Dramaturgia de Hamburgo (selecção antológica) [1 ed.] 9723111098

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Dramaturgia de Hamburgo (selecção antológica) [1 ed.]
 9723111098

Table of contents :
Nota de apresentação
Introdução (Manuela Nunes)
Comunicação prévia
Quinto fascículo
Décimo fascículo
Décimo quarto fascículo
Décimo oitavo fascículo
Décimo nono fascículo
Vigésimo segundo fascículo
Vigésimo sexto fascículo
Trigésimo quarto fascículo
Trigésimo oitavo fascículo
Quadragésimo sexto fascículo
Quinquagésimo quinto fascículo
Octogésimo primeiro fascículo
Octogésimo segundo fascículo
Octogésimo terceiro fascículo
Octogésimo quarto fascículo
Octogésimo quinto fascículo
Octogésimo sexto fascículo
Octogésimo sétimo e octogésimo oitavo fascículos
Nonagésimo fascículo
Nonagésimo primeiro fascículo
Nonagésimo quarto fascículo
Nonagésimo quinto fascículo
Nonagésimo sexto fascículo
Centésimo primeiro, segundo, terceiro e quarto fascículos
Notas explicativas
Índice de nomes e obras
Índice geral

Citation preview

DRAMATURGIA DE HAMBURGO Selecção an to ló g ic a

G otthold Ephraim Lessing

SERVIÇO DE ED U C A Ç Ã O E BOLSAS

F U N D A Ç Ã O C A L O U S T E G U L B E N K IA N

DRAMATURGIA DE HAMBURGO Selecção antológica Gotthold Ephraim Lessing

Tradução, introdução e notas de M

anuela

N

unes

Revisão de Y vette C

enteno

0^ 0 S ER VIÇ O DE E D U C A Ç Ã O E BOLSAS

F U N D A Ç Ã O C A L O U S T E G U L B E N K IA N

Reservados todos os direitos de harmonia com a lei. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian Av. de Berna. Lisboa

N ota d e a pr e se n t a ç ã o

A presente selecção antológica da D ram aturgia de H a m ­ burgo de Lessing destina-se a dar a conhecer ao público português uma obra teórica fundamental do teatro europeu. O critério de es­ colha dos textos foi, essencialmente, didáctico. Tivemos, principal­ mente, em vista os estudantes de literatura e teatro, mas também o público interessado. Sendo a D ram aturgia de H am burgo um conjunto de textos de crítica aos espectáculos encenados pelo Teatro Nacional de Hamburgo entre 1161 e 1168, e de reflexões teóricas por eles inspirados, seleccionámos os textos traduzidos de acordo com a importância das peças criticadas, quer por ainda fazerem parte do repertório teatral dos nossos dias, quer pela sua relevância sob o ponto de vista da história da literatura ou para acompanhar a argumentação de Lessing. Assim, as tragédias de Voltaire, hoje quase desaparecidas dos palcos europeus, são necessárias para com­ preender a polémica travada por Lessing contra o modelo francês e o seu conceito divergente de tragédia. Foi nossa intenção ainda incluir os temas centrais da drama­ turgia lessingiana: a poética de Aristóteles, de importância funda­ mental, os conceito de mimese, de catarse, de tragédia, a comédia burguesa, os caracteres mistos, etc. D e acordo com a intenção didáctica da antologia, incluímos em nota de rodapé, sempre que possível, o original dos textos teóri­ cos a que Lessing fa z rtferência, e que são testemunho impressio­ nante da sua vastíssima cultura e erudição. Note-se que, por vezes, Lessing altera uma ou outra expressão do original, ou f a z uma parájrase, embora assinale a passagem como citação. 1

N o que respeita às citações gregas, mantivemos tanto a acen­ tuação utilizada por Lessing no original, como o caso por ele utili­ zado. Bom conhecedor da língua grega, Lessing adaptou sempre o caso grego ao texto alemão. Sem serem exaustivas, as notas explicativas no jin a l do texto pretendem facultar informações menos acessíveis nas enciclopédias e dicionários mais correntes. Finalmente, não queremos deixar de manifestar a nossa grati­ dão às Professoras Doutoras Maria Helena da Rocha Pereira, Yvette Centeno, Maria Manuela Gouveia Delille e Maria Teresa Mingocho, pelo acompanhamento e os valiosos conselhos que sem­ pre nos deram com a maior competência e boa vontade.

M. N.

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IN T R O D U Ç Ã O

A D ram atu rg ia de H a m b u rg o é uma obra resultante da actividade crítica de LESSING, enquanto consultor e dra­ maturgo do projecto de um teatro nacional, iniciado naquela cidade em 1767. E m que consistiu este empreendimento teatral e como si­ tu á-lo no contexto do teatro europeu e alemão do século X V III? Por volta de 1750, circula, por toda a Europa, a ideia de um teatro nacional que leve em conta o carácter, os costumes e as características específicas do gosto de cada povo. Estes ele­ mentos dever-se-iam reflectir na produção dramática nacional, para que a sua frequente apresentação em cena contribuísse para educar e cultivar o público. E m Portugal, também os membros da Arcádia Lusitana, fundada em 1756, atribuíram um papel prioritário à criação de um teatro nacional, que só viria a ser concretizado mais tarde por A l m e i d a G a r r e t t , e desenvolveram esforços no sentido da criação de um repertório também nacional. Todos eles, sobretudo M a n u e l d e F i g u e i r e d o , o principal teórico teatral, e C o r r e i a G a r ç ã o sublinharam a junção didáctica do teatro. A semelhança do que se passou na Alem anha, tam ­ bém os Árcades rejeitavam a actividade teatral vigente, em que

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problemas concretos da nação, antecipando assim a unidade nacional a nível estético. N ão é, pois, de admirar que a primeira tentativa d e ju n dar um teatro nacional tenha surgido na cidade hanseática de Hamburgo, onde a supremacia de uma burguesia rica de nego­ ciantes dispunha de independência e meios para financiar um projecto desta natureza. E certo que antes do empreendimento de Hamburgo já houvera tentativas de reforma do teatro. E m 1724, G o t t ­ S C H E D descrevia a situação do teatro em Leipzig como uma mistura lamentável de arlequinadas grosseiras e peças dispara­ tadas de pompa e circunstância. Com a colaboração da mulher, L u i S E A d e l g u n d e 2, e da actriz C A R O L I N E N e u b e r , G O T T S C H E D tentou impor uma reforma do teatro e elevar o

nível do teatro itinerante, tornando-o a um tempo educativo e atraente para o público burguês. H á que sublinhar que a f u n ­ ção primordial do teatro gottschediano era veicular uma sen­ tença moral. O s esforços de G O T T S C H E D incidiram não só na criação de um repertório nacional, como também numa reforma da técnica de representação, mais comedida, e na tentativa de introduzir no palco o uso de guarda-roupa histórico. Tomou como modelo o teatro neoclassicista francês, traduzindo e adap­ tando numerosas peças jrancesas, mas também algumas ingle­ sas. Com a sua tragédia S te rb e n d e r C a to (1732) [Catão moribundo], Gottsched quis fornecer um exemplo da sua teoria 2 Luise A delgunde V iktorie G ottsched foi tradutora e autora de num erosas com édias escritas segundo o m odelo francês, p reco­ nizado p o r seu m arido, mas que revelam u m espírito satírico não despido de originalidade. A mais conhecida é D ie Pietisterey irn Fischbein-Rocke [A pietice em pertigada] de 1736.

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poética, baseado embora nas peças de A d d i s o n 3 e D e s c h a m p s 4 acerca do mesmo herói romano,5 teoria esta desen­ volvida na obra Versuch ein er kritisch en D ic h tk u n t vor die D eu stsch en (1730) [Tentativa de uma arte poética crí­ tica para os alemães]. O s esforços envidados por Gottsched em prol do teatro alemão apresentam, sem dúvida, semelhanças com o empenho dos Árcades em relação ao panorama teatral português, não só no que respeita à orientação segundo o exemplo francês, como também à fa lta de repercussão ulterior, tanto da obra como do modelo preconizado. Embora muito criticado por B o d m e r 6 e por L e s s i n g 7, devido à sua falta de flexibilidade em relação às regras (das unidades de espaço, tempo e lugar, do estatuto social das personagens da tragédia e da comédia, do número fix o de actos e da linguagem poética: o alexandrino como verso da tragédia, etc.) e à subordinação ao modelo francês, G o tt­ sched contribuiu para melhorar o nível do repertório e o estatuto

3 Addison, Joseph: Cato, 1713. 4 Descham ps, François M ichel C hrétien: Catou d’Utique, 1715. 3 N o te-se que será com u m a peça que te m com o h eró i o m esm o Catão (cuja atitude política vinha ao encontro das ideias dem ocráticas do ilum inism o e do liberalismo) que A lm eida G ar­ rett, de form ação originalm ente arcádica, irá, em 1822, „abrir um novo capítulo do teatro português“, nas palavras de Luis Francisco Rebello, in: História do Teatro, colecção Sínteses da C u ltu ra P o rtu ­ guesa, Lisboa: Im prensa N acional-C asa da M oeda, 1991, pág. 57. 6 O historiador e escritor suíço Jo h an n Jakob B o d m er (1698­ -1783) tin h a atacado a poética de G ottsched, so b retu d o na sua obra Abhandlung über das Wunderbare in der Poesie [Tratado acerca do fantástico na poesia]. 7 Veja-se 17. Literaturbrief der neuesten Literatur betreffend [17.a carta sobre a novíssima literatura] de 16 de Fevereiro de 1759.

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social dos actores e actrizes. N ão há dúvida, porém, que o pro­ jecto de Hamburgo é mais consequente na defesa dos valores nacionais e burgueses, como iremos ver. Contribuíram para impulsionar este projecto dois textos do escritorj O H A N N E l i a s S c h l e g e l : G ed an k en zu r A uf­

n a h m e des d ä n is c h e n T h e a te rs [Pensam entos sobre a recepção do teatro dinamarquês] e S chreiben von d er E r­ ric h tu n g eines T h e a te rs in K o p e n h a g e n [Carta acerca da fundação de um teatro em Copenhaga] que Lessing cita na comunicação prévia. S C H L E G E L critica a prática das compa­ nhias itinerantes, cuja direcção é obrigada a orientar-se por princípios meramente economicistas, sugere que os actores se­ ja m pagos pelas autoridades que devem fo m en ta r o teatro. A lém disso, propõe que os ensaios e as encenações sejam coor­ denados por um „inspector", o precursor do encenador, e que se fu n d em escolas para assegurar uma formação sólida dos acto­ res. A cim a de tudo, acentua a diversidade nacional e cultural dos diferentes povos europeus, a diferença de gosto e sensibili­ dade artística, que devem ser favorecidas e fom entadas com meios públicos. E m 1 7 6 6 , d o ze comerciantes de H am bu rg o f u n d a r a m um consórcio p ara f in a n c ia r o Teatro N a c io n a l que f o i inaugurado em 2 2 de A b r i l do ano seguinte. U m a comissão executiva de três membros, p resid ida pelo comerciante A o escritor J

ohann

bel

S e y l e r , com

F r i e d r i c h L ö w e n como prim eiro direc­

tor teatral, alugou p o r d e z anos o edifício do Theater am G ä n ­ se m a rk t, j u n t a m e n t e com o g u a r d a - r o u p a e os cenários da com panhia do célebre actor K

onrad

E rnst A

ckermann,

que f a lira há pouco. M u ito s dos actores desta com panhia f o ­ ram contratados. E n tre eles contam-se grandes nomes do teatro

alemão do século X V II I, como K o n r a d E c k h o f , D a v i d B o r s c h e r , E le o n o r e L öw en , F r ie d e r ik e H e n se l, Susanne M ecou r,

o

proprio A c k e r m a n n , a m u lh er S o ­

p h i e C h a r l o t t e S c h r ö d e r e o e n te a d o F r i e d r i c h L u d w ig S c h r ö d e r . L ö WEN, autor de uma História do Teatro Alem ão bas­ tante crítica, tinha um projecto ambicioso. Pretendia instituir uma academia deformação de actores - à semelhança do tra­ balho desenvolvido por ECKHOF, em Schiverin —, fu n d a r uma caixa de pensões para os actores, impulsionar o teatro contem­

porâneo através de um concurso premiado para jovens autores. Acima de tudo, propunha-se levar à cena um repertório equili­ brado de tragédias e comédias de autores alemães, sem descurar, porém, os autores jranceses e ingleses. Para tal, criou o cargo de dramaturgo que deveria coordenar a escolha das peças, a prá­ tica das encenações e as relações públicas. Para este cargo esco­ lheu L e s s i n g . Este dedicou-se mais à actividade crítica do que à actividade de consultor, e mostrou muito pouco entu­ siasmo em escrever peças para o teatro nacional. E m breve, houve que fa ze r compromissos com o gosto do público, nem sempre de grande nível. Apesar da intenção de apresentar mais autores alemães, o programa mostra que, das 118 peças levadas à cena, 78 foram de autores estrangeiros, sendo 6 8 de autores franceses, que predominaram sobretudo na comédia, com D e s t o u c h e s , M a r i v a u x e M o l i ÈRE, mas também com tragédias de CORNEILLE e, sobretudo, de V O L ­ TAIRE, bem como com o drama burguês Le p ère de fam ille de D i d e r o t , que teve bastante sucesso com 12 representações. D e notar que não fo i levada à cena uma única peça de S h a k e ­ s p e a r e . Também os dramas T h e L o n d o n M e rc h a n t, de 9

o u T h e G am ester, de M o o r e , não parecem ter sido coroados de grande sucesso. Entre as 4 0 obras de autores ale­ mães, contam-se peças de J o h a n n E l i a s S c h l e g e l : C a-

L illo ,

n utj F r i e d r i c h v o n C r o n e g k : C o d ru s , O lin t u n d S ophronia, C H R I S T I A N F e l i x W E IS S E : E d u a rd III, R i­ c h a rd I II , C risp u s, R o s e m u n d e , e C o r n e l i u s H e r ­ m a n n V O N A y r e n h o f f : H e r m a n n u n d T h u s n e ld e . Trata-se de obras pouco inspiradas, francês proposto por G O T T S C H E D , minava, e que pouco êxito tiveram. an d Ju lie t, da autoria de W E IS S E ,

escritas segundo o modelo que L e s s i n g tanto abo­ A adaptação de R om eo teve bastante sucesso, com

9 representações. D e L E S S IN G foram encenadas, sem grande acolhimento, quatro das suas comédias de juventude, como D e r

M ysogin [O misógino] ou D e r Freigeist [O livre-pensador]; a tragédia burguesa M iss Sara S am pson apenas teve 5 re­ presentações. A peça de maior êxito, nos dois anos que durou o Teatro Nacional, fo i a comédia M in n a von B arnhelm , le­ vada à cena em 16 noites. Porém, tal aconteceu já tarde, numa altura em que o projecto se encontrava em vias de dissolução. O desinteresse do pú blico levou a que os financiadores do projecto, que nem sem pre contribuíam p o n tu a lm e n te com o seu subsídio, passassem- a exercer m aior influência sobre o repertó­ rio: as comédias superficiais começaram a multiplicar-se; o balet no f i n a l da encenação de u m dram a voltou a ser comum; o projecto de fo rm a çã o dos actores ja lh o u , p o r f a l t a de interesse destes; além disso, cedo surgiram divergências entre L O W EN e a comissão executiva de comerciantes, assim como desentendi­ m entos com os m em bros da com panhia, todos eles actores de renome, sobretudo com o célebre e culto E c k h o f . E m D e z e m ­ bro de 1 7 6 7 o teatro f o i jorçado a fec h a r p e la prim eira vez.

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Reabriu na Primavera de 1768 mas, em Novembro, fechou definitivamente as suas portas. Depois de uma digressão por Hannover, em Março de 1679, abriu oficialmente falência. O edifício jo i devolvido à companhia de A c k e r m a n n . Embora falhasse, o projecto do Teatro Nacional fo i reto­ mado em Braunschweig, Weimar, G ottha e M atm heim , porém financiado pelos respectivos principados. O que nos ficou, de realmente interessante, deste projecto, é a D ra m a tu rg ia de H a m b u rg o de L e s s i n g . Concebida como um periódico em „Stiicke“, fascículos bissemanais, que deveriam sair às terças e sextas-jeiras. E m 2 2 de A b ril de 1767, L e s s i n g publica a comunicação prévia e a 8 de Maio surgem os três primeiros Jascículos. Por duas vezes, L E S S IN G vê-se obrigado a interromper a publicação, devido_a edições p i­ ratas surgidas em Leipzig e Hamburgo. A primeira interrup­ ção ocorre após o 31.° fascículo. A segunda coincide com o fin a l da publicação como periódico. E m meados de 1768, tinham sido publicados 8 2 jascículos. O s fascículos 83 a 104 apenas surgem mais tarde, no segundo volume da publicação em livro, em 1 7 6 7 /6 8 . Todavia, L e s s i n g mantém ajicção da publica­ ção periódica, datando o último jascículo, numerado de 101 a 104, de 19 de A bril de 1768. Segundo ajirma na comunicação prévia, a sua intenção era „manter um registo crítico de todas as peças levadas à cena e acompanhar todos os passos que a arte, tanto do poeta como do actor, irá dar“. Todavia, logo a partir do 25." fascículo L e s ­ S IN G viu-se Jorçado a pôr de parte os comentários à actuação dos actores, devido às reacções de vaidade, jacilm ente ofendida. Para ele, teatro não é apenas o texto, mas a sua realização no palco. Aliás, L e s s i n g nunca foi um teórico sistemático, a sua

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actividade crítica sempre partiu da observação de casos concre­ tos, como ilustram também as B riefe, die neu este L iteratu r b e tre ffe n d [Cartas sobre a novíssima literatura] (1759-65). M uitos dos temas destas cartas são retomados na D ra m a tu r­ gia de H a m b u rg o . A s considerações de L e s s i n g tiveram sempre por objecto a complexidade do fenóm eno teatral, isto é, a relação entre o texto, a sua concretização cénica e o efeito exercido por estes dois elementos sobre o público. Para ele, a sua tarefa era não só crítica como também didáctica. Portanto, era essencial observar não só o efeito realmente exercido, mas também o efeito que se pretendia que o teatro exercesse sobre o espectador. O tom acalorado que caracteriza a D ram atu rg ia

de H a m b u rg o é resultado do método indutivo de L e s s i n g e do seu conceito didáctico. Trata-se de reconhecer e apontar o er­ rado, como premissa para reconhecer o certo. A s sim , p a r tin d o embora do e x e m plo concreto, L e s s i n g vai concentrando cada v e z m ais a sua crítica sobre questões teóricas, entre as quais se destacam a arte de representar, a m ú ­ sica no teatro, a comédia e, sobretudo, a tragédia e o efeito que com ela se p re ten d e obter. A teoria dramática lessingiana vais e constituindo no confronto polémico com as peças dos autores franceses e a sua doutrina poetológica, recorrendo, como estes, à

Poética de A

ristó t e le s

que interpreta, porém, à sua m a ­

neira, discutindo os conceitos de mimese, de temor e com paixão

(e'Xeoç e cj^ópocj, de catarse, e p o stu la n d o a necessidade dos caracteres mistos.

A o contrário de G O T T S C H E D , que propugnava o controlo absoluto que a razão (VernunftJ deveria exercer sobre a fa n ta ­ sia fEinbildungskraftJ, os autores suíços B o d m e r e B r j e i t i n G E R defendiam a equidade da importância destes dois factores

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para a criação poética.8 L e s s i n g utiliza logo no primeiro fa s­ cículo o conceito de „génio“ que contrasta com o escritor de es­ pírito: o primeiro faria, inconscientemente, sem ter de procurar explicações enfadonhas, o que o segundo se m artiriza para imitar. A in d a no 48.° fascículo, ele postula que as intenções superiores do génio justificam a infracção das regras. Todavia, o conceito de génio de L E S S IN G exclui a arbitrariedade, propõe um compromisso entre as regras e a liberdade poética, distan­ ciando-se claramente, no fascículo 96, do conceito da jo vem geração do S tu rm u n d D rang, os pré-românticos alemães: „Génio! Génio!“ gritam. „O génio está acima de todas as re­ gras! O que o génio fa z, é a regra!“ [ ...] „As regras oprimem o génio!“ Como se o génio se deixasse oprimir fosse pelo que fosse no mundo! E ainda por cima, por algo que tem origem nele próprio.“ A legitimação das regras residta de elas emanarem da obra e não a obra das regras. A autoridade das regras aristotélicas procede do facto de A R I S T Ó T E L E S as ter abstraído das inúmeras obras primas do teatro grego, como L e s s i n g ajirma no fin a l da D ram aturgia. Isto permite-lhe comparar a vali­ dade da Poética aristotélica ã da geometria euclidiana. Toda­ via, L e s s i n g admite que esta afirmação poderá provocar hi­ laridade „nestes tempos esclarecidos“. Génio é um conceito polémico do qual L E S S I N G se serve para criticar a observação demasiado rigorosa, „mecanicista“ das regras do classicismo jrancês. Assim, ele recorre sempre ao génio de SH A K E SP E AR E quando quer criticar C O R N E I L L E e R a c i n e , o u V o l t a i r e e C r é b i l l o n . Claro que nunca tenta provar que SH A K E S P E A R E tenha cumprido o espírito 8 B odm er, na obra atrás m encionada, e Jo h a n n Jak o b B reitinger (1701-1776), na obra Critische D ichtkunst [Arte poética crítica].

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das regras aristotélicas, u m a v e z que este não se integra nesta tradição teatral. S h a k e s p e a r e é um exem plo p a ra contrastar com os fran ceses, ta l como o são

05 au tores trágicos gregos,

S ó f o c l e s e E u r í p i d e s : „V árias tragédias francesas são ex­ celentes obras, obras m u ito instrutivas, que considero dignas do m a io r louvor, só qu e não são tragédias. O s seus autores não p o d e m d eix a r de ter tido m u ito boa cabeça; merecem, em parte, um lugar não pouco elevado entre os poetas, só que não são p o eta s trágicos; só que os seus CORNEILLE e R a c i n e ,

os

seus

C r É B IL L O N e VOLTAIRE pouco ou nada têm do que f a z de um Sófocles S ó f o c l e s , de u m E u ríp id es E u r í p i d e s , de um S ha k e sp ea re SHAKESPEARE. E stes raram ente entram em con­ tradição com as exigências essenciais de ARISTÓTELES, com m ais frequ ên cia 0 f a z e m aqueles.“ ( 8 9 .° fascículo)

O s vínculos que ligam 0 génio são os impostos pela reali­ dade. N o 3 0 .° fascículo, L e s s i n g escreve: „O génio só se pode ocupar de ocorrências que se baseiem umas nas outras, apenas de encadeamentos de causas e efeitos.“ Portanto, as regras re­ sultam da verosimilhança dos acontecimentos que se preten­ dem apresentar em cena. Para L e s s i n g , o conceito de génio está, pois, ligado ao conceito de mimese. N ão se trata de copiar a realidade, antes de apresentar um modelo consciente e inten­ cionalmente construído da realidade, uma realidade interpre­ tada. A mimese não é, assim, a base do sistema poetológico, mas antes a descrição da relação entre a realidade e 0 drama. LESSING tece as suas considerações acerca da imitação da na­ tureza a propósito da peça Le c o m te d ’Essex de T h o m a s C o r n e i l l e , à qual prefere 0 Essex de J o h n B a n k s e uma peça espanhola: D a r la vida p o r su D am a, ó el C o n d e de Sex. N u m excurso relativamente longo, L e s s i n g enaltece 0

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teatro espanhol pelo mesmo motivo que louva o teatro inglês: por seguir as regras da natureza, que também mistura elementos trágicos e cómicos. L e s s i n g previne, todavia, contra os perigos de um naturalismo desmedido. A imitação da natureza con­ siste, para ele, não só na imitação dos acontecimentos exterio­ res, como também na versosimilhança psicológica, na imitação da „natureza dos sentim entos e forças da alm a“. O drama deve apresentar um modelo da realidade física e psíquica, que só pode ser obtido por abstracção, e que deverá, necessaria­ mente, pôr a descoberto as interacções ocultas. O teatro deve, portanto, ser uma form a de conhecimento. N a natureza não existem caracteres exclusivamente bons ou exclusivamente maus. Assim, L E S S IN G pugna pela apre­ sentação em cena de caracteres mistos, reportando-se ao capí­ tulo 13 da Poética de A r i s t ó t e l e s . E nquanto que, para o Estagirita, os caracteres mistos eram uma exigência resultante da necessidade de provocar temor e compaixão, para L e s s i n g eles estão relacionados com o seu conceito de natureza: os he­ róis que aparecem cm cena só são interessantes na medida em que são humanos, 05 mártires e os vilões são excepções raras neste mundo. Por outro lado, há, tal como em A R IS T Ó T E L E S , uma justificação relacionada com 0 temor e a compaixão. Só havendo identificação entre 0 espectador e a figura cm cena po­ derá haver compaixão e temor. Ora 0 espectador que L e s s i n g tem em mente é um espectador burguês, que terá dificuldade cm se identificar com reis e gratides homens da História. Estes, só lhe podem interessar na medida em que são humanos, cm que partilham das alegrias e tristezas do homem comum. Lessing discute esta questão a propósito da peça R ich ard III, de C h r i s t i a n F e l i x W e i s s e . O Ricardo de W e i s s e é

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um vilão de tal modo infame que é impossível que o espectador se identifique com ele. Só pode dar origem a um misto de re­ pulsa e admiração. Também o destino de uma pessoa exclusi­ vamente virtuosa poderá causar admiração. Ora L E S S IN G re­ je ita a admiração como um a das emoções que a tragédia pretende suscitar, apenas aceita eXeoc e (j)ó(3oç, temor e com­ paixão. A recepção da P o ética de A r i s t ó t e l e s no século X V I I acrescentara a estes dois sentimentos a admiração pelo herói exemplar que suporta corajosamente os revezes do des­ tino. A s tragédias de C o r n e i l l e estão nesta tradição, e o f i ­ lósofo M o s e s M e n d e l s s o h n , amigo de L e s s i n g que lhe inspirou a fig u ra de N a th a n der Weise [N a th a n , o sábio], também considerava a admiração um sentimento essencial da tragédia. N ã o é, pois, de surpreender que L E S S IN G tenha de­ senvolvido o seu conceito de tragédia não só com base na P oé­ tica da A R IS T Ó T E L E S , mas também no confronto com a teoria poética de C o r n e i l l e que recorre também a A r i s t ó t e l e s . 9 N o s fascículos 8 0 .° a 83.° da D ra m a tu rg ia , L e s s i n g co­ menta, larga e detalhadamente, os D iscours sur le p o è m e d ra m a tiq u e [Discursos sobre o poema dramático] de C o r ­ n e i l l e , sobretudo o segundo discurso acerca da tragédia. Para L e s s i n g , a interpretação dos termos êXeoc e óf}oç passa pela questão filológica da sua tradução e da interpreta­ ção semântica correcta. Enquanto que o termo éXeoc, compai­ xão, não oferece problemas, j á a tradução de 4>ó|3oç é mais longam ente ponderada. Trata-se da escolha entre 05 termos Schrecken, comum até L e s s i n g , e Furcht. Schrecken, que 9 Veja-se Jutta-G olaw ski-B raungart: F u rch t o d er Schrecken: Lessing, C orneille un d Aristoteles, in: Euphorion 93, 4 (1999), pägs. 4 0 1 -4 3 1 .

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significa medo, susto, terror, abrangeria, segundo Lessing, um momento de surpresa que ele considera indesejável como efeito da tragédia. A propósito de R icardo III, escreve LESSING no 74." fascículo: „De facto, causa susto; se, por susto, entender­ mos o espanto por crimes incompreensíveis, o horror pelas crueldades que ultrapassam o nosso entendimento; se por tal entendermos o arrepio que nos acomete quando assistimos a crueldades cometidas intencionalmente e com prazer." Mas, ar­ gum enta L e s s i n g , não é este sentimento que a tragédia deve suscitar. E introduz em seguida o termo Furcht, temor,10 que traduziria melhor a intenção de Aristóteles e, como iremos ver, do próprio Lessing: ,,A palavra que ARISTÓTELES usa é te­ mor: compaixão e temor, d iz ele, é o que a tragédia deve susci­ tar, não compaixão e susto. E verdade que o susto é um género 10 N a p resen te tradução, optám os pela expressão „ tem o r e com paixão“. P referim os „ tem o r“ a „terro r“, m ais freq u en te, p o r nos p a re c e r tra d u z ir m e lh o r o p e n sam e n to de Lessing. T e r r o r im plicaria um grande m edo, pavor mais p róxim o do pânico, ao passo que tem o r tem antes a conotação de receio que algo desagra­ dável ou doloroso nos possa vir a acontecer. T em o r, e não terror, é tam bém o term o preferido p o r A ntónio Freire: A catarse em Aristó­ teles, 2,a edição, Braga 1996, pág. 104 seg.. T a m b é m a helenista M aria H elena da Rocha Pereira nos aconselhou neste m esm o sen­ tido. N os séculos X V III e ainda X IX era mais com u m a expressão „terror e com paixão“. N a dissertação segunda acim a m encionada, C orreia Garção, in: Obras Completas, V olum e II, Prosas e T eatro, texto fixado, prefácio e notas p o r A ntónio José Saraiva, Lisboa: Sá da Costa, 1958, pág. 117 passim, usa „terror e com paixão“. Por seu lado, G arrett, na „M em ória ao C onservatório“ que antecede o Frei Luis de Sousa, in: Frei Luís de Sousa, 4.a edição organizada p o r A. N u ­ nes de A lm eida, C oim bra 1974, pág. 36, usa „terro r e p ied ad e“. Preferim os, porém , usar o term o „com paixão“ p o r ser o corres­ p ondente etim ológico de „M itleid“ em alemão.

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de temor; é u m tem or súbito, de surpresa. M a s precisam ente este imprevisto, esta surpresa, que o conceito implica, mostra, claramente, que aqueles que in tro d u zira m a p a la v ra susto, em v e z de temor, não compreenderam o que ARISTÓTELES enten­ dia p o r temor.“

N a interpretação de L e s s i n g ,

o

conceito de temor está li­

gado à identificação com o herói trágico e é, simultaneamente, indissociável da compaixão: „O suscitar da compaixão é inse­ parável do suscitar do temor.“. (82.° fascículo). Tem or seria uma compaixão antecipada que sentiríramos por nós próprios. Só este misto de temor e compaixão pode conduzir ao efeito desejado da catarse, como L e s s i n g a entende: „transformação das paixões em práticas virtuosas“ (78.° fascículo). Para ele, não se trata de um acto puram ante racional, como para C o r ­ n e i l l e , mas de algo que tem lugar a nível emocional. Segundo L e s s i n g , a form a dramática é a mais adequada para conseguir este efeito. N ã o se trata da form a dramática concebida como texto para leitura, mas daquilo a que ele chama „0 trabalho perfeito da form a dramática“, que exige a construção de um edifício próprio, a elaboração de cenários e guarda-roupa, 0 trabalho dos actores e a participação dos es­ pectadores. O género dramático é „0 único com que se pode suscitar compaixão e temor; pelo menos, mais nenhum outro género suscita estas paixões em tão alto grau“. (80.° fascículo) Com a sua D ram aturgia de H am burgo, L e s s i n g inau­ gurou, sem dúvida, um novo género: 0 da crítica teatral. D ra­ maturgia significava, até então, uma bibliografia de peças tea­ trais ou uma lista de peças levadas à cena. Cabe a L e s s i n g o mérito de lhe ter acrescentado uma componente crítica e teórica. O tom por vezes polémico destes textos, não sistematizados,

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concebidos sobre o acontecimento, resulta não só do entusiasmo e da convicção do seu autor, mas sobretudo de uma concepção didáctica aberta, iluminista nos sentido kantiano de sapere aucle, que pretende induzir o leitor a tirar as suas próprias conclusões. N as palavras do próprio L e s s i n g , no 95.° fascí­ culo: „Faço lembrar aqui aos meus leitores que estas páginas não devem encerrar um sistema dramático. N ã o sou, pois, obrigado a resolver todas as dificuldades que levanto. O s meus pensamentos podem parecer estar sempre pouco associados, ou até mesmo contradizer-se, desde que sejam pensamentos que lhes dêem matéria para pensarem por si. A qui, quero apenas espalhar ferm en ta cognitionis, o ferm ento da cognição.“ É precisamente no carácter aberto, fragmentário, deste texto que consiste a sua modernidade. ■ N ão se pode dizer que a D ram atu rg ia de H a m b u rg o tenha exercido uma influência determinante entre os contempo­ râneos de L e s s i n g . Também a teoria da tragédia, sob o ponto de vista da sua intenção e do efeito pretendido: suscitar o temor e a compaixão, gerando a catarse, um tema central na estética teatral do século X V III, não teve grandes repercussões práticas, uma vez que este paradigma jo i substituído. A interpretação de L e s s i n g continua, porém, a ter relevância no contexto acadé­

mico da história da recepção da Poética de ARISTÓTELES. Por outro lado, é certo que as ideias de L e s s i n g influen­ ciaram a evolução do teatro alemão nos séculos X I X e X X . Pode dizer-se que ele desencadeou, na Alem anha, o interesse por S h a k e s p e a r e , que contribuiu, ju n ta m en te com outros, para a criação de um teatro nacional alemão. E conhecida a sua influência sobre o j o v e m F r i e d r i c h S c h i l l e r , p a r a q u em L e s s i n g era u m e x e m p lo a seguir.

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Esta influência é visível nos escritos de ju ven tu d e acerca do teatro: Ü b e r das g eg en w ärtig e d eu tsch e T h e a te r [Acerca do teatro alemão contemporâneo] (1782) e W as k a n n eine gute ste h e n d e B ü h n e b ew irk en ? [Q u e pode conseguir um bom teatro fixo?] (1784). Evidentemente, S C H IL L E R irá, mais tarde, desenvolver a sua própria teoria dramática. A avaliação da importância da influência de L e s s i n c depende do modo como interpretarmos a sua contribuição para o desenvolvimento do drama burguês, não só a nível teórico, como através da sua própria produção dramática, como Miss Sara S am p so n e E m ilia G alotti, esta ainda bem presente nos palcos alemães, tal como M in n a von B a rn h e lm no do­ mínio da comédia. O drama N a th a n d er W eise [N athan, o sábio] (1778), em verso branco, nem tragédia nem comédia, constitui um caso à parte, pois não se integra na estética teatral da D ram atu rg ia. Constitui, porém, o ponto fin a l da evolução da estética teatral de L e s s i n g e é a peça mais levada à cena na A lem a n h a depois de 1945. A s 2 4 encenações de N a th a n d e r W eise em palcos de língua alemã, nos últimos dois anos, acentuam a actualidade da peça - que postula a tolerância en­ tre as três religiões monoteístas: cristianismo, judaísm o e islamismo - no panorama político actual.n M anuela N u n es

11 Veja-se K arl-Josef K uschel: Jud, Christ und M uselmann verei­ nigt? Lessings N atha n der Weise [Judeu, cristão e m u çu lm an o unidos? N athan, o sábio, de Lessing], D ü sseldorf 2004.

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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

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Lessing. Epoche - Werk - Wirkung. 6 .“

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1936. Reim pressão N e w Y ork 1965.

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DRAMATURGIA DE HAMBURGO Selecção antológica

P r im e ir o V o l u m e

Comunicação prévia Será fácil adivinhar que a presente gazeta se deve à nova adm inistração do teatro desta cidade. A sua finalidade deverá corresponder às boas in te n ­ ções que não podem os deixar de atribuir aos hom ens que se querem subm eter a esta tarefa de adm inistração. Eles próprios já se m anifestaram suficientem ente sobre isto, e as suas declarações foram recebidas pelas camadas mais cultas do público, tanto aqui com o lá fora, com o aplauso que m erece to d o e q u alq u er p atro cín io v o lu n tá rio do bem com um , e que p odem os esperar dos tem pos que correm . N aturalm ente, há sem pre e po r toda a parte pessoas que, po r se conhecerem bem a si próprias, não vêem se­ não in te n ç õ es ocultas em q u a lq u e r e m p re e n d im e n to bom . Poderia dar-se-lhes, de boa vontade, descanso de si próprias; mas se as supostas intenções ocultas os trazem à liça contra a causa em si, se a sua inveja maliciosa, para frustrar uns, se esforça tam bém p o r fazer falhar os outros: neste caso, têm que saber que são os elem entos mais des­ prezíveis da sociedade hum ana. Feliz o lugar em que estes infelizes não dão o tom , em que a m aio ria de cidadãos bem in te n c io n a d o s os m an tém d en tro dos lim ites do respeito e não p e rm ite que o m elhor da com unidade seja presa das suas intrigas, e que intenções patrióticas sejam atiradas às garras da sua insensatez chocarreira! Q u e H am burgo seja tão feliz em tudo o que assenta o seu bem -estar e a sua liberdade, pois m erece ser feliz!

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Q u an d o SC H LE G EL apresentou sugestões para a re­ cepção do teatro dinam arquês, - (um poeta alem ão do teatro dinam arquês!) algo que, p o r m uito tem po, ainda haverá que censurar à A lem anha, que não lhe deu opor­ tunidade para sugerir à D inam arca a recepção do seu tea­ tro, - a p rim eira e a m ais notável destas sugestões foi „que não se devia deixar os actores trabalharem com a preocupação de correrem os riscos das perdas e dos ga­ nhos.“ 1 O s directores teatrais rebaixaram um a arte livre a um m ero ofício que, na m aior parte das vezes, o m estre m a n d a e x e cu ta r ta n to m ais n e g lig e n te e in te resse ira ­ m e n te q u a n to m ais certos os fregueses, q uantos m ais clientes lhe dão esperanças de necessidade ou de luxo. Se, até agora, nada mais tivesse acontecido senão que u m grupo de am igos do teatro tivesse deitado m ãos à o b ra e se tivesse associado, p ara que se trabalhasse de acordo com u m plano de utilidade pública, m uito se teria já ganho só com isso. Pois m esm o que a benevolência do público seja m oderada, desta prim eira alteração podem , fácil e rapidam ente, resultar todas as outras m elhorias de que o nosso teatro carece. C ertam en te não se pouparão zelo e custos, o tem po ensinará se o gosto e a sageza vierem a falhar. E não está na m ão do público fazer com que se suspenda ou que se corrija o que lhe parece deficiente? Q u e venha, e veja, e escute, e aprecie, e ju lgue. A sua voz nunca será m enos­ p rezada, a sua opinião nu n ca será ouvida sem ser res­ peitada! 1 Schlegel, Jo h a n n Elias: Werke, [hrsg. von Jo h a n n H ein rich Schlegel (1764-1773)], d ritter T eil, [in: Schreiben von der E rrich­ tu n g em es T heaters in K openhagen], pág. 252. [N. do A.]

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M as que to d o e q u alq u er criticastro não se to m e pelo público, e que aqueles que vêem as suas expectativas goradas se d e te n h a m para reflectir u m p o u co sobre a natureza destas expectativas. N e m todo o apreciador é conhecedor; nem todo aquele capaz de sentir a beleza de uma peça, a actuação de um actor, poderá apreciar tam ­ b é m o v a lo r de to d o s os o u tro s . N ã o se te m g o sto quando se tem apenas um gosto parcial; porém , m uitas vezes, é-se ainda mais faccioso p o r isso. O verdadeiro gosto é o generalizado, o que se estende às belezas de qualquer tipo, m as que não espera de n e n h u m a delas mais prazer e encanto do que o que estas p o d em causar, conform e o seu género. São m uitos os degraus que um palco nascente tém de subir até atingir o cum e da perfeição; mas u m palco desvirtuado está, naturalm ente, m uito longe desta altura, e receio bem que o alem ão tenha mais deste ú ld m o do que do prim eiro. Por conseguinte, não pode acontecer tu d o de um a vez. Mas o que não vem os crescer, vam os encontrar cres­ cido passado algum tem po. O mais lento, que não perde de vista o seu objectivo, vai m uito mais longe do que o que vagueia sem rum o. Esta dram aturgia tem po r objectivo m an ter u m re­ gisto crítico de todas as peças levadas à cena e acom pa­ nhar todos os passos que a arte, tanto do poeta com o do actor, irá dar. A escolha das peças não é um a insignificân­ cia, mas escolha implica quantidade; e se n em sem pre fo­ rem levadas à cena obras prim as, vê-se logo onde está a responsabilidade. N o entanto, será bom que a m ediania

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não passe p o r mais do que é; e o espectador insatisfeito aprenderá, pelo m enos, a fazer os seus juízos. A um a pes­ soa de bom senso, quando se lhe q u e r ensinar o bom gosto, só se tem de explicar porque é que algo não lhe ag rad o u . C e rta s peças m ed ío c re s ta m b é m d evem ser m antidas, já p o rq u e in clu em alguns papéis excelentes, em que este ou aquele actor pode m ostrar todos os seus talentos. Assim, não se rejeita logo um a com posição m u­ sical só porque o texto subjacente é deplorável. A m aior fineza de u m crítico dram ático revela-se quando ele sabe distinguir infalivelm ente, quer em caso de agrado ou de desagrado, o que e quanto se deve atri­ buir à responsabilidade do poeta ou do actor. Pois censu­ rar um pelo que é da responsabilidade do outro significa prejudicar os dois. D esencoraja-se u m e dá-se segurança ao outro. S o b re tu d o o a c to r p o d e exigir que se o b se rv e a m a io r severidade e im p arcialid ad e. A ju stific a ç ã o do poeta pode ser feita em qualquer altura; a sua obra fica e p o d em o s sem pre voltar a vê-la. M as a arte do actor é transitória. O que tem de bom e de m au desvanece-se ra­ pidam ente; e não é raro ser a disposição m om entânea do espectador, mais do que o próprio actor, a razão de isto ou aquilo ter causado um a viva impressão no seu ânim o. U m a bela figura, um a expressão encantadora, um olhar revelador, u m andar sedutor, u m tom agradável, um a voz m elodiosa são coisas que não se podem expri­ m ir po r palavras. M as tam bém não são as únicas, nem as m aiores perfeições do actor. D ons apreciáveis da n a tu ­ reza, m uito necessários ao ofício, mas longe do desem pc-

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nho da profissão! Ele tem que aco m p an h ar sem pre o pensam ento do poeta; onde este, hum anam ente, errou, o actor tem de pensar por ele. Temos bons motivos para esperar dos nossos actores exem plos freq u en tes disto. M as não q u e ro a u m e n ta r m ais as expectativas do p ú b lico. A m bos são nocivos: quem prom ete demais e quem espera demais. Hoje tem lugar a inauguração do teatro. M uito de­ pende dela; não deve, porém , decidir tudo. N os prim ei­ ros dias, muitas opiniões irão colidir. Seria difícil conse­ guir fazer-se ouvir calm am ente. O prim eiro fascículo não deverá, pois, ser dado à estam pa antes do início do p ró ­ xim o mês H am burgo, aos 22 de Abril de 1767.

Quinto fascículo 12 de M aio de 1767

[■■■] E m bora S hakespeare não tivesse sido, na prática, tão grande actor com o foi poeta dram ático, pelo m enos soube m uito bem o que faz parte da arte de um e da arte do outro. Possivelmente até terá reflectido mais a fundo sobre a arte do prim eiro, porque tinha m uito m enos gé­ nio para ela. Pelo m enos, cada um a das palavras que põe na boca de H am let, quando este está a ensaiar os com e­ diantes, é um a regra de ouro para todos os actores que dêem valor a um a aplauso racional. ,,Peço-te que digas a tirada com o eu a pronunciei, com língua ágil, com um a dicção certa. M as se mastigas as palavras, com o fazem

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m uitos dos nossos actores, então antes quero que seja o h o m em dos pregões a dizer os versos. E tam bém não es­ bracejes m uito; assim. U sa tu d o com m edida. Pois na própria torrente, tem pestade, ou m esm o no turbilhão da tua paixão, tens de conquistar e criar um equilíbrio que a tudo dê harm onia.“ 2 Fala-se m uito do arrebatam ento do actor; discute-se frequentem ente se um actor pode ser arrebatado demais. Se os que o afirm am apresentam com o prova o facto de um actor ser mais arrebatado na altura errada ou, pelo m enos, que pode ser mais veem ente do que o que as cir­ cunstâncias exigem , os que o negam têm o direito de di­ zer que, nesse caso, o actor não revela arrebatam ento a m ais, m as antes e n te n d im e n to a m enos. N o en ta n to , tudo depende do que entendem os pela palavra arrebata­ m ento. Se arrebatam ento significa gritaria e contorções, é incontestável que o actor pode ir longe demais. Porém , se o arrebatam ento consiste na rapidez e vivacidade com as quais todos os artifícios que fazem um actor contri­ b u em para dar à sua actuação a aparência de veracidade, não devíam os desejar ver esta aparência de veracidade le­ vada à ilusão mais extrem a, se fosse possível que o actor 2 Shakespeare, W illiam : Hamlet, III, 2: „Speak the speech, I pray you, as I p ro n o u n c’d it to you, trippingly on the tongue; h u t if you m o u th it, as m any o f o u r players do, I had as lief the tow ncrier spoke m y lines. N o r do n o t saw the air too m uch w ith your hand, thus, b u t use all gently; for in the very torrent, tem pest, and, as I m ay say, w hilrw ind o f your passion, you m ust acquire and be­ get a tem perance that may give it sm oothness.“ Aqui na tradução de Sophia dc M ello B rey n e r A ndresen: Hamlet, edição bilingüe, Porto: Lello & Irm ão, 1987, pág. 119. [N. da T.]

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pudesse usar de demasiado arrebatam ento nesta acepção. N ão pode, portanto, tam bém ser o arrebatam ento cujo c o m e d im e n to S h a k e s p e a r e exige até m esm o na to r ­ rente, na tem pestade, no turbilhão da paixão; ele deve querer dizer apenas a intensidade da voz e dos m ovim en­ tos, e é fácil de encontrar o m otivo pelo qual, m esm o nos trechos em que o poeta não observou o m en o r co­ m edim ento, o actor deve, todavia, ser com edido nestes dois aspectos. H á poucas vozes que, ao fazerem u m es­ forço extrem o, não sejam desagradáveis; e m ovim entos dem asiado rápidos, dem asiado im petuosos, rara m e n te são dignos. N ão obstante, os nossos olhos e os nossos o u ­ vidos não devem ser ofendidos, e só quando, ao exprim ir as mais tem pestuosas paixões, se evita tudo o que pode ser desagradável a estes ou àqueles, é que estas têm a singeleza e o poder de insinuação que um H am let delas exige, m esm o quando devem causar a m aior impressão e fazer acordar, sobressaltada, a consciência de crim inosos em pedernidos. A arte do actor situa-se, assim, em pleno centro en­ tre as artes plásticas e a poesia. C om o pintura visível, a beleza tem de ser a sua lei mais alta; mas com o pintura transitória não tem que dar sem pre às suas atitudes a tranquilidade que torna tão im ponentes as obras de arte antigas. Ela pode, ela deve m esm o perm itir-se, m uitas vezes, a ferocidade de u m T e m p e s t a , a audácia de um B e r n i n i , deve ter toda a expressividade que lhe é carac­ terística, sem o lado ofensivo que adquire nas artes plásti­ cas, devido à sua perm an en te im obilidade. Só que não pode m an ter-se assim p o r m u ito tem p o ; só que deve

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antecipá-la progressivam ente através dos m ovim entos an­ teriores e, através dos seguintes, dar-lhe desenlace no tom geral do decoro; só que nunca lhe deve dar toda a força a que o poeta é capaz de elevá-la na sua elaboração. Pois em bora ela seja um a voz m uda, quer-se fazer entender directam ente pelos nossos olhos; e cada u m dos sentidos q uer ser adulado, se quer transm itir com rigor os concei­ tos que lhe ordenam que transm ita à alma. Podia, m uito bem , ser que os nossos actores, face ao com edim ento a que a arte os obriga m esm o nas paixões mais fortes, não se sentissem lá m uito bem no que res­ peita ao aplauso. M as que aplauso? A galeria é, de facto, um a grande apreciadora do barulho e da turbulência, e ra ra m e n te deixará de co rresp o n d er a u m b o m p ar de pulm ões com palm as sonoras. T am bém a plateia alem ã partilha ainda bastante deste gosto, e há actores que são suficientem ente espertos para saber tirar proveito dele. N o final da cena, antes de abandonar o palco, o mais so­ n o len to faz u m esforço, levanta a voz de repente, exa­ gera a acção, sem reflectir se o sentido do seu discurso exige tam b ém este esforço maior. N ão é raro este con­ tradizer m esm o o estado de espírito com que deve aban­ donar o palco; mas que lhe interessa? Basta que tenha as­ sim feito lem brar à plateia que lhe preste atenção e que esta ten h a a bondade de lhe bater palm as. Vaiá-lo, era o que devia fazer! M as, infelizm ente, em parte não é sufi­ c ie n tem e n te conhecedora, em parte é dem asiado b o n ­ dosa, e tom a a vontade que o actor tem de lhe agradar pela acção em si.

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Sétimo fascículo 22 de M aio de 1767

O prólogo apresenta o teatro em toda a sua digni­ dade, levando-nos a considerá-lo com o o com plem ento das leis. H á coisas no com portam ento m oral do ho m em que, atendendo à influência directa que exercem sobre o bem -estar da sociedade, são dem asiado insignificantes e de si tão sujeitas a m udança que não m erecem ou não são passíveis de estar sob a alçada da lei. H á outras, por outro lado, contra as quais toda a força da legislação é pouca, cujas causas são tão incom preensíveis, são tão m onstruosas em si, cujas consequências são tão incom en­ suráveis, que escapam por com pleto à punição pelas leis, ou que é impossível p u n ir com o m erecem . N ão quero aqui lim itar as prim eiras - com o pertencentes ao género ridículo - à comédia; e as outras - com o fenóm enos ex­ cepcionais do do m ín io dos costum es, que causam es­ panto à razão e põem o coração em alvoroço - à tragédia. O génio ri de todas as distinções da crítica. M as um a coisa é indiscutível: que o teatro escolhe os seus tem as para aquém ou para além dos limites da lei, e que só trata dos verdadeiros assuntos de que esta se ocupa, na m edida em que estes se perdem no ridículo ou se desenrolam até ao repulsivo. O epílogo detém -se num dos principais ensinam en­ tos que aludem tam bém a um a parte da fábula e às p er­ sonagens do dram a. [...] Em Inglaterra, cada nova peça tem o seu prólogo e o seu epílogo, redigidos pelo próprio autor ou po r um seu

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am igo. N ão é pela m esm a razão que os antigos neces­ sitavam do prólogo - para dar a conhecer aos público vá­ rias coisas necessárias para um a com preensão rápida da história em que se baseava a peça - que os ingleses dele necessitam. M as n em p o r isso ele deixa de ser útil. N ele dizem m ilhentas coisas que dispõem o auditório em fa­ vor do autor ou em favor do assunto p o r ele tratado, e que evitam críticas injustas tanto para com o autor com o para os actores. A inda m enos se servem do epílogo tal com o P lauto , p o r vezes, se servia dele: para a conclusão integral da peça, que não tinha espaço para ser toda rela­ tada no quinto acto. A ntes fazem dele um uso prático, cheio de bons ensinam entos, cheio de finas observações sobre os costum es descritos e sobre a arte com que foram descritos; isto tudo no tom mais jocoso, mais prazenteiro. N e m sequer na tragédia gostam de m udar este tom ; e não é inusitado que, depois do tom mais sangrento e co­ m ovente, a sátira dê um a risada tão alta e o h u m o r se torne tão malicioso que parece ser intenção expressa fa­ zer troça de todas as com oções do bem . E do conheci­ m e n to geral com o T h o m s o n se insurgiu contra estes guisos de bobo, que soam no encalço de M elpom ene. Por isso, quando desejo que, tam bém entre nós, as novas peças originais não sejam apresentadas ao público sem in­ trodução nem recom endação, é evidente que, no caso da tragédia, o tom do epílogo deveria ser mais em confor­ m idade com a nossa seriedade alemã. D epois de um a co­ m édia, o tom poderia ser burlesco à vontade. Foi D ryden quem , entre os ingleses, fez obras prim as deste tipo, que ainda hoje são lidas com o m aior prazer, depois das peças

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para as quais as escreveu já terem , em parte, caído no es­ quecim ento. H am burgo tinha um D r y d e n alem ão bem perto; e não preciso sequer de m encionar qual dos nossos autores saberia condim entar a m oral e a crítica com sal ático, tão bem com o o autor inglês.

Décimo fascículo 2

d e J u n h o de 1767

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N a sexta noite (sexta-feira, 29 de Abril), foi repre­ sentada a Semiramis do Senhor de V o l t a i r e . Esta tragédia subiu à cena em F rança n o ano de 1748, foi alvo de grande aplauso e, de certo m odo, fez época no teatro deste país. D epois de ter fornecido as suas Zaire e Alzire, os seus Brutiis e César, o S enhor de V o l t a i r e sentiu-se corroborado na opinião de que os poetas trágicos da sua nação superavam, de longe, os anti­ gos gregos em m uitas peças. C onnosco franceses, diz ele, os gregos podiam ter aprendido um a exposição mais há­ bil e a grande arte de ligar as entradas em cena entre si de m odo que o palco nunca fique vazio, e que n e n h u m a personagem entre ou saia sem m otivo. C onnosco, diz ele, podiam ter aprendido com o rivais conversam uns com os outros em antíteses espirituosas, com o o poeta deve deslum brar e suscitar adm iração com um a quanti­ dade de pensam entos sublimes e brilhantes.3 C onnosco 3 Oeuvres Complètes de Voltaire, N ouvelle É dition avec notices, préfaces, variantes, table analytique, C o n fo rm e p o u r le tex te à l’édition Beuchot, [ed. Louis Moland,] Paris: G arm er Frères, 1885,

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poderiam ter aprendido - sim, claro, o que não se pode aprender com os franceses! Aqui e acolá, um estrangeiro que tam bém leu um pouco os antigos gostaria de pedir, h u m ild em e n te , licença para ter o utra opinião. Q ueria, talvez, objectar que todos estes m éritos dos franceses não têm grande influência sobre a essência da tragédia; que são belezas que a grandeza singela dos antigos despre­ zava. Mas de que serve contrariar o Sr. de V o l t a i r e ? Ele fala, e acreditam . Só há um a coisa de que ele acha falta no seu teatro: que as grandes obras prim as do m esm o não sejam encenadas com a m esm a sum ptuosidade que os gregos teriam dedicado às tentativas de um a arte ainda em gestação. O teatro em Paris, um antigo salão de baile, com decorações do pior gosto, em que o povo, de pé, na plateia suja, se aglom era e se em purra, desgosta-o com razão; e sobretudo desgosta-o o hábito bárbaro de p erm i­ tir espectadores no palco, onde mal deixam espaço para os actores fazerem os m ovim entos mais necessários. Ele estava convencido que só este inconveniente teria im peR ep rin t N endeln/L iechstenstein: Kraus, 1967, vol. 4, no prefácio à tragédia Semiramis : „D issertation sur la tragédie ancienne et m o ­ d ern e“ [Disssertaçâo sobre a tragédia antiga e a m oderna], pág. 494 seg.: „Les G recs auraient appris de nos grands m odernes à faire des expositions plus adroites, à lier les scènes les unes aux autres par cet art im perceptible qui ne laisse jam ais le théâtre vide, et qui fait ve­ n ir et sortir avec raison les personnages. [...] Le choc des passions, ces com bats de sentim ents opposés, ces discours anim és de rivaux et de rivales, ces contestations intéressantes [...] les auraient éto n ­ nés. [...] Les Grecs auraient surtout été surpris de cette foule de traits sublim es qui étincellent de toutes parts dans nos m odernes.“ [N. da T.]

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dido a França de fazer m uito do que se teria, sem dúvida, ousado fazer num teatro mais livre, mais cóm odo para a acção e mais sum ptuoso. E para dar um a am ostra disto, escreveu a sua Semiramis. U m a rainha que convoca os re­ presentantes do seu país para lhes participar o seu noi­ vado; um fantasma que sai da sepultura para im pedir um incesto e se vingar do seu assassino; esta sepultura, em que um louco entra para de lá sair com o um assassino: tudo isto foi, de facto, algo com pletam ente novo para os franceses. Faz tanto barulho no palco, exige tanta pom pa e m etam orfose com o só estamos habituados a ver sem pre na ópera. O poeta acreditava ter criado a am ostra de um género m uito especial; e em bora o tivesse feito não para o palco francês tal com o ele era, mas com o ele o dese­ java, a peça foi representada tão bem com o podia ser feito na altura. N a prim eira representação, os espectado­ res ainda estavam sentados no palco; e eu bem gostaria de ter visto um venerável fantasm a surgir n u m círculo tão galante. Só nas representações seguintes é que os ac­ tores libertaram o palco, e o que, na altura, constituiu um a excepção, para bem de um a peça tão extraordinária, to rn o u -se, de então para cá, n u m a instituição p e rm a ­ nente. Mas principalm ente só para o palco em Paris, para o qual, com o disse, Sem iramis faz época nesta peça. N a província continua-se, ainda m uitas vezes, com a m oda antiga e prefere-se prescindir de toda e qualquer ilusão a renunciar à prerrogativa de poder pisar a cauda dos vesti­ dos das Zairas e M éropes.

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Décimo primeiro fascículo 5 d e ju iih o de 1767

O a p a re c im e n to de u m fan tasm a n u m a tra g é d ia francesa era um a novidade tão audaciosa, e o poeta que ousou fazê-lo ju stifico u -o com m otivos tão singulares, que vale a pena deter-se um m om ento a analisá-los. ,,Disse-se e escreveu-se por toda a parte,“ diz o Se­ n h o r de V o l t a i r j e , „que já não se acreditava em fantas­ mas; e que, aos olhos de um a nação esclarecida, a aparição dos m ortos não poderia ser senão algo pueril. C om o?“ argum enta ele, „toda a A ntiguidade acreditava nestes pro ­ dígios, e não nos seria p e rm itid o guiar-nos pela A nti­ guidade? C om o? A nossa religião teria consagrado todas estes golpes extraordinários da Providência, e seria ridí­ culo querer renová-los?“ 4 Estas exclamações, quer-m e parecer, são mais retóri­ cas que fundam entadas. Sobretudo, gostaria que a religião tivesse sido deixada de parte. Nas questões do gosto e da crítica, os argum entos que a ela recorrem são bons para fazer calar o adversário, mas não servem para o conven­ cer. A religião, enquanto religião, não deve aqui decidir; só com o u m a form a de tradição da A ntiguidade o seu 4 Ibidem , pâg. 501 : „O n disait et on écrivait de tous côtés que l’on ne croit plus aus revenants, et que les apparitions des m orts ne p eu v e n t être que puériles aux yeux d’une nation éclairée. Q uoi! toute l’antiquité aura cru ces prodiges, et il ne serait pas perm is de se co nform er à l’antiquité! Q uoi! N o tre religion aura consacré ces coups extraordinaires de la Providence, et il serait ridicule de les renouveller!“ [N. da T.]

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testem unho é válido, nem mais nem m enos do que ou­ tros testem unhos da Antiguidade. E teríam os assim só a haver com a Antiguidade. É verdade, toda a Antiguidade acreditava em fantas­ mas. Os autores dram áticos da A ntiguidade tinham , pois, o direito de aproveitar esta crença; quando, n u m deles, deparam os com almas do outro m undo, não seria ju sto julgá-los de acordo com as nossas convicções mais sensa­ tas. Mas será que o autor dram ático m oderno, que par­ tilha destas nossas convicções, goza do m esm o privilégio? D ecerto que não. Mas e se ele fizer decorrer a acção nes­ ses tem pos mais crédulos? Tam bém não. E que o autor dram ático não é um historiador; não relata o que, nessa época, se acreditava acontecera, antes faz desenrolar ou­ tra vez os acontecim entos perante os nossos olhos; e fá-lo acontecer não apenas por am or à verdade histórica, mas com um a intenção totalm ente diferente e superior; a ver­ dade histórica não é o seu objectivo, é apenas o m eio para atingir este objectivo; ele quer iludir-nos, e com o­ ver-nos iludindo-nos. Se é, pois, verdade que agora já não acreditamos em fantasmas; se esta incredulidade deveria im pedir necessáriam ente a ilusão; se é impossível sentir­ m os sim patia sem ilusão: então, o a u to r dram ático de hoje age contra si próprio quando, a despeito disso, nos exibe tais lendas inacreditáveis; to d a a arte que nisso aplica se perde. E m consequência? E m consequência será absoluta­ m ente proibido pôr fantasmas em cena? E m consequên­ cia estar-nos-á vedada esta fonte do terrível e do patético? Não! Seria um a perda dem asiado grande para a poesia; e

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não haverá exem plos em seu favor, em que o génio desa­ fia toda a nossa filosofia, e torna terríveis, aos olhos da nossa fantasia, coisas que se afiguram bem ridículas à fria razão? A consequência deve, pois, ser outra; e só a pre­ missa será falsa. Já não acreditam os em espíritos? Q u em diz isso? O u m elhor, que significa isso? Significará que os nossos conhecim entos já foram tão longe, que podem os provar a impossibilidade da sua existência; que determ i­ nadas verdades irrefutáveis, em contradição com a crença em fantasmas, se tornaram de tal m odo do conhecim ento geral, estão de tal m odo sem pre e firm em ente presentes na m en te do h o m em mais com um , que tudo o que o possa contradizer lhe parece necessariam ente ridículo e de m au gosto? N ão pode significar isso! Já não acredita­ mos em fantasmas só pode, pois, significar o seguinte: no que respeita a este assunto, sobre o qual quase se pode di­ zer tanto a favor com o contra, que não está nada deci­ dido e acerca do qual não é possível decidir, o pensam ento dom inante actualm ente dá preponderância aos argum en­ tos desfavoráveis; poucos pensam assim, e m uitos querem dar a impressão que pensam desse m odo; estes últim os organizam a gritaria e dão o tom ; a m aioria cala-se e m ostra indiferença, e pensa ora assim, ora assado; em pleno dia, tem prazer em ouvir troçar dos fantasmas e, pela noite escura, escuta horrorizada histórias sobre eles. M as não acreditar em fantasmas neste sentido não pode nem deve, de m odo algum , im pedir o autor dram á­ tico de fazer uso deles. A sem ente para acreditar neles existe em todos nós e, com mais frequência ainda, naque­ les para quem ele escreve em prim eiro lugar. D epende

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apenas da sua arte fazer germ inar esta sem ente, de d eter­ minados artifícios para impulsionar, rapidam ente, os m o ­ tivos para a realidade da sua existência. Q uando o autor os dom ina, podem os, na vida real, acreditar no que qui­ sermos, no teatro tem os de acreditar no que ele quer. S h a k e s p e a r e é um poeta deste tipo, e quase única e exclusivam ente S h a k e s p e a r e . P eran te o fantasm a no H am let p õ e m -se os cabelos em pé, c u b ra m eles u m a m ente crente ou descrente. O senhor de VOLTAIRE não fez bem em invocar este fantasma; torna-os, a ele e ao seu fantasma N inus, ridículos. O fantasma de SHAKESPEARE vem realm ente do ou­ tro m undo; assim nos parece. Pois surge do silêncio h o r­ ripilante da noite, acom panhado de todos os conceitos sombrios, misteriosos que estamos habituados a associar, desde a infância, quando esperam os a aparição de fantas­ mas, ou neles pensam os. M as o fantasm a de V o l t a i r e nem para espantalho para assustar crianças serve; é ape­ nas o com ediante disfarçado, que nada tem , nada diz, nada faz do que poderia, provavelm ente, fazer se fosse aquilo que pretende ser; antes pelo contrário, todas as cir­ cunstâncias em que surge perturbam a ilusão e denunciam a criação de um poeta frio, que nos quer iludir, sem sa­ ber com o há-de fazê-lo. Vejamos apenas isto: em pleno dia, em plena reunião da assembleia do reino, anunciado por um trovão, o fantasma de Voltaire surge, vindo do se­ pulcro. O nde é que V o l t a i r e jam ais ouviu que os fantas­ mas são tão ousados? Q ualquer velha am a lhe poderia ter dito que os fantasmas tem em a luz do dia e não frequen­ tam grandes reuniões. V o l t a i r e tam bém o sabia; mas foi

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dem asiado cauteloso, dem asiado escrupuloso para apro­ veitar estes requisitos com uns; queria-nos m o strar um fantasm a, m as tinha que ser um fantasm a de tipo mais nobre; e com este tipo mais nobre estragou tudo. O fan­ tasm a que ousa fazer coisas contra todos os bons costu­ m es, que reinam entre os fantasmas, não m e parece ser u m fantasm a autêntico; e, neste caso, tudo o que não fo­ m en ta a ilusão perturba-a. Se V o l t a i RE tivesse concentrado a atenção na pan­ to m im a , ta m b é m ele teria n o tad o a in épcia de fazer aparecer um fantasm a perante um a m ultidão. Ao vê-lo, todos devem exprim ir, ao m esm o tem po, tem or e susto; cada u m deve exprim i-lo à sua m aneira, caso a cena não deva apresentar a sim etria de u m bailado. Agora vá-se lá levar um rebanho de comparsas broncos a fazê-lo; e caso se consiga levar a tarefa a bom term o, considere-se com o essas expressões m últiplas da m esm a em oção devem divi­ dir a atenção e desviá-la das personagens principais. Se elas devem causar em nós a devida impressão, será bom que não vejamos mais nada além delas. Em S h a k e s p e a r e , é H a m le t o único a ver o fantasma; na cena em que a m ãe se encontra presente, a m ãe não o vê nem o ouve. Toda a nossa atenção se concentra, pois, em H am let, e quanto mais características de um tem peram ento p ertu r­ bado pelo te m o r e pelo susto descobrirm os nele, mais dispostos ficam os a to m ar a aparição que lhe causa tal perturbação p o r aquilo p o r que ele a tom a. O fantasma afecta-nos mais através de H am let do que em si próprio. A im pressão que nele causa transm ite-se a todos nós, e o efeito é tão evidente e tão forte que não devemos duvidar

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da sua causa excepcional. Q uão pouco VOLTAIRE en te n ­ deu este artifício! São m uitos os que se assustam com o seu fantasma, mas não m uito. Semiramis exclama: „Céus! M orro!“ E os outros não se ocupam mais dele do que se costum a fazer com um am igo que se pensava longe e que entra, de repente, na sala.

Décimo quarto fascículo 16 de Ju n h o de 1767

O dram a burguês encontrou u m defensor acérrim o no crítico francês que deu a conhecer à sua nação Miss Sara Sampson ,5 O s franceses raram ente costum am aprovar algo de que não há exem plo entre eles. O s nom es de príncipes e de heróis podem dar a um a peça pom pa e majestade, mas em nada contribuem para a com oção. A infelicidade daqueles cuja situação está mais próxim a de nós calará mais fundo na nossa alma; e, se nos apiedam os dos reis, fazêm o-lo p orque os vem os com o hom ens e não com o reis. Se a sua posição social torna, m uitas vezes, os seus reveses m ais im p o rtan tes, não os torna, p o r isso, mais interessantes. A inda assim, povos inteiros podem ser implicados neles; a nossa sim ­ patia exige um objecto único, e um Estado é um conceito dem asiado abstracto para as nossas emoções. ,,E ser injusto para com o coração h u m an o “, diz tam ­ bém M a rm o n tel , ,,é desconhecer a natureza, crer que

3Journal Étranger, D écem bre 1761. [N. do A.]

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esta precisa de títulos para nos com over e nos enternecer. O s nom es sagrados de amigo, pai, am ante, esposo, filho, m ãe, de hom em , afinal, são os mais patéticos: os seus di­ reitos jam ais prescreverão. Q u e im porta a classe social, o nom e, a estirpe do desgraçado a qu em a com placência para com amigos indignos e a sedução do exem plo leva­ ram a cair na arm adilha do jogo, que lhe arruinou a for­ tuna e a honra, e que gem e na prisão, consum ido pelo rem orso e pela vergonha? Se m e perguntais quem é, res­ ponder-vos-ei: Foi h o m em de bem e, para seu suplício, é esposo e pai; a m u lh er que am a e po r quem é am ado de­ finha, reduzida a um a indigência extrem a, e não pode dar senão lágrimas aos filhos que lhe p edem pão. Procurai na história dos heróis u m a situação mais com ovente, mais m oral, n u m a palavra: mais trágica! E no m o m e n to em que este desgraçado se envenena, no m o m en to em que, depois de ser ter envenenado, tom a conhecim ento que o céu veio em seu socorro; neste m o m en to doloroso e ter­ rível, em que ao terro r de m o rrer se ju n ta a m ágoa de sa­ ber que poderia ter vivido feliz, dizei-m e: que falta a este tem a para ser digno da tragédia? O m aravilhoso, dir-m e-eis; m as não vedes este m esm o m aravilhoso na súbita m udança da h o n ra para o opróbio, da inocência para o crim e, do doce repouso para o desespero, n u m a palavra: no excesso da desgraça causada por um a m era fraqueza?“ 6 6 M arm ontel, Je a n François: Poétique Françoise, T o m e II, Paris, Lesclapart, 1763, pâgs. 147-149: „C ’est faire injure au coeur h u ­ m ain & m éco n n o ître la N ature, que de croire qu’elle ait besoin de titre s p o u r n o u s é m o u v o ir & n o u s a tte n d rir. Les n o m s sacrés d’ami, de pere, d’am ant, d’époux, de fils, de m ere, d’h o m m e enfin:

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D eixem os, porém , estas observações aos franceses, a quem os seus D iD E R O T S e M a r m o n t e l s tanto as incul­ cam; não nos quer parecer que, p o r isso, o dram a b u r­ guês venha a ter grande divulgação entre eles. Essa nação é demasiado frívola, dem asiado apaixonada po r títulos e outros atributos superficiais; até ao h o m em mais simples, todos querem conviver com os mais nobres, e o convívio com iguais é considerado m á com panhia. U m génio afor­ tunado consegue m uito ju n to do seu povo; em parte al­ gum a a natureza prescindiu dos seus direitos e aguarda, talvez, tam bém lá, o poeta que a saberá m ostrar em toda a sua verdade e força. A tentativa feita p o r u m autor des­ conhecido, n u m a peça que define com o a im agem da voilà les qualités pathétiques: leurs droits ne p resc riro n t jam ais. Q u ’im porte quel est le rang, le nom , la naissance du m alheureux, que la co m p laisan ce p o u r d ’in d ig n e s am is, & la s é d u c tio n de l’exem ple ont engagé dans les pièges du jeux, qui a ru in é sa for­ tune & son honneur, & qui gém it dans les prisons, dévoré de re ­ m ords & de honte? Si vous dem andez quel il est; je v o u r répons: Il fut hom m e de bien, & p o u r son supplice il est époux et pere; sa fem m e, q u ’il aim e & d ont il est aimé, languit, réduite à l’extrêm e indigence, & ne p e u t do n n er que des larm es à ses enfans qui d e­ m andent du pain. C herchez dans l’histoire des héros une situation plus touchante, plus m orale, en u n m o t plus tragique; & au m o ­ m e n t où ce m alheureux s’em poisonne, au m om en t, où après s’être em poisonné il apprend que le ciel venoit à son secours; dans ce m o m e n t douloureux & térrible, où à l’h o rre u r de m o u rir se jo in t le regret d’avoir pu vivre heureux; dites-m oi ce que m an q u e à ce sujet p o u r être digne de la T ragédie? Le m erveilleux m e direzvous, H é, ne le voyez-vous pas ce m erveilleux dans le passage ra­ pide de l’h o n n eu r à l’oprobe, de l’innocence au crim e, du doux re­ pos au desespoir, en u n m ot, dans l’excès du m a lh eu r attiré par une foiblesse.“ [N. da T.]

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indigência, apresenta já grandes belezas; e antes que os franceses tomem gosto por elas, deveríamos adoptá-las para o nosso teatro. O que o crítico de arte mencionado em primeiro lu­ gar tem a censurar à Sara alemã não deixa, em parte, de ter razão. Creio, todavia, que o autor preferirá manter os seus erros a submeter-se ao desditoso esforço de uma re­ modelação total. Ele recorda o que VOLTAIRE disse numa ocasião semelhante: „Não se pode fazer sempre tudo o que os nossos amigos nos aconselham. Aliás, há erros ne­ cessários. Não se pode curar um corcunda sem lhe tirar a vida. O meu filho é corcunda, mas goza de boa saúde.“ 7

D écim o quinto fascículo 19 de Junho de 1 7 6 7

Na décima sexta noite (quarta-feira, 13 de Maio), foi levada à cena a peça Zaire [Zaira] do Senhor de VOLTAIRE. „Os apreciadores da história literária“, diz VOLTAIRE, „gostarão de saber como esta peça foi feita. Várias damas tinham censurado o autor por não haver amor suficiente nas suas tragédias. Este respondeu-lhes que não acredi­ tava ser a tragédia o verdadeiro lugar para o amor, mas 7 Voltaire: Correspondance I, Paris, Gallimard, 1977, pâg. 8 6 0 : „O n ne peut pas toujours exécuter ce que nos amis nous conseil­ lent. Il y a d’ailleurs des défauts nécessaires. Vous ne pouvez pas guérir un bossu de sa bosse, qu’en lui ôtant la vie. M on enfant est bossu; mais il se porte bien.“ [N. da T.]

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que, visto que elas exigiam imperiosamente heróis apai­ xonados, o faria como qualquer outro. A peça foi con­ cluída em dezoito dias e teve grande sucesso. Chamam­ -lhe, em Paris, uma tragédia cristã e foi levada à cena, muitas vezes, em lugar de Polieucto“.8 Temos, pois, a agradecer esta peça às damas, e ela continuará, ainda por muito tempo, a ser a peça preferida das damas. Um jovem monarca impetuoso, apenas sub­ misso ao amor; um vencedor orgulhoso, apenas, vencido pela beleza; um sultão sem poligamia; um serralho de uma soberana absoluta transformado numa residência com acesso livre; uma jovem abandonada elevada aos píncaros da felicidade, apenas pelos seus lindos olhos; um coração disputado pela ternura e pela religião, dividido entre o seu Deus e o seu ídolo, que gostaria de ser de­ voto se não tivesse de deixar de amar; um ciumento que reconhece o seu erro e se vinga de si próprio: se estas ideias encantadoras não seduzem o belo sexo, por que se deixará ele seduzir? Foi o próprio amor que ditou Zaire a V o l t a i r e , diz um crítico bem intencionado. Melhor teria dito: a galans Oeuvres Completes de Voltaire, vol. 2 , „Avertissem ent“, pág. 536: „Ceux qui aiment l’histoire littéraire seront bien aises de sa­ voir com m ent cette pièce fut faite. Plusieurs dames avaient repro­ ché à l’auteur qu’il n’y avait pas assez de d’am our dans ses tragé­ dies; il leur répondit qu’il ne croyait pas ce que fût la véritable place de l’amour, que puisqu’il leur fallait absolument des héros amoureux, il en ferait com m e un autre. La pièce fut achevée en dix-huite jours: elle eut un grand succès. O n l’apelle à Paris tragé­ die chrétienne, et on l’a jouée fort souvent à la place de Polyeucte.“ [N. da T.]

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teria. Só conheço uma tragédia em que o próprio amor ajudou o trabalho: é Romeo and Jidiet de SHAKESPEARE. E verdade, a Z aire apaixonada, de VOLTAIRE, exprime as suas emoções com muita finura, muito decoro; mas o que é esta expressão, comparada com a imagem viva das menores e mais secretas intrigas através das quais o amor se insinua na nossa alma, todas as vitórias imperceptíveis que nela vai ganhando, todos os artifícios com que do­ mina todas as outras paixões, até se tornar o único senhor de todos os nossos desejos e todas as nossas abominações? VOLTAI RE compreende muito bem o estilo comercial do amor, se é que me posso exprimir assim; isto é, a lingua­ gem, o tom de linguagem de que o amor precisa, quando se quer exprimir do modo mais cuidadoso e mais come­ dido, quando não quer dizer nada por que não se possa responsabilizar perante a arisca sofista e o frio crítico. Mas o melhor funcionário nunca conhece a maior parte dos segredos do governo; ou, se VOLTAIRE tem o pro­ fundo conhecimento da essência do amor que SHAKE­ SPEARE tinha, pelo menos não o quis mostrar aqui, e o poema ficou muito aquém do poeta. Do ciúme pode-se dizer mais ou menos o mesmo. O ciumento Orosman faz uma figura muito pobre ao lado do ciumento Othelo de S h a k e s p e a r e . E todavia, é evidente que Othelo serviu de modelo para Orosmann. [...] Ouvimos Orosmann falar como um ciumento, vêmo-lo cometer o acto precipitado de um ciumento; mas acerca do ciúme em si não ficamos a saber nem mais nem menos do que já sabíamos. Othelo, pelo contrário, é o compêndio mais completo sobre esta triste loucura;

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com ele podemos aprender tudo o que lhe diz respeito, o que a suscita e como evitá-la. [...]

Décim o oitavo fascículo 3 0 de Junho de 1767

Na vigésima primeira noite (quarta-feira, vinte de Maio), foi levada à cena a comédia de MARIVAUX L es jausses confidences [Asfalsas conjidências],

M a r iv a u x trab alh ou d u ran te quase m eio sécu lo para o teatro, em Paris; a sua prim eira peça foi escrita em

1722 e ele m orreu em 1763, com setenta e cinco anos. O n ú m e ro de com éd ias de sua au toria eleva-se a um as trinta, mais de dois terços das quais em que entra a perso­ nagem do arlequim, pois foram escritas para a com panhia de teatro italiano. Entre estas conta-se tam bém Les jausses coujidetices, que foi levada à cena em 1736, sem grande

êx ito , m as que foi en cen ad a de novo dois anos m ais tarde, com grande sucesso.

As peças deste autor, embora com profusão de dife­ rentes personagens e peripécias, são, todavia, muito se­ melhantes entre si. Em todas, o mesmo espírito brilhante e, m uitas vezes, demasiado rebuscado; em todas, a mesma análise metafísica das paixões; em todas, a mesma linguagem rebuscada, neológica. Os seus entrechos são de dimensões muito reduzidas; porém, como um verda­ deiro Calípedes da sua arte, sabe percorrer este exíguo espaço com uma profusão de passos tão pequenos e, no

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entanto, tão obviamente diferenciados que, no final, cre­ mos ter percorrido com ele um longo caminho. Desde que a N e u b e r i n , sob os auspícios de sua magnificência, o Senhor Professor G o t t s c h e d , baniu publicamente do seu teatro o arlequim, todos os palcos alemães que aspiravam à designação de exemplares pare­ ceram aderir a esta expulsão. Digo pareceram pois, no fundo, apenas aboliram a casaquinha colorida e o nome, mas mantiveram o bufão. A própria N e u b e r i n represen­ tou numerosas peças em que o arlequim era a figura principal. Mas o arlequim chamava-se Hánschen e vestia todo de branco, em vez de usar o fato colorido. Real­ mente, um grande triunfo do bom gosto! Também L es fausses confidences [As falsas confidências] têm um arlequim, que se transformou em Peter na tra­ dução alemã. A N e u b e r i n morreu, G o t t s c h e d tam­ bém já morreu; penso que seria altura de lhe voltar a ves­ tir o fato colorido. A sério, se o toleramos sob um nome alheio, então porque não aceitá-lo com o seu próprio nome? ,,É uma criatura estrangeira“, diz-se. Isso que im­ porta? Era bom que todos os bufões entre nós fossem es­ trangeiros! „Comporta-se como ninguém se comporta entre nós.“ Assim não precisa de explicar longamente quem é. ,,E absurdo ver surgir o mesmo indivíduo cada dia numa peça diferente.“ Não somos obrigados a en­ cará-lo como um indivíduo, mas antes como um tipo; não é o Arlequim que surge hoje em Tim on [Tim ão], amanhã em L e Faucon [O falcão] e, depois de amanhã, nas Fausses confidences, como um salta-pocinhas, são antes arle­ quins; o tipo sofre mil variações: o que surge em Timon

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não é o do Faucon; aquele vivia na Grécia, este em França; só porque o seu carácter tem traços principais semelhan­ tes é que se lhe deu um nome idêntico. Porque queremos nós ser mais esquisitos e mais difíceis de contentar do que são - já não quero dizer os franceses e os italianos mas mesmo do que os próprios romanos e gregos eram? Será que o seu parasita era diferente do arlequim? Não tinha também ele o seu traje próprio, em que surgia numa peça atrás da outra? Não tinham os gregos um drama próprio em que, as mais das vezes, tinham que en­ trar em cena sátiros, quer fossem adequados à trama da peça quer não? [•■■]

D écim o nono fascículo 3 de Julho de 1767

Cada um tem o direito de ter o seu gosto próprio, e é louvável tentar justificar as razões deste gosto. Mas atribuir aos argumentos com os quais se quer justificá-lo uma universalidade que, a ser justa, deveria torná-lo no único verdadeiro bom gosto, é ultrapassar as limitações do amador que indaga, e arvorar-se num legislador obs­ tinado. [...] O verdadeiro crítico não deduz regras do seu próprio gosto, antes formou o seu gosto de acordo com as regras que a natureza exige do tema. Ora há muito que A r i s t ó t e l e s decidiu até que ponto o poeta trágico se deve ocupar da verdade histó­ rica; até ao ponto em que esta se assemelha a uma fábula

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bem construída, à qual ele possa associar as suas intenções. Ele não necessita de uma história porque ela aconteceu, mas antes porque ela aconteceu de modo que dificil­ mente ele poderia imaginar uma que servisse melhor à sua intenção actual. Se esta conveniência se lhe depara, por acaso, numa ocorrência verdadeira, esta ocorrência verdadeira é-lhe bem-vinda; mas não vale a pena folhear primeiro, longamente, os livros de história. E quantos sa­ bem realmente o que aconteceu? Se só queremos aceitar a possibilidade de algo poder acontecer, porque aconte­ ceu de facto, que nos impede de tomar uma fábula intei­ ramente inventada por uma história que aconteceu de facto, da qual nunca ouvimos falar? Que nos torna uma história credível à primeira vista? Não é a verosimilhança? E não será a mesma coisa, se esta verosimilhança não for confirmada por quaisquer testemunhos e tradições, ou por outros que ainda não tenham chegado ao nosso co­ nhecimento? Sem justificação, parte-se do princípio que é uma das funções do teatro conservar a memória dos grandes ho­ mens; para tal temos a história, não o teatro. No teatro não devemos aprender o que um ou outro indivíduo fez, mas antes o que cada ser humano, com um determinado carácter, fará em determinadas circunstâncias. A intenção da tragédia é bem mais filosófica do que a intenção da história; e é rebaixá-la se fizermos dela um mero panegí­ rico de homens célebres, ou se fizermos até mau uso dela para alimentar o orgulho nacional.

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Vigésimo primeiro fascículo 10 de Julho de 1767

Na vigésima sétima noite (segunda-feira, 10 de Ju ­ nho) foi levada à cena Natiine de VOLTAIRE. [...] N anine pertence à categoria das comédias sentimentais. Mas também tem muitas cenas ridículas, e só na medida em que as cenas ridículas alternam com as sentimentais V o l ­ t a i r e admite estas últimas na comédia. Uma comédia inteiramente séria, em que o público não se ri e nem se­ quer sorri, na qual tem sempre vontade de chorar, é, para ele, uma monstruosidade. Pelo contrário, acha muito na­ tural a transição do sentimental para o ridículo, e do ridí­ culo para o sentimental. A vida humana não é mais do que uma permanente cadeia destas transições, e a comé­ dia deve ser um espelho da vida humana. „O que é mais comum do que uma casa, onde o pai, irado, grita; a filha, apaixonada, suspira; o filho faz troça dos dois, e cada pa­ rente sente algo diferente perante a mesma cena? Numa sala faz-se, muitas vezes, troça daquilo que, na sala ao lado, causa profunda comoção; e não é raro a mesma pes­ soa, num m esm o quarto de hora, rir e chorar pelo mesmo motivo.“9 [...] 9 Oeuvres Complètes de Voltaire, vol. 3, „Avertissement“ da peça L ’enfant prodigue, pâg. 4 4 3 : „Rien n’est si com m un qu’une maison dans laquelle un père gronde, une fille occupée de sa passion pleure, le fils se moque des deux, et quelques parents prènnent dif­ féremment part à la scène. O n raille très-souvent dans une cham ­ bre de ce qui attendrit dans la chambre voisine, et la m êm e per­ sonne a quelquefois ri et pleuré da la mêm e chose dans le m êm e quart d’heure.“ [N. da T.]

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„ H o m e r o “, diz ele noutro texto, „representa mesmo os deuses a rir do jeito faceto de Vulcano, enquanto deci­ dem dos destinos do mundo. Heitor ri dos receios do fi­ lho criança; enquanto que Andrómaca, derrama as lágri­ mas mais ardentes. Acontece muitas vezes, até mesmo em pleno horror das batalhas, no terror de um incêndio, ou de outro dos desastres que nos afligem, que uma inge­ nuidade, uma facécia provoquem o riso, apesar da desola­ ção e da piedade. Na batalha de Speier, foram dadas or­ dens a um regimento para não fazer reféns. Um oficial alemão pediu misericórdia a um francês e este respon­ deu-lhe: Senhor, pedi-me o que quiserdes mas, no que respeita à vida, não há nada a fazer. Esta ingenuidade pro­ pagou-se logo de boca em boca e riam-se em plena car­ nificina. Com muito mais razão poderá, na comédia, o riso suceder-se aos sentimentos comoventes. Não nos co­ move Alcmena? Não nos faz rir Sósia? Que tarefa mise­ rável e vã querer disputar-se com a experiência!“ 10

111 Oeuvres Complètes de Voltaire, vol. 5, prefiicio à peça Natiine, pàg. 10: „H om ère représente m êm e les dieux riant de la mauvaise grâce de V ulcain, dans le tem ps qu’ils d écid en t du destin du m on d e. H e cto r sourit de la p eur de son fils A styanax; tandis qu’Andromaque répand des larmes. O n voit souvent jusque dans l’horreur des batailles, des incendies, de tous les désastres qui nous affligent, qu’une naiveté, un bon mot, excitent le rire jusque dans le sein de la désolation et de la pitié. O n défendit à un régiment, dans la bataille de Spire, de faire quartier; un officier allemand de­ mande la vie à l’un des nôtres, qui lui répond: „Monsieur, deman­ dez-m oi tout autre chose, mais pour la vie il n’y a pas m oyen.“ C ette naiveté passe aussitôt de bouche en bouche, et on rit au mil­ lieu du carnage. A combien plus forte raison le rire peut-il succé­ der dans la comédie à des sentiments touchants? N e s’attendrit-on pas avec Alcm ène? N e rit-on pas avec Sosie? Quel misérable et vain travail, de disputer contre l’expérience!“ [N. da T.]

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Muito bem! Mas não argumentará também o Se­ nhor de VOLTAIRE contra a experiência quando declara considerar a comédia séria um género tão erróneo quan­ to maçador? Talvez então, quando escreveu isto, assim não fosse. Nessa época, ainda não havia o G éuie [Génio] ou L e p è re de fam ille [O pai de fam ília] e muito tem o génio que fazer, de facto, primeiro, se é que devemos reco­ nhecê-lo como possível.

Vigésimo segundo fascículo 14 de Julho de 1 7 6 7

A vigésima oitava noite (terça-feira, 2 de Junho) [...] term inou com D i e k ra n k e F ra n [A m u lh er doente] de G e lle rt.

Indiscutivelmente, entre todos os nossos escritores cómicos, G e l l e r t é aquele cujas peças são mais genuina­ mente alemãs. São verdadeiros retratos de família, em que nos sentimos imediatamente em casa; qualquer es­ pectador crê reconhecer neles um primo, um cunhado, uma priminha da própria família. Estas peças provam, si­ multaneamente, que não há falta de originais tolos entre nós, e que apenas os olhos aos quais eles se apresentam à sua verdadeira luz são um pouco mais raros. As nossas to­ lices são mais notáveis do que notadas; na vida comum, passamos por cima de muitas delas por benevolência; e no que respeita à sua imitação, os nossos virtuosos habi­ tuaram-se a uma maneira demasiado superficial. Fazem­ -nas semelhantes, mas não as salientam. Acertam, mas

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como não souberam iluminar devidamente o objecto, falta ao retrato a com pleição, a corporalidade; vemos sempre apenas um lado, do qual em breve nos fartamos, e cujas linhas exteriores, demasiado cortantes, nos fazem lem brar im ediatam ente a ilusão quando, em pensa­ mento, queremos dar volta aos outros aspectos. Os tolos são, em todo o mundo, insípidos, frios e enfadonhos; se é para nos divertirem, o poeta tem de lhes dar algo de seu. Não pode trazê-los nas roupagens de todos os dias, em desalinho sujo, para o palco, onde vão sonhando entre quatro pilares. Não podem revelar nada da esfera aca­ nhada de circunstâncias mesquinhas, da qual cada um se quer libertar. Tem que os alindar, tem que lhes emprestar humor e entendimento para poderem encobrir a mes­ quinhez das suas tolices, tem que lhes dar a ambição de quererem brilhar através delas.

Vigésimo quarto fascículo 21 de Julho de 1767

Se o carácter da Elisabeth de C o r n e i l l e é o ideal poético do verdadeiro carácter que a história atribui à rai­ nha deste nome; se vemos nela retratados nas suas verda­ deiras cores a indecisão, as contradições, o medo, o arre­ pendimento, o desespero em que um coração orgulhoso e terno, como o de Elisabeth, não digo que caia de facto nestas ou naquelas circunstâncias, mas que supomos po­ deria ter caído, então o poeta fez tudo o que lhe cabia

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fazer como poeta. Analisar a sua obra, de cronologia na mão; levá-lo ao tribunal da história, para o obrigar a apre­ sentar aí provas de cada data, cada menção acidental, e até pessoas acerca das quais a própria história tem dúvi­ das, isto significa não o compreender, nem a ele nem. à sua profissão, significa, numa palavra, ser ele molestado por quem não se pensava ser capaz desta falta de com­ preensão. [...] A tragédia não é uma história dialogada; a história não é mais para a tragédia do que um repositório de no­ mes, aos quais estamos habituados a associar determi­ nados tipos de carácter. Se o poeta encontra na história várias particularidades adequadas para adorno e indivi­ dualização do seu tema, então que as utilize. Mas que não se lhe atribua, por isso, nem mérito nem, pelo con­ trário, um crime! [■■•]

Vigésimo sexto fascículo .

2 8 d cju lh o de 1767

[•;•] Visto que, nas nossas peças, a orquestra representa, de certo modo, o papel dos coros na Antiguidade, há muito que os conhecedores desejavam que as músicas to­ cadas antes da peça, entre os actos, e no final, se coadu­ nassem mais com o conteúdo desta. S c h e i b e é , entre os músicos, o primeiro que deu aqui pela existência de um campo inteiramente novo para a arte. Como compreen-

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deu que, se a comoção do espectador não for enfraque­ cida e interrompida de forma desagradável, cada peça deve ter o seu próprio acompanhamento musical, não só tentou, já em 1738, com Polyeucte [Polieucto] e Mytridate [.Mitridates], compor melodias especialmente adequadas a estas peças, que foram apresentadas pela companhia da N e u b e r i n em Hamburgo, em Leipzig e noutras locali­ dades, com o tam bém discorreu largamente, num nú­ mero especial do seu jornal D e r kritische Musikus, acerca do que deve observar o compositor que pretenda obter fama neste novo campo. „Todas as melodias“, diz ele, „compostas para acom­ panhar uma peça devem reportar-se ao seu conteúdo. Assim, as melodias para as tragédias são de um tipo dife­ rente do que as destinadas às comédias. Tão diferentes quanto as tragédias e as comédias são entre si, tão distinta deve ser a música que as acompanha. Em especial devido aos diferentes tipos de música nas peças, há que conside­ rar a qualidade das passagens pertencentes a cada tipo. Por isso, a melodia inicial deve reportar-se ao primeiro acto da peça; porém, as melodias que vêm entre os actos devem coadunar-se em parte com o acto anterior, em parte também com o início do acto seguinte; assim como a última melodia se deve adequar ao final do último acto. Todas as melodias para as tragédias devem ser gran­ diosas, impetuosas e com espírito.[...] Por seu lado, as melodias para as comédias devem ser espontâneas, apra­ zíveis e, por vezes, também jocosas; devem, em especial, guiar-se pelo assunto próprio de cada comédia. Assim como a comédia é ora mais séria, ora mais amorosa, ora

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mais divertida, também a melodia assim deve ser. Por exemplo, as comédias L e Faucon [O falcão] e L a double in­ constance [A inconstância dupla] exigiriam melodias com ­ pletamente diferentes de L en fa n t prodigue [O filh o pró­ digo]. Também melodias que possam bem ser adequadas para L ’avare [O avarento] ou L e malade imaginaire [O doente imaginário] não servem para LIrrésolu [O irresoluto] ou para L e distrait [O distraído]. As primeiras devem ser mais ale­ gres e jocosas, as segundas, porém, mais mal humoradas e mais sérias. [...]

Vigésimo nono fascículo 7 de Agosto de 1 7 6 7

A comédia quer tornar-nos melhor pelo riso, não pela troça; não tanto melhorar os vícios dos quais ela nos faz rir e, ainda menos, única e exclusivamente aqueles em que encontramos estes vícios ridículos. A sua verda­ deira utilidade geral consiste no riso em si; no exercício da nossa faculdade de reconhecer o ridículo; de reconhe­ cê-lo, com facilidade e rapidez, sob todos os disfarces da paixão e da moda, em todas as combinações com as pio­ res qualidades ou com boas qualidades, até mesmo nas rugas da seriedade mais solene. Admitimos que L ’avare [O avarento] de M o l i è r e nunca curou um avarento, L e joueur [O jogador] de R e g n a r d um jogador; concedemos que o riso não pode melhorar estes tolos; tanto pior para eles, mas não para a comédia. A esta basta-lhe, já que não

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pode curar doenças desesperadas, robustecer a saúde dos saudáveis. Também para o generoso, o avarento é uma li­ ção; também para quem não joga, o jogador é instrutivo; as tolices, de que não sofrem, têm-nas outros com quem são obrigados a viver; é proveitoso conhecer aqueles com quem podemos entrar em colisão; proveitoso acautelar-se contra todas as impressões do exemplo. A prevenção tam­ bém é um remédio digno de apreço; e toda a moral não tem um efeito mais forte, mais eficiente do que o ridículo.

Trigésimo segundo fascículo 18 de Agosto de 1767

Com os exemplos dos antigos, C o r n e i l l e ainda po­ dia ter ido mais longe no tempo. Muitos presumem que, na Grécia, a tragédia foi inventada realmente para con­ servar a memória de grandes e extraordinários aconteci­ mentos, que o seu intuito primordial seria, pois, seguir as pisadas da história, sem se desviar para um lado ou para outro. Mas enganam-se. Já T é s p is não se importou com a veracidade histórica.11 E verdade que isto lhe valeu uma severa crítica de S o l o n . Porém, sem dizer que S o l o n entendia melhor as leis do Estado do que a arte poética, podemos interpretar de outro modo as consequências que se poderiam tirar da sua discordância. Já no tempo 11 Díogenes Laerrius, Libr. I. § 59. [N. do A.] “De vitis, dogmatibus et apophthegmatikus clarorum virorum “ [Das vidas, opi­ niões e ditos dos homens célebres].

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de TÉSPIS, a arte fez prevalecer todas as suas prerrogati­ vas, m esm o quando ainda não sabia m ostrar-se digna no que respeita à sua utilidade. TÉSPIS im aginou, concebeu, fez as pessoas mais conhecidas dizer e fazer o que ele quis mas, possivelmente, não soube torn ar as suas obras nem plausíveis n em instrutivas. SOLON reparou, assim, apenas no que era incoerente, sem ter a m en o r suspeita acerca da utilidade. C ensurou um veneno que, sem vir acom panhado do respectivo antídoto, poderia facilm ente ter consequências funestas.

Receio bem que So l o n tivesse apelidado também as invenções poéticas do grande C o r n e il l e simplesmente de cruas mentiras. Pois de que servem todas estas inven­ ções? Tornarão elas a história, que ele assim sobrecarrega, mais plausível? Pois se nem sequer são plausíveis em si! C o r n e il l e gabou-se delas como se fossem um esforço extraordinário da veia poética; e, no entanto, devia saber que não é apenas a mera invenção poética, mas a inven­ ção poética adequada, que demonstra um espírito criador. O poeta encontra na história uma mulher que ma­ tou o,marido e os filhos; um acto destes pode suscitar te­ mor e compaixão, e propõe-se fazer dele objecto duma tragédia. Mas a história não lhe narra mais do que o mero facto, e este é tão medonho como extraordinário. Há, no máximo, três cenas e, como o facto está despo­ jado de todo e qualquer pormenor, três cenas inverosí­ meis. O que faz então o poeta? Se é mais ou menos digno deste nome, ou a inverosimilhança ou a escassa brevidade parecer-lhe-á o maior defeito da sua peça.

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No primeiro caso, esforçar-se-á, acima de tudo, por inventar uma quantidade de causas e efeitos, devido aos quais o tal crime inverosímil não poderia deixar de acon­ tecer. Descontente em basear a sua possibilidade apenas na verosimilhança histórica, procurará construir o carác­ ter das personagens; procurará fazer que os aconteci­ mentos que estão na origem da actuação destas persona­ gens resultem necessariamente uns dos outros; procurará medir exactamente as paixões de acordo com o carácter de cada uma; procurará conduzir estas paixões gradual­ mente por diferentes fases, de modo a que nos demos apenas conta do seu decorrer mais natural, mais regular; a que tenhamos que reconhecer, em cada passo que ele faz as personagens darem, que nós próprios, partindo do mesmo grau de paixão e de circunstâncias afins, não te­ ríamos agido de outro modo; a que nada nos surpreenda a não ser a subtil aproximação de um desfecho, perante o qual os nossos pensamentos estremecem recuando, e perante o qual, finalmente, cheios da maior compaixão pelos que foram arrastados a tal por uma corrente tão fa­ tal, e cheios de temor, nos defrontamos com a consciên­ cia que uma corrente semelhante nos poderia ter ar­ rastado a actos que, a sangue frio, julgávamos o mais afastados de nós que é possível. E se o poeta toma este caminho, o seu génio diz-lhe que não irá falhar ignominiosamente; assim, também a escassa brevidade da fábula desapareceu; agora pouco lhe importa como irá preencher cinco actos com tão poucas ocorrências; apenas receia que, à medida que trabalha, cinco actos não abranjam a matéria que vai aumentando por si cada

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vez mais, a partir do momento em que descobriu as in­ tenções da sua organização oculta, e compreendeu como desenvolvê-la. Pelo contrário, o poeta que m erece m enos este nome, que não é mais do que uma cabeça espirituosa, um bom versejador, a este, afirmo, a inverosimilhança do tema incomodará tão pouco, que verá nela antes o ex­ traordinário, que de modo algum pode reduzir, se não quer privar-se do meio mais seguro de suscitar temor e compaixão. Pois sabe tão pouco em que consiste esse te­ mor e essa compaixão que, para os suscitar, crê não poder amontoar suficientes coisas extraordinárias, inesperadas, inverosímeis, terríveis e, para o fazer, supõe dever refu­ giar-se nas desgraças e crimes mais extraordinários e he­ diondos. [•••]

Trigésimo quarto fascículo 2 5 de Agosto de 1767

[...] Há pessoas que reúnem em si contradições lamentá­ veis. Mas estas não podem, por isso mesmo, ser objecto da imitação poética. Estão abaixo dela, pois falta-lhes o lado didáctico; a não ser que se fizesse destas mesmas contradições, do ridículo ou das desditosas consequências das mesmas, o objecto didáctico [...]. Uma personagem porém, a quem falta o lado didáctico, falta-lhe a intenção. Actuar com uma intenção é o que eleva o ser humano (>S

acima das criaturas menores; poetizar com intenção, imi­ tar com intenção, é o que distingue o génio dos peque­ nos artistas, que apenas poetizam por poetizar, que ape­ nas imitam por imitar, que se contentam com o diminuto prazer associado ao uso dos seus meios, e que fazem des­ tes meios toda a sua intenção, exigindo que nos demos por satisfeitos com este mesmo diminuto prazer, sus­ citado pela contemplação do uso artístico mas não inten­ cional dos seus meios. É verdade: com tais imitações enfadonhas começa o génio a aprender; são os seus exer­ cícios prelim inares; tam bém precisa deles em obras maiores para preenchimento, para pontos de repouso da nossa participação activa; porém, com a disposição e a constituição das personagens principais ele associa inten­ ções maiores e mais vastas; a intenção de nos instruir acerca do que devemos fazer ou deixar de fazer; a inten­ ção de nos familiarizar com as características intrínsecas do bem e do mal, da delicadeza moral e do ridículo; a in­ tenção, em casos repreensíveis que não constituem para nós uma emulação directa, não nos causam uma repulsa directa, pelo menos de ocupar os nossos desejos e as nos­ sas aversões de objectos dignos de tal e de colocar estes objectos na sua verdadeira luz, para que, num dia fu­ nesto, não nos seduza o que devíamos desejar abominar e o que devíamos abominar desejar.

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Trigésimo quinto fascículo 2 8 de Agosto de 1767

Recordo já ter referido, noutro lugar, a diferença en­ tre a acção da fábula esópica e a do drama. O que é vá­ lido para aquela é válido para qualquer narrativa moral que tem a intenção de trazer à intuição do leitor um preceito moral. Ficamos satisfeitos quando esta intenção foi alcançada, e é-nos indiferente que isto aconteça ou não através de uma acção integral, que constitui em si um todo a que nada falta; o poeta pode interrompê-la onde quiser, assim que atinge o seu objectivo; não se' preocupa com o interesse que possamos ter pelo destino das personagens que faz actuar, não quis interessar-nos, quis instruir-nos; ele tem apenas que ver com a nossa ra­ zão, não com o coração, este pode ficar satisfeito ou não, quando aquela foi iluminada. O drama, pelo contrário, não pretende transmitir um preceito moral único, con­ creto, resultante da fábula; ou se ocupa das paixões capa­ zes de atear e de manter o desenrolar da fábula e as mu­ danças da sorte, ou do prazer proporcionado por um relato verdadeiro e vivo dos costumes e caracteres; e ambos exigem uma acção relativamente completa, um determinado final satisfatório, de que não achamos falta na fábula, porque a nossa atenção é guiada para o pre­ ceito moral, do qual o caso individual é um exemplo tão ilustrativo.

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Trigésimo sétimo fascículo 4 de Setembro de 1787

[...]

A r i s t ó t e l e s analisa, no décimo quarto capítulo da Poética, quais são os acontecimentos que provocam temor e compaixão. Todos os acontecimentos, diz ele, devem ocorrer entre amigos ou entre inimigos, ou entre pessoas indiferentes. Quando um inimigo mata o seu inimigo, nem o atentado, nem o cometer do acto provocam mais compaixão do que a compaixão geral associada à contem­ plação de algo doloroso e pernicioso. O mesmo acontece com pessoas indiferentes. Por isso, os acontecimentos trá­ gicos devem ocorrer entre amigos; um irmão deve matar, querer matar ou ferir gravemente o irmão; um filho, o pai; uma mãe, o filho; um filho, a mãe. Porém, isto pode acontecer consciente e intencionalmente ou não e, como o acto tem de ser cometido ou não, daí resultam quatro categorias de acontecimentos que correspondem, melhor ou pior, às intenções da tragédia. A primeira: quando o acto é empreendido intencionalmente, com pleno co­ nhecimento por parte da pessoa contra a qual vai ser co­ metido, mas não não chega a ser perpetado. A segunda: quando é empreendido intencionalmente e chega a ser perpetrado. A terceira: quando o acto é empreendido e cometido sem intenção e sem conhecimento da vítima, e o seu autor apenas reconhece a pessoa contra qual o per­ petrou tarde de mais. A quarta: quando o acto empreen­ dido sem intenção não chega a ser perpetrado, porque as pessoas nele envolvidas se reconhecem a tempo. Entre

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estas quatro categorias, A r i s t ó t e l e s dá preferência à úl­ tima e, dado que cita como exemplo o acto de Mérope em Cresfont.es, TOURNEM INE e outros autores interpreta­ ram isto como se ele declarasse ser a fábula desta tragédia o género mais perfeito de todos. No entanto, pouco antes, A r i s t ó t e l e s diz que uma boa fábula trágica não deve ter um final feliz, mas antes infeliz. Como é que estes duas teses se coadunam? Deve ter um final infeliz e, ao mesmo tempo, o acontecimento que ele prefere a todos os outros acontecimentos trági­ cos, segundo a sua classificação, tem um final feliz. Não será, pois, que o grande crítico se contradiz manifesta­ mente? ViCTORiUS, diz D a c i e r , é o único que viu esta difi­ culdade, mas como não compreendeu o que A r i s t ó t e ­ l e s queria dizer em todo o capítulo catorze, não fez o mínimo esforço para a sanar. Segundo D a c i e r , A r i s t ó ­ t e l e s não se quer referir aqui à fábula propriamente dita, mas pretende apenas instruir acerca dos modos como o poeta pode tratar acontecimentos trágicos, sem alterar o essencial que a história dele narra, bem como qual destes modos é o m elhor. Por exem plo, se o assassínio de Clitemnestra por Orestes deve ser o tema da peça, apre­ sentam-se, segundo A r i s t ó t e l e s , quatro possibilidades de tratar esta matéria, nomeadamente como aconteci­ mento da primeira, da segunda, da terceira ou da quarta categoria; cabe agora ao poeta reflectir qual será a mais adequada e a melhor. Tratar deste assassínio como um acontecimento da primeira categoria não tem cabimento, porque tem de acontecer, de facto, segundo a história e

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tem de sobrevir através de Orestes. Não de acordo com a segunda categoria, porque seria demasiado terrível. De acordo com a quarta, não, porque assim Clitemnestra, que de modo algum deve ser salva, seria outra vez salva. Por conseguinte, não lhe resta senão a terceira categoria. A terceira! Mas ARISTÓTELES dá preferência à quarta, e não apenas em casos isolados, conforme as circunstân­ cias, mas de um modo geral. O honesto D a c i e r faz isto várias vezes: para ele, A r i s t ó t e l e s tem razão, não por­ que tenha de facto razão, mas porque se trata de A r i s t ó ­ t e l e s . Crendo, por um lado, encobrir-lhe uma fraqueza, descobre-lhe, por outro lado, outra ainda pior. Assim, se o adversário tem o cuidado de criticar esta em vez da­ quela, lá se vai a infalibilidade do autor da Antiguidade, à qual DACIER parece atribuir ainda mais valor do que à própria verdade. Se a conformidade da história é tão im­ portante, se o poeta pode atenuar, mas nunca alterar in­ teiramente os factos geralmente conhecidos, não haverá entre estes alguns que terão de ser tratados de acordo com o primeiro ou o segundo plano? O assassínio de Cli­ temnestra deveria, no fundo, ser apresentado de acordo com o segundo, pois Orestes perpetrou-o consciente e intencionalmente; todavia, o poeta pode escolher o ter­ ceiro, porque este é mais trágico e não contradiz propria­ mente a história. Bom , assim seja, mas por exemplo M e­ deia, que assassina os filhos? Que outro plano pode o poeta aqui usar senão o segundo? Pois ela tem de assas­ siná-los e tem de assassiná-los intencionalmente; ambos os factos são sobejamente conhecidos da história. Que precedência pode, pois, ter lugar neste plano? O que é

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óptimo num caso está fora de questão noutro. Ou para embaraçar ainda mais D a c i e r : concentremo-nos, não em factos históricos, mas em acontecimentos meramente in­ ventados. Supondo que o assassínio de Clitemnestra per­ tencia a esta última categoria e o poeta teria tido a liber­ dade de o fazer perpetrar ou não, e perpetrá-lo com pleno conhecimento ou não. Que plano deveria então ser escolhido para fazer uma tragédia tão perfeita quanto possível? O próprio D a c i e r o diz: o quarto; pois, se desse a primazia ao terceiro, fá-lo-ia apenas por respeito à his­ tória. Então o quarto? Então o que termina com um final feliz? Mas as melhores tragédias, diz A r i s t ó t e l e s , que dá preferência a este quarto plano, não são as que têm um final infeliz? E esta é precisamente a contradição que D a c i e r pretendia eliminar. Será que a eliminou mesmo? Antes pelo contrário, confirmou-a.

Trigésimo oitavo fascículo 8 de Setembro de 1767

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Nada recomenda A r i s t ó t e l e s com mais insistência ao poeta trágico do que a boa construção da fábula, e nada tentou facilitar-lhe mais, por meio de diversas e fi­ nas observações. Pois é principalmente a fábula que faz do poeta um poeta; dos costumes, dos sentimentos e da expressão sair-se-ão bem dez, por um que é impecável e excelente no que respeita àquela. Porém, ele explica a fá­ bula por meio da imitação de uma acção, npaÇeojc; e uma

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acção é, para ele, uma combinação de acontecimentos, owQeo\.ç TTpcey|iaTüjv. A acção é o todo, os acontecimen­ tos são as partes deste todo, e assim como a qualidade de qualquer todo se baseia na qualidade das suas partes e na sua ligação, também a acção trágica é mais ou menos per­ feita, conforme os acontecimentos em que consiste cor­ respondem, individualmente ou em conjunto, melhor ou pior às intenções da tragédia. A r i s t ó t e l e s classifica to­ dos os acontecimentos, que podem ter lugar na acção da tragédia, em três tipos principais: a mudança de sorte ou peripécia: TrepLueTeiaç; o reconhecimento ou „anagnórise“: dvayvojpiCT^ou; e a paixão ou „pathos“: TTaBouç. O que entende pelos dois primeiros mostram-no sufi­ cientem ente as palavras; sob o terceiro, porém, reúne tudo o que pode acontecer de funesto ou doloroso às personagens: m orte, ferim entos, m artírios e aconte­ cimentos semelhantes. Os primeiros elementos, a mu­ dança de sorte e o reconhecimento, são o que distingue a fábula complexa, |iu9oç TTenÀeyiJ.eyoç, da simples, áuXio; não fazem, pois, parte integrante da fábula, apenas tor­ nam a acção mais variada e, assim, mais bela e mais inte­ ressante; mas uma acção também pode ter perfeita uni­ dade, ser bem acabada e ter grandeza sem eles. Sem o terceiro elemento, em contrapartida, não é possível supor uma acção trágica; toda a tragédia tem de ter alguns tipos de sofrimento, t t c i O t i , quer a fábula seja simples ou com­ plexa; pois os sofrimentos reflectem a intenção da tragé­ dia: causar tem or e compaixão; todavia, nem todas as mudanças de sorte, nem todos os reconhecimentos, a não ser determinados tipos deles, alcançam este objectivo ou

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ajudam a alcançá-lo em grau mais elevado; outros, po­ rém, são-lhe mais prejudiciais do que úteis. Quando A r i s t ó t e l e s observa as diferentes componentes da acção trágica sob este ponto de vista, subsumindo-as em três elementos principais cada um de per si, e analisa qual é a melhor mudança de sorte, qual o m elhor reconheci­ mento, qual o melhor tratamento do sofrimento, verifi­ camos que a melhor mudança de sorte é aquela mais ca­ paz de suscitar e difundir tem or e compaixão, a que acontece quando o melhor se altera para o pior; e no que respeita ao último elemento, que o melhor tratamento do sofrimento, sob o mesmo ponto de vista, é quando as pessoas que vão ser atingidas pelo sofrimento não se co­ nhecem, mas se reconhecem no momento em que este sofrimento se vai tornar realidade, evitando-o assim. E isto é uma contradição? Não compreendo onde se têm os pensamentos quando se vê aqui a menor contra­ dição. O filósofo fala de componentes diferentes: porque haverá aquilo que ele considera válido para uma parte de ser também válido para a outra? Será a possível perfeição de uma, necessariamente, também a perfeição da outra? Ou será a perfeição de uma parte também a perfeição do todo? Se a mudança de sorte e o que A r i s t ó t e l e s en­ tende pela palavra sofrimento são duas coisas distintas, como de facto são, porque não se poderá dizer algo dife­ rente de cada uma delas? Ou é impossível que um todo possa ter partes de características opostas? Onde é que A r i s t ó t e l e s diz que a melhor tragédia não é mais do que a ideia de uma mudança da felicidade para a infelici­ dade? Ou onde diz ele que a melhor tragédia não pode

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ter outra finalidade senão o reconhecim ento daquele contra quem deve ser cometido um acto cruel e desnatu­ rado? Não diz, aliás, nem uma coisa nem outra da tragé­ dia, senão tudo de uma determ inada com ponente da mesma, que pode ter maior, m enor ou até mesmo ne­ nhuma influência sobre as outras. A mudança de sorte pode ocorrer no meio da peça e, mesmo quando dura até ao fim, não constitui, por isso, esse mesmo fim: assim, por exemplo, a mudança de sorte de Édipo, que se revela logo no final do quarto acto, à qual se vêm, porém, juntar ainda alguns sofrimentos (ua9r|), com os quais a peça acaba verdadeiramente. Do mesmo modo, o infortúnio pode estar para se consumar no meio da peça e ser impe­ dido pelo reconhecimento, de modo que, com este reco­ n h ecim en to, a peça de m odo algum está term inada; como é o caso na segunda Ifigênia de E u r í p i d e s , em que Orestes é reconhecido, logo no quarto acto, pela irmã que o quer sacrificar. E como esta mudança trágica da sorte se pode coadunar perfeitamente com o tratamento trágico do sofrim ento na m esm a fábula, pode-se de­ monstrar na própria Mérope. A ela se aplica o último caso; mas que impede que lhe acontecesse também o pri­ meiro, nomeadam ente se Mérope, depois de ter reco­ nhecido o filho sob o punhal, devido ao esforço para pro­ te g ê -lo agora tam bém de P olifon tes, causasse a sua própria perdição ou a deste filho tão querido? Porque não se poderia terminar esta peça tanto com a queda da mãe, com o com a do tirano? Porque não poderia um poeta ter a liberdade de a tornar infeliz devido à sua pró­ pria afeição, para induzir ao máximo a nossa compaixão

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ter outra finalidade senão o reconhecim ento daquele contra quem deve ser cometido um acto cruel e desnatu­ rado? Não diz, aliás, nem uma coisa nem outra da tragé­ dia, senão tudo de uma determinada com ponente da mesma, que pode ter maior, menor ou até mesmo ne­ nhuma influência sobre as outras. A mudança de sorte pode ocorrer no meio da peça e, mesmo quando dura até ao fim, não constitui, por isso, esse mesmo fim: assim, por exemplo, a mudança de sorte de Édipo, que se revela logo no final do quarto acto, à qual se vêm, porém, juntar ainda alguns sofrimentos (ira9ri), com os quais a peça acaba verdadeiramente. D o mesmo modo, o infortúnio pode estar para se consumar no meio da peça e ser impe­ dido pelo reconhecimento, de modo que, com este reco­ nh ecim en to, a peça de m odo algum está term inada; como é o caso na segunda Ifigênia de E u r Í p i d e s , em que Orestes é reconhecido, logo no quarto acto, pela irmã que o quer sacrificar. E com o esta mudança trágica da sorte se pode coadunar perfeitamente com o tratamento trágico do sofrim ento na m esm a fábula, pode-se de­ monstrar na própria Mérope. A ela se aplica o último caso; mas que impede que lhe acontecesse também o pri­ m eiro, nomeadamente se Mérope, depois de ter reco­ nhecido o filho sob o punhal, devido ao esforço para pro­ te g ê -lo agora tam bém de P olifon tes, causasse a sua própria perdição ou a deste filho tão querido? Porque não se poderia terminar esta peça tanto com a queda da mãe, com o com a do tirano? Porque não poderia um poeta ter a liberdade de a tornar infeliz devido à sua pró­ pria afeição, para induzir ao máximo a nossa compaixão

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por esta mãe tão afectuosa? Ou porque não haveria de lhe ser permitido fazer o filho, que salvou da vingança piedosa da mãe, sucumbir todavia à perseguição do ti­ rano? Não reuniria uma tal Mérope, nos dois casos, am­ bas as características da m elhor tragédia, que o crítico considera tão contraditórias? Estou a ver o que pode ter levado a este m al-enten­ dido. Não se foi capaz de imaginar uma mudança da sorte de melhor para pior sem sofrimento, nem o sofri­ mento impedido pelo reconhecimento sem mudança de sorte. N o entanto, ambos podem ter lugar um sem o ou­ tro; sem mencionar que ambos os casos também não têm de acontecer à mesma pessoa e que, quando acontecem à mesma pessoa, isto não pode ter lugar na mesma altura, mas antes tem um de se seguir ao outro, um pode ser causado pelo outro. [-]

Quadragésim o sexto fascículo 6 de O utubro de 1 7 6 7

Uma coisa é aceitar as regras, outra é observá-las de facto. O primeiro caso aplica-se aos franceses; o último parecem tê-lo apenas conseguido os antigos. A unidade de acção foi a primeira regra dramática dos antigos; a unidade de tempo e a unidade de lugar fo­ ram apenas uma consequência daquela; dificilmente as teriam observado mais rigorosamente, se aquela não o exigisse necessariamente, se não se lhe tivesse vindo asso­

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ciar o coro. Uma vez que as suas acções tinham de incluir como testemunha uma multidão de povo, e esta multi­ dão se mantinha sempre constante e não se podia afastar muito do local onde vivia, nem permanecer por muito mais tempo longe dele do que se costuma fazer por cu­ riosidade vulgar, mal podiam deixar de limitar o lugar exactamente ao mesmo sítio individual, e o tempo exac­ tamente ao mesmo dia. A esta limitação se submeteram, pois, de boa fé; mas com uma flexibilidade, com uma in­ teligência, que sete em cada nove vezes ganharam muito mais com isso do que perderam. Pois aproveitaram esta imposição para simplificar de tal modo a acção, para eli­ minar tão cuidadosamente todo o supérfluo que esta, re­ duzida aos seus elem entos essenciais, não era mais do que um ideal da mesma acção, que se constituía assim da forma mais feliz, que exigia o mínimo aditamento de cir­ cunstâncias de tempo e de lugar. Os franceses, pelo contrário, que não adquiriram o gosto pela unidade de acção e que, antes de conhecerem a simplicidade grega, já estavam mal-acostumados pelas intrigas desenfreadas das peças espanholas, não considera­ ram as unidades de tempo e de lugar como consequên­ cias daquela unidade, mas como requisitos indispensáveis à noção de uma acção, requisitos esses que teriam de adaptar às suas acções mais faustosas e mais complicadas, com a severidade apenas exigida pelo uso do coro, do qual tinham prescindido totalmente. Todavia, como des­ cobriram como isto é difícil, por vezes mesmo impossí­ vel, estabeleceram um acordo com as regras tirânicas, às quais não tiveram a coragem de recusar totalm ente a

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obediência. Em vez de um único lugar, introduziram um lugar indeterminado que permite imaginar ora este, ora aquele outro; bastava que estes lugares não ficassem muito longe uns dos outros, e que nenhum precisasse de decorações especiais, que a mesma decoração se ajustasse mais ou menos tão bem a este como ao outro. Em vez da unidade de um dia, introduziram a unidade de duração, e um determinado tempo em que não se ouvisse falar do nascer ou pôr do sol, em que ninguém se fosse deitar ou, pelo menos, não se deitasse mais do que uma vez; acon­ tecesse de resto o que acontecesse, por muito que fosse, apenas consideraram válido um dia. Ninguém lhes teria levado isto a mal; pois, indubita­ velmente, também assim se podem fazer excelentes pe­ ças; e o ditado lá diz que se deve furar a tábua onde ela é mais fina. Mas também tenho que deixar o vizinho furar só aí. Não lhe posso mostrar sempre o canto mais es­ pesso, a parte mais nodosa, e gritar: Fura também aqui! E aqui que eu costumo furar! - Contudo, os críticos france­ ses todos eles assim gritam; sobretudo quando se trata das peças dramáticas dos ingleses. Que celeuma não levan­ tam por causa da regularidade que facilitaram infinita­ mente para si próprios! Mas repugna-me deter-me mais tempo com estes assuntos. [•••]

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Quadragésim o nono fascículo 16 de O utubro de 1 7 6 7

N u m a palavra, o n d e os críticos de EuRÍPIDES não c rê e m ver senão o p oeta que, p o r inaptidão ou co m o d i­ dade, ou p or estes dois m otivos, facilita o trabalho tanto quanto possível; onde estes supõem en con trar a arte no seu b erço, creio eu vê-la na sua perfeição e adm iro nele o m estre que, no fundo, é tão regular quanto exigem dele, e apenas p arece sê-lo m enos, porque quis dar às suas p e­ ças mais u m a beleza, de que eles não fazem ideia.

Pois é claro que todas as peças, cujos prólogos lhes causam tanta irritação, também são perfeitamente com ­ pletas e perfeitamente compreensíveis sem os prólogos. Corte-se, por exemplo, antes de Ion o prólogo de M er­ cúrio, antes de H écuba o prólogo de Polidoro; deixe-se a primeira começar logo com as orações matinais de Ion, e a segunda com os lamentos de Hécuba: será que ambas ficam, por isso, minimamente estropiadas? Com o acha­ ríeis falta do que foi cortado, se lá não estivesse? Não será que tudo mantém o mesmo desenrolar, o mesmo contexto? R eco n h ecei m esm o que, segundo o vosso modo de pensar, seriam ainda mais belas se não soubés­ semos através do prólogo que Ion, que quer mandar en­ v en en ar C reú sa, é filh o desta m esm a C reú sa; que Creúsa, que Ion quer arrastar do altar para uma morte ignominiosa, é a mãe deste mesmo Ion; se não soubésse­ mos que no próprio dia em que Hécuba tem que dar a filha em sacrifício, a infeliz e idosa mulher também deve tomar conhecimento da morte do último e único filho. Tudo isto causaria as surpresas mais certeiras e estas sur­

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presas seriam, ainda para mais, bem preparadas, sem que pudésseis dizer que caíam, de repente, com o um raio do mais claro céu; não se sucederiam, antes aconteceriam; não se pretenderia pôr-vos, de repente, algo a desco­ berto, antes persuadir-vos. E , apesar disso, zangais-vos com o poeta? Apesar disso, acusai-lo de falta de arte? Perdoai-lhe um erro que pode ser corrigido com um risco da pena. O jardineiro corta um rebento exuberante, com a maior serenidade, sem se zangar com a árvore que o fez brotar. Se quiserdes, contudo, supor, por um momento - é verdade que é supor muito - que E u r Í p i DES talvez pudesse ter tido tanto entendimento, tão bom gosto como vós e, por isso, vos admirardes ainda mais com o é que ele, apesar deste notável entendim ento e deste fino gosto, pôde com eter um erro tão crasso, então aproximai-vos de mim e observai, do m eu ponto de vista, o que designais como um erro. E u r íP ID E S viu tão bem como nós que, por exemplo, o seu íou poderia per­ durar sem o prólogo, que sem ele seria uma peça que manteria a incerteza e a expectativa do espectador até ao fim, mas eram exactamente esta incerteza e expectativa que não o interessavam . Pois se o espectador só no quinto acto ficar a saber que íon é o filho de Creúsa, para ele, não é o próprio filho mas um estranho, um ini­ migo, que ela quer assassinar no terceiro acto; para ele, não é a mãe de íon de quem este se quer vingar no quarto acto, é apenas a pérfida assassina. Mas de onde vi­ riam então o temor e a compaixão? A mera conjectura, eventualmente resultante da concatenação de circunstân­ cias, que íon e Creúsa poderiam estar mais próximos um do outro do que supõem, não seria suficiente para tal.

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Esta conjectura deveria tornar-se certeza; e se o especta­ dor só podia obter esta certeza através de uma informa­ ção exterior, se não era possível que ele pudesse obtê-la graças a uma das personagens em cena, não seria sempre m elhor que o poeta lha transmitisse pelo único m eio possível, do que lha ocultasse de todo? Dizei deste pro­ cesso o que quiserdes: chega, ele ajudou o poeta a atingir o seu objectivo; graças a ele, a tragédia é o que uma tra­ gédia deve ser; e se ainda sentis indignação por ele ter subordinado a forma à essência, então que a vossa eru­ dita crítica não vos proporcione senão peças em que a essência é sacrificada à forma, e estareis recompensados! Em todo o caso, se vos agradar a Creúsa de W h i t e h e a d , em que nenhum Deus vos vaticina seja o que for, em que ficais a saber tudo por um confidente loquaz que uma cigana astuta interroga, em todo o caso, se esta peça vos agradar mais do que o Ion de E u rÍP ID E S , eu nunca vos invejarei! Q uando A r i s t ó t e l e s chama a E u r Í p i d e s o mais trágico de todos os poetas trágicos, não está apenas a pen­ sar que a maior parte das suas peças tem um desenlace infeliz; embora eu saiba que muitos interpretam assim o Estagirita. Pois esta habilidade depressa se aprenderia com ele, e qualquer trapalhão que degolasse e assassi­ nasse fielm ente as suas personagens e não deixasse ne­ nhuma delas abandonar o palco com saúde ou viva po­ deria julgar-se tão trágico como E u r Í p i d e s . A r i s t ó t e l e s tinha, indiscutivelmente, várias qualidades em mente, de­ vido às quais lhe atribuiu esta característica e sem dúvida que entre elas se contava aquela que acabamos de m en­ cionar, graças à qual revelava aos espectadores, com

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grande antecedência, toda a infelicidade que devia vir a surpreender as suas personagens, para suscitar nos espec­ tadores desde logo compaixão para com as personagens, mesmo quando estas ainda se consideravam muito longe de ser dignas de com paixão. SÓ C R A TES foi m estre e amigo de E u r Í P I D E S ; e alguns serão de opinião que o poeta não deveria mais a esta amizade com o filósofo do que a profusão de belas sentenças morais que espalha tão prodigam ente pelas suas peças. Eu penso que ele lhe deve muito mais; sem ela poderia ter sido tão sentencioso como foi, mas talvez não tivesse sido tão trágico. Belas sentenças e ditos morais é o que ouvimos mais raramente de um filósofo como SÓCRATES; a sua própria conduta é a única moral que prega. Mas conhecer os homens, e co­ nhecer-nos a nós próprios, estar atentos às nossas em o­ ções, em todas indagar e amar os caminhos mais planos e curtos da natureza, julgar cada coisa de acordo com a res­ pectiva intenção: isto é o que aprendemos no convívio com ele; isto é o que E u rÍP ID E S aprendeu com S ó c r a t e s , e que fez dele o primeiro na sua arte. Feliz o poeta que tem um amigo assim, e que se pode aconselhar com ele todos os dias, a qualquer hora!

Quinquagésimo segundo fascículo 2 7 de O utubro de 1 7 6 7

Na quadragésima noite (quinta-feira, 9 de Julho) foi levada à cena a peça D e r Triumph der guten Frauen [O triunjo das mulheres hoas) de SCHLEGEL.

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Esta comédia é, indiscutivelmente, um dos melhores originais alemães. Foi, tanto quanto sei, a última obra có­ mica do poeta, que ultrapassa de longe as suas irmãs an­ teriores e revela a maturidade do seu autor. D e r geschäftige M üßiggänger [O mandrião atarefado] foi a primeira tentativa de juventude e falhou, com o as tentativas de juventude costumam falhar. [...] D e r Trium ph der guten Frauen, pelo contrário, foi alvo de grande aplauso onde quer que foi levado à cena e sempre que foi levado à cena, em todo o lado e em qual­ quer altura; e que este aplauso tem de se basear na verda­ deira beleza, que não é obra de uma encenação surpreen­ dente, deslumbrante, é evidente, uma vez que ninguém, depois de ler a peça, o negou. Q uem leu primeiro a peça, ainda a aprecia mais ao vê-la representada, e quem a viu primeiro representada aprecia-a ainda mais quando a lê. Tam bém os críticos mais severos a preferiram às outras comédias do autor, assim com o preferiram estas à balbúr­ dia habitual das comédias alemãs. „Li“, diz um deles,12 „ D e r geschäftige M üßiggänger, as personagens pareceram-me inteiramente tiradas da vida real, estes mandriões, estas mães loucas pelos filhos, estas visitas de humor insípido e estes comerciantes de peles tão tolos, vem o-los todos os dias. Assim pensa, assim vive, assim procede a classe média alemã. O poeta fez a sua obrigação, retratou-nos com o somos. Só que eu bo­ cejei de tédio. D epois, li D e r T rium ph der gu ten Frauen. Q u e diferença! Aqui encontro vida nas personagens, 12 B riefe, die neueste L itera tu r b etreffend, T . X X I , pág. 1 3 3 . [N . do A .] ' "

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chama nas suas acções, verdadeiro espírito nos diálogos e o tom da urbanidade em todo o seu convívio.“ O principal defeito que este crítico notou é que o carácter das personagens em si não é alemão. E, infeliz­ m ente, temos que lhe dar razão. Mas já estamos dema­ siado habituados a costumes estranhos nas nossas com é­ dias, sobretudo franceses, para que este defeito possa exercer um efeito especialmente negativo sobre nós. „Nicandro“, diz, ,,é um aventureiro francês, que vai à procura de aventuras, que requesta todas as m ulheres, sem verdadeira inclinação por nenhuma, sem ter inten­ ções sérias para com nenhuma, que tenta semear a dis­ córdia em todos os casamentos felizes, o sedutor de todas as mulheres e o susto de todos os homens, e que, apesar disto tudo, não tem mau coração. A decadência geral de costumes e princípios parece tê-lo arrastado. Graças a Deus que um alemão que queira viver assim tem de ter o coração mais depravado do mundo. Hilária, a mulher de Nicandro, que ele abandonou quatro semanas depois do casamento, e que não viu durante dez anos, resolve pro­ curá-lo. Veste-se de homem e persegue-o, sob o nome de Filinto, por todas as casas em que ele busca aventuras. Filinto é mais espirituoso, mais volúvel e mais descarado que Nicandro. A moça está mais inclinada para Filinto e, assim que ele surge com o seu temperamento atrevido e, apesar disso, correcto, Nicandro queda-se mudo. Isto dá ocasião a situações muito tumultuosas. A ideia é engra­ çada, o carácter duplo bem traçado e posto em acção de um modo feliz, mas o original desta imitação de peralvi­ lho não é, certamente, um alemão.“

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„O que me desagrada ainda nesta comédia“, prosse­ gue ele, ,,é o carácter de Agenor. Para tornar perfeito o triunfo das mulheres boas, Agenor mostra o marido sob uma perspectiva demasiado odiosa. Ele tiraniza a sua ino­ cente Juliana do modo mais indigno e tem prazer em atorm entá-la. Carrancudo quando se deixa ver, zom ­ beteiro em relação às lágrimas da m ulher melindrada, desconfiado em relação às suas carícias, suficientemente maldoso para interpretar em seu desfavor as suas palavras e acções mais inocentes com uma falsa versão, ciumento, duro, insensível e, como podeis facilmente imaginar, ena­ morado da criada de quarto da mulher. U m hom em as­ sim é demasiado depravado para que lhe demos crédito de uma emenda rápida. O poeta dá-lhe um papel secun­ dário, em que as rugas do seu coração indigno não se po­ dem desenvolver suficientemente. Ele brama, e nem Ju ­ liana nem o leitor chegam a saber o que ele quer. O p o eta tam b ém não teve espaço para preparar devi­ damente e pôr em cena a sua regeneração moral. Teve de se contentar com fazê-lo de passagem, porque tinha de tratar da acção principal com Nicandro e Filinto. Cata­ rina, a generosa criada de quarto de Juliana, que Agenor perseguira, diz mesmo no fim da comédia: As emendas mais rápidas não são sempre as mais sinceras! Pelo m e­ nos, enquanto esta moça se mantiver lá em casa, não que­ ria responder pela sinceridade.“ Folgo que a m elhor comédia alemã tenha caído nas mãos do melhor crítico alemão. E, todavia, possivelmente foi a primeira comédia que este homem recenseou. F im do primeiro volume

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Se g u n d o V o l u m e

Quinquagésimo terceiro fascículo 3 de Novembro de 1767

[...] Na quadragésima segunda noite (segunda-feira, 13 de Julho) foi levada à cena L ’école des fem m e s [A escola das mulheres] de M o l i è r e . já tinha escrito L ’école des maris [A escola dos maridos] quando, em 1662, lhe deu seguim ento com L ’école des fe m m e s . Q u em não co n h ece as duas peças enganar-se-ia profundam ente se pensasse que se acon­ selham, nesta última, as m ulheres sobre as suas obriga­ ções, tal com o na prim eira os homens. Ambas são far­ sas divertidas, em que um par de moças, uma educada com toda a severidade e outra com toda a ingenuidade, enganam um par de velhos tolos; e deveriam chamar-se ambas L ’école des maris, se M o l i è r e s ó tivesse querido demonstrar que a m oça mais tola tem entendim ento suficiente para enganar, e que coacção e vigilância dão menos fruto e são menos proveitosas do que indulgên­ cia e liberdade. D e facto, em L ’école des je m m e s não há muito que aprender para o sexo fem inino; a não ser que M o l i è r e , com este título, se estivesse a referir às regras m atrimoniais na segunda cena do quinto acto, com as quais as obrigações das m ulheres são ridicula­ rizadas. M o liè re

„Os dois temas mais felizes para a tragédia e a com é­ dia“, diz T r u b l e t , „são L e C id e L ’école des fem m es. Mas ambos foram já tratados por C o r n e i l l e e M o l i è r e , quando estes poetas ainda não tinham atingido toda a sua

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maturidade. Esta observação“, acrescenta, ,,devo-a a F o n TENELLE.“ 13 Seria m elh or que T r u b l e t tivesse perguntado a F o n t e n e l l e o que queria dizer com isto. Ou, se assim já era compreensível para ele, que tivesse ao menos querido torná-lo, com algumas palavras, compreensível também para os seus leitores. Eu, pelo menos, confesso que não compreendo onde F o n t e n e l l e queria chegar com esta charada. Creio que se enganou, ou que T r u b l e t não ou­ viu bem. Todavia, se na opinião destes hom ens o tem a de L ’école des fem m es é tão feliz, e foi só MOLIÈRE que ficou aquém no seu tratamento, este não teria muito que se or­ gulhar desta sua peça. Pois não é a ele que se deve este tema, constituído em parte por elementos de uma narra­ tiva espanhola, que encontram os em S c a r r o n com o título L a précaution inutile [A precaução inútil], em parte ti­ rado de L e piacevoli notti [A s noites prazenteiras] de St r a p a r o l l e , em que um amante confia, todos os dias, a um amigo até onde chegou com a amada, sem saber que este amigo é um rival. „L ’école des fem m e s“, diz V o l t a ir e , „foi u m a p eça de

u m gén ero in teiram en te diferente, em que tudo é n arra­

13 T rublet, Josep h : Essais de Littérature et de Morale, T o m e IV, pág. 2 9 5 [N. do A.] „Les deux sujets les plus heureux de Tragédie & de C om éd ie, c ’est le C id & l’Ecole des femmes. Mais l’un et l’autre on t été traités par C orneille e t par M olière, lorsque ces A uteurs n’étoient pas ecore dans toute leur force. Je tiens cette observation de M . de Fontenelle.“'

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ção, mas uma narração tão artística que tudo parece ser acção.,,14 Se a novidade consiste nisto, então está certo que se tenha deixado extinguir este novo género. Mais ou m e­ nos artística, a narração é sempre narração e, no teatro, nós queremos ver acções reais. Mas é, de facto, verdade que tudo na peça é narrado? Que tudo parece ser só ac­ ção? V o ltaire não devia ter voltado a repetir este velho reparo; ou em vez do o transformar num suposto elogio devia, ao menos, ter acrescentado a resposta que o pró­ prio MOLIÈRE lhe dá, e que é bem apropriada. As pró­ prias narrações são, nesta peça, e devido à sua constitui­ ção interna, acção genuína; têm tudo o que é necessário a uma acção cómica; e é um mero jogo de palavras querer, aqui, negar-lhe esta designação.15 Pois os incidentes nar­ rados são menos importantes do que a impressão que es­ tes incidentes provocam no velho enganado, quando este toma conhecimento deles. O ridículo deste velho é o que M o lièr e queria retratar acima de tudo; portanto, é acima de tudo este que temos que ver: como se comporta face ao incidente que o ameaça; e não teríamos visto isto tão

14 Ocumvs Completes de Voltaire, vol. 2 3 , „Vie de M olière, avec de petits som m aires de ses pièces“, pág. 4 0 4 : „L’E cole des fem ­ mes, pièce d’un genre tout nouveau, laquelle, quoique tou te en récits, est m élangée avec tant d’art, que tout paraît être en action.“ [N. da T.] 15 N a crítica de L ’école dcsjemmes, na pessoa de D orante: Les récits euxm êm es y sont des action suivant la constitution du sujet. [N. do A.]

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bem, se o poeta tivesse feito desenrolar perante os nossos olhos o que é narrado e, em vez disso, tivesse feito narrar o que se desenrola perante os nossos olhos. O dissabor que Arnolfo sente, a coacção que exerce sobre si próprio para esconder este dissabor; o tom sardónico que assume, quando crê ter conseguido malograr os progressos de Horácio; a surpresa, a ira muda em que o vemos, quando se apercebe que Horácio, apesar disso, prossegue, com sucesso, o seu objectivo: tudo isto é acção, e acção bem mais cómica do que tudo o que acontece fora de cena. M esm o a narração de Agnese acerca do conhecim ento que travou com Horácio é mais acção do que encontra­ ríamos se tivéssemos visto este conhecimento ser travado no palco. Assim, em vez de dizer de Lécole des feim iies que tudo nela parece ser acção, embora tudo seja narração, creio poder dizer, com mais razão, que tudo nela é acção, em ­ bora tudo pareça ser apenas narração.

Q uinquagésim o quinto fascículo 10 de N ovem b ro de 1 7 6 7

U m a bofetada numa tragédia! Que coisa tão inglesa, tão indecente! Antes dos meus perspicazes leitores zom ­ barem demasiado, peço-lhes que recordem a bofetada em L e C id. A observação que VOLTAIRE fez a este res­ peito é, sob vários pontos de vista, estranha. „Hoje em dia“, diz ele, „não se ousaria dar uma bofetada a um herói. O próprios actores não sabem como actuar nesta

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situação: fazem apenas de conta que a dão. N em sequer na comédia isto é permitido; e este é o único exemplo que temos no palco da tragédia. É crível que seja por esta, entre outras razões, que se intitulou L e C id uma tragicomédia; e, nessa época, quase todas as peças de SCUDÉRI e de B o is r o b e r t eram tragicomédias. Em França, foi-se, durante muito tempo, da opinião que o trágico ininter­ rupto, sem qualquer com binação com elem entos co ­ muns, não era suportável. A própria palavra tragicomédia é muito antiga; P l a u t o utiliza-a para designar o seu A n ­ fitrião, porque, embora a aventura de Sósia seja cómica, Anfitrião está sinceramente desolado.“ 16 O que VOLTAIRE não escreve! Com o ele quer exibir sempre um pouco de erudição, e como falha na maioria das vezes! Não é verdade que a bofetada no C id seja a única no palco da tragédia. Ou VOLTAIRE não conheceu o Essc.x de B a n k s , ou partiu do princípio que o teatro trágico cio seu país era o único digno deste nome. Ambas as asser-

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Oeuvres Complètes de Voltaire, vol. 3 1 , „R em arques sur L e

Cid, T ragéd ie“, pâg. 2 1 9 : „O n ne donnerait pas aujourd’hui un

soufflet sur la jou e d’un héros. Les acteurs m êm es sont très em barassés à donner ce soufflet, ils font le sem blant. C ela n’est plus m êm e souffert dans la com édie, et c ’est le seul exem ple qu’on en ait sur le théâtre tragique. Il est à croire que c’est une des raisons qui firent intituler L e Cid, tragi-comédie. Presque toutes les pièces de Scudéry et de Boisrobert avaient été des tragi-com édies. O n avait cru longtemps en France qu’on ne pouvait supporter le tragique continu sans mélange d’aucune familiarité. Le m o t tragi-comédie est très ancien: Plaute l’emploie pour désigner son Amphitryon, parce que si l’aventure de Sosie est comique, A m phitryon est très sérieu­ sem ent affligé.“ [N. da T.]

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ções revelam ignorância, e a segunda ainda mais arro­ gância do que ignorância. O que acrescenta acerca da designação de tragicomédia está igualmente errado. Tragicomédia designava a ideia de uma acção importante, passada entre pessoas notáveis, com um final divertido; L e C id é uma peça assim, e a bofetada não foi levada em consideração para o caso; pois, apesar desta bofetada, C o r n e i l l e passou a designar a sua peça de tragédia, as­ sim que pôs de parte o preconceito que uma tragédia ti­ nha, necessariamente, de incluir um final trágico. P l a u t o utiliza, de facto, a palavra tragicomédia, mas fá-lo apenas por brincadeira, e não para designar com ela um género dramático específico. Também ninguém nunca lha pediu emprestada neste sentido até que, no século X V I, ocor­ reu aos poetas espanhóis e italianos designar assim algu­ mas das suas monstruosidades.17 Mas mesmo que P l a u t o tivesse designado assim o seu Anfitrião a sério, não teria

17 N ão sei quem utilizou, de facto, este nom e pela primeira v ez; mas um a coisa sei ao ce rto : que não foi G arnier. H edélin disse: „Je ne sçai si Garnier fut le prem ier qui s’en servit, mais il a fait p orter ce titre à sa B radam ante, ce que depuis plusieurs ont imité. (Pratique du Théâtre, livre II, chapitre 10) [N ão sei se foi G ar­ n ier o p rim eiro a servir-se dele, mas dá este título à sua B ra d am en te, o que vários im itaram depois.] E os historiadores do teatro francês deviam ter-se ficado por aqui. Mas tornaram a supo­ sição de H edelm em certeza e felicitaram o seu conterrâneo por esta bela invenção. „Voici la p rem ière T rag i-C o m ed ie, on pour m ieux dire le p rem ier poem e du T h eatre qui a porté ce titre Garnier ne connoissoit pas assez les finesses de l’art qu’il professoit; tenons-lui cependant com pte d’avoir le prem ier, et sans le secours des Anciens, ni de ses contem porains, fait entrevoir une idée, qui n’a pas été mutile à beaucoup d’Auteurs du dernier siecle.“ [Eis a

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sido pelo motivo que V o lta ire lhe imputa. Não porque a participação de Sósia na acção é cómica e a de Anfitrião é trágica; não seria por isso que PLAUTO teria preferido designar a sua peça de tragicomédia. Pois a peça é inteira­ mente cómica, e divertimo-nos tanto com a perplexidade de Anfitrião, como com a de Sósia. Seria antes porque esta acção cómica decorre, na sua maioria, entre pessoas de um estrato mais elevado do que estamos habituados a ver na comédia. O próprio PLAUTO se explica a este res­ peito com suficiente clareza: Faciam ut commixta sit Tragico-comoedia: Nam me perpetuo facere ut sit Comoedia Reges quo veniant et di, non par arbitror. Quid igitur? quoniam hic servus quoque partes habet, Faciam hanc, proinde ut dixi, Tragico-com oediam .18

prim eira tragicom édia ou, para m elhor dizer, o prim eiro poem a teatral com este título - Garnier não era suficientem ente con h ece­ dor das subtilezas da arte que professava; dem os-lhe, contudo, o crédito de ter sido o prim eiro que, sem recorrer aos antigos nem aos seus contem porâneos, fez entrever uma ideia que não foi inútil a muitos autores do século passado.] O B radam ente de Garnier é de 1 5 8 2 e conheço uma quantidade de peças espanholas e italianas anteriores com este título. [N. do A.] 18 Prólogo do Anfitrião: „Vou mas é fazer co m que seja um a com édia com uma pitada de trágico, pois não creio que seja justo fazer uma comédia de fio a pavio, quando entram nela reis e deu­ ses. Pois quê?! Já que há nela, tam bém , u m papel de escravo, vou fazer tal e qual com o disse: um a tragicom édia.“ Aqui na tradução de Carlos A lberto L o u ro Fonseca, in: Plauto: Anfritrião, Lisboa: Edições 70, imp. 1 9 9 6 , pág. 2 6 . [N. da T.]

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Quinquagésimo nono fascículo 2 4 de N ovem bro de 1 7 6 7

[...] Muitos consideram grandioso e trágico mais ou m enos com o a mesm a coisa. Não só muitos leitores, também muitos poetas. Os seus heróis haviam de falar como as outras pessoas? Que heróis seriam estes? A m p u l­ lae et sesquipedalia verba, sentenças, frases empoladas e pala­ vras de com primento descomedido: isto é, para eles, o autêntico tom da tragédia. „ F izem o s tudo o que p u d em os“, diz DiDEROT (re­ pare-se que ele está a falar principalm ente dos seus co n ­ te rrâ n e o s ) „p ara c o r r o m p e r c o m p le ta m e n te o g én e ro d ra m á tico . M an tiv e m o s a rica e m agnífica versificação dos antigos, que é adequada apenas para línguas de quan­ tidades b em definidas e acentos m uito m arcados, apenas para palcos am plos, para um a declam ação transposta em notas e acom panhada p or instrum entos; con tu d o, puse­ m os de parte a sua sim plicidade nas peripécias e no diá­ logo, bem co m o a verdade dos seus quadros .“ 19 Segundo diálogo que se segue a L e Jils naturel. [N. do A.] N esta e nas outras notas de rodapé referentes a esta peça, Lessing reporta-se à sua própria tradução. In Diderot, Denis: Oeuvres com­ plètes, Tom e X , L e drame bourgeois, Ficion II, Édition critique et anotée par Jacques C houillet et A nne-M arie Chouillet, Paris: H erm ann, 1 9 8 0 , „Entretiens sur le fils naturel“, pág. 1 1 7 : „Nous n’avons rien é p a rg n é p o u r c o r r o m p r e le g e n re d ra m a tiq u e . N o u s avon s conservé des Anciens l’emphase de la versification qui convenait tan t à des langues à q uan tité fo rte et à a c ce n t m arq u é, à des théâtres spacieux, à une déclamation notée et accom pagnée d’ins­ trum ents; et nous avons abandonné la simplicité de l’intrigue e du dialogue, et la vérité des tableaux.“ [N. da T.]

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poderia, ainda, ter acrescentado um m o­ tivo por que não podemos tomar inteiramente por m o­ delo a expressão das tragédias antigas. Todas as persona­ gens falam e conversam numa praça aberta, pública, em presença de uma multidão curiosa de povo. T êm , pois, de falar quase sempre com uma certa circunspecção, levando em consideração a sua dignidade; não podem ex­ pressar os seus pensamentos e emoções com as primeiras palavras que lhes ocorrem; têm que as medir e que as es­ colher. Mas nós, os modernos, que eliminámos o coro, que deixamos as nossas personagens a m aior parte do tempo entre as suas quatro paredes, que motivo temos para, apesar disso, as fazermos usar sempre uma lingua­ gem tão digna, tão rebuscada, tão retórica? A elas nin­ guém as ouve, a não ser quem elas permitem que as ou­ çam; com elas ninguém fala, a não ser pessoas implicadas realmente tam bém na acção, que agem, elas próprias, emotivamente, e que não têm vontade nem tempo para controlar as suas expressões. Isto só podia ser conseguido pelo coro que, por m elhor integrado que estivesse na peça, todavia nunca participava na acção e julgava sempre mais as personagens do que simpatizava realmente com elas. Em vão, pois, se alega o estatuto social elevado das personagens. As pessoas distintas aprenderam a exprimir­ -se melhor do que o homem comum, mas não afectam, perm anentem ente, exprim ir-se m elh or do que este. Muito menos no que respeita às paixões; cada uma das quais tem a sua própria eloquência, a única com que a natureza provoca entusiasmo, que não se aprende em es­ cola alguma, e que o menos educado domina tão bem como o mais polido. D id e ro t

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Numa linguagem rebuscada, cara, empolada nunca pode haver emoção. Ela não demonstra qualquer em o­ ção e não pode originá-la. Esta coaduna-se, sim, com as palavras e expressões mais simples, mais comuns, mais banais. [...] Há muito tempo que acredito que a corte não é o lugar onde o poeta pode estudar a natureza. Mas, quando a pompa e a etiqueta transformam os homens em máqui­ nas, a tarefa do poeta é transformar estas máquinas outra vez em seres humanos. As rainhas verdadeiras podem fa­ lar tão rebuscada e afectadamente como quiserem, as suas rainhas têm de falar com naturalidade. Ele que ouça, atentamente, a Hécuba de E u r Í p i d e s ; e que se console se nunca falou com nenhuma rainha. Nada é mais honesto e mais decente do que a sim­ ples natureza. A rudeza e a impudência estão tão longe dela como o rebuscado e o bombástico estão do sublime. O mesmo sentimento que, no primeiro caso, distingue a fronteira registá-la-á também no segundo. O poeta re­ buscado é, pois, infalivelmente também o mais vulgar. Ambos os erros são inseparáveis; e nenhum género dá mais oportunidade de cair nos dois do que a tragédia. Mas li um Essex espanhol que é demasiado extraor­ dinário para que, de passagem, não diga nada sobre ele.

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Sexagésimo fascículo 2 7 de N ovem bro de 1 7 6 7

£ obra de um desconhecido e tem o título: D a r la vida por su D am a [D a r a vida pela sua dama].20 Encontrei-o

numa colecção de comédias que Joseph Padrino deu à estampa em Sevilha, e é a septuagésima quarta peça. Quando foi escrita, não sei; também não vejo nada que possa levar a deduzi-lo aproximadamente. Uma coisa é evidente, que o autor não se serviu dos poetas franceses e ingleses que já se ocuparam deste tem a. E com pleta­ mente original.

Sexagésimo oitavo fascículo 2 5 de D ezem bro de 1 7 6 7

Conhecemos muito mal as obras dramáticas dos es­ panhóis; não sei de uma única que tivesse sido traduzida ou que nos tivesse sido dada a conhecer só em excertos que fosse. Pois a Virgínia de MONTIANO Y LUYANDO é es­ crita em espanhol, mas não é uma peça espanhola: é uma mera tentativa à maneira correcta dos franceses, de acor­ do com as regras, mas gélida. Confesso, de bom grado, que já não penso tão bem dela como devo ter pensado outrora.21 Se a segunda peça do mesmo autor não for m e­ lhor; se os poetas mais recentes desta nação, que querem 2(1 D ar la vida por su Dama, ó el Conde de S ex; de un Ingenia de esta Corte. [N. do A.]

21 Theatralische Bibliothek, primeira peça, pág. 117. [N. do A.]

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entrar por este caminho, não o fizeram de modo mais fe­ liz, que não me levem a mal se continuar a preferir deitar mão aos antigos, L o p e e CALDERON, do que a eles. As verdadeiras peças espanholas são perfeitas à ma­ neira do Essex. Em todas os mesmos erros, e as mesmas belezas: mais ou menos, entenda-se. Os erros saltam à vista: mas, quanto às belezas, podeis interrogar-me. Uma fábula muito singular; peripécias muito engenhosas; mui­ tos, extraordinários e sempre novos golpes de teatro; as situações mais sucintas; em geral, caracteres muito bem delineados e mantidos até ao final; não raramente muita dignidade e força de expressão. Isto são, certamente, belezas; não digo que sejam as mais elevadas; não nego que, em parte, possam facil­ mente ser levadas ao romanesco, aventureiro, pouco na­ tural, visto que, entre os espanhóis, raramente estão isen­ tas deste exagero. Mas tire-se às peças francesas a sua regularidade mecânica, e dizei-me se lhes restam outras que não belezas deste tipo? Que mais têm de bom a não ser equívocos, golpes de teatro e situações? Decência, dir-se-á. Pois é, decência. Todos os seus equívocos são mais decentes, e mais monótonos; todos os seus golpes de teatro são mais decentes, e mais banais; to­ das as suas situações são mais decentes, e mais forçadas. Isto é o que resulta da decência! Mas Cosme, este Hanswurst espanhol, esta com bi­ nação incrível das palhaçadas mais vulgares com a serie­ dade mais solene, esta mistura do cómico com o trágico, que torna o teatro espanhol tão famigerado? Estou longe de defendê-la. Se ela entrasse apenas em conflito com a

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decência - já se sabe que tipo de decência tenho em mente se ela não tivesse outro defeito senão ofender o respeito que os grandes exigem, se colidisse apenas com o modo de vida, a etiqueta, o cerimonial e todas as im ­ posturas com as quais se quer convencer a maioria dos homens que existe um inferior, de muito melhor mate­ rial do que ele, nesse caso a mudança mais insensata do baixo para o elevado, do disparate para o sério, do preto para o branco, ser-me-ia mais bem-vinda do que a fria uniformidade com que o bom tom, o mundo elegante, os modos cortesãos e seja com o for que tantas outras mesquinhices são designadas, me faz adormecer infalivel­ mente. Mas, aqui, há que levar em consideração coisas muito diferentes.

Sexagésimo nono fascículo 2 9 de D ezem bro de 1 7 6 7

Embora L o p e DE V e g a seja considerado o fundador do teatro espanhol, não foi ele quem introduziu este tom híbrido. O povo já estava tão habituado a ele que o poeta teve que o entoar contra vontade. No seu poema didác­ tico sobre a arte de fazer comédias novas, que já citei noutro lugar, lamenta-se bastante disto. Por ver que não era possível obter o aplauso dos seus contem porâneos trabalhando de acordo com as regras e os exemplos dos antigos, procurou, ao menos, pôr limites a este desre­ gramento; esta foi a intenção desse poema. Pensou que por muito rude e bárbaro que fosse o gosto da nação

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havia de ter os seus preceitos; e que seria melhor actuar segundo estes, com uma uniformidade regular, do que sem qualquer regularidade. Peças que não respeitam as regras clássicas podem sempre respeitar outras regras, se querem agradar. Foram, pois, estas regras deduzidas uni­ camente do gosto nacional, que ele quis fixar; assim, a as­ sociação do sério e do ridículo foi a primeira. „Também podeis pôr reis em cena nas nossas com é­ dias“, diz ele. „Ouvi dizer que o nosso sábio monarca (Fi­ lipe II) não aprovou isto, fosse por ver que era contra as regras, ou por achar indigno da dignidade de um rei an­ dar m isturado co m a plebe. Tam bém adm ito, de bom grado, que isto significa voltar à comédia mais antiga que incluía os próprios deuses; com o se pode ver, entre ou­ tros, no Anfitrião de PLA U TO ; e sei bem que P l u t a r c o , ao falar de M e n a n d r o , não louva muito a comédia an­ tiga. Assim, sabe Deus com o m e custa aprovar a nossa m oda. Mas visto que, na Espanha, nos afastámos tanto da arte, os doutos tam bém têm de se calar a este respeito. E bem verdade que o cóm ico se mistura com o trágico, S é n e ca unido a T e r Ê n c io resulta num monstro com o o M inotauro de Pasífae. Mas esta mistura agrada; ninguém quer ver outras peças a não ser as que são m eio sérias, m eio cómicas; a própria natureza nos ensina esta varie­ dade, à qual pede emprestada boa parte da sua beleza.“ 22

22 Eligese el sujeto, y no se m ire, (Perdonen los preceptos) si es de Reyes, Aunque por esto entiendo, que el prudente, Filipo R ey de Espana, Senor nuestro, En viendo un R ey en ellos se enfadava,

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É por causa das últimas palavras que cito esta passa­ gem. Será verdade que a própria natureza nos serve de exemplo para esta mistura do banal com o sublime, do burlesco com o sério, do alegre com o triste? Parece que sim. Mas se é verdade, L o p e DE V eg a fez mais do que o que se propunha fazer, não se limitou a desculpar apenas os defeitos do teatro do seu país, demonstrou, na reali­ dade, que pelo menos este defeito não existe, pois nada que seja uma imitação da natureza pode constituir um erro. ,,Censura-se“, diz um dos nossos mais recentes escri­ tores, „em S h a k espea r e - entre todos os poetas desde H o m e r o , aquele que melhor conheceu os homens, do rei ao m endigo, de Jú lio César a Jo h n Fallstaff, e os O fuesse ele ver, que al arte contradize, O que la autoridad real no deve Andar fingida entre la humilde plebe, Esto es bover à la C om edia antigua, Donde vemos, que Plauto puso Dioses, C om o en su Anfitrion lo m uestrajupiter. Sabe Dios, que m e pesa de aprovarlo, Porque Plutarco hablando de M enandro, N o siente bien que la C om edia antigua, Mas pues dei arte vamos tan rem otos, Y en Espana le hazemos mil agravios, Cierren los D octos esta vez los labios. Lo T ragico, y lo C om ico mezclado, Y T erencio con Seneca, aunque sea, C om o otro M inotauro de Pasife, Haran grave una parte, orta ridicula, Q ue aquesta variedad deleyta m ucho, Buen exem plo nos da naturaleza, Q ue por tal variedad tiene belleza. [N. do A.]

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conheceu a fundo, com uma espécie de intuição inau­ dita, - que as suas peças não seguem um plano ou, se o fazem, é um plano muito imperfeito, irregular e mal ela­ borado; que nelas, o cómico e o trágico se misturam da forma mais insólita e que, muitas vezes, a mesma perso­ nagem que nos fez vir as lágrimas aos olhos com a sua linguagem comovente e natural, poucos momentos de­ pois, com uma reviravolta singular ou uma expressão barroca dos seus sentim entos, em que nada induz ao riso, nos causa uma tal frieza que, em seguida, lhe é difí­ cil levar-nos a recuperar a disposição de espírito com que nos quer ver. Censura-se isto e não se pensa que as suas peças são, por isso mesmo, reproduções naturais cla vida humana. A vida da maior parte das pessoas e (se é que pode­ mos dizê-lo) o próprio currículo dos grandes Estados, na medida em que os consideremos como outros tantos se­ res morais, assemelha-se, em tantos aspectos, aos dramas de pompa e circunstância ao gosto antigo medieval, que quase se poderia pensar que os autores destas últimas eram mais inteligentes do que se costuma pensar e, a não ser que tivessem tido a intenção secreta de ridicularizar a vida humana, queriam, pelo menos, imitar a natureza tão fielm ente quanto os gregos se empenhavam em em be­ lezá-la. Para não falar agora da semelhança ocasional re­ sultante de os papéis principais serem, nestas peças como na vida real, muitas vezes representados pelos piores ac­ tores. O que pode ser mais semelhante do que costumam ser os dois tipos de dramas de pompa e circunstância, no que respeita ao plano, à divisão e disposição das cenas, à

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intriga e à sua evolução? Quantas vezes os autores de um e do outro se interrogam porque fizeram isto ou aquilo assim, e não de outra maneira? Quantas vezes nos sur­ preendem com acontecimentos para os quais não estáva­ mos m inim am ente preparados? Quantas vezes vemos personagens surgirem e retirarem-se outra vez, sem que se entenda porque surgiram ou porque desapareceram? Quanto não fica entregue ao acaso em ambas? Quantas vezes vemos os maiores efeitos resultarem das causas mais insignificantes? Quantas vezes o assunto mais sério e importante é tratado de modo superficial, e o insignifi­ cante com uma gravidade ridícula? E finalmente, quando em ambos tudo é tão lamentavelmente confuso e ema­ ranhado que se com eça a desesperar da possibilidade duma evolução, que felizes não nos sentimos ao ver o nó górdio não desatado, mas cortado por um deus saído de repente das nuvens de cartão, entre raios e trovões, o que tem como resultado que a peça chega, de um modo ou de outro, ao fim e os espectadores podem aplaudir ou as­ sobiar, como querem - ou como podem. Aliás, sabe-se como, nas tragédias cómicas de que estamos a falar, é im ­ portante a personagem do Hanswurst, o honrado bufão, que parece querer manter-se no teatro da capital do im ­ pério alem ão, possivelm ente com o um m onu m en to eterno ao gosto dos nossos antepassados. Quisesse Deus que esta personagem apenas surgisse no teatro! Mas quantas grandes cenas não vimos representadas no palco do mundo, e em todas épocas, com Hanswurst ou, o que ainda é um pouco pior, por Hanswurst? Quantas vezes os maiores homens, nascidos para serem os génios protecto-

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res de um trono, os benfeitores de épocas e povos intei­ ros, não foram obrigados a ver toda a sua sabedoria e co­ ragem falhar devido a uma pequena partida chistosa de Hanswurst ou de alguém parecido com ele, que, embora não usando o seu gibão e as suas calças amarelas, tinha, certamente, todo o seu carácter? Quantas vezes, nos dois tipos de tragicomédia, as próprias complicações surgem apenas porqu e H answ urst, com qualquer partidinha parva e velhaca de sua autoria, estraga o jog o das pessoas sensatas, antes que estas tenham tempo de se precaver?“ Se nestas comparações do grande com o pequeno, da farsa original com a mimética, heróica ... - (que copiei, com prazer, de uma obra que é, incontestavelmente, uma das melhores do nosso século, mas que parece ter sido es­ crita cedo demais para o público alemão. Em França e em Inglaterra, teria causado a maior sensação; o nome do autor seria muito falado. Mas entre nós? Tem o-lo e basta. Entre nós, as pessoas importantes começam a aprender p or m astigar autores anónim os; e o sumo de um ro­ mance francês é, sem dúvida, mais doce e fácil de digerir. Quando os dentes ficarem mais aguçados e os estômagos mais fortes, quando tiverem aprendido alemão, também um dia descobrirão o Agathon,23 É esta a obra de que es­ tou a falar, acerca da qual prefiro dizer como a admiro, talvez não no lugar mais adequado mas, de preferência antes aqui do que em parte alguma; uma vez que me dou conta, com a maior surpresa, do silêncio profundo que os nossos críticos observam a seu respeito, ou do tom frio e 23 Segunda parte, pág. 192. [N. do A.]

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indiferente com que falam dela. É o primeiro e o único romance para cabeças pensantes de gosto clássico. R o­ mance? Queremos dar-lhe este título apenas porque tal­ vez assim encontre mais alguns leitores. Os poucos que possa perder por isso, esses não contam.)

Septuagésimo fascículo 1 de Janeiro de 1 7 6 8

Se, como ia dizendo, nesta comparação a disposição satírica não sobressaísse tanto, poder-se-ia considerá-la como o melhor escrito em defesa do drama cómico trá­ gico, ou trágico cómico, (do drama misto, como vi, uma vez, escrito num título qualquer), como a melhor expla­ nação do pensamento de L o p e DE V e g a . Mas, ao mesmo tempo, seria também a refutação deste. Pois mostraria que precisamente o exemplo da natureza, que deve ju sti­ ficar a ligação do sério solene com a alegria da farsa, pode justificar tam bém qualquer monstruosidade dramática sem plano, nem coesão, nem entendimento humano. A imitação da natureza não deveria, pois, ser um princípio da arte; ou, se continuasse a sê-lo, por esta própria razão, a arte deixaria de ser arte; pelo menos, deixaria de ser uma arte sublime, passaria a ser, por exemplo, com o a arte de imitar no gesso os veios coloridos do mármore; a sua evolução e o seu curso podem resultar como o autor quiser, o invulgar não pode ser tão invulgar que não possa parecer natural; não o parece, única e exclusiva­ mente, o que revela demasiada simetria, demasiada har­ monia e proporção, demasiado daquilo que, em qualquer 105

outra arte, constitui a arte; neste sentido, o artificial é, neste caso, o pior, e o mais ousado é o melhor. Com o crítico, o nosso autor poderia falar de modo muito diferente. O que parece apoiar, aqui, de modo tão engenhoso, condenaria, indubitavelm ente, com o uma monstruosidade resultante do mau gosto, pelo menos como as primeiras tentativas de imaginar a arte a renascer no seio de povos rudes, para cuja forma contribuiu uma concorrência de determinadas influências externas, ou o acaso com o maior quinhão; a razão e a reflexão, porém, com o menor ou até mesmo sem quinhão algum. Dificil­ mente diria que os primeiros autores dos dramas mistos (uma vez que o termo aí está, porque não hei-de utilizá­ -lo?) „queriam imitar a natureza tão fielmente quanto os gregos se esforçavam por embelezá-la“. As palavras fielmente e embelezar aplicadas à imita­ ção e à natureza como objecto da imitação estão sujeitas a muitas interpretações erradas. Há pessoas que não que­ rem saber da existência de uma natureza que se possa imitar demasiado fielmente; mesmo o que nos desagrada na natureza agrada-nos na imitação fiel, em virtude da imitação. Outras há que consideram o embelezamento da natureza uma extravagância; uma natureza que queira ser mais bela do que a natureza não é, por isso mesmo, natureza. Ambas se reclamam como admiradoras da ver­ dadeira natureza, tal como ela é: as primeiras não encon­ tram nela nada que se deva evitar, as segundas nada a acrescentar. As primeiras teria, necessariamente, que agra­ dar o drama misto medieval, tal como as segundas teriam dificuldade em apreciar as obras primas dos antigos. 106

Mas se isto não fosse assim? Se os primeiros, embora grandes admiradores da natureza mais trivial e com um , se pronunciassem, contudo, contra a mistura do burlesco com o interessante? Se os segundos, por m uito m ons­ truoso que achem tudo o que quer ser m elhor e mais belo do que a natureza, percorressem, porém, todo o tea­ tro grego sem a menor relutância? C om o explicaríamos esta contradição? Teríamos, necessariamente, de voltar ao princípio e de revogar o que afirmámos, em primeiro lugar, dos dois géneros. Mas como revogar, sem nos enredarmos em no­ vas dificuldades? A comparação de um destes dramas de pompa e circunstância, cuja qualidade discutimos, com a vida humana, com o andar comum do mundo, está tão certa! Quero esboçar alguns pensamentos que, embora não sendo suficientemente minuciosos, poderão dar origem a outros mais profundos. A ideia principal é a seguinte: é verdade e, ao mesmo tempo, não é verdade que a tragé­ dia cómica, uma invenção medieval, imita fielm ente a natureza; imita só uma metade, negligenciando inteira­ mente a outra metade; imita a natureza dos fenómenos, sem se ocupar minimamente da natureza dos nossos sen­ timentos e forças da alma. Na natureza tudo está ligado entre si, tudo se entre cruza, tudo se permuta, tudo se transforma reciproca­ mente. Mas, devido a esta infinita variedade, é apenas um espectáculo para um espírito infinito. Para permitir a es­ píritos finitos que participem deste prazer, estes deveriam adquirir a capacidade de lhe impor fronteiras que ela não 107

tem: a capacidade de isolar e de poder concentrar a sua atenção conforme lhes agradasse. Exercitamos esta capacidade em todos os momentos da vida; sem ela, não existiria, para nós, vida nenhuma; não sentiríamos nada, com o excesso de sensações; sería­ mos presa constante da impressão momentânea; sonha­ ríamos, sem saber o que estávamos a sonhar. A finalidade da arte é elevar-nos ao reino do belo desta separação, facilitar-nos fixar a atenção. Tudo o que, em pensamento, isolamos ou desejamos isolar de um ob­ je cto na natureza, ou de um agrupamento de diversos ob­ jectos, seja no tempo ou no espaço, separa-se de facto e propicia-nos, assim, este objecto ou este agrupamento de diversos objectos mais clara e convincentemente do que a sensação que estes deviam provocar jamais permitiria. Quando somos testemunhas de um acontecimento im portante e com ovente, e outro insignificante se lhe atravessa de permeio, procuramos, tanto quanto possível, evitar a distracção que este nos causa. Abstraímos dele e, necessariam ente, repugnar-nos-á reencontrar na arte o que desejamos fazer desaparecer da natureza. Só quando a evolução do mesmo acontecimento se reveste de todos os matizes do interesse, sem que um se siga apenas ao outro, mas antes que um resulte neces­ sariamente do outro, quando a seriedade provoca tão di­ rectamente o riso, a tristeza a alegria, ou vice-versa, que o abstrair de um ou do outro se torna impossível, só então não exigimos o mesmo da arte, e a arte sabe tirar partido desta impossibilidade. [-] 108

Septuagésimo terceiro fascículo 12 de Janeiro de 1 7 6 8

[...] Na quadragésima oitava noite (quarta-feira, 2 2 de Julho), foi levada à cena a tragédia do Senhor WEISS, R i­ chard der Dritte [Ricardo III],

Esta peça é, incontestavelmente, um dos seus mais importantes originais; fértil em grandes belezas, que re­ velam modestamente que evitar os erros a que estão liga­ das não estaria, minimamente, acima das forças do poeta, se ele próprio tivesse confiado nessas forças. Já S h a k espea r e tinha posto em cena a vida e a morte de Ricardo III; mas o Senhor W eiss só se lembrou disso quando a sua obra já estava pronta. „Se hei-de perder muito com a comparação“, diz ele, „pelo menos ver-se-á que não cometi plágio; contudo, talvez tivesse tido m é­ rito plagiar S h a k espea r e .“ Isto pressupondo que se poderia plagiá-lo. Mas o que já foi dito de H o m e r o , que era mais fácil tirar a H ér­ cules a sua clava do àquele um verso, também se pode perfeitamente aplicar a S h a k espea r e . A menor das suas belezas tem im pressa uma m arca que grita logo ao mundo inteiro: eu sou S h a k e s p e a r e ! E ai da beleza estra­ nha que tenha coragem para se colocar a seu lado! S h a k espea r e é para ser estudado, não posto a saque. Se tem os génio, então S h a k espea r e tem de ser, para nós, o que a câm ara obscura é para o p in to r paisagista: que olhe aplicadam ente para dentro dela, para aprender co m o a natureza se projecta sem pre num a superfície; m as que não lhe peça nada em prestado.

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Também não conheço uma única cena, em todas as peças de S h a k e s p e a r e , nem sequer uma única tirada que o Senhor W eiss pudesse ter utilizado como lá está. Em S h a k e s p e a r e , todas as partes, mesm o as m enores, são traçadas pela grande medida do drama histórico, e este está para a tragédia ao gosto francês mais ou m enos com o um vasto fresco está para uma miniatura destinada a um anel. Que mais se pode tirar deste para aquele, se­ não um rosto, uma figura única, no m áxim o um p e­ queno grupo, que deverá ser então integrado num todo próprio? D o m esm o m odo, pensam entos isolados em S h a k e s p e a r e deveriam tornar-se cenas completas, e ce­ nas individuais tornar-se actos inteiros. Pois quando se quer aproveitar bem as mangas do fato de um gigante para um anão não tem de se fazer delas outra vez uma manga, mas antes um fato inteiro. Porém, mesm o que se faça isto, pode-se ficar des­ cansado quanto à acusação de plágio. A maioria não reco­ nhecerá, no fio, a lã de que ele é tecido. Os poucos que com preendem a arte não atraiçoam o mestre, e sabem que um grão de ouro pode ser trabalhado tão artistica­ mente que o valor da forma supera, de longe, o valor da matéria. Pela parte que me toca, lamento sinceramente que o nosso poeta tenha tomado conhecimento de SHAKESPEARE tão tarde. Podia tê-lo já conhecido e continuar a ser tão original como é agora; podia tê-lo utilizado, sem que um único pensamento transmitido o testemunhasse.

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Septuagésimo quarto fascículo 15 de Janeiro de 1 7 6 8

[...] E, sobretudo, no que respeita ao carácter de Ricardo, que gostaria de uma explicação do poeta. A r is t ó t e l e s tê -lo -ia , p u ra e sim p lesm en te, re je i­ tad o; b em q ueria, b re v e m e n te , p ô r fim ao assunto do prestígio de A r is t ó t e l e s , se soubesse co m o fazê-lo co m os seus próprios argum entos.

A tragédia, supõe ele, deve provocar compaixão e susto: daí conclui que o herói da mesma não pode ser um homem nem muito virtuoso, nem um perfeito vilão. Pois nem com a infelicidade de um nem do outro se con­ segue atingir este objectivo. Se admito isto, Ricardo III é uma tragédia que falha o seu objectivo. Se não admito, já não sei o que e uma tra­ gédia. Pois Ricardo III, tal como o Senhor W eiss o descre­ veu, é, indiscutivelmente, o maior e mais repulsivo vilão que jamais pisou o palco. Digo: o palco, que seja o que jamais pisou a terra, duvido. Que compaixão pode o declínio deste monstro pro­ vocar? Todavia, também não o deve fazer; não foi essa a intenção do poeta; há outras personagens na sua obra que ele fez objecto da nossa compaixão. Mas susto? Será que este vilão que enche o abismo que se abre entre ele e o trono com os cadáveres dos que deveriam ser o que de mais amado tinha no mundo; será que este demónio sanguinário, que se gaba da sua cruel-

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dade, que se regozija dos seus crimes, não causa susto na verdadeira acepção da palavra? D e facto, causa susto; se por susto entendermos o espanto por crim es incom preensíveis, o horror pelas crueldades que ultrapassam o nosso entendimento; se por tal entendermos o arrepio que nos acomete quando assis­ timos a crueldades cometidas intencionalm ente e com prazer. Deste tipo de susto, Ricardo III fez-m e sentir um bom bocado. Mas este susto representa tão pouco uma das inten­ ções da tragédia que os poetas da Antiguidade tentavam, de todos os modos possíveis, mitigá-lo, quando as suas personagens tinham de cometer um crime grave. Muitas vezes, atribuíam a culpa ao destino, preferiam transfor­ mar o crime numa fatalidade provocada por uma divin­ dade vingativa, preferiam transformar seres livres em má­ quinas, a deixar que nos detivéssemos na ideia horrível que o ser humano seria, por natureza, capaz de uma tal depravação. Entre os franceses, C r é b il l o n tem o cognome de terrível. Receio bem que seja mais deste susto, que não de­ veria existir na tragédia, do que do verdadeiro, que o filó­ sofo considera como fazendo parte da essência da tragédia. E a este não se lhe deveria ter chamado susto. A pa­ lavra que A r is t ó t e l e s usa é temor: compaixão e temor, diz ele, é o que a tragédia deve suscitar, não compaixão e susto. E verdade que o susto é um género de temor; é um tem or súbito, de surpresa. Mas precisamente este im ­ previsto, esta surpresa, que o conceito implica, mostra, claram en te, que aqueles que introduziram a palavra susto, em vez de tem or, não com preenderam o que

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entendia por temor. Não quero voltar tão depressa a este assunto; seja-me, pois, permitida uma pe­ quena digressão. ,,A compaixão“, diz A r i s t ó t e l e s , „exige alguém que sofre sem o merecer, e o temor alguém como nós. O vi­ lão não é uma coisa nem outra, por conseguinte, também a sua infelicidade não pode suscitar nem a primeira, nem o segundo.“24 Este temor, digo eu, chamam os novos intérpretes e tradutores de susto, e conseguem, com o auxílio desta troca de palavra, provocar a controvérsia mais estranha do mundo com o filósofo. „Não foi possível“, diz um da multidão,25 “chegar a um consenso acerca da explicação do susto; e, de facto, seja como for que o consideremos, ele tem sempre um elemento a mais, que o impede de ter carácter geral e o limita demais. Se A r i s t ó t e l e s entendeu pela observação „como nós“ apenas a semelhança da humanidade, visto que tanto o espectador como a personagem que actua são ambos seres humanos, mesmo que o seu carácter, a sua dignidade e a sua posição social estejam a uma distância infinita uma da outra, então esta observação foi supér­ flua, pois era evidente. Se, contudo, era de opinião que só pessoas virtuosas ou que tenham um defeito desculpável, podem suscitar susto, então não estava certo, pois a razão A ris tó te le s

24 N o 13." capítulo da Poética. [N. do A.] 2:1 O Senhor S. no prefácio ao seu Komisches Theater [O teatro cómico], pág. 3 5 . [N . do A.] T rata-se da obra de C hristian Ernst Schenk: Komisches Theater, publicada anonim am ente em Breslau, em 1759. [N. da T.]

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e a experiência contradizem-no. O susto nasce, incontes­ tavelmente, de um sentimento de humanidade, pois que todo o ser humano está sujeito a ele e, graças a este senti­ mento, todo o ser humano se comove com a sorte ad­ versa que atinge outro ser humano. E possível que possa ocorrer a alguém negar que isto lhe aconteça, só que isto seria, seguramente, a negação dos seus sentimentos natu­ rais e, portanto, pura bravata, resultante de princípios corruptos e não uma objecção. Assim, quando a sorte adversa atinge inesperadam ente um indivíduo depra­ vado, a quem dedicamos, no momento, a nossa atenção, perdemos de vista a depravação e vemos apenas o ser hu­ m ano. O espectáculo do sofrim ento humano, seja ele qual for, entristece-nos, e a triste emoção repentina, que sentimos então, é o susto.“ C erto; mas não no sítio correcto! Pois em que con­ tradiz isto A r i s t ó t e l e s ? Em nada. A r i s t ó t e l e s não está a pensar neste tipo de susto quando fala do temor que a infelicidade do nossos semelhante nos pode causar. Este susto que nos acom ete quando contem plam os, de re­ pente, um sofrimento iminente, que irá atingir outrem, é um susto compassivo e, portanto, já incluído na compai­ xão. Aristóteles não teria falado de compaixão e temor, se tivesse entendido por tem or uma mera modificação da compaixão. ,,A compaixão“, diz o autor das cartas sobre as em o­ ções26, ,,é uma emoção mista, composta do amor por um 26 E scrito s filosóficos do S en h or M oses M en delssoh n, se­ gunda p arte, pág. 4 . [N . do A.] M oses M endelsohns Philosophische Schriften. Z w eyter Theil. C arlsruhe: im Verlag der Schm iederische

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objecto e da aversão pela sua infelicidade. As com oções, pelas quais a compaixão se dá a conhecer, distinguem-se tanto dos m eros sintomas do am or com o da aversão, porque a compaixão é um fenóm eno. Mas com o este fenóm eno pode ser variado! A ltere-se, na infelicidade que se lamenta, apenas o elemento do tempo: a compai­ xão dar-se-á a conhecer através de características muito diferentes. Com Electra, que chora sobre a urna do ir­ mão, sentimos um desgosto compassivo, pois ela con­ sidera a infelicidade como consumada, e lamenta a perda sofrida. O que sentimos com a dor de Filoctetes é tam­ bém compaixão, mas de uma natureza muito diferente, pois que o martírio que este homem virtuoso tem de su­ portar é presente, e acom ete-o aos nossos olhos. Quando, porém, Edipo fica aterrorizado, ao ver o grande segredo desvendado repentinamente; quando M onim e se assusta, por ver o cium ento M itridates em palidecer; quando a virtuosa D esdém ona sente m edo, por o seu O telo , habitualm ente tão carinhoso, falar am eaçadoram ente com ela: o que sentim os então? É ainda com paixão! Mas um horror com passivo, um tem or com passivo, um susto compassivo! As comoções são diferentes, ape­ nas a essência das em oções é, em todos estes casos, a mesma. Visto que, estando todo o amor associado à dis­ posição para nos pormos no lugar do ser amado, temos de partilhar com a pessoa amada todos os tipos de sofri­ m ento, o que se designa, m uito expressivam ente, cie Buchhandlung, (1 7 6 1 ) I. Rhapsodie, oder zu den Briefen über die Empfindungen [Rapsódia, ou acerca das cartas sobre as em oções], citação págs. 2 9 a 3 2 . [N. da T.]

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com paixão. Porque não haveria, pois, a compaixão de nascer do medo, do susto, da ira, do ciúme, da vingança e, em geral, de todos os tipos de emoções negativas, sem excluir m esm o a inveja? Daqui se depreende com o a maioria dos críticos é inepta ao dividir as paixões trágicas em susto e compaixão. Susto e compaixão! Então o susto teatral não é compaixão? Por quem tem e o espectador quando M érope levanta o punhal contra o próprio filho, senão por Egisto, cuja salvação desejamos tanto, e pela rainha enganada, que o considera o assassino de seu fi­ lho? Se, todavia, quisermos chamar compaixão apenas à aversão pela infelicidade actual de outrem , tem os de diferenciar não só o susto, como todas as outras paixões que nos são com unicadas por outrem , da verdadeira compaixão.“

Septuagésimo oitavo fascículo 2 9 de Jan eiro de 1 7 6 8

[...] Quando ARISTÓTELES afirma que a tragédia sus­ cita compaixão e temor para purificar da compaixão e do temor, quem não vê que isto diz muito mais do que D aCIER achou por bem explicar? Pois, segundo as várias com binações possíveis dos conceitos que aqui surgem, quem quiser esgotar o sentido de A r is t ó t e l e s deve mostrar, passo por passo, I o com o a compaixão trágica pode purificar a nossa compaixão, 2 o o tem or trágico, o nosso temor, 3o a compaixão trágica, o nosso temor, e 4° o tem or trágico, a nossa compaixão, e de facto os purificam. 116

D a c ie r , porém, apenas discorreu sobre o terceiro ponto, muito mal, e mesmo assim apenas explicou metade. Pois quem se esforçar por formar uma ideia correcta e inte­ gral da purificação aristotélica das paixões descobrirá que cada um destes quatro pontos abrange um duplo caso. Uma vez que, para me exprimir brevemente, esta purifi­ cação não se baseia senão na transformação das paixões em práticas virtuosas, e que, segundo o nosso filósofo, cada paixão tem dois extremos, entre os quais se encontra em equilíbrio, a tragédia, para conseguir transformar a nossa compaixão em virtude, deve ser capaz de nos puri­ ficar dos dois extremos da compaixão; o mesmo se en­ tende para o temor. A compaixão trágica não tem apenas que purificar, no que respeita à compaixão, a alma de quem sente demasiada com paixão, mas tam bém a de quem a sente de menos. O temor trágico não tem apenas de purificar, no que respeita ao temor, a alma de quem não receia minimamente qualquer tipo de infelicidade, mas também a de quem qualquer infelicidade, mesmo a mais remota, mesmo a mais improvável, enche de medo. D o mesmo modo, a compaixão trágica deve, no que res­ peita ao temor, impedir o que é demais e o que é de m e­ nos, tal com o o temor, por seu lado, no que respeita à compaixão. [...]

Septuagésimo nono fascículo 2 de Fevereiro de 1 7 6 8

Voltemos ao nosso Ricardo. Ricardo suscita, p or­ tanto, tampouco susto como compaixão: nem susto no 117

sentido errado da surpresa repentina da compaixão, nem no verdadeiro sentido de A r is t ó t e l e s , de temor salutar que uma infelicidade sem elhante nos pudesse atingir. Pois se suscitasse este, suscitaria também compaixão; tão certam ente com o, por seu lado, suscitaria temor, se o considerássemos m inim am ente digno da nossa compai­ xão. Mas é um sujeito tão abjecto, um demónio tão inve­ terado, em que não descobrimos um único traço que se nos assemelhe, que creio que poderíamos vê-lo subme­ tido às torturas do inferno, sem nada sentirmos por ele, sem recear absolutamente nada que, se um tal castigo re­ sulta de tais crimes, ele também nos esperaria. E afinal, qual é a infelicidade que o acomete, o castigo que lhe é infligido? Depois de tantas vilanias a que temos de assis­ tir, ouvimos dizer que morreú de espada na mão. Quan­ do a rainha narra isto, o poeta põe-lhe as seguintes pala­ vras na boca: „Isto é algo!“ Nunca me consegui impedir de dizer para comigo: não, isto não é nada! Quantos bons reis não morreram as­ sim, querendo defender a coroa de um poderoso rebelde? Ricardo morre com o um homem , no campo da honra. E uma m orte assim deveria compensar-me da indignação que senti, durante toda a peça, pelo triunfo das suas vila­ nias? (Creio que a língua grega é a única que tem uma palavra própria para designar esta repulsa pela felicidade de um vilão: v£ ctlç, i'e|ieam'.27) A sua própria morte, que deveria satisfazer, ao menos, o meu amor pela justiça,

27 Aristóteles, Retórica, lib. II, cap. 9. [N. do A.]

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alimenta a minha nemesis. Escapaste com pouco, penso, mas ainda bem que há outra justiça para além da poética! D ir -se-á talvez: chega! Ponhamos Ricardo de parte; a peça tem o nome dele, mas não é por isso que ele é o he­ rói da mesma; não é ele a personagem que leva à con­ cretização da intenção da tragédia; ele apenas serve de meio para suscitar a nossa compaixão por outras persona­ gens. A rainha, Elisabeth, os príncipes, será que eles não suscitam compaixão? Para evitar uma controvérsia acerca de palavras: sim. Mas que emoção estranha, desagradável, se mistura à m i­ nha compaixão por estas personagens? Que faz com que eu desejasse poupar-me esta compaixão? Não é isto que costumo desejar ao sentir a compaixão trágica; tenho pra­ zer em deter-me nela; e agradeço ao poeta um tormento tão doce. A r i s t ó t e l e s bem o disse, e isso é bem certo! Fala de Hiapoy, da aversão que suscita a infelicidade de uma per­ sonagem muito boa, muito inocente. Não são a rainha, Elisabeth, os príncipes, exemplos perfeitos de persona­ gens assim? Que fizeram eles para incorrerm assim na desgraça de se encontrarem nas garras deste m onstro? Que culpa têm de ter um direito mais forte ao trono do que ele? Sobretudo as lastimosas vítimas infantis, que mal podem ainda distinguir à direita ou à esquerda! Q uem negará que merecem todas as nossas lamentações? Mas toda esta desolação, que me leva a pensar, com horror, nos destinos dos seres humanos, a que se vem juntar um resmoneio de protesto contra a Providência, e atrás da qual se arrasta, à distância, o desespero, será esta desola119

ção, - já não quero perguntar compaixão, chame-se-lhe com o se quiser, - mas será isto que uma arte mimética deve suscitar? [...] Porquê este sentimento triste? Para nos ensinar a submissão? Esta, só a fria razão nos pode ensinar; e quando o ensinamento da razão deve ficar retido em nós, quando nós, apesar da submissão, ainda devemos manter a confiança e a coragem resoluta, é altamente necessário que nos façam recordar tão pouco quanto possível os exemplos desconcertantes destas terríveis e imerecidas fa­ talidades. Fora do palco com elas! Fora, se fosse possível, de todos os livros! Mas, se as personagens de Ricardo III não têm uma única das características necessárias que deveriam ter, se ele fosse realmente o que o nome indica, porque se tor­ nou, apesar disso, uma peça tão interessante com o o nosso público acha que é? Se não suscita compaixão e te­ mor, qual é, então, o seu efeito? Algum efeito ela deve exercer, e exerce-o. E se tem efeito, não será indiferente que seja este ou outro qualquer? Se os espectadores se ocupam dela, se os distrai, que mais se quer? Será que eles devem, necessáriamente ser ocupados e distraídos apenas segundo as regras de ARISTÓTELES? Isto não parece tão errado com o isso, mas há que dar-lhe resposta. Vejamos: mesmo que Ricardo não fosse uma tragédia, trata-se, seja como for, de um poema dra­ mático; se lhe faltassem as belezas da tragédia, poderia ter outras belezas. Poesia da expressão; imagens; tiradas; opi­ niões ousadas; um diálogo entusiástico, arrebatador; oportunidades felizes para o actor dar largas a toda a

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extensão da sua voz, nas mais diversas variações, mostrar toda a sua força de expressão na pantomima, etc. Destas belezas tem Ricardo m uitas, e tem outras ainda, que estão mais próximas das verdadeiras belezas da tragédia. Ricardo é um vilão repulsivo, mas o ocupar-nos do que nos repele não deixa de causar um certo prazer, es­ pecialmente quando se trata de imitação. A monstruosidade do crime participa tam bém das emoções que suscitam em nós grandeza e ousadia. Tudo o que Ricardo faz é uma barbaridade, mas to­ das estas barbaridades acontecem com uma intenção de­ finida; Ricardo tem um plano e, sempre que nos aperce­ bemos da existência de um plano, a nossa curiosidade é estimulada; aguardamos com todo o gosto, para ver se irá ser concretizado e como o será; apreciamos tanto a eficá­ cia que ela nos dá prazer, independentemente da morali­ dade do seu objectivo. Queremos que Ricardo atinja o seu objectivo e que­ remos tam bém que não o atinja. O facto de o atingir poupa-nos o desagrado pelos meios aplicados em vão; se não o atinge, muito sangue foi derramado inteiramente em vão; uma vez que foi derramado, não queremos que o tenha sido por m ero passatempo. Por outro lado, o atingir deste objectivo seria o triunfo da maldade; não há nada que gostemos menos de ouvir; o objectivo inte­ ressava-nos, enquanto objectivo a atingir; se tivesse sido atingido, não veríamos senão o lado repelente do mesmo, desejaríamos que não tivesse sido atingido; prevemos este desejo e estremecemos de pensar que possa ser satisfeito.

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Apreciamos as personagens boas da peça: uma mãe tão meiga e arrebatada, irmãos que vivem tanto uns para os outros; estes assuntos agradam sempre, suscitam sem­ pre as emoções mais suaves e simpáticas, encontremo-las onde as encontrarmos. Vê-las sofrer inteiramente ino­ centes é duro, não é um sentimento especialmente bené­ fico para o nosso sossego, para melhorar o nosso carácter, mas, seja como for, sempre é um sentimento. E assim a peça ocupa-nos de facto, e dá-nos prazer por nos ocuparmos com estas forças da alma. Isto é ver­ dade, só a consequência que pensamos poder tirar daqui não é verdadeira: nomeadamente, que podemos ficar sa­ tisfeitos com isto.

O ctogésim o fascículo 5 de Fevereiro de 1 7 6 8

Para quê o trabalho perfeito da form a dramática? Para quê construir um teatro, mascarar homens e mulhe­ res, m artirizar a m em ória, convidar a cidade inteira a comparecer num local se, com a minha obra e a sua re­ presentação, não quero provocar mais do que algumas das em oções que uma boa narrativa, lida por qualquer um em sua casa, no seu canto, também poderia mais ou menos suscitar. O género dramático é o único com que se pode sus­ citar compaixão e temor; pelo menos, mais nenhum ou­ tro género suscita estas paixões em tão alto grau e, apesar

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disso, prefere-se utilizá-lo para qualquer outro efeito do que aquele para que é tão excepcionalmente adequado. O público contenta-se. Isto é bom por um lado, e também não o é. Pois que não se tem grande apetite pe­ los manjares com que temos de nos contentar sempre. Sabe-se como os povos grego e o romano ansiavam pelos espectáculos, sobretudo pelos trágicos. Pelo contrá­ rio, como o nosso povo é indiferente, é frio em relação ao teatro! Donde vem esta diferença: que os gregos se sentiam tão entusiasmados com o seu teatro, com senti­ m entos tão fortes, tão excepcionais, que mal podiam aguardar o m om ento de vê-lo outra e outra vez, en­ quanto nós, ao invés, tem os impressões tão fracas do nosso teatro que raramente achamos que vale a pena gastar tempo e dinheiro para no-las proporcionarmos? Vamos, quase todos, por curiosidade, por moda, por té­ dio, por razões sociais, por vontade de ver e ser visto, e só poucos, e estes poucos só moderadamente, com outra intenção. Digo nós, o nosso povo, o nosso teatro, mas não quero dizer apenas nós, alemães. Nós, alemães, reconhe­ cemos, de bom grado, que ainda não temos um teatro próprio. O que muitos dos nossos críticos, que juntam a sua voz a esta opinião e são grandes admiradores do tea­ tro francês, pensam a este respeito, não posso sabê-lo. Mas sei bem o que eu penso. Penso que não somos só nós, os alemães, mas que também aqueles que se gabam de ter um teatro próprio há mais de cem anos, que se ga­ bam de ter o melhor teatro de toda a Europa, que tam­ bém os franceses ainda não têm um teatro próprio. 123

U m teatro trágico, decerto que não! Pois as impres­ sões que a tragédia francesa suscita são tão superficiais, tão frias! Ouçamos um francês falar delas. ,,A par das belezas manifestas do nosso teatro“, diz V o lta ir e , ,,revelou-se um erro escondido, em que não se tinha reparado, porque o público não podia, por si próprio, ter ideias mais elevadas do que as que os gran­ des mestres lhe ensinavam através dos seus exemplos. SAINT-ÉVREMOND foi o único que chamou a atenção para este erro; ele diz, nomeadamente, que as nossas pe­ ças não causavam uma impressão suficientemente forte, que o que devia suscitar a compaixão, suscitava, quando muito, ternura, que a emoção tinha ocupado o lugar da surpresa, e a admiração o lugar do susto; numa palavra, que as nossas emoções não eram suficientemente profun­ das. Não há que negar: SAINT-ÉVREMOND pôs o dedo na ferida secreta do teatro francês. Diga-se, no entanto, que Sa in t -É v r e m o n d é o autor da deplorável comédia Sir Politik Wouldbe [O suposto político] e de mais outra, igual­ mente deplorável, chamada Opéra [Opera]; que os seus curtos poemas de sociedade são o pior que temos neste género; que ele não foi mais do que um tagarela; mas pode ser-se destituído de uma centelha de génio que seja e ter, ao mesmo tempo, muito espírito e bom gosto. O seu gosto era indiscutivelmente muito fino, uma vez que acertou tão bem no motivo por que a maioria das nossas peças são tão enfadonhas e frias. Faltou-nos sem­ pre um certo grau de calor: de resto, tínhamos tudo.“ Isto é, tínhamos tudo, menos o que devíamos ter; as nossas tragédias eram excelentes, só que não eram tragé­ dias. E porque é que não o eram? 124

„Esta frieza, porém,“ continua, „este enfado teve a sua origem, em parte, no espírito tacanho da galanteria que, à época, tanto dominava os nossos cortesãos e as da­ mas, e que transformou a tragédia numa sucessão de con­ versas apaixonadas, ao gosto de Cyrus [C/ro] e Clélie [Clélia], As peças que constituíam uma excepção consis­ tiam em longos arrazoados políticos, que tornaram Sertorius uma peça tão ruim, Othon tão fria, e Surena e Attila tão deploráveis. Mas ainda havia outro motivo que bania o patético elevado da nossa cena, e impedia que a acção fosse realmente trágica: o teatro acanhado, cheio de mes­ quinhos ornamentos. Que se podia fazer sobre meia dú­ zia de tábuas, ainda por cima cheias de espectadores? Com que pompa, com que adereços se poderia lá aliciar, prender, iludir o olhar do espectador? Que grande acção trágica poderia lá ser representada? Que liberdade podia lá ter a imaginação do poeta? As peças tinham que con­ sistir em longas narrativas e, assim, tornaram-se mais conversas do que representações. Cada actor queria bri­ lhar com um longo monólogo, e uma peça que não tinha nada disto era rejeitada. Com esta forma, toda a acção teatral era eliminada, todas as grandes manifestações das paixões, eliminados todos os quadros intensos da infelici­ dade humana, todos os aspectos terríveis e pungentes que calam no mais fundo da alma; mal se tocava o coração, quando se devia dilacerá-lo.“28 28 Oeuvres Complètes de Voltaire, vol. 24, „Des divers change­ ments arrivés à l’art tragique“ [Sobre as diferentes alterações ocor­ ridas na arte trágica], pág. 2 1 8 seg.: „Dans les beautés frappantes de notre théâtre, il y avait un autre défaut caché, dont on ne s’était

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O primeiro motivo está correcto. A galanteria e a política deixam-nos sempre indiferentes, e ainda nenhum poeta do mundo conseguiu associar-lhes o suscitar da compaixão e do temor. Aquelas fazem-nos escutar ape­ nas o peralvilho ou o pedante; e estas exigem que não es­ cutemos senão o homem. apperçu parce que le public ne pouvait pas avoir lui-m êm e des idées plus fortes que celles de ces grands maîtres. Ce défaut ne fut relevé que par Saint-Evremond: il dit que „nos pièces ne font pas un impression assez forte; que ce qui doit former la pitié fait tout au plus de la tendresse; que l’émotion tient lieu de saisissement, l’étonnem ent de l’horreur; qu’il manque à nos sentiments quelque chose d’assez profond.“ Il faut avouer que Saint-Evremond a mis le doigt dans la plaie secrète du théâtre français; on dira tant qu’on voudra que SaintÉvrem ond est l’auteur de la pitoyable com édie Sir Politik, et de celle des Opéra; que ses petits vers de société sont ce que nous avons de plus plat en ce genre; que c ’était un petit faiseur de phrases; mais on peut être totalement dépourvu de génie, et avoir beaucoup d’esprit et de goût. Certainem ent son goût était très-fm, quand il trouvai ainsi la raison de la langueur de la plupart de nos pièces. Il nous a presque toujours manqué un degré de chaleur; nous avions tout le reste. L ’origine de cette langueur, de cette faiblaisse m onotone, venait en partie de ce petit esprit de galanterie si cher alors aux courtisans et aux femmes, qui a transformé le théâtre en conversations de Clélie. Les autres tragédies étaient quelques fois de longs raisonnements politiques, qui ont gâté Scrtoritis, qui ont rendu Othon si froid, et Suréiia et Attila si mauvais. Mais une autre raison empêchait encore qu’on ne se dépolyât un grand pathétique sur la scène, et que l’action ne fût vraim ent tragique: c ’était la construcion du théâtre et la mesquinerie du spectacle. [...] Q ue pouvait-on faire sur une vingtaine de planches chargées de spectateurs? Q uelle pompe, quel appareil pouvait parler aux yeux? quelle grande action théâtrale pouvait être executée? quelle

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Mas o segundo motivo? Será possível que a falta de um teatro espaçoso e de bons adereços tenham tido uma tal influência sobre o génio do poeta? Será verdade que toda a acção trágica exige pompa e adereços? Ou não de­ veria antes o poeta compor a sua peça de modo a produ­ zir todo o seu efeito mesmo sem estas coisas? Segundo A r istó teles , certamente que deveria. „Te­ mor e compaixão“, diz o filósofo, „podem ser suscitados pela expressão do rosto; mas também podem resultar da conexão dos próprios acontecimentos, sendo a última a preferível, o procedimento do melhor poeta. Pois a fá­ bula tem que ser composta de forma a suscitar compai­ xão e temor em quem apenas escuta o desenrolar dos seus acontecimentos, mesmo sem os ver; tal como a fá­ bula de Édipo, que nos basta escutar para suscitar estes sentimentos. Querer atingir este objectivo apenas com o rosto exige pouca arte, e é tarefa de quem se encarregou de representar a peça.“29 Até que ponto as decorações teatrais são supérfluas mostra uma experiência curiosa, que se supõe ter ocor­ rido com as peças de S h a k espeare . Que peças precisa­ riam mais do suporte dos cenários e de toda a arte do liberté pouvait avoir l’imagination du poète? Les pièces devaient être composées de longs récits: c’étaient de belles conversations plutôt qu’une action. Chaque comédien voulait briller par un long monologue; ils rebutaient une pièce qui n’en avait point. [...] Cette forme, qui excluait toute action théâtrale, excluait aussi ces grandes expressions des passions, ces tableaux frappants des in­ fortunes humaines, ces traits térribles et perçants qui arrachent le coeur; on le touchait, et il fallait le déchirer.“ [N. da T.] 29 Aristóteles: Poética, capítulo 14. [N. da T.]

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decorador do que estas, devido às permanentes interrup­ ções e às mudanças de local? Apesar disso, houve uma época em que os palcos onde eram levadas à cena não eram constituídos senão por uma cortina de pano gros­ seiro de má qualidade que, ao ser levantada, mostrava apenas as paredes nuas, quando muito revestidas de estei­ ras ou tapeçarias; não havia mais nada, a não ser a imagi­ nação, que pudesse vir em auxílio da compreensão do espectador e da execução do actor e, apesar disso, na­ quela época, as peças de S h a k e s p e a r e eram mais com­ preensíveis sem qualquer cenário do que passaram a sê-lo depois, com ele.30 Se o poeta não tem, pois, de se importar com a de­ coração, se a decoração, mesmo onde parece necessária, pode ser posta de parte sem grande prejuízo para a sua peça, porque haveria de ser devido ao teatro acanhado, mau, que os poetas franceses não fizeram peças mais comoventes? Não foi por isso, foi devido à sua própria incapacidade. 30 Cyber’s Lives oj the Poets oj Great Britain and Ireland, Vol. II, [London 1753], p. 7 8 -8 0 : „Some have insinuated, that fine scenes proved the ruin o f acting. [...] In the reign o f Charles I. [...] there was nothing m ore than a curtain o f very coarse stuff, upon the drawing o f which, the stage appeared either with bare walls on the sides, coarsly matted, or covered with tapestry; so that for the place originally represented, and all the successive changes, in which the poets o f those times freely indulged themselves, there was nothing to help the spectator’s understanding, or to assist the actor’s perfor­ mance, but bare imagination. [...] T he spirit und judgm ent o f the actors supplied all deficiencies, and made as some would insinuate, plays m ore intelligible without scenes, than they alterwards were with them. [N. do A.]

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Isto prova-o a experiência. Agora que os franceses já têm um palco mais belo, mais espaço, que já não são ad­ mitidos espectadores no palco, os bastidores estão vazios, o decorador tem o campo livre, pinta e constrói ao poeta o que este exige dele: onde estão as peças mais calorosas que têm feito desde então? Será que o Senhor VOLTAIRE se vangloria de a sua Semiramis ser uma peça assim? Pompa e decoração tem ela bastante; e um fantasma, ainda por cima, mas não conheço nada mais frio do que a sua Semi­ ramis.

Octogésimo primeiro fascículo 9 de Fevereiro de 1768

Quero eu dizer com isto que nenhum francês é ca­ paz de fazer uma peça trágica verdadeiramente como­ vente? Que o espírito volúvel desta nação não está à al­ tura de uma tal tarefa? Envergonhar-me-ia só de isto me ocorrer. [...] Pois estou plenamente convencido que ne­ nhum povo do mundo recebeu a primazia de qualquer dom do espírito, em detrimento de outros povos. Em ­ bora se costume dizer: o inglês pensativo, o francês espi­ rituoso. Mas quem fez esta disdnção? Há tantos ingleses espirituosos como franceses de espírito; e tantos franceses pensativos como ingleses; a populaça, porém, não é uma coisa nem outra. Que quero eu então? Quero apenas dizer que os franceses a poderiam ter, mas que ainda não a tem: a ver­ dadeira tragédia. E porque não a têm ainda? A este res129

peito o senhor de VoLTAlRE deveria ter-se conhecido melhor a si próprio, se quisesse ter acertado. Quero dizer: ainda não a têm, porque acreditam já a ter há muito tempo. E são corroborados por algo em que têm a primazia sobre todos os povos, mas que não é um dom da natureza: pela sua vaidade. Acontece com as nações o que acontece com os indi­ víduos. G o t t s c h e d (compreender-se-á facilmente por­ que me ocorre aqui este nome) era considerado, na sua juventude, um poeta porque, nessa altura, ainda não se sabia distinguir entre o fazedor de versos e o poeta. A fi­ losofia e a crítica foram estabelecendo, aos poucos, esta diferença, e se G o t t s c h e d tivesse querido progredir com o século, se os seus pontos de vista e o seu gosto se tivessem querido alargar e apurar segundo os pontos de vista e o gosto da sua época, talvez o fazedor de versos se tivesse podido tornar um poeta. Mas como tinha já ou­ vido tantas vezes chamarem-lhe um grande poeta, como a vaidade o tinha convencido que o era, assim não acon­ teceu. Era-lhe impossível atingir o que acreditava já pos­ suir, e quanto mais envelhecia, mais obstinado e impu­ dente se tornava em afirmar estar na posse desta sonhada aptidão. Foi exactamente isto, quer-me parecer, que aconte­ ceu aos franceses. Mal C o r n e il l e arrancou o teatro um pouco da barbárie, já se criam bem perto da perfeição. Pareceu-lhes que R a c in e tinha dado o último retoque e, daí para diante, deixou de se pôr a questão (que também nunca se tinha colocado) se o poeta trágico poderia ser ainda mais patético, mais comovente do que CORNEILLE 130

e R a c i n e , antes se partiu do princípio de que isso era im­ possível, e todos os esforços dos poetas que se lhes segui­ ram tiveram de se limitar a assemelhar-se, tanto quanto possível, a um ou ao outro. Durante cem anos, assim se enganaram a si próprios e, em parte, aos seus vizinhos; agora que venha alguém e lhes diga isto, e ouça o que respondem! Dos dois, C o r n e i l l e foi o mais prejudicial e que exerceu influência mais nefasta sobre os poetas trágicos. Pois R a c i n e apenas seduziu pelos seus exemplos, C o r ­ n e i l l e , porém, simultaneamente pelos seus exemplos e pelos seus ensinamentos. Sobretudo estes últimos, aceites por toda a nação (à excepção de um ou dois pedantes, um H e d é l i N, um D a CIER, mas que muitas vezes não sabiam eles próprios o que queriam) com o ditos de um oráculo, seguidos por todos os poetas ulteriores, não conseguiram mais - atre­ vo-m e a prová-lo ponto por ponto - do que fazer surgir as coisas mais áridas, mais insípidas, m enos trágicas. A s regras de A r i s t ó t e l e s são calculadas para que a tragédia cause o máximo efeito. Que faz C o r n e i l l e disto? Cita-as erradamente e de revés; e porque as acha ainda demasiado severas, procura para umas atrás das outras „quelque modération, quelque favorable interpre­ tation“;31 enfraquece-as e estropia-as, sofisma e faz malo­ grar todas, e porquê? „pour n’être pas obligé de condam­ ner beaucoup de poèmes que nous avons vú réusssir sur

31 „Um a certa moderação, uma interpretação favorável“. Em francês no original. [N. da T.]

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nos th éatres“ : para não ser obrigado a con d en ar m u i­ tos dos p oem as aplaudidos nos nossos teatros. B o n ito m o tiv o ! Q u ero referir, brevem ente, os pontos principais. Al­ guns já os referi; mas tenho que voltar a m encioná-los p or um a razão de coerência. Io

A r istó teles diz: a tragédia deve suscitar com pai­

xão e tem or. CóRNElLLE diz: sim, mas conform e; ambos ao m esm o tem p o não é sem pre necessário; dam o-nos p or satisfeitos só com um ; um a vez com paixão, sem te­ m o r; outra vez tem or, sem com paixão. Pois onde ficaria eu, eu o grande C o r n e il l e , com o m eu Rodrigue e a m inha C him ene? O s m eus bons jovens suscitam com pai­ x ã o , m esm o grande co m p aixão , mas tem o r só dificil­ m ente. E por outro lado: onde ficaria eu, com a minha C le ó p a tra , c o m o m eu Prusias, c o m o m eu P h ocas? Q u e m pode sentir com paixão por estes seres indignos? M as tem o r eles suscitam. Assim pensava CóRNElLLE, e os franceses acreditaram nele.32 2 o A ristó teles diz: a tragédia deve suscitar com pai­ xão e tem or; ambos, entenda-se, na m esm a pessoa. C o r ­ n e il l e

diz: se assim aco n tece, m u ito bem . M as não é

absolutam ente necessário; e tam bém podem os, perfeita­ m ente, servir-nos de personagens diferentes para suscitar

32 N esta e nas passagens seguintes, Lessing cita, amiúde, o segundo dos três discursos de Corneille sobre o poem a dramá­ tico. Veja-se C orneille, Pierre: „Discours de la tragédie et des m oyens de la traiter, selon le vraisemblable ou le nécessaire“, in: Oeuvre Complètes, Vol. III, Paris: Gallimard, 1987, pág. 142 a 173. [N. da T.]

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estas duas emoções: tal como eu fiz com o meu Rodri­ gue. Foi isto que C o r n e il l e fez, e os franceses segui­ ram-lhe o exemplo. 3o A ristó teles diz: através da compaixão e do te­ mor que a tragédia suscita, a nossa compaixão e o nosso temor, e tudo o que a eles está associado, devem ser purificados. C o r n e il l e não entende nada disto e ima­ gina que A r istó teles queria dizer: a tragédia suscita a nossa compaixão para suscitar o nosso temor e, por meio deste temor, purificar em nós as paixões, através das quais o objecto da nossa compaixão incorreu na sua infelici­ dade. Não quero falar do valor desta intenção, basta que não seja a aristotélica; nem de que, tendo C o r n e il l e dado às suas tragédias uma intenção muito diferente, es­ tas tiveram, necessariamente, de ser obras muito diferen­ tes do que aquelas das quais A r istó teles abstraiu a sua intenção; tiveram de ser tragédias que não eram verda­ deiras tragédias. E não só as suas tragédias são assim, to­ das as tragédias francesas o são, pois todos os seus autores se propuseram seguir não a intenção de A r is t ó t e l e s , mas a de C o r n e il l e . [...] Conheço várias peças francesas que sabem realçar bem as consequências de uma paixão; delas se podem tirar muitos bons ensinamentos a res­ peito desta paixão, mas não conheço nenhuma que tives­ se suscitado a minha compaixão com a intensidade com que a tragédia deve fazê-lo, como sei, através de diversas peças gregas e inglesas, que pode suscitar. Várias tragédias francesas são excelentes obras, obras muito instrutivas, que considero dignas do maior louvor, só que não são tragédias. Os seus autores não podem deixar de ter tido 133

m u ito boa cab eça; m e re ce m , em parte, um lugar não pouco elevado entre os poetas, só que não são poetas trá­ gicos; só que os seus C o r n e i l l e e R a c in e ,

os

seus C r e -

b i l l o n e VoLTAlRE p ou co ou nada têm do que faz de um Sófocles SÕFOCLES, de um Eurípides E u ríp id es, de um Shakespeare S h a k e sp e a re . Estes raram ente entram em contradição com as exigências essenciais de A r i s t ó ­ t e l e s , co m mais frequência o fazem aqueles. C ontinue­ m os pois.

Octogésimo segundo fascículo 12 de Fevereiro de 1768

4 o ARISTÓTELES diz: na tragédia não se deve deixar que um homem muito bom se torne infeliz sem qual­ quer culpa própria, pois isto é repulsivo. Muito certo, diz C o r n e i l l e ; „um final assim suscita mais indignação e ódio contra quem provoca este sofrimento do que com­ paixão para com quem sofre. O sentimento que não de­ veria constituir o efeito da tragédia abafaria, se não fosse tratado com muita subtileza, o efeito que se deveria, de facto, obter. O espectador abandonaria o teatro descon­ tente, pois demasiada cólera se aliaria à compaixão que lhe agradaria, se pudesse levá-la consigo sozinha. „Mas“ acrescenta C o r n e i l l e , pois tem sempre que vir com um mas, „quando este motivo é eliminado, quando o poeta arranja as coisas de modo a que o virtuoso que sofre sus­ cita mais compaixão do que indignação contra quem o faz sofrer, então? Oh, então,“ diz CO RN EILLE, „sou de 134

opinião que não há inconveniente em mostrar, também, em cena, a infelicidade dos homens mais virtuosos.“33 Não compreendo como se pode tagarelar assim despreocupadamente contra um filósofo; como se pode dar a im­ pressão de compreendê-lo, fazendo-o dizer coisas que ele nunca pensou. A infelicidade inteiramente imerecida de um homem honesto, diz A r is t ó t e l e s , não é matéria para a tragédia, pois é repulsiva. Deste „pois“, deste moti­ vo, C o r n eille faz um ,,na medida em que“, uma mera condição, que faz com que deixe de ser trágica. ARISTÓ­ TELES diz: é absolutamente repulsiva, e por isso mesmo não é trágica. C o r n e il l e , porém, diz: não é trágica, na medida em que é repulsiva. A repulsa consiste, para A ris­ t ó t e l e s , no próprio tipo de infelicidade; C o r n e il l e , contudo, vê-o na indignação que suscita contra o promo­ tor da mesma. Não vê, ou não quer ver, que aquela re­ pulsa é algo totalmente diferente desta indignação; que mesmo quando esta desaparece por completo, aquela pode ainda subsistir plenamente; basta que, em primeiro lugar, com este quiproquó diversas peças suas parecem estar justificadas, que quer tanto ter composto sem in­ fringir as regras de A r istó teles , que chega a ter a audá­ cia de se convencer que apenas faltaram a A ristó teles peças assim para delimitar m elhor a sua doutrina de acordo com elas, e delas abstrair diversas maneiras como a infelicidade de um homem muito honesto pode, não obstante, ser objecto da tragédia. [...] Ineptos trágicos,

33 J ’estime qu’il ne faut point faire de difficulté d’exposer sur la scene des hommes très vertueux. [N. do A.]

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penso eu, sempre os houve em todos os tempos, e até m esm o em Atenas. Porque haveria então de faltar a A r ist ó t eles uma peça de composição semelhante, para ser por ela tão iluminado como o foi CóRNElLLE? Toli­ ces! Os caracteres medrosos, vacilantes, indecisos, como Felix, são mais um erro neste tipo de peças e tornam-nas, por outro lado, ainda mais frias e desagradáveis, sem as tornar de todo menos repulsivas. Pois, como já disse, a repulsa não está na indignação ou aversão que suscitam, mas na própria infelicidade que recai sobre eles sem qualquer culpa; que os atinge uma e outra vez tão ino­ centes, sejam os seus perseguidores maus ou fracos; ac­ tuem eles com intenção de os afectar com muita dureza ou sem ela. O próprio pensamento em si é repulsivo: que possa haver seres humanos que são infelizes sem qual­ quer culpa própria. Os pagãos teriam tentado afastar o mais possível de si este pensamento repulsivo, e nós que­ remos alimentá-lo? Queremos comprazer-nos com peças que o confirmam? Nós, a quem a religião e a razão de­ viam ter convencido que isto é tão errado quanto sacrí­ lego? [...] 5o Também contra o que A ristó teles diz a respeito da impropriedade de um herói trágico completamente depravado, visto que a sua infelicidade não pode suscitar nem compaixão nem temor, C ó r n e il l e apresenta os seus esclarecimentos. Compaixão não pode suscitar, con­ cede, mas temor sem dúvida. Pois embora nenhum dos espectadores acredite ser capaz dos seus vícios e, por con­ sequência, não receie ser atingido pela mesma infelici­ dade que sobre ele recai, qualquer pessoa pode encerrar 136

em si uma imperfeição semelhante àqueles vícios e, de­ vido ao temor das respectivas consequências infelizes, embora proporcionalmente menores, poderá aprender a precaver-se dela. Porém, isto baseia-se no conceito er­ rado que CORNEILLE tinha do temor e da catarse na puri­ ficação das paixões a suscitar pela tragédia, e contradiz-se em si mesmo. Pois já demonstrei que o suscitar da com­ paixão é inseparável do suscitar do temor e que, se fosse possível que o vilão pudesse suscitar o nosso temor, teria, necessariamente, de suscitar também a nossa compaixão. Todavia, como ele não pode suscitar esta, como o próprio C o r n e i l l e admite, também não pode suscitar aquele, e mantém-se absolutamente inadequado para contribuir para a intenção da tragédia. A r i s t ó t e l e s considera-o mesmo ainda mais inadequado do que o homem com­ pletamente virtuoso; pois quer expressamente que, no caso de não se poder ter o herói mediano, se escolha an­ tes o melhor do que o pior. A razão é evidente: um ho­ mem pode ser muito bom e ter, apesar disso, mais do que uma fraqueza, cometer mais do que um erro, que o lança numa infelicidade imprevisível, que nos enche de compaixão e tristeza, sem ser minimamente repulsiva, porque é a consequência natural de um erro. [...]

Octogésimo terceiro fascículo 16 de Fevereiro de 1768

6o E, finalmente, a interpretação errada da caracterís­ tica primeira e essencial que A r i s t ó t e l e s exige para os 137

costumes das personagens trágicas!34 Têm que ser bons, os costumes. Bons? diz C o r n e il l e . „Se bom quer aqui dizer o mesmo que virtuoso, estamos mal com a maioria das tragédias antigas e modernas em que aparecem bas­ tantes personagens más e depravadas, ou pelo menos com uma fraqueza que não pode subsistir ao lado da vir­ tude.“ Receia, sobretudo, pela sua Cleópatra em Rodogune. A bondade que A ristó teles reclama não quer ele acei­ tar como sendo a bondade moral; tem de ser outro tipo dc bondndr que se coaduna tão bem com a maldade moifil (i/mo ú/m