Ensino superior no Brasil: Análise e interpretação de sua evolução até 1969 [1st ed.]

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Ensino superior no Brasil: Análise e interpretação de sua evolução até 1969 [1st ed.]

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ISBN Direitos reservados desta edição à Fundação Getulio Vargas Praia de Botafogo,190- 22253 Rio de Janeiro, RJ - Brasil Em homenagem à memória de Anísio Teixeira, parte da tiragem desta obra, adquirida pela Fundação Vitae, será destinada a bibliotecas públicas, por intermédio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). É vedada a reprodução total ou parcial desta obra Copyright - Fundação Getulio Vargas 1a edição - 1989 FGV - Instituto de Documentação Diretor Benedicto Silva Vice-diretora, respondendo pelo expediente da Editora: Marilena Leite Paes Editora da Fundação Getulio Vargas Coordenação editorial: Francisco de Castro Azevedo Supervisão de editoração: Ercília Lopes de Souza Supervisão gráfica: Helio Lourenço Netto Capa: Haniel Composição: Rio Texto Ltda. Terceira, Anisio, 1900-1971 Ensino superior no Brasil: analise e interpretação de sua evolução até 1969/Anísio Teixeira. - Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1989 vi, 186p. 1. Ensino superior - Brasil. I. Fundação Getulio Vargas. 2. II. Titulo CDD - 378.81

Introdução Embora somente me aproximasse de Anísio Teixeira em 1924, nossos pais haviam entretido relações de grande amizade e confiança. Não fora a oposição do Presidente Campos Sales, ao deixar o governo da Bahia, em 1900, meu pai teria feito seu sucessor o pai de Anísio, Deocleciano Teixeira, médico que servira na campanha do Paraguai e acabara fixando-se na cidade de Caetité, no altiplano da Chapada Diamantina. Aí Deocleciano se tornara o patriarca de imensa região do sertão da Bahia. Nenhuma palavra pesava mais do que a sua. Por motivo de viuvez, Deocleciano casou-se com três irmãs da prestigiosa familia Spínola, orgulhosa de ter tido como representantes, no Parlamento Nacional, César Zama e Aristides Spínola. No arquivo de Anísio há carta de Afrânio Peixoto, de 1924, na qual este Ihe perguntava: "Agora o caso pessoal: 'Spinola Teixeira' - será V. filho de Deocleciano, meu padrinho? De D. Anna, que eu, menino, vi casar-se em Lençois e partir para Caetité? Ou irmão de Joaquim Otílio Teixeira? Meu colega de Colégio? Quisera sabê-lo. Por que sobre amigos, baianos, seríamos um pouco parentes". Sim, eles eram parentes, pois Anísio, nascido em 1900, era um dos filhos de D. Anna, a última das irmãs Spinola casada com Deocleciano Teixeira. Em Caetité ela seria, durante décadas, a alma boa do amplo sobrado, o solar que dominava a paisagem da cidade. Na Bahia, 1924 marca a queda de Seabra e a ascensão do Governador Francisco Marques de Góes Calmon, advogado, banqueiro, professor, e, sobretudo, espírito voluntarioso, inclinado a substituir a rotina pelo progresso. Precedeu a ascensão de Calmon agitada campanha política, principalmente na imprensa, onde sobressaía o tradicional Diário da Bahia, abrigo de uma plêiade de jovens combatentes: Clemente Mariani, Nestor Duarte, Jerônimo Sodré Vianna, o alegre Jesovi da Musa Risonha, Aloysio de Carvalho Filho, Albério Fraga, Alfredo Curvelo, eu, mais moço de todos, e Hermes Lima, o memorialista que evocou esses dias de juventude: "Essa passagem pelo Diário vivemo-la como temporada num palco. Ai envolveu-nos o rumor de uma presença notada, que os fados prolongariam. O melhor de tudo, o inesquecível, estava no laço da camaradagem afetuosa, que nos prendia, e na ilusão que a cidade era mais alegre por nossa causa." Na ocasião, Hermes e eu morávamos em modesta pensão, na Travessa do Rosário, 13, e a vida em comum nos fez amigos para sempre. Calmon acreditava nos jovens e na inteligência, certo de serem indispensáveis para a obra administrativa que pretendia realizar na Bahia. Hermes Lima foi dos primeiros convocados para servir no Gabinete do Governador, donde, eleito deputado, passaria para a Assembléia Legislativa. Quanto a mim, preparando-me para ingressar na Faculdade de Direito, bisonho jornalista comecei a freqüentar a casa do Dr. Madureira de Pinho, cujo filho mais velho, Péricles, era meu colega de curso, e em quem não demorei em reconhecer: difícil saber-se o que era maior, se a inteligência ou o caráter. Nunca mais nos separamos. Aí reaparece Anísio Teixeira. Sim, reaparece. Depois de passagem memorável, no Colégio Antônio Vieira, Anísio fora para o Rio, onde se diplomara em Direito. Agora, retornava à Bahia, e a fama com que partira permanecia a mesma. Na verdade não havia inteligência mais luminosa, inquieta, resplandescente. Nele, tudo exprimia o talento de um ser privilegiado. Dizia-se pretender uma promotoria pública na região de Caetité, para início de carreira política, que se prenunciava brilhante. Até se diplomar, no Rio, Anísio viveu sob a forte influência dos jesuítas, participando do Círculo Católico de Estudos. Congregado mariano e zeloso membro da Liga da Comunhão Freqüente. Colaborador do Archivo Mariano Acadêmico, publicado na Bahia, de 1916 a 1927, aí ele escreveu sobre os seus educadores: "Desde cedo, para felicidade minha, fui atirado para a atmosfera sadia dos seu colégios. Criança, e criança brasileira, não levava preconceitos, nem os recebia em casa." E, com emoção, continuava: "A Companhia de Jesus, parece, surgiu no mundo com o condão do sacrifício. A perseguição e um ódio proteiforme acompanharam-na sem cessar desde o nascimento." Por que não seria ele um bravo seguidor de Loyola? E, ao longo das páginas do Archivo Mariano Acadêmico, o encontramos falando de Barrés, Renan, Maurras, Jacques Rivière, Peguy, Claudel e tantos outros que alimentavam a fé católica. Expressiva é a evocação desta carta de Claudel a Rivière: "Ah! meu caro amigo, o dia em que receberes a Deus terás o hóspede que não te deixará nunca em repouso. Será o grande fermento que quebrará todos os vasos, será a luta, a luta contra as

paixões..." Um fermento de luta que jamais abandonaria Anísio, mesmo quando extinta a chama da fé católica. Não era segredo que havendo convivido com aquela inteligência rara, pretendiam os jesuítas, tendo à frente o Padre Luiz Gonzaga Cabral, grande humanista, famoso orador sacro, conquistar para a Companhia de Jesus o estudante excepcional. O próprio Anísio, por longo tempo, entre altos e baixos, oscilaria entre a fé e a dúvida, jamais admitindo, porém, transigência que lhe pudesse parecer conveniência ou precipitação. Prova disso é a correspondência com o Padre Cabral, e na qual, por mais que se esmiúce, é impossível divisar a menor fissura no caráter. Este era íntegro e perfeito. Vindo do Colégio de Campolide, em Portugal, para a Bahia, após a expulsão dos jesuítas, o Padre Cabral chegara precedido da justa fama de humanista. Seria marcante a sua presença na vida intelectual da Bahia, principalmente entre a juventude, que reuniu e buscou catequisar de várias maneiras. Thales Azevedo, seu aluno, retratou-o em Um momento da vida intelectual da Bahia (1917-1938). A presença e influência do Pe. Luiz Gonzaga Cabral S.J., síntese e depoimento sobre a atividade do missionário da Sociedade de Jesus. Nesse redil foi envolvido o jovem Anísio Teixeira, que antes freqüentara o Colégio dos Jesuítas em Caetité, de onde viera com os irmãos Jaime e Nelson. Após longa viagem a cavalo, alcançaria a estrada de ferro, os trilhos prolongados, os fios telegráficos lançados para o infinito. A locomotiva, resfolegante—contou Lourenço Filho, repetindo o depoimento de um dos irmãos de Anísio -, impressionou-lhe vivamente a inteligência. Era a revelação da técnica e do seu poder. A hipótese de ingressar na Companhia significou para Anísio longa batalha íntima, da qual, cada um a seu modo, participaram, além dele, o Padre Cabral e o velho Deocleciano, republicano convicto, a "quem não faltava uma nota de rebeldia voltariana", dizia o filho. Este crescera dominado pelo espirito naturalista e científico, e assim começara, em 1916, os estudos no Colégio São Luiz, de padres portugueses, franceses, alemães, suíços e irlandeses, todos reacionários e ultramontanos. De Caetité, com os irmãos Nelson e Jaime, Anísio se transferira para o Colégio Antônio Vieira, em Salvador, onde chegou precedido da fama de grande estudante. Hermes Lima, seu colega de internato, e que também viera do sertão baiano, não mais esqueceria o companheiro. "Todos nós, seus colegas e contemporâneos, guardamos dele a impressão toda especial, inesquecível. Pequeno de estatura, magro, irrequieto, olhos muito vivos e portador de comunicante jovialidade, estava ali o jovem que viria destacar-se em sua geração como o mais extraordinário valor humano que ela teria a revelar." Para quem jamais deixara o sertão, e seus hábitos de austera e altiva pobreza, a vinda para a Capital representava a chegada a um mundo desconhecido. E aí o encontraria o Padre Cabral, de fundamental importância na formação espiritual daquele aluno excepcional. O próprio Anísio, mais tarde, em entrevista a Odorico Tavares, em 1952, evocou esses anos de adolescência: "No Instituto São Luiz, entre jesuitas portugueses, franceses, alemães, suíços e irlandeses e, depois no Colégio Antônio Vieira da Bahia, vi-me arrancado das primeiras influências— aquele deísmo austero, revolucionário e republicano - para o catolicismo ultramontano e reacionário que a Companhia de Jesus, ainda sob a candência do golpe sofrido, trazia para o Brasil." "Durante os doze ou quatorze anos de discípulo dos jesuítas, entre 1911 e 1923, tive a experiência dos ardentes conflitos religiosos, participando, com paixão, da formação intelectual e religiosa que me proporcionavam os padres. Rendi-me ao catolicismo e fiz mesmo projeto de entrar para a Companhia de Jesus. Cristão novo, vivi ardentemente meu sonho Loyoliano, durante todo o curso acadêmico, em que fui destacado congregado mariano na Bahia e depois no Rio." Desde o começo, no "Antônio Vieira", fora Anísio requestado pelos professores encantados pela cintilante inteligência, cada qual desejoso de integrá-lo na sua especialidade. Contou Faria Góes Sobrinho, também do Colégio, que o Padre Meyer, químico consumado, descobrira em Anísio a vocação do químico. O Padre Zimmermann o queria matemático e físico; o Padre Torrend, naturalista, nele lobrigara atento e sagaz observador da natureza; e o Padre Ferreira o desejava entregue à criação literária, certamente à flor da pele. O Padre Cabral desde a primeira hora quisera-o jesuíta.

O velho Deocleciano, distante de qualquer convicção religiosa, sonhava com vitoriosa carreira política para o filho. Na realidade, havia obstáculo que o Padre Cabral jamais demoveria, por maiores que fossem os esforços realizados, e entre os quais se inclui penosa viagem a Caetité, e que somente um grande objetivo podia justificar. A beleza da caça justificava a caminhada do caçador. Inteligente, perspicaz, Deocleciano percebera o que significaria a permanência de Anísio na Bahia. Resolvera por isso transferi-lo para o Rio, juntamente com o irmão Jaime. O terceiro, Nelson, permaneceria em Salvador. Desapontado, o Padre Cabral escreveu a Anísio: "Se eu pudesse, iria em pessoa pedir a seu bom pai, que me deixe os dois filhos, a quem a Bahia tanto bem tem feito; embora ele entendesse que, para o terceiro, conviria, no Rio, a vigilância austera do tio Rogociano". E, envolvente, dizia adiante: "Já mostrou a seu pai as páginas da sua linda dissertação sobre a Companhia? Faça-o, que o alegrará e a mim". De nada valeria o apelo. Aliás não havia muito que nesse trabalho de catequese lobrigara o Padre Cabral pequena luz, motivo de "prazer intenso", e ele escreveu a Anísio, que Ihe comunicara o momento de inclinação religiosa: "Abafarei o meu desânimo e me atirarei ao estudo e... ao apostolado." Ao apostolado! Este o sonho do Padre Cabral. A transferência para o Rio de Janeiro suscitou regular correspondência do Padre Cabral com Anísio, e dela ressalta não somente o empenho daquele em conquistar para a Companhia o excepcional discípulo, mas também as reiteradas vacilações deste, que ora mais, ora menos, Ihe sombreavam as claridades da fé, que a inquieta inteligência jamais deixara criar fundas raízes. Dir-se-ia que a dúvida era nele permanente. Já no fim da vida costumava dizer que ao longo do tempo vivido estivera mais a aumentar as próprias dúvidas do que a guardar as suas possíveis certezas. Por vezes ele estivera a um passo de uma decisão, mas logo se seguia período de dúvida. Nessas horas o Padre Cabral buscava soprar as chamas da fé. De abril de 1921, próximo da formatura de Anísio, são estes os seus conselhos: "Coragem, pois, meu Anísio! Considere-se desde já como um religioso forçado a viver entre mundanos; santifique-se cada vez mais, faça em volta de si todo o bem que possa: avive com atos cada vez mais freqüentes e intensos o desejo de deixar o mundo, e confie que as dificuldades de seus pais, o Pai do Céu pode resolvê-las de um momento para outro: talvez o que oralmente não conseguiu em Caetité, poderá consegui-lo por escrito desde o Rio." Sinal de continuar a presença do velho Deocleciano inabalável. Aliás, como se não lhe bastasse conquistar o filho, o jesuíta imaginava poder algum dia converter o patriarca de Caetité, intransigente nas suas idéias liberais e agnósticas. Cabral a Anísio, em maio de 1922: "Quanto terei eu a alegria de conseguir dar uma fugida a Caetité, abraçá-lo (Deocleciano), conversar longamente com ele e ter a felicidade indizível de lhe dar a Sagrada Comunhão?" Certamente, uma utopia. Mais se tornavam visíveis os passos de Anísio em direção ao Noviciado na Companhia de Jesus, mais se revelava firme a oposição do velho Deocleciano, que jamais admitiria perder para os jesuítas o filho cujos triunfos políticos prelibava. Medido, a reação era-lhe proporcional aos perigos que, de longe, antevia. De dezembro de 1922 é esta carta do Padre Cabral ao discípulo dileto: "Inútil será dizer-lhe a consolação que experimentei ao ler aquelas páginas tão sobrenaturais e tão resolvidamente apostadas ao seguimento fiel de Jesus, que tão mimosamente se dignou chamá-lo." Anísio parecia chegado à porta do Noviciado. O velho Deocleciano continuava, porém, vigilante, e a carta continuava: "Em compensação dessa alegria veio-me de Caetité uma notícia triste, comunica o Padre Rosário que seu Exmo. pai, incomodado com a santa resolução do filho em que tinha posto suas esperanças, e atribuindo a influências minhas o seu intento, se mostra muito indisposto comigo." Na realidade a vontade paterna retardava a decisão de Anísio. Este continuava varrido por dúvidas tão profundas quanto as possíveis numa inteligência voltada para todas as indagações. E, talvez por imaginar que o tempo não lhe seria favorável, o Padre Cabral almejava a conclusão do assunto, e propusera que, passado o frio do inverno europeu, Anísio rumasse para o Noviciado, na Companhia de Jesus. "Consiga, dizia-lhe, a sua libertação do mundo, fixando, sem mais tervirgersações, e comunicando a sua resolução inabalável." É de dezembro de l923 esta impaciência. Na ocasião Anísio ainda permanecia inclinado a professar na Ordem de Loyola. De Pedro Calmon, seu colega de faculdade, é este depoimento: "Alguns

de nós eram endiabrados: ele era puro. Sonhávamos com a vida: ele sonhava com a eternidade. Queríamos ser urgentemente bacharéis. E ele jesuíta. Consultávamos obstinadamente o Código. Ele abismava-se na Suma Teológica, de São Tomaz de Aquino." Em vez de partir, porém, para o Noviciado, Anísio rumara para Caetité, na companhia do Padre Cabral, vindo do Rio especialmente para, juntos, empreenderem a penosa viagem. Em 6 de janeiro de 1923, chegaram eles a Caetité, ambos levando a esperança de converter o velho Deocleciano. Da árdua travessia temos a narrativa de Anísio, em carta ao irmão Nelson. "A viagem foi agradável e rápida como não se podia esperar. O Padre Cabral venceu com galhardia as trinta léguas em dois dias e meio de viagem a cavalo da Lapa aqui. A viagem de trem e vapor correu regular, cortada de paradas em Juiz de Fora, Belo Horizonte, Pirapora, Januária, Carinhanha, Lapa..." A fé os fazia repetir as jornadas dos bandeirantes. E a carta prosseguia: "Em todos esses lugares o Padre Cabral disse missa, exceto em Carinhanha, onde não havia hóstias nem vinho, e em quase todos pregou. Não parou aí a infatigabilidade do Padre Cabral. Falou ainda em Riacho de Santana e aqui em Caetité, logo no dia seguinte ao da chegada cantou a missa em ação de graças pela minha formatura e ainda pregou por três quartos de hora um sermão que encantou toda a assistência, como V. calcula ele sabe fazer." A Anísio a velha cidade pareceu parada no tempo. Nada mudara. "Caetité está absolutamente o mesmo, escreveu. Algumas crianças cresceram mais e algumas árvores da rua apontaram uns novos ramos. Tudo o que tem, porém, mais de dez anos está indefectivelmente igual ao que era o ano passado." Agradava-lhe, porém, o clima, a família, a casa, a mesa. Tudo era quietude. E ele comunicou ao irmão: "Mas, repousa, pode estar certo, todo este Caetité. Repara as nossas forças este silêncio e esta imutabilidade." Nada mudara, e nada mudaria, inclusive o velho Deocleciano, surdo aos apelos do Padre Cabral e às esperanças do filho, desejoso de ingressar na Companhia. Durou pouco mais de mês a permanência do Padre Cabral em Caetité. Fora um espetáculo de inteligência a deslumbrar toda uma população. Humildes e poderosos encantaram-se com a palavra do jesuíta. Contudo, pouco mudara no coração dos homens, di-lo esta carta de Anísio: "Partiu hoje de entre nós o Padre Cabral. A sua estadia em Caetité descansou-o muito, e era ótimo o seu aspecto de saúde. Partiu, porém, sem deixar, pelo menos por enquanto, os costumados frutos espirituais de sua passagem em todos os lugares. Fez uma série admirável de conferências, como só ele as sabe fazer. Caetité ouviu-o com um agrado extraordinário, com entusiasmo mesmo: mas estes auditórios sertanejos são verdadeiros enigmas. Eu suspeito que eles têm da inteligência um desdém mais ou menos profundo. Iam às conferências como iriam a um circo. As conferências do Padre Cabral, cheias de luz e de lógica, eram um jogo encantador da inteligência, que os enchia de prazer intelectual... e nada mais." Para Anísio devia ser profunda decepção. E ele continuava a externar as observações sobre aquele mundo que tanto Ihe falava ao coração: "Creio que um deles, qualquer, destes graúdos de meia-ciência de cá do interior, se veriam espantadíssimos se vissem convertidos. O quê? da noite para o dia, ouvindo uma conferência, um homem muda de idéias e com elas de proceder? Eles têm uma noção muito mais complicada da convicção... Seja o que for, o que é certo, é não ter havido repercussão prática que tanto esperávamos das ótimas conferências. Em todo caso, a semente está lançada e um dia poderá germinar." Mera ilusão: nada brotaria da semeadura. Anísio sobre o velho Deocleciano: "Papai ouviu todas as conferências com grande gosto. Mas, também com ele os frutos ainda não apareceram. Pedimos todos e muito por isto. Não diminuirei a confiança que Deus o tocará muito breve. Ele não poderá resistir à verdade que o envolve por todos os lados. Infelizmente, seu feitio todo antigo não permite conversas francas e leais sobre o assunto que tanto bem poderia trazer-lhe." Após mais alguns meses em Caetité, vencido no propósito de ingressar na Companhia, Anísio deixou o sertão para iniciar a carreira do bacharel em direito. Na Bahia chegou ele, nos primeiros meses de 1924, a candidato a uma vaga de Promotor Público, possivelmente nas proximidades de Caetité. Contudo, mais feliz do que os jesuítas, o Governador Góes Calmon não demorou em conquistar o precioso auxiliar, cuja cintilante inteligência, luminosa, não demorou em admirar.

Coube, porém, a Hermes abrir-lhe a porta do destino. Ciente da preocupação do Governador, que buscava alguém para ocupar a Diretoria da Instrução, Hermes sugeriu-lhe o amigo. "Lembrei-lhe o nome de Anísio, contaria mais tarde. Ele ouviu, fez perguntas, ponderou e expediu o convite." Convite inicialmente recusado, por se julgar Anísio despreparado para a função. Faria Góes, também amigo e colega de Anísio, confirmaria mais tarde as circunstâncias que cercaram o episódio. "Góes Calmon - escreveu Faria Góes - era um faiscador de vocações e talentos para vida pública. Governaria com os moços que aliciava, inclusive entre estudantes das faculdades. No meio desses descobriria Hermes Lima, que convidou para o seu Gabinete Civil. Hermes, íntimo de Anísio, seu colega de internato no Antônio Vieira, depois no Rio contemporâneo seu na Faculdade de Direito, logo levou a Góes Calmon a conhecer o texto de dois dos artigos do amigo, aparecidos no apagado jornalzinho da distante Caetité." O destino tem os seus caminhos. Nós os desconhecemos. "O impacto daquele fluxo de idéias continuava Faria Góes -, denunciador de uma poderosa usina de pensamento, sobre o Governador recém-eleito foi decisivo e profético. Na primeira visita, que o candidato a promotor imaginou fosse cerimoniosa e protocolar, Góes Calmon, paternalmente, reteve-o para o almoço em família. E quanto à pretendida promotoria, de pronto lhe declarara: "Voltaremos a conversar amanhã, tenho outra idéia que não é a de deixar você retornar à sua cidade." No novo encontro, Calmon foi categórico: "Decidi, quero-o para o meu Diretor de Instrução Pública." Calmon era desses cuja palavra, imperiosa, não deixava margem a qualquer ponderação ou objeção. Para Anísio, pouco afeito aos problemas educacionais, a surpresa era total. Para Calmon, empenhado em renovar quadros e convocar os melhores, Anísio era uma dádiva do céu. Uma dádiva não apenas para a Bahia, mas para o Brasil. Naquele instante, inesperadamente, nascia o "estadista da educação." Talvez um acaso. Em verdade, a semente posta em terra fértil. Observou Péricles Madureira de Pinho ao comentar a imprevista decisão do Governador Calmon: "O que houve de extraordinário no acontecimento não foi a escolha de um homem de 23 anos para tão importante função. O essencial do evento é uma vocação de filósofo, preparada em estudos severíssimos desde a adolescência, ser endereçada a um campo tão precisado da elevação do plano tradicional, para o verdadeiro sentido que tem na evolução do pensamento humano." O destino colocara Anísio no lugar certo. Seria a virtude de Maquiavel? Nessa ocasião, Gilberto Freyre, Oficial de Gabinete do Governador Estácio Coimbra, conheceu Anísio. Mais tarde, escreveu que assim como Estácio Coimbra desejara encaminhá-lo na política, Góes Calmon teria pensado em fazer Anísio um herdeiro político. "Na mocidade inquieta de Anísio Teixeira, diria Gilberto Freyre, a argúcia de Góes Calmon claramente enxergou esta virtude: a de representar para o seu governo o contato com um futuro para o qual ele sabia que o Brasil de então devia acelerar o ritmo da marcha. Não se enganava: Anísio Teixeira era, com efeito, um antecipado aos homens de sua própria geração no modo de procurar resolver problemas brasileiros por uma renovação de métodos mais apolíticos que políticos de ação, que importasse para o Brasil em verdadeira modernização social." Nem Anísio nem Gilberto tomariam, porém, o caminho da política. Anísio não demorou a se instalar na Pensão Tanner, uma das várias existentes do Corredor da Vitória, habitualmente freqüentada por estrangeiros, principalmente franceses da Companhia Docas e da Chemin de Fer. Para secretariá-lo, chamou o poeta Godofredo Filho. Era a atração das inteligências. De Godofredo Filho é o testemunho daqueles dias de sonhos e de esperanças: "Anísio parecia infatigável, terrível trabalhador do estofo de Napoleão e do Papa Alexandre VI." Pelo seu apartamento passaria então, dir-se-ia, toda a Bahia que pensava. Era uma festa da inteligência. Recordou-a Godofredo Filho: "Mas, os da geração a que pertenço é que lhe tumultuavam o apartamento e conquistavam-lhe os redutos da amizade. Havia-os de tendências políticas as mais díspares, de temperamentos os mais diversos, de inteligência e sentimentos os mais variados. Reuníamo-nos com Anísio em dias não marcados da semana, prolongando seu jantar, de que muitos compartilhavam, pois, que apesar de sóbrio, tinha sempre convidados à mesa. E as dissertações, as polêmicas entravam não raro pela madrugada. Vez por outra Anísio nos deixava galopando no dorso das palavras, e recolhia-se ao trabalho em que a manhã não raro o surpreendia..." Recatado, discreto, mais de livros do que de festas, era ele vivo contraste com a juventude

boêmia de que a Bahia era pródiga. Não se lhe conheciam aventuras amorosas, e somente os mais íntimos sabiam haver olhado com encanto um perfil feminino. Ele já emigrara para o Rio quando o antigo companheiro escreveu-lhe, talvez indiscreto: "Ontem, encontrei F... vestida de branco como sempre e muito bela na sua alvura sem brilho, quase tocando a morenez. Pensei então em lhe dar a notícia, na suposição de que ela viesse serenar por um instante o mar alto em que V. vive. Mas, tive escrúpulos. E se for o contrário? Se eu vier a soprar sobre cinza? Afinal, de seus velhos amigos sou o único a saber desse caso. Desse caso? Não. Do vôo de uma garça branca sobre a água parada de um sonho." O tom poético encantou o destinatário. Anísio não retardou a resposta, acusando a carta romântica: "Podia imaginar tudo, menos que fosse sua e que me trouxesse aquela lembrança. A última vez que a vi foi no gabinete de Diretor de Instrução aí. E mão e coração tremeram de novo, como haviam tremido muitos meses atrás. Depois, por duas vezes, os meus olhos a viram na rua Chile, apoiada ao braço masculino de alguém. Daí para cá, vi-a no seu rápido poemazinho epistolar. E como foi mais doce a sua imagem. Li e reli a sua carta e pelo bonde afora ficou-me nos olhos e no cérebro um encantamento que não sei se era de suas palavras, se da imagem que elas evocavam". E, agradecido à boa lembrança, concluía: "Obrigado pelo pequenino grande bem que me fez!" A velha lembrança fazia bater mais forte o coração do exilado. Em breve, Anísio começou a ser dos freqüentadores da casa dos Madureira, também no Corredor da Vitória, pouco adiante da Pensão Tanner. Curiosamente, o traço de união entre Anísio e aquela casa tão baiana, e por isso mesmo tão brasileira, onde pontificava o Dr. Madureira de Pinho, jurista, orador famoso, político, foi um francês, Félix Michel Poncet, representante de uma casa importadora de fumo. No fundo, porém, um devoto da cultura e da inteligência, ledor de Maurras e Daudet, convicto partidário da Action Française. Escreveu Péricles Madureira ser ele "um francês típico, com o patriotismo exaltado de soldado da 1ª Grande Guerra." Hóspede da Pensão Tanner, logo se tornara apaixonado admirador de Anisio, que conduziu para a companhia dos Madureira, cujo lar se convertera "num foyer em que o lume da inteligência aquecia a convivência da inteligência". Quem não se apaixonaria pela inteligência de Anísio? O velho Madureira, assim o chamávamos, embora ainda não houvesse atingido os 50 anos, orgulhava-se daquele pequeno cenáculo, que lhe enchia a casa e onde, ao lado dos filhos, Péricles, Demades e Demóstenes, conviviam jovens estudantes. Nenhum possuía o fascínio de Anísio. A todos nós, mais jovens, desvanecia a companhia daquele amigo já famoso, e que havia algum tempo admirávamos de longe. De Péricles Madureira é esta recordação: "Os meninos do Corredor da Vitória vimos, naqueles primeiros anos da década de vinte, surgir um rapazinho magro, de óculos, sempre carregado de livros. Morava numa pensão da rua e já se falava na sua poderosa inteligência." A tranqüilidade não convive com os reformadores. Embora nada tivesse de um revolucionário, Anísio jamais renunciou ao desejo de reformar para melhorar. A rotina era com ele incompatível. Inteligência em permanente busca da verdade, que não acreditava estática ou definitiva, sua ação voltava-se para o esforço no sentido do aprimoramento. Atitude incômoda para a grande maioria, geralmente conformada e adaptada ao status quo. Em regra, toda mudança é agressiva, e suscita reações. Anísio, em verdade, era um inconformado. Nas grandes ou nas pequenas coisas, nas grandes linhas de comportamento, a sua aspiração estava sempre voltada para uma permanente e sempre renovada busca da verdade mais próxima. E mal a encontrava, ele próprio começava a questioná-la, certo de poder melhorá-la. Inspetor Geral da Instrução, esse o nome do cargo no qual iniciou a carreira do educador, Anísio conservou a inquietação de sempre. Desde o Governo Luiz Viana, em 1896, do qual foi Secretário Sátiro Dias, quase nada se fizera no campo da educação. Anísio sacudiu-a com a fé de um missionário. Começou elaborando amplo Projeto de Lei, para transformar e ampliar o ensino. Em 1925, o projeto transformou-se em lei, suscitando veementes debates no legislativo estadual, onde Hermes Lima foi dos mais presentes defensores da proposta, cuja filosofia contrariava a Escola Única, em grande voga com os trabalhos de Carneiro Leão. Enquanto em São Paulo se buscava alfabetização em massa, apressada, na Bahia, por circunstâncias peculiares, não bastava a simples alfabetização. Luiz Henrique Dias Tavares, num estudo sobre a reforma de Anísio, dela fez essa

síntese: "Não se tratava, portanto, de 'alfabetizar em massa', mas sim de educar maior número de crianças, para que adquirissem o maior número de conhecimentos na melhor escola permitida. E isso era inovação na Bahia." Eram muitas, aliás, as faces da reforma, que além do problema da participação dos municípios, cuidava da Escola Primária Superior, do Ensino Médio, do Ensino Normal e Profissional, e do professorado. Apoiado pelo Governador Góes Calmon, Anísio logrou a multiplicação dos pães. As matrículas, no ensino primário, ascenderam, de 47 mil, em 1924, para 79 mil, em 1927. As despesas com o ensino subiram de 4% para 12% da receita do Estado. E com visível satisfação pelo realizado, ele escreveu no Relatório, em 1928: "O interesse pela instrução é uma realidade à vista de todos. As menores localidades estão aprendendo a ter orgulho pelas suas coisas de ensino e a se porfiar nas conquistas de educação. A construção dos prédios escolares pelos municípios, com auxílio do Estado, a solicitação de localização de escolas, o interesse local pelo bom mestre, a fiscalização exercida por patriotismo, o estímulo do professor para se aperfeiçoar e progredir; são alguns exemplos demonstrativos desse largo, verdadeiro interesse que está a percorrer todo o Estado nas coisas de educação." Afirmativas exatas. Havia, porém, outro lado da moeda. Feridos pequenos interesses pessoais, a reforma se prestou a um mundo de críticas contra o jovem Diretor Geral da instrução, logo acusado de ignorar as decantadas realidades baianas. Principalmente a vitaliciedade do magistério apresentada como velha e necessária conquista que a reforma eliminava, seria um dos motes de que a oposição se fartou, nos ataques a Anísio. Contudo, indiferente aos aspectos políticos do assunto, Anísio, tal como os missionários, jamais faria concessão contra o que julgava o melhor, embora pronto para mudar as suas idéias. A época era de revoluções. Os anos de 22 e 24 haviam passado. Agora a Coluna Prestes inquietava o interior do País com a sua marcha e as suas lendas. Por coincidência, Anísio iria senti-la de perto. Nos fins de maio de 1925, ele voltou a Caetité, e sobre a viagem faria conferência no Instituto Histórico da Bahia. Era período de chuvas, e as águas alegraram o coração do sertanejo. "Pequenos ribeirões, descreveu, ganhavam vulto inesperado, lagoas ressurgiam do solo imprevistas, estradas ontem transitáveis desfaziam-se em tremedais terríveis, enfim, todo um ímpeto efêmero da natureza imprimia ao cenário essa fisionomia transitória de forças em ensaio. Tudo isto, porém, emprestava ao panorama uma sedução quase dramática". E concluía embevecido: "Tinha-se a impressão de uma terra em festa". Mas, contrastando com a festiva paisagem, mal ele pousou em Caetité noticiou-se a aproximação dos rebeldes. Trouxera a notícia um vendedor ambulante, vindo de Livramento, distante 18 léguas. Anísio narrou as horas que se seguiram: "Foi o sinal de alarme e de pânico. Por toda a noite, a população, em grande sobressalto, abalou, desenganadamente para fora da cidade. Admiravelmente identificadas com a caatinga, quando clareou o dia, quatro mil pessoas haviam desaparecido não se sabia para onde... Carros de boi surgiam, como por encanto, nas ruas, mas para assumirem proporções de veículos de luxo, que poucos poderiam pagar. A debandada se fazia a pé, pela noite a dentro, debaixo da inclemência de um inverno sem precedente que ainda perdurava. As poucas famílias que tentaram conservar-se na cidade retiravam-se um dia depois, pela falta absoluta de subsistência no perímetro urbano. Toda a vida se paralisara." Durou dias a dramática expectativa. Depois, Prestes passou ao lado da cidade, acompanhando a linha divisória das águas, para atravessar com segurança pelas cabeceiras dos rios. "O sertão vivia uma página da idade média diria Anísio. A organização social e legal precária sofria o abalo profundo e desorientador que costumava afligir a sociedade medieval quando as guerrilhas entre senhores a assolavam. Apenas o contato rubro com o exército foi ainda mais terrível.'' Inesperadamente, o educador testemunhava um episódio da história das revoluções. Inspetor Geral da Instrução, Anísio esteve três vezes no estrangeiro. Em 1925, Ano Santo, viajou ele com D. Augusto Álvaro da Silva, Arcebispo Primaz da Bahia, já afirmado como inflexível missionário da fé. Seguira diretamente à Espanha, onde, em Manresa, para o Santuário de Santo Inácio. Depois, hóspede do Colégio Pio Latino-Americano, recebera-o Pio XI pela mão de D. Augusto. Por último, em Paris, abrigara-se num convento. E aos que com ele então conviveram

não ficou a impressão de haver a viagem lhe aumentado a fé. Dir-se-ia nada se haver alterado na luta íntima em que se debatia o antigo aluno dos jesuítas. Depois, em abril de 1927, comissionado pelo Governo da Bahia para observar a vida educacional nos Estados Unidos, Anísio conheceu o mundo, que lhe mudou as convicções filosóficas. Na famosa entrevista a Odorico Tavares, em 1952, ele diria com simplicidade: "Um incidente, porém, frustrou a minha aventura religiosa..." O incidente fora a protelação por um ano, após a formatura, do ingresso no Noviciado conseqüência da oposição dos pais, e também da prudência dos padres inclinados a que mais lhe amadurecesse a vocação. Nesse interregno chegara, porém, o convite para a Diretoria Geral da Instrução. Tudo mudaria na vida de Anísio — no lugar da vocação religiosa surgiu a vocação do educador, que não mais o abandonaria, pondo raízes sempre mais fundas, e sobre as quais se levantaria a personalidade de estadista da educação. Para boa parte dos seus amigos e companheiros, entre os quais posso lembrar Hermes Lima, Nestor Duarte e Jaime Ayres, todos agnósticos e liberais, era uma ventura vê-lo libertado das peias ultramontanas dos jesuítas. Jerusalém libertava-se. Libertava-se graças ao conhecimento dos trabalhos de Deway, o filósofo que, na América, revolucionava os princípios da educação. Fruto dos novos caminhos é o pequeno volume Aspectos americanos de educação, no qual sintetizou "o filósofo que mais agudamente traçou as teorias fundamentais da educação americana": "Tornara a criança um membro da sociedade, e membro com plenos direitos e plena eficiência, é tudo o que busca realizar a educação." Não estaria ai quanto Anísio sonhou como educador? Contudo, o passo definitivo ele somente o daria no ano seguinte quanto voltou à América em busca do diploma de Master of Arts, na Universidade de Colúmbia, em Nova York. Mas, se sob o ponto de vista da filosofia educacional o grande acontecimento dessa estada na América seriam a familiaridade com o pensamento de John Deway e o contato com Kilpatrick, renomado mestre da Universidade, sob o ângulo das relações pessoais o relevante foi o encontro com Monteiro Lobato. Ainda não se conheciam, e Lobato não custou a se apaixonar pela inteligência, e mais do que pela inteligência, pela personalidade de Anísio. Este era encantador. Pela vivacidade da rara inteligência, pela simplicidade, pelas maneiras afáveis e educadas, pela sedução pessoal. Sob o ponto de vista da relações pessoais, o grande fato seria o encontro com Monteiro Lobato. Anísio assim o evocaria, em carta a Fernando de Azevedo: "Fomos, cerca de dez meses, dois companheiros inseparáveis que buscaram entender e interpretar juntos o laborioso triunfo americano. Ele, mais voltado para as coisas econômicas; eu, para os aspectos da educação, ambos, entretanto, norteados por um sadio idealismo comum de humanidade melhor e mais feliz. E de um lado e de outro trazíamos para as palestras intermináveis que mantínhamos aos domingos, uma cópia inaudita de fatos e observações com que alimentávamos e saciávamos o nosso idealismo. Foi uma esplêndida temporada de entusiasmo." O idealismo borbulhava: a educação e a confiança no Brasil uniu-os definitivamente. Anísio chegara a Nova York tateante e inseguro. Atônito diante da grandeza da América. Lobato abrira-lhe os braços e desvendara-lhe caminhos. Ele nunca mais o esqueceria. "Você me acolheu um dia, diria Anísio a Lobato, quando quebrava a cabeça, inquieto, diante da revelação americana, para me dar o presente magnífico de sua convivência e de sua amizade". E uma profunda admiração cimentaria a gratidão. Quando Lobato morreu, em 1948, Anísio sobre ele escreveu uma frase lapidar: "A arte não era o seu trabalho, mas o seu repouso." Ambos amavam Nova York. "Um dia de Nova York—escreveu Lobato - vale uma vida no Brasil - pelo menos ensina mais que ela". Para Lobato, Anísio era "a Inteligência Pura", e a ele dirigiu esta expansão de amizade: "Ninguém te substitui, Anísio. Não há no mundo uma personalidade e uma mentalidade mais viva, mais penetrante e iluminada que a sua. A vida sem o Anísio é uma porcaria - saiba disso". E, inconformado com a ausência do companheiro, escreveu-lhe Lobato: "A tua saída desfalcou a sério esta imensa cidade, e a vítima maior do desfalque fui eu." Sem o saber, falava por todos nós, amigos de Anísio. Em verdade, Anísio partira um e retornava outro. "A crise religiosa conheceu ali o seu epílogo", escreveu Hermes Lima. Iniciada em 1927, completava-se a libertação de Anísio do fantasma das verdades reveladas, e a sua reconciliação com a filosofia que primeiro o influenciara, a do espírito naturalista e científico. Ele regressava "lapidado pela América", escreveu Lobato.

Dessa fase da vida e da nova vocação de Anísio, fez Hermes Lima esta síntese: "O ciclo americano de estudos fez história na carreira e na filosofia de Anísio Teixeira. A cena social dos Estados Unidos, sobretudo vista da Universidade, que foi o campo onde ele pensou e trabalhou, reforçou-lhe a fé democrática e republicana, ampliou-lhe as perspectivas futuras da obra educacional, ofereceu-lhe a motivação de um pensamento organizador que se arrematava por sua concepção do mundo naturalista e científico. A ambiência respirada na América, os contatos intelectuais e pessoais, a atmosfera antidogmática do ensino, as aberturas da pesquisa e da especulação filosófica, tudo isto conduziu-o a conceber e interpretar o mundo fora das quatro linhas da mística jesuítica em que se enleara. Sentiu-se realmente libertado, não porque houvesse adquirido, em lugar das velhas certezas definitivas, novas certezas definitivas, mas porque aprendera um processo, um método diferente de pensar e colocar problemas." Daí por diante a verdade não mais será revelada, mas procurada e incessantemente renovada. "Só a busca — escreveu Anísio a Lobato - é interessante; o achado sempre pobre, incompleto e infeliz." Desejoso de não guardar apenas para si o privilégio da grata amizade, Lobato fez Anísio portador de uma carta para Fernando de Azevedo, então em plena celebridade como educador. A carta era derramada: "Fernando. Ao receberes esta, pára! Bota pra fora qualquer Senador que te esteja aporrinhando. Solta o pessoal da sala e atende o apresentado, pois ele é o nosso grande Anísio Teixeira, a inteligência mais brilhante e o maior coração que já encontrei nestes últimos anos de minha vida. O Anísio viu, sentiu e compreendeu a América e aí te dirá o que realmente significa esse fenômeno novo no mundo. Ouve-o, adora-o como todos os que o conhecemos o adoramos e torna-te amigo dele como me tornei, como nos tornarmos eu e você. Bem sabes que há uma certa irmandade no mundo e que é desses irmãos, quando se encontram, reconhecerem-se. Adeus. Estou escrevendo a galope, a bordo do navio que vai levando uma grande coisa para o Brasil: o Anísio lapidado pela América." Mas, acima de tudo, levava um Anísio que retornava convicto de poder melhorar o Brasil pela educação. E a América não lhe sairia do espírito. Mais tarde, escrevendo a Afrânio Peixoto recém-chegado da América afogado em admiração, Anísio referia-se à "nossa América." Sim, a América, com as suas Universidades, a sua liberdade, a sua democracia, numa palavra a sua nova civilização, o conquistara para sempre. A Arquimedes Guimarães, confidente de muitos anos, ele escreveu de Nova York, em abril de 1929: "Da América levarei, sobretudo, a independência e liberdade de inteligência que os meus últimos estudos me deram. Mais do que da educação, foi nessa viril e humana filosofia moderna que me ocupei nesses meses tão rápidos e tão intensos que aqui vou passando. A definitiva aceitação de uma atitude científica na explicação de todos os fenômenos da vida não só me deu uma rara tranqüilidade intelectual, como ainda um programa de ação." Fernando de Azevedo não demorou em se render ao novo amigo. Uniu-os recíproca admiração. Pouco depois ele escreveria a Anísio: "Às vezes, transportando-me em pensamento aos dias de minha infância, tenho a impressão de encontrar entre os meus companheiros de idade o meu caro Anísio, que há três anos trouxe à minha presença a mão generosa de Monteiro Lobato. Ele sabia — e o declarou em sua carta — que nos tornaríamos grandes amigos. O interesse pela educação e a comunidade de idéias completaram a obra que a simpatia recíproca iniciou, tornando indissolúvel, pela mais profunda solidariedade intelectual os laços apertados pela força de comunhão de sentimentos." Amigo de ambos, Lobato acertara em cheio. O ideal dos educadores os uniria definitivamente. Para Anísio o encontro foi providencial — ele voltara esmagado pela América. Havendo observado o vulto do trabalho e dos gastos na educação, assaltara-o certo desanimo quanto à possibilidade de qualquer realização em meio à nossa pobreza. Salvou-o Fernando de Azevedo, a quem ele próprio confessaria em carta que lhe escreveu: "Eu já lhe disse aí o bem que me fez esse contato com o seu espírito e com a sua obra Saíra da Bahia direto para Nova York. Lá estive dez meses. O exame diário do trabalho gigantesco dos Estados Unidos em matéria de educação, a visão do que ele envolvia de complexidade, de conhecimento especializado e dinheiro, a compreensão mais viva desse exasperante determinismo econômico do progresso moderno, me haviam feito, deixe que lhe diga, meio cético a respeito da possibilidade de uma obra educativa séria em nosso meio. Mesmo que nos sobrasse dinheiro, faltava-nos conhecimento técnico e especializado para realizar uma obra que é

essencialmente uma obra de cooperação e de grupo. Cheguei mesmo a pensar que era cedo para um trabalho de renovação propriamente da escola." O depoimento dá a medida do desânimo do educador. A carta, contudo, continuava agradecida: "Foi esse viajante meio descrente que desejou, antes de chegar ao seu Norte atrasado e lento, conhecer um pouco do que V. estava fazendo nesse Sul, onde as coisas parece que já despertaram. Vi muito pouco e vi às carreiras, mas o que vi fez-me bem." Até ao fim a carta é confissão de surpresa e entusiasmo. "Li na viagem - dizia ele ao destinatário - o seu Regulamento e ele confirma o paradoxo de Deway, de que as nações novas e menos adiantadas têm hoje melhores oportunidades educativas que os países de progresso amadurecido, e isso porque naqueles a renovação não tem os empecilhos que encontra nas tradições e nos interesses das velhas correntes e velhas máquinas de educação desses outros países que começararn mais cedo. Ajunte a isto o contato pessoal com V. e com os seus auxiliares e compreenderá a razão porque a minha ligeira passagem pelo Rio valeu por uma renovação do meu entusiasmo." De fato, jamais esqueceria o encontro providencial. Bem mais tarde, em fevereiro de 1960, Anísio voltaria ao assunto, evocando-o agradecido: "Telefonei ao Agostini - dizia ele a Azevedo - para me valer da sua memória, a fim de recordar o dia do nosso primeiro encontro - recém-vindo eu dos Estados Unidos e da Columbia University e V. em pleno vôo da reforma educacional do D.F. - para, como diz, e eu confirmo de todo coração, o começo de uma amizade que não teve nem sofrerá desfalecimento. Não conseguimos localizar o dia - mas, quanto ao mês, deve ter sido em fins de junho ou começo de julho, e ano foi o de 1929 e não 1928, como V. julgava. Fiz no T.C. da Columbia University o ano regular de 28/29, graduando-me nos últimos dias de maio. Viajei para o Rio, pouco depois". E, dando conta da importância que tiveram para ele os anos de 28 e 29, a carta continuava: "Esse foi um período extraordinariamente significativo em minha vida, que eu iniciei com o conhecimento de Lobato e se encerra com o encontro com no Rio, entre junho de 28 a junho de 29. Tenho a impressão que foi nesse ano que me encontrei comigo mesmo. O ano de estudos na Columbia University, a descoberta de J. Dewey, a revisão (ou conversão?) filosófica, e as grandes amizades intelectuais — Lobato, Fernando, Lourenço, Afrânio e quantos e quantos outros..." Sem dúvida nascera um novo Anísio, livre da sombra jesuíta. A educação era o seu ainda na América, Anísio foi convidado, nos fins de 1928, para paraninfo das professorandas do Colégio dos Perdões na Bahia. Impossibilitado de comparecer, ele enviou o discurso, leu-o Arquimedes Guimarães. "Foi um esforço - escreveu — para fazer um pouco de idealismo. ao sucedi, porém. Em grande parte está utópico e pouco prático. Talvez, porém, outros o entendam melhor do que eu mesmo." Uma nota de idealismo seria dele inseparável. Pouco conhecida a oração é o primeiro de documento do qual emergem nítidas as dúvidas do idealista lapidado pela América. Para os que o lerem nas entrelinhas, o discurso tem muito de autobiográfico. Dele sobressai uma quase confissão: "A grande aventura - diria ele às jovens professoras—desse longo período de tateamento, de adivinhação, de dúvida, de esplendor de nossa adolescência, é a descoberta de nós mesmos. Era Anísio falando de Anísio. E o discurso continuava: "Debalde tentamos nos iludir no ardor de nosso entusiasmo. Não são as filosofias, que nos fascinam. Nem as afeições. Nem os jogos e os esportes. Nessa época turbulenta e formosa dos dezoito anos, nós somos o nosso fim. É o romance de nossa adolescência que nos arrebata. Fala alto, dentro de nós, esse sentimento fundamental de que nós preexistimos a tudo que existe. Reinterpretamos toda a vida em função de nós mesmos. É a verdade que extrairmos dessa análise sincera e longa é que tudo há de obedecer." O importante, e que necessitava permanecer acima de tudo, era a fidelidade de cada qual a si mesmo. "Só a infidelidade, afirmou porém uma continuada e consciente infidelidade a nós mesmos, à nossa lei, à nossa natureza, à nossa vocação, é que pode quebrar o quadro do nosso destino e fazê-lo banal e triste. A grandeza da vida dos heróis e dos santos não tem outro segredo senão o desta intrépida fidelidade a si mesmo". Não restava muito do dileto aluno do Padre Cabral. E, como se voltado para dentro dele próprio, Anísio continuava: "Que me importa que a vida semeie de insídias o meu caminho ou que os homens espalhem surpresas venenosas na minha marcha, se eu levo e ouço em mim o sonho, a minha revelação, as minhas 'vozes', como dizia Santa Joana D'Arc, e se a elas só obedeço e sigo,

como a regra permanente de minha vida? ... Podem as contingências semear de tempestades a minha estrada ou a fazer monótona e vazia como um deserto, eu não vivo na companhia das contingências, mas na companhia de mim mesmo. E onde eu estiver, 'arte e natureza, esperanças e sonhos, amigos e anjos, e o próprio Deus não hão de estar nunca ausentes'." Era a invocação de Emerson, dizia em seguida: "Aos que assim fizeram não esperam decepções e a realidade há de ser mais formosa do que os sonhos de adolescência, porque há de participar dos segredos que fazem os santos e fazem os heróis". Por toda a oração perpassa a imagem do idealista, um pouco do missionário, que ele trazia na alma. E acrescentava sobre o ideal: ter ideal importa, pois, em entender seriamente a vida, vivê-la com uma nobre sinceridade, sem ilusões e sem embustes, praticando os nossos talentos com esforço e com entusiasmo,como se praticássemos os nossos deveres." No final, Anísio levantava o véu sobre as transformações do nosso tempo: "Tal transformação, dizia, se vê acompanhada de uma irreprimível e generalizada aspiração de liberdade, de exame e de revisão da própria filosofia da vida. Inegavelmente, nunca nos sentimos tão corajosamente dispostos à revisão de nossas idéias, tão escrupulosos na aceitação de princípios, tão ansiosos por uma filosofia esclarecida e consciente para a nossa orientação na viagem inquieta da vida. Estamos envolvidos em uma atmosfera de livre exame, com a qual buscamos um novo e mais íntimo ajustamento às nossas concepções da vida e uma nova e mais íntima sinceridade conosco mesmos." Não precisa dizer mais. Na bagagem do Master of Arts da Universidade de Colúmbia não retornaria uma verdade revelada e eterna. Em seu lugar vinha o livre exame e a inquebrantável vontade de pesquisar e rever na procura de uma verdade, que sabia transitória, e por isso mesmo incessantemente buscada. Como natural, não foram omitidas as crianças e a nova escola que lhes abriria os caminhos da vida. Tendo observado detidamente a Escola Americana, ele a via como "a mais feliz escola do mundo." E desejava trazê-la e desenvolvê-la no mundo do qual partira. Preocupado com um profundo respeito pela sensível alma infantil, ele dizia à novas professoras: "Estudai constantemente essa alma tão fugidia e tão obscura, por vezes. Não julgueis nunca que a conheceis demais. As injustiças de incompreensão são as que mais doem. E quase nunca compreendemos as crianças. Queremos medi-las pelos nossos critérios. Queremos forçá-las aos nossos motivos. Mas, nós estamos muito adiante na vida. E a criança se debate sozinha no caminho, enquanto nós punimos a sua ignorância com a nossa irritação. Que as crianças que vos foram entregues nunca se sintam aterradas por esse isolamento, nem castigadas por não serem compreendidas." Embora simples, hoje tão claros e fáceis aos nossos olhos, tais conselhos significavam a profunda transformação da escola. Era a escola nova e progressiva, na qual as crianças viveram livres de qualquer incompreensão, e a disciplinava, aceita e compeendida por todos. E o paraninfo concluía: "Desejaria que levásseis a vossa benevolência, o vosso tato a vossa inteligência e vossa simpatia a um tal extrerno de delicadeza, que nunca se pudesse apagar nos olhos de uma criança a chama de confiança dla, lhe soubestes incutir." Despretensioso, franco, espontâneo, o discurso, reflexo de quanto andava no espírito do educador, não era utópico nem pouco prático, como ele dissera. Se pensava que outros talvez o entendessem melhor do que ele próprio, Anísio não se enganara - o idealismo sobrenadava, visível, na palavra do paraninfo e o educador tomava o seu caminho — nunca mais o deixaria. Anísio costumava proclamar a marcante importância dos anos decorridos entre a segunda viagem aos Estados Unidos e os primeiros vividos em seguida no Brasil. Dele é esta notícia a Fernando de Azevedo Um período extraordinariamente significativo em minha vida, que se iniciou com a descoberta de Dewey, o conhecimento do Lobato e o encontro com V., no Rio, entre junho de 28 e junho de 1929. Tenho a impressão que foi nesse ano que me encontrei comigo mesmo." O encontro com um Anísio do qual desaparecera a crença numa fé revelada São muitos os testemunhos sobre a evolução religiosa e as convicções filosóficas de Anísio. Ele próprio, pôr vezes, abordou o tema, embora o fizesse com o pudor de quem preferia não fossem assuntos tão íntimos trazidos a público.Na verdade, a Bahia ainda não perdoara inteiramente aquela inteligência superior. Não perdoara, e por isso não o esquecera. Fizera-se até circular que, aproveitando a estada na América, e se ordenara como jesuíta. Lembro-me

quanto esses alfinetes o irritavam. Nessas ocasiões ele extravasava. De uma carta de Nova York a Arquimedes Guimarães, em novembro de 1928, são estes comentários: "A notícia da minha ordenação apenas mostra que a Bahia custa a esquecer a legenda que uma vez lhe ensinaram. Creio que hei de ser sempre, na Bahia, uma vocação que falhou. Isso seria simplesmente cômico, se não houvesse a pequenina tragédia ou coisa que o valha, no fato de realmente mais do que essa pretensa vocação eu estou a reconstituir a minha filosofia, dirigindo-a para caminhos que me afastarão provavelmente até do próprio catolicismo. O trabalho que vem passando a minha inteligência, desde a minha primeira viagem à América e o seu pragmatismo, ainda não está terminado. "Fora sem dúvida longo e árduo o caminho percorrido para alcançar inteiramente a filosofia pragmática de Dewey. Não era fácil apagar a marca jesuíta. E a carta continuava: "E sinceramente não sei até onde me levara, no sentido de abandono de algumas e aquisição de outra concepções sobre a vida. Quem sabe se não encontrarei motivos para uma reorganização mental, conservando as verdades que me pareciam absolutas? Ele respondia: "Estou com a minha filosofia em franco período reconstrutivo. Escrevo-lhe isto e não será necessário insistir que é assunto que não desejo ver discutido na Bahia. Estou a estudar, estou a aprender, estou a renovar alguns juízos, mas é desagradável a gente se ver discutido nesses assuntos. Sirva-lhe tudo apenas para lhe autorizar a continuar a desmentir o boato." O boato de que se ordenara, lhe faria dizer pouco depois: "A Bahia me parece hoje como um dos lugares mais atrasados que presentemente existem na face da Terra." Dificilmente seria algum dia compreendido. Poucas vezes ouvi Anísio discorrer sobre problemas de religião. Fazia-o, porém, de modo tímido, impessoal, como se debatesse assunto que não lhe era pertinente. De quanto dele ouvi ou dele li sobre as indagações da fé, nada me pareceu mais espontâneo do que a carta mandada à irmã Sinssinha, em agosto de 1939, a propósito de um livro de Alfred Adler, que ele traduzira, e certamente chocara o espírito religioso da irmã. Pela espontaneidade, simplicidade e nitidez, que imprimia a quanto escreveu ou debateu, é documento a revelá-lo tal como pensava. Embora longa, é essencial divulgá-la. Anísio à irmã Sinssinha, Bahia, 5 de agosto de 1939: "Vi a sua carta e notei a sua preocupação em afirmar que toda a verdade, com todos os seus desenvolvimentos, acha-se contida na palavra de Jesus. Isso hoje é até heresia. Se assim fosse, a religião paralisaria até a inteligência humana. Nada mais havia a buscar, tudo estava sabido e sabido definitivamente e para sempre. Você bem sabe que não é assim. A busca humana da verdade continuará, essa sim para sempre. A verdade religiosa quando não é pura verdade sobrenatural, mas toca o mundo natural, representa as grandes intuições do espírito humano, os seus momentos de inspiração divina. Que prazer, porém, ver-se que essas intuições acabam pôr se provar verdadeiras diante da experiência e da ciência experimental! Esse é o caso da natureza humana. Os nossos começos de ciência psicológica estão a coincidir admiravelmente com os mais altos ensinamentos religiosos. O que a psicologia diz hoje é que não poderá haver paz de alma, serenidade de coração e felicidade, enfim, enquanto não tivermos suprimido os pequenos desejos, os pequenos vãos egoísmos, o grosseiro espírito de dominação, as mesquinhas invejas do nosso insignificante 'eu', para plantar em seu lugar o grande e amplo amor aos nossos semelhantes, o espírito de serviço, a prontidão em dar e compreender." Generosa, franca, a carta revela um espírito voltado para a solidariedade diante das fraquezas e dos sofrimentos da humanidade. Sobretudo, nenhum egoísmo. E a carta prosseguia no mesmo tom: "A personalidade humana, para se realizar, precisa de se esquecer de si mesmo e se entregar a algo maior que ela própria... Fora daí, ela não se constituirá, fragmentar-se-á, será miserável e infeliz. Longe de estar a psicologia fazendo mal à religião, ela, talvez a renovar, e, mostrando a sua verdade profunda, obrigar os espíritos religiosos a voltaram à essência da religião e abandonarem as pequenas e as mistificações de sua forma. Porque a religião é aquilo que diz a psicologia e não o processo de auto-ilusão em que se transformou hoje, substituindo por fórmulas, convenções e cerimônias as grandes virtudes essenciais da humanidade. Não. Não basta para ser feliz, para conquistar o reino do céu, o gesto do amor do próximo, o gesto do espírito de sacrifício; precisa-se da coisa, precisa-se do sentimento, precisa-se ser humilde, ser altruísta, ser serviçal, ser franco, gostar realmente mais dos outros do que de

si mesmo... E isso é que é a natureza humana no seu mais perfeito desenvolvimento. Adler não é contra Jesus. Adler é uma esplêndida confirmação de Jesus. Perdoe-me a tirada. Queria era mandar-lhe o meu abraço para Você e Mamãe e Tilinha e Didi e Deoclecianinho e todos desse Caetité e desse sobrado que não esquecemos". Aí estava o Anísio racional e afetivo. O Anísio no qual o coração equivalia à inteligência, e no qual já se apagara a verdade revelada. Esta devia ser racional, permanentemente buscada e aprimorada. No fundo, era a volta ao pensamento do velho Deocleciano. Ainda uma vez Anísio reviu as próprias idéias. Corridos quatro anos sobre a reforma, período no qual estivera na Europa e nos Estados Unidos, entendera oportuno reformar-se a reforma, cujas deficiências pudera observar. "A revisão de Anísio Teixeira foi total, escreveu Luiz Henrique Dias Tavares. Mostrou que existiam apenas vinte crianças nas escolas elementares; que só funcionavam três escolas complementares; que só existia uma escola primária superior; que o único ginásio do Estado, o da Bahia, tinha apenas oitocentos alunos matriculados." Humilde, pondo a verdade acima de tudo, não procurou ocultar as falhas observadas na reforma de que fora ele o responsável. Chegara a hora de aperfeiçoar. Havendo Góes Calmon deixado o Governo, substituído por Vital Soares, este não aceitou agitar novamente as águas, repetindo os inevitáveis debates sobre as inovações de Anísio, que sentiu chegada a hora de recolher as velas. Foi o que faz, demitindo-se. No íntimo, estava magoado pôr não concluir a obra ambicionada. No momento, entretanto, devia calar. É dele esta observação: "O fato de encerrar uma fase de minha vida - não foi outra coisa esse período de mais de cinco anos de dedicação e estudo dos problemas de educação da Bahia - sem as consolações de ter realizado alguma coisa, deixou-me broken-hearted. Faz hoje todo um mês, que eu dei, com uma demissão pretextada, o último traço nessa obra, cujo fracasso eu insistia, por amor, em não aceitar e ainda não estou curado do mal que isso me fez... Era preciso deixar que renascesse dentro de mim o estímulo para continuar a marolar". E dizia em seguida: "Outros situam os seus sofrimentos nos pequeninos dramas pessoais. A mim a natureza fez-me igualmente sensível a esses dramas - também pequeninos, provávelmente — de nosso trabalho e nossa missão." A missão... Anísio jamais deixaria de ser o missionário. Ciente da exoneração, Lobato escreveu a Anísio com bom humor: "Já não és Diretor de Instrução. Curioso. Justamente quando te preparaste para ser um grande diretor de instrução, quando ficaste em ponto de bala, fora... Vai para o teu lugar um, o quê? um leigo, pois acho que é leigo todo homem que não conhece a América." A América fora o sonho - Caetité a realidade. Ao regressar à Bahia, Anísio não retomava apenas a Diretoria da Instrução, mas também a política, que aguardara o possível candidato à Câmara Federal. Aliás, muitas coisas haviam mudado, a começar pela eleição de Vital Soares, sucessor de Goés Calmon, e Anísio não se sentira prestigiado para efetivar as reformas com que sonhara. Iam distantes os tempos em que ele escrevera ao pai: "No Governo atual conforta-me o exemplo do Dr. Goés Calmon, cuja orientação, se não lhe faltar o auxílio do patriotismo desta terra, levará a Bahia ao definitivo ressurgimento moral e administrativo. É um exemplo de sinceridade e de dedicação que poucos se encontrarão semelhantes". Agora, mesquinhos obstáculos da política, insatisfeita com as inovações do educador, dificultavam-lhe as reformas. E ele sentia que o vento era outro. Certamente, fazia-lhe falta a presença de Hermes Lima, amigo dileto, e dele sempre um ponto de apoio, em que pese às diferenças, que os separavam. Anísio por muitos anos oscilara a um passo do ingresso na Ordem dos Jesuítas, enquanto Hermes jamais deixara de ser ostensivamente livre pensador. Boêmio, inclinado às noites alegres, Hermes era vivo contraste com aquele jovem austero, metido entre livros, e que todos nós respeitávamos pela pureza que dele ressumava. "Era puro, sem afetação", escreveu Hermes. Outro talvez não fosse compreendido. Anísio era a imagem que ninguém se animaria a ferir. Irreverentes, distantes das suas crenças de então, nós, seus amigos e companheiros, tudo esquecíamos para apenas admirá-lo na sua modesta integridade. Hermes se desgarrara de nós, resolvido a concorrer à cátedra de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de São Paulo, da qual se tornaria livre-docente. "Verdadeira consagração", comunicou ele a Anísio. Contudo,

desejava reeleger-se Deputado Estadual, para a Assembléia baiana, e contava com o apoio do amigo. Desejo impossível, pois havia algum tempo ele se afastara gradativamente do Governador Goés Calmon, e tornara-se inevitável a sua retirada da chapa. "O Dr. Calmon — escreveu Anísio ao pai — obedeceu a motivos justificáveis para excluí-lo." De qualquer modo era o inevitável, e Hermes, para desgosto dos seus amigos, como era o meu caso e o de Anísio, não mais retornaria à política da Bahia. De São Paulo ele se mudaria para o Rio. Aí voaria alto. Na Bahia, deixara o vazio num largo círculo de amigos que se iniciavam na vida pública. Pôr algum tempo, impossibilitado de realizar o que imaginara no campo da educação, Anísio pareceu não saber o que fazer. Por fim aceitou ser nomeado professor de Filosofia da Educação, na Escola Normal de Salvador. De fato era uma derrota, e nós acreditamos que ele se encaminhasse para a política, à qual não se podia dizer fosse infenso. Pouco antes de encerrar-se o Governo Calmon, ele escrevera ao velho Deocleciano: "Quanto a mim, as promessas são sempre grandes... Dizem que a minha candidatura era justíssima. Papai precisa não esquecer de que nestas ocasiões Vmce. volta a ser "corrente política" e a "mais verdadeira e tradicional do Estado"... Entretanto, para os direitos da política, nem sempre contam conosco. Enfim, dizem que me reservam a Secretaria do Interior no Governo Vital, em que dirigirei a política do sertão, serei o sucessor político de Vmce., etc., etc., etc." Infelizmente, para decepção do velho Deocleciano, a realidade não correspondera às promessas. O tempo passara e Anísio não fora nem Secretário, nem Deputado. Em 1930, eleito sucessor de Vital Soares, o Senador Pedro Lago insistiu com Anísio para novamente aceitar a Diretoria da Instrução. Informado, o velho Deocleciano, em agosto, respondeu categórico: "É melhor a deputação federal, pela qual deve insistir". Era velha aspiração. Não havia muito que, ao deixar a Diretoria da Instrução, Anísio comunicara a Lobato: "Já não sou Diretor de Instrução; anda a política cogitando — tranqüilize-se! sem grandes probabilidades - de fazer-me Deputado..." Lobato logo respondera: "Deputado. Bravo. Como situação pessoal, como comodidade, nada melhor. Mas, com tua mentalidade renovada e toda brotos, como vais sofrer, meu caro amigo, a disciplina partidária que é a mesma disciplina mental católica em outro campo... Leia Maquiavel e condene-o em público. Use da palavra para esconder o pensamento..." De qualquer modo a deputação seria sonho, que a Revolução de 1930 soterrou inteiramente. Como faria nas horas de incerteza, Anísio retornou a Caetité, onde se sentia em segurança. Por ocasião da última viagem ao torrão natal, ele escrevera a Lobato: "Um mês no mato, pelo menos. Caçando, espojando-me, animalizando-me". Na verdade cada vez mais ele era o homo sapiens. Vitoriosa a revolução, Anísio e eu tornamo nos "decaídos". Inicialmente, ele se homiziou em Caetité, donde dizia ser um exilado na velha e nobre casa paterna. O exílio não seria, porém, o pior. "Além da perseguição oficial, escreveu ele a um amigo, também entrou um grande e irremediável luto". É que morrera o velho Deocleciano — encerrava-se austero ciclo político no sertão da Bahia. O que para ele significou o doloroso acontecimento podemos avaliar pelo que escreveu para Fernando de Azevedo quando este perdeu o pai: "Em fins de 1930, sofri o mesmo golpe, à distância e com a mesma surpresa, com que V. foi ferido agora, e sei bem avaliar o que isso significa para um de nós. Parece que se corta das mais fortes amarras, que nos equilibravam e retinham na continuidade dos nossos e da nossa terra. Com efeito, a cultura, a universalidade de interesses, a amplitude dos laços intelectuais que procuramos cultivar são uma constante possibilidade de desenraizamento, de exorbitação, digamos assim, não fossem certos outros laços mais profundos, de inteligência e de coração, que nos situam e nos prendem ao nosso meio. Os nossos pais, quando ajuntam às qualidades naturais, de pais, as de padrão e exemplo de inteligência e de caráter, realizam esse ponto central de referência que precisamos para nos sentirmos - nós mesmos.'' E o velho Deocleciano jamais fora outra coisa. Sem a presença do pai, Anísio buscou a capital do País. "Voltei ao Rio, diria a Odorico Tavares, sem trabalho nem emprego". Levava, porém, uma grande paz espiritual e "um programa de luta pela educação no Brasil". Um programa para toda a vida. Na ocasião, nós, ambos sem grandes trabalhos, mantivemos regular correspondência, refletindo incertezas e esperanças. A ocasião era propícia para os que se julgavam prejudicados pelas reformas de Anísio no Governo Calmon buscassem feri-lo. Também amigos e colaboradores seus não foram poupados, e

ele sofria por eles. Aos poucos, porém, habituara-se ao que chamava "a gente antropófaga da Bahia'', e, de longe, acompanhava mesquinhas perseguições. Parecia saturado: "Não acredito — escreveu — que a Bahia me possa surpreender nesse assunto. Tenho sobre essa pobre terra juízo formado." Inquietava-o, porém, a idéia de precisar retornar. Para mim era essencial a volta do País à ordem legal. Comuniquei a Anísio: "Lancei aqui, a fundação do Centro da Propaganda Constitucional, que vai tendo a melhor acolhida entre a mentalidade moça." E, enunciados alguns apoios, acrescentava: "Pretendo obter o apoio dos Centros Acadêmicos das três Escolas, da A imprensa, e quantos mais queiram concorrer para essa obra tão útil ao País — a Constituinte." Estávamos então em 1931. Para Anísio, entretanto, a educação era o ideal supremo. E convidado pelo Ministro Francisco Campos para trabalhar no recém-criado Ministério da Educação, não teve ele qualquer dúvida em retomar as armas do educador. Anísio acreditava ter a sua existência dividida em ciclos de 7 anos. Para alguns eles seriam de cinco, para outros de sete, ou nove. "Os ciclos de minha vida parecem ser de sete", dizia. Não sei em que ciclo incluiria 1931. Mas nesse ano, tendo viajado para o Rio, ficou noivo de uma conterrânea, Emília Ferreira, cujos pais haviam emigrado para São Paulo "Devo-lhe dizer — comunicou a Lobato — que estou noivo aí em São Paulo." Na Bahia, para os amigos, era, se não uma surpresa, pelo menos o inesperado. Ele próprio, encantado, alegre como um adolescente acariciado pelo amor, escreveu à mãe, que, em Caetité, sofria a viuvez: "Mamãe já deve ter recebido meu telegrama em que lhe comuniquei que fiquei noivo de Emilinha. Estive agora quinze dias em São Paulo e me convenci que levo aí para casa uma criatura tão boa e tão simples, que, pelo menos, esses problemas de ajustamento ela não terá. Eu que vivia cogitar de uma mulher intelectual e emancipada, vou afinal me casar com uma criatura que é tão sertaneja e tão simples como qualquer que eu fora escolher no sertão." O noivo transbordava de alegria, exultava. A carta continuava: "Adeus. Esta carta está engraçada. Mas, é que estou sentimental e satisfeito como se tivesse dezoito anos." Sentia-se adolescente. Não serão adolescentes todos os amorosos? Na realidade, breve intervalo na luta do educador. Em maio do ano seguinte, Anísio se casou. Não havia muito que em 15 de outubro de 1931, assumira ele a Diretoria da Educação do Rio de Janeiro. Pouco conhecido, muitos o veriam como obscuro educador da província. Dizia Afrânio Peixoto ser o Rio de Janeiro a grande vitrine do Brasil. Agora, trabalhando no Ministério da Educação, Anísio participava dos trabalhos de reorganização do ensino secundário. Viera pela mão de Themístocles Cavalcanti, seu colega de turma, e a vitrine foi ótima oportunidade para tornar conhecida e admirada a singular personalidade do educador, conversador extraordinário, inteligência viva, polêmica, por vezes parecendo debater as próprias idéias. Principalmente de Fernando de Azevedo, a quem substituiria, logo se tornara íntimo. Rapidamente se ampliava o círculo de amigos, poder-se-ia dizer dos admiradores, entre os quais se incluíam Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Delgado de Carvalho, Almeida Júnior e Mário Casassanta. Era a nata dos educadores brasileiros, todos empenhados em novos caminhos para a educação nacional. Alguns se sentiam frustrados pôr não haver a Revolução de 1930 trazido as transformações esperadas, e antes prenunciadas nos trabalhos de Lourenço Filho, no Ceará, e Fernando de Azevedo, em São Paulo. "Desse primeiro contato de Anísio com o Rio de Janeiro da Revolução escreveu Hermes Lima - ele transmitiu a Luiz Viana algumas impressões acerca do clima político reinante." Antes de tudo, o ambiente de incertezas e confusões, "boatos estranhos que atingiam a própria estabilidade do governo central e, sobretudo, do governo de São Paulo." Parecia-lhe haver "um descontentamento generalizado de gente que não sabia bem o que queria e não sabe bem o que conseguiu. Corria-se o risco, argumentava, de ver-se a história da revolução brasileira como a história de uma revolução que se perdeu." Nesse ambiente de inquietação surgiu a idéia do famoso Manifesto dos pioneiros da educação nova. Redigiu-o Fernando de Azevedo. Dos amigos de Anísio era este dos mais entusiastas, e de São Paulo escreveu-lhe cheio de fé: "Nós precisamos estabelecer uma corrente constante de comunicação para não esmorecermos na grande aventura de reconstrução educacional, em que estamos empenhados." Havia alguns anos mergulhado nos problemas educacionais, ele

sabia dos percalços e dificuldades a enfrentar. Ambos pagariam alto preço pela tentativa de renovar a educação. Em fevereiro concluiu-se o Manifesto. Fernando de Azevedo a Anísio: "Como já deve ter sabido pelo Venâncio, está concluído o manifesto educacional, que fiquei de redigir. Li-o ao Venâncio, antes de qualquer revisão Depois que ele partiu, pus-me a revê-lo e a corrigi-lo. Já está sendo passado à máquina a estas horas." O documento, longo, Azevedo estimava-o em uma página do Jornal do Comércio. Sobre ele meditara detidamente. "Pensei mais de um mês, no manifesto, antes de começar a escrevê-lo", comunicou a Anísio. Satisfazia-o constatar que refletia idéias comuns a ambos. E dizia a Anísio: "Alegrou-me ouvir do Venâncio, quando acabei de ler o manifesto, que, no correr da leitura, lhe parecia a cada momento estar ouvindo a você, tal a afinidade de nossas idéias." Fruto de idéias acalentadas e amadurecidas por muito tempo, eram de algum modo a estratificação do pensamento que inspirava as revoluções iniciadas em 1922 e 1924, e continuadas em 1930. Havia, porém, um vazio a preencher, e tanto Anísio quanto Fernando Azevedo consideravam urgente preenchê-lo por uma ação coletiva. "Parece-me", escreveu-lhe Azevedo, "que o ciclo das revoluções, que se abriu em 1922, não se encerrará senão quando o governo tiver bastante força para evitar 'a revolução nas ruas', e bastante clarividência para começar 'a revolução nos espíritos', pelas grandes reformas políticas, econômicas e educacionais". Destas o manifesto dos pioneiros propunha-se a ser a grande voz. Era imprescindível unidade de ação, e Azevedo insistiu com Anísio: "Nesse momento de confusão, é preciso definirmos a nossa posição, estabelecendo os nossos princípios fundamentais, o nosso programa de reconstrução educacional. Isto terá uma grande importância, não só como uma nota clara de coesão, firmeza e coerência, no meio do caos, senão também como uma afirmação de princípios. Será a primeira vez que educadores no Brasil - e no momento mais grave da sua história- se apresentam com um programa de diretrizes definidas, enquanto à volta deles se multiplicam e se baralham as opiniões, fluidas e inconsistentes, no exame dos problemas nacionais." Muitos deviam ser os chamados. E Azevedo dizia, vigilante: "Insisto sobre a assinatura do Carneiro Leão, e, particularmente, de Afrânio Peixoto. Peço-lhe dar-lhes a ler o manifesto e obter-lhes, com a aprovação, as assinaturas." Ambos acabaram acedendo à solicitação. "É preciso estarmos vigilantes para obtermos desse manifesto todo o efeito que procuramos, já de manifestação de idéias, já de consolidação do bloco ou do grupo que o vai lançar." Sinal de que se não contentava em fazer do manifesto um frio documento, mas um instrumento de luta, no qual depositava grandes esperanças. Em resumo eles aspiravam reconstruir a educação. A repercussão do Manifesto foi imensa. Azevedo Amaral, então em plena evidência, teceu este comentário: "O mal-estar que oprime o País e se traduz em nostalgia de uma forma qualquer da organização política, sistematizada e expressa na definição de princípios constitucionais, decorre da esterilidade intelectual do após revolução, desapontando a expectativa pública de diretrizes novas, que, mesmo quando fossem violentamente audaciosas, seriam muito mais aceitáveis e menos perigosas que a estagnação de um país revolucionado, isto é, a posição insustentável de uma nação que rompe com o passado e fica perplexa entre ruínas e um futuro para o qual não se atreve a caminhar." Observou Herrnes Lima ser "puro Anísio a espinha dorsal ideológica do Manifesto". Sem dúvida, ele estava presente, e seria peça fundamental na sua aplicação. Ao escrever-lhe a Introdução, que precedeu a publicação em livro, Fernando de Azevedo freqüentemente ouviu as opiniões de Anísio. Da correspondência então trocada, retiro este trecho de Fernando de Azevedo: "Os seus reparos sobre um dos capítulos da Introdução ao Manifesto, achei-os tão justos que resolvi desenvolver o meu pensamento, para o esclarecer melhor, em dois parágrafos novos, conforme a sua sugestão. V. interpretou com fidelidade o meu ponto de vista a que a citação da célebre frase de Pascal podia de fato emprestar uma interpretação diferente." E após breve digressão sobre a ciência e as invenções a serviço do homem, continuava: "Se é verdade que é preciso fazer, 'o homem tão grande como a obra que ele conseguiu criar' — se esta é a missão dos educadores —, não é menos certo que existe um conflito entre a civilização material e a sua mentalidade, presa ainda ao mundo sensível, confuso e místico de preconceitos, crenças e ideais em que ela se formou. A massa, como sempre afetiva e instintiva, deixa-se governar mais pelos sentimentos do que pelas idéias.

O que nos falta não é o pensamento claro de uma elite, capaz de Ihe transmitir um ideal novo, em cuja substância vivam as forças que elabora a nova civilização?" Foi realmente grande a repercussão do Manifesto, rapidamente transformado em divisor de águas no mundo dos educadores, separado em progressistas e conservadores. Na verdade tornara-se uma bandeira e Fernando de Azevedo, pondo a causa acima de tudo, via-o como um ponto de aglutinação. "Quando falo nesse manifesto — escreveu — já me esqueço que fui eu quem o escreveu. Ele é obra impessoal. Havia de ter, como teve, um redator. Mas nele se escreveram um corpo de doutrina, 'idéias e aspirações comuns', que nos permitem, a mim como a cada um dos outros signatários, falar dele 'objetivamente."' E para ele ninguém mais capaz de empunhar do que Anísio: "A bandeira não é de quem a teceu, mas de quem a honra e de quem a conquistou. De todos nós, portanto. A sua mão de chefe foi feita para empunhadura dessa bandeira: nós estaremos para defendê-la em toda a parte em que se realize obra à sua sombra e sob a sua inspiração." Seria luta sem quartel e dela não demorou Anísio a se tornar o grande Líder, e por isso mesmo a grande vítima. "É preciso que a sua administração seja coroada de um êxito completo. V. o merece. E ninguém o merece mais do que você, pela penetração da sua inteligência, pela largueza de sua visão, pela fidalguia de seus sentimentos." Opinião lisonjeira, que não demorou em se generalizar. Modesto, despretensioso, sem outra ambição senão a de servir à educação, Anísio se fizera naturalmente o Líder da cruzada. Mais ou menos por essa ocasião publicou ele a Educação progressiva, possivelmente a síntese do pensamento que o orientaria no campo da filosofia da educação. Contemporânea do Manifesto, Monteiro Lobato reuniu os dois documentos neste comentário enviado a Anísio: “Comecei a ler o Manifesto. Comecei a não entender, e não ver ali o que desejava ver. Larguei-o. Pus-me a pensar- quem sabe está nalgum livro de Anísio o que não acho aqui - e lembrei-me de um livro sobre a educação progressiva, que me mandaste e que se extraviou no caos que é a minha mesa. Pus-me a procurá-lo, achei-o. E cá estou, Anísio, depois de lidas algumas páginas apenas, a procurar dar berros de entusiasmo, por essa coisa maravilhosa que é a tua inteligência lapidada pelos Deways e Kilpatricks!" E acrescentava com incontido entusiasmo: "Eureca! Eureca! Você é o lider, Anísio! Você é que há de moldar o plano educacional brasileiro. Só você tem a inteligência bastante clara e aguda para ver dentro do cipoal de coisas engolidas e não digeridas pelos nossos pedagogos reformadores... Eles não conhecem, senão de nomes, aqueles píncaros (Deweys & Co.) por cima dos quais você andou e donde pode descortinar a verdade moderna. Só você, que aperfeiçou a visão e teve o supremo deslumbramento, pode, neste País, falar de educação." Podia parecer exagero peculiar a Lobato. Contudo, dificilmente alguém deixaria de vibrar ante aquela inteligência sutil, penetrante e que tudo iluminava, emitindo conceito aos quais emprestava claridade invulgar. Na palavra de Anísio, tudo se tornava claro, e, portanto, fácil. O fascínio de Fernando de Azevedo pela "educação progressiva" não era menor que o de Lobato: "Ao terminar a leitura de seus ensaios sobre a educação — escreveu ele a Anísio — lembrei-me de umas palavras em que Alfred de Vigny se retratava, sob traços do Imperador Juliano. Fui procurá-las. São estas: 'N'as tu pas remarqué, Basile, que ce n'est qu'avec effort qu'il descend, tandis que, chez le commun des hommes et même les plus habiles philosophes, l'effort est de se detacher d'enbas pour monter... Si jamais une pensée eut des ailes e'est assurement la sienne'. O seu pensamento é desses raros que têm asas, e é evidentemente com esforço que V. desce, enquanto no comum dos homens o esforço é de desprender-se de baixo para subir..." Para os que conviveram com Anísio e dele conheceram a veloz ascensão da inteligência, em constante debate na busca do aprimoramento, a observação é perfeita. E Azevedo continuava: "É sempre com grande facilidade que V. sobe alto e consegue plainar acima das teorias e doutrinas de que veio e se desprendeu para voltar a elas freqüentemente, mas nunca para ficar nelas. Esta facilidade em subir, quanto fala ou escreve, essa flexibilidade e liberdade de pensamento que não traz chumbo nas asas, essa rapidez e segurança de raciocínio, largo e tranqüilo como o vôo dos grandes pássaros, são qualidades que denunciam a sua organização de pensador e filósofo da educação." Não havia como negar - Anísio tornara-se um líder. É curioso que ao falar das distrações, que Ihe eram freqüentes, costumasse confessar: "Quando monto na asa de um pensamento, de uma idéia, eu vôo nessa idéia como se a idéia fosse uma ave e tudo o mais se apaga." E voava alto.

Também de Hermes Lima, que permanecia em São Paulo, não faltou caloroso elogio: "O volume - escreveu ele a Anísio — é na verdade excelente. Tem a meu ver, para começar, a virtude de esclarecer um problema que, em geral, anda por aqui, por aí, por esses Brasis, obscuro, mal sabido: o problema da nova educação, da escola para os novos tempos, para a civilização em crise e, sempre, em mudança. A obscuridade era, aliás, compreensível. Na crise da escola reflete-se a crise geral. Dar sentido à escola é dar sentido, relativo no tempo, é certo, à marcha da civilização." E após algumas considerações, a carta continuava: "O espírito de inconformismo que anima todo o livro é nele uma qualidade, mais do que isso, uma virtude fundamental. O último capítulo particularmente me seduziu: esse seu e cada vez mais novo Dewey é deveras um homem capaz de mostrar coisas." Sinal de que tomava corpo uma nova filosofia da educação. Ainda vivas as feridas de 1930, irrompeu a Revolução Constitucionalista de 1932, e durante quatro meses a guerra civil ameaçou dividir o País. Incorporado às forças de São Paulo, Hermes Lima, cessada a guerra, mandou a Anísio as suas impressões da luta: "Dela volto, meu caro, nem apaixonado, nem saudosista, mas apenas convencido de que os erros políticos da situação dominante que a ela nos arrastaram só poderão prevalecer a preço da desagregação do País. O Fernando (de Azevedo) Ihe falará de tudo com mais vagar e com o rigor objetivo tão característico do poder de observação que ele possui. Contento-me em assinalar-lhe aqui o fato, deveras importante, do aparecimento de uma consciência separatista em São Paulo." E para Hermes, o remédio para cicatrizar a ferida era fortalecerem e ampliarem as idéias do Manifesto dos Pioneiros: "Ora, o movimento educacional cujas linhas foram expostas no manifesto, hoje histórico e que nos congrega, repousa sobre a base da pátria comum brasileira. Lembrei, então, ao Fernando (de Azevedo) a conveniência de se lançar agora novo manifesto em que, se recordando sinteticamente os traços fundamentais da nossa ação educacional, erguêssemos um vibrante grito de alarme contra a falta de tato e o desconhecimento da realidade que em São Paulo, enfraquecendo o sentimento de brasilidade, nos atiraram à guerra civil e podem, com o tempo, nos levar à guerra da secessão." O separatismo inquietava-o, e ele dizia com ênfase: "Insisto por este manifesto como um dever patriótico que nos cabe cumprir, porque a verdade é que a inépcia tem feito em São Paulo (inépcia do Governo Federal) mais pela desagregação do País do que a sua imaginação Ihe poderia dizer." Não haveria outro manifesto. Para Fernando de Azevedo o importante era colocarem em prática as idéias dos "Pioneiros", e para isso aceitou dirigir a instrução pública em São Paulo. "Concordei afinal - participou ele a Anísio - depois de uma resistência mantida inflexivelmente desde a data de minha nomeação, a 27 de dezembro, em assumir a Direção da Instrução Pública em São Paulo, mas sem quaisquer compromissos de ordem política ou partidária e com a mais ampla autonomia de ação." Anísio seria o outro braço nessa luta pela educação. E Azevedo dizia-lhe confiante: "Trago os olhos e o pensamento voltados para a grande obra educacional que está V. realizando no Rio, e cujo espírito, que, na sua essência, é o da refomma de 1928, pretendo transferir para São Paulo, onde o Lourenço (Filho), aliás, já realizou iniciativas e empreendimentos de grande alcance nesse sentido." Sabia, porém, serem muitos os obstáculos. Por vezes sentira-se abatido, desanimado, prestes a submergir. "\/. já compreendeu que me refiro a obra educacional em que estamos empenhados, e pela qual eu estaria disposto a sacrificar minha própria vida". Nessas horas o idealista encontrava novas forças: "Sinto-me doente e fatigado, mas não hesitaria um instante em sacrificar todas as energias que ainda me restam, na reconstrução do pensamento educacional brasileiro". E desejoso de premunir o companheiro para as tormentas que antevia, acrescentava: "Não conseguimos ainda uma vitória sem esforços hercúleos e senão através de dificuldades imensas, num meio em que, compreendidos por poucos, somos furiosamente negados por uma grande parte de professores, cuja ignorância tem sido vilmente explorada pela má fé de alguns aventureiros e pela obstinação de outros. Escrevo-lhe agora, de irmão para irmão, como um combatente que aproveitasse um momento de repouso, na sua trincheira, para se desabafar com um companheiro de lutas, certo de que os revezes transitórios que sofremos ou possamos ainda sofrer nos trarão o sucesso e as conquistas definitivas." Carta melancólica - não a aquece nenhuma ilusão. Para ele, entretanto, o essencial era sempre a união dos empenhados na “grande aventura". Desprendido, punha o êxito das idéias acima das vaidades. E, desvanecido, escrevia a Anísio: "Sinto cada vez maior necessidade de nos mantermos intransigentes. O radicalismo é próprio dos pequenos grupos. O abrandamento da sua irredutibilidade é prova de que o grupo

se estendeu quantitativamente ou perdeu a consciência da necessidade de conservação..." Ao longo de mais de quatro anos, Anísio não fez outra coisa senão tentar implantar as idéias do Manifesto dos Pioneiros. Alçado à Secretaria de Educação, não devia perder a oportunidade. Tanto mais que em São Paulo, também à frente da educação, Fernando de Azevedo representava base fundamental para a sonhada reconstrução educacional. Odorico Tavares, em 1952, Anísio recordou esses anos de trabalho. "A revolução produzira o necessário clima de renovação" - diria ele na conhecida entrevista. "Procurei durante perto de cinco anos elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da República e da democracia, distribuí-la por todos na sua base elementar e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática e eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata. Esta luta encerrou-se em 1936 com a onda reacionária que então submergiu o País." A reforma era uma revolução, contrariando privilégios e interesses de toda a ordem. Natural suscitar um mar de reações. Ainda uma vez Anísio seria atacado pelos contrariados pelas suas reformas. Também Fernando Azevedo não seria poupado. Para este era o rescaldo das idéias do Manifesto: "Já vê você - escreveu ele a Anísio - que são indícios inelidíveis de uma reação conservadora a todo o transe, que tem por objetivo declarado a 'volta à tradição' (reação contra as reformas Lourenço Filho e Fernando de Azevedo) e, com fins não confessados, mas notórios, a reação pessoal contra o grupo do Manifesto." E, após considerações sobre o ensino religioso nas escolas, a carta prosseguia corajosamente: "Escreva-me longamente e não esmoreça na grande obra comum em que estamos empenhados e na qual é um dos chefes de mais largo descortínio, de mais alto prestígio e de maior capacidade de ação... Preparemo-nos para a luta." Aliás, Fernando de Azevedo relutara um pouco em se engajar oficialmente na batalha pela educação. Não havia muito, Anísio Ihe anunciava cheio de ânimo: "Quanto a mim dizia - estou embarcado e já não desembarco..." A resposta: "Também eu não hesitaria em embarcar se sentisse aqui, no leme, um pulso firme, e visse no mapa o roteiro seguro e no espírito de todos a disposição de se fazer ao largo, afrontando mar alto de uma vigorosa política de reconstrução. Mas, infelizmente, parece-me que, apesar de tudo, a tripulação hesita em levantar ferros, e, quando se dispõe a isto, é para sair costeando a praia, como arranhando a costa como caranguejos." Contudo, não demoraria a também se fazer ao mar. E desvanecido, ele escreveria a Anísio pouco depois: "É certo que já começamos a fazer obra comum e de unificação dos diversos sistemas escolares brasileiros. Não é esta uma obra nacional, de espírito nacional, no mais alto sentido da palavra?" E, desejoso de estimular o colega de sofrimento, dizia-lhe: "Mas, tudo há de passar e Ihe será feita a justiça, que a mim, parece-me, já começaram a fazer. Não cuide, porém, que são menores aqui as dificuldades com que venho lutando. O mar que navego é também tempestuoso e cheio de perigos... Já mais de uma vez tive de passar com ventos rijos, no meu barco frágil, momentos de inquietação para todos e que me foi necessário suportar com indiferença aparente, como se eu fosse estranho a todos os rumores de perigo..." Não havia dúvida de que a luta seria longa e árdua. Anísio estava, porém, disposto a enfrentá-la, convicto de que no Distrito Federal situava-se o Waterloo dessa guerra. "Creio, escreveu ele a Fernando Azevedo, já Ihe haver dito que é minha impressão não ser possível travar, no Brasil, a batalha educacional, antes de vencermos a peleja do Distrito Federal." E para vencê-la Anísio buscou reunir os melhores na educação. Desejara inclusive a vinda de Fernando de Azevedo, para quem almejava o Ministério da Educação ou direção do Departarnento Nacional de Educação, se não a própria Secretaria de Educação. Jamais alguém conseguira reunir equipe de tal porte, para a implantação de um programa educacional. O Instituto de Educação fora confiado a Lourenço Filho e Mário de Brito; o Instituto de Pesquisas Educacionais a Delgado de Carvalho; a Superintendência do Ensino Secundário a Joaquim Faria Góes; as Bibliotecas e o Cinema Educativo a Armando de Campos; a Educação Física à Professora Marieta Lois Williams; a Educação Musical ao Maestro Villa-Lobos; e na Superintendência do Ensino Elementar estavarn Alice Flexa Ribeiro, Calina Padilha, Paulo Maranhão, Felicidade de Moura Castro, Arteobela Frederico, Maria Vidigal, Laudimília Trotta e Zélia Braune. Certamente, nada havia de melhor no Brasil. E para reunir equipe de tão alto nível, Anísio se inspirava, principalmente, na solidariedade aos companheiros de ideal. Disso parecia orgulhar-se. E a Fernando de Azevedo ele diria com franqueza: "Não será necessário esclarecer

que levo esse dever de solidariedade a todos que sejam verdadeiramente educadores — amigo ou inimigo —, só me considerando desobrigado dela perante os que por ignorância ou falta de idoneidade não podem merecer esse título. No Rio, neste momento, em que me coube, para mal dos meus pecados, o posto de comando oficial, tudo que podia fazer para agregar, reunir, consolidar, impessoalmente, os educadores brasileiros, tenho feito. No magistério e na administração tenho buscado criar uma consciência profissional comum, que desvie das pessoas para a profissão o dever de dedicação e de solidariedade. De todos os que chamei só falhou até hoje o Isaías." Nada, porém, impedia que, ora mais, ora menos, prosseguisse a campanha contra o Secretário da Educação. Ferido, ele comunicou ao amigo: "Tão breve quanto possível hei de deixar a direção do ensino. Façamos votos para que o meu substituto seja mais feliz na obra de união e de fortalecimento comum." Certamente uma ilusão. Como deixar em meio a batalha travada ao lado de tantos companheiros? Não sem razão é esta observação de Hermes Lima: "Consagrou-se Anísio à edificação de sua obra educacional, abrasado pelo espirito de missão, missionário que foi a vida inteira." E como alicerce da construção, ali estava o Manifesto de 1932, pedra sobre a qual os pioneiros sonhavam edificar a nova Igreja da Educação. Realmente, a cada passo emergiam as idéias do documento, motivo inclusive de debates entre os Constituintes de 1934, pois, custara evitar-se que algum dispositivo constitucional pusesse água abaixo quanto se fizera laboriosamente. Anísio a Fernando de Azevedo, em 6 de junho de 1934: "Terminado o mais aceso da luta, não sei se não nos devemos dar por satisfeitos, de tal modo, apesar das investidas da rotina e dos interesses, as idéias principais vieram a ficar vitoriosas... O capítulo da Constituição contém o máximo que podia, no momento, triunfar entre nós. Preferimos, entretanto, de público acentuar, em parte, o que perdemos, uma vez que uma campanha mesquinhíssima mais uma vez pretende ferir a renovação da educação nacional." E num tom de desalento, concluía: "Como ambiente geral, sinto, entretanto, que continuamos a lutar com a hostilidade, a indiferença ou a incompreensão. Sem dizer nada dos interesses feridos e dos não atendidos. O esforço de resistência chega a parecer-me que supera as minhas forças. Tenho, dia a dia, maior necessidade de repouso e de descanso." Embora não imaginasse, as forças eram-lhe inesgotáveis, refazendo-se a cada passo, para novas lutas e provações. Para ele, aliás, chegara a hora de um balanço sobre quanto se fizera bem como, o que deixou de ser realizado. Extraordinariamente lúcido, Anísio temia iludir-se. E para evitar o perigo pregava uma pausa na qual se analisasse imparcialmente o caminho percorrido. Em junho de 1934, de viagem para a Bahia, ele, de bordo do "Flandria”, voltou a escrever a Fernando de Azevedo: "Continuo a pensar que, na crise de cansaço em que nos encontramos, precisamos novamente de uma palavra de ordem estimuladora e justa. Primeiro, que balanceasse o que foi feito, com isenção, objetividade e coragem e depois indicasse o que havia ainda a fazer e o que ia fazer... Depois do Manifesto dos Pioneiros, essa nova declaração se impõe. Estamos a correr o risco de fazer crer e, o que é pior, também crermos nós mesmos que nada foi feito ainda...Escrevo de coração para coração. Ando a sentir tudo isso. E quero dar o meu afetivo e franco alarma" Não há noticia do resultado desse brado de alarma, que traduzia decepção e desânimo. Nessas horas Fernando de Azevedo tinha sempre alguma palavra de estímulo, como a desta carta, de julho de 1935: "Vi e observei tudo com olhos sem nervos e o coração sem paixões. Por isto falei-lhe com toda a franqueza e com aquela solidariedade que V. conhece e que é sempre minha nas horas incertas... O que se passa todos os dias não importa. E preciso apanhar o que fica através do que passa. E o que ficará de V já é grande demais para V se deter no que é transitório”. Como sempre, Anísio não demorou em retomar o trabalho. Agora, como cumeeira do edifício, idealizava criar a Universidade do Distrito Federal. Universidade que fosse realmente uma Universidade, tal como concebia no plano mais alto da educação, e não uma contratação. As eleições, para governador, de Armando Sales, em São Paulo, e Pedro Ernesto, no Distrito Federal, abriram caminho para as universidades estaduais. Anísio pôs mãos à obra. Era a oportunidade, não para transplantar a educação, mas para criar uma educação verdadeiramente nacional, adaptada a nossas condições, aos nossos hábitos e às nossas necessidades. Péricles Madureira de

Pinho, intimo do pensamento de Anísio, daria este depoimento: "A concepção de uma Universidade brasileira nossa, produto da comunidade posta a seu serviço, ninguém a teve mais nítida do que o mestre Anísio. Não queria ele a Universidade como simples elaboradora de comentário e exegese do conhecimento existente. Defendia a grande renovação da Universidade como centro de "busca da verdade, de investigação e pesquisa." Era idéia arraigada idêntica concepção: "Quando se fala que a Universidade deve passar à pesquisa não significa deva haver um acréscimo, isto é, que lhe devamos anexar mais tarefa, e ela viraria Universidade de pesquisa. A Universidade será de pesquisa quando passar a formular a cultura que vai ensinar. A cultura humana tem de ser elaborada para ser ensinada." Para uma grande obra era fundamental uma figura exponencial: Anísio nomeou Afrânio Peixoto, Reitor da nova Universidade. Desde que se conheceram fora crescente a amizade e a admiração de Afrânio pelo conterrâneo. Afeto que "sublinhava com um gesto de carinho reverente: saudava-o, a cada encontro, com um ósculo na face - maneira que Ihe pareceu suprema de expressar o seu apreço inexcedível''. Notou Hermes Lima que Afrânio "trazia para a Universidade o prestigio do seu nome aureolado pelo saber, pela consagração literária, pela dignidade de uma vida toda dedicada ao ensino." Em verdade, nenhum nome pairava mais alto na vida cultural do Brasil. E a tudo isso somava-se o entusiasmo do educador. Fundada em abril de 1935, Anísio, na aula inaugural, proclamou não somente os encargos da Universidade, mas também os descaminhos que haviam nos levado aos diplomas universitários honoríficos. E indagava em certo momento: "Haverá por acaso, demasiado ensino superior no Brasil? Não. O que há são demasiadas escolas de certo tipo profissional, distribuindo anualmente diplomas em número maior que o necessário e o possível, no momento, de consumir." Sabia-se ser a expressão da verdade. Nítidos e definidos eram para Anísio encargos da Universidade, e ele os enunciou na aula inaugural da abertura dos cursos: "A função da Universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata somente de difundir conhecimentos. O livro também os difunde. Não se trata somente de conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata somente de preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou de artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas do que universidades." Inquieto, Anísio não deixava os assuntos dormirem. A Universidade não fugiu à regra: Afrânio Peixoto, a exemplo da Universidade de São Paulo, viajou em busca de professores. Em carta da Europa, dizia: “Universidade é pesquisa, mas é primeiro, e primeiramente, ensino. Pesquisa só depois de iniciado o ensino. Portanto, para começar, o professor, o aluno, o ensino. Para a evidência da utilidade pública, será mesmo indispensável começar por aí." E para ele, dos professores possíveis, os melhores teriam sido os alemães, judeus, expulsos pelo nazismo, não já terem sido recrutados pela Inglaterra, Suíça e Estados Unidos. Ficavam-nos os franceses, certamente mais facilmente entendidos pelos alunos, por causa da língua. E para selecioná-los, conversá-los e contratá-los, teve Afrânio a inestimável ajuda do seu amigo Georges Dumas, notável figura da cultura francesa, amigo do Brasil e incansável na catequese dos colegas. Afrânio Peixoto comunicou a Anísio: "O Dr. Georges Dumas anda pelos Ministérios e pelas Faculdades e instituições sábias a proclamar que o Reitor da Universidade do Distrito Federal, que se dirigia à França, confiante e confiado, não podia ir senão com as mãos cheias de dons. E tudo se fará do bom e do melhor meio, dando a França quase tudo." Realmente era um achado. A França pagaria a todos integralmente, ao passo que o Brasil dispenderia apenas pequena parcela. Afrânio escolheu o que havia de melhor. Para a Faculdade de Ciências viriam Maurice Janet, Eugene Block, Leray Marchand, Bovat, Henri Cardot, Millot, todos renomados professores nas suas especialidades. Para a Faculdade de Letras não eram menos ilustres os professores contratados: E. Brehier e Henri Hauser vinham de Sorbonne; C. Blondel, de Estrasburgo; Bourcier, de Montpellier, e como consagradas estrelas da cultura, Garric e Deffontaines. De modo geral era a nata das Universidades da França. Valia por uma transfusão de cultura. "O que esses mestres franceses trouxeram da Europa para a renovação da cultura brasileira — escreveu Gilberto Freyre - através daquela universidade fecundamente experimental, importa noutro corajoso serviço prestado por Anísio Teixeira ao nosso País. Pois sem tradição universitária, não era possível que se improvisasse entre nós universidade valendo-se os organizadores do sistema universitário

brasileiro apenas de bons professores, dos chamados de humanidades vindos do ensino secundário para o universitário; ou de simples especialistas nisto ou naquilo, recrutados de escolas superiores, apenas profissionais para cátedras que devessem ser verdadeiramente universitárias." Contudo, pelos ciúmes suscitados, foram muitos os problemas causados pela convocação de professores estrangeiros. Como Ihe era próprio nessas ocasiões, Afrânio vibrava pelo êxito alcançado: o educador transbordava de contentamento. Dele é este expressivo fim de carta para Anísio: "No dia 6 de julho — dizia — embarca em Marselha, no Alsina, o Dr. Georges Dumas, cidadão carioca Professor da Sorbonne, de Psicologia, autor do monumental tratado, meu amigo, meu grande amigo, que agora fez tudo por mim, por nós, prestando-me imensos serviços. Procure-o, converse com ele, ele dirá tudo isto e mais ainda por mim. Ouça-o, agrade-o. Faça-lhe festas. Leve-o ao Garoto do Mercado. À ABE. Ao Instituto de Educação. Já é Grande Oficial do Cruzeiro — não poderia o nosso Pedro Ernesto pedir para ele a Grande Cruz?... Meu Anísio, agradeça-lhe por mim, por nós, com agrado, que bem merece, dedicadíssimo à nossa vitória! E agora? Agora um abraço. Excelsior! Seu, todo seu, Afrânio". A carta era um Tratado de Amizade. Nessas ocasiões Afrânio Peixoto mostrava-se incomparável. Tudo seria, porém, em vão. O Brasil já se dividiria irremediavelmente em comunistas e fascistas. E para estes, quem não era integralista era irrecorrivelmente comunista. Anísio, liberal infenso a todas as violências, não tinha como se libertar da pecha do comunista. E uma campanha pertinaz envolveu implacavelmente tudo quanto ele realizava. Escolas, Faculdades, Universidades, tudo seria maculado pela calúnia alimentada, e ampliada por quantos guardavam algum ressentimento das reformas implantadas ao longo de quase cinco anos. Era um terrível ajuste de contas promovido, principalmente pelos integralistas, largamente infiltrados nos círculos militares e intelectuais. Por mais que se mantivesse alheio ao conflito político, Anísio acabou compreendendo ser incômodo auxiliar para o Governo, e oneroso companheiro para os amigos, principalmente após o levante comunista de novembro de 1935. Daí por diante a verdade não teve mais nada com o Brasil: um ódio mesquinho se derramou por todo o País. O levante comunista impossibilitou a permanência de Anísio na Secretaria. A luta, entre a escola pública e a escola particular, que Anísio tinha, em grande parte, como confessional, deslocou-se para o campo político, e os seus adversários insistiam em dizê-lo simpático aos comunistas. Anísio resolveu pedir demissão, e o fez com veemência igual à agressão que 0 atingia: "Renovo a declaração, porque não me é possível aceitar agora a minha exoneração sem a ressalva de que ela não envolve, de modo algum, a confissão, que se poderia supor implícita, de participação, por qualquer modo, nos últimos movimentos de insurreição ocorridos no País. Não sendo político, e sim educador, sou, por doutrina, adverso a movimentos de violência, cuja eficiência contesto e sempre contestei. Toda a minha obra, de pensamento e de ação, aí está para ser examinada..." Pedro Ernesto confirmou a posição do auxiliar: "Dou o meu testemunho - respondeu ele a Anísio — da veracidade de quanto afirma em sua carta, pois do nosso convívio pude perceber que o Secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal foi sempre adverso aos movimentos de violência e foi sempre um apaixonado apologista da verdadeira democracia." No ambiente que se criara, a demissão fora inevitável, e Anísio contou com a solidariedade de numerosos colaboradores. Afrânio Peixoto, Carneiro Leão, Roberto Marinho de Azevedo, Gustavo Lesa, Mário de Brito, Paulo de Andrade Ribeiro e Adroaldo Junqueira Ayres foram dos primeiros a protestar contra a iniqüidade. Calorosos, eles saíram a campo: “Nós, abaixo firmados, colaboradores do Dr. Anísio Spínola Teixeira nos serviços de Educação do Distrito Federal, onde prestou, em quatro anos, maiores benefícios à causa escolar do que qualquer outro brasileiro em sua existência, vimos afirmar nossa surpresa ao ato que o afastou daquela administração. Espontaneamente demissionários, temos a hombridade de declarar nossa inabalável convicção, haurida em testemunho quotidiano, que o Dr. Anísio Teixeira se manteve absolutamente alheio a qualquer ideologia política subversiva da ordem constitucional, exclusivamente votado à cultura nacional, pela educação e só com a educação."

Aos que conviviam com o demissionário e Ihe conheciam os sentimentos, a total desambição, que corria parelha com a paixão do missionário, era inaceitável a campanha deturpando-lhe idéias e objetivos. Escreveu Afrânio Peixoto que raio não cai em pau deitado. Anísio era porém, alta, frondosa e florida árvore, e isso explica a insistência com que os raios o atingiam. Nós, seus amigos, nunca nos conformamos com os ataques desfechados. Conhecíamos-lhe a quase candura, a franqueza e também a bravura com que debatia os problemas. Inicialmente, passara do catolicismo ultramontano para o liberalismo, e haviam-no acusado de "americanizar" a educação. Agora o apontavam como comunista, embora o marxismo jamais houvesse pairado no seu espírito. E durante décadas não houve como libertá-lo daquela pecha. Em 1936, ele escrevera a um amigo, dando conta do que ia pelo País: "não se pensa, cheira-se. Agora, tudo Ihe cheira comunismo". Na verdade equívoco pelo qual pagaria até o fim da vida. Escreveu Edson Nery da Fonseca, por algum tempo da amizade intelectual de Anísio, que tal equívoco fora "miseravelmente explorado pelos interesses criados em torno de colégios particulares: interesses defendidos por uma parte do clero e até por alguns membros da hierarquia eclesiástica". Era difícil aceitar a acusação. Tanto mais que "nunca houve no Brasil — observou o educador Lauro 0. Lima - maior americanista em matéria de educação". O que não impediu fosse "ferozmente combatido, terminando por ser considerado esquerdista, à falta de melhor argumento para combatê-lo". Ele, que americanizara o pensamento brasileiro em matéria de educação, principalmente difundindo as idéias de John Dewey, violentamente combatido pelos educadores soviéticos. De N.K. Goncharov é esta afirmação no órgão oficial da Academia de Ciências Pedagógicas de Moscou e lembrada pelo próprio Anísio: "Os educadores reacionários esforçam-se nos Estados Unidos por demonstrar lealdade aos donos de Wall Street, formulando os fundamentos teóricos do sistema norte-americano de educação. Solto no palco está o bisão endurecido John Dewey, com 90 anos de idade, ex-catedrático da Universidade de Colúmbia”. Devoto de Dewey, Anísio via-se acusado de comunista. De fato ele seria um espírito em permanente busca da verdade, e do seu aprimoramento. Ênio Silveira, que com ele conviveu na Editora Nacional, deu este testemunho: "Anísio era, antes de mais nada, um antidogmático, um cético altamente especulativo em todos os terrenos de atuação mental. Tanto, que muitas vezes o vi entregue ao exercício de armar profundas criticas às próprias concepções pessoais que a reflexão e a prática o haviam levado a estabelecer sobre teorias pedagógicas e sua aplicação à realidade brasileira." No fundo, um eterno insatisfeito. Houvesse de situá-lo na vertente de alguma cultura, e ele deveria ser tido como um grego. Dizia Gilberto Amado representar uma rua de Paris a continuação de um rio nascido na Grécia. Certamente, Anísio subscreveria esse pensamento. Quando aí esteve, em 1961, a sua imaginação recuara milênios, num fascínio incontido. Fascínio do qual conservo expansões feitas na intimidade, e testemunhos do deslumbramento suscitado pelo mundo helênico. A Péricles Madureira de Pinho, amigo fraterno, ele escreveu um cartão mandado da Acrópole: "É preciso vir aqui para se sentir quanto a beleza é algo de religioso. Não se tem vontade de deixar a colina inigualável. Aos sessenta anos perde-se toda a espontaneidade. Mas, se alguma vez o homem conseguiu criar um ambiente de serena exaltação, esse foi o templo desses eternamente surpreendentes gregos". E extasiado ele continuava a evocação: "Andei entre as suas ruínas hoje mais de três horas e custou-me deixar a colina ou soufle l'espnt." O sopro do qual nasceu a cultura do Ocidente, e da qual era ele uma floração. Mais terno e emocionante é o cartão que, dias depois de pisar o Paternon, mandou, de Paris, ao filho José Maurício: "Ai vai o Partenon. Será que V. sabe o que isto é? Todos nascemos ai — juntinho está o lugar onde Sócrates ensinava. O lugar é tão sagrado que São Paulo não teve coragem de pregar na Acrópole, fazendo sua célebre oração aos atenienses de um penhasco ao lado". Era o deslumbramento do humanista. Transcorridos milênios sobre o Partenon, Anísio, aconselhado pelos amigos, deixava o Rio ameaçado por fanáticos inimigos da Liberdade. Novamente ele buscou o sertão, onde se sentia em segurança. Cerca de dois anos viveu então na fazenda Gurutuba, próxima de Caetité, e residência da irmã Evangelina, casada com o Cel. Francisco Pires de Oliveira. E de bom ânimo ele se dispôs a suportar aqueles tempos de injustiça. Que fazer senão esperar passar a tormenta?

Lobato não mais esqueceria esses dias de opróbrio. Passados alguns anos, ele escreveria a Anísio: "Lembro-me de quando te vi no Rio de Janeiro, traqué pela polícia, escondido pelos amigos como um grande criminoso—e naquela ocasião também chorei. To whom the bells toll? Todos estamos implicitamente perseguidos, foragidos, escondidos com você, enquanto lá fora o tumor Vargas sorria com o seu charuto e entregava a Cultura Brasileira aos percevejos da Cúria Romana." Era a confirmação do que dissera a um amigo, Flávio de Campos, em fevereiro de 1938: " Num País em que essa maravilha de inteligência e caráter que se chama Anísio Teixeira vive escondido, só há um protesto dos que têm voz: o silêncio." Nessas horas, perseguido, Anísio se integrava na simplicidade da vida sertaneja, para enfrentar o infortúnio. "No fundo deste sertão escreveu a Lobato - o silêncio e o deserto nos tornam humildes e pequenos." Encantavam-no as coisas simples. Familiarizara-se até com um alegre casal de Lavandeiras de Nossa Senhora, o pequeno pássaro de que fala Lobato, e que por algum tempo veio cantar-lhe à janela naquelas frias manhãs sertanejas. Depois, criados os filhos no ninho próximo à casa, elas se foram com as águas. "Não saberiam — perguntou Anísio — que o homem é o mais terrível dos animais ferozes?" Distraiam-no as seriemas e perdizes, únicos habitantes das planícies sem fim. E convidando Lobato a visitá-lo, dizia-lhe: "a cidadezinha morta de Caetité vive rodeada de uns gerais que são tudo que há de mais verde, mais largo e mais alegre..." A solidão fazia-o romântico naqueles dias de abandono: "Mato o tempo com distrações cro-magnônicas: caça e vaquejadas. E à noite, colo o ouvido ao éter (rádio) e ouço as confusões do período da estupidez. Depois enterro-me nos meus livros e sonho com o futuro... Tenho três mundos, pois, com que me divertir. O de ontem, o de hoje e o de amanhã. Sou assim feliz como um pinto. Porque, dos três, se o de amanhã é o melhor é também possível, o pior o de hoje, só o tenho pelo éter (rádio), e o de ontem, afinal suportável, é o que vivo corporalmente". E ao dar conta do que Ihe ocorria, informara ao amigo: "Sou, hoje, lenhador, vendo madeiras e dormentes à estrada de ferro. Comprei umas terras e creio que retornarei ao destino rural dos meus bisavós. E um esforço para me primitivizar que não deixa de ter os seus encantos". Na verdade, buscava iludir-se. Como conformar-se o sonhador com o destino que Ihe interrompera a caminhada? E deixando entrever a inquietação, confessava com certa amargura: "O cabritozinho do espirito ainda pula e esperneia e se bate - tão habituado ficou com a sua vida de livros, de complexidades e de inquietações -, mas virá, por fim, a habituar-se à planície e à sóbria poupada e sumaríssima vida intelectual de um criador de bois e vendedor de lenha". Era a teimosia da ilusão. Os amigos é que se não enganavam. E como se falasse por todos nós, Homero Pires deixou vazar a revolta que vivíamos: "Se o Brasil fosse uma nação", — escreveu ele a Anísio — . "O seu caso seria impossível. Você, acoitado, refugiado nos sertões, por ter feito a obra mais benemérita de educação no Brasil". Era o inconcebível. Havendo permanecido no Rio, Hermes não demorara em ser preso. Soltaram-no após mais de um ano, sem jamais Ihe dizerem porque fora preso. Cada inquisição tem as suas vitimas. Mais ou menos por esse tempo, leu Anísio a "História da Educação de Afrânio Peixoto, por este enviado para Caetité. O agradecimento é luminoso - o sofrimento decantara o espirito do educador. Nem é demais reproduzir-lhe largos trechos. "Querido Afrânio: li a história da educação, no meu sossego da roça, em um dia. E sai da leitura com essa vertigem de quem assiste, em algumas horas, todo o espetáculo do pensamento humano... É pena que não sejam mais extensos esses seus luminosos ''ins” aquelas sínteses da luminosa clareza com que você pontua a exposição. No dia em que se fizer o capítulo do Brasil por outro que não Afrânio Peixoto, tem-se que dar a esse educador o lugar que você dá a Montaigne. Não foi um educador, foi uma educação". Ao falar do autor dos Ensaios, Afrânio escrevera: "Montaigne foi, entretanto, mais que um educador, foi uma educação, e, sob este aspecto, em escala bem menor, só se lhe podem comparar duas outras educações: a de John Stuart Mill e, um pouco, a do nosso Rui Barbosa". Sem favor, a eles se reúne Anísio Teixeira, também ele mais do que um educador, pois foi uma educação. A espontaneidade do missivista não fazia menor os seus ensinamentos. E a carta continuava: "Você fez história da civilização fazendo história da educação, e esse é o seu grande elogio, a despeito dos impagáveis críticos nacionais: e se em alguma coisa o livro poderá melhorar, é na acentuação desse aspecto. Por exemplo,

tornar, se é que é possível, ainda mais funda a linha de eficácia, no curso da civilização, da educação não somente pensada mas realizada nos povos. O caso do "milagre grego" e sobretudo do "milagre judaico" são exemplos marcantes desse tipo de educação realizada e não apenas pensada. O caso do cristianismo também, como efeito fundamental de sua organização educacional. Creio que vê onde quero chegar. Mostrar ainda mais vincadamente a educação como causa e fautora da civilização, quando a educação é realizada". O exílio exaltara a clareza e o vigor do pensamento. A carta flui como breve aula e não falta a paixão do educador, e dela não é demasia lembrarmos este trecho: "Mas, o aspecto a salientar seria, entre os antigos, a educação do templo, do altar e da guerra, depois a educação do coração e do amor das grandes religiões universais, 0 "milagre" de Buda, de Jesus, de Maomé, as deturpações e acréscimos dessas doutrinas e a educação resultante, a Idade Média, o Renascimento, a Idade Moderna e Contemporânea, enfim, com as educações resultantes de suas idéias e condições". Se a inteligência continuava brilhante, a alma trazia uma ponta de amargura, que desponta neste final: "Acabara de ler a História da Educação, quando me chegou aquele seu santo breviário do riso. Falta um capítulo a Swift, no breviário, o da educação no Brasil, da História da Educação. Não lhe parece? Mas, será antes amargo, doloroso, e tremendamente triste..." Tinha razão. E, no fundo, a história se confundiria com os próprios sofrimentos do missivista. As confidências minoravam as angústias do exilado. E de Afrânio Peixoto vinha sempre uma palavra de amizade, e de conforto. Sem esquecer os tempos idos, Anísio acrescentara: "Um reparo apenas. O autor sendo quem é, não pode dizer, na página 259, o maior ato do Diretor de Instrução a que se refere ali: nomear Afrânio Peixoto, Reitor da Universidade do Distrito Federal, sob cuja inspiração ela surgiu e se constituiu e contratou professores e ia viver..." A Universidade, entretanto, morreria. E Anísio assim resumiria os anos em que dirigira a educação no Distrito Federal: "Procurei durante perto de cinco anos elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da república e da democracia, distribuí-la por todos na sua base elementar e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores, e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática e eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata. Esta luta encerrou-se em 1936 com a onda reacionária que então submergiu o País. Os nossos insignificantes progressos democráticos pareceram perigosos, e um obscurantismo que se julgaria impossível entre nós determinou um retorno de 180 graus na roda do leme nacional." Mais um ciclo de sete anos fechara-se na vida de Anísio. A tranqüila solidão do interior foi oportunidade para avaliar a estrada duramente percorrida. Publicou então "Educação para a Democracia", síntese do trabalho desenvolvido no Distrito Federal. "É um livro vivido dia a dia, porque fundamenta e expõe uma obra ainda mais vivida, intensa e afanosa." De fato, "o jornal de um trabalhador desassombrado de quatro anos..." Escrever era a maneira de perpetuar. Quando o lutador retornaria à arena? Fernando de Azevedo, lamentando estivesse Anísio afastado do convívio dos amigos, dizia-lhe, talvez para o animar: "Nós, geralmente, nunca vemos com bastante nitidez os homens e as coisas no tumulto das lutas políticas e no atropelo da administração, e raramente se consegue ser observador objetivo dos fatos em que se é ator apaixonado. De minha parte, reconheço terem-se sido utilíssimas essas voltas periódicas à solidão, que é, para homens como nós, a oportunidade feliz para esses "encontros consigo mesmo", em que o indivíduo, dando o balanço às suas forças e aos resultados de seu trabalho, se habilita melhor à disciplina de sua vontade e de suas energias para a vida de ação." Naquela hora de angústia, as observações caíam como azeite derramado sobre um mar encapelado. Em seguida repetia a estrofe de Lamartine a d'Orsay: J'ai vecu pour la foule, je veux dormir seul." Lograria Anísio sobrepor-se às injustiças e amar a solidão? Aos poucos, em meio ao isolamento do sertão, o asceta se humanizava, tornando-se compreensivo diante do mundo. A Afrânio Peixoto, que lhe escrevera falando daqueles dias agitados, ele respondera com suavidade: "Sarado de ilusões, com os olhos renovados para o quotidiano", perdi a minha dureza ascética e sou hoje um homem enternecido diante da vida. Chaque homme porte en soi la forme entiére de l'humaine condition. Esta palavra de Montaigne me tem servido para reduzir a minha mágoa a seus limites exatos e fugir de insistir na sua insignificância. E por isso mesmo a me abrir os olhos para o espetáculo dos outros

homens a que me liga um destino absolutamente comum e a que faltam, bem mais essencialmente, as consolações de viver." Na medida em que depunha as armas, o combatente adquiria nova visão da vida e dos homens. E, de algum modo agradecido, ele continuava: "Muito mais comblé do que méconnu eu me sinto, depois de tudo, o homem mais afagado da sorte que se poderia imaginar. Satisfazer-me esse estado de espírito, porque tinha horror de me tornar um desses espíritos aigris tão comuns em nosso rarefeito ambiente social." A conformidade pousara no espírito de Anísio. Havia, porém, mais alguma coisa para se sentir "o homem mais afagado da sorte": em breve Ihe nasceria um filho. Emocionado, dizia: "Reentregue à família de que me afastara o meu terrível noviciado de vida pública, esperando feliz e apreensivo a difícil fortuna de um filho, eu me descubro com aquela 'vida integral' de que v. fala..." Afagava a felicidade reencontrada. E dizia devê-la aos inimigos: "Separado de ilusões e de febre... o mundo talvez tenha perdido um fanático, mas ganhou um homem feliz. Se os nossos inimigos soubessem o bem que nos fazem... Sou hoje um homem que se pode entusiasmar sem se cegar, que pode dar sem se perder, que pode ver o extraordinário sem esquecer o quotidiano, e tudo isso devo aos meus amabilíssimos inimigos. Como é fácil amá-los das alturas onde eles me puseram..." Afinal era a vida com os seus altos e baixos, ilusões e realidades. Estas eram simples, e Anísio as vivia com alegria. A Lobato ele não se esqueceu de comunicar o feliz acontecimento - era a sucessão das gerações, e novos Teixeira viriam continuar a caminhada dos velhos Teixeira e Spínola. "Devo hoje ir receber Emilinha na ponta do trilho mais próxima. Esteve na Bahia às voltas com o médico e o dentista. Avalie o que não me veio mandar esse ano de deserto! Um filho, nada menos que isso. E eu que sonhava sempre uma liberdade meio aventureira, meio romântica... As duas possíveis mãozinhas que vêm aí me enraízam... Sou árvore, Lobato, sou árvore... As cousas passarão por mim, mas já não poderei ir ao encontro delas... A vida nos domestica." E, mudado, Anísio pensava em "mergulhar no primitivismo sólido da terra." Para acalmar o "cabritozinho do espírito", Anísio deixou surgir ao lado do criador de bois e vendedor de lenha um apaixonado tradutor de grandes obras. Afinal, era a maneira de carrear uma pedra para o futuro, consolo que sobrenadava em meio às decepções. Na ocasião, ele se imbuíra da idéia de que nada mais útil, para a formação de "uma mentalidade lúcida e crítica", do que a divulgação da História, nas suas linhas gerais, "em suas lições fundamentais, em sua filosofia." Escreveu então a um amigo: "Humildemente já me atirei à tradução do Outline of History, de Wells. São 1.200 páginas quase milagrosas de clareza." O trabalho caminhara rápido, e ele comunicou a Lobato: "Terminei o Wells - o Outline — e a impressão que tive ao terminar, foi a de ter roubado o leitor... Não calcula o arrependimento de não o ter deixado em suas mãos!... Às vezes, sonho que Você poderia corrigir. Mas, corrigir é pior do que traduzir... E o livro é uma tal visão global do mundo, uma tão estimulante apresentação do drama humano, que só Você, entre nós, a deveria reapresentar em português, aos nossos brasileiros. Não, traduzir é tão arte quanto escrever, e só escritores o devem fazer. E eu, positivamente, não sou escritor.” Observação modesta e inexata, pois, nele, pela clareza da inteligência, o escritor era inseparável. O sertão revigorara-o. "Sou todo brotos e disposição para o trabalho", informou a Lobato. Havia algum tempo ele se aproximara de Octales Marcondes Ferreira, a quem se devera haver salvo a malograda editora de Lobato, transformada numa das mais importantes editoras do País. Octales possuía o gênio do editor, e reuniu em torno dele, para o ajudar, inteligências como as de Monteiro Lobato, Anísio, Fernando de Azevedo e Henrique Cavalheiro, para lembrar apenas algumas. Para ele, Anísio era "um dos esteios da Companhia", e incentivou-lhe o sonho da tradução de livros fundamentais destinados a nutrir a cultura nacional. Em meio à solidão sertaneja, Anísio cercara-se de autores famosos — Dewey, Russel, Wells, Lobato... Aos estrangeiros ele imaginava traduzir, e entre estes, no primeiro plano, estava The shape of things to come, de Wells, que tinha como um dos seus manuais. E enquanto aguardava The mansions of philosophy, de Durant, lia a sua História da Civilização. Verdadeiramente muito pouco para o espírito habituado às grandes aventuras das inteligências. Também os amigos, vencidos os primeiros tempos, acreditavam chegada a hora dele retornar. Fernando de Azevedo escrevera-lhe sem rodeios: "Quero

juntar o meu apelo que já Ihe foi feito, ao que me informaram amigos, para terminar o seu retiro voluntário. É preciso, e agora, oportuno, que V. volte às suas atividades, no jornalismo e na educação, no Rio ou em São Paulo. A sua longa permanência no interior, longe do grande centro, em que deixou tão profunda impressão do seu pensamento e de suas iniciativas admiráveis, não conseguiu apagar nem a lembrança de seus serviços, nem o reconhecimento de seus méritos excepcionais. Todos aguardavam a oportunidade de sua volta ao campo de ação e de lutas, em que ficamos em número tão reduzido e em que a sua ausência do Rio só contribuiu para uma apreciação mais justa de seus notáveis esforços pela solução dos problemas educacionais." Anísio, entretanto, por demais escarmentado, devia ter como temeridade lançar-se ao alto mar da "grande aventura." E, em vez de retornar ao amargo e "terrível serviço público", associou-se aos irmãos Jaime e Nelson num empreendimento para a exploração e exportação de minérios. Depois de sonhar com altos vôos via-se chumbado à terra dos interesses comerciais. Por algum tempo, ele permaneceria simples observador. E necessitando ganhar a vida, era comum encontrá-lo ao longo do cais, na Bahia, examinando montanhas de minério prestes a embarcar. Certamente não se desinteressara da vida política do País. O intervalo, embora doloroso, ou talvez por isso mesmo, permitira-lhe repensar o País, a educação, os seus problemas. Deflagrada a sucessão presidencial com as candidaturas de José Américo e Armando Salles, ele mandou a Hermes Lima longa carta, cheia de observações. Dizia a certa altura: "Somos, por ausência substancial de instrução - é preciso sempre lembrar que não tivemos nem ensino secundário, nem universitário — um País sem moralidade de idéias, sem inteligência de conseqüências, com uma vida social sem lógica, sem ordenação, sem sentido ideológico. Esse aspecto se revela em nossa usual observação de que nada tem conseqüência no Brasil, e no espanto do estrangeiro ante o sentido diverso que os fatos e os atos têm aqui entre nós. Diverso do da Europa, do da América, de todos os países de civilização similar." E analisando as forças que, afinal, aglutinavam a sociedade em meio a essa inconsistência, dizia: "Se fosse só isso, porém, o Brasil não poderia durar. Qualquer cousa substitui essa falta essencial de moralidade e seriedade social. E essa qualquer cousa é a nossa doçura, a nossa bondade, o nosso conceito privado de moralidade. Somos o País da amizade pessoal. Substituímos a estrutura ideológica coletiva da sociedade, a moralidade de idéias, a moralidade do interesse geral por uma base afetiva e sentimental." O conceito era severo. Em seguida, indagava: "Como, pois, nessa sociedade, fazer qualquer coisa com idéias e por idéias? Como, pois, fazer o brasileiro compreender que as idéias tomadas a sério reformariam a vida? Como, pois, dar base racional à nossa extraordinária vida social de base puramente afetiva? E esse, meu caro Hermes, o problema em que me debato hoje. É essa a dificuldade que me põe extraordinariamente modesto nas minhas perspectivas de ação social no Brasil." A realidade esmagava o pensador. E alongando a vista sobre as perspectivas prenunciadas em meio à campanha, Anísio, antecipando-se ao que aconteceria, não escondia pessimismo: "Teremos de sofrer um pouco para fazer da democracia uma realidade, mas muito mais teremos de sofrer se, por desespero infantil, buscarmos qualquer das duas soluções desesperadas em um País como o nosso, de vida folgada e distâncias sociais quase nulas". A carta é de agosto de 1937. Três meses mais e Getúlio Vargas implantava a ditadura do Estado Novo. Contudo, restava uma ponta de otimismo, reflexo de idealismo: "Sinto ainda, dizia, a grande nobreza da aventura humana e acho que nesta parte do planeta que chamamos Nossa, essa aventura poderá tomar um matiz muito simpático e talvez importante. A nossa contribuição ao sentimento de fraternidade racial me parece particularmente marcada. E depois há qualquer cousa de muito mais poderoso que nós — é a nova geração. Devemos pensar e ajudar, se possível — para que ela faça melhor do que nós." Sinal de continuar confiante na educação. A presença do Estado Novo afastou qualquer possibilidade de Anísio retornar então a educação: o longo exílio amargurava-o. Deixara inclusive de escrever aos amigos, e esse estado de espirito perdurou até Ihe nascer a segunda filha, Ana Cristina, em janeiro de 1939. Em fevereiro ele comunicou a Fernando de Azevedo: "... vim procurar aqui na Bahia repouso e alívio para uma situação de espirito que já se ia tornando de certo modo difícil de tolerar. Não direi que a encontrei. Pelo contrário, os períodos mais longos de meditação antes me reaqueceram a consciência de uma crise que aí o trabalho não me deixara tomar

conhecimento. Envolvido por uma onda de perplexidade e quase de irritação, não escrevi durante esse período a ninguém. Só outro dia retomei a minha correspondência." Ainda uma vez as emoções da paternidade sacudiam-no. E a carta prosseguia: "Foi com efeito o nascimento a 30 de janeiro de uma segunda filha - a Ana Cristina - que me veio de certo modo curar. Colhido pelo dramazinho elementar mas forte do nascimento de uma filha, retomei os meus contatos com a vida e me senti mais apto a sofrer-lhe as terríveis imposições que ela me vem fazendo ultimamente. Durante todo esse longo tempo pensei fundamente em V., de que tive rápidas noticias pelo Octales... O meu silêncio foi muito mais um desses silêncios de íntima comunicação e solidariedade em que por vezes se deixam cair os amigos, mesmo na presença um do outro, do que de esquecimento ou distância. Agora, porém, que a chegada de uma filhinha vem de certo modo renovar-me na coragem, no dever de viver, apresso-me em Ihe vir pedir as noticias, e levar-lhe mais expressamente a certeza de uma solidariedade que nem por um momento Ihe faltou em toda essa longa ausência e em toda a sua dolorosa provação. Os meus votos - votos de coração - são para que o seu espírito de tudo triunfe e saia ainda mais robusto, se possível, para a luta sem tréguas que representa o ideal de uma vida de serviço como o que Ihe empolgou. Há um preço definido a pagar pela vida. Mas esse custo da vida sobe a alturas astronômicas quando escolhemos para essa vida o ideal mais alto." Certamente, falando ao amigo, Anísio falava de si próprio. Quem mais do que ele pagara alto preço pelo ideal? E, voltando ao berço que o reanimara, concluía com ternura: "E se Ihe pode ajudar a V. o saber que um pobre diabo como eu redescobre motivos de entusiasmo nos elementares e sadios deveres da família, colhendo nos olhos espantados e cândidos de uma criancinha de quinze dias lições que já não encontrava em minha inteligência - aqui Ihe deixo essa humilde confissão..." Em meio às incompreensões e sofrimentos, Anísio reunia forças para a caminhada, na qual desejaria ter permanecido. Aos poucos, porém, a vida desviara-o, e ele não escondia certo sentimento de culpa. "Sinto - escreveu mais ou menos por esse tempo - com efeito que vou sendo arrastado para setores completamente diversos dos em que batalhei e vivi até hoje. E que não resisto devidamente. Antes me deixo levar como se me agradasse a fuga que as circunstâncias me prepararam e me facilitaram." Não Ihe era grato esse distanciamento da "velha causa", cujo lugar via tomado por outras obrigações, outros deveres. Que Ihe restava, no campo das atividades da inteligência, senão as traduções? "O único contato — diria ele a Fernando de Azevedo - que guardo com a nossa antiga profissão de fé é das traduções que tão pouco me satisfazem, por isso mesmo que não sou um escritor, mas antes um professor e, talvez, um homem de ação." Na realidade, era-o acima de tudo. Dizia o seu amigo Jaime Junqueira Ayres que ele tinha o braço ligado à inteligência, pois os seus pensamentos logo se transformavam em ação. Foram anos de provação. Principalmente a guerra, e quanto representava para a civilização, punha negras nuvens no espirito de Anísio. "A destruição material imensa será o menos, dizia. O pior é a sementeira de ódio, é a deterioração humana que uma catástrofe desta natureza produz. Adeus jovialidade americana, adeus saúde mental americana, adeus delicados móveis morais, adeus tudo o que faz da civilização algo doce e calmo e pacifico..." O horizonte parecia-lhe cada vez mais negro, pois, a todas essas aflições, somava-se o processo contra Lobato por causa da campanha em favor do petróleo brasileiro. E diante do amigo perseguido Anísio evocava o Albatroz Cativo, de Baudelaire: "Exilé sur le sol au milieu de huees. Ses ailes de géant l'empechint de marcher." Por mais que buscasse disfarçá-las, as mágoas de quando em quando afloravam. No inicio de 1941, afligira-o sobremodo o processo contra Lobato, por causa da campanha do petróleo. Angustiado, ele escreveu a Fernando de Azevedo: "Não costumo pedir aos homens nem justiça, nem generosidade, pela clara visão dos seus próprios interesses. Parece, contudo, que, isto, exatamente, é que Ihes é mais difícil darmos... Vivo hoje afastado de tudo e só de quando em quando o ruído assim de uma injustiça maior me chega aos ouvidos... Somo esses ruídos a todos os outros anteriores e confesso que vou com eles confirmando uma amarga filosofia a respeito do Brasil." Ruídos a que se acrescera o desligamento da Editora Nacional. Era uma rutura. "O desligamento que conclui com a Editora,

que era a minha pequenina ponte para o mundo, chocou-me mais do que poderia imaginar." Dia a dia era maior o isolamento. Pouco mais tarde não conteria esse desabafo, em carta para Fernando de Azevedo: "Ando ansioso por chegar até aí, pois, a despeito do meu poder de adaptação, vou sentindo o cansaço de uma vida sem estímulos intelectuais nem contatos inspiradores. E às vezes, diante do espantoso de nossa época, apanho-me humilhado pela condescendência com que me venho habituando a viver aquém das suas tremendas responsabilidades." No fundo era o remorso do combatente, refugiado na atividade comercial. Não pararam aí as amarguras. No início de 1944, faleceu D. Ana, e Anísio abriu o coração ferido: "Tenho a impressão que vamos morrendo com os nossos mortos. Eles partem levando-nos também um pouco e sinto, com a morte de Mamãe, que já não estou tão longe quanto por vezes a nossa inocente despreocupação de filhos nos fazia crer da grande viagem. Vinha ultimamente envelhecendo depressa, mas a perda de Mamãe me envelheceu de séculos. Já me sinto meio espectador de certo modo alheio à emocionante confusão da vida, como quem já vai tendo os olhos mais voltados para os que ficaram na estrada do que para os que prosseguem a viagem. Isto já é um pouco morrer..." E concluía com amargura: "Como se precisa de bravura para sofrer a vida". Por algum tempo, até 1945, as atividades do homem de ação voltaram-se para a iniciativa privada, como comerciante e exportador. A guerra estimulava o negócio, e Anísio tornara-se próspero importador de material ferroviário e exportador de manganês. Não o desagradava de todo essa face do homem de ação. Observou Hermes Lima que ele o fizera "com o mesmo fervor e dedicação com que dirigia serviços de ensino." Ele próprio diria das atividades do comerciante: "Com uma filosofia que procura não distinguir pensamento de ação, achei a chamada vida prática tão sedutora quanto a chamada vida intelectual. Foi uma bela ocasião de demonstrar a mim mesmo que vencera, realmente, os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espirito..." Até 1946, estimulado pelo "dever de viver" encontrado nos olhos "espantados e cândidos" da filha recém-nascida, Anísio continuaria na faina prosaica do comerciante no rumo da prosperidade. Embora não o dissesse, evitando recriminações contra a vida e os homens, ele tinha nítida consciência de que representava estar confinado a atividades muito aquém da contribuição que podia dar. Testemunho das cicatrizes que Ihe marcavam a alma são estas palavras a Lobato quando das perseguições do Estado Novo. "Sei que somos fortes, escreveu-lhe Anísio, e que acidentes piores do que o sofrido por você nos deixam, aparentemente, sem mancha nem mossa... Mas, só aparentemente. Na realidade, uma prega se inscreve mais em nosso tecido da vida e perdemos um pouco de nossa elasticidade, elasticidade de que precisamos para reagir aos acidentes futuros..." Sim, aparentemente... No fundo o "exilado" sofria. Além dos problemas pessoais, o destino do mundo inquietava-o. O fascismo, o hitlerismo, a guerra, tudo contribuía para atormentar o espírito do liberal. Anísio a Fernando de Azevedo: "Para onde vamos? Sinto em mim algo da atitude que devia esmagar um romano que via seu império sucumbir ao assalto de forças mais novas e menos civilizadas. E depois da débâcle virão as conseqüências da débâcle, que são bem mais terríveis que o próprio desastre". E alguns dias mais tarde: "Sou o menos determinista histórico que se pode ser - mas ando assombrado com a fraqueza misteriosa da consciência humana. Alguma profunda modificação se operou dentro dessa mesma consciência para que ela não reaja tão inexplicavelmente aos acontecimentos... Fica-se em dúvida se algum obscuro determinismo não preside na realidade a confusa agitação humana. Está certo que determinismo existe, mas a minha perplexidade é de referência à sua dirigibilidade. Por um lado a Alemanha nos fortalece a convicção de que a história pode ser fabricada voluntariamente. Por outro lado os aliados nos fazem crer no destino e na sua inevitabilidade..." Além da família, as cartas dos amigos marcavam os poucos momentos de alegria. Afrânio Peixoto, que retornara havia pouco da América, era dos que melhor sabiam exorcizar o desalento. Anísio a Afrânio: "Aqui me chegou a sua lembrança magnífica da passagem pela América. É uma edição do pensamento de Dewey de pôr água na boca de um descrente, quanto mais de um devoto como eu desse profeta da democracia. Afrânio, Dewey, América... tudo isso junto me pôs nos olhos aquela quentura que sobe. Felizmente há todo aquele pedaço do

mundo cheio de saúde em um planeta perdido de insânia... E isto ajuda-nos a crer na humanidade e... em nós mesmos... Ando aqui em nossa Bahia procurando absorver-me em fazenda, em bois, em negócios. Mas o anestésico é fraco. Vou indo, porém. A "obrigação" bem. Marta, uma graça. Ana Cristina, uma promessa de graça. Emilinha, mãe deliciosamente consumida e feliz." Era o retrato de um raro instante de ventura. Nada havia, porém, a fazer senão adaptar-se à realidade. Talvez custoso, mas inevitável. E na medida em que o tempo passava, Anísio se sentia enleado pela maneira bem mais oriental dos baianos diante da vida. Por algum tempo fora a Bahia ponto de encontro de navios vindos de todos os continentes, e aí ancorados ou cremados durante meses. Criara-se o hábito de não haver pressa — as coisas se resolviam tangidas pelo tempo. Curioso e importante é este depoimento de Anísio, em setembro de 1940: "Vivo na Bahia uma vida tão baiana que, insensivelmente, me vou sentindo afastado do presente e do futuro e preso a não sei que encanto da inação e do passado. Porque a Bahia, como já Ihe tenho dito várias vezes, é uma terra que já chegou e que nada mais espera senão conversar e sorrir tolerante e displicentemente sobre a vida... Penso que guardadas as proporções, o ambiente em que se vive, na Bahia, tem algo de comum com o clima moral e mental da China, ou da Grécia ao tempo da ocupação romana... A ação e o trabalho, a luta, enfim, passou para o segundo plano, é qualquer cousa que se faz porque não se pode de todo deixar de fazer. O que importa, porém, o que dá prazer e acende nos olhos a alegria de viver não é o triunfo, nem o êxito — mas a conversa fiada, o comentário ocioso e amável, o convívio humano pelo convívio humano. Neste sentido, tenho que a Bahia é uma das terras mais civilizadas do mundo - tão civilizada que já não cogita de civilizar-se..." O torpor amortecia o ímpeto do homem de ação. Certamente, um contraste com o imaginado pelo missionário, que, enleado pelos encantos da "conversa fiada", confessava com humildade: "Para quem já trazia em si, como eu, um grande e decepcionante desconsolo pela ação, esse ambiente baiano tem o encanto e o poder repousante de um banho morno... Deixamo-nos quedar na paz e na tranqüilidade dessa remotíssima Bahia, como em um colo amigo, fechamos os olhos e nos pomos a dormir. Às vezes dormimos e sonhamos. Os temperamentos como o meu, porém, que são impermeáveis ao sonho, dormem apenas..." Para Anísio a época era mais de pesadelo do que de sonho. Também Fernando de Azevedo estava mergulhado em decepções: desejava mudar de alma. Era o impossível: "coelum non animun mutant...'', dizia ele a Anísio, para acrescentar: "O que desejaria é fugir de mim mesmo' esquecer-me, para reviver. Se pudéssemos sair de nós e voltar a nós, quando fosse agradável ou necessário!" E nesse oceano de pessimismo, ele deixava sair um grito de angústia: "É preciso aprender a morrer na cruz todos os dias." Não diferia muito o estado de espírito de ambos. Os amigos, aliás, jamais se conformaram em vê-lo posto à margem inaproveitado pelo serviço público, ele que tanto devia contribuir para melhorar o País. Lobato, dos mais revoltados, dizia ao próprio Anísio: "O fato de Anísio Teixeira ter ficado anos no Brasil parado, afastado da ação pública, já forçado a empregar seu gênio numa função de comércio, coisa ao alcance de qualquer galego, foi o que mais me deu a medida do 'fracasso' que somos como povo e como País - espetáculo tão triste que me levou, na velhice, com todos os meus cabelos brancos, a mudar de terra, a fugir para não presenciar uma decomposição progressiva e irremissível." Para o clan dos Teixeiras, o exílio fora fecundo, e mais dois filhos, Carlos e José Maurício, haviam chegado para a alegria do pai enternecido. Era o que ele chamava a minha tribo, quatro sólidos tupiniquins." Encantava-o acompanhar aquelas inteligências que desabrochavam curiosas para a vida, e ele espicaçava com os livros infantis de Lobato, as Caçadas de Pedrinho, as Reinações de Narizinho ou Emília no País da Gramática. E ele escrevia ao glorioso autor: "Éramos, pois, todos Lobato em casa. Nada mais líamos. O dia perdia-o eu nas amolações dos negócios. E à noite lia Lobato para a tribozinha apaixonada e sôfrega. Lia e relia, porque a minha leitura tem que ser 'diferente'. Como a de Dona Benta, com explicações, comentários e respostas às perguntas de Baby e à impaciência ansiosa de Marta, diante das questões um tanto 'emílicas' da primeira". Se não de sonho, estas horas seriam de esperança em meio às atribulações. Em breve, porém, o homem de ação retomaria a ferramenta do educador

Inesperadamente, em junho de 1946, a Roda da Fortuna deu uma volta de 180 graus. Entre as alegrias e as esperanças da paz criara-se a UNESCO (United Nations Educational & Cultural Organization), e, por sugestão de Paulo Carneiro, Delegado do Brasil no organismo internacional, Julian Huxley, seu Primeiro-Secretário Executivo, convocou Anísio para colaborar no setor educacional. A notícia chegou-nos como uma bomba - de algum modo era a desforra. Para Anísio era quase inacreditável e ele escreveu a Lobato: "Depois de dez anos de enxotamento no Brasil, ver-me suspenso pelo Huxley e feito conselheiro de uma Universidade do mundo é francamente milagre de conto da carochinha." A alegria mostrava quanto a ferida fora funda. Carlos Lacerda, então redator, no Correio da Manhã, da coluna Na Tribuna da Imprensa, não perdeu a oportunidade para revelar as mazelas do Estado Novo. "Os melhores homens deste País" — escreveu — "ao que parece, são aqui atirados pela janela com uma desenvoltura, uma inocência realmente espantosa. O mais recente caso, e dos mais dramáticos, é o de Anísio Teixeira. Quase um menino quando voltou ao Brasil, de volta das lições de John Dewey, o admirável filósofo da educação democrática, esse baianinho miúdo e franzino, recebeu o encargo de dirigir a instrução pública do Distrito Federal. Em meio às mais duras incompreensões, pôs de pé o Departamento de Educação que, depois, o Estado Novo levou anos a destruir metodicamente com sadismo e com fúria... Para não ser preso como comunista, o educador teve de voltar à sua terra natal, a Bahia, onde se refugiou no comércio como única atividade permitida. Pôs-se a exportar manganês o admirável ensaísta da Educação para a Democracia... O defenestrado Anísio Teixeira teria sido no entanto uma das vozes a serem ouvidas na reorganização do Brasil - se realmente o governo agora estivesse pensando em reorganizá-lo." E após esse registro dos fatos, Lacerda continuava: "Quando foram banidas do vocabulário político as palavras 'cultura', 'progresso' e 'democracia', das quais tanto abusam comunistas e fascistas para melhor falsificar aquilo que elas realmente exprimem, foi banido também Anísio Teixeira — o mestre de uma geração de mestres. Ontem, durante a sessão da Assembléia, recebemos a notícia de que Anísio Teixeira foi convidado para Conselheiro de Educação da Organização Educacional e Científica da ONU, sediada em Londres, para onde deverá seguir, em começo de julho próximo, o mestre brasileiro. Eis no que dá o costume nacional da defenestração. O Brasil atirou pela janela mais esse excepcional homem de idéias e de ação. Ia passando um transeunte sôfrego à procura de guias, de organizadores, de mentores espirituais para uma época atribulada e confusa - e agarrou o brasileiro miúdo, franzino e admirável. Esse transeunte era o Mundo." Anísio narrou a surpresa do destino: "... no dia 12 de junho, para ser exato, de volta a Nova York ao meu pequeno hotel na rua 46, encontro uma carta de quatro páginas do Julian Huxley, escrita à mão,convidando-me para ser Conselheiro da Educação na Unesco. Soubera do meu endereço, no dia do seu regresso por avião a Londres, e ainda estivera no hotel duas horas, contando com o meu regresso para o almoço — como não chegasse escreveu-me uma carta relatando como havia andado um mês à minha caça para me descobrir no dia do seu regresso a Londres. E assim me deparei com uma carta do Julian Huxley e um convite inacreditável do Destino para dar uma volta de 180 graus em minha vida." As coisas não haviarn sido, porém, tão simples — entre Anísio e o Mundo havia um mesquinho governo, que tentou evitar o convite. Conta-o o próprio Anísio em carta a Lobato, agora revelada por Cassiano Nunes: "Huxley, escolhido, comunicou ao Paulo Carneiro o seu desejo de escolher um brasileiro para o staff da Unesco. O Paulo deu-lhe o meu nome, creio contou cousas a meu respeito. O Huxley fixou-se em mim. No Brasil, o governo declarou desconhecer-me e indicou dois outros nomes. O Huxley resistiu e deixou o Brasil sem convidar ninguém, pois não me encontrara.'' Talvez inacreditável. Mas, Huxley, diria Anísio, era da Dinastia dos Huxley, dos Darwin, dos Einstein, e não se deixou vencer pela astúcia dos desafeiçoados ao convidado. Em junho acabou encontrando-o em Nova York, e logo Ihe mandou o convite. Nítida, minuciosa e afetuosa, a carta mostra o empenho com que requestava a colaboração, epílogo de insistente procura.

"Nova York, 12 de Junho, 1946 Prezado Sr. Teixeira, Andei tentando entrar em contato consigo no mês passado, desde que chegara ao Rio — e agora descobri que está aqui, mas no mesmo dia tive de voar de volta para a Inglaterra! (Espero que seja o Dr. Teixeira que eu estava procurando, pois parece não ser este um nome raro, e já me enganei uma vez em Nova York. Suponho que seja o Dr. Teixeira que estava no Ministério da Educação no Rio e que mais tarde se mudou para a Bahia.) Atualmente sou Secretário Executivo da Comissão de Preparação da Unesco (Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas), e estou tentando organizar um Secretariado. Todo o mundo me garantiu que seria a melhor pessoa possível que poderíamos conseguir na América Latina para a Seção de Educação, e minha carta tem por finalidade oferecer-lhe o posto de Conselheiro em Educação. Isto significaria um salário de £ 1.500, isento de impostos britânicos e com um futuro auxílio-residência de £ 1,10 por dia (no caso de haver qualquer dificuldade em termos de salário, estou certo de que pode-se fazer um acordo). O trabalho seria ajudar na Seção de Educação, na elaboração de um relatório que sirva de plano para a agenda da I Conferência da Unesco em novembro, em Paris. No momento, estamos instalados em Londres, mas nos mudaremos para Paris no final de setembro. O Dr. Kuo, chinês, chefia a Seção de Educação e temos também uma senhora mexicana, Dra. Elena Torres, na seção, assim como um dinamarquês e um assessor haitiano, além de um Consultor Britânico (Dr. Lauwerys); e provavelmente acrescentaremos ainda um francês. Além disso, meu substituto, Dr. Wilson, foi Professor de Pedagogia em Harward e conhece a educação nos EUA. Se puder vir, esperamos que o faça o mais breve possível — por volta de 1° de julho se puder. Embora a nomeação seja válida, formalmente, para somente até o final do ano, qualquer membro da equipe da Comissão Preparatória terá sem dúvida a certeza virtual de uma nomeação permanente, se seu trabalho for satisfatório. Como tudo o que a Unesco pode realizar é de tal importância, espero que se disponha a juntar-se a nós nessa tarefa. Uma vez que estou de partida esta tarde, poderia entrar em contato com nosso Conselheiro Presidente junto à ONU, Monsieur Deschambeau (da Bélgica) no Hunter College—não tenho agora seu número de telefone, mas suponho que seja Melrose 5-4701, extensão 403 — para discutir certos assuntos com ele, caso necessário? Se você voltar antes de 3:15, estarei em Parklane — Winchester 24100 ext. 15D — e depois em Laguardia até a hora da saída, às 6 h. Desculpe-rne por essa nota escrita às pressas. Atenciosamente, Julian Huxley." Convocação tanto mais irrecusável quando vinha de um dos papas da cultura universal. Anísio cuidou de arrumar os negócios e fazer as malas. Ele, que não sonhava, ia carregado de sonhos. Em pouco pausara no Hotel Magestic, Avenue Kliber, Paris. Estava no centro do mundo, que o recolhera quando atirado pela janela. De todos, o mais exultante seria Lobato, então em Buenos Aires. Ele a Anísio: ''Aqui me chegou a notícia da Meridional sobre o convite de Julian Huxley para que vás funcionar como matéria cinzenta num dos lobos cerebrais do mundo— e exultei!... Agora me sinto contente, ao ver que Anísio 'foi chamado a servir', não à pátria chica, que não o quer, mas à humanidade. E radiante de alegria, aqui das margens do Prata eu te abraço radiante". Não apenas Lobato — todos nós, amigos de Anísio, sentíamo-nos desagravados. Anísio recordou essas horas de esperança: ''Voltava de novo, disse ele a Odorico Tavares, à atividade pública depois de sete anos de recolhimento na província. Este ano de 1946 constituiu, graças a isto, um rendez-vous com o mundo. Sob a liderança de Julian Huxley, a Organização Mundial para a Educação, a Ciência e a Cultura iniciava os seus primeiros passos com ambição e desassombro, justificando a legenda com a qual Gide a imaginava inspirada. Gide tomara de Virgílio este verso, para indicar-lhe a rota e a responsabilidade: Cessi, et sublato montes genitores, petivi. (Encaminhei-me: e, tomando toda a carga do meu patrimônio, procurei alcançar as alturas.)'' Os sonhos eram grandiosos, e também efêmeros. Anísio imaginara a Unesco como o "supremo Ministério da inteligência e da cultura, com o perfeito entendimento entre os povos...'' Não demorou em se dissuadir: ''Depressa vimos,

porém, que mais uma vez a vontade dos povos não se realizaria. A guerra fria, que se iniciava, logo progredia, e a Unesco, no fim do primeiro ano de trabalho, recolhia as asas que tentara estender, aprisionada em um orçamento menor do que o que iria gastar nesse mesmo ano, em pesquisas atômicas, a pequenina Suíça''. Desalentado, ele pensou em voltar ao Brasil, e deu conta desse propósito a Lobato, que o desaprovou inteiramente. Como abandonar o ''cérebro do mundo''? Para Lobato era incompreensível. Estava-se em janeiro de 1947 quando Anísio voltou a escrever a Lobato: ''Pouco antes de deixar Paris, recebi sua carta e posso Ihe dizer que você, mais uma vez, determinou a direção de minha vida. Estava em pleno labor elaborativo a respeito do meu trabalho na Unesco e, confesso inclinado a me encaramujar na Bahia cuidando da criação de quatro teixeirinhas. Sua carta sacudiu-me como uma rajada de vento e resolvi ficar''. Ao que acrescentava: ''Vou ficar mais algum tempo. Pensar é uma cousa, realizar um pensamento outra. Nada exige tanta paciência e tanta ciência do possível. Vou ver se não sou eu que estou errado com a minha impaciência wellsiana... O Huxley declarou-me que desejava muito conservar-me e sua carta acabou o trabalho. Deixo uma vida privada que começava a ser interessante e vou ser funcionário intelectual do que você chama o cérebro do mundo". Em seguida, dava impressões sobre a Unesco. "Lendo e relendo a sua carta, comparo-a às cartas de namorados sobre o casamento. A vida conjugal, entretanto, é tão diferente! Dá-se um pouco o mesmo com a Unesco. Amar a Unesco é uma cousa e casar com ela outra. Com sete meses de vida marital, andava triste e desconsolado". A reconciliação seria, porém, passageira. Mal desembarcou o Queen Elizabeth, em Nova York, Anísio mudou de opinião. Comunicou a Lobato: “Em New York pus os pés em terra. E senti que eles não tinham a leveza que supusera em pleno mar — cinco paralelepípedos os amarravam ao chão. A mulher e quatro filhos. E todas as decisões ruíram" . A Unesco perdera a partida. Desiludido, ele voltara às atividades de exportador de manganês. Tinha em mãos uma fortuna, pois, descobertas as minas da Serra do Navio, delas obteria a concessão. De Nova York ele voou para o Amapá, local das jazidas, as maiores do mundo. A riqueza batia-lhe à porta. Contudo, outro era o seu destino. E ainda no Amapá chegou-lhe o convite de Octávio Mangabeira, que assumia o Governo da Bahia para ser o seu Secretário de Educação. Devia, pois, escolher entre a tranqüilidade da riqueza e as conhecidas atribulações do serviço público, para ele tão ingrato. Falando de Lobato, quando ele morreu, diria pertencer à categoria dos homens caracterizados por serem ''o que são, involuntariamente, como se obedecessem a um fatalismo do destino, era o seu caso — Anísio, para atender a um amigo, tudo abandonava, curvando-se à invencível vocação de servir. Ainda uma vez inconformado Lobato escreve ao amigo: ''Que pena! Entristeci-me melancólica e filosoficamente — mas Anísio tem razão. Antes de reconstruir a educação do mundo é preciso ensinar a ler a Bahia, que é um pedaço do mundo.'' Vencido pelo sonho e pelas velhas ilusões, Anísio deixava a Unesco para retornar à Bahia — o idealista era incorrigível. Luiz Vianna Filho Setembro de 1987

1. A colonização como experiência de transplantação de uma cultura em vias de extinguir-se As nações ibéricas, ao fim da Idade Média, atingiram, na expressão de Ortega y Gassett, em plena adolescência, seu esplendor, ainda sob o Poder Papal, do qual se fizeram o maior sustentáculo como forças militantes da fé católica Ora, esse Poder Papal estava em sua grande luta pela sobrevivência ante a ameaça das forças novas que a própria síntese cultural da Idade Média fizera surgir: as do aparecimento das nações, pela unificação dos fragmentos do poder feudal no poder centralizado das monarquias; as da renovação cristã pela Reforma protestante; as da invenção da tipografia, que pela palavra impressa criou o público e secularizou-o o Estado, e por fim as da ciência, que reorganizaram o trabalho humano. Vivendo exatamente nessa época o apogeu do seu poderio, as nações ibéricas viram-se na situação de não estarem tanto a partilhar do novo período histórico, quanto a lutar e tentar restaurar o anterior. A exploração das riquezas existentes no novo continente e, na parte ocupada por populações primitivas, as descobertas agrícolas e do ouro deram às metrópoles opulência inesperada, que se estendeu em parte às próprias colônias, que viveram épocas a que não faltaram certo fausto característico do tipo aristocrático de civilização ainda vigente e substancial cultura intelectual do tipo prestes a transformar-se. A pequena e valente nação portuguesa, à maneira romana, "fundada e conservada com a espada" na expressão de Ribeiro Sanches1, teve, deste modo, com a aventura dos descobrimentos e das colônias, oportunidade para prolongar a época medieval pós-romana nos territórios tropicais que vem ocupar e aí repetir uma experiência semifeudal da ordem católica que, na Europa, estava sob intenso processo de mudança pela Reforma protestante. Os conquistadores ou colonizadores da Metrópole tinham uma dupla empresa: a da exploração comercial, estendendo o Estado português às novas terras, com o clero, a nobreza e o povo, a isto acrescentando a "escravidão, com o que se fazia recuar o período à Antigüidade, anterior à própria Idade Média na Europa; e a outra empresa, a da cruzada católica-cristã dos jesuítas, de natureza e espirito medieval, ou pelo menos de contra-reforma restauradora, fundada em grande esforço educacional. As duas empresas correm paralelas, com esporádicos conflitos entre os dois propósitos e as duas forças, terminando com a expulsão dos jesuítas no século XVIII e o fracasso relativo do seu programa. Relativo porque do duplo esforço resulta, praticamente, a extinção dos indígenas, mas ao mesmo tempo a população se faz, de certo modo, católica, o uso da língua portuguesa se generaliza pelo vasto território, a convivência das três raças se faz tolerante, graças à miscigenação, e se impõe uma ordem autoritária e consideravelmente sólida e imóvel. Como, no Brasil, a empresa comercial toma caráter especial, por constituir terras a ocupar e explorar, surge projeto mais elaborado de governo para a Colônia, estabelecendo-se um complexo de organização, de defesa e educação que promove a ocupação da terra e aí cria com o seu quadro burocrático de funcionários e soldados 1

Ribeiro Sanches, A. A. Cartas sobre a educação da rnocidade. Ed. L. Lemos, p. 17. Apud Carvalho, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública.

portugueses e o corpo de educadores e intelectuais, um tão vigoroso prolongamento do poder monárquico português, que o mesmo sobrevive à separação pela Independência, e somente se extingue nos fins do século XIX. O poder monárquico, para impedir qualquer desenvolvimento autônomo da terra brasileira, fecha suas fronteiras, torna obrigatória a naturalidade portuguesa dos funcionários, monopoliza o comércio e nega permissão em suas novas terras para a fábrica, a tipografia, a imprensa e a universidade, pondo assim a Colônia em tão estreita dependência da Metrópole, que ela afinal, de certo modo, se integra com a sua nobreza, o seu clero e o grupo de burocratas e letrados todo ele formado na Metrópole - ao pequeno e poderoso Portugal. Fechado externamente para qualquer outra influência que não fosse a portuguesa, isolado dentro de sua imensidão geográfica, a Colônia chegou a poder repelir invasões de outras metrópoles concorrentes à portuguesa, realizando durante três séculos, na solidão desses "tristes trópicos", uma experiência social única, marcada pela extinção da população aborígine, pela escravidão negra, pelo latifúndio e mercantilismo agrário, e por uma burocracia governamental particularmente dura e sem imaginação, mas superiormente organizada e servida por extraordinária estrutura de treino e educação, ou endoutrinação, proposta a uma transplantação cultural vigorosa e planejada. Como o pequeno grupo português de ocupação tinha de crescer para poder servir ao aparelho de exploração e contenção assim criado para o desmedido território, a escravidão Ihe iria dar a força de trabalho, a extinção da população indígena iria remover os obstáculos à completa ocupação, mas só a miscigenação poderia dar oportunidade à expansão da população ocupante. Passa, então, o mestiço do branco com a negra e a índia a gozar dos privilégios da raça branca dominante. O meltingpot racial assim estabelecido vai prover a composição demográfica da elite nascente de um redivivo império arcaico. Mas se estas eram as condições em que se processava a aventura colonizadora de exploração e enriquecimento, a empresa tinha a sua segunda face, a de uma paralela estrutura eclesiástica, que objetiva a expansão do catolicismo às terras da América. Este fato transforma a colonização em extraordinária experiência educacional. A cultura indígena e a cultura negra iriam ser assimiladas pelo intercurso étnico e conseqüentemente social, e a cultura luso-católica iria ser o componente cultural intencional, consciente e dominante do processo de assimilação do índio e do negro e da formação da elite nativa. Por quase três séculos fermentou esse processo de fusão étnica, cultural e lingüística e de exploração comercial, de tudo resultando a extinção quase completa da população indígena, mas também a generalização final da língua e cultura portuguesas. Caso vingasse a empresa jesuítica, com os aldeamentos indígenas servidos pela "língua geral brasílica", articulada e sistematizada pelos padres jesuítas em sua tentativa de cristianização dos indígenas, seria o novo país uma nação indígena, a coexistir com a elite branca (na realidade mestiça) dominante. O que vingou, contudo, foi o projeto do crescimento da elite pela miscigenação com as duas raças oprimidas e a assimilação pela população resultante das três culturas do complexo cultural brasileiro, a cultura luso-católica, a negra e a indígena. A despeito da promiscuidade e miscigenação racial, a elite branca luta e consegue firmar-se contra os esforços da Coroa e da Igreja Católica relativamente opostos à discriminação racial. As circunstâncias em que se forma o povo brasileiro geram

permanentemente ambigüidades, senão pluralidades, de planos existenciais, com o choque entre veleidades e propósitos diversos da Coroa portuguesa, dos jesuítas a quem fora entregue o poder espiritual e educativo, da elite colonizadora e da própria elite nativa que assimilava, por vezes acentuando, os valores da elite colonizadora. Seja na questão de discriminação racial, seja na questão da escravidão indígena, registram-se episódios históricos que comprovam ser a comunidade nativa dos "brancos" da Colônia muito consciente de sua posição de elite, já exigindo a discriminação racial nos colégios dos jesuítas, já se erguendo contra a emancipação dos índios escravos, tudo se resolvendo numa estrutura social diversa da européia, que era a do clero, nobreza e povo. No Brasil a estrutura social era a de senhores brancos e os que nela fossem incluídos—e a de escravos (pretos e índios). A sociedade que se implanta na Colônia era, assim, uma sociedade arcaica, de cultura oral, anterior à palavra impressa, fundada na escravidão, no patriarcalismo rural e na burocracia colonial, explorada pelo monopólio mercantilista da Metrópole, com uma superestrutura religiosa de culto dos santos, monumentos religiosos e um folclore suntuoso e colorido de festas e dias-santos, tudo dominado por um quadro clerical de padres letrados, pregadores e educadores, que lembrariam um corpo de intelectuais. O que se estava constituindo dentro da Colônia era uma nova espécie do Estado eclesiástico, apenas com uma elite branca de clero e nobreza, sem o povo propriamente dito, como o entendia a Europa, já mergulhada na cultura tipográfica. O clero, formado dentro do sistema escolástico, escapava algumas vezes ao rigor do padrão hereditário da nobreza. Digo algumas vezes porque, de modo geral, era severo o critério da "limpeza de sangue" (não judaico) e de condições de nobreza para a aceitação do candidato à carreira eclesiástica. A carreira eclesiástica, elevando o indivíduo a categoria equivalente à de nobre, fosse o frade ou freira do mosteiro ou o pároco ou clérigo civil, com os privilégios sociais e econômicos conhecidos e o direito ao exercício dos cargos públicos, era praticamente a carreira única e dominante, sendo, no próprio direito, a lei canônica mais importante do que a civil. A medicina junta-se ao curso de legista, sem modificação maior do espírito de endoutrinação de todo o ensino, pois a própria medicina obedeceria aos conceitos aristotélico—tomistas sobre a natureza. A educação era ministrada em latim, latim da Igreja e da ordem eclesiástica do Estado, não podendo dela decorrer nenhum interesse pelo estudo de problemas novos que a situação real da Colônia pudesse suscitar. Era uma educação dominantemente escolástica e imóvel, idêntica na Metrópole e na Colônia, que somente no fim do século XVIII vem a sofrer o primeiro choque com a reformas "revolucionárias" de educação do período do Marquês de Pombal, que trouxe tardiamente para Portugal os reflexos do iluminismo já dominante no restante da Europa. O próprio uso da língua vernácula portuguesa para a escola só então surge como inovação "revolucionária." Até a segunda metade do século XVIII, em Portugal e, com maior razão na Colônia, na expressão de Ribeiro Sanches, em suas cartas sobre a Educação da Mocidade. “Todo o que não nasceu nobre, ou não é eclesiástico deseja vir a ser membro desses dois corpos respeitáveis, onde a conveniência, a honra, a distinção e o proveito têm ali o seu assento: o lavrador, o obreiro, o oficial trabalham dia e noite para fazerem um clérigo, um abade e um Cavaleiro do Hábito de Cristo; uma viúva e três ou quatro filhos estão fiando dia e noite radiante, para terem um filho frade, pela honra que dará à família, e porque vindo a ser pregador ou provincial, a estabelecerá toda com honra e cabedais.”

Essa é a sólida e de certo modo arcaica tradição que herda a Colônia, em substância fundada na cultura oral em contraste com a cultura tipográfica da palavra impressa, e que vai perdurar até a Independência e mesmo depois; a educação faz-se o processo para assegurar os privilégios de uma ordem social fechada, imóvel e rígida. O tipo dessa educação era o de educação na língua latina, com ênfase na dissertação, na exegese, no raciocínio escolástico e na oratória, o que nos colocaria à altura dos romanos, se essa cultura oral que se expressava pela oratória não aproximasse os colonizadores e os colonizados antes das tribos indígenas da população aborígine, de cujos índios, diziam os jesuítas,citados pelo Pe. Serafim Leite que "eram como os romanos e os mais estimados da tribo, os 'senhores da fala'." A realidade é que estavam unidos pelo mesmo tipo de cultura oral. Temos pois, que sob a guarda de Portugal e a educação dos jesuítas, os apóstolos da Contra-Reforma, a Colônia mergulhava intelectualmente na cultura latina medieval com uma decadente elite nobre, sem sequer a cultura do cavaleiro e combatente, e um clero, com formação estritamente escolástica do período final da Idade Média . O sistema escolar era o da formação do clero ou do legista ou canonista na forma em que a concebia o Ratio Studiorum dos jesuítas, elaborado no século XVI, representando a restauração da Contra-Reforma. Não ministravam a cultura clássica na sua compreensão criadora pós-renascentista, mas em sua rigidez do período oral e formalista, necessária para assegurar a ortodoxia rigorosa da Contra-Reforma e a rígida organização do poder monárquico. Não era, pois, uma cultura humanística que difundiam os colégios dos jesuítas, mas a cultura formal, cristã, lembrando mais S. Gregório do que o Renascimento, servida pela língua latina, ensinada não tanto pela inspiração da literatura greco-romana, quanto pela cultura patrística, pelas escrituras do Novo Testamento e pelo aristotelismo no que podia ter de mais sistemático e imobilizante. Nas alturas do século XVI, transplanta-se assim para o Brasil uma educação que revivia os períodos já decadentes da escolástica, para servir exclusivamente a uma educação estritamente vocacional de padres e legistas, sem outra inquietação que a de conservar e guardar o estado existente das coisas. Não é, pois, exato dizer-se que recebiamos uma educação clássica, mas sim uma educação formal da língua latina e dos métodos de exegese e disputação do fim da Idade Média, métodos que representavam os períodos decadentes da cultura medieval e habilitavam o "intelectual" ao gozo dos privilégios atribuídos ao clero e ao funcionário da Colônia, dentro das estritas necessidades do serviço da imobilidade da Igreja e do Estado, tal como se achavam organizados. A tranqüila aceitação dessa situação criada pela concessão do monopólio do ensino à Companhia de Jesus, pela proibição da tipografia, e pelo desígnio geral de Restauração da Fé, prolonga-se pelos séculos XVI, XVII e XVIII, somente vindo a romper-se na segunda metade do século XVIII, quando surgem as primeiras críticas ao sistema de ensino vigente. Essas primeiras críticas surgem de início no mundo acadêmico, representando controvérsias pedagógicas. Estava em questão, contudo, algo mais profundo, que era a passagem do Estado eclesiástico para o Estado secular, a fim de poder o Estado português adaptar-se às novas idéias e novas condições do século XVIII já reinante nos países mais avançados da Europa. Tais idéias vieram a quebrar a tranqüila aceitação das instituições existentes, fazendo nascer uma nova elite intelectual e política que veio a ser chamada

"elite estrangeira" e de que se fez expressão maior o Marquês de Pombal, fidalgo com longo período de convívio no estrangeiro, sobretudo na Inglaterra, que D. José vem a fazer seu ministro para a reforma radical do Reino não só nos aspectos econômico e financeiro, como nos aspectos educacional e cultural. A luta desse ministro pela reforma do Estado português é uma boa ilustração do fato em que vimos insistindo, de que Portugal representava, na própria Europa, uma estrutura autoritária do poder legado à endoutrinação educacional, sendo as suas "revoluções" sempre revoluções educacionais. Primeiro, o escolaticismo medieval, depois o Ratio studiorum jesuítico. Agora, já no terceiro quartel do século XVIII, a reforma pombalina, levando a Universidade de Coimbra a ensaiar os primeiros passos para a modernização de seu ensino, num movimento que corresponderia, a rigor, ao do espírito do Renascimento, revivido pelo iluminismo do século XVIII. Até então, o pequeno reino vivera envolvido em uma cultura acadêmica correspondente à do período final da Idade Média, agravada pela ênfase em gramática e escolasticismo aristotélico e finalmente pelo Ratio studiorum. O Brasil iria, no começo do século XIX, com a Independência, ver o seu processo de emancipação nacional ser conduzido por graduados de Coimbra que, refletindo a reforma pombalina, já tinham recebido os primeiros contatos com a ciência e com o novo pensamento em efervescência na Europa. Podemos ver que Metrópole e Colônia representavam, ambas, situações culturais e acadêmicas afinal em processo de transformação, sob o impacto das idéias que inspiraram a Revolução Francesa e que traziam dentro de suas conseqüências a revolução e independência das colônias americanas. A educação, como sempre, era o instrumento utilizado para impor o modelo social desejado. O Estado português tinha uma aguda consciência da função politica da educação, seja para impor modelos sociais, seja para transformá-los. A universidade reformada de Coimbra e a universidade napoleônica da França são agora as duas influências intelectuais a se estenderem sobre a Colônia.

2. A centralidade da educação no projeto colonial A sociedade colonial compreendia os aborígines, os negros importados e os brancos imigrados. Esses três grupos representavam camadas sociais, cada uma delas com a sua subcultura - a dos brancos era a dominante. Os índios, quando não eram escravizados, recebiam uma educação de evangelização nos seus próprios aldeamentos, sob a guarda e proteção dos jesuítas. Os escravos eram educados pelo trabalho forçado e vida nas senzalas. O branco recebia uma educação escolar de qualidade, baseada no saber medieval greco-latino, em sua interpretação teológica ou aristotélico-tomista. A Colônia, logo se organizou, dispôs de uma elite representativa dessa cultura superior: a dos padres jesuítas e, secundariamente, de outras ordens religiosas e a dos donatários e funcionários do governo português. A emigração portuguesa para a Colônia, salvo a pequena parcela dos degredados, era de aristocratas, funcionários e padres, com a sua seqüela de ambiciosos e exploradores mercantis, que não podiam ser considerados ineducados. A transferência, assim, da cultura intelectual portuguesa existente na Metrópole para a Colônia foi, deste modo, uma transplantação, havendo em ambos os lados do Atlântico, uma mesma estrutura intelectual e uma mesma compreensão da vida e dos seus problemas, mantida a Metrópole como centro originário dessa cultura. A diferença era a da estrutura econômica da sociedade e a da proibição das instituições suscetíveis de promover mudança cultural—a universidade e a tipografia, ou seja, a imprensa e o livro. A estrutura econômica era a do trabalho escravo, sob a camada da elite branca. O problema dos índios se iria fazer, de certo modo, problema especial ante a ação jesuítica, que levantou a idéia de sua liberdade, em face do propósito de sua escravização em massa. Para isto, organizaram-se os aldeamentos, que consistiam em concentrações de índios domesticados, sob a guarda e proteção dos padres. Esses aldeamentos vieram dar aos jesuítas posição de grande poder, imputando-se a Vieira a frase que teria escrito ao Bispo do Japão: "Quem for senhor dos índios o será do Estado." Sem nos estendermos sobre essa segregação dos índios sob a proteção dos jesuítas, cumpre salientar os aspectos criados para a estrutura social. Os propósitos confessados dos aldeamentos eram os de "facilitar aos índios o ensino da catequese, a aprendizagem social do trabalho, e a sua conservação como elementos úteis de defesa das vilas e cidades", em cujas cercanias se estabelece os aldeamentos. Temos, pois, que a sociedade se organizaria em um escalonamento que lembraria o das castas orientais: clero, nobreza, misteres ou artesãos, escravos—e os índios, como reservas humanas, para a defesa da cidades e vilas. Todo esse projeto representava um empreendimento centralizado em um grande e deliberado esforço educativo. No século XVII, quando a Colônia já dispunha de vice-reis e dos respectivos quadros de nobres e funcionários, de igrejas e colégios e de estudos desenvolvidos, de considerável tráfego marítimo e de abundantes engenhos de açúcar, a tudo isso veio acrescentar-se o plano dos aldeamentos dos índios, que representavam experiência

social e educativa nova e significativa. Os índios, considerados em minoria social iam passar a constituir um grupo segregado sob a guarda dos jesuítas. Impossível não reconhecer que essa ação da Companhia de Jesus visava a proteção dos índios contra a escravidão direta mas, desde que a instituição da escravidão era aceita e estabelecida, foi fácil considerá-la medida de política de poder da Companhia de Jesus, a qual passaria a dispor da população indígena para se constituir Senhora do Estado e daí o combate e posterior destruição dos aldeamentos. O episódio ressalta a estrutura toda especial da sociedade: senhores e artesãos livres (elite branca), escravos e a casta dos indígenas (em minoria social). Em rigor, a estrutura não era sequer a da Idade Média a não ser que considerássemos os índios dos aldeamentos jesuíticos como servos, o que não era completamente exato, pois constituíam setor segregado da sociedade. Sobre esta sociedade pairava a elite, cuja cultura intelectual era claramente a da Idade Média e comum com a da Metrópole, compreendendo a formação teológica e de letras latinas do clero e dos legistas, canonistas e médicos, que se iriam graduar na Universidade de Coimbra, que era tanto a universidade da Metrópole quanto da Colônia. Essa Universidade de Coimbra, herdeira da Universidade de Paris na França, e da Salamanca, na Espanha, assemelha-se às universidades da época, passando no século XVI ao controle dos jesuítas, que representavam a cultura latina e católica do tempo na área ibérica. Como estava a serviço da Contra-Reforma e da Inquisição, iria constituir centro de cultura mais caracterizadamente estacionária, da qual somente iria sair ao fim do século XVIII, com a reforma pombalina, inspirada no iluminismo daquele século. Vale observar que essas reformas de educação do Marquês de Pombal são recebidas na Colônia como as da destruição do sistema de educação existente e objeto de resistência talvez maior do que a encontrada na Metrópole. O isolamento e segregação da Colônia tornavam as suas condições sociais e culturais, apesar de tudo, retardadas sobre as da Metrópole. Para compreendermos o que se passava na Colônia é necessário ter em vista, conforme já acentuamos, um paralelo com as civilizações da Antiguidade. Só então seria possível a distância existente entre a cultulra popular de índios e escravos e a cultura intelectual da classe dominante. A Colônia lembraria o contato entre os romanos e as populações européias que vieram a conquistar, caso os romanos pudessem ser servidos por um quadro de educadores como os do clero jesuítico e das demais ordens religiosas. Enquanto na Idade Média o processo de cristianização operava num contexto social em fermentação e com real homogeneidade de tempo histórico, no Brasil o processo se sobrepunha ao da conquista e extinção pela assimilação de tribos selvagens em territórios novos e no novo clima.tropical. O paralelo seria pois o da Antigüidade, no sentido dos conceitos reinantes sobre a população a ser submetida pela escravidão, e medieval no sentido da cultura a ser transplantada. Somente para os jesuítas valia o projeto de cristianização. Para os colonizadores, o projeto era de extinção da população indígena ou de sua escravização. Este dualismo de propósito marcava a situação global, sendo difícil separar os efeitos entre as atitudes das duas elites opostas, a dos conquistadores e a dos missionários, esta tornada poderosa pelo apoio da Coroa e pela utilização dos índios na forma dos aldeamentos. Considerando-se que a expulsão dos jesuítas significou a derrota final dos missionários, temos que a Colônia no século XVIII

reivindicaria, como sua experiência social, o processo de escravidão e extinção da população indígena e, portanto, de regime social equivalente ao dos séculos iniciais da Idade Média e não dos séculos XV, XVI e XVII. Ao mesmo tempo, porém, em que se processou essa conquista, ocupação e escravização ou extinção da população aborígine, o português colonizador se adaptava aos trópicos e recebia uma educação formal equivalente à da Metrópole. Os jesuítas tinham seu programa original de cristianização do indígena e o programa convencional de formação do clero e da elite dominante. Este segundo programa consubstanciou-se no sistema de colégios reais, amplamente desenvolvido, mantido pelo erário e destinado à educação da classe conquistadora e aristocrática, e nos seminários teológicos para a formação do clero. Segundo os hábitos da Idade Média, a formação do clero não estava rigorosamente adstrita à classe aristocrática; podiam ser admitidos alunos provenientes de outras camadas ou castas, embora isto somente se desse por exceção e com licença especial 0s colégios ministravam a educação medieval latina, com elementos de grego, não se distanciando dos da Metrópole, cujo ensino, inclusive o universitário, fosse em Coimbra ou Évora, estava confiado à mesma Companhia de Jesus e, portanto, com professores de igual formação. Não havia, pois, entre a Metrópole e a Colônia, diferença quanto ao nível ou conteúdo da educação intelectual, pois toda essa educação local ministrada pelos jesuítas iria completar-se com a educação universitária na Metrópole. Tal educação dogmática e exegética constituía uma tremenda força para a imobilidade intelectual e social. A fim de organizá-la e difundi-la, criou-se um sistema de colégios distribuído por toda a Colônia.

3.

A universidade de Coimbra, nossa universidade ao tempo da Colônia, não teve sucessora com a Independência

Até os começos do século XIX, a universidade do Brasil foi a Universidade de Coimbra, onde iam estudar os brasileiros, depois dos cursos no Brasil nos reais colégios dos jesuítas. No século XVIII, esses alunos eram obrigados a um ano apenas no Colégio de Artes de Coimbra para ingresso nos cursos superiores de Teologia, Direito Canônico, Direito Civil, Medicina e Filosofia, nesta última, depois da reforma de 1772, incluídos os estudos de ciências físicas e naturais. Nessa universidade graduaram-se, nos primeiros três séculos, mais de 2.500 jovens nascidos no Brasil. O brasileiro da Universidade de Coimbra não era um estrangeiro, mas um português nascido no Brasil, que poderia mesmo se fazer professor da Universidade. O Reitor Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, membro da Junta de Providência Literária, constituída para estudar e projetar a radical reforma universitária do tempo de Pombal, e, depois, o executor da reforma e reitor por cerca de 30 anos, era um brasileiro nascido nos arredores do Rio de Janeiro; José Bonifácio de Andrada, o brasileiro considerado patriarca da Independência do Brasil, foi antes professor da Universidade de Coimbra. Como estes, vários outros “brasileiros" foram ali professores. Não se pode, assim, até a Independência, distinguir o brasileiro do português, quando membros da classe dominante. Dado o fato de a Independência ter constituído uma separação de tronos, continuando imperador do Brasil o rei de Portugal e depois seu filho D. Pedro II, a identificação cultural continua durante o Império, não se podendo, a rigor, fazer distinção formal entre as duas culturas senão depois da República. Torna-se assim difícil, até então, caracterizar-se a filosofia da universidade no Brasil como distinta da filosofia portuguesa. A Universidade de Coimbra era a universidade do império português e a sua grande força unificadora. No qüinqüênio à reforma pombalina (1764-1768), contava com 20.453 estudantes de todo o império português, assim distribuídos: teologia, 566; medicina, 996; leis, 2.493; cânones, 16.398. Essa era a grande universidade a ser reformada para a introdução das novas ciências da natureza e a transformação do Estado eclesiástico no Estado secular e regalista, sob a influência do iluminismo da época, a que Portugal afinal chegara. O estado de decadência dos estudos nessa antiga universidade dominante pelo escolasticismo jesuítico foi objeto das críticas mais severas pelos autores da época, chamados "estrangeirados", porque refletiam as influências do iluminismo reinante na Europa e que só tardiamente alcançara Portugal. Foi esta a universidade que Pombal veio a reformar nos fins do século XVIII. Os brasileiros que vieram a influir no Brasil do período da Independência já eram graduados dessa universidade reformada, pelo que traziam para o Brasil o novo espírito de cultura secular e de soberania do poder temporal dos reis. Até Pombal, Portugal era um Estado eclesiástico, devendo obediência ao poder da Igreja. Com Pombal, estabelece-se o poder absoluto do rei. A Independência do Brasil já se processa sob o efeito dessa revolução, a que se

veio juntar a segunda revolução dos reis constitucionais. Em tudo isso, contudo, a coincidência entre a Metrópole e a Colônia emancipada era completa, sendo os brasileiros apenas portugueses nascidos no Brasil, a caminho de assumirem a responsabilidade de sua nova pátria. Vejamos se é possível estabelecer-se alguma diferença de filosofia no conceito que vem, então, a consolidar-se no país em processo de emancipação não apenas política mas cultural. Sabemos que a reforma pombalina, apesar de retardada, encontrou no Brasil ainda maior resistência do que em Portugal, pois no Brasil a influência jesuítica fora mais exclusiva, se assim podemos dizer, do que no Reino, e as forças intelectuais de oposição aos jesuítas não chegaram a desenvolver-se a ponto de criar receptividade para a reforma. O Brasil só a via como a destruição do sistema escolar existente, que era dos jesuítas. Por outro lado, a obra de Pombal, francamente reinvidicadora do poder da Coroa, contribuía para acentuar mais do que abrandar os aspectos colonizantes de Metrópole. O poder jesuítico parecia à Colônia, graças ao sistema escolar existente, menos distante e mais “seu”, podendo sobre ele exercer-se mais a sua influência do que sobre o poder da Coroa. Se a reforma de Pombal teve influência no Brasil, essa lhe teria de chegar por intermédio dos seus estudantes de nível superior formados em Coimbra após a reforma. Temos sempre a registrar que, embora identificadas as duas culturas da Metrópole e da Colônia, a desta sempre se revelava retardada sobre os próprios avanços da Metrópole, pois suas condições eram socialmente mais atrasadas. Que sucede, então, quando cerca de 30 anos depois de Pombal, vê-se o Brasil elevado à condição de Reino, com a Corte Real em seu território? Em 1808 efetua-se a transmigração da família real fugindo à invasão de Portugal pelas forças francesas. Chega o Príncipe Regente à Bahia. O comércio local se reúne e delibera pedir-lhe a fundação, na Bahia, de uma universidade literária, oferecendo importante soma em dinheiro para a construção do palácio real e o custeio da universidade. A solicitação não é atendida. Em vez de universidade, o Príncipe Regente decide criar o Curso de Cirurgia, Anatomia e Obstetrícia em fevereiro de 1808, conforme pedido do cirurgião-mor do Reino, José Correa Picanço, antigo professor da Universidade de Coimbra e brasileiro, isto é, português nascido em Pernambuco, no Brasil. Transferida a Corte para o Rio de Janeiro, também ali vem a criar uma Escola de Cirurgia, Academias Militares, Escolas de Belas Artes, Museu e Biblioteca Nacional e Jardim Botânico, mas não se fala em universidade. Mais tarde, já o Brasil Reino independente, criam-se em 1827 dois cursos de Direito, em São Paulo e em Olinda (Pernambuco), e em 1832 cria-se a Escola de Minas, somente instalada 35 anos depois. Desde a transmigração da família real até a República, são repetidos e numerosos os apelos para a criação da universidade, mas todos recebidos com recusa direta ou com silêncio e indiferença: qual seria a explicação de semelhante resistência? Não é fácil responder. Parece que se deve admitir que a identificação da cultura colonial com a cultura portuguesa e o longo hábito a que nos submeteu a Metrópole de somente contar com a Universidade de Coimbra levaram-nos a uma atitude de prudência, a

não nos julgarmos em condições de poder manter a universidade.Os brasileiros eram portugueses do Brasil. (O nome de “brasileiro” somente se generaliza no século XIX).Os cursos profissionais de Medicina, Direito, Engenharia, Minas e Agronomia nos pareceriam mais pragmáticos e suscetíveis de serem criados na ex-Colônia, à qual faltariam as bases para os cursos de certo modo mais amplos e desinteressados da universidade. Isto, por um lado. Por outro, talvez, um julgamento subconsciente da obsolência e futilidade desses cursos, como eram dados na Universidade de Coimbra, nos períodos de sua decadência no século XVIII. No longo e repetido debate em todo o século XIX a respeito da universidade no Brasil, há um depoimento em 1882, no congresso de educação superior que então se realizou, do Conselheiro A. Almeida Oliveira, que constitui argumentação fundamentada contra a universidade como organização do ensino superior. O hábito de não a termos ao longo de quatro séculos, ligado à solução substituitiva de escolas superiores profissionais isoladas e independentes, parece haver criado uma tradição antiuniversitária, que por certo se viu fortalecida com os argumentos como os do Conselheiro Almeida de Oliveira e os dos positivistas, identificando a universidade com as formas obsoletas da cultura medieval. Mas, se não aceitávamos a universidade como forma ou organização adequada de ensino superior, será que, verdadeiramente, havíamos optado por um ensino superior prático e de sentido dominantemente utilitário em oposição ao que se poderia chamar de ensino escolástico ou clássico? Aí é que vamos encontrar uma ambigüidade que confirma a natureza de certas reações mais subconscientes do que verdadeiramente articuladas e expressas. Parece que recusamos a universidade por um confuso sentimento de que não éramos capazes de criá-la e mantê-la, racionalizando esse sentimento de inferioridade com o juízo, por vezes expresso, de que ela já não era necessária. No fundo, entretanto, tínhamos das escolas profissionais que viemos a criar uma imagem que era mais a da universidade de cultura do que a de escolas práticas e duramente utilitárias. O ensino superior, embora não organizado sob forma universitária buscava acima de tudo corporificar valores que só a universidade de amplos objetivos de cultura desinteressada poderia cumprir. A solução de escolas profissionais era uma solução substitutiva, ou compensatória, visando dar-nos, por esse modo de organização que nos parecia mais viável e menos pretensioso, os valores que só a universidade nos poderia dar. O característico de escolas vocacionais ou profissionais é o de que elas não são escolas em busca de saber pelo saber, mas escolas vinculadas a certo tipo de saber aplicado e útil. Esse característico leva, porém, a uma busca muito mais intencional da eficiência do seu ensino do que a escola do saber pelo saber. Que fizemos nós? Chamamo-las escolas profissionais; demos-lhes, porém, o caráter de escolas de cultura desinteressada, com o que distorcemos o seu caráter profissional e Ihes emprestamos o de ensino universitário de busca do saber pelo saber. Essa ambigüidade trai a confusão de sentimentos a que nos lançou a nossa experiência de nação colonizada. Voltaremos mais adiante à análise da atitude fundamental que se esconde por trás de nossa experiência de ensino superior. Faremos, contudo, aqui, mais alguns comentários.

O ensino nas escolas superiores, depois da Independência, era um ensino de tempo parcial, com professores de tempo parcial e de intensa vida profissional fora da escola, os quais ofereciam poucas horas por semana aos alunos, em aulas supostamente magistrais. (Estou a referir-me ao passado, pois hoje já muitas coisas são diferentes). O que desejo observar, porém, é que essa escola de tempo parcial tinha, no fundo, ambições que lembrariam, por mais absurdo que pareça, as das universidade de tempo integral, no sentido de formar o scholar. E isto se comprova pelo culto e admiração que provocava o êxito intelectual de algum aluno. Tal ambicionado sistema de valores estava em radical contradição com a real prática escolar, com a organização da escola, com os seus métodos de trabalho, com o espaço e o tempo dedicado ao ensino, com o pagamento simbólico dos professores. Mas, quando algum aluno, a despeito de tudo isso, alcançava aqueles valores e se revelava um scholar, o modo pelo qual se festejavam ou se celebravam esses valores excediam de muito o que chegavam a fazer países que tinham tais valores realmente estabelecidos. É fácil dizer que tudo isso seria apenas conseqüência de uma moral dominada por ideais e não pela realidade concreta. Mas isto é uma petição de principio. O que queremos saber é por que é assim. E como - mesmo admitindo a diferença entre o ideal e o real—sabemos que muito progresso se fez no sentido de padrões realizáveis, por que se persiste nessa falta de relação efetiva entre meios e fins, que tão dramaticamente marca a vida de países de cultura transplantada? Uma explicação menos abstrata do que a da simples relação entre o real e o ideal parece estar no fato de serem os valores almejados e formalmente admitidos, não valores incorporados. e próprios da cultura local, mas valores de outra cultura. A possibilidade do divórcio entre meios e fins pode então assumir aspecto muito mais absurdo do que o mesmo divórcio quanto a valores específicos da cultura concreta em que está o país imerso. Para os problemas de implantação da cultura desejada, adotam-se não soluções, substitutivos de solução, soluções compensatórias. E este é um dos traços característicos da América Latina em seu contraste com a Europa, cujos valores deseja adotar, mas sem o cuidado de sua implantação experimental e gradual, decorrendo, talvez, o recurso ao "substitutivo" de .um sentimento subconsciente da real incapacidade de realizá-los. Para compensar-se dessa frustração, encontra nos casos excepcionais, em que os valores acabam por afirmar-se, uma especial satisfação, e daí celebrá-los com requintes de desvanecimento. O caso do ensino superior no Brasil ilustra de modo evidente o que chamaria a confusão de sentimento em que se perde o país com respeito à cultura intelectual, objeto simultaneamente do mais extremo culto e do.maior descaso, quando se trata de criar as condições reais e concretas para o objetivo do culto se afirmar. Resulta daí um conceito da cultura intelectual como milagre ou heroísmo, algo que lembraria o contraste entre santidade e vida comum na cultura católica. Ao passarmos ao estudo do ensino superior no século XX, estas observações vão ajudar-nos a compreender o que vem, então, a suceder com a expansão do sistema. A cultura imposta ao país radicara-se em uma tradição que a nação sentia haver recebido, mas que não se sentia capaz de recriar.

Antes, porém, examinaremos a evolução da universidade medieval no mundo católico, alheio à influência da reforma, e seu declínio até a universidade científica do século XIX.

4. A Independência e o substitutivo da universidade - escolas superiores profissionais Temos de voltar ao exame das condições da vida colonial para chegarmos ao período de independência em condições de compreender o quanto, não só a estrutura social, mas também a educação recebida ao tempo da Colônia iria estender suas conseqüências pelo século XIX e retardar de um século o início do nosso despertar econômico e social. A estrutura social continuou a de elite aristocrática e escravos e portanto, apta a conservar o regime de exploração econômica anterior o qual já havia revelado, nos séculos anteriores, a sua eficácia. A ameaça à completa estabilidade da situação estaria na mudanças do grupo de poder e na superestrutura educacional, agitada pelo espírito de reforma introduzido no século XVIII e pelas novas idéias da época de monarquia constitucional. Já referimos que se reformas pombalinas encontraram resistência no meio colonial; agora vamos ver como a nação, já independente, reduz e imobiliza seu aparelhamento educacional, mantendo, assim, limitadas as oportunidades educativas e permitindo que a pequena elite, originária do Brasil, formada durante o período anterior à Colônia, assumisse tranqüilamente a posição de estar apenas a substituir a antiga elite colonizadora portuguesa nos deveres de governo. Tal situação, que de algum modo foi a de toda a América Latina viu-se, no Brasil, acentuada em virtude de nossa Independência ter constituído acontecimento menos violento de substituição do grupo de portugueses nascidos em Portugal pelo grupo de portugueses nascidos no Brasil, conservando-se por isto mesmo, a monarquia, o rei, a aristocracia e a escravidão, o sistema de controle administrativo e fiscal e a mesma estrutura de poder e de educação de elite. O século XIX fez-se, assim, para a jovem nação, o prolongamento da fase colonial, mergulhando o país em uma tranqüila estagnação, a que não faltaram, devido aos remanescentes da cultura latina do tempo da Colônia e à considerável estabilidade política obtida, graças exatamente a pouco ter-se modificado, traços de aparentemente feliz consolidação do status quo. Com efeito, uma elite com uma educação de segunda mão, vaidosa de preferir o latim e, depois, o francês ao próprio português, mas com inequívocos traços de gosto intelectual, permitiu-nos a ilusão de considerar a espantosa estagnação do século XIX, graças à qual se pôde guardar até a escravidão como exemplo de algum modo raro de estabilidade, de sabedoria política e de cordura nacional, comparado com o tumulto político de grande parte da América Latina. Esse retardamento, dentro do qual se amorteceu muito de qualquer impulso renovador que a Independência pudesse ter criado, não só adiou o processo de desenvolvimento nacional, como criou no país uma imagem do Império profundamente distorcida, em que se pode descobrir até laivos de orgulho e desvanecimento pelo passado que o teria originado, e de cujos remanescentes de cultura era beneficiário. Enquanto a Europa moderna cunhou, embora sem maior exatidão histórica, o estereótipo político da noite medieval para o período de sua também longa estagnação, a nossa classe intelectual passou a considerar a Colônia e o Império, que a continuava, como fases quase róseas, como o período "culto" e próspero do nosso desenvolvimento, sobre tudo isto construindo um modelo de racionalização que vai perdurar por todo o século e de que ainda não nos libertamos. Ainda hoje é essa racionalização que reflete a posição de certo conservadorismo nacional que considera enfaticamente "mitos" e "irracionalidades" ingênuas as aspirações de uma classe média nacionalista, que acabou por crescer e se fortalecer na primeira metade do século XX. Para esse conservadorismo, o que cumpre conservar-se é o persistente senso de dependência pelo qual a nação não mais deve esperar do que ser o reflexo, em seu país, dos desenvolvimentos acaso surgidos em outros centros, guardada a nossa estrutura de desigualdade social para isto poder indefinidamente ser mantido. O desenvolvimento da educação e do ensino superior no Império constituem exemplos de quanto uma elite, identificada com a Metrópole colonizadora e habituada à submissão a ela no seu sistema de valores, pode revelar-se incapaz de elevar-se à altura do projeto nacional que representava a inesperada independência que Ihe trouxera um episódio do período napoleônico na velha Metrópole portuguesa. Imobiliza-se, com efeito, durante o período do Império, o desenvolvimento educacional, mantendo-se ao longo do século XIX as condições educacionais da Colônia, com um modestíssimo acréscimo de ensino primário, seguido de escolas vocacionais, um sistema seletivo de da elite reduzido a muito poucas escolas secundárias e um ensino superior limitado exclusivamente às profissões liberais, em meia dúzia de instituições nacionais isoladas e de tempo parcial.4 Durante quase 50 anos de reinado do segundo

Kommentar [P1]:

imperador não se chegou a criar nenhuma nova escola, além das que nos deram os soberanos nas primeiras décadas do século e ele próprio em 1839. Quanto à universidade propriamente dita, somente na última fala do trono, 80 anos depois da criação da primeira escola superior, o imperador reconheceu, afinal, a sua necessidade, dignando-se a recomendar duas, uma para o Norte e outra para o Sul do país. A recomendação tardia e frouxa não foi atendida nem sequer pela República, que no mesmo ano se proclamou, em conseqüência da Abolição da Escravatura e das crises militar e da Igreja que se Ihe seguiram, problemas em que se consumaram os últimos anos da estagnação imperial. Vimos que o período colonial constituíra um prolongamento de Portugal nas terras brasileiras, desenvolvendo-se na Colônia um sistema educativo similar ao da Metrópole, o qual, devido aos jesuítas, teve desenvolvimento considerável. Parece razoável afirmar-se que o melhor período da educação na Colônia foi o do século XVIlI, quando os jesuítas chegaram a manter 19 colégios de humanidades e literatura latina, distribuídos por todo o país. A substituição, no último quartel do século, desse sistema de ensino pelo das aulas régias já representou uma certa deterioração, se não levarmos em conta a mudança de espírito e de métodos que afinal a inspirara. Até então, contou o Brasil, antes da expulsão dos jesuítas, com os estudos menores nos seus colégios e os estudos maiores na Universidade de Coimbra. Com a supressão da Companhia de Jesus, os numerosos professores régios, em suas cadeiras de latim, grego, hebraico, gramática, retórica e filosofia, substituíram bem ou mal os colégios de jesuítas, e continuou a Colônia a se valer da Universidade de Coimbra para seus estudos superiores. A nossa formação em latinidade, senão em humanidades, vem desse período. Com a criação do Reino do Brasil e, depois, a Independência é que nos vimos realmente sem universidade, isto é, sem as matrizes que deram origem à nossa cultura. Os estudos menores, continuados no Colégio das Artes de Coimbra, e os professores régios desaparecem, vindo depois (em 1837) a ser criado o Colégio Imperial Pedro II, o qual, com os seus similares nas províncias, passam juntamente com estabelecimentos privados a nos dar a educação secundária, com um currículo de tipo clássico-científico, lembrando longinquamente o liceu francês. Seria, por extensão da palavra, um curso humanístico, por oferecer estudos de latim e grego. A rigor, porém, o latim e o grego eram, como o francês e o inglês ensino elementar de línguas, sem envolver as respectivas literaturas. Após esse curso secundário, o brasileiro, depois da Independência, não dispondo de outras escolas senão as profissionais superiores de Medicina, Direito e Engenharia, criadas pelos dois primeiros soberanos, perdeu qualquer oportunidade de estudos superiores de humanidades, letras ou ciências como disciplinas acadêmicas. A falta de estudos superiores de tipo acadêmico havia de tornar extremamente precária a formação dos professores para os colégios secundários de que o Imperial Colégio Pedro II era a modelo e o padrão. _____________ 4.Com a chegada do Príncipe D. João, futuro D. João Vl, em 1808, à Bahia, cria o Príncipe Regente nessa cidade, em 18 de fevereiro, a Escola de Cirurgia e Anatomia, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. Apenas chegado ao Rio, o Príncipe Regente cria a 2 de abril de 1808 o Segundo Curso de Anatomia e Cirurgia, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1808, criou a Academia de Guarda-Marinha e em 1810, a Academia Militar, que se transformou em Escola Central, depois Escola Politécnica, hoje Escola Nacional de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; em 1814 o Curso de Agricultura, e em 1816, a Real Academia de Pintura, Escultura e Arquitetura.Depois da Independência, cria o Imperador D. Pedro I em 11 de agosto de 1827 os Cursos Jurídicos em São Paulo e em Olinda, Pernambuco. Durante a regência, na menoridade de D. Pedro II, criam-se em 1832 a Escola de Minas e Metalurgia em Ouro Preto, Minas Gerais, em1839 a Escola de Farmácia, também em Ouro Preto, e em 1837, no Rio de Janeiro, o Imperial Colégio Pedro II. O Imperador D. Pedro II somente instalou a Escola de Minas 34 anos após a criação. Estas foram as escolas superiores oficiais que teve o Brasil até 1889, data da Proclamação da República.

O concurso competitivo e público para as suas cátedras fez-se a provocação e o estímulo para a formação desses professores pelo autodidatismo. O Brasil, após a Independência, faz-se, assim, um país profundamente inclinado à cultura humanística e acadêmica, devido à tradição colonial, e sem recursos em seu sistema escolar para treinar os respectivos mestres. Temos de admitir que passaria a se nutrir da tradição humanística que lhe viera da Colônia. Entretanto, como lembra Dewey, uma tradição tanto pode criar energias para se manterem as condições que a criaram e a continuam, quanto resultar em hábitos que obstruem a observação do que realmente está a passar, criando uma miragem em que a tradição parece como em pleno vigor, quando, de fato, está em declínio. O caso brasileiro é uma perfeita ilustração desse resultado da tradição que se faz hábito e cegueira. Todo o longo período do Império é o período desse declínio, que continua pela República até 1930, quando é criada a primeira Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que viria, tardiamente, procurar reviver as fontes da tradição, implantando os estudos acadêmicos desinteressados para base da cultural nacional. Já nos referimos à resistência que o Brasil ofereceu à idéia de universidade. Habituando-se a somente tê-la na Metrópole, ao fazer-se independente viu reduzir-se o ensino superior a escolas especiais profissionais, fora da universidade. Mas, ao mesmo tempo, buscou manter o ensino secundário acadêmico e humanístico. Como se preparariam os professores para esse ensino secundário? A tradição cegava os olhos para esta simples pergunta. A cultura humanística, suporia a tradição, iria brotar espontaneamente dos poucos colégios secundários acadêmicos que vieram a ser criados. Alguns professores acabaram se preparando sobretudo em filologia e língua portuguesa, e alguns raros como latinistas, mas como os historiadores, os eruditos, os ensaístas e os literatos foram todos produtos do autodidatismo, funcionando os concursos competitivos para as cátedras dos colégios e das escolas superiores como uma espécie de concurso de agregés na França. A França, entretanto, mantinha na universidade os estudos acadêmicos de nível superior. A cultura humanística no Brasil seria a cultura clássica a ser ministrada nos colégios secundários, mas não sendo continuados tais estudos no nível superior, não seria possível o treino para licenciar seus mestres. Na realidade, fez-se a cultura humanística como um hobby de aficionados, autodidatas esforçados, estudando em bibliotecas privadas tão boas e ricas que lembravam museus de colecionadores bibliográficos. Na mente desses raros espíritos é que vivia a tradição, oficial ou praticamente morta. O caso é dos mais espantosos e dificilmente explicável, a não ser que aceitemos a interpretação a que já nos referimos, do país continuar depois da Independência, a crer que cultura geral, humanística e acadêmica, ele só a poderia ter em universidades estrangeiras, onde a iria buscar depois dos estudos menores feitos nas escolas nacionais, como acontecera durante o período da Colônia. Esses estudos menores seriam os dos seus cursos secundários acadêmicos, mantidos, entretanto, sem que existissem possibilidades de se Ihes preparar o professor, pois já não havia o hábito de ir a Coimbra, e o de ir à Sorbonne era pura proeza individual e não tanto de possíveis candidatos a cátedras secundárias, mas dominantemente de profissionais médicos e candidatos às cátedras de medicina. A despeito dessas condições, não sabemos se confusas ou contraditórias, a inteligência nacional continuava com a miragem humanística e intelectual, proclamando-se uma segunda França, nos seus gostos predominantemente literários, eruditos e escolásticos. E sem dúvida teve os seus scholars, se não profundos e originais, muitas vezes eruditos e brilhantes, a despeito das limitações da formação autodidática. E em literatura não faltaram expoentes, embora também à literatura faltasse aquela profundidade criadora, que só a imersão em uma real e não imaginada cultura pode produzir. Este fato não significa, porém, apenas a contradição a que nos estamos referindo. Sua significação é mais profunda. Uma das funções primaciais da universidade é cultivar e transmitir a cultura comum nacional: não havendo o Brasil criado a universidade, mas apenas escolas profissionais superiores, deixou de ter o órgão matriz da cultura nacional, a qual se elabora pelo cultivo da língua, da literatura e das ciências naturais e sociais na universidade, ou nas respectivas escolas superiores do país. Como se poderia elaborar a cultura nacional apenas com escolas de Direito, Medicina e Engenharia? Foi isto que tentou o Brasil, como se fosse possível uma cultura de simples ciências aplicadas, sem as bases em que ela tem de se apoiar. Sabemos que todo sistema de educação, em seus diferentes níveis de estudos e em seus diferentes currículos e programas, só pode ensinar a cultura que na universidade ou nas escolas superiores do país se produzir. Não seria possível um curso secundário humanístico ou científico sem que a universidade, ou as escolas superiores, tivessem estudos humanísticos ou científicos avançados. Como só teve o Brasil, no nível superior, escolas profissionais de saber aplicado, o seu ensino secundário acadêmico de

humanidades e ciências teria de ser inevitavelmente precário e deficiente, como sempre foi durante essa longa experiência de ausência da universidade ou das respectivas escolas superiores para licenciar os docentes. Não esqueçamos que os graus universitários são licenças de docência. Este foi o resultado mais grave de não se haver completado com a universidade, ou com escolas de letras, de ciências e de filosofia, o sistema de ensino superior do pais: deixamos de criar as condições para se formar a cultura comum nacional, perdendo-se todo o século XIX, em que o país viveu dentro da miragem de uma cultura humanística e a realidade de uma deterioração progressiva de sua tradição intelectual herdada do período colonial. A situação assim criada é tão particular e, de certo modo, contraditória em relação à experiência anterior, que se impõe a sua análise. Tanto os dois primeiros séculos e meio da Colônia quanto a segunda metade do século XVIII constituem período de intensa e central preocupação com educação, dentro do projeto nacional português, seja com os jesuítas até o século XVIII, seja com o Marquês de Pombal no período da reforma da instrução para o advento do poder absoluto do Estado monárquico. A empresa dos jesuítas fora a de conquistar o Brasil para a cultura latina em sua forma católica, sendo a educação, desde o princípio, um esfôrço central para o treino em uma civilização particular, um particular caráter social e as forças de serviço à religião e ao Estado. A fundação imediata das escolas de ler, escrever e contar e dos colégios para a formação do clero da própria ordem e do clero secular e das demais ordens religiosas mergulha o novo Estado na língua latina e em sua cultura, do mesmo modo pelo qual a Europa nela mergulhara, após a queda do Império Romano, pelas mãos da Igreja. . O Brasil nasceu assim sob a influência de uma classe intelectual,que trazia consigo, além da paixão pelas letras e saber da época, o prestígio do poder e da influência. Embora não tivesse o país formalmente a universidade, para todos os efeitos ela existiu com os colégios dos padres jesuítas e os estudos menores das letras humanas (gramática, retórica, poesia) e latim, grego e hebraico, com predominância do latim como língua da cultura intelectual, estudos que se continuavam na Universidade de Coimbra. Nascíamos, assim, como uma vergôntea da cultura greco-latina mediterrânea, o que nos iria marcar em nossos gostos e nossos valores, a despeito dos trópicos, da nossa composição étnica e da língua, a qual, fosse o português ou o tupi-guarani, que eram as línguas faladas, não eram as línguas da educação e da cultura. Nos colégios dos jesuítas, até os fins do século XVIII, só era permitido falar o português durante os recreios e nos dias feriados. No Curso de Letras Humanas estudavam-se os clássicos, desde Ovídio a Horácio, e desde Homero a Demóstenes. Cícero e Virgílio eram os mestres do estilo. Depois do Curso de Letras, vinha o de Artes e Ciências, abrangendo Lógica, Física, Metafisica, Ética e Matemática, em três anos de estudo, a este curso sucedendo o de Dialética e Teologia, dividida em Moral (lição de casos) e Especulativa. O de Teologia Moral começou de forma regular em 1565 e o de Teologia Especulativa em 1572.

Já no século XVI, portanto, o Brasil preparava duas categorias de clero; o letrado (professores e pregadores) e evangelizador (devotado à conversão dos índios). A distribuição de graus acadêmicos se inicia em 1575, com o grau de bacharel em artes, conferido em festa que mobilizou toda a cidade da Bahia, registrando o padre jesuíta redator da Carta Anua que "ninguém tinha até ai subido no Brasil desde todos os séculos." Vê-se, assim, como havia consciência do que representava a transplantação da cultura da época para os distantes rincões da América portuguesa. Em 1578, conferiram-se as primeiras láureas de mestre em artes. Em 1581, nova concessão de graus universitários. Sobre esse ano, diz Anchieta em carta: "O número de estudantes chegou a 1.000 (...). Nestas regiões, onde ninguém cultiva as letras e todos se dão a negócios, é o máximo (...). Elevaram-se à dignidade de mestres alguns externos. A cerimônia fez-se ainda com maior solenidade e com o aparato que se costuma nas Academias da Europa, como nunca se tinha feito aqui. Não faltou nem o anel, nem o livro, nem o cavalo, nem o pajem de barrete, nem o capelo feito de estofo de seda." A imponência do cortejo e a pompa da imposição das insígnias nessas festas de graduação marcaram o apogeu dos estudos no Brasil no século XVI. Houve depois discussões sobre a legitimidade desses graus, não possuindo o Brasil universidade, mas, em 1597, alcançaram os jesuítas a faculdade de conferi-los. Nos fins do século XVI, já era assim apreciável a cultura humanística da Colônia. O provincial Pero Rodrigues, em 1605, podia escrever: no colégio da Bahia "há estudos públicos (...) em que se graduam em mestres de arte e teologia moral e especulativa, donde saem muito bons filósofos, artistas e pregadores." 5 Tal situação perdura pelos séculos XVII e XVIII até a expulsão dos jesuítas. Na segunda metade do século XVIII, embora a educação escolar continuasse a ser a da língua latina, como língua da Igreja e da cultura, manifesta-se em Portugal a inquietação pelo modo excessivamente formal do ensino e se inicia um grande movimento pela reforma da gramática latina e introdução do uso da língua vernácula como intermediária do estudo de latinidade. Em sua essência, o movimento marca o início do período moderno e da atenção pela cultura nacional, como variedade da grande cultura comum da Europa, passando o latim, a rigor, a ser estudado como uma língua estrangeira, embora se continuasse a emprestar à disciplina de sua gramática e retórica a faculdade de formar a mente, o intelecto. Pelos autores latinos se transmitia a cultura antiga desenvolvida pelos filósofos da Idade Média, a que se iam juntar os filósofos e escritores do pós-renascimento. Portugal, como vimos, ficara no Ratio studiorum com Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, até os meados do século XVIII, quando os oratorianos começam a controvertida reforma do ensino em oposição aos métodos pedagógicos dos jesuítas. As reformas pombalinas correspondem à implantação dos novos métodos e de nova filosofia da educação. Mais do que analisar o êxito da reforma, cabe acentuar a natureza da crise pedagógica e de pensamento de toda a época e a relativa falta de consenso em que se processou a tentativa de transformação.

_________________ 5. Anais da Biblioteca Nacional, v.29, p.192.

Para demonstrar quanto era fechado o sistema jesuítico às idéias modernas, basta referir que, em 1746, já portanto nos meados do século XVIII,o reitor do Colégio de Artes ainda determinava que "nos exames, ou lições, conclusões públicas ou particulares se não ensine defensão ou opiniões novas pouco recebidas ou inúteis para o estudo das ciências maiores (teologia, leis e canones, medicina e matemática) como são as de René Descartes, Gassendi, Newton e outros, e nomeadamente qualquer ciência que defenda os átomos de Epicuro, ou negue as realidades dos acidentes eucarísticos, ou quaisquer conclusões opostas ao sistema de Aristóteles, o qual nestas escolas se deve seguir, como repetidas vezes se recomenda nos estatutos deste Colégio das Artes" 6 Era contra essa resistência ao pensamento moderno europeu que se processou a reforma da instrução no Reino. O sistema de educação na sociedade portuguesa e, com maior razão de ser, na Colônia, representava assim planos conscientes e determinados da Igreja ou do Estado, para a formação do caráter social desejado e o treinamento dos necessários servidores da Igreja, ou do Estado. Durante dois séculos e meio, esse plano foi o do Ratio studiorum da Companhia de Jesus com a possível variedade que oferecesse o ensino de outras ordens religiosas. O caso dos oratorianos, que foram, no século XVIII, o Port Royal de Portugal, ilustra bem as possíveis variações. Com a supressão da Companhia, foram os oratorianos que substituíram a influência jesuítica. De qualquer modo, a reforma pombalina da instrução fez-se com plano e instruções minuciosas e completas, lembrando outro Ratio studiorum oposto ao dos jesuítas. Sob esse novo plano que sucede aos dos jesuítas é que se processa a separação e depois independência do Reino do Brasil. Tudo levaria a crer, dentro dessa tradição, que o novo Império do voltasse para o seu sistema de ensino e também traçasse o seu plano de educação, para atender às condições do século XIX, da monarquia constitucional e do regime liberal. Na realidade, não faltaram sugestões, projetos e planos. Somente sobre a universidade, entre 1808 e 1882, nada menos de 24 projetos se contam, sendo os dois últimos os de Rui Barbosa de 1882, os quais, em suas próprias palavras, "passaram a dormir na Câmara dos Deputados o sono, donde passaram ao mofo e traçaria dos arquivos". Com efeito, nenhum deles logra se transformar em lei. Reduz-se a ação do rei e dos dois imperadores, durante o século XIX, à criação das escolas superiores isoladas de medicina, direito, engenharia (inclusive de Minas), farmácia, agronomia e bela artes e a do Colégio Imperial Pedro II, destinado ao ensino secundário, preparatório às escolas superiores. Há, pois, uma verdadeira ruptura com a tradição anterior portuguesa, sempre agudamente consciente da importância central da educação para a construção do projeto da sociedade e do Estado que o rei desejava impor. Não é fácil explicar-se como essa ruptura com a tradição se processa com a participação da Casa Imperial, que se opõe a mais de duas dezenas de projetos de lei, todos a insistir pelo preenchimento da lacuna que representava não haver o país cuidado da criação da universidade. Temos de admitir que o ___________________ 6. Apud Carvalho, Laerte Ramos de. op.cit. p.24-5.

imperador, dividido entre a tradição de sua Casa Real Portuguesa e as idéias modernas relativas à reforma da universidade, perdia-se em perplexidades e indecisão. Identificando, talvez, a universidade com o velho modelo medieval, o imperador constitucional deve ter-se deixado afetar pela ideia de que o novo saber seria mais bem atendido com escolas superiores especializadas, dentro do espírito da diversificação científica do saber. Esquecia-se, entre tanto, da funcão fundamental do ensino superior de servir e promover a cultura comum nacional e não mais a cultura universal da Idade Média. Essa nova cultura nacional não se constrói só com ciências aplicadas, mas com o estudo da língua e da literatura nacional e o das ciências humanas e físicas nos campos do saber básico e acadêmico, que é a fonte do saber, a ser ministrado nas escolas do país, sejam elementares, secundárias, ou superiores profissionais do saber aplicado. A experiência da monarquia significou realmente não o começo de vida de uma nova nação, mas a transladação da sede do governo, depois uma separação do reino de Portugal - e nesse período é que são criadas as primeiras escolas superiores puramente profissionais - a qual se torna definitiva, pela Independência, sem que o imperador tomasse completa consciência da transformação, deixando de instituir a universidade que iria ser a matriz da cultura nacional, deste modo concorrendo para que seu reinado constituísse um período intermediário entre a secessão dos dois reinos e afinal a proclamação da República, a qual iria constituir a verdadeira consumação da independência cultural e econômica do país. Ainda assim, tão incerta é a vida nacional em suas lutas em torno do poder e da solução de problemas urgentes e imediatos, que a nação vem ainda a adiar a universidade até 1920, quando afinal ela se institul simbolicamente, com a reunião ainda apenas das escolas de Direito, Medicina e Engenharia, sob a administração comum de um reitor. A tradição das escolas superiores isoladas e independentes, que se estabelecera desde o início da monarquia, continuava sem real alteração. Já observamos que isso não impedia que o espírito universitário, que nos viera da Colônia com os colégios reais dos jesuítas e a Universidade de Coimbra, impregnasse essas escolas profissionais e isoladas com a miragem da tradição universitária. O fato, contudo, de só termos criado escolas profissionais com os seus cursos únicos e uniformes, privou-nos de estudos superiores acadêmicos da lingua e das letras, da geografia e da história, da filosofia e das ciências. Privou-nos ainda, como já referimos, de uma das funções primárias da universidade, a de elaborar e transmitir uma cultura nacional comum, que substituísse a cultura universal latina, antes transmitida ao tempo da Colônia pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. A nação, agora independente, deveria tomar consciência da necessidade universidade brasileira como centro de elaboração da nova cultura nacional, com real sensibilidade para o seu crescimento, as suas crises e os seus problemas. O prolongado período em que tivemos a Universidade de Coimbra de onde recebíamos a cultura portuguesa, e depois o hábito que nos fïcou, durante o Império e nas primeiras décadas da República, de ir buscar essa cultura em universidades estrangeiras, onde o graduado brasileiro sonhava sempre poder ir para completar os estudos das suas escolas superiores locais—profissionais e de tempo parcial- levaram-nos realmente a viver com uma cultura superior muito mais oriunda desses países estrangeiros, cuja influência sofríamos do que do nosso próprio país. Os nossos próprios cursos superiores nos pareciam, como de fato eram, cursos propedêuticos, preparatórios a uma cultura avançada que só a

universidade estrangeira nos daria, prolongando-se, assim, o antigo hábito colonial formado pela ida compulsória à Universidade de Coimbra. Assim vivamos até praticamente I Guerra Mundial. Mas se assim foi, realmente, quanto ao sistema de ensino existente, se faltou-nos, efetivamente, no século XIX, o ensino superior no campo das letras e das ciências, veio, entretanto, a ocorrer no Brasil - fora da universidade, que não existia, e fora das eseolas superiores existentes, que eram apenas vocacionais—um real crescimento no campo das 1etras,com o desenvolvimento da consciência de uma cultura nacional, graças à atuação de sociedades eruditas privadas, à obra dos escritores, e aos estudos de crítica literária. O Brasil reproduziu, assim, no campo das letras, o que na Inglaterra e na Europa Continental se deu com relação às ciências experimentais, as quais, ausentes da universidade na primeira metade do séeulo XIX, passaram a ser promovidas e cultivadas pelas sociedades científicas, que acabaram por criar o fluxo de scholars, tanto britânicos quanto americanos, para a Alemanha - onde a universidade reformada de Humboldt, desde o início do século, incorporara os estudos e a pesquisa científica - para ali buscar a inspiração para a reforma de suas próprias universidades. Afrânio Coutinho7 estuda a literatura brasileira no século XIX mostrando como, na época, se desenvolveu a crítica literária no país pela ação individual de escritores e estudiosos se formou a consciência de uma literatura nacional, obra que teria de ser a da universidade, se ela tivesse existido. Essa lacuna entre o sistema escolar nacional e a cultura nacional em formação constitui, no Brasil, um traço permanente da educação após a Independência, o que comprova o caráter hesitante e incerto da liderança governante, ao tempo do Império, tomada do obsessivo espírito de moderação que marcou a atuação do imperador, o qual se fez mais o guardião inocente do status quo herdado de Portugal do que o guia da jovem nação.

____________________ 7. Coutinho, Afrânio. A tradição afortunada. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.

5. Eclipse da Universidade no Brasil e o expediente da "importação" da cultura

A universidade surge na Europa, nas alturas dos séculos XI e XII,como uma nova corporação de professores e alunos, ou de alunos e professores. Era, sem dúvida, o reconhecimento de uma nova profissão, a do scholar, devotado à arte de ensinar. A sua instituição obedeceu à forma jurídica então corrente da carta de fundação, proveniente do Papa e, depois, em certos casos, do rei. Resulta da longa fermentação religiosa e intelectual da Idade Média, graças à qual se chegou nos séculos XI, XII e XIII à consolidação da cultura medieval, com a fusão da cultura antiga na nova cultura católica da época. Seu período de vitalidade criadora tem seu apogeu no século XIV, entrando, depois, no período rígido e sistemático que caracteriza o escolasticismo. Com o Renascimento e a Reforma, a unidade até então obtida começa a romper-se, mas a universidade no mundo católico não participa substancialmente desse segundo movimento, enclausurando-se no seu isolamento e sua gradual decadência, para isto concorrendo a instituição da Inquisição, ainda no século XII, no caso de Portugal, dentro da universidade. Quando, nas alturas do fim do século XVIII, a sociedade entra de novo em fase da grande transformação que se vinha elaborando desde o século XVI, mas que no século XVIII teve seu florescimento característico, essa universidade encontra-se em completa decadência. A Revolução Francesa fecha a Universidade de Paris, assim como as Universidades de Oxford e Cambridge já quase tinham sido fechadas por Cromwell. De fato, a universidade que realizara na Idade Média extraordinária obra de unificação do pensamento ocidental, fez-se na época moderna a universidade clássica renascentista no mundo protestante, mantendo-se no mundo homogeneamente católico substancialmente escolástica, não conseguindo viver à altura das novas exigências da sociedade, que se encaminhava para a grande transformação — nacional, democrática e industrial — cujas verdadeiras raízes encontravam-se na revolução científica do conhecimento humano. Somente no início do século XIX, a universidade vem efetivamente a renascer com a Universidade de Berlim, já como expressão do nacionalismo nascente do povo germânico e do novo espírito de descoberta do conhecimento. É na Alemanha, com efeito, que se opera a grande transformação da universidade, voltando a ser o centro de busca da verdade, da investigação e da pesquisa; não o comentário sobre a verdade existente, não o comentário sobre o conhecimento existente, não a exegese, a interpretação e a consolidação desse conhecimento, mas a criação de um conhecimento novo, que iria inspirar as culturas nacionais. A sociedade estava se transformando, a pesquisa ia voltar a essa universidade até então toda debruçada sobre o passado, para projetá-la para o futuro. Esta universidade de Humbolt faz-se de tal modo a nova universidade, que a Inglaterra vai à Alemanha buscar associar-se ao renascimento científico. A Holanda, que havia começado trabalho paralelo, conjuga também seu esforço com o esforço alemão. E a América do Norte, perdida ainda em duas

orientações - a da anterior universidade clássica e a de uma universidade extremamente moderna, utilitária voltada para os problemas da sociedade em mudança - vai buscar também, na segunda metade do século XIX, novos rumos naquela universidade, ai colhendo a inspiração para instituir a sua verdadeira universidade moderna, que hoje lembra a universidade alemã de Humboldt, dedicada à pesquisa, à descoberta do conhecimento científico e ao serviço à comunidade, à complexa sociedade moderna. Também na França, suprime Napoleão a universidade e reforma radicalmente o ensino supenor. A nova universidade era dedicada à ciência. Mas a ciência ainda estava longe de ter os aspectos que tem hoje. A ciência e a filosofia estavam ainda unidas. De maneira que a maior faculdade da grande universidade alemã era a de filosofia, pois a filosofia era entendida como um desdobramento completo do conhecimento humano, inclusive científico. Substancialmente, a universidade, guardando ainda a sua missão imediatamente anterior — guardiã e aprimoradora da cultura - começa a criaçao de uma nova cultura. Aos períodos de renovação criadora da universidade, sucedem os de consolidação, sistematização e gradual estagnação. Assim foi, desde a Antigüidade. Sócrates e Platão sucedem aos sofistas. E a Platão, sucede Aristóteles, que já era novamente a sistematização e a busca do definitivo. E a universidade medieval do século XII também sucedia ao platonismo dos séculos anteriores, para repetir Aristóteles e fechar-se na sistematização e nas verdades últimas que acabam na esterilidade da escolástica. Foi esta última a universidade que presidiu a formação da cultura no Brasil: um centro de rígido treino da mente e de formação profissional o clérigo, o legista e o médico - centro do círculo fechado dos conhecimentos existentes. Assim ficamos, sem universidade no território da Colônia, mas ligados à Coimbra medieval, escolástica e jesuística. O renascimento universitário, no início do século XIX, com a universidade de Humboldt, não chega até nós. Nem também nos chega a universidade de Newman dos meados do século XIX. Para que existe a universidade? Pergunta ele. E responde: “Para levantar o tônus intelectual da sociedade; para cultivar o espírito público; para unificar o gosto nacional; para suprir os verdadeiros princípios para o entusiasmo popular e objetivos fixos às aspirações populares; para dar largueza e sobriedade às idéias da época; para facilitar o exercício dos poderes políticos e para refinar o intercurso social da vida privada.”Era já a universidade expressão da cultura nacional, mas ainda não era a universidade de Humboldt, com sua ênfase em pesquisa e descoberta. Lembraria antes Oxford e Cambridge, a universidade clássica de cultura geral e humanística a universidade para a educação do gentleman, guardiã e aprimoradora da cultura, mas já agora de uma cultura nacional. Esta era a tendência comum entre as duas ênfases, a de cultura humanística e a de cultura científica. Como explicar-se não haver repercutido no Brasil esse movimento pela recuperação da universidade, persistindo a primeira reação contra a universidade medieval? À primeira vista, parece paradoxal essa resistência à criação da universidade. Não houve no Brasil universidade no período colonial. Com a transmigração da família real, criam-se as duas primeiras escolas de medicina, 20 anos depois as Faculdades de Direito, depois uma Faculdade de Minas e

Mineralogia; a de Engenharia veio com a Academia Militar. Durante todo o período monárquico, como já nos referimos, nada menos de 42 projetos de universidade são apresentados, desde o de José Bonifácio até o último, que é o de Rui Barbosa, em 1882, e sempre o governo e parlamento o recusam. Nos anais do Congresso de Educação que se realizou no Brasil, também em 1882, presidido pelo Conde d’Eu, ao qual o imperador deu extraordinária importância, deparamos, é necessário repetir, com o Conselheiro A. de Almeida Oliveira a fazer uma longa catilinária contra a universidade. Toda a sua argumentação gira em torno da universidade medieval. Alega que “a universidade é uma coisa obsoleta e o Brasil, como país novo, não pode querer voltar atrás para constituir a universidade; deve manter suas escolas especiais, porque o ensino tem de entrar em fase de especialização profunda; a velha universidade não pode ser restabelecida’’. Ora, em 1882 isto representava, dentro da atmosfera daquela época, a reprodução de uma posição do século XVIII, que vinha sendo radicalmente revista no século XIX. Efetivamente, a universidade antiga não podia ser restaurada. Mas havia a universidade moderna, cujas bases haviam sido lançadas por Humboldt, no princípio do século, e que já estavam em pleno surto nessas alturas do século XIX. Registra-se um retardamento da informação nacional. O discurso do Conselheiro Almeida de Oliveira seria razoável um século antes, quando a universidade estava em período de decadência, não se achando em condições de enfrentar os problemas modernos da ciência, da pesquisa e da transformação social. Em 1882, contudo, já era outra a situação, tanto na Europa, quanto na América. A universidade moderna já era uma realidade. Persiste, contudo, da parte do governo brasileiro, um particular e constante propósito de resistir à idéia de universidade, refletindo posição dos fins do século XVIII. Todo o período do Império documenta tal atitude. Observe-se a atuação do próprio Imperador D. Pedro II, que embora razoavelmente culto e até altamente inclinado para as coisas intelectuais, não cria uma só escola superior no Brasil (apenas instalou tardiamente a Escola de Minas, de Ouro Preto), resistindo à idéia da universidade até a sua última fala no trono, quando afinal reconhece, por certo que relutantemente, a conveniência de uma universidade para o Norte e outra para o Sul. Nem por isto, entretanto, se criou qualquer universidade. A República continuou a tradição de resistência. Estimulavam-se escolas agrícolas, liceus de artes e ofícios e, depois da República, o ensino técnico-industrial. Não podemos deixar de reconhecer que o governo brasileiro, a classe governante brasileira, ao mesmo tempo que via o Brasil com uma inclinação para a cultura intelectual, para a cultura do lazer, para a cultura geral, para a cultura do consumo, resistia a essa tendência, que considerava "ornamental", no sentido que Ihe dava Benjamim Franklin, procurando promover educação mais utilitária A atuação do governo federal nesse sentido é típica. A Regência criou o Colégio Imperial Pedro II, e desde a criação deste colégio até recentemente, não houve ampliação alguma ou criação de outro colégio. Este colégio seria francamente "ornamental", no sentido em que Benjamim Franklin usa o termo, francamente dedicado à cultura desinteressada do espírito, à cultura intelectual da época passada. Apesar de ter recebido o seu nome, o imperador não o

multiplicou, mas veio a bafejar as escolas agrícolas e os liceus de artes e ofícios com seus aspectos mais práticos da educação. Vem a República e faz a mesma coisa. O governo federal cria escolas técnico-profissionais e não cria ginásios ou escolas secundárias. E, quanto ao ensino superior, mantém-se estritamente na idéia de ensino utilitário de preparo profissional, sem cuidar daqueles outros aspectos da cultura. Prevalecia a idéia do Conselheiro A. de Almeida Oliveira, no Congresso de Educação de 1882: "Nós não podemos ter universidade porque não temos cultura para tal. A universidade é a expressão de uma cultura do passado, e nós vamos ter uma cultura do futuro que já não precisa mais dela." Havia no Brasil, na classe governante brasileira, a idéia de que a sociedade que se estava construindo ia ser uma sociedade utilitária, uma sociedade de trabalho e, como tal, não ganharia muito em receber os ornamentos e as riquezas da velha educação universitária. E a resistência se mantém. Somente em 1920, a República dá o nome de universidade às escolas profissionais superiores que havia no Rio de Janeiro 1 . O Brasil conservava a posição de defender uma educação superior de tipo utilitário e restrito às profissões, esquecendo-se de sua função de formadora da cultura nacional e da cultura científica chamada pura ou ‘’desinteressada". Poder-se-ia levar em conta que a universidade de que teve o Brasil experiência foi a Universidade de Coimbra que, apesar de sua latinidade, continuava a tradição espanhola de universidade profissional. Embora isoladas e independentes, as escolas profissionais instituídas no Brasil - as de medicina desde 1808 e as de direito, 20 anos depois - a despeito de serem escolas profissionais, seriam também escolas de cultura universitária. Guardamos aquela antiga tradição de que a universidade preparava para o ofício da profissão, pelo qual chegaríamos à cultura... A escola superior preparava o homem culto. E, tanto na escola de medicina, quanto na de direito, nós lavramos e construímos a cultura geral que o Brasil possui. É verdade que todo o período colonial foi um período de cultivo das artes da latinidade e das letras clássicas, pelo Colégio de Artes dos jesuítas, daí nos advindo o gosto pelas letras; no Império, a escola secundária acadêmica continuou a educação pelo ensino das línguas e das letras, já com o Colégio Pedro II, já com os famosos colégios particulares da época. Essa ambigüidade essencial entre cultura acadêmica e cultura utilitária decorre, porém, de confusão mais profunda, em que talvez se manifeste uma atitude fundamental brasileira: a de julgar apenas poder "importar" a cultura, mas não criá-la e elaborá-la para o novo país que a Independência fizera surgir. É essa grave deficiência e lacuna, inconscientemente alimentada, que iremos procurar analisar a seguir.

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Esta universidade federal é afinal, reformada em 1937, passando a incluir a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, refletindo a reforma da Universidade de São Paulo e a criação da Universidade do Distrito Federal em 1934 e 1935.

6. Ainda a deficiência estrutural do projeto nacional de educação No longo periodo da vida nacional que vai da transmigração da familia real à Independência, às Regências, ao Império e à República, o Brasil talvez tenha constituído um dos países em que a doutrina do laissez-faire se aplicou com maior pureza e completa generalização. A Independência ocorreu como se se tratasse apenas de uma mudança de governo. O problema da escravatura jazia ao fundo como algo de crônico. E o de educação teve seu momento de lembrança com o ato adicional. O problema agudo até o Império era o do governo, o da ordem e o das relações internacionais com os demais países. Não estava um país novo a nascer, mas uma velha Colônia a se desligar de sua Metrópole e a se acomodar às novas formas exteriores das influências que iria sofrer. Somente assim poderemos compreender a importância manifestamente secundária que teve, em todo o período, o problema central da educação e cultura nacional. Com a mudança da família real, com a criação do Reino do Brasil houve a lembrança de instituições culturais, as escolas de cirurgia e medicina, as academias militar e de belas-artes, o museu, o Jardim Botânico, mas, a instituição fonte, a universidade, a matriz para nutrir essas instituições, estava a faltar. A Independência nos traz os cursos jurídicos. Depois, uma das Regências, o Colégio Pedro II, e em seguida a Escola de Minas, só muito mais tarde instalada. Em 1827, a fundação dos cursos juridicos foi considerada pelo Visconde de S. Leopoldo, ministro que referendou a lei, "o ato mais glorioso de minha carreira política". Os estatutos, obra do Visconde de Cachoeira, segundo Clóvis Bevilacqua, era trabalho "verdadeiramente notável" de "jurisconsulto e de administrador". Não se encontra senão muito mais tarde, com os pareceres de Rui Barbosa em 1882, a consideração do problema de educação como problema fundamental do país, envolvendo a formação da cultura nacional. É de Rui a sugestão, nos cursos juridicos, da cadeira de direito nacional. Um dos leitores do parecer foi o Imperador. Teria ele pressentido a importância e novidade, a absoluta novidade, dessa cadeira? Sabemos apenas que o destino do parecer foi o das traças e do mofo nos arquivos da burocracia nacional, antecipada pela "conversa" do Imperador com o autor do projeto. Como explicar haver o Brasil - depois de passar pela experiência da Colônia, em que avultou a obra catequética e educacional dos jesuitas que se encerra, no século XVIII, e pela experiência do iluminismo e a reforma fundamental de educação do Marquês de Pombal, reformador do sistema de educação e da universidade, onde contou com um brasileiro para executá-la - chegado à Independência e não sentir em toda a sua gravidade e importância o problema educacional e a significação da universidade, que a Metrópole tão obstinadamente Ihe recusara? Poderiam aqueles rudimentos de aparelhamento educacional, criados nos acidentes da vida pública nacional, suster e nutrir a nação? Como poderia o país viver com escolas profissionais isoladas e especiais e com o Colégio Secundário Pedro II e, deste modo, formar a cultura nacional, iniciar o brasileiro na disciplina do trabalho intelectual acadêmico, que depois se faria o científico, e, ao mesmo

tempo, lançar-se à pesquisa e ao estudo dos conhecimentos humanos e dos conhecimentos relativos ao próprio país? Sabemos que houve múltiplos projetos de universidade, a começar de José Bonifácio. Mas, como explicar que o problema não fosse jamais sentido como algo de importante e representasse sempre veleidades pessoais de inovadores e patriotas? Força é admitir que se havia enraizado a idéia de dependência cultural do país, que não se julgava capaz de elaborar ele próprio a sua cultura cabendo-lhe recebê-la de fora, importada, como quase tudo que consumia. Talvez o fato de a Independência ter feito uma simples separação de reinos levasse à ilusão de uma continuação, passando o país a viver como antes, substituída Coimbra pelas escolas de direito, de medicina e depois de engenharia, funcionando o Colégio Pedro II como o antigo Colégio de Artes. A cultura era bem de consumo, a importar. Nada havia que lembrasse realmente a formação do professor, a formação do intelectual, a formação do estudioso ou scholar. Sabemos que a universidade, originariamente, nada mais foi que um centro de licenciamento do magistério. A cultura em vias de consolidação no século XI exigia os seus mestres. Seu fim nunca deixou de ser este - preparar para a profissão fundamental do mestre e do scholar, do zelador e guardião da cultura e dos métodos de elaborá-la. As outras profissões vinham depois, como desenvolvimentos de profissão básica do saber, como profissões da aplicacão do saber. A formação do clero, do legista e do médico tinham nitidamente esse caráter profissional. Mas a profissão das profissões era a do mestre, como guarda e produtor do saber. Como explicar-se não ter havido no desenvolvimento público do Brasil, a consciência dessa lacuna, por certo a mais grave, para poder mos nos habilitar a descrever e definir a cultura brasileira e a desenvolvê-la e controlá-la? Absorvemos de modo considerável a cultura da época. As idéias da democracia constitucional foram profundamente atuantes. Em pleno período napoleônico, defendemos aqui a República, e só relutantemente aceitamos a monarquia constitucional. Em todo o período do Império, vivemos uma época de liberalismo e formamos nossos costumes e convicções liberais. Também a idéia da ciência e de seu desenvolvimento chegou até nós e apaixonou os espiritos cultos. Assim como o movimento de autonomia primeiro surgiu com a Inconfidência Mineira — movimento marcadamente intelectual — assim a Independência contou com os mais cultos do país. Depois a República repete a situação, e conta com os intelectuais para a sua formulação. Por que o problema do estudo em nível superior da filosofia das letras da história e das ciências não chegou jamais a ser apresentado, ficando o país até 1930 sem as condições para o preparo de mestres nesses campos? Parece necessário examinar-se quais os conceitos que tinha o país do ensino de nível superior. Tudo leva a crer que reputava bastante aquele modestíssimo ensino profissional para a formação da cultura nacional, sendo, portanto tais escolas não apenas profissionais mas formadoras dos cientistas matemáticos, físicos e sociais de que o país não tinha como não carecer. As escolas deveriam ser concebidas como instituições estimulantes e provocadoras, ficando depois a verdadeira formação aos cuidados do

autodidatismo das verdadeiras vocações. Todos os homens cultos, em letras, em filosofia ou em ciências, eram autodidatas. Ora, a fundamental limitação do autodidatismo está em que o seu único instrumento é o livro e, no Brasil, o livro estrangeiro. Ora, o livro é, sem dúvida, como lembra McLuhan, a primeira máquina de ensinar, mas ensinar idéias existentes, e, em matéria controvertida, incapaz de proporcionar o debate e, além disto, quando o ensino depender de experimentação, totalmente ineficazes. Não é verdade que isso nos ajuda a compreender o país e explicar a pobreza de sua vida intelectual no que diz respeito ao estudo dos problemas nacionais? Surgindo em meio a uma revolução democrática, acompanhada por uma revolução do conhecimento humano, o país julgava poder recebê-lo pelos livros, deixando de lembrar que esses livros eram resultados de esforços de que também o país devia participar, a fim de se assenhorear não somente dos seus produtos, mas dos métodos e meios de produzi-los. Dir-se-ia que havia a formação no estrangeiro. E, com efeito, os intelectuais mais capazes do país completaram desse modo a sua formação. O resultado, porém, havia de ser que a intelligentsia nacional teria de refletir inevitável "alienação" cultural e, deste modo, quase sempre, antes perder-se nos aspectos universais dessa cultura "importada", do que voltar-se para os problemas nacionais. Não faltarão também os que nos lembrem que não somente "importamos" a cultura, mas todos os bens de consumo, havendo ficado em todo o século XIX como simples país produtor de matéria-prima, sem os benefícios da industrialização que resultara do progresso científico. Mas não resultou tudo isto de nos havermos conservado colônia, apesar de politicamente independentes, por nos haver faltado a lucidez de dotar o país das instituições produtoras da ciência, que apenas se estava formando na Europa? Como explicar que homens como José Bonifácio, com a completa vivência desse período na Europa, não tivesse sentido a necessidade de plantar no país, como necessidade prioritária imediata semelhante a do governo soberano, a universidade nova de que fora ele discípulo e mestre na própria Europa? Há que reconhecer um estado de cegueira que, se o não atingiu, julgou ele impossível de vencer. Fez, sem dúvida, um projeto de universidade, mas não lutou por ele como soube lutar pela Independência. Admitamos porém, que nesses começos o problema de um governo independente fosse todo o problema existente. Mas, depois? Como aceitar que se tenha perdido todo o século XIX e cerca de um terço do século XX para somente ser possível em 1934 e 35 as primeiras universidades brasileiras com a Universidade do Distrito Federal e a Universidade de São Paulo? Reconheçamos que não se deu isto por sermos jovens, mas por sermos colônia e nos deixarmos embalar por uma vida puramente reflexa da Europa. O único país que ficou independente em todo o nosso continente, nos fins do século XVIII e começos do XIX, foi a América do Norte. E como ficou independente, criou e renovou a sua universidade, que hoje está avançada sobre a da própria Europa. Não somos mais jovens, mas apenas mais velhos, e daí não havermos podido acompanhar a renovação em marcha no século XIX. Vimos que o país, desde o começo, limitou-se às escolas profissionais isoladas — medicina, direito, engenharia (civil e de minas) - e escolas de belas-artes. Nenhuma dessas escolas era de tempo integral, ministrando apenas

cursos geralmente um único, cada escola - de tempo parcial, consistindo de "aulas" de uma relação de matérias, que constituía o currículo, ensinadas isoladamente e sem outra conexão entre elas além da que pudesse decorrer de possível dependência entre o ensino de uma e outra, ou do ensino de um ano para outro. Entre os professores, a despeito do possível laço de interdependência, não havia entendimentos nem reuniões, salvo a aprovação formal dos programas individuais de ensino. Geralmente, as aulas em cada matéria eram três por semana. Além das aulas, o único outro recurso didático era o de exames e, por vezes, provas parciais. É evidente que semelhante método de ensino, sem dizê-lo expressamente, apoiava-se numa filosofia de auto-aprendizagem, competindo ao professor expor a matéria, se possível, clara e estimulantemente, e ao aluno estudar por si e sem auxílio do mestre, que apenas podia aplaudi-lo, ou recusá-lo nos exames. Geralmente, o aluno não tinha, também, qualquer convívio organizado com o outro aluno, havendo alguns que procuravam estudar juntos, mas quase sempre nas vésperas dos exames ou provas. Tais estudos, a maioria das vezes se faziam em livros de texto adotados pelo professor, ordinariamente um apenas para cada matéria. As bibliotecas eram pobres e não dispunham senão de exemplares únicos de cada autor. Habitualmente, o estudo não se fazia nelas, mas pelos livros adquiridos pelo aluno. Para o ingresso nesses cursos superiores de tempo parcial, o aluno deveria ter feito o curso secundário, que sucedia às classes preparatórias primárias. A duração do curso secundário era habitualmente de cinco anos, compreendendo o ensino de línguas — português, latim francês, às vezes o grego e inglês ou alemão, geografia, história, ciências naturais, lógica e filosofia. Este curso secundário, ministrado pelo mesmo método de aulas orais, era igualmente de tempo parcial para os professores e alunos que não se encontravam coletivamente senão nos períodos de aula. No ensino superior, o processo didático era dominado pela confiança no autodidatismo, com o recurso do livro. Muitas vezes, tal processo era ainda mais empobrecido pelo uso de sobentas ou apostilas, contendo resumos ou textos das aulas, lembrando a universidade escolástica ainda sem livros. Desse modo, os cursos eram uma introdução às profissões, visando oferecer alguma base para o preparo profissional, que iria ser adquirido na prática, fora da escola, na profissão. Somente na medicina, por ser ela própria, acima de tudo, uma prática e uma arte, o curso lentamente escapou a esse tipo de ensino oral, e gradualmente se fez de formação com prática hospitalar. Tal progresso acentuou-se depois da década de 20, quando essas escolas começaram a pensar na limitação de matrícula e se fizaram escolas de prática médica, de tempo integral, embora nem sempre para os professores, que continuaram formalmente de tempo parcial. Essa foi a razão pela qual as escolas de medicina, na década de 30 passaram a ter menor número de alunos. Este fato caracteriza a primeira existência de escolas superiores profissionais no Brasil com a qualidade de ensino universitário. Até então, o ensino superior era uma simples introdução geral às profissões, em escolas do tipo de escolas secundárias.

Quando, em 1920, reuniram-se essas escolas sob o regime de universidade, somente as escolas de medicina estavam em condições e em nível para efetivamente participar do projeto, pois a universidade é, acima de tudo, um centro de estudos e de elaboração do conhecimento, e não apenas de transmissão oral dos produtos acabados do conhecimento constante de livros. Esta a distinção essencial entre escola e universidade na sua conceituação histórica. A rigor, somente após 1930 as escolas de medicina atingiram, verdadeiramente, o nível universitário, sobrelevando entre elas a Escola de Medicina da Universidade de São Paulo, cuja reforma e reorganização contou com a cooperação da Rockefeller Foundation. Depois das escolas de medicina, foram as de engenharia que passaram a reorganizar-se e, também neste campo, foi a Politécnica de São Paulo que se fez o exemplo e modelo. Nas escolas de direito não se registrou nada semelhante continuando estas escolas de introdução à ciência e prática do direito. As escolas de odontologia e farmácia a princípio anexas às escolas de medicina acompanharam-nas a grande distância, não chegando a ser verdadeiramente universitárias, mas dando certo caráter prático a seus estudos. Na década de 30 surge em São Paulo a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e, no Rio de Janeiro, ex-Distrito Federal, as Escolas de Economia e Direito, de Ciências, de Letras, de Educação, e o Instituto de Artes da Universidade do Distrito Federal. Esta universidade é logo extinta, criando-se na Universidade Federal do Rio de Janeiro a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Conquanto, tanto em São Paulo, como no Distrito Federal, a idéia fosse lançada com o contrato no estrangeiro de missões de professores, logo a instituição se nacionalizou tomando como seu parâmetro não as escolas de medicina, mas as de direito, e se fazendo instituições escolares de ensino oral por meio dos livros acaso existentes. Já em 50 somavam-se às dezenas, não passando, muitas vezes, de precárias escolas normais de preparo do professor de nível médio, cujo sistema de ensino entrou em expansão explosiva. A completa ausência de tradição universitária, salvo a experiência das escolas de medicina, não facilitou ao país criar o padrão universitário.Já na década de 40, a pressão pela expansão do ensino era extremamente forte, e os moldes existentes para os campos novos de estudo em filosofia, ciências e letras eram os do próprio Colégio Pedro II e alguns bons colégios secundários e o das grandes escolas normais ou institutos de educação estaduais de preparo do professor primário. Sob estes modelos é que se expandiram as faculdades de filosofia, ciências e letras, enquanto as escolas de economia, também criadas na época, tomaram o modelo das escolas de direito que, também elas, entraram em expansão explosiva. Outros também não são os modelos para a expansão das universidades, que não pôde ser contida, multiplicando-se estas pelo país numa inconsciência inacreditável, acompanhando idêntica explosão de escolas superiores de toda ordem e natureza. Não deixa de ser surpreendente a evolução da opinião pública relativamente ao ensino superior. A Metrópole colonizadora nos recusara a experiência universitária, mantendo-nos, a despeito dos esforços dos jesuítas, na dependência da Universidade de Coimbra. Com a separação do Reino do Brasil, D. João instala o Curso de Medicina e Cirurgia e a Academia Militar. As Regências

nos dão os Cursos Jurídicos, transformam a Academia Militar em escola central (engenharia) e criam uma escola de minas. Todo o período do Império reflete a convicção de que o país não podia ir além dessas modestas tentativas de ensino superior, a que se adicionam a de Escolas de Agronomia. Sobrevém a República e continua a moderação e timidez, havendo, entretanto, uma experiência de ensino livre particular de curta duração e a iniciativa de algumas escolas superiores estaduais e outras particulares. Aos 100 anos de Independência, esboça-se um projeto universitário, com a união das escolas de medicina e de engenharia do Rio de Janeiro a uma escola particular de direito. Este grupo de escolas iria constituir a primeira universidade, em 1920, seguida posteriormente da Universidade de Minas Gerais. Na década de 30, surgem em 34 e 35 dois projetos mais ambiciosos de universidade, a de São Paulo (estadual) e a do ex-Distrito Federal. Esta é logo extinta, e a de São Paulo, com a do Rio de Janeiro (federal) reestruturada no modelo de São Paulo, em 1937, mantêm-se, representando novo esforço para firmar verdadeiros padrões universitários. Estes somente existiam, de algum modo, nas escolas de medicina e na experiência das missões estrangeiras na Faculdade de Filosofia de São Paulo e na universidade extinta do Rio de Janeiro (ex-Distrito Federal). O país revelava um agudo senso da dificuldade de se implantar a universidade. A partir de 1940, romperam-se, entretanto, os diques de resistência e o ensino superior entrou em expansão indiscriminada. Somente ao iniciar-se a década de 60 ressurge a idéia de universidade, retomando o espírito da década de 30. Surge, dentro de um modelo adequado, a Universidade de Brasília, criada no mesmo momento em que se elaborava a Lei de Diretrizes e Bases da educação, a qual, entretanto, não consagrava estruturas idênticas à daquela universidade. Ao lado dessa nova universidade continua a expansão do ensino superior dentro dos moldes anteriores, que a Lei de Diretrizes e Bases não chegara a modificar. Não é possivel deixar de reconhecer o quanto a falta de real experiência histórica da universidade ao tempo da Colônia, salvo as tentativas dos jesuítas antes de Pombal, tornou difícil ao país vir a conceituar com precisão a idéia de universidade como instrumento de incorporação de sua cultura nacional e instituição de seu desenvolvimento e controle. Vacilando entre a idéia de ensino superior como formação profissional das primeiras escolas do Império e a da universidade como consolidadora da cultura nacional, manifesta na década de 30 e depois na Universidade de Brasília em 1960, o país viveu todo esse longo período de mais de 100 anos a multiplicar vegetativamente aquelas primeiras escolas profissionais, dentro das precárias condições em que se criara o primeiro curso médico em 1808, entremeando esse laissez-faire com os assomos ocasionais de criação da verdadeira universidade. No meio de todo esse confuso processo, cabe apenas acentuar a transformação dos cursos médicos, que, a meu ver, representam o maior êxito do ensino superior brasileiro, no sentido de real incorporação da ciência experimental à formação profissional superior. Nas escolas de medicina estaria o modelo para a implantação da universidade moderna no Brasil.

o Em 1966 e 1967 promulgam-se afinal os Decretos-leis n s 53 e 252 que estendem os conceitos e a estrutura da Universidade de Brasília às demais universidades federais do país. Entre a transmigração da família real, que nos trouxe a criação dos cursos médicos em 1808, e a formulação afinal da idéia de universidade, transcorrem mais de um século e meio. Durante esse longo período enraíza-se a idéia de um ensino superior superficial, simples reflexo de cultura estrangeira importada, de ensino oral e de tempo parcial, destinado a oferecer diplomas suscetíveis de credenciar seus titulares a cargos e honrarias. O longo hábito de tais escolas deflagra, sob as novas condições do Brasil moderno, uma expansão explosiva de tais escolas por todo o país. As novas leis e planos dos fins dessa década de 60 representam estruturas completamente novas e que dificilmente se poderão implantar no universo caótico e obsoleto das centenas de escolas existentes. As próprias escolas de medicina, únicas que lograram criar seus padrões e ganhar estruturas adequadas ao ensino superior, estão ameaçadas de submergir na diluição da expansão do ensino, em que, a despeito de notável resistência, vêem-se afinal também envolvidas. O desafio do presente é criar ordem e padrões de métodos e de ação universitário na galáxia imprecisa, múltipla e vaga do ensino superior brasileiro em expansão incoercível. O que foi no Império modéstia, ou moderação, ou timidez da infância monárquica, fez-se, nessa segunda metade do século XX, desabusada e incrível facilidade.

7. A falta da universidade moderna para a formação da cultura nacional É preciso recordar que a universidade moderna, com a definitiva introdução da ciência experimental no seu campo de estudos, é desenvolvimento do século XIX, só havendo sido generalizada no último quartel desse século. À universidade escolástica sucede a universidade clássica, com os estudos das literaturas greco-latinas, de matemática e filosofia (compreendendo ciência) e da história, do que Oxford e Cambridge são os grandes exemplos. Os estudos históricos são grande inovação, introduzidos pela primeira vez em 1736 na Universidade Göttingen, na Alemanha. O Brasil tem experiência da universidade escolástica e, depois, da universidade reformada de Pombal. Esta já era a universidade clássica, em seus reflexos do iluminismo, mas não a universidade de ciência experimental. Fora disto, tinhamos a vivência do ensino profissional para o clero, os legistas e os médicos. Com as nossas escolas profissionais isoladas, ficamos com o ensino universitário de tipo profissional, mas não chegamos à universidade de Humboldt, nem sequer a Oxford, com o estudo desenvolvido dos clássicos e da história. No século XIX, com o Colégio Pedro II, tivemos o estudo propedêutico do latim e do grego e o estudo da história no nível secundário, sem o levarmos ao nível superior. Esta parece-me a lacuna mais significativa de nosso sistema escolar. Mantivemos em todo o Império e até o primeiro terço do século XX ensino secundário do tipo eclético - estudos clássicos, no sentido de inclusão do grego e do latim, e geografia, história e ciência - sem nenhuma formação de professores em nível superior, nem para os estudos clássicos e históricos, nem para ciência. No ensino superior, só dispunhamos de escolas profissionais, isto é, de ciências aplicadas e formação vocacional. Não é difícil prever as conseqüências dessa falha fundamental. A chamada cultura humanística de estudos clássicos e históricos, sem a alimentação e a coordenação que só a universidade lhe podia, sobreviveu apenas devido aos esforços autodidáticos, perdendo qualquer caráter de disciplina e séria formação intelectual. Sobrevindo a cultura científica experimental, também não a tivemos na universidade, salvo como pura cultura profissional de ciência aplicada, a qual, só na medicina, logrou de certo modo desenvolver-se, criando o nosso único corpo de homens de ciência, limitados à area de conhecimentos aplicados. Acredito que estejam aí as deficiências maiores dos estudos secundários e superiores do Brasil, estudos, afinal, formadores da inteligência e da cultura nacional. Até a Independência, a nossa cultura era a que nos dera a Universidade de Coimbra, duplamente afastada do que se poderia chamar cultura brasileira: primeiro, pelo caráter universal da cultura escolástica, depois por ser oriunda de uma universidade estrangeira, embora de língua portuguesa. Os residuos dessa cultura são contudo o que viemos a ter durante o século XIX. Entramos então, num período de equívocos e confusão, recebendo da Europa e, sobretudo da França, as idéias gerais que ali se elaboravam sobre o pensamento moderno, filosófico e cientifico, mas não tendo no país o ensino e a instrução organizados nesses campos de cultura geral e especializada. Veja-se bem que a Europa saíra do século XVIII para o século XIX com as suas universidades reformadas para o desenvolvimento das culturas nacionais, que sucediam à cultura universalista da Idade Média. Não esqueçamos que esse é o sentido da universidade germânica de Humboldt e, não menos, o da universidade francesa e inglesa. O ensino na língua vernácula e os estudos históricos, juntamente com os progressos dos estudos matemáticos e científicos, e o progressivo estudo das literaturas nacionais, aliado ao das literaturas grega e latina, faziam dessas universidades, embora ainda um tanto alheias à ciência propriamente experimental, instrumentos capazes de nutrir e dirigir a cultura nacional. A nossa situação era toda diversa. Até 1800, por mal ou por bem, tínhamos a Universidade de Coimbra, reformada no último quartel do século XVIII pelo iluminismo de Pombal, como fonte central de nossa cultura, fonte ampliada com os contatos com a Europa, onde iam os graduados de Coimbra completar a sua formação, de que é um dos melhores exemplos o nosso José Bonifácio. Toda

essa cultura não era nacional, mas tinha sua integridade e suas possibilidades de desenvolvimento. No século XIX, cortamos, como era natural, essa articulação. Criamos nossas escolas superiores puramente profissionais e mantivemos um ensino secundário de tipo clássico e acadêmico. Mas, onde as fontes para o preparo de professores para esses dois tipos de ensino? Com os resíduos da cultura que trazíamos do período colonial, íamos manter tais escolas, mas como iríamos preparar os seus professores? Tivemos que confiar as fontes de nossa cultura ao puro autodidatismo, pela leitura dos livros estrangeiros que as novas condições de difusão da cultura nos viriam trazer e pela possibilidade de viagens à Europa. Ficam, desse modo, perfeitamente claros os motivos do que costumamos chamar a alienação da cultura nacional e os equívocos relativos à própria cultura geral de nossa época, como a hostilidade à universidade e a repentina ênfase positivista dos começos da República, com idêntica hostilidade à universidade. Não só não criamos as fontes que iriam gerar a cultura nacional - a universidade com estudos superiores da cultura humanística e histórica e, depois, com a cultura científica (não-profissional) — como éramos contra a existência dessas fontes, esperando ou supondo que a cultura profissional de escolas de medicina, de direito e de engenharia nos daria, não se sabe como, uma cultura nacional. Era tão grave a lacuna, que certas deformações seriam inevitáveis. Uma delas, sem dúvida, foi a relativa perda de caráter profissional das próprias escolas profissionais. As escolas superiores isoladas perderam seu caráter estritamente profissional e tenderam a se fazer escolas gerais de cultura jurídica e social (as de direito), de cultura biológica e médica geral (as de medicina), de cultura matemática, física e de engenharia politécnica (as de engenharia). Faltando a formação intelectual acadêmica, pelos estudos sistemáticos desinteressados, não tinha como o brasileiro obter a chamada cultura acadêmica, que lhe daria a verdadeira disciplina intelectual dos estudos avançados em qualquer campo de cultura especializada ou geral. Mas, além disso, há a notar o caráter inevitavelmente alienado que havia de ter toda a cultura, que passamos a formar pela assimilação dos produtos da cultura européia, fosse francesa ou alemã, ou inglesa, por intermédio das escolas isoladas superiores. O ensino superior era um ensino de informação sobre a cultura estrangeira, por professores por vezes brilhantes, mas em geral repetidores superficiais, que dispunham de um conhecimento que não haviam construído e de cuja elaboração não tinham a vivência. Dessas aulas-conferências passávamos ao autodidatismo, outra forma de cultura pela informação, agravada pelo inevitável fragmentarismo das leituras, naturalmente acidentais, do livro estrangeiro, que nos punha em contato com a cultura européia, estrangeira ao nosso meio e marcada pelo nacionalismo de cada uma de suas fontes. Caracterizávamos, assim, o intelectual brasileiro pelas origens de suas leituras: havia o mais geral de cultura francesa, depois o de cultura alemã, e de cultura inglesa e, mais raro, o de cultura americana (geralmente, somente em cultura política ou constitucional). Os historiadores e filólogos talvez se pudessem identificar como de cultura portuguesa. Tão profundo era esse traço estrangeiro da cultura do brasileiro que suas obras, mesmo quando na literatura e no romance, não só traem a influência da outra cultura a que se teria filiado o autor, como revelam um tom de espectador, ou observador distante, e não de participante da cultura nacional, que, de qualquer modo, vinha-se elaborando no seio do povo brasileiro. Os livros e romances que verdadeiramente refletem originalmente a vida nacional e ainda assim com certa linearidade e falta substancial de densidade são, dominantemente, posteriores a 1920, salvo exceções marcantes e singulares, como, para citar um exemplo, Euclides da Cunha com Os sertões. Em história, Capistrano de Abreu e João Ribeiro se destacam com obras nacionais. Os demais são como estrangeiros escrevendo sobre o Brasil. O contraste com os Estados Unidos merece ser notado. Também os Estados Unidos nasceram como colônia inglesa. Suas instituições políticas e educacionais tinham sua origem na Inglaterra. Mas a independência fez o país voltar-se sobre si mesmo. E partindo da experiência colonial, que em New England já se tinha formado com originalidade no sentimento de igualdade democrática, o país lança-se a uma aventura política e institucional substancialmente comparável à experiência européia, sem os resíduos da cultura feudal. E como a educação é, desde o princípio, depois da instituição política, a

sua instituição fundamental, registra-se na educação um desenvolvimento próprio e novo, ali se operando a criação da escola primária universal (que era novidade tanto para a Europa como para o continente americano), de uma escola secundária nova (incluindo todos os alunos e todos os tipos de ensino) e uma universidade, também nova, dominada pelo espírito pragmático e científico e com singular ampliação de funções. Deste modo, o país fez-se independente e lançou as bases de um sistema de cultura adequado à formação da cultura nacional e inspirado por um pragmatismo que o predispunha à revolução científica em marcha. Nem sempre se salienta que os Estados Unidos não eram apenas uma inovação política, mas uma inovação em educação e cultura de proporções equivalentes às do governo democrático. Costuma-se dizer que, em cultura geral, a América Latina era, nos começos do século XIX, mais desenvolvida do que os Estados Unidos, mas isto representa uma observação marcadamente superficial, se se tem em vista que a época era de renovação da cultura e não de apoio à cultura anterior em transformação, representada na América Latina pelas suas universidades escolásticas, ou verbalistas e decadentes e, no Brasil, pelas suas modestíssimas escolas profissionais isoladas. Nos princípios do século XIX, o mundo estava vivendo época que lembraria a dos séculos XI e XII, quando se iniciaram a reformulação radical e a consolidação da cultura medieval, o que nos deu a universidade desse tempo. Agora, nos começos do século XIX, temos a Universidade de Berlim como pioneira da universidade de pesquisa no campo das humanidades e das nascentes ciências físicas e naturais. Não houve ruptura radical com a cultura anterior, mas uma atitude nova de pesquisa das próprias raízes dessa cultura, sendo desnecessário sublinhar que a universidade alemã era de pesquisa no sentido amplo e não, ainda, da pesquisa experimental, como veio depois a desenvolver-se. Já era a universidade moderna, porque visava reelaborar o conhecimento humano e dar-lhe sentido nacional e não apenas transmitir o conhecimento universal existente. A cultura moderna tinha de ser formulada pela pesquisa para poder ser ensinada. Sem a universidade como centro de descoberta e de reformulação do conhecimento e como órgão nacional elaborador de cada cultura nacional, não seria possível a difusão pelas escolas comuns (primárias e secundárias) da cultura necessária ao desenvolvimento da nação, nem também a formação acadêmica do novo intelectual, do novo homem "culto" nacional. Foi isto que, paradoxalmente, escapou aos fundadores da nossa independência, apesar da aparente maturidade com que discutiam os problemas políticos da época, levando afinal o pais a implantar um regime de monarquia constitucional e, depois, com a queda do Império, um regime republicano. Augusto Comte que, então, veio a ter influência tão acentuada entre os republicanos, era uma das figuras capitais dessa transformação do pensamento humano, sendo sua oposição à universidade então existente uma oposição ao seu programa, seus métodos, sua filosofia e seus preconceitos, jamais à necessidade de estudos superiores completos e integrais para a reconstrução da cultura humana. O acidente da influência positivista no Brasil é uma ilustração dos perigos do autodidatismo, com a tentativa de inserção do pensamento de um filósofo numa cultura em que esse pensamento não era objeto do estudo, nem havia sido incorporado à cultura nacional. Ninguém nega a profunda influência de Comte no pensamento moderno, de que ele é um dos grandes formuladores, não se restringindo aquela influência à França, mas estendendo-se à Inglaterra e a todo o mundo, jamais sendo possível a qualquer nação tomá-la como oposta à universidade. Tratava-se de reformar a universidade e não de suprimi-la. Seja Comte, seja Humboldt, seja Newman, o que se debatia no século XIX era a nova universidade, devotada à pesquisa e à ciência, que iria reformular o conhecimento humano em todos os campos do saber e, além disto, criar a consciência das culturas nacionais, em face do ressurgimento das línguas vernáculas na cultura e do surgimento das nações para seu apogeu presente. Saíamos da cultura greco-latina para a cultura vernácula, primeiro; depois para a cultura nacional, e por fim, para a cultura científica, e foi todo esse movimento que o Brasil ignorou, vivendo 114 anos, de 1808 a 1922, sem as instituições

destinadas a formular e a ministrar, no nível superior, a cultura nacional e a cultura cientifica pura, ou básica, ou "desinteressada", no sentido de não apenas aplicada. Dir-se-ia que não poderia ser de outro modo. Que as condições do Brasil determinavam que assim fosse. Mas resta explicar por que as condições eram o que eram. Os brasileiros formados em Coimbra eram tão "cultos" quanto os portugueses. Um brasileiro nascido em Pernambuco é o reformador da Universidade de Coimbra, ao tempo de Pombal. Os brasileiros educados em Coimbra eram portugueses envolvidos, como qualquer outro nascido em Portugal, nos negócios do Estado e do Império. José Bonifácio era professor na Universidade de Coimbra e funcionário português. Colaborando íntima e influentemente na Independência, como explicar-se faltar-lhe a consciência da reconstrução institucional que se imporia para a formação da nação brasileira? Todo o problema parecia ser o da mudança de governo. Destacava-se o Brasil da Metrópole, passava a ter um governo autônomo - e tudo estava feito. Sucedia, porém, que a província brasileira não tinha nas instituições raízes que geram a cultura, e, além disto, esta estava em profunda transformação. Recebia antes, o Brasil, essa cultura de Portugal. Com a Independência, esse contato, que era, de qualquer modo, profundo e identificado com a vida colonial, passa a ser a dos contatos com a Europa, pelos livros e pelas viagens ocasionais. A cultura, que sempre fora buscada no estrangeiro, primeiro na Metrópole, e agora nas capitais européias e nos livros, ficou mais estrangeira do que nunca. Não só isto, como já aludi. Passou a ser uma cultura pelo contato com produtos da cultura estrangeira, sem nenhuma participação nem vivência dos métodos, disciplina e prática da elaboração desses produtos. Ficou, por conseguinte, mais remoto e menos integrante o processo cultural brasileiro. O aspecto alienante foi acentuado, perdendo-se o seu possível poder de atuação sobre o real desenvolvimento nacional, que entrou a processar-se espontaneamente num laissez-faire que se fez cada vez mais inexpressivo e apagado, só ocorrendo manifestações de vida pelas suas incoerências mais gritantes. A posição do intelectual no Brasil é, em todo esse período, a de um espectador complacente ou irritado, mas fundamentalmente descrente da vida nacional e impotente. A fórmula de que "no Brasil, é assim mesmo" fica subjacente e a vida continua à espera de acidentes ou crises. A própria curiosidade pelo Brasil é muito mais de estrangeiros do que dele próprio. Essa singular esterilidade da inteligentsia nacional não se pode explicar se não por esse fato da cultura ser um produto de outros países, importado para uso pessoal de um pequeno grupo de beletristas... Isto explica também a pequena importância que têm, no fim de contas, os poucos que sentiram tudo isso e deram, por vezes, expressão a seu desgosto ou seu protesto em documentos significativos de lucidez e de penetração. Nenhum deles acentua, entretanto, com o vigor necessário, a necessidade de se elaborar aqui, com as instituições normais para esse trabalho, a cultura nacional como instrumento para o controle do desenvolvimento nacional. Suas idéias não tinham força porque resultavam de esforços individuais, não inseridos no contexto cultural do ambiente. Toda cultura nacional era informativa, não representando idéias difundidas e vividas em comum. Os grandes documentos da lucidez brasileira caíam no "vácuo cultural" do país, cujo sistema educacional era um grotesco aparelho de "ouvi dizer". Impossível deixar de concluir que a nação continuava colonial e... sem metrópole, no sentido de matriz de sua cultura. A longa estagnação do Império e o despertar precipitado da República ficam explicáveis, como explicável que a Independência não criasse um surto de vitalidade cultural nacional e, depois, a República também se amortecesse até a década de 20. Essa década de 20 é inegavelmente, afinal, um sinal de estar a nação acordando. Não deixa de ser significativo que o despertar seja primeiro um movimento intelectual, de sentido mais literário e artístico do que político e econômico. Mas, segue-se a inquietação política em que estamos até hoje imersos. O Brasil está a viver nos últimos 50 anos uma atmosfera intelectual e social que devia ser a da independência. Estou em que tudo isso tem, como uma de suas razões fundamentais, o fato de não se haver caracterizado no país a necessidade de se criar nele as fontes elaboradoras da cultura que iriam inspirar, acompanhar e controlar o desenvolvimento nacional. Esta função é a da universidade, quando ela se faz autêntica e verdadeira: o conhecimento, o saber humano não se transmite sem que a nação participe do seu processo de elaboração. A simples importação dos produtos desse saber ou conhecimento não cria a cultura num país.

Foi isso que fez a Europa no século XIX. O processo iniciado por Humboldt na Universidade de Berlim generalizou-se por toda a Europa. Antes desse período, toda a universidade estava a transmitir um conhecimento universal já existente e já formulado pelos livros antigos. Com Humboldt, surge para a universidade a função de se elaborar a cultura nacional que vai ser ensinada. Esse ponto parece-me extremamente importante. Assim como a universidade da Idade Média elaborou a cultura universal da Idade Média, a universidade da Idade Moderna teve de elaborar a cultura moderna e nacional para ensiná-la. Então, não se trata de dizer apenas que a universidade precisa dedicar-se à pesquisa. Ela tem de reformular o conhecimento que iria ensinar, conhecimento que não estava "feito" mas em processo de elaboração. Quando se diz que a universidade deve passar à pesquisa não significa deva haver um acréscimo, isto é, que lhe devemos anexar mais uma tarefa para ela se transformar na universidade de pesquisa. A universidade somente será de pesquisa quando passar a reformular a cultura que vai ensinar. Pode parecer excessivo dizer que a cultura humana tem de ser reelaborada para ser ensinada. Isso, porém, é literalmente verdade. Se se trata de uma cultura própria e já existente, a transmissão é uma revisão e adaptação, pois toda cultura é ela própria um processo dinâmico. Mas se desejo transmitir uma cultura nova, não a posso transmitir pondo o aprendiz em contato com os "produtos" dessa cultura, mas tornando possível ele aprendê-la pelo processo de sua formação, de modo que ele, de algum modo, a reinvente, inserindo-a em seu modo de pensar. Ele não deve ficar apenas capaz de compreendê-la mas de fazê-la e de continuá-la, sem mencionar a capacidade de aplicá-la. A cultura realmente existente é a que estiver incorporada pela sociedade, e a sociedade é hoje nacional. É absolutamente necessário que a educação seja um processo de incorporação pelo aluno da cultura real da sociedade, cultura de que a universidade seria a reformuladora; e não um acréscimo, não um ornamento, não um simples processo informativo. Só conseguiremos transmitir a cultura e o saber quando transformarmos as nossas instituições educacionais em instituições realmente embebidas no solo brasileiro, na terra brasileira, a refletiram a peculiaridade brasileira e o modo de pensar brasileiro. Foi exatamente isso que Humboldt imaginou para a Alemanha. No século XIX, a Alemanha tinha sido derrotada pela França e estava vivendo um momento de humilhação. A universidade, naquele país, ressurgiu como uma forma de se criar a cultura germânica, como um meio de se formular a cultura nacional. Quer dizer, a universidade é ciência e nacionalismo, é pesquisa e nacionalismo9 . Com aquele despertar que busquei datar da década de 20, o país, na data do centenário de sua Independência, formula o primeiro esboço universitário, com a Universidade Federal no Rio de Janeiro e, pouco depois, a de Belo Horizonte, em Minas Gerais. É de admitir-se que a medida subentendesse o esforço de transformar o ensino superior no processo de tomada de consciência da cultura nacional, em formação, e de aquisição de novos métodos de pensamento e de saber, fundados na ciência experimental, para a solução dos seus problemas. A nova ciência já não era uma ciência de especulação ou de exegese e interpretação do conhecimento existente no passado, mas ciência criadora e extraordinariamente fecunda em conseqüências culturais e tecnológicas para a solução dos problemas materiais relacionados com o poder e o enriquecimento humano. O novo ensino era um ensino de descobertas, a exigir uma atitude de espírito e métodos de trabalho intelectual radicalmente diversos dos que dominavam no passado. Na própria Europa, não foi fácil a adaptação da universidade à revolução do conhecimento científico. Somente na segunda metade do século XIX consolidaram-se, dentro da universidade, o novo espírito e os novos métodos. Ainda assim, em meio a grandes resistências de alguns dos mais conhecidos centros do saber humano. É que a universidade, além dessa nova tarefa de absorver e aumentar o novo saber experimental e tecnológico, conserva a sua antiga função de zelar e transmitir a cultura existente e refletir a cultura nacional. Diante, porém, da transformação em que entrou a própria sociedade, mesmo a tarefa de transmitir a cultura existente e refletir o caráter da cultura nacional passou a exigir estudos novos, por seus métodos, ou seja, a impor os métodos de pesquisa que dominavam o campo do saber científico e experimental. 9

So recentemente está a se esboçar, de novo, uma cultura planetária global. A sua incorporação em cada cultura nacional sera um novo problema.

Estudar e saber, longe de continuar a ser o feliz emprego do lazer humano e consistir, dominantemente, em compreender o homem e o mundo, para aprimoramento e refinamento do seu espírito e de sua vida, passou a ser árduo trabalho, em muitos aspectos material, a exigir todo o tempo e a depender de um tipo de imaginação totalmente diverso do que inspirava a antiga cultura chamada, talvez impropriamente, de humanística, pois era toda a cultura existente naquela época, inclusive a científica. A ciência nunca foi, nesse período em que se estava operando a transformação da humanidade, tida como uma cultura não humanística. Na universidade de Humboldt, o humanismo compreendia filosofia e ciência. Estavam ambas completamente integradas. Foi o tremendo desenvolvimento científico moderno que criou a dualidade de culturas, a humanística e a científica. A humanística é dominada, sobretudo, pelo conhecimento do passado e por suas letras. A cultura cientifica, ao contrário, se impregnava de um sentido de futuro, sendo este um dos aspectos fundamentais da revolução do saber humano. Esta revolução foi na verdade como a de Copérnico: a cultura que era do passado volta-se quase toda para o futuro. Surgiram, então, as escolas-laboratório, as escolas-pesquisa. E todo o saber humano, fosse humanístico ou de estudo da natureza, entrou em fase de radical reconstrução. A doce atmosfera, de certo modo convencional, do saber, desapareceu para surgir a indústria do conhecimento, e as escolas se fazerem casas de trabalho árduo e persistente, exigindo o que hoje se vem chamando tempo integral e devotamento exclusivo e que não é mais o que a condição normal de todo sério trabalho humano. O desenvolvimento do ensino superior passou a ser medido pelo grau em que professores e alunos assim conduziam o seu trabalho e adotavam os novos métodos do novo conhecimento. É essa transformação que vamos procurar caracterizar no ensino superior brasileiro, distinguindo fundamentalmente o que é simples ampliação e crescimento das condições anteriores, às vezes com grave deterioração dessas condições, e o que é real renovação e começo do novo espírito, do novo método, do novo estilo do saber e do novo modo de trabalhar no campo das ciências físicas e humanas. O novo professor universitário e o novo aluno da universidade são, hoje, dois trabalhadores modernos, cujo grau de esforço e dedicação se fizeram tão particulares e essenciais que antes se fundam numa paixão do que em possíveis incentivos materiais, embora estes não sejam, sobretudo hoje, desprezíveis. Tomaremos, assim, as nossas escolas superiores em seu desmedido crescimento, sem maior deslumbramento pela sua expansão, buscando investigar e descobrir o que realmente nelas representa a transformação, melhor diria, mutação, para firmar os pontos de sua sobrevivência e mostrar os aspectos em que perduram os velhos moldes em vias de desaparecimento. Distinguiremos, por isto, a simples expansão, que é resultado da explosão de aspirações em que vivam os que hoje buscam o ensino superior, e o que se vem realmente fazendo para adaptar a universidade às novas necessidades da sociedade em transformação, de modo a evitar que a sua expansão venha a constituir, para os que a procuram, uma paradoxal frustração. Estagnada ou não, a educação superior tradicional representa o que havia de mais significativo no país, no sentido de valorização e prestígio social. Por isso mesmo, não se pode pedir à mocidade que busca essa educação ainda tradicional, que seja ela a renovadora de seus métodos e de seu conteúdo. Não pode mover essa mocidade motivação diversa da que serviu aos que antes a buscavam. Entre as resistências à mudança necessária e indispensável, não está apenas a sociedade brasileira, de si mesma, naturalmente, letárgica, podendo sofrer a mudança, mas raramente a promovendo; não estão apenas os professores ameaçados de perder seus hábitos longamente aceitos: estão os próprios estudantes a refletir tudo isso na motivação que os projeta para as suas novas ambições de estudos e de saber. Se os mais velhos se cultivaram em escolas de tempo parcial, recebendo o saber por impregnação auditiva e um vago ocasional convívio com os professores, é natural que os mais novos também julguem que se cultivarão do mesmo modo, para poderem fruir o prestígio social de que ainda goza a velha elite formada segundo os velhos métodos. Não se trata da organização formal do ensino superior, nem mesmo dos fins proclamados na abundante legislação que rege esse ensino. Cogitaremos, antes, de valores subjacentes, geralmente implícitos, e que realmente governam a sua expansão, de certo modo explosiva, a partir de 1940. As sociedades latino-americanas, dentre elas a brasileira, eram sociedades, até a I Guerra Mundial, em

desenvolvimento acentuadamente lento, de tipo oligárquico, e de algum modo aristocrático, pois não só eram sociedades para os poucos, como vinham de certa maneira refletindo a Europa, cuja cultura e civilização buscavam imitar, com um apreço especial pelo que se poderia chamar cultura geral em oposição à cultura científica ou técnica.

8. A universidade brasileira no século XX e a premente necessidade da escola pós-graduada Com a abolição, a queda do Império e a proclamação da República entramos em período de mudanças sociais, que a educação teria de acompanhar. O modesto equilíbrio dos períodos monárquicos, obtido, em grande parte, à custa da lentidão de nossos progressos e do número reduzido de escolas com que se procurava manter a imobilidade social rompe-se afinal, e tem início certa expansão do sistema escolar pelo incentivo à escola privada e por certa gradual expansão da escola pública. O pensamento liberal republicano marcado pela idéia de que a educação competia à sociedade e ao indivíduo, e não ao Estado, reduz a função pública no campo da cultura a regular e promover a atividade privada, reforçando-se assim a tradição, nascida ao tempo do Império dos colégios e escolas particulares. As escolas privadas passariam a ser autorizadas pelo governo e a gozar de regalias, tendo os graus conferidos sanção pública. Isto deu lugar às escolas privadas de ensino superior e às escolas mantidas pelos governos dos estados, cujos graus teriam valor para todo o país, quando autorizadas e fiscalizadas pelo governo federal. Entre 1889 e 1918, 56 novos estabelecimentos de ensino superior, na sua maioria privados, são criados no país, os quais, somados aos 14 existentes no fim do Império, elevam o número total a 70. A idéia de universidade que vinha desde o tempo do Império aparece em dois ou três projetos, e afinal, em 1915, com a Lei Carlos Maximiliano de reforma do ensino superior, faculta-se ao governo, "quando julgasse oportuno", reunir a Escola Politécnica e a de Medicina do Rio de Janeiro em universidade, incorporando uma das Faculdades Livres (privadas) de Direito da então capital. Cinco anos depois, em 1920, surge afinal a Universidade do Rio de Janeiro, com as três escolas mencionadas, e também, em 1927, a Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Perdura a tradição das escolas superiores profissionais, não representando a idéia de universidade senão a sua reunião em administração conjunta. Fermentava, entretanto, a idéia da universidade com os estudos acadêmicos de filosofia, ciências e letras, conforme comprovam os inquéritos sobre a educação levados a efeito pelo jornal Estado de São Paulo (1926) e pela Associação Brasileira de Educação (1928), e que tiveram grande repercussão. A revolução de 1930, que rompe com a situação imobilista anterior abre, afinal, perspectivas para a mudança social, e logo em 1931 promulga-se o Estatuto da Universidade Brasileira com a inovação de permitir que uma escola de letras, ciências e educação pudesse substituir uma das três escolas tradicionais na constituição da universidade. Em 1934 surge a Universidade de São Paulo congregando, além das escolas tradicionais, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e o Instituto de Educação e, quase ao mesmo tempo, a Universidade do Distrito Federal, com as Escolas de Economia e Direito, de Ciências, de Letras, de Educação e o Instituto de Artes. Em 1937 reorganiza-se a Universidade do Rio de Janeiro, como Universidade do Brasil, com a Faculdade de Filosofia e depois a escola de economia e outras mais. A longa germinação da idéia de universidade na Colônia, a hibernação da semente em todo o século XIX, os modestos inícios com a universidade profissional do médico, do jurista e do engenheiro no primeiro quartel do século XX, o esforço pela transformação da universidade na universidade moderna — a universidade de

pesquisa, ciência e ensino - no segundo quartel do século XX; a presente explosão em quantidade é o que iremos tentar acompanhar neste capítulo. Aliás, já agora nesta década, com a reestruturação em marcha, não é apenas para a universidade de pesquisa que estamos marchando, mas para a multiversidade do século XX que Clark Kerr descreve, ou seja, a universidade da sociedade industrializada, integrada na sociedade, no seu comércio, na sua indústria, nos seus serviços, na sua arte e no seu desenvolvimento global. A tradição do ensino superior brasileiro, antes da universidade, foi a escola superior isolada, de tempo parcial, com professores e estudantes reunidos em certos períodos diários para um curso de conferências (aulas) que se previam boas, senão notáveis. O segredo da eficiência dessa escola estava no professor, escolhido por um concurso público e competitivo, que requeria estudos prolongados e uma aptidão superior para o estudo. Sendo as escolas instituições do Estado, a lei, o governo e a opinião davam a esse professor uma posição de extremo prestígio, para o que lhe concediam honras e privilégios especiais. A remuneração era pouco mais do que simbólica, mas isto visava sobretudo caracterizar a função mais como de honra do que de proveitos. O poder, na escola, para sua direção e funcionamento, competia à congregação dos professores catedráticos, que elegia um diretor para administrá-la. O programa e o ensino eram da competência desse professor catedrático, o qual, neste ponto, lembrava o Herr Professor da universidade alemã. Enquanto o consenso social em tomo dessa escola superior isolada e fechada, destinada à formação da elite pela cultura superior nas profissões liberais, pôde ser mantido, as escolas superiores foram poucas e desempenharam as suas funções sociais com zelo e razoáveis resultados. Inspirava-as um respeito pela cultura intelectual herdado de nossas tradições humanísticas de aristocracia do espirito e da inteligência. Embora o curso superior não oferecesse todas as condições práticas para a formação do estudioso (scholar), resumindo-se às aulas-conferência, a qualidade do professor chegava muitas vezes a provocar o gosto pelo estudo, e alguns graduados se faziam, depois, especialistas e homens de alta cultura, marcados, é certo, pelo autodidatismo. Todas as brilhantes figuras de nossa cultura política, jurídica, histórica, geográfica, filológica e literária e, por fim, matemática e científica, resultam, em última análise, dos estímulos, senão da formação do ensino superior brasileiro. A convivência com professores eminentes, malgrado o caráter inevitavelmente geral e superficial dos estudos, atuou como um fermento para a formação autodidática posterior. A vitória do estudante, mais tarde, nos concursos para catedráticos, representava a sua verdadeira graduação, pela qual se elevava à categoria de professor da sua alma mater. Foi essa tranqüila e descansada situação que começou a ser transformada na década de 20, com a reunião da escolas de medicina, engenharia, e direito em universidade, a Universidade do Rio de Janeiro, e logo depois, em 1930, com a idéia de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, para ampliar a área de estudos oferecidos pela universidade, proporcionando cursos superiores nos campos em que no Brasil, continuando tradição vinda do Império, só se mantinham cursos de nível secundário. A introdução da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras tinha em vista o estudo especializado, em nível superior, desses campos de cultura desinteressada e não

propriamente profissional. Viria substituir o autodidatismo antes reinante nesses estudos. As primeiras escolas do tipo, no Rio (Universidade do Distrito Federal) e em São Paulo (Universidade de São Paulo, criada em 1934), trouxeram da Europa missões de professores estrangeiros para implantá-las. Representavam real acréscimo ao ensino superior então existente no país e tinham (sobretudo em São Paulo) o propósito de se fazerem as escolas centrais da universidade, ministrando os cursos básicos propedêuticos aos cursos das escolas propriamente profissionais de medicina, direito e engenharia e, depois, à especialização literária, científica e filosófica. Não logrou a nova universidade cumprir a sua ambiciosa missão. A tradição - a rigor antiuniversitária, se concebermos a universidade como estudos integrados dados em cooperação por várias escolas, entre as quais a de filosofia seria a central (modelo germânico) - opôs-se à posição pretendida pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta tradição era a da escola superior isolada e independente, de tipo profissional, que nos vinha do Império, com a fundação das escolas de medicina e de direito, as quais, com a Central de Engenharia Politécnica, criada depois, constituíam o grupo tradicional e prestigioso do ensino superior brasileiro. Em seu desenvolvimento posterior, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, sofrendo os efeitos dessa tradição, fez-se dominantemente uma nova escola profissional de preparo para o magistério secundário, com existência isolada e independente, como as demais escolas profissionais. Isto não obstou a que melhores e mais ricas, integradas em universidades, se fizessem também escolas de preparo dos especialistas avançados no campo das letras e das ciências, tanto sociais quanto naturais, físicas e matemáticas. Deste modo, mesmo depois da criação da Faculdade de Filosofia, à Ciências e Letras e da reformulação da universidade em 1930, persistiu a tradição da escola superior independente e auto-suficiente e da universidade do tipo confederacão de escolas profissionais. A real experiência histórica é a da escola superior independente e auto-suficiente, governada por sua congregação de professores. O número de tais escolas, na década de 60, já era da ordem de quase 700. A despeito de a universidade já existir formalmente desde 1920, perduram as escolas como instituições profissionais autônomas, dentro da federação universitária. A única real mutação operada no ensino superior no século XIX foi a introdução da ciência experimental na universidade. No Brasil, dada a particularidade de a universidade constituir mais uma confederação de escolas do que uma integração universitária, essa mutação não iria ocorrer em toda a universidade, mas em algumas das suas escolas. As primeiras que a fizeram foram as escolas de medicina. Essas escolas constituem o que há de mais significativo no desenvolvimento do ensino superior brasileiro. São elas as grandes escolas modernas da universidade brasileira em formação: efetuaram a transformação do tipo de saber tradicional e imóvel no tipo experimental e científico, transformaram os métodos para o ensino desse novo saber, montaram os laboratórios e bibliotecas para a experimentação científica, desenvolveram a pesquisa desinteressada e aplicada e formaram um corpo de cientistas e profissionais que ombreia, à vontade, com os corpos de cientistas e profissionais dos países avançados e desenvolveram na saúde pública e nos hospitais uma prática de medicina de alta qualidade e de teor científico de alto padrão. Também na engenharia politécnica e, especialmente, na engenharia civil, registramos progressos. A cultura jurídica teve, sobretudo na escola de São Paulo e do Recife, momentos de ascendência e significação. O fato de serem as escolas

estabelecimentos isolados de ensino superior não impediu que nos dessem, nesses três campos tradicionais da cultura profissional do século XX, a sua contribuição perfeitamente razoável para a situação econômica e social em que vivíamos. As lacunas do ensino superior brasileiro somente vêm acentuar-se depois da I Guerra Mundial, quando o desenvolvimento econômico do país passa a exigir a inclusão da ciência, com seus métodos de pesquisas, no ensino superior e na universidade. Para essa universidade de ciência e de pesquisa, a escola pós-graduada se impõe, pois deixa a universidade de ser puramente de transmissão do saber existente para se fazer a criadora do novo saber e do novo conhecimento. A reforma do ensino superior brasileiro não se poderia assim fazer apenas com a Escola de Filosofia, Ciências e Letras pós-secundária, que na década de 30 se vem a criar, pois essa escola com seus cursos de três e quatro anos não iria passar, de certo modo, do antigo Colégio de Artes de Coimbra, ou do Colégio de Artes Liberais da universidade anglo-saxônia. Com a criação dessa faculdade, não nos aproximamos do modelo humboldtiano da universidade alemã de pesquisa e ensino aprofundado, embora esse pudesse ter sido o desejo dos fundadores. De qualquer modo, parece ter havido, no caso da Universidade de São Paulo, a idéia de confiar-lhe a formação propedêutica para as demais escolas profissionais, e após esses cursos básicos prosseguir na formação especializada e de pesquisa. A realidade, entretanto, foi que as faculdades de filosofia, ciências e letras, mergulhadas no contexto do ensino superior brasileiro de escolas profissionais, separadas e independentes, acabaram por se fazerem escolas normais de preparo do magistério secundário e, com poucas exceções, colégios de artes liberais. A escola pós-graduada de pesquisa e estudos avançados é que teria de preencher a função de preparo dos quadros superiores de cientistas de ciências humanas, fisicas e naturais, e das respectivas tecnologias como a escola de medicina chegou, de certo modo, a se fazer para as ciências biológicas e médicas. Transformada a escola de filosofia, ciências e letras em escola de formação de licenciados para o ensino secundário, e, nas melhores dentre elas, de professores de ensino superior para ela própria, entrou em expansão. Acompanhando-as, vieram as escolas de economia e administração, também hoje em crescimento vertiginoso, e outras de carreiras curtas. O ensino superior oferece, hoje, mais de 50 diferentes cursos, mas de modo geral em nível de pré-graduação, e o sistema expandiu-se em mais de 700 escolas, 300 das quais são isoladas. A reforma universitária, que se vem fazendo objeto de verdadeiro clamor público, hoje em fase de implantação, reflete dois problemas nascidos da expansão universitária por aglomeração de escolas isoladas e da necessidade da escola de pós-graduação de pesquisas e estudos avançados. O primeiro, mais imediato, é o da integração dessas múltiplas escolas especiais e isoladas entre si, com grave duplicação de equipamento e professorado, em conjuntos mais amplos para melhor aproveitamento dos recursos humanos e materiais. Em essência, um problema de racionalização dos serviços de ensino oferecidos pela universidade ampliada e desordenada, que resultou do seu crescimento. Este problema foi objeto de decretos-leis para a reestruturação da universidade. O segundo problema é muito mais importante. É o da reforma da universidade, para poder ela cumprir a missão de universidade de pesquisa, de estudos profundos e avançados, pelos quais possa construir a cultura brasileira e fazer marchar o

conhecimento humano, missão que não tinha nem podia ter com suas escolas de tempo parcial e professores de tempo parcial e sem outro preparo que o autodidático, de que apenas se excetuou a escola de medicina, a qual, a despeito das condições gerais, logrou fazer-se escola de saber experimental. A reforma do ensino superior brasileiro, reforma que o país está a solicitar desde 1920, e que agora se inicia, é a dessa introdução do espírito, do método e do programa de pesquisa, graças ao qual a universidade se irá fazer o centro de estudos para o professor, tanto, se não mais, do que para os alunos, e não apenas simples escolas de ensino para a transmissão do saber existente. Assim como nos equivocamos em 1930 com a idéia de que a escola de filosofia, ciências e letras iria transformar a universidade, assim, parece-me, corremos o risco de nos equivocar novamente se julgarmos que, pela simples reestruturação dessas escolas isoladas em um conjunto mais racional e integrado, iremos produzir a universidade moderna. A real necessidade é a de criar uma nova escola, a escola pós-graduada para estudos profundos e avançados, destinados à produção do conhecimento e do saber, o qual irá ser ensinado na própria universidade em seus níveis de pré-graduação. Essa escola pós-graduada não será a simples extensão das atuais escolas, mas uma escola mais alta, à maneira das grandes écoles de Napoleão, que venha a ensinar após os próprios cursos das faculdades de filosofia e economia, e após os cursos profissionais longos de formação superior, de que atualmente dispomos. Essa nova escola pós-graduada passa, em rigor, a ser o centro e a cúpula da nova universidade, a qual manterá seus atuais cursos pós-secundários de pré-graduação para a introdução às múltiplas culturas modernas e para a forrnação profissional que for possível nesse nível e também os cursos profissionais de nível verdadeiramente superior das carrreiras longas, mas saberá que tais cursos somente se manterão em dia com o progresso do conhecimento humano se, na nova escola pós-graduada, estiver a universidade formulando e reformulando esse novo saber, para o próprio ensino nos cursos regulares de pré-graduação e formação profissional superior. A escola pós-graduada é o centro de formação do professor de ensino superior e dos pesquisadores e cientistas humanos, sociais e físicos de todo o país. É necessário esclarecer que o desenvolvimento do ensino superior no Brasil tem dois períodos distintos. Primeiro, o do ensino superior pelo que se poderia chamar de grandes escolas profissionais: de medicina, direito e engenharia. Nesse período ganhou-se experiência e se firmaram padrões que asseguraram o desenvolvimento de que as escoIas de medicina são o melhor exemplo e pelo qual se poderia chegar aos estudos pós-graduados. O segundo período é o da expansão das escolas de filosofia, ciências e letras, de economia e as outras que se lhes seguiram, de que não tínhamos experiência e que resultaram em simples escolas de pré-graduação, lembrando os liberal arts colleges anglo-saxônicos, que não podem chegar, automaticamente, ao nivel de pós-graduação. Como a expansão dessas escolas se faz, dia a dia, mais incoercível, a ponto de já estar o seu exemplo a contaminar as próprias escolas tradicionais e levá-las também a multiplicarem-se, com grave perda de seus padrões, é necessário que o país se fixe na idéia, que também inspirou Abraham Flexner nos Estados Unidos, de criar a escola pós-graduada. Nessa fase de renovação e reconstrução é que está imersa nos dias de hoje a universidade do Brasil.

A remota aspiração dos jesuítas, no século XVI, de criar na Colônia a universidade renascida no século XVIII, com o movimento dos inconfidentes mineiros pela Independência, repetida dezenas de vezes durante o Império, e por três vezes renovada durante a República, mas sempre negada, implanta-se afinal, modestamente, na década de 30, incorporando as três escolas tradicionais para depois crescer e se fazer transbordante, lembrando, na evolução do país, uma como crise de conversão, em que velha e persistente hostilidade faz-se abruptamente adesão incoercível e entusiástica. São hoje quase 50 as universidades brasileiras, todas mergulhadas em uma aguda crise de crescimento; a sua mocidade estudantil e o seu professorado tomados do espírito de reforma; o governo sensibilizado pelo movimento, tudo levando a crer que os próximos 10 anos serão a década da transformação da universidade, da racionalização de sua organização institucional e da implantação da escola pós-graduada para a pesquisa, para a tomada de consciência da cultura nacional e para o desenvolvimento econômico do país. Geralmente as nações orgulham-se da velhice de suas universidades; o Brasil vai distinguir-se pela extrema juventude do seu vasto aparelho universitário. Com a radical transformação do saber e da cultura do nosso tempo, ele poderá incorporá-la, sem nenhuma das resistências e empecilhos do passado, nos seus mais recentes desen volvimentos e conquistas.

9. Consolidação e expansão do ensino superior

9.1 Expansão do ensino superior Ao considerarmos a expansão do ensino superior, devemos ter em vista que a mesma se fez ao correr das circunstâncias, sem plano de previsão, ou mesmo propósito deliberado. Além disso, não decorreu de ato legal determinado, nem refletiu o longo debate educacional que se iniciou na década de 20 e não mais se interrompeu até a votação da Lei de Diretrizes e Bases, em 1961. Registra-se, após esta lei, uma exacerbação do ritmo de crescimento mas o mesmo obedecia à impulsão anterior pelo aumento de oportunidades de matrícula. Desse modo, o crescimento acentuado do número de escolas e, conseqüentemente, da matrícula no ensino superior acompanha os modelos das escolas existentes dentro da legislação implantada pela revolução em 1930 e revista em 1937 com o lançamento do Estado Novo. Todo o longo debate educacional iniciado na década de 20 e prolongado até 1960, e mesmo depois, era, em parte, um movimento de crítica e revisão dessa legislação. Restauradas as condições democráticas com a Constituição de 1946, surge, afinal, o projeto da Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional, mas o mesmo não logra entrar em discussão na Câmara Federal senão em 1961, sob a forma de um substitutivo em parte discordante do modelo inicial. Durante esse período de expectativa da nova lei, o sistema existente continuou a crescer, multiplicando-se as escolas. A situação real que se estabeleceu foi a de se continuar a criar escolas com o propósito dominante de se credenciarem os educados, melhor diria, os diplomados, para os postos e posições que se reputavam privilegiados para a constituição da elite do país. Em essência, o ensino superior continuava a ser esse serviço de distribuição de credenciais para certos cargos e profissões e não os centros de estudos da cultura e do homem brasileiro e das pesquisas para a descoberta e o avanço do conhecimento humano. E, por isso mesmo, as escolas podiam se multiplicar, apesar das limitações do saber existente no tempo e lugar, e da imensa falta de recursos financeiros. Já aludimos à resistência oferecida pelas escolas ao crescimento pela ampliação da matrícula, e à tolerância pela multiplicação de novas escolas. Essas duas tendências se revelam tão dominantes em todo processo de expansão, que precisamos voltar a apreciá-las, a fim de buscar esclarecer melhor todo o processo, se não de mudança, de crescimento do sistema de ensino superior. Sendo escolas superiores empreendimentos difíceis, cujo êxito requer grande experiência, imensas bibliotecas, grandes instalações materiais e alto professorado, o fato de se preferir criar uma escola nova a ampliar outra já existente não deixa de ser paradoxal. Dir-se-ia que se tratava de questão de espaço e orçamento, mas essa dificuldade também haveria para a nova escola. Antes parece que a escola nutria, a respeito de sua identidade, a idéia de que a perderia com a sua ampliação e correspondente crescimento da matrícula. Com efeito, talvez tudo se prendesse à forma de constituição da escola pelo agrupamento de cátedras únicas, ficando a sua expansão impedida pelo fato de haver um único catedrático para cada matéria do currículo. Como a ampliação da matrícula importaria em multiplicar-se o número dos catedráticos, a escola resistia à ampliação, porque iria criar a competição entre as cátedras e retirar-lhes o tranqüilo sentimento de monopólio. Se a cátedra fosse organizada à maneira de um departamento, podia-se imaginar a ampliação pelo aumento dos professores adjuntos ou assistentes, mas a cátedra não era a mesma coisa que o departamento, e sim a responsabilidade do catedrático único pelo ensino da cadeira em um curso único, a ser dado por ele, com o auxílio de professores-assistentes: daí não poder a escola crescer sem atingir essa responsabilidade única pelo ensino por parte do catedrático único. A real concepção da escola superior no Brasil parece ter sido, desde o princípio, a de um organismo composto de cátedras de certas matérias, que constituíam o currículo do curso único oferecido pela escola. Vemos isto muito nitidamente nos cursos médicos, jurídicos, ou de engenharia, das escolas tradicionais. Como cada cátedra só podia ter um catedrático, a matrícula ou o crescimento da escola estava adstrito à quantidade de alunos de que poderia se ocupar o catedrático. O numerus clausus não era tanto o da capacidade da escola pelo seu espaço e equipamento, quanto o do número de alunos de que podia se ocupar o professor. Criados o catedrático e o currículo único do curso, cada escola não podia crescer além da capacidade individual

do catedrático. Multiplicar os alunos seria imediatamente deteriorar o ensino, pelo aumento da relação professor-aluno. A ampliação só se podia fazer com a criação de uma nova escola. Esse molde é, sobretudo, visível nas escolas de direito, onde durante muito tempo não chegaram a existir professores-auxiliares ou assistentes. Mas sempre também predominou nas escolas de medicina e nas de engenharia, mesmo que existissem professores-auxiliares, pois estes não davam a cadeira, mas apenas ajudavam o catedrático. O crescimento dessas escolas só podia efetuar-se pela duplicação de cursos com a nomeação de novos catedráticos, o que acabou por acontecer nas escolas de engenharia - com a diversificação de tipos de engenheiros e a criação de novas cadeiras para matérias específicas dos novos cursos, mas ainda aí não para a multiplicação de cursos idênticos - e nas faculdades de filosofia, ciências e letras, com a diversidade de seus vários cursos, cada um deles, entretanto, contido dentro do molde de currículo único e uniforme dado por catedráticos únicos de cada matéria. Esse tipo de organização importava, assim, na impossibilidade de poder a escola ampliar sua matrícula. Chegada a certo ponto, a ampliação da matrícula só se podia fazar com a criação de uma nova escola. O numerus clausus, que se veio a adotar, não dependia da escola e seu prédio e instalações, mas do número de catedráticos. Daí ser fixado para cada curso e não pela escola como um todo, o que se podia ver nas faculdades de filosofia, em que o número de matrícula era fixado pelo professor principal do curso. Nas de medicina e direito o problema não chegou a existir, porque cada uma oferecia um curso único. Nas escolas de engenharia e nas de filosofia, o problema se resolveria com os professores catedráticos de cada curso, ressalvado sempre que o curso não podia crescer, pois era sempre único, embora de tipos diferentes. Deve este fato ter concorrido para a recente supressão da cátedra, embora não conste que este tenha sido o motivo explícito de tal supressão. A crítica à instituição da cátedra acentuou-se mais quanto a ser a cátedra única e propriedade do catedrático, problema que somente se poderia resolver com a multiplicação das cátedras, ou com a livre-docência, cuja instituição chegou-se a fazer, sem, entretanto, tomar entre nós o desenvolvimento que teve na Europa. A idéia da cátedra como propriedade vitalícia pode ser discutida, mas não é, em si mesma, algo incongruente, pois representa privilégio e segurança do docente, o qual tendo as necessárias condições de competência e devotamento, encontra na instituição da vitaliciedade a segurança, liberdade e independência de que precisa para ser um verdadeiro professor universitário. A deficiência da organização não está no catedrático vitalício, mas na unicidade dos cursos superiores e na unicidade do catedrático. Se se admitisse a idéia de cátedra por professor dentro da sua especialidade na matéria, e não de toda a matéria, estaria resolvida a dificuldade, passando a haver vários catedráticos em cada matéria, a dar cursos diferentes na mesma matéria, conforme sua especialização, ou o nível do curso, ou o ângulo pelo qual iria ministrar ensino em seu campo de estudos. Com o crescimento corrente dos conhecimentos humanos, isso seria inevitável, pois nenhuma cabeça domina hoje todos os conhecimentos em sua matéria. O departamento que, nos Estados Unidos, substitui hoje a idéia de cátedra resolve sem dúvida esse problema, embora tenha inconvenientes que não cabe aqui examinar. A essência do problema não é a de cátedra ou departamento, mas a de oferta de múltiplas variedades de cursos e a organização do currículo em parte pelo aluno, mediante escolha entre os cursos oferecidos, dentro das normas que fossem estabelecidas. Estes cursos seriam concebidos como o programa de ensino de cada professor — (curso, entre nós, é currículo, ou seja, série de matérias para a formação de um tipo de profissional) - o qual o organizaria dentro do vasto campo de sua matéria, conforme a sua especialidade e por níveis de estudo da matéria, podendo ser estudos básicos, ou propedêuticos, ou especializados, e estes, mais ou menos avançados, ou maiores e menores, acompanhando tudo isto a hierarquia de cursos de pré-graduação, de graduação e de pós-graduação. Tal organização não seria incompatível com a cátedra, que já não seria de toda a matéria, mas da especialidade do professor e do nível de ensino em que a iria ministrar, havendo, por conseguinte, tantos catedráticos quantos pudesse ter a escola, sendo a sua distinção a de ser uma autoridade naquele campo de estudo e ensino, em seus diferentes níveis e em suas diversas especializações.

A organização obsoleta da escola superior brasileira, resultante de período em que o professor detinha todo o saber na sua matéria, daí decorrendo os cursos únicos dos currículos médicos, jurídicos, etc., é que precisava ser substituída. Tais tipos de cursos uniformes e únicos somente são possíveis em nível propedêutico ou de cultura básica ou geral, passando, logo depois do primeiro grau, o de bacharel, a cursos especializados, e depois crescentemente mais avançados e mais especializados, e, no campo profissional, diversificados pelas inúmeras ocupações existentes. Têm hoje os Estados Unidos globalmente 21.741 ocupações diferentes e classificadas, segundo a última apuração do seu Departamento de Trabalho, o que indica o grau de divisão a que pode chegar o trabalho humano. E quanto a cursos de nível superior, concebidos não como currículos, mas como programas de ensino do professor, ministra a Universidade da Califórnia mais de 10 mil, dentre os quais cada aluno escolhe os que deseja e de que precisa para integrar seu currículo. Estendemo-nos talvez demasiado neste detalhe da organização do ensino superior, para explicar o paradoxo da multiplicação de pequenas escolas em que o país se lançou a fim de responder à pressão pela expansão do ensino superior. Vejamos, com efeito. o que foi essa expansão depois da longa estagnação de todo o período do Império. Até 1930, essa expansão, em contraste com o que sucede após, ainda é moderada e relativamente lenta, fazendo-se sempre, embora pela multiplicação das escolas e não pelo crescimento individual de cada uma , sobretudo as melhores, o que somente agora começará a ser possível, se outros obstáculos não forem criados para impedi-lo. Consideradas as escolas hoje existentes, há 24 fundadas antes de 1900, as quais são hoje todas públicas, com exceção de uma, a Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie. Não quer isto dizer que todas tenham sido fundadas pelo poder público, mas que foram posteriormente federalizadas, outro aspecto do desenvolvimento escolar que está a pedir estudo e análise. Entre 1900 e 1910 criaram-se outras 13 escolas; de 1910 a 1920 criaram-se mais 34, e de 1920 a 1930 outras 15, sendo o total, até 193O, de 86 escolas. De 1930 a 1945 foram criados 95 novos estabelecimentos, mais do que nos 30 anos anteriores passando o total a 181. Entre 1945 e 1960 foram criados 223 estabelecimentos, passando o total a 404. Também nessa época multiplicam-se as universidades. Entre 1960 e 1968 surgem 375 novas escolas, ficando o total em 779, com cerca de 280 mil estudantes. Entre 1930 e 1968 o número de escolas cresce nove vezes, e o da matrícula mais de 14 vezes. Este crescimento, por certo espantoso, fez-se pela multiplicação dos estabelecimentos existentes, pela criação de estabelecimentos novos até então inexistentes e sua imediata multiplicação, e pela diversificação de cursos nos estabelecimentos com currículos diferenciados, como a faculdade de engenharia, a de filosofia, a de economia e a de artes. Os nomes das unidades docentes que assim vieram a multiplicar-se são os seguintes: 1. Faculdade ou Escola de Medicina ou de Ciências Médicas 2. Faculdade ou Escola de Direito 3. Escola Politécnica ou de Engenharia 4. Escola de Agricultura, ou de Agronomia, ou Superior de Agricultura 5. Faculdade ou Escola de Farmácia, ou Farmácia e Bioquímica 6. Escola ou Faculdade de Odontologia 7. Faculdade ou Escola de Medicina Veterinária 8. Faculdade de Higiene e Saúde Pública 9. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras 10. Faculdade de Economia, ou de Ciências Econômicas, Contábeis e Atuárias, ou de Ciências Econômicas e Administrativas 11. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 12. Escola de Enfermagem 13. Escola de Biblioteconomia 14. Escola de Serviço Social 15. Escola de Nutricionistas 16. Escola de Música 17. Escola de Belas-Artes 18. Escola de Teatro 19. Escola de Comunicação Cultural

20. Escola Superior de Química 21. Escola de Geologia 22. Escola de Jornalismo ou Curso de Jornalismo 23. Instituto de Zootécnica e Indústrias Pecuárias Além disso, há uma grande diversidade de institutos propostos à pesquisa e não diretamente ao ensino.  Cursos ou carreiras As atividades dessas instituições são dominantemente de ensino, que é ministrado por intermédio de cursos regulares e uniformes de graduação. Consistem os cursos no desenvolvimento, por um certo número de anos, do ensino de um currículo estabelecido pelo Conselho Federal (currículo mínimo) e homologado pelo Ministro da Educação. A esse currículo mínimo acrescenta a escola matérias complementares de sua escolha dentro da lista aprovada pelo Conselho. São os seguintes os cursos atualmente oferecidos (compreenda-se que os cursos são currículos, incluindo várias matérias dadas de modo uniforme durante certo período):  Cursos de seis anos 1.Medicina 2.Música - composição e regência  Cursos de cinco anos 3. Direito 4. Arquitetura 5. Psicologia 6. Engenharia Civil 7. Engenharia de Minas 8. Engenharia Mecânica 9. Engenharia Naval 10. Engenharia Química 11. Engenharia Eletricista 12. Engenharia Metalúrgica 13. Engenharia Eletrônica 14. Música—instrumento  Cursos de quatro anos 15. Geologia 16. Agronomia 17. Medicina Veterinária 18. Farmácia 19. Odontologia 20. Enfermagem 21. Enfermagem Obstétrica 22. Psicologia - bacharelado 23. Psicologia — licenciatura 24. História Natural - licenciatura 25. Ciências Biológicas - licenciatura 26.Física - licenciatura 27. Química - licenciatura 28. Matemática - licenciatura 29. Ciências Sociais - licenciatura 30. Desenho - licenciatura 31. Filosofia — licenciatura 32. Geografia — licenciatura 33. Letras - licenciatura 34. Pedagogia - licenciatura 35. Pedagogia — bacharelado 36. Música - licenciatura 37.Química Industrial. 38. Atuária 39. Contador(Ciências Contábeis) 40. Economia

41. Administração 42. Serviço Social  Cursos de três anos 43. Letras - licenciatura para o primeiro ciclo ginasial 44. Ciências - licenciatura para o primeiro ciclo ginasial 45. Engenharia de Operação 46. Farmácia 47. Obstetrfcia 48. Enfermagem — curso geral 49. Fisioterapia e Terapia Ocupacional 50. Música — direção cena lírica 51. Nutricionista 52. Biblioteconomia 53. Jornalismo 54. Educação Física e Técnica Desportiva 55. Artes Plásticas, Pintura, etc. 56. Museologia 57. Economia Doméstica e Educação Familiar 58. Economia Doméstica e licenciatura 59. Curso de Orientação Educacional, um ano e meio depois de três anos de Faculdade de Filosofia. 9.2 Sentido e tendências da expansão A marcha da expansão do ensino superior é constante e crescente, mas a partir de 1945 acelera-se, vindo após 1960 a dar um verdadeiro salto, instituindo-se nos últimos sete anos 13 universidades federais, quatro universidades privadas católicas, três universidades privadas leigas, uma universidade estadual e 255 unidades docentes novas, compreendendo estabelecimentos isolados e novas unidades congregadas em universidades, além das já existentes nas novas universidades. Em 1960 havia 10 universidades federais, seis estaduais, oito particulares e três rurais. Em 1968, a rede nacional de universidades foi ampliada para 48, sendo 18 federais, três estaduais, 10 católicas, sete fundações, cinco particulares e uma municipal, às quais se somam quatro universidades rurais (três federais e uma estadual). Esse surto após 1960 sofreu, por certo, a influência da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educacão Nacional, que acentuou a cooperação da atividade privada no campo da educação. Observe-se que, em 1966, dos 180 mil estudantes de ensino superior, cerca de 82 mil se encontram em estabelecimentos privados, número superior ao total de alunos existentes em 1956 em todo o ensino superior do país e superior ao total, em 1966, dos alunos das escolas públicas federais. Esses alunos de escolas particulares são dominantemente de administração e economia, direito e faculdade de filosofia, ciências e letras (cerca de 60 mil), com cerca de 10 mil alunos de engenharia e arquitetura; 5.400 de medicina e 1.300 de odontologia, não havendo alunos de farmácia. Dos 72.500 alunos das escolas públicas federais, acham-se em administração e economia, direito e faculdade de filosofia, ciências e letras cerca de 30 mil, em engenharia 14.500, e em medicina, farmácia e odontologia cerca de 16 mil. Se juntarmos o número de alunos das escolas públicas estaduais, o número total de alunos em escolas públicas se eleva a mais de 94 mil, mais de 45% da matrícula total de 1966, achando-se em economia, direito e faculdade de filosofia 43 mil alunos, em engenharia e arquitetura mais 19 mil, e cerca de 19 mil em medicina, odontologia e farmácia. Pode-se notar que o ensino superior privado é dominantemente de preparo para as carreiras de serviços (inclusive o magistério secundário), sendo menor a sua contribuição nas carreiras de engenharia e medicina, altamente exigentes em professores e equipamento. O maior número de seus alunos é de faculdade de filosofia, ciências e letras (sendo a matrícula ferninina majoritária), com o que contribuem para a formação do magistério secundário. O ensino de ciências é, contudo, reduzido nessas faculdades de filosofia particulares (como se pode ver pelo quadro dos cursos por elas oferecidos). Tomadas as carreiras técnico-científicas suscetíveis de contribuir para o desenvolvimento dos recursos humanos no campo do trabalho de produção, temos que, em 1966, assim se distribuíam os estudantes entre o ensino público e o privado:

Engenharia Agrònomia Arquitetura e Urbanismo Medicina Farmácia Odontologia Medicina Veterinária Total

Público 17.000 4.700

Privado 10.000 100 400 5.400 _ 1.300

2.350 11.700 2.600 5.500 2.000 _ 45.850

17.200

Já no campo da formação para atividades de serviço, temos: Público Direito Economia e Ciências Contábeis Faculdade de Filosofia Total

16.000 8.800 21.800

Privado 20.400

15.200 24.000 45.800 59.600

A expansão se deu tanto no ensino público quanto no privado. Considerando a expansão da matrícula e depois a diversificação dos cursos oferecidos, podem-se notar certas tendências que esclarecem o sentido da expansão. Já observamos que o ensino superior continua basicamente o ensino das carreiras longas tradicionais - medicina, direito, engenharia, a que se acrescentaram a arquitetura e urbanismo e o curso profissional de psicologia — com estudos de seis anos em medicina e cinco anos nas demais carreiras. Nessas carreiras se encontram 46% dos alunos do total de 180 mil alunos, em 1966: Medicina Direito Engenharia Arquitetura Psicologia Total

17.152 36.362 26.603 2.774 1.412 84.304

Ao lado dessas carreiras longas tradicionais, a que se juntaram duas novas, a de arquitetura e a de psicologia (esta muito recentemente), devemos colocar as carreiras médias tradicionais, que são as de farmácia, odontologia, agricultura ou agronomia e vaterinária. Com os dados de matrícula dessas escolas, a matrícula nos cursos tradicionais se eleva de 84.304 para 100.560, ou seja, cerca de 56% do total: Agricultura Farmácia Odontologia Veterinária Total

4.852 2.619 6.794 1.991 16.256

Temos assim que cerca de 46% dos estudantes — ou seja, 79.419 - se encontram em carreiras novas, criadas a partir de 1934/35, e que são as seguintes: 1. Licenciatura na Faculdade de Filosofia, compreendendo filosofia, letras, geografia, história, ciências sociais, matemática, física, química, biologia, história natural, pedagogia e mais os cursos de bacharelado de psicologia, geologia e jornalismo 44.802 2. Curso de graduação de economistas, atuários, contadores e administradores nas escolas de economia, ciências atuáriais e contábeis e administração 24.027

3. Os demais cursos criados a partir da década de 30, de enfermagem, serviço social, educação fisica, nutricionismo, biblioteconomia, estatística 7.390 Os demais aluns se encontram em cursos de belas-artes, música, desenho e outros , cerca de 3.200 Nesses cursos que representam o acréscimo inovador ao antigo sistema tradicional, cumpre distinguir entre os que apenas conservaram a antiga cultura humanística e os que implantaram estudos científicos. Nestes últimos, devemos distinguir, além dos cursos profissionais, os de ciências sociais e de ciências matemáticas, fisicas e naturais. Verificamos, então, que nas faculdades de filosofia, hoje em número de 113, com a matricula global de 44.800 alunos, são estudantes de humanidades cerca de 55% dos seus alunos, de ciências sociais 15%, e de matemática e ciências físicas e naturais 30%. Destes estudantes de ciências, os estudantes de matemática e ciências físicas não excedem de 15%, ou seja, em 44 mil, cerca de 6.600 estudantes, o que, no total de matrícula superior, representa pouco mais de 3%. Estes cálculos são estimativas baseadas na distribuição dos alunos em 1965, pois temos de 1966 os dados globais de matrícula, sem particularizar a matricula pelos cursos. Acreditamos serem ainda válidas as estimativas. Temos, assim, que os 180 mil estudantes de 1966 assim se distribuiam: Carreiras longas profissionais de base científica e tecnológica (medicina, engenharia, arquitetura e psicologia), cerca de 48.000 Carreira longa de base em ciência social (direito)

36.400

Carreiras médias profissionais de base cientifica e tecnológica (agricultura, farmácia, odontologia e veterinária)

16.300

Carreiras médias de magistério de base em ciências matemáticas, fisicas e 13.200 Carreiras médias de magistério de base em ciências sociais

naturais

6.500

Carreiras médias de magistério de base em letras

24.800

Cursos de graduação em carreiras médias de base em ciências econômicas 24.000 Cursos de graduação em carreiras curtas de base técnica

7.500

Outras carreiras de base dominantemente artística

3.200

A distribuição dos alunos, portanto, não representa mudança substancial no caráter do ensino superior brasileiro de natureza profissional e humanística. Ai se encontravam 167 mil estudantes em 1965, sendo pouco mais de 13 mil os estudantes de matemática, ciências fisicas e naturais. Como a maior parte destes destina-se ao magistério secundário, é muito pequeno o número dos que se dedicam à alta especialização científica. Compensam essa deficiência os estudantes profissionais de ciências, embora dominantemente de ciência aplicada. Vejamos, agora, pelo crescimento da matrícula entre 1956 e 1966, se alguma tendência maior de mudança se revela. Nesse período, não esqueçamos que a população total do pais aumentou em mais de 40%. Vejamos as carreiras profissionais longas - medicina, direito, engenharia, arquitetura e psicologia - e, a seguir, as demais: 

Carreiras longas 1956

1956-100 População total do pais

60.080

1966 84.670

140%

Medicina 136% Direito 180% Engenharia 341% Psicologia 

12.650

17.152

20.155

36.363

7.798

26.603

97 (em 1957)

1.412

1.456%

Carreiras médias 1956

1956-100 Agricuitura 1.274 381% Farmácia 1.621 162% Odontologia 4.808 141% Veterinária 1.991 273% Licenciados - Faculdades de Filosofia 13.566 330% Ciências Econômicas 5.749 418% Carreiras curtas 6.600 160% Belas-artes e outras -

1966 4.852 2.619 6.794 730

44.802 24.027 7.390 3.200

Vemos nas carreiras longas um crescimento significativo das matrículas em engenharia, sem mencionar o da psicologia clínica, por se tratar de curso novo, iniciado em 1957. As duas carreiras clássicas de medicina e direito têm expansão mais moderada: a de medicina, devido à política de restrição da matrícula, pois os candidatos são muito numerosos; já a carreira de direito revela aumento mais significativo, devido, sobretudo, à criação de novas escolas. Nas carreiras médias, também tradicionais, o aumento da matrícula em agricultura e veterinária é significativo, mostrando certa recuperação de prestígio da agronomia, antes habitualmente relegada pelos candidatos como carreira de segunda ordem. A expansão da matrícula nas faculdades de filosofia e economia é grande, mas resulta da multiplicação de escolas a oferecer cursos de qualidade duvidosa e, em geral, de ensino puramente expositivo. Os alunos das faculdades de filosofia ainda têm as escolas de nível secundário para Ihes oferecer trabalho. Os das faculdades de economia e ciências contábeis bem facilmente poderão estar inflacionando o mercado de diplomados desse campo de trabalho, no caso de não tornar eficientes os seus métodos de treinamento técnico. Não se poderá proceder a uma avaliação desses estudos sem levar-se em conta a multiplicação das escolas. Não se trata de um aumento de matrículas em escolas experimentadas e consolidadas, com professorado competente, mas de maior matrícula devido à criação de escolas sem tradição e com professorado improvisado. O fato já mencionado de que o país só amplia o ensino com a criação de novas escolas constitui um exemplo típico e melancólico da asserção, tantas vezes repetida, de que mais educação significa pior educação. A resistência das escolas de medicina se, por um lado, reflete resistência a mudanças necessárias, é, por outro, manifestação de melhor consciência dos padrões necessários à formação médica. É fora de dúvida que são elas as escolas não só de maior prestígio no ensino superior, como também de professorado mais profissionalmente competente e a par dos programas científicos e tecnológicos da profissão. A seguir vêm as escolas de engenharia, não se podendo, entretanto, afirmar que tenham o mesmo zelo pelos seus padrões que revelam as faculdades de medicina. Quanto às escolas de direito, hoje a se expandirem em multiplicidade de escolas particulares, o que se pode dizer em abono dos padrões da profissão é que a Ordem dos Advogados, alarmada com a expansão dos cursos jurídicos, passou a exigir prova de estágio, uma espécie de exame de Estado, para conceder a licença de exercício da

advocacia restando, quanto aos cargos públicos do Judiciário e outros, as provas de concurso. Em relação às faculdades de filosofia, a multiplicação das escolas quebrou de tal modo os seus padrões, que duas tendências são manifestas: a da divisão da multifaculdade em diversas faculdades ou institutos, com o objetivo de cursos especializados de conteúdo nos campos da filosofia, das letras, das ciências humanas e sociais, das ciências matemáticas e fisicas e da educação; e a da ênfase nos cursos pós-graduados para recuperar, nesse nível, os seus antigos objetivos de escolas avançadas de especialização e pesquisa. Não se pode dizer o mesmo das escolas de economia e ciências contábeis, mas as melhores estão preocupadas em introduzir os cursos de pós-graduação, encaminhando-se para só reconhecer, pelo menos no curso da economia, propriamente dita, a formação completa nesse nível de pós-graduação. Passaremos, depois deste breve apanhado sobre a expansão do ensino superior, a examinar a sua problemática e a crescente ansiedade por sua reforma.

10. A problemática do ensino superior e a reforma da universidade A situação que procuramos descrever ressalta os problemas com que se defronta o ensino superior. Há, sem falar na reestruturacão indispensável, duas necessidades que ainda não foram adequadamente atendidas: a da mudança do conteúdo dos cursos e a dos métodos de ensino, em virtude da transformação sofrida pelo conhecimento e saber humanos e pela sociedade em pleno processo da revolução industrial e tecnológica dos nossos dias. Essas duas necessidades novas — a dos conteúdos e programas de ensino e a dos métodos e atitudes do professor - fizeram do ensino superior uma atividade especialmente difícil, profundamente ligada aos próprios problemas da sociedade, às suas condições de trabaIho em transformação e às novas tecnologias e voltada para o futuro e não para o passado. O que dava tranqüilidade ao ensino superior era não estar comprometido com o futuro, mas com o passado. Hoje a situação é polarmente oposta: todo o saber foi transformado e se está transformando, e a necessidade de estar em dia com a cultura fez-se absorvente e, de certo modo, angustiosa. Por outro lado, a aplicação do saber à vida de tal modo se ampliou, que em todos os setores do trabalho humano a necessidade de estar continuamente a aprender veio retirar qualquer sossego ao saber estabelecido. A extrema ampliação do saber existente e a ampliação de sua aplicação à vida fizeram da profissão de ensinar a menos isolada, a menos tranqüila e a mais dinâmica das profissões. E como ensinar hoje é um eterno aprender, isto aproximou enormemente o mestre do aluno ou aprendiz, irmanando-os num labor, curiosidade e ofício comuns e idênticos. Esse problema de reestruturação do ensino não foi, contudo, imediatamente pressentido, e toda a expansão se fez, como vimos, pela multiplicação de escolas, dentro dos moldes e pressupostos existentes, não havendo nenhuma idéia diretora, nem sentimento de plano ou crescimento orgânico. Enquanto as escolas eram estabelecimentos isolados, cada uma existia como entidade fechada, mergulhada em seus próprios problemas e sem sentir a sua repercussão no meio ambiente. Mas, com a criação da universidade, já não seria tão fácil manter tal isolamento. A expansão puramente vegetativa começou a criar problemas, não somente quanto à admissão de alunos, mas também quanto às próprias dificuldades de funcionamento do novo complexo em que a universidade se vinha transformando. Em realidade, a expansão espontânea do ensino pela simples proliferação de escolas, todas rígidas e uniformes, sob o modelo do catedrático único para cada disciplina e do curso único na maioria delas, acabou por tornar patente a falta de flexibilidade do sistema para realmente expandir-se. O paradoxo tornou-se mais visível na universidade, onde as escolas se congregavam conservando seu caráter de escolas isoladas, sem intercâmbio nem cooperação entre elas. De tudo isto resultou um mal-estar em relação ao próprio funcionamento do sistema, criando-se, a despeito das resistências à mudança, uma surpreendente receptividade à sua reforma radical. Ora, quase simultaneamente com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases, que abrira certas perspectivas à mudança mas não as prescrevera nem determinara, votou o Congresso a lei de criação da Universidade de Brasília, instituindo estrutura para o desempenho de sua função radicalmente diversa da estrutura tradicional da escola superior brasileira. Essa Universidade de Brasília nascera de um projeto em que colaborara a elite do magistério nacional e o seu modelo refletia soluções a que chegara a consciência crítica desse magistério, no que tinha de mais novo, o seu corpo de cientistas físicos e sociais. Agravando-se a crise universitária e tornando-se inevitável a reforma de sua maquinaria administrativa e didática, para esse modelo é que se voltou a universidade tradicional em suas veleidades de reforma. Mas, enquanto a Universidade de Brasília era modelo completamente novo, podendo teoricamente implantar-se sem os tropeços da organização anterior, o problema que agora se punha era muito diverso, pois importava em transformação da velha universidade em estruturas administrativas e docentes radicalmente diversas. A reforma, em virtude disto, não se fez dentro da universidade, pelo debate e resultante consenso do magistério, mas por atos legislativos a princípio permissivos e depois coercitivos que impuseram a reestruturação dentro das grandes linhas do modelo da Universidade de Brasília. Houve verdadeira proliferação de leis e decretos reformuladores. A partir de 1966, quando teve início o movimento de reorganização do ensino superior,

promulgaram-se 21 atos legislativos sobre a universidade e o ensino superior, fora 39 outros de legislação correlata. Daqueles primeiros 21,12 são sobre a universidade e o ensino superior, três sobre o seu magistério, quatro sobre finanças e recursos e dois sobre estudantes e vida estudantil. Algumas das modificações, decorrentes de toda essa legislação, são radicais e importam em alterações profundas de moldes anteriores estabelecidos, tais como a supressão da cátedra, a implantação dos departamentos, o estabelecimento de um sistema de órgãos ou autoridades de coordenação e controle da universidade, acima do diretor da escola e da congregação, que anteriormente constituíam os órgãos fundamentais do poder no ensino superior, sob a supervisão do conselho universitário. Tudo isto se fez pela série de atos fragmentários e dispersos acima referidos, baseados mais em um estado de espírito reformista do que em plano estudado e refletido de reconstrução orgânica da universidade. Resta saber como se implantarão tais reformas e que resistência irão elas encontrar em velhos hábitos estabelecidos e resistentes. Compreendem elas a reorganização dos mecanismos de decisão na universidade, uma considerável divisão de áreas de trabalho no nível das autoridades centrais, uma nova composição das escolas, faculdades e institutos por departamentos, um novo status e uma nova carreira do professor, uma nova distribuição deles por departarnentos, uma nova composição dos cursos por disciplinas distribuídas por diferentes departamentos, possivelmente situados em diferentes escolas, faculdades e institutos, talvez uma matrícula dos alunos pela universidade com freqüência em diferentes departamentos, que poderão estar em diferente escolas, faculdades e institutos. Sendo proverbial a resistência à mudança imperante nas escolas e universidades, a complacência com que foram recebidas tais mudanças requer algumas observações. Não surpreende o modo com que foram recebidas as novas disposições quanto aos quadros de autoridade central da universidade. Nunca houve uma forte tradição a respeito e o consenso geral era de que não havia administração no ensino superior. As autoridades, no melhor dos casos, eram mantenedoras de um mínimo de ordem, exercendo funções no gênero de curadores ou conservadores de museus. Os novos arranjos quanto a essa função não apresentaram, assim, motivos para qualquer alarma. Além disso, tomaram as inovações a forma de composição de colegiados, não sendo dada nova autoridade a nenhuma autoridade pessoal, nem mesmo ao reitor, cuja ação ficou sempre ligada a deliberações de colegiados. Os hábitos brasileiros nunca se chocam com esse tipo de exercício da autoridade. Sabe-se que esse exercício será fundamentalmente embaraçoso, mas conservador. Nenhuma alteração maior ocorrerá, salvo a de algum controle mais rígido, e com isto todos estão perfeitamente familiarizados. Surpreende a aceitação da mudança de distribuição física das pessoas pelos novos departamentos. Parece que isto se vai dar e não se sente resistência a essa alteração. Pode ser isto mais aparente do que real. Quando tais alterações constam apenas de planos previstos em leis, o brasileiro as recebe com seu habitual ceticismo e não protesta quanto aos planos, pois confia que não sejam executados. Teve isto um exemplo espetacular na mudança da capital do país. Os protestos foram poucos e ocasionais. Mas isto não quis dizer que se aceitasse a mudança, mas que se confiava em poder procrastiná-la indefinidamente. A surpresa maior está na supressão prática da cátedra e do professor catedrático. A real estrutura, não no sentido de organização administrativa, que hoje se vem chamando também de estrutura, mas no sentido de distribuição do poder quanto ao ensino na escola superior brasileira, era a estrutura do catedrático e da congregação. Estes dois órgãos eram os detentores do poder de ensinar. De ambos dependia a qualidade ou a falta de qualidade, do ensino. Podiam Ihes faltar meios, mas poder não Ihes faltava, sobretudo para manter o status quo. Neste ponto, a escola superior brasileira lembra o modelo germânico. Por isto mesmo, a crítica, embora justificada, ao ensino superior, excedeu-se muitas vezes a esse respeito. Deixou de considerar que há catedráticos bons e competentes e catedráticos menos bons e competentes. Deixou de ver que alguns catedráticos compuseram verdadeiros departamentos, tão bons quanto os que possam agora ser criados com a reforma. E deixou, sobretudo, de ver que a instituição estava em declínio, sendo relativamente poucos os catedráticos por concurso e os demais, interinos ou encarregados pro tempore do exercício da cátedra ou nela efetivados como fundadores, ou por mero tempo de exercício. Estes - que eram maioria - exerciam a cátedra com displicência, procurando ignorar o mais possível seu próprio poder.

Além disto, como o número de professores assistentes ou auxiliares e instrutores cresceu sobremodo, sufocando os catedráticos, adquirindo estabilidade, conseguindo status de professor (professor de ensino superior), houve uma espécie de democratização do ensino superior, no sentido de deslocamentos entre a classe de catedráticos e a dos novos professores de ensino superior e adjuntos e assistentes. O golpe agora dado no catedrático foi uma simples pá de cal a uma instituição que praticamente estava morta. O fenômeno lembra a gradual e pacífica extinção da classe aristocrática na Inglaterra. Só deste modo parece explicável o silêncio com que a reforma se está fazendo. Tudo leva a crer que os grandes catedráticos, porque ainda existem, quando já idosos, passarão a esperar a aposentadoria, envolvidos no respeito geral, e os jovens se inclinarão, tomando o fato como conseqüência do que se chama entre nós - pejorativamente, observe-se - democratização. Alguns conservarão o bom humor necessário para passarem a chefes de departamentos, ou, pelo menos, reivindicarem situação equivalente a que tinham anteriormente, talvez a de titulares. Mesmo, pois, neste ponto, a receptividade pode ser mais filha de ceticismo do que de aceitação construtiva. A valerem tais considerações, os decretos-leis de reestruturação das universidades brasileiras, os planos de reestruturação, a aprovação dos planos pelo Conselho Federal, os novos estatutos a serem formulados, são uma revolução, sem dúvida, mas no gênero de declarações e afirmações de mudança. Não quer dizer isto que não tenham importância. Têm, sem dúvida, pois importam em um novo estado de espírito e em um novo reconhecimento do caráter perempto da situação anterior. Valem, sobretudo, como o ato final consumatório do longo processo de deterioração de nosso ensino superior. O problema agora é o de analisar e estudar o que irá realmente ocorrer, após a reforma, em sua fase de adaptação, que corresponde a pouco mais que a de uma rearrumação da universidade. Será que tudo se consumará nos atos oficiais, espetaculares, sem dúvida, nos seus aspectos verbais e formais, mas, possivelmente ineficazes em sua efetiva implantação? Será esta a indagação que cabe fazer? Para essa análise, precisamos apresentar a situação existente, procurando caracterizar-lhe as uniformidades e virtualidades. Tomemos, como ponto de partida, o corpo docente, que é, afinal, com o aluno, a parte axial da universidade. E, sem dúvida, mais numeroso do que se poderia esperar, tomado globalmente. Mas, como é dominantemente de tempo parcial, podia-se imaginar que o número de componentes do magistério não representasse igual número de funções integrais docentes, mas parcelas de funções. Isto, entretanto, não é completamente exato. Se o curso se reduz puramente a aulas dadas - o que é o caso da maioria dos cursos - o professor parcial é em realidade um professor completo. Vejamos agora o uso do tempo pelo professor. Na sua maioria vai à universidade para dar a aula. Se lá quiser permanecer, não tem local para ficar, a não ser alguma sala dos professores, que só comporta uns poucos, como sala de conversa. Alguns catedráticos têm algum espaço a eles reservados, mas geralmente ocupados também por auxiliares administrativos. Sendo de tempo parcial, o professor, de modo geral, tem outros encargos, ou de magistério, ou de outro tipo. Assim, fisicamente, o corpo docente é um corpo numeroso de pessoas que visitam, raras vezes diariamente, a universidade e lá dão aulas. E quanto à sua composição? Aí temos que dividi-los pelas categorias e classes. Geralmente, antes dos quadros atuais, eram catedráticos, assistentes e auxiliares. O catedrático tem geralmente certa reputação intelectual, os demais são extremamente heterogêneos, indo de reais vocações até simples empregados, que aí se acham por não terem tido melhor oportunidade. Um professor pode chegar a não ver jamais o outro professor, salvo em solenidades ou reuniões acidentais. O contato entre o professor e o aluno, na maior parte das vezes, limita-se ao encontro em aula. Como muitas vezes a aula é numerosa, esse contato reduz-se para o aluno a ouvi-lo e raramente fazer-lhe uma pergunta, ou dar-lhe uma resposta. E nisto se desfaz o tempo e a qualidade do ensino. Como se vê, o contato entre o professor e o aluno é menor do que o do aluno com o autor de um livro que tenha realmente lido e estudado. Quanto a dirigir os estudos do aluno, a sua função é extremamente perfunctória. Quanto a saber se está aproveitando, há uma ou mais provas parciais, sempre escritas, para uma avaliação também extremamente sumária. Entre professor e aluno há um gentleman's agreement de que nada pode perguntar que não tenha ensinado, significando ensinado que

tenha dito em aula. Esta é, na maior parte dos casos, a função docente e o modo de exercê-la. E os alunos? O corpo discente é composto pelos que passam o exame vestibular. Representam um grupo de alunos com 11 anos no mínimo de estudos primários e médios, em escolas extremamente diferentes, embora os currículos tenham sido geralmente uniformes. É preciso que se recorde que currículo, no Brasil, é uma lista de disciplinas que deverão ser ensinadas em certo número de anos, com certo número de aulas. Quanto ao programa de cada disciplina, poderá existir, mas não é, de modo geral, fundamente conhecido. Os cursos são uniformes quanto ao número de horas-aulas, sendo a verificação do aproveitamento do aluno feita por meio de exames escritos. As questões, parece, são limitadas ao que foi ensinado, ou seja, dito em aula. Essa tradição da escola apenas de aulas e de pouco tempo atinge todo o sistema de ensino. Salvo raríssimas exceções, a escola primária corresponde a quatro anos com quatro horas por dia, podendo considerar-se de três o período de aulas. A escola média também resume-se em quatro horas por dia com pouco mais de três horas consumidas em aulas durante quatro anos no primeiro ciclo e três anos no segundo ciclo. O aluno aprovado que se candidata ao vestibular estuda por sua conta, para esse exame, ou tomando professor particular, ou estudando por si, ou matriculando-se em algum dos cursinhos, que são cursos de treinamento especial para o exame. Nas escolas de grande prestígio social, o vestibular é uma prova difícil e altamente competitiva. A tendência brasileira para criar novas escolas e não ampliar as existentes talvez tenha em parte aí a sua explicação. Só assim o exame vestibular terá poucos candidatos, com o que muitos, que dificilmente ou jamais entrariam nessas escolas de alto prestígio, matriculam-se em outras escolas onde farão os mesmos cursos, cujos graus e títulos têm, por lei, exatamente o mesmo valor. Apesar das dificuldades do vestibular, o aluno nele aprovado e que logrou matricular-se não vai compor um grupo homogêneo e altamente selecionado. As dificuldades de matrícula se distribuem por vários níveis, conforme a carreira ou curso pretendido, a escola escolhida, os professores que elaboraram a matéria do exame e os apuradores e julgadores dos resultados. Não há testes de inteligência, os quais, no Brasil, são altamente impopulares. A prova consiste em considerável massa de perguntas e problemas, não visando apurar o que os alunos saibam, mas a sua ignorância, sendo algumas perguntas e problemas quase diríamos capciosos. Geralmente, ao contrário dos demais exames, este não se preocupa em relacionar-se com o que foi ensinado ao aluno, nem sempre se limitando ao programa da escola secundária. Diante disto, é claro que o exame é uma prova no escuro. O aluno aprovado sente-se um pouco como se tivesse tirado um prêmio na loteria. A expressão social é a de ter sido feliz no exame, no sentido de ter tido sorte. Este aluno feliz chega à escola com uma dose apreciável de euforia e até com certo orgulho, o que Ihe dá elementos para se sentir motivado e curioso do que seja o ensino superior. Tal motivação geralmente se apaga no primeiro ano, salvo raras exceções. Do segundo ano em diante, é um membro cético da comunidade, mas perfeitarnente convencido do privilégio que representa ali estar. Para encher um certo sentimento de vazio que Ihe trazem as condições e o nível de ensino, de algum modo, entretanto, menos dirigido, mais livre e mais adulto, conta com o emprego, se já o tem, ou então procura empregar-se. Isto se dá, às vezes, até com o grupo mais abonado financeiramente. De qualquer modo, é normal estudar e "trabalhar". Escrevo "trabalhar" entre aspas porque em geral se trata de trabalho burocrático ou de escritório, mais raro de comércio e raríssimo de indústria ou de oficina, representando dia de seis horas ou menos. Os que estão em trabalho de oito horas são alunos noturnos. Há, entretanto, nos ramos de estudos dominantemente humanísticos ou de estudos sociais, muitas escolas que funcionam em períodos vespertinos e noturnos, sem por isto se considerarem especiais. Também o aluno é, assim, um aluno de tempo parcial. Seria difícil classificar os estudantes entre os de tempo integral e os de tempo parcial. Em certas escolas — medicina e engenharia — quero crer que o estudante de tempo parcial encontra certas dificuldades, mas, na forma pela qual é ministrado o ensino, pode-se considerar normal o estudante de tempo parcial. A verdadeira tipologia do estudante superior não é fácil de estabelecer: há o estudante com vocação real para o estudo, nas suas variantes de artista ou boêmio, de intelectual e de político ativista; o estudante sério, que quer passar nos exames; o estudante preocupado com a carreira; e o estudante desinteressado dos estudos, nos dois tipos — o

esforçado, para cumprir as exigências da família, e o vadio. Mas essa tipologia é mais a tipologia dos jovens do que a do estudante. A realidade é que a juventude que chega à escola superior é suficientemente heterogênea para se distribuir por todas essas variedades. O que Ihe dá categoria de grupo social é o sentimento de privilégio que Ihe vem de ter chegado ao ensino superior; mas, veja-se bem, não é o de que pertença cada jovem ao grupo economicamente privilegiado da nação. A grande maioria é economicamente modesta e proveniente, em grande parte, da classe média-média e da pequena classe média. Os estudantes da classe abastada devem estar em escolas privadas ou em algumas públicas de reconhecido prestígio social. O grupo, como um todo, não é um grupo de jovens socialmente privilegiados. A sua categoria de privilégio está restrita ao fato de serem poucos os estudantes de ensino superior. Evidentemente, são raros os de classes operárias ou baixas. Como é sua vida de estudos? É difícil descrever exatamente. A escola rarissimamente tem espaço para eles além da sala de aula, nas horas de aula. As bibliotecas são raras, pequenas e mal equipadas. Parece que têm de comprar seus livros e que o tempo de estudo será dominantemente em casa. Mas isto não deve ser fácil, pois a maioria reside em apartamentos ou em casas sem maiores facilidades para o estudo. Deve ser um pequeno milagre a vida do estudante realmente estudioso ou apaixonado por ler. As instruções do Conselho Federal de Educação relativamente a crédito do tempo de estudo e de aulas em horas de trabalho excluem expressamente o estudo individual. A exclusão é surpreendente, mas indica o grau em que o educador brasileiro julga o ensino superior como o equivalente ao primário, sendo a aula o real período de trabalho escolar e, portanto, o ensino ainda oral, ou quase oral, podendo-se até prescindir do livro, a ser substituído pela apostila, sucessora das velhas sebentas da Coimbra medieval. Esse estudante, até agora, nem nominalmente é aluno da universidade. A sua matrícula é na escola; esta, em sua maioria, está fisicamente distante da outra escola e sua experiência se reduz à da escola de que é aluno. Aí passa as horas de aula e aí convive com os demais alunos nos intervalos das aulas, passando talvez menos tempo na escola superior do que na escola média ou primária, que, como sabemos, é também de períodos muito curtos. Fora das salas de aula, só por exceção há espaço físico para os alunos estarem. Há, entretanto, pequenos locais para os diretórios de estudantes. Os que freqüentam essas salas são estudantes ativistas, devotados de algum modo às filigranas da existência comunitária dos alunos, constituindo núcleos reduzidos que, com o vazio da vida escolar, se fazem facilmente estudantes políticos, sensíveis aos problemas do controle social e do desenvolvimento do país. São os estudantes de sentimento público, atentos às dificuldades do próprio grupo e às dificuldades gerais do povo brasileiro. Serão talvez os únicos estudantes, se não de tempo integral, de devotamento integral, os que levam a sério a responsabilidade social da vida estudantil, revelando, deste modo, mentalidade mais adulta que a que seria normalmente de esperar. Não se esqueça, porém, que devido às dificuldades do vestibular e a certa irregularidade etária no ensino secundário, a maioria dos alunos universitários está acima da idade esperada e já empenhada em alguns trabalhos além da escola. Aí estão o corpo docente e o discente, como os posso descrever pela simples observação, e observação nem sempre atual. Passaremos, agora, aos cursos e ao trabalho docente. Já dissemos que o curso constitui-se de uma lista de disciplinas distribuídas por série, das quais um grupo é imposto pelo Conselho Federal de Educação como currículo mínimo e outras são impostas pela escola, sendo, acredito, relativamente rara a escolhida pelo aluno (salvo em casos como o da escolha de clínicas a freqüentar, no curso médico). Não é, porém, o mais grave esse caráter impositivo dos estudos. O mais grave é a tradição do conceito enciclopédico do currículo. O termo enciclopédico não será, talvez, o melhor. O conceito é o de que o preparo do aluno pelo curso deve ser completo. Este conceito de completo deve vir de épocas já remotas, em que o conhecimento existente era suficientemente limitado para ser exposto totalmente. Quem examinar o curso jurídico dos anos 20, no Brasil (este foi o que eu fiz, entre 1918-22), pode ver que a intenção da escola era fazer o aluno passar por todas as especialidades jurídicas então existentes e mais alguns estudos gerais, como os de economia política e filosofia do direito. Tratava-se, portanto, de curso em que iria ter um pouco de tudo e nada a estudar profundamente. Ora, isto significava que a escola desejava dar um curso de enciclopedismo jurídico, na realidade um curso introdutório de cada matéria, uma propedêutica jurídica. Por isto mesmo, o curso se resumia a aulas entre as cinco e as sete horas da tarde, estendidas por cinco anos sendo

o restante do tempo para estudo. Mas como o próprio estudo individual era sobre todas as matérias, em nenhuma delas podia o aluno aprofundar-se. Este critério para a constituição dos cursos continua mantido. Pouco ou nada existe que lembre a idéia de disciplinas maiores e menores , nem a possibilidade de o aluno escolher em qual das maiores deseja aprofundar-se. A cultura assim recebida tem de ser inevitavelmente superficial. O mais grave, contudo, é que assim se procede porque, deste modo, o número de catedráticos pode ser muito maior e o ensino, por cada um, muito mais fácil. Veja-se que o ensino por disciplinas maiores e menores ia exigir professorado não só mais competente, mas, inevitavelmente, de tempo integral para os que tivessem de cuidar das maiores, e como qualquer disciplina pode vir a ser a maior para o aluno que a escolher, todos os professores devem estar preparados para o tempo integral. Como se vê, o modo pelo qual o ensino superior se instituiu no Brasil como fenômeno histórico não foi resultado de acidentes, como julgam alguns, mas adaptação conseqüente às condições e às possibilidades da sociedade então estabelecida. O professor de tempo parcial, o aluno de tempo parcial, os cursos como processos de familiarização superficial com a cultura fundamentalmente estrangeira, a ser transplantada para aqui a fim de constituir um traço de união com a cultura européia, suscetível de nos fazer compreendê-la, mas não de aplicá-la propriamente — representam instituições concebidas e criadas por nós e adaptadas às condições existentes e ao que se tinha em vista conseguir. Com a transformação ora em processo na sociedade brasileira, essas instituições já não satisfazem. Mesmo para o preparo apenas da elite, já não são satisfatórias. A pressão para reforma da universidade vem-se fazendo cada vez mais forte em face dos novos conhecimentos humanos; em face da sociedade empenhada em seu próprio processo de desenvolvimento, e não apenas em preparar uma elite ilustrada para representá-la perante o mundo; em face de mudanças concretas que ocorrem na sociedade, em virtude da transplantação inevitável de tecnologias que se vão fazendo universais e atingindo profundamente a vida corrente. Este estado de coisas produziu a receptividade de que falamos no princípio para a idéia de reforma. Mas essa idéia de reforma não se podia reduzir a uma mudança da "maquinaria" administrativa e organizacional da universidade, embora pudesse vir a exigi-la. A idéia de reforma devia partir do projeto de objetivar a nova cultura científica e tecnológica que temos de ministrar na universidade. Essa nova cultura é uma cultura operacional e altamente especializada, exigindo métodos de transmissão muito elaborados e precisos, em que as idéias não são apenas formas de compreensão e entendimento, mas planos e modos de ação, de prática, de operação. Para a sua transmissão eficiente já não são possíveis aquelas instituições históricas criadas pelo sistema anterior; não é possível o professor cheio de honras mas de tempo parcial; não é possivel o estudante selecionado, mas ocupado com seu trabalho, dando tempo parcial à escola; não é possivel o tempo escasso e obtido a custo em horas fugazes à tarde e à noite; não é possível a falta de espaço para o professor, para o aluno, para a biblioteca, para o equipamento, reduzido afinal a simples espaço para preleções orais; não é possível o curso enciclopédico para aprender de tudo um pouco e nada em profundidade (no sistema anterior indispensável para ocupar em tempo parcial uma série de professores que não podiam dar senão este ensino e, de outro modo, ficariam todos desempregados); não é possivel quase nada do que é corrente, usual e normal na universidade brasileira. Cabe aqui uma pequena digressão sobre o ensino médico brasileiro, a que já repetidamente aludimos. O primeiro setor do ensino superior brasileiro que tomou conhecimento da necessidade de adaptar a escola superior à nova expansão e à nova forma de conhecimento humano foi o de medicina. O setor de engenharia se Ihe seguiu, mas não chegou a dar à sua readaptação grau acentuado de difusão. Ficou nas escolas excepcionais. Em medicina é que se observa um propósito generalizado, consciente e de alto teor profissional, de que a Escola de Medicina de São Paulo se fez o modelo, acredito, reconhecido. Observe-se um pouco as conseqüências desse processo de avanço do ensino universitário brasileiro. É, primeiro, sem nenhuma dúvida possível, a escola de maior prestígio social, científico e profissional do Brasil. É a escola em que o aluno dificilmente consegue ser um estudante de tempo parcial. É a escola que exigiu e conseguiu instalações e equipamentos razoavelmente adequados para o ensino. É a escola de maior consciência de que o ensino não se faz apenas em salas de aulas. É escola tranqüilamente convencida de que sem recursos não se pode fazer ensino. É escola de ciência, de idéias, de saber, mas também de experiência, de laboratórios, de atuação experimental e de prática longa, distribuida por estágios e

trabalho. Essa escola - em muitos dos seus aspectos formais aparentemente idêntica às demais, o que explica algumas de suas contradições - é que vem fazendo a reforma universitária. Porque a vem fazendo, teve que se distanciar um pouco das demais, chegando a parecer arrogante em sua atitude defensiva, mantendo quase heroicamente os seus padrões, reduzindo corajosamente o número de seus alunos, reivindicando verbas razoáveis, construindo as suas escolas, os seus laboratórios e os seus hospitais, montando as suas cátedras como verdadeiros departamentos, e fazendo, de modo apreciável, pesquisa e ciência, além de ensino e prática. E como estava só, dentro da universidade ornamental, obsoleta e representativa de expansão do ensino segundo os moldes anteriores, que só ela havia modificado, não conseguiu tornar irredutíveis seus padrões. Acabou por tolerar a criação de novas escolas em condições inadequadas; ao que parece, por achar impossível obter os recursos para que elas próprias se ampliassem, ou talvez por julgar que a escola de medicina, ante as imposições de seu ensino, não pode crescer além de certo limite. A realidade que desejamos trazer à observação do leitor, com esta digressão, é a de que não nos falta um modelo para a reforma universitária. O ensino médico brasileiro é, indiscutivelmente, um caminho para isto. Não insisti, especificamente, no professor de tempo integral, como conquista da escola de medicina. Este fato também ali se deu, ou vem-se dando sobretudo nas cadeiras básicas do curso. Mas a medicina, sendo uma prática (na língua inglesa, são eles practitioners, palavra para a qual não temos sequer equivalente em língua portuguesa) de alto teor científico, e sendo a medicina uma profissão liberal privada, seria no mínimo imprudente não se prevalecer a escola da experiência e do saber do grande profissional clínico, mesmo que se tenha de pagar o preço de só contar com ele como professor de tempo parcial. Todas as instituições têm seus limites de uso. Quando o professor de tempo parcial é o grande profissional vitorioso na prática de sua arte liberal, que vem emprestar à escola um pouco de seu saber e de sua experiência, isto pode ser de extrema utilidade, pois evita a segregação da escola, pondo-a em contato com a profissão. O tempo parcial que o Brasil soube instituir nas suas antigas escolas da fase anterior à atual obedecia a esse espírito, e graças a isto é que elas, embora fossem escolas de cultura mais ou menos propedêutica e geral, conseguiram, se não formar, estimular as grandes culturas pessoais que tivemos no curso de nossa história. Com as condições novas de hoje, penso que certas exceções deverão sempre existir para professores de tempo parcial deste tipo. Foram esses raros professores, apesar do tempo parcial, ou talvez por serem de tempo parcial, pois de outro modo não poderiam ser professores, que constituiram alguns dos pontos altos de nosso ensino superior do passado. A escola de tipo verdadeiramente profissional, de qualquer modo tem de manter o contato com a profissão no campo. Está claro que, com a aceleração do processo de pesquisa e com a escola transformada ela própria no mais avançado dos centros do saber, essa necessidade já não é hoje a mesma dos outros tempos. Mas temos muito de caminhar até chegar lá. Daí estas observações, necessárias para se evitar que se estabeleça um novo absoluto na questão do tempo integral. Voltando ao nosso tema da reforma universitária, temos, pois, que a universidade possuía um modelo em que se inspirar. A reforma consistiria em dar aos cursos profissionais, no mínimo, o que já vinha conseguindo a escola de medicina, a escola superior de enfermagem, a escola de saúde pública e, em menor grau, a escola de engenharia; e quanto ao que se vem chamando de ensino básico, mas que prefiro chamar de ensino acadêmico das letras e das ciências, assim compreendendo o ensino desinteressado do saber pelo saber para formar os seus cultores ou pesquisadores, que se farão ou produtores de letras e ciências, ou seus professores, o problema era o de organizar os cursos nesses setores com o sentido de profundidade e proficiência que requer o seu estudo em nível universitário. O exemplo também ai da escola de medicina não seria de desprezar . A organização de certos institutos criados em torno de cadeiras do ensino médico fornece modelos absolutamente respeitáveis, sendo que alguns se fizeram centros de pesquisa do saber pelo saber, que deve marcar as escolas acadêmicas (como oposto a profissional) de letras e ciências. Cabe aqui, antes de prosseguir, examinar essa designação de ensino básico que se vem introduzindo em nossa terminologia da reforma. Se ele significa básico apenas como preparatório para as carreiras profissionais, seria aceitável. Nesse caso, o básico seria um ensino geral, introdutório ou propedêutico ao estudo superior no nível acadêmico ou no nível profissional, ou destinado a uma ampliação da cultura secundária, para os que não

desejassem fazer carreira acadêmica ou profissional. Neste caso, porém, não deveria haver a insistência que percebo em que ele seja ministrado nos institutos destinados às carreiras acadêmicas, salvo se se destinassem apenas às carreiras acadêmicas. O curso de cultura geral é diferente de um curso propedêutico, e este curso propedêutico se diversifica pelo ramo de que ele deseja ser propedêutico. O de cultura geral é uma iniciação, uma introdução a um ramo do saber, com o objetivo central de alargar a mente do educando, de Ihe dar novas vistas da realidade e de aparelhá-lo com certas idéias necessárias para compreender o mundo do saber, a sua diversidade, e ajudá-lo a pensar com maior riqueza de imaginação. Já o curso propedêutico pode alcançar alguns desses efeitos, mas não pode ser tão desinteressado e tem de levar em conta a aplicação do conhecimento examinado no campo para que deseja ser propedêutico. O curso geral em certos casos pode ser propedêutico ao curso de especialização acadêmica, mas somente como elemento para a escolha do campo a que se vai dedicar. Este curso geral é hoje dos mais difíceis, exigindo ou extraordinária competência, que é o caso quando um grande especialista se devota às implicações gerais do estudo de sua matéria, ou extraordinária vocação, que é o caso de certos estudiosos fascinados pelos aspectos gerais da cultura. Pensar-se que qualquer especialista, como tal, o possa ministrar, parece-me um engano. Daí inclinar-se para dar a esses cursos geral, propedêutico ou de carreiras curtas — uma organização própria, com professores próprios e direção própria, à maneira do college anglo-saxônio, ou melhor, americano. No mundo francês, esses dois anos lembrariam os últimos anos do antigo Iycée, possíveis no nível secundário até os últimos 50 anos. Hoje, com o aumento do saber humano, só é possível no nível da universidade. Neste sentido, depois da perfeita consciência da reforma a introduzir, que me parece ser esta da reforma dos cursos, nos seus objetivos e na sua contextura, seguida da introdução da formação acadêmica ao lado e independente da profissional, viria, por fim, esta da criação dos cursos - gerais, propedêuticos, e práticos para carreiras curtas—em instituições independentes, com professorado, alunos e direção próprios. E por fim, também em instituições independentes, as escolas pós-graduadas, com professores, alunos e direção próprios. Toda essa reforma visaria atender a problemas reais da nossa conjuntura universitária, conduzindo a uma melhor divisão de trabalho entre as diferentes categorias de professor, no sentido da competência e direção do seu espírito, e uma melhor divisão também dos estudantes, oferecendo-lhes no curso básico, ou melhor no curso inicial de dois anos (ou três), uma oportunidade para se examinarem, se descobrirem e fazerem as suas opções: ou do estudante que deixa a universidade por não ser feito para ela ou por achar que lhe bastam os conhecimentos adquiridos; e a do que escolhe uma das carreiras acadêmicas, ou uma das carreiras profissionais. Graduado nestas, ainda poderia optar por continuar os estudos na escola pós-graduada, para os estudos avançados que o iriam preparar para a pesquisa ou o magistério superior. A reforma resolveria, assim, o problema da admissão à universidade, abrindo seus portões para acolher a mocidade que terminasse o curso secundário e alimentasse o propósito de continuar os estudos, oferecendo-lhe um curso introdutório, de nível superior, destinado a: 1) alargar-lhe a cultura geral recebida no nível secundário; 2) dar-lhe uma cultura propedêutica para as carreiras acadêmicas ou profissionais; 3) ou treiná-la em carreiras curtas de tipo técnico. Terminados estes cursos é que se iria proceder à seleção dos estudantes para os cursos regulares de graduação nas carreiras acadêmicas ou profissionais. Depois desta formação, nova seleção se faria, imediata ou posteriormente, para a escola pós-graduada. Terá a reestruturação, ora proposta, as virtualidades necessárias para permitir uma reforma desse tipo? No sentido em que é apenas uma reestraturação da maquinaria organizacional e administrativa da universidade, talvez sim. Não faço, porém, esta afirmação sem fortes reservas. Primeiro, ficaram apenas esboçadas e mesmo confusas as separações entre o curso básico e as seqüências desse curso no campo profissional e no acadêmico e a continuação nos cursos de pós-graduação. Os professores são comuns a todos os cursos, o que me parece altamente inviável, e os alunos também se distribuem verticalmente sem mais vivas distinções. Em relação à nova posição do professor e do aluno na situação que a reforma deve criar, transcrevo aqui trecho que escrevi em outra oportunidade sobre o problema da reestruturação da universidade:

“Para que a reforma planejada se processe, entretanto, torna-se necessária não apenas a mudança de organização ou estrutura da universidade, mas a mudança de funções do professor, o qual passa a atuar em cursos diferentes e dar diversos programas de ensino em suas disciplinas, o que importa em novas virtualidades de seu trabalho e, naturalmente, em exigir dele tempo integral e devotamento exclusivo. Tome-se, por exemplo, o professor deslocado para um instituto central. Cabe-lhe reger a sua disciplina em três níveis diferentes e em diversas variedades de programas. No nível básico, o seu curso poderá ser propedêutico a algum curso profissional ou ao próprio curso acadêmico de sua disciplina; poderá ser de cultura básica para formação geral, correspondendo a uma iniciação científica ou humanística; ou poderá ser ainda um curso de conhecimento aplicado para alguma carreira curta. No nível acadêmico, o curso será de especialização e treinamento científico ou humanístico para a formação do scholar, ou seja, um profissional de conhecimento especializado; no nível pós-graduado, terá que conduzir cursos avançados de preparo do professor superior ou pesquisador, interessado na descoberta do conhecimento novo no seu campo de especialidade, e ainda cursos de aperfeiçoamento, ou de revisão e renovação de conhecimentos. Por sua vez, o professor dos cursos profissionais terá que oferecer cursos diferenciados, pois integrando escolas ou faculdades com diferentes cursos profissionais, o seu ensino deve acompanhar as necessidades dos seus alunos em cada curso profissional. Além disto, deverá ser capaz de dar cursos no nível propriamente profissional e no nível pós-graduado, em que estará formando não o profissional do conhecimento aplicado e já existente, mas o profissional original ou pesquisador, preocupado com o avanço do seu campo de conhecimento. Esses três níveis de ensino implícitos na nova estrutura e a variedade de programas que subentendem não parece terem sido levados em conta. A nova estrutura apenas agrupa os professores de modo mais concentrado, sem tornar claro que não vai cada um ali repetir o trabalho que fazia nas suas escolas ou cursos antes isolados e duplicados, mas distribuir o seu trabalho por um raio de ação mais amplo e diversificado e exercê-lo em cooperação e associadamente com outros colegas, dividindo entre si as tarefas de forma a se complementarem e darem maior rendimento às suas tarefas e esforços. Este é um lado da questão; as novas funções do professor na nova estrutura planejada. O outro lado é o do estudante. Também este vai deparar-se com profunda alteração dos seus estudos. Já não é aluno de um único grupo de professores em uma só escola com um curso único. É aluno de vários institutos, escolhendo ele próprio as disciplinas que vai cursar, na modalidade de sua preferência, conforme deseje um programa propedêutico, um preparo geral ou um preparo prático para carreiras curtas. Quando no nível dos estudos básicos, deverá viver um período de busca de sua orientação e de sua vocação, não podendo ser o antigo estudante mais ou menos passivo, que sofria ou se deleitava com o curso que Ihe era imposto. A nova universidade Ihe surge nesse nível como um mundo complexo, em que se tem de iniciar e achar o seu caminho, ajudado talvez pelos professores mas ficando sempre com ele a maior responsabilidade pelas escolhas e opções. Além disso, o seu próprio trabalho passa a ser muito maior, pois os professores estão com as suas tarefas multiplicadas nesse nível básico, dando ensino a diferentes grupos de alunos, não podendo ser diretamente responsáveis por cada um deles, mas, apenas, quando muito, pelos grupos de cada modalidade do curso. Não esqueçamos que a nova estrutura concentrada de grupos homogêneos de professores destina-se a servir a maior número de alunos, distribuídos por um feixe de ramos diversificados. Não se trata do antigo college de uma Oxford, com pequenas famílias de professores e alunos, mas da nova universidade - cidade com toda a complexidade da organização urbana, senão metropolitana. Esse mundo universitário não é mais a casa ou a família, mas algo amplo e complexo que atua como um meio, exigindo capacidade de adaptação e descoberta para cada um encontrar o seu caminho e "se formar". O estudante tem que ter iniciativa, imaginação e capacidade de esforço pcssoal. O meio universitário o orienta de modo geral, mas sobretudo o provoca e estimula para o estudo, que é tarefa sua a ser feita pelas leituras amplas e absorventes, pelos períodos árduos de laboratórios, pela experiência rica e estimulante, pela convivência mais com os colegas, os seus pares, do que mesmo com os professores. Assim como o novo sistema requer o professor de tempo integral, também exige o aluno de tempo integral. Meu receio ante a nova estrutura planejada está em que não vejo a necessária ênfase no novo professor e no novo aluno que a nova universidade impõe. A simples mudança de estrutura sem a renovação de programas, de métodos, de

professores e de alunos pode vir a deixar tudo no mesmo, embora os nomes e a disposição das coisas ou elementos da situação sejam diferentes." Meu segundo receio é com os Institutos Centrais. Parece-me que irão, sob outro aspecto, reproduzir a confusão e ambigüidade das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Terão que dar cursos básicos, cursos propedêuticos, talvez cursos de carreiras curtas, cursos regulares de formação de especialistas acadêmicos, cursos dessa natureza para a escola de educação e cursos de pós-graduação. São cursos diversos em métodos, em objetivos, em destinação. Quais irão prevalecer? Que atmosfera, que clima, que espírito marcará a instituição? Confesso que não sei. Mas, além disto, é uma experiência nova no sentido que seu campo é um único setor do saber, que os projetos de reestruturação chamam de área. Algumas áreas são tão extensas que o perigo da segregação e isolamento será evitado. Mas em outros, a segregação é manifesta. Não consigo imaginar com clareza o funcionamento desses institutos, sobretudo porque verticalmente eles incluem todos os níveis e aspectos do ensino superior e horizontalmente acho-os mais isolados do que as antigas escolas soberanas e auto-suficientes. O assunto merece estudo ponderado e profundo. Restaria lembrar que, para esta reforma se processar, seria indispensável o exame da situação e qualificações do professorado e o esclarecimento ao corpo discente das novas oportunidades e limitações no novo plano universitário. Tudo parece continuará no mesmo, tendo havido apenas uma redistribuição maciça das matérias de ensino e dos professores. Para quê? Para cada um ir fazer o mesmo que fazia em outro lugar dentro da universidade? Parece estar subentendido que não, que cada um irá se transformar em virtude de sua nova posição dentro do esquema geral. Ainda mais me admira, depois de mudanças externas tão radicais, que não se diga uma palavra sobre o aumento quantitativo do rendimento do ensino, sobre a possibilidade de novos cursos, sobre o aumento de alunos que a reforma vai proporcionar. Tudo isto talvez ajude a explicar a receptividade e a aceitação tão extraordinariamente pacífica dos planos de reestruturação e reforma das universidades. Fiquemos, porém, com a esperança de que, ainda assim, o momento universitário brasileiro seja de um novo estado de espírito.

11. Estrutura atual das uníversidades e as novas leis para sua reestruturação As atuais universidades brasileiras têm a sua estrutura regulada pela Lei de Diretrizes e Bases, de 20 de dezembro de 1961. Por esta lei as universidades se constituem pela reunião, sob administração comum, de cinco ou mais estabelecimentos de ensino superior. O artigo original da lei prescrevia ainda que um dos cinco estabelecimentos fosse a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, donde se deduz que o legislador desejava manter a idéia, que presidiu originariamente a sua criação, da faculdade de filosofia como possível estabelecimento central da universidade. A expressão foi, entretanto, vetada pelo Poder Executivo, havendo sido o veto mantido. Por aí se vê que o reconhecimento de que a experiência falhara já estava em curso, não desejando o governo que a lei impedisse o aparecimento de alternativas à primitiva idéia da faculdade de filosofia como órgão integrador das atividades dos estabelecimentos de ensino constitutivos da universidade. Cumpre lembrar que, pouco antes da Lei de Diretrizes e Bases, votara o Congresso a lei criando a Fundação Universidade de Brasília, em moldes novos, pelos quais os órgãos integradores da universidade seriam os institutos centrais. Voltaremos a nos referir a essa experiência. Além dos estabelecimentos de ensino superior, prescreveu a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que integrariam ainda a universidade "institutos de pesquisa e centros de aplicação e treinamento profissional." O artigo foi também vetado em parte, prevalecendo a redação seguinte: integram ainda a universidade "institutos de pesquisa e de aplicação e treinamento profissional." A justificação do veto declara expressamente: "A proposição, tal como está redigida, restringe os institutos universitários às funções de pesquisa, quando eles devem exercer, também, atividades de ensino, aplicação e treinamento. Aliás, só com esta amplitude de ação podem eles representar o papel de órgãos integradores que mantenham cursos e serviços destinados aos alunos das diversas faculdades, de modo que a universidade não seja reduzida a mera federação de escolas profissionais estanques e auto-suficientes, mas constitua um sistema integrado de ensino, de pesquisa e de treinamento profissional, capaz de cobrir todos os ramos do saber." Em definitivo, pois, a universidade passou a constituir-se de estabelecimentos de ensino, cinco no mínimo, e mais de institutos de pesquisa e de aplicação e treinamento profissional. Acrescentou-se à idéia primitiva da universidade como reunião de estabelecimentos de ensino, a de institutos com a função de pesquisa e treinamento profissional. O espírito de reforma da universidade conseguira penetrar na lei, tornando possiveis alternativas de estrutura. Confirmando esse espírito de reforma, declarou a lei que o ensino nas universidades fosse ministrado nos estabelecimentos de ensino "e nos órgãos complementares (institutos), podendo o aluno inscrever-se em disciplinas lecionadas em cursos diversos, se houver compatibilidade de horário e não se verificar inconveniente didático, a juízo da autoridade escolar." A disposição era permissiva e cautelosa, mas abria alternativas ao princípio anteriormente vigente da completa separação entre os cursos e do isolamento de cada um. Assim constituída a universidade, sob a forma de autarquia ou fundação, com autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar ficava subordinada ao Conselho Universitário, constituído na forma dos estatutos, e presidida pelo reitor. Dispôs expressamente a lei que ao Conselho competiria "estabelecer as condições de equivalência entre os estudos feitos nos diferentes cursos", o que vinha fortalecer o novo princípio de interação entre os diferentes cursos. A autonomia da universidade ficou assim definida: "As universidades gozarão de autonomia didática, administrativa financeira e disciplinar, que será exercida na forma de seus estatutos A autonomia didática consiste na faculdade: a) de criar e organizar cursos, fixando os respectivos currículos b) de estabelecer o regime didático e escolar dos diferentes cursos sem outras limitações a não ser as constantes da presente lei A autonomia administrativa consiste na faculdade de:

a) elaborar e reformar, com a aprovação do Conselho Federal de Educação ou Estadual de Educação, os próprios estatutos e os regimentos dos estabelecimentos de ensino; b) indicar o reitor, mediante lista tríplice, para aprovação ou escolha pelo governo, nas universidades oficiais, podendo o mesmo ser reconduzido duas vezes; c) indicar o reitor nas universidades particulares, mediante eleição singular ou lista tríplice, para aprovação ou escolha pelo instituidor ou Conselho de Curadores; d) contratar professores e auxiliares de ensino e nomear catedráticos, ou indicar, nas universidades oficiais, o candidato aprovado em curso para nomeação pelo governo; e) admitir e demitir quaisquer empregados dentro de suas dotações orçamentárias ou recursos financeiros. A autonomia financeira consiste na faculdade de: a) administrar o patrimônio e dele dispor, na forma prevista no ato de constituição, ou nas leis federais e estaduais aplicáveis; b) aceitar subvenções, doações, heranças e legados; c) organizar e executar o orçamento total de sua receita e despesas, devendo os responsáveis pela aplicação de recursos prestar contas anuais." Temos, pois, que a universidade, constituída dominantemente pela reunião das antigas escolas ou estabelecimentos de ensino isolados, recebia pela lei a sua autonomia para poder desenvolver e reformar-se pela criação dos institutos de pesquisa e de aplicação e treinamento profissional. O processo dessa reforma se iria operar sob a supervisão de um corpo novo, o Conselho Federal de Educação, órgão de cúpula constituído de educadores, a cujo cargo ficavam a aprovação dos institutos universitários e a formulação da política educacional do país, devendo as suas decisões mais importantes ser homologadas pelo ministro da educação. Entre 1962 e 1966 as universidades elaboraram novos estatutos, criaram numerosos institutos de pesquisa, diversificaram seus cursos, incorporaram numerosas novas unidades docentes, executaram grandes programas de construção e aumentaram os seus respectivos corpos docentes e discentes. A estrutura básica, entretanto, de isolamento das escolas entre si, da separação dos cursos em currículos rígidos e contínuos, sem possibilidade de transferência nem de colaboração entre si e da autonomia da cátedra como real unidade docente, não chegou a ser alterada, determinando isto a sobrevivência prática da estrutura anterior da escola isolada e do professor catedrático tambem isolado e independente, e do curso isolado e exclusivo para cada carreira. Com o crescimento da universidade, o aumento da matrícula e a diversificação de escolas, de cursos e de institutos, todos existindo, separados e isolados, e no imenso conglomerado, pontificando como real força viva apenas a cátedra - pois, embora tivesse sido criados departamentos, esses exerciam apenas controle externo e dominantemente formal quanto ao ensino — a universidade passou a funcionar com um grau tal de ausência de unidade e organicidade, que se agravou sobremodo a crise de coordenação e integração entre os meios e os fins e propósitos. Fez-se geral o sentimento de que as cautelosas permissões da Lei de Diretrizes e Bases não chegaram a produzir a esperada transformação da universidade no conjunto orgânico de atividades integradas e cooperativas, necessário à economia e eficiência da instituição. Sob a inspiração do Conselho Federal de Educação, promulgou então o governo, em 18 de novembro de 1966, um decreto-lei (Decreto-lei n° 53, de 18 de novembro de 1966), que fixou princípios e normas de organização para as universidades oficiais federais, que constituem a maioria das universidades existentes. Trata-se de decreto-lei que reformula radicalmente princípios apenas esboçados na Lei de Diretrizes e Bases e Ihes dá caráter compulsório, estendendo praticamente a todas as universidades federais os princípios vigorantes na experiência renovadora da Universidade de Brasília (Lei n° 3.998, de 15 de dezembro de 1961). Não é possível deixar de incluir, em anexo, esse decreto-lei, e o que o regulamentou, pois constituem um verdadeiro e radical programa de reforma. Por estes dois decretos-leis, ficou determinada muito mais explicitamente a nova estrutura da universidade. Sob a designação de subunidade passou o departamento a substituir a cátedra, e o professor catedrático a ser professor como os demais componentes de departamento. Esta é a mudança radical da estrutura anterior. Além disto, o sistema de unidades escolares passou a ser o de áreas do conhecimento

humano critério a ser adotado também quanto às áreas de ensino profissional e pesquisa aplicada, com o que se reformou o sistema de escolas por cursos: as unidades terão tantos cursos quanto necessários para o ensino na área de conhecimentos a que se devota. Esta é outra mudança radical. Além disto, a universidade manterá órgãos suplementares de natureza técnica, cultural, recreativa e de assistência ao estudante. Estruturalmente, assim, a universidade compreenderá departamentos como subunidades, e unidades como conjuntos de departamentos e áreas ou centros amplos e compreensivos. Haverá órgãos setoriais, com funções deliberativas e executivas, destinadas a coordenar as unidades afins para a integração de suas atividades. A coordenação didática de cada curso ficará a cargo de um colegiado constituído de representantes dos departamentos que participam do respectivo ensino. Deste modo, vê-se como ficou assegurada a cooperação entre os professores no departamento e entre os departamentos nos cursos de que participam. Os decretos-lei que estamos examinando romperam todas as duplicações e isolamentos e criaram as possibilidades de intercomunicação, interligação, cooperação e integração de todas as subunidades (departamentos) e unidades constitutivas da universidade. Encontramo-nos, presentemente, na fase de aprovação dos planos de reestruturação, cujo prazo pelo Decreto-lei n-° 252 foi adiado. Já foram todos apresentados ao Conselho Federal de Educação, que aprovou o da Universidade Federal do Rio de Janeiro, encontrando-se em estudos todos os demais. Para dar uma idéia do que será a nova estrutura da universidade federal brasileira, apresentamos o plano de reestruturação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que pode ser tomado como um exemplo da reestruturação por que vão passar todas as 17 universidades federais.

11.1 Reestruturação da Universidade Federal do Rio de Janeiro O plano de reestruturação da Universidade Federal do Rio de Janeiro está exposto em um documento, em forma de lei, aprovado pelo presidente da República, depois de parecer favorável do Conselho Federal de Educação, pelo qual se redefinem as finalidades, funções, organização e administração da universidade. Nos termos em que foi feito, tem força de lei e vai determinar a mudança dos próprios estatutos e regimentos das unidades e subunidades da universidade. A fim de dar idéia da amplitude e complexidade da reforma em vias de entrar em execução, e, além disso, ilustrar as mudanças de terminologia, em alguns casos radicais, na consideração dos problemas e funções da universidade, faz-se necessário reproduzir, em muitos casos textualmente, os artigos do plano. Nos primeiros artigos, trata da universidade e os seus fins. Depois de definir a universidade como "instituição de ensino e pesquisa" dotada de "personalidade jurídica, com autonomia didática, administrativa, financeira e disciplinar", destinada a "promover a educação, a pesquisa e o desenvolvimento científico, filosófico, tecnológico, literário e artístico, e a formar profissional de nível superior," assim enuncia os objetivos da universidade: a) fundamentais I — a educação integral (ética, intelectual, estética e científica); II — o ensino para a formação e aperfeiçoamento de pesquisadores e profissionais de nível superior; III - a pesquisa científica, filosófica e tecnológica; IV - a criação artística e literária; V — a difusão da cultura em todos os níveis; VI - o treinamento continuado de profissionais e técnicos. b) especiais I — a tomada de consciência dos problemas regionais, nacionais e internacionais; II — a participação formativa e informativa na opinião pública; III - a atuação no processo de desenvolvimento do país; IV - o fortalecimento da paz e da solidariedade universal; V — a colaboração com o Poder Público, em problemas regionais e nacionais.

No artigo seguinte, entretanto, a extrema amplitude dessa definição dos objetivos é, de certo modo, equilibrada com a declaração de que "a universidade cumprirá seus objetivos mediante a organização e o desenvolvimento de cursos de graduação, pós-graduação, especialização, aperfeiçoamento, treinamento profissional, atualização, extensão universitária e outros." Os cursos de graduação destinam-se a formar profissionais e serão desdobrados em dois ciclos - um básico e um profissional. Sua estrutura atenderá: a) ao currículo mínimo e à duração fixados pelo Conselho Federal de Educação; b) ao progresso científico e tecnológico, bem como à demanda e às peculiaridades de cada profissão mediante a complementação do currículo mínimo oficial com disciplinas obrigatórias, optativas e facultativas. Os cursos de pós-graduação, abertos à matrícula de graduados em cursos correlatos e destinados a aprimorar, em nível superior avançado, sua preparação, abrangerão as seguintes modalidades: a) cursos de mestrado, com a duração mínima de um ano, destinados à outorga de grau de mestre; b) cursos de doutorado, com a duração mínima de dois anos, destinados à outorga, após aprovação em defesa de tese, do grau de doutor em profissão, ciência, letras ou artes. Os demais cursos mencionados, abertos à matrícula de graduados ou outros candidatos que preencham as exigências mínimas estabelecidas para cada modalidade de curso, destinam-se, conforme a modalidade, a complementar sua preparação, desenvolver em profundidade as qualificações profissionais, ampliar sua capacidade técnica, atualizar seu conhecimento, difundir e democratizar a cultura. Os cursos universitários, em suas diversas modalidades, serão desenvolvidos tendo em vista a integração do ensino e da pesquisa, a coordenação das unidades universitárias, as exigências do meio e o progresso das ciências, da tecnologia, da filosofia, das letras e das artes. Como se vê, o programa da universidade é um programa de cursos, não havendo, na enumeração das atividades, menção à pesquisa, salvo a observação de que os cursos "serão desenvolvidos tendo em vista a integração do ensino e da pesquisa". A expressão "integração do ensino e da pesquisa" parece subentender que todo ensino é integrado com a pesquisa. Ora, há ensino e há pesquisa, a integração só podendo efetuar-se no caso da escola pós-graduada quando o estudante está em condições de se associar à pesquisa. Uma coisa é a de que o professor deve ensinar e pesquisar, ou melhor, o professor que se devote à pesquisa também ensine, e outra é julgar que todo ensino seja também pesquisa. É evidente que os métodos de ensino podem ser assimilados aos métodos de pesquisa, correspondendo isto a conduzir o estudante a adquirir o conhecimento já existente como se o tivesse de redescobrir. Por certo que, deste modo, se familiariza o estudante com os métodos de pesquisa, mas nem por isto se pode dizer que ele esteja fazendo pesquisa. Ambos os decretos-leis sobre a reestruturação da universidade trazem essa confusão entre ensino e pesquisa, levando à identificação de ambas as funções da universidade. A rigor, pode-se conceber uma universidade que não faça pesquisas; o que não é permissível é a universidade que não ensine. As duas atividades são diferentes, sendo desejável que o ensino se faça como preparação para a pesquisa, daí a conveniência de ser o método de ensino o da redescoberta do conhecimento. Depois de adquirir o conhecimento existente é que o professor ou o estudante se torna capaz de utilizar esse conhecimento existente para pesquisar o novo conhecimento. A pesquisa é uma atividade que se exerce normalmente na fase pós-graduada de estudos. A integração com o ensino é a de admitir como auxiliares ou estagiários de pesquisa estudantes dos cursos de graduação que se revelem promissores para a pesquisa. Só nesses casos haverá uma possível simultaneidade relativa entre o ensino e a pesquisa. Será de desejar que a prática venha a corrigir essa confusão de conceitos entre o ensino e a pesquisa. Há professores que só ensinam e outros que ensinam e pesquisam ou que pesquisam e ensinam. A legislação brasileira deseja que todos sejam como estes últimos. Pode ser desejável, mas, não creio, seja sempre possível. Depois de assim descrever as atividades da universidade como de cursos em diferentes níveis e de neles prever a "integração do ensino e da pesquisa", o plano dispõe sobre a distribuição dos "conhecimentos" em dois "grupos gerais", a saber:

Grupo 1 - abrangendo os seguintes setores: Setor 1.01 - Ciências Matemáticas Setor 1.02 - Ciências Físicas Setor 1.03 - Ciências Químicas Setor 1.04 - Ciências Biológicas Setor 1.05 - Ciências Geológicas Setor 1.06 - Ciências Humanas Setor 1.07 - Letras Setor 1.08 - Artes Grupo 2 - abrangendo os seguintes setores: 2.01 - Arquitetura e Urbanismo 2.02 - Educação 2.03 - Comunicação 2.04- Economia, Administração, Contabilidade e Atuária 2.05 - Direito 2.06- Serviço Social 2.07 - Medicina 2.08 - Odontologia 2.09 - Enfermagem 2.10 - Farmácia 2.11 - Tecnologia Quanto às áreas de conhecimento, não há definição precisa do que sejam, declarando apenas o art. 19 que "para cada área de conhecimento ou conjunto de áreas será instituida uma unidade universitária". Delineados assim os grupos e áreas de conhecimento, passa o plano a definir o que chama de "estrutura orgânica da universidade". Consiste essa estratura em órgãos a serem distribuídos por uma ''estrutura inferior, uma estrutura média e uma estrutura superior''.  Estrutura inferior — a estrutura inferior, também chamada infra-estrutura, é integrada pelos órgãos de execução do ensino e da pesquisa e por órgãos suplementares de natureza técnica e cultural. Os órgãos de execução do ensino e da pesquisa compreendem: a) subunidades b) unidades São subunidades os departamentos que, reunidos em número variável, formam as unidades universitárias, que terão a designação de institutos e escolas ou faculdades. O departarnento, como subunidade de ensino e de pesquisa, "constitui-se de pessoal e material relativos à reunião coerente de disciplinas em um campo bem definido de conhecimentos". Com base em departamentos, dois são os tipos de unidades universitárias: a) faculdades ou escolas (nomes considerados equivalentes) b) institutos Uma faculdade ou escola destina-se "a ministrar o ensino de ciclo profissional de um ou mais cursos de graduação de uma profissão geral", além de outros cursos previstos no plano (pós-graduação, especialização, aperfeiçoamento, treinamento profissional, atualização, extensão universitária e outros). Um instituto "é uma unidade de ensino e pesquisa em um setor de conhecimento fundamental". São as seguintes as suas finalidades: a) ministrar nas respectivas áreas de conhecimento o ensino do ciclo básico para toda a universidade; b) ministrar aos portadores de habilitação necessária cursos de graduação na profissão restrita ao conhecimento em causa expedindo aos aprovados o respectivo diploma; c) ministrar, em cooperação com escolas e faculdades, o ensino de disciplinas do ciclo profissional dos cursos desses estabelecimentos pertinentes aos conhecimentos especializados do instituto, outorgando aos aprovados a respectiva habilitação; d) ministrar, aos que já tenham determinadas habilitações especializadas, as disciplinas complementares para a graduação na profissão relativa ao conhecimento especializado em causa, expedindo aos aprovados o respectivo diploma;

e) ministrar as demais modalidades de cursos universitários (graduação, pós-graduação, especialização, aperfeiçoamento, treinamento profissional, atualização, extensão universitária e outros).  Órgãos suplernentares Constituem órgãos suplementares integrantes da infra-estrutura: a) as organizações de prestação de serviços profissionais, que visem coadjuvar as unidades ou subunidades na execução do ensino e da pesquisa; b) os núcleos que, congregando recursos de subunidades ou unidades universitárias, com ou sem a cooperação de entidades extra-universitárias, se destinam ao desenvolvimento de programas de pesquisas e (ou) de treinamento avançado. Estes órgãos serão instituídos, em caráter permanente ou temporário, pelo Conselho Universitário, por iniciativa do Conselho de Coordenação dos Centros Universitários. A descrição da estrutura prevista pelo plano, ao indicar as finalidades dos institutos, dispõe que Ihes cabe "instituir e desenvolver programas de pesquisas e de aplicação de conhecimentos", parecendo reconhecer que a pesquisa é atribuição dos institutos e não da escola ou faculdade, com o que ficaria limitada a "integração do ensino e da pesquisa" aos institutos e nos cursos em que isso seja possível. Corrobora esta suposição o fato de competir-lhe oferecer cursos pós-graduados. Entretanto, esta interpretação não parece válida em face da organização das unidades universitárias, todas elas de ensino e de pesquisa. São unidades do grupo 1 de conhecimentos, também chamado de grupo básico, os seguintes órgãos de ensino e de pesquisa: Setor 1.01 — Ciências Matemáticas  Instituto de Matemáticas  Instituto de Estatística Setor 1.02 — Ciências Físicas  Instituto de Física Setor 1.03 — Ciências Químicas  Instituto de Química Setor 1.04 — Ciências Biológicas  Instituto de Biologia  Instituto de Microbiologia Setor 1.05 — Ciências Geológicas  Instituto de Geociências Setor 1.06 — Ciências Humanas  Instituto de Filosofia e Ciências Sociais  Instituto de Psicologia Setor 1.07 - Letras  Faculdade de Letras Setor 1.08 — Artes  Escola de Belas-Artes  Escola de Música São unidades do grupo B as seguintes unidades ou órgãos de ensino e pesquisa: Setor 2.01 — Arquitetura  Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Setor 2.02 - Educação  Faculdade de Educação  Escola de Educação Física e Desportos Setor 2.03 - Comunicações  Escola de Comunicações Setor 2.04 — Economia, Administração, Contabilidade e Atuária  Faculdade de Economia e Administração Setor 2.05 - Direito  Faculdade de Direito Setor 2.06 - Serviço Social  Escola de Serviço Social Setor 2.07 - Medicina  Instituto de Ciências Médicas  Faculdade de Medicina  Institutos Especializados  Instituto de Nutrição

Setor 2.08—Odontologia  Faculdade de Odontologia Setor 2.09 - Enfermagem  Escola de Enfermagem Ana Néri Setor 2.10 - Farmácia  Faculdade de Farmácia Setor 2.11 - Tecnologia  Escola de Engenharia  Escola de Economia  Estrutura média—a estrutura média da universidade "será constituída por um conjunto de órgãos de coordenação das atividades universitárias nas suas grandes áreas de ensino e pesquisa", que se designarão de Centros Universitários. O Centro Universitário, formado pela reunião de unidades universitárias "cujos objetivos de ensino e pesquisa se circunscrevem a uma área ou conjunto de áreas do mesmo caráter profissional, científico, filosófico, literário ou artístico, bem como pelos órgãos suplementares a elas vinculados se destinará a coordenar o planejamento e a execução das atividades técnicas, docentes e de pesquisa dos órgãos integrantes". O Centro Universitário pode, assim, constituir-se de escolas ou faculdades, institutos e órgãos suplementares, cabendo a sua direção a um decano, eleito pelas unidades universitárias congregadas dentre professores das unidades integrantes, e nomeado pelo reitor. Cada centro terá um Conselho de Coordenação. São constituídos os seguintes centros universitários: I - Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza II - Centro de Letras e Artes III - Centro de Filosofia e Ciências Humanas IV - Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas V - Centro de Ciências Médicas VI - Centro de Tecnologia O Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza congregará, de início, as unidades e órgãos seguintes: I - Instituto de Matemática II - Instituto de Estatística III - Instituto de Física IV - Instituto de Química V - Instituto de Geociências VI - Observatório do Valongo VII—Instituto de Biofísica VIII—Núcleo de Cornputação Eletrônica O Centro de Letras e Artes, abrangendo as áreas de arquitetura e urbanismo e das artes, congregará, de início, as unidades e órgãos seguintes: I- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo II—Núcleo de Pesquisa Habitacional III—Escola de Belas-Artes IV - Escola de Música V- Faculdade de Letras O Centro de Filosofia e Ciências Humanas abrangerá de inicio as seguintes unidades e órgãos: I - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais II - Instituto de Psicologia III - Escola de Comunicação IV - Faculdade de Educação V - Escola de Educação Fisica e Desportos VI - Escola de Serviço Social VII-ColégioUniversitário (agregado) O Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas abrangerá as seguintes unidades: I-Faculdade de Direito II-Faculdade de Economia e Administração. O Centro de Ciências Médicas abrangerá, de início, as seguintes unidades e órgãos: I-Faculdade de Medicina II-Instituto de Ciências Biomédicas III-Instituto de Microbiologia

IV - Institutos Especializados V - Faculdade de Odontologia VI - Escola de Enfermagem VII - Instituto de Educação VIII - Faculdade de Farmácia IX - Hospitais Escolares O Centro de Tecnologia abrangerá, de início, as seguintes unidades: I - Escola de Engenharia II- Escola de Química III- Instituto de Eletrotécnica IV-Núcleo de Ensaios e Metrologia V - Instituto de Engenharia Nuclear (agregada)  Estrutura Superior A Universidade Federal do Rio de Janeiro, em sua estrutura superior, será constituída dos seguintes órgãos: a) Reitoria b) Conselho Superior de Coordenação Executiva c) Conselho do Ensino de Graduação d) Conselho de Pesquisas e Ensino para Graduados e) Órgãos de Administração f) Fórum de Ciência e Cultura g) Conselho de Curadores h) Conselho Universitário i) Assembléia Universitária As atividades gerais da universidade serão distribuídas pelas áreas seguintes: I- Ensino de graduação e corpo discente II- Ensino para graduados e pesquisa III- Patrimônio e finanças IV - Desenvolvimento da universidade 

Direção da universidade A universidade será dirigida pelo reitor, auxiliado por um vice-reitor e cinco sub-reitores. O reitor será nomeado com mandato de três anos pelo presidente da República dentre os professores catedráticos e titulares eleitos em lista tríplice em escrutínios sucessivos por votação uninominal do Conselho Universitário, podendo ser reconduzido até duas vezes. O vice-reitor, a quem incumbirá substituir o reitor em seus impedimentos, será eleito dentre os professores catedráticos, titulares ou pesquisadores-chefes pelo Conselho Universitário, podendo ser reconduzido até duas vezes. Os sub-reitores, que exercerão atividades executivas nas cinco áreas mencionadas no artigo anterior, serão escolhidos mediante a homologação pelo Conselho Universitário de lista de cinco nomes de professores catedráticos, titulares ou pesquisadores-chefes, que lhe for submetida pelo reitor. 

Conselho Superior de Coordenação Executiva O Conselho Superior de Coordenação Executiva é composto dos seguintes membros: I - Reitor II - Vice-Reitor III - Sub-Reitores IV - Decanos de Centros Universitários V - Decano para as Obras da Cidade Universitária VI - Prefeito da Cidade Universitária Compete: a) colaborar na programação executiva dos planos aprovados pelos órgãos superiores; b) propiciar os elementos necessários para a coordenação dos centros no sentido de uma colaboração racional, equilibrada e econômica dos seus recursos humanos e materiais para a melhor integração e execução dos planos de ensino e de pesquisa; c) assegurar aos decanos dos Centros Universitários: 1) o conhecimento recíproco dos recursos, problemas e iniciativas de cada um; 2) a oportunidade de relatar os problemas ocorrentes em seus respectivos centros assim como de oferecer e pleitear soluções práticas e efetivas para os mesmos;

d) examinar com o reitor o projeto de orçamento anual antes de ser submetido ao Conselho Universitário na respectiva proposta; e) opinar sobre todos os assuntos de natureza executiva que Ihe forem submetidos pelo reitor; f) opinar, sempre que solicitado pelo Conselho Universitário, sobre os projetos de normas em estudo e propor novas normas ou modificações nas que estejam em vigor.  Conselhos especiais Ficam instituídos na estrutura superior da universidade dois conselhos, um para os assuntos da área relativa ao ensino de graduação, e outro, para os assuntos da área relativa à pesquisa e ensino para graduados. Ao Conselho de Ensino de Graduação e ao Conselho de Pesquisas e Ensino para Graduados competirá em geral: a) elaborar planos plurianuais assim como planos e programas anuais para os assuntos das respectivas áreas, submetendo ao Conselho Universitário para os fins de sua integração no planejamento global da universidade; b) acompanhar e exercer o controle superior da execução dos planos e programas aprovados.  Órgãos executivos A reitoria, sob a chefia do reitor, será integrada pelos seguintes órgãos: 1. Secretaria-geral 2. Órgãos administrativos relativos às áreas de Ensino de Graduação e de Pesquisa e Ensino para Graduados 3. Órgão de assistência jurídica 4. Órgão de representação e relações públicas 5. Órgão de assistência ao estudante 6. Órgão de atividades desportivas As funções executivas referentes às áreas gerais de atividades da reitoria atrás mencionadas serão exercidas por superintendências na forma estabelecida no estatuto da universidade. As obras da Cidade Universitária serão dirigidas e administradas por um decano de livre nomeação do reitor a quem ficará subordinado. A Cidade Universitária será administrada por uma prefeitura, de organização e atribuições definidas no estatuto da universidade, sendo o prefeito nomeado pelo reitor.  Fórurn de Ciência e Cultura Com a categoria de Centro Universitário, fica instituído o Fórum de Ciência e Cultura, destinado ao debate e síntese das pesquisas referentes ao progresso dos vários setores de reconhecimento, ao estudo de problemas brasileiros e à ação e difusão científica e cultural. O Fórum de Ciência e Cultura será presidido pelo reitor e integrado pelos seguintes órgãos: I — Conselho Diretor II — Câmara de Estudos Brasileiros III — Museu Nacional IV — Órgãos suplementares, destinados à ação e difusão científica e cultural compreendendo, entre outros órgãos: biblioteca, emissoras de rádio e televisão, oficina gráfica, editora universitária, serviços de recursos audiovisuais, auditório.  Conselho Universitário O Conselho Universitário, órgão supremo de deliberação, terá composição, estrutura e atribuições definidas no estatuto da universidade.  Conselho de Curadores O Conselho de Curadores, órgão superior de controle da gestão financeira, terá composição, poderes e atribuições definidos no estatuto da universidade Fundada nesses pressupostos, a Universidade Federal do Rio de Janeiro elaborou novos estatutos, aprovados pelo Conselho Federal de Educação, os quais aqui resumimos, com inevitáveis repetições, para dar uma idéia da atual organização de uma universidade federal, de que a do Rio de Janeiro é o modelo mais desenvolvido.

Trata-se de organização extremamente complexa e vasta, a que se pretende, a despeito disto, dar um sentido de integralidade e de funcionamento coordenado e harmônico. Somente a prática poderá dizer que o plano proposto seja satisfatório.

11.2 Novos estatutos da Universidade Federal do Rio de Janeiro A estrutura da universidade compreende três níveis de órgãos: os da estrutura superior, os da média e os da infra-estrutura. Na estrutura superior são os seguintes os órgãos: a) Reitoria, com um reitor, um vice-reitor e seis sub-reitores b) Conselho Universitário c) Conselho de Curadores d) Conselho Superior de Coordenação Executiva e) Conselho de Ensino de Graduação f) Conselho de Pesquisas e Ensino para Graduados g) Fórum de Ciência e Cultura h) Assembléia Geral i) Administração - Secretaria-geral Esse complexo de órgãos distribui a sua ação por cinco áreas de atividades cada qual sob a supervisão de um sub-reitor, cuja autoridade é delegada pelo reitor. O sub-reitor é auxiliado por superintendências-gerais. São as seguintes as áreas de atividades: a) ensino de graduação e corpo discente b) ensino de graduados e pesquisa c) patrimônio e finanças d) pessoal e serviços gerais e) desenvolvimento da universidade Segue-se a estrutura média, que compreende os centros universitários relativos aos campos de ensino e pesquisa a que se dedica a universidade. São seis esses centros: a) Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza b) Centro de Letras e Artes c) Centro de Filosofia e Ciências Humanas d) Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas e) Centro de Ciências Médicas f) Centro de Tecnologia Cada um desses centros está sob a direção de um decano, que coordena as atividades e recursos das unidades e órgãos suplementares que os integram. O conjunto dos centros está sob a ação coordenadora do Conselho Superior de Coordenação Executiva, já mencionado na estrutura superior. Cada centro, além do decano, que é seu diretor, terá os seguintes órgãos, além do superintendente central: a) Escritório de planejamento b) Camara de estudos brasileiros c) Órgãos de administração central d) Órgãos suplementares e de serviços Haverá ainda o decano das obras da cidade universitária e o prefeito da cidade universitária. Os centros acima referidos serão integrados pelas seguintes unidades: a) Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza I - Instituto de Matemática II - Instituto de Estatística III -Instituto de Física IV - Instituto de Química V - Instituto de Geociências VI - Instituto de Biologia Integram ainda o centro os seguintes órgãos suplementares: Observatório de Valongo e Núcleo de Computação Eletrônica. b) Centro de Letras e Artes I - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo· II - Escola de Belas-Artes

III - Escola de Música IV - Faculdade de Letras Integra ainda este centro o seguinte órgão suplementar: Núcleo de Pesquisa Habitacional. c) Centro de Filosofia e Ciências Humanas I - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais II - Instituto de Psicologia III - Escola de Comunicação IV - Faculdade de Educação V - Escola de Educação Física e Desportos VI - Escola de Serviço Social Integram ainda o Centro de Filosofia os seguintes órgãos suplementares: Colégio de Aplicação e, como agregado, o Colégio Universitário. d) Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas I - Faculdade de Direito II - Faculdade de Economia e Administração Integra ainda este centro o seguinte órgão suplementar: Núcleo de Planejamento Urbano e Regional . e) Centro de Ciências Médicas I - Faculdade de Medicina II - Faculdade de Odontologia III - Faculdade de Farmácia IV - Escola de Enfermagem V - Instituto de Ciências Biomédicas VI - Instituto de Microbiologia VII - Instituto de Nutrição VIII - Instituto de Biofísica IX - Instituto de Ginecologia X - Instituto de Neurologia XI - Instituto de Psiquiatria XII - Instituto de Puericultura XIII - Instituto de Tisiologia e Pneumologia Os institutos especializados referidos nos itens VIII e XIII integram, no plano pedagógico, a estrutura departamental nas seguintes unidades: na Faculdade de Medicina, o Instituto de Ginecologia, o de Neurologia, o de Psiquiatria, o de Puericultura e o de Tisiologia e Pneumologia, no Instituto de Ciências Biomédicas, o Instituto de Biofísica. Integram ainda o Centro de Ciências Médicas, como órgãos suplementares, os hospitais escolares. f) Centro de Tecnologia I - Escola de Engenharia II - Escola de Química III - Instituto de Eletrotécnica O Instituto de Eletrotécnica integra, no plano pedagógico, a estrutura departamental da Escola de Engenharia. Integram ainda o Centro de Tecnologia os seguintes órgãos suplementares: Núcleo de Ensaios e Metrologia e, como agregado, o Instituto de Engenharia Nuclear. A infra-estrutura compõe-se dos departarnentos, distribuídos por unidades docentes e órgãos suplementares. Os departamentos são conjuntos de disciplinas correlatas e as unidades docentes conjuntos de departamentos, dividindo-se em faculdades ou escolas e institutos. As faculdades ou escolas destinam-se à formação profissional e à pesquisa no campo das disciplinas de seus currículos. Os institutos destinam-se primordialmente à pesquisa básica e ao ensino de uma área fundamental de conhecimento. São órgãos da infra-estrutura em cada unidade universitária: o departamento, o conselho departamental e a congregação, além da direção e das seguintes funções administrativas:

1.. Representação e Relações Sociais 2. Secretaria 3. Administração científica e tecnológica 4. Administração educacional 5. Administração pessoal 6. Administração patrimonial 7. Administração financeira 8. Comunicações 9. Arquivo 10. Documentação e informação 1 1. Reprografia 12. Zeladoria É essa a nova organização da universidade federal que está sendo implantada e de que será de esperar resulte o pleno desempenho de suas altas e complexas funções.

12.NOTA FINAL À maneira de conclusão, cabe aqui um olhar para o futuro. Salvo o período colonial, que contou com Coimbra, não dispôs o Brasil, com a Independência, como vimos, de um sistema de educação superior. As escolas superiores foram escolas profissionais isoladas, criadas separadamente para atender necessidades, de certo modo, imediatas. Com isto, somente tivemos, no passado, limitada experiência de ensino superior, não representando as escolas existentes nenhum esforço integrado pelo desenvolvimento e controle da cultura nacional. Somente no fim do primeiro quartel do século XX viemos agrupar essas escolas superiores existentes sob forma de universidade. E já na década de 30 é que as reorganizamos como universidades de algum modo mais completas. Sobreviveu ainda assim a tradição de escolas isoladas, dentro da qual expandimos o ensino superior até 1960, criando centenas de escolas isoladas, embora chegássemos a agrupar cerca de 50% delas em universidades ou federações de escolas. Em 1961, com a Lei de Diretrizes e Bases e a fundação da Universidade de Brasília, procuramos traçar uma política de ensino superior e, ao mesmo tempo, implantar um modelo de universidade sob forma integrada, destinado a atender às condições da mudança social em curso. "Tal mudança (a transformação da sociedade agrária e comercial na sociedade urbano-industrial dos nossos dias) é particularmente uma mudança de ênfase. O relevo tradicional da cultura intelectual e humanística transfere-se para a cultura científica e tecnológica. Embora se Ihe possa dar profundo sentido humano, essa nova cultura é muito mais pragmática e dominantemente preocupada com a habilitação técnica de seus estudantes, compreendida a ciência como forma de conhecimento que se completa com a sua aplicação a todas as formas e aspectos da sociedade devotada à produção dos bens necessários à existência e à sua feliz e adequada distribuição, para uma civilização de riqueza e abundância, tornadas estas possíveis devido ao avanço do conhecimento e da ciência." A nova legislação do ensino superior, a partir de 1964, representa um esforço para concretizar os objetivos de 1960 e encaminhar definitivamente a reforma universitária. Examinamos essa legislação e a ela oferecemos o nosso comentário. Nestas palavras finais de conclusão, desejamos caracterizar a situação de expansão quantitativa de oportunidades de educação superior, que não se pode, e talvez nem se deva coibir, e a necessidade de insistir-se pela mudança em qualidade do ensino superior, para se poder atender as novas exigências do desenvolvimento nacional. "Não se trata apenas de expandir o existente, mas de se implantar a cultura científica, em suas raízes e fundamentos e nas complexas formas de aplicação do novo conhecimento, a fim de se criar o quadro de competência e proficiência necessário para se conduzír a transformação da sociedade brasileira. Com isto, em termos gerais, a educação superior irá fazer-se uma educação para a ação e não apenas para a contemplação, uma educação para fazer e não apenas para compreender." Parece-me, diante disto, que não será possível considerar-se a reforma como algo de global, mas esforço lento, gradual, difícil e a ser tentado por estágios sucessivos. Esboçamos nos capítulos anteriores a configuração pela qual se poderia visualizar e encaminhar este esforço, com atenção aos dois aspectos mais prementes:

o da expansão das oportunidades de educação superior e o da mudança qualitativa do tipo de ensino universitário. Para isto, julgamos que dificilmente se poderá evitar a criação de patamares, ou níveis diferentes, dentro do plano global de ensino superior. Esses patamares estão implícitos nas idéias contidas dentro do plano de reforma. A nossa sugestão é para que se acentuem esses patamares, estabelecendo-se uma divisão do trabalho no plano vertical e não apenas no plano horizontal. A divisão se faria entre três níveis do ensino superior: o primeiro nível seria do ensino superior geral e básico, propedêutico, ou de carreiras curtas, com dois ou três, e mesmo quatro anos de curso; o segundo, o dos cursos profissionais ou acadêmicos longos, com três ou quatro anos de estudos; e o terceiro, com os estudos pós-graduados de dois e mais anos. As escolas e institutos seriam especificamente desses três níveis, com administração e professorados distintos, embora algum professor pudesse, em certos casos, ensinar em mais de um nível. Além disso, cada curso teria um currículo baseado em disciplinas principais e complementares, maiores e menores, que marcasse o caráter da especialização visada. A autorização para o funcionamento do ensino superior seria dada para cada nível. Os novos estabelecimentos, em geral, seriam autorizados para o primeiro nível, no qual somente se concederia o grau de bacharel, ou os certificados de carreiras curtas, ou de cursos propedêuticos básicos. A organização interna da escola seria a mesma, ou seja, a de subunidades de departamentos e unidades de escolas ou institutos. Progressivamente, caso não quisesse limitar-se ao primeiro nível, podia-se chegar à autorização para o segundo nível, mas com pedido e inspeção nova, depois de comprovado o êxito do ensino no primeiro nível, e de modo a ficarem asseguradas as novas condições para o ensino do segundo nível: carreiras profissionais longas e preparação acadêmica especializada. O terceiro nível de ensino pós-graduado, único com direito a expedir o grau de doutor, somente seria autorizado em condições especiais quando estivesse completamente satisfeitas as condições necessárias para a pesquisa e o avanço do conhecimento humano. Seria o verdadeiro ensino de descoberta e de criação da autêntica cultura científica concebida como a da busca do conhecimento aprofundado e empenhado no avanço do conhecimento humano. Esses três corpos de professores, concebidos como grupos distintos do ensino superior, se organizariam sob compasso diferente: o primeiro, em ritmo cuidadoso, mas acelerado, dada a pressão pela expansão; o segundo, mais lentamente. E o terceiro, com a mais extrema paciência, nada se fazendo senão nas melhores condições possíveis, a fim de ficarem assegurados os mais altos padrões desejáveis. Um sistema de bolsas federais de estudos permitiria que os estudantes de cada nível pudessem aspirar o acesso ao nível seguinte, mesmo que isto importasse em transferência para escola de local diferente da escola inicial. Acreditamos que deste modo se teria criado a possibilidade de expansão, sem perder de vista a necessidade de se cultivar um alto padrão de ensino superior. O nível pós-graduado, sendo, dominantemente, o nível de preparo do pesquisador e do professor de nível superior, seria o nível em que efetivamente se estaria promovendo a reforma do ensino superior. O reflexo desse nível nos dois níveis inferiores iria permitir o progresso lento mas seguro de todo o sistema. Dividido este nesses três subsistemas de escolas superiores, a expansão do primeiro e mesmo do segundo se poderia fazer porque o terceiro nível estava ali presente a velar para que se aperfeiçoassem

progressivamente pela sua atuação na formação do professorado de alto teor de qualidade. "A dificuldade está em vencer a resistência nacional ao estabelecimento de níveis diferentes no ensino superior. Estes níveis, entretanto, já existem, sendo apenas necessário separá-los por grupos diferentes de professores, aos quais se permitiria o acesso de um nível para outro, tanto do estudante quanto do professor, quando comprovassem estarem em condições de neles servir ou estudar. Não devia haver entre os três grupos diferenças de salários salvo as de tempo parcial e integral, ambos, contudo, existentes em cada um dos três níveis, sendo naturalmente essa distinção entre tempo parcial e integral mais rara no terceiro nível." Não desejei encerrar esse pequeno estudo sem esta sugestão que apresento para explicar que a crítica que fiz à reforma não é puramente negativa. A alternativa para que ela se torne viável está na idéia de dividir a tarefa e a luta pela reforma, divisão pela qual se pode permitir a expansão sem, entretanto, esquecer-se a absoluta necessidade de salvar os verdadeiros e indispensáveis padrões do ensino superior, por que o país anseia e espera ver concretizados. O real sistema de ensino superior estaria contido no conjunto de escolas de diferentes níveis, que se articulariam entre si, permitindo que professores e alunos por elas se distribuíssem e a elas tivessem acesso, embora situadas em locais diferentes. Os padrões de ensino seriam, em cada nível, tão altos quanto possíveis, mas a tolerância quanto ao grau de altura dos mesmos iria diminuindo do primeiro para o segundo, sendo que o terceiro permaneceria como modelo, exigindo-se aí sempre as condições do mais alto teor, que se refletiriam sobre os dois outros e dariam, constantemente, a medida do que cabia alcançar e efetivar. A tônica de todo o sistema seria a da implantação dos métodos do conhecimento experimental e científico e de sua aplicação no campo hoje extraordinariamente desenvolvido das tecnologias, as quais constituiriam prioridades básicas de todo o sistema. No campo dos estudos humanos, a ênfase estaria no estudo aprofundado da cultura brasileira, visando sua conscientização e controle cada vez maior, a fim de assegurar-se seu desenvolvimento progressivo e harmonioso.

Anexo 1 - Decreto-Lei n° 53, de 18 de novembro de 1966 Art. 1° As universidades federais organizar-se-ão com estrutura e métodos de funcionamento que preservem a unidade das suas funções de ensino e pesquisa e assegurem a plena utilização dos seus recursos materiais e humanos, vedada a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes. Art. 2° Na organização das universidades federais, observar-se-ão os seguintes princípios e normas: I—Cada unidade universitária - faculdade, escola ou instituto - será definida como órgão simultaneamente de ensino e pesquisa no seu campo de estudos. II—O ensino e a pesquisa básicos serão concentrados em unidades que formarão um sistema comum para toda a universidade. III—O ensino de formação profissional e a pesquisa aplicada serão feitos em unidades próprias, sendo uma para cada área ou conjunto de áreas profissionais afins, dentre as que se incluam no plano da universidade. IV - O ensino e a pesquisa desenvolver-se-ão mediante a cooperação das unidades responsáveis pelos estudos envolvidos em cada curso ou projeto de pesquisa. V- As atividades previstas no item anterior serão supervisionadas por órgãos centrais para o ensino e a pesquisa, situados na administração superior da universidade. Parágrafo único. Os órgãos centrais de supervisão do ensino e da pesquisa terão atribuições deliberativas e serão constituídos de forma que neles se representem os vários setores de estudos básicos e de forma profissional. Art. 3° As unidades do sistema, a que se refere o item II do art. 2O, encarregar-se-ão, além dos estudos básicos, do ensino ulterior correspondente. Parágrafo único. Entre os currículos a serem atribuídos ao sistema de unidades mencionado neste artigo, observado o disposto no item IV do art. 2°, incluir-se-ão obrigatoriamente os de formação de professores para o ensino de segundo grau e de especialistas de educação. Art. 4° As unidades existentes ou parte delas que atuem em um mesmo campo de estudo formarão uma única unidade na universidade estruturada, em obediência ao disposto nos itens II e III do art. 2°. Parágrafo único. Nas universidades em que houver faculdades de filosofia, ciências e letras, esta sofrerá transformação adequada à observância do disposto neste artigo. Art. 5° Serão distribuídos ou redistribuídos pelas unidades que passem a constituir a estrutura da universidade com remoção ou readaptação dos respectivos titulares, os cargos de magistério que Ihes correspondem, segundo o princípio geral do art.1º Art. 6° O desdobramento, a fusão e a extinção de unidades existentes em virtude da presente lei, bem como a redistribuição, transformação ou extinção de cargos a elas distribuídos, serão declarados por decreto. Parágrafo único. Dentro do prazo de 180 dias, cada universidade federal apresentará o plano de sua reestruturação ao Ministério da Educação e Cultura para que, ouvido o Conselho Federal de Educação, seja elaborado o projeto do respectivo decreto. Art. 7-° Dentro do prazo de 90 dias, a contar da data da publicação do decreto referido no artigo anterior, cada universidade federal submeterá à aprovação do Conselho Federal de Educação o seu estatuto adaptado às disposições da presente lei, estabelecendo, se necessário, normas de transição que precedam à plena vigência do seu novo regime de organização e funcionamento. § 1-° Os regimentos das unidades universitárias, quer os que resultem desta lei, quer das que já se encontrem instaladas, serão submetidos ao Conselho Federal de Educação até 90 dias após a aprovação do estatuto da universidade. § 2-° A universidade poderá disciplinar as atividades que sejam comuns o a várias unidades em regimento próprio a ser aprovado na forma do§ l .

Art. 8-° Da inobservância total ou parcial desta lei resultará a aplicação do disposto no art. 84 da Lei n-° 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Art. 9-° Aplicam-se as disposições dos arts. 1-° a 3-° e 7-° a 8-° da recente lei às universidades constituídas sob a forma de funções criadas por leis federais. Art. 10 Na concessão de subvenções e auxílios orçamentários da União às universidades não federais, constituirá um dos critérios de preferência e observância, na sua estruturação, de preceitos idênticos ou equivalentes aos estabelecidos na presente lei. Art. 11. O Ministério da Educação e Cultura, através dos seus órgãos especializados, prestará assistência às universidades que a solicitem para implantação do sistema estabelecido neste decreto-lei.

Anexo 2 - Decreto-lei n° 252, de 28 de fevereiro de 1967 Art. 1° A reestruturação das universidades federais far-se-á de acordo com as disposições do Decreto-lei n° 53, de 18 de novembro de 1966, e com as normas desta lei. Art. 2° As unidades universitárias dividir-se-ão em subunidades denominadas departamentos, cujos chefes constituirão, na forma dos estatutos e regimentos, o Conselho Departamental a que se refere o art. 78 da Lei n° 4.024 de 20 de dezembro de 1961 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). § 1° O departamento será a fração da estrutura universitária para todos os efeitos de organização administrativa e didático-científica e de distribuição de pessoal. § 2° O departamento compreenderá disciplinas afins e congregará professores e pesquisadores para objetivos comuns de ensino e pesquisa, ficando revogadas as disposições contrárias contidas no parágrafo único do art. 3° e no caput do art. 22 e seu § 1° da Lei n° 4.881-A, de 6 de dezembro de 1965 (Estatuto do Magistério Superior). § 3° Compete ao departamento elaborar os seus planos de trabalho, atribuindo encargos de ensino e pesquisa aos professores e pesquisadores, segundo as especializações. § 4° A chefia do departamento caberá a professor catedrático, a professor titular ou a pesquisador-chefe, na forma do estatuto ou regimento, ficando revogado em sua parte final o art. 48 da Lei n° 4.881-A, de 6 de dezembro de 1966. Art. 3° O sistema de unidades previsto no art. 2º, item II, do Decreto-lei n° 53, de 18 de novembro de 1966, refere-se às áreas fundamentais dos conhecimentos humanos, estudados em si mesmos ou em vista de ulteriores aplicações. Parágrafo único. As áreas de que trata este artigo correspondem às ciências matemáticas, físicas, químicas e biológicas, às geociências, às ciências humanas, bem como à filosofia, às letras e às artes. Art. 4° Para os estudos relativos aos conhecimentos fundamentais, a que se refere o artigo anterior, serão organizadas unidades e subunidades, conforme a amplitude do campo abrangido em cada caso e a quantidade dos recursos materiais e humanos que devem ser efetivamente utilizados em seu funcionamento, observado o disposto no art. 1° do Decreto-lei n° 53, de 18 de novambro de 1966. § 1° O critério prescrito neste artigo será adotado no eventual desdobramento de unidades existentes nas áreas de ensino profissional e de pesquisa aplicada, na forma do art. 2°, item III, e do art. 6° do Decreto-lei n° 53, de 18 de novembro de 1966. § 2º Os estudos básicos e de conteúdo para a formação de professores e os estudos básicos para a formação de especialistas o de educação serão feitos no sistema de unidades a que se refere o art. 2 , item II, do Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, e a competente formação pedagógica ficará a cargo de unidade própria de ensino profissional e pesquisa aplicada. Art. 5º A incorporação de uma unidade ou parte dela, qualquer que seja o seu nome, a outra unidade, em observância ao que dispõem os arts. 4º e 6º do Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, importa em transferência dos correspondentes recursos materiais e humanos. Art. 6º Além das unidades que a compõem, destinadas ao ensino e à pesquisa, a universidade poderá ter órgãos suplementares de natureza técnica, cultural, recreativa e de assistência ao estudante. Art. 7º Os órgãos centrais a que se referem o art. 2º , item V e parágrafo único do Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, deverão constituir-se com observância do princípio de unidade das funções do ensino e pesquisa estabelecido no art. 1-° do mesmo decreto-lei.

Parágrafo único. A universidade poderá também criar órgãos setoriais, com funções deliberativas e executivas, destinados a coordenar unidades afins para a integração de suas atividades. Art. 8º A coordenação didática de cada curso ficará a cargo de um colegiado constituído de representantes dos departamentos que participam do respectivo ensino, em atendimento ao que dispõe o art. 2º , item IV, do Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966. § lº A administração dos cursos ficará a cargo de unidades ou de o órgãos setoriais dentre os previstos no parágrafo único do art. 7 desta lei. § 2º Na hipótese de um ciclo de estudos que precede a opção profissional, ficará a critério da universidade dispor sobre a respectiva coordenação didática e administrativa. § 3º Os diplomas relativos aos cursos de graduação e pós-graduação serão expedidos diretamente pela universidade. Art. 9º A criação de qualquer curso deverá processar-se mediante a utilização dos recursos materiais e humanos na universidade, e só excepcionalmente importará na instituição de outra unidade. Art. 10. A universidade, em sua missão educativa, deverá estender à comunidade, sob a forma de cursos e serviços, as atividades de ensino e pesquisa que lhe são inerentes. Parágrafo único. Os cursos e serviços de extensão universitária podem ter coordenação própria e devem ser desenvolvidos mediante a plena utilização dos recursos materiais e humanos da universidade, na forma do que dispõe o art. 1º do Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966. Art 11. Os atuais institutos especializados que figuram nos estudos em vigor como unidades universitárias, e que hajam atingido alto grau de desenvolvimento, poderão manter tal condição observados os princípios fixados no art. 1º do Decreto-lei nº 53, de 18 de novembro de 1966.