa a partir de 1910)14 da frase acima referida das Matinas do Sábado Santo (E x e m ­ plo 4) revela que algumas particularidades das melodias dc 1558 e 1837 da Procissão do Enterro correspondem à melodia portuguesa (impressa por Matias de Sousa Vila-Lobos em 1688) e outras à melodia tridentina reformada por Giovanni Guidetti no Cantus Ecclesiasticus Officii Majoris Hebdotnadce (1587). E x e m p lo 3. P r im e iro to m s a lm ó d ic o , d c a c o rd o c o m a tra d iç ã o ro m a n a .

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Finalis

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9A M-

Uma terceira versão do cantochão para a Procissão do Enterro foi impressa e m 0 Eclesiástico Instruído (1788), dc Bernardo da Conceição. Infelizmente, o autor apresenta música somente para a primeira parte da celebração (E x e m ­ plo 5),1:1prescrevendo, para a segunda parte, apenas os textos latinos. A m elo­ dia desse espécim e é bem diferente das versões impressas em 1558 noAIissale Bracharense e em 1837 no Methodo da Liturgia Bracharet/se, de Antônio To­ más dos Reis, mas ainda é perceptível sua relação com o primeiro tom salmó­ dico e com o tom de recitação empregado na terceira Lição das Matinas do Sábado Santo. DIFUSÃO

A Procissão do Enterro difundiu-se, a partir do século XVI, para as colô­ nias portuguesas da Ásia, África e América, notadam ente por causa da atua­ ção missionária jesuítica. O primeiro registro conhecido desta cerimônia, fora de Portugal, ocorreu em Goa (índia), no ano de 1558,16 mas, na m esm a re12 M athias dc Sousa V illa-Lobos. Arte de cantochão. C oim bra: M anoel R odrigues d c A lm cyda, 1688, p. 183-4. 13 D om ingos do Rosário. Theatro ecclesiastico, e manual de missas offerecido á Virgem Santíssima, Senhora Nossa [...]. Lisboa: S im ã o T h a d d e o Ferreira, 1786, vol. 2, p. 372. 14 Liber Usualis Missce te Offtcii pro Dominicis et Festis cum canto gregoriano ex Fditione Vaticana adamussim excerpto et rhythmicis signis in subsidium cantorum a Solesmensibus Mona chis diligenter omato. Parisiis, Tornaci, roma:: T vpis S ocictatis S. Joannis E vangelista: d cscelée & Socii, 1950, p. 719. 15 B ernardo da C onceição. O eclesiástico instruído... Lisboa: Francisco L uis A m eno, 1788, p. 448-51. A consulta desse ex em p lar so m en te foi possível pela colaboração do Pe. Paulo Faria, do C olégio do C araça (Santa Bárbara [M G]). 1,1 Documenta indica. Roma, 1956, vol. 4, p. 197. A pud: M ário M artins. O teatro nas cristandades quinhentistas da índia e do Japão. Lisboa: Brotéria, 1979, p. 52.

A

PROCISSÃO

O O

KNTKRRO

835

E x e m p lo 4. 'I o m d c re c ita ç ã o d a te rc e ira L içã o das M atin as d o T ríd u o Pascal, a p lic ad o à frase “P u p illi facti s u n iu s a b s q u e p a tre , m a tre s n o s tr x q u asi v id u a ” , im p ressa p o r M acias d e S ousa V ila-L obos e m 1688 (M S V L ), p o r G io v a n n i G u id e tti c m 1587 (G G ) c p e lo s M o n g es d o M o ste iro d e S o le sm e s cm 1910 (M S).

MS Pu-pil - li la-cti su-mus abs-que pa - tre.

ma-tres no

-

strx qua-si vi

du -

Pu-pil -

li fà-cti su-m us abs-que pa-tre.

ma-tres no

-

stra; qua-si vi

du-ai.

Pu-pil -

li la-cti su-mus abs-que pa - tre,

ma-tres no

x.

GG

MSVL strae qua-si vi

du-£e.

Exemplo 5. Estríbilho c primeiro versículo da primeira parte da Procissão do Enterro, de acordo com O Eclesiástico Instruído (1788), dc Bernardo da Conceição (p. 448). Transcrição em notação moderna. [E stríbilho]

1le - u!

Ile- u!

Do

mi - nc!

Ile - u!

llc - u!

Sal - va - lor

no - ster!

[Versículo 1 Pu - pil - li

fa - cti

su - mus

abs- que

pa - tre.

m a-ter no-stra vi - du - a.

gião, os jesuítas descreveram minuciosamente a Procissão do Enterro na Sexta-Feira Santa de 1576:17 “Faz-se esta procissão desta maneira: que à noite que precede a Sextafeira se arma um sepulcro todo coberto de negro, muito bem feito, e depois de acabada a missa, à Sexta-feira, saem todos os padres e irmãos em procis­ são da sacristia, com a fralda do manto sobre a cabeça, com que fica cobrindo a cabeça à maneira de dó; e outros seis padres, vestidos com alvas e cobertas as cabeças e os rostos com os amictos, trazem uma tumba coberta de veludo preto, diante da qual vão uns anjos com os mistérios da paixão e, após eles, dois coros de apóstolos e, detrás da tumba, um coro das Marias, os quais se representam pelos meninos de casa e alguns outros cantores da nossa cape­ la. Estes todos vão cantando uns versos da Sagrada Escritura a propósito do que se representa, ora cantando uns, ora respondendo outros, com as vozes tão lacrimosas e tristes e com um Heu! Heu! Domine! Salvator noster!, que respondem as Marias, que bastam para quebrar os corações.”

17 Documenta indica. Roma, 1968, vol. 10, p. 721. Apud: Mário M artins. O p. cit., p. 52-3.

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1’ A I U . O

CASTACNA

O jesuíta informa que os textos cantados eram todos de origem bíblica e que as Três M atias — simbolizadas pelos “meninos dc casa e alguns outros cantores da nossa capela” — cantavam, alternadam ente com “dois coros de apóstolos”, o texto Heu!H eu!D om ine!Sa/vator Nosfer! (Ai! Ai! Senhor! Salva­ dor nosso!) que consta no Missa/e Bracharense de 1558 e nas versões atuais desta cerimônia. As personagens simbolizadas são Maria Madalena, Maria Salorné e Maria Cléofas que, segundo a tradição cristã, choraram a morte de Jesus em Jerusalém. N o Brasil, a Procissão do Enterro foi descrita pela primeira vez no colégio de Porto Seguro, Bahia, na sexta-feira santa de 20 de abril de 1565, pelo je ­ suíta Antônio Gonçalves:ls À Sexta-feira seguinte, se fez o ofício do D esencerram ento do Senhor, com o mesmo sentim ento c devoção, levando dois padres vestidos com suas alvas e descalços ao Santíssimo Sacramento cm uma tum ba toda coberta de preto, que para isso estava feita, indo diante as Três Marias, cantando Heu! Heu! Salvator noster!, cobertas com seus mantos e coroas em as cabeças, o que tudo causava grande devoção e admiração a esta g e n ­ te, por não haverem visto outra tal nesta terra, depois de ser povoada, di­ zendo que no Reino sc poderia fazer tão bem e melhor não [...].” A cerimônia parece ter sido bastante difundida entre os jesuítas da costa bra­ sileira, já no final do século XVI. De acordo com Fernão Cardim, a Procissão do Enterro celebrada no Colégio Jesuítico dc Salvador, em 30 de março de 1584, foi acompanhada dc disciplinas (autofiagclação), prática comum no período:1'1 “O padre visitador [Cristóvão de Gouveia] teve as Endoenças [em 29 de março] na aldeia do Espirito Santo [...]. Tiveram M andado [Lava-Pés] em português por haver muitos brancos que ali se acharam, e Paixão na língua, que causou muita devoção e lagrimas nos índios. A Procissão [do Enterro] foi devotíssima, com muitos fachos e fogos, disciplinando-se a maior parte dos índios, que dão em si cruelmente, e têm isto não som ente por virtude, mas tam bém por valentia, tirarem sangue de si, e serem abaeté, scilicet, valentes. [...].”

IS A ntônio G onçalves. “C arta ao P adre D iego M irón, Lisboa. Porto Seguro, 15/2/1566”, in: Serafim L eite. Monumenta brasiliae. Roma: M o n u m en ta H istórica S.I., 1960, vol. 4, doe. 31, p. 316-8. ''' F ernão C ardim . Tratados da terra e gente do Rrasil. Introduções e notas de R odolpho Garcia, B aptista C aetan o c C apistrano de A breu. C oleção R econquista do Brasil, nova serie, vol. 13. Belo H orizonte-São Paulo: Itatiaia-E d u sp , 1980. Doc. 3: “Inform ação da m issão do P. C hristovão G otivea às partes do Brasil ou narrativa episto lar de um a viagem c m issão jesu ítica” , p. 159.

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KSTKHIIO

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Difundindo-se pelas colônias portuguesas, a Procissão do Enterro tornouse parte da tradição católica dessas regiões. Em meados do século XVII esta cerimônia já era celebrada pelo clero diocesano, oficializando-se nas Consti­ tuições Primeiras do arcebispado da Bahia, ordenadas pelo arcebispo da Bahia, Sebastião Monteiro da Vide, e aceitas no Sínodo Diocesano de 12 de junho de 1707:211 “E na Sé Metropolitana, depois do Ofício de Sexta-feira Santa, como é costume, sc fará a Procissão do Enterro, e ficará o Senhor no túmulo até dia de Páscoa, alumiado sempre com cera bastante: e nas mais igrejas de nosso Arcebispado não ficará o Senhor até o dito dia; salvo precedendo licença nossa in scriptis. E o Pároco que consentir, e oficiais do Senhor, 011 fregueses, que concorrerem com o necessário, para que o Senhor fique sem nossa licença, serão castigados a nosso arbítrio.” D esde fins do século XVII, a Procissão do Enterro, além de ser celebrada em igrejas diocesanas (matrizes ou catedrais), começou a ser também prati­ cada por ordens conventuais e ordens terceiras, com preferência pela Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. Jaime Dinis informa que, em Salva­ dor, a O rdem Terceira do Carmo promovia tal cerimônia desde 1696 (obriga­ ção essa presente em seu Compromisso),21 enquanto as Constituições Pri­ meiras do Arcebispado da Bahia determinavam que esta fosse celebrada ape­ nas pelos “Religiosos de Nossa Senhora do M onte do Carmo em Sexta-feira da Paixão” .22 A Procissão do Enterro poderia ser promovida por mais de uma comunida­ de religiosa em uma determinada vila 011 cidade. Raul Leno Monteiro infor­ ma que em São Paulo, durante os séculos XVIII e XIX, esta fora celebrada na O rdem Terceira do Carmo, mas também na Catedral:2’

211 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo íl/ustrissimo, e Reverendissimo Senhor Sebastião Monteiro da vide, Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade: Propostas, e aceitas em 0 synodo Diocesano, que 0 dito Senhor celebrou em 1de junho do anno de 1707. Impressas em Lisboa no anno de 1719, e em Coimbra em 1720 com todas as Licenças necessarias, e ora reimpressas nesta CapitaI. S. Paulo: na Iypographia 2 dc D c/.cm bro dc A ntonio L ouzada A ntunes. 1853. Livro Prim eiro, I ítulo X X X III, n." 119, p. 52-3. 21 Jaim e D iniz & G rcgório dc Souza c Gouvca. III E ncontro Nacional dc Pesquisa em M usi­ ca, 5 a 9 dc agosto dc 1987, O uro Preto, M inas Gerais. Anais; promoção: Escola dc Musica U F M G (D T G M ), O rquestra R ibeiro Bastos dc São João del-Rci, M useu da Inconfidência dc O uro Preto. Belo H orizonte: Im prensa Universitária, 1989, p. 33-55. Esta informação encontra-se à p. 48. 21 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia..., op. cit., Livro III, título 14, n."491, p. 192. Raul L en o M onteiro. Carmo:patrimônio da história, arte efé. São Paulo: E m presa Gráfica da R evista dos T ribunais, 1978, p. 39.

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CASTAGNA

“A Procissão do Enterro que saía da Igreja da O rdem Terceira do Car­ mo, por causa do seu aparato, era mais concorrida do que a que saía da Sé Catedral, pois grande número de pessoas, com empenho, desejavam acornpanhá-la, munidas de lanternas ou de tocheiros e, para poder obter estes, tornava-se preciso que o candidato rogasse, antes, a alguns dos irmãos da ordem ou aos irmãos sacristães, para não esperar a distribuição geral das referidas lanternas e tocheiros, que eram, no meio dc empurrões, feitas aos pretendentes, os quais, nessa ocasião, se machucavam, rasgando, alguns, as suas roupas, tal era o desejo de fazer parte do préstito.” A utilização do canto de órgão (polifonia) nas Procissões do Enterro já esta­ va estabelecida em Portugal no século XVII. De acordo com Diogo Barbosa Machado (Bibliotheca Lusitana, vol. 2, 1743)’4 e com Joaquim de Vasconcelos (Os Músicos Portugueses, 1870),25 o compositor lisboeta H enrique Carlos Cor­ reia (1680-após 1747), frade da ordem militar de São Tiago e mestre-de-capela da catedral de Coimbra, destinou à Procissão do Enterro música polifônica com os textos Pupilli facti st/mus, Cecidit corona, 0 vos o/t/nes, Defecit gaudiutn e Sepulto Domino. Na sé de Elvas, nesse período, a Procissão do Enterro tam bém já era celebrada em canto polifônico e com o concurso do povo, como informa Agostinho de Santa Maria no Santuário Mariano (vol. 6, 1718):2r’ “ [...]. N a Sexta-feira Maior [na sé de Elvas] se faz o D escendim ento na capela-mor. A Imagem do Senhor está em um caixão no Altar da mesma Senhora [Nossa Senhora da Soledade], que se mostra som ente em as sex­ tas-feiras da Quaresma. Na mesma Sexta-feira Maior tem dous Sermões: o primeiro do Descendim ento, e o segundo da Soledade, em que se mostra o Santo Sudário. Depois do Sermão da Soledade, se põe o Senhor e m um esquife de prata, coberto com um rico pano de tela de Milão, e se dá prin­ cipio à Procissão do Enterro, depois das Ave-Marias, por algumas ruas da cidade, e se torna a recolher à mesma Sé: vão nela mais de seiscentos ir­ mãos com tochas amarelas. Levam ao Senhor quatro Cônegos, e outros quatro a imagem da Senhora; e junto a cada um dos Andores vai um coro de música. Vão detrás do Andor do Senhor, até o da Senhora, mais de duzentas pessoas fazendo penitência.”

24 D iogo Barbosa M achado. Bibliotheca Lusitana. Lisboa: Ignacio R odrigues, 1743, vol. 2, p. 321-445-6. A pud: R uy Vieira Nery. A música no ciclo cta “Bilioteca Lusitana". L isboa: F u n d a ­ ção C alouste G u lb en k ian , 1984, p. 65. 25 Joaquim d e Vasconcellos. Os músicos portugueses: biographia-bibtiographia p o r [...]. Porto: Im prensa P ortugueza, 1870, vol. 1, p. 56. 26 A gostinho d e Santa Maria. O p. cit., vol. 6, 1718, Livro III, T ítu lo I (D a milagrosa Im agem de N ossa Senhora da S oledade, q u e sc venera na Sè de Elvas), p. 471.

A

PROCISSÃO

n o

KNTKRRO

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A atuação das ordens terceiras, no Brasil, entre fins do século XVII e iní­ cios do século XVIII, gerou aumento na solenidade da Procissão do Enterro e a adoção definitiva do canto de órgão (polifonia) para os textos anteriormente cantados em cantochão, com absoluta predominância, entre os espécimes co­ nhecidos, do estilo antigo, ou seja, aquele baseado em normas composicionais do século XVI. Um exemplo típico é a composição anônima para a Procissão do Enterro, encontrada em três grupos de manuscritos, que incluem cópias do séculos XVIII e XIX (Exemplo 6): 1) no Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo (SP), cód. ACMSP P 253;27 2) na Orquestra Lira Sanjoanense (São João del-Rei (MG), sem código;28 3) no Museu da Música de Mariana (MG), cód. MA SS-16 [M-2 V-1 com muitas diferenças em relação aos grupos precedentes, sobretudo nos versículos da primeira parte. A mais antiga composição polifônica para a Procissão do Enterro encontra­ da no Brasil parece ser, também, o mais antigo exemplo português conhecido com música polifônica para tal cerimônia, embora essa particularidade não tenha sido observada no Brasil ou em Portugal. Trata-se de uma composição para a segunda parte da Procissão do Enterro, de um manuscrito obtido em Minas Gerais por Francisco Curt Lange entre 1944-1945 (talvez de algum acervo da região de Ouro Preto), hoje recolhido à Coleção Curt Lange do M useu da Inconfidência/Casa do Pilar (Ouro Preto [MG]).3" A cópia, catalogada sob o n.ü 298,31 está assinada pelo compositor Francisco Gomes da Rocha, que viveu em Vila Rica entre c. 1754 e 1808, embora o exame do documento permita a suposição de que esse músico pode nem ter elabora­ do tal cópia, pois a tinta e a caligrafia utilizadas na assinatura são diferentes da tinta e da caligrafia empregadas na música e no texto latino. Régis Duprat observou a identidade de uma das seções da obra, o Cum descendentibus in lacutn, com a composição homônima de Ginés de Morara,32 encontrada em dois livros

27 A C M SP P 253 C -U n — “Suprano Tracto Prim eiro”. Sem indicação de copista, sem local, [final do século XIX]: partes de SATB. 28 O L S, sem cód. [C-Un] — “Soprano a 4 Vozes/dos/Tratos Paxaõ e Adoração/da Crus Prossiçao do E nterro/do S en h o r/l 7/1928/Pertence a H erm cnegildo Jc de Sousa T rindade/P ' dadiva de M anoel Jose da Sa” . C ópia de Carlos Antônio da Silva, [São João del-Rei?, m eados do século XIX]: partes dc SATB. 2" M M M MA SS-16 [M-2 V-1]: [C -l] — “Sexta Fr.;1Suprano” . Sem indicação dc copista, sem local, [final do século XVIII]: partes de SAT; [C-2] — “Sexta fr.J Suprano” . Sem indicação de copista, sem local, [prim eira m etade do século XIX]: parte dc S. 30 M IO P /C P -C C L 298 [C-Un] — “P opulem eus a Quatro vozes c-/cum d escendentibus in-/ L acum /P ara Sesta feira da Paixaõ./Fran.1" G omes da Rocha”. Cópia de Francisco G omes da Rocha [?], sem local, [final do século XVIII]: partes dc S 'S 2AT (Cum descendentibus in tacum)/SATB, bx (Sepulto Domino). 31 M IO P /C P -C C L 298 — “P opulem eus a Q uatro vozes e-/cum descen d en tib u s in-/L acum / Para Sesta feira da Paixaõ./Fran.1" G om es da Rocha”. Cópia de Francisco G om es da Rocha [?], sem local, [final do século XVIII]: partes de S 'S 2AT. 32 Régis D uprat. “A polifonia portuguesa em obras dc brasileiros”, in: Pau Brasil, São Paulo,

P A U 1. 0

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C A S T A ( SNA

E x e m p lo 6. A n ô n im o . E s trib illio (c. 1-8) c p rim e iro v e rs íc u lo da P rim e ira P a rte (c. 1-9) d a P ro c is s ã o cio E n te r ro , e n c o n tra d a e m trê s g ru p o s d e m a n u sc rito s m u s ic a is b ra sile iro s: 1) n o A rq u iv o d a C ú ria M e tr o ­ p o lita n a d c S ão P a u lo (S P ), c ó d . A C M S P P 253; 2) na O rq u e s tra L ira S a n jo a n c n s c (S ão J o ã o d e l-R e i [M G ]), s e m c ó d ig o ; 3) n o M u s e u d a M ú sic a d c M a ria n a (M G ), c ó d . M A S S - lh |M -2 Y -l].

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manuscritos do Paço Ducal dc Vila Viçosa (Portugal) e publicada em 1956 pelo musicólogo português Manuel Joaquim” (Exemplo 7). Manuel Joaquim e Régis Duprat, contudo, referiram-se a essa obra como oitavo Responsório das Matinas do Sábado Santo, mas o exame dos textos não deixa dúvidas quanto a tra­ tar-se, esta, de uma composição para a Procissão do Enterro de Sexta-feira Santa. E x e m p lo 7. G in é s d e M o ra ta . S e g u n d a P a rte d a Procissão do Enterro, d o A rq u iv o d o P a ç o D u c a l d e Vila V içosa (P o rtu g a l), L iv ro d c M ú sic a P o li fô n ic a n." 3, f. 5 6 v-57r, c o m o títu lo "feria Sexta In parasceue" e L iv ro d c M ú s ic a P o lifô n ic a n." 4, f. 53 v -5 4 r. A ltu ra s o rig in a is tra n s p o s ta s u m a q u a r ta a b a ix o , e m v ir tu d e d a u tiliz a ç ã o d c c la v e s a lta s. Cum

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J(15):69-78, nov.-dez. 1986. R eim presso em : “A polifonia seiscen tista p o rtu g u esa cm M inas G erais no século X V III” , in: Barroco, Belo H orizonte, /-/:41 -8, 1986-1987. M ais um a vez reproduzido em : “A polifonia p ortuguesa no século X V III em M inas G erais” , in: M aria C onceição R ezen d e. A música na história He Minas colonial. Belo H orizonte-B rasília: ItatiaiaIn stitu to N acional do Livro, 1989, p. 223-32. 33 Vinte livros de música polifônica do Paço Ducal de Vila Viçosa: catalogados, descritos e anotados p o r Manoel Joaquim. Lisboa: F u ndação da Casa dc Bragança, 1953, f. 53-56 c 70v-72r.

A

PROCISSÃO

I K)

KNTKKRO

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D e acordo com José Augusto Alegria, o músico espanhol Ginés de Morata foi mestre-de-capela do Paço Ducal de Vila Viçosa entre fins do século XVI e inícios do século XVII, conhecendo-se dele algumas obras cm manuscritos portugueses c espanhóis.w A presença da mais antiga composição portuguesa para a Procissão do Enterro em uma cópia mineira do século XVIII sugere que a recepção, no Brasil, de música escrita cm Portugal para essa cerimônia, pode ter sido com um já no século XVII. E S T R U T U R A

D O S

T E X T O S

Versículos da primeira e segunda parte A Procissão do Enterro, como vimos, é uma cerimônia litúrgica, instituída pelo rito bracarense, mas, embora não tenha sido proibida pela Bula Quoda Nobis (1568) de Pio V, não é uma celebração tridentina, pois não foi adotada nos livros litúrgicos reformados por determinação do Concilio de Trento (na seção XXV, segunda parte, item 3, de 1563)’5 e impressos a partir de 1568. A partir da reorganização da música sacra em Portugal, instituída no reinado de D. João V (1706-1750) e, sobretudo, após a publicação do Theatro Ecc/esiastico (1743) de Domingos do Rosário,,f’ cujo objetivo foi a difusão do cantochão tridentino no império luso, foi sendo gradualmente perdida a noção da Pro­ cissão do Enterro como uma cerimônia própria do rito bracarense, a qual pas­ sou a ser reconhecida quase somente como uma devoção religiosa, porém externa à liturgia tridentina. Em bora a Procissão do Enterro não esteja descrita nos livros litúrgicos tridentinos, vários cerimoniais portugueses dos séculos XVII e XVIII abordam essa prática, relacionando-se, abaixo, os principais títulos, em ordem cronoló­ gica: São José, Leonardo de. Economicon Sacro (1693)’7 34 Josc A ugusto Alegria. História da capela e colégio dos Santos Reis em Vila Viçosa. Lisboa: F u n ­ dação C alouste G u lb en k ian , Serviço de M úsica, 1983. Cap. VIII (Os m estres da capela), p. 156. O Sacrosanto, e Ecumênico Concilio de Trento em latim e portuguez: dedicado e consagrado aos excett., e Rev. Senhores Arcebispos, e Bispos da Igreja Lusitana. Nova Edição. Rio de Janeiro: Livraria d e A ntônio G onçalves G uim arães & C .J, 1864, vol. 2, p. 301-03. D om ingos do Rosário. Theatro ecc/esiastico em que se acham muitos documentos de Canto chão pa ra qualquer pessoa dedicada ao culto Divino nos Ojficios do coro, e Altar. Offerecido cí Virgem Santíssima Senhora Nossa com o Soberano Titulo da hnmaculada Conceyçam, venerada em hunw das capet/as. N a O fficina Joaquiniana da Musica de D. Bernardo I^ rn a n d c z Gayo, 1743. xxxii p. não num ., 383 p. Cf. Joaquim de Vasconcellos. Os músicos portugueses: biographiabib/iographiapor [...]. Porto: Im prensa Portugueza, 1870, vol. 2, p. 298. 37 L eonardo de São Josc. Economicon sacro... Lisboa: Manoel Lopes Fcrrcyra, 1693, p. 64751. O ex em p lar utilizado perten ce à Biblioteca dos Bispos de Mariana (MG).

PAULO

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CASTAGNA

Macedo, João Cam peio de. T/iezouro de Ceremonias (1734)'” Sarmento, Francisco de Jesus Maria. M anual da Semana Santa (1775) w Conceição, Bernardo da. 0 Eclesiástico Instruído (1788)4I) São Luís, Antônio de. Mestre de Ceremonias (1789)'" D e acordo com essas fontes e com o próprio Missa/e Bracharense (1558),4citado por Solange Corbin, a Procissão do Enterro, desde o século XVI, pos­ suía música e texto latino específico para as duas partes da cerimônia. As descrições apresentadas por essas fontes são longas e detalhadas, mas é pos­ sível resumir os principais aspectos referentes à música. Na primeira parte, durante a procissão propriamente dita, três meninos o u tip/es, que representam as Três Marias, cantam o refrão Heu! Hen! Domine/, alternados com o coro, que canta quatro versículos, identificados pelas letras a, b, c c d no Quadro 1. Q u a d ro 1. T e x to d a P rim e ira P a rte d a P ro cissão d o E n te r ro , d c a co rd o co m o Missa/e Bracharense (1558). co m o Economicon Sacro (1 6 9 3 ) d e L e o n a rd o d c S ão Jo sé , co m o Thezoutv de Ceremonias (1 7 3 4 ) d c Jo ão C a m p e io d e M a c c d o , co m o Manual da Semana Santa (17 7 5 ) d c F ra n c is c o d c J e s u s M aria S a rm e n to e c o m 0 Eclesiástico Instruído (1 7 8 8 ), d c B e rn a rd o d a C o n c e iç ã o . V e rsícu lo s d a p rim e ira p a rte

T r a d u ç ã o 4,1

Heu! Hen! Domine! Hen! Heu! Sa/vator noster!

Ai! Ai! S c n lio r! Ai! Ai! S a lv a d o r nosso!

a) PupiUi facít sumus absque patre, mater nostra vidua.

a) E s ta m o s ó rfão s d c pai. n o ssa m ã e e s tá viú v a.

Heu!...

A i!...

b) Cecidit coroua capitis nos/ri, ver uobis quia peccavimus. b) A coroa caili d c n o ssa c a b c ç a , ai d c nós q u e p c ca m o s!

Heu!...

A i!...

c) Spiritus cordis nos/ri, C/irístus Dominns, morte turpissima condemnatus

c) S o p ro d c n o sso c o ra çã o , o S c n lio r C ris to foi

Heu!...

A i!...

d) Defecit gaudium cordis, versa est in luetum cithara nostra.

d) C o ro : A c a b o u -se a a le g ria d c n o sso c o ra çã o ,

Heu!...

A i!...



w

4" 41

443

c o n d e n a d o a m o rte to rp íss im a

n o ssa c ita ra e s tá d e lu to .

João C am peio de M acedo. Thezouro de ceremonias... Braga: Francisco D u arte da M atta, 1734, p. 533-40. O exem plar utilizado p erten ce à Seção de O bras Raras da B iblioteca M u ­ nicipal M ário de A ndrade (São Paulo [SP]). Francisco d e Jesus M aria Sarm ento. M anual da Semana S an ta... Lisboa: R egia O fficina Typografica, 1775, p. 209-10. O exem plar utilizado p erte n c e ao M useu P ad re A nchieta (São Paulo [SP]). B ernardo da C onceição. O eclesiástico instruído... Lisboa: Francisco L uis A m eno, 1788, p. 448-51. O exem plar utilizado p erten ce à B iblioteca do C olégio do Caraça (S. Bárbara [M G]). A ntonio de São Luiz. Mestre de ceremonias, que ensina o Rito Romano, e Seráfico aos re/igiosos da Reformada, e Real Provincia da Conceição no Reyno de Portugal, exposto em duas unhas classes p a ra utilidade tambem dos mais ecclesiasticos, quepraticão os mesmos ritos [...]. Lisboa: Sim ão T h a d d e o F erreira, 1789. L ição LX X , § 1025, p. 306. O ex em p lar utilizado p e rte n c e à coleção do autor. Missa/e Bracharense. L ug d u n i: P etru s Fradin, 1558, f. X CV I. C itado cm Solange C orbin. O p. cit. A tradução foi gentilm en te enviada pelo Pe. N ereu de Castro Teixeira (Belo H orizonte [MG]).

A

PROCISSÃO

no

KNTKRRO

843

A forma poética -— o estríbilho Heu!Heu!Domine! alternado com os quatro versículos — é sem elhante à forma da segunda parte da Adoração da Cruz de Sexta-feira Santa, cerimônia litúrgica romana originada no século IV, na qual o estríbilho Popule meus é alternado com nove versículos contendo supostas queixas de Jesus contra o povo, baseadas em informações dc Antigo e do Novo Testam ento. Na Adoração da Cruz é Cristo vivo quem se refere ao povo, mas na Procissão do Enterro é o povo que chora sua morte, o que suge­ re correspondência não acidental entre o assunto e a forma poética dessas duas cerimônias. N a segunda parte, diante do túmulo de Jesus, canta somente o coro (sem os tiples que, na primeira parte, cantaram o estríbilho Heu! Heu! Domine!). Existem, nas fontes portuguesas, duas versões para esta ocasião: na primeira delas, descrita apenas por Leonardo de São José (Economicon Sacro, 1693)44 e por Francisco de Jesus Maria Sarmento (.Manual da Semana Santa, 1775),45 cinco versículos cantados pelo celebrante são seguidos por cinco respostas do coro, como se pode observar no Quadro 2. Q u a d ro 2. T e x to la tin o d a S e g u n d a P a rte (v ersão 1) da Procissão d o E n te rro , d c a cordo com o Economicon Sacro (1 6 9 3 ), d c L e o n a r d o d c S ão J o sé , c tra d u ç ã o p o rtu g u e s a d c F ran c isco d c Je su s M aria S a rm e n to , no Manual da Semana Santa (1775). V e rsícu lo s e re s p o s ta s d a s e g u n d a p a rte (v ersão 1)

T ra d u ç ã o 4'’

jEstimatus sum R. Cum descendentibus iu lacum factus sum sicut homo. sine adjutorio inter mortuos tiber

V.

V.

Sepulto Domino Signa/um est monumentum, volventes lapidem ad ostium monumenti, ponentes milites, qui custodirent illud. V. In pace factus est R. Lotus ejtts V. In pace in idipsum R. Dormiam et requiescam V. Caro mea

V.

R.

R.

Requiescet in spe

Fui computado Com os que descem ao lago do sepulcro. Fui feito. como um homem sem auxílio, porém livre entre os mortos. V. Sepultado o Senhor, R. Fechou-se o Monumento, encostando-lhe àporta uma pedra, e pondo-lhe soldados, que o guardassem. R.

Formou-se na paz 0 seu lugar: V. Na paz com ele mesmo R. Dormirei, e descansarei. V. /I minha carne R. descansará na esperança.

V.

R.

A segunda versão é mais simples. Descrita no Missale Bracharense (1558),47 no Thezouro de Ceremonias (1734) de João Campeio de Macedo48 em 0 Ecle-

44 L eonardo de São José. Economicon sacro. Lisboa: M anoel L opes Ferreyra, 1693, p. 647-51. 45 Francisco de Jesu s M aria Sarm ento. Manual da Semana Santa... Lisboa: Regia Officina Typografica, 1775, p. 209-10. 46 Francisco d e Jesus M aria Sarm ento. Manual da Semana Santa, op. cit., p. 209-10. 47 Missale Bracharense. L ugduni: P etrus Fradin, 1558, f. XCVI. 48 João C am peio d e M acedo. Thezouro de ceremonias... Braga: Francisco D uarte da M atta, 1734, p. 533-40.

844

PAULO

CASTAGNA

siástico Instruído (1788) de Bernardo da Conceição,41' consiste no canto dc ape­ nas três versículos do celebrante e de três respostas do coro, seguidos pelo mesmo Responsório que se canta na nona Lição das Matinas do Sábado San­ to (Quadro 3). ?i. 'I c x t o la tin o d a S e g u n d a 1’a rtc (v e rsã o 2) d a P ro cissão d o K n tc rro , d e a c o rd o co m o Missa/e Bracharense (1 5 5 8 ), c o m o 7 hezouro de Ceremonias (17.^4) d e Jo ão C a m p e io d c M a c e d o e c o m 0 b.desiástico Instruído (1 7 8 8 ), d e B e rn a rd o d a C o n c e iç ã o .______________________________________________________________ Q u a d ro

V e rsícu lo s c re s p o sta s d a s e g u n d a p a rte (v e rsã o 2)

T rad u ção

Y.

In pace factus es/ tocus ejus

Y H a b ito u c m p a z n o s e u lu g a r

R.

F.t habitaria ejus in Sion.

R. K c m S ià o fe z su a m o ra d a .

Y.

Caro mea

Y M in lu i c a rn e

R.

Requiescet in Spe.

R. D e s c a n sa rá c m paz.

V.

In pare in idipsum

Y N e s ta m e s m a p a z

R.

Dormiam, et requiescam.

R. D o rm ire i c d e s c a n s a re i.

R.

Sepulto Domino, signa/um csr monumentum, sol­ ventes lapidem ad ostium monumenri:

R. S e p u lta d o o S e n h o r, la c ra ra m o s e p u lc ro e mov e ­ ram a p e d ra para a p o rta d a s e p u ltu ra . # P u s e ra m s o ld a d o s para g u a rd á -la .

*

Ponentes milites, qni custodirent illud.

V.

Accedentes Príncipes Sacerdotum ad Pila/um, petie- Y D irig in d o -s e os S u m o s S a c e r d o te s a P ila to s , p e d i­ ra m -lh e |o c o rp o d e J e s u s ] runt illum:

*

Ponentes milites, qni custodirent illud.

* P u s e ra m s o ld a d o s p a ra g u a rd á -la .

Os manuscritos brasileiros, em geral, contêm música baseada nos textos prescritos nos cerimoniais portugueses. N e m sempre são utilizados todos os versículos da primeira parte e existem casos de omissão do estribilho Heu! Heu! Domine! e inclusão de três novos versículos, como em um manuscrito não catalogado do Arquivo da Orquestra Lira Sanjoancnse (São João del-Rei [MG]).5" Nesse caso, a omissão do Heu! Heu! Domine! indica que os tiples estariam cantando o estribilho por outros papéis, não sendo necessária sua inclusão em tal manuscrito (Quadro 4). N o Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo existe uma cópia de André da Silva Gomes com música para a Procissão do Enterro datada de 1778 (cód. ACMSP P 118 C -l),51 que utiliza, na primeira parte, três versículos tam bém não prescritos para essa cerimônia nas fontes portuguesas consultadas e incomuns nos manuscritos brasileiros até agora conhecidos (Quadro 5).

J(' B ernardo da C onceição. 0 eclesiástico instruido... Lisboa: Francisco L uis A m eno, 1788, p. 448-51. 50 O L S , sem cód. — “E n terro do S en h o r” . C ópia d c [H erm en eg ild o Josc d c Souza T rin d a ­ de?, São João d el-R ei, prim eira m etad e do século XIX]: partes d c S 1A1B '/S 2A2T 2B2. 51 A C M SP P 118 C -l — “Procissam /do E n terro do S cnhor./em S exta fr.a d c Paixam ./a 4 V ozes./D e A ndre da S.11G o m e s/l778.” C ópia d c A ndré da Silva G om es, [São Paido], 1778: parte dc A.

A

P ROCI SS ÃO

1)0

KNTKRKO

845

Q u a d ro 4. 1'exto la tin o d a P rim e ira P a rte du Pro cissão do k n te rro , c m m a n u sc rito não c atalo g a d o da O rq u e s tra L ira S a n jo a n e n s e (S ão Jo ão d e l-R e i [M G ]). V e rsícu lo s d a p rim e ira p a rte

'Ira d u ç ã o

a) PnpiUi facti sumas absqtte patre, rnater nos/m vidua.

a) k s ta m o s órfãos d e pai, nossa m ãe e stá viúva.

b) Cecidit carona capitis nus/ri, v/e nobis quia . peccavinius

b) A coroa caiu dc nossa cabeça, ai d c nós c|uc

c) Deferit gandium cordis, versus est in /nctiim chorus mister.

c) A cabou-se a alegria dc nosso coração, nosso coro

tlj Spiritus uris nostri, C/iristiis Dominas, capins est in peccatis nostri

d) h s p írito d c nossa vida, o S c n lio r C risto foi c o n d e ­

e) Qaoniod// sedei sola chitas plena popn/o: fada est q/iasi vidua domina gentil/m.

e) C o m o ficou solitária a c id a d e, a n te s re p le ta d c seu

p ccam os.

e stá cm luto.

n ad o a m orte torpíssim a.

povo: ficou com o viúva a q u e outrora foi a senhora d as nações.

fi 1ersa est in lac/uin cilhara mea et o/ganain meum in f) T o rn o u -se e m lu to m in h a citara e cm voz co m o v i­ votem flectiam.K da o m e u in stru m e n to . g) F.t convertam festhitates vestras in luctnm et omnia g) C o n v e rte re i vossas fe stiv id a d es em lu to e todos os cantica vestras in planctum. vossos c ân tico s em lam entos. b) F.t versa est viciaria in lacliini in die iHa omni papa/a.

h) T o rn o u -se a vitória cm luto, n a q u e le dia, para to d o o povo.

Q u a d ro 5. T e x to d a P rim e ira P a rte d a P ro cissão d o K n te rro d o A rquivo da C ú ria M e tro p o lita n a d c São P a u lo , c ó d . A C M S P P 118 C - l (c ó p ia d c 1778). V e rsícu lo s d a p rim e ira p a rte

T rad u ç ã o

Heu! Heu! Domine! Heu! Heu! Sahator nosler!

Ai! Ai! S en h o r! Ai! Ai! S alvador nosso!

a) Jerusalem, surge, et exue te vestibus jucunditatis: induere cinere et ci/icio.

a) L c v a n ta -tc , J e ru sa lé m , e deix a tu as v e ste s d c jú ­

Heu!...

A i!...

b) Quia in te occisns est Sahator Israel

b) Pois c m ti m o rreu o S alvador d c Israel.

bilo: c o b re -te d c cinza c d c cilício.

Heu!...

A i!...

c) Deduc quasi torrentem lacrínias per diem et noctem et non taceat pupilla ocu/i tui.

c) V ertam te u s olhos, dia c n o ite , to rre n te s d e lágri­

Heu!...

Ai!...

m as e não c essem d c chorar.

Existem diferenças tam bém na segunda parte da cerimônia. Alguns ma­ nuscritos possuem o texto ALstmatussumlcum descendentibus in lacum, tal como no Economicon Sacro (1693) de Leonardo de São José e no Manual da Semana Santa (1775) de Francisco de Jesus Maria Sarmento, enquanto outros apre­ sentam apenas o texto Sepulto Domino/Signatum est monumentum, extraído do segundo par de versículo e resposta destas mesmas obras, mas integralmente

52 Jean R ousseau (1644-após 1705) registrou um a variante desse texto, infelizm ente sem indicação de origem ou função: “C ythara mea versa est in luetum , ct organum m eum in voccm flecti u m ” . Cf. Jean R ousseau. 1'raitéde !n viole. Avcc une préface de François Lesure. G enebra: M in k o ff R eprint, 1975, p. 4.

846

1’ A U l . O

CASTAIJNA

cantado pelo coro. Não foram estudados, até o m omento, manuscritos brasi­ leiros que contenham , para a segunda parte da Procissão do Enterro, música cujo texto inicia-se com V. In pace factus est locus ejus R. Ethabitatio ejus in Sion, assim como descrito no Missale Bracharense (1558), no Thezouro de Ceremonias (1734) de João Cam peio de Macedo cm 0 Eclesiástico Instruído (1788) dc Ber­ nardo da Conceição. CANTO

DA

V K RÔ N I C A

Uma nova unidade funcional foi introduzida na Procissão do Enterro, talvez já no século XVI: consiste cm um canto monódico por uma pessoa (até o século XVIII um cantor masculino) que representa as lendas medievais da Verônica, costume que perdura até o presente em numerosas cidades brasileiras. No sé­ culo XVI já existia a exposição, durante a Procissão do Enterro, de um pano com a imagem de Jesus, denominado “Verônica de Cristo”, “Verônica do Se­ nhor” ou, simplesmente, “Verônica”. Foi Fernão Cardim, escrivão do padre visitador Cristóvão de Gouveia, da Companhia de Jesus, quem apresentou a primeira notícia conhecida dessa prática no Brasil, na Sexta-feira Santa celebra­ da no Colégio Jesuítico de Salvador em 30 de março dc 1584:'“’ “Tornando à Quaresma em nossa casa [na Bahia, em 21 de fevereiro de 1584], tivemos um devoto e rico sepulcro. A Paixão foi tão bem devota, que concorreu toda a terra; os ofícios divinos se fizeram em casa com d evo­ ção. Sexta-feira Santa [30 de março], ao desencerrar do Senhor, certos mancebos [indígenas] vieram à nossa igreja; traziam uma Verônica de Cris­ to mui devota, em pano de linho pintado, dous deles a tinham e ju n ta m e n ­ te com outros dous se disciplinavam, fazendo seus trocados e mudanças. E como a dança se fazia ao som de cruéis açoutes, mostrando a Verônica e n ­ sangüentada, não havia quem tivesse as lágrimas com tal espetáculo, pelo que foi notável a devoção que houve na gente.” Existiram pelo menos duas lendas em torno da palavra Verônica, encontra­ das em evangelhos apócrifos que não foram mantidos na Bíblia:54 1) uma

•vl F ernão C ardim . Tratados da terra egente do Brasil. Introduções e notas de R odolpho G arcia, B aptista C aetan o c C apistrano dc A breu. C oleção R econquista do Brasil, nova série, vol. 13. Belo H orizontc-São Paulo: Itatiaia-E d u sp , 1980. Doc. 3: “ Inform ação da m issão do P. C hristovão G ou v êa às partes do Brasil ou narrativa ep isto lar d c um a viagem c m issão jesu ítica”, p. 159. 54 Cf. 1) Basílio Rõwcr. Diccionario liturgko p ara o uso do Revmo. Clero e dos fieis. P ctrópolis: T ypographia das “Vozes” , 1928, p. 180; 2) Josc A lberto L. d c C astro P into. “D icionário prático d e cu ltu ra católica, bíblica e geral” , in: Bíblia sagrada. T radução do P adre A ntônio P ereira do N ascim en to . Rio d e Janeiro: Barsa, 1971, p. 278.

A

I’ K O C ; I S S Ã O

1)0

K N T K U R O

847

m ulher chamada Verônica teria pintado ou mandado pintar um retrato de Jesus em um pano; 2) no caminho para a crucifixão, Verônica teria oferecido seu véu para que Jesus enxugasse o rosto, nele sendo impressa sua imagem, véu esse levado para Roma no ano 700 e depositado junto das relíquias de São Pedro. Ao que tudo indica, no entanto, o nome Verônica resultou da ex­ pressão grega vera eikon — verdadeira imagem — que designava não exata­ m ente uma pessoa, mas a pintura ou representação do rosto de Jesus. A unidade funcional em questão surgiu a partir dessas lendas, mas com dois significados distintos para a palavra Verônica: 1) a imagem de Jesus; 2) a m ulher que, de alguma forma, elaborou ou obteve a imagem de Jesus. No século XVIII, essa melodia era cantada por um homem, já que ainda existiam restrições em relação à participação de mulheres na música religiosa.35 O mais antigo registro dessa prática portuguesa, até agora localizado, está no Manual da Semana Santa (1775), de Francisco de Jesus Maria Sarmento, no qual a palavra Verônica designa a imagem de Jesus e a melodia é prescrita a um cantor masculino. O texto sugere que o Canto da Verônica seria inserido na primeira parte da cerimônia (a procissão propriamente dita), em meio ao canto alternado dos tiples e do coro, sendo proferido logo após oHeu!Heu!Domine!:*' “Canta-se com voz terna o que vem a dizer: Ai! Ai! Senhor! Ai!Salvador nosso! E o que mostra a Verônica do Senhor, diz assim: 0 vós todos, que passais pelo caminho desta vida, vede e reparai, se há dor semelhante à minha dor?” O Canto da Verônica — desprovido de qualquer acompanhamento instru­ mental — utiliza o texto latino “O vos omnes, qui transitis per viam, attendite et v idete si est dolor similis sicut dolor m eus” (acima traduzido por Fran­ cisco de Jesus Maria Sarmento) e as melodias até hoje conhecidas são quase sem pre derivadas da estética operística italiana dos séculos XVIII e XIX. O registro mais antigo até o m omento encontrado do Canto da Verônica, no Brasil, está no Livro de Despesas (1768-1819) da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Vila do Príncipe do Serro do Frio (MG).17 Trata-se do paga­ m ento a um cantor masculino em 15 de maio de 1779, no qual a palavra Verônica designa o personagem e não o retrato de Jesus:18



Santo A m brósio, no scculo IV, d eterm inou que “M ulicrcs Apostolus in Ecclesia taccrc ju b e t” . C f. Sac. F lo ren tiu s Rom ita. JusMusica- l.iturgica:dissertatio historico-iuridica. Roma: E dizioni L iturgichc, 1947, p. 23. 5,1 Francisco de Jesu s M aria Sarm ento. Manual da Semana Santa..., op. cit., p. 208. 57 f. 35v. 5S F rancisco C u rt L ange. História da música na Capitania Geral de Minas Gerais: Vila do Príncipe do S en o do Frio e A rraial do Tejuco. H istória da M úsica na C apitania Geral das Minas

848

PAULO

C A S l ' A ( . ' NA

“A Vicente L uno (Luvo) dc M endonça de cantar o contralto nas dom in­ gas e Semana Santa e fazer o papel de Verônica na Procissão do Enterro do Senhor.” ORKiliM

DOS

TlíXTOS

Os textos da Procissão do Enterro, descritos nos cerimoniais portugueses c até agora conhecidos em manuscritos musicais brasileiros, originaram-se cm fragmentos do Antigo T estam ento e dos Ofícios de Trevas do Tríduo Pascal. Na primeira parte foram baseados exclusivamente em versículos do Antigo Testam ento, principalmente das Lamentações de Jeremias (com pequenas alte­ rações no texto) e apresentados como lamentações do povo cristão pela mor­ te de Jesus. De acordo com Solange Corbin, o estríbilho Heu! Heu! Domine! é uma es­ pécie d e planetus medieval, que a autora acreditava não ser de origem bíblica, mas a expressão Heu! Heu! Heu! Domine Deus! pode ser encontrada no I.ivro do Profeta Jeremias (4,10 e 32,17) e no Livro do Profeta Ezer/uie/(9,8), e nquanto o Salvator noster! pode ter sido extraído de várias passagem bíblicas, entre elas da Epístola de São Paulo a Tito, 1,4. Corbin acrescenta que os três versícu­ los seguintes foram extraídos das Lamentações de Jeremias (versículo 3 — Pupilli facti summus\ versículo 15 — Defeeit gaudiunr, versículo 16 — Ceridit corona) e um deles pode ter sido baseado tam bém em um trecho do Livro da Sabedoria (2,20), que se refere aos ímpios: Morte turpissima eondemnemus eum: erit enim ei visitatio ex sermonibus i/liu sf' O terceiro versículo (Pupi/li. ..), o úni­ co desta parte tam bém utilizado nos livros litúrgicos tridentinos (terceira L i­ ção das Matinas do Sábado Santo), deu origem a duas versões na Procissão do Enterro, uma delas com a expressão original “matres nostras quasi vidua;” (nossas mães estão como viúvas) e outra como nos cerimoniais portugueses: “m ater nostra vidua” (nossa mãe está viúva). As indicações de origem podem ser observadas no Quadro 6. A versão atípica do manuscrito não catalogado da Orquestra Lira Sanjoanense possui acréscimos originários das Lamentações de Jeremias, mas tam bém do Livro de Amós e do Segundo Livro de Samuel. Ressalte-se, ainda, que os versículos c e d á o manuscrito sanjoanense não possuem as alterações verifi­ cadas nos textos descritos pelos cerimoniais portugueses e nos demais m a­ nuscritos brasileiros consultados, utilizando o texto latino tal como figura no Antigo T estam ento (Quadro 7).

G erais, vol. 8. Belo H orizonte: C onselho E stadual dc C u ltu ra dc M inas G erais [Im prensa Oficial], 1983 [na ficha catalográfica: 19821, P- 39. ■ w “C ond en em o -lo [o ím pio] a um a m orte torpíssim a, pois será considerado seg u n d o o seu discurso.”

A

P R OC I S S Ã O

no

K N T KU R O

849

Q u a d ro 6. O rig e m b íb lic a d o s te x to s d a P rim e ira P a rte da Procissão do K n te rro a p re se n ta d o s pelos cerim o n ia is p o rtu g u e s e s . V e rsícu lo s tia p rim e ira p a rte

O rig e m bíblica

Heu! Heu! Domine!...

Livro do Profeta Jeremias, 4,10 e 32,17, ou Livro do Profeta Ezer/uiel, 9.8 + Epístola de São Paulo a li/o. 1,4

a) PupHli facti sumus...

Lamenta(ões de Jeremias (oração d o P ro feta Jerem ias). 5.3 (c a n ta d o na terceira L ição das Matinas do Sába do Santo)

b) Cecidit corona...

1.amentações áe Jeremias, 5,16

() Spiritus cordis nus/ri...

1.amentações deJeremias, 4,20 + Livro da Sabedoria. 2.20

d) Deferir «audium...

Lamentações de Jeremias. 5,15

Q u a d ro 7. O rig e m b íb lic a d o s v e rs íc u lo s d a P rim e ira P a rte da Procissão d o F .nterro da O rq u e stra L ira S a n jo a n e n s e . V e rsícu lo s d a p rim e ira p a rte

O rig e m bíblica

a) PupHlifacti sumus...

Lamentações de Jeremias (oração do P ro fe ta Jerem ias), 5,3 (c a n ta d o na te rc e ira L ição das Matinas do Sába­ do Santo)

b) Cerídit corona...

Lamentações de Jeremias, 5,16

e) Deferirgattdium...

Lamentações de Jeremias, 5,15 (te x to original)

d) Spiritus oris nos/ri...

Lamentações de Jeremias, 4,20 (te x to original)

e) Quomodo sedet...

Lamentações de Jeremias, 1,1

f) Versa est in luetum...

Lamentações de Jeremias, 5,15

g) Et convertam...

Livro de /I mós, 8,10

h) Et versa est victoria...

11 Livro de Samuel, 19,2

Q uanto à versão tam bém atípica do manuscrito do Arquivo da Cúria M e­ tropolitana de São Paulo (ACMSP P 118), os versículos posteriores ao estribi­ lho Heu! Heu! Domine! foram baseados no segundo Responsório das Matinas do Sábado Santo, como se pode observar no Quadro 8. Q u a d ro 8. O rig e m litú rg ic a d o s v e rsíc u lo s da P rim e ira P a rte üa P rocissão d o F .m crro d c A C M S P P 118. ____________________________________ ____________

V e rsícu lo s d a p rim e ira p a rte

O rig e m litú rg ica

a) Jerusalem, su/ge.. .

S e g u n d o R e s p o n s ó rio d a s M atin as d o S á b a d o S a n to

— p rim eira p a rte

d a re s p o sta

b) Quin in te occisus est...

S e g u n d o R e s p o n s ó rio d a s M atin as d o S á b a d o S a n to — s e g u n d a p arte

c) Deduc qttasi tormitem...

S e g u n d o R e s p o n s ó rio d a s M atin as d o S á b a d o S a n to

d a re s p o sta v ersículo

O texto do Canto da Verônica, por sua vez, é de origem bíblica e litúrgica, sendo cantado em quatro ocasiões, nos Ofícios de Trevas do Tríduo Pascal (Quadro 9).

850

1’AIU.O C A.ST ac; N A

Q u a d ro 9. O rig e m b íb lic a e litú rg ic a d o te x to d o C a n to d a V erônica. T e x to d o C a n to d a V e rô n ic a

O rig e m b íb lic a c litú rg ica

O vos omnes...

§ ljimeiita(ões de Jeremias, 1.12 § T e rc e ira lição d a s M a tin a s d c Q u in ta -fe ir a S a n ta § V erso d o n o n o R c s p o n s ó rio d a s M a tin a s d e S e x ta -fe ira S a n ta § Q u in to R c s p o n s ó rio d a s M a tin a s d o S á b a d o S a n to § A n tífo n a d o S a lm o 150, d a s L a n d e s d o S á b a d o S a n to

O fenôm eno mais interessante, entretanto, ocorre em relação aos textos da segunda parte. Nas duas versões apresentadas pelos cerimoniais portugue­ ses, os textos correspondem a fragmentos litúrgicos dos Ofícios de Trevas do Tríduo Pascal. Em bora alguns deles sejam cantados em várias Horas C anôni­ cas do Tríduo Pascal, todos os textos, sem exceção, encontram-se nas M ati­ nas do Sábado Santo, como podemos observar nos Quadros 10 e 11. Com o a Procissão do Enterro é uma cerimônia específica da Sexta-feira Santa e, no período anterior a 1955, cra precedida pelas Matinas (e tam bém pelas Laudes) do Sábado Santo, os textos foram baseados cm passagens des­ sa Hora Canônica. Tal costume já cra indicado no § 119 das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707): “E na Sé Metropolitana, depois do Ofício de Sexta-feira Santa, como é costume, se fará a Procissão do E nter­ ro” / ’" Após o rem anejamento das Horas Canônicas para suas posições origi­ nais, pelo Papa Pio XII (Decreto da Sagrada Congregação dos Ritos de 16 de novembro de 1955), gerando o que hoje se conhece como Semana Santa Res­ taurada,61 as Matinas do Sábado Santo passaram a ser cantadas no próprio Sábado. A segunda parte da Procissão do Enterro contém, então, uma espécie de resumo das idéias mais expressivas do Ofício que acabara de ser cantado, adaptado a uma cerimônia de maior apelo emocional e participação popular. E foi o próprio interesse popular por essa cerimônia que provocou sua perm a­ nência até o presente, e nquanto os Ofícios de Trevas, com raras exceções, estão praticam ente extintos no Brasil.

wl Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, op. cit., Livro Prim eiro, T ítu lo X X X III, n." 119, p. 52-3. M as n em sem p re a Procissão do E n terro era celeb rad a após as Matinas e Laudes (ou Oficio de Trevas) do Sábado Santo. D ois séculos mais tarde, em São Paulo, a Procissão do E n terro cra prescrita an tes do Ofício de Trevas, d c acordo com B en cd icto de F reitas ( “Actos diocesanos, Aviso n." 16: A Sem ana S anta” , in: Boletim h.cclesiastico: otgani officia!da Diocese de S. Paulo, São Paulo, J ( 10): 186-7, abr. 1908): “Sexta-feira Santa — 17 de abril. [...]. Às 6 horas da tarde: Procissão do E n terro do Senhor, Serm ão da S o led ad e pelo R evm o. Sr. C ônego Dr. João E vangelista Pereira Barros. E m seguida O fício d c T rev as” . José A lberto L. d c C astro Pinto. “D icionário prático dc cu ltu ra católica, bíblica c geral” , in: Bíblia sagrada. T radução do P adre A ntônio Pereira d c F igueiredo. N ova edição, publicada com a aprovação d e Sua E m in ên cia C ardeal D . Jaim e d c Barros C âm ara. [Rio d e Janeiro]: E dição Barsa, 1971, p. 250, v e rb ete “S em ana S anta” .

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Q u a d ro 10. O rig e m litú rg ica do s v e rsícu lo s da S e g u n d a P a rte (versão 1) da P rocissão d o E n te rro , a p re ­ s e n ta d o s p e lo s c e rim o n ia is p o rtu g u e s e s . V e rsícu lo s d a s e g u n d a p a rte

O rig e m litú rg ica

/,Estimalus snni/cum descendentibus. .. § S alm o 87 (v e rsíc u lo 4) d o te rc e iro N o tu rn o das M atin a s d e S ex tafeira e do S á b a d o S a n to § A n tífo n a d o S alm o 87 d o te rc e iro N o tu rn o das M atin as d o S á b a d o S a n to § O ita v o R csp o n só rio das M atin as d o S á b a d o S a n to

Sepulto Do/iiiiio/signatiiin est...

§ N o n o R csp o n só rio das M atin as d o S á b a d o S a n to

In pare faetm est/locus ejns

§ A n tífo n a d o S alm o 75 d o te rc e iro N o tu rn o das M atin a s d o S á b a d o S a n to § S a lm o 75 (v e rsíc u lo Z) d o te rc e iro N o tu rn o d as M atin as d o S á b a d o S a n to § V ersículo e R esp o sta final d o te rc e iro N o tu rn o d as M atin as d o S á ­ b a d o S a n to

In pare in idipsuiii/donniaiii...

§ A n tífo n a d o S alm o 4 d o p rim eiro N o tu rn o d as M atin a s d o S á b a d o S a n to § S alm o 4 (v e rsíc u lo 9) d o p rim e iro N o tu rn o das M atin as d o S á b a d o S a n to § V ersículo e R e s p o s ta final d o p rim e iro N o tu rn o d as M a tin a s do S á b a d o S a n to

Caiv mealrequiescet in spe

§ A n tífo n a d o S alm o 15 d o p rim e iro N o tu rn o das M atin a s d o S á b a d o S a n to § S a lm o 15 (v e rsíc u lo 9) d o p rim eiro N o tu rn o d as M atin as d o S á b a ­ d o S a n to § V ersículo final das L a u d e s d o S á b a d o S a n to

Q u a d ro 11. O rig e m litú rg ic a d o s v e rsícu lo s d a S e g u n d a P a rte (versão s e n ta d o s p e lo s c e rim o n ia is p o rtu g u e s e s . V e rsícu lo s d a s e g u n d a p a rte

2) da P ro cissão d o E n te rro , a p re ­

O rig e m litú rg ica

In pace faclus est lortis ejuslet habitatio § A n tífo n a d o S alm o 75 d o te rc e iro N o tu rn o das M atin as d o S á b a d o S a n to § S alm o 75 (v e rsíc u lo 2) d o te rc e iro N o tu rn o d as M a tin a s d o S á b a ­ d o S a n to § V ersículo e R e sp o sta final d o te rc e iro N o tu rn o d as M atin as d o S á b a d o S a n to

Caro mealrequiescet in spe

§ A n tífo n a d o S alm o 15 d o p rim e iro N o tu rn o d as M a tin a s d o S á b a ­ d o S a n to § S a lm o 15 (v e rsíc u lo 9) d o p rim e iro N o tu rn o d a s M atin as d o S á b a ­ d o S a n to § V ersícu lo final d a s L a u d e s d o S á b a d o S a n to

In pace in idipsum / dormiam...

§ A n tífo n a d o S a lm o 4 d o p rim e iro N o tu rn o d as M a tin a s d o S á b a d o S a n to § S a lm o 4 (v e rsíc u lo 9) d o p rim e iro N o tu rn o d as M a tin a s d o S á b a ­ d o S a n to § V ersícu lo e R e s p o s ta final d o p rim e iro N o tu rn o d a s M atin as do S á b a d o S a n to

Sepulto Domino...IPonentes mi/ites ... Accedentes príncipes.. .IPonentes mi/ites...

§ N o n o R c s p o n s ó rio d as M a tin a s d o S á b a d o S a n to (c o m p le to )

Pela não-consideração dessa cerimônia pré-tridentina, a composição para a segunda parte da Procissão do Enterro, encontrada nos Livros de música po­ lifônica n." 3 e n.° 4 do Paço Ducal de Vila Viçosa (Portugal), acabou sendo

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catalogada por M anuel Joaquim*- e, posteriormente, por José Augusto Ale­ g r i a , c o m o oitavo Responsório das Matinas do Sábado Santo. Baseando-se nas mesmas informações, Régis D uprat e Carlos Alberto Balthazar tam bém atribuíram a mesma composição, encontrada no manuscrito da Coleção Curt Lange, às Matinas do Sábado Santo.64 A seqüência específica dos textos de s­ ses manuscritos, no entanto, jamais ocorre como tal nessa Hora Canônica, além de estarem ausentes, em todos, os cinco versículos que, na Procissão do Enterro, são cantados pelo celebrante (JEstimatus sum, Sepulto Domino, Inpace factus est, In pace in idipsum e Caro mea). A presença dc fragmentos musicais anônimos para os textos Dormiam et requiescam, Locus ejus e Requiescet in spe (Exemplo 8), logo após o ALstimatus sum/cum descendeutibus, no Livro de música polifônica n." 4 do Paço Ducal de Vila Viçosa (f. 58v), não catalogados por M anuel Joaquim ou por José Augus­ to Alegria, som ente corrobora a possibilidade de tratar-se esta de uma Procis­ são do Enterro c não do oitavo Responsório das Matinas do Sábado Santo. E x e m p lo 8. A n ô n im o . F r a g m e n t o s n ã o c a ta lo g a d o s d a P ro cissão d o E n te r ro , d o L iv ro d e m ú s ic a p o lifô n ic a n." 4 d o P a ç o D u c a l d e V ila V içosa, P o rtu g a l (f. 58v). P a rte s p re s e rv a d a s d e “ Cnntus. (c la v e d c sol na s e g u n d a lin h a ) c “Tenor' (e la v e d c d ó n a tc rc c ira lin h a ). A ltu ra s o rig in a is tra n s p o s ta s u m a q u a rta a b aix o , e m v irtu d e d a u tiliz a ç ã o d e e la v e s altas.

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o que implica o risco de os relatos originais terem sido adulterados pela mão do compilador; e, finalmente, pelo risco de representar não mais que um relato imaginário, 011 carregado de elem entos simbólicos, não expressando a realidade vivida na época em que se passam os relatos. Assim, antes de entrarmos no âmago da questão, cremos ser conveniente proceder a uma pequena crítica da documentação a ser utilizada. Desse modo, antes de mais nada, cabe dizer que por muito tem po a História Trágico-Marítinia, como defende José Saramago, foi “um livro m enosprezado q u e ” sofreu “tam bém daquela espécie de maldição mansa que desceu sobre as Crônicas de Fernão Lopes, sobre a Peregrinação, [e] sobre tantas outras obras que va­ mos encontrar nas esquinas da cultura”2, com sua posição diante da historio­ grafia “oscilando entre o interesse e o desdém , entre a vida plena e o e s q u e ­ cim ento” ', isto porque, apesar de seu conteúdo “infalível”, por ser uma “lei­ tura verdadeira... inquieta, talvez demolidora de convicções habituais e de idéias feitas..., representa a face oxidada do doirado medalhão da descoberta e da conquista”4, relatando fatos da “vida quotidiana” que por muitos sécu­ los se tentou ocultar em prol do “triunfalismo de Os Lusíadas'""'. Não obstante, uma crítica à utilização de qualquer edição da História Trágico-Marítima, escolhida aleatoriamente, justam ente devido a pequenas alte­ rações no texto original de Bernardo Gomes de Brito de edição para edição, estaria coberta de razão. Exatam ente por este motivo, optamos por utilizar fac-símile da edição original de 1735/36 editada pela Afrodite em 1971, elimi­ nando o risco de fazer uso de uma fonte corrompida pela necessidade merca­ dológica do período em que cada reedição teve vez. Q uanto ao fato de m esmo a edição original tratar-se de uma compilação de relatos de naufrágios do século XVI e XVII, levada a cabo no século XVIII, e que portanto poderia ter sido alterada pela mão do compilador, Giulia Lanciani estudou esta hipótese. Localizou vários dos originais que serviram de base a Bernardo Gomes de Brito espalhados pelos arquivos portugueses, com ­ parando estes à compilação de Brito, chegando à conclusão de que os textos originais sofreram algumas “alterações e diluições tex tu a is... no limiar da reescrita”6. Contudo, estas alterações se deram apenas no sentido de hom o­ geneizar o “m odelo narrativo” a fim de criar uma unidade e dar “sentido” 7 à narração, ordenando os fatos muitas vezes narrados de forma confusa no rela­ to original, principalmente se descritos por um indivíduo que participou dos

2 Josc Saram ago. “A m orte fam iliar” , in: Brito. O p. cit., volum e 2, p. C III. •’ Ib idem . 4 Ib id em , p. CIV. 5 Ib id em . h G iulia L anciani. Sucessos e naufrágios cias naus portuguesas. Lisboa: C am inho, 1997, p. 9. 7 Ib id em , p. 85.

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fatos. Portanto, seria infundada uma eventual desqualificação da História Trágico-Marítima somente por se tratar de uma compilação. Finalm ente, uma critica à veracidade dos fatos descritos poderia questio­ nar qual parcela do relato pertence à realidade vivida e qual esta inserida no imaginário da época, sobretudo porque alguns dos textos compilados foram escritos por indivíduos que não participaram dos fatos, mas que somente co­ letaram a narrativa de terceiros, estes sim supostamente envolvidos com os fatos descritos. Na opinião de Maria Lúcia Lepecki é “óbvio que o caracter da narrativa é dado predom inantemente pelo fundo histórico”, neste sentido o imaginário e “a presença do literário (no sentido de criado) decorre de uma forma de desvio, entendido o termo como a escolha de um caminho que foge ao depoim ento frio para enriquecer (pela linguagem, pela imagística ou pela vitalidade das personagens) um acontecimento real, tornando-o, em certa m edida, supra-histórico”s ; ou nas palavras de Giulia Lanciani, em meio ao imaginário persiste o “arquétipo”9. Assim, o imaginário, presente nos relatos compilados na História TrágicoM arítim a, mesclado aos fatos realmente vividos não teria tido outro papel que o de exercer, “por um lado, a dramática autenticidade dos respectivos discursos, por outro, uma indisfarçável sensacionalidade com que os mesmos eram postos a circular ao alcance do público leitor” da época, não deixando de ser “extrem am ente autênticos” 10 apenas por seguirem o estilo do período em que foram escritos. N a verdade, o universo mental dos marinheiros ainda hoje é repleto de mitos e crenças de toda ordem. O imaginário é por excelência figura viva no m undo do além-mar hoje como o era há centenas de anos. No século XVI e XVII, em se tratando do mundo ibérico, em meio à dicotomia cristã paraíso/ inferno, b o m /m au11, devemos admitir, assim como o imaginário e a realidade se fundiam, o sagrado e o profano muitas vezes se confundiam. Em 1557, por exemplo, pouco antes de partir do Reino para a índia, sendo dia do “bemaventurado S. Frei Pêro Gonçalves”, santo de “devoção e veneração” dos “hom ens do m ar” , foi organizado a bordo da nau Santa Maria da Barca um grande festejo em homenagem ao Santo, por ser ele considerado como “ad­ vogado” dos marinheiros “nas tormentas do mar, que crêem de todo seu co­ ração q u e . .. exaltações, que nos tempos fortuitos e tormentosos aparecem

" M aria L úcia L ep eck i. “D a docum entação c da criação’ , in: Brito. Op. cit., volum e 2, p. C X I. 9 L anciani. O p. cit., p. 153. 10 F ern an d o L uso Soares. “C ontex to verbal e contexto de situação na história trágico-marítim a” , in: Brito. O p. cit., volum e 2, p. XCVII. 11 L aura dc M ello e Souza. Inferno Atlântico: demonolopja e colonização (séculos XV-XVIII). São Paulo: C om panhia das L etras, 1993.

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sobre os mastros ou em outras partes das naus, são o Santo que os vem visitar e consolar” 12. Q uando o mau tem po assolava a embarcação, era a São Frei Pêro Gonçal­ ves que rogavam os mareantes, “e tanto que acertavam dc v e r .. . exaltação” acudiam “ao convés a o salvar com grandes gritos, dizendo: Salva, salva, oh Corpo Santo” ; afirmando os marinheiros, por meio da interpretação de sinais no céu, “que quando aparece nas partes altas e são duas, três, 011 mais exalta­ ções, que é sinal que lhes dá bonança: mas se aparece uma só, e pelas partes baixas, qu e denuncia naufrágio” u ; estando nestas ocasiões “tão crentes c firm e s... que quando aquelas exaltações aparecem sobre os mastaréus, so­ bem os marinheiros acima, e afirmam que acham pingos de cera verde: mas eles não trazem, nem os m ostram ... e se os religiosos que vêm nas mesmas naus, lhes querem ir à mão, dando-lhes razões para lhes mostrar que aquilo são exaltações, e declaram as causas naturais por que aparecem, não falta mais que tomarem as armas, e levantarem-se contra quem lhes contradiz aque­ la sua fé, que por tal o tê m ” 14, tamanha sua devoção ao Santo. Fica patente, assim, de forma clara, o papel do imaginário no relato dos naufrágios, uma vez que pouco importa se as exaltações eram verdadeiras 011 não, mas sim se acreditava-se serem elas reais, uma vez que para o homem, por sua própria natureza, o real é aquilo que se acredita real. D e qualquer modo, mesmo sob o risco de perder a monção e “não poder fazer viagem” , terminou o capitão da nau Santa Maria da Barca atrasando a partida da embarcação, m andando vir de “Alfama” 15 diversos gêneros a fim de festejar o Santo e pedir sua proteção, justificando sua decisão com estas palavras: “A festa deste Santo se faz e celebra nas oitavas da Páscoa; e aquele dia é o de maior triunfo de todos os pescadores, que todos os outros, e em que eles fazem maiores gastos e despesas, que em todos os mais. Esta p e q uena luz, que estes mareantes portugueses veneram em nom e de S. Frei Pêro Gonçalves; e os estrangeiros no de Santo Anselmo, é tão antiga veneração, que já em tem po dos Gregos se celebrava. Porque, segundo muitos autores seus contam, quando aqueles famosos Argonautas iam na dem anda do Velocino de Ouro, em uma grande tormenta, que tiveram no mar, apareceu a q u e ­ la luz sobre a cabeça de Castor e Pólux, e logo lhes cessou a tormenta: o que m oveu aos hom ens a terem estes dous irmãos em tanta veneração, que os contaram no núm ero dos deuses. E assim Plínio no segundo livro da História Natural, falando nesta luz, afirma que se via muitas vezes nas pontas das 12 “ R elação do naufragio da nao Santa Maria da Barca dc q u e era C apitão D. L uis F e rn a n d e s d c Vasconcellos. A qual se p erd eo vindo da ín d ia para Portugal no anno de 1559” , in: Brito. O p. cit., volum e 1, p. 252. 13 Ibidem . 14 Ib id em , p. 252-3. 15 Ib id em , p. 252.

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lanças dos soldados em os exércitos, e que o mesmo aparecia em naus, e lhe chamaram Stella Castoris" .lh A comemoração de São l’1rei Pêro Gonçalves, é portanto, um excelente exem plo da união do sagrado ao profano no mundo dos mareantes ibéricos. À época, evocar a autoridade dos textos gregos vinha ao encontro de necessida­ de de justificar práticas pagãs, convertidas pelo cristianismo em ritos de de­ voção a santos cristãos, de existência real duvidosa, que mais tarde a própria Igreja se encarregou de combater;17 ou seja, a evocação da autoridade dos gregos nada mais era do que a tentativa de sustentação, por meio de argu­ m ento de autoridade, de um rito visto pela Igreja como profano, travestido em devoção a um santo cristão. Não se tratava, portanto, de uma manifesta­ ção cultural ou de uma forma de sociabilidade, na verdade não passava de um tentativa de controle das forças da natureza. N o rude m undo dos marinheiros lusitanos, quando enfrentar uma tem ­ pestade poderia levar o navio a um inevitável naufrágio, ou a ausência de ventos poderia levá-los a perecer à míngua de mantimentos, então escassos em qualquer situação que fosse, controlar a natureza era essencial. Assim, a função de festejar os santos era a de buscar sua proteção contra o mau tempo e as intem péries do dia-a-dia no mar, e não solidarizar-se com os companhei­ ros, até m esm o porque não havia o menor sentimento de solidariedade entre os hom ens do mar. Segundo u m cronista do século XVI, a maior parte dos marinheiros lusita­ nos possuíam um caráter duvidoso, eram “bárbaros, desumanos [e] incivis”, não guardando “respeito a pessoa alguma”, sendo, “em suma [...] verdadei­ ros diabos em carne, e em terra [...] anjos” .IS Para além do grande número de degredados e pessoas de baixa qualificação, uma vez que a função não exigia grandes conhecimentos técnicos, muitos homens embarcavam fugindo da justiça, de algum desafeto, ou à procura de um inimigo que havia fugido para a América; além disto, a Coroa portuguesa, dada a carência de marinheiros nas embarcações lusitanas, realizava periodicamente o recrutamento forçado de mendigos, indigentes e vadios a perambularem pelas cidades lusitanas. E m “Carta de D. Estêvão de Faro para el-rei em q u e . .. mandava pedir ao governador do Algarve marinheiros”, sem referência a data nem a ano, tratando-se provavelmente de correspondência emitida na segunda metade do século XVI ou início do XVII, D. Estêvão rogava ao Rei para “quebrar os

16 Ib id em , p. 253. 17 C arlos R oberto F igueiredo N ogueira. 0 nascimento da bruxaria: da identificação do inimigo à diabolização de seus agentes. São Paulo: Editora Im aginário, 1995. 1S Francisco C o n te n te D om ingues & Inácio G uerreiro. “A vida a bordo na Carreira da índia (século X V I)”, in: Revista da Universidade de Coimbra. Coim bra, Separata da Biblioteca C en tral da M arinha Portuguesa, s.d., p. 200-1.

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privilégios”, pois fazia-se sentir sensivelmente a falta de voluntários nos navios lusitanos. Segundo ele, “para satisfazer a todas as dificuldades” , o monarca deveria mandar o governador do Algarve ordenar um recrutam ento forçado, pois “sempre o governador achara vadios e desobrigados que m an d e ” 1'' para as naus portuguesas. E m terra, os portugueses de baixa extração social tinham fama dc não ter n e nhum “escrúpulo [em] matar um inimigo à traição” ,’" no mar, e em cir­ cunstâncias em que a violência era um fato corriqueiro, tudo leva a crer que esta situação era muito mais intensa. E m condições favoráveis, com tudo cor­ rendo bem, dada a má índole dos marinheiros embarcados nos navios portu­ gueses, o risco de motim era sempre constante. Não por acaso, o Almirante João Pereira Corte Real, em relatório apresentado a Filipe II da Espanha, à época em que Portugal se encontrava sob o domínio espanhol, datado em 12 de setem bro de 1619, recomendava que o capitão de cada embarcação tives­ se “dentro [de sua] camara duas peças d ’artilharia que nunca abaterá” , e que o meirinho tivesse o seu “catre de fronte” ao armário “das armas que d ’ali hade vigiar” .21 N o am biente conturbado das caravelas e naus lusitanas, quando os ho­ m ens tinham de disputar os alimentos entre si e com ratos e baratas, ser indi­ vidualista fazia a diferença entre a vida e a morte, individualismo que, asso­ ciado ao caráter duvidoso dos tripulantes, obrigava os oficiais a m anterem um a disciplina rígida a bordo, visando conter possíveis atos de violência com violência, não deixando espaço para nenhum tipo de sociabilização. Em 1615, por exemplo, o então “capitão João Pereira Corte Real” , tendo enfrentado um princípio de motim a bordo da embarcação que comandava, “por se le­ vantarem alguns homens da nau contra ele, enforcou dois e matou um às estocadas” , acabando assim com a desavença a bordo, “pelo que el-rei fez / o » 77 merce . Apesar da índole individualista dos tripulantes das embarcações lusitanas, por vezes foram feitas tentativas para utilizar os festejos dos santos a bordo como fator de sociabilização, não obstante tudo levar a crer que estas ten ta ­

19 A rquivo N acional da T orre do T om bo. Lisboa. N ú cleo A ntigo 877: C artas dos G o v ern ad o ­ res de África e de outras pessoas para cl-R ei (maço único), d o cu m en to n." 134. 20 “C arta escrita em L isboa pelo viajante C ésar de Saussurc, datada em 28 d c jan eiro dc 1730” , in: C astelo Branco C haves (tradução, prefácio e notas). O Portugal de D. João V visto p o r três forasteiros. Lisboa: Biblioteca N acional dc Lisboa, 1989, p. 272. 21 “R elatório do A lm irante João Pereira C ô rte Real, d atado cm 12 d c se te m b ro d c 1619, sobre as naus da C arreira da índia, ao Rei de E sp an h a” , in: C hristiano Barcellos. Constru­ ções de naus em Lisboa e Goa p ara a Carreira da Índia no começo do século XVII. Lisboa: S cparata da B iblioteca C en tral da M arinha P ortuguesa, 1888, p. 23. 22 “N avios da C arreira da ín d ia (1497-1653), códice anônim o da British L ibrary” , in: L u ís dc A lbu q u erq u e (dir.). Relações da Carreira da índia. Lisboa: Alfa, 1989, p. 66.

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tivas terminaram quase sempre em desastre. Em 1583, por exemplo, quando esteve embarcado na nau “S. Salvador” um “arcebispo”2, que tomou a ini­ ciativa dc sugerir ao capitão-mor da armada, composta por seis navios, que se comemorasse o “Domingo dc Pentccostes” pela revitalização do “costume antigo” de “escolher um imperador fingido c trocar todos os oficiais do navio, e realizar um banquete e festa” de “três ou quatro dias”,24 a tentativa de utilização da festa como fator sociabilizante acabou em tumulto. Depois que o “imperador” foi escolhido entre os marinheiros, “seguindo o costum e” , iniciada as solenidades, “no decorrer do banquete, em virtude de certas divergências c palavras, surgiu um grande tumulto, o qual chegou a tal ponto que as mesas foram viradas c atiradas ao chão, e mais de cem espadas desem bainhadas, sem respeito pelo capitão ou por ninguém, pois ele estava caído no chão e andavam por cima d e le ... ter-se-iam matado uns aos outros e dado cabo de todo o navio, se o arcebispo não tivesse saído do seu camarote para o meio da gente, gritando e gesticulando, com o que se começaram a acalmar” , e isto somente porque “ele logo lhes ordenou, sob pena de exco­ munhão, q u e trouxessem todas as espadas e punhais e outras armas para o seu camarote, o que foi feito de imediato, com que tudo se apaziguou de novo” ; ao que seguiu-se a prisão dos “primeiros e principais amotinados” , que “foram castigados e postos a ferros, pelo que todas as disputas termi­ naram ” .25 A disciplina a bordo das embarcações lusitanas impedia qualquer quebra da hierarquia ou da estratificação social entre os membros da tripulação, e assim qualquer tipo de tentativa de sociabilização. Conscientes desta reali­ dade, sendo os festejos dos santos a bordo inevitáveis, já que, como vimos, havia necessidade de extravasar as tensões a bordo e satisfazer o impulso hum ano de manipular as forças da natureza, os oficiais dos navios portugue­ ses procuravam utilizar as comemorações dos santos como forma de exercer um controle social sobre a tripulação. Envoltos em uma rotina diária maçante, repetitiva, marcada por privações e pela violência, para além dos jogos de azar, proibido pelos religiosos embar­ cados, mas tolerado pelos oficiais, que mesmo na nau onde mais se celebra­ vam os santos, “por mais pregação que haja, se não [podiam] desterrar total­ m en te o jogo”,26 a única distração oferecida aos marinheiros era o festejo dos

2,1 Jan H uygen van L inschotcn. Itinerário, viagem ou navegação (te Jan Huygen van Linschoten p a ra as índias Orientais ou portuguesas (1596). Edição preparada por Aries Pos e Rui M anuel L oureiro. Lisboa: C om issão N acional para as C om em orações dos D escobrim entos P o rtu ­ gueses, 1997, p .73. 24 L in sch o tcn . O p. cit., p. 77. 25 Ibidem . 26 “ R elação do naufragio da nao Santiago no anno de 1585 e itinerário da gente que delle se salvou. E scrita por M anoel G odinho C ardozo” , in: Brito. O p. cit., volum e 2, p. 438.

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FÁBI O

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santos. “Q uando sucedia festejar algum Santo, elegiam-lhe mordomo, que lhe fizesse a festa, e estes andavam com inveja de quem melhor o faria, in­ tentando capela de canto de órgão com harpa para as vésperas, e missa” .27 A honra, portanto, de poder participar das solenidades era muito disputada entre os hom ens do mar, ao que os oficiais se aproveitavam deste fato para premiar os marujos mais disciplinados. A fim de que a festa pudesse ser com ­ pleta ao tem po da “Missa e Pregação” , embarcava-se nos navios lusitanos um “altar” de tipo desmontável, cujos alguns exemplares chegaram até nossos dias, tal como um exibido no M useu da Marinha de Lisboa. A “im agem ” de um santo, como por exemplo “de São Lucas” 011 outro santo qualquer, ou então da “Virgem”,28 bem como “Reliquias q u e ” eram deitadas “no mar” 2() U T D G U K S A S

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de um marujo a representar “o diabo”, fez as vezes de “Inferno”.,4 Com o fim da representação teatral, algumas vezes, em caso de sinal de mau tempo, colo­ cava-se “na popa a Bandeira das Relíquias, que a Rainha” de Portugal fazia questão de torneccr a cada embarcação, “para recorrerem a elas os míseros navegantes cm suas fortunas, e extremas necessidades... como em todas as torm entas... e grandeza do oceano”; ao que em caso de necessidade, “de joe­ lhos. .. com muitas lágrimas e suspiros, pedindo a Nosso Senhor misericórdia, e perdão” pelos “pecados”,’1 se encomendavam os marinheiros iletrados. E m virtude das próprias características inerentes a este tipo de comemo­ ração, mais do que distrair, aliviar as tensões a bordo ou representar uma tentativa de controle sobre as avassaladoras forças da natureza, o festejo dos santos, in d e p e n d e n te m e n te de ter como fim último um propósito espiri­ tual, pretendia moralizar e doutrinar passageiros e tripulantes, e neste sen­ tido exercer um controle social sobre os embarcados. Assim, embora o feste­ jar o sagrado, m diante sua união com o universo mental dos mareantes, ou seja, com o profano, surtisse maior efeito quando em ocasiões de perigo imi­ nente, os oficiais dos navios lusitanos insistiam para que os religiosos embar­ cados, m esm o quando a situação se mostrava absolutamente “calma”, não deixassem “nunca” de praticar “os exercícios da devoção, e Ofícios Divi­ nos” , bem como não perdiam a oportunidade de festejar a bordo “os dias dos Santos” .36 Os oficiais das embarcações portuguesas procuraram utilizar as festas dos santos a fim de, respondendo ao anseio de busca de proteção divina aos pos­ síveis infortúnios no mar, direcionar a brutalidade contida pela rigidez da disciplina a bordo, brutalidade esta que crescia e acumulava à medida que contida, em proveito da organização e desenvolvimento do festejo dos san­ tos, utilizando a retórica dos cerimoniais a fim de dispersar a violência poten­ cial dos marinheiros. Por um lado, enquanto a liturgia da comemoração dos santos atendia a um anseio social dos mareantes de mais baixa extração, pois só no cerimonial religioso podia um simples grumete tornar-se uma figura de destaque a bor­ do da embarcação; por outro, a liturgia politizada servia de artifício a um con­ trole social mais rígido, disciplinando por um ritual repetitivo no qual tudo se invertia e continuava igual ao mesmo tempo, por meio de práticas festivas

14 “R elação do naufragio da nao Santiago no anno de 1585 e itinerário da gente que delle se salvou. Escrita por M anoel G odinho C ardozo”, in: Brito. Op. cit., volum e 2, p. 442. 35 “ R elação da viagem , c naufragio da nao S. Paulo que foy para a índia no anno dc 1560. D e q u e era C apitão Ruy de M ello da Cam era, M estre João Luis, e Piloto A ntonio Dias. Escrita por H e n riq u e Dias, Criado do S. D. Antonio Prior do C rato” , in: Brito. O p. cit., volum e 1, p. 337. 36 “R elação do naufragio da nao Santiago no anno de 1585 e itinerário da gente que delle se salvou. Escrita por M anoel G odinho C ardozo”, in: Brito. O p. cit., volum e 2, p. 440.

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informais, profanas, mescladas a um cerimonial pertencente à rede institu­ cional estabelecida. O m undo dos mareantes era muito diverso do existente em terra. No mar, a estratifícação social e a hierarquia precisavam ser mantidas a todo custo, visan­ do tornar funcional o dia-a-dia. No entanto, festejar os santos mais do que cum ­ prir um ritual sagrado, mesclado a práticas profanas, a crendices que remonta­ vam ao paganismo, invertia a ordem do estabelecido, distraía mas tam bém dis­ ciplinava e mantinha a ordem a bordo, atendendo ao anseio dos marujos de ter algo em que se pudessem apegar cm meio à sua rotina sacrificada. M odernam ente, quando um lisboeta vai à festa dos santos populares em Alfama, beber vinho e comcr sardinha na brasa, ele participa de um evento sociabilizante que marca uma manifestação cultural; mas, no século XVI c XVII, as festas dos santos a bordo das embarcações lusitanas nada mais eram do que, voltamos a insistir, um artifício criado visando manter um controle social sobre a tripulação, composta por assassinos, sentenciados e fugitivos da justiça. P O N T K

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A rq u iv o N a c io n a l d a T o rre d o T o m b o . L isb o a . N ú c le o A n tig o 877: C a rta s d o s G o v e rn a d o re s d c Á frica c d c o u tra s p e sso a s p ara c l-R c i (m a ç o ú n ic o ), d o c u m e n to n." 134. “ C a rta e sc rita c m L is b o a p e lo v ia ja n te C é s a r d e S a u s su rc , d a ta d a e m 28 d e ja n e iro d c 1 730", in: C a s te lo B ra n co C h a v e s (tra d u ç ã o , p re fá c io e n o ta s).

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L a n c ia n i, G iu lia .

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MORDO

O AS

K MBARCA Ç Õ KS

PORTUGUESAS

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□ □□ F á b i o P e s t a n a R a m o s é doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo(Fapesp) Publicações: “A História Trágico-Marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI”, in: Mary Del Priore (org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p. 19-54; “A superação de obstáculos puramente técnicos nas navegações portuguesas da Carreira da índia”, in: Revista Pós-História, vol. 7. Assis: Unesp, 1999, p. 135-56; “Os proble­ mas enfrentados no cotidiano das navegações portuguesas da Carreira da índia: fator de abandono gradual da rota das especiarias”, in: Revista de História, n." 137. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo , 2.“ sem. 1997, p. 75-94. R k s u m o . Inseridas no contexto do dia-a-dia a bordo das embarcações portuguesas do século XVI e XVII; em meio à fome e à carência de víveres, à superlotação e à falta de higiene, à violência e às tensões a bordo, bem como aos inúmeros obstáculos enfrentados ordinariamente; a rotina no mar muitas vezes era preenchida pela come­ moração do santo do dia. Assim, festejar os santos atendia tanto à necessidade dos que buscavam um consolo à aflição cotidiana, como preenchia a lacuna constituída pela transposição da estratificação social portuguesa nas embarcações lusitanas. No entanto, o que poderia servir de fator de sociabilização entre os homens embarcados teria sido utilizado como distração a fim de fazer o tempo passar mais rápido ou como meio de controle social em um ambiente conturbado e prestes a explodir na forma de um motim ou de uma insubordinação?

Fachada da igreja das Mercês. Rio de Janeiro, B.N.R.J. Coleção Alexandre Rodri­ gues Ferreira. Prospectos de cidades, vilas, povoações, edifícios, rios, cachoeiras, ser­ ras, etc. da Expedição Philosofica do Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá [s.l.], 1784-1792. Amazônia Felstnea: Antonio José Landi: itinerário artístico e científico de um arquiteto bolonhês na Amazônia do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 278. Foto André Ryoki.

CATOLICISMO DEVOCIONAL, FESTA E SOCIABILIDADE: O CULTO DA VIRGEM DE NAZARÉ NO PARÁ COLONIAL G e r a l d o

M a r t i r es

C o e l h o

c a t o l i c i s m o d e v o c i o n a l , desenvolvido ao abrigo do culto de santos protetores, foi uma das mais expressivas manifestações da religiosida­ de portuguesa na Idade Moderna, com uma particular inflexão: as manifesta­ ções da devoção mariana. Guardadas certas singularidades, a devoção aos san­ tos populares foi comum à Europa campesina e rural como um todo entre os séculos XV e XVIII, ainda que enfrentando refluxos, como os produzidos pela Reforma e pelo Concilio de Trento. Curiosamente, Reforma e ContraReforma reuniram-se numa mesma cruzada: o combate às formas populares de religião/religiosidade, pelo que ofendiam, com suas festas e sua profanida­ de, à doutrina, à hierarquia, à moral... O combate pela institucionalização das devoções populares, trazendo-as para o plano do doutrinário e do hierarquizado, marcou e tensionou as relações entre essas formas de leitura social eru­ dita da cultura das classes populares, e as linguagens dessa mesma cultura, m esm o respeitadas as suas recíprocas intercomunicações. O culto à Senhora de N a z a r é /V ir g e m de Nazaré em Portugal, no litoral centro do país, reconhecido com sua identidade historicamente constituída a partir do século XIV, e nesse sentido mais visível ainda no XV, não foge à genética das devoções populares do período na Europa como um todo. A devoção à Virgem de Nazaré, por isso mesmo, inscreve-se dentre as lingua­ gens da religiosidade/sociabilidade populares florescentes no ordenamento do ciclo agrícola lusitano, implicando a quebra da continuidade e das hierar­ quias do tem po social do trabalho. Como linguagem e representação da sua identidade, está indissociavelmente atrelado à festa, a cerimônia em si m es­

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ma da descontinuidade, da instauração do novo, da demarcação social que anuncia a dialética cultural desenvolvida cm torno do trabalho. O culto à Se­ nhora de Nazaré, naquele Portugal que apenas vcnccra o Quatrocentos, sus­ tentava-se sobre dois elem entos modclares, integrados e com plem cntares entre si: a peregrinação ao santuário, já em si mesma um percurso lúdico, c a festa, esta entendida como a devoção propriamente dita c as manifestações profanas das relações entre o devoto e a santa, entre o humano e o maravilhoso. Dispondo de um registro textual produzido na primeira m etade do século XVII, que recompõe o ciclo das romagens e o cotidiano da festa, as peregrina­ ções ao santuário da Virgem de Nazaré, na forma dos chamados círios, instau­ ravam e demarcavam o mais ou menos flexível calendário anual da festa.1 Oriundos de diversas comunidades rurais das imediações do santuário, a co­ meçar da vila da Pederneira, domínio geográfico do local, mas tam bém dc Lisboa e do litoral centro de Portugal, os círios, mesmo se vistos como deslo­ camento, como peregrinação, já anunciavam o espontâneo das m ovim enta­ ções rumo aos domínios da festa. Quase sempre a música, os fogos, a alegria marcavam as romagens. O santuário, com sua igreja e seu arraial, como nas devoções populares em geral no período, mostrava-se como um espaço onde os limites entre sagrado e profano eram tênues, se é q ue existiam, ou melhor, se eram considerados como evidências de qualquer forma de ordenam ento. N esse sentido, o arraial era o mesmo e o duplo da igreja, pois se no prim ei­ ro o sagrado comparecia, na forma das homenagens à Virgem, na segunda, o profano instalava-se com a sua música e o seu teatro. E m ambos os domínios, espaços lúdicos do santuário, pontificava, sobretudo, uma relação direta e n ­ tre o hum ano e o maravilhoso, sendo a festa o espaço da sociabilidade do devoto consigo m esmo e com a santa, desconhecidas outras mediações insti­ tucionalizadas. Em síntese, quer na igreja, quer no arraial instauravam-se a festa e o profano, absorvendo os limites mágicos do santuário, domínios que sintetizavam as práticas da sociabilidade mundana, marcadas pelos jogos, pela comida e pelo vinho, como tam bém pelas danças, pelo teatro e pelas masca­ radas. Findo o Quatrocentos, quando já avançara a expansão ultramarina portu­

1 M anuel dc Brito Alão. Antigüidade da sagrada imagem de Nossa S. de N azaré, grandezas de sen sítio, Casa e jurisdição Real, sita junto à Vi/a da Pederneira. A el Rei Nosso Senhor seu imediato Protetor. P or... Administrador que fo i da dita Casa, Abade de S. João de Campos, Bacharel em Cânones, e natural da dita Vila. E m L isboa, P edro C rasb ceck Im p rcsso r dcl Rei, 1628, c tam bém Prodigiosas histórias e miraculosos sucessos acontecidos na Casa de nossa Senhora de Nazaré. Parte segunda. Composta p o r ... Administrador quefo i da dita Casa, Abade de S. João de Campos, Bacharel em Cânones, natural da Vila da Pederneira. Ao excelentíssimo senhor D. Antô­ nio de Ataíde, Conde da Castanheira e Castro, Governador que fo i deste Reino de Portugal, do Conselho de Estado de sua Majestade, e Mordomo da rainha N. Senhora. L isboa, por L ourenço C raesb eeck im pressor dcl Rei, ano dc 1637.

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guesa pela Africa Ocidental e atingira as índias, o culto da Senhora de Naza­ ré, então florescente sobre o maior abismo atlântico da Europa (o mar de Nazaré, em Portugal), migrara para a religiosidade marítima. É conhecido que as devoções marítimas em Portugal foram expressivas, como aliás na Europa como um todo, com a devoção à Virgem Maria assumindo lugar capi­ tal na hagiografia náutica lusitana.2 Nos séculos XVI e XVII, estabelecidas e desenvolvidas as carreiras da índia e do Brasil, o culto à Senhora de Nazaré seria ponto de confluência de mesmas atitudes, entendidas como motivação devocional, para diferentes sujeitos sociais das devoções populares: campo­ neses e marinheiros. Um percurso pelo teatro de Gil Vicente e pela literatura popular dc viagens, no quinhentismo português, sem falar ainda da épica de Camões, revela que a religião institucional e a religiosidade popular singra­ ram, sob a proteção da Virgem Maria, os mares da afirmação ultramarina por­ tuguesa.' Uma visitação à literatura das maravilhas que a apologética do Padre Brito Alão,4 administrador do santuário da Senhora dc Nazaré, em Portugal, produ­ ziu na primeira m etade do século XVII, é modelar. Suas obras, responsáveis pela universalização do miraculário da Virgem de Nazaré em Portugal e no Brasil - o próprio autor refere-se ao Brasil — fixam-se no expressivo número de milagres que, nas águas do sempre M ar Tenebroso, produziram as intercessões salvíficas da Senhora. O santuário, por força de um diversificado número de ex-votos marítimos aí recolhidos e descritos pelo seu administrador, aca­ bava representando um inventário do grande temerário lusitano sobre um mar q u e tam bém era o das perdas mercantis e dos cadáveres da incúria. M es­ mo em Setecentos, já em parte mitigadas as agruras que, dois séculos antes, enformaram a história trágico-marítima portuguesa, cujos quadros, na cul­ tura/literatura popular marítima lusitana e já em Os Lusíadas, foram os da afirmação e da perdição do Império, mesmo naquele século XVIII de racio­ nalizações e afirmações laicas, a tradicional apologética lusitana ainda procla­ mava a Senhora de Nazaré como a estrela-guia dos nautas portugueses. A migração do culto da Senhora de Nazaré, de Portugal para o Grão-Pará, realizada possivelmente por colonos açorianos ou algarvios que chegaram ao norte do Brasil ao findar o Seiscentos, deu-se por meio da devoção marítima. As mais antigas memórias seiscentistas, como será visto mais à frente, locali­ zam o começo da devoção precisamente na Vila de Nossa Senhora de Nazaré

1 G om es Pedrosa. “As devoções m arinheiras através dos tem pos", in: Anais Ho Clube Militar N aval, Lisboa, O R T U G LI K S A

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tenedor conforme as leis do cartel que estava fixo em um dos postos” . Na Bahia, em 1716, tam bém se fixara um cartel com regras idênticas: o cavaleiro que desafiasse o m antenedor e o superasse em duas lanças ficaria com a ten ­ da e seria proclamado vencedor pelos juizes “singularmente primorosos nes­ ta airosa faculdade” .Ul Exercícios de fidalgos, as cavalhadas só teriam espaço para a ralé na função de auxiliar dos cavaleiros, os pajens. Estes vestiam-se à mourisca — como os m ulatinhos vistos nas festas setecentistas das Minas Gerais. Na São Paulo do século XVIII, os cavalos de reserva eram “conduzidos por índios, e todos custosam ente vestidos e emplumados” .17A participação nos festejos é desti­ nada som ente aos homens. Até mesmo os papéis femininos, durante encena­ ção de uma cavalhada, “eram desempenhados por hom ens”, fato que desper­ tou a atenção do viajante Pohl.18 Um documento precioso, no entanto, revela a presença de seis mulheres mascaradas nas cavalhadas de Cuiabá, em 1790., O R T 11 (; V !• S A

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A P li N D I C li O S M liL I IO K K S C A V A L K IR O S D E S T A T E R R A A to re s d as c a v a lh a d a s n a A m é ric a p o rtu g u e s a N om e

P o sição social

D u a r te C o rre ia Y a sq u c a n e s

e x -g o v e rn a d o r d o R io d e Ja n e iro m a n te n e d o r

A n tô n io O rtiz d e M e n d o n ç a

s a rg e n to -m o r

S a lv a d o r C o rre ia d e Sá e B e n e v id e s

g o v e rn a d o r d a c a p ita n ia d o R io d e J a n e iro

c a v a le iro

J o ã o M a u ríc io

p rín c ip e h o la n d ê s, ( 'o n d e d c N a ss a u

m a n te n e d o r d o s h o la n d e se s

P e d ro M a rin h o F a lc ã o

s e n h o r d e e n g e n h o e c a p itã o d c in fa n ta ria , s e g u n d o E'rci Jab o a tão; u m do s m e lh o re s cavaleiros d e s e u te m p o , c o n fo rm e B orges da F onseca

m a n te n e d o r dos p o rtu g u e s e s

P a u lo A n tô n io d c M as, E s c o lte to

?

c a v a le iro h o la n d ê s

F u n ç ã o na festa

R io d e J a n e iro 1641

m a n te n e d o r

P is to l

c a p itã o

A le x a n d r e B u c o c h t

c a p itã o

P e ln e s

c a p itã o

C h a r le s T o rn e i

s e c re tá rio d o C o n d e N a ssa u

T e o d ó s io D e s tr a d a

c a p itã o

A n d ré V a n d lo r

c a p itã o

D o c tri

c a p itã o

C a rlo s d c T o rlo n

c a p itã o

A b ra a m T a p c r

c a p itã o , “ C o ro n e l d o s B u rg u e -

J o ã o G in t

c a p ita o

M oxi

c a p itã o

L in d a n ã o

c a p itã o

H u ito n o v e n

a lfe re s

C ris tó fã o

c a m a re iro d o C o n d e N a ss a u

p a je m ?

E s tre m b o m

P a je m

p a je m ?

A n tô n io C av a c â n ci d e

s e n h o r d c e n g e n h o , c u n h a d o d e c a v a le iro

A lb u q u e r q u e

Jo ão G o m e s d c M elo ; c c ita d o p o r F re i Ja b o a tã o

J o ã o F e r n a n d e s V ieira A n tô n io B ez e rra J o ã o P a is C a b ral In á c io M e n d e s d c A z e v e d o P e d ro C o rre ia d a C u n h a M a n u e l G o n ç a lv e s D in is T om é L opes P e d ro C a rd ig o , o v e lh o J o ã o G o m e s d c M e lo

L o c a l/a n o

s a rg e n to -m o r d a o rd e n a n ç a da c a p ita n ia d c P e rn a m b u c o ; c asa ­ d o c o m a irm ã d c A n tô n io C a v a l­ c a n ti d e A lb u q u e rq u e

p o rtu g u ê s

P e rn a m b u c o 1641

964

JOSK

AK' 1' l' U

T K IX K I R A

V, O

N (,: A I. V K S

H e n r iq u e A fo n so P e re ira V ic e n te R o d rig u e s d a C o sta Y a le n tim C a rd o so L o u r e n ç o N u n e s V itória S im ã o F e rre ira A p o lin á rio G o m e s B arre to F e rn ã o B e z e rra m a n te n e d o r

M a n u e l M a r in h o P e re ira B rás R e b e lo F a lc ã o

c a p itã o d e in fa n ta ria

m a n te n e d o r

G o n ç a lo R av a seo C a v a lc a n te e A lb u q u e r q u e

c o ro n e l s e c re tá rio d e E s ta d o

ju iz

A n tô n io F e rr ã o d e C a s te lo B ra n c o

c a p itã o d e c av a lo s d a s tro p a s da c o rte

ju iz

M ig u e l T e le s B arre to

“ u m d o s m e lh o re s c av a le iro s ju iz d e s ta A m é ric a " , s e g u n d o o Diá­

B ah ia 1717

rio Panegírico c a v a le iro tio e n c a rn a d o

T o m é P e re ira F a lc ã o F ra n c is c o B ra n d ã o A n tô n io M u n i / T e le s

te n e n t e

L u ís C o rre ia d a C o sta

c a p itã o d e c av alo s; a p a d rin h a v a A n tô n io M u n i/ F é lix , g a ro to d e 12 a n o s c é le b r e e m d o m in a r os c a v a lo s

P e d r o M a c h a d o P a lh a re s

c a p itã o d e c av a lo s

J o ã o F c lix M a c h a d o S o a re s

a lfe re s d e in fa n ta ria

J o ã o P e re ira d a P a lm a

c a p itã o d e cav alo s

c a v a le iro d o a m a re lo

V ic e n te d c A rg o lo c M e n e s e s M a r tin h o R ib e iro d e A lm e id a

c a p itã o d e o rd e n a n ç a

J o ã o D ia s d a C o sta

H scriv ão d a F a z e n d a

L u ís J o s é C o rre ia d e Sá

filh o d o V isc o n d e d c A sscca

c a v a le iro

R io d e J a n e iro 1730 B ah ia 1752

M a n u e l d c S a ld a n h a

fid a lg o d a C asa d e S .M .

ju iz

A n tô n io d e B rito

c a p itã o

ju iz

A m a ro d e S o u sa C o u tin h o

a ju d a n te d a s o rd e n s

ju iz

A le x a n d r e A lv es

s a r g e n to - m o r

m a n te n e d o r

In á c io d c A n d ra d a S o to M a io r

c a v a le iro d o

d e A zevedo X ondon J o a q u im J o s c R ib e iro d a C o sta

e n c a rn a d o te n e n te - c o r o n e l d a cav a la ria

J o a q u im R ic a rd o Silva A n d ré A lv es P e re ira V iana

c a p itã o d c c av a lo s

V ic e n te J o s é d c V elasco M o lin a

t e n e n t e d e in fa n ta ria

J o s é P e re ira L im a d e V elasco

?

S e b a s tiã o d a C u n h a d c A z e re d o C o u tin h o C a e ta n o M e n d e s

?

M ig u e l A n tu n e s F e rre ira

s a r g e n to -m o r d a n o b re z a

C lá u d io J o s é P e re ira d a C u n h a L u ís d a R o c h a M a c h a d o

> ?

c a v a le iro d o azul

R io d e J a n e iro 1762

CA V A LH A D A S

M a n u e l R o d rig u e s S ilv a

?

F ra n c is c o C a e ta n o d c O liv e ira

c a p itã o

NA

A M KRICA

965

P O R T K J l i KSA

M ig u e l d e F ria s d e V asco n celo s a lfe re s J o sé P in to d e M ira n d a

?

A n tô n io P e d ro d a S ilv a C u n lia

?

S a lv a d o r A n tô n io X a v ie r V elasco ? M a tia s V ieira

c a p itã o

m a n te n e d o r

S e rg ip e 1760

□ □□ J o s k A u i r u T k i x k i r a G o n ç a i . y k s , p ro fe sso r d a U n iv e rs id a d e d o O e s te P a u lis ta (U n o e s te ) e jo rn a lis ta , é a u to r d e C avalh adas: das L u tas e Torneios M edievais às F estas no B ra sil Colonial, su a d is se rta ç ã o d e m e s tra d o a p re s e n ta d a à U n iv e rs id a d e E s ta d u a l P a u lis ta , e m 1998; a tu a lm e n te p re p a ra u m d ic io n á rio d e fe s ta s fo lcló ricas b ra s ile ira s . R k s u m o . O p r e s e n te e s tu d o p r e t e n d e re c o n s tru ir, à lu z d a H is tó ria C u ltu ra l, os e le m e n to s m o rfo ló g ic o s d a s c a v a lh a d a s, sim u la ç ã o d e c o m b a te s e n tr e m o u ro s e c ris­ tã o s, n a A m é ric a p o rtu g u e s a . As d iv e rsa s v a ria ç õ e s do s jo g o s e q ü e s tr e s (a rg o lin h a s, d a n ç a s , to rn e io s ), o rig in a d o s n a p e n ín s u la ib é ric a d u r a n te a I d a d e M é d ia , são a n a lisa ­ d a s c o m b a s e e m d o c u m e n ta ç ã o c o lo n ia l d o s sé c u lo s X V I, X V II e X V III.

Johann Moritz Rugendas. Batuque. Litogravura aquarelada, 47 x 57 cm. Coleção particular. Fundação Bienal de São Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p. 252. Foto André Ryoki.

FESTA, TRABALHO E COTIDIANO N

o r b e r t o

L

u i z

G

ü a r i n

e l l o

C o m e ç o c o m u m a indagação bem geral: o que é uma festa? A que nos referimos quando empregamos esta palavra? Não existe, na verdade, uma conceituação m inim am ente adequada do que seja uma festa. Festa é um termo vago, derivado do senso comum, que pode ser aplicado a uma ampla gama de situações sociais concretas.1Sabemos todos, aparentemente, o que é um a festa, usamos a palavra no nosso dia-a-dia e sentimo-nos capazes de d e ­ finir se um determ inando evento é, ou não, uma festa. Contudo, essa concep­ ção quase intuitiva de festa choca-se, freqüentem ente, com a diversidade de interpretações de um mesmo ato coletivo: o que é festa para uns, pode não ser para outros. Pode ser descrito como baderna, bagunça, manipulação, alie­ nação, como a morte da própria festa. Um baile/««/’é uma festa? E um comí­ cio eleitoral? Um show de rocP. Uma procissão religiosa? Os sentidos que o próprio senso com um atribui a festa são, dessa forma, bastante fluidos, nego­ ciáveis, contestáveis. Algo nos diz que uma festa deve unir diversão e alegria com um comportam ento coletivo, mas nem toda diversão é uma festa, mes­ mo que seja coletiva. Passear no parque aos domingos, assistir à novela das oito, são comportamentos coletivos e prazerosos, mas não constituem festas, em qualquer dos sentidos à disposição do senso comum que parece, assim, ser incapaz de nos dizer com clareza o que é uma festa. Festa, com efeito, não

1 Sobre a escassez d e estudos teóricos voltados para a festa vejam -se os com entários de R. C. Peixoto Amaral. Festa à brasileira. Significados do festejar no país que não é sério. São Paulo: F aculdade de Filosofia, L etras e C iências H um anas, 1998, p. 24.

970

NORliliRTO

I.M Z

(I l 1 A R I M i I. 1 , 0

é um termo neutro, mas o centro de uma polêmica; sua definição mexe conosco, com nossos valores, com nossa visão dc mundo. F re q ü e n te m e n te julgamos, criticamos, analisamos as festas que nos cercam, disputando seu sentido. A própria definição social dc festa é, assim, um palco 110 qual se defrontam diferentes interpretações do viver em sociedade. Os cientistas sociais vêm tentando, ao menos desde Durkhcim , reduzir a ambigüidade característica do termo, mas suas tentativas de definição care­ cem, igualmente, da abrangência c capacidade gencralizante necessárias para transformar festa num conceito.- Adotam com um ente uma concepção implí­ cita do que seja festa a partir de casos particulares de festas, 011 dc aspectos de certas festas que tentam, depois, generalizar. Há várias alternativas à dis­ posição na bibliografia: ato coletivo ritualizado, de carátcr essencialmente sagrado, próprio das chamadas sociedades primitivas e que decairia com a laicização e o individualismo próprios da sociedade contem porânea;' inter­ rupção programada da vida cotidiana, 011 mesmo sua inversão completa, como forma de descarregar energias c tensões reprimidas;4 instauração do caos da natureza, negação da ordem social, subversão;'’ manifestação coletiva especi­ ficamente popular, caracterizada pelo riso, pela alegria transbordante, pelo grotesco,1’ etc. Tais definições não são, a rigor, incorretas. São, no entanto, incompletas, imperfeitas, na m edida em que assumem festas particulares, ou características específicas dc determinadas festas, como parâmetro para jul­ gar 0 que é, ou não, uma festa. Isso tem efeitos sérios: im pede as teorias correntes sobre a festa dc escapar das aporias impostas pelo senso comum c torna impossível o diálogo entre os próprios cientistas, já que não há acordo prévio sobre o que se está falando. Um caminho alternativo e promissor talvez seja o de pensarmos a festa em termos bem gerais, abstraindo-a de todas as suas particularidades históricas e culturais. F o caminho que pretendo percorrer aqui, com tudo o que tem dc arriscado e de provisório. Escudo-m e no fato de que não pretendo apresentar uma teoria acabada, mas idéias para se pensar. Quatro são as características básicas do percurso teórico que proponho: em primeiro lugar, recusar fazer uma fenomenologia da festa, ignorando os afetos, sentimentos, emoções ex­ perim entados pelos participantes daquilo a que chamamos festa; depois, p e n ­

- A preocupação com a festa, com o fenôm eno social, c, na verdade, m uito anterior a D urkhcim . Veja-se M. O/.ouf. La fête révolutionnaire. Paris: G allim ard, 1986, passim , para um a retros­ pectiva no tocan te a R evolução !■ranccsa. O term o aparece já, com o categoria significativa, em B urckhardt, J. Geschichte der Renaissance in Ita/ie. Stuttgart: K bner & S aubert, 1878. ’ E. D urkheim . Is s formes élémentaires de Ia vie religieuse. Paris: PUF, 1%8. 4 S. F reud. Totem e tabu. Rio dc Janeiro: Imago, 1974. 5 J. D uvignaud. Fites et rívi/isations. M avennc: Actcs d u Sud, 1991. * M. B akhtin. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: 0 contexto de Fra/içois Rabe/ais. São Paulo: H ucitec, 1987.

FKSTA ,

T K A H A 1. 11 O

K

C O T I D I A N O

971

sar a festa de modo não histórico, isto é, não cncará-la como uma instituição passível de história e dc evolução ao longo do tempo, como fazem os que vêem uma linha contínua de decadência das sociedades tribais aos nossos dias;7 em terceiro lugar, abandonar, mesmo que temporariamente, a propo­ sição de uma tipologia das festas, ignorando os casos particulares, a não ser como ilustrações de princípios mais gerais; em quarto — e este é o ponto crucial — abordá-la como uma estrutura do cotidiano, ou, antes, como parte da estrutura do cotidiano dc todas as sociedades humanas, como um produto necessário desse cotidiano. Proponho-me, portanto, a ver a festa, não como realidade oposta ao cotidiano, mas integrada nele. E, só como parênteses, penso cotidiano, não como uma dimensão particular da existência humana, mas como o tem po concreto de realização das relações sociais.8 Com o termofesta, na verdade, procuramos definir e circunscrever, de modo muitas vezes impreciso, uma forma de ação coletiva, muito peculiar, que: 1. implica uma determinada estrutura social de produção, no sentido de que as festas não são dádivas de Deus, nem caem dos céus segundo nossos desejos. Elas são laboriosamente e materialmente preparadas, custeadas, pla­ nejadas, montadas, segundo regras peculiares a cada uma e por atividades efetuadas no interior da própria vida cotidiana, da qual são necessariamente o produto e a expressão ativa; 2. envolve a participação concreta de um determinado coletivo, seja ele a sociedade em seu conjunto, ou grupos dentro dela, com maior ou menor ex­ pressão ou força legitimadora, distribuindo-se os participantes dentro de uma determ inada estrutura de produção e de consumo da festa, na qual ocupam lugares distintos e específicos; 3. aparece como uma interrupção do tempo social, uma suspensão tem po­ rária das atividades diárias que pode ser cíclica, como nas festas de calendá­ rio, ou episódica, como na comemoração de eventos singulares, implicando uma concentração da atenção, dos esforços e dos afetos dos participantes em torno de um objeto específico, como segue; 4. articula-se em torno de um objeto focal, que pode ser um ente real ou imaginário, um acontecimento, um anseio ou satisfação coletivos e que atua como motivação da festa, como seu sentido explícito, cuja comemoração ou celebração constitui o leitmotiv da festa e que, como tal, se esgota em si mes­ mo. Isto é, a reunião comemorativa que constitui a festa é seu próprio objeti­ vo. O objeto focal pode ser, assim, sagrado ou profano, antigo ou recente, pode estimular as mais diferentes sensações, como euforia, fé, liberação, constrição, superação, êxtase, etc. Tais distinções são irrelevantes para nosso fim. O importante é que o objeto focal funcione como pólo de agregação dos par­

7 R. B riffault. “F estiv ais”, \n: Encyclopaedia ofthe Social Sciences. Nova York: M acm illan, 1948. " Veja-sc J. S. M artins. “O senso com um c a vida cotidiana” , in: Tempo Social, /tf(l):l-8 , 1998.

972

NORHKRTO

I.UI/

G l> A R I N H I. I. O

ticipantes, como símbolo de uma identidade que pode scr, mais ou menos, circunstancial ou permanente; 5. por fim, uma festa é uma produção social que pode gerar vários produ­ tos, tanto materiais como comunicativos ou, sim plesm ente, significativos. O mais crucial e mais geral desses produtos é, precisamente, a produção de uma determinada identidade entre os participantes, ou, antes, a concretização efe­ tivamente sensorial de uma determinada identidade que é dada pelo com ­ partilhamento do símbolo que é comemorado e que, portanto, sc inscreve na memória coletiva como um afeto coletivo, como a junção dos afetos e expec­ tativas individuais, como um ponto em comum que define a unidade dos participantes. A festa é, num sentido bem amplo, produção dc memória e, portanto, de identidade no tem po c no espaço sociais.1' Festa é, portanto, sempre uma produção do cotidiano, uma ação coletiva, que se dá num tem po e lugar definidos e especiais, implicando a concentra­ ção de afetos e emoções cm torno de um objeto que é celebrado e com em o­ rado e cujo produto principal é a simbolização da unidade dos participantes na esfera de uma determinada identidade. Festa é um ponto de confluência das ações sociais cujo fim é a própria reunião ativa de seus participantes. Festa, portanto, produz identidade. Mas que tipo de identidade? Trata-se de uma questão crucial e da resposta que dermos a ela dependerá nossa capa­ cidade de falar da festa em geral. Há, na verdade, diferentes níveis ou formas nas identidades produzidas pelas festas. Podem ser identidades fortes, ou seja, pode dar-se que a festa seja apenas mais um elem ento, um reforço, d e n ­ tro de uma identidade mais ampla, que a produz como festa, e que parece ser o caso nas chamadas sociedades comunitárias, face a face, o que os alemães chamam de Gemeitischafl; podem ser identidades segmentárias, 011 grupais, que expressam sua singularidade em meio ao corpo social, através de festas que lhes são próprias; ou m esmo identidades fracas, sendo a festa o principal pólo agregador de uma identidade por vezes fugidia entre participantes dís­ pares e desconectados, como parece ser o caso de muitas festas na chamada sociedade de massas, que muitos rejeitam como a negação da festa.10 Os três tipos não são, obviamente, excludentes, e podem estar presentes num a m es­ ma e dada festa. Por outro lado, dizer que a festa produz identidade não significa afirmar que produza, necessariamente, consenso, muito pelo contrário. A festa é pro­ duto da realidade social e, como tal, expressa ativamente essa realidade, seus conflitos, suas tensões, suas cesuras, ao mesmo tem po que atua sobre eles.

9 Sobre a relação e n tre tem po, m em ória e id en tid ad e, veja-se J. L e Goff. “M em ó ria” , in: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Casa da M oeda, 1984, p. 11-50. 10 Vejam -se J. D uvignaud. O p. cit.; M. M affesoli. A sombra de Dionfsio — contribuição a uma sociologia da orgia. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

KlíSTA,

T U A II A 1, 110

K

C O T ID IA N O

973

Não estou, com isso, reiterando a afirmação dos que enfatizam, na festa, even­ tuais características de inversão, subversão ou mesmo de anomia social. Ao contrário, não considero a festa como anomalia consentida, expressão inverti­ da da realidade social, espaço sem regras. Toda festa tem suas próprias regras, seus códigos de conduta, sua rede dc expectativas recíprocas, que podem ser escritas, ou fortemente ritualizadas, ou absolutamente espontâneas e infor­ mais, como as que regem, por exemplo, os bailes fu n h ." O q u e quero dizer, na verdade, é que o que chamamos de festa é parte de um jogo, é um espaço aberto no viver social para a reiteração, produção e negociação das identidades sociais. Um lapso aberto no espaço c no tempo sociais, pelo qual circulam bens materiais, influência, poder. O que chama­ mos de festa é um espaço significativo por excelência, um tem po de exalta­ ção dos sentidos sociais, regido por regras que regulam as disputas simbóli­ cas em seu interior e que podem, por vezes, ser bastante agudas. A festa unifica, mas tam bém diferencia, tanto interna quanto externam ente. Uma distinção primeira, e fundam ental, é a entre incluídos e excluídos da festa. Festas po d e m ser mais ou menos abertas, mas sempre traçam fronteiras, espontâneas ou impostas, entre os aptos a dela participar e os que são estra­ nhos a ela. São inúmeras as formas possíveis de se traçar essa linha de d e ­ marcação, e inúm eros os graus de sua rigidez. O importante é que a linha fronteiriça da festa coincide, de modo geral, com a da identidade que pro­ duz e m seu interior. E ntre os participantes da festa, por outro lado, ou seja, entre os incluídos, a identidade criada não é homogênea, nem uniforme. A festa não apaga as diferenças, mas antes une os diferentes. A identidade que cria é uma unida­ de diferenciada e, na medida em que as diferenças representem ou gerem conflitos, um a identidade conflituosa, que une os dois extremos contrastan­ tes e, aparentem ente, contraditórios, da cooperação e da competição. Toda festa, como vimos, implica uma determinada estrutura de produção e de con­ sumo e, portanto, uma estrutura de poder, passível de controle diferenciado. Controle que se estende da produção material da festa, de seus objetos, ves­ timentas, instrumentos, bens de consumo, à definição do papel ou lugar de cada participante em sua execução e consumo até, de modo mais amplo, à definição do sentido da própria identidade que produz. Uma festa pode, com efeito, ser mais ou menos cooperativa, definir uma unidade mais ou menos consensual ou pode, por vezes, ser abertamente competitiva e conflituosa, quando não há consenso sobre como deva dar-se, quem deve produzi-la, como

11 D evem os nos lem brar q u e um acontecim ento sem sentido para um observador externo pode ser b astan te significativo para um participante, q u e vô ordem onde o forasteiro só enxerga o caos. Vejam-se os ensaios dc C. G certz. Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Koogan, 1989.

974

N O R H K R T O

LUIZ

G U A R I N I- I. I. O

deve ser lida, correndo mesmo o risco de desorganizar o sentido e romper com a identidade que se propunha a produzir. É possível, diante desse quadro, falar ainda cm produção de identidade? Creio que sim. Uma festa pode, certam ente, representar uma tentativa de impor determinada identidade segmentaria ao conjunto da sociedade, seus sentidos podem ser forçados, manipulados, disfarçados. Toda festa pode, como vimos, comportar uma multiplicidade de sentidos particulares, segmentados, não congruentes, pode ser lida de maneiras distintas por segmentos distintos dos participantes. Mas pcrmanccc o fato crucial de que o sentido da festa, e portanto da identidade que propõe e produz, d e p e n d e sempre dos partici­ pantes, eventuais ou desejados, cuja presença c envolvimento determ inam o sucesso e o significado último de qualquer festa. Uma festa que não atraia ninguém não é uma festa e a participação forçada produz apenas arremedos, paródias de festas (como Nero). Por mais controlada e manipulada que possa parecer, uma festa é assim, sempre, um ato coletivo por excelência, produ­ zindo identidade, mais 011 menos provisória, e em diferentes graus, para seus participantes. Por fim, em qualquer sociedade hum ana a festa sempre se manifesta num conjunto articulado de festas, cíclicas 011 episódicas, que dialogam entre si, repartem seus sentidos, acumulam-nos 011 negam-nos numa cadeia sintagmática que se inscreve na memória coletiva e individual dos participantes. N e n h u m a festa pode, assim, ser entendida plenam ente dentro de si mesma, mas deve ser inscrita na cadeia de significados que as festas produzem em sua sucessão. Festas familiares, grupais, cívicas, religiosas, compõem segm en­ tos de identidades parciais que se somam ou se contrapõem na escala da identidade social mais global e, portanto, mais abstrata e fugidia. A festa é, assim, não um simples somatório, mas uma articulação de festas singulares. Festa, portanto, é um trabalho social específico, coletivo, da sociedade sobre si mesma. Se aceitarmos, mesmo que provisoriamente, a validade d ç uma conceituação tão ampla e abstrata, poderemos aproximar da festa, fundir no mes­ mo conceito, atos coletivos aparentemente tão diferentes, como os funerais, as procissões religiosas, os carnavais, uma final de campeonato ou um aniversário. Todas esses fatos sociais apresentam, com efeito, uma mesma estrutura básica. E verdade que os afetos presentes a cada um desses eventos são diferentes, bem como seus objetos focais, sua periodicidade, sua relação com o sagrado e o profano, seus códigos de conduta, suas fronteiras. Mas essas diferenças não afetam o cerne da definição proposta. Pelo contrário, dizem respeito ao parti­ cular de cada festa e ao modo como se inscreve no calendário das festas com as quais dialoga. Não é o tipo de afeto ou emoção dominante que define uma festa como tal. A alegria de uns pode ser a tristeza de outros e os sentimentos envolvidos num evento particular, funeral, casamento, batizado ou festa sagra­ da são culturalmente determinados e particulares.

FKSTA,

I UAHAI.IIO

1:

C O T ID IA N O

975

Não quero dizer que os afetos sejam irrelevantes, como tampouco o são as estruturas concretas de festas concretas, com seus objetos e significados con­ cretos em seu evolver histórico. O que me preocupa é outra coisa. O que o senso comum, e a maioria dos cientistas sociais, denominam dc “festa” re­ presenta um recorte arbitrário no interior de uma atividade social, de uma forma de ação coletiva mais ampla. Não parecem existir critérios capazes de definir festa separando-a, por exemplo, de um funeral. Isso pode parecer ab­ surdo porque, na prática, é uma distinção da qual temos necessidade em nos­ sa vida diária. Mas devemos ter consciência de que os recortes que operamos em nosso senso comum cotidiano, entre alegria e tristeza, sagrado e profano, etc., são classificações arbitrárias, no sentido de que são válidas para nós. D e p e n d e m de definições que são culturais, e até mesmo individuais e, por­ tanto, excessivamente parciais, ao não permitirem compreender o significa­ do mais geral desse tipo de ato coletivo. Daí que, ou abandonamos a festa, como termo irremediavelmente ambí­ guo, não conceituável ou, no mínimo, nos precavemos contra sua inevitável polissemia. Valerá a pena, afinal, separarmos festa de funeral? Não são os mesmos processos sociais em jogo? Parece-me mais interessante pensarmos nesses atos identitários classificando-os por sua abrangência social, pelo tipo e extensão da identidade que visam produzir, i.e., associando-os ao cotidiano das relações sociais do qual são o produto e parte integrante. A compreensão de festas específicas, desse modo, ao m esmo tempo que permanece sendo o objetivo primeiro de nossos estudos, depende da utilização de conceitos mais amplos e abstratos, que nos permitam lidar de modo mais coerente e seguro com os materiais à nossa disposição e que possibilitem falar de cada festa em particular como um caso específico, como um campo empírico no qual se testa a validade de nossas formulações teóricas. Não se pode fazer teoria a partir do particular, nem o particular é inteligível sem uma teoria coerente que unifique a aparente balbúrdia da realidade. □ □ □

é doutor em Arqueologia Clássica e profes­ sor de História Antiga e Arqueologia no Departamento de História da Universidade de São Paulo e autor de Imperialismo Greco-Romano e Os Primeiros Habitantes do Bra­ sil, além de diversos artigos em revistas especializadas. N o r b k r t o

L u i z

G u a r i n k l i . o

R Ks u m o . Este artigo procura definir os significados do termofesta para constituí-lo em um conceito que seja útil para o estudo da vida cotidiana das sociedades hu­ manas.

José Theophilo de Jesus. Jesus e os quatro continentes, século XVIII. Óleo sobre tela, 79x57 cm. Museu Carlos Costa Pinto, Salvador, Bahia. Fundação Bienal de São Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: negro de corpo e alma. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p. 59. Foto André Ryoki.

IDEOLOGIA, COLONIZAÇÃO, SOCIABILIDADE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS M

a r c o

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“A m a is fo rte razão iso lad a p a ra o d e s e n v o lv im e n to d o d e te rm in is m o a b s tra to é a e x p e r iê n c ia h istó ric a d a e c o n o m ia c a p ita lista c m g ra n d e escala, n a q u a l m u ita s o u tra s p e sso a s a lé m d o s m a rx ista s foram le v a d a s a c o n c lu ir q u e o c o n tro le d o p ro c e sso lh e s e sc a p av a , e q u e e ra , p e lo m e n o s n a p rá tic a , in d e p e n d e n te d e su a v o n ta d e e d e se jo , e q u e tin h a , p o rta n to , d e s e r v isto c o m o u m p ro c e ss o g o v e rn a d o p e la s su as p ró p ria s «leis» .” R A Y M O N D W [ 1.1. I A M S1

A e p í g r a f e d e Raymond Williams, embora escrita em 1971, demons­ tra grande atualidade pelo que pode esclarecer a respeito de nossa sensação de impotência diante de um mundo em que o capital financeiro parece não ter limites. E possível que seu melhor efeito se situe na afirmação de que a historicidade é aquilo que, num só tempo, permite essa mesma impotência e a estende aos critérios de análise utilizados para o seu entendimento. E m poucas palavras, ideologia e saber são inextricáveis. Porém, desdobrando, tal­ vez de modo um pouco livre demais, o pensamento do historiador inglês, gostaria de ir além da idéia de que a evolução dos paradigmas se relaciona com as desastrosas mudanças do capitalismo para perguntar se essa historici­ dade não é responsável tam bém pela impressão generalizada de que certas repetições são um dado apriorístico da vida social. Não seria uma das grandes vitórias ideológicas do desenvolvimento capitalista, por exemplo, o alastra­ m ento do juízo de que alguns pressupostos da vida social são necessários e anteriores às elaborações culturais? Recordo as reflexões de Hannah Arendt a esse respeito, imersas numa

' R aym ond Williams. Marxismo e literatura. Trad. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 90.

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tentativa de definir o que nomeia de “condição hum ana” m ediante o labor subm etido ao movimento cíclico das necessidades naturais, mas igualmente por meio do trabalho e da política. De maneira sucinta, vale dizer que a a uto­ ra procura demonstrar de que modo a marcação temporal dc uma dessas ati­ vidades, no caso o labor, foi se tornando hegemônica desde o período moder­ no a ponto de envolver a durabilidade do trabalho e a pluralidade da política no ritmo rápido e circular da natureza. Essa tendência à laborização do m u n ­ do transformou o que era obra perene em artigo de consumo imediato, e reduziu a multiplicidade de visões à opinião pública. Na esteira de tão signi­ ficativas articulações, o Estado m oderno se constituiu enquanto o público e o privado se imbricaram no “social” ; passou a viger, então, o império da neces­ sidade.2 Um dos pontos que mais me intriga nesse pensam ento, se o tom a­ mos como válido, é saber se há condições de restituir o sentido da política como pluralidade sem pôr em xeque a anterioridade conceptual das imposi­ ções materiais. Mas a força da reflexão de Hannah Arendt não pára por aí. Ela nos ajuda, de uma parte, a pensar, em termos próprios, o problema histórico da “sociabilida­ de compacta” na época moderna, para usar a feliz expressão de Philippe Ariès, bem como os motivos por que, no mundo contemporâneo, a intimidade se fez tirânica, sendo a sexualidade um dos meios mais eficazes dessa tirania: o sexo, tornado necessidade ilimitada, é grande exemplo de laborização. ’ Dessa forma, em vez de se pensar o assim chamado Antigo Regime como a “transição” entre uma fase de predominância do privado e da indistinção e outra em que as esfe­ ras se acham nitidamente separadas e distintas, seria de fato questão de avaliar como essas duas dimensões, o público e o privado, vão se tornando historica­ m ente visíveis e que tipos de arranjo se produzem entre elas em cada m om en­ to histórico, sem pensar uma continuidade necessária — que, de resto, parece estar esboçada tam bém na análise da autora. D e outra parte, esse enfoque tam bém nos rem ete ao estudo qu e Michel Foucault faz da epistem e clássica, definida pelo conceito de representação e por suas funções classificatórias: nesses termos, conhecer o m undo é desdo­ brá-lo num a representação e classificá-lo num quadro contínuo em que a pos­ sibilidade prévia de justapor uma espécie a outra sustenta o aparecim ento de um a ontologia. N o caso particular da “economia” moderna, Foucault propõe,

H annah A rendt. A condição humana. Trad. Rio dc Janeiro-São Paulo: F oren se-U n iv ersitária, Salam andra-E ditora da U niversidade d e São Paulo, 1981. 3 Sobre a “sociabilidade com pacta”, cf. P hillipe Ariès. História social cta criança e da fam ília. Trad. 2.J ed. Rio de Janeiro: LTC , 1981, cap. “D a fam ília m edieval à fam ília m o d ern a” ; acerca das tiranias da in tim idade, consulte-se Richard S en n ett. O declínio do homem público. T rad. São Paulo: C om panhia das L etras, 1989; a resp eito das relações e n tre p o d er e se ­ xualidade, cf. M ichel F oucault. História da sexualidade. A vontade de saber. Trad. 5.“ cd. Rio de Janeiro: G raal, 1984.

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como condição de possibilidade para o debate entre fisiocratas e utilitaristas, a idéia de que a moeda e as riquezas representam-se umas às outras, mas fundam entam -se no caráter finito da proliferação da natureza. Encontramos aqui a opinião de que a fecundidade natural constitui a base da vida em so­ ciedade.4 Ora, é nesse período histórico, em que as políticas mercantilistas sugerem formas dc produção e apropriação de riquezas segundo a lógica da representação e de um conhecimento definido pela taxinomia contínua e ontológica — e em que o Estado absolutista se consolida como cabeça do corpo social, que se realiza a colonização moderna. O reconhecim ento dessas correspondências deve acarretar uma questão importante: em que medida nossa idéia de colonização hoje não reproduz os pressupostos de saber que balizavam o projeto colonizador? Em outras pala­ vras, em que m edida nosso conceito de colonização não está permeado pela ideologia da colonização? Esta pergunta parece-me essencial para que se possa e n te n d e r o que foi a sociabilidade na América portuguesa, já que a enunciação desta vincula-se fortemente ao método pelo qual se classifica a experiência histórica colonial, assim como aos critérios que compõem suas estruturações caracterizadoras. Temos tido a inclinação — aliás, frutífera e plenam ente jus­ tificada pelos problemas que aponta — de entender a colonização como que movida prioritariamente por certos aspectos políticos e econômicos, tais como a formação do Estado Nacional na Europa, o desenvolvimento das relações capitalistas e a política mercantilista, que sempre aparecem, entretanto, arti­ culados dinam icam ente à formação social diversificada, mas marcadamente escravista, deles resultante, e às orientações religiosas." Porém, talvez nossas classificações, a despeito da abrangência de contradições e complexidades, antevejam uma continuidade nas ações cotidianas e uma irredutibilidade que podem ser estranhas às vivências históricas do universo colonial. E importante lembrar que o desejo de averiguar a potencialidade de nos­ sos conceitos liga-se, a m eu ver, às próprias mudanças que vêm ocorrendo na historiografia brasileira nos últimos vinte anos. Acredito que, em certa m edi­ da, as incorporações renovadas e renovadoras de temas e objetos, como a feitiçaria, as atitudes perante a morte e as práticas sexuais, por exemplo, p u ­ seram-nos diante da necessidade de investigar a pertinência de derivações metodológicas capazes de erigir tam bém os elementos culturais como demarcadores das estruturações fundamentais do m undo colonial, em cujo e n ­ trem eio vai sendo investigado o caráter plural das sociabilidades. E quase

4 Cf. M ichel Foucault. Af palavras e as coisas. Trad. 4.“ ed. São Paulo: M artins F ontes, 1987, em particular o cap. “Trocar” . 5 C onsulte-se Caio Prado Jr.. Fona ação do Brasil contemporâneo. 12.J cd. São Paulo: Brasiliense, 1972, e F ern an d o A ntônio N ovais. Portugale Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (17771808). 4.“ ed. São Paulo: H ucitec, 1986.

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que uma subversão das ações diárias que em ergem da preocupação dos histo­ riadores. Decerto, uma opção teórica desse tipo exigiria trabalho árduo dos estudiosos, pois, se componentes simbólicos recolhidos do cotidiano — e con­ cebidos como indissociados da vida material e das formas sociais — assentam-se como categorias de caracterização principal, num movimento que atra­ vessa globalmente as várias dimensões da sociedade, torna-se mister refletir, para além das recorrências, sobre uma multiplicidade de novas apropriações e sentidos, bem como, conseqüentem ente, sobre certas descontinuidades. Isso porque apropriar é selecionar, incluir e excluir elem entos, e ainda revolvê-los. Por essa razão, é por vezes gerar interrupções/’ Este parece ser o primeiro desafio de um modelo classificatório cujos funda­ mentos são categorias socioculturais — aí incluídos, evidentem ente, aspectos econômicos e políticos: a percepção de certas descontinuidades que dificultam modelos ontológicos e teleológicos. Classificar a experiência colonial segundo critérios que dispõem seu eixo político-econômico como irredutível, embora não estático, ante as ações cotidianas pode, no extremo, acarretar uma análise perpassada pela idéia de “transição”. Dessa forma, se bem que, no quadro glo­ bal, a organização da sociedade na colônia encontre o seu lugar e caráter em meio a um contexto dialético, as práticas diárias, as instituições e o universo simbólico tendem a ser vistos como o negativo do que é a sua matriz tanto no tempo quanto no espaço. Trata-se de um problema de idiossincrasia.7 Parece-me perigoso avaliar a sociedade colonial, assim como o período his­ tórico em que se insere, conforme a figura da inversão ou do meio-termo, pois tal operação institui um ponto de fuga prévio que, se perm ite que se vejam particularidades e conflitos, não deixa de engendrar o invisível e o impensável: o que não se vê é o alcance e a alteridade de algumas formas de socialização que revolvem o modelo organizador da sociedade, criando rup­ turas; o que não se pensa são certos modos de subverter quando se apropria a ordem imposta — no seu lugar, erigem-se como centro do debate, muitas vezes, os estreitos limites da resistência e da acomodação. Não se trata de determinism o vulgar. O problema se põe em outro ponto: é preciso questio­ nar se nossos conceitos de colonização — posto que escorados num a visão dialética da complexidade histórica a ponto de criar condições para q u e se pensem tensões sociais, transformações históricas e m ovim entos políticos — , não ocasionam, m ediante o estabelecim ento de séries irredutíveis e de um a perspectiva teleológica, restrições que dificultam pensar as práticas so­ cioculturais em toda a sua pujança.

6 Cf. a avaliação realizada por L ynn H u n t. “A presentação: história, cu ltu ra e tex to ” , in: A nova história cultural. T rad. São Patdo: M artins F o n tes, 1995, p. 1-29. 7 Cf. S tuart Clark. “F rench historians and Early M odern popular c u ltu re ” , in: PastandPresent, 100:62-99, ago. 1983.

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Com o foi dito atrás, essa discussão mostra-se bem atual num momento em q ue a experiência histórica do planeta parece ganhar abrigo na metáfora da “globalização” . Apesar da ocorrência de alternativas mais aprofundadas e es­ clarecedoras, deparamos, comumente, com duas reações a essa “realidade” histórica. D e um lado, estão os que comemoram a panacéia de um mercado livre e o avanço da alta tecnologia, atribuindo a exclusão e a fome generaliza­ da a imperfeições do sistema, que podem ser amenizadas por estratégias prag­ máticas cujos fins, sempre adiados, justificam a normalidade de qualquer meio; de outro, admoesta-se bravamente contra os males do capitalismo e as injus­ tiças sociais, abandonadas por burocracias falidas cujos dias estão contados. Todavia, ambas as visões partilham da idéia de que o fenômeno é um dado apriorístico com base no qual somente é possível pensar louvores ou resistên­ cias. A escolha dos movimentos do capital financeiro, das mudanças nas rela­ ções de produção e da crise do Estado Nacional como critérios básicos prati­ cam ente exclusivos de caracterização permanece o impensado. Daí, em boa parte, a sensação de impotência perante um quadro em que nos parece muito natural, uma necessidade mesmo, que se troque a competência pela autori­ dade, a sociologia pela baixa política, a crítica pelo cinismo. É como a crença atual - e penso que a palavra seja esta mesma, crença — de qu e o Brasil é um país “em ergente”, já que se desenvolve rumo a um ponto de fuga que é o das disposições — imaginárias — vigentes na Europa ou nos Estados Unidos. Não se trata, evidentem ente, de resgatar a “autenti­ cidade” do “povo” brasileiro — vocabulário capaz, ele próprio, de parir ou­ tras tantas teleologias — , mas de afirmar a possibilidade de compreender esse m om ento conforme estruturações categóricas que contemplem também, como com ponentes decisivos, outros aspectos simbólicos. Nesse sentido, a assim chamada “globalização” não se apresenta como um processo inevitável porque teleológico — mais uma “fase” do capitalismo. Ela se entende, pelo contrário, como infinidade de práticas socioculturais — compreendidas aí, é preciso lembrá-lo mais uma vez, as políticas e econômicas - que engendram recorrências, apropriações e descontinuidades diversas. Ela se faz em nossas ações e por meio delas: pagodes e medidas provisórias são práticas e institui­ ções globalizadas tanto quanto a internet ou as organizações internacionais. E ste talvez seja um segundo desafio de um método que disponha a vida colonial consoante estruturações “performáticas” , para me valer da expres­ são de Marshall Sahlins: a historicidade das próprias categorias adotadas, elas mesmas sempre em xeque, e que promovem a percepção de “ilhas de histó­ ria” , pode desconstruir finalidades, embora nunca as elimine de todo, tor­ nando mais complexo o entendim ento do específico.8 As práticas e institui­

B M arshall Sahlins. Ilhas fie história. Trad. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

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ções coloniais deixam de ser percebidas como o negativo do que lhes é siste­ maticamente externo e anterior na sincronia e na diacronia. Desafio que pode, no dia-a-dia do ofício, parecer sutil demais para ser significativo. Contudo, vale recordar, na esteira de Michel de Certeau, que a opção pelos signos c códigos de classificação é tam bém política e se vincula ao lugar social do historiador, não sendo universais ou eternos os recortes que ancoram suas pesquisas.9 Como sugeria a epígrafe, em certa m edida é porque nossas socie­ dades capitalistas industrializadas, e hoje “globalizadas” , dividem o político, o econômico, o cultural, etc. cm esferas especializadas, ou ainda cm instân­ cias distintas, que os historiadores temos o impulso de realizar a mesma ope­ ração para o passado. Este anacronismo é, em parte, inevitável uma vez que não se pode apreender o referente como positividade; porém, é preciso pensá-lo criticamente a ponto de permitir-se a elaboração de dimensões particu­ lares provisoriamente mais adequadas ao que se investiga no passado. Por exemplo, na mesma colônia, parece, em algumas ocasiões, um tanto desajei­ tado desvincular circulação de riquezas e moral. Ademais, essas diferentes dimensões, para além de sua particularidade, não são coextensivas, isto é, possuem superfícies distintas. Por isso, erigir uma delas como eixo irredutível para as demais pode ocasionar incongruên­ cias. Enxergá-las umas pelas outras, num a formulação de critérios provisórios e transversais, decerto não resolve o problema da arbitrariedade nem consti­ tui um ponto de vista universal, mas pode permitir que se veja algo daquilo que se faz invisível para nós hoje. De outro lado, é possível que nossos con­ ceitos de colonização elejam elem entos políticos e econômicos como irredu­ tíveis, embora sistematicamente dialéticos, como forma peculiar de inserção em toda uma vertente do pensam ento brasileiro cuja temática capital abran­ ge a formação e o desenvolvimento da nação no Brasil. Isso talvez ajude a en te n d e r por que eles se enraízam no pressuposto teórico da circulação das riquezas, que era, aliás, amplam ente discutido na idade clássica — para se­ guir ainda os passos de Foucault. Mas não seria delicado definir um significa­ do previsível para o viver em colônia no final do Setecentos, e, a partir dele, buscar com preender as particularidades temporais e espaciais de outras co­ m unidades imaginadas, entre elas a família, as irmandades ou a “pátria” ?'11 Até que ponto não nos pomos diante das práticas socioculturais e da gente da colônia da mesm a forma que o erudito lusitano de outrora, cobrando-lhes as falhas e carências para o ingresso na civilização? Voltamos à questão formula­ da anteriormente: não seria a ideologia da colonização, se bem que decisiva,

9 M ichel d e C erteau . A escrita da história. Trad. Rio de Janeiro: F o rense-U nivcrsitária, 1982; A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad. Petrópolis: Vozes, 1994. 10 A expressão “co m u n id ad e im aginada” e recolhida d c B encdict A nderson. Nação e cons­ ciência nacional. Trad. São Paulo: Ática, 1989.

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um dentre outros tantos sentidos da colonização? T ê m nossas categorias per­ mitido que estes sentidos se tornem visíveis?11 Há, então, de se perguntar que tipo de especificidade nossa concepção do processo colonizador vislumbra nas ações culturais e nos valores cotidianos. Refiro-me ao que é próprio e exclusivo de uma determinada espécie, e que, embora se corresponda fortemente com as composições da vida material numa mesma instância, não tem com elas relação necessária de causalidade. Se é válido este juízo, torna-se patente inserir componentes culturais e valorativos como partícipes das estruturações fundamentais que caracterizam a coloniza­ ção e seus sentidos. Aqui não há mais reflexo e os signos, a despeito — diria mesmo: por meio — de toda e qualquer contradição, nunca se encontram fora de esquadro. Encontramos, nessa via, o terceiro desafio de um método polifônico: as práticas sociais e os valores, a vida material e as elaborações simbólicas, as instituições e o cotidiano tendem a se pôr indissociados numa mesma instân­ cia. Tal enfoque não busca, é claro, um resultado indiferenciado em que se abole toda singularidade. Pelo contrário, é preciso, na abordagem das inúm e­ ras dimensões da vida social, recuperar suas intricadas relações de limite, possibilidade, mediação, e imposição de tendências. No entanto, os elementos definidores e a articulação entre eles não são perpassados por uma clivagem anterior entre vida material e cultural, mas sim indicam as linhas limítrofes que costuram entre si as dimensões. Uma mesma ação ou valor recorrente na sociedade colonial pode situar-se em âmbitos variados. Dessa maneira, como foi sugerido acima, vão se descobrindo novas dimensões mais adequadas, talvez, à análise dessa realidade histórica particular, bem como os recortes decisivos que se experimentavam como limitações diante da pluralidade so­ cial. Mas não unicam ente desse modo, pois eram vivenciados também como inclinações, diversidade de apropriações e trocas e, no extremo, como ruptu­ ra. Pelo estudo das maneiras pelas quais eram apropriados tais conjuntos ca­ tegóricos na vida ordinária, o historiador pode deparar com a produção de novos sentidos e direções. Por exemplo, nossa documentação é, em grande parte, de fonte oficial, e, por esse motivo, correspondências de governadores, processos jurídicos, au­ tos inquisitoriais, memórias ilustradas, dentre outros manuscritos, não se can­ sam de denunciar a renitência da desordem não obstante a ação repressiva e pedagógica das instituições do poder estatal; concubinatos e filhos ilegítimos são alvo constante de tamanha indignação. Quando o historiador estende a consulta às fontes, cruza-as, e vai ficando com aquela sensação de que o des-

11 Cf. F ern an d o A ntônio N ovais. “C ondições da privacidade na colônia” , in: Laura de M ello e Souza. História da vida privada no Brasil. Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: C om panhia das L etras, 1998, p. 14-39.

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regramento se generalizava, não seria questão de perguntar em que m edida a indicação efusiva do caos não constituía um meio retórico de representar a sociedade e criar o efeito de que a ordem era sempre a mais p ungente das necessidades? E m outras palavras, descrever o m undo colonial como o local da inversão não implicava justam ente uma estratégia de poder que, num mesmo movimento, designava a colônia como heteronomia e irregularidade a ser regulada, e o Estado português como agente indispensável de autono­ mia e regulação? Creio que o peso e a eficiência dos valores patrimonialistas e do paradigma organicista do Estado lusitano acarretavam a percepção do erro, o sentim ento de culpa, a busca do autocontrole e o desejo de enquadrar-se nas classifica­ ções exigidas — de preferência, nas melhores. Porém, há de se avaliar se o concubinato e a ilegitimidade não se associavam a formas de apropriação do modelo imposto, que, no extremo, carreavam a sensação de que o anormal era justam ente o normal, que o fora do lugar era de fato o que permitia o equilíbrio do m undo em variados arranjos do cotidiano. N esse caso, estaríamos diante de duas visões opostas e antagônicas acerca do m esm o referente, que, no limite, e em meio a tantas mediações possíveis, podiam produzir descontinuidades. O fato de que um amásio vivia cercado de parentes, ami­ gos e vizinhos que se achavam no mesmo estado — ou que, de cabo a rabo, fossem geradas crianças ilegítimas, sugere o engendram ento de tradições diárias, m esm o que inventadas, cujas práticas, longe de se forjarem apenas como resistência à ordenação imposta, eram elas mesmas propositivas e, a seu modo, ordenadoras. Essa percepção tem sido cada vez mais forte no que refere o estudo da escravidão. Uma abordagem centrada no conceito de reificação tende a esva­ ziar as práticas sociais do cativo de uma face propriamente autonômica, visto q ue os critérios teleológicos que definem a sociedade escravista geram limi­ tes tais que as ações e a consciência do escravo, embora geradoras de sentido, figuram-se como o espelho passivo dos significados que lhe eram impostos. N essa acepção, cabe ao cativo ajustar-se ao destino que lhe cabe ou resistir a ele; todavia, esta defesa, como o negativo da ordem reificadora, assum e a feição do limite em que afloram suicídios, assassinatos, abortos e fugas. N o Brasil, a historiografia das últimas duas décadas tem questionado essa visão, propondo, por meio do avanço da pesquisa documental, q u e os escravos par­ ticipavam de forma bem mais ativa da vida social, num a perspectiva q u e res­ salta sua autonomia e mobilidade sem perder de vista a violência a que eram subm etidos.12 Podemos, então, perguntar se nosso olhar não enxergava na escravidão, m esm o com o sinal trocado, o misto de subserviência e irregulari­

12 T rabalho significativo a esse resp eito é o d e Silvia H unold Lara. Campos Ha violência. Rio de Janeiro: Paz e T erra, 1988.

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dade que com punha a ideologia do colonizador preocupado com a preserva­ ção da saúde do corpo social. A riqueza das práticas socioculturais de negros e mulatos parece nos sugerir que suas ações, para além da circunscrição traçada pelas palavras acomodação e resistência, carecem de enfoques que as conce­ bam em toda a sua capacidade de engendramento e de apropriação do m un­ do em que se inseriam. Os agentes históricos, com suas ações e pensamentos, não resultam num contínuo necessário por serem foco em que se cruzam as inúmeras dimensões da sociedade; eles mesmos, constituídos historicamen­ te, são repletos de paradoxos e rupturas. Mas isso não deve significar ne­ n hum tipo de determinismo: eles são atores sociais que transformam as es­ truturações ao mesmo tem po que as reproduzem. Assim, o historiador deve procurar compreender a descrição da desordem segundo uma panorama crítico. A ideologia da colonização não reside pro­ priam ente no desajuste que resulta da contraposição conflituosa entre co­ lônia e metrópole, entre a instabilidade da formação social e a proposta político-teológica de ordenamento. Ela reside, parece-me, no procedimento estratégico de descrever, conforme o modelo clássico da representação, a co­ lônia como espelho da metrópole, mesmo que invertido. A ideologia da colo­ nização não era som ente a representação que ela impunha, mas tam bém o representar; atitude que, ao apagar qualquer vestígio de idiossincrasia, era a própria invenção da colônia. O estudo das festas, em particular, abrange um campo de análises muito suscetíveis ao problema da representação clássica. A sociabilidade festiva do Antigo Regime pode, por exemplo, pintar, para a historiografia, o momento em que, como na festa “barroca” , a imagem que representava a sociedade excluía os elem entos capazes de caracterizar o conflito, produzindo, então, a ilusão invertida, o falso brilhante. D e outra parte, ela pode ainda patentear o instante em que, como no carnaval, burlava-se a ordem representada e as tensões reapareciam como representação mais ajustada. N o primeiro caso, a festa é inversão; no último, é inversão da inversão, ou negação da negação. Perm anece, contudo, tanto para um quanto para outro, a idéia de que ela é o negativo da estrutura “real” da sociabilidade. Na medida em que os historia­ dores adotamos as mesmas táticas de classificação utilizadas no jogo de poder colonial, corremos o risco de reproduzi-lo. Aliás, a própria visão de que a festa era “barroca” nos rem ete novamente aos problemas da teleologia, uma vez q ue se elegem, de modo mais ou menos arbitrário, critérios de estruturação — no caso, a pompa, o contraste ou o jogo entre o definido e o indefinido — , sem pre apriorísticos, com base nos quais se multiplicam as espécies de um grande e antropofágico gênero: a festa barroca, a cidade barroca, a família barroca, a igreja barroca. Definições que bem me lembram uma ou outra idéia sui generis, tal como a de que a decisiva contribuição do Brasil para o m undo é a de carnavalizá-lo.

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Se pretendem os estudar as festas na América portuguesa, é mister pro­ curar en te n d e r de que modo elas constituem seus referentes. E m outros ter­ mos, o desafio não está em medir sua capacidade de refletir uma sociabilida­ de prévia, mas sim em investigar através de que instrumentos ela nomeia o m undo do qual participa. Nessa tarefa, os historiadores talvez encontrem auxílio estimulante nos manuais de retórica; isso porque é parte do estudo das festividades o e ntendim ento das convenções que as estruturam e lhes perm item falar com efeito sobre o m undo.1’’ Nesse sentido, a retórica não me parece ser, ela mesma, um universal em cujas sobras ressurge o resto da his­ tória. Ela é, decerto, a própria historicidade ao passo que seu estudo nos aju­ da a com preender as classificações que presidiam saberes do Antigo Regime. Ademais, a recuperação dos padrões discursivos estabelece a historicidade tam bém por levantar o problema metodológico que refere, de um lado, a dinâmica entre as regras do jogo e o jogar, e, de outro, o em bate entre arte retórica e retórica das práticas. Ressurge, nesse ponto, mais uma vez, o tema das apropriações, pois, para além da e n q u e te que procura conceber a festa como discurso estruturado, em muitas ocasiões, pelo afa ordenador do Estado, a história do lúdico é tam ­ bém a história do modo como ele se integrou a práticas e concepções as mais variadas da sociedade. Aqui, o objeto demonstra toda a sua pluralidade, já que a análise de apropriações rem ete a dimensões inúmeras da vida social e, conseqüentem ente, a fontes e métodos diferenciados. E m alguns casos, fica a sensação de que o estudo das festas coloniais exige do historiador aquele trabalho de formiga que custa a encontrar indispensáveis fragmentos em ter­ mos, cartas particulares, ou entre inesgotáveis procedimentos jurídicos, mas que tornam possível traçar correspondências entre as festividades, de um lado, e as relações familiares, as irmandades ou a política estatal, de outro. Mais ainda, este é o campo em que se pode pensar a subversão das próprias formas retóricas, quando envolvidas pela linguagem ordinária. Trata-se, quando se elege a festa como matéria de investigação, de uma das maneiras de estudar o choque entre ideologias e apropriações diversas na sociedade colonial. E, por isso, é assunto que diz respeito a um dos aspectos mais importantes da história cultural: refiro-me à política. Já se levantaram algumas considerações acerca da operação que separa hierarquicam ente polí­ tica econômica e significados cotidianos. Vale ainda citar as estratégias que opõem, em campos distintos, a política institucional, de uma parte, e a análi­ se do universo simbólico, de outra. É como se esta última, tendencialm ente, tivesse de desaguar num contra-senso em que os conflitos e as ideologias se anulassem e o m undo tomasse aspecto gelatinoso e indiferente. Uma vez

13 Acerca da retórica nos estu d o s coloniais, consulte-se João Adolfo H an sen . A sátira e o enge­ nho. São Paulo: C om panhia das L etras-S ecretaria de E stado da C u ltu ra, 1989.

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que estas conseqüências não são fatais c que, portanto, é possível pensar, contrariamente, num a diferenciação que situe o poder como questão capital, bem como num a indistinção que só se concebe permeada pela recorrência, ate mesmo a institucional, é de se perguntar, ainda outra vez, se essas táticas não se relacionam fortemente com a atual impotência “globalizada” . A festa colonial é um exemplo significativo de como é válido esboçar métodos que capacitem o historiador para a difícil tarefa de entender rituais que são, ao mesmo tempo, tradição que se forja, confluência de instituições diferentes, apropriações inúmeras, e política de Estado. Foi sugerido que um saber que se vale das categorias culturais como fun­ damentos de caracterização social permite que se articulem as dimensões da sociedade de modo marcadamente dinâmico, assim como exige o cruzamen­ to de fontes de diversos tipos. Mas, para que as próprias categorias de classi­ ficação não se situem como um dado irredutível, é preciso, em parte, que os critérios sejam escolhidos indiciariamente na própria operação historiográfica, incluídas aí a leitura e a organização das fontes.14 Dessa maneira, no conta­ to com o material selecionado, o historiador poderá erigir, mediante a obser­ vação e o recorte de elem entos de repetição, categorias fundamentais, que, embora im pliquem um conjunto de tipos, não se dispõem nele de forma n e ­ cessariamente contínua e regulada. Ademais, deve-se evitar, na medida do possível, que esta continuidade seja instituída por pontos de fuga previsíveis que projetem suas classificações. E m outras palavras, falo de uma escrita que não se define como ontologia nem como desvio de transparência. E certo que perm anecem riscos de arbitrariedade excessiva, contra os quais nos adverte Perry Anderson na crítica que faz ao “paradigma indiciário” de Cario G inzburg.15 O perigo aumenta ao passo que se multiplicam as informa­ ções e os critérios, bem como se ampliam o espaço e a duração em análise; por este motivo, um método que parta de indícios deve resultar, como sempre, e m seleção. Estudar fatos do cotidiano numa perspectiva que também con­ tem pla o microscópico não pode nos levar à ilusão positivista segundo a qual quanto mais detalhes se acumulam, mais perfeitas são as categorias de análi­ se. Pelo contrário, o importante do método é que a historicidade ocorra ali onde o particular e o global se constituem reciprocamente, sem que um se imponha como anterior ao outro. Nossos códigos de avaliação do passado ge­ ralm ente não são nem devem ser os deste passado; e, de toda forma, nunca correspondem à “verdade” social que analisam. A idiossincrasia está no fato de reconhecer quais saberes operavam num determinado momento histórico — na colônia, por exemplo, podem ser ressaltados o organicismo político-

14 Cf. Cario G inzburg. Mitos, emblemas, sinais. Trad. São Paulo: C om panhia das L etras, 1989. 15 Pcrry A nderson. “Investigação noturna: Cario G inzburg”, in: '/.ona de compromisso. Trad. São Paulo: U nesp, 1996.

M A RC O

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A N T O N IO

SILVKIRA

teológico e a análise das riquezas, como taxipomias clássicas. Ignorá-los c incidir no anacronismo, mas incorporá-los desavisadamente é correr riscos ideológicos. A historicidade requer, portanto, uma postura crítica diante des­ ses códigos: compreendê-los neles mesmos à distância. A esse respeito, talvez valha a pena terminar relembrando as conhecidas palavras de Walter Benjamin, ainda que em bebidas no messianismo: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tam bém os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” 16 □ □ □ professor-assistente da Universidade Esta­ dual Paulista (Unesp), câmpus de Marília, autor de O universo do indistinto. E sta d o e sociedade nas M in a s setecentistas (1 7 3 5 -1 8 0 8 ), publicado pela Editora Hucitec. M a r c o

A nt ô n i o

S i l v k i r a

é

R e s u m o . O texto tem por objetivo esboçar considerações de caráter teórico-metodológico acerca dos conceitos de colonização com os quais tenho trabalhado, bem como indicar algumas de suas implicações sobre o modo como se avaliam os padrões de sociabilidade na América portuguesa. Trata-se de apreciar em que medida o im­ pacto dos novos temas e métodos trabalhados pela historiografia, em particular nas últimas três décadas, não põem na ordem do dia a necessidade de pensar a prática colonizadora segundo estruturações explicativas que se valham dos elementos de cultura como categorias fundamentais de análise.

16 W alter B enjam in. “Sobre o conceito da H istória” , in: Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Trad. 2.“ ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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