Escravos, livres e insurgentes : Paraíba, 1850-1888 [2a ed. (revisada).]
 9798577452568

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sse livro a n a lis a o processo d e transform ação do

Paraíba, 18501888.

escravo em lib erto , do kom em liv re em trab alk ad o r regu lar, b em com o as in su rg ên cias sociais em q u e

am bas as ca te g o rias so ciais se m an ifestaram . R e la ta o fim d a escravidão na Província d a P a ra k q b a , a p artir das form as de utilização do escravo, d e sua resistên cia e do m ovim ento a b o licio n ista. R essalta, tam bém , as práticas d iscip lin ad o ras d o tra b a lk o nas exp eriências das C olónias A grícolas, das C asas d e C a rid a d e do P a d re Ibiapina e d a E scola d e A rtífices. Por fim, são exam in ad os dois m ovim entos sociais: "Ronco da A k elk a" (1 8 5 1 -1 8 5 2 ) e "Q u e b ra -Q u ilo s" (1 8 7 4 -1 8 7 5 ), através dos quais foi possível ca ra c te riz a r as v in cu laçõ es económ icas e sociais e, por se tra ta r d e co n ju n tu ra s e sp ecia is, as formas d e m anifestações políticas dos livres, lib erto s e escravos.



A o longo do livro, que já é À -\ referência, Ariane foi muito éSLm ^ \ sensível ao tra ta r de temáticas consideradas áridas pela historiografia: escravos - do cativeiro à liberdade; economia oitocentista na Paraíba, colocada a partir do contexto brasileiro; homens livres pobres e movimentos sociais. E corajosa, também, ao revisitar, com um novo olhar, uma temporalidade muito frequentada pela historiografia brasileira. Essa é, sem dúvida, uma tarefa árdua, mas que a autora, embasada em documentos e referências bibliográficas sobre o assunto, apresentou de uma forma clara e concisa. Com uma boa argumentação o texto flui, a narrativa é agradável e deixa o leitor com vontade de ler de novo, com uma sensação de 'já acabou?'. Assim, Ariane mostra que possui qualidades para escrever história: escreve bem, é curiosa, e nas pesquisas foi em busca dos indícios que a documentação apresentou, abrindo a possibilidade de dialogar com uma historiografia que relegou a um segundo plano, ou simplesmente silenciou sobre a Paraíba no império. Tem o mérito de dialogar com a produção intelectual do seu tempo, tendo em vista que, como chama a atenção Cario Guinzburg "ninguém aprende o o fício de co n h e ce d o r ou d ia g n o s tig a d o r limitando-se a pôr em prática regras preexistentes" (1989). Portanto, esse livro responde aos questionamentos e inquietações da autora no momento da sua produção, mas acima de tudo, abre espaço para o debate e permite que as investigações sobre essa temática continuem. Serioja R. Cordeiro Mariano

Escravos, livres e insurgentes: Paraíba, 1850-1888

Ariane Norma de Menezes Sá

Escravos, livres e insurgentes Paraíba, 1850-1888

Editora Universitária da UFPB João Pessoa 2009

reitor RÔMULO SOARES POLARI vice-reitora MARIA YARA CAMPOS MATOS

ED IT O R A UNIVERSITÁRIA Diretor JO SÉ LUIZ DA SILVA vice-diretor JO S É AUGUSTO DOS SANTOS FILHO divisão de editoração ALMIR CORREIA D E VASCONCELLOS JÚN IO R Capa: Pinturas de Jean Baptiste Debret (1816-1834); Mapa: Revista Nossa História, n° 8 Concepção: Emmanuel Conserva de Arruda. Impressão: F&A Gráfica e Editora Ltda.

S llle

Sá, Ariane Norma de Menezes. Escravos, livres e insurgentes: Paraíba (1 8 5 0 - 1888)/Ariane Norma de Menezes Sá. —2. ed. —João Pessoa : Editora Universitária da UFPB, 2009. 134p. 1. História - Paraíba 2. Paraíba - século X IX 3. Escravos - Paraíba 4. Livres e insurgentes - século X IX ISBN 979-85-7745-256-8

UFPB/BC

CDU: 981.33

Direitos desta edição reservados à: EDITORA UNTVERSITÁRIA/UFPB Caixa Postal 5081 - Cidade Universitária - João Pessoa - Paraíba - Brasil - CEP: 58 .051-970

www.editora-UFPB.com.br Impresso no Brasil Foi feito depósito legal

Printed in Brazil

Aos meus pais, Osni (in memoriam) e Amável, pelas opções. A Lúcio Flávio, cúmplice e parceiro de muitas histórias. A Paulo, Nadja (in memoriam), Niedja, Aline, Marcos, Aleuda, Neila e Osni Jr., p ela alegria de poder compartilhar a vida com eles.

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U N IVERSID AD E F E D E R A L DA PARAÍBA

Durante anos esse trabalho circulou entre pesquisadores, sendo freqíientemente utilizado por professores na disciplina História da Paraíba. Fui muito cobrada e estimulada a publicá-lo, mas só agora, depois de quase uma década da realização de sua defesa junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), dispus-me a fazer uma rápida revisão, que consistiu mais em cortes do que em acréscimos, e contou com a leitura, discussão e contribuição de muita gente. Por isso, gostaria de agradecer a alguns membros do grupo de pesquisa: Sociedade e Cultura na Paraíba Imperial, com quem compartilho a paixão pela pesquisa em temáticas sobre o Império brasileiro, pelas importantes sugestões, muitas das quais incorporei. Serioja Cordeiro Mariano, amiga e companheira na coordenação do referido grupo, que, além do incentivo permanente, leu e opinou de forma definitiva sobre muitos aspectos, até mesmo os formais. Carmelo Filho, pelo cuidado com que se ateve aos detalhes; Nayana Cordeiro Mariano, pelas relevantes sugestões; Maximiano Lopes Machado, pelas discussões conceituais; Mayrinne Meira e Naiara Ferraz, que gentilmente se dispuseram a ler a versão final e fizeram importantes sugestões; A p ro f Dr3 Eliane Ferraz, pela cuidadosa correção do texto; Fabrício Morais, por seus comentários sempre pertinentes; Emmanuel Conserva, que fez considerações muito pontuais e foi de enorme ajuda ao pesquisar os mapas e adaptá-los às necessidades deste livro, além da inestimável participação na formatação final desse livro A Raimundo Barroso Cordeiro Júnior, meu amigo e compadre, colega de trabalho, professor do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), devo a presteza e dedicação com que leu e sugeriu alterações nos originais, o que me levou a transformar os anteriores quatro capítulos em três, mais enxutos e, talvez, até mais leves. Mais do que agradecer, quero registrar a honra

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de poder compartilhar, em diferentes momentos, um pouco da sua sabedoria. A ele, minha admiração! À banca examinadora, composta pela P rof Dr3 Vera Lúcia Ferlini e pelo Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira, pelas sugestões que, agora, tentei incorporar. À P ro f Dr3 Socorro de Fátima Barbosa, por ser honesta e verdadeira na sua leitura. Finalmente, quero agradecer as duas Inês/Inez, que foram muito importantes, vivas, presentes e definitivas na minha vida. Primeiro, a Inês Caminha Rodrigues, professora que me ensinou com sua didática o quanto uma aula pode ser prazerosa e rica em informações, por ter me reconhecido entre tantos e por abrir as primeiras portas profissionais. Segundo, a Inez Garbuio Peralta, minha orientadora no mestrado e no doutorado, que depositou, desde o primeiro momento, confiança em mim, demonstrada pela liberdade vigiada, que permitiu meu crescimento intelectual. Em comum, as duas têm a grandeza de identificar e de criar condições para que seus alunos possam crescer. Com elas, aprendi não só história, mas também aprendi lições para minha vida profissional. João Pessoa, maio de 2005.

Sumário Nota da au to ra.....................

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Prefácio da 2a edição............................................................................... 13 Introdução....................................................................................................15 C apítulo I

Escravos: do cativeiro à liberdade..........................

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1. Origem da escravidão e economia no Brasil oitocentista..............21 2. As leis abolicionistas.............................................................................. 26 3. Economia e trabalho escravo na Paraíba.......................................... 35 4. Escravidão e abolição na Paraíba........................................................39 C apítulo II

Livres: da itinerância à inserção no mercado de trabalho........ 57 1. A regulamentação do mercado de trabalho livre no Brasil do século X I X ................

57

2. O trabalho livre no Norte Agrário.......................................................63 3. O trabalho livre na Paraíba......................................................

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C apítulo III

Insurgentes: Abelhas e “Quebra-Quilos” ......................................... 81 1. “Ronco da Abelha” .................................................................................81 2. “Quebra-Quilos” ......................................................................................93 Considerações finais................................................................................ 127 Referências..................................................................................................131

N ota da autora.

Publicar o mesmo livro uma segunda vez deve atender a motivos que fogem ao controle do autor. Sem dúvida, esse é o caso. A primeira edição esgotou em menos de um ano. Os colegas que ministram a disciplina História da Paraíba, que passaram a adotar o livro, e o distribuidor Garibaldi, que o disponibilizou nas bancas de jornais em todo o estado, foram os principais responsáveis pela façanha. Os novos alunos que ingressam na Universidade, tanto na Federal como na Estadual, desde 2006, passaram a ter como único acesso ao livro, a cópia de capítulos, o que gera um conhecimento fragmentado da obra. Com a intenção de atender essa demanda e de difundir a história da Paraíba, também, entre os alunos do ensino médio, foi que me propus a fazer uma revisão, sem alterar o conteúdo original, e publicar essa segunda edição, numa tiragem de 1.600 exemplares. Para isso, contei com a ajuda dos bons parceiros, os historiadores Carmelo Ribeiro do Nascimento Filho, que revisou o texto, Emmanuel Conserva de Arruda que, mais uma vez, não satisfeito com o resultado anterior, concebeu essa primorosa capa, Eliane Ferraz e Amanita de Sá Maia, que fizeram a correção final e Serioja Mariano que escreveu a apresentação. A todos, meu muito obrigado!

João Pessoa, janeiro de 2009. Ariane Norma de Menezes Sá

Prefácio da segu n d a edição A segunda edição de Escravos, livres e insurgentes: Paraíba (1850-1888) vem em uma boa hora. Vivenciamos um momento em que as pesquisas sobre o império brasileiro, e suas dimensões nas várias províncias, começam a ganhar mais espaço no cenário acadêmico. Esse livro vem, portanto, somar-se às publicações e contribuir com mais um ponto de vista, notadamente sobre as especificidades da história da Paraíba nesse período. Fruto de suas inquietações e do interesse em pesquisar e compreender um momento tão complexo da História, Ariane Norma de Menezes Sá se debruçou sobre essa temática durante o mestrado em História Social, realizado na Universidade de São Paulo, no final dos anos 1980 e primeiros anos da década de 1990. Estudiosa e conhecedora da história imperial brasileira, a autora sempre está preocupada em montar o mosaico da história da Paraíba no Império, o que fica claro em sua trajetória acadêmica, produção bibliográfica, orientações realizadas nas Programas de Pós-Graduação em História (PPGH) e em Geografia (PPGG) e participação no Grupo de Pesquisa “Sociedade e Cultura na Paraíba Imperial” (CNPq), do qual somos coordenadoras. Uma pesquisa que segundo a autora: “levará pelo menos vinte anos” pra mapear e preencher as lacunas existentes, ainda hoje, sobre esse período na Paraíba. Ao longo do livro, que já é referência, Ariane foi muito sensível ao tratar de temáticas consideradas áridas pela historiografia: escravos - do cativeiro à liberdade; economia oitocentista na Paraíba, colocada a partir do contexto brasileiro; homens livres pobres e movimentos sociais. E corajosa, também, ao revisitar, com um novo olhar, uma temporalidade muito frequentada pela historiografia brasileira. Essa é, sem dúvida, uma tarefa árdua, mas que a autora, embasada em documentos e referências bibliográficas sobre o assunto, apresentou de uma forma clara e concisa. Com uma boa argumentação o texto flui, a narrativa é agradável e deixa o leitor com vontade de ler de novo, com uma sensação de ‘já acabou?’. Assim, Ariane mostra que possui qualidades para escrever história: escreve bem, é curiosa, e nas pesquisas foi em busca dos indícios que a documentação apresentou, abrindo a possibilidade de dialogar com uma historiografia que relegou 13

a um segundo plano, ou simplesmente silenciou sobre a Paraíba no império. Tem o mérito de dialogar com a produção intelectual do seu tempo, tendo em vista que, como chama a atenção Cario Guinzburg “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou diagnostigador limitandose a pôr em prática regras preexistentes” (1989). Portanto, esse livro responde aos questionamentos e inquietações da autora no momento da sua produção, mas acima de tudo, abre espaço para o debate e permite que as investigações sobre essa temática continuem. Cabedelo, dezembro de 2008 Serioja R. Cordeiro Mariano

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Escravos, livres e insurgentes

Introdução

Meados do século X IX . Comandantes de navios ingleses invadem a costa brasileira e interceptam embarcações, justificando estarem cumprindo o determinado pelo Aberdeen Act (1845), que decretava a ilegalidade do tráfico de escravos. No Congresso, deputados e senadores conservadores, em acalorados discursos, acusam o Gabinete liberal de não garantir a defesa da soberania nacional. A “carga” que os ingleses se propunham a apreender eram africanos que seriam comercializados no Brasil. As discussões sobre a extinção desse tráfico envolvendo o Brasil arrastaram-se durante toda a primeira metade do século X IX , e apenas foi solucionado em 1850, com a decretação de sua abolição. A partir de então, a questão do trabalho passou a ocupar o centro da discussão política no Brasil. Segunda metade do século X IX . Diferentes conjunturas históricas. A transição do trabalho escravo para o livre é o assunto mais recorrente nas distintas rodas sociais. Os proprietários de escravos questionavam a interferência do Estado em assuntos relacionados ao trabalho e defendiam que a alforria deveria ser uma iniciativa do dono, pois a repercussão de seu ato seria a gratidão do escravo. Ao mesmo tempo, solicitavam do Estado medidas que definissem melhor a relação com os homens livres. Em 1878, em dois congressos agrícolas realizados em Recife e no Rio de Janeiro, esses senhores se posicionaram a favor de uma lei que regulamentasse o trabalho livre. Os escravos, durante todo o período colonial, reagiram à exploração a que eram submetidos. Individualmente, as ações convergiam para a fuga, assassinato do senhor ou capataz, suicídio, aborto, infanticídio. Coletivamente, formavam quilombos, sendo o mais conhecido o de Palmares, organizado durante o século X V II, na serra da barriga, 15

Escravos, livres e insurgentes

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localizada no que se compreende atualmente o estado de Alagoas. Na Paraíba, embora pouco estudados, ressaltamos os de Parati be, Guajú, Livramento, Mucambo do Engenho Espírito Santo. Mas, a maioria permaneceu submetida a uma situação em que não apenas o trabalho era apropriado, como também o próprio trabalhador. No século X IX , nas décadas de setenta e, principalmente, oitenta, as ações dos escravos em busca da liberdade tomaram uma dimensão mais ampliada. No Congresso, senadores e deputados discutem e aprovam leis e medidas para regulamentar a gradativa transformação do escravo em liberto. São as Leis do Ventre Livre (1871), Sexagenário (1885) e Áurea (1888). Também é aprovada uma lei que corrige os problemas que inviabilizam os contratos de trabalho feitos com os homens livres pobres, principalmente os imigrantes, e obrigam os trabalhadores nacionais, especialmente os nortistas, a trabalhar. A lei reformada em 1879 é a de Locação de Serviços de 1831. Nesse contexto, este livro tem por finalidade aprofundar essas discussões, tendo como referência os trabalhos escravo e livre e os movimentos sociais que abalaram a rotina das províncias nortistas no século X IX . Trata das leis e medidas tomadas pelo Estado imperial para resolver a questão do trabalho e verifica suas formas de implementação no Norte do Brasil e, mais especificamente, na Província da Paraíba. Nos oitocentos, o Norte era a região geográfica que abrangia a área compreendida do Recôncavo Baiano ao Amazonas. O período escolhido, 1850 a 1888, corresponde ao intervalo de tempo em que se define o perfil de cada região quanto às formas de garantir mão-de-obra livre para suas lavouras: imigrante para o Sul cafeicultor e o trabalhador nacional para o Norte açucareiro e algodoeiro. Há de se considerar, ainda, que o ano de 1850 registra a homologação de duas leis importantes para o processo de organização do mercado de trabaiho livre, a que extingue o tráfico negreiro e a Lei de Terras. O ano de 1888 corresponde à abolição da escravidão. A primeira fase da pesquisa foi historiográfica. Tive acesso às mais diversas obras sobre as temáticas, livros, textos publicados e inéditos, teses de doutorado e dissertações de mestrado. O levantamento 16

bibliográfico teve por finalidade buscar pistas sobre o tema, mais do que fazer uma análise historiográfica, e se restringiu à produção realizada até a década de 1980. Em um segundo momento, fiz um levantamento no Arquivo Público Nacional e na Biblioteca Nacional, ambos no Rio de Janeiro; no Instituto Histórico e Geográfico daParaíbaenoNúcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR/UFPB), onde pude localizar artigos de jornais, leis e medidas homologadas pelo Império brasileiro, além de relatórios de Presidentes de Província. Dividido em três capítulos, o livro tem por finalidade analisar o processo de transformação do escravo em liberto, do homem livre em trabalhador regular, bem como as insurgências sociais em que ambas as categorias sociais se manifestaram. Numa sociedade em que a produção tem como referência de trabalho o escravo, aos homens livres e pobres, que não possuíam terra ou escravos, restava a itinerância, pois o fato de trabalhar para alguém significava ter que se submeter a uma condição semelhante à do escravo, considerando que os proprietários rurais, ao empregarem a mão-de-obra livre, não abandonavam os maus tratos nem a mentalidade senhorial para se metamorfosearem em patrões ou empregadores no sentido moderno da palavra. Essa situação tomava explosiva qualquer mudança no cotidiano dessas pessoas. Atendendo à necessidade de articular esses diferentes aspectos de transição do trabalho, examino, no primeiro capítulo, a desarticulação do escravismo, considerando as leis que foram elaboradas e homologadas pelo Estado imperial. Especial atenção foi dada ao fato de que estas leis eram resultantes de uma experiência social, posto que absorviam as transformações sócio-econômicas e garantiam a transição do trabalho escravo para o livre, conforme os interesses dos proprietários rurais. Verifico também o fim da escravidão na Paraíba, com base na forma de utilização do escravo, na sua resistência e no movimento abolicionista. Mereceu destaque a inexpressiva repercussão da Lei Áurea na Província, considerando a pequena quantidade de escravos, posto que o homem livre pobre já participava ativamente do processo produtivo desde meados do século X IX , sendo o impacto de tão importante medida muito pequeno. 17

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No segundo capítulo, inicialmente, trato das leis e medidas adotadas pelo Estado imperial para disciplinar o trabalho livre no Brasil. Em seguida investigo a crise económica enfrentada pelo Norte, que era agravada pela desarticulação do escravismo e pelos níveis de exploração a que estavam submetidos os homens livres pobres. A discussão central aborda a forma como a transição do trabalho escravo para o livre foi enfrentada pelos grandes proprietários de terra do Norte, especificamente, pelos paraibanos. Para tanto, verifiquei as resoluções tomadas por esses senhores em dois congressos agrícolas (1878) e o discurso de alguns dos seus representantes na Câmara dos Deputados. Discorro, ainda, sobre as razões que levaram estes proprietários a optar pelo trabalhador livre nacional e sobre as saídas históricas para a formalização do mercado de trabalho livre na Província da Paraíba. Ao iniciar uma pesquisa, muitas vezes acabamos guiados por ela. Foi por isso que, para entender aspectos disciplinadores do trabalho, tive que relatar a existência de experiências como as Colónias Agrícolas, as Casas de Caridade do Padre Ibiapina e a Escola de Artífices, com as quais finalizo o segundo capítulo. Também, de forma recorrente, dois movimentos sociais eram freqiientemente relacionados à existência e à identificação dos homens livres e pobres, um dos centros das minhas preocupações. Por isso, inevitavelmente, fui levada a investigar as revoltas “Ronco da Abelha” (1851-1852) e “Quebra-Quilos” (1874-1875), por meio das quais foi possível caracterizar as vinculações económicas e sociais, por se tratarem de conjunturas especiais e as formas de manifestações políticas dos livres, libertos e, na segunda sedição mencionada, dos escravos. Essas revoltas coletivas demonstram claramente as reações dos homens livres pobres aos níveis de exploração a que estavam submetidos, considerando-se que cada vez mais se utilizavam menos escravos na produção. As tentativas feitas pelo Estado imperial de controlar melhor, através de leis, esse trabalhador livre nacional foram o motivo desencadeador dessas revoltas, pois demonstravam a distância

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existente entre sua realidade e as medidas tomadas pelo Estado. Essa foi a temática central do terceiro capítulo. Esta versão de história, elaborada nos últimos anos da década de 1980 e primeiros da de 1990, e agora transformada em livro, sugere inúmeros objetos de pesquisa sobre a problemática tratada, sendo assim convido todos aqueles interessados em história do Brasil e Paraíba a ler e discutir tão apaixonante temática.

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Escravos, livres e insurgentes

C a p ít u l o I

Escravos: do cativeiro à liberdade

1. O rigem da escravidão e econom ia no Brasil oitocentista O Brasil colonial foi estruturado para ser um complemento económico da metrópole que, em diferentes contextos históricos, determinaria a forma de sua inserção no mercado internacional. Mesmo assim, a historiografia aponta que, intemamente, a colónia criou espaços próprios de convivência e de sobrevivência, denotados pelo crescente desenvolvimento de um mercado interno, e pelas manifestações contra Portugal ou portugueses, intensificadas no final do século XVIII. As três primeiras décadas de exploração foram marcadas pela extração do pau-brasil. As feitorias instaladas no litoral brasileiro funcionavam como base de apoio, não havendo iniciativa por parte do Estado português no sentido de povoar ou de estabelecer unidades produtivas. A mão-de-obra utilizada inicialmente foi a nativa. A extração do pau-brasil foi feita com a ajuda dos índios que, de acordo com uma prática cultural existente em algumas tribos - o escambo - estabeleceram um sistema de trocas com os portugueses e outros povos europeus1. 1 A relação de escambo era estabelecida a partir da troca de instrumentos de ferro e

bugigangas por pau-brasil e produtos de subsistência, fornecidos, respectivamente, por europeus e indígenas. Com as expedições de interiorização da conquista, o escambo tomou outra conotação. As trocas passaram a ser de cavalos, armas de fogo e outros adereços de guerra, fornecidos pelos portugueses por índios capturados por inimigos de tribos rivais. 21

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Escravos, livres e insurgentes

Com a efetivação da conquista, os portugueses passaram a recorrer cada vez mais à mão-de-obra indígena, por meio do apresamento e, com o decorrer do tempo, de sua escravização. Alguns fatores contribuíram para diminuir a escravização do indígena sem, contudo, significar seu fim: a suscetibilidade dos nativos às doenças do Velho Mundo, que os tornava um investimento de alto risco; a resistência contínua do gentio ao trabalho forçado, através de fugas individuais e coletivas, eram uma forma de preservação física e sócio-cultural da dominação colocada em prática por colonos e missionários católicos. As leis sancionadas pela Coroa Portuguesa, a partir de 1570, dificultavam a escravidão indígena. Porém, mesmo com a introdução de africanos, o índio continuou sendo utilizado em muitos setores produtivos durante o período colonial (SCHWARTZ, 1988; MEDEIROS, 1999). No Sul, os índios, denominados de “negros da terra”, durante os anos seiscentos e setecentos, eram bastante utilizados. Nas áreas de produção do açúcar, o número de africanos só ultrapassa o de indígenas no século XVII e, até o final do século X V III, eram a principal mão de obra nas áreas que atualmente correspondem aos estados do Maranhão, Pará e Amazonas. (PERRONE-M OISÉS, 1992) A partir dos anos 30 do século X V I, a ocupação da terra brasileira foi estratégica, pela necessidade de defendê-la contra outros povos europeus interessados em sua riqueza. Foi também económica, para trazer lucros à coroa portuguesa e demais agentes coloniais envolvidos no processo de expansão e de colonização. A preocupação da coroa portuguesa era a de ocupar o território brasileiro sem que isso lhe fosse oneroso. O pressuposto básico era doar terras a quem tivesse condições económicas para explorá-las. Para tanto, a terra foi dividida em grandes lotes, denominados Capitanias Hereditárias (1534), concedidos a donatários e herdeiros que, por sua vez, os dividiam em quantidades generosas e os distribuíam entre sesmeiros. As Capitanias significavam a posse da terra e oficializavam a propriedade da coroa portuguesa. As sesmarias a efetivação da conquista.

É importante ressaltar que, ao donatário era cedida apenas a jurisdição parcial da capitania. Este não mantinha relação de subordinação com o sesmeiro, como acontecia no feudalismo. Nesse contexto de organização das atividades produtivas, o trabalho escravo africano, que foi introduzido na colónia portuguesa, deve ser entendido a partir de vários aspectos diferenciados, entretanto complementares: a lucratividade do tráfico, comandado pelo capital mercantil; a necessidade de limitar o acesso à terra, pois a vinda de trabalhadores livres poderia gerar uma dispersão de mão-de-obra, devido à existência de grande quantidade de terra não utilizada, pondo em risco o próprio sentido da colonização, que era implantar uma estrutura económica que atendesse às demandas externas. (FERLINI, 1988). Por fim, era necessário garantir a lucratividade do proprietário do escravo que, depois de ter tirado o investimento inicial da compra, teria lucros absolutos sobre o trabalho do africano. Há de se considerar, também, a experiência que os portugueses já possuíam com a utilização dessa mão-de-obra em outras partes de suas possessões ultramarinas. Algumas estratégias eram colocadas em prática para dificultar a reação dos africanos à escravidão, como por exemplo, separar as pessoas de uma mesma etnia, distribuindo-as entre diferentes proprietários. A vinda de escravos de outras terras também serviu para diminuir o impacto que as fugas de trabalhadores causavam ao processo produtivo, pois, diferentemente dos indígenas, os africanos desconheciam a geografia da América portuguesa, onde passavam a habitar. (MATTOSO, 1982). No final do século X V III, os fundamentos do sistema colonial estavam abalados. Do ponto de vista internacional, o desenvolvimento da indústria, principalmente inglesa, solicitava matéria-prima e mercado consumidor. Intemamente, alguns movimentos sociais colocavam em questão a permanência da intermediação portuguesa nos negócios do Brasil com o exterior. No entender de Emília Viotti da Costa, tais movimentos tinham por base a luta contra o pacto colonial e como limite a manutenção da escravidão (COSTA, 1985).

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A luta por maior autonomia económica e política é fruto de um mesmo contexto histórico, marcado pela contestação ao caráter monopolista, garantido pelo exclusivismo colonial. A maneira como foi conduzida a autonomia do Brasil inaugurou uma forma diferenciada de fazer política de sua elite: para evitar mudanças radicais e perda do controle da sociedade ou mudanças na economia, aqueles que estavam na condução do processo optaram por fazer um pacto de poder restrito a um arranjo forjado no âmbito da política. Na perspectiva dos ilustrados nativos, o Brasil já nascia grande, por suas riquezas naturais e dimensões territoriais, e civilizado, pois estavam fundando um Império monárquico-constitucional nos trópicos, conduzido por um imperador de origem europeia (LYRA, 1994). No entanto, o novo modelo político, instalado com a independência em 1822, não modificou a orientação da economia, baseada na exportação e no trabalho escravo, nem tampouco diminuiu o impacto da ingerência internacional em seus negócios, pois os ingleses, através da instalação de uma rede de comércio, de transporte e de créditos, passaram a deter um importante controle sobre os rumos económicos do novo país. No século X IX , principalmente a partir dos anos 30, o eixo mais dinâmico da economia deixou de ser o Norte açucareiro e algodoeiro e deslocou-se para o Sul cafeicultor, inicialmente para o Vale do Paraíba - Rio de Janeiro -, e nas décadas seguintes para o Oeste paulista, como podemos constatar na tabela abaixo: T A B EL A l-B R A S IL :P R IN C IP A IS P R O D U T O S E X P O R T A D O S (EM PERC EN TU A IS) 1821-1860 PRODUTOS Açúcar Algodão Café Couros e peles

1821-1830 30,1 20,6 18,4 13,6

1830-1840 24,0 10,8 43,8 7,9

1841-1850 26,7 7,5 41,5 8,5

1851-1860 21,2 6,2 48,8 7,2

A economia oitocentista deve ser pensada como algo mais complexo do que uma “plantation” escravista-exportadora2, pois desde o período colonial que, ao lado do sistema escravista dominante, voltado para o comércio exterior, vinha se desenvolvendo uma economia dirigida para o abastecimento interno. A historiografia, a partir dos anos setenta do século X X, por meio de novas pesquisas, demonstrou que a economia colonial era bastante diversificada, havendo uma importante demanda comercial interna e que o escravo era utilizado em outras atividades produtivas que não aquela voltada para o mercado externo. Maxwel, analisando a economia mineira no século X V III, demonstrou que o período pós-mineração não significou a decadência económica da região, haja vista a manutenção e o estabelecimento de produções escravistas mercantis voltadas para o abastecimento do mercado interno (MAXWEL, 1973). O século X IX confirmaria esta tendência. Martins(1980), analisando Minas Gerais do século X IX , provou ser ela a maior província escravista do Brasil, onde 75% dos escravos em 1874 eram utilizados nas atividades não exportadoras. O Rio de Janeiro, no mesmo ano de 1874, possuía 51% do número total de seus escravos desenvolvendo atividades que não eram ligadas a agro-exportação. Assim como Martins, muitos outros historiadores vão sublinhar a crescente importância do mercado interno (FRAGOSO, 1988). Contudo, assinale-se que os lucros auferidos com o mercado interno eram inferiores aos conseguidos com a exportação. Mesmo assim, o crescimento demográfico e a concentração populacional em centros urbanos possibilitaram que 60% da população cativa total, concentrada nas principais províncias cafeeiras em 1874 (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), estivessem desenvolvendo atividades económicas em municípios não cafeeiros, o que confirma a importância das produções voltadas para o abastecimento do mercado interno (FRAGOSO, 1990).

Fonte: PINTO, 1971. 2 Conceito utilizado pela historiografia para definir a economia brasileira, estabelecida

a partir da colónia, baseada na grande propriedade, na monocultura e no trabalho escravo. 24

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Escravos, livres e insurgentes

2. As leis abolicionistas A questão social que mais repercutiu politicamente no Brasil oitocentista foi a do trabalho. Tratava-se de superar a escravidão assegurando aos proprietários rurais o controle do processo de transição do trabalho escravo para o livre. Por isso, essa operação deveria ser feita de forma lenta e gradual, para garantir mecanismos de controle, disciplina e organização do mercado de trabalho (GEBARA, 1986; KOWARICK, 1987). E possível distinguir dois momentos históricos diferentes. O primeiro, marcado pelas discussões sobre o fim do tráfico de escravos, praticamente desencadeadas por pressões externas. O segundo, mobilizou intemamente vários setores políticos em diferentes conjunturas históricas e corresponde aos movimentos que levaram à abolição da escravidão. A legalidade do tráfico de escravos desde muito vinha sendo contestada pela Inglaterra. Nos tratados de 1 8 1 0 ,1815e 1817 feitos com Portugal, já constavam cláusulas que acenavam para o fim do tráfico. O Brasil, após a independência, para ser reconhecido como nação pela Inglaterra, assinou um acordo em 1826 que, ratificado em 1827, que dava o prazo de três anos, a partir dos quais o tráfico seria considerado pirataria.3 No período imediatamente posterior a 1826, houve um aumento considerável na importação de escravos. Quando a lei antitráfico entrou em vigor em 1831, ocorreu uma redução no número de escravos comprados pelos brasileiros, sem prejuízo para o setor produtivo mais importante: o agro-exportador, considerando a quantidade acumulada no período anterior (CARVALHO, 1988).

3Para a Inglaterra era importante a independência do Brasil, bem como o fim do tráfico.

A independência significava negociar diretamente com o Brasil sem intermediação de Portugal. O fim do tráfico garantiria que o processo de abolição seria irreversível, e a Inglaterra, em pleno florescimento industrial, necessitava de novos mercados consumidores e a utilização do trabalho de homens livres lhe garantiria isto. Além disso, era necessário relativizar os preços das mercadorias que, produzidas por escravos, tinham um menor valor embutido, o que as tomavam mais baratas e competitivas. 26

Apartir de 1845, com a decretação do AberdeenAct pe\a Inglaterra, que determinava o fim do tráfico com represálias aos navios negreiros, o governo brasileiro começou a discutir uma lei com o objetivo de resolver o problema do tráfico, que não havia cessado, apesar da lei anterior. O ano de 1850 foi marcado por duas leis fundamentais para a compreensão do processo histórico brasileiro nas décadas seguintes. A lei Eusébio de Queiroz, que extinguia o tráfico negreiro, dando início a um processo irreversível de transição para um sistema de trabalho livre, pois a escravidão perdeu sua fonte de reabastecimento e se tomava condenada; e a Lei de Terras, que estabelecia o acesso à terra devoluta apenas mediante a sua compra, devendo o seu registro ser feito imediatamente. Essas leis são consideradas pela historiografia como um marco no processo de desagregação da ordem escravista. A Lei de Terras, à medida que restringia o acesso à terra, garantia mão-de-obra para a lavoura, pois impelia o trabalhador livre nacional ou estrangeiro e o ex-cativo a se submeterem às condições do mercado de trabalho como única forma de assegurar a sobrevivência. Isso reforçava o sentido da transição, uma vez que a transformação das relações de produção não traria grandes problemas para as estruturas existentes (MARTINS, J., 1981). O debate sobre a escravidão, nos anos de 1830 e 1852 é posto na ordem do dia na Câmara dos Deputados, mas, só volta à tona, efetivamente, em 1866, quando D. Pedro II coloca a possibilidade da Lei do Ventre Livre. No entanto, essa idéia foi rechaçada pelo Conselho de Estado, por considerar que não havia pressão social neste sentido e também por receio da ocorrência de revoltas internas que dificilmente seriam controladas, pois o exército brasileiro estava mobilizado na guerra contra o Paraguai (1865-70). As discussões em tomo da questão eram de duas ordens: de um lado, a defesa de uma lei que possibilitasse uma abolição gradual, garantindo um controle maior por parte do governo e dos proprietários de escravos, evitando-se, assim, rebeliões e agitações, como as que 27

Escravos, livres e insurgentes

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ocorreram em outros países, como Haiti. Essa era a posição de alguns deputados como Nabuco Araújo, e que mais tarde seria assumida por Rio Branco, entre outros; argumentação contrária era feita pelos proprietários rurais de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, no sentido de inviabilizar o projeto. No entender deles, uma alforria concedida pelo dono do escravo, e não pela força da lei, provavelmente, desenvolveria no escravo um sentimento de gratidão e reconhecimento, considerando que esse seria entendido como um ato de generosidade do proprietário, não havendo, assim, rompimentos ou ressentimentos por parte do liberto. A Lei do Ventre Livre só foi aprovada em 1871, apoiada por funcionários públicos que ocupavam cadeiras no Congresso e, segundo alguns, com a indiferença dos nortistas e a oposição dos representantes do Sul4. Segundo José Murilo de Carvalho, a diferença quantitativa do número de escravos entre o Norte e o Sul não motivou a aprovação da lei, apenas facilitou. Em 1872, o Norte contava com 33,7% dos escravos contra 59% do Sul. Também seria exagerado atribuir à mobilização dos escravos a motivação da aprovação da lei. (CARVALHO, 1988) A referida lei, de acordo com Ademir Gebara, [...] foi o componente decisivo para a organização e disciplina do mercado de trabalho livre no Brasil, essa lei fonnulou a estratégia básica, tanto para definir a forma pela qual se dariam a abolição da escravidão e a transição para o sistema de trabalho livre, quanto para a configuração do mercado de trabalho livre (1986, p.ll). A lei do Ventre Livre decretou a liberdade dos filhos de escravos nascidos após 28 de setembro de 1871 e estabeleceu que o dono dos pais de ingénuos deveria cuidar do menor até os oito anos. Depois disso, o

4 A região Norte compreendia as províncias situadas ao Norte de Minas Gerais,

localizadas entre a Bahia e o Amazonas. O Sul compreendia as províncias situadas ao Sul da Bahia e englobava as províncias localizadas entre Minas Gerais e Rio Grande. 28

senhor poderia receber uma indenização ou utilizar seus serviços até os 21 anos de idade. Assim, o Estado interferia nas relações entre senhor e escravo, mas deixava ao encargo do primeiro a forma como deveria conduzir a educação do liberto. Era dado ao proprietário da mãe do escravo um tempo de oito anos, prorrogável até os 21, para orientar o liberto. Além disso, aos proprietários era dada a opção de aproveitar os serviços do menor até que completasse 21 anos, o que lhes permitia a utilização desse numa fase extremamente produtiva, dando-lhes a chance de exercer um controle sobre os libertos que poderia transcender o período estipulado pela maioridade. A lei reforçou outro meio de se conseguir a liberdade: a compra da alforria. Uma e outra forma de possibilidades, criadas para se obter a liberdade, deixava nas mãos dos proprietários de escravos o poder de decisão sobre os caminhos do processo de organização do mercado de trabalho. O liberto pela Lei do Ventre Livre teria seu tempo de aprendizado, e aquele escravo que desejasse a liberdade teria que economizar para comprar sua alforria, o que era, em si, um mecanismo disciplinador, pois esse trabalhador passava a ter contato com valores desconhecidos até então no seu universo de referência, baseado na escravidão. A aplicação da lei asseguraria certo controle do Estado e da elite sobre o número de escravos existentes no Império, pois ela previa a existência de um registro especial, onde deveria constar quantos escravos havia por região, e de uma classificação dos escravos como única forma de receber os benefícios do Fundo de Emancipação que então se criava. A principal preocupação dos proprietários rurais do Norte e do Sul do Império era com a possibilidade de esses ex-escravos tomaremse vadios. E tanto que foram muitas as sugestões para reprimir a ociosidade. Para assegurar a permanência dos libertos no mercado de trabalho, a Lei do Ventre Livre previa que estes ficariam sob a inspeção do Estado durante cinco anos, tendo de exibir um contrato de trabalho, 29

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Escravos, livres e insurgentes

sob pena de serem considerados vadios e constrangidos a trabalhar nos estabelecimentos públicos. Assim, a intenção dessa premissa era incutir nos libertos certos valores éticos que garantissem a disciplina e regularidade do trabalho. Os mecanismos criados pela Lei de 1871 abriam para os escravos algumas possibilidades de liberdade. A existência da família de escravos, assegurada pela Lei de 1869 e reforçada pela de 1871, acabava gerando um compromisso deles com o projeto de abolição gradualista proposto. Poderia haver na família, hipoteticamente, libertos pelo nascimento, alguns que estavam economizando dinheiro para comprar a liberdade e outros que poderiam estar numa boa colocação na tabela de classificação do Fundo de Emancipação. Essa família era a síntese do projeto de transição. As leis de 1850, que extinguiam o tráfico e a de 1871, que libertava o ventre, deixavam claro o interesse do Estado em definir uma estratégia de organização do mercado de trabalho livre, pois as duas únicas fontes de onde provinham os escravos estavam definitivamente cortadas. O importante, nesse processo, é identificar os dispositivos criados pelo Estado que permitiam aos proprietários agrícolas acomodar o sistema produtivo às transformações das relações de trabalho, que ocorriam de forma lenta. Se os proprietários rurais escravistas, inicialmente, haviam hostilizado a Lei de 1871, com o tempo, passaram a utilizá-la como meio de evitar a abolição definitiva. Os dados comprovam a adesão deles ao cumprimento da lei, em que o número de manumissões particulares foi bem maior do que as concedidas pelo Fundo de Emancipação. Para o ano de 1882, contabilizou-se 10.001 alforrias financiadas pelo Fundo de Emancipação e 60.000 por particulares (CARVALHO, 1988, p.72). Para resolver o problema de reposição da mão-de-obra escrava nas lavouras do Sul, com a extinção do tráfico negreiro (1850), a solução, pelo menos em parte, foi trazê-la do Norte, onde o setor produtivo se encontrava em crise, devido à queda das exportações de seus principais produtos: o açúcar e o algodão.

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A questão do tráfico interprovincial preocupou inicialmente os proprietários rurais nortistas que, em 1854, através de seus representantes políticos, apresentaram um projeto no qual propunham o seu fim. que foi rejeitado. Nos anos de 1870, o projeto voltou à tona e foi encaminhado pelos Sulistas. Esses, preocupados com o apoio dado pelos nortistas à Lei do Ventre Livre, começaram a desconfiar do descompromisso deles com a escravidão, que estaria sendo motivado pelo número cada vez menor de escravos no Norte, devido, justamente, ao tráfico interno ou interprovincial. Segundo estimativas feitas por Kátia Mattoso (1982), o tráfico transferiu do Norte para o Sul, no período compreendido entre 1850-1888, de 100.000 a 200.000 escravos. Se em 1854 os nortistas queriam inviabilizar o tráfico, agora eles passavam a defender sua permanência. Isto se explica porque, ao contrário do que ocorria no Sul, a existência de um considerável contingente de homens livres pobres permitiu aos nortistas utilizaremse deles para desenvolver as atividades agrícolas. Somem-se a isto o fato de que, cada vez mais, ... devido à oferta inelástica de capitais, o tráfico representa, sobretudo durante a crise de meados de setenta, a única fonte de recursos com que financiar as perdas resultantes de uma má safra, de uma queda mais forte dos preços ou do incremento na taxa de juros (M E L O , 1984, p.3).

Em 1879, Meira de Vasconcelos, um deputado paraibano, defendendo a permanência do tráfico, argumenta o seguinte: dificultar sua [i.é., do escravo] venda é ainda um prejuízo do agricultor, (...) quando ele vende seus escravos é para satisfazer a seus compromissos (...) senão puder transportá-los para o Sul a fim de vendê-los por m elhor dinheiro, há de vendê-los na província por metade de seu valor (Anais da Câmara

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Escravos, livres e insurgentes

dos Deputados, 1878, pp. 178-179. Apud M ELO , 1984, p .3 1).

O tráfico interprovincial aumentou consideravelmente na segunda metade da década de 1870, devido à grande seca de 1877-79. Esse estava colocando em risco a estabilidade do regime escravista, pois de um lado encontramos o Norte descapitalizado que cada vez mais vendia seus escravos na tentativa de minimizar suas perdas, e de outro, o Sul que aumentava a compra de escravos para garantir sua produção. No entender dos sulistas, este desequilíbrio numérico entre as regiões podia levar os nortistas a se solidarizar com a causa emancipacionista. Para prolongar a escravidão, só aprovando uma lei antitráfico. Tanto os sulistas quantos os nortistas não teriam força política suficiente para, sozinhos, impor suas posições para um problema de implicações nacionais. A manutenção do tráfico interprovincial se deu devido ao apoio recebido pelos nortistas dos cafeicultores do Vale do Paraíba e dos grandes comerciantes da Corte. Aos primeiros, interessava a manutenção do tráfico, devido à crise em que se encontravam por causa da queda de produtividade de suas terras, e aos grandes comerciantes do Sul, por ser a forma de garantir os lucros auferidos com o tráfico (MELO, 1984). Frente à indecisão do Governo imperial, as províncias cafeeiras tomaram providências para inviabilizar o tráfico criando impostos muito altos. Em 1880, as Assembléias Provinciais do Rio de Janeiro e São Paulo deliberaram pelo aumento do imposto sobre os escravos que entrassem em seu território. Em 1881, Minas Gerais sancionou a mesma medida (MELO, 1984). Em 1881,o tráfico interprovincial de escravos estava praticamente acabado, devido também aos impostos provinciais. No entanto, apenas em 1885, pela Lei Saraiva-Cotegipe ou dos Sexagenários, o Parlamento do Império sancionou a lei que definiu seu fim. Essa previa algumas exceções, que beneficiavam a lavoura e o comércio do café, tais como: “... a mudança de domicílio do senhor, a transferência de escravos para fazenda do mesmo proprietário localizada em outra província, a adjudicação forçada e herança” (MELO, 1984, p.54). 32

A Lei Saraiva-Cotegipe estabelecia que os escravos que tivessem acima de 60 anos seriam libertados. Para minimizar a preocupação maior dos proprietários rurais em relação à vadiagem e à necessidade de manter uma boa oferta de braços para a lavoura, a lei afirmava que o liberto deveria permanecer, no mínimo, cinco anos no município onde morou até então, e definia que “... qualquer liberto encontrado sem ocupação será obrigado a empregar-se ou a contratar seus serviços no prazo que fôr marcado pela polícia”5 (Lei n. 3270 de 28 de setembro de 1885. Apud LAMOUNIER, 1988, p. 157). A Lei dos Sexagenários traria mais transtornos para o Norte do que para o Sul. Devido ao tráfico interprovincial, boa parte dos escravos jovens do sexo masculino foi vendida para o Sul, ficando o Norte com um número maior de escravos em idade avançada, tendo de libertá-los agora para cumprir a lei. Além disso, o imposto adicional de 5% sobre os tributos gerais, exceto o de exportação, estabelecido pela lei para financiar o Fundo de Emancipação, impunha a todos pagá-lo, mesmo quem não fosse proprietário de escravos, inclusive aquelas províncias que não tivessem escravos, como Amazonas e Rio Grande do Sul, ou onde o seu número fosse reduzido, como as do Norte. Ou seja, todos estavam compulsoriamente convidados a participar financeiramente do proj eto de emancipação, mesmo aquelas províncias que não estavam diretamente envolvidas com o problema da escravidão (MELO, 1984). A década de 1880 foi marcada por uma crescente movimentação popular pelo fim da escravidão. Nas cidades, participavam do movimento abolicionista desde libertos e operários, profissionais liberais, estudantes e intelectuais até funcionários da burocracia estatal. A posição condescendente da Coroa relativa ao fim da escravidão diminuía as possibilidades de repressão e incentivava a atuação dos abolicionistas. Com o tempo, a ação repressiva aos abolicionistas e suas organizações foram se tomando obra de proprietários de escravos insatisfeitos com o curso dos acontecimentos (CARVALHO, 1988).

5A ortografia original dos documentos será mantida.

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O ano de 1887 trouxe para o seio do movimento abolicionista os republicanos paulistas e os militares. Neste ano, o Clube Militar deliberou pela não participação dos militares na perseguição de escravos fugitivos. Era o apoio político e militar que se juntava ao que a Coroa, de certa forma, já oferecia. O movimento abolicionista tomou uma dimensão tamanha que, quando da votação final da lei de abolição, em 13 de maio de 1888, apenas nove députados e seis senadores votaram contra. Oito deputados eram da Província do Rio de Janeiro, que defenderam até o final a continuidade da escravidão (CARVALHO, 1988). Nesse processo abolicionista, a posição dos grandes proprietários Sulistas e nortistas foi buscar alternativas ao trabalho escravo, mesmo utilizando-se do cativo até o fim. A existência de um significativo contingente de homens livres pobres no Norte gerou, nas regiões de grandes lavouràs, a crescente combinação do trabalho escravo com o livre. Nas áreas de pequena propriedade ou de pecuária, a transição se completou antes da decretação da Lei Áurea, como foi o caso do Ceará (CARVALHO, 1988). A região Sul tinha problemas diferenciados, mesmo nas áreas cafeicultoras. A queda da produtividade das terras do Vale do Paraíba e a existência de um número significativo de escravos levaram os proprietários a se posicionarem contrariamente à abolição, até o último momento, pois utilizar a mão-de-obra livre era cada vez mais difícil devido à decadência que assolava a região. Os cafeicultores da Província de São Paulo consideravam a mãode-obra livre nacional vadia e desclassificada para o trabalho e para não incorporá-los, como fizeram outras regiões, a solução foi garantir o afluxo de imigrantes, que, conforme asseguravam, já tinham disciplina para o trabalho regular. Dessa forma, os potentados do café garantiam uma oferta crescente de mão-de-obra: a livre nacional, historicamente acumulada nos interstícios da economia, a dos ex-cativos e a dos imigrantes, que foi a preferida, pelo menos até a década de 1920 (KOWARICK, 1987).

A utilização do trabalhador livre deu-se muito mais pela condenação da escravidão colocada desde 1850 do que pela crença na maior produtividade do trabalho livre. A adesão final de alguns proprietários à causa abolicionista foi a forma de conseguir a simpatia dos cativos, em um processo que se mostrava irreversível. Em relação às questões levantadas, o que se pode inferir é que todas as leis, elaboradas para viabilizar a transição do trabalho escravo para o livre, tiveram por base as experiências históricas acumuladas. A legislação escravista teve como parâmetro não só garantir o processo de transição seguro, de acordo com os interesses dos grandes proprietários rurais, mas incorporou a interferência do escravo nos diferentes momentos. A sua resistência à escravidão, através de fugas, por formação de quilombos e crimes isolados, colocava em xeque o próprio sistema escravista. Resistência esta que se tomou crescente nos últimos anos da década de 1870 e durante a de 80, período em que setores urbanos passaram a interferir e integrar-se à causa abolicionista. 3. Econom ia e trabalho escravo na Paraíba A Paraíba surge como parte da capitania de Itamaracá, de acordo com o projeto de Capitanias hereditárias definido pelo Estado Metropolitano Português (1534). Mas, ainda no século X V I, é transformada em Capitania Real da Paraíba (1574). Por conta da resistência indígena e para expulsar os estrangeiros que negociavam com os índios, principalmente os franceses, bem como por sua posição estratégica, importante para a conquista do Norte Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão, Pará, era imperativo para os portugueses tomar a posse definitiva da Paraíba6. Além disso, devido a problemas enfrentados pelo donatário da vizinha capitania de Pernambuco - Duarte Coelho - que reclamava concentrar-se nessa área, “bandidos e vadios” e, também, a um episódio

6 Os índios que ocupavam esta área geográfica pertenciam aos grupos linguísticos dos Tupi e Jê.

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ocorrido em 1574 - tragédia de Tracunhaém - resolve-se criar a Capitania Real da Paraíba (Decreto de 1574). A ocupação portuguesa, pelo menos até meados do século XV II, restringiu-se à Zona da Mata, compondo, juntamente com Pernambuco e Rio Grande, uma importante área de produção do açúcar. A necessidade de especialização das terras na produção da canade-açúcar, na Zona da Mata, foi favorecida com a conquista do interior, pois o Agreste e o Sertão paraibanos, juntamente com as áreas similares das capitanias de Pernambuco, Rio Grande e Ceará, passaram a dedicarse à pecuária, economia complementar a que era desenvolvida na Zona da Mata (MOREIRA, 1997)7. Em fins do século X V III, com o desenvolvimento da indústria têxtil, os ingleses passam a solicitar uma quantidade cada vez maior de algodão. Neste período, o Agreste e o Sertão desempenharam um importante papel na economia colonial especializando-se em sua produção. No Agreste, paralelo à grande produção, desenvolveu-se em pequenas unidades produtoras, denominadas de sítios, o cultivo de alimentos, como a fava, o milho, o feijão e a mandioca. Desde o período colonial a Paraíba era dependente economica­ mente. A independência política do país não modificou essa tendência. De um lado, em âmbito internacional, sua economia permaneceu voltada para a exportação, mantendo intocáveis seus fatores de produção: a grande propriedade, o caráter monocultor e a utilização da mão-de-obra escrava. O que significa dizer que os principais setores de sua economia estavam sujeitos às oscilações de preços dos seus produtos no mercado internacional. Por outro lado, sua dependência interna a Pernambuco se manteve. Neste mesmo período, Recife era o pólo mercantil da região, ao qual a Paraíba estava comercialmente subordinada, acentuando-se esta relação desigual, do ponto de vista intraregional, no período de 1755-1799,

quando a Paraíba foi subordinada administrativamente a Pernambuco (OLIVEIRA, 1985). A Paraíba, durante a segunda metade do século XIX, bem como toda a região Norte, atravessou uma grave crise social, que era aprofundada pela crise do setor agro-exportador e agravada pelas periódicas secas. A crise económica tinha por fundamento a queda dos preços do açúcar e do algodão no mercado internacional, apesar do “boom” algodoeiro na década de 1860, estimulado pela Guerra de Secessão nos Estados Unidos da América (1860-65). Essa crise foi intensificada, segundo os Presidentes de Província, pela dependência económica a Pernambuco. Em seus relatórios e exposições, os presidentes afirmavam ser necessário incentivar a instalação de casas comerciais européias na Paraíba, assim como garantir a existência de um Porto equipado para que pudesse haver o contato direto dos produtores com o exterior. Suas solicitações iam, também, no sentido de que houvesse investimento do Governo Imperial em estradas, pois a precariedade das vias de comunicação dificultava o escoamento da produção. A esses problemas, somavam-se as reclamações dos proprietários rurais, que se sentiam insatisfeitos com os impostos que tinham de ser pagos na Paraíba e em Pernambuco, para que seus produtos fossem exportados e calculavam que a diminuição de seus lucros era causada, também, pelos preços baixos que tinham de atribuir a seus produtos para garantir sua concorrência com os pernambucanos. Em seus discursos, no que eram corroborados pela administração provincial, colocavam ser fundamental para a economia local uma política nacional de crédito agrícola e a fundação de bancos rurais e hipotecários, como única forma de garantir capital para investir na melhoria da produção. Apesar da tão decantada crise económica, o número de engenhos na Paraíba cresceu durante o período em estudo, conforme tabela abaixo:

7 Nessa publicação, a designação das mesorregiões obedece à classificação mais geral e

atual de Zona da Mata, Agreste, Borborema e Sertão (MOREIRA, p. 14,1997). 36

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TABELA 2 - N Ú M ERO D E EN G EN H O S NA PA RA ÍBA NÚMERO DE ENGENHOS 150 214 350

ANO 1850 1860 1889 Fonte: ALMEIDA, J. 1980.

A exportação de algodão também cresceu, pelo menos até 1871, conforme tabela abaixo: TABELA 3 - EXPO RTAÇÃO D E A LG O D Ã O ANO 1862 1864 1866 1869 1871

ALGODÃO (arrobas exportadas) 216.468 397.728 542.133 533.609 681.355

Fonte: Relatório do Engenheiro de Minas Francisco Soares da Silva Retumba, “Sobre os melhoramentos de que precisa a Paraíba”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba, 1912, vol. 4, p. 208.

De acordo com os dados levantados, a produção do algodão cresceu na Província durante o século X IX . O aumento da exportação desse produto superou a do açúcar a partir da década de 1850, mantendose assim até o final do século, com exceção apenas dos anos de 1857 a 1860 (VIANNA, 1985, p. 85). Do que se deduz que, para manterem a economia no ritmo de crescimento e garantirem seus lucros, os proprietários rurais, ao ampliarem a quantidade de terras produtivas, repassavam as perdas para os trabalhadores envolvidos no processo produtivo, por meio do aumento de sua exploração, e para os parceiros, arrendatários ou foreiros, que muitas vezes eram expulsos da terra. Outra saída encontrada foi diversificar a produção para enfrentar a crise económica. Desde o período colonial, a importação de escravos feita pelos produtores paraibanos não era grande, uma vez que esta ocorria de 38

acordo com os parâmetros de desenvolvimento de sua economia. A participação dos setores exportadores na economia paraibana era significativa para a Província, apesar de ser simbólica para a região, quando comparada às exportações realizadas por Pernambuco e Bahia. Mesmo assim, a utilização do escravo na produção era considerada essencial, pois os proprietários rurais acreditavam ser essa mão-de-obra mais eficiente e produtiva e desconfiavam da capacidade de disciplina dos homens livres ao trabalho regular. Dois anos depois da Lei Eusébio de Queiroz (1850), que extinguiu o tráfico, o número de escravos na Paraíba correspondia a 13,4% do total da população, declinando essa cifra em 1872, quando o Censo Demográfico nacional detectou apenas 5,7% de escravos do total de habitantes, conforme fica demonstrado na tabela 5, mais à frente. 4. Escravidão e abolição na Paraíba A tividades económ icas do escravo Como na maior parte das províncias brasileiras, na Paraíba os proprietários utilizaram seus escravos até a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888. Nos vários setores da economia detecta-se a presença do escravo. Nas atividades açucareiras e de criatório, com maior intensidade, e, em menor grau, na algodoeira. A lavoura algodoeira, de ciclo vegetativo curto, necessitava de baixo investimento de capital e pouca quantidade de mão-de-obra para o desenvolvimento de suas atividades, possibilitando assim o cultivo por parte de sitiantes, moradores e pequenos proprietários, que combinavam as plantações de algodão com culturas de subsistência. Os grandes proprietários, produtores de algodão, achavam mais vantajoso utilizar a mão-de-obra livre de forma sazonal, considerando que o proprietário, quando o trabalhador não fosse morador, não teria obrigação de garantir serviços para ele, durante os meses de janeiro a maio, período de entressafra. Assim, os escravos passaram a ser pouco utilizados nessa atividade produtiva, quando comparado às outras atividades económicas, como pode ser observado na tabela 4. 39

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TA BELA 4 - PO PU LA Ç Ã O ESC R A V A DOS M U N ICÍPIO S PA RA IBA N O S D ISPO STA EM G RU PO S DE A C O R D O CO M A EC O N O M IA A Q U E ESTÁ V IN C U LA D A Municípios Paraíba Alagoa G rande Alagoa Nova M am anguape Areia

1852 4391 —

1024 2398 2020

Pedras de Fogo



Total

9733

Municípios

1852 693 1246

Ingá Independência C uité Teixeira Total

Municípios C abaceiras M isericórdia S.J. Cariri

S.L. Sabugí A. M onteiro Patos Piancó C. do R ocha Pom bal Souza C ajazeiras

— -

1939 1852 1013 -

1538 — -

544 997 1108 915 3448 -

Total

9561

Municípios

1852 1982 1785 3446

Pilar Bananeiras C am pina G rande

Açucareira % 1872 % 2684 339 419 802 1424 1145 34,85 6813 31,65 Algodoeira % 1872 % 1308 1334 611 -

6,78

3253 15,11 Pecuária % 1872 % 587 628 642 335 611 830 612 1016 1182 1376 403 33,46 8222 38,19 Economia mista % 1872 % 1191 639 1105 40

1884 1972 476 283 1320 1052 898 6001 1884 1074 1056 51 99 2680 1884 481 490 1976 244 524 499 1015 791 1031 743 290 8084 1884 1128 972 913

%

I 1886 2376 461 203 1599 1229 940 30,34 6808 %

13,55 %

40,87 %

1886 953 1259 323 100 2635 1886 377 490 1399 219 354 320 616 780 886 979 87 6487 1886 1326 595 815

%

36,24 %

14,02 %

34,56 %

Total População Total

7213 28566

25,25

2935 21526

13,63

3013 15,23 19778

2736 18785

14,56

Fonte: GALLIZA. 1979, p.40.

O gado foi o fator de integração do sertão com as outras áreas produtivas, a partir de meados do século XVII. A disputa no agreste por terras entre o gado e o algodão, levou o primeiro a caminhar rumo ao sertão. Os criadores de gado do sertão também se dedicavam à cultura do algodão, atividade prejudicada durante os períodos de seca. O número de escravos utilizados nas áreas criatórias do sertão era significativo: para os anos de 1852, 33,46% ; 1872, 38,19%; 1884, 40,87% e 1886, 34,53% do total de escravos da Província da Paraíba, conforme tabela supracitada. A importância da utilização de escravos na área criatória pode ser verificada quando se observa o número deles nas atividades essenciais à organização da economia sertaneja. Observemos os dados de um relevante município do sertão, Piancó: para o ano de 1876, Piancó possuía 317 cozinheiras; 316 trabalhadores de enxada; 106 costureiras; 39 fiandeiras e 30 vaqueiros (GALLIZA, 1979, pp.87-88). As atividades domésticas eram muito importantes no sertão. De acordo com a cultura da região, todo e qualquer trabalho físico deveria ser atribuição de escravos. Cozinheiras, costureiras e fiandeiras eram fundamentais na manutenção da família do grande proprietário. As duas últimas, por exemplo, eram as responsáveis por fazer redes, panos e roupas para uso próprio e da família do fazendeiro. Atribuiu-se aos trabalhadores de enxada a função de arar a terra durante o inverno, para garantir produtos agrícolas à fazenda e, em alguns casos, para a venda nas feiras locais. Esses também eram utilizados em outras atividades fundamentais para possibilitar a criação de gado e a manutenção das propriedades rurais, como a feitura de valados, cercas, currais e açudes. De acordo com a necessidade, poderiam também, a depender de sua qualificação, ser pedreiro, ferreiro e carpinteiro (GALLIZA, 1979, p.87-88).

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A ritme Norma de Menezes Sá

Escravos, livres e insurgentes

A atividade de guarda dos rebanhos, que não requer uma grande quantidade de mão-de-obra, era desempenhada por aquele escravo de extrema confiança do proprietário, pois o perigo de fuga era bem acentuado, por ele andar livremente pela fazenda. A existência de um número razoável de escravos no Sertão pode ser explicada pelo número de municípios que era bem maior nessa área. Como também, pela evidência de que os proprietários rurais do litoral possuíam terras no sertão e no Agreste, podendo deslocar seus escravos, quando fosse preciso. A mobilidade dos escravos é outro aspecto que chama a atenção na tabela acima. Em relação à capital, Paraíba, em 1884, existem 1.972 escravos e em 1886, 2.376, o que nos leva a deduzir, considerando não haver mais o tráfico de escravos, que seus proprietários desenvolviam atividades económicas em diferentes localidades, deslocando-os a depender da necessidade. Com exceção de Alagoa Grande e Alagoa Nova, constata-se que esse fenômeno ocorre em outros municípios da zona açucareira. Nos municípios produtores de algodão, destacase apenas Teixeira, nos que desenvolviam a pecuária, Souza e nos de economia mista, Pilar. Uma discussão interessante é a mantida pela historiografia paraibana quanto à procedência étnica do escravo. Horácio de Almeida acreditava ter existido a criação de escravos por parte de alguns grandes proprietários e relata o caso de um português, de nome Jorge Torres, comerciante, que ao se instalar em Areia, expandiu seus negócios na agricultura e na pecuária: Sua obra mais caprichada foi, sem dúvida, a fazenda Tanques do Jorge, a poucas léguas do povoado (...) N essa fazenda exercia o português grandes atividades, entre as quais a criação de gado e de gente. Possuindo vasta escravaria, mandava para lá as negras de barriga para descansarem e cuidarem dos filhos, enquanto durava o período da mama. Havia na fazenda mucamas encarregadas da criação dos moleques, que só eram chamados ao Brejo

quando crescidos, em condição de dar serviço (A LM EID A , H., 1958, p.207).

A existência de fazendas de criação de escravos, no entanto, nunca foi comprovada. . Geraldo Joffily, apoiado em Irinêo Joffily e Irineu Pinto, bem como em vários anúncios de jornais de diferentes anos sobre escravos fugitivos ou expostos à venda, constata haver entre os escravos, uma forte incidência de mulatos ou pardos, existente especialmente nos engenhos da Borborema e fazendas de gado do sertão do Cariri (JOFFILY, G., 1977, p. 18-21). Diana Galliza também envereda por essa explicação. Para ela, no sertão paraibano, a descendência negra preponderou sobre a índia, quando na segunda metade do século X IX , a maioria dos escravos tinha sua origem na miscigenação do branco com o negro. Tais escravos, portanto, nasceram no Brasil. Em dados levantados pela historiadora, a cor da pele que mais frequentemente apareceu foi a parda, resultante de cruzamentos secundários, com predominância da pigmentação morena. Os inventários arrolados nos municípios de Piancó, São João do Cariri e Pombal apontam para a presença maciça de escravos pardos, crioulos e mulatos8 (GALLIZA, 1979, p.98-101). A resistência escrava Embora presente enquanto durou a escravidão, aresistência escrava será abordada em três formas distintas. Na formação de quilombos, que a título de exemplo citaremos os mais referidos pela historiografia. Um, localizado no engenho Espírito Santo, que foi arrasado pela polícia da província da Paraíba em 1851, outro nas proximidades de Princesa Isabel, o Quilombo do Livramento, onde é possível até os dias atuais, identificar seus descendentes, (durante a seca de 1877-79, inúmeros escravos fugiram das fazendas do Sertão).

8Mulato e pardo referem-se a filhos de pais negros e brancos. Crioulo diz respeito tanto

ao negro nascido no Brasil, quanto àqueles que nascem de pais de etnias diferentes. 42

43

Escravos, livres e insurgentes

Ariane Norma (le Menezes Sá

Ainda, a mais significativa forma de resistência ocorreu durante a sedição Quebra-Quilos em 1874, pois enquanto os revoltosos invadiam, incendiavam e quebravam nas cidades os lugares que simbolicamente representavam as leis que os oprimiam, em Campina Grande alguns escravos buscavam “um livro” que poderia significar a liberdade.9 Devido às invasões constantes dos insurgentes às cidades, aqueles que podiam se retiravam delas. No sítio Timbaúba, distante duas léguas da cidade de Campina Grande, refugiaram-se o presidente da Câmara Bento Gomes Pereira Luna e sua família. Esse sítio foi cercado por um grupo de escravos, todos armados, a exigir que lhes fosse entregue o “livro da liberdade”. Vejamos como o fato é narrado ao chefe de polícia, Manoel de Caídas Barreto, por Raimundo Teodorico José Domelas, genro do presidente da Câmara: No dia vinte e nove forão cercadas as casas do sítio Timbaúba, distante duas legoas desta cidade, por um grupo de trinta a quarenta escravos armados; n ’essa casa achava-se ele, respondente, com a sua

família e foram forçados pelos mesmos escravos a vir a esta cidade com outras pessoas onde se achavam em Timbaúba, para onde se haviam refugiado receosos dos sediciosos, a fim de lhes entregar o livro da liberdade, que eles forçados com o estavão prometterão entregar, que na viagem vinhão as pessoas de Timbaúba montadas à cavallo, tendo a anca um escravo armado e que encerrava a m archa o famigerado escravo Firmino, crim inoso de morte e de propriedade de Alexandrino Cavalcanti de Albuquerque, prompto a disparar a arma sobre aquelle que corresse; que chegando a esta cidade pelo estado declarado, forão levados até d’elle

respondenteealiseapoderarãoosmesmos escravos do livro de classificação de escravos e levarão ao dito Vigário Calisto para lel-o, por ser pessoa em 9 O movimento Quebra-Quilos será tratado de forma mais detalhada no terceiro capítulo desse livro. 44

que elles confiavão, e que ali chegando declaroulhes o vigário que não existia livro contra sua liberdade. (Apêndice do “Relatório apresentado

ao Exmo. Sr. Presidente da Província . Dr Siivino Elvídio Carneiro da Cunha pelo Chefe de Polícia Dr. Manoel Caídas Barreto, em 23 de fevereiro de 1875, sobre os movimentos sediciosos em diversos municípios da Província”. Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.201-202, grifo nosso). Cerca de 400 escravos juntaram-se na cidade de Campina Grande com o objetivo de tomarem-se livres a partir do que lhes dissesse o Vigário Calixto. No entanto, considerando-se a declaração do vigário e a notícia de que vários proprietários de escravos estariam a caminho da cidade com homens armados, os escravos se dispersaram. Alguns fugiram para o mato e a maioria retornou para o trabalho. O fim da escravidão na Paraíba Muitos foram os fatores que contribuíram para a redução do número de escravos na Província da Paraíba, na segunda metade do século X IX , o que pode ser explicado pela proibição do tráfico negreiro em 1850 e o crescente tráfico interprovincial, intensificado durante os anos de 1874-1884, quando, oficialmente, foi registrada a saída de pelo menos 3.788 cativos. São eles: as epidemias, como o cólera-morbo, que dizimou 2.982 ou 10,4% dos cativos existentes em 1852, as alforrias, motivadas pelas leis abolicionistas, considerando-se que, no período de 1852-1888, foram concedidas 1.052 cartas de alforria, e, por fim, o movimento abolicionista, que na década de 1870 já se fazia presente.10 Os números apontam para o ano de 1852, a existência de 15,5% de escravos, quando comparados à população livre. Para 1872,6,0%. Entre

'° Os dados e estatísticas apresentadas nessa parte do trabalho têm como referência o livro de Galliza, 1979, p. 83-194, que até os dias atuais é o mais significativo levantamento sobre a abolição da escravidão. 45

Ariane Norma de Menezes Sá

Escravos, livres e insurgentes

1884 e 1887, se comparada com o ano de 1852, houve uma diminuição de 52,2% no número de escravos, conforme dados da tabela abaixo. TABELA 5 - ESTA TÍSTICA D A PO PU LA Ç Ã O LIV R E E ESCRAVA DA PA RA ÍBA : 1852 E 1872

Municípios Paraíba Mamanguape Independência Alagoa Grande Bananeiras Cuité Areia Alagoa Nova Pilar Pedras de Fogo Ingá Campina Grande S.João A. do Monteiro Cabaceiras Patos Santa Luzia Pombal Catolé do Rocha Piancó Misericórdia Souza Cajazeiras Total

População em 1852 Escrava % Livre 17,8 4391 24691 21,5 2398 11161 10,1 1246 12291 -



26966

1785



-

-

6,6 -

População em 1872 % Escrava Livre 9,9 2684 26914 4,8 802 16661 1334 5,0 26854 6,0 642 10765 2,9 639 21639 5,2 611 11729 1422 5,9 24125 4,0 419 10522 12,7 1191 9191

19240 5951 7249

2020 1024 1982

10,5 17,2 27,4

-

-

-

16654

1145

6,8

8316

693

8,3

20173

1308

6,5

14449

3446

23,8

13999

1105

7,9

9912

1538

16,7

642 611 587 830 335 1800

4,4 6,2 7,8 6,2 8,4 10,0

7551

1013





4522 4183

544 915

12,0 20,2

14471 9891 7557 13265 3964 11800

6135

1108

18,0

16005

1106

6,9

7894

997

12,2

13057 14018 28350 12572 354700

612 628 1326 403 21526

4,7 4,5 4,7 3,2 6,0



-

-

14109

-

3446

-

184595

-

28546

-

13,4 -

-

24,4 -

15,5

Fonte: GALIZZA, 1979, pp.83-84.

O tráfico interno de escravos era incentivado pela crise da economia açucareira e algodoeira e foi acentuado durante a seca de

1877-79, tendo como estímulo a crescente necessidade de trabalhadores na lavoura cafeeira da região Sul do império. A quantidade de escravos vendidos para o Sul, possivelmente, deve ter sido superior ao apontado pelos dados oficiais, pois muitas vezes para evitar o imposto de exportação, alguns senhores usavam o artifício do contrabando, embora tais dados demonstrem que hóuve uma perda significativa de escravos. O Relatório do Ministro da Agricultura, de 7 de maio de 1884, contabilizou, para o período de 1856-1884, o decréscimo de 3.788 escravos, o que equivale a 13,2% dos escravos de 1852. Como já foi mencionado na primeira parte desse capítulo, o tráfico foi assunto de discussão no Parlamento. Inicialmente, os parlamentares do Norte tinham a posição de tentar cessar o tráfico, sob pena de haver um esvaziamento de escravos na região, o que acarretaria enormes prejuízos para a lavoura. Foi nesse sentido que o governo provincial da Paraíba estabeleceu o imposto de 100$000 entre os anos de 1856-1860. Na década de 1860, esse imposto cairia para 25$000. Os anos de 1860 foram marcados pela recuperação da economia paraibana. Devido ao desenvolvimento da lavoura algodoeira para atender às solicitações do mercado internacional, as rendas provinciais cresceram, tomando desnecessário cobrar altos impostos pela exportação de escravos, considerando que a retomada do crescimento económico definiria o nível de necessidade dessa mão-de-obra. É importante observar, também, que a venda de escravos, a partir da década de 1860, seria uma importante renda para seus donos, não sendo politicamente interessante para a Província inviabilizar seu comércio com altos impostos, como os cobrados nos anos de 1850. A década de 1870 seria marcada pela crise da lavoura paraibana, havendo, assim, um aumento no comércio de escravos. A crise também afetava os cofres da província, o que possibilitou ao governo aumentar novamente o imposto de exportação de escravos para 50$000. A grande seca de 1877-79 levou agricultores e criadores a se desfazerem de seus escravos, medida bem recebida pelos cafeicultores, por ser um período de expansão de sua lavoura, principalmente no Oeste 47

Escravos, livres e insurgentes

Ariane Norma de Menezes Sá

paulista. Os dados arrolados para o período demonstram ter havido o desembarque de 166 escravos no Porto do Rio de Janeiro, procedentes da Paraíba. Desses, 47,5% tinham a idade de 16 a 30 anos, e, pelo menos 25,2%, tinham idade inferior a 15 anos. O elevado número de escravos exportados na faixa etária de 3 a 16 anos deve-se ao fato de ser essa a idade de maior produtividade. Quanto ao considerável número de escravos menores de 15 anos, pode-se deduzir que tenha sido para acompanhar seus pais, conforme o determinado na lei de 1871 que previa a preservação da família escrava". A seca gerou fome e desorganização dos setores produtivos do Sertão, levando muitos escravos a fugirem das fazendas, alguns a se tomarem salteadores e outros a integrarem grupos de bandoleiros. O escravo praticamente desapareceu das engenhocas do sertão paraibano, responsáveis pela produção da rapadura. O número de escravos também diminuiu nos engenhos, depois da seca de 1877-79. O tráfico interprovincial gerou muita controvérsia no Parlamento. Dessa discussão, ressaltamos a percepção da elite paraibana através do discurso proferido na Câmara, na sessão de 24 de março de 1879, pelo bacharel João Florentino Meira de Vasconcelos, deputado que representava a Paraíba, ao comentar o significado do tráfico interprovincial de escravos para as províncias do Norte e do Sul: É sab ido que a escravatura do Norte está m igrando em grande escala para o Sul. Está fugindo a escravatura para o Sul aos milhares por ano, e por esta forma a lavoura do Sul vai pouco a pouco refazendo seus braços. O escravo que vem é moço, sadio, de bonita figura; é, finalmente, o bom trabalhador, nem o lavrador do Sul o compraria em outras condições.... N o Sul encontra-se para o escravo um bom preço, no Norte o preço é insignificante, porque não há capital nem procura {Apud JO F FIL Y , G ., 1977, pp.20-21). 1

As alforrias, em menor escala do que o tráfico interprovincial. contribuíram para diminuir o número de cativos na Paraíba. No período compreendido entre os anos de 1850 e 1888, foram arroladas 1.052 cartas de alforria, das quais 56,5% foram emitidas para escravos do sexo feminino e 43,5% para o sexo masculino. Essa diferença pode ser analisada quando se considera que a demanda de braços para trabalhar nas lavouras do Sul era por escravos do sexo masculino, pois eram considerados mais produtivos e, por isso, seus proprietários obtinham um valor superior no mercado de escravos. Assim, detecta-se a permanência de um número mais elevado de escravas na província, o que talvez explique por que havia uma frequência maior de alforrias para mulheres cativas. Várias foram as formas de concessão de alforrias. Gratuitas, compradas, condicionais, através do Fundo de Emancipação, por testamento ou por ação judicial. TA BELA 6 - A LFO R RIA S ARROLADAS EM NOVE M U N IC ÍPIO S PA RA IBA N O S NOS ANOS DE 1850-1888 Tipos de Alforrias Gratuitas Compradas Condicionais Fundo de emancipação Por testamento Sem dados precisos Ação judicial Total

N° de Alforrias 479 270 199 44 30 13 17 1052

Fonte: GALLIZA, 1979, p. 143. (Dados arrolados nos cartórios de João Pessoa, Areia, Mamanguape, São João do Cariri, Pilar, Bananeiras, Piancó e Guarabira.)

As alforrias gratuitas, concedidas sem nenhuma condição, correspondiam a 45,5% das cartas. Do total, 62% das 479 cartas foram outorgadas para o sexo feminino; 21,1% para escravos com idade acima de 45 anos; 57,4% possuíam idade entre 14 e 45 anos; e 21,5% abaixo de 14 anos (GALLIZA, 1979, pp. 144-146).

11 Verificar os termos dessa lei no item 2 desse capítulo.

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Percentagem 45,5 25,6 19,0 4,2 2,9 1,2 1,6 -

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Ariane Norma de Menezes Sá

Escravos, livres e insurgentes

Do total das alforrias, 25,6% foram compradas. O pagamento era feito em dinheiro, mercadoria, gado e imóveis pelo próprio escravo, familiares ou protetores. A Lei do Ventre Livre (1871) criava a possibilidade de o escravo comprar sua própria liberdade e proibia a revogação da alforria concedida, caso o ex-proprietário alegasse “ingratidão”. O dinheiro para a compra da liberdade poderia advir do trabalho do próprio escravo, considerando que o Censo Geral do Império de 1872 atestava a existência, na Paraíba, de 369 escravos que possuíam renda, recebendo-a na condição de criado ou jornaleiro, podendo também ser fruto de economias feitas durante anos com a venda de produtos comercializados em feiras, que eram cultivados em terras cedidas por seu proprietário. Emdeterminadasconjunturaseconômicas,olequedepossibilidades de compra da alforria aumentava, como foi o caso de muitas liberdades compradas quando do “boom” algodoeiro. Na zona criatória, a forma de aquisição de alforria frequentemente ocorria mediante a compra em dinheiro, apesar de se verificarem casos em que foram compradas com gado ou imóveis. Do número total de manumissões compradas, 73,7% ou 199 foram pagas pelo próprio escravo, das quais oito foram divididas em prestações; 8,2%, ou 22 alforrias foram compradas por parentes, sendo que 16 pela mãe, 3 pelo pai, 2 pelo marido e 1 pelo filho, isso demonstra que os escravos mantinham relações familiares; 2,6% , ou sete alforrias, foram compradas por Sociedades Emancipadoras e 4,8%, ou 13 alforrias, por terceiros. Das 1.052 alforrias, 199 foram outorgadas condicionalmente. Nas cláusulas, constava que os ex-escravos deveriam prestar serviços ao seu senhor até sua morte (69,4% ) ou a seus filhos e parentes (6,5%) e outras em que se estabeleciam serviços em períodos diversos (24,1%). Em algumas Cartas, ficava colocado que a alforria podia ser revogada em casos de ingratidão, desobediência ou abandono do senhor pelo liberto. *

'r'

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O processo abolicionista desencadeado com a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, foi revitalizado na década de 1860 com a Guerra do Paraguai, quando muitos dos soldados que iam para as frentes de batalhas eram escravos, que, ao retornarem, deveriam receber sua carta de alforria, conforme lei imperial de 1866. Em relação à Província da Paraíba, não existem pesquisas que tenham disponibilizado a quantidade e o nível de participação dos escravos na referida guerra. Mesmo nas províncias que possuíam poucos escravos, houve pressão por sua emancipação. Na década de 1860 na Paraíba, duas leis homologadas pela Assembléia Provincial autorizavam o presidente da província a empregar uma verba na libertação de crianças do sexo feminino. A de 1864 previa o emprego de 300$000 por criança e não poderia ultrapassar cinco contos de réis. Anualmente seriam libertadas em média 3 crianças por município (a rigor 2,7 crianças). A outra lei, que substituiu a anterior, foi de 1869, na qual estava previsto que o Presidente da Província poderia dispor de 25 contos de réis para libertar crianças de 3 a 7 anos de idade, não devendo o governo aplicar quantia superior a 600$000 por criança. Por essa lei seriam libertos, em média, 2 escravos por município (a rigor 1,7 crianças). Ambas, em quase nada, modificariam a face da sociedade escravista paraibana, dados os parcos recursos e o pequeno número de alforriados (GALLIZA, 1979, p. 165-166). A década seguinte foi marcada pela votação da Lei do Ventre Livre, quando toda representação paraibana votou favorável ao projeto. Nessa década, houve a criação de jornais e clubes emancipacionistas na Província. A lei de 28 de setembro de 1871 previa, entre outras coisas já mencionadas, que os filhos das escravas deveriam ficar sob custódia do proprietário da escrava até a idade de 8 anos, quando o senhor poderia optar pela indenização prevista em 600$000 mil réis em títulos de 30 anos ou utilizar a mão-de-obra até os 21 anos. No caso da Paraíba, raramente o proprietário da escrava abriu mão do usufruto do trabalho dos menores livres pela Lei do Ventre Livre, não tendo sido encontrados até agora documentos que demonstrem ter havido ocorrências em que estes ficassem sob a supervisão ou tutela do governo. 51

Escravos, livres e insurgentes

Ariane Nornui de Menezes Sá

A classificação dos escravos, necessária para a implementação do Fundo de Emancipação, foi em muito prejudicada pela morosidade das juntas, e, no caso da Paraíba, em alguns municípios, devido a danos e a extravios de livros de classificação ocorridos durante a revolta Quebra-Quilos. Essas dificuldades repercutiram na aplicação do Fundo de Emancipação, pois, até 1879, a quota de 1875 ainda não havia sido completamente gasta em importantes municípios do interior paraibano (GALLIZA, 1979, p.170). A aplicação da segunda quota do Fundo de Emancipação na Paraíba foi acompanhada de acontecimentos graves. Muitos senhores matriculavam escravos velhos e inválidos, outros tantos não declaravam quando da morte do escravo. Em alguns casos, havia uma supervalorização do escravo liberto. Portanto, várias foram as formas encontradas pelos proprietários de escravos de tirar vantagem económica sobre o Fundo de Emancipação - houve, inclusive denúncias de desvio de verbas por políticos em Areia. Como em todo o Brasil, na Paraíba, o número de escravos libertos gratuitamente foi maior do que aqueles alforriados pelo Fundo de Emancipação. Para o período de 1875-1886, computando-se a aplicação de seis quotas do Fundo, apenas 783 cativos foram libertos por esse meio e, mesmo assim, desse total, 80 alforrias correspondiam a pecúlios do próprio escravo. A questão da escravidão volta a ser discutida pela Assembléia Geral, quando o Senador Manoel Dantas apresenta um projeto de libertação dos sexagenários. Apesar da crescente diminuição do número de escravos em sua província, o Deputado paraibano Souza Carvalho, representava a mentalidade escravista dos proprietários rurais. Em discurso proferido em 1884, acusava o governo imperial de defender a causa abolicionista, sem verificar os danos que a lei traria para a agricultura, colocando ainda que o cumprimento de tal lei apenas seria possível mediante uma indenização. A lei levaria o nome Saraiva Cotegipe e só seria aprovada em 1885. Mesmo com a omissão dos proprietários de escravos e as deficiências das coletorias, o número de alforriados pela lei dos

Sexagenários foi significativo. De acordo com o Relatório do Presidente de Província, Herculano de Souza Bandeira, de Io de agosto de 1886, em vinte municípios foram declarados 823 escravos que possuíam a idade de 60 anos ou mais (GALLIZA, 1979, pp.l 76-178). A despeito da maior parte das províncias brasileiras, o movimento abolicionista na Paraíba despontou no interior em 1873, quando foi fundada a Emancipcidora Areiense com 34 membros. A cidade de Areia era um importante entreposto comercial, abastecendo o interior com farinha e rapadura. Areia mantinha uma importante relação comercial com Pernambuco. O desenvolvimento económico da cidade possibilitava que muitos filhos de grandes proprietários e comerciantes fizessem cursos superiores em faculdades brasileiras e algumas vezes em universidades européias. Atribui-se a esses dois últimos fatores a proliferação das idéias emancipacionistas na região, antes mesmo do surgimento delas na capital. A Emancipadora Areiense defendia a idéia de que a abolição ocorresse de forma lenta e gradual, para garantir o direito de propriedade e acomodação da agricultura. A Emancipadora admitia sócios de outros municípios, aplicava todo o seu dinheiro na compra de alforrias e, para divulgar o movimento abolicionista, o número de cartas concedidas seria publicado em jornais. A época, foram fundadas sociedades filantrópicas em Mamanguape, Campina Grande e na Capital. Essas sociedades estabeleciam que, de acordo com o montante arrecadado, em datas comemorativas dos aniversários de fundação, seriam compradas alforrias para crianças escravas. No entanto, o que se pode verificar é que a Emancipadora Areiense só toma uma postura de encaminhar seus esforços para acabar definitivamente a escravidão em 1883, quando foi reorganizada. Seus membros, a partir de então, usaram várias táticas para viabilizar a nova postura: enviavam cartas circulares para os proprietários de escravos que haviam matriculado seus escravos ilegalmente ou possuíam escravos cuja filiação era desconhecida na tentativa de instigá-los amigavelmente

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Escravos, livres e insurgentes

Aríane Norma de Menezes Sá

a alforriar seus escravos; do contrário, levariam esses casos escusos à justiça (GALLIZA, 1979, p. 183-185). Os abolicionistas areienses também promoviam fugas. Utilizavamse da imprensa para incentivar a concessão de alforrias. A Igreja, por meio do Padre Sebastião Bastos de Almeida, teve um papel fundamental nesse processo, ao estimular os proprietários de escravos a libertá-los (GALLIZA, 1979, p.187). Na década de 1880, houve um aumento considerável do número de alforrias no município de Areia. Além do próprio movimento abolicionista, outros fatores contribuíram para que tal ocorresse. Uma doença se alastrou pelos canaviais, deixando em “fogo morto” os engenhos da região, gerando uma crise económica de grandes dimensões. Somada a isso, a decretação de leis antitráfico em várias províncias do Sul tomava mais barato alforriar o escravo do que mantê-lo. Em Campina Grande, localizada no Agreste, entreposto comercial e área de produção de algodão e produtos de subsistência, segundo Elpídio de Almeida, a maior parte das alforrias foi feita via Fundo de Emancipação. Segundo esse autor, até 30 de junho de 1885 existiam 18.295 escravos matriculados, tendo sido aplicado até aquela data seis quotas do Fundo, por meio das quais foram concedidas 783 alforrias (ALMEIDA, E„ 1979, p.208-209). Elpídio de Almeida considera que o baixo número de manumissões espontâneas deva-se ao fato de não ter havido, em Campina Grande, um movimento abolicionista organizado, que incentivasse a concessão de alforrias. Dessas poucas, segundo consta nas Cartas, umas eram o reconhecimento dos lucros auferidos com a exploração do escravo, daí resultar sua libertação, outras buscavam garantir o trabalho do escravo até a morte de seu proprietário (ALMEIDA, E., 1979, p.208-209). Na capital, o movimento abolicionista ganhou forças quando da criação da Emancipadora Paraibana, em 1883, que em muito contribuiu para pressionar pelo fim da escravidão na província. O Emancipado foi o jornal criado pela sociedade para respaldá-la na luta pela abolição (GALLIZA, 1979. p. 194).

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Sexagenários foi significativo. De acordo com o Relatório do Presidente de Província, Herculano de Souza Bandeira, de Io de agosto de 1886, em vinte municípios foram declarados 823 escravos que possuíam a idade de 60 anos ou mais (GALLIZA, 1979, pp.l 76-178). A despeito da maior parte das províncias brasileiras, o movimento abolicionista na Paraíba despontou no interior em 1873, quando foi fundada a Emancipadora Areiense com 34 membros. A cidade de Areia era um importante entreposto comercial, abastecendo o interior com farinha e rapadura. Areia mantinha uma importante relação comercial com Pernambuco. O desenvolvimento económico da cidade possibilitava que muitos filhos de grandes proprietários e comerciantes fizessem cursos superiores em faculdades brasileiras e algumas vezes em universidades européias. Atribui-se a esses dois últimos fatores a proliferação das idéias emancipacionistas na região, antes mesmo do surgimento delas na capital. A Emancipadora Areiense defendia a idéia de que a abolição ocorresse de forma lenta e gradual, para garantir o direito de propriedade e acomodação da agricultura. A Emancipadora admitia sócios de outros municípios, aplicava todo o seu dinheiro na compra de alforrias e, para divulgar o movimento abolicionista, o número de cartas concedidas seria publicado em jornais. À época, foram fundadas sociedades filantrópicas em Mamanguape, Campina Grande e na Capital. Essas sociedades estabeleciam que, de acordo com o montante arrecadado, em datas comemorativas dos aniversários de fundação, seriam compradas alforrias para crianças escravas. No entanto, o que se pode verificar é que a Emancipadora Areiense só toma uma postura de encaminhar seus esforços para acabar deíinitivamente a escravidão em 1883, quando foi reorganizada. Seus membros, a partir de então, usaram várias táticas para viabilizar a nova postura: enviavam cartas circulares para os proprietários de escravos que haviam matriculado seus escravos ilegalmente ou possuíam escravos cuja filiação era desconhecida na tentativa de instigá-los amigavelmente

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a alforriar seus escravos; do contrário, levariam esses casos escusos à justiça (GALLIZA, 1979, p. 183-185). Os abolicionistas areienses também promoviam fugas. Utilizavamse da imprensa para incentivar a concessão de alforrias. A Igreja, por meio do Padre Sebastião Bastos de Almeida, teve um papel fundamental nesse processo, ao estimular os proprietários de escravos a libertá-los (GALLIZA, 1979, p. 187). Na década de 1880, houve um aumento considerável do número de alforrias no município de Areia. Além do próprio movimento abolicionista, outros fatores contribuíram para que tal ocorresse. Uma doença se alastrou pelos canaviais, deixando em “fogo morto” os engenhos da região, gerando uma crise económica de grandes dimensões. Somada a isso, a decretação de leis antitráfico em várias províncias do Sul tornava mais barato alforriar o escravo do que mantê-lo. Em Campina Grande, localizada no Agreste, entreposto comercial e área de produção de algodão e produtos de subsistência, segundo Elpídio de Almeida, a maior parte das alforrias foi feita via Fundo de Emancipação. Segundo esse autor, até 30 de junho de 1885 existiam 18.295 escravos matriculados, tendo sido aplicado até aquela data seis quotas do Fundo, por meio das quais foram concedidas 783 alforrias (ALMEIDA, E„ 1979, p.208-209). Elpídio de Almeida considera que o baixo número de manumissões espontâneas deva-se ao fato de não ter havido, em Campina Grande, um movimento abolicionista organizado, que incentivasse a concessão de alforrias. Dessas poucas, segundo consta nas Cartas, umas eram o reconhecimento dos lucros auferidos com a exploração do escravo, daí resultar sua libertação, outras buscavam garantir o trabalho do escravo até a morte de seu proprietário (ALMEIDA, E., 1979, p.208-209). Na capital, o movimento abolicionista ganhou forças quando da criação da Emancipadora Paraibana, em 1883, que em muito contribuiu para pressionar pelo fim da escravidão na província. O Emancipado foi o jornal criado pela sociedade para respaldá-la na luta pela abolição (GALLIZA, 1979. p.194).

Os homens livres pobres somavam quase metade da população brasileira estimada em 3 milhões de habitantes no final do século XVIII. De várias origens sociais e etnias, eram negros libertos, brancos, índios e os miscigenados mulatos, cafuzos e mamelucos. Uma parte vivia da rudimentar subsistência, como os sitiantes e posseiros que, a depender da necessidade de expansão do latifúndio, eram expulsos ou expropriados da terra que cultivavam. Outra parte ficava na condição de agregado ou morador, dependente do arbítrio senhorial. Havia ainda mendigos e desocupados, pessoas que viviam sem local fixo de morada. Vinculados ou não às fazendas e engenhos, os homens livres pobres não conseguiam inserir-se de forma estável na excludente divisão do trabalho da rígida ordem escravista.

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C a p ít u l o

II

Livres: da itinerância à inserção no m ercado de trabalho

1. A regulam entação do m ercado de trabalho livre no Brasil no Século X IX No latifúndio produtivo, assim formado, o trabalho escravo criou condições dificilmente aceitáveis para o homem livre (...), não se tendo preparado a sua incorporação a este, agia sempre como fator negativo a comparação com o cativeiro (CÂNDIDO, 1987,

P-80).

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Escravos, livres e insurgentes

Em uma sociedade em que a base produtiva era determinada pela escravidão, o homem livre, que não possuía terra ou escravos, estava destinado a ficar à sua margem. Desclassificados para o trabalho, os homens livres pobres incorporavam a seu sistema de valores a bravura e a ousadia, como forma de reagir a uma sociedade que os excluía, colocando-os à margem do sistema sócio-econômico, numa terra farta e rica, onde a existência da escravidão acabava impondo a quase impossibilidade de trabalhar. A escassez do trabalho, ao mesmo tempo em que criava laços de solidariedade, gerava disputa em torno dos meios de vida. No entender de Maria Sylvia de Carvalho Franco, a violência tinha por base: “A definição do nível de subsistência em termos de mínimos vitais, a emergência de tensões em tomo das probabilidades de subsistência e sua resolução através de conflitos irredutíveis...” (FRANCO, 1983, p.57). O proprietário de terra e escravos via os homens livres nacionais como vadios, que não possuíam aptidão para o trabalho disciplinado e regular, preferindo a vadiagem, o vício e o crime. Por sua vez, o trabalhador nacional vislumbrava que o fato de trabalhar para alguém significava ter que se submeter a uma condição semelhante à do escravo. Os proprietários rurais, ao empregarem a mão-de-obra livre, não abandonavam os maus tratos nem a mentalidade senhorial para se metamorfosearem em patrões ou empregadores, no sentido restrito da palavra. Daí que, para o homem livre pobre, “liberdade significa não só a escolha de locomover-se para um pauperismo itinerante, como também, sobretudo a possibilidade de desobedecer” (KOWARICK, 1987, p. 113). A condição de mobilidade dos homens livres pobres que prestavam serviços ocasionais à grande propriedade não sofreu grandes alterações no século XIX. A crise da escravidão gerou um maior grau de exploração dos escravos, pois, para atrair os homens livres ao trabalho regular, era preciso oferecer vantagens materiais, algo que os grandes proprietários rurais não estavam dispostos a fazer.

Em uma sociedade em que o principal setor económico tinha por base a relação de produção escravista, não havia necessidade de criar leis que regulamentassem os contratos de trabalho com os homens livres. No entanto, quando surgiu a possibilidade de se fazer cumprir o fim do tráfico negreiro, de acordo com o tratado de 1827, aprovou-se a primeira lei que tratou da legislação do trabalho livre, nacional ou estrangeiro no Brasil, em 13 de setembro de 1830. A lei constava apenas de oito artigos simples e vagos. Segundo ela, o contrato de trabalho deveria ter o tempo prefixado, que se não fosse obedecido traria como penalidade para o prestador de serviços, a sua prisão. Nesse contrato de trabalho, poucas eram as obrigações do contratante (GEBARA, 1986, p.77). O não cumprimento do Tratado de 1827 levou a Inglaterra a pressionar o Brasil no sentido de que tomasse medidas mais efetivas quanto à extinção do tráfico de escravos. O governo regencial brasileiro, então em plena organização de sua vida institucional e administrativa, enfrentando uma crise interna de grandes proporções com várias revoltas sociais regionais, para tentar viabilizar a atração e a utilização do trabalho livre estrangeiro, elaborou uma nova lei de locação de serviços, ficando a de 1830 restrita à contratação de um reduzido número de trabalhadores nacionais que se aventuravam ao trabalho na lavoura. A nova Eei de Eocação de Serviços, aprovada em 11 de outubro de 1837, tinha o objetivo claro de estabelecer uma política de atração da mão-de-obra estrangeira, em um momento crítico de pressões internacionais quanto ao tráfico negreiro, para garantir uma maior oferta de braços para o setor cafeeiro, que começava a expandir-se. De acordo com a nova lei, os contratos deveriam ser prefixados. O locatário poderia dispensar o locador, sem ônus para si, quando alegasse motivos de doença, prisão, embriaguez habitual, imperícia para o trabalho, injúria à segurança ou honra do locatário e família e atentado à propriedade. O locador que fosse despedido deveria indenizar o locatário, caso contrário seria preso e condenado a trabalhos em obras públicas até que pudesse pagar as obrigações contratuais. O trabalhador só poderia rescindir o contrato se o locatário atentasse contra a honra de sua família ou lhe atribuísse serviços não

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constantes do contrato inicial. Até 1879 esta lei foi a base para elaboração de contratos, ao regulamentar os diferentes sistemas de trabalho em uso, a meação, aparceria e o colonato. A lei de 1837, pensada para criar uma política de atração aos imigrantes, acabou gerando uma péssima repercussão internacional. Muitas foram as revoltas de estrangeiros no Brasil, sendo a mais retratada pela historiografia, por ter sido coletiva, a ocorrida na fazenda Ibicaba de propriedade do Senador Vergueiro, na região Oeste de São Paulo, em meados do século X IX , envolvendo imigrantes suíços e alemães (KOWARICK, 1987). As questões de trabalho eram mediadas pelos consulados de origem do imigrante. Isso levava os países a tomarem uma postura contrária à imigração para o Brasil, por terem informações prévias do tipo de tratamento dispensado aqueles que vinham trabalhar nas lavouras, como foi o caso da oposição feita durante certo período pelos governos português e suíço. Os contratos eram feitos de forma a garantir o endividamento do contratado, forçando-o a permanecer na fazenda mesmo quando esses prescreviam. Além disso, para controlar a possibilidade de opção do colono, a lei penalizava os proprietários que contratassem os serviços de algum estrangeiro que tivesse vínculo com outra fazenda (GEBARA, 1986). As rebeliões e greves dos trabalhadores estrangeiros e nacionais, as pressões dos consulados internacionais com representação no Brasil, a expansão de fronteiras no Oeste paulista, o fim do tráfico negreiro (1850) e a Lei do Ventre Livre (1871), apontavam para a necessidade de se criar uma nova lei que obrigasse o trabalhador nacional a prestar serviços à lavoura e a regulamentar, em novos moldes, o contrato de estrangeiros para atraí-los, oferecendo-lhes garantias de proteção legal. Fazia-se mister, portanto, uma lei que viabilizasse a transição do trabalho escravo para o livre, de forma que o controle do processo ficasse nas mãos dos proprietários rurais. Era fundamental garantir uma boa “oferta de braços”, como dizia-se à época. Para tanto, era preciso

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obrigar o nacional a trabalhar, fossem eles livres ou libertos, e também atrair estrangeiros. Para discutir esta questão de oferta de trabalhadores para a lavoura e outros problemas relativos à agricultura ocorreram, no ano de 1878 dois Congressos Agrícolas. O do Rio de Janeiro, realizado em julho, deliberou como sendo a “falta de braços” o problema mais urgente que afetava a lavoura e que a solução seria “uma boa lei de locação de serviços”. Desse congresso, o que se pode concluir é que o interesse era não só garantir a utilização do trabalhador nacional, mas também manter um fluxo satisfatório de imigrantes (LAMOUNIER, 1988). Em outubro do mesmo ano, lavradores do Norte se reuniram no Recife para discutir seus problemas. As discussões giraram em tomo das questões de crédito, empréstimos, juros altos e a crise da lavoura e, como no Sul, a “falta de braços” se apresentava como um dos grandes problemas do setor. Dizia-se que, O estado de cousas actual em relação a braços de trabalho não pode ser permanente, porque nossas leis e, mais que ellas, nossos costumes, impostos até certo ponto pelo actual systema de eleições, sanccionam o habito de vagabundagem e quasi o direito de preguiça das classes que devem substituir o elemento servi! (...) Os braços que existem e até com certa abundancia, mas em razão da desigual distribuição da população, quer nas diversas propriedades, quer no território onde os povoados são mui distantes dos estabelecimentos agrícolas, a falta de braços é permanente em certos lugares e épocas do anno.

E para solucionar esta deficiência devia-se facilitaro bom aproveitamento dos braços nacionais; esperar a espontânea immigração estrangeira; dar prompta e severa execução às leis que prohibem a vagabundagem; fazer leis em que se regulem as 61

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relações entre proprietários e lavradores, e entre locatários e locadores, ou melhor - um código rural; tornar official o procedimento pelo crime de furto! (Congresso Agrícola da Pernambuco. Apud LA M O U N IER, 1988, pp.97-98).

As acaloradas discussões sobre a necessidade de se criar uma oferta regular de mão-de-obra para a lavoura levaram o projeto de lei sobre o assunto a ser discutido em caráter de urgência em dezembro de 1878. A lei foi votada em 15 de março de 1879. Tratava da locação de serviços na agricultura, constava de 86 artigos e dizia respeito às obrigações de locatários e locadores. , Atendendo aos anseios dos proprietários rurais, a lei trazia artigos explícitos contra greves, considerando que, se a recusa ou ausência ao trabalho fosse coletiva, os infratores seriam detidos até o julgamento que ocorreria em um único processo. É importante observar que a lei garantia ordem e regularidade dos serviços prestados. Para os trabalhadores nacionais, os contratos teriam um período mínimo de duração de seis anos, sendo renovados sem aquiescência do locador, estando reservado para este a prisão, caso não cumprisse as obrigações ajustadas. Os libertos teriam seu trabalho regulamentado pela Lei do Ventre Livre e, a partir dos vinte e um anos, seriam regidos pela lei de 1879. A lei que surgiu como solução para os problemas da lavoura e para garantir uma transição lenta e segura para a questão do trabalho no Brasil, aos poucos começou a ser questionada. Para alguns, a “liberdade de trabalho” nos contratos seria a solução para atrair os imigrantes, pois a minuciosidade da lei de 1879 emperrava a dinâmica das relações de trabalho, devendo os contratos ficar ao arbítrio das partes contratadas. Para outros, aqueles que não conseguiam acompanhar o desenvolvimento económico do setor cafeeiro, manter as leis de locação de serviços era a única saída para garantir mão-de-obra, pois sem as penalidades previstas e sem a repressão à ociosidade, dificilmente se

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garantiria que os trabalhadores nacionais se empregassem. Para estes, a aplicação da lei ainda era o recurso mais interessante. Em 1890, um ano após a proclamação da república, o Decreto n° 213 revogava todas as leis de locação de serviços anteriores e deixava ao encargo dos Estados a competência de regular sobre os contratos de trabalho. Respeitadas as diferenças regionais tão reclamadas, isto vinha atender, principalmente, aos interesses dos paulistas em realizar uma política de atração de imigrantes, bem como garantir que cada elite estadual regulamentasse as relações de trabalho entre locatário e locador de acordo com sua conveniência. Assim, no que diz respeito à regulamentação do trabalho livre, a insistente não integração do homem livre pobre nacional ao trabalho regular e disciplinado, assim como a resistência dos imigrantes às formas de contratos impostas pelo governo e senhores de escravos, fez com que, periodicamente, a legislação que tratava dos contratos de locação de serviços fosse refeita. Portanto, para analisar a organização do mercado de trabalho livre em uma sociedade escravista, é de significativa importância considerarse a interferência de todos os agentes envolvidos, bem como partir do princípio que as leis são resultantes de uma carga de experiências históricas presentes no momento de sua regulamentação. Normalmente, elas trazem para o campo jurídico o que já estava colocado socialmente, seja como experiência, seja para viabilizar o projeto de uma classe, seja para consolidar um processo de mudança irreversível. 2. O trabalho livre no Norte A grário A economia dessa região foi estruturada com base na grande propriedade e no trabalho escravo. As condições naturais geraram subdivisões espaciais, com especializações económicas distintas. A Zona da Mata desenvolvia a cultura da cana-de-açúcar. O Agreste, que em algumas conjunturas produzia açúcar, juntamente com o Sertão, dedicava-se à pecuária e, a depender das solicitações do mercado internacional, ambos aumentavam o cultivo do algodão (MONTEIRO, 1980, p. 35). 63

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A região Norte, durante o período pesquisado (1850-1888), atravessou uma grave crise social, que tinha como base a grande concentração de terra, aprofundada pela crise do setor agroexportador e agravada pelas periódicas secas. O setor económico mais importante da região enfrentou uma significativa crise. Os preços de seu principal produto de exportação, 0 açúcar, caíram a uma média anual de 1%. Isto ocorria devido à concorrência do açúcar de beterraba no mercado europeu e sua produção, a partir da cana-de-açúcar, em áreas de influência económica das nações industrializadas, onde o grande capital investia em uma tecnologia mais moderna que barateava a produção (FRAGOSO, 1990, p. 152). Mesmo assim, os dados apontam para um crescimento da exportação do açúcar a uma taxa anual de 0,27% entre os anos de 1850 e 1910. Do que se deduz que houve um desenvolvimento da produção açucareira na região considerada.1 Extemamente isso pode ser explicado pelo aumento demográfico dos países consumidores - europeus e Estados Unidos - que solicitavam uma quantidade maior do produto. Do ponto de vista interno, foi possível ampliar a capacidade de produção da economia canavieira através da expansão das plantações, sem se fazer necessários muitos investimentos, dada a existência de grandes extensões de terra. Ao mesmo tempo, passou-se a investir capitais na modernização dos engenhos, principalmente a partir da década de 1870. Esses fatores, somados à forma como se dava a apropriação do sobretrabalho, explicam a tendência ao desenvolvimento económico em meio a crise. O segundo mais importante produto de exportação da região, o algodão, a partir da década de 1830, sofreu uma significativa queda de preços devido à concorrência do algodão norte-americano, só voltando a recuperar um bom lugar no mercado mundial, durante a Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-65). A crise sócio-económica que se abatia sobre a região Norte era agravada pelas periódicas secas causadoras de altas taxas de mortalidade, 1 O Brasil durante o século XIX perde, gradativamente, a posição de principal exportador de açúcar para a Inglaterra. Com a virada do século, também é preterido no mercado Norte-americano. 64

acompanhadas de surtos de epidemias como o cólera-morbo, o tifo e a varíola, levavam populações de vilas inteiras a migrarem para a Zona da Mata. A escassez de alimentos e seus altos preços geravam a fome, a violência e a morte, acompanhadas da falência de inúmeras casas comerciais. A seca que mais catástrofes trouxe para a região, durante o período pesquisado, foi a de 1877-1879, sem se considerar os frequentes repiquetes, pequenas manifestações de seca sem consequências calamitosas, ocorridos nos anos de 1851, 1853,1860,1865,1866, 1869 e 1870 (ALMEIDA J„ 1980, p.181). As contínuas secas e crises da agricultura desequilibravam o orçamento das províncias, uma vez que geravam queda na arrecadação de impostos - daí os insistentes pedidos de ajuda financeira dos presidentes provinciais ao governo imperial, para sanar os problemas mais elementares. O agravamento da crise levava os proprietários rurais a utilizarem empréstimos com altas taxas de juros para saldar seus compromissos. A descapitalização destes senhores obrigava-os a se desfazerem de parte de seus escravos, vendendo-os para o Sul. As reclamações que eles faziam eram sempre as mesmas: falta de trabalhadores e de capitais; altas taxas alfandegárias (13% para o açúcar e de 9% para o algodão) e a impossibilidade de melhorar as técnicas empregadas devido à falta de crédito agrícola (MONTEIRO, 1980, p.46). O tráfico interprovincial de escravos era um dos sintomas mais importantes para se detectar o aprofundamento das diferenças regionais, identificadas desde a década de 1830, quando a cultura do café superou a do açúcar e a do algodão. As caravanas de escravos rumo ao Sul cafeicultor comprovavam a crise que o Norte passava, pois a rentabilidade da economia daquela região possibilitava uma maior capacidade de compra no mercado interno de escravos. A década de 1870 marcou o auge do tráfico interprovincial de escravos, devido, sobretudo, à severa seca que assolou o Norte e à falta de capitais para investir na produção. Nos anos de 1860, a região concentrava em média 50% dos escravos, no ano de 1887 tinha apenas 28% da população escrava do país. 65

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TA BELA 7 - PO PU LA ÇÃ O E S C R A V A N O N O R T E D O B R A SIL ANO 1864 1874 1884 1887

BRASIL 1,717 milhão 1,540 milhão 1,240 milhão 720 mil

NORTE 774.000 436.000 301.000 172.000

Fonte: CONRAD, 1978, p.77-78.

O tráfico interprovincial, que diminuiu consideravelmente o número de escravos na região Norte, não significou a adesão dos proprietários rurais à causa emancipacionista. Pelo contrário, em dois Congressos Agrícolas realizados no Recife em 1878 e 1884, duas questões foram insistentemente frisadas pelos participantes: a falta de trabalhadores e o perigo de aceleração do processo abolicionista. O tráfico e a abolição da escravidão não impediram que o setor açucareiro nortista se desenvolvesse. Se, em meados do século X IX , o número de escravos que trabalhava nas plantações de cana-de-açúcar era proporcionalmente de três, para cada trabalhador livre, de acordo com o Censo de 1872, na região em geral, o número de livres superava o de escravos em todos os tipos de ocupação (FRAGOSO, 1990, p. 155-156). Isso deve ser entendido ao se considerar que o tráfico interprovincial de escravos deixou os setores produtivos descobertos. Com o crescimento da economia canavieira, que era extensiva e não possuía um padrão tecnológico moderno, exigindo assim mais terras e trabalhadores, fez-se necessário utilizar-se a mão-de-obra livre, que teve de ser a nacional, pois não houve uma política consistente de imigração de trabalhadores estrangeiros para a região Norte. Mesmo caracterizando o homem livre e pobre como “indolente” e “vadio”, os proprietários rurais brasileiros, especialmente os nortistas, em meados da década de 1870, passaram a ver no trabalhador nacional uma saída frente à inevitável abolição. É nesse sentido que a Comissão 66

nomeada pela Câmara dos Deputados, em 1875, para estudar os meios de auxiliar a lavoura, teve como uma de suas principais conclusões que: Dispense o governo séria e efficaz protecção aos fazendeiros e senhores de engenho que conseguirem fixar população brasileira em seus estabelecimentos, ou condensá-la em núcleos organisados; crêe, para lhe dar educação e hábitos de trabalho rural, colonias agrícolas em certa e determinada escala; favoreça-os com isenções de serviços de exército e marinha, afim de que essa população se não afaste dos povoados e centros agrícolas; e este germen de trabalho, fixando-se no solo por amor da propriedade, e tendo, para reger-se uma boa lei de locação de serviços, ha de desenvolver-se em largas proporções, formando o mais importante, aproveitável e barato pessoal da lavoura (Melhoramentos da lavoura. Apud LAMOUNIER, 1988, p. 125-126).

Entre os proprietários rurais nortistas, reunidos no Congresso Agrícola de 1878, a solução que se apresentava para a lavoura era a utilização da mão-de-obra nacional. Segundo eles, sendo melhor distribuídos entre cidade e campo e havendo uma legislação eficiente que garantisse a fixação dos trabalhadores nacionais nas regiões dos engenhos, a “vadiagem” podia ser controlada. É neste sentido que os deputados nortistas, desde 1877, vinham discutindo na Câmara a possibilidade de, com a ajuda imperial, criar colónias agrícolas para fixar o “elemento nacional” à terra e incutir-lhe a disciplina do trabalho. Para concretizar a colonização nacional, proceder-se-ia uma reforma fundiária limitada, cujo objetivo central seria o de criar núcleos de pequenos proprietários agrícolas, que garantiriam uma razoável oferta de produtos de primeira necessidade. No dizer do engenheiro e economista francês, Henrique Augusto Millet, participante do Congresso Agrícola de 1878, que propunha a desapropriação de terras da Zona da Mata, estes homens livres poderiam “(...) proporcionar aos 67

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mesmos engenhos, nas ocasiões próprias, o suprimento de braços de que precisará sempre as lavouras de exportação erri certas épocas do ano” {Apud M ELO, 1984. p.78). No entender dos deputados, a atuação do governo imperial seria no sentido de concentrar a população livre e pobre, que se encontrava dispersa na região, em núcleos agrícolas que deveriam ser próximos às ferrovias e ao litoral, ou seja, em áreas que margeavam os engenhos. Em Pernambuco, por exemplo, quando da seca de 1877-1879, o governo provincial criou quatro núcleos nas cercanias do Recife, para atender aos flagelados. A função desses núcleos, de acordo com o governo, seria dividir a grande propriedade, fomentando a pequena lavoura e a policultura. Sua população chegou a ser estimada em nove mil habitantes, mas foram desestruturados quando cessou a ajuda imperial aos flagelados da seca em 1880 (MELO, 1984, p.82). Como havia previsto Henrique A. Millet, em 1876, os senhores de engenho começaram a fazer oposição ao projeto de criação de colónias agrícolas, argumentando que estas feriam os princípios do liberalismo económico, no que se refere à liberdade de venda e compra da força de trabalho, uma vez que não dava opção ao trabalhador. No entanto, o que estava por traz desta crítica era que os proprietários rurais, na década de 1880, já tinham certa clareza de que a melhor maneira de incorporar o homem livre e pobre ao trabalho, sem grandes resistências, era na condição de morador ou de forma sazonal. As colónias agrícolas, ao garantir uma oferta razoável de mãode-obra nos períodos determinados pela safra de cada região, criavam um problema sério, pois os proprietários rurais tinham de utilizar trabalhadores assalariados, o que ia de encontro aos princípios de uma economia escassamente monetarizada. Do ponto de vista político, os núcleos agrícolas significavam a existência de certa independência dos trabalhadores livres e de sua família, pois, por terem uma terra de onde tirar o sustento, os laços de subordinação dos trabalhadores aos proprietários rurais se tomavam frouxos, contrariando os princípios do sistema de poder local.

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Além disso, há de se considerar o desinteresse do Governo Imperial na colonização nacional, o que é explicado, em parte, pelo interesse do setor mais dinâmico - a lavoura cafeeira - na imigração estrangeira, onde o Estado investiu seus esforços. Em relação à imigração estrangeira, os proprietários rurais, reunidos no Congresso Agrícola de 1878 no Recife, pregavam que ela deveria ocorrer espontaneamente, sem ónus para o Governo Imperial e, caso isso não fosse possível, que sua subvenção fosse feita de tal forma que as despesas coubessem exclusivamente à região interessada em fazê-la, ou seja, ao Sul. Os senhores de terra reunidos acreditavam que o Governo deveria centrar sua atenção na busca de soluções para garantir crédito barato para a agricultura.2 A apropriação e o controle sobre a terra permitiriam aos grandes proprietários manter o domínio sobre a mão-de-obra livre, que, para se reproduzir, tinha que se submeter aos seus desígnios, bem como viabilizar uma transição do trabalho escravo para o livre, de acordo com seus interesses. Alguns fatores contribuíram para uma boa oferta de mão-de-obra na área canavieira durante o processo de transição. Durante a segunda metade do século XIX, houve migração entre as áreas económicas, como é o caso da ocorrida do Agreste e Sertão para a Zona da Mata. Isso acontecia, sobretudo, devido à expansão ou consolidação da propriedade fundiária pecuarista que levou à expulsão de antigos posseiros produtores de alimentos. As migrações entre essas áreas ocorriam também devido às secas e repiquetes. É possível inferir que o cumprimento da Lei de Terras (1850) tenha contribuído também para esse processo. Nesse período foi possível integrar homens livres como os “corumbás”, pequenos sitiantes do Agreste que nos meses de moagem

2 A década de 1870 foi marcada pela crise internacional do capitalismo, quando cada potência industrial tratou de garantir sua própria economia e a de suas áreas de influência. A depressão económica nos Estados Unidos e Europa interferiu na economia brasileira devido à sua dependência do mercado internacional. Neste período os bancos suspenderam as operações de crédito. 69

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da cana-de-açúcar vinham prestar serviços na Zona da Mata, como forma de complementar seus humildes ganhos. Há de se considerar, também, que, quando da abolição da escravidão, não houve uma migração em massa dos ex-escravos da zona canavieira para outras áreas, do que se conclui que não existiu uma perda considerável desta mão-de-obra pelos seus antigos senhores. No caso do Norte, a incorporação do homem livre pobre nacional ao trabalho disciplinado e regular, no caso do Norte ocorreu mediante a transformação deste em morador-agregado e em assalariado (FRAGOSO, 1990). O mais antigo e conhecido sistema de trabalho utilizado pelos grandes proprietários rurais era o de morador-agregado. Em troca de um lote de terra, de onde extraía a maior parte de sua subsistência, o morador ficava obrigado a trabalhar para o engenho, cabendo-lhe, entre outras coisas, o trato e o corte de uma tarefa, área correspondente a 625 braças de cana de açúcar que, considerando ser cada braça equivalente a 2,2 m, media 1.375 m. O morador-condiceiro tinha a obrigação de trabalhar dois ou três dias por semana nas terras do proprietário. Caso excedesse estes dias, ele receberia uma remuneração monetária. O morador-foreiro recebia uma quantidade maior de terra, tendo de pagar um foro ao proprietário e fornecer o cambão, que seria 20 ou 30 dias de trabalho gratuito por ano nas terras do senhor. Este tipo de relação de produção possibilitou a utilização de um trabalhador que custava o mínimo para o empregador, uma vez que aquele garantia seu próprio sustento e de sua família ao desenvolver uma agricultura de subsistência. Não sendo inteiramente mediatizada pelo mercado, a condição de morador possuía um componente camponês, pois sua base era familiar. Esta foi a forma encontrada pelo grande proprietário, para assegurar mão-de-obra barata que substituísse o escravo, com a segurança de poder sempre contar com ela, pois estava sob seu constante controle. Assim, os proprietários trouxeram os trabalhadores que achavam necessários para garantir o processo produtivo para dentro das cercas 70

de suas terras e passaram a garantir o trabalho regular e disciplinado dos livres nacionais, em troca de terra, para que estes cultivassem com toda a família. No auge da produção açucareira, ou seja, durante o período de corte da cana-de-açúcar, era necessária a utilização de um número maior de trabalhadores; para tanto, contratavam-se os assalariados e diaristas que não possuíam qualquer qualificação. Estes compunham o segundo maior contingente de trabalhadores nos engenhos. Os dados indicam que, na década de 1860, os salários puderam subir devido à procura de mão-de-obra pelos produtores de algodão e construtores de estradas de ferro. No entanto, na década seguinte, com a seca e os repiquetes, houve uma migração em massa para a Zona da Mata, gerando um excedente de mão-de-obra e causando o declínio dos níveis salariais. Dos assalariados, os únicos que recebiam pagamentos mais compatíveis com as exigências de mercado eram os trabalhadores qualificados e os ligados a serviços administrativos ou técnicos. Uma outra forma de utilização do trabalho livre na produção açucareira era o sistema de parceria. Ao lavrador era arrendado um lote de terra, onde este passava a cultivar alimentos e cana-de-açúcar. A produção era dividida entre os dois, possibilitando aos proprietários de terra usufruir os lucros sem correr riscos de perda, já que a divisão dava-se a partir do que concretamente se conseguia produzir. Apesar das queixas constantes dos proprietários rurais nortistas, quanto à falta de mão-de-obra, historicamente comprovou-se que foi possível garantir uma transição do trabalho escravo para o livre, de forma razoavelmente tranquila, utilizando-se os trabalhadores livres locais: os desempregados, os subempregados e os ingénuos da Lei do Ventre Livre (1871). As reclamações, a partir da década de 1870, seriam contra o recrutamento militar, que diminuía a oferta de mão-deobra, levando-se em consideração o número de convocações do Norte que eram superiores às do Sul, e a favor de uma boa lei de locação de serviços, em que constassem penalidades para quem não quisesse trabalhar (MELO, 1984).

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A inconstância e a resistência do homem livre pobie ao trabalho regular levaram alguns proprietários rurais do Norte a radicalizarem os pedidos de leis repressoras contra a vadiagem e a reclamarem leis que estabelecessem o trabalho compulsório. Isso, apesar de não ser sequer discutido na Câmara dos Deputados, repercutia entre os homens livres. Já em 1851, ano seguinte à lei que instituiu o fim do tráfico negreiro, quando o Governo Imperial baixou os Decretos 797 e 798, que estabeleciam, respectivamente, o “Censo Geral do Império e o “Registro Civil dos Nascimentos e Óbitos”, irromperam revoltas armadas em Pernambuco, Paraíba, Alagoas, com maior intensidade, e no Ceará e Sergipe, de forma mais branda, em dezembro de 1851 e janeiro de 1852, pois espalhou-se a notícia de que estes decretos tinham por finalidade reduzir todos os homens de cor e, diziam os mais agitados, todos os homens livres, a escravos. A esse movimento popular deu-se o nome de “Ronco da Abelha” (EISEN BERG, 1977, p.212-213). A idéia do trabalho compulsório volta à tona entre os homens livres pobres nos primeiros anos da década de 1870, quando os salários estavam em alta e a oferta de mão-de-obra reduzida. No final do ano de 1874 e começo de 1875, espocaram sedições nas Províncias da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas, que tinham como alvo as leis recem criadas, como a que instituiu o imposto de consumo sobre a carne seca e farinha, contra o novo sistema métrico decimal e contra a nova Lei de Recrutamento Militar, de 26 de setembro de 1874 que, de acordo com a notícia difundida, tomava o cidadão escravo. A ação dos revoltosos era invadir vilas e cidades em grupos de 60 a 600 homens armados, destruir os novos padrões de medidas (daí o nome do movimento: “Quebra-Quilos”) e incendiar os arquivos das Câmaras Municipais, Coletorias e Cartórios (MONTEIRO, 1980, p.129-133). Os homens livres pobres do Norte viviam alarmados com a possibilidade de serem escravizados: eis aí mais um motivo para se compreender a insistente resistência deles ao trabalho regular, que poderia remetê-los a uma condição não só similar à do escravo, como também havia o temor de que poderiam tomar-se escravos.

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Em uma sociedade em que a economia tinha por base a grande propriedade e o trabalho escravo, e cujo elemento fundamental de estratificação social era a terra, estruturou-se um grande contingente de trabalhadores livres que, por não terem acesso à terra, viviam miseravelmente. O trabalho, quando conseguido, estava abaixo de suas necessidades; quando se integravam à grande propriedade na condição de agregados, estavam sujeitos a serem expulsos a qualquer momento, perdendo sua roça e as benfeitorias que haviam feito juntamente com a família. A crise do trabalho escravo e a abolição da escravidão não significaram a integração do homem livre e liberto a um mercado de trabalho nos moldes puramente capitalista, nem tampouco seu acesso aos setores mais dinâmicos da economia de exportação. A região cafeeira optou pela imigração estrangeira, ocasionando a marginalização do trabalhador nacional nesta área. Na região Norte, este trabalhador foi incorporado muito mais na condição de agregado do que de assalariado, ou seja, nesta área foi mais difícil o redimensionamento da nova situação do trabalhador. É possível explicar este fato através do entendimento da crise económica porque passava a região. A solução encontrada pelos proprietários para enfrentar as dificuldades económicas e manterem seus lucros médios foi expandir as plantações na Zona da Mata e nas áreas de criação no Agreste e no Sertão. Desse processo resultou a expropriação de pequenos produtores, que viviam nas cercanias das propriedades, e na sua transformação em trabalhadores os quais, em boa parte, se submetiam aos potentados sob a condição de moradores e jornaleiros, quando não passavam a engrossar as fileiras do contingente de trabalhadores desempregados. Simultaneamente, aqueles que estavam diretamente envolvidos no processo produtivo das grandes propriedades compartilhavam das perdas, pois os proprietários, ao aumentarem a exploração sobre os trabalhadores, reduziam as roças dos agregados e passavam a exigir mais dos arrendatários e foreiros. Assim sendo, foi possível minimizar a crise económica e superar a crise do trabalho escravo, utilizando relações de produção não propriamente capitalistas, que implicavam baixo nível de monetarização 73

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e, inclusive, em muitos casos, o uso gratuito do trabalho familiar. A extorsão do sobretrabalho foi a forma encontrada pelos grandes proprietários de, ao reduzir os custos de produção, resistir às flutuações económicas do mercado internacional. 3. O trabalho livre na Paraíba O declínio da escravidão reforçou a utilização do homem livre pobre em todos os setores da economia paraibana. Assim como em todo o Norte, o morador-agregado foi a relação de trabalho mais utilizada, acompanhada pelo assalariamento e pela ampliação do sistema de parceria. A soldada também foi uma das formas de utilização da mãode-obra livre. Esta relação ocorria quando o proprietário rural recebia autorização do juiz para exercer a tutela de um órfão ou filhos de pais de conduta irregular, até que esse atingisse a maioridade. O receio da desorganização da economia, frente ao caráter irreversível do fim da escravidão, levou os proprietários rurais a sugerirem medidas preventivas, e o governo a intentar soluções. No entender desses senhores, era necessário aprovarem-se leis que obrigassem os homens livres e libertos a trabalhar, sendo atendidos pelas leis abolicionistas, que asseguravam a transição gradual do trabalho escravo para o livre com todas as penalidades previstas para evitar a vadiagem, como também pela lei de locação de serviços de 1879, que ratificava os interesses dos proprietários rurais. Era importante ainda uma nova ideologia do trabalho. Até então, este se tinha pautado na violação do trabalhador através da escravidão, considerando que não só o trabalho era apropriado, mas que o trabalhador também era propriedade. A partir de agora, o trabalho deveria ser considerado dignificante e bem maior do homem. Nesse sentido, foram criadas instituições que tentaram formalizar essa nova mentalidade, como é o caso da criação, na Paraíba do Norte, de Escolas de Artífices, Casas de Caridade e Colónias Agrícolas. Na década de 1850, foi autorizada na Paraíba, pela Lei n. 24, de 4 de julho de 1854, a criação de uma escola de agricultura teórica e prática. A primeira escola começou a funcionar em 1866, na capital 74

da Província, contando com nove alunos pobres que se iniciaram na matéria do curso primário e nos ofícios de alfaiate e sapateiro. Em 1869, a Escola de Educando Artífices já contava com 34 meninos. As Casas de Caridade, criadas pelo Padre Ibiapina, surgiram na década de 1860 para combater o cólera-morbo que se alastrava na região. Se, inicialmente, este era o objetivo, nas décadas seguintes elas proliferaram na região Norte, com clara definição de serem “uma obra de assistência à educação, a fim de curar o operário e preparar para fins domésticos a mulher pobre dos sertões” (MAR1Z, 1980, p.4). O sucesso destas Casas de Caridade ou de trabalho foi tanto, que chegaram a ser criadas vinte e duas na região Norte, das quais nove estavam localizadas na Paraíba. A Paraíba, no período que antecedeu a grande seca de 1877-79, passava por uma grave crise. Os surtos de cólera, de 1856 e 1862, e a Guerra do Paraguai (1865-1870) causaram baixas consideráveis na população. O movimento Quebra-Quilos e a perseguição aos envolvidos desorganizaram a produção no Agreste que, juntamente com a Zona da Mata, não puderam retornar à plena atividade produtiva devido à crise dos preços do algodão e do açúcar no mercado internacional. Esta crise repercutia nos cofres da Província, deixando as finanças em estado precário. No primeiro ano de seca, o governo provincial tomou algumas providências no sentido de evitar a migração. Foram montados dois depósitos de gêneros alimentícios. Um na capital, sendo a distribuição feita para o Sertão por intermédio de Campina Grande, e outro em Mossoró, cidade localizada no Rio Grande do Norte. Para comprar os alimentos e organizar os depósitos, foram nomeados chefes de polícia e inspetores da Tesouraria geral e provincial (ALMEIDA, J., 1980, p. 183-184). A criminalidade se alastrava pelo sertão. As depredações e invasões de coletorias se repetiam. Várias fazendas foram assaltadas. Os latrocínios proliferavam-se. Algumas cenas de antropofagia foram retratadas pela imprensa. Era o terror que vagava pelo sertão.

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A marginalização e a miséria cada vez maior da população geravam o banditismo. Inúmeros grupos foram criados e engrossados neste período. Para a década de 1870, Monteiro identifica a atuação de 14 bandos na Província da Paraíba. Eram formados por escravos fugitivos, desertores, criminosos, ex-militares e homens livres sem trabalho e sem terra (MONTEIRO, 1980, p.69-72). Várias cidades tiveram suas cadeias arrombadas. Em Campina Grande, alguns presos foram soltos, entre eles estava Alexandre de Viveiros, indiciado no movimento Quebra-Quilos, apesar de estar cumprindo pena por outros crimes cometidos antes e depois da sedição. A seca expulsava os sertanejos que tomavam o caminho incerto do Agreste e Litoral. Mamanguape, Campina Grande, Areia, Bananeiras e a capital eram os portos eleitos pelos retirantes. Este percurso, traçado pela dor e pela perda de referência, é colocado por dois repentistas: “E-me preciso mudar / da terra que tanto amo e moro / Terra que muito adoro / A minha pátria natal / Magino na beira mar / Me entristece o coração / Lagadiço, lameirão / Pois a fome não é pêca / Nesta tão terrível sêcca / Foge, povo do sertão!” (Ãpud ALMEIDA, J., 1980, p.208). Muitos foram os créditos abertos pelo presidente de província. Várias foram as remessas oficiais de socorro para os setores vitimados. A iniciativa particular de ajuda aos deserdados da seca também foi importante. Mas, tudo era pouco, frente à miséria generalizada. Obras públicas foram iniciadas para gerar empregos, como a construção da cadeia e do Paço Municipal de Campina Grande, a abertura de novas cacimbas, também neste município, e a continuação de um açude em Princesa Isabel. Fadiga, inanição, doenças, desonra, mendicância e o terror eram os companheiros de viagem dos flagelados, que sequer sabiam onde conseguiriam chegar. A capital, segundo cálculo do presidente da província, Ulysses Vianna, foi invadida por 35 mil retirantes; esses dormiam ao relento ou ficavam amontoados no saguão do convento de São Bento, no mercado, na escola pública ou ao redor do palácio presidencial. 76

De acordo com dados apresentados por Almeida, de maio a setembro de 1878, na capital, morreram 7.073 pessoas, e de janeiro a maio de 1879, 1.596 (ALMEIDA, J., 1980, p.201). A seca de 1877-79 estimulou o mercado interprovincial de escravos, desorganizou a produção onde eles eram utilizados, e contribuiu para um maior aproveitamento de mão-de-obra livre. Nesse período, foi implementada a criação de inúmeros núcleos coloniais na Paraíba. O objetivo central deles era possibilitar trabalho para os flagelados da seca, o que de certa forma serviu para familiarizar os proprietários rurais com o trabalho livre, bem como para integrar os homens livres pobres ao trabalho produtivo. Os núcleos foram implantados: ... em terras de propriedade de particulares, cujos possuidores as cederam para serem cultivadas pelos retirantes, sob sua administração, e sem outra atribuição ou compensação que um dia de trabalho dos colonos em cada semana, fornecendo a este o governo, por uma vez, a ferramenta necessária para o trabalho agrícola, sementes e uma muda de roupa, e alimentos por espaço de oito meses. (Exposição com que Dr. José Pereira Júnior passou a administração ao Exmo. Sr. Padre Felipe Benício de Fonseca Galvão - Segundo Vice Presidente, p.3. Apud ALMEIDA, J., 1980. p.205).

O governo da Província da Paraíba, temendo pela segurança social e considerando o grande número de flagelados que, fugidos da seca, saíam do interior para o litoral, encaminhou seus esforços no sentido de diminuir os problemas sociais que a aglomeração poderia causar. De um lado, incentivou uma política migrantista para estimular parte destes retirantes a saírem para outras regiões. E, por outro, para garantir a permanência de mão-de-obra na Província, implantou colónias agrícolas e investiu em obras públicas. Eis a justificativa apresentada: No intuito de prever distúrbios, e talvez crimes que a aglomeração de tanta gente ociosa poderia ocasionar e também na esperança de utilizar os seus serviços para 77

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Ariane Norma de Menezes Sá compensação, posto que fraca, dos dispêndios públicos, recomedei a todas as comissões que empregassem os socorridos em trabalhos públicos, como construção de açudes, cadeias, estradas, etc... (Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa em 12 de junho de 1877, pelo então Presidente da Província da Paraíba, Esmerino Gomes Parente. A pud D W IZ , 1988. p.80.)

Foram formadas 31 colonias agrícolas, das quais 24 ficavam na comarca da capital, 6 na de Mamanguape, e uma na de Independência, atual Guarabira. Estes núcleos reuniram, inicialmente, cerca de 8.920 pessoas, que correspondiam a 1.882 famílias. Devido ao abandono ou mesmo à expulsão dos que se recusavam a trabalhar e daqueles de condutas irregulares e maus hábitos, como sugeriu Pereira Júnior, presidente da província, três núcleos foram fechados: Barra de Grammame, Jacaré e Miriri do Lagamar (ALMEIDA, 1980, p.206.). A atuação do Estado mudou qualitativamente durante a seca ocorrida em 1877-79. Tratava-se de uma intervenção com base em um projeto modemizador cuja ênfase era estabelecer uma política de mão-de-obra livre na região. Era importante manter um contingente de trabalhadores livres que se habituasse ao trabalho regular e disciplinado, para, assim, promover o processo produtivo, quando da sua retomada após a seca. A política do Estado para atenuar os efeitos da seca e das tensões sociais que a aglomeração de pessoas famintas causaria, foi reduzida pela participação dos proprietários rurais, que doaram uma grande quantidade de terra para a criação dos núcleos agrícolas. Mesmo assim, a permanência dos núcleos coloniais ficou comprometida devido ao fim da ajuda imperial aos flagelados em 1880, e também pela compreensão dos proprietários rurais que acreditavam ser a condição de morador a forma mais adequada de incorporar o homem livre pobre ao trabalho. Utilizar assalariados ia de encontro às necessidades de uma economia na qual a circulação de moedas era restrita.

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Durante a segunda metade do século X IX , intensifica-se o uso da mão-de-obra livre no Norte. Os baixos níveis de remuneração demonstram a existência de um grande contingente de homens livres e libertos que, com a crise do setor agro-exportador, era duramente explorado. Esta exploração vai gerar tensões sociais, cujos movimentos de revolta popular mais significativos foram o “Ronco da Abelha” e o “Quebra-Quilos”. Era o prenúncio das modificações que ocorriam na organização sócio-econômica da região. No dizer de Hoffnagel: O homem livre pobre no campo, fosse ele parceiro, meeiro, morador, pequeno sitiante, arrendatário, foreiro, etc., precisava se submeter ao domínio do latifundiário que monopolizou o acesso àterra. De um lado, ele permanecia à margem da economia porque suas atividades produtivas foram determinadas pelos grandes proprietários, Ao mesmo tempo, porém, este segmento da população se constituiu em um elemento altamente integrado no sistema económico, dado seu papel como fornecedor de mão-de-obra e produtor de mercadorias destinadas ao mercado interno e externo (HOFFNAGEL, 1984. P-4 -). Mas, longe de ser passível à exploração a que tinha de submeter-se para garantir a sobrevivência, o homem livre pobre era capaz de participar de atos coletivos de rebelião, a exemplo do “Ronco da Abelha” e do “Quebra-Quilos”. Sobre eles, falaremos no próximo capítulo.

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C a p ít u l o I I I

Insurgentes: A belhas e Q uebra-Q uilos As revoltas sociais tratadas nesse capítulo não poderiam ser classificadas como revolucionárias, posto que não havia um programa determinado de tomada de poder, com líderes mobilizando a população para lutar contra determinados setores e assim alcançar objetivos previamente estabelecidos. As reivindicações que norteavam esses movimentos diziam respeito a uma situação imediata, envolvendo o cotidiano de pessoas que momentaneamente tomavam-se agressivas, quando na normalidade eram mulheres e homens pacíficos. Os líderes, geralmente, surgiam de forma espontânea e desapareciam sem deixar rastros. Na documentação cotejada, esses movimentos são definidos como sedição, rebelião ou insurreição. Acreditamos que, para dar a conotação de tratar-se apenas de perturbação da ordem pública, sem lhes atribuir uma conotação política ou social. 1. "R on co da A belha" Dezembro de 1851. Grupos armados invadem a vila do Divino Espírito Santo, Termo de Pau d’Alho, localizada na província de Pernambuco, com o propósito de rasgar um edital afixado pelo Juiz Municipal, acreditando ser uma declaração de escravização. Era a primeira manifestação da revolta social que ficou conhecida como “Ronco da Abelha”. Os papéis afixados, que seriam motivos de tantos desentendimentos, eram os Decretos 797 e 798, homologados pelo governo imperial, em 18 de julho de 1851. 81

O Decreto 797 determinava que, após os esclarecimentos feitos à população, através de editais afixados nas Igrejas e publicados em jornais, far-se-ia o arrolamento da população no dia 15 de julho de 1852, para o “Censo Geral do Império”. O “Censo”, acreditamos, seria muito importante, para que o governo imperial pudesse dimensionar o contingente populacional e localizar a mão de obra como forma de tentar resolver a questão do trabalho, considerando a extinção do tráfico negreiro, ocorrido um ano antes e que tomava irreversível o fim da escravidão. Era importante observar a realidade de cada região, para, assim, definir uma política que assegurasse trabalhadores para a lavoura, considerando suas especificidades. O Decreto 798 estabelecia que o “Registro Civil dos Nascimentos e Óbitos” da população, com base na cor da pele, seriam feitos pelo escrivão dos Juízes de Paz dos Distritos, a partir de I o de janeiro de 1852. Sua implantação gerou um clima de revolta entre os homens livres pobres. A desconfiança da possível redução à condição de escravo aumentava por saber que, a partir de então, o “Registro de Nascimento e Óbitos”, não mais seria feito pelo padre, em quem a população pobre e excluída tinha plena confiança e sim por repartições leigas, devendo-se declarar a cor da pele. “A idéia de que o captiveiro dos homens de côr era o fim do registro espalhou-se e alguns espíritos fracos subiu a altura do fanatismo” (Relatório do Presidente de Província da Paraíba, Sá e Albuquerque, apresentado à Assembléia Provincial, em 1852. {Apud PINTO, 1977, p. 210) Foi em oposição a estes Decretos que, nos meses de dezembro de 1851 e janeiro de 1852, houve manifestações de gmpos de pessoas armadas nas Províncias de Pernambuco, Paraíba, Alagoas, de forma mais intensa, e, em menor grau, no Ceará e em Sergipe. Na Paraíba atingiu oito cidades e vilas, identificadas no mapa abaixo.

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Ronco da Abelha (1851-1852)

Ariane Norma de Menezes Sá

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Antecedentes históricos O fim do tráfico negreiro em 1850, o aumento do preço do escravo no mercado interno, as reclamações dos proprietários rurais da falta de trabalhadores para a lavoura, a reivindicação crescente destes setores por leis contra a vadiagem, somada a uma maior exploração do trabalho dos pequenos produtores, foram fatores que tomaram explosiva a situação do campo nortista (EISEN BERG, 1977, p.213). A estatística da população da Província da Paraíba do Norte, no ano de 1851, demonstra que o número de livres é bem superior ao de escravos. É provável que essa evidência tenha estimulado a disseminação dos boatos sobre uma possível escravização dos homens livres pobres que não fossem brancos.

TA BELA 8 - ESTA TÍSTIC A D A POPULAÇÃO LIVRE E ESCRA V A D A PR O V ÍN C IA PO R MUNICÍPIOS (1851) Comarcas

N° de freguesias



a .

E

(D C ZJ

D)

|2

Comarcas Primeira Segunda Terceira

Freguesias

Livres

Escravos

Cidade de Alhandra Villa do Pilar Villa de Mamanguape

24.691 7.249 11.161

4.391 1.982 2.398

Cidade D’Arêa Villa do Ingá Villa de Cabaceiras V. de Alagoa Nova Villa de Bananeiras V. de Independencia Villa de Campina Villa de São João Villa de Pombal Villa do Catolé Villa de Piancó Villa de Patos Villa de Souza Soma

19.240 8.316 7.551 5.951 26.966 12.291 14.449 9.212 4.183 6.135 7.894 4.522 14.109 183.920

2.020 693 1.013 1.024 1.785 1.246 3.446 1.538 915 1.108 997 544 3.446 28.546

Livres 43.101 103.976 36.843 183.920

Escravos 8.771 12.765 7.010 28.546

Total 51.872 116.741 43.853 212.466

Fonte: PINTO, 1977, p.208.

A década de 1840 foi rica em transformações na organização produtiva do Agreste. Entre os anos de 1841 e 1849, a produção do algodão quase triplicou para atender às solicitações das indústrias têxteis inglesas. O pequeno agricultor agrestino, até então, fora habituado a plantar o algodão ao lado dos produtos de subsistência cujo excedente era vendido na feira, para que ele, com o apurado, pudesse comprar outras mercadorias. 84 85

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Com a procura do algodão pela Inglaterra, os proprietários rurais, para aumentar seus lucros, passaram a exigir dos pequenos produtores, de certa forma antes autónomos, que plantassem mais algodão e que pelo menos a metade do produto final ou o dinheiro de sua venda fosse entregue como pagamento pelo usufruto da terra. Alguns mecanismos de exploração da mão-de-obra passaram a ser utilizados, a exemplo da dívida, através da qual o proprietário da terra adiantava sementes e equipamentos, ficando o trabalhador endividado e, portanto, preso à fazenda. A “soldada” foi outra forma de garantir a permanência do trabalhador nas propriedades; bastava um proprietário rural alegar ao juiz ser o menor órfão e este passava a ter sua tutela em troca de alimentação, vestuário e abrigo. O assalariamento também passou a ser utilizado (HOFFNAGEL, 1984). Os novos níveis de exploração a que os homens livres pobres passaram a ser submetidos os deixavam receosos de uma possível escravização, o que lhes pareceu vir com os Decretos 797 e 798. Estes ficariam conhecidos como a “Lei do Cativeiro”, posto que tais “papéis” classificariam as pessoas de acordo com a cor da pele. Táticas utilizadas pelos insurgentes Foi com a intenção de impedir a aplicação da “Lei do Cativeiro” que grupos armados de cacetetes, bacamartes e clavinotes (espingardas estriadas) entraram nas localidades e passaram a exigir que as autoridades lhes entregassem os Livros de Registro. Em seguida, pediam aos padres que lessem o “papel da escravidão”. Reunidos em grupos de 300 a 600 pessoas, ouviam atentamente a leitura. Frequentemente, as pessoas verificavam se novos editais eram fixados nas portas das Igrejas. Há informações de que na Serra de Araruna algumas mulheres foram assistir à missa levando cacetes e pedras escondidas como forma de reagir a qualquer investida do poder público (PINTO, 1977, p.2-14). Na Província da Paraíba, na primeira semana de fevereiro de 1852, ocorreram tumultos quase simultâneos nas feiras de Alagoa Grande,

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Campina Grande, Guarabira, Areia,'Araruna, Ingá, Fagundes e Alagoa Nova (JOFFILY, G., 1977, p.25). Em algumas localidades, os rebelados solicitavam as informações e, tão logo as obtinham, se dispersavam, sem causar nenhum prejuízo material. Já na vila de Ingá houve confronto entre autoridades e insurgentes: Segundo as informações que obtivemos, um grupo de mais de duzentas pessoas appareceu na referida villa do Ingá, e vindo a casa do escrivão de paz apoderou-se de todos os papeis e livros que encontrou, com o fim de obter

a lei ou regulamento acerca dos nascimentos e obitos, e destruir tudo que existisse e dissesse respeito a este negócio. Esse grupo dirigiu-se a casa do Sr. Ladisláo e consta que apoderou-se de algumas armas que encontrou, e destruiu alguns moveis. Em seguida foi a casa do Sr. Euffazio, onde nada encontrando, nenhuma hostilidade praticou; e tendo imposto ao Dr. Peixoto a obrigação de evacuar a villa dentro de 24 horas, retirou-se e dissolveuse (Jornal Argos Paraibano do dia 26 de fevereiro de 1852. Apud PINTO, 1977, p.213-214, grifo meu).

Os alvos dos insurgentes acabavam sendo os poderes imperiais constituídos. Em seus representantes identificavam aqueles que poderiam, de forma arbitrária, instituir o estatuto da escravidão. O medo os movia em direção às repartições públicas, com o claro objetivo de obter a lei ou regulamento acerca dos nascimentos e obitos, e destruir tudo que existisse e dissesse respeito a este negócio (Cf. grifo acima). As notícias sobre os decretos teriam se espalhado graças aos mercadores que, com suas tropas de animais, percorriam várias feiras, realizadas em diferentes dias da semana, e levavam as informações do que ocorria em outras localidades. Segundo Joffily, nas feiras do Agreste e chapadas da Serra da Borborema, as notícias sobre a aplicação dos novos decretos diziam que, em alguns lugares, registros já haviam sido feitos arbitrariamente, onde constava se a criança seria considerada livre ou escrava (JOFFILY, G., 1977).

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A repressão Ao ser informado da ocorrência de motins em algumas localidades da Província de Pernambuco, e considerando a proximidade e afinidade que a Paraíba tinha com sua vizinha, foi que o Presidente Sá e Albuquerque tomou suas primeiras providências: ...E com effeito poucos dias depois chegaram-me communicações officiaes de que nas villas de Ingá, Campina Grande, Alagoa Nova e Alagoa Grande, o povo desrespeitando as Autoridades, reunido em grupos mais ou menos numerosos commettia desacato contra a lei e contra as autoridades. Naturalmente amigo do povo e mais condoído de seu erro do que desejoso de sua perseguição e martyrio, mandei instruções às differentes autoridades ' no sentido de ser destituído esse fatal prejuiso com o emprego de meios brandos e suasorios. Infelizmente porem, em alguns lugares o emprego desses meios não foi sufficiente e as Autoridades judiciosamente interpretando as instrucções que de accordo com o Chefe de Policia transmiti-lhes, fizerão uzo moderado e prudente dos meios de força e conseguirão restabelecer a ordem publica já gravemente alterada (Relatório do Presidente de Província da Paraíba, Sá e Albuquerque, apresentado à Assembléia Provincial, em 16 de fevereiro de 1852. Apud PINTO, 1977, p.211). ■

A análise deste documento oficial permite verificar que a repressão ao movimento “Ronco da Abelha” teve dois momentos distintos. Inicialmente, a ordem era tentar debelar a rebelião através da persuasão, evitando assim problemas sociais mais graves, bem como uma possível desorganização do setor produtivo. O governo queria evitar prejuízos de ordem económica e política. Informado de que no interior o povo armado não atendia aos apelos das autoridades, o presidente Sá e Albuquerque, então, encaminhou destacamentos da força policial e da Guarda Nacional para Ingá, Areia, Alagoa Grande e Alagoa Nova. No entanto, as evidências demonstram não ter havido nenhum confronto entre as tropas legais 88

e os rebeldes. Não se tem notícia da instauração de processos crimes Afinal, ficava difícil determinar culpas quando a ação dos sediciosos ocorria de surpresa e de forma rápida, para depois fugirem sem deixar vestígios: ...mas as autoridades, ostentavão o seu carater publico e coadjuvando-se reciprocamente, conseguirão chamaro povo a obediência, perdoandolhe esses desvarios que não tinhão feição de crimes individuaes. Perdoar o erro do povo, esquecer o seu louco e criminoso entusiasmo pelas ideas de liberdade nunca agredida, não perseguil-o com

processos e outros vexames, reabilital-o emfim, para uma vida de cidadão brazileiro amigo da ordem e de seus verdadeiros interesses, foi o meu pensamento (Relatório de Presidente de Província da Paraíba, Sá e Albuquerque, apresentado à Assembléia Provincial, em 16 de fevereiro de 1852. Apud PINTO, 1977, p.211, grifo meu). De acordo com o presidente, era preciso perdoar o erro do povo, que sequer parecia entender os motivos que o levava a se manifestar. Essa benevolência era uma forma de desqualificar os insurgentes, ao tempo em que lhes tirava qualquer significação política, considerando a ação criminosa dos mesmos em defesa de ideas de liberdade jamais ameaçadas. Também não se justificava uma repressão violenta, considerando que os decretos do Registro de Nascimento e Óbitos e o Censo Geral sequer seriam aplicados, pois o governo imperial, preocupado com a repercussão que vinham causando, e admitindo falhas na sua consecução, preferiu revogá-los em 29 de janeiro de 1852 pelo decreto 907. Além da utilização das forças legais, foram organizadas “santas missões” com o objetivo de desarmar a população e estabelecer a paz. Em 5 de janeiro de 1852, chegava a Pau d’Alho o capuchinho Frei Caetano de Messina. De acordo com as pregações que fazia, sua missão 89

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era pacificar a vila. Se isto não ocorresse “naturalmente”, teria de se fazer valer das autoridades legais. A frequência nesta Missão chegou a 10 mil pessoas durante uma procissão realizada no dia 24 de janeiro. A população reunida na Missão foi de 3 mil pessoas. Em troca de proteção, considerando as perseguições feitas pelas tropas legais, passaram a trabalhar em obras públicas (MONTEIRO, 1980, p. 126). Na Paraíba, o presidente da província, Sá e Albuquerque, mirando-se no exemplo de seu colega de Pernambuco, encaminhou os capuchinhos para a Serra da Borborema, com missão de convocar o retomo à paz e divulgar que os decretos não mais seriam postos em prática. Composição social ou sobre a necessidade de identificar líderes Uma das discussões mais recorrentes, quando a temática tratada é insurreição, diz respeito à identificação dos líderes do movimento. Segundo Monteiro (1980), não teria sido difícil para a oposição liberal capitalizar a incompreensão da população amedrontada e passar a fazer associação entre a Lei Eusébio de Queiroz (1850), que extinguiu o tráfico de escravos e os novos Decretos. Considera que os indicados pelos documentos oficiais como participantes da rebelião, a população rural mais pobre, principalmente “moradores” e “proletários”, não conseguiriam, por si mesmos, fazer essa associação, cabendo aos grupos remanescentes do movimento praieiro (1848-1849) fazê-la. (MONTEIRO, 1980, p. 122-123). Mesmo com os cuidados tomados pelas autoridades governamentais de evitar mencionar a participação de outros grupos sociais, a correspondência do Presidente de Província de Pernambuco deixa transparecer a possível participação do clero e de políticos do Partido Liberal. No já referido Relatório enviado à Assembléia, o Presidente da Paraíba do Norte afirma:

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...estou convencido de que os movimentos populares nesta Provínciaembora em alguns lugares figurassem como provocadores homens da política distincta da do governo, não forão todavia o resultado de um plano político anteriormente concebido e meditado e calculadamente executado. (Relatório de Presidente de Província da Paraíba, Sá e Albuquerque, apresentado à Assembléia Provincial, em 16 de fevereiro de 1852. Apud PINTO, 1977, p.214). Para Sá e Albuquerque, alguns liberais da Província incentivaram os insurgentes, pois mesmo que não tenham participado diretamente de seu planejamento ou ação, “no remanso de seus gabinetes e no seio de suas famílias e amigos folgassem com os embaraços do governo” . Mas na tentativa de diminuir o impacto do que declara e, considerando não ser interessante para o partido, a que estava vinculado, demonstrar que não conseguia manter a ordem, prefere encerrar o relato da seguinte forma: ...mas atirar sobre um partido político inteiro a imprudência e desmandos de alguns dos seus membros distinctos, o interesse calculado de outros menos importantes, e a ignorância e fraqueza de espirito de muitos, é abdicar a justiça dando o seu lugar ao capricho. (Relatório de Presidente de Província da Paraíba, Sá e Albuquerque, apresentado à Assembléia Provincial, em 16 de fevereiro de 1852. Apud PINTO, 1977, p.214). Dez dias depois o jornal Argos Paraibano publica uma matéria na qual questiona a participação dos liberais na sedição: ....E quando as cousas assim se passão, se manda, com a mais requintada má fé, e deslialdade, publicar na folha official, que taes motins são devidos á opposição!! O governo da província sabe, que deve-se aos esforços da opposição, aos esforços dos nossos amigos não terem 91

Escravos, livres e insurgentes

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tomado um caracter mais serio nas villas de Campina, Alagoa Nova, Guarabira, povoação de Alagoa Grande, Fagundes e outros logares; e custa a comprehender como, não obstante O Governista animou-se a accusar a opposição por taes factos. Se foi uma especulação, as vantagens não corresponderão de certo ao trabalho da invenção. (Jornal Argos Paraibano do dia 26 de fevereiro de 1852. Apud PINTO, 1977, p.214).

Apesar de ser possível identificar através de jornais, cartas e circulares a oposição ao governo conservador, feita pelos liberais, não se pode comprovar a participação efetiva de membros do Partido na insurreição, ainda ressabiados com a repressão desencadeada pelo governo imperial ao movimento praieiro.1 Assim, consideramos que o mais provável é que a participação liberal tenha ocorrido de forma velada e cautelosa. Para os governos imperial e provinciais, era importante ocultar essa participação, sob pena de deixar transparecer a resistência dos liberais e sua incapacidade de manter a ordem social Para Joffily, alguns padres teriam animado a desconfiança dos homens livres pobres em seus sermões, ao falarem contra o decreto 798 que lhes tirava a função do registro de nascimento e óbito e os atribuía a repartições leigas, sob a responsabilidade dos cartórios e a cargo dos escrivãos e dos juízes de paz dos distritos. Argumenta também que, de fato, os registros poderiam gerar dúvidas a respeito da origem social, havendo possibilidade de falsificação de óbito e a transformação de órfãos em escravos. Esse era um medo dos desvalidos da sociedade escravista (JOFFILY, G„ 1977). A participação do clero nessa insurreição, considerando que o decreto 798 lhes tirava uma importante atribuição, deve ter ocorrido, principalmente durante as pregações, como afirma Geraldo Joffily, mas não foi possível identificar maiores indícios desse envolvimento. Mesmo considerando a participação velada de liberais e do clero e não interessando uma investigação profunda que poderia transformar membros da elite em suspeitos, foi mais interessante para 1No âmbito nacional o Gabinete Conservador (1849-1852) era presidido por José da Costa Carvalho, o Marquês de Monte Alegre, e nas províncias por seus representantes 92

as autoridades constituídas atribuir aos livres e pobres a culpa pelos movimentos dos insurgentes. Inicialmente chamados de “maribondos” em Pernambuco, no Relatório do Presidente de Província de Alagoas a sedição é denominada de “Ronco da Abelha”, numa clara referência de que se tratava de algo sem grande repercussão ou organização política, sendo apenas reações isoladas e espontâneas de pessoas ignorantes e desinformadas, que, como um enxame de abelhas, entravam nas localidades e sem maiores consequências se esvaiam para o mato.

2. "Q uebra-Q uilos"

Sou quebra-quilo, encouletado em couro / Por vil desdouro, se me trouxe aqui IA bofetada minha face mancha / A corda, a prancha se me afligir aqui /Não há direitos; isenções fugiram /Nas leis cuspiram desleais vilões;/Crianças, velhos, aleijados, aguardam, / A triste farda de cruéis baldões. / Tiranos vede que miséria tantas! [...] / Nem a quebranta, nem pungir, nem ais / Martírios, ultrajes de negror, fazei-me / Porém, dizei-me se também sois pais! / A bofetada minha face mancha / A corda a prancha me doer senti / A vil desonra da família querida / Tira-me a vida [...]. de pudor morri (Versos atribuídos a Pedro Joaquim d’Alcantra César. Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.34-35).

Nos primeiros dias do mês de novembro de 1874, o Presidente da Província da Paraíba, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, era informado de que havia ocorrido uma revolta na feira da vila de Fagundes, do termo de Campina Grande. O Jornal da Paraíba , órgão vinculado ao Partido Conservador, de propriedade do referido presidente, noticiou o acontecido: O conflito preparado pelo ‘O Despertador’, mas que não tem por ora a importância que se lhe atribui, é oriundo dos atos de seus próprios correligionários de Campina; por 93

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isso servem-lhe de pretexto os impostos municipais da Câmara daquela cidade.O que se quer é levantar poeira e ferir a atual administração. As providências já estão sendo tomadas e a esta hora as coisas já terão chegado aos seus devidos eixos (Jornal da Paraíba, 11 de novembro de 1874, ApudiOVV\Ví,G., 1977, p.41).

O jornal O Despertador, de direção liberal, oposição ao governo de Silvino da Cunha, já havia noticiado o fato, e a despeito do que deveria esperar-se, narrou o ocorrido de forma branda, descrevendo-o como um conflito acontecido na vila de Fagundes, envolvendo povo e polícia, em decorrência da cobrança dos novos impostos lançados pela Assembléia Provincial, tendo como saldo alguns feridos. Seria interessante observar o embate entre os dois jornais mas, devido à existência de poucos números do O Despertador, só é possível identificar as discussões através das respostas provocativas do Jornal da Paraíba. A rebelião, que inicialmente pareceu ser localizada, rapidamente alastrou-se por todo o Agreste e Zona da Mata, atingindo não só a Paraíba, como também outras Províncias. Na Paraíba, ao todo foram 35 localidades que se sublevaram, e em Pernambuco, 23, Alagoas, 7 e Rio Grande do Norte, 13.

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Antecedentes históricos Ao analisar a insurreição, Henrique Augusto Millet2 colocou uma questão muito oportuna. Ele tentava entender por que o homem do campo, tão cerimonioso e respeitador, ciente de seus deveres, devido ao condicionamento secular a que havia sido submetido, teria atendido aos apelos dos agitadores Um contemporâneo seu, de codinome Philopoemen, de certa forma responde a' esta indagação. Questiona ele: “Que outra coisa foi o Quebra-Killos senão o grito dos padecimentos populares acumulados durante muito tempo e que num momento explodiria?” (Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.54). A que padecimento se referia Philopoemen? Para os homens livres pobres sobreviver em uma sociedade escravista era a primeira grande dificuldade. A seca, a pobreza do solo, a concentração de terra, eram fatores que os deixavam na miséria, doentes e famintos. A estes elementos foram acrescentados outros de ordem conjuntural. A década de 1870 foi marcada pela crise. Os produtos da lavoura nortista, o açúcar e o algodão, enfrentavam a crescente concorrência do mercado internacional e sofriam com a restrição do crédito devido à crise da economia mundial. Millet colocava que a crise estava levando os proprietários rurais a um crescente endividamento, passando a viver à custa de empréstimos ou fazendo retiradas do próprio capital. Acrescentava ainda que, dentre estes, os mais prejudicados eram os pequenos engenhos cuja única forma para resolver a questão do trabalho no campo era recorrer ao trabalhador “alugado”, aumentando os custos de produção. A crise dos anos 1870 fez com que os proprietários de terra, para manter seus lucros médios, ampliassem seus espaços produtivos, expulsando ou diminuindo as terras de moradores, arrendatários, etc. Além disso, a crise trouxe implicações para aqueles que não tinham 2 Engenheiro francês, trazido para o Recife em 1840, com a função de implantar obras públicas. Em 1876, publica o livro Os Quebra Kilos e a crise da lavoura, precioso relato das condições sociais e económicas sobre a década de 1870. 96

qualquer posse de terra, pois os proprietários já não podiam mais pagar os salários tradicionais e os reduziam. Houve um aumento do número de desempregados e, conseqúentemente, uma grande oferta de trabalhadores. Os cofres das províncias nortistas também foram afetados pela crise económica devido à diminuição da arrecadação dos impostos de exportação. Considerando isto, seus Presidentes e Câmaras Municipais encaminharam propostas de aumento de impostos e criação de novos, no que foram prontamente atendidos pelas Assembléias Provinciais. Sobre as leis O movimento, apesar das distâncias geográficas e da falta de um líder que o unificasse, colocaria as mesmas questões: os novos impostos e os arrematados, a imposição do sistema métrico decimal com novos pesos e medidas e a nova lei de recrutamento. A estes motivos, seriam insistentemente acrescentados pelas autoridades provinciais e imperiais, o fanatismo religioso e a motivação políticos. Vejamos o que constatou como causa imediata da sedição o Coronel Severiano da Fonseca, irmão de Deodoro da Fonseca, enviado pelo governo imperial para combater os rebelados na Província da Paraíba: Foi em Fagundes onde a 31 de outubro de 1874 desabrochou o movimento sedicioso, por ocasião em que, na feira, o arrematante dos impostos municipais cobrava o imposto denominado -de chão-; o povo que ia à feira para abastecer-se pronunciou-se contra esse imposto; a autoridade policial acudiu de pronto, porém foi desrespeitada e obrigada a retirarse (Apud JOFFILY, G. 1977, pp.54-55). A feira, ponto de encontro de várias pessoas que viviam isoladas, foi o local privilegiado dos acontecimentos que tanto preocuparam as autoridades provincial e imperial. Esse era o local em que os homens 97

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livres pobres, que moravam nos arredores das vilas e cidades, na condição de jornaleiros, moradores, assalariados,- arrendatários e pequenos proprietários encontravam-se, uma vez poi semana, para comprar e vender seus produtos.3 Essa era a forma encontrada pelo pequeno produtor de livrar-se dos 1atravessadores ou vampiros , que lhes compravam os produtos agrícolas a baixo preço e os redistribuíam, de forma que ficavam com parte substancial do lucro. Durante o dia da feira, os problemas de ordem individual eram relatados e aqueles que, de certa forma, viviam isolados, trabalhando em seus roçados, tinham a oportunidade de falar, discutir e brigar. Era também o local onde havia cobrança de impostos provinciais e municipais. Uma sobrecarga aos já tão sacrificados trabalhadores e pequenos produtores rurais. Os impostos cobrados no momento da feira eram de duas ordens. O que atingia a todos, como o imposto de consumo, cobrado sobre gêneros alimentícios (ex: carne seca e farinha), que havia sido criado naquele período. E aquele que havia sido majorado recentemente, o caso do já referido “imposto de chão”, que passou a ser cobrado nas feiras a um tostão por carga (ALMEIDA, J., 1980, p. 165). O Coronel Severiano da Fonseca demonstrou seu desagrado com a cobrança deste imposto pelos arrematantes, considerada por ele uma exorbitância: ...Os arrematantes de impostos levaram o abuso à altura do cinismo. Um pobre homem trazia, às vezes, para a feira uma certa quantidade de farinha, logo que pousasse no chão o saco que trazia, pagava imediatamente uma certa quantia e se por qualquer circunstância mudava de lugar tinha que pagar novamente, de modo que, muitas vezes, sem ter ainda vendido o que trazia, já tinha pago ao exigente arrematador grande parte do valor do que trazia para vender (Apud JOFFILY, G., 1977, p.58, grifo meu).

3 Vide definições dessas categorias sociais no capítulo 2.

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O “imposto de chão” era cobrado pelos arrematantes, quando se ocupava o pátio da feira para expor os produtos à venda. Os impostos municipais e provinciais, por uma taxa determinada, eram arrematados por particulares. Os arrematantes de impostos para aumentar seus rendimentos procuravam cobrar o máximo que pudessem. Daí o Coronel Severiano acusá-los de abusar “cinicamente” do direito que lhes fora conferido. Henrique Augusto Millet achava que a cobrança de impostos sobre carga só deveria ocorrer quando: ...as Câmaras proporcionassem aos feirantes algum edifício, com feitio ou nome de Mercado Público, ou pelo menos um telheiro que os abrigasse de chuva; e também ser exigido tão somente do que se pode chamar carga, e não de meia dúzia de cordas de carangueijos ou de um cesto de beijus que pouco mais valem que a importância do imposto (MILLET, 1987, p.55).

A questão que Millet levanta é importante para que possamos avaliar a distância entre o setor administrativo do Estado e a realidade do homem livre pobre, “o matuto”. Este não conseguia identificar quais os motivos plausíveis que justificassem a cobrança de impostos, visto que nenhuma parte do que era cobrado era revertido em seu benefício. Outra coisa levantada é que, indiscriminadamente, todos tinham que pagar imposto, desde o consumidor com as taxas sobre os produtos, até um simples vendedor ambulante. As dificuldades pelas quais passava a região, tomavam-na explosiva. Por motivos diferentes, a população sentia-se incomodada com os “abusivos” impostos. A criação e majoração de impostos elevavam o custo de vida, atingindo principalmente os homens livres pobres que já vinham sofrendo com o desemprego e baixos salários. Os proprietários rurais ressentiam-se, pois atravessavam uma crise económica, e o Estado, a quem pediam socorro, ao tempo em que rejeitava os financiamentos solicitados, aumentava os impostos. Os liberais, então fora do poder, colocavam que a criação e a majoração de impostos ocorriam devido à necessidade de manter uma 99

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burocracia estatal inoperante. Vejamos o pensamento de um liberal paraibano que, em panfleto anónimo, analisa o assunto: Porque foram tão descomunalmente aumentados os impostos provinciais da Paraíba? Os cofres estão “phtysicos”, a província sobrecarregada de uma dívida imensa; os empregados públicos (exceto os de casa) com o ordenado de meses sem ser pago, os soldados de polícia morrendo à fome, e todos os dias criam-se novos impostos e pesadíssimos impostos! [...] É que os intimos sustentam, sem rendas aparentes, um luxo de príncipe {Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.26).

Se a revolta em Fagundes explode quando um tal Marcolino ou Marcos diz que não pagará o imposto de chão, seu desenrolar demonstraria que a questão era bem mais ampla. Novas mudanças estavam para acontecer no cotidiano dos ho­ mens livres pobres. A Lei N° 1.157, aprovada em 26 de junho de 1862 decretava a substituição das medidas lineares, de superfície, capacidade e peso em uso, até aquele momento, pelo sistema métrico decimal francês. No seu parágrafo primeiro do artigo segundo, o governo oferecia o prazo de 10 anos, para que houvesse a substituição total dos antigos pesos e medidas. E, no parágrafo segundo do mesmo artigo, determinava que todas as escolas primárias deveriam colocar no ensino da aritmética a comparação entre o sistema métrico decimal francês com o que era até então usado. No parágrafo terceiro, definia ainda que caberia ao governo organizar tabelas de conversão de um sistema em outro, para serem usadas pelas repartições públicas, que orientariam as modificações. Por fim, no artigo terceiro, previa pena de prisão de até um mês e multa de 100$000 para os infratores. (Documento citado por SOUTO MAIOR, 1978, p.20-21). Dez anos depois, o Ministério da Agricultura publicava as instruções em 18 de setembro de 1872, que reduzia a pena para 5 ou 10 dias e a multa para 10$000 a 20$000. De acordo com estas “instruções”, a partir do dia 1 de julho de 1873, todas as mercadorias apenas seriam vendidas quando medidas ou pesadas de acordo com o novo sistema métrico decimal, sob pena dos infratores serem indiciados. 100

Apesar de cautelosa, a lei não se fez aplicar na sua íntegra. Ou seja, não foi implantado gradativamente o novo sistema como havia sido previsto. Dessa forma, a população não teve os dez anos de preparo. Até 1872, o governo não havia expedido o regulamento e distribuído os novos padrões. Portanto, o cumprimento da lei trouxe um impacto muito grande para os feirantes e consumidores, que viam seu sistema de pesos e medidas tradicionais serem trocados quase que repentinamente, e prevendo penas para aqueles que não cumprissem o determinado. Nas feiras da Paraíba, estes novos padrões começaram a aparecer em meados de 1874, havendo a substituição das cuias, canadas, côvados, palmos, arrobas, onças, comumente usadas pelos feirantes por litros, metros e quilos, que a maioria não entendia direito como funcionava. Vejamos a relação entre as medidas antigas e suas equivalências. T A B EL A 9 - V A LO R ES D E REFERÊNCIA DAS M EDIDAS Padrões Cuia Canada Côvado Palmo Arroba Onça

Unidade de medida Peso Líquido Comprimento Comprimento Peso Peso

Equivalência Padroniza quantidade de grãos 4 quatrilhos Três palmos 8 polegadas

Equivalência 2,6621 0,66m 22 cm 14,7 Kg 28,691g

Millet comenta que nem os aferidores sabiam utilizar os padrões de medidas para secos e líquidos, que haviam sido enviados pelo governo sem as necessárias explicações (MILLET, 1987, p. 55). Fato é que, no momento do “vamos quebrar”, eram os símbolos dos pesos e medidas os imediatamente atacados. O povo quebrava os pesos e decepava suas cabeças de ferro. A outra causa apontada que teria contribuído para aumentar a insatisfação dos insurgentes seria a nova Lei de Recrutamento Militar. A Lei N° 2.556 de 26 de setembro de 1874 previa o alistamento feito por sorteio e abolia os castigos físicos, muito comuns à época da 101

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Guerra do Paraguai, quando os jornais noticiavam a chegada de várias caravanas do interior de “...recrutas acorrentados pelo pescoço com gargalheiras” (Jornal O Tempo, do dia 7 de setembro de 1865. Apud JOFFILY, G., 1977, p.32). No corpo da lei aparecia uma série de isenções. Estavam isentos do alistamento militar todos os que pagassem uma contribuição em dinheiro estabelecido pela lei; aqueles que fossem estudantes ou tivessem curso superior; os que apresentassem substituto idóneo; todos que tivessem as seguintes ocupações: proprietários rurais, administradores ou feitores de fazenda com mais de 10 trabalhadores, caixeiros de casa comercial; e, por fim, todo aquele que presumida ou comprovadamente fosse possuidor de um capital igual ou acima de 10.000$000 (SOUTO MAIOR, 1978, p. 182). O recrutamento era conhecido como “imposto de sangue”, uma vez que qualquer problema havido entre o proprietário de terra e o trabalhador rural, poderia ser resolvido pela indicação do nome do trabalhador para compor a armada, exército ou polícia. Para escapar de tal castigo, só restava cair na ilegalidade. A arbitrariedade era tanta que, várias são as correspondências que o Governo Imperial envia aos Presidentes de Províncias nortistas, aconselhando-os a abrandar as medidas coercitivas de recrutamento para evitar perdas para a lavoura. Um cancioneiro popular, através de um canto triste, retrata um pouco da angústia da violência e da arbitrariedade que eram cometidas: Agua Preta, adeus, adeus/Não sei quando te verei/Vou recrutado para o Sul/Contra a razão/ Contra a lei (Apud JOFFILY, G., 1977, p.30). Mesmo com o fim da Guerra do Paraguai, o recrutamento continuou intenso. Em Relatório enviado à Assembléia Provincial, o Presidente da Província da Paraíba, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, às vésperas da revolta “Quebra-Quilos”, reconhecia a necessidade de se moderar nas medidas tomadas para garantir o recrutamento, ao que denominava de “repugnante imposto de sangue”, para evitar maiores clamores. Mesmo assim, considerando o estado de insegurança individual e de propriedade em que encontrou a Província tomou as seguintes providências:

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...mantendo a máxima severidade neste serviço, visto como, pela falta de trabalho e ocupação honesta é que a população ignara procura atentar contra aqueles tão apreciáveis direitos de sociedade. E não me enganei. Com efeito, devo o grande melhoramento da segurança individual e de propriedade, além das prisões e punições dos delinquentes, à severidade com que tenho procedido no recrutamento, fechando os olhos às mais poderosas considerações e procurando cumprir, religiosamente, os meus árduos deveres. Durante a minha administração já foram presos para o recrutamento 250 indivíduos, 50 assentaram praça no Exército, 12 na Marinha e 150 foram para a Polícia, por isenção legal foram postos em liberdade 2, por incapacidade física 16, por motivos atendíveis 12, 7 foram removidos para a cadeia por terem a nota de ladrões de cavalo e 2 para a enfermaria (Apud JOFFILY, G., 1977, p.33).

A falta de identidade dos homens livres pobres com o sentido de nação, a má divulgação da nova lei que, segundo ouviram falar, “escravizaria o cidadão”, somadas às causas anteriormente apresentadas, compõem o quadro geral que indicava para a revolta. Além disso, concretamente, as isenções supracitadas geraram a desconfiança de que só seria recrutado aquele que não tivesse prestígio e dinheiro, ou seja, as exceções que a nova lei criava em quase nada mudavam a condição anterior do “imposto de sangue”. É tanto que, durante a agitação popular em Alagoa Nova, depois de quebrarem os pesos e medidas e incendiarem os papéis da Câmara e dos cartórios, alguns sediciosos se encaminharam para um engenho de propriedade de Francisco de Sousa Gouveia, com o intuito de fazê-lo destruir a Lei do Recrutamento, considerando que um doutor poderia fazer isto. Voltaram, ao constatar que ele não estava no engenho (SOUTO MAIOR, 1978). Os comentários sobre a nova lei criaram certo desconforto também para os proprietários rurais, posto que esta apresentava-se como uma ameaça ao seu poder. Por dizer-se que não seria mais possível substituir 103

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um parente por um desafeto ou por escravos, agora espalhava-se que u lei igualaria todos e que os recrutados seriam pessoas de todas as condições sociais. Desde muito, disseminou-se a idéia de que o quartel era um bom lugar para recuperar marginais, daí que muitos dos implicados na sedição “Quebra-Quilos” foram enviados para o Exército. Em 1879, praticamente cinco anos após o movimento sedicioso, o deputado João Florentino mostra sua indignação frente à repressão, que tinha como uma das bases o recrutamento: ...É certo que alguns dos infelizes presos para recrutas e que eram logo remettidos para a Côrte, encontraram justiça no governo imperial, alguns maiores de 40 annos foram aqui julgados incapazes, postos em liberdade e reenviados para a província. Era esta, porem, uma reparação incompleta. O ataque á liberdade já tinha sido effectuado, a violência contra a propriedade, a vida e a honra não tinham mais reparação possível (Apud Almeida, J., 1980, p.263-264).

Mesmo depois de sufocada a rebelião “Quebra-Quilos”, a lei foi sistematicamente rejeitada pela população. Segundo documento datado de 4 de setembro de 1875, o Presidente da Província da Paraíba informava ao Conselheiro de Estado que, em geral, a população do interior continuava resistindo ao recrutamento, sendo difícil para as juntas paroquiais de alistamento, que segundo ele funcionavam irregularmente por falta de pessoal, formarem listas de cidadãos aptos a cumprir o serviço das forças armadas (Souto Maior, 1978). Essas leis gerariam nos diferentes setores da sociedade as mais diversas reações. A tática Passemos agora a verificar a atuação desses “Quebra-Quilos”, como eram denominados os participantes do movimento, para podermos concretamente, através de suas ações, definir as formas de manifestações de cada grupo social envolvido, ou pelo menos citado 104

pela documentação e historiografia que trabalha a sedição. Analisemos, especificamente, os fatos ocorridos na Província da Paraíba. Movimentos sediciosos, oriundos da província da Paraíba, têm lavrado no centro desta, do Rio Grande do Norte e das Alagoas; grupos numerosos, embora as mais das vezes desarmadas, têm invadido as povoações do interior na ocasião das feiras semanais, opondo-se à percepção dos direitos municipais, quebrando ou dispersando as medidas do novo padrão, atacando as coletorias e câmaras municipais para queimar os arquivos, e praticando mais alguns desacatos, próprias das massas ignorantes quando se acham desenfreadas (MILLET, 1987, p.29).

O primeiro atrito ocorrido entre o povo e as autoridades foi na feira de Fagundes, em 31 de outubro de 1874, como já foi relatado anteriormente. Daí para frente, o movimento se alastrou, com pequenas diferenças cronológicas, mas com bastante semelhança nas formas e táticas de ataques. Os primeiros movimentos eclodiram quando da cobrança de impostos nas feiras. Dos protestos contra tal atitude, partia-se para quebrar os pesos e medidas do novo sistema métrico decimal. O próximo passo era incendiar ou destruir os arquivos das Câmaras Municipais, Coletorias e Cartórios cível e criminal e, em algumas localidades, as agências de correios. A medida que o movimento foi crescendo, houve uma mudança na tática dos “Quebra-Quilos”. Bandos de homens armados com foice, cacetete e bacamarte, sob o comando de chefes eventuais, cujo número apresentado pela documentação variava de 30 a 600, entravam de assalto nas mais diferentes localidades (povoações, vilas e cidades), nos dias de feiras semanais, cometiam os atos relatados por Millet e prometiam voltar. E interessante notar que, nas localidades invadidas, os sublevados praticavam as mesmas ações, eram recebidos com simpatia pelo povo e, na maior parte das vezes, sem nenhuma resistência das autoridades

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policiais que, segundo o Presidente de Província, se encontravam impotentes devido ao seu pequeno número. Os sediciosos falavam em governo do povo e se contrapunham ao governo dos bacharéis, provavelmente deve-se a esse tipo de referência, uma outra denominação atribuída por Irenêo Joffily ao movimento, tratando-a como a revolta dos matutos contra os doutores. Apesar de manterem o controle das cidades que ocupavam, em nenhuma houve saque ou derramamento de sangue, nem tampouco permanência. Saíam tão logo tivessem executado os atos comuns ao movimento. O Jornal da Paraíba, do dia 9 de dezembro de 1874, coloca os fatos da seguinte forma: O povo, iludido e excitado, não encontrando resistência arroja-se de preferência sobre os escritórios das coletorias, rasga e inutiliza os papeis e livros, pensando subtrair-se, assim, ao pagamento de imaginários impostos provinciais. Acomete, igualmente, as Casas das Câmaras Municipais cujos arquivos incendeia para não ser constrangido ao pagamento de fantásticos impostos municipais. Queixa-se do novo sistema de pesos e medidas, cujos instrumentos despedaça e inutiliza. Vocifera contra a reforma da lei do recrutamento, a que chama lei do cativeiro... (JOFFILY, G., 1977, p.45-46).

Para os revoltosos, tratava-se de resolver de forma direta, através do quebra-quebra e de incêndios, tudo que representasse o poder que os constrangia, em meio a tanta miséria, a pagar impostos que nunca retornavam em seu beneficio, ou para eliminar a Lei de Recrutamento, que obrigava filhos, irmãos e maridos a prestar serviço militar, por uma nação quando eles não compreendiam o sentido de pátria. Em meados do mês de novembro de 1874 muitos foram os lugares invadidos. Acontecia, normalmente, no momento da feira semanal. Campina Grande, importante cidade por sua densidade populacional e comércio, localizada na Serra da Borborema, foi invadida nos dias 14, 21, 23 e 28 de novembro e 2, 4 e 5 de dezembro de 1874, por grupos de mais ou menos 100 homens. Desses diferentes momentos, há de se destacar o dia 4 de dezembro, quando escravos queriam impor 106

sua liberdade a seus senhores, ao invadirem o sítio Timbaúba, a 2 léguas de Campina Grande.4 Geraldo Joffily descreve o primeiro atrito na feira de Campina Grande, a partir do que contaram testemunhas oculares: ...persistiam os matutos nas suas recusas e reclamações, quando aparece o delegado João Peixoto com alguns soldados da polícia e cabras do coronel Alexandrino Cavalcante, dono do mercado, tentando dispersar os grupos mais agitados a lambadas de facão; [...] alguns tiros foram disparados e deu-se o pânico na grande feira. ...um rebolo de rapadura acertou em cheio a cabeça do delegado. ...Os matutos tomaram conta da cidade, arrombando a cadeia, inutilizando os novos pesos e medidas e destruindo os arquivos públicos, sem que se tenha notícia de mortes, roubos e atentados sexuais (JOFFILY, G., 1977, p.55-56). Segundo o Relatório do Coronel Sevenano da Fonseca, enquanto acontecia a segunda invasão dos “Quebra-Quilos” na cidade de Campina Grande, mais 15 lugares eram tomados. E passa a narrar várias invasões ocorridas simultaneamente: No dia 21 de novembro, ao mesmo tempo que a cidade de Campina Grande estava a braços com os sediciosos, mais quinze lugares arcavam com as iras dos faciosos invasores, a saber: Alagoa Nova, Pilões, Arará, Ingá, Independência, Bananeiras, Esplanada, Esperança, Guarabira, Fagundes, Serra do Pontes, Serra Redonda, Mogeiro e Itabaiana. No dia 28, enquanto Areia debatiase, estavam sendo devastadas São Sebastião, Salgado e Serrinha. No dia 29, Fagundes foi novamente invadida e no mesmo dia Pedras Lavradas, Triunfo, Pocinhos, Piabas, São João, Cabaceiras, Baixa Verde, Alagoa de Monteiro, Mata Virgem e a vila de Pilar eram assaltadas 4 Este levante de escravos foi tratado no capítulo 1. 107

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por mais de duzentos homens. Na vila de Pilar foi completamente destruído o arquivo mais importantè da Província, onde haviam riquíssimos documentos e cuja falta muito se ressentirá a história geral do Império (Apud

O pequeno teatro existente nesta cidade, diz Dr. Corrêa Lima, era uma das principais cousas procuradas pelo povo em sua idéia fixa contra a maçonaria; diziam os exaltados que era casa de maçons e que nela tinha o livro azul contra a Igreja. Existia um retrato a óleo de S.M. o Imperador, apenas o viram apoderaram-se dele com um frenesi de canibais, o esfaquearam e puseram-no em pequenos pedaços no meio de violentas injúrias à pessoa Augusta do Chefe da Nação (Apud JOFFILY, G., 1977, p.67).

JOFFILY, G„ 1977, p.68).

Em Alagoa Grande e Alagoa Nova, os “Quebra-Quilos” jogaram os pesos numa lagoa e incendiaram os arquivos da Câmara e Cartórios. Em Cuité, quando atacada, não havia nenhuma autoridade, pois todas tinham fugido. Bananeiras e Arara foram invadidas pelo mesmo grupo de homens. Salgado foi atacado por 100 homens aos quais foram somados mais 200 do lugar, depois de quebrarem os pesos. Sob o som da banda de música local, deram vivas a todos que se negavam a pagar impostos. Em Pilar houve adesão dos trabalhadores dos engenhos e fazendas, apesar de não ter sido identificado um chefe. Cabaceiras também teve seus arquivos queimados e os pesos e medidas quebrados. Em Ingá, os rebeldes entraram na vila gritando “morra os maçons” e, dando vivas aos católicos, queimaram os papéis da Casa da Comarca, obrigaram o Comandante de Polícia a assinar papéis, garantindo o fim dos impostos e a revogação da Lei do Recrutamento e aplicação dos novos pesos e medidas. O Comandante fugiu da vila no dia seguinte (SOUTO MAIOR, 1978, p.24-36-37). O Coronel Severiano da Fonseca, em seu Relatório, retrata os detalhes da invasão da cidade de Areia: A cidade de Areia, importante não só pela sua posição geográfica, como também por ser o ponto principal de todo o comércio do sertão, foi duas vezes assaltada, uma a 26 e outra a 28 de novembro. Seiscentos indivíduos entraram na cidade às 9 horas da manhã do dia 26, segundo consta da carta que sobre os acontecimentos recebi do Juiz de Direito João da Mata Corrêa de Lima. Toda a sorte de atentados foi praticada pelos ferozes assaltantes. Quebraram os pesos e medidas, destruíram o açougue público, acometeram a casa da coletoria, fazendo ouvirse os gritos de morra maçon, abaixo os tributos e medidas novas inventadas pelos maçons. 108

Em Areia, os sediciosos foram recepcionados pela banda de música e por figuras ilustres, que já tinham conhecimento da sua caminhada em direção à cidade. Apesar disto, os Quebra-Quilos cometeram os atos acima descritos pelo Coronel Severiano. Mandaram abrir as casas comerciais, para quebrar os pesos e medidas, soltaram os presos da cadeia. As famílias mais ricas, que não saíram para suas fazendas e engenhos, mantinham as portas fechadas. Não se tem notícia de derramamento de sangue ou de violação de domicílios (ALMEIDA, H., 1958, p. 142-143). Em Campina Grande, no dia 26 de novembro, os revoltosos queimaram os papéis da Câmara Municipal, da Coletoria e do cartório de Pedro Américo de Almeida. No dia seguinte, levaram ao Padre Calixto os livros apreendidos da “Segredo e Lealdade”, colocando a maçonaria nas mãos da Igreja (SOUTO MAIOR, 1978, p.46). A repressão O Coronel Severiano Martins da Fonseca recebeu a missão do governo imperial de debelar a sedição surgida na Paraíba do Norte. Tamanha era a urgência, que o Coronel foi encarregado no dia 28 de novembro de 1874 e, já no dia 29, embarcava em direção à Província, chegando à sua capital, no dia 7 de dezembro. A tropa reunida pelo Coronel Severiano era formada por 667 homens vindos do Rio de Janeiro, 477 soldados e oficiais da Província, dos quais 266 eram do Corpo de Polícia da Província e 181 da Guarda i nn

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Nacional. As forças repressivas contavam, assim, com um contingente de 1.114 homens. Mesmo com as dificuldades encontradas pelo governo provincial para reprimir o movimento, este havia-se esgotado por si mesmo. É tanto que, quando a tropa do Coronel Severiano chegou à Paraíba, a Província já estava praticamente pacificada. Mesmo assim, as forças repressoras agiram de forma arbitrária e violenta. Muitas pessoas estranhas ao movimento foram agredidas, surradas, aprisionadas, envolvidas em coletes de couro, presas ou pronunciadas. A violência, que não foi praticada pelos revoltosos, ocorreu de forma acintosa durante o processo de repressão, a ponto de o Coronel Severiano enviar um ofício circular, determinando que os roubos fossem evitados pelos soldados e que a repressão se desse de forma mais comedida: Chegando ao meu conhecimento que alguns senhores oficiais, quando encarregados, já de efetuar prisões, e já de conduzir presos, empregam demasiado rigor, vossa senhoria faça-lhes sentir que um tal procedimento é ofensivo à disciplina e preceitos militares. A cega observância da lei é um padrão de glória para o militar zeloso de seus créditos, e é a única e segura norma que deve seguir (Apud JOFFILY, G., 1977, p.74).

O Coronel Severiano havia destacado para comandar as forças legais em Areia, o 18° Batalhão de Infantaria, sob as ordens do Capitão José Longuinho da Costa Leite e, em Campina Grande, o 14° Batalhão de Infantaria, sob o comando do Capitão Piragibe. À circular supracitada, o capitão Longuinho respondeu que os presos encaminhados para a capital da Província eram implicados na sedição ou bandidos indicados pela própria população local. O Capitão Longuinho afirmava que as notícias veiculadas na imprensa, acusando-o de selvageria, eram intrigas da oposição para atingir a administração provincial. A população do interior da Província sofreu com a violência cometida pelas tropas de linha que faziam prisão em massa, muitas vezes 110

envolvendo pessoas que nada tinham a ver com a sedição. Em Areia, depois de torturados, para dar exemplo, os presos eram enviados para a capital acorrentados e envoltos em coletes de couro. O capitão Longuinho era indicado pela criação ou adaptação do colete de couro que, segundo alguns autores, teria sido usado durante a Guerra do Paraguai. Elpídio de Almeida descreve como funcionava essa tortura: ...Entrou em uso o suplício do colete de couro, que consistia em costurar-se ao torax dos presos, muitos inculpados, uma faixa de couro cru, previamente molhada durante horas. À medida que o couro secava ia cumprimindo o peito da vítima, causando-lhe muitas vezes morte torturante por asfixia (ALMEIDA, E., 1979, p. 156-157).

Em Campina Grande, as tropas de linha também agiam de forma arbitrária. Em fato narrado por Irenêo Joffily, o capitão Piragibe, em missão a Pocinhos, teria chegado ao povoado em um dia de domingo. A população encontrava-se ouvindo missa, quando o capitão invadiu a Igreja e mandou que todos entrassem em um círculo feito pelos soldados. Em seguida, o capitão passou a escolher os homens mais robustos, que somaram quarenta e, depois de amarrá-los, levou-os para Campina Grande onde ficaram presos (ALMEIDA, E., 1979, p. 157). A repressão foi retratada de forma dramática por José Florentino Meira de Vasconcelos, deputado do partido da oposição ao governo provincial: ...Horrores foram praticados, o asilo do cidadão era violado em qualquer hora; a honra da esposa, da donzela, da viuva, e da mulher honesta ficou exposta ao assalto e à violência militar. As mães, as filhas, as irmãs, seguiam até a capital seus filhos, pais e protetores, mas o que podia fazer senão clamores? Fizeram-se prisões em massa, velhos e moços, solteiros e casados, todos acorrentados e alguns metidos em coletes de couro remetidos para a capital. Alguns infelizes, cruelmente comprimidos 111

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e quase asfixiados pelos coletes de couro, caiam sem sentidos pelas estradas, deitando sangue pela boca (Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 21 de janeiro de 1879. Apud ALMEIDA, J„ 1980, p. 171-172).

O inquérito policial foi orientado pelo Chefe de Polícia da Província da Paraíba, Manuel Caídas Barreto que, depois das várias prisões efetuadas, abriu processos em Campina Grande, Ingá, Pilar, Areia, Alagoa Nova, Alagoa Grande e demais lugares assaltados. Foram pronunciados 34 réus como cabeças da sedição. Para Caídas Barreto, todos apareciam como suspeitos: as autoridades judiciais, o delegado, o padre. Foi assim em Campina Grande, onde foram pronunciados como cabeças do movimento o capitão Gustavo de Farias e Antero Francisco de Paula Cavalcanti e o padre Calixto da Nóbrega. Também em Areia foram pronunciados major, alferes e tenente. O juiz de direito de Campina Grande, Bacharel Antonio de Trindade A. M. Henriques, indignado com as conclusões a que o Chefe de Polícia chegara a respeito de sua participação na revolta, fez circular na cidade um documento, onde respondia à acusação de ter sido um de seus chefes. O juiz lembrava que, durante a revolta, tivera sua casa saqueada e seus papéis queimados, pagando o preço de ser um representante da lei. Concluía que os Quebra-Quilos não teriam agido assim, caso fosse ele seu chefe. Depois disso o Chefe de Polícia, Caídas Barreto, foi substituído (SOUTO MAIOR, 1978, p.49-52-53). Os liberais e o Q uebra-Q uilos As autoridades provinciais e imperiais colocavam, insistentemente, como causas principais do movimento sedicioso, o fanatismo religioso, que teria sido explorado por alguns padres devido à prisão do bispo D. Vital, e o político, considerando que a oposição liberal incentivava a revolta para desestabilizar o governo conservador. Vejamos o que o Presidente da Província, Silvino Elvídio Carneiro da Cunha, em Relatório do dia 9 de outubro de 1875, apresentado à

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Assembléia Legislativa da Paraíba do Norte, afirmava serem as causas do Quebra-Quilos: Esta provincia, que sempre se distinguiu em todas as epochas pelo seu conhecido espirito d’ordem e respeito ás autoridades, em Novembro do anno próximo passado foi victima, em diversos municípios, das ciladas de agitadores, e fanatismo religioso, sob o pretexto dos impostos provinciais e leis do alistamento do exercito e armada e do systema métrico decimal (Apud JOFFILY, G., 1977, p.74).

Na primeira notícia que o Jornal da Paraíba, órgão conservador, publicou sobre o movimento “Quebra-Quilos”, citada na primeira página desse capítulo, já constava a acusação de que a sedição teria sido obra da oposição liberal para desestabilizar a administração do conservador Carneiro da Cunha. Passado praticamente um ano, o Presidente da Província retoma o tema, apontando como causas principais “ciladas de agitadores e fanatismo religioso”. Desde a queda do Gabinete liberal de Zacarias, em 1868, que os liberais passaram para a oposição. Se antes as críticas eram feitas ao poder moderador, em 1870, com o Manifesto Republicano, os mais radicais passaram a pregar que a solução de todos os males seria o fim da monarquia. Para Monteiro (1980), o movimento de 1874-75 fez renascer no espírito liberal os gritos de liberdade ouvidos no Norte, durante os movimentos de 1817, 1824 e 1848 e, em menor escala, durante o de 1851-52. No entanto, consideramos que mesmo tendo reerguido a oposição liberal nesse contexto, a conotação dos movimentos ao intentar a liberdade, tem outras características, relativizadas por cada conjuntura histórica. A ação política dos liberais tinha várias frentes. A imprensa liberal tentava desgastar ao máximo a administração provincial. Colocava-se contra tudo que fosse determinado pelo governo conservador. Acusava-o de ser contra a Igreja, por prender o bispo D. Vital, angariando simpatias do clero e dos católicos. Explorava a difícil relação da população com 1 1 -2

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o Estado, sugerindo a escravização dos homens livres pobres de cor como objetivo central da nova Lei do Recrutamento, argumento que havia sido usado com sucesso, quando do movimento Ronco da Abelha (1851-52). E pregava contra as leis que determinavam o pagamento de impostos, argumento utilizado em 1817. Agentes liberais foram enviados às localidades para organizar a resistência. Para sensibilizar os setores descontentes, as críticas abordavam não apenas os aspectos importantes das medidas governamentais, mas também se utilizavam do expediente de boatos, divulgando que o governo havia criado imposto para “estender roupa para secar”, que “cada pessoa deveria pagar 100 réis por cada galinha que possuísse”, ou ainda que, “para usar óleo no cabelo deveria-se pagar 2 mil réis”, etc. Todos os ataques traziam como refrão “era chegado o tempo de libertar-se” (MONTEIRO, 1980, p.142). Espalhar boatos foi um expediente comum utilizado em vários movimentos, como por exemplo, nos de 1817 e 1824. Além dos discursos e conversas informais, os liberais usavam a tática da distribuição de manifestos na Zona da Mata e Agreste, sendo estes frequentemente dirigidos aos pernambucanos. Verifiquemos como a participação liberal era vista pela imprensa conservadora: ...O que sobre esses fúteis pretextos parece haver oculto é um pensamento político e religioso, buscando habilmente ofuscar a razão dos fracos. Uma certa imprensa, há longos meses, emprega doutrinas subversivas, aqui e na Província da Paraíba, com violentos artigos contra os homens e as instituições semeando ventos que foram habilmente dirigidos para outros. Eis os motivos do movimento sedicioso... (Transcrição de artigo do Diário de Pernambuco de 3 de dezembro de 1874 para o Jornal da Paraíba do dia 9 de dezembro de 1874. Apud JOFFILY, G., 1977, p.46).

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O coronel Severiano da Fonseca também acusa os liberais de, através da imprensa, insuflar os ânimos populares: ...Um trabalho às claras e nas trevas. Tem o púlpito e o confessionário para minar a consciência dos povos; outro, sem à luz do dia, abusando na imprensa de sua inteligência e brilhante linguagem para levantar ódios, no seio de uma população dócil e pacífica; este é o político desgostoso, que quase nunca trepida em caluniar a bandeira de seu próprio partido... {Apud JOFFILY, G., 1977, p.87) Segundo Geraldo Joffily, o Coronel se refere aos artigos do liberal Felizardo Toscano que, em publicações feitas no Jornal O Despertador, combatia abertamente o recrutamento militar e a majoração de impostos. O Partido Liberal institucionalizado via com reservas o movimento popular do Quebra-Quilos, apesar de sua fração mais radical considerá-lo legítimo. Mesmo o liberalismo do professor José Antônio de Figueiredo da Faculdade de Direito de Pernambuco tinha como limite o medo de mudanças drásticas que colocassem em risco o comércio e a já tão desanimada lavoura nortista. Em artigo publicado no jornal A Província de 1 de dezembro de 1874, N° 456, ele concluía como causas da revolta: O povo, constante vitima de recrutamentos barbaros, verdadeira caçada humana, o povo encurralado por tributos excessivos lançados sem contestação alguma por camaras unanimes; o commercio e a lavoura em deplorável estado como numa crise igual os fulminava; os proprietários e lavradores das províncias do Norte, forçados pela necessidade a venderem os poucos escravos que possuem, os quais, as centenas são conduzidos mensalmente em vapores que os ievam para o Sul; e para cumulo de males essa fatal questão religiosa, essa geral 115

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inquietação das consciências, taes, são as causas dessa lamentável sedição! Não é pois de boa política nem de são patriotismo fechar os olhos às verdadeiras causas da sedição, e tel-os bem abertos para lançar a responsabilidade sobre homens inocentes punindoos por crimes a que são estranhos, por crimes dos quaes são antes victimas do que authores {Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.57-58). Portanto, para os liberais menos radicais, a revolta popular tinha por base a situação vigente. Para eles, o movimento deveria ser considerado como uma resposta violenta aos bacharéis, deputados, câmaras, coletorias, cartórios e impostos, peças fundamentais da engrenagem político-administrativa da época. Os liberais paraibanos iam mais longe. Segundo o manifesto citado anteriormente, os impostos eram majorados para garantir ‘ um luxo de príncipe' aos burocratas do aparelho administrativo da Província, acrescentando ainda: ...E é das veias do povo que sai o sangue com que se alimenta todo esse luxo, todo esse jogo imoral, todas suas zangas de dardos! Povo desgraçado! E amanhã a Paraíba será um vasto tumulo, mas tudo irá bem, porque estão satisfeitas as paixões danadas deste desgraçado Governo! Um Paraibano (SOUTO MAIOR, 1978, p.26).

A oposição liberal não vacilava em acusar os conservadores de venais, tentando demonstrar o não compromisso deles com a causa do povo. Religiosos e o "Q u eb ra-Q u ilos"

Amaior controvérsia sobre o “Quebra-Quilos” diz respeito ao grau de importância da questão religiosa para o movimento. Os governos provincial e imperial tendiam a atribuir aos problemas enfrentados com a Igreja a causa principal das agitações que abalaram as províncias do Norte. Desde o começo do ano de 1874, as correspondências trocadas entre os governos provinciais de Pernambuco e Paraíba com o Presidente do Conselho, Ministro da Guerra e Ministro da Fazenda, do Gabinete Conservador, o Visconde de Rio Branco, trazem a preocupação dos presidentes com uma possível revolta popular causada pela prisão dos bispos do Pará e de Olinda, respectivamente, D. Macedo e D. Vital. É tanto que, quando informado das agitações que ocorriam nas Províncias do Norte, o governo imperial, rapidamente, concluiu ser a questão religiosa a causa principal da sedição: “Essa chamada conflagração deve ser a presença de grupos agitadores naqueles lugares mediatos onde não encontra forças. O grito morra os maçons mostra que é a questão religiosa” (Cartas do Presidente do Conselho. Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.84). O Presidente do Conselho rapidamente atribuiu culpas e indicou nomes dos que deveriam ser mentores intelectuais do movimento. Eram padres. Vejamos como o caso é colocado: A autoridade não deve recuar. Os jesuítas de Triunfo são os mais perigosos; preparam o movimento da Paraíba e Pernambuco, de inteligência com Ibiapina e outros missionários. Parece que ali está o foco principal da sedição. Proceda com prudência, mas com energia, dispondo para esse fim de elementos eficazes. Aumentese a força de linha... (Correspondência do Presidente da Província de Pernambuco. Apud SOUTO MAIOR, 1978, p.70-71).

E importante relativizar o poder da imprensa e dos liberais, pois mesmo considerando a significativa mobilização política, outros fatores contribuíram para a revolta popular.

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A correspondência segue com o Visconde do Rio Branco, dando instruções de como deveriam atuar as forças repressivas da Província de Pernambuco, e sugere que as tropas entrem em acordo com as das

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outras províncias rebeladas, bem como com as forças vindas da Bahia, para, assim, mais rapidamente, debelar-se o movimento. Nesse sentido, é que o Chefe de Polícia da Província da Paraíba, Manuel Caídas Barreto, indicado para apurar responsabilidades e indiciar os envolvidos no “Quebra-Quilos”, no seu Relatório apresentado ao Presidente da Província da Paraíba, em fevereiro de 1875, apontou o Padre Calixto Correia da Nóbrega como um dos principais articuladores do movimento. O Padre Calixto, segundo consta no Relatório, teria tentado envolver o Padre Ibiapina, figura de grande prestígio junto à população, quando o convidou a abrir as missões em Campina Grande em dezembro de 1873. Para Caídas Barreto, o Padre Calixto há muito tempo vinha preparando a sedição, pois na verdade as assinaturas que ele andava colhendo em favor de D. Vital, e que seriam enviadas ao governo, eram uma forma discreta de identificar todos aqueles que eram favoráveis ao movimento que ele estaria a empreender. Para o Chefe de Polícia, todos apareciam como suspeitos. Algumas autoridades municipais, mesmo quando inimigas entre si, eram apresentadas como chefes do movimento. Foi o caso de dois capitães, que, comprovadamente, eram inimigos do Padre Calixto, mas que foram indiciados juntamente com ele. O Coronel Severiano da Fonseca, em seu Relatório, ao se referir ao caso ocorrido em Campina Grande, às vésperas do natal de 1873, diz que o Padre Ibiapina, durante a pregação, teria plantado a semente do movimento que só desabrocharia quase um ano depois. Segundo o Coronel, o Padre Ibiapina naquela oportunidade, teria dito que todos deveriam desobedecer ao governo maçom, não pagar impostos, e que o filho, a esposa e o escravo deveriam desobedecer o pai, abandonar o marido e fugir do senhor, caso esse fosse maçom (JOFFILY, G., 1977, p.87-88). Em seguida, o que se verificou, segundo o Coronel, foi um recuo do Padre Ibiapina que, logo após a pregação feita em Campina Grande,

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recolheu-se ao trabalho em suas Casas de Caridade. O mesmo não se podendo dizer do Padre Calixto. O Padre Calixto, juntamente com Irenêo Joffily e Felizardo Toscano, fazia oposição aos Carneiro da Cunha, representante dos conservadores na Paraíba. Era também notório o combate que o padre fazia aos maçons. Horácio de Almeida relata um episódio em que o Padre Calixto, durante um sermão, teria expulsado da Igreja, debaixo de “apóstrofes vexatórias”, figuras ilustres da cidade, por serem eles maçons. O autor também retrata alguns atritos que teriam ocorrido entre católicos mais próximos do Padre e maçons durante todo o ano de 1874 (ALMEIDA, H., 1958, p.140). Apesar de identificados alguns nomes de padres como agitadores, estando estes insatisfeitos com o desafio do Império brasileiro ao Papa e à sacralidade episcopal, o que se verifica é uma ação individual de alguns padres. Como, por exemplo, em Pernambuco, os padres jesuítas estrangeiros, Onorati, Aragnetti e outros que foram expulsos do país, ou do Padre Manuel de Jesus, ou do Padre Calixto na Paraíba. Mesmo assim, foi possível observar que a maior parte dos padres pregava a paz e o fim do movimento. E certo que, quando o movimento explodiu, Marcolino, na feira de Fagundes, dizia que não pagaria o “imposto de chão”, por ser coisa de maçom. Mas isto está mais próximo de uma justificativa para não pagar do que o contrário: não pagar simplesmente porque ele seria católico. Nesse caso é interessante ponderar a condição social dos feirantes, componente essencial para compreender sua reação, talvez mais importante do que sua religiosidade. As pregações encontravam um campo fértil e o Padre Calixto gozava de boa reputação entre os populares. Há indícios de que o Padre Calixto tenha visitado D. Vital no Recife, quando este ainda respondia a processo em liberdade, e que não olhava com simpatia o governo contrário à Igreja. Mas seria sutileza demais investir contra o governo maçónico, induzindo o povo a quebrar pesos e medidas e incendiar cartórios e coletorias, para, assim, indiretamente, colocar-se contra o governo, por causa da questão religiosa. 119

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O trabalhador do campo, que frequentava as feiras para garantir suas necessidades mínimas e evitar os ‘ vampiros , não acolheria um discurso tão sutil, nem agiria com tamanha desfaçatez como sugerem os relatórios oficiais, invadindo feiras quando o objetivo era atacar o “Estado maçónico”, que feria seus brios religiosos. Uma testemunha ocular dos acontecimentos, Ireneo Joffily, coloca a questão da seguinte forma: Podemos assegurar, como testemunha de vista, que não é verdadeira a opinião dos que dizem ter sido a sedição dos Quebra-Quilos promovida pelo clero paraibano e principalmente pelo missionário padre Ibiapina. A causa foi a decretação de novos impostos pela Assembléia Provincial da Paraíba em sua sessão desse ano. A notícia chegou a essa população pobre e ignorante de tal modo aumentada e extravagante que despertou logo um ódio geral contra o governo, que chamavam de doutores ou bacharéis. Queriam um governo de homens rústicos como eles. Nesse estado de exaltação de espírito estava o povo quando se pôs em execução a lei que estabelecia o sistema métrico decimal, cuja vantagem não podendo ser por ele compreendida fez explodir a mina já preparada (JOFFILY, I., 1977, p. 187-188). Alguns dos principais representantes da historiografia paraibana preferem ver, nessa citação, uma tentativa de Irenêo Joffily disfarçar seu próprio envolvimento, bem como acobertar a principal causa do movimento “Quebra-Quilos”: a questão religiosa. Chegam a esta conclusão, dentre outros argumentos, por comprovarem ter sido Irenêo muito amigo do Padre Calixto, tendo-o defendido, na condição de seu advogado e de outros implicados, da acusação de envolvimento na rebelião. Para eles, o próprio Irenêo teria sido um dos chefes da sedição (ALMEIDA, H.,1958, p. 138; ALMEIDA, E, 1979, p.154). Se para Joffily a revolta deve ser entendida como uma resposta ao governo dos bacharéis, que delimitou claramente o divórcio entre a 120

população do campo e a burocracia estatal, para Horácio de Almeida, o centro da revolta foi o fanatismo religioso. Argumenta ele ser muito mais vantajoso o uso dos novos padrões de pesos do que o até então utilizado, não sendo este o motivo fundamental para a compreensão do fato (JOFFILY, I., 1977; ALMEIDA, H„ 1958). Horácio de Almeida não analisou o impacto e o despreparo dos frequentadores de feiras, ao verem sendo-lhes imposto algo sem maiores explicações, que previa violência caso a lei não fosse cumprida. Ou seja, ao contrário do colocado, o “natural” neste caso seria uma reação a tal imposição, como de fato ocorreu e, que por ter como alvo principal os pesos e medidas, levou o nome de “Quebra-Quilos”. Para o governo imperial, colocar o fanatismo religioso como causa principal do movimento significava se fortalecer intemamente em tomo do sentido de nacionalidade, posto que a luta que se travou foi contra a Igreja Romana, colocando em xeque uma prerrogativa do imperador, ou seja, mexia com assuntos internos do Brasil. Também dava uma prova da exterioridade do movimento, ao expulsar alguns padres estrangeiros, que haviam, segundo o governo, encabeçado a revolta. Por outro lado, ao colocar o problema na perspectiva da questão religiosa, o governo negava-se a assumir seu fracasso, ao tentar diminuir a crise económica da região que se rebelava. Para o historiador contemporâneo, o problema que deve ser colocado é se a questão religiosa de fato possibilitou certo nível de mobilização, devido à atuação dos padres, junto aos que viriam a ser os “Quebra-Quilos”. O que deve ser evitado é a idéia do fanatismo religioso ter sido o eixo principal, pois embora seja um elemento extremamente enriquecedor de qualquer movimento social, significaria restringir a análise de outros aspectos de um momento histórico bem mais rico. Certamente, a dificuldade em identificar os chefes do movimento levou as autoridades a determinar os padres como líderes da sedição. Sobre líderes e atribuições de culpas A discussão sobre quais seriam os líderes da sedição é relevante, na medida em que possibilita identificar as razões de ser do movimento. 1O 1

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Os documentos analisados colocam que, nas principais vilas e cidades, a “turba” invadia a gritar: “morra maçons”, “abaixo os tributos e medidas novas inventadas pelos maçons”. Ou seja, de alguma forma os sediciosos identificavam as medidas criadas pelo governo como “coisa de maçom”. Assim retomamos à questão religiosa. É claro que os párocos, ao fazerem suas pregações, levavam aos fiéis os problemas enfrentados pela Igreja naquele momento. Encerrar o problema aqui significaria não considerar as dificuldades próprias enfrentadas pelos homens livres pobres envolvidos na sedição. O que os incomodava de fato eram as medidas criadas pelo Estado. Era contra a sua execução que eles agiam, recusando-se a pagar os novos impostos, a usar os novos padrões de pesos e medidas e a cumprir a imposição do recrutamento. Quando referiam-se aos maçons, era a forma de identificar o opressor, que seria o Estado, os bacharéis, figuras distantes do seu cotidiano, assim como o próprio sentido do que era ser maçom. Tratavase, portanto, da explosão, aparentemente irracional, de uma população que vivia em condições de pobreza, em alguns casos, quase que absoluta, não vendo possibilidade de melhorias. Era uma revolta contra tudo que representasse o Estado, que apenas lembrava de procurá-los quando era para cobrar impostos ou impor o recrutamento. Atribuir aos padres a liderança do movimento “Quebra-Quilos” seria limitá-lo. As próprias autoridades imperiais se contradiziam quando tratavam do assunto. Enquanto o Visconde de Rio Branco, em documento já citado, acusava Ibiapina e outros missionários de chefiarem a revolta, o Coronel Severiano nos dava o seguinte depoimento: Em frente a um dos grupos apresentou-se ostensivamente João Vieira, conhecido por Carga D’Água, magarefe morador da Varzea Alegre, do outro, o criminoso de homicídio Manoel de Barros e Souza, de outro Antonio Barros e Souza e João Nunes, de outro Marcolino de tal, conhecido por Marcos e um indivíduo conhecido por Piaba. Esses grupos compunham-se de 80 a 100 pessoas [...] a exceção de Manoel Barros, que se compunha de 8 a 10 indivíduos seus parentes (Apud JOFFILY, G., 1977, P-60).

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Analisando os dados colocados pelo Coronel Severiano sobre as invasões dos sediciosos à cidade de Campina Grande, pode-se inferir que, com exceção do grupo comandado por Manoel de Barros e Souza cuja intenção era libertar presos da cadeia, a liderança do movimento era transitória. Aquele que no momento oportuno se destacava, passava a ocupar a chefia e, tão logo desocupasse a cidade, o grupo se dispersava e o chefe voltava à sua condição anterior. Uma prova circunstancial desta transitoriedade era a não existência de uma estratégia ou de um plano montado de ação por parte dos sediciosos, o que levaria à necessidade de um líder para chefiar os movimentos de revolta. Assim, o movimento não possuía um ideário claro que definisse suas reivindicações, ou uma organização que garantisse uma ação contínua, o que poderia levar homens e mulheres a pôr termo ao estado de miséria em que viviam. A agitação social ocorreu de forma diferenciada nas várias localidades. Em algumas, foi articulada com a interferência de padres, juízes ou de pessoas vinculadas ao partido liberal, em outras, não passou de uma rápida manifestação. Talvez, seja por isso que em Campina Grande, com base nas rivalidades locais, juiz e delegado passaram a sugerir em ofícios a participação do outro na sedição, fazendo-se acusações mútuas (SOUTO MAIOR, 1978, p.84). E importante notar que a revolta não era dirigida contra os senhores de engenho ou fazendeiros. Em determinada passagem de seu Relatório, o Coronel Severiano coloca a possibilidade de participação dos grandes proprietários de terra, quando os acusa de certa cumplicidade, demonstrada por “... uma indiferença culposa ou uma animação mais culposa ainda” (Apud MONTEIRO, 1980, p.135). Um pouco mais à frente, o Coronel Severiano faz uma observação que, de certa forma, compromete mais ainda os proprietários de terra e negociantes: Os negociantes, os proprietários e os senhores de engenho, sobre quem recaem quase todos os impostos, consentiam em suas próprias casas conversações tendentes a um protesto enérgico contra um ato menos considerado da 123

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Assembléia Provincial, parecendo assim de qualquer sorte terem inoculado no coração as idéias do que se achava possuído o resto do povo ( Apud JOFFILY, G., 1977, p.80).

A luta contra o Estado ocasionou certa identidade de interesses entre os grandes proprietários rurais e homens livres pobres. O Coronel Severiano da Fonseca, em seu Relatório, apesar de reconhecer a exorbitância dos impostos, a exploração dos arrematantes quando os cobrava, a resistência à implantação do novo sistema métrico decimal, a impopularidade do governo provincial, preferiu concordar com o que é colocado pelo governo imperial e definir como causa principal do movimento “Quebra-Quilos” os desentendimentos entre jesuítas e maçons, pois assim não colocava em risco a própria estrutura imperial, então um tanto quanto carcomida (JOFFILY, G., 1977, p.8788 ). Para outro contemporâneo, Henrique Augusto Millet, no entanto, as conclusões sobre a motivação da revolta eram bem outras: Está acabada a minha tarefa: mostrei que o movimento Quebra-Quilos não era protesto religioso nem político e nascera unicamente do mal-estar de nossas populações do interior que, privadas pela crise da lavoura dos meios de adquirir dinheiro, reagiram contra os vários tributos de cobrança mais ou menos vexatória, a que têm recorrido as Assembléias Provinciais e Câmara Municipal por ocorrerem às necessidades dos diversos serviços a seu cargo, por ter o governo geral monopolizado todas as fontes de renda de cobrança mais suave (MILLET, 1987, p.95).

Na Província da Paraíba, os impostos baixaram após a rebelião. Em Areia, por exemplo, o imposto cobrado por carga exposta na feira passou de 100 para 40 réis. De certa forma é possível afirmar que os insurgentes conseguiram um de seus intentos. O Decreto Imperial N° 5.993, datado de 17 de setembro de 1875, anistiava todos os envolvidos na denominada questão religiosa, 124

sendo extensivo aos indiciados no movimento “Quebra-Quilos”. Dos 34 réus pronunciados e processados como chefes da sedição, apenas 2 permaneceram presos por responderem a outros processos. A revolta “Quebra-Quilos” deve ser compreendida a partir da crise económica por que passava a região e que tinha dimensões nacionais, pois refletia a mudança do eixo político do Norte para o Sul, o que poderia èxplicar, em parte, as razões da “cumplicidade” dos proprietários rurais mencionadas pelo Coronel Severiano. Do ponto de vista político, o movimento sedicioso contou com o incentivo e a participação direta ou indireta de políticos liberais, oposição ao governo, e de religiosos, inconformados com a prisão dos bispos. A interferência do Estado Imperial, que através de leis, determinava a implantação do sistema métrico decimal e o recrutamento, somadas aos novos impostos criados pelos governos provinciais e municipais, estimulou uma população rotineiramente pacífica e anónima a reagir e lutar de forma não premeditada.

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C onsiderações finais O crescimento das produções açucareira e algodoeira, durante a segunda metade do século X IX , não foi inibido pela lenta desarticulação do uso da mão-de-obra escrava na província da Paraíba. A manutenção dos níveis de produção foi garantida pela expansão do uso do trabalho livre. A crise nos mercados de exportação dos produtos nortistas foi transferida para os trabalhadores livres, através do rebaixamento dos salários e das más condições de trabalho, que frente ao monopólio da terra, não tinham praticamente nenhum poder de barganha. Certamente, os padrões de desenvolvimento da economia nortista não permitiam que o trabalhador livre utilizado fosse o imigrante europeu, como ocorria nas fazendas de café de São Paulo. Os proprietários rurais do Norte optaram por empregar os homens livres pobres nacionais, que existiam em grande quantidade na região e que, de certa forma, já eram utilizados antes mesmo da crise social desencadeada com a legislação escravista. As formas mais notáveis de uso dessa mão-de-obra foram o assalariamento, os sistemas de moradia e o de parceria. Os assalariados, na maior parte das vezes, habitavam as cercanias da grande propriedade, sua condição era caracterizada pela instabilidade no emprego e má remuneração, levando muitos trabalhadores livres a não manterem contratos fixos com os proprietários de terras, optando, antes, pela pobreza itinerante. Quando eram ex-escravos, devido às experiências anteriores de trabalho, preferiam juntar-se aos grupos itinerantes, ou então permanecer na mesma condição de exploração. Fora da grande propriedade, as oportunidades de emprego eram muito limitadas. O morador também foi bastante utilizado. Trazido para dentro das cercas das fazendas, este era rigidamente controlado pelos proprietários

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rurais. A parceria ocorria quando o trabalhador livre possuía um capital mínimo para investir na produção. Na transição do trabalho escravo para o livre, os mais beneficiados foram os proprietários rurais, pois esse processo permitiu uma acomodação de seus interesses. Utilizar trabalhadores livres desobrigouos de fazer despesas para manter os escravos, possibilitou o pagamento de salários cada vez mais baixos, considerando a incorporação dos libertos ao mercado de trabalho, bem como o uso de formas alternativas de remunerar os livres, cedendo parte de suas terras para moradores e parceiros. Essa foi a saída histórica dos grandes proprietários, para assegurar a utilização de mão-de-obra livre em uma economia escassamente monetarizada. Falar de transição do trabalho escravo para o livre no caso de algumas províncias do Norte agrário, principalmente na Paraíba, nos coloca uma questão que antecede o período compreendido entre os anos de 1810 e 1888, quando, oficialmente, o fim da escravidão começa a ser discutido, pois, antes mesmo das leis que iriam possibilitar a desarticulação do escravismo, já ocorria o uso da mão-de-obra livre. Concordamos com Peter L. Eisenberg (1989), quando afirma que tanto a escravidão quanto o trabalho livre tiveram como única função garantir a extração do sobretrabalho do produtor direto e que, no caso do Brasil, a escravidão, ao invés de ter sido um empecilho para o desenvolvimento do capitalismo, teria contribuído de várias maneiras para preparar o terreno para uma economia moderna “seja por meio da realização de uma acumulação primitiva sobre o trabalho escravo, seja pela incorporação de ritmos e métodos capitalistas de trabalho” (p. 205), tendo sido a transição marcada pelo reforço do trabalho livre. Desde o período colonial, o homem livre pobre era utilizado nas grandes propriedades nortistas. No século X IX , o uso dessa força de trabalho seria intensificado, considerando seu grande peso demográfico em detrimento do número de escravos, conforme os censos da época. No caso da Paraíba, o número de escravos não era grande, levando-nos a acreditar que, desde o começo desse século, o homem livre pobre era utilizado nas várias atividades económicas. No entanto, como mandava 128

a tradição, os contratos eram, na maior parte das vezes, acertos verbais, dificultando uma comprovação documental da quantidade e da forma de trabalho livre utilizado. Os dados apresentados para os anos de 1852 e 1872 demonstram a preponderância numérica de homens livres em todos os municípios paraibanos. Além disso, os fatores que condicionaram a queda do número de escravos a partir de 1850, como o tráfico interprovincial, as epidemias, as alforrias concedidas através de medidas legais ou por particulares, antes mesmo da abolição em 1888, demonstram que se fazia necessária a incorporação do trabalhador livre para garantir o processo produtivo. Portanto, para falar em transição do trabalho escravo para o livre, na Paraíba, na segunda metade do século XIX, temos que levar em consideração a existência de um grande contingente de homens livres e pobres e que o interesse dos proprietários rurais era garantir a extração do sobretrabalho, fosse do escravo ou do trabalhador livre.

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riane Norma de Menezes S á. é professora do*' «v ■ 2 y Departamento de H is tó ria ,# 1 desde 1992, e dos Programas de P ó s-£ Graduação de História (PPGH) e de ' Geografia (PPGG) da Universidade* Federal da Paraíba e, entre 1988 e 1 9 9 2 # foi professora do Departamento d e ^ História da Universidade Estadual do A Sudoeste da Bahia. Doutora (2001) e * Mestre (1994) em História Social, te n d o # realizado ambas as qualificações n a ^ > Universidade de São Paulo, concluiu sua graduação na Universidade Federal * da Paraíba (1986). Desde abril de 2007, # é secretária de educação do município £ de João Pessoa. Autora de artigos sobre temas ligados a sua área d e * pesquisa, também publicou q u a tr o # livros pela Editora Universitária/UFPB. q O primeiro, em co-autoria com Maria do 1 Céu Medeiros, “O trabalho na Paraíba: • das origens à transição para o trabalho # livre”, em 1999. O segundo, em 2003, f em co-autoria com Serioja Mariano e pesquisadores vinculados ao grupo: # “Sociedade e Cultura na Paraíba # Imperial”: “Histórias da Paraíba: autores f e análises sobre o século XIX”, e em 1 2009, com os mesmos autores está lançando “ H istórias da Paraíba: # so cie d a d e e c u ltu ra no B ra sil ^ oitocentista - Livro 2”. Em 2005, ^ publicou a primeira edição de “Escravos, # livres e insuroentes: Paraíha MflfiO- m