Dança e Dramaturgia(s)

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Dança e Dramaturgia(s)

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d a n ça dram atu r g i a [s] e

© Vila das Artes, 2016 © Paulo Caldas, 2016 © Ernesto Gadelha, 2016 Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes Isabela Sanches tradução Nathália Mello, Rosa Ana Druot de Lima e Sylvain Druot revisão Milena Bandeira e Papel Ofício revisão técnica Ernesto Gadelha e Paulo Caldas projeto gráfico Renan Costa lima diagramação Jorge Salum e Renan Costa Lima coordenação editorial assistente editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Odilio Hilario Moreira Junior CRB-8/9949 D173

Dança e Dramaturgias (s) / organizado por Paulo Caldas, Ernesto Gadelha ; traduzido por Nathália Mello, Rosa Ana Druot de Lima, Sylvain Druot - Fortaleza; São Paulo : Nexus, 2016. 312 p



ISBN: 978-85-66943-36-3



1.

d a n ça dram atu r g i a [s] e

––––– orgs.

Pau lo Cal das e Ernesto Gadelha

Dramaturgia. 2. Dança. 3. Coreografia. I. Caldas, Paulo. II. Gadelha, Ernesto. III. Mello, Nathália. IV. Lima, Rosa Ana Druot de. V. Druot, Sylvain. VI. Título. CDD 792.62 CDU 793

2016-434 Índice para catálogo sistemático: Artes : Dança 792.62 Artes : Dança 793

A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

|nexus é um selo da n-1 edições|

nexus 2016

V i la das A rt e s u m a a p o s ta d o p o d e r p ú b l i c o n a p o t ê n c i a d a a rt e

Da n ça e d r a m atu r g i a ( s ) pa u l o c a l d a s e e r n e s t o g a d e l h a

1

e

7

11

2 D r a m atu r g i as 19

verbete

O c r i m e c o m p e n sa o u o p o d e r da d r a m atu r g i a 25

a n a pa i s

E r r â n c i a c o m o t r a bal h o 61

andré lepecki

Corpo verbete

85

O d r a m atu r g i sta i g n o r a n t e 91

b o ja n a c v e j i c ć

A ec o n o m i a da p r ox i m i da d e 111

b o ja n a k u n s t

M ov i m e n to 131

verbete

sumário

Fo r m a n d o es paç o s c r í t i c o s : 137

heidi gilpin

P e n s a r o p e n sa m e n to d e n i n g u é m 149

maaike bleeker

olhar verbete

173

O p r o c es s o d r a m atú r g i c o 179

m a r i a n n e va n k e r k h ov e n

D r a m atu r g i a a n s i o sa 191

m y r i a m va n i m s c h o o t

Sentido 215

verbete

D r a m ato lo g i as da da n ça 221

sandra meyer

– 4

Da n ça , d r a m atu r g i a e p e n sa m e n to d r a m atú r g i c o 243

synne k. behrndt

D e r i vas d e u m p la n o d e c o m p o s i ção e m da n ça t h e r e z a r o c h a 269 RE F ER ê n c i as bibliográficas

307

– 5

Vila das Artes Uma aposta do poder público na potência da arte

vila das ARTES

– 6

uma aposta do poder públic o na potência da arte

 

Completando um ciclo de gestão à frente da pasta da Cultura do município de Fortaleza, situamos a publicação do livro Dança e dramaturgia[s] como uma ação ancorada na compreensão de que as políticas públicas da gestão cultural são, antes de tudo, possibilidades de ampliação do acesso à informação e à educação. No exercício da dinamização do ambiente sociopolítico, percebemos essa iniciativa pela via da qualificação do corpo cultural como aposta no desenvolvimento humano e nas suas mais diversas manifestações de pensamentos e práticas. No que se refere à construção de instrumentos fomentadores dos complexos campos em que se dão os processos artístico-culturais, os escritos reunidos nessa publicação apresentam-se como um bem cultural e consolidam-se como subsídio para reflexões estéticas e políticas; acolhem, assim, a difusão e a fruição de pensamentos, num cruzamento que sinaliza caminhos possíveis para novos desdobramentos de paradigmas artísticos na criação em dança no Brasil. Dança e dramaturgia[s] é formulação afirmativa sem ser dogmática. E se quer pública. Longe de apresentar-se como uma coleção segmentada de ideias, é obra plural que interroga e aguça, desencadeando a produção de diferentes percepções e sentidos. Numa superação da tendência imobilista habitual dos antecedentes históri– 7

cos das políticas culturais, estabelece de forma estruturada um território que tece novas conformações do conhecimento e amplia o campo de ação da dramaturgia; evoca, portanto, ressignificações dos processos criativos no campo da arte. No âmbito do direito cultural, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor), através da Vila das Artes, assume essa ação como conexão híbrida, de múltiplas interações e de função coletiva que busca sedimentar uma experiência com vistas a romper com a lógica do fazer episódico e demasiadamente localizado. Ao mesmo tempo em que é memória, Dança e dramaturgia[s] é também matéria cultural que desloca e tensiona os espaços, tempos e ações, sem negligenciar a variação de contextos e seus aspectos singulares. Considerando que as políticas públicas para a cultura têm trajeto recente e sua institucionalidade ainda vem acompanhada de desafios merecedores de atenção, destacamos que essa iniciativa da publicação faz confluir um conjunto de elementos que explicitam os esforços impulsionadores e inaugurais de uma atuação do ente público na percepção da cultura como bem de coletividade e de múltiplas autorias. Aberto esse novo campo, há dois destacados desafios gerados: estabelecer agendas que garantam a continuidade de ações que fomentem a produção teórica no campo cultural local, bem como a criação de canais de socialização dessa produção, tornando-a mais acessível, abrangente e fluida. O daqui em diante já antecipa uma boa provocação. Vale expressar o quanto celebramos, na instância municipal, a efetivação dessa ação pública que alcança um lugar definitivo nas propostas de política cultural da cidade. A Vila das Artes, equipamento público vinculado à Secretaria Municipal da Cultura, idealizadora do Dança e dramaturgia[s] através da Escola Pública de Dança, é um espaço formativo que completa 10 anos e tem como premissa a construção de laços entre o fazer e o pensar, apostando nesse encontro como propulsor de forças criativas. Rememorando um traço histórico, a Escola Pública de Dança da Vila das Artes surge a partir de discussões travadas com os mais diferentes seg– 8

mentos da cidade e apresenta-se como espaço que se propõe a contribuir para a percepção e abordagem da dança a partir de perspectivas múltiplas. Com um corpo docente formado por profissionais do Brasil e do exterior, seu programa pedagógico promove a formação e o aperfeiçoamento técnico, artístico e teórico em dança cênica, proporcionando aos alunos o contato com distintas visões sobre os vários processos e conteúdos da dança. Finalmente, numa perspectiva mais ampla, cabe mencionar que a Vila das Artes, atua, ainda em programas de formação voltados para o audiovisual, o teatro e a cultura digital. Instaura assim, na rotina cultural de Fortaleza, distintas práticas que redesenham as relações tecidas entre arte, política e cidade. A presente publicação, com suas múltiplas dramaturgias, torna-se, portanto, uma ferramenta relevante de prolongamento e desdobramento dos saberes e fazeres da cena cultural.  

 

magela lima Secretário Municipal da Cultura de Fortaleza cláudia pires Diretora da Vila das Artes

– 9

dança e DRAMATurgia [s]

Paulo Caldas

Ernesto Gadelha

Formado em Dança Contemporânea na Escola Angel Vianna (RJ), o coreógrafo Paulo Caldas é diretor da companhia de dança Staccato e codiretor do dança em foco – Festival Internacional de Vídeo & Dança. Bacharel em Filosofia, é mestre e doutorando em Educação. Atualmente, é professor dos cursos de bacharelado e licenciatura em Dança da UFC. _

Graduado em Pedagogia da Dança pela Ballettakademie Köln / Rheinische Musikschule e pós-graduado em Dança Contemporânea pela Folkwang Universität der Künste, atua como professor, gestor e curador em diversos projetos. Atualmente, coordena a Escola Pública de Dança da Vila das Artes e faz a direção artística e pedagógica da Bienal Internacional de Dança do Ceará. –

A

 

o principiar um breve texto em que transcreve e edita as palavras recolhidas numa série de encontros intitulada Conversations on Choreography 1 , realizada entre 1999 e 2000, Scott deLahunta (2000) admite que, não obstante sua “evolução”, a dramaturgia permanecia uma “prática desconcertante” e que as questões quanto a “[…] sua definição (o que é dramaturgia?) e metodologias (o que faz o dramaturgista?) constantemente prefaciam cada livro, simpósio ou aula sobre o tema” (p. 25, tradução nossa). Pois é assim que, de alguma maneira, repetimos como primeira a questão “o que é dramaturgia?” ao abrir os textos ensaísticos aqui reunidos já com um primeiro verbete da obra coletiva De quoi la dramaturgie est-elle le nom? (boudier et al., 2014): pois ali, a partir da breve obra de Joseph Danan (2010), que faz daquela questão seu título (Qu’est-ce que la dramaturgie?), são listados dois sentidos porque distintos dois fazeres: no sentido 1, diríamos sumariamente, a dramaturgia é afirmada como um fazer sobretudo textual, produtor de literatura dramática; no sentido 2, como um fazer ligado menos a textos do que a tessituras, a matérias e sentidos para além da 1 O texto refere-se às duas primeiras sessões do projeto, realizadas em Amsterdam (março de 1999) e em Barcelona (novembro de 1999); entre os participantes, além do próprio Scott deLahunta, listam-se nomes como André Lepecki, Heidi Gilpin e Myriam Van Imschoot, além de Diana Theodores, Hildegard De

Vuyst e Isabelle Ginot.

– 10

org s .

– 11

(eventual) dimensão propriamente textual, um fazer afinal coprodutor de cena, de encenação. E é mesmo neste sentido 2 que, hoje, reconhecemos algo que

Para além da pergunta “o que é dramaturgia?” – pergunta que não quer resposta, mas fazer problema –, e considerada a paisagem cênica nacional hoje, importa com igual pertinência ainda uma outra: como pensar dramaturgia na ausência desta figura que encarna e personifica a tarefa do seu fazer? Mais simplesmente: como pensar dramaturgia sem dramaturgista? Pois é fato que, à diferença do que se passa talvez em outras paisagens — sobretudo, sabidamente, na alemã e na belga —, a dramaturgia na dança se faz questão entre nós predominantemente na ausência daquela figura. Daí que, embora alguns dos ensaios aqui recolhidos pareçam ocupar-se dela, importa — mesmo neles — pensar sobretudo os fazeres vários subsumidos pela palavra dramaturgia, o que, material e imaterialmente, implica o fazer dramatúrgico. Importa pensar, afinal, aquilo que Bernard Dort (1986, p. 8, tradução nossa) chamou, desde a paisagem teatral francesa, de “estado de espírito dramatúrgico”:

está, claramente, na base de toda criação artística, quer se trate de montar uma peça ou de dar um concerto. Nós lidamos o tempo todo com dramaturgia, até quando nós não lidamos com ela. Desde que se saiba no que consiste a dramaturgia, pode-se vê-la e encontrá-la em todos os lugares (lamers, apud kerkhoven, 1997, p. 19).2

A língua alemã, aquela a partir da qual o “moderno”3 sentido 2 da palavra dramaturgia emergiu, soube evitar a equivocidade na nomeação das figuras às quais se atribuem aqueles fazeres; assim, as palavras Dramatiker (o autor de textos dramáticos) e Dramaturg (o coautor de tessituras cênicas) distinguem fazeres de uma maneira que não se repete nas línguas inglesa, francesa ou portuguesa, nas quais as palavras dramaturg, dramaturge e dramaturgo, respectivamente, recobrem ambos os sentidos. No entanto, aqui, assumimos o termo não completamente dicionarizado dramaturgista4 para operar em nossa língua aquela distinção, mesmo que, entre nós, não seja incomum operá-la repetindo a original alemã Dramaturg. Assumimos, assim, o termo que tem se consolidado em razão de seu uso por aqueles – falantes do português – que tratam de dramaturgia: indagado a esse respeito, André Lepecki muito simplesmente respondeu: “[…] foi como sempre usei o termo em português, dado que dramaturgo significa também ou principalmente, escritor de peças de teatro, e dramaturg me parece não português”.5

2 Consultar a presente publicacão, p. 179. 3 Consultar Pavis, 1999.

4 Como escreve Fátima Saadi (2010, p. 102), “só a partir da década de 1990

a palavra dramaturgista começou a ser utilizada na imprensa e, aos poucos,

 

 

A reflexão dramatúrgica está presente (conscientemente ou não) em todos os níveis da realização. É impossível limitá-la a um elemento ou a um ato. Concerne tanto à elaboração do cenário, ao modo de representar dos atores, como ao trabalho do “dramaturgista” propriamente dito. Impossível circunscrever no teatro um domínio dramatúrgico. Então, em vez de trabalho dramatúrgico, falarei de estado de espírito dramatúrgico.

É por assim definir a dramaturgia que Dort (idem, p. 10) pode dizer, talvez polemicamente: “O dramaturgista é transitório. […] Uma vez partilhado o estado de espírito por todos, o dramaturgista será supérfluo”. O fazer dramatúrgico se quer portanto plural, errático, transversal, distributivo e expansível sobre variados domínios cênicos e artísticos, nutrido por variados domínios não necessariamente cênicos nem artísticos, ligado a uma poética de sentido inscrita no espaço-tempo singular de cada obra – de cada uma de suas efetuações performativas –, operando das mediatas decisões das salas de

nas fichas técnicas dos espetáculos de teatro”. 5 E-mail aos editores.

– 12

– 13

ensaio até as imediatas decisões que modulam um gesto cada vez que é performado. Daí que a dramaturgia seja repetidamente afirmada, hoje – exista ou não a figura do dramaturgista –, como um fazer compartilhado, um “campo coativo” em que “não tanto um texto, mas uma textura é tecida, entrelaçada, suturada”6 , um espaço comum pois ocupado por todos com a propriedade de seus saberes e com o exercício de seus não saberes. Fazer in situ, a dramaturgia não pode supor (pre)determinações generalizantes. Recuando a Lessing, de fato, ao preterir o inicialmente considerado título Didascálias de Hamburgo (o que talvez erroneamente insinuasse um desejo de instrução, indicação ou mesmo de normatização de procedimentos, à maneira de escritos aristotélicos) em favor de Dramaturgia de Hamburgo, ele permite-se “decidir o que [nela] incluir ou não” (s/d, p. 488)7 , não sem lembrar a seus leitores – sacrificando-se “[…] o axioma da não-contradição, a pretensão de coerência própria, que assumimos como obrigatórios para todos os que escrevem e falam”, conforme escreve a esse propósito Hannah Arendt (2008, p. 11) – que estas folhas contém tudo menos um sistema dramático. Portanto, não sou obrigado a resolver todas as dificuldades que crio. Meus pensamentos podem parecer cada vez menos conexos, podem mesmo parecer se contradizer, pouco importa, desde que sejam pensamentos em que se encontre matéria para pensar! Aqui, quero apenas disseminar fermenta cognitionis (lessing, s/d, p. 479, tradução nossa).

Daí que a “revolução operada por Lessing” (danan, 2010, p. 14), mesmo ali onde não se trata ainda propriamente da questão da encenação, tal como veio a se estabelecer a partir de fins do século xix, instaure dimensões que, diríamos, permanecem caras à dramatur-

 

6 Conforme Lepecki, na presente publicacão, p. 61. 7 Em LESSING, lemos: I had had the intention of calling my journal the ‘Hamburg

8 Agradecemos aos editores Marion Boudier, Alice Carré, Sylvain Diaz e Barbara

preferred the present one. What I chose to bring or not to bring into a

acessar a produção textual do laboratório, consultar a Agôn: Revue des arts

Didaskalia’. But the title sounded too foreign and now I am very glad I Dramaturgy, rested with me”.

– 14

 

gia que nos interessa, pois que se anuncia como uma “[…] ‘prática’ (aberta) que visa questionar e a produzir pensamento” (idem), alheia a qualquer desejo de prescrever procedimentos e arbitrar sentidos. Os textos aqui coletados pretendem, portanto, não mais do que isso: questionar e produzir pensamento. Sua disposição obedece à mera e arbitrária ordem alfabética de nomes: diante do único desejo de dar a ler textos referenciais – donde um certo sabor de antologia e a predominância de escritos europeus –, qualquer outra configuração pareceu-nos artificiosa: portanto, não há aqui nem blocos temáticos, nem uma ordenação cronológica, mas uma série de ensaios mais ou menos curtos, intervalados, eventualmente, ora por alguns aforismos, ora por algum dos cinco verbetes colhidos dentre os mais de trinta publicados no recente e, diríamos, já fundamental De quoi la dramaturgie est-elle le nom?, um léxico produzido pelo Laboratoire Agôn – Dramaturgies des arts de la scène, de Lyon.8 Aqui, estão abarcadas aproximadamente duas décadas: do seminal dossiê Danse et dramaturgie publicado pela Nouvelles de Danse, em 1997, até a recém-publicada coletânea organizada por Pil Hansen e Darcey Callison, de 2015, extraímos textos assinados por nomes notabilizados como pensadores e fazedores de dramaturgia. Evidentemente, teria sido possível – não fosse a dimensão limitada de nosso projeto editorial –, multiplicá-los. Esperamos que outras iniciativas o façam, haja vista a atualidade do tema na dança e na cena que produzimos hoje no Brasil. Este Dança e dramaturgia[s] quer, portanto, sobretudo, colaborar com a formação de uma bibliografia em língua portuguesa sobre o tema, e ambiciona ter seus textos transitando entre aqueles que pensam e fazem dramaturgia tanto no contexto artístico quanto no acadêmico. Por isso, mesmo seu projeto gráfico se quer favorecedor Métais-Chastanier, assim como à editora L’Harmattan pela gentil concessão

dos direitos de tradução e publicação dos verbetes aqui apresentados. Para de la scène, no link: agon.ens-lyon.fr/.

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de sua circulação em outros formatos: a proporção de suas páginas, a posição de sua área impressa, o contraste e o tamanho de seus caracteres, os espaços vazios que ladeiam seus textos (e que convidam a anotações) querem alegremente facilitar a reprodução, destino sabido e fundamental para uma efetiva capilarização de produções impressas, diante de nossa realidade social e educacional: a fotocópia de qualquer folha deste livro é legal, diríamos, contrariando a praxe editorial. Agradecemos ao Instituto de Cultura e Arte (ica) e aos cursos de bacharelado e licenciatura em Dança da Universidade Federal do Ceará, dos quais fazem parte os professores Paulo Caldas e Thereza Rocha. Agradecemos imensamente aos autores e editoras, sobretudo à sarma – Laboratory for discursive practices and expanded publication9 , plataforma online mantenedora de um importante acervo de documentos escritos e sonoros, inclusive de antologias de textos de André Lepecki e Marianne Van Kerkhoven (da qual gentilmente nos cedeu o direito de tradução e publicação). A André Lepecki e Armando Menicacci, nossos agradecimentos pelo apoio e pelo estímulo ao desenvolvimento deste projeto. Por fim, gostaríamos de agradecer à Petrobras por patrocinar a realização desta publicação, fruto da política de apoio à produção e difusão de conhecimento em dança da Vila das Artes, equipamento cultural ligado à Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza.

Referência • arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. • danan, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. • delahunta, Scott. Dance dramaturgy: speculations and reflexions. Dance Theatre Journal, v. 16 n. 1, 2000, p. 20–25. • dort. Bernard. L’état d’esprit dramaturgique. Théâtre/Public, Dramaturgie, n.67, 1986. • kerkhoven, Marianne Van. Les processus dramaturgique. Nouvelles de Danse. Dossier danse et dramaturgie, n. 31. Bruxelas: Contredanse, 1997. • lessing, Gotthold Ephraim. Hamburg dramaturgy. Londres: William Clowes and Sons, Ltd. s/d.  

 

• pavis, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. • saadi, Fátima. Dramaturgia/Dramaturgista. In: nora, Sigrid. Temas para a dança brasileira. São Paulo: Edições sesc sp, 2010.

ernesto gadelha e paulo caldas

9 Consultar: sarma.be/pages/Index .

– 16

– 17

BOUD I ER , Mario n et al. D e q uoi l a d ra mat urgi e est -el l e l e nom? Pari s : L’Harmat t an, 2 014. p. 1 5- 1 8

1 e 2 dramatu r g i a s

“O

CALDAS , Pau lo; GADELHA, Er n es t o. D a nça e dra maturgia [s]. São Paulo: nex us, 20 16 .

 

qe é a dramaturgia?”, pergunta, com razão, numa obra epônima, Joseph Danan (2010), que relembra a dupla acepção deste termo na língua francesa. A dramaturgia, em primeiro lugar, é “[…] a arte da composição de peças de teatro” (p. 7), seguindo uma definição que prevalece desde Littré até Patrice Pavis, como relembra o ensaísta que fala de “dramaturgia no sentido 1”, ou “dramaturgia 1”.1 A dramaturgia é, em segundo lugar, de acordo com a definição dortiana, retomada e sintetizada por Joseph Danan, o “[…] pensamento da passagem à cena das peças de teatro” (idem, p. 8) que se encontra designado como “dramaturgia no sentido 2”, ou “dramaturgia 2”. Essa segunda acepção foi herdada de uma prática alemã iniciada no século xviii por Lessing, que, em Hamburgo, trabalha em nada menos que uma reforma do teatro.2 Trata-se, especialmente, de desfazer o sistema do principado entre os atores, que até então era regra — o ator principal se impondo como empresário e diretor artístico da companhia. Tal empreitada se dá pela introdução, na instituição teatral, de um terceiro, que estaria encarregado de favorecer a colaboração entre a direção do teatro — que escolhe as obras 1 DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. p. 7. (Coleção Apprendre). 2 LESSING, Gotthold Ephraim. Dramaturgie de Hambourg. Tradução de Jean-Marie Valentin. Paris: Klincksieck, 2010 [1769]. p. 4. (Coleção Germanistique).

– 18

– 19

— e os praticantes — que as conduzem à cena — a fim de oferecer ao espectador uma apresentação coerente, atendendo às exigências estéticas e ideológicas do autor.3 Além disso, importa ressaltar a descrição dada por Lessing ao considerar o efêmero Teatro Nacional de Hamburgo (1767–1768) como uma “[…] sociedade de amigos do teatro colocando a mão na massa” e trabalhando em um projeto de utilidade pública contra os cálculos egoístas dos chefes de trupe.4 Essa é a identidade do primeiro Dramaturg. No entanto, é necessário notar que Lessing nunca se designa como tal, mesmo que, no final de sua experiência em Hamburgo, ele tenha publicado, em 1769, uma coleção de textos inicialmente destinados aos espectadores do Teatro Nacional, precisamente intitulada Dramaturgia de Hamburgo. O termo Dramaturgia não é, contudo, objeto de nenhuma definição. Lessing apenas apresenta sua obra na introdução como “uma revisão crítica” de todas as apresentações que aconteceram no Teatro Nacional de Hamburgo, a fim de “[…] acompanhar cada passo que fará a arte do poeta, como a do ator”.5 Ele volta a tratar do título de sua obra no último artigo da coleção, no qual explica ter cogitado dar como título Didascálias de Hamburgo em referência a “[…] estas curtas notas […] que o próprio Aristóteles não se recusava em redigir sobre as peças da cena grega”.6 Pelo fato de “[…] os eruditos pensarem que sabem com o que ela[s] deve[em] parecer”, Lessing prefere, finalmente, Dramaturgia à Didascálias de Hamburgo, forma inédita na qual ele é o único a decidir o que pode “incluir ou não incluir”.7

3 Sobre a participação de Lessing no projeto do Teatro Nacional de Hamburgo

entre os anos de 1797 e 1798, cf.: DORT, Bernard. Le ‘Mule’ de Lessing. L’Écrivain périodique. Editado por Chantal Meyer-Plantureux. Paris: P. O. L.,

2001. p. 332–351.

4 LESSING, Gotthold Ephraim. Dramaturgie de Hambourg, op.cit., p. 4. 5 Id. 6 Ibid., n.101–104, 19 de abril de 1768, p. 332. 7 Id.

– 20

 

 

Para o autor, então, a dramaturgia não é mais que uma forma de escrita crítica que oferece uma certa liberdade na sua ausência de normatividade, razão pela qual deve permanecer não definida. Não é a própria obra de Lessing que determina a dramaturgia 2, mas a prática singular do teatro iniciada em Hamburgo, quando ela supõe a aparição de um terceiro denominado ulteriormente Dramaturg. É importante notar que esse neologismo impede qualquer confusão com o autor de peças, nomeado em alemão Dramatiker; confusão, ao contrário, efetiva na língua francesa, onde dramaturge (dramaturgo) designa tanto quem escreve a obra como quem acompanha o processo de sua criação, suscitando desconfiança com relação a essa função e mal-entendidos quanto a essa prática. Tanto que, como Claude-Henri Buffard, alguns artistas não necessariamente francófonos chegaram a militar pela invenção de uma nova palavra para designar a dramaturgia 2, a fim de diferenciá-la da dramaturgia 1.8 Assim, Corrado Bertoni, um dos colaboradores de Caterina Sagna, propõe falar de “dramasurgia (o que permite o surgimento da ação)”, ou também de “dramapurgia (o que purga a ação)”, e até mesmo de “drama-urgie”, para ressaltar “a urgência da ação”.9 E um universitário do Quebec preferiu, ao termo de “dramaturgo”, o de “dramaturgista”, a fim de evitar qualquer confusão.10 Não podemos negar a ambiguidade desta noção fugidia, por sua dualidade, de dramaturgia, mas será que temos, contudo, que renunciar a ela? Com efeito, convém, com Joseph Danan, considerar que é a sua própria dualidade que determina seu interesse11 , pois se elas são distintas, dramaturgia 1 e dramaturgia 2 não se excluem:

1 e 2 dram atu r gias

8 BUFFARD, Claude-Henri; GALLOTA, Jean-Claude. Le chorégraphe et son drama-

turge. Encontro organizado por Marion Boudier e Aude Thuries. Agôn [re-

vista eletrônica], Danse et dramaturgie, Le laboratoire. Disponível em:

. Acesso em: 23 nov. 2009. 9 ADOLPHE, Jean-Marc. La dramaturgie est un exercice de circulation pour tenir

le monde à l’écart. in Nouvelles de danse, n. 31, 1997, p. 32. 10 BOURASSA, André G. Glossaire du théâtre. Disponível

em:

. Acesso em: 7 abr. 2011. 11 DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Op.cit., p. 5–6.

– 21

frequentemente, o comentário da obra se faz reescritura para dar sentido12 à representação. Isso é ainda mais verdadeiro nas práticas artísticas não-textuais, onde dramaturgia 1 e 2 tendem, às vezes, a se confundir. Assim, no campo da dança, Bojana Cvejić considera, junto a outros, que coreografia e dramaturgia são um só: somente regimes de trabalho diferentes durante o processo de criação do espetáculo.13 Então, como pensar não a unidade, mas a coerência dessa dramaturgia necessariamente dual, plural e que poderíamos considerar como contraditória? Talvez a etimologia, sondada por Eugenio Barba em L’Énergie qui danse (2008), possa nos ajudar: “drama-ergon” designa, de fato, segundo ele, o “trabalho”, a “implementação das ações” no palco, definição que corresponde tanto à dramaturgia 1 quanto à dramaturgia 2.14

 

12 N. do E.: Consultar verbete SENTIDO na página 215. 13 Bojana Cvejić, em entrevista inédita concedida a Marion Boudier, Alice

Carré e Barbara Métais-Chastanier, realizada em Paris no dia 17 de abril

de 2010. C.-H. Buffard está próximo, neste ponto, da posição expressa por B. Cvejić: Buffard, Claude-Henri; Gallota, Jean-Claude. Le chorégraphe et

son dramaturge. Encontro organizado por Marion Boudier e Aude Thuries. Agôn

[revista eletrônica], Danse et dramaturgie, Le laboratoire. Disponível em:.

Acesso em: 23 nov. 2009.

14 BARBA, Eugenio. Actions au travail. In: BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. L’énergie qui danse. Montpellier: L’Entretemps, 2008. p. 54.

– 22

– 23

Dramaturgia é a ética que compõe o trabalho que traz ao mundo a obra-por-vir. trecho de:

André Lepecki [e-mail aos editores]

Vers ão am p liad a e at u aliz ad a d o texto p u b licad o e m : NORA , S i g rid (O rg .). Tem a s para a d a n ç a b ra s i l ei ra . S ã o Paulo: E d içõe s SES C S P, 2 0 1 0 .

– 24

O crime compensa ou o poder da dramatu r g i a –––––– Ana Pa i s

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

– 25

Ana Pais é dramaturgista, curadora e investigadora. Além disso, é doutora em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com a dissertação: Comoção: os ritmos afectivos do acontecimento teatral e autora do livro O discurso da cumplicidade. Dramaturgias contemporâneas (2. ed. Lisboa: Edições Colibri, 2016). –

O crime compensa ou o p o d e r da d r a m atu r g i a –––––– a n a PA IS

 

qando este texto foi publicado pela primeira vez no Brasil, na coletânea editada pelo sesc Temas para a dança brasileira, em 2010, assistíamos a um momento de viragem na edição de textos sobre dramaturgia no plano internacional. Desde 2006, surgiu mais de uma dezena de novos volumes sobre dramaturgia (só em 2015 foram publicados cinco estudos).1 Tais publicações propõem outras cartografias e problematizam o papel do dramaturgista no contexto atual da sociedade globalizada. Algumas obras centram-se nas práticas teatrais; outras nas práticas coreográficas; outras ainda expandem-se pelo campo das artes visuais e artes multimídia. Esta emergente bibliografia sinaliza a urgência de refletir sobre a expansão do conceito de dramaturgia, intensificando-se à medida que a figura do dramaturgista 1 TRENCSÉNYI, Katalin. Dramaturgy in the making: a user’s guide for theatre practitioners. Londres; Nova York: Bloomsbury, 2015. PROFETA, Katherine. Dramaturgy in motion: at work on dance and movement performance. Madison: University of Wisconsin Press, 2015. KUNST, Bojana. Artist at work, proximity of art and capitalism. Winchester: Zero Books, 2015. HANSEN, Pil; CALLISON, Darcey (Orgs.). Dance dramaturgy: modes of agency, awareness and engagement. Londres: Palgrave Macmillan, 2015. PITÁGORAS

500:

Revista

de

Estudos

de

Teatro.

Dossiê

dramaturgias

di-

versas, v. 8, (jun. 2015). Disponível em: . Acesso em: 07 jan. 2014.

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O espaço público da representação no qual o corpo se oferece à interpretação, assim como ao olhar, interroga ou critica igualmente as representações dominantes do que pode (ser) o corpo. Em reação oposta aos corpos modelados pela tradição espetacular, corpos gloriosos da proeza no circo tradicional ou padronizados e virtuosos dos balés clássicos, algumas escolhas dramatúrgicas podem procurar perturbar as normas socialmente admitidas. Assistimos, assim, por exemplo, a uma reavaliação do lugar da façanha na arte do circo, que baseava-se tradicionalmente na proeza e num fascínio pelo risco do acidente, em favor da busca de um corpo frágil, assumindo suas fraquezas e seus fracassos, em contraponto à representação do esforço glorificado e do intérprete magnificado. O recurso ao corpo fora da norma, herdado dos espetáculos populares ou das feiras de diversões, é igualmente reinventado e reinvestido por alguns encenadores ou coreógrafos, como Bouchra Ouizuen, que em Madame Plaza (2009) trabalha com mulheres aïtas, cantoras de cabaré marroquino de corpos largos e vozes potentes, consideradas prostitutas. Atrelada a corpos incomuns ou tabus, essa autodramaturgia das bailarinas se opõe às lógicas de virtuosismo e de distanciamento do corpo sublimado do intérprete, tanto quanto ela questiona a uniformização dos modelos corporais e seus valores sociais. O fato é que o impulso espetacular usado pode levantar a questão da ambivalência entre exibição e banalização da singularidade. Se o corpo tem suas razões que o dramaturgista desconhece, a dramaturgia pode ignorá-las?

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O projeto dramatúrgico se elabora assim em comum. Não antes, mas durante os ensaios. Parte-se talvez de uma suposição, de uma aposta sobre um sentido possível. Essa suposição, os ensaios irão confirmar ou contestar, enriquecê-la, de todo modo. A dramaturgia é obra de todos, no ato mesmo do teatro. trecho de:

Bernard Dort

L’état d’esprit dramaturgique

[THÉÂTRE PUBLIC. Dramaturgie, n. 6-7, 1986, p. 10.]

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P u b l icad o com o t ít ulo T h e ig norant d ram at urg . In: M a s ka , v. 1 6, n. 1 3 1 132, 2 0 1 0 , p . 4 0 -5 3 .

0 dramatu r g i sta ignorante –––––– B oja n a Cv e j i ć

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

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Bojana Cvejic´ é dramaturgista, performer e professora da University Singidunum, em Belgrado. Além de diversos ensaios, publicou livros como Choreographing problems: expressive concepts in european contemporary dance and performance (2016) e Drumming & rain: a choreographer’s score, juntamente com Anne Teresa De Keersmaeker (2014). –

P

O d r a m atu r g i Sta ignOrantE –––––– B ojA n A cv e j i ć

 

 

ara mim não é surpresa que tenhamos nos reunido aqui para falar sobre dança e dramaturgia.1 Podemos orgulhosamente reconhecer que já realizamos vários seminários, oficinas e todos os tipos de encontros sobre “dramaturgia da dança”. Entretanto, a razão pela qual o tema chama tanta atenção hoje tem menos a ver com sua novidade do que com o seu recente reconhecimento como uma prática – que é mesmo uma profissão – cujo papel na criação em dança ainda não recebeu reflexão suficiente. Uma outra abordagem demandaria o questionamento sobre como a “dramaturgia da dança” segue paralelamente a outros conceitos tratados na dança a partir de 2000, como “pesquisa”, “colaboração”, “teoria”, “educação e aprendizado”: como a dramaturgia da dança redefine esses conceitos e por quê. Vim até aqui decidida a não buscar problemas como “Por que a dramaturgia agora?”, ou “Por que somente agora?”, e outras questões do mesmo tipo, visto que elas inevitavelmente me levariam a desconstruir o tema geral do debate e, então, iríamos para casa um pouco mais céticos e cínicos do que o normal. Ao contrário, aceito o convite para pensar “O que é dramaturgia da dança?”. Entretanto, meu impulso é desviar da pergunta essencialista “o que” para ir em direção a outras perguntas: “Dramaturgia da dança?” Sim, mas por quem? Para quem? 1 Esse texto foi escrito originalmente para a conferência Danswerkplatz Amsterdam, em 4 de dezembro de 2009, no Fórum sobre Dramaturgia.

– – 92 16

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Com quem? Onde e quando? Como, em que situação e quanto? Multiplicar as questões faz com que a dramaturgia da dança pareça problema menor – de uma minoria (minoritário) – e, consequentemente, um problema plural. Estudando muitos casos um por um, poderíamos descobrir como o trabalho de dramaturgia reinventa-se, como é diferente sempre que consegue ser verdadeiramente um problema de uma nova criação, em oposição à repetição de uma “fórmula de sucesso”. A tentação de revelar as muitas dramaturgias esconde o perigo da relativização arbitrária – tudo e nada são ou podem ser (considerados) dramaturgia –, e a perda de uma posição a ser defendida. Portanto, estabeleço aqui, prontamente, minha posição e tarefa: debater a dramaturgia da dança na circunstância específica do trabalho freelancers baseado em projetos, algo a que costumávamos nos referir como “independente”. Quando existe um dramaturgista, ele não pertence ao quadro de funcionários da companhia ou de um teatro de repertório; ele não é, como dramaturgista, o encarregado de um know-how, de um ofício, de uma profissão (o caso exemplar de Marianne Van Kerkhoven vem lembrar-nos das décadas de 1980 e 1990). A chegada do dramaturgista na dança contemporânea a partir de 2000 é ainda mais curiosa pelo fato de os próprios coreógrafos nunca terem estado tão articulados e reflexivos sobre seus métodos de trabalho e conceitos. Então, por que um dramaturgista? Minha hipótese é: só podemos começar a falar sobre a dramaturgia da dança e tentar tornar essa noção mais substancial quando aceitarmos que ela não é necessária, que um dramaturgista de dança não é necessário. Mais que estabelecer uma definição normativa, gostaria de explorar funções, papéis, atividades do dramaturgista no trabalho experimental; como o dramaturgista torna-se elemento constitutivo de um método de criação experimental – um cocriador de um problema. Mas antes que eu proceda com isso, uma outra questão que me causa confusão: como vocês escrevem ou pronunciam essa palavra em inglês: dramaturg ou dramaturge? Ao acrescentar o “e”, a pala– 94

 

 

vra aparece com uma terminação feminina – um aviso divertido sobre a feminização do trabalho. Colocar o gênero na profissão não tem que revelar a mulher-dramaturgista sentada ao lado do homem-coreógrafo; feminização, de acordo com Antonio Negri e Michael Hardt (2000, p. 280–303)2 pressupõe a transformação do trabalho da manufatura de objetos para a produção de serviços. Para limpar o terreno da norma e da necessidade, permitam-me desestabilizar algumas suposições sobre os serviços que o dramaturgista de dança deve oferecer. O dramaturgista de dança tem habilidades linguísticas que o localizam no polo reflexivo da tediosa separação mente-corpo. Essa hipótese gera uma divisão binária do trabalho segundo faculdades mentais e corporais: coreógrafos são fazedores mudos; dramaturgistas, pensadores e escritores sem corpo. Mostrarei como as fronteiras dessas faculdades estão borradas e em constante transformação. O dramaturgista de dança observa o processo da distância de uma perspectiva exterior. Espera-se que mantenha um olhar crítico contra a autoindulgência e o solipsismo do coreógrafo. Mas e se o trabalho de coreógrafo, como escreveu recentemente Jonathan Burrows (2010, p. 33), é “[…] ficar suficientemente perto daquilo que estamos fazendo para sentir e ao mesmo tempo usar estratégias para nos distanciarmos o suficiente para compreender momentaneamente o que outra pessoa poderá perceber”? Burrows segue deliberando que a coreografia poderia ser “[…] algo que faz com que você dê um passo para trás por um momento, tempo (bastante) para ver o que outra pessoa pode ver” (idem. Então, novamente, a divisão entre fazedores e observadores não funciona quando tanto o dramaturgista quanto o coreógrafo exercitam perspectivas externas. Minha tarefa será a de discernir a natureza mais sutil dessa cumplicidade e dessa afinidade na faculdade compartilhada de ver e refletir.

0 DRA MATUR GISTA IGNO RANTE –––––– B OJA N A CVEJIĆ

2 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 301–324.

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O ponto anterior pode ser contra-argumentado da seguinte forma: o dever especial do olhar crítico de dramaturgista é colocar-se entre o coreógrafo e o público, de forma a mediar e ter certeza de que a comunicação funciona para ambos os lados. Mas isso transforma a dramaturgia numa pedagogia em que o dramaturgista se coloca na posição professoral ou sacerdotal, daquele que sabe mais, de quem pode prever o que as pessoas da plateia podem ver, sentir, pensar, gostar ou desgostar. Nós, artistas e teóricos, estamos obcecados demais em relação à condição do espectador, em vez de sabiamente relaxarmos, como escreveu Jacques Rancière em O espectador emancipado (2004), e confiarmos que estes são mais ativos do que podemos admitir. Oponho-me ferozmente a uma estreiteza desse tipo, pressuposição paternalista de que o público não poderá compreender se não for adequadamente – dramaturgicamente – guiado. Em vez de ceder à pressão da acessibilidade que estamos vivendo nessa era neoliberal, dramaturgistas poderiam estar preocupados sobre como a performance torna-se pública. Isso tem a ver com mais do que somente publicidade; é um esforço para articular, encontrar formatos apropriados, para tornar públicas justamente as ideias específicas, processos e práticas – o envelope imaterial de trabalho e conhecimento que sustenta a obra propriamente dita. Não estou dizendo que precisamos de dramaturgistas para sensibilizar aqueles espectadores hostis e ignorantes. Falo sobre um desafio para combater o hermetismo, para pensar como tornar disponível (e talvez interessante) os saberes sobre a criação em performance fora da nossa própria disciplina. A última barreira a ultrapassar é a função notória do dramaturgista conhecida como “terapeuta da companhia”. Esse lado escuro e vergonhoso da dramaturgia vale ser mencionado apenas para tornar claro que no momento em que o dramaturgista é relegado ao papel de “cuidador” dos humores e tensões num processo de trabalho – um filtro entre coreógrafo, performers e outros colaboradores, por exemplo –, ele perde seu poder de criação e, talvez, sua alegria.

 

 

Nós, dramaturgistas, nos lembramos de pelo menos uma experiência obscura desse tipo e que preferiríamos esquecer. Agora que liberamos nosso dramaturgista da dança desses serviços (tradicionais), estarão nossas mãos suficientemente livres para outro empreendimento? Quando pedem para Jan Ritsema, produtor holandês de teatro, definir o que é um dramaturgista, sua resposta é deliberadamente vaga: um copensador no processo. A partir dessa visão, mesmo que genérica, questiono: se o dramaturgista é o parceiro de trabalho no pensamento, ele é, então, um tipo de colaborador? Sim, mas um colaborador muito especial; o dramaturgista é, portanto, amigo de um problema. Ou, mais precisamente, ele é o amigo mais próximo do coreógrafo na produção de um problema, amigo para advogar um experimento, inimigo da complacência. O dramaturgista está lá para ter certeza de que o processo não compromete a experimentação. O que faz dele amigo é a proximidade em estar com e em ficar sob (o que nem sempre é compreender) o drama das ideias. Giorgio Agamben (2009, p. 31)3 escreveu recentemente: “Não se pode dizer ‘amigo’ como se diz ‘branco’, ‘italiano’ ou ‘quente’ – a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito. […]. Reconhecer alguém como um amigo significa não ser capaz de reconhecê-lo como ‘algo’.” Estou engajando a figura do amigo com o intuito de afastar a instrumentalidade e especialização do papel e da relação do dramaturgista com o coreógrafo. O tipo de amizade que estou evocando aqui começa com a ignorância. Não sobre o que ambos querem trocar entre si ou que utilidade podem ter, porque deve haver mesmo alguma forma de afinidade anterior para considerarem trabalhar juntos, mas a ignorância sobre o trabalho a ser feito. Aqui estou me referindo à “ignorância” na parábola de Jacques Rancière: O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual (1991). A emancipação é a pedagogia que Rancière opõe à instrução, porque é uma situação de aprendizado de algo que ambos, mestre e aluno, igno-

0 DRA MATUR GISTA IGNO RANTE –––––– B OJA N A CVEJIĆ

3 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 85.

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ram. Aprender, então, passa por assumir a igualdade de inteligências, como também a existência de um terceiro termo de mediação entre mestre e aluno, que é representado em Rancière pelo livro que mestre e aluno leem em duas línguas diferentes. Dramaturgista e coreógrafo estabelecem uma relação entre iguais similar à que existe entre duas pessoas ignorantes confrontando o livro que não sabem como ler. O “livro” é o trabalho de pesquisa, algo conectado por uma forma radical de esforço que ambos investem no processo de definição do que está em jogo e de como é esse jogo. O trabalho é a coisa, o “livro” que coreógrafo e dramaturgista não vão ler, mas escrever juntos, aquela terceira conexão que garante a regra da materialidade. O que quer que seja feito, pensado e sentido pode ser mostrado, discutido, confrontado no trabalho em si com dois pares de olhos ou mais. Agora que colocamos o dramaturgista lado a lado com o coreógrafo, temos que perguntar: qual a relação entre esse trabalho de construção, ao qual ambos se dedicam, com a produção de um problema? Quando digo um problema, falo, na verdade, sobre uma abordagem ou método que força o trabalho de criação a se desviar das possíveis – isto é, familiares – operações com: um “tema” ou aquilo que o trabalho quer abordar; uma “linguagem” ou meios de expressão; uma assinatura ou preferências estéticas; um processo ou dinâmica pela qual o trabalho se desenvolve; e um “dispositivo” ou aquilo que mantém a atenção dos espectadores. Listar todas essas categorias já mostra certa estabilidade num leque de opções, possibilidades reconhecíveis porque “sabemos o que funciona e o que não funciona”. A produção de um problema não começa com possibilidades – uma vez que estas dizem respeito a um conhecimento cujos limites achamos que devem expandidos –, mas com ideias que divergem e diferenciam condições para o novo que surge. Gilles Deleuze (2004, p. 101)4 qualifica a criação como virtual, e para explicar essa noção, geralmente cita a descrição de Proust sobre seus esta4 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 137.

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dos de experiência: “[…] real sem ser atual, ideal sem ser abstrato”.5 O conteúdo de uma ideia é virtual porque é diferenciação: uma relação diferencial entre vários elementos conduzida por um problema, uma questão. O problema está na ideia em si, ou melhor, esta existe somente em forma de questões. Como o ato de questionar hoje em dia é uma obviedade domesticada e desgastada para qualquer atividade intelectual, as questões pelas quais o problema é posto são distinguidas pelas respostas que levantam. Então o problema é medido pela solução que merece – se a solução é uma invenção que dá existência a algo novo, ao que não existia ou àquilo que poderia nunca ter acontecido. Colocar um problema não é revelar uma questão ou preocupação, algo que iria aparecer cedo ou tarde. Um problema também não é uma questão retórica que não pode ser respondida. Ao contrário, levantar um problema implica construir os termos nos quais ele vai ser formulado e as condições por meio das quais será resolvido. A solução acarreta a construção de procedimentos e a situação de trabalho. Para orquestrar em termos práticos o que aqui denomino como metodologia do problema, vou tratar da dramaturgia da performance And then (2007), de Eszter Salamon (francamente, eu preferiria desdobrar uma variedade de casos, e não arriscar idealizar um exemplo de um trabalho próprio autocelebrativo, mas o tempo pressiona-me a escolher um caso apenas para ilustrar minha visão; usarei, pois, um exemplo da minha própria prática dramatúrgica). O projeto começou com a descoberta de uma homonímia: centenas de mulheres na Europa e nos Estados Unidos possuíam um nome que a coreógrafa (assim como suas homônimas) considerava raro e pouco conhecido, por ser proveniente de um país relativamente pequeno, a Hungria. Depois de Magyar Tancók (2006), uma performance-palestra sobre sua experiência de tornar-se bailarina

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5 N. do E.: A citação original de Proust, contida no livro Em busca do tempo perdido. O tempo redescoberto, feita por Deleuze, está adaptada; nela, consta o plural: “[…] reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos”.

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na Hungria, Salamon estava interessada em investigar mais a relação entre contingência cultural e agenciamento individual na sua própria biografia. Entretanto, ela acabou percebendo que o questionamento quanto ao fato de se ter um nome ou outro produzia resultados arbitrários e insignificantes. A questão “O que há num nome?” tornou-se, assim, trivial, um falso problema. Entrevistando mais de uma dúzia de Eszter Salamons, a coreógrafa Salamon e eu estávamos diante de uma miríade de estórias de/sobre pessoas simples – individuais, singulares e incomparáveis. Nossa especulação inicial de que esse material poderia nutrir outro solo acerca da anulação da identidade de um sujeito singular por múltiplos sujeitos revelou-se desinteressante. Significava repetir as banalidades sobre construção identitária e autodeterminação performativa. A questão transformou-se, então, em um desafio: era necessário interrogar o próprio conceito de autoidentificação. O que significa encontrar uma pessoa cuja existência não lhe diz respeito de nenhum modo específico? Não é estranho e até perturbador espreitar a vida de alguém quando você se depara com ela por puro acaso? O que faz com que essas mulheres falem como todo mundo, como pessoas singulares, mas não particulares? O que faz a expressão de cada uma parecer banal e, no entanto, sempre importante? Nosso ponto de partida documental abriu caminho para a fabulação, sendo o gatilho da homonímia utilizado como critério mínimo para a escolha, a conexão e o confronto dessas diferentes experiências de vida. A pergunta “O que há num nome?” tornou-se uma questão de arbitrariedade e coincidência que condicionou a performance, enquanto o nome “Eszter Salamon” funcionou metonimicamente – não como um sinal de congruência entre as Salamons, mas exatamente como um sinal para individuação entre homônimos singulares (vujanović, 2008). Uma parte considerável da solução consistiu em construir um processo que permitiria coreografar a fabulação das singularidades. E a metodologia do problema envolve exatamente isso, uma invenção de limitações que agem como condições de possibilidade. Como – 100

 

 

contratar dúzias de Salamons de toda parte do mundo para performar no palco não era uma opção, decidimos perguntar se poderiam reencenar as respostas espontâneas, os gestos e a presença que elas apresentaram na ocasião das entrevistas. Filmamos, assim, seus “comportamentos restaurados” (schechner, 1985)6 numa organização específica no estúdio, uma mise-en-cadre (enquadramento) no qual elas se moviam num espaço que o público podia ver como um todo enquanto a câmera filmava as figuras descentralizadas em planos provisórios, simulando o ponto de vista de um espectador de teatro. Dessa forma a tela podia penetrar o palco e vice-versa, borrando suas respectivas fronteiras. Os artistas (as Eszter-Salamons, homônimas de nome, e seus duplos, homônimas visuais) circulavam entre tela e palco como num único espaço contínuo, dividido entre passado e presente, documentário e ficção, afirmação original e comentários autorreflexivos, espaço não teatral imaginário e palco teatral nu. É preciso mencionar que, fora a ajuda de um cineasta profissional7 , a coreógrafa e a dramaturgista eram diletantes na mídia de que se apossaram para a performance. Construir esse tipo de híbrido entre teatro e cinema significou também questionar a coreografia, e quando digo que isso só poderia ser feito por diletantes, faço uma distinção retórica entre a abordagem diletante que contesta e se esforça para expandir sua disciplina e linguagem e a visão essencialista do trabalho de profissional: diletantes são aqueles que formulam questões que estão para além da verdade dos especialistas da linguagem. Discernir a dramaturgia da coreografia aqui seria difícil, porque ambas se transformaram numa composição de movimento por meio do texto, dos takes da câmera, da luz simulando cinema, da montagem entre tela e palco, da trilha sonora, dos modos performativos, dos gestos e, finalmente, da dança. Foi à composição de cada

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6 N. do E.: Consultar SCHECHNER, Richard. Between theater and anthropology. Filadélfia: University of Pennsylvania Press, 1985. 7 O cineasta Minze Tummescheit foi responsável pela cinematografia e trabalho de câmera em And then.

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um desses elementos, e mais que isso, das relações entre eles, que Vujanović (2008) chamou de coreografia do “[…] conceito (deleuziano) de diferença, que por meio da repetição transforma os elementos introduzidos em um processo de abolição da auto-identidade”. Então o que a metodologia do problema gera? Questões que vão abrir espaço para eliminar lentamente as possibilidades conhecidas e facilitar a produção de um problema qualitativamente novo. É uma maneira de liberar as mãos, como mencionei antes. Burrows chama isso, laconicamente, de “desapegar” (2010, p. 81), e eu diria desfazer-se de certos hábitos que tornam a mente preguiçosa e as mãos rotineiras. O problema irá distinguir-se na medida em que demande sua própria – diferente, singular ou nova, mas impura e heterogênea, talvez mesmo híbrida – operação. A operação é definida pelas limitações específicas que asseguram sua consistência. O resultado é um novo dispositivo; não um arranjo arquitetônico, mas uma reconfiguração da atenção, o que significa que os espectadores vão também ter que experimentar o quão diferentemente eles são capazes de ver, pensar, sentir, em vez de recorrerem àquilo que reconhecem. O problema terá também a consequência de problematizar ou perturbar as visões e opiniões sobre o que está sendo apresentado, ou como a dança, a coreografia ou performance são tratados. Agora serão os espectadores que não mais perguntarão a si mesmos a questão essencialista “O que é isso?”, mas receberão, como fizemos no início com a dramaturgia, o presente de um problema se apresentando sob a forma de uma pluralidade de questões minoritárias sobre “quem, como, quando, onde, em que caso” é isso. Isso é uma performance? A próxima série de questões diz respeito ao dramaturgista, no tipo de dramaturgia que defino como a metodologia do problema. Como um dramaturgista se envolve na produção de um problema e, já que é um amigo tão próximo do problema, como sua posição pode ser diferenciada da função do coreógrafo? É importante que o dramaturgista não entre no processo porque este necessita de um dramaturgista; problemas só podem ser criados a partir do desejo, – 102

 

 

sem necessidade, obrigação, dever. Para chegar-se a uma amizade no problema, duas noções precisam casar. Afinidade não significa apenas ser próximo, similar, familiar, gostar da mesma coisa ou ter uma compreensão comum acerca dela, mas fazer esses sentimentos movimentarem-se em direção a um fim, e estou trazendo aqui a etimologia do francês à fin no sentido de finalidade. A afinidade sentida em uma produção que é desejada proverá uma restrição interna, limitando o número de escolhas possíveis, conduzindo o projeto a um “terminus” que, contudo, não vai predeterminá-lo inteiramente desde o início. Se afinidade é o que dramaturgista e coreógrafo compartilham, o que é que eles não compartilham? A motivação do coreógrafo, que pode ser pessoal – o lugar em que o trabalho afeta o criador. Mas esse lugar não é essencialmente a origem do trabalho, ainda que frequentemente seja reivindicado como tal. A afinidade pode ajudar o coreógrafo a abandonar aquilo que é pessoal como fonte de defesa solipsista, defesa esta refletida em afirmações como “porque eu acredito que, eu gosto, isso significa para mim…”, e a assumir uma posição externa política, social ou conceitual, constitutiva do trabalho da performance em si, mas, em todos os casos, uma posição refletida. A afinidade desdobra-se então em afiliação – conectando ambos, coreógrafo e dramaturgista, a um quadro de significações mais amplo do que a fantasia e a realização artística individual. Amigos de problema são também aliados que não defendem ego ou mitologias pessoais sobre o grande artista, mas certas visões, premissas, questões, critérios. Tudo isso que defendem os torna parciais e cúmplices, compartilhando a responsabilidade de afetar um contexto sempre maior que a performance. Mais uma vez, o aspecto pessoal da relação é esvaziado para dar lugar ao compromisso com determinadas políticas, de forma que não podemos falar nunca da lealdade do dramaturgista ao seu coreógrafo, mas sim de fidelidade a uma posição. E em relação à criticidade e à distância crítica, consideradas como aquilo que permite ao dramaturgista permanecer relativa-

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mente autônomo no seu trabalho? Certamente, agora, nós temos que inverter a questão e perguntar: o que é que o dramaturgista não compartilha com o coreógrafo? Qual é a sua motivação, além do interesse na problemática específica do trabalho? Observar como o pensamento se materializa numa forma de expressão é bem diferente da premissa comum de que dramaturgistas chegariam com seus conceitos e teorias elaboradas e achariam uma maneira de enfiá-las no processo. Os problemas dos quais eu falo aqui não representam conceitos pré-formados, eles criam conceitos na expressão, que não podem ser separados das situações nas quais ocorrem. Conceitos nascidos na expressão não preexistem nem transcendem seus objetos. Em vez da identidade do objeto, o conceito tem como objetivo articular uma multiplicidade – os elementos que são variáveis e reciprocamente determinados por relações. Um conceito expressivo dessa ordem, desenvolvido durante o processo And then, foi o de “terceiro espaço”, um espaço que não existe literalmente, mas virtualmente entre tela e palco. Marcado por vários cortes entre memória e presente e por vozes cujos corpos desaparecem, ou sons provenientes do extracampo (o que se escutava excedia o que se via no palco ou na imagem da tela), esse terceiro espaço tornou-se uma zona negra de manobras entre um contexto perdido e a realidade do teatro. Começamos a pensá-lo como um canteiro de obras para o imaginário, como se ele absorvesse todos os blackouts do teatro nos quais os espectadores continuam a editar o filme. Eu agora corro o risco deslizar para a poesia, mas aqui estou chegando à imaginação conceitual para a qual a teoria da performance, quando praticada somente em gabinetes, torna-se seca e insuficiente. Não deveríamos esquecer que muitos dos conceitos poderosos na filosofia foram tomados emprestados de mãos não filosóficas de artistas eloquentes que refletiram sobre suas próprias poéticas. Podemos citar o exemplo do corpo sem órgãos, de Antonin Artaud, renovado por Deleuze e Guattari.

 

 

Se os dramaturgistas devem ser exaltados por contrabandear ideias e conceitos de performances para outros modos discursivos – livros, salas de aula, revistas e, assim esperamos, outros campos de conhecimento – ou se devem ser considerados trapaceiros porque sentam sempre em várias cadeiras ao mesmo tempo, ocupando diversas posições por meio de atividades distintas (professores, críticos, curadores, performers), isso vai depender da ética do coreógrafo. Cada vez mais, hoje, coreógrafos reconhecem que as ideias e materiais da performance são criados e circulam de maneira aberta. Há dois anos, eu e Xavier Le Roy, coreógrafo com quem trabalhei como dramaturgista em diversas performances, iniciamos um projeto que reuniu vários coreógrafos e performers para trabalhar em condições socioeconômicas drasticamente diferentes do nosso regime habitual de trabalhadores freelance, nômades no nosso trabalho, assim como na vida. Essas condições se refletiram no título do projeto: Six Months One Location (6M1L). Uma outra proposição era a de que cada um de nós, além do nosso próprio projeto, nos engajaríamos nos projetos de outros dois participantes. Teríamos que escolher que função gostaríamos de exercer, isto é, não somente a de performer no projeto, mas de dramaturgista, conselheiro, escritor, cantor, iluminador ou responsável pela trilha. A rotatividade na função refletia o senso de flexibilidade, uma prontidão para assumir outras funções, que para a maioria dos artistas independentes é uma realidade cotidiana; então era só uma questão de formalizar e dar um nome a isso. Le Roy depois encontrou a noção de “intercessores”, numa entrevista com Deleuze (1990, p. 125)8 na qual ele introduz a figura do intercessor para descrever sua colaboração com Félix Guattari:

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O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, ani8 N. do E.: Consultar edição brasileira, p. 156–157.

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mados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. […]. Não existe verdade que não ‘falseie’ ideias preestabelecidas. Dizer ‘a verdade é uma criação’ implica que a produção de verdade passa por uma série de operações que consistem em trabalhar uma matéria, uma série de falsificações no sentido literal. Meu trabalho com Guattari: cada um é o falsário do outro, o que quer dizer que cada um compreende à sua maneira a noção proposta pelo outro. Forma-se uma série refletida, de dois termos. Não está descartada uma série de vários termos, ou séries complicadas, com bifurcações. Essas potências do falso é que vão produzir o verdadeiro, é isso os intercessores…

Há dois pontos que gostaria de destacar a partir dessa noção. Primeiramente, a dramaturgia tende a normatizar a colaboração em termos duais quando é esperado que o dramaturgista aja como um analista, conferindo sentido à coisa toda. No entanto, como diz Deleuze, há sempre mais de uma diferença; há uma série, uma multiplicidade de vozes, de intercessores que frequentemente não reconhecemos e cujas vozes pegamos emprestadas. O outro ponto é ver a dramaturgia como uma salvaguarda contra uma verdade, como trajetória de falsificação de muitas; às vezes, até mesmo literalmente, ter o luxo de dois dramaturgistas. Ter três é mais divertido ainda que ter dois, porque ideias e energia deixam de ser espelhadas, buscando no outro a confirmação ou o questionamento, e começam a circular, proliferar e ter vida própria. Muito poderia ser dito sobre a prática da dramaturgia e suas várias tecnologias, mas uma característica me parece nunca ser suficientemente destacada: a importância de levar o tempo que for preciso. Se algo diferente ou novo está por acontecer, o processo do trabalho tem de atender sua duração, e isso, então, possibilita a percepção da mudança. Por outro lado, nosso tempo de produção é determinado pela eficiência. Portanto, dramaturgistas são muitas – 106

 

 

vezes convidados como consultores para passar no ensaio “uma ou duas vezes” e dar sua opinião de especialista. Isso ocorre já no final do processo, quando a maior parte do tempo de pesquisa acabou e o trabalho do dramaturgista transforma-se no de afinar a composição, a atitude, o estilo de performance. Por isso, este é relegado ao papel de um mentor que chega para supervisionar o trabalho de acordo com um padrão de sucesso. Na minha própria experiência, eu já tive que me debater com a pergunta frequente: “Você acha que funciona?”, para a qual minha resposta é: “O que você quer dizer com… funciona? Meu carro funciona, por exemplo, sim… Mas poderíamos, por favor, falar sobre a performance em outros termos, não-normativos?” E se vamos falar sobre isso como produção de problema, o sucesso não pode ser a medida da dramaturgia. Como prática, ela pode, na melhor das hipóteses, ser especulativa. Eu desenvolvi essa ideia da prática especulativa em oposição às práticas normativas da filósofa belga Isabelle Stengers (2008), que trata experimentos da Física ganhadores do Prêmio Nobel e feministas-bruxas norte-americanas como práticas igualmente valiosas. Especular significa posicionar o pensamento como crença ou fé num determinado resultado sem ter evidência consistente. Por exemplo, alguém especula sobre os resultados num requerimento para um subsídio ou investimento em ações ou qualquer outro empreendimento com a esperança de ganhar, mas com o risco da perda. Como pesquisadora, sempre que você elabora ou decide aplicar um método, você especula se isso vai levar a um resultado desejado ou se vai refutar uma hipótese, ou, ainda, até mesmo conseguir produzir qualquer coisa. As palavras-chave para extrair da especulação são “incerteza”, “risco”, “audácia”. Mas especular pragmaticamente não se resume a ser prudente com relação a ilusões ou pensamentos ávidos; trata-se também de perspectivar uma situação, agregar um conjunto de restrições ao colocar um problema, obrigando-se a avaliar os efeitos que uma especulação, um pensamento, uma decisão, um método, terão tido – no tempo futuro do presente composto –

0 DRA MATUR GISTA IGNO RANTE –––––– B OJA N A CVEJIĆ

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nessa performance. Na dramaturgia, praticamos especulação. Somos apreendidos pelas coisas antes de compreendê-las. Aprendemos a fazer e dizer “vamos pensar novamente”, pois não sabemos agora, mas teremos sabido até lá.

• vujanović, Ana. The choreography of singularity and difference. And Then, by Eszter Salamon. Performance Research: A Journal of the Performing Arts, v. 1, n. 13, 2008, p. 123–130.

0 DRA MATUR GISTA IGNO RANTE –––––– B OJA N A CVEJIĆ

Referências • agamben, Giorgio. What is an apparatus? and other essays. Califórnia: Stanford University Press, 2009 [Edição brasileira: O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009]. • burrows, Jonathan. A choreographer’s handbook. Londres: Routledge, 2010. • deleuze, Gilles. Desert islands and other texts 1953–1974. Los Angeles; Nova York: Semiotext(e), 2004, p. 101 [Edição brasileira: A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953–1974). São Paulo: Iluminuras, 2006]. • ______. Negotiations. Nova York: Columbia University Press, 1990 [Edição brasileira: Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992]. • hardt, Michael; negri, Antonio. Empire. Cambridge, ma; Londres: Harvard University Press, 2000 [Edição brasileira: Império. Rio de Janeiro: Record, 2001].

 

 

• rancière, Jacques. The emancipated spectator. Manuscrito de uma palestra realizada na abertura do International Theatre Academy, em Mousonturm, Frankfurt, 2004, cortesia do autor [Edição brasileira: O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012]. • ______. The ignorant schoolmaster: five lessons in intellectual emancipation. Califórnia: Stanford California Press, 1991 [Edição brasileira: O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2007]. • stengers, Isabelle. Including non-humans into political theory. Manuscrito, 2008, cortesia da autora. – 108

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De fato, a oposição entre os que praticam e os que teorizam instaura a distinção metafísica entre corpo e mente, entre fazer e pensar, entre a cabeça – com seu privilegiado órgão do sentido, o olho – e outras intensidades sensoriais. [...] A identificação da figura do dramaturgista como o “olhar exterior” é suficientemente clara a esse respeito. Gostaria de falar para além do paradigma cartesiano, que separa a mente do corpo e que equipara a mente com o ótico. [...] Ultrapassar o paradigma cartesiano é mover-se fora de um terreno sólido, é tropeçar e gaguejar no limite do nosso pensamento, revelando novos e imprevisíveis modos de pensar e sentir. trecho de:

Christel Stalpaert A dramaturgy of the body

[Performance Research, 14 (3), Taylor & Francis,

2009, p. 124.]

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P u b l icad o com o t ít u lo T he e conomy o f p roxim it y : d ra m at urg ical wor k in c o nte m p orar y d ance , em P er fo r m a n c e Re s ea rc h : O n d ra m at urgy, v. 14 , 3 e d ., p . 8 1 -8 8 , 2 0 0 9 .

A ec o n o m i a da p r ox i m i dade: o t r a ba lho dram atú r g i c o n a da n ça contemporânea –––––– B oja n a Ku n st

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

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Bojana Kunst é filósofa, dramaturgista e teórica da performance. É professora no Institut for Applied Theater Studies da JustusLiebig University Giessen, Alemanha, onde coordena o programa internacional de pós-graduação em Choreography and Performance. É integrante do conselho editorial das revistas Maska, Amfiteater e Performance Research. Seu livro mais recente é Artist at work: proximity of art and capitalism (2015). –

– – 112 20

introdução

a E C O n O m i a da P r Ox i m i d a d E : o t r a bal h o d r a m atú r g i c o n a da n ça contemporânea –––––– B ojA n A ku n st

 

 

“Sei o que faço, mas não sei qual nome dar a isso”, disse André Lepecki no começo da década de 1990 sobre sua função no trabalho de Vera Mantero. “Você é um dramaturgista”, foi a resposta do produtor Bruno Verbegt (lepecki, 2001b). Nesse ensaio, gostaria de apresentar as razões pelas quais a dramaturgia adentrou a dança contemporânea nas duas últimas décadas. Tais razões não estão somente relacionadas a suas mudanças estéticas e formais, mas a um deslocamento profundo na nossa maneira de compreender os modos de trabalho na dança contemporânea, seus modos de produção e apresentação. É fato conhecido que a dramaturgia surge na dança contemporânea a partir da década de 1980, ou seja, ao mesmo tempo em que começam a ocorrer mudanças na Europa. A dança contemporânea, por sua abordagem interdisciplinar, começou a desestabilizar as categorias que definiam funções na dança e na coreografia, levantando a questão: o que é dança? À primeira vista, o trabalho dramatúrgico na dança parece refletir a necessidade crescente de teoria e reflexão que questionem novamente suas próprias premissas e autoevidências (por exemplo, de que dança corresponda a movimento, de que exista um corpo neutro na dança), e lhe tragam uma dimensão autorreflexiva: uma consciência sobre seus contextos cultural, histórico e econômico. – 113

Entretanto, se a entrada da dramaturgia for compreendida somente como uma consequência de mudanças estéticas, corremos o risco de rotulá-la como uma nova doxa. De acordo com essa nova doxa, o dramaturgista seria alguém formado segundo os modos da crítica pós-estruturalista e familiarizado com a expansão pós-dramática da prática da performance, ou seja, quem garante a interdisciplinaridade. Ao mesmo tempo, seu trabalho convém aos conceitos curatoriais de festivais e a produções cada vez mais orientadas pelo contexto — uma compreensão da dramaturgia como uma garantia de qualidade da performance, como se tal garantia já estivesse dada, embora nem sempre conscientemente, nos esquemas de formação dramatúrgica acima mencionados. Ao ler cuidadosamente como dramaturgistas descrevem seus próprios fazeres em dança contemporânea, pode-se observar que muitos enfatizam a necessidade de proximidade para com os processos, de sua inclusão, e destacam os aspectos afetivos associados a seus trabalhos. O fazer dramatúrgico foi descrito como incorporado (Lepecki), como a administração de energias dramatúrgicas diferentes (Myriam Van Imschoot), como a transformação do material em algo mais rico, sobretudo em termos de dinâmica e significado (Eleonora Fabião) (behrndt; turner, 2008). Frequentemente, essas descrições rejeitam a noção do dramaturgista como aquele observador que detém o saber, aquele alguém que passa boa parte do tempo sentado no escuro das arquibancadas com sua perspectiva crítica distanciada. Tais descrições buscam superar a função do dramaturgista como um garantidor de conhecimento objetivo. A colaboração dramatúrgica é, portanto, caracterizada por uma demanda de proximidade que não surge somente da instabilidade das categorias epistemológicas ou do fato de que dramaturgistas colaboram em performances de dança com corpos, e não textos. A colaboração descreve, além disso, a topografia do processo e a divisão de funções e atividades – podemos falar também em certas

características do “trabalho” dramatúrgico.1 Lembro de Meg Stuart descrever um automatismo corporal como consequência da proximidade da colaboração com sua antiga dramaturgista, Bettina Masoch, a qual sempre esteve ao seu lado durante o processo e para quem sempre se voltava, colocando as mãos em seus ombros: “Eu continuei a fazer isso por um tempo, mesmo quando ela não estava ao meu lado”.2 Esse automatismo anedótico da proximidade no trabalho (que, claro, pode incluir uma variedade de imagens topográficas) fala de um aspecto específico e incorporado ao trabalho dramatúrgico que está, frequentemente, no primeiro plano quando discutimos a dramaturgia de uma performance de dança. O que essa necessidade de proximidade sugere? De onde ela vem?

A ECONO MIA DA PROXIMI DADE : O TRA BALHO DRAMA TÚRGICO NA DANÇA CONTEM PORÂNEA –––––– b oja n a ku n st

paradoxo da proximidade do público

 

 

Uma das respostas pode ser encontrada nos “[…] métodos de trabalho mais orientados pelo processo, onde sentido, propósito, forma e substância do trabalho vêm do próprio processo e não de um sentido dado antecipadamente que precisa ser investigado”. Kerkhoven (1994, p. 18–20) aponta, deste modo, a mudança em direção a modos de criação da performance de dança mais orientados pela pesquisa, mais abertos e interdisciplinares. Em seus ensaios, há duas décadas, essa maneira de trabalhar aparece vinculada a uma compreensão pós-moderna da arte, que se recusa a aceitar verdades e significados previamente estabelecidos. Assim mesmo, é possível argumentar, a partir da perspectiva atual, que, para além das características estéticas de algum estilo ou período da arte específico, estes métodos de trabalho orientados por pesquisas estão frequentemente relacionados a contextos culturais e econômicos mais 1 No momento em que as diferenças entre as metodologias de trabalho vão desaparecendo, a dramaturgia também pode ser abordada a partir da perspectiva

do trabalho imaterial. 2 Esta afirmação se refere a uma conferência que tratava de duos entre coreó-

grafos e dramaturgistas. A conferência foi organizada por Luk van den Dries, no deSingel international arts campus, Antuérpia, em 2004.

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abrangentes e ao trabalho imaterial em geral. Ao longo das duas últimas duas décadas, no primeiro plano de muitas das produções e apresentações de dança contemporânea, a orientação multidialógica e pluralista do processo artístico – assim como sua dimensão afetiva, linguística e cognitiva – tem contribuído e dado forma, de maneira significativa, aos contextos de apresentação e institucionalização da dança, bem como da dança-educação, da pesquisa etc. O processo de trabalho na dança contemporânea está, ademais, intimamente ligado aos modos de colaboração em comunidades temporárias. Isso é comprovado pelo fenômeno do aparecimento e desaparecimento de centros de dança (Bruxelas, Berlim, Amsterdam, Paris) e pelas iniciativas de produções temporárias, cujo valor adicional é precisamente esse de uma troca constante de trabalho imaterial (informação, conhecimento, afeto, emoção, proximidade, crítica, pertencimento).3 A proximidade frequentemente encontrada nas descrições dos fazeres dramatúrgicos na dança não é somente uma consequência do trabalho do dramaturgista com corpos, ou sua consciência de que não há garantia externa de verdade. Essa demanda de proximidade está estreitamente relacionada ao desaparecimento das diferenças entre modos individuais de experiência humana, entre trabalho, ação e intelecto. Paolo Virno tem analisado o desaparecimento das diferenças entre trabalho (orientado em direção a uma troca orgânica com a natureza) e ação (atividade política) no mundo do trabalho contemporâneo pós-fordista, um mundo onde este tem se tornado cada vez mais similar à ação pública e política – o tipo de ação que encontra sua própria completude em si mesma. Ao mesmo tempo, o intelecto também não é mais uma atividade reflexiva isolada, mas, de acordo com Virno (2004), torna-se um princípio básico do trabalho pós-fordista (no primeiro plano da produção estão 3 O fato de que a maioria dessas trocas acontece de modo voluntário enfatiza, adicionalmente, o valor desse tipo de trabalho imaterial, que é gratuito

 

 

as habilidades humanas cognitivas). Portanto, o trabalho torna-se público, uma prática virtuosa que sempre se dá diante de outras pessoas. Não é coincidência que a dança e outras formas de arte contemporânea sejam criadas e apresentadas por meio de muitos contextos de produção que encorajam e desenvolvem fazeres artísticos na presença do público: assistimos a works in progress, ensaios abertos, festivais com orientações curatoriais e contextuais, resultados de processos de pesquisa etc. “Nesse novo cenário, o coreógrafo reivindica uma voz teórica, o crítico emerge como produtor, o agente escreve críticas de dança, o filósofo arrisca alguns passos de dança, o público é convidado a participar como estudante e praticante” (lepecki, 2001b). Na primeira parte de seu texto, Lepecki relaciona esse tipo de desaparecimento das diferenças a uma incerteza epistemológica que emerge sobre o discurso crítico da dança. Ao mesmo tempo, destaca que esse tipo de desaparecimento deveria ser estudado a partir da perspectiva da economia e do capital, que estão influenciando modos atuais de produção em performance. O desaparecimento das diferenças entre várias categorias de trabalho e práticas resulta de uma mudança na compreensão da materialidade dos próprios processos de trabalho artístico, o que influencia profundamente os modos vigentes a partir dos quais a dança é performada. Pode-se argumentar que a necessidade de proximidade e a incorporação do trabalho dramatúrgico na performance decorrem do fato (paradoxal) de que os métodos de trabalho e seus processos, em geral, tenham se tornado visíveis ou públicos. O trabalho envolvido na criação de uma performance assume uma dimensão performativa – é um processo em si mesmo e, portanto, requer um público. A necessidade de proximidade é, portanto, atualmente, o outro lado do aspecto público dos processos artísticos do trabalho. A performance do processo está intimamente conectada com a necessidade de inclusão de participantes.

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(BAUER, 2007).

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É fato que a arte do século xx chama atenção para a visibilidade, percepção e materialidade dos processos criativos; a arte é performada como uma prática específica que encontra sua própria completude em si. Como Agamben (2012) afirma, a arte contemporânea passou pela experiência de um desaparecimento gradual da distinção entre poiesis e prâxis, as duas dimensões do trabalho humano que Aristóteles formulou como separadas. O desaparecimento da diferença entre o trabalho cuja completude se encontra fora de si (poiesis) e aquele em que a completude é encontrada em si (prâxis) influenciou muitas mudanças na arte, como os aspectos emancipatórios da vanguarda, a relação entre vida e arte, conceitos de obra aberta, assim como processos artísticos conceituais e colaborativos. Na dança contemporânea, todavia, enfrenta-se um problema interessante que, nesse momento, só pode ser brevemente delineado. Desde o início, a dança contemporânea tem sido vista como uma prática única, um movimento que encontra sua própria realização em si, uma (meta)cinética única que não diferencia poiesis e prâxis. Os movimentos da dança contemporânea — que ao longo dos últimos 20 anos colocaram novamente em primeiro plano a práxis da dança e nela comprometeram-se com a proximidade do espectador — não são, portanto, uma digressão da dança contemporânea voltada para produções que podem perceber a si mesmas como únicas em sua poiesis. Sugiro, também, que não se trata neste caso de confrontar ideologias ou afirmações sobre o que a dança deveria ser, o que frequentemente faz com que a descrição dos seus movimentos nas duas últimas décadas como dança conceitual falhe em compreensão. O que realmente acontece é uma mudança na prática, na produção da dança em si, em como é feita, ou seja, é preciso levar em consideração tudo o que é estreitamente vinculado ao trabalho coreográfico no sentido mais amplo da palavra. A proximidade e o colapso da distância entre vários processos de trabalho e profissões estão muito relacionados às mudanças no capitalismo contemporâ– 118

neo, no qual, de acordo com Virno (2004), as habilidades humanas fundamentais começam a ter destaque. No primeiro plano da produção estão linguagem, pensamento, autorreflexão e habilidade para aprender. A produção contemporânea consiste em compartilhar hábitos cognitivos e linguísticos, e é essa troca afetiva e intelectual de conhecimento que constitui a produção de trabalho pós-fordista. Todos os trabalhadores participam da produção proporcionalmente ao quanto são falantes-pensantes. Isso, atente-se, não tem relação com ‘profissionalismo’ ou com conceitos antigos de ‘habilidade’ ou ‘técnica’: falar/pensar são hábitos genéricos do animal humano, o oposto de qualquer outra forma de especialização (virno, 2004, p. 41).

 

 

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Para o autor, isso pode ser descrito como um compartilhamento preliminar, que é em si a base da produção contemporânea. A seu ver, o ato de compartilhar é oposto à divisão tradicional do trabalho. Não há mais critérios técnicos objetivos que regulem as condições de trabalho compartilhado ou que definam a responsabilidade de cada trabalhador na sua própria esfera de especialização. Como escreve Virno, “[…] a separação de responsabilidades não mais responde aos critérios ‘técnicos’ objetivos, sendo, ao invés, explicitamente arbitrária, reversível, variável” (idem). Nesse contexto, o modo da produção artística não mais difere de outros modos de produção; aliás, o capitalismo contemporâneo aceitou algumas das características básicas do trabalho artístico, tais como criatividade, autonomia e inovação. A interdisciplinaridade, a dança como um campo do conhecimento, a pesquisa, a obra aberta, o trabalho em processo, a dramaturgia incorporada, todas essas categorias deverão ser repensadas e posicionadas em relação ao capitalismo cognitivo, que coloca as relações de linguagem incorporadas e os eventos no primeiro plano dos processos de produção. Nesse sentido, o próprio caráter de evento da dança, seu aspecto relacional e a afetividade dos processos de trabalho são en-

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fatizados e tornam-se parte da produção e performance da dança contemporânea. Também seria possível estabelecer uma hipótese sobre a qual não podemos, ainda, discutir em profundidade. Ligado, ao longo do século xx, aos princípios do fordismo (movimento contínuo, velocidade, oscilação entre ordem e caos, o regulado e o coincidente), o desenvolvimento da dança contemporânea durante as duas últimas décadas tem refletido mudanças profundas, acarretadas pelo modelo pós-fordista de trabalho (virtuosismo afetivo e cognitivo, temporalidade com múltiplas camadas, proximidade, processos colaborativos, abertura do trabalho etc.). Nesse sentido, práticas coreográficas diferentes não deveriam ser compreendidas somente como práticas estéticas, mas também sociais, mais ampliadas, de distribuição de corpos no tempo e espaço. Esses tipos de práticas não mais emergem da velocidade e da autonomia do movimento industrial. O que se revela diante de nós é a incorporação perceptiva do corpo, a intermediação deste, a potencialidade cognitiva e biogenética do movimento. Houve um deslocamento da autonomia e do dinamismo do movimento para a distribuição social e cultural mais expandida dos corpos, com a heteronomia e a proximidade emergindo enquanto características principais das relações culturais e econômicas contemporâneas.

a profissão de dramaturgista Uma das principais razões para a entrada da dramaturgia na dança pode ser encontrada nas mudanças ocorridas nos contextos da prática artística e do trabalho social. A entrada do dramaturgista na dança pode ser lida como uma consequência das transformações na economia política do trabalho, onde a produção de linguagem, contextos e habilidades cognitivas e afetivas humanas agora dominam. Tais mudanças não são somente consequência da autorreflexividade artística, e não podem ser consideradas como eventos isolados na esfera (supostamente autônoma) da arte, mas um reflexo – 120

 

 

do aparecimento do capitalismo cognitivo e dos modos de produção associados a ele. Essa é a razão pela qual o trabalho do dramaturgista é fortemente caracterizado pela flexibilidade. Como um participante no processo, o dramaturgista pode ocupar uma variedade de papéis – de dramaturgista prático, produtor, diretor de festival, diretor de palco, escritor, jornalista, professor, oficineiro, tutor, palestrante, acadêmico, artista, bailarino, produtor de network, conselheiro político-cultural, mentor, amigo, bússola, memória, companheiro de viagem, mediador, terapeuta. A complexidade desta profissão – a habilidade afetiva de mover-se entre reflexão teórica e conhecimento prático, ser ao mesmo tempo um olhar exterior e participante envolvido – é, com frequência, apressadamente reduzida a um tipo de indefinição “estética”. Porém, ao contrário disso, a flexibilidade do trabalho de dramaturgista está ligada à produção contemporânea de eventos e relações. Assim, o dramaturgista torna-se, frequentemente, mediador da troca contemporânea de conceitos, sentidos, atenções, percepções. A flexibilidade, que é parte da política econômica do trabalho do dramaturgista, possibilita a negociação contínua com as várias metodologias de produção artística. Essas possibilidades de produção estão bastante conectadas com novas instituições, que não estão baseadas tanto na estável arquitetura e no poder representativo das instituições culturais, mas sim num modelo de plataformas para eventos e reuniões sempre mutáveis, críticas e criativas. Nesse sentido, a dramaturgia contemporânea difere-se do projeto moderno de formação de plateia e de discurso crítico que moldou o gosto do público e a identificação coletiva. Como escreve Eda Čufer (2001), a função de dramaturgista, de acordo com o modelo tradicional iluminista, é especialmente estabelecer fluidez e transição entre vários sistemas ou esferas autônomas.4 Precisamente por sua habilidade

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4 Eda Čufer (2001, p. 23) escreve que a dramaturgia é uma intermediação entre

três esferas autônomas: a primeira é o discurso filosófico, teórico e aca-

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em transgredir, o trabalho da dramaturgia tradicional é marcado por um senso de objetividade em que o dramaturgista identifica e categoriza o público que visita a instituição artística. Hoje, entretanto, quando as diferenças entre as diversas formas de experiência humana (trabalho, ação, intelecto) são borradas e a distinção entre sistemas autônomos discutida por Čufer começa também a desaparecer, as noções de objetividade e exterioridade parecem anacrônicas. A proximidade, portanto, corresponde à tendência atual de fragmentação e individualização do público, como também dos ideais de mobilidade e flexibilidade adotados por instituições artísticas contemporâneas. Mais do que adotar uma perspectiva de distanciamento objetivo, o dramaturgista profissional, hoje, incorpora um tipo de proximidade afetiva, que, ao mesmo tempo, está também no primeiro plano da compreensão dos processos criativos contemporâneos, dos modelos de instituições contemporâneas e dos modos de disseminar o trabalho artístico. É muito comum ter a função de dramaturgista definida pelo simples fato de que uma performance sempre acontece diante de um público. O dramaturgista é continuamente visto como um primeiro espectador, ou alguém que traduz o processo em produto apresentado: alguém que forma o contexto de apresentação e que realiza uma mediação entre os variados processos de disseminação do trabalho artístico. Em todas essas descrições, o dramaturgista adota uma perspectiva exterior, enquanto o público é apresentado como uma espécie de multidão anônima, cuja identificação seria também construída pelo dramaturgista, que não somente representa o gosto do público, mas também é capaz de transformar atitudes por meio da interpretação do sentido. A dramaturgia contemporânea desvia-se radicalmente dessa função representacional do dramaturgista, não dêmico; a segunda é a prática literária e teatral; a terceira é o teatro como uma instituição de importância pública e discurso ideológico. Esses

três campos correspondem aos domínios da experiência humana descritos por

Virno (2004).

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apenas porque públicos contemporâneos não podem mais ser definidos como uma multidão caracterizada por uma identificação comum: como os desenvolvimentos das artes performativas no século xx mostraram, os modos de percepção e recepção do público se tornaram fragmentários; os públicos contemporâneos são muito mais instáveis, dinâmicos, singulares; os espectadores são mais conscientes das suas próprias posições e perspectivas, experimentando proximidade e distância de formas incorporadas. Tais maneiras individualizadas de ver, entretanto, levantam um problema interessante que posiciona o espectador contemporâneo (anônimo, porque a priori não pertence a um grupo definido, nação, classe, gênero etc.) na proximidade do evento. O espectador torna-se um participante que está ativo e criticamente envolvido com o que acontece. Essa economia da proximidade é característica dos contextos de produção nos quais a arte contemporânea é apresentada e produzida. Inclusão, participação, relacionalidade, engajamento, envolvimento emocional e intelectual, temporalidade afetiva, expectativa: todos esses modos são incluídos na dramaturgia da dança contemporânea.

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conclusão Uma das minhas experiências dramatúrgicas mais incomuns começou numa manhã de segunda-feira, em 2007, quando um gentil organizador de uma instituição cultural voltada para a dança contemporânea passou-me uma lista dos participantes de um encontro de orientação dramatúrgica com duração de uma semana. Como dramaturgista, eu deveria encontrar três autores ou grupos por dia, com três horas no estúdio disponível para nossa “sessão”. A intenção era trabalhar performances em processo ou abordar questões geradas pelos autores durante o trabalho, analisar materiais criados, questionar a relação com o público etc. Logo foi ficando claro que os autores vinham de experiências muito diferentes e com motivações bastante diversas. Alguns tinham questões – 123

abertas que surgiam no meio do trabalho com suas performances; outros queriam compartilhar ideias dos estágios iniciais dos seus trabalhos; outros, ainda, com performances prontas. Como muitos dos autores, me senti, no início de cada “sessão” com três horas de duração, como se estivesse indo para um encontro às escuras, saltando de um precipício. Como é comum em encontros desse tipo, alguns são inesquecíveis; outros, fracassos desde o início. E foi exatamente pela diversidade dessas reuniões intermináveis e da materialidade indefinida das nossas trocas que eu comecei a buscar obsessivamente um denominador comum por meio do qual eu pudesse fazer conexões e “dar chão” aos nossos encontros. No final da semana percebi que, com o propósito de fazer anotações, todos usávamos o caderno Moleskine, atualmente muito na moda, um sucesso comercial vendido junto à experiência romântica de seu primeiro adepto, Bruce Chatwin. Comparada aos formatos mais intensos e mais orientados por pesquisa, essa aventura singular de uma semana de orientação dramatúrgica poderia ser repelida como má ideia por parte de uma instituição de produção. No entanto, acho que o simples fato de que haja uma necessidade de que o artista (coreógrafo, diretor, bailarino etc.) seja exercitado dramaturgicamente precisa ser considerada. Nesse caso descrito acima, os artistas envolvidos pagam por esse encontro; uma troca econômica acontece entre o artista e o “treinador” dramatúrgico através de um produtor/intermediário. Ao mesmo tempo, tais oficinas não estão no contexto das empresas de produção motivadas por resultados, mas são geralmente solicitadas por organizações de arte mais interessadas em modos abertos de trabalho do que em produtos. Antes da aventura descrita, tive a oportunidade de participar de oficinas oferecidas por organizações mais orientadas pela pesquisa. Não pediam pagamento para participação de artistas e o cachê de facilitadora da oficina era bem mais baixo. Havia, entretanto, mais ênfase no valor simbólico da troca, porque possibilitava que artistas adquirissem novos conhecimentos, assim como oferecia oportu– 124

 

 

nidade para a socialização e a prática de formas contemporâneas de dança e teatro. Considerando que um tal treinamento sempre tem como objetivo desenvolver alguma habilidade, aumentando a qualidade da performance de certa atividade e aperfeiçoando alguma disciplina, qual seria o objetivo de um treinamento dramatúrgico? Que qualidade deveria ser intensificada através dela? Como o objeto dessa troca poderia ser melhor articulado? Qual habilidade é treino? O que pode ser modificado ou deslocado através desse encontro? A resposta poderia ser simplesmente a de que se trata do diálogo entre duas partes sobre uma proximidade que abre caminho em direção à possibilidade de trocar conhecimentos e abordagens. Por que, todavia, esse diálogo recebe um valor material em termos financeiros concretos e simbólicos? E por que afinal é um tipo de proximidade dependente da mediação de uma terceira parte (que marca essa proximidade com seu carimbo permanente)? Acho que essas questões somente podem ser respondidas através da análise dos contextos culturais e econômicos que influenciaram o surgimento da dramaturgia na dança contemporânea nas duas últimas décadas, especialmente desde os anos 1990. Apenas dessa maneira o fenômeno do treinamento dramatúrgico não será lido de modo moralista, como um excesso ou como exemplo de prática que não funciona, atestando a apropriação pelo mercado/produção das formas de trabalhos abertas, interdisciplinares e orientadas por pesquisa. Muito pelo contrário; o treinamento é apenas o lado extremo da “boa prática”, a parte da prática dramatúrgica que se reconhece como indefinida, sua frequente inabilidade anedótica de nomear, sua invisibilidade visível e sua habilidade de combinar teoria e prática. É essa abertura da prática dramatúrgica na dança contemporânea que pode assumir diferentes funções, oscilando entre “[…] reflexão e criatividade; detalhe e visão geral” (behrndt, 2007, p. 96). É, pois, interdisciplinar, visto que abre possibilidades para a produção e representa uma habilidade que é difícil de definir.

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Foi somente um bom diálogo entre eu, como dramaturgista e eles, artistas… Antes, atuo mais como um curador, mas, em ambas funções, o que realmente importa é que eles, artistas, tenham um parceiro para oferecer um tipo de fé que é bem-vinda, aceita e compreendida. Esse é provavelmente o fator principal, a compreensão (frank apud behrndt; turner, 2008, p. 112).

É assim que Thomas Frank (dramaturgista e atual diretor artístico associado do teatro Brut, em Viena) descreve seu trabalho com a companhia britânica Lone Twin. Enfatizando a noção de proximidade, ele descreve a função de dramaturgista como a de acalmar, oferecer suporte emocional e, inclusive, fé. O que é aceito (ou não) como resultado da proximidade do dramaturgista? O que exatamente é calmante nessa presença do dramaturgista? Essas devem se somar às questões introdutórias que se referem à dificuldade de articular os processos de treinamento dramatúrgico. Se quisermos respondê-las ao menos aproximadamente, precisamos imergir no complexo cerne do conhecimento imaterial – uma habilidade e potencialidade indefinidas que são parte do trabalho dramatúrgico. A aparência desse conhecimento/habilidade pode ser explicada com ajuda da famosa descrição de Marx sobre as mudanças do século xix: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. Como bem sabemos, é a desmaterialização que garante a mais-valia, ou melhor, a ficcionalidade do valor (cujas consequências materiais estamos encarando durante a crise econômica atual). Nesse processo imaterial, articulado por intermédio de modos diferentes de proximidade e colaboração, o conhecimento cognitivo e incorporado torna-se frequentemente apropriado e organizado por meio do mercado e do capital. Além disso, esse conhecimento está no centro da produção contemporânea. As perguntas que considero essenciais são: como é possível colocar o trabalho dramatúrgico em relação com a política e o capital? O problema mais interessante, aqui, é a questão sobre o potencial político da proximidade em si. Qual a potencialidade de trabalhar com um dramaturgista? – 126

 

 

Por um lado, a proximidade geralmente esconde a apropriação do caráter processual do trabalho e dá prioridade a uma compreensão crítica, mas não antagonista do trabalho de performance e da recepção do público. De acordo com essa perspectiva, o dramaturgista torna-se um companheiro conversador que acalma seus temores sobre a vida contemporânea, por assegurar que uma certa prática pode ser mostrada no mercado. Por outro lado, temos que examinar se a entrada do dramaturgista na dança contemporânea atesta uma certa mudança radical da prática artística que tem o poder de intervir socialmente e revelar o trabalho artístico como espaço político de antagonismo. Com base nessa perspectiva, a proximidade não se inicia na mediação de uma terceira parte que nos permite escrever nossos pensamentos nos mesmos cadernos da moda, mas resulta do encontro entre diferentes modos de se trabalhar junto, o que só possibilita (ou falha em possibilitar) mudanças e estabelece novas formas de existência. O posicionamento do conhecimento cognitivo no centro dos processos de produção pode, pois, inaugurar novas formas de existência e questionar profundamente a natureza da dança e sua suposta autoevidente relação com a vida contemporânea.

A ECONO MIA DA PROXIMI DADE : O TRA BALHO DRAMA TÚRGICO NA DANÇA CONTEM PORÂNEA –––––– b oja n a ku n st

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• ______; turner, Cathy. Dramaturgy and performance. Nova York: Palgrave Macmillan, 2008.

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BOUD I ER , Mario n et al. D e q uoi l a d ra mat urgi e est -el l e l e nom? Pari s : L’Harmat t an, 2 014. p. 1 07 - 1 1 0

m ov i m e n to

N

CALDAS , Pau lo; GADELHA, Er n es t o. D a nça e dra maturgia [s]. São Paulo: nex us, 20 16 .

 

a condição de intercessor entre os diferentes praticantes, entre as diferentes formas de expressão e as significações, “criador de turbulências”1 , iniciador ou comentarista, o dramaturgista gera movimento e deslocamentos concretos e simbólicos tanto quanto reage a esses fluxos. Encarnada ou não numa só e única pessoa, a dramaturgia revela-se uma atividade cinética em vários níveis: movimento e encenação do pensamento, trabalho do movimento do texto e dos corpos, desestabilização dos espectadores. Ao olhar o texto ou a cena, o dramaturgista ajuda a equipe artística a captar o movimento da obra e animá-la, no sentido etimológico da palavra, pois esse movimento não se confunde rigorosamente com a sua estrutura, seu ritmo ou sua ação, mas pode ser modulado tanto pela frase musical como pelo movimento da alma, como em Interieur, de Maeterlinck, ou nas encenações de Claude Régy. O movimento da obra, a vida de sua forma2 , resulta efetiva1 FRATINI-SERAFIDE, Roberto. Dramaturgie de l’attente. Résonances – du regard à l’oeuvre: autour de la réception en danse, comunicação apresentada durante

a jornada de estudos Biennale de la danse, sob a direção de Irène Filiberti

e Claudia Palazzolo, organizada pela Université Lumière—Lyon 2, 2 de outubro de 2010. N. do E.: Roberto Fratini-Serafide foi colaborador da coreógrafa

Caterina Sagna nesse processo. 2 “Nesses mundos imaginários, cujo artista é o geômetra e o mecânico, o físico

e o químico, o psicólogo e o historiador, a forma, pelo jogo das metamorfoses,

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– 131

mente de forças mais ou menos visíveis e moduláveis que a dramaturgia contempla, mensura e orienta.3 Feita de observação, de reflexão, de diálogo, de hipótese e de reação, a dramaturgia possui assim um caráter experimental4 que faz dela um mover: anima, aciona, remexe, questiona. Consciência e intuição do movimento da obra, a dramaturgia é também fazê-la entrar em movimento, na medida em que, como escreve Joseph Danan, ela é “[…] o que anima de fato a cena teatral, seja a partir de um texto dramático ou não”, protegendo-se “contra um pensamento que se fossilizaria”.5 De maneira recorrente, a dramaturgia, “pensamento que se coloca em ação”6 , é descrita assim, tal como um colocar em circulação de energia, uma realização, uma ativação, um trabalho no sentido físico do termo: “A dramaturgia é, nesse sentido, como o filtro, o canal através do qual uma energia transforma-se em movimento”7 , explica„ por exemplo Franco Ruffini, seguindo o pensamento de Eugenio Barba. Este último define a dramaturgia de maneira global como “drama-ergon”, trabalho das ações e ações no trabalho: maneira cujos gestos e falas, sons, luzes, variações de espaço, episódios da história, evolução das personagens, ritmo, objetos etc. (tudo isso é “ação”, segundo o vocabulário de Barba) tecem a trama da obra. A tecelagem determina o espetáculo e sua vida: “as ações em ações — a dramaturgia”.8 vai incessantemente de sua necessidade a sua liberdade”. FOCILLON, Henri.

Vie des formes seguido de Éloge de la main. Paris: P.U.F., 1996 [1934].

(Coleção Quadrige). 3 N. do E.: Consultar verbete SENTIDO na página 215. 4 BENHAMOU, Anne-Françoise. Bref aperçu de dramaturgie expérimentale. in coutant, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Éditions Joca Seria, 2008. p. 45. (Co-

leção Les carnets du grand T). 5 DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. p. 67. (Coleção Apprendre).

6 FARCET, Charlotte. h2O. in COUTANT, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Éditions

Joca Seria, 2008. p. 42. (Coleção Les carnets du grand T). 7 BARBA, Eugenio. L’énergie qui danse: l’art secret de l’acteur. Montpellier: L’Entretemps, 2008. p. 255. 8 Ibid. p. 54.

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Movimento e implementação do pensamento que tece a obra e atravessa o processo de criação, a dramaturgia é, então, também uma forma de encenação do pensamento, iniciado ou conduzido pelo corpo, pois, nas artes da cena, pensamos também com os pés. Bojana Cvejić evoca o trabalho do dramaturgista como um jeito de “especular de maneira pragmática”.9 Além disso, a dramaturgia, pensamento em movimento do movimento da obra, não existe sem os corpos10 dos intérpretes que impulsionam e exprimem esse pensamento. A referência quase-orgânica à energia que ela canaliza enfatiza suas ligações com o movimento físico. Inscrita na escolha entre um gesto e outro, na escolha de um sopro ou de um ritmo, a dramaturgia é, por uma parte, articulada ao corpo do intérprete. Até mesmo o movimento mais dessubjetivado instala um tipo de presença significante em cena. Jean-Marc Adolphe defende, assim, uma “dramaturgia do movimento”, empírica, “ação do sentido” não intencional que ele opõe ao modelo teatral da dramaturgia do “sentido das ações”:

m ov i m e n to

“A intenção não é, às vezes ou frequentemente, esse inusitado que resulta de um trabalho? […]. Uma dramaturgia do movimento consiste talvez em reconhecer a organicidade desta lógica interna […]. ‘It works’, está trabalhando, como a madeira trabalha: a matéria trabalha”.11

Elaborado em torno de uma esteira rolante cuja velocidade varia, À bas bruit (2012), do circense Mathurin Bolze, exibe os laços entre movimento concreto e movimento do sentido: a corrida dos intérpretes nessa cenografia fugidia materializa a passagem do tempo, a capacidade do homem de se adaptar ao seu ambiente. Uma maté9 CJEVIĆ, Bojana. Le dramaturge ignorant. Agôn, Laboratoire de recherche,

Danse et dramaturgie. Disponível em: .

Acesso em: 29 ago. 2011. 10 N. do E.: Consultar verbete na página 84. 11 ADOLPHE, Jean-Marc. La dramaturgie est un exercice de circulation pour

tenir le monde à l’écart. Danse et dramaturgie, Nouvelles de Danse, n. 31, p. 32–33.

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ria, um corpo ou um objeto vêm sempre questionar novamente as ideias ou os conceitos estabelecidos. Érection (2007), de Pierre Rigal e Aurélien Bory, também começa de um movimento físico concreto para fazer emergir suas significações e metáforas. O movimento dramatúrgico não é dissociável do momento do jogo, dinâmica do instante própria às artes da cena. Levé des conflits (2010), de Boris Charmatz, coreografia construída segundo um princípio formalista de movimento perpétuo e a repetição em cânon de vinte e cinco gestos por vinte e quatro dançarinos, revela essa vida do movimento através das mudanças de escala, do detalhe de um gesto ante a imagem do conjunto, assim como das interações inéditas que ela propõe ao olhar do espectador. O movimento, com efeito, também não seria concluído ou mantido sem a recepção do espectador que o prolonga. Análise e pesquisa de dispositivos de representação e de visibilidade, ajustes entre o movimento da obra e os movimentos que ela produzirá no espectador: o mover da dramaturgia é, então, também um comover. A reflexão dramatúrgica experimenta (no que põe em xeque e percebe) a tensão entre o movimento externo e interno da obra, coloca essa tensão em movimento e tenta ajustar sua força de desestabilização.

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– 135

Esta abordagem, mais “intuitiva e feminina”, tenta ser paciente e seguir o que se produz ao longo do processo de ensaio e o que daí provém, em vez de predeterminá-lo ou antecipá-lo. Ela se aplica particularmente bem à dança, em que não há em geral um texto preexistente e na qual o “texto” do espetáculo se escreve com e sobre os corpos dos bailarinos. Neste “processo”, o dramaturgista tem a função de simultaneamente estimular a intuição criativa, frequentemente inconsciente, dos corpos, e colaborar com o coreógrafo na estruturação dessa intuição segundo sua lógica própria. [...] Assim definida, a dramaturgia pode ser aplicada a todas as disciplinas. Isso implica também que cada artista e mesmo cada nova criação tenha necessidade de uma forma de dramaturgia única e específica. trecho de:

Guy Cools

De la dramaturgie du corps en danse

[Jeu: Revue de Théâtre, n. 116, (3) 2005, p. 90-91.]

– 136

P u b l icad o com o t ít u lo S hap ing cr itical s pa ce s : is s ue s in t h e d ram at urgy of move m e nt p e r for m ance . In: JONAS, S us an et al. ( E d .). D ra m at u rg y in am er i ca n t h eater : a s o u rce b ook. O r land o: H a rcour t B race & Co m pany, 1 9 9 7 .

Fo r m a n d o es paç o s críticos: q u estõ e s da d r a m a tu r g i a da p e r fo r mance de m ov i m e n to –––––– Heidi G i lp i n

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

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Heidi Gilpin é professora associada no Amherst College (Massachusetts, EUA). É doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Harvard. De 1989 a 1996, trabalhou como dramaturgista para William Forsythe e para o Ballett Frankfurt. Atua nas áreas de estudos críticos e culturais da performance, com ênfase nas questões da corporeidade e da prática corporal, teorias literária, crítica e fílmica, novas tecnologias, arquitetura, performance e dramaturgia. –

FO r m a n d O E S Paç O S CrítiCOS: q u estõ es da d r a m atu r g i a da p e r fo r m a n c e d e m ov i m e n to –––––– Heidi GiLPin

 

 

Ocorre também que, margeando os sólidos muros de Marósia, quando menos se espera se vislumbra uma cidade diferente, que desaparece um instante depois. Talvez toda a questão seja saber quais palavras pronunciar, quais gestos executar, e em que ordem e ritmo, ou então basta o olhar, a resposta, o aceno de alguém, basta que alguém faça alguma coisa pelo simples prazer de fazê-la, e para que o seu prazer se torne um prazer para os outros; naquele momento todos os espaços se alteram, as alturas, as distâncias, a cidade se transfigura, torna-se cristalina, transparente como uma libélula. Mas é necessário que tudo aconteça como se por acaso, sem dar muita importância, sem a pretensão de estar cumprindo uma operação decisiva, tendo em mente que de um momento para o outro a Marósia anterior voltará a soldar sobre as cabeças o seu teto de pedra, teias de aranha e mofo. (Italo Calvino, As cidades invisíveis)

performance de movimento: ilhas de um território desconhecido Como podemos começar a pensar, por meio das possibilidades e processos de dramaturgia, a performance de movimento? Como podemos começar a imaginar maneiras de abordar as questões multidisciplinares inerentes às dramaturgias para performances de movimento? – – 13826

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Marósia, a cidade invisível de Italo Calvino, mapeia o lugar do presente artigo de diferentes maneiras. Em primeiro lugar, descreve minha experiência ao descobrir um tópico de investigação, assistir ao seu desaparecimento e vê-lo ressurgir com outra aparência, como que por acaso. A questão de Calvino sobre quais palavras dizer, quais ações executar e em que ordem e ritmo nos direciona ao âmago dos atos de performar e testemunhar o movimento nas simultâneas e variadas formas são o foco desta breve exploração. O princípio fundamental da performance – especialmente a performance de movimento contemporânea, que será investigada aqui – é que tudo consiste no conhecimento sobre que atos performar e em que ordem e ritmo fazê-lo. Para um crítico desse tipo de trabalho, tudo consiste no conhecimento sobre que palavras escrever – que alguém terá a habilidade de transportar leitores para um espaço que transforma os arredores, suas alturas, suas distâncias; um espaço transfigurado em transparência. Em outras palavras, um espaço que aparece e desaparece quando você menos espera. Contudo, os coreógrafos e diretores de performance de movimento nos ensinam que eles mesmos nunca sabem quais ações performar. Preceituam que há muita incerteza, e que esta, em si, é objeto e foco do seu trabalho. As questões do desaparecimento, do conhecimento, da transformação; do cativar o prazer que transfigura e o torna transparente; da noção do acaso; da arte da sprezzatura1 ; 1 O conceito de sprezzatura merece investigação adicional em relação ao processo de composição de movimento. Baldesar Castiglione, diplomata e literato italiano ligado à corte do Duque de Urbino no século xvi, desenvolveu

essa noção de modo provocativo sobre a vida na corte no seu Il libro del

Cortegiano de Conte Baldesar Castiglione. Para Castiglione, sprezzatura é a

aparência de total ausência de esforço enquanto uma atividade complicada é

 

realizada. Nesse tipo de manifestação, os observadores não possuem conheci-

ou mental) sem expor o trabalho pesado ou o esforço que contribuiu para o

dor deveria ser surpreendido pela leveza e graciosidade de uma performance

movimento, especialmente para os gêneros clássicos como o balé, em que os

mento das dificuldades envolvidas na execução de tais tarefas. Um observa-

(que, no caso de Castiglione, geralmente envolvia sedução e interação polí-

tica/social para benefício pessoal) e pelo refinamento do performer, que, portanto, levaria ou convenceria o espectador pelo gesto (físico, emocional

– 140

 

da ausência de esforço, leveza, de que alguém pode atuar graciosamente e não chamar atenção para o esforço por trás da criação da performance, tentando manter um estado de dinamismo para afirmar estase; e da memória e consciência de impedir repetição: essas são, de maneira profundamente psíquica e intelectual, as bases do meu trabalho como dramaturgista. Para impedir que Marósia retorne e solde o teto de pedra, teias e mofo sobre nossas cabeças, esperemos, então, que um gesto, como sugere Calvino, seja suficiente. Foi a linguagem de um gesto e suas repetições que primeiro hipnotizou-me quando assisti à performance da companhia de Pina Bausch, o Tanztheater Wuppertal, em Wuppertal, Alemanha, anos atrás. Como uma cena de interação humana, sem palavras, poderia se repetir por pelo menos vinte e cinco vezes sem nenhuma mudança visível na frase gestual performada e mesmo assim produzir uma série de reações, pensamentos e emoções no seu espectador? Como situações psicológicas que pareciam tão íntimas poderiam assumir um sentido de experiência coletiva? Como poderia uma diretora extrair essas experiências, aparentemente mais coletivas que outras, para mostrá-las em configurações alienadas das suas narrativas contextuais? Por que eram tão poderosas? A Marósia de Calvino também ressoa em minha primeira experiência de trabalho com William Forsythe e o Frankfurt Ballet: um sentimento e uma consciência avassaladores da sprezzatura, de fazer algo pelo puro prazer de fazer algo, levando a todos que o testemunham a considerar as coisas sob outra luz (algumas vezes bem literalmente, e frequentemente com bem pouca luz no palco). Foi também a experiência de reconhecer que se alguém dá muita importância a algo, paralisia e estase são instauradas. Como continuar a

FOR MANDO ESPAÇOS CRÍTICOS : QUESTÕES DA DRA MATUR GIA DA PERFOR MANCE DE MOVIMEN TO –––––– H EIDI G I L P IN

sucesso da execução. Isso poderia ser visto como um paradoxo geral para o sinais do sucesso incluem sempre a mesma leveza sorridente e a ausência de

esforço como afetos que dissimulam o trabalho pesado e suado. Cf. CASTIGLIONE, Baldesar. The book of the courtier. Nova York: Zone Books, 1991, p. 94.

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mover-se, pensar, produzir e decidir de que forma mover-se e pensar e produzir: essas eram minhas questões sobre Forsythe. Suas estratégias de composição de “forma fraca” que inicialmente tanto me mobilizaram anos atrás ainda me movem. Ou seja, são questões que têm me ensinado como encenar essas estratégias não somente no trabalho, mas em cada aspecto da vida que a performance imita e desafia. O que esses coreógrafos apontam é o que Calvino tenta nomear também: aquilo que não é audível ou visível. Silêncio, transparência, invisibilidade, infinita repetição dos desaparecimentos, falha da constância e estase em suportar nossos pensamentos, movimentos, vidas me levam a explorar o território do performativo, seja através das cidades invisíveis de Calvino, seja por meio da arquitetura ou da filosofia. Como Henri Bergson sugere, “[…] não há percepção que não se prolongue em movimento…”.2 Quanto mais você se permite perder o controle e permite um tipo de transparência no corpo, um sentimento de desaparecimento, mais você será capaz de capturar forma e dinâmica diferenciadas. Você pode se mover muito, muito rápido nesse estado e não dar a mesma impressão, e não dar impressão de violência. Você também pode se mover com uma aceleração tremenda desde que saiba onde você deixa o movimento – não onde você coloca o movimento, mas onde você o deixa. Você tenta alienar o corpo do movimento, como oposição ao pensamento de que você está a produzir movimento. Então não seria como pressionar avançando no espaço e invadindo o espaço – seria como abandonar seu corpo no espaço. Dissolução, permitir-se evaporar. Movimento é um fator do fato de que você está, na verdade, evaporando.3

2 BERGSON, Henri. Matter and memory. Nova York: Zone Books, 1991, p. 94 [N. do

E.: Edição brasileira: Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999,

p. 105]. 3 FORSYTHE, William apud GILPIN, Heidi. Eidos: Telos. Frankfurt: Ballet Frankfurt, 1995. p. 33.

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É fascinante que o processo de dramaturgia, especificamente para a performance de movimento, tenha sido amplamente negligenciado por críticos literários e teatrais: parece-me crucial explorar criticamente o trabalho de artistas que estão trabalhando com muitas disciplinas ao mesmo tempo, a fim de encontrar e desenvolver uma linguagem contemporânea para expressar a experiência humana. Talvez essa negligência seja sintoma da absoluta complexidade desse tipo de trabalho. A questão da plateia é significativa para a dramaturgia do movimento em performance, pois talvez haja alguns que tenham familiaridade com vocabulários de dança ou movimento, mas não tenham com filosofia ou teoria literária, por exemplo. Podem não ter familiaridade com movimento, mas ser extremamente versados em teoria cinematográfica, estudos culturais, teoria e história arquitetônica ou teoria psicanalítica. Essa situação é única para a performance de movimento. Ao contrário do teatro dramático, em que o texto está no centro das estratégias interpretativas do público, nas produções de performance de movimento, os espectadores são confrontados com tantos variados vocabulários (texto, imagem, movimento, som) e perspectivas disciplinares – nenhuma das quais desempenhando hierarquicamente um papel central – que geralmente eles não são versados igualmente em todas elas. É importante, portanto, começar uma reflexão acerca da criação e da interpretação da performance de movimento à luz da multidisciplinaridade, que também é evidente em muitas outras facetas da produção cultural contemporânea. Ironicamente, uma maneira de começar esse processo seria considerar nossa relação com a textualidade. Historicamente, atos de leitura têm recebido muita atenção. Críticos literários têm focado na questão de como lemos um texto literário, assim como teóricos do cinema têm articulado como abordar a leitura da linguagem visual do cinema e historiadores do teatro têm observado as inflexões semióticas do texto dramático quando encenado. Todavia, poucos acadêmicos literários exploraram a questão de como começar a ler a totalidade mais complexa

FOR MANDO ESPAÇOS CRÍTICOS : QUESTÕES DA DRA MATUR GIA DA PERFOR MANCE DE MOVIMEN TO –––––– H EIDI G I L P IN

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do texto da performance, particularmente quando o movimento é o protagonista. Se nos treinam para sermos predominantemente leitores de textos verbais, como lemos e compreendemos o “texto” de espetáculos de performance de movimento, um texto de múltiplas camadas, composto de linguagens visuais, físicas, técnicas, temporais e sonoras? Que ferramentas podemos usar para compreender esse “texto” quando ele não é simplesmente um trabalho escrito de literatura dramática representado num teatro, mas uma produção envolvendo uma quantidade tão grande de sequências de movimentos que estas acabam por assumir a responsabilidade formal da produção? O ato de ler que performamos como membros de uma plateia de espetáculos de movimento, no palco e na tela, requer nossa atenção. Exige reconhecimento e percepção mais gerais do movimento e mais específicos dos corpos que movem. Elementos não linguísticos têm se tornado uma força predominante nos trabalhos de performance contemporânea. Produções recentes de textos dramáticos clássicos, nos casos mais extremos, não mais apresentam simplesmente as interações linguísticas entre personagens como dispositivo motivador central da narrativa. Ao contrário, eles podem permitir que o peso da narrativa seja carregado pela iluminação ou partituras de som4 , por posicionar o lugar da ação na escuridão5 , ou por transmitir palavras ininteligíveis ao so4 Tentativas recentes de direcionar o corpo em movimento e os espaços do corpo

a partir de perspectivas multidisciplinares incluem, entre outras: CRARY,

Jonathan; KWINTER, Sanford. Zone 6: incorporations. Nova York: Urzone, 1992;

COLOMINA, Beatriz (Ed.). Sexuality and space. Princetown: Princetown Architectural Press, 1992; e Body criticism: imagining the unseen in enlightment

art and medicine. Cambridge, MA: The Mit Press, 1991.

5 Cf., por exemplo, a montagem de Rei Lear, de Shakespeare, por Robert Wilson, que estreou no Bockenheimer Depot (Schauspiel Frankfurt) em 26 de maio de

1990 (König Lear, com Marianne Hoppe atuando como Lear. Produção, direção e

cenário: Robert Wilson. Dramaturgia e colaboração: Ellen Hammer. Figurinos:

Yoshio Yabara. Iluminação: Heinrich Brunke e Robert Wilson. Música: Hans Peter Kuhn. Movimento Suzushi Hanayagi). Um dos exemplos mais contemporâneos

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brepor textos falados e gravados.6 Isso desloca o foco da nossa atenção das palavras faladas para o lugar da fala e para a noção de visibilidade ou invisibilidade daquele que fala. Essas produções com frequência valorizam o movimento físico conferindo a ele um papel importante, permitindo que frases gestuais ou de movimento, mais do que as palavras, sejam as portadoras essenciais de sentido. Quando nossa atenção é, pois, deslocada das palavras para as imadesse fenômeno, entre muitos outros, é a produção, também de Robert Wilson, da peça de Gertrude Stein (produzida como um musical, intenção original

FOR MANDO ESPAÇOS CRÍTICOS : QUESTÕES DA DRA MATUR GIA DA PERFOR MANCE DE MOVIMEN TO –––––– H EIDI G I L P IN

da dramaturgista): Dr. Faustus Acende a Luz (estreia em abril de 1992 no

Hebbel Theatre, Berlim, com tour mundial de performances em Frankfurt, Nova

York, Houston etc., de maio a novembro de 1992), com iluminação de Wilson e partitura musical e números musicais do compositor e artista sonoro Hans

Peter Kuhn, um colaborador de Wilson desde 1979. 6 Algumas produções do autor teatral do antigo leste europeu Heiner Müller

empregam tais estratégias como, por exemplo, seu Quarteto (estreia em 1982, em Berlim Ocidental), dirigida por Robert Wilson em colaboração com Müller,

com performance no American Repertory Theatre, em Cambridge, Massachusetts,

 

 

com pré-estreias de 5 a 9 de fevereiro de 1988 e estreia em 10 de fevereiro de 1988. De acordo com ART Records, Wilson foi diretor solo dessa produção. Müller, no entanto, estava presente nos ensaios em Cambridge e

contribuiu para a montagem (Direção e cenário: Robert Wilson. Diretora as-

sistente: Jane Perry. Iluminação: Howell Binkley e Robert Wilson. Tradução: Carl Weber. Composição musical e adaptação: Martin Pearlman. Trilha sonora: Stephen D. Santomenna. Figurinos: Frida Parmegianni). As produções

que Müller realizou das suas próprias peças Hamletmachine (estreia em 1978,

Bruxelas) e Germania Tod in Berlin (estreia em 1978, Munique) também são

relevantes aqui. Müller discute sua abordagem do fazer teatral em vários

textos em Germania(editado por Sylvère Lotringer, traduzido e comentado por

Bernard e Caroline Schüttze. Semiotext(e) Foreign Agents Series (Nova York: Semiotext(e), 1990). Samuel Beckett, entretanto, é claramente um agente que

sugere e inspira o material de performance ao qual faço alusão aqui: seu

trabalho inicial com as tecnologias de reprodução, em Krapp’s Last Tape e em outras peças, propõe a necessidade de produções que consideram a unidade

da voz que fala e a presença simultânea de múltiplas vozes. Além das peças de Beckett, consultar Knowlson, James (Ed.). The theatrical notebooks de

Samuel Beckett. V. II: Endgame e V. III: Krapp’s Last Tape. Nova York: Grove Press, 1993. Consultar também uma discussão sobre a posição de Beckett ante a estética da performance contemporânea em Wipes Dream Amaway With Hand, de Mel Gussow, The New York Times Book Review, 7 de março de 1993, p. 10.

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gens, da fala para o movimento, de textos para corpos e daquele que fala para o performer que se move, e quando o resultado é feito inaudível ou invisível, ou ambos, devemos considerar como a invisibilidade e a ausência nos impelem a reavaliarmos nosso treinamento como leitores, a fim de reexaminarmos nossas expectativas em relação à performance, ao entretenimento, aos comentários sociais, políticos, históricos, psíquicos, intelectuais, bem como para reconsiderar a importância da performance como um modo progressivamente transformativo de engajamento com as questões críticas e de cunho espectral das realidades contemporâneas. O teatro, resumindo, desenvolveu sofisticadas “linguagens performáticas” de iluminação, som e movimento que vieram não somente a predominar nas produções contemporâneas de performance, mas também a assumir maior importância que o texto dramático em si. O conceito de “texto dramático” é colocado de lado, ou alterado de forma irreconhecível, até o ponto em que o teatro, como conceito, arquitetura psíquica e física, construção e até mesmo mesmo como um processo, desaparece. William Forsythe fala sobre essa condição: “A instituição teatral foi estripada e a arquitetura do teatro em si é politicamente incapacitante. Ela apenas permite que o teatro novamente represente a si mesmo como uma tela rejeitada ocultando um orifício que abandonou seus conteúdos”.7 A performance de movimento contemporânea, especialmente o trabalho de determinados coreógrafos e diretores que trabalharam em sua maioria na Europa (William Forsythe, Pina Bausch, Jan Fabre, Maguy Marin, Tadeusz Kantor, Anne Teresa De Keersmaeker, Saburo Teshigawara, Reinhild Hoffmann, Johann Kresnik 7 Este é um dos temas tratados em “Emissions: a discussion with William

Forsythe and Heidi Gilpin”. In: Critical Space, n. 10, 1993, p. 151–159,

que documenta um momento particular na trajetória do processo criativo em

Frankfurt e tenta tornar acessível a espectadores e leitores os tipos de perguntas e questões em jogo para Forsythe tanto na performance quanto no

 

 

e muitos outros) oferece possibilidades previamente não reconhecidas de, em suas distintas maneiras – formal, conceitual, psicológica e fisicamente – manifestar a multidisciplinaridade. A constante atenção dada a outras disciplinas e outras formas de expressão faz com que a performance de movimento seja um gênero inerentemente multidisciplinar. Para o dramaturgista desse gênero é uma atividade ampla, sendo necessário expor e explorar como essa qualidade multidisciplinar funciona no nível da composição na criação dessas produções, assim como no desenvolvimento de novos discursos por meio dos quais serão interpretados. A atenção conferida a vários textos, de literatura, música, filosofia, arquitetura e ciência, por exemplo, ganha corpo como uma investigação das condições desses “outros” espaços enquanto tentativa de trazer esses “outros” para o estúdio de ensaio, para o processo de ensaio e para a performance em si. Minha experiência em fazer e interpretar performance de movimento torna-me capaz de reconhecê-la como uma forma de arte que expõe o anseio impossível de que esta alcance permanência em qualquer campo de representação. Será precisamente o desejo impossível de permanência na representação o que motiva a performance de movimento a incorporar a multidisciplinaridade? Ou será nossa falta de treino na interpretação da multidisciplinaridade que faz com que esse tipo de performance pareça ao mesmo tempo tão alienígena e atraente? A atividade do dramaturgista, nesse contexto, é confrontar as necessidades efervescentes de performar o multivalente e fazê-lo ressoar de maneira simultânea para plateias como uma nova forma de percepção. Essas produções têm-me ensinado a repensar o papel do corpo, da política e da teoria no contexto dos espaços de performance no palco e fora dele. O trabalho da performance de movimento desses diretores e coreógrafos forçaram-me a reconsiderar os processos e táticas da memória – pois é a visão da memória que permanece quando a performance desaparece.

FOR MANDO ESPAÇOS CRÍTICOS : QUESTÕES DA DRA MATUR GIA DA PERFOR MANCE DE MOVIMEN TO –––––– H EIDI G I L P IN

processo coreográfico.

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Se a dança é – e ela é, devidamente – um objeto para os filósofos, ela não deve estar na mão de filósofos, mas de bailarinos; e o lugar do dramaturgista não é sobre o trono que ele usurpa atualmente, mas aos pés deste: é o lugar do bufão, um bom lugar aliás, com o qual os mais inteligentes saberão se contentar. trecho de:

Antoine Pickels

Le corps a ses raisons (que le dramaturge ignore)

[Nouvelles de Danse: Dossier Danse et Dramaturgie.

n. 31. Bruxelas: Contredanse, 1997, p. 30.]

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P u b l icad o com o t ít u lo T h i n k i n g n o o ne’ s t h o u g ht . I n : HANSEN , P il; CALL ISON , D a rc ey (O rg s .). D a n c e dram at u rg y : m od e s of a g ency, aware ne s s and en g ag e m e nt . L ond re s : Pa l g rave Macm illan, 2015.

Pensar o pensamento d e n i n guém –––––– M aa i k e Bleeker

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

– 149

– – 15030

Maaike Bleeker é professora do Departamento de Estudos de Teatro da Universidade de Utrecht. Estudou História da Arte, Estudos de Teatro e Filosofia na Universidade de Amsterdam, onde também concluiu o seu doutorado na Amsterdam School for Cultural Analysis (ASCA), em 2002. Desde 1991, trabalha como dramaturgista para vários encenadores, coreógrafos e artistas visuais. É, ainda, presidente da Performance Studies International, Membro do Conselho Consultivo Internacional do Maska (Liubliana), da Inflexions: A Journal of ResearchCreation (Montreal), membro do Conselho Consultivo Internacional da Associação para o Estudo das Artes do Presente (ASAP) e Presidente do Conselho de Administração do Instituto Holandês para Análise Cultural (NICA). –

O

PEnSar O P E n S a m E n tO d E ninguém –––––– MAAike BLeeker

 

 

qe é isso que os dramaturgistas fazem? Será que algum deles nunca precisou enfrentar essa questão? Contemplando possíveis respostas, lembro-me das listas fornecidas por antigos professores das atividades realizadas por um dramaturgista: pesquisa de contexto, análise, observação de ensaios, atuar como primeiro público, escrever textos de programas e solicitações de patrocínio etc. Embora essas listas possam, de fato, oferecer uma impressão inicial sobre os tipos de atividade com as quais dramaturgistas geralmente se ocupam, elas não especificam a sua função no processo criativo. É importante salientar que “especificar” não implica argumentar em favor de um modo característico ou singular de fazer dramaturgia; ao contrário, podemos supor que existem tantas maneiras de fazê-la quanto existem dramaturgistas. No entanto, para examinarmos a função do dramaturgista no processo criativo, em vez de considerarmos de forma particular como cada um desempenharia sua função predeterminada, distinguimos alguns aspectos recorrentes na prática da dramaturgia. Quando questionados sobre suas colaborações, a maioria de longa duração, diretores e coreógrafos geralmente descrevem seu dramaturgista como parceiro de luta, alguém que entende o modo de pensar, de trabalhar, e que contribui, além disso, para o processo criativo a partir de sua expertise. Mesmo que esse processo envolva algumas das atividades mencionadas acima (e geralmente inclui – 151

itens dessa lista), elas não são assumidas como definitivas para o dramaturgista. Antes, o modo como este cumpre as atividades depende do senso de conexão entre o coreógrafo/diretor e o dramaturgista. Essa conexão permite que as maneiras particulares de pensar e fazer de um dramaturgista inspirem modos de trabalho que vão ao encontro das necessidades de um processo criativo particular de um diretor ou coreógrafo. Em um texto anterior (bleeker, 2003), sugeri que podemos compreender a conexão entre dramaturgista e coreógrafo ou diretor em termos de amizade e pensamento. Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari (1994) apresentam uma nova compreensão para o exercício do pensar, sugerindo que o pensamento é um processo que transpira entre as pessoas, e não uma atividade individual. O pensamento começa a partir do que chamam de charme; uma faísca que se acende entre pessoas, fazendo com que estas tornem-se amigas. Essa amizade não é baseada no compartilhamento das mesmas ideias. É, ao contrário, próprio e emergente desse impulso de ter algo a dizer a alguém. Tais impulsos resultam não somente em pensamento, mas também em pensamentos que se movem. Argumentei que os processos criativos podem ser considerados exemplos desse pensar colaborativo. O que os dramaturgistas particularmente trazem para esse pensamento colaborativo é uma reflexão que resulta de um olhar específico para o processo em questão. No caso da dança, todos os envolvidos engajam-se na mesma criação, ainda que atuem de maneiras distintas, advindas de práticas diversas e com objetivos diferentes dentro do processo. O modo dramatúrgico de olhar pode ser caracterizado por dois pontos de consciência, informados pelas complementares experiência e treinamento dos dramaturgistas. O primeiro é a consciência do potencial emergente daquilo que está sendo criado. Isso envolve compreender quais direções a criação pode potencialmente seguir. Essa compreensão está baseada na familiaridade do dramaturgista com os processos criativos e com a estruturação do trabalho, ambos históricos e contemporâneos. Isso não significa que esses modelos devem ser copiados; geralmente, – 152

 

 

não o são, e o charme aceso entre o dramaturgista e o coreógrafo ou diretor, como parceiros no pensamento colaborativo, pode muito bem tomar a forma de um desafio. O outro ponto de consciência diz respeito às implicações e complicações do processo de criação do material. Esta consciência surge do insight do dramaturgista em relação à maneira como o material começa a ativar associações e convida a modos de olhar e interpretar. É necessário, ainda, haver compreensão sobre como esses modos podem ser colocados em uso, ou seja, sobre como jogar ou romper com eles; possuir familiaridade com um bom número de ferramentas analíticas, bem como a habilidade para utilizá-las; e, por fim, um conhecimento geral amplo. Com seu modo de olhar, o dramaturgista está buscando conexões entre os elementos da criação e a rede multidimensional de relações sincrônicas e diacrônicas a partir das quais esses elementos irão aparecer para o público. Então, o modo dramatúrgico de olhar requer um compromisso de investigar como os elementos da performance podem ser vistos e interpretados. Refiro-me aqui à forma complexa pela qual eles são incorporados em contextos de associação e interpretação – que, por sua vez, agregam conexões a experiências feitas fora do evento da performance –, organizando potenciais leituras e significações às quais um espectador pode chegar. Algumas dessas leituras, interpretações e associações talvez correspondam àquilo que o criador imaginou, mas outras certamente serão imprevisíveis. Algumas associações podem até ser úteis, ativar novas ideias e abrir novos horizontes, enquanto outras podem, de alguma maneira, obstruí-los. Evidentemente, o olhar dramatúrgico não é exclusividade do dramaturgista. Algumas vezes, o coreógrafo ou diretor, bem como outros envolvidos no processo criativo, também adotarão esse modo de olhar. Convidar um dramaturgista para entrar no processo criativo significa dar espaço para um parceiro adicional; um diálogo (ou multidiálogo) com um parceiro cuja contribuição, eu argumento, é pensar o pensamento de ninguém.

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Essa proposta de abordagem da criação de dança ou performance em termos de pensamento não pretende intelectualizar a criação artística, mas argumentar em favor da reconceituação do pensamento como um processo que acontece no e por meio da prática material. Aqui, práticas atuais de criação de dança e performance encontram-se com novos desenvolvimentos na teoria e na filosofia da percepção, na ciência cognitiva, na neurociência e na filosofia, engajadas em tentar conceituar o pensamento para além da representação, em termos de uma prática material cujo procedimento é a encenação.1 Conceber dança e performance como processos do pensamento realizados na prática material é reconhecer uma tendência para conceber as criações não pelo que podem representar, mas por como podem encenar ideias formuladas na prática performativa. Tais desenvolvimentos estão relacionados, de muitas maneiras, a uma compreensão do trabalho artístico como pesquisa. A seguir, a partir da noção de processo, elaboro a relação entre prática dramatúrgica e pensamento. Primeiro, entretanto, ofereço alguns pontos de referência para o pensamento apresentado aqui, pontos processuais para a conexão entre prática dramatúrgica e duração. Dramaturgistas não lidam com coisas, mas com emergências, e o tempo, como duração, integra essas emergências. Pensar por meio dessas emergências exige engajar-se com elas enquanto acontecem e como acontecem entre os vários colaboradores do processo. 1 Devemos pensar na grande influência do trabalho de Alain Berthoz (entre

outros, The brain’s sense of movement. Cambridge, MA: Harvard University

Press, 2000); Brian Rotman (Becoming besides ourselves: the alphabet, ghosts,

and distributed human being. Durham, Londres: Duke University Press, 2008);

Katherine Hayles (em, entre outros, How we think. Digital media and contem-

porary technogenesis. Chicago; Londres: University of Chicago Press, 2012), Brian Massumi (Parables for the virtual: movement, affect, sensation); e

Alva Noë (Action in perception), discutidos nesse texto. No primeiro capítulo, Noë apresenta uma visão geral da emergência da abordagem ativa da percepção.

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Aqui, defendo que a ideia de pensamento de Deleuze e Guattari como acontecimento no entre é útil na fabricação do conceito desse modo de pensar. Além disso, se pensar é algo que acontece entre pessoas, isso significa também que pensar acontece através de algo outro. Isto é, pensar parece acontecer, emergir por entre algo que se faz meio entre os envolvidos. Esse meio pode ser a linguagem, certamente, mas Deleuze e Guattari (1994) explicitamente cogitam que o pensamento é capaz de acontecer por outros meios que não a linguagem. Discutem como o pensamento pode ocorrer, por exemplo, pela pintura, a escultura ou o filme (deleuze, 1986, 1989).2 Dança e performance também podem ser consideradas dispositivos do pensamento; suas características típicas, como a forte atenção ao movimento e a constante transformação, fazem delas objetos particularmente interessantes de pesquisa para as tentativas atuais de conceituar o pensamento em termos de prática material que procede pela encenação. Processos colaborativos de criação como a dança e a performance devem ser considerados como processos de pensamento que acontecem entre pessoas e entre pessoas e coisas. A questão, então, passa a ser como conceber o pensamento em relação a tais práticas do pensar. Se o ato de pensar não acontece na cabeça do pensador autônomo, mas, antes, entre e mediante as especificidades da linguagem, o que emerge desse processo (pensamento) não pode ser considerado como exclusivo de um pensador e nem tampouco independente do meio no qual se forma. Volto-me aqui à consideração de Hubert Damisch (1994) sobre a pintura como modo de pensar para argumentar em favor de uma compreensão do pensamento como um conjunto de relacionamentos materializados na criação (neste caso, a pintura) e reativados pelo observador. O pensamento, nesse contexto, não é uma ideia representada na pintura, mas o conjunto de relações entre os elementos da pintura e entre a pintura

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2 Deleuze e Guattari apresentam uma elaboração extensiva da arte como modo de pensamento.

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e o observador na forma proposta pela criação. Por extensão, compreender esse pensamento não é decodificar o que está representado, mas captar o que está proposto pela encenação da lógica do conjunto de relações propostas. A dança ou performance compreendidas como produtos de tais práticas colaborativas consistem em pensamentos materializados. Esses pensamentos não são de um só indivíduo envolvido na criação, mas do processo colaborativo. São pensamentos de ninguém, e como tais, precisamente, são preocupações do dramaturgista. Ao contrário dos outros participantes da criação coletiva da dança e da performance, o envolvimento do dramaturgista no processo criativo geralmente não começa a partir de um aspecto particular da criação, como a dança, os figurinos, a iluminação e a trilha sonora. Como o coreógrafo ou o diretor, o dramaturgista engaja-se com a totalidade. Entretanto, diferentemente desses, o dramaturgista não o faz a partir da posição de um autor ou criador do trabalho, dirigindo o desenvolvimento da criação (em diálogo com outros) de acordo com sua escolha. Antes, relaciona-se com todos esses aspectos e com as relações entre eles, como aspectos da criação de outros. O exemplo de Damish sobre a perspectiva será examinado para ilustrar como pensar o pensamento como efeito dessa constelação de relações não é uma questão de reconhecimento nem de decodificação do que está representado; envolve, em vez disso, encenar a lógica do que está se apresentando. Essa lógica e como ela conduz o público em seu engajamento com a performance é, pois, o objeto do olhar dramatúrgico. Mais adiante sigo uma sugestão de Alva Noë, e proponho os jogos linguísticos de Wittgenstein como modelo para o engajamento dos espectadores com a performance; ou seja, o engajamento deles com a performance como um complexo conjunto de relações sempre em transformação. Entendidas dessa forma, performances abrem espaços cognitivos de percepção que emergem da interação entre o que elas propõem e as nossas habilidades de engajamento, antecipação e compreensão. Finalmente, sugiro que essa interação – 156

e seus desdobramentos – como resultado da maneira como os espectadores encenam os pensamentos que constituem a performance – formam o objeto do olhar dramatúrgico.

processo

 

 

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A habilidade de pensar em termos de processo é crucial para qualquer pessoa envolvida na criação. E não se dá – pelo menos não inicialmente – porque é necessário tempo para fazer alguma coisa. Nem todo fazer é criação. Por exemplo, fazer um objeto a partir de um projeto preexistente, na maioria dos casos, não é criação, mas a execução de um plano prévio. Nesse tipo de fazer, o tempo é a trajetória projetada a partir do design para o objeto. O tempo da criação, por outro lado, é a duração do desdobramento daquilo que está por vir. Criar não trata do que alguma coisa é no agora, ou mesmo sobre o que não é ainda, mas do processo de transformação em alguma coisa que não chegou ainda. Ser criativo envolve precisamente essa habilidade de reconhecer tal potencial. Uma das primeiras coisas que devemos desaprender quando criamos performances é a tendência de olhar para os ensaios como se fossem performances, comparando o material do ensaio com uma obra imaginária já pronta. Ou seja, é um erro olhar para o trabalho de ensaio como se fosse uma versão de um projeto já existente. Em vez disso, criadores devem aprender a olhar o potencial daquilo que aparece, tornando-se – em uma semana, duas ou um mês – algo que, no presente, ainda não se conhece e não se pode conhecer. Esse olhar requer um modo de pensar que não é exterior ao material e que tenta moldá-lo de acordo com ideias preexistentes, mas que emerge por meio dele e da interação com suas possibilidades. Requer, assim, que se entre na lógica daquilo que emerge e que se mova com ela.

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pensar entre Para Deleuze e Guattari, a escrita é o meio no qual e pelo qual o pensamento colaborativo deles se formou. Seus livros em coautoria, incluindo O que é a filosofia?, são produtos de uma colaboração que Deleuze descreveu da seguinte forma: “[…] não trabalhamos juntos, trabalhamos entre os dois. […]. Não trabalhamos, negociamos. Nunca tivemos o mesmo ritmo. Estamos sempre em defasagem” (deleuze; parnet, 1998, p. 25). Nos livros resultantes de sua colaboração, entretanto, as tais diferenças de ritmo e quaisquer outras não são aparentes. Ainda que elas possam ter existido durante o trabalho e o pensamento colaborativo – e que possam ter sido importantes para se chegar a seus textos –, não são evidenciadas ao final. Juntos, esses dois pensadores independentes escreveram textos por meio dos quais apresentam uma série de pensamentos que não são nem de Deleuze nem de Guattari. Eles são a materialização do pensamento colaborativo deles na e por meio da escrita. De modo similar, é possível dizer que o pensamento dos indivíduos envolvidos na criação colaborativa, de modo geral, materializa-se em pensamentos que não pertencem a ninguém, individualmente. Criar coisas juntos significa produzir pensamentos que não existiriam sem o pensar de todos os indivíduos envolvidos no processo criativo. Uma vez criados, estes pensamentos existem independentemente de cada um daqueles indivíduos, como consequência do trabalho materializado entre eles. Como podemos começar a conceber pensamentos como entidades autônomas materializadas através de um linguagem artística? O que é interessante, aqui, é a consideração de Damisch (1994) acerca da perspectiva como um paradigma ou estrutura básica de modos de pensar, e a pintura como um modo de explorar as implicações desses modos de pensar. A perspectiva, como Damisch argumenta durante todo seu livro, não é apenas uma técnica que representa o espaço tridimensional na tela plana. Para o autor, a pintura é, na – 158

 

 

verdade, uma manifestação visual dos modos de pensar que emergiram no começo do Renascimento. Desde então, estes se tornaram tão profundamente impregnados e, por conseguinte, naturalizados, que a perspectiva passou a ser geralmente compreendida meramente como uma técnica pictórica de reprodução adequada das representações do espaço. Entretanto, afirma Damish, para compreender como as pinturas pensam é importante perceber que o que está sendo apresentado por uma pintura em perspectiva não é uma representação do espaço tal como ele existe fora da pintura, mas uma proposta sobre o espaço formulada neste suporte. Entender a proposição não é uma questão de reconhecer o que está sendo representado pela imagem, mas de captar o que Damisch descreve como a força intelectual da própria imagem. Isso significa apreender a lógica na proposição da qual a imagem é meramente uma materialização particular. Esta proposição consiste na relação que se estabelece entre os vários elementos na imagem, assim como entre a imagem e o observador. Perceber a lógica dessas relações é compreender o pensamento sobre espaço representado pela pintura. Tal lógica é parte do discurso apresentado ao observador pela pintura. É parte de como esta nos fala. Essa fala não é o ato do pintor como um indivíduo abordando um observador através da obra; antes, esse discurso é encenado pela pintura através da forma como a obra é construída e dos modos pelos quais essa construção atinge o público. Apesar de as pinturas discutidas por Damisch serem (supostamente) criadas por autores individuais, seu argumento funcionaria igualmente bem para trabalhos criados por múltiplos autores. O que importa é a proposição oferecida pela lógica das relações entre os vários elementos que compõem a pintura. Ele escreve:

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O aparato formal colocado pelo paradigma da perspectiva é equivalente ao de uma frase, na qual é destinado ao sujeito um lugar numa rede previamente estabelecida que lhe confere significado, enquanto simultaneamente abre a possibilidade de algo como uma afirmação na pintura: como Wittgenstein escreveu, palavras são nada mais que pon– 159

tos, enquanto proposições são flechas que carregam significado, ou seja, direção (damisch, 1994, p. 446).

É importante que a comparação entre perspectiva na pintura e uma proposição na linguagem não tenha por propósito entender aquela como um texto que pode ser decodificado por meio da indicação daquilo que os elementos individuais da pintura representam. Antes, a similaridade estrutural entre uma proposição na linguagem e a perspectiva na pintura apontadas por Damisch chama atenção para aspectos do funcionamento em ambas que são negligenciados em explicações sobre como a significação surge (na linguagem ou na pintura) em termos de representação. O que a perspectiva e a linguagem compartilham é que, em ambas, o sujeito torna-se um efeito da estrutura de relações organizadas por cada uma. A perspectiva […] possui em comum com a linguagem o fato de que em si e por si institui e constitui a si mesma sob os auspícios de um ponto, um fator análogo ao ‘sujeito’ (ou ‘pessoa’) na linguagem, sempre posicionado em relação ao ‘aqui’ ou ‘lá’, obtendo todas as possibilidades de movimento de uma posição para a outra que essa relação proporciona (1994, p. 53).

Isso é chamado, em linguagem, de dêixis, ou referência deíctica, que se refere ao aspecto da linguagem que estabelece relações entre pessoas, assim como entre pessoas e objetos, aqui e lá, cedo ou tarde. Dêixis, pois, é o que nos permite entrar na linguagem assumindo a posição de eu ou você, aqui ou ali. Permite que nos posicionemos em relação ao que está expresso na linguagem ou vice-versa, isto é, que situemos aquilo que é dito com relação a nós mesmos. Por essa razão, Émile Benveniste (a quem Damisch faz referência) considera a dêixis – e não a referência – crucial para fazer a comunicação em linguagem possível (damisch, 1994, p. 20).3 3 O texto no qual Damisch está se referindo é Problems in general linguistics (1971), onde Benveniste destaca a importância da dêixis.

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É através da dêixis, então, que acessamos a linguagem e começamos a participar do que Wittgenstein chama de jogos de linguagem (o que será discutido mais tarde nesse texto). Similarmente, Damisch, também referindo-se a Wittgenstein, afirma que a perspectiva na pintura apresenta-se para nós através de uma série de relações, e que a possibilidade de captar a lógica do que nos é apresentado implica assumir posições que nela estão implícitas. Por analogia à consideração de Damisch sobre a pintura, podemos pensar que coreografias e performances apresentam para o público algumas proposições compostas de conjuntos complexos de relações entre muitos elementos do trabalho. Essas proposições direcionam-se a nós como público; falam-nos, convidam-nos a seguir com elas e a aceitar sua lógica. Como tais, engajam-nos ativamente em relação ao pensamento que emergiu do processo colaborativo do pensar através da dança e da performance e que, além disso, foi materializado na coreografia ou performance apresentada. Dada a condição da sua emergência, esse pensamento não pode ser atribuído a um indivíduo, ele é pensamento de ninguém; no entanto, concerne a todos e, especialmente, ao dramaturgista.

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consciência No trabalho dramatúrgico, a tentativa de pensar o pensamento de ninguém enquanto este se materializa na dança-por-vir envolve dois aspectos da consciência: (1) uma consciência sobre como o que está sendo criado chega ao público e (2) uma consciência sobre como essa abordagem induz o público a pensar junto com a performance – essencialmente, produzindo outro processo de pensar-entre. Assim, a forma dramatúrgica do pensamento de ninguém requer a compreensão de que o que pensamos ver e ouvir no palco passa a existir como um resultado da interação entre a abordagem presente na performance e a resposta do público. Essa interação envolve mais do que a mera compreensão de significado daquilo – 161

que é apresentado e dito. Envolve nossos corpos, dando corpo, ativamente, à proposição que nos foi apresentada e alucinando sobre aquilo que percebemos estar ali. O que percebemos é sempre mais e menos do que aquilo que se apresenta. O olhar dramatúrgico envolve uma busca dessa interação como o resultado do modo pelo qual somos convidados a dar corpo às proposições que são feitas através da performance. O caráter relacional radical das proposições apresentadas no palco é específico da performance. O que quero dizer com a expressão relacional radical é que a performance é um objeto especial de percepção porque, de fato não é um objeto. A performance não é uma coisa; existe somente como um conjunto dinâmico de relações. É a partir dessas relações que aquilo que normalmente é considerado performance emerge. Por exemplo, como os atores sabem, performar um conflito dramático entre duas pessoas não é performar o conflito em si, mas duas trajetórias irreconciliáveis que, precisamente, por razão de suas naturezas contraditórias, estão fadadas a esbarrar uma na outra. O conflito é o que emerge quando esbarram uma na outra. O processo de criação da performance implica a organização dessas trajetórias e a exploração de seu potencial para interação. Performances são conjuntos dinâmicos de relações que se transformam com o tempo: relações entre performers; performers e espaço; performers e o público; performers e seus figurinos; e a lista continua. É possível dizer que esse conjunto de relações dinâmicas em transformação pode se estender até as relações entre os performers e eles mesmos. Um corpo em movimento, observa Brian Massumi, não coincide consigo mesmo. Um corpo em movimento […] coincide com sua própria transição: sua própria variação. A gama de variações em que pode estar envolvido não está presente em qualquer movimento dado, muito menos em qualquer posição que o movimento atravesse. Em movimento, um corpo está numa relação imediata e em desdobramento com seu próprio potencial não-presente para variar (2002, p. 4). – 162

 

 

Em movimento, um corpo nunca está simplesmente lá. O movimento emerge como uma trajetória no espaço, ou como uma ação executada, apenas depois do fato e como resultado das relações de transformação do corpo em relação a si mesmo. Em cada momento discreto não há trajetória, somente transição. Criar uma performance de teatro ou dança, portanto, é encenar um conjunto de relações em constante transformação a partir das quais ela emerge. Mais que, digamos, uma pintura ou um texto escrito, as proposições que constituem uma dança ou uma performance apontam para a observação de Wittgenstein (1953) – referida por Damisch, acima citada – que afirma que proposições são como flechas e possuem significação de uma maneira que está intimamente ligada ao fato de que possuem direção. E essa direcionalidade só se torna significativa depois de uma ação individual, movimento ou encontro relacional. Massumi captura essa condição temporal em termos de uma formação reversa. Refletindo sobre o paradoxo da flecha de Zenão, escreve:

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Uma trajetória não é composta de posições. Não decompõe-se: é uma unidade dinâmica. Essa continuidade de movimento é de uma ordem do real que não é mensurável, espaço divisível que pode ser confirmado como atravessado. Não para até que pare: quando atinge o alvo. Então, e só então, a flecha está em posição. É somente quando a flecha atinge a marca que a sua trajetória real poderá ser será traçada. Os pontos ou posições realmente aparecem retrospectivamente, trabalhando para trás, a partir do final do movimento (2002, p. 6).

A formação reversa descreve como as trajetórias de movimento emergem a partir dos corpos em transição constante, ou como o conflito entre dois personagens se manifesta a partir do modo com o qual esbarram um no outro (literal ou figurativamente). A formação reversa é situada. Acontece no momento em que a determinação sociocultural informa o processo que emerge e torna-se parte de como o conflito, ou a trajetória da flecha, surge para o observador. Nesse momento, uma trama de movimentos e relações forma-se na – 163

percepção e memória do observador. Essas tramas de percepções passadas de movimentos participam na emergência que se cristaliza entre o mover e o perceber. O movimento que está presentemente sendo percebido sempre aparece para nós justaposto a tramas de movimentos vistos anteriormente; ele é informado pela nossa compreensão do movimento como parte de nossos modos culturais específicos de pensar; uma compreensão determinada pelas capacidades cognitivas de percepção e habilidades que reunimos para que possamos nos envolver com o que está sendo apresentado. Como Alva Noë afirma, a partir da perspectiva da filosofia da mente, “o mundo se mostra para nós em experiência somente de acordo com o modo como compreendemos, ou seja, conhecemos ou antecipamos o próprio mundo” (noë, 2007, p. 121).

jogo A afirmação de Noë de que o mundo se revela na experiência somente quando o compreendemos não é uma redução da experiência àquilo que pode ser decodificado e, portanto, conhecido, mas sim uma expansão do que significa “conhecer” em termos de uma prática incorporada, de engajamento com aquilo com que nos confrontamos. Se o mundo se apresenta em experiência somente quando o compreendemos, conhecemos ou antecipamos, isso também levanta uma antiga questão filosófica, a saber: como podemos perceber algo se necessitamos já conhecê-lo para percebê-lo? Noë empenha-se em responder tal questionamento através da ideia de jogos de linguagem de Wittgenstein, de 1953, para quem o significado de uma palavra está no seu uso. Ele explica isso comparando a linguagem ao jogo. O significado da linguagem não é uma propriedade isolada das palavras em si, mas depende do contexto abrangente dos jogadores que as utilizam e do jogo no qual se utilizam. Conhecer ou compreender a linguagem envolve entrar no jogo, participar, e, assim, descobrir o significado das palavras atra– 164

 

 

vés do uso. Jogando, aprendemos a compreender a linguagem, no sentido de que aprendemos como é utilizada a linguagem e para que é utilizada. Ao participar do jogo, nossa experiência vai sendo reestruturada enquanto vamos aprendendo a antecipar e a responder às questões que nos são dirigidas. Jogos de linguagem, pois, abrem-nos espaços intelectuais. Esses espaços não preexistem ao momento em que entramos neles, mas emergem no uso da linguagem, por intermédio das formas pelas quais a linguagem possibilita modos de engajamento e interação (noë, 2007, p. 123–125). Semelhantemente, Noë afirma que, quando vemos dança, contemplamos uma situação na qual podemos entrar e para a qual, de fato, somos convidados a entrar: “Quando vemos dança, vemos uma situação na qual podemos, para a qual somos convidados, na qual precisamos entrar” (noë, 2007, p. 125, grifo do autor) Esse convite é lindamente encenado na famosa criação Artifact (1984), de William Forsythe, na qual a personagem Mulher com Figurino Histórico aborda o público diretamente, dizendo “deem um passo adentro” e “bem-vindos ao que vocês imaginam ver”. Assistindo a Artifact, os espectadores encontram-se literalmente numa situação em que são convidados a adentrar o mundo do palco e engajar-se com o que ali é apresentado. Através da verbalização do convite para “dar um passo adentro”, Artifact não somente conduz explicitamente o que geralmente está implícito e não dito, mas também destaca o caráter corporificado do engajamento do público na performance; coloca em primeiro plano o fato de que a percepção é um processo de construção de mundo que envolve vários sistemas perceptivos simultaneamente.4

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4 Tomo a noção dos sistemas perceptivos de J. J. Gibson, em The senses considered as perceptual systems. Nesse livro, Gibson desenvolve uma abordagem da percepção sensorial na qual os sentidos não funcionam separadamente, mas como sistemas perceptivos. Compreendidos desse modo, os sentidos não são

sensores passivos ou canais de qualidade sensorial, mas modos de atenção.

Além disso, compreendidos como sistemas perceptivos, não são sistemas mutu-

amente exclusivos ou separados para escuta, visão, toque, olfato. Ao contrá-

– 165

Assim como os jogos de linguagem abrem espaços intelectuais que emergem do nosso engajamento com a linguagem, a dança convida-nos a entrar em espaços que se apresentam como experiências somente a partir do nosso engajamento com o que está sendo apresentado. A forma como esses espaços aparecem vai depender de nossa habilidade de engajamento, antecipação e compreensão. Finalmente, Artifact encena esse engajamento como um encontro lúdico que rompe as expectativas e nos desafia a jogar um jogo que, de certa forma, parece ser familiar, mas que não acontece necessariamente de acordo com as regras que conhecemos, como no jogo de xadrez em que Alice se encontra envolvida em Through the looking glass Alice através do espelho; (carroll, 1994, p. 151), cujas regras não são exatamente as esperadas, mas precisam ser descobertas enquanto se joga: – Não vamos discutir – disse a Rainha Branca em tom ansioso. – Qual é a causa do relâmpago? – A causa do relâmpago – disse Alice em tom decidido, pois isso ela tinha certeza que sabia – é o trovão… não, não! – corrigiu-se apressadamente – eu queria dizer o contrário. – É tarde para corrigir-se – disse a Rainha Vermelha. – Uma vez que tenha dito qualquer coisa, é definitivo, e você tem que aguentar as consequências. – Isso me faz lembrar… – disse a Rainha Branca, com os olhos baixos, e cruzando e descruzando as mãos, nervosamente – que tivemos uma trovoada daquelas na terça-feira passada… isto é, numa das terças-feiras da semana passada. Alice ficou perplexa. – Em nosso país – observou – só temos um dia da semana de cada vez. A Rainha Vermelha comentou: – Mas que calendário pobre! Pois aqui, na maior parte do tempo, os dias e as noites são em grupo de rio disso, eles interagem na constituição de um mundo que é visível, audível

e tocável ao mesmo tempo. A proposta de conceber os sentidos como sistemas perceptivos é parte da compreensão de um processo ativo de engajamento com

o mundo, uma ideia a ser desenvolvida a partir do que viria a ser conhecido como “abordagem ecológica da percepção”.

– 166

dois ou três de uma vez só, e no inverno temos às vezes nada menos do que cinco noites juntas… para esquentar, naturalmente. – Cinco noites são, então, mais quentes do que uma noite? – aventurou-se Alice a perguntar. – Cinco vezes mais quente, é claro. – Mas, pela mesma regra, deviam ser cinco vezes mais frias… – Exatamente! – gritou a Rainha Vermelha. – Cinco vezes mais quentes e cinco vezes mais frias… tal como eu sou cinco vezes mais rica do que você e cinco vezes mais inteligente! Alice suspirou e desistiu da discussão. “Parece exatamente uma adivinhação sem resposta!”, pensou.

 

 

PENSAR O PEN SAMENTO DE NIN GUÉM –––––– M A A IKE B L EEKER

Tendo viajado através do espelho, Alice participa de um jogo que acontece fora do seu enquadramento comum de referência. Aqui, não somente o xadrez, mas a própria realidade é um jogo bem diferente. Essas diferenças confrontam Alice com a trama de inteligibilidade pela qual ela está acostumada a entender suas experiências. Mesmo atrás do espelho, o xadrez (e, por extensão, a realidade) não está exatamente de acordo com as regras tais como ela as conhece, regras estas que fornecem a Alice a perspectiva daquilo que está acontecendo, uma posição a partir da qual ela deve interagir com a situação. Similarmente, Artifact confronta seu público com uma performance que evoca uma história de balé do século xix, embora seja uma história em que as regras do jogo tenham sido retorcidas para confrontar ludicamente o público com seus modos habituais de se envolver com uma performance – modos que estão condicionados pelas convenções do balé, do palco italiano e da performance teatral em geral. Em Artifact, nossa familiaridade com essas convenções oferece um ponto de entrada, uma maneira de estabelecer relações com a performance. Ao mesmo tempo, essa relação é precisamente o objeto que se questiona e com o qual o jogo é estabelecido. Tal performance utiliza-se dos recursos do teatro para expor e desafiar as proposições apresentadas pelas performances mais convencionais, enquanto nos leva, simultaneamente, a repensar ludicamente esses mesmos recursos. – 167

Artifact é construído ao redor de palavras que são organizadas em diagrama e impressas num programa. Na performance, palavras são usadas como ferramentas para desconstrução da linguagem: a das palavras e a da multimídia, do palco. Em Artifact, essa linguagem do palco é o que está em jogo. No programa, as palavras são acompanhadas por definições de dicionários, como que para assegurar seu significado. Durante a performance, são pronunciadas pela Mulher com Figurino Histórico e por um homem de terno. Eles usam as palavras de Artifact para produzir frases gramaticalmente corretas e utilizam essas falas para sugerir que as frases devem fazer sentido em relação àquilo que está acontecendo no palco. O grau de relação das palavras com o que se vê no palco, entretanto, é difícil de perceber. Os personagens investigam várias combinações possíveis entre as palavras, como dadas no diagrama, sendo usadas recorrentemente em diferentes ordens, ou repetindo as mesmas estruturas sintáticas usando diferentes palavras. Enquanto a referência torna-se cada vez mais problemática, o discurso no palco se torna dêitico ao extremo. A performance, então, parece provar o ponto de Benveniste discutido anteriormente: a dêixis, e não a referência, é essencial para que a comunicação em linguagem se dê. Mesmo que frequentemente seja difícil afirmar a que se referem as palavras no palco, o uso desses signos linguísticos faz sentido como um direcionamento que convida à resposta, ainda que não seja claro o que significam. Sentido e subjetividade aparecem através do jogo entre eu e você como posições produzidas, enquanto funções de signos linguísticos, por meio da condução de um direcionamento através de sinais visuais; da direção das mãos e olhos; da coreografia dos corpos no espaço; e das construções de perspectiva e ponto de vista.5 Artifact apresenta, então, uma análise autorreflexiva da performance de dança como um conjunto dinâmico de relações em que o que pensamos que vemos e ouvimos no palco passa a existir como 5 Para uma versão mais extensa dessa análise, ver Bleeker, 2008, capítulo 2.

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um resultado da interação entre o direcionamento apresentado pela performance e a resposta do público. Em Artifact, esse direcionamento é explicitado de um maneira divertida, sobretudo quando a Mulher com Figurino Histórico desafia o público a captar a lógica da proposição apresentada pela performance através de um envolvimento multissensorial e complexo:

PENSAR O PEN SAMENTO DE NIN GUÉM –––––– M A A IKE B L EEKER

Boa noite. Lembram de mim? Tentem não esquecer do que estão vendo e vocês vão pensar o que ouço. Tentem não lembrar o que eu estou fazendo e vou dizer o que vocês pensaram. Tentem não esquecer o que estão ouvindo e vão ver o que penso. Tentem não lembrar o que estou dizendo e vou ouvir o que vocês fazem. Tentem não esquecer o que estão fazendo e vão ouvir o que vocês dizem. Tentem não lembrar o que eu estou vendo e vou ver o que vocês pensam. Entendem o que quero dizer?

Referências  

 

• artifact. Coreografia: William Forsythe. Música: Johann Sebastian Bach, Eva Crossman-Hecht, Frankfurt, Alemanha: Ballett Frankfurt. 5 de dezembro de 1984. Dança. • benveniste, Émile. Problems in general linguistics. Coral Gables: University of Miami, 1971 [Edição brasileira: Problemas de linguística geral I. Campinas: Pontes, 1991]. • bleeker, Maaike. Dramaturgy as a mode of looking. Women & performance: a journal of feminist theory, edição 26, n. 13.2, 2003. • ______. Visuality in the theatre: the locus of looking. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2008. • carroll, Lewis. Through the looking glass. Londres: Penguin Books, 1994 [Edição brasileira: Aventuras de Alice. São Paulo: Summus, 1980]. • damisch, Hubert. The origin of perspective. Cambridge, Mass.: mit Press, 1994. – 169

• deleuze, Gilles. Cinema 1. The movement-image. v. 1. Minneapolis, mn: University of Minnesota, 1986 [Edição brasileira: Cinema: a imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985].

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• ______. Cinema 2. The time-image. v. 2. Minneapolis, mn: University of Minnesota, 1989 [Edição brasileira: Cinema 2: imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005]. • ______; guattari, Felix. What is philosophy? Nova York: Columbia University Press, 1994 [Edição brasileira: O que é a filosofia? São Paulo: Editora 34, 1992]. • ______; parnet, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.

• gibson, James J. The senses considered as perceptual systems. Londres: George Allen & Unwin, 1968. • massumi, Brian. Parables for the virtual: movement, affect, sensation. Durham, nc: Duke University Press, 2002. • noë, Alva. Action in perception. Cambridge, Mass.: mit Press, 2004.

• ______. Making worlds available. In: gehm, S.; husemann, P.; von wilcke, K. Knowledge in motion. Perspectives on artistic and scientific research in dance. Piscataway, nj: Transcript Verlag; Transaction Publishers, 2007.

 

 

• wittgenstein, Ludwig. Philosophical investigations. Oxford: Blackwell, 1953 [Edição brasileira: Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1984].

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BOUD I ER , Mario n et al. D e q uoi l a d ra mat urgi e est -el l e l e nom? Pari s : L’Harmat t an, 2 014. p. 1 31 - 1 34 .

Olhar

“E

CALDAS , Pau lo; GADELHA, Er n es t o. D a nça e dra maturgia [s]. São Paulo: nex us, 20 16 .

 

u sou um olhar e uma leve saliência […]; um olhar um pouco deslocado em relação às diferentes atividades concretas que se buscam doravante no palco dos ensaios […]; um olhar crítico, mas aberto”1 . Muitos são os que, procurando definir o dramaturgista, tais como Christian Biet e Christophe Triau, começam por convocar a palavra “olhar”, sendo o dramaturgista, em primeiro lugar, aquele que observa um processo de criação, beneficiando-se de um recuo e de uma distância maior que os intérpretes. Esse olhar pode ser de natureza socrática, associado a um processo maiêutico subjacente, nas palavras de Olivier Hespel: para ele, com efeito, o dramaturgista “[…] é alguém que olha outra pessoa criando alguma coisa e que tenta criar uma ligação entre as etapas da criação”.2 Ele próprio pode ser portador de um pensamento autônomo, como explica Charlotte Farcet: O dramaturgista é um olhar, no sentido do olhar de um espírito. Ele é um pensamento que se ativa, que analisa, descodifica, descasca, a partir da sua sensibilidade, reflete no sentido do reflexo de um espelho — ou 1 BIET; Christian; TRIAU, Christophe. Le dramaturge. in Qu’est-ce que le

théâtre? Paris: Gallimard, 2005. p. 35–36. (Coleção Folio Essais). 2 HESPEL, Olivier apud CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. In: Agôn, Laboratoire de recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et proces-

sus de création. Disponível em:.

Acesso em: 17 jul. 2010.

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procurando sempre conservar a memória das mudanças. Enquanto o grupo concentra-se no imediato, ele permite retomar as reflexões da equipe, tirá-la de suas obsessões e de seus impasses. Frequentemente, esse olhar é orientado pelo chefe do projeto, que delega algumas tarefas ao dramaturgista. É assim, segundo Olivier Hespel, que a coreógrafa Meg Stuart trabalha com Bart Van Den Eynde. Essa artista recusa o trabalho de consulta prévia com o dramaturgista; este último estará, então, presente em todos os ensaios para fazer emergir as linhas dramatúrgicas:

de uma superfície de água – a fim de reenviar ao encenador o que ele vê.3

De qualquer maneira, tal olhar está associado a uma certa distância: ao mesmo tempo no exterior e no interior da criação, ele mantém suas distâncias com o objeto que se cria. Afastado dos desafios de ordens demasiadamente emocional ou pessoal, preservaria, desse modo, uma suposta neutralidade. Espécie de vigia, o dramaturgista observa com recuo e cuida da coerência do conjunto: funcionando como uma baliza, ele também preserva o espetáculo das guinadas que o fariam desviar dos primeiros desejos, dos ângulos calculados. É, ainda, aquele que, graças à sua distância de observador, pode detectar um acidente que renovará o sentido. Associado à aparição dos acasos, é um olhar lúcido, capaz de ver o que excede do quadro. Yannic Mancel expressa-se nesse sentido: O olhar afiado do conselheiro artístico ou dramatúrgico está aí, de acordo com a bela expressão de Jacques Lassalle, para pós-racionalizar o inesperado e o imprevisto, o aleatório e os acidentes desse processo empírico. Ele está presente para pensar — tanto no sentido ótico como no intelectual — o impensado.4

Seu olhar tem de peculiar o fato de ser abrangente, de estender-se sobre a totalidade do espetáculo. Esse ponto de vista panorâmico lhe possibilita um campo de visão ideal, mais largo do que o do encenador. O dramaturgista pode decompor seu olhar e passar à vontade do detalhe ao conjunto, deslocar-se na sala para observar a partitura de cada praticante. O olhar do dramaturgista se deseja múltiplo, aberto e preserva a pluralidade, recusando o estabelecimento de um ponto de vista único. Olhar igualmente demorado, 3 FARCET, Charlotte. H2O. In: COUTANT, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Éditions Joca Seria, 2008. p. 42. (Coleção Les carnets du grand T).

4 MANCEL, Yannic. Dramaturgie à la française: la cinquantaine décomplexée. In: L’Ère de la mise en scène, Théâtre aujourd’hui, n. 10, 2005, p. 18.

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olhar

Todos os dois estão a olhar, mas com objetivos diferentes. Neste ponto, constitui-se uma dialética. Ele olha as interações, e isso, eventualmente, pode contar, significar. A coreógrafa olha mais a gestão do espaço, o ritmo. […] Neste caso, não existe exatamente um olhar exterior, mas dois olhares encarregados de funções diferentes.5

 

 

Existem alguns casos onde o encenador, igualmente intérprete, delega a outrem o papel de “olhar exterior”. Esta é uma prática recorrente no circo e na dança, onde os artistas são frequentemente encenadores e intérpretes, onde um artista convidado para alguns ensaios assume um papel dramatúrgico. O artista de circo Mathurin Bolze descreve essa posição que ele ocupa regularmente: Esse projeto, eu não o concebi nem o alimentei na sua concepção primeira. Eu olho um primeiro estado do trabalho que se deu muito bem sem mim até o presente momento. Frequentemente, ser somente o olhar exterior consiste em […] ‘fazer as costuras’. De acordo com o estado de avanço das obras, podemos ajudar a escrever ou fazer emergir novas sequências, limpar outras. Às vezes, trata-se de colocar em ques-

5 HESPEL, Olivier apud CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. In: Agôn, Laboratoire de recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et proces-

sus de création. Disponível em:.

Acesso em: 17 jul. 2010.

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tão escolhas de espaço, de dramaturgia na ordem das sequências, por exemplo, para invertê-las […]. O olhar exterior reinterroga.6

Diferenças de grau intervêm, pois, na implicação do dramaturgista dentro do espetáculo. Sua posição de recolhimento ou de recuo parece, porém, característica da expressão “primeiro espectador” que frequentemente associamos a ele. Essa posição de intermediário entre o artista e o público é desenvolvida por vários coreógrafos que veem o dramaturgista a garantia do equilíbrio entre o plano de leitura interno ao processo de criação e o plano externo que se oferece ao público: Numa criação, é preciso dar sentido à equipe, aos intérpretes, para que cada um possa moldar seu próprio processo de criação. Paralelamente, é necessário zelar pela construção de um plano de leitura para os diferentes tipos de público aos quais iremos apresentar o espetáculo. […]. Eu acredito que é nesse lugar que o dramaturgista age, ele tem sempre que manter a sua atenção na composição desses dois planos.7

Essa concepção do dramaturgista como primeiro espectador, exposta por Elsa Decaudin nos encontros do festival de Uzès, é, no entanto, criticada, quando associa a dramaturgia à pedagogia. A dramaturgista em dança Bojana Cvejić, no ensaio chamado O dramaturgista ignorante8 , recusa a ideia segundo a qual “[…] o dramaturgista se coloca na posição professoral ou sacerdotal, daquele que sabe melhor, de quem pode prever o que as pessoas da plateia po-

 

 

dem ver, sentir, pensar, gostar ou desgostar”. Em consonância com o Espectador emancipado9 de Jacques Rancière, ela preconiza: “[…] confiarmos que os espectadores são mais ativos do que podemos admitir”. Assim, ela se opõe a toda “[…] pressuposição paternalista de que o público não poderá compreender se não for adequadamente – dramaturgicamente – guiado”. Restringindo a atividade do dramaturgista ao centro da criação e da sua equipe, Bojana Cvejić recusa-lhe um papel de antecipador das reações do público. Recusar esse papel de espectador-mor tende a afirmar o papel artístico do dramaturgista, fazer de seu olhar um eixo essencial à criação. Em torno desses debates, a questão da identidade do dramaturgista — como artista ou como intermediário entre a equipe e o público — é questionada novamente. Como esse trabalho dramatúrgico nunca está definido claramente de antemão, é sempre a relação entre a equipe e o dramaturgista que vai determinar a maneira como esse olhar vai se pôr e o lugar que ele vai ocupar na criação.

olhar

6 BOLZE, Mathurin. In: Dramaturgie du Cirque. Encontro apresentado por Aurélie

Coulon e Sylvain Diaz. Agôn. Le laboratoire, cirque et dramaturgie [revista

eletrônica]. Disponível em: .

Acesso em: 22 set. 2010.

7 DECAUDIN, Elsa apud CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. Agôn, Laboratoire de recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et proces-

sus de création. Disponível em: .

Acesso em: 17 jul. 2010.

8 CVEJIĆ, Bojana. Le dramaturge ignorant. Agôn, Laboratoire de recherche, Danse

et dramaturgie. Disponível em: .

Acesso em 13 jul. 2011 [N. do E.: Consultar o artigo O dramaturgista ignorante na presente publicação (p. 91)].

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9 RANCIÈRE, Jacques. Le spectateur émancipé. Paris: La Fabrique éditions, 2008

[N. do E.: edição brasileira: O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012].

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A atividade dramatúrgica nem sempre envolve o ofício efetivo de um dramaturgista; portanto, trato menos da função do dramaturgista do que da dramaturgia como uma atividade que é própria ao processo artístico. A dramaturgia ocupa-se com o desenvolvimento de um terreno comum para a produção de sentido, o que gostaria de considerar como uma responsabilidade comum a todos os colaboradores. trecho de:

Jeroen Peeters

Heterogeneous Dramaturgies

[Maska, n. 131-132, 2010, p. 17.]

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P u b l icad o com o t ít u lo L e s p roce s s us d ra m at urg iq ue . I n : N o uvel l es d e D a n s e. D o s sie r D ans e et D ra m at urg ie . n. 3 1 . Br uxe las : C ont re d ans e , 1997 .

O p r o c es so dram atú r g i co –––––– Marianne Va n K e r k h ov e n

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

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Marianne Van Kerkhoven (1946-2013) foi, por décadas, uma das mais influentes figuras no campo das artes performativas na Europa. Ensaísta e dramaturgista, atuou junto a coreógrafos como Anne Teresa De Keersmaeker, Jan Lauwers e Jan Ritsema. Foi editora-chefe do periódico Theaterschrift (1991-1995). –

O PrOCESSO d r a m atú r g i C O –––––– M A r i A n n e vA n k e r k H ov e n

 

 

Até agora, eu trabalhei sobretudo como dramaturgista de teatro. Minha experiência como dramaturgista de dança é consideravelmente restrita. Entre 1985 e 1990, colaborei nessa função com cinco produções consecutivas de Anne Teresa De Keersmaeker: Bartok/Aantekeningen, Verkommenes Ufer/Medeamaterial/ Landschaft mit Argonauten, Mikrokosmos, Ottone, Ottone e Stella. Partindo dessa experiência restrita com uma só coreógrafa, quero tentar sublinhar algumas anotações no que concerne à noção de dramaturgia de dança hoje.

1. “A ‘dramaturgia’ — como há pouco tempo a chamamos — está, claramente, na base de toda criação artística, quer se trate de montar uma peça ou de dar um concerto. Nós lidamos o tempo todo com dramaturgia, até quando nós não lidamos com ela. Desde que se saiba no que consiste a dramaturgia, pode-se vê-la e encontrá-la em todos os lugares. É uma continuidade”. Jan Jorris Lamers, do grupo de teatro de Amsterdam Maatschappij Discordia.

2. “Desde que se saiba em que consiste a dramaturgia…” Podemos lidar com dramaturgia há anos e ainda assim não sermos capazes de lhe dar uma definição clara, de expressar o que ela – – 18036

– 181

representa exatamente. Se procurarmos num dicionário a palavra “dramaturgia”, encontraremos algo como “as regras, a doutrina ou a teoria (ou a elaboração dessa teoria) da arte dramática”. Creio que o trabalho de um dramaturgista não tem nada a ver com doutrina ou teoria ou com aplicação de regras, pelo contrario; no trabalho dramatúrgico, não se trata de destilar e depois aplicar modelos que adquirimos analisando toda uma série de exemplos práticos ou de representações; é mais precisamente o inverso: é buscar um caminho pelo qual conseguimos “arrumar” e estruturar todo o material que aparece “sobre a mesa” ao trabalharmos numa produção, tentando, sobretudo, “não refazer hoje o que fizemos ontem”. Eu prefiro então, essa definição extremamente simples da dramaturgia formulada pelo dramaturgista francês falecido recentemente, conhecedor de Brecht, Bernard Dort: “a dramaturgia: é uma consciência e uma prática”.

3. Nas artes da cena no nosso país, o termo “dramaturgia” não foi integrado por séculos. O primeiro dramaturgista remunerado fez sua aparição no teatro, na região da Flandres, em 1968; nesse momento, ainda não se fala de dramaturgia de dança. Eu não sei quando o dramaturgista ou o conselheiro literário ou artístico apareceu no teatro francófono. Existem atualmente dramaturgistas de dança remunerados em Flandres, Bruxelas ou na Valônia? Pode-se, sinceramente, duvidar disso. A Alemanha tem provavelmente a mais longa tradição em matéria de dramaturgia. Em 1768, Lessing escrevia Die Hamburgische Dramaturgie (Dramaturgia de Hamburgo) e, quase dois séculos mais tarde, foi sobretudo pela prática de Bertolt Brecht que a noção de “dramaturgia” integrou-se ao teatro alemão. No que diz respeito à dança, podemos talvez considerar o fundador do balé clássico, o mestre de balé francês Jean-Georges Noverre, como o primeiro dramaturgista de dança: seus balés não eram mais – 182

estruturados como uma “soma” de vários “números”; ele submeteu a virtuosidade às necessidades da obra na sua integralidade, começou a libertar a dança de sua escravidão em relação à música… A ideia de uma dramaturgia em dança provavelmente sempre existiu, mas é somente nas fases mais recentes da história da dança que ela se tornou “uma prática consciente”.

O PRO CESSO DRAMA TÚRGICO –––––– M A RI A NNE VA N KE RK H OVEN

4.

 

 

O tipo de dramaturgia que me é familiar nada tem a ver com “a dramaturgia do conceito”, que desde Brecht está muito em voga no teatro alemão. Nesta filosofia de trabalho, um conceito é elaborado pelo dramaturgista em colaboração com o encenador, conceito de uma interpretação do texto; esse trabalho se faz antes dos ensaios começarem; todas as escolhas que se impõem ao longo do processo de ensaio são submetidas a um teste de validade ou de credibilidade em relação a esse conceito: isso decide a rejeição ou aceitação dessas escolhas. Sabemos antecipadamente onde queremos chegar; traçamos um caminho para alcançar esse resultado. O tipo de dramaturgia com a qual me sinto ligada, e que tentei aplicar tanto no teatro como na dança, tem um caráter de “processo”: escolhemos trabalhar com materiais de origens diversas (textos, movimentos, imagens de filmes, objetos, ideias etc.); o “material humano” (os atores/os bailarinos) é decididamente o mais importante; a personalidade dos “performers”, mais do que suas capacidades técnicas, é considerada como fundamento da criação. O encenador ou o coreógrafo se lança no trabalho com esses materiais; durante o processo de ensaio, ele/ela observa como esses materiais se comportam e se desenvolvem; é somente no final desse processo que aparece lentamente um conceito, uma estrutura, uma forma mais ou menos definida; essa estrutura final não é conhecida de antemão.

– 183

5. Existe uma diferença entre a dramaturgia de teatro e a dramaturgia de dança? A primeira parte geralmente de um texto, a segunda de uma música; a primeira trabalha com palavras que “significam”; a segunda com movimentos e sons dos quais só podemos “suspeitar a significação”. Os materiais são diferentes, a história das duas disciplinas é diferente e, no entanto, existem semelhanças entre o trabalho do dramaturgista no teatro e seu trabalho na dança. A dramaturgia tem sempre alguma coisa a ver com estruturas: trata-se de “controlar” o todo, de “pesar” a importância das partes, de trabalhar com a tensão entre as partes e o todo, de desenvolver a relação entre os atores/bailarinos, entre os volumes, as disposições no espaço, os ritmos, as escolhas dos momentos, os métodos etc.; resumindo, trata-se de composição. A dramaturgia é o que faz “respirar” o todo. Existe uma diferença entre a manipulação das variações (em música e em movimento) em A Mesa Verde de Kurt Jooss (o motivo da “Morte” por exemplo) e a manipulação das variações (no texto) em Esperando Godot de Samuel Beckett (o “Então vamos/Vamos lá” — eles não se mexem, por exemplo)? Também na composição de um concerto — a escolha e a sequência das músicas —, podemos falar de dramaturgia (por exemplo como os quartetos abrangem solos e duos; como os temas musicais contrastam ou concordam entre si). A dramaturgia encontra-se em todo lugar.

6. No entanto, existem diferenças — evidentemente históricas também — entre a dramaturgia de dança e a de teatro. No teatro, contam-se frequentemente histórias; muitas vezes, os textos de teatro têm um caráter narrativo: um desenrolar linear com um início, um meio com complicações e um fim onde tudo se resolve. A dança conheceu todo um período no qual tentava ser narrativa. Quando eu era pequena e me levavam numa apresentação de balé, eu lia apressadamente o resumo no libreto do programa; todas as vezes – 184

eu me sentia enganada: eu nunca via na cena aquilo que tinha acabado de ler. O momento no qual o príncipe e a princesa declaravam seu amor era “estendido” através de um pas de deux inteiro. Quando então acontecia o “eu te amo”? Eles dançavam juntos, faziam muitas coisas, mas o momento que eu esperava não existia. O que eu procurava enquanto criança era a transformação literal da língua (da literatura) em movimento, em gestos (em dança). Não havia relação direta entre eles nem na cena nem na realidade. Essa experiência me convenceu muito cedo de que a dança não era o meio o mais adequado para “contar estórias”. Steve Paxton disse:

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A vida — minha vida — não é uma estória, ela não tem um começo e fim interessantes. Ela continua e continua e continua. As pessoas que eu conheço na vida real e que contam estórias, muitas vezes mentem. Elas exageram: talvez essa seja a forma como uma estória é. Estórias são uma forma de arte. Na vida real, eu não tenho aventuras.

 

 

Desenvolver e contar histórias parece ser uma necessidade do homem para controlar o mundo/a vida. As histórias se referem frequentemente a mitos, a situações primitivas. Porém, como elas são recontadas e recontadas, nos aprisionam muitas vezes em clichês, em estereótipos, numa causalidade inelutável, em estruturas de narratividade e de desenlace. A dança possui uma grande qualidade de abstração; uma estrutura pode ser portadora de emoção, de significação, mas não no mesmo sentido que as palavras/a língua; a narratividade lhe escapa. Provavelmente, o balé do século xix tentava justificar sua existência como arte conformando-se às formas narrativas da literatura.

7. Os anos 1980, nas artes do teatro, situavam-se sob o signo da “multidisciplinaridade”. Tanto nas produções de teatro quanto nas produções de dança, as fronteiras entre as disciplinas foram ultra– 185

passadas: textos, movimentos, música, imagens de filmes, cenografia etc. tudo confluía, fecundava-se mutuamente. Hoje, constatamos que o teatro orienta-se novamente mais pelo texto e que as apresentações de dança tendem a abraçar uma linguagem de movimento puramente abstrata (existe, entre outros, uma volta à dança clássica). Seria um reflexo conservador depois da explosão multidisciplinar dos anos 1980? Vemos que Anne Teresa De Keersmaeker e Jan Fabre se aproximam do balé clássico, que muita gente do teatro flamengo se aproxima dos textos do repertório mundial. Seria a extrema incerteza dos tempos em que vivemos que impulsiona os artistas para a certeza de linguagens já existentes (os textos clássicos, o vocabulário do balé clássico)? Ou será que temos de fazer outra pergunta: seria esse o processo de uma geração inovadora nos anos 1980 que hoje, artisticamente adulta, sente a necessidade de se definir conscientemente em relação à herança artística, em relação à tradição e à história? Thierry De Mey e Anne Teresa De Keersmaeker falam disso numa conversa publicada no Theaterschrift 9 — “Theater and Music”: Thierry De Mey: “E depois, a maneira como reagimos ante a tradição pode evoluir. No início, tínhamos mais tendência a algo autônomo, firme, uma esfera de energia. Hoje, nós nos perguntamos questões do tipo: o que é uma fuga? Qual é a estrutura de um tema musical?” Anne Teresa De Keersmaeker: “É exatamente isso: em ‘Rosas danst Rosas’, desenvolvi um certo número de estruturas sem dispor de um mínimo de conhecimento sobre as formas já usadas por outros. É como se eu descobrisse, inventasse tudo pela primeira vez.” Uma questão que se coloca é se a abordagem de um idioma clássico não vai aumentar a importância das capacidades técnicas dos bailarinos, diminuindo a força das suas personalidades cênicas. A dança vai talvez perder uma parte de sua teatralidade, mas, em contrapartida, vai ganhar em qualidade abstrata, que se manifesta – 186

numa relação intensificada entre a dança e a música. Fica claro que, nesse momento, o dramaturgista de dança deve ser alguém muito qualificado em matéria de música.

8.

 

 

O PRO CESSO DRAMA TÚRGICO –––––– M A RI A NNE VA N KE RK H OVEN

Mesmo que essa tendência à abstração seja “legível” na recente obra de Anne Teresa De Keersmaeker, por exemplo, não podemos dizer que a abordagem multidisciplinar no seu trabalho tenha desaparecido. Olhemos, por exemplo, a utilização do material textual ao longo da sua obra. Os primeiros textos aparecem em Elena’s Aria; a utilização que a coreógrafa faz deles é reduzida à forma mais simples: as bailarinas colocam-se num canto sob uma lâmpada e leem seus textos. Em Bartok/Aantekeningen, o material textual era um dos numerosos parâmetros utilizados: ele recebia um lugar preciso na construção complexa e engendrava movimentos concretos e gestos (cf. o texto Lenz, de Georg Büchner). Até agora, Verkommenes Ufer/Medeamaterial/Landschaf mit Argonauten é a única encenação de Anne Teresa De Keersmaeker: o texto de Heiner Müller foi o ponto de partida estrutural e emocional dessa produção tanto por sua música, como por sua materialidade, como por sua significação. Em Ottone, Ottone, os próprios bailarinos construíam “frases de texto” em analogia às “frases de movimentos” que eles desenvolviam; no pano de fundo — pelas árias da ópera de Monteverdi L’Incoronazione di Poppea — toda uma história se desenrolava: o repúdio de Octavia por Nero e a coroação de Poppea, seu novo amor, como imperatriz. Pela fusão ou pela duplicação de personagens, ou acrescentando personagens inexistentes em Monteverdi, Anne Teresa De Keersmaeker conseguia contar sua própria versão da história. Em Stella, o texto Rashomon de Runosuke Akutagawa “dilatava-se” sobre cenas inteiras; diálogos de A streetcar named desire (Um bonde chamado desejo), de Tennessee Williams, foram fundidos juntos e deformados num monólogo semelhante a uma ladainha; da – 187

peça Stella, de Goethe, restaram somente algumas palavras desaparecendo em meio a gargalhadas. Em Erts, os mesmos diálogos de Tennessee Williams foram utilizados no material filmado: as personagens eram interpretadas pelos bailarinos que só víamos na tela. Em Mozart/Concert Arias, o texto desaparecia, digamos por assim dizer, na música; as árias eram cantadas em cena por três cantoras enquanto os bailarinos “ilustravam” as “estórias cantadas”: os momentos de felicidade e de aflição no amor. Em Amor constante mas alla de la muerte, o poema homônimo de Quevedo foi uma das fontes inspiradoras mais importantes da obra; na coreografia, o poema foi literalmente “traduzido” em linguagem de sinais. Em Woud, a obra mais recente, um poema de crianças, Tippeke, está na base da primeira parte do espetáculo, uma sequência filmada; o texto é dito e dançado pela própria Anne Teresa De Keersmaeker. A terceira parte de Woud é dançada sobre Verklärte Nacht, de Schönberg, inspirada por um poema de Richard Dehmel, embora o texto não seja dito nem dançado em cena. A última parte de Woud é dançada sobre uma canção de Richard Wagner, Im Treibhaus, cantada ao vivo. Etc. É claro que a maneira como Anne Teresa De Keersmaeker integra os textos nas suas produções pode assumir as formas mais diversas. Poderíamos fazer o mesmo “inventário de formas” no que diz respeito, por exemplo, às imagens de vídeo ou de filme.

O PRO CESSO DRAMA TÚRGICO –––––– M A RI A NNE VA N KE RK H OVEN

 

 

9. Eis algumas anotações relativas à dramaturgia de dança e de teatro. Mesmo sendo difícil definir essa prática, para mim, em primeiro lugar, é uma profissão que eu amo. No seu livro Le temps scellé. Considérations en ce qui concerne l’art du cinéma, o cineasta russo Andrei Tarkovski escrevia: “Quando eu falo da poesia, eu jamais a considero como um gênero. A poesia é para mim uma visão do mundo, uma relação particular com a realidade”. Talvez a dramaturgia, quando bem conduzida, seja também uma forma de poesia, uma maneira de abordar a realidade… – 188

– 189

...o que é a dramaturgia? A resposta não pode ser senão múltipla, com diversas possibilidades, caleidoscópica. É então necessário juntar o inapreensível ao inestimável para constatar, uma vez mais, que a resposta é impossível, uma vez que a dramaturgia não é talvez nada além do pensamento do teatro em marcha, pensamento sempre em vias de se constituir – e eu dou a este “pensamento do teatro” o duplo sentido que isso pode ter: o teatro como objeto e sujeito do pensamento. Para dizer de maneira mais precisa (e, ao mesmo tempo, muito geral), parece-me que a dramaturgia existe a partir do momento em que três termos ou três forças ou três polos se colocam em relação: a ação (da ação, qualquer que seja a noção que se tenha disso, até sua transformação em movimento [...]), o teatro (de outro modo, eu diria que fazemos usos metafóricos, ou derivados, do termo) e o pensamento. A dramaturgia seria a circulação da energia que emana desses três polos. Sem ação, sem um princípio ativo, qualquer que seja ele, não há dramaturgia possível. Sem o teatro, talvez faltasse dizer, sem uma cena (ao menos virtual), também não haveria dramaturgia. Quanto ao pensamento, constitui por sua vez um motor, o que põe em movimento e ordena a ação, as ações – as organiza, as dispõe – segundo uma certa ordem, que se pode denominar composição; e o resultado desta circulação de energia entre os três polos (que se poderia denominar também a emoção, que movimenta o pensamento). Não se trata de um sistema – que parece não ser possível hoje em dia – mas um esquema minimal, uma estrutura profunda, perfeitamente abstrata, que me parece ter a vantagem de fornecer uma base comum aos diferentes sentidos do termo dramaturgia, notadamente aos seus dois grandes sentidos. – trecho 190de:

Joseph Danan

Mutações da dramaturgia: tentativa de enquadramento (ou de desquadramento)

[Moringa. João Pessoa, v. 1. n. 1, jan. 2010, p. 119–120.]

P u b l icad o com o t ít ulo A n x ious d ram at urgy. I n : Wo m en & P er fo r m a n c e: a jo ur nal of fe m inis t t h eo r y, Is s ue 2 6, 1 3 -2 , 2003 .

Dramatu r g i a ansiosa –––––– M y r i am Va n Im s c h o ot

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

– 191

Myriam Van Imschoot é graduada em Filologia Germânica e especializada em Estudos da Performance na Universidade de Leuven, na Bélgica. Atuou em teoria, crítica e história da dança e colaborou, como dramaturgista, com artistas como Meg Stuart, Vera Mantero e Benoît Lachambre. Desde 2006, desenvolve seu trabalho artístico em torno do uso da voz em obras de vídeo, performance e instalações sonoras. Foi uma das fundadoras, em 2001, do SARMA, um laboratório independente para pesquisa, publicação e estudos em dramaturgia que inclui um banco de dados online com ensaios e antologias sobre dança e performance. –

– – 19240

adiante

d r a m atu r g i a anSiOSa –––––– M y r i A M vA n i M s c H o ot

 

 

Por acaso eu vivo e trabalho na Bélgica, onde a figura do dramaturgista foi um co(f)ator importante na formação de um novo “campo” cultural e paradigma estético nas artes performativas que emergiu na década de 1980 e consolidou-se na década de 1990. Atenta a esse contexto político-cultural, gostaria de sublinhar que o debate sobre o dramaturgista precisa de uma historicização e uma contextualização mais claras, para que seja possível avaliar o dramaturgista não apenas como colaborador artístico, mas também como agente político. Mais que celebrá-lo como figura da “complexidade”, percebo o dramaturgista como uma figura da “cumplicidade” num espectro sistêmico mais amplo, o que me alinha com um debate crítico mais recente que repensa a anteriormente “aurática” imagem do dramaturgista (meuleman, 1998; melens, 1998; vuyst, 1999; kerkhoven, 1999). Uma vez mais: meu compromisso aqui é também minha fundamentação. Um dos obstáculos para definir o dramaturgista decorre da dificuldade de ver o resultado do seu trabalho, que literalmente dissolve-se na produção, funde-se e torna-se invisível. Para Marianne Van Kerkhoven, uma das dramaturgistas fundadoras da cena das artes performativas da Europa nos anos 1980, é essa invisibilidade que não somente caracteriza o trabalho do dramaturgista,

– 193

mas também a figura do dramaturgista.1 O dramaturgista, escreve Kerkhoven, “[…] não tem que aparecer na foto”, permanece no escuro. Ela aconselha: “Aquele que não pode, ou não pode mais, lidar com esse aspecto servil – e contudo criativo – é melhor desistir” (1994, p. 144).2 Com a imagem da invisibilidade, Marianne Van Kerkhoven propaga uma ética: para ela, o dramaturgista é uma figura modesta – longe de ser um adulador, o dramaturgista ainda está a serviço do artista, dando suporte à sua visão por meio de feedbacks ou de feedforwards. Infelizmente, as conotações morais do que basicamente é uma autodescrição do trabalho excepcional de Van Kerkhoven como dramaturgista podem sobrepor-se a um aspecto político im1 Uso “dramaturgista” como um termo generalizante para uma grande variedade

de tipos. Na maior parte do texto, refiro-me ao dramaturgista criador,

isto é, um dramaturgista que oferece assistência à criação da nova peça. Esse tipo de dramaturgista pode ser uma pessoa independente, contratada

pelo artista ou um dramaturgista residente, afiliado a uma organização artística que oferece seus serviços ao artista. Na metade do texto, foco nos dramaturgistas que não estão associados à criação da peça, mas oferecem

assistência no que diz respeito aos aspectos institucionais da organização

artística. De modo geral, esse pode ser o trabalho de um dramaturgista residente. Este dramaturgista residente à moda antiga é a pessoa que escreve

programas, seleciona textos, revisa traduções etc. Um tipo de dramaturgista mais recente oferece assistência à instituição, numa reflexão durante sua

trajetória e desenvolvimento. Especializações mais específicas podem ocorrer também. Por exemplo, o dramaturgista pode ser nomeado curador da programação

da instituição ou pode fazer o papel de relações públicas. 2 Marianne Van Kerkhoven pertence à primeira geração de dramaturgistas belga. Começou a trabalhar em 1968 para a Teatro kns. Sua nomeação, assim como a de outros “dramaturgistas”, pode ser explicada por uma mudança na política cultural em que os teatros recebiam subsídios relativos às funções ocupadas

 

Noções como “nova dramaturgia” e “dramaturgia aberta” primeiramente vieram à tona na Europa a partir da metade dos anos 3 O simpósio itinerante Conversations on Choreography fez do tema dança e

Kerkhoven desenvolveu sua produção de dramaturgia como uma afiliada ao

ambas as ocasiões, aconteceram oficinas com dramaturgistas. Outros exemplos

centro Kaaitheater, onde ela ainda é dramaturgista residente. Por meio de

suas dramaturgias para muitos artistas, sua escrita e trabalho editorial

(a publicação de Theaterschrift, entre outros), ela tem sido fundamental na distribuição de ideias sobre nova dramaturgia.

dramaTURGIA ANSIOSA –––––– M YRI A M VA N I M S C H OOT

tropos de ansiedade

na instituição. Aparentemente, isso foi um estímulo para criar a nova função

do dramaturgista (em consonância com os teatros alemães). Marianne Van

– 194

 

plícito da metáfora da “invisibilidade”. Porque, de fato, a representação do dramaturgista como “não retratável”, como aquele que “não aparece na foto”, faz dele um metamorfo difícil de situar e que pode, portanto, operar mais livremente nos bastidores, atrás da tela de um complexo administrativo e de um sistema de produção mais amplos. Percebo que essas observações de abertura sobre a invisibilidade do dramaturgista são de alguma maneira estranhas, diante de muitos eventos que recentemente começaram a colocar o dramaturgista sob a luz dos holofotes. Durante a última década, a dramaturgia tem sido um tema recorrente nos numerosos simpósios, conferências, edições especiais de revistas, oficinas.3 Falar de dramaturgia compensa, literalmente; na verdade, é possível sustentar-se viajando de conferência em conferência hoje em dia, é o que parece. Mas, não obstante a enorme atenção crítica, até agora a ênfase tem permanecido meramente no perfil artístico do dramaturgista, em geral unicamente em relação a um coreógrafo ou diretor teatral (a figura autoral singular). O que permanece na penumbra é que o dramaturgista, precisamente por sua “aura” artística, pode servir muito bem como um agente em um processo de legitimação, validação e controle – um processo que vai bem além da estreita colaboração com o artista no processo artístico e inclui um leque muito mais abrangente de circuitos (organizacionais, políticos, discursivos etc.).

dramaturgia um tópico central em Amsterdam (1999) e Barcelona (1999). Em

recentes: um diálogo performado por Diane Theodores e Synne Behrndt na

Manchester Metropolitan University (1999), o simpósio sobre dramaturgia

Concepts on the Edge of Chaos, organizado por GDI, em Zürich (2000), e Conversaciones y Procesos, em Barcelona (2001).

– 195

1980.4 Eram instrumentos descritivos para o aparecimento de uma nova “metodologia”, ou praxeologia, resultando numa nova estética que girava em torno da multidisciplinaridade, de uma presença/ausência altamente fisicalizada do performer, e da polissemia. A nova dramaturgia desafiou fatores predeterminantes, tais como o texto como pivô da significação e do “conceito” (ou uma moldura prefixada de interpretação) como o princípio estruturante que dirige os ensaios. Em vez disso, convocou-se uma busca exploratória, mais orientada pelo processo, de todos os tipos de materiais e questões a partir dos quais a performance gradualmente emergia. Uma segunda onda de atenção ao fenômeno da dramaturgia sucedeu-se quando o modelo dramatúrgico, basicamente uma ferramenta teatral, expandiu-se para a cena da dança contemporânea no início dos anos 1990. Desde os primeiros exemplos de dramaturgia no trabalho dos coreógrafos Pina Bausch, William Forsythe e Anne Teresa De Keersmaeker, a historicamente nova aliança entre dança e dramaturgia vem afetando os coreógrafos.5 4 Um exemplo inicial é o colóquio New Dramaturgy, em 1987, em Amsterdam. Um

catalisador de atenção da crítica para a dramaturgia foi o Het Instituut voor Nieuwe Dramaturgie (O Instituto para Nova Dramaturgia), fundado por Heidi

Gilpin, Rob List e Ineke Austen. A partir de 1989, o Instituto organizou

uma série de seminários sobre a nova dramaturgia no contexto da Amsterdam Summer University. Desde o início havia uma abertura para a dança e para as

práticas de performance não verbais. O fato de que a tentativa de descrever os desenvolvimentos recentes no teatro estava ligada ao interesse na nova

dramaturgia ficou claro também no simpósio Context 01: Active Pooling New

Theatre’s Word Perfect (agosto de 1993). O simpósio foi iniciado por um grupo de estudos sobre dramaturgia e “[…] queria, a longo prazo, aproximar a arte e a ciência, a teoria e a prática” (KERKHOVEN, 1994, p. 10). Uma contribuição

crucial ao debate sobre dramaturgia foi realizada pela edição especial On

Dramaturgy, na publicação multilíngue Theaterschrift n. 5–6, 1994. 5 Em 1979, Pina Bausch começou a trabalhar com o dramaturgista Raimund Hoghe, agora diretor de teatro e performer. Heidi Gilpin trabalhou com William Forsythe como sua dramaturgista de 1989 a 1996. A primeira vez que Forsythe

trabalhou com um dramaturgista foi com David Levin para Impressing the

Czar, em 1988. Anne Teresa De Keersmaeker teve assistência da dramaturgista

Marianne Van Kerkhoven pela primeira vez em 1985. O The Institute for New

– 196

 

 

O discurso sobre a nova dramaturgia (relacionado à dança ou ao teatro) é em grande parte estruturado em torno de alguns tropos, ou, para colocar de outro modo, ansiedades: a ansiedade genérica (de onde vem o dramaturgista?), a ansiedade de definição (o que é um dramaturgista?) e uma ausência de ansiedade mais geral (o que é isso que nos falta e que necessita ser compensado pela presença do dramaturgista?). O que, em retrospectiva, também se torna claro é que o que inicialmente eram tentativas descritivas de circunscrever a práxis do dramaturgista ganhou um sentido prescritivo. Não se teria investido dinheiro na última década em simpósios e oficinas sobre dramaturgia se o dramaturgista não fosse considerado um benefício, até mesmo uma obrigação. É fato que a mensagem nesses simpósios é a de que cada produção cria seu próprio modelo colaborativo e sua equipe – com ou sem o dramaturgista como uma figura separada, funcionalmente diferenciada. Mas o tom aparentemente pluralista dessa mensagem ignora, de alguma forma, as pressões político-culturais que têm promovido o trabalho com um dramaturgista a um modo de produção colaborativa fetichista, pelo menos na Europa. O que deve ser necessário agora é uma contranarrativa que traga uma ênfase diferente e rearranje os tropos. Em vez de suturar a ansiedade geral com a cronologia histórica padrão a partir da dramaturgia de Hamburgo de Gotthold Ephraim Lessing, no século xviii, passando pela compreensão brechtiana de dramaturgia como síntese entre teoria e prática e chegando até os “dramaturgistas conceituais” da década de 1970, precisamos de uma genealogia que investigue as condições artísticas, político-culturais e econômicas que possibilitaram que

dramaTURGIA ANSIOSA –––––– M YRI A M VA N I M S C H OOT

Dramaturgy, em Amsterdam, já havia aberto suas portas para a inclusão da

dança, com seminários orientados para questões relativas a esta. Entretanto, a atenção da crítica para a aliança entre a dramaturgia e a dança só se

tornou visível de 1990 em diante: a revista holandesa de dança Notes e a

revista de teatro Toneel Teatraal deram atenção a essa nova forma (BLOEMEN,

1992; VELDMAN, 1991). Além disso, Scott DeLahunta escreveu sobre o tema para o Dance Theatre Journal (2000). Veja mais exemplos na nota 3.

– 197

a figura do dramaturgista emergisse.6 Em vez de acrescentar mais descrições para dramaturgia, que competem em perspicácia e criatividade em suas formulações, precisamos saber mais sobre o paradigma estético subjacente que viabiliza as variedades da superfície. No lugar de ver o dramaturgista como alguém que vai ao encontro de uma deficiência de um artista desejoso de diálogo, podemos prestar mais atenção à maneira como essa deficiência é construída e atribuída aos artistas por aqueles que dizem: “O que você precisa é de um dramaturgista”.

coesão e aderência A figura do dramaturgista é um sintoma de um processo mais amplo de modernização que se revela em termos de autonomização no nível artístico e racionalização no nível organizacional.7 Reconhecidamente, os processos citados anteriormente são acompanha6 Acredita-se que Lessing (1729–1781) tenha sido o primeiro dramaturgista, quando, em 1767, foi indicado para o National Theater de Hamburgo e começou

a desenvolver um novo repertório. Como crítico, atacou as unidades aristotélicas e pleiteou a autonomia do artista para atuar livre de esquemas preexistentes. Além de crítico e dramaturgista, foi também um escritor de

teatro e poeta. Seu Hamburgische Dramaturgie (Dramaturgia de Hamburgo) é a antologia inacabada de seus escritos sobre teatro. Em geral, a cronologia

 

da antiga dramaturgia se encerra nos anos 1970, com referência aos drama-

8 N. do E: O termo “organização artística” é utilizado como uma designação

rações com diretores teatrais. Essa prática posteriormente perdeu crédito

(cuja estrutura é reconhecida pelo governo), constelações organizacionais

turgistas conceituais que fizeram tal abordagem prevalecer em suas colaboe o dramaturgista foi tratado com ironia, como uma espécie de cão policial ou guardião do conceito.

7 Mais um nível pode ser acrescentado aqui: o processo de especialização no nível discursivo, que parcialmente reflete-se numa inclinação mais forte em

direção à teoria na arte e no discurso da arte, assim como na academização de

conhecimento nos programas de pós-graduação em departamentos universitários, cursos de verão, instituições de pesquisa etc. O alcance do artigo não me permite falar das imbricações entre dramaturgia e departamentos de estudos

ao redor do artista independente e organizações de festivais. 9 Para uma útil análise e descrição da formação do campo da dança contemporânea

desde 1980, cf. Gielen, 2000. 10 Esta é, assumidamente, uma versão sucinta. Eu, por exemplo, coloco entre parênteses as demandas modernistas de especificidade da linguagem artística por um motivo: a especificidade característica da linguagem não se aplica

às artes performativas nos anos 1980, que celebrava a multidisciplinaridade

(termo usado então).

11 Marianne Van Kerkhoven destaca que, numa linha similar, o mestre de balé

os quais ele/ela trabalhou. Esse segundo tema vem sendo trabalhado por Bart

“[…] seus balés não eram mais estruturados como uma acumulação de rotinas,

Meuleman (1998).

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geral para os centros artísticos, teatros, casas de produção, companhias

da performance. Além disso, não vou focar no interessante tema do efeito de legitimação dos textos ou palestras do dramaturgista sobre os artistas com

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dos por correntes antimodernas. Além disso, longe de fornecer uma descrição global para o desenvolvimento da arte e dos seus sistemas, a ideia de modernização claramente aplica-se à cena belga das artes performativas, especialmente desde 1980, com o surgimento do que geralmente é chamado de Onda Belga. Artistas como Anne Teresa De Keersmaker, Jan Fabre, Wim Vandekeybus, Jan De Corte e Jan Lauwers, entre outros, são alguns dos mais bem-sucedidos artistas dessa geração, que foi acompanhada pela formação de novas organizações artísticas, tais como produtoras, festivais de dança, centros de arte e companhias de teatro e dança.8 A regulamentação governamental desse – para usar o termo do sociólogo Pierre Bourdieu – “campo” finalmente aconteceu em 1993.9 Vamos ver o papel do dramaturgista nesse contexto. A modernização artística pode ser compreendida como uma tendência modernista em direção a uma (auto)compreensão das artes em termos de autonomia artística e – o que é percebido como – consistência interna.10 Um exemplo do início dessa tendência pode ser encontrado no século xviii, com o primeiro dramaturgista, Lessing, o qual encomendou e selecionou novos textos de teatro com o objetivo de chegar a um repertório mais sólido e apto, para além do dogma das leis aristotélicas (unidades de tempo, espaço e ação).11 É

Jean-Georges Noverre poderia ser chamado o primeiro dramaturgista em dança: ele submetia o virtuosismo às necessidades do trabalho como um todo”. Ela

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um movimento duplo de distanciamento do arbitrário e das regras externas impostas; uma transferência de autoridade para o artista e para a lógica interna da obra de arte como uma unidade integral e autônoma. Com alguma extrapolação, pode-se dizer que o dramaturgista é semelhante à figura (que aparece posteriormente) do diretor teatral, que desde o século xix tem aumentado as demandas por uma unidade de visão que é internamente motivada apenas por razões artísticas. A percepção do dramaturgista como uma figura de coerência e consistência parece, à primeira vista, ter se tornado menos proeminente a partir da década de 1980. A “nova dramaturgia” é precisamente “nova” na medida em que busca distinguir-se daquilo que eventualmente ainda se considerava como “a velha” (dramaturgia), do uso demasiadamente rigoroso de conceitos como uma grade preestabelecida para reger a práxis teatral desde sua concepção até a sua recepção.12 Ao invés de engajar-se com um dispositivo de organização geral, a nova dramaturgia alinha-se mais facilmente com a dita condição pós-moderna e seus tropos de implosão das grandes narrativas mestras (lyotard, 1979), caos, fragmentos e crenças disseminadas. Mas, mesmo assim, o dramaturgista permanece sendo uma figura da coerência, e tenta encontrar novos conjuntos de sentido. Ou, como o dramaturgista André Lepecki (1999) colocou na ocasião da conferência Conversations on Choreography, em Amsterdam: “[Dramaturgia é] a atividade de organização imaginativa com o objetivo de comunicar; a garantia de que depois de um longo processo, haja ‘alguma coisa’ visível e coesa”.13 também escreve: “A ideia de um dramaturgista na dança provavelmente sempre

existiu, mas é somente nas fases mais recentes da história da dança que

essa atividade tornou-se ‘uma prática consciente’.” (1997, p. 20). 12 Isso é argumentado também por Fien Bloemen (1992). A nova dramaturgia é, de fato, um corretivo, e leva a dramaturgia à sua filosofia básica.

13 Muitas referências à “coesão” podem ser encontradas em autodescrições. O interesse de Heidi Gilpin na dança e na dramaturgia foi movido pela “[…] questão de como vetores de sentido que não palavras podem ser organizados

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Em nome da clareza: não há nada de errado na tentativa de criar sentido a partir de um mundo disperso e chegar a “alguma coisa ‘coesa’ ”. Mas, para argumentar, quero acrescentar que a percepção da coerência interna de uma obra geralmente pressupõe sua aderência a um sistema/cânone de arte. Essa leitura fica patente quando olhamos para alguns casos em que o dramaturgista foi claramente imposto por um produtor. No primeiro caso, uma década atrás, a coreógrafa portuguesa Vera Mantero recebeu uma oferta de apoio à produção pelo prestigioso festival de dança Klapstuk e foi solicitada a trabalhar com um “dramaturgista do Norte” (quer dizer, do norte europeu).14 Naquele momento a dança portuguesa era um fenômeno recente, começando a construir seu caminho para um circuito de festivais internacionais de dança já bem estabelecido. Acolhida por suas qualidades distintas (ainda que fosse difícil identificá-las), foi também convidada a ajustar-se à lógica do mercado e dos paradigmas de gosto já existentes. Um segundo exemplo leva-nos a Victoria, um centro de produção belga aclamado por sua arte jovem, anárquica e experimental, muitas vezes no limiar da cultura popular, flertando com a música pop, com o hip hop, com a moda e com a cultura da juventude. Um grupo de hip hop e dança de rua ficou, entretanto, claramente desconfortável quando o dramaturgista residente foi “oferecido” a ele. Eles não tinham experiência de trabalho com um dramaturgista e não estavam inclinados a começar a trabalhar com um. Do ponto de vista do produtor, o trabalho jovem ou vulnerável precisa de um bom contexto de apoio – financeiro, técnico e intelectual

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num todo consistente” (VELDMAN, 1991, p. 14). Fien Bloemen argumenta que

“[…] a nova dramaturgia busca o caos para dominá-lo” (1992, p. 22). Marianne Van Kerkhoven afirma: “A dramaturgia tem sempre alguma coisa a ver com

estruturas: trata-se de ‘controlar’ o todo” (1997, p. 21). 14 O apresentador belga dispensou esse pedido. O que é relevante para nós, aqui, é que ele realmente fez sua proposta nesses termos. André Lepecki faz

um relato mais completo sobre esse incidente no ensaio que está no mesmo

volume em que esse texto foi publicado pela primeira vez.

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–, especialmente quando os jovens artistas, de alguma forma, não são familiarizados com a cena artística, seja por falta de experiência ou por viver culturalmente às margens de uma cena artística. Mas a linha entre a proposição e a imposição é difícil de ser traçada. E, novamente, podemos indagar se a orientação dramatúrgica nesses casos não visa, no final das contas, tornar mais fácil a transferência da “alteridade” do trabalho, nesse caso percebida como “inexperiência” e “caos”, para o ambiente artístico mais “refinado”. Resumindo, nesses exemplos, o dramaturgista aparece como uma imposição dos produtores. Espera-se que o dramaturgista garanta um “melhor” resultado ou diminua o risco de fracasso. Ele ou ela caracteriza uma figura de autoridade, mesmo que esteja a serviço do artista, que é percebido como deslocado da cena artística geograficamente (o português do sul), culturalmente (grupo de hip hop) ou experiencialmente (jovens com pouca bagagem artística). O caos percebido por produtores em determinados trabalhos é, simultaneamente, um objeto de desejo e de temor, porque inclui o fracasso como um resultado possível. O tropo do caos pode ser revisto aqui; o dramaturgista não está muito preparado para atar a ferida do eu dividido à dispersa condição pós-moderna, mas sim de atar aquilo que se desvia aos aparatos já existentes.15 Novamente, um olhar mais distanciado pode ser útil. Os casos de Vera Mantero e do grupo de hip hop estão situados no contexto dos anos 1990, no momento em que o modelo do dramaturgista já tinha alcançado um certo prestígio por meio do Kaaitheater (com a dramaturgista residente Marianne Van Kerkhoven) e pela contri15 Hildegard De Vuyst, que foi dramaturgista para, entre outros, o coreógrafo Alain Platel, descreveu algumas das experiências negativas que ela enfrentou

quando foi deixada por um produtor num processo de criação de pessoas jovens. Ela sugeriu que, nessas ocasiões, o dinheiro gasto na dramaturgia

talvez fosse melhor investido dando uma outra oportunidade a esses jovens artistas, se seu projeto tivesse falhado. Eles podem estar aprendendo mais

buição de dramaturgistas para o trabalho de Jan Fabre, Wim Vandekeybus, Anne Teresa De Keersmaeker, Guy Cassiers etc. Após as primeiras ondas de talento endógeno, produtores – trabalhando num campo ainda em expansão e necessitado de abastecimento –, tornaram-se mais efetivos em descobrir novos artistas de outros países e em apoiar a produção de seus trabalhos. A expansão era visível, numa acelerada internacionalização e, posteriormente, na abertura da dança contemporânea “erudita” para uma palheta cultural mais diversa (culturas popular, de rua, folclórica). Enquanto, por um lado, o sistema se abria, por outro, era colocado sob pressão, tensionado para regular o equilíbrio delicado entre seus lados externo e interno, tendo o dramaturgista como elo de ligação.

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negócios e agitação

 

 

A modernização organizacional das artes performativas resultou, na Bélgica, num sistema das artes profissionalizado e subsidiado, no qual as “funções intermediárias” (intermediárias: entre o artista e o público) ganharam mais peso. O aparato possibilita, supostamente, que o artista se concentre naquilo em que ele ou ela são bons: fazer arte. O gerente financeiro cuida das finanças, o diretor de produção cuida dos aspectos práticos da produção, a assessoria de imprensa cuida da comunicação da peça, o contador etc. De acordo com a dimensão da organização, mais ou menos posições são ocupadas para fazer a intermediação entre o trabalho do artista e o acesso do público a este. Entretanto, com o passar do tempo, percebe-se que o intermediário assumiu prioridade, fazendo com que as organizações se tornassem autorreferentes e, eventualmente, mais orientadas para si mesmas do que para os artistas. Em relação a isso, Rudi Laermans, sociólogo da arte belga, fala de uma bifurcação entre um polo artístico e um “polo de negócios”, com uma lacuna cada vez mais ampla entre eles devido às demandas de internacionalização e de um estilo de governo intervencionista que

com a oportunidade de errar e tentar novamente do que trabalhando com alguém com quem não têm nenhuma afinidade (1999, p. 66).

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regulariza suas trocas com as artes em termos meramente econômicos e administrativos de responsabilidade mútua e eficiência.16 Em Small diferences, big effects: on art, the market, and politics, Rudi Laermans (2001c) propõe, junto ao cientista político alemão Helmut Willke, “o estado supervisionista” como uma alternativa a esse modelo intervencionista. O estado supervisionista busca mais reflexividade e autoanálise. Ele deseja manter o espaço de decisões aberto, reativando-o para que as organizações não conduzam uma trajetória cega guiada pela bússola da lógica interna do “mais e maior”. Isso estimula os “coabitantes de campo” a analisar, observar, comparar, fazer sugestões, delinear “forças-tarefa”. Resumindo, encoraja uma rede discursiva de “atividades atribuídas” a partir da qual uma “descrição-contextual” (que não deve ser confundida com consensual) pode surgir, podendo, então, ser formalizada em planos políticos. Concluindo, Laermans vê dois modelos: um modelo bifurcado simplificado que separa os polos artístico e comercial, arriscando subordinar o artístico à lógica comercial, e uma rede mais complexa de atribuições discursivas que procura por uma negociação quanto à substância e à remuneração da arte. A análise perspicaz de Rudi Laerman é especulativa – propõe o modelo abstrato do estado supervisionista – e parcialmente descritiva – vê o modelo supervisionista já entrando em jogo com o aumento das comissões, conselhos e grupos lobistas no campo das artes performativas de Flandres. Apesar da clara distinção que faz entre os dois modelos, ambos têm em comum o fato de serem sintomas da crescente expansão e da proliferação das funções “interme16 Rudi Laermans foi fundamental na propagação da teoria dos sistemas como

um instrumento explanatório na análise da cena artística. A teoria dos sistemas, com Niklas Luhmann como o teórico principal, parte do princípio

de que a sociedade delineia sistemas autônomos que são estruturados ao redor de diferentes grupos de valores. Cada sistema busca sua “autopoesis”, um estado independente e autorreferencial. A teoria dos sistemas oferece um

 

 

diárias”, sejam elas absorvidas pelo contexto do marketing ou pelo contexto mais discursivo das “políticas”. Mais ainda: talvez o modelo supervisionista seja apenas o próximo passo lógico para acomodar o sobrepeso do intermediário enquanto simultaneamente fundamenta a sua razão de existir de maneira mais firme por meio de uma reorientação. É definitivamente questionável se essa ordem está realmente aberta à negociação, na medida em não permite que mais artistas ocupem o nexo discursivo na chamada “rede de atribuições”. Infelizmente, o aumento de grupos de lobby e comissões de conselhos políticos não aumentou a participação dos artistas no processo de tomada de decisão política. Apenas para dar um exemplo, até hoje nenhum artista fez parte de uma comissão flamenga para dança ou teatro. Os negócios talvez tenham se transformado em agitação, num discurso sobre política para as artes mais inteligente, variado e profundamente motivado, mas envolveram mais dinheiro também, dinheiro que poderia ter sido diretamente dirigido aos artistas, mas que, em vez disso, hidratou as funções intermediárias. Aqui a figura do dramaturgista é percebida com frequência como um elemento de conexão, especialmente aqueles que estão em contato com o polo artístico e atuam em comissões, bancas, fóruns públicos, institutos de pesquisa e similares. O espectro de atuação polivalente do dramaturgista poderia assegurar uma circulação mais livre entre artistas, produtores e elaboradores de políticas, como já ocorre nas organizações que contratam dramaturgistas que participam tanto da organização quanto do processo de criação do artista. Mas a conexão pode muito bem se dar entre os domínios de atuação e ao mesmo tempo manter a distância entre eles. Se dramaturgistas podem dar voz às questões artísticas, podem igualmente silenciar aqueles por quem falam. O dramaturgista é uma figura do “entre” e, consequentemente, um outro “intermediário”; parte de uma cultura de “mediação” que desencoraja a partici-

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modelo para compreender processos de – entre outros – superespecialização. Para aprofundamento, cf. Laermans, 2001a e 2001b.

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pação artística direta.17 É nessa linha que se torna possível compreender um comentário de Lisa Nelson, vídeo-artista americana, artista de improvisação e coreógrafa, que definiu “a mania ‘europeia’ do dramaturgista” como a “[…] última invenção da Europa para criação de empregos para pessoas que não são artistas; é um outro método para arrastar mais dinheiro para o aparato de produção e administração em vez de gastá-lo com os artistas”.18 A mais nova ironia desse cenário admitidamente sombrio – aqui me vejo forçar um pouco o tema – é que as organizações de arte não apenas tomam emprestado o discurso do “mercado” para justificar suas ações, como Laermans afirma, mas uma hibridização inversa também se estabelece, na qual o aspecto comercial é reenquadrado em termos artísticos. Isso pode ser discernido com a “dramaturgização” das posições administrativas, como a de dramaturgista-curador, o dramaturgista relações públicas, e, de modo mais geral, o dramaturgista da casa. O problema, então, não é tanto que a organização seja o “outro” do polo artístico, mas sim o fato de ela começar a perceber a si mesma como uma “obra de arte”, um “processo” orgânico que necessita de visão, criatividade e vigor. Ela está em permanente transformação e, portanto, necessita de feedback, diagnóstico, redirecionamento.19 O dramaturgista, nesse tipo de constelação, é como um prefixo que encontra a sua substância por meio da afiliação com ou17 Nesse sentido, o Artists Meeting, em Viena (2001), que aconteceu no Tanzquartier, é memorável, por ter sido uma iniciativa de Jérôme Bel, Xavier Le Roy, La Ribot e Christophe Wavelet destinada a examinar a política das

artes na Europa a partir da perspectiva dos artistas envolvidos. 18 A citação é de uma conversa informal depois de uma sessão do encontro

tras “funções” ou “trabalhos”. O que ele ou ela traz para o trabalho são questões; uma tentativa de refletir sobre as coisas para chegar a uma lógica artisticamente motivada que fundamente as tomadas de decisão e as ações da organização. Certamente, a lógica de mercado e a lógica dramatúrgica usam registros distintos, como podemos notar, por exemplo, nos dossiês e formulários para solicitação de fomento, mas ambas as justificativas (do contador e do dramaturgista) são similares na medida em que vão ao encontro das demandas inquisitivas de legitimação do sistema de arte por meio da objetificação e racionalização.20

o dramatúrgico sem o dramaturgista

 

 

Para Bertold Brecht, o diretor teatral e o dramaturgista (que nesse caso estava claramente alinhado com o teórico), eram duas metades dialéticas de um ser, assim como a arte e a realidade eram percebidas em diálogo permanente e sempre em transformação. É seguindo essa ótica que o produtor teatral do coletivo Maatschappij Discordia, Jan Joris Lamers, chama os performers de “cientistas” de uma “ciência performativa viva” (1994, p. 297, tradução nossa). Lamers vê a dramaturgia mais como “um diálogo continuado” entre artistas do que um diálogo com um dramaturgista separadamente. Não precisam de dramaturgistas, uma vez que, idealmente, são todos dramaturgistas uns para os outros. Entretanto, o aspecto dramatúrgico tem sido separado do corpo do artista para tornar-se um “olhar externo”. André Lepecki rebelou-se fortemente contra a redução ideológica do dramaturgista a um olho, tendência sintomática de uma tradição de pensamento que desde Descartes separou a mente do corpo e equiparou

Conversations on Choreography, em Barcelona, 1999. 19 Um empréstimo similar do discurso artístico pode ser visto em setores de

20 Talvez não tenha sido coincidência o fato de os dramaturgistas terem sido

tion in new product development (1997) e Improvisation and information use

centros artísticos de Flandres estavam vivendo o auge do que era aludido

desenvolvimento de produtos. Mesmo em títulos como Organization improvisain new product development (1995) são apenas dois exemplos da tendência geral das organizações de colocar mais ênfase no processo, na indeterminação e complexidade, bem como na necessidade de uma abordagem criativa.

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chamados para se juntar às equipes administrativas no momento em que os como uma “batalha de perfis”, como, aconteceu em STUK, e em Leuven. Os dramaturgistas não auxiliaram os artistas, mas eram os guerreiros do discurso na batalha por distinção, legitimação e autenticação.

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a mente ao óptico. Lepecki resiste à ideia do dramaturgista (o olho) como o lugar do poder e conhecimento colocado à disposição de um coreógrafo, o qual (se estendermos a metáfora) é percebido como sendo todo corpo – um corpo cego e burro, esperando ser iluminado pela fala e pela visão. Numa descrição da sua própria prática dramatúrgica, Lepecki gosta de reconfigurar o dramaturgista como o lugar do conhecimento desencarnado, fundindo o corpo do dramaturgista com o corpo do trabalho e “tornando-se um corpo somático”.21 Da mesma forma, acredito fortemente que não é tanto de dramaturgistas que precisamos, mas sim de contextos dramatúrgicos nos quais artistas, acadêmicos, cientistas, iluminadores, músicos etc. possam estabelecer um diálogo continuado sobre o trabalho, os conceitos que usam, as ideias que exploram, sem o filtro de mediação “do” dramaturgista. Estou pensando em vários projetos que aconteceram nos últimos anos que acho particularmente desafiantes quanto a esse aspecto.22 O coreógrafo francês Boris Charmatz iniciou uma oficina chamada Session em torno da relação entre dança e artes visuais, em Grenoble, em março de 1998; uma segunda Session sobre iluminação aconteceu em dezembro de 1998, em Paris.23 O último, para o qual fui convidada, apresentava um minicurso sobre a física da luz com um técnico de iluminação, uma palestra sobre o trabalho de James Turell, uma apresentação de slides mostrando um estudo sobre o uso da luz nas artes visuais, discussões, aulas de Feldenkrais, sessões de improvisação, sessões de trabalho prático com equipamento de iluminação teatral e uma prática fotográfica. A oficina foi 21 Paráfrase da fala de Lepecki em Barcelona, que aconteceu durante o encontro

Conversations on Choreography. 22 O interesse por pesquisa e intercâmbio é muito vívido na cena da dança eu-

ropeia dos últimos anos, resultando em uma variedade de projetos e estratégias de (não) performativos. No escopo deste artigo, vou restringir-me

aos dois projetos dos quais participei. 23 Minha gratidão a Boris Charmatz pelo convite e a Angèle Le Grande, força crucial em fazer dessa oficina um evento de sucesso. Sessões futuras estão planejadas e vão lidar com “o árduo” e com “figurino”.

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planejada para ser um intensivo de três dias, no intuito de aumentar o conhecimento sobre o fenômeno da luz e seu potencial para a dança, particularmente, e para a arte de forma geral. Foi para nutrir projetos futuros como também familiarizar os participantes com o aspecto técnico e com a lógica do design de luz. O curso intensivo teve a participação de um grupo central que incluía, além de Charmatz e seus companheiros bailarinos, amigos artistas, um apresentador, um fotógrafo e um videomaker documentarista. Algumas vezes, o ateliê fechado abria as portas para sessões públicas com grupos maiores. Eu gostei particularmente da ideia de que um coreógrafo que nunca trabalha com um dramaturgista crie ali a sua própria dramaturgia por meio dessas oficinas. Mais ainda, ele torna a dramaturgia pública e coletiva, já que todos os bailarinos compartilham mutuamente na troca de informações. A iniciativa ecoa os interesses similares de Charmatz em estruturas colaborativas comunitárias em que artistas se reúnem e trocam performances, ideias, experiência, assim como aconteceu em Ouvrée – Artistes en Alpage, um evento de performance nos Alpes franceses em Annecy, que incluiu, além de Charmatz, Steve Paxton, Benôit Lachambre, Jennifer Lacey, Barbara Manzetti e Xavier Le Roy, para nomear alguns. Os eventos de Charmatz alinham-se ao interesse atual em projetos de pesquisa desenvolvidos por artistas, em um formato que não teve precedentes na década de 1980, quando o dramatúrgico na dança foi confinado ao diálogo personificado entre o coreógrafo e seu/ sua dramaturgista, com poucas aberturas para uma equipe mais ampla de performers. A distinção funcional entre coreógrafo e dramaturgista geralmente implica também a diferenciação de “ganho”, numa economia interdependente de demanda e apoio. Na oficina intensiva, entretanto, a estrutura de “serviço” caiu por terra, afinal todos participaram na investigação e todos aportaram suas habilidades ao processo. As variedades na transmissão de informações – uma palestra convencional, uma apresentação de slides, aquecimentos – deram crédito para a diversidade de conhecimen-

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tos (para além da divisão entre teoria e prática) e destacaram, ao mesmo tempo, as convenções formais da performance do conhecimento. O fato de que o intensivo não foi diretamente orientado para resultar num produto/performance (apesar de ter alimentado projetos de alguns participantes posteriormente) deu ao todo um espaço particular de respiro, um território comum mais relaxado e compartilhado no qual os artistas podiam se encontrar. No ano seguinte (em outubro de 1999), fui convidada a participar do CrashLanding@Moscow. Essa era a quinta edição do Crash Landing, um projeto de improvisação que começou em 1996 sob a curadoria tripartite de Meg Stuart, Christine De Smedt e David Hernandez e que tinha por finalidade (re)investigar a performance de improvisação num contexto colaborativo intermídia. As primeiras edições em Leuven, Viena e Paris foram marcantes porque impulsionaram a improvisação – um formato de performance pouco representado na Europa até então – para o circuito de festivais e grandes espaços de apresentação, contribuindo para o (res)surgente interesse na prática, história e futuro da improvisação. As duas últimas edições de Crash Landing foram menores e mais engajadas com as comunidades locais de Lisboa e Moscou. Como nas primeiras edições, o evento de Moscou teve a participação de um grupo interdisciplinar central e um tema (“Memórias do Futuro”) como ponto de partida para pensamentos e trabalho. O grupo foi formado por artistas visuais, artistas de vídeo, um artista da performance, músicos, bailarinos, figurinistas e eu. Não havia categoria para mim, e eu não estava querendo receber uma. Temia a ideia de ser chamada de “dramaturgista”, e estava feliz por isso não acontecer. Por que aconteceria? Novamente o contexto em si era dramatúrgico. O grupo todo trabalhou por duas semanas com três performances públicas no período. A linha entre sessões privadas e públicas, no entanto, foi difícil de ser delineada, uma vez que o modo e atmosfera da pesquisa foram sustentados durante todo o processo. As performances foram compostas de materiais elaborados durante o dia e de improvisações mais abertas. Decisões sobre – 210

 

 

a partitura (decisões gerais relativas à configuração, arranjo dos assentos do público, ideias conceituais) eram tomadas de forma coletiva, ainda que não unanimemente; havia um fluxo contínuo de discussões. Curiosamente, Meg Stuart (uma das pessoas que tomou iniciativa para o acontecimento de Crash Landing e, em razão de sua notoriedade, de alguma forma, líder do grupo) geralmente trabalha com um dramaturgista nas suas próprias peças de “autoria singular”.24 Os Crash Landing são diferentes, posto que abrem a sua estrutura de responsabilidade para um processo colaborativo de tomada de decisão, sem a ajuda de um dramaturgista “indicado”. A natureza improvisacional do projeto requer que todos os participantes condensem as habilidades de performance, composição e dramaturgia no momento em que estão performando, não existindo tempo para sair e suprimir algum trecho, pedir conselho ou consultar uma segunda opinião. Numa entrevista, a dramaturgista Heidi Gilpin já havia mencionado como a nova dramaturgia era proposta, uma vez que o texto tradicional passou a não ser mais considerado o ponto de partida; em vez disso, as improvisações forneciam o material inicial. Ainda mais quando a improvisação é levada para a performance, “[…] o papel do bailarino como um ‘instrumento treinado’ é preterido e substituído por um método de trabalho que encoraja a contribuição dramatúrgica e composicional feita pelo bailarino” (veldman, 1991, p. 16). A habilidade dramatúrgica pode ser compreendida como uma competência em compor ações e ler seu potencial de significação na urdidura do tecido da performance. A instantaneidade temporal da improvisação amplifica esse processo e faz com que a divisão do trabalho, quando todas as habilidades são necessárias no momento presente, seja inútil. Foi fascinante em Moscou que a questão da divisão do trabalho tenha surgido também em relação aos back-

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24 Para um portrait de Meg Stuart e uma descrição de seu trabalho, cf. Ploebst (2001).

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grounds especializados dos participantes. A questão nos fez ponderar se atuaríamos a partir das habilidades particulares de cada um ou se deixaríamos nossos campos de competência para nos encontramos no meio do caminho entre as disciplinas. Ambas as opções foram colocadas em jogo. Bailarinos manipularam o som ou a câmera, músicos e escritor dançaram, o fotógrafo integrou suas ações de documentário à performance etc. O resultado dessas reversões transgressivas foi que ampliou-se o sentido de que, mesmo quando o indivíduo permanecia em sua especialidade, havia uma responsabilidade coletiva e ativa para cada um dos componentes. Convenci-me de que o dramaturgista não é necessário para alcançar o dramatúrgico.25

• ______. Kleine Verschillen, Grote Gevolgen. Over Kunst, Markten Politiek. “Ruimten van Cultuur. Van de Straat over de Marktnaar het Podium.” Leuven: Van Halewyck, 2001c. • lamers, Jan Joris. Een Gesprek data ltijd Doorloopt. Theaterschrift, n. 5–6, p. 279–305, 1994. • lyotard, Jean-François. La condition postmoderne: rapport sur le savoir. Paris: Ed. De Minuit, 1979 [Edição brasileira: O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986]. • melens, Kurt. Bericht aan Bart Meuleman: cut the crap, act now! De Vlaamse Gids, n. 4, p. 48–50, 1998. • miner, Anne S.; bassoff, Paul; moorman, Christine. Organizational improvisation in new product development. Cambridge, ma: Marketing Science Institute, 1997.

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• moorman, Christine; miner, Anne S. Walking the tightrope: improvisation and information use in new product development. Cambridge, ma: Marketing Science Institute, 1995. • meueleman, Bart. Berichtaan de Dramaturg: Opkrassen! De Witte Raaf, 75:15, 1998.

• laermans, Rudi. Communicatie zonder mensen: een systeemtheoretische inleiding in de sociologie. Amsterdam: Boom, 2001a. • ______. Geld Maakt Vrij. Over Geld, Communicatie en Kunst. “Ruimten van Cultuur. Van de Straat over de Marktnaar het Podium.” Leuven: Van Halewyck, 2001b. 25 Minha gratidão a Marianne Van Kerkhoven, André Lepecki, Angèle Le Grande, Scott DeLahunta, Alice Reagan, Tine Van Aerschot, Lisa Nelson e Heidi Gilpin pela ajuda muito generosa na elaboração deste artigo.

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BOUD I ER , Mario n et al. D e q uoi l a d ra mat urgi e est -el l e l e nom? Pari s : L’Harmat t an, 2 014. p. 1 35- 1 39.

Sentido

A

CALDAS , Pau lo; GADELHA, Er n es t o. D a nça e dra maturgia [s]. São Paulo: nex us, 20 16 .

 

comparação pejorativa do dramaturgista a um “policial do sentido” traz à tona o risco de sua autoridade ideológica excessiva em certos processos de criação, mas não inicia a questão do sentido que a dramaturgia carrega fundamentalmente consigo. Interrogação e elaboração de motivos da obra, pensamento em movimento, saber erudito ou ferramenta de composição, o trabalho dramatúrgico aborda, de fato, diferentes estados do sentido, que dizem respeito tanto à direção quanto à significação e à sensação. Assim, a dramaturgia poderia ser comparada ao sentido da orientação; um sentido tão próximo do saber quanto do sentir. Na dramaturgia, pensa-se tanto na maneira de agenciar as diferentes sequências de um espetáculo quanto nos efeitos de sentido, significância e emoção do caminho escolhido. “Se não nos preocuparmos com a dramaturgia, a dramaturgia tomará conta de nós. Nós produzimos significações, então é melhor ter consciência disso e, se não as dominamos, que pelo menos construamos seus agenciamentos”, afirma o encenador Laurent Gutmann.1 Identificação e produção de significados da obra são indissociáveis de sua estrutura. É, então, a priori, numa troca flexível entre forma e significação que a dramaturgia persegue o sentido, 1 GUTMANN, Laurent. Ce que l’oeuvre ne dit pas. In: DANAN, Joseph (Ed.). Dramaturgie au présent. Registres, n. 14, 2010, p. 31.

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não se pode dizer com palavras”.6 O dramaturgista Olivier Hespel7 conta que ele tenta desconstruir as tentativas de narração dos coreógrafos com os quais ele trabalha e se recusa a criar personagens para fazer emergir o sentido. “No fundo, a atenção do dramaturgista se concentra na narração e na narrativa, mas além do sentido literário desses termos – é, aliás, por essa razão que o dramaturgista não é somente um simples conselheiro literário” 8 , afirma a dramarturgista Charlotte Farcet acerca da criação de Seuls (2008), de Wjdi Mouawad:

exploração que se distingue da aplicação de um plano de leitura e da exibição do sentido: Afirma, assim, a dramaturgista Marianne Van Kerkhoven:2 Eu acredito que o trabalho de um dramaturgista não tem nada a ver com uma doutrina ou uma teoria ou com a aplicação de regras, pelo contrário […]: consiste em buscar uma rota através da qual conseguimos ‘arrumar’ e estruturar todo material que aparece ‘sobre a mesa’ trabalhando numa produção.

Situada no cruzamento das significações da obra e da maneira como ela as coloca em movimento3 , a dramaturgia se encarrega parcialmente da questão da narração, termo que, como o de ficção, serve-lhe, às vezes, de sinônimo, reforçando, além disso, a confusão entre as duas definições.4 Essa sinonímia aparece, de um lado, nas palavras daqueles que subordinam a questão do sentido àquela da narrativa, ou, de outro lado, com artistas da cena não dramática, no circo, por exemplo.5 Para as práticas que não fazem do texto seu ponto de partida, elaborar uma história pode ser uma maneira de organizar a matéria do palco e orientar sua significação; a fábula (no sentido brechtiano) é, de fato, um princípio de organização significante. Mas o contestador Michel Laubu du Turak insiste, por sua vez, na necessária dissociação entre dramaturgia e narração, a fim de pensar a escrita de seu teatro não textual, visual e “bastardo”: “Eu escrevo espetáculos com pedaços de objetos, esboços, fragmentos de textos também […]. Esses próprios objetos irão contar alguma coisa que

sentido

Ele não se interessa, de fato, somente pelo texto, mas também pela cenografia, as luzes, os figurinos, pelo universo sonoro que juntos compõem a língua do espetáculo. Ele se interessa pela história, sua estrutura, sua progressão, observando o encadeamento das sequências […]. Para descobrir a trama justa.9

 

 

Reflexão sobre o desenrolar espetacular para estabelecer redes ou circulações de sentido, a dramaturgia não os apreende necessariamente pelo viés de uma organização narrativa. Consciência do sentido do percurso do espetáculo, sem pressupor, de maneira coercitiva, nem razões nem objetivos deste percurso; todavia, o trabalho dramatúrgico se aproxima frequentemente de um trabalho de composição ou de montagem. Essa imbricação das significações e da estruturação é particularmente visível no processo de criação coreográfica. Marianne Van Kerkhoven explica, por exemplo, que

6 LAUBU, Michel. L’ombre cachée derrière l’objet. In: Agôn, Laboratoire de

recherche, Marionnettes et Dramaturgie. Disponível em: . Acesso em: 29 ago. 2011. 7 CARRÉ, Alice. Postures et pratiques dramaturgiques. In: Agôn, Laboratoire de

recherche, Danse et dramaturgie, Dramaturgie et processus de création. Dis-

ponível em: . Acesso em: 17 jul. 2010. 8 FARCET, Charlotte. h2O. In: COUNTANT, Philippe. Du dramaturge. Nantes: Éditions Joca Seria, 2008, p. 42. (Coleção Les Carnets du Grand T). 9 Id.

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[…] trata-se de ‘pesar’ a importância das partes, de trabalhar com a tensão entre as partes e o todo, de desenvolver a relação entre os atores/dançarinos, entre os volumes, as disposições no espaço, os ritmos, as escolhas dos momentos, os métodos etc.; resumindo, trata-se de composição. A dramaturgia é o que faz respirar o todo.10

Segundo Roberto Fratini-Serafide, colaborador da coreógrafa Caterina Sagna, a dramaturgia consiste em “[…] juntar coisas heterogêneas para explorar, explicar as coisas, […] elaborar uma armadilha para capturar o sentido”.11 Antoine Pickels, por sua vez, diverte-se em descrever o dramaturgista como um “montador de quebra-cabeças”.12 Pelo fato de esse trabalho de agenciamento supor um olhar distanciado, o dramaturgista é frequentemente considerado como o primeiro espectador da obra, primeira testemunha de seus efeitos de sentido, primeiro receptor da ação do sentido. Olho exterior, o dramaturgista ajuda na identificação e na elaboração do sentido durante o processo de ensaio.13 Mathurin Bolze revela, por exemplo, que sua “assistente” Marion Floras faz dramaturgia, pois ela passa-lhe confiança, colocando palavras nas imagens que ele está fabricando sem saber exatamente o que elas contam.14 10 KERKHOVEN, Marianne Van. Le processus dramaturgique. op.cit., p. 21 [N. do

 

 

Na mesma perspectiva, Bart Van Den Eynde, dramaturgista, notadamente da coreógrafa Meg Stuart, afirma que “[…] a dramaturgia está onipresente: não podemos deixar de nos questionarmos por que entramos, por que saímos, por que fazemos tal gesto quando tudo é produto de uma escolha. Não existe nada no início. Sobretudo na dança. E isso com ou sem dramaturgista”.15 Mas se numa cena exposta aos olhares interpretadores dos espectadores tudo significa, nem sempre tudo significa intencionalmente ou como a equipe artística previu. O sentido emana da obra tanto quanto do olhar que se lança sobre ela: a dramaturgia pode, então, consistir num dimensionamento da abertura do sentido, reconhecimento e distinção entre os momentos em que o unívoco é necessário e aqueles nos quais podem, ao contrário, reinar o imprevisto e o enigma. Dessa maneira, além do trabalho dramatúrgico de leitura, interpretação, elaboração, exploração ou orientação do sentido, podemos até afirmar, como o faz Roberto Fratini-Serafide, que “[…] a dramaturgia não é estruturação do sentido do espetáculo, mas estruturação do desejo”16 : é o que desperta no espectador o desejo de ver para além do que está apresentado; o que coloca seus sentidos em alerta.

sentido

E.: Consultar o artigo “O processo dramatúrgico” na presente publicação,

p. 179]. 11 FRATINI-SERAFIDE, Roberto. Dramaturgie de l’attente. Résonances – du regard à l’oeuvre: autour de la réception en danse, comunicação apresentada durante

a jornada de estudos Biennale de la danse, sob a direção de Irène Filiberti

e Claudia Palazzolo, organizada pela Université Lumière — Lyon 2, 2 de

outubro de 2010. 12 PICKELS, Antoine. La dramaturgie travaille à sa propre disparition. Festival

de Uzès Danse et dramaturgie. Une danse en quête de sens, junho de 2009.

(Intervenção).

13 N. do E.: Consultar verbete OLHAR na página 173. 14 BOLZE, Mathurin. Dramaturgie du cirque. Encontro apresentado por Aurélie

Coulon e Sylvain Diaz. In: Agôn. Le laboratoire, cirque et dramaturgie

[revista eletrônica]. Disponível em: .

Acesso em: 22 set. 2010.

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15 Bart Van Den Eynde em entrevista a Barbara Métais-Chastanier, realizada em

Bruxelas em 11 de setembro de 2010. 16 FRATINI-SERAFIDE, Roberto. Dramaturgie de l’attente. Résonances – du regard à l’oeuvre: autour de la réception en danse, comunicação apresentada durante

a jornada de estudos Biennale de la danse, sob a direção de Irène Filiberti

e Claudia Palazzolo, organizada pela Université Lumière – Lyon 2, 2 de outubro de 2010.

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Primeiramente, uma importante distinção terminológica: Dramaturgia pode ser definida como o conjunto de técnicas/teorias que governam a composição de um texto teatral. Texto teatral não mais quer indicar o texto dramático, literário, mas o texto do espetáculo, o texto da performance. Este é concebido como uma complexa rede de diferentes tipos de signos, meios expressivos ou ações, o que remonta à etimologia da palavra “texto” que implica a ideia de textura, de algo tecido. Dramaturgia pode agora ser definida como: técnicas/teorias que governam a composição da performance-como-texto; é o conjunto de técnicas/teorias que governam a composição de signos/meios expressivos/ ações que são tecidas para criar a textura da performance, o texto da performance. trecho de:

Marco De Marinis Dramaturgy of the spectator

D r a m ato lo g i a s da d a n ça –––––– Sa n d r a Meyer

CALDAS , Pa u lo ; GADELHA, E r n e st o . Danç a e d ramaturgi a[s]. S ã o Pa u l o : n ex u s, 20 1 6.

[The Drama Review: TDR, v. 31, n. 2, 1987, p. 100.]

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Doutora em Artes, Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Professora titular de Dança e Técnicas Corporais do Curso de Licenciatura em Teatro e do Programa de Pós-Graduação em Teatro – Mestrado e Doutorado – do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). –

ocorrências da dramaturgia do corpo qe dança no brasil

d r a m atO LO g i a S d a d a n ça –––––– sAndrA Meyer

 

 

Há dez anos escrevi o texto “Elementos para a composição de uma dramaturgia do corpo e da dança” para o livro Tubo de ensaio — experiências em dança e arte contemporânea (2006), ocasião em que abordei questões referentes à dimensão cinética e ao sentido na dança. Vivíamos um momento em que a dramaturgia ganhava fôlego na produção acadêmica e poética no Brasil, e a dança apresentava-se como um campo propício ao alargamento deste conceito. A ideia era a de que o corpo não operaria apenas no campo representacional, mas seria percebido e vivido pelo artista e pelo espectador numa dimensão complexa, envolvendo uma perspectiva cinética (não mimética) construída num estado de encontros, num desenho de forças dos corpos em ação (meyer, 2006). Até então restrito às regras de composição do texto escrito no teatro1 , o conceito de dramaturgia na segunda metade do século xx se entendeu à cena para finalmente se entranhar no corpo do ator e do bailarino. 1 De acordo com Patrice Pavis (1999), a dramaturgia clássica busca os elementos

constitutivos da construção dramática de qualquer texto clássico: exposição, nó, conflito, conclusão, epílogo etc. Examina exclusivamente o trabalho do

autor e a estrutura narrativa, sem ater-se à realização cênica. No seu sentido mais recente, a dramaturgia tende a englobar texto e realização cênica, constituindo escolhas estéticas e ideológicas.

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O lugar de emergência de sentido migrava do texto ao corpo, e a dança reivindicava suas especificidades. As palavras de Rosa Hercoles (2010, p. 199) enfatizam este aspecto:

reformulando-se criticamente, a infiltração do termo dramaturgia no campo da dança permitiu a reincidência de problemas originários do campo do teatro, ou seja, o gênero drama e o ato de compor peças. A artista mineira Adriana Banana (2010, p. 176) elabora uma pergunta “que não quer calar”, ao discutir processos de semiose na dança:

Em primeira instância, dramaturgia será entendida como composição de ações. Considerando-se que o ambiente onde estas ações se configuram é o da dança, torna-se imperativo o reconhecimento dos distintos modos como as instruções que constituem o movimento são, singularmente, implementadas por cada corpo. Assim sendo, a denominação dramaturgia da dança torna-se imprecisa, necessitando ser substituída por dramaturgia do corpo que dança.

Charlotte Dubay e Benoit Vreux (1997, p. 53) sintetizam a abordagem corporificada que orientou parte da produção em dança da primeira década dos anos 2000: “Em dança, a dramaturgia se centra no corpo, que ela designou como sendo o principal lugar de emergência do sentido”. Paulo Paixão (2010, p. 206) destacaria igualmente o papel do corpo numa dramaturgia de dança, com destaque para a produção brasileira: “[…] o material humano seria decididamente o mais importante, considerado como fundamento da criação; o corpo, com sua lógica própria seria o que forneceria sentido para a construção dramatúrgica”. O termo dramaturgia passa a ocupar o lugar até então central da coreografia e da composição, tão caras historicamente à dança, por conta da expansão de perspectivas de criação e fruição e, consequentemente, de outros entendimentos acerca do corpo, da coreografia e do papel do coreógrafo, com ênfase em processos e modos colaborativos. Vale lembrar que coreografia deriva de dois termos gregos: choreia, que sintetiza o movimento e a vocalidade presentes no coro grego, e grafia, ato da escrita, ou seja, trata-se primeiramente de uma escrita do movimento da dança no papel, portanto textual, para posteriormente constituir-se propriamente como a arte do corpo inscrito no espaço/tempo cênico no século xx (foster, 2011, p.16). Ainda que a dramaturgia teatral tenha se expandido no século xx do texto para o espaço/tempo cênico, – 224

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[…] por que pegar emprestado um termo consolidado pela tradição teatral, dramaturgia-dramaturgo, quando o próprio coreógrafo em dança já exerceria um papel de mediador da configuração organizativa neste processo de produção de significações, ou seja, de semiose, na dança?

 

 

O dispositivo coreografia parecia não dar conta sozinho da dança como campo expandido no início do novo milênio. Ao problematizar a função do coreógrafo, a historiadora francesa Laurence Louppe (1938–2012), em sua obra seminal A poética da dança contemporânea, publicada em 1997 na França, ao citar Nathalie Schulmann a propósito da poética de Josef Nadj, salienta que o trabalho do coreógrafo seria o de “[…] propiciar encontros ou situações de grupo entre pessoas que trabalham a sua gestualidade de modos diferentes” (2012, p. 224). Ao complementar o seu argumento acerca da composição coreográfica, Louppe introduz timidamente o termo dramaturgia, justificando-o na medida em que envolve uma encenação, sem retomá-lo nos demais capítulos de seu livro. Trata-se do que alguns coreógrafos actuais preferem designar por ‘dramaturgia’, que implica a distribuição de estados de linhas de força ou de tensão a partir de dados corporais homogêneos e heterogêneos, reconhecidos ou não como tal, mas ‘dados’, não retrabalhados com vista a uma globalidade orgânica (2012, p. 224).

A proposta da revista belga Nouvelles de Danse no referenciado número temático Dossier Danse et Dramaturgie (Dossiê Dança e Dramaturgia), publicado também em 1997 e totalmente dedicado à dramaturgia, instaurava de vez e de forma contundente modos de pensar a provisoriedade e a processualidade da dramaturgia na dança, com significativa repercussão nas produções artística e aca– 225

dêmica no Brasil. Uma das autoras, Marianne Van Kerkhoven, veio a nomear de “nova dramaturgia” aquela em que o sentido, as intenções, as formas da peça surgem durante o processo de trabalho (profeta, 2015, p. 92). De muitos modos, várias publicações na virada do milênio evidenciam o papel da dramaturgia do corpo, do movimento e da dança, bem como do dramaturgista2 , tais como em Hercoles (2006), Meyer (2006), Greiner (2007), Soter (2010), Velloso (2010), Paixão (2011) e Mundin (2014), enfatizado aqui o contexto brasileiro. No país, artistas da dança, abriam perspectivas de uma corporeidade própria, pelo desvio do passo coreográfico previamente instituído por técnicas de dança codificadas e seus repertórios consolidados, com proposições formativas/poéticas que levassem em conta as singularidades que cada corpo possui para entender e ativar dança. Por outro lado, processos criativos colaborativos e interdisciplinares exigiam, em sua complexidade, a cooperação entre coreógrafos, dramaturgistas e bailarinos, vide a parceria entre a Cia Lia Rodrigues e Silvia Soter (rj)3 e a colaboração entre a solista Vera Sala e Rosa Hercoles (SP). Outras atribuições surgem na busca por um viés colaborativo, algumas no limiar de processos acadêmicos, tais como a orientação de projeto de pesquisa realizada por Fabiana Dultra no Grupo Cena 11 Cia de Dança (sc)4 e a colaboração teórica do filósofo Charles Feitosa na interlocução com a poética de Micheline Torres (rj).5 O dramaturgista como interlocutor ganha espaço, expondo a problemática de sua atuação como “olho externo” a salvaguardar processos de criação e seus desdobramentos de sentido, como se ele 2 Uma das atividades do dramaturgista seria a de participar de processos de

criação junto ao diretor/coreógrafo, de provocar reflexões e questionamen-

tos. 3 Vide o artigo “Um pé dentro e um pé fora: passos de uma dramaturg”, de

Silvia Soter (2010). 4 No Projeto SKR – Procedimento 1 (2002). 5 Na obra Eu prometo, Isto é político (2010).

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pudesse antecipar ou direcionar a percepção do espectador. O perigo é o dramaturgo incorrer numa postura demasiado intervencionista, baseada num modo de relação de poder que Adrian Heathfield (2010, p. 98), citando André Lepecki e Myriam Van Imschoot, nomeia como escópica. Para Adrian Heathfield (2010), a dramaturgia não pertence somente ao dramaturgo ou dramaturgista. No texto Una dramaturgia sin dramaturgo, o autor problematiza o papel do dramaturgista, inserindo-o num de jogo de relações complexas para encarar a alteridade e estar à altura dos acontecimentos, sugerindo que cada ensaio é um evento singular. Nas práticas que o autor analisa, não haveria a figura de alguém operando por trás dos trabalhos, o que o aproximaria de papéis como o do diretor ou do coreógrafo, contudo, cada uma das produções citadas6 manifesta-se esteticamente em acontecimentos dramatúrgicos percebidos e problematizados por todos os envolvidos no processo, e que se convertem em “[…] um movimento de relações através de uma constelação de perguntas, enfoques e respostas à questão que nos ocupa” (heathfield, 2010, p. 103). E os espectadores estariam fora e dentro, como cocriadores dos trabalhos e, portanto, seriam parte dos acontecimentos, e não simplesmente receptores dos sentidos. Para Heathfield (2010), o papel de um dramaturgo (o que entendemos como dramaturgista) não seria o de ajudar a dar sentido, seja para o artista ou para o espectador; se acercaria mais de um analista ou parteiro, pois não há possessão sobre as ideias, somente a atenção, o cuidado e a responsabilidade em relação às forças imanentes de cada proposição poética. Atentos ao assunto, alguns eventos de dança no Brasil nos anos 2000 incorporaram discussões em torno da dramaturgia e do dramaturgista, culminando em propostas diferenciadas, tais como as pioneiras duas edições do Encontro das Novas Dramaturgias do Corpo, realizadas em Curitiba (pr) em 2001 e 2003, respectivamente, idealizadas por Christine Greiner e organi-

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6 And on the thousandth night, por Forced Entertainment, e Improvisación, de Boris Charmatz.

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zadas por Marila Velloso; e Tecido Afetivo — Por uma dramaturgia do encontro, proposta por Andréa Bardawil e realizada em 2010 em Flecheiras (ce).7 Por meio de um viés colaborativo, Tecido Afetivo promoveu o encontro de artistas e pesquisadores interessados em pensar e mapear questões relativas à dramaturgia na produção em dança, configurando-se como um marco conceitual no que se refere a modos de organização de eventos e de abordagens voltadas à dramaturgia na cena contemporânea. O subtítulo do evento evidencia a ideia de que o encontro propicia a emergência de uma dramaturgia, ou que a dramaturgia ocorre em relação.8 De agora em diante, a ideia de dramaturgia como relação acompanhará este ensaio.

(des)dramaturgizar o corpo Feito este breve relato sobre ocorrências da dramaturgia do corpo e da dança no contexto artístico e acadêmico no Brasil, gostaria de apostar, neste ensaio, em um outro referencial, que aponta para o que escapa ao desejo do artista e do dramaturgista de “construir” sentido e de “fazer” dramaturgia no corpo, ao que excede do corpo do artista e suas qualidades investigativas como o principal lugar de emergência do sentido. Desviar o olhar de eixos recorrentes quando pensamos na noção de dramaturgia na dança: o dramaturgista, o sentido, o corpo, o movimento. A ideia não é dizer que o corpo não interessa mais como questão na dramaturgia, fato já incorporado, mas estender os processos de subjetivação que o atravessam, que dele escapam, que o constrangem, que passam ao lado ou ao largo dele, que o tornam invisível, que lhe dão visibilidade, e não somente o que dele (o corpo) emana como proposição investigativa através do movimento e da busca pelo sentido.

7 Encontro presencial realizado de 7 a 12 de junho de 2010, na Praia de

Flecheiras, Trairi, Ceará. 8 Para mais informações, consultar o documentário e catálogo Tecido Afetivo,

 

 

Em um artigo sobre dramaturgia, Marilla Veloso (2010) chama atenção para a necessidade de o artista ampliar sua capacidade perceptiva para o que acontece em seu ambiente ou contexto, citando Lynda Gaudreau. Para a coreógrafa canadense, o artista seria alguém com a atribuição de desenvolver uma percepção de mundo, contudo não restrita à produção em dança, aos modelos e a questões desta enquanto linguagem (do corpo, do movimento, do sentido), a fim de perceber os sensos comuns que vigoram no entorno relacional do artista. Proponho que nos reportemos ao que insurge como potência e urgência na relação entre os partícipes de uma dada situação performativa envolvendo artistas e públicos, para repensar o que se apresenta dramaturgicamente, uma vez que Van Kerkhoven (1997) nos alerta que a dramaturgia se enuncia, mesmo que não nos ocupemos dela diretamente ou não a nomeemos como tal. Arriscaria especular sobre o esvaziamento do imperativo do sentido do/no corpo para o que emerge entre corpos. Como a dramaturgia da dança poderia proteger-se de si mesma? Ainda que ao longo da história do teatro o termo dramaturgia e seu radical drama tenha se constituído como um gênero literário/teatral, o conceito remete, em sua etimologia, a uma dimensão acional (drama = em ação, do original grego spãua). Como repensar uma dramaturgia que não esteja demasiadamente centrada no corpo do artista e emanada de sentidos? Tentei esboçar algo já no ensaio “Tessituras em ação. 7 breves notas sobre dramaturgia: tecer tramas sem dramas ou dramas sem tramas” (meyer, 2010), durante o encontro Tecido Afetivo aqui citado. Ao ler “Derivas de um plano de composição em dança: o todo é menor do que as partes” (2016), um texto/experimento dramatúrgico de Thereza Rocha, encontro o movimento que há pouco esbocei, ou seja, o de buscar um bom argumento para ainda falar em dramaturgia, no exercício hercúleo de extrair do drama a parte teatral textual e narrativa, restando somente as ações. Desta forma, se nos atermos ao aspecto acional

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por uma dramaturgia do encontro (2010).

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(meyer, 2006, 2010; rocha, 2016), como e quando ações poderiam ser agenciadoras de relações? Se pensarmos a dramaturgia como algo processual (kerkkoven, 1997), que se dá concretamente na experiência, pela intensidade dos encontros, pelos afetos entre os partícipes, evocaria aqui os bons encontros, no sentido espinosista, que aumentam a potência da arte em propiciar modos de existir e (re)existir. Trago a ideia de encontro como uma ferida que se abre, pensamento articulado por Fernanda Eugênio e João Fiadeiro (2012): “Uma ferida que, de uma maneira tão delicada quanto brutal, alarga o possível e o pensável, sinalizando outros mundos e outros modos para se viver juntos, ao mesmo tempo que subtrai passado e futuro com a sua emergência disruptiva”.9

Dramaturgia como encontro. O encontro, quando percebido como oferta, aceite e retribuição, pode possibilitar a emergência de um “[…] meio, um ambiente mínimo cuja duração se irá, aos poucos, desenhando, marcando e inscrevendo como paisagem comum”. Como deixar acontecer relações dramatúrgicas ou dramaturgias em real ação — relação? Citando uma fala do filósofo Peter Pál Pelbart, na entrevista intitulada “Tudo é feito para conexão absoluta, a mais saturada possível”, diria assim para começar: “[…] se vive hoje uma espécie de saturação em todos os sentidos” (pelbart, 2016).10 O autor discorre sobre a mobilização a que somos submetidos todo o tempo – de imagens, palavras, sons, estímulos de toda ordem –, numa espécie de “[…] ‘turbocapitalismo’ que mobiliza o corpo, os sentidos, captura a atenção, preenche ao máximo os espaços mentais […] em seus ‘modos de controle, de plugagem, de monitoramento, de direcionamento” (idem). O mais difícil, para Pelbart, é viver uma experiência de permita uma desplugagem e desconexão 9 Excerto da conferência-performance Secalharidade, de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio, no Culturgest, em junho 2012, relacionado ao projeto AND_LAb,

por eles articulado. 10 Entrevista à revista Continente, sem referência de paginação.

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do que aí está a nos afetar: “Hoje, tudo é feito para conexão absoluta, a mais saturada possível” (idem). Pergunto: como a arte pode (des)operar este processo de aceleramento? Que sentido teria ainda em operarmos sob a instância do sentido em dança, diante de tamanha saturação? Talvez um sentido como direção, que não faça Sentido com “S”, mas um sentido menor, minoritário, com “s” minúsculo, como comenta Thereza Rocha (2016, p. 219), que seja “[…] da ordem da potência, do paradoxo, da abertura para séries possíveis, produzidas pela emergência da diferença — uma espécie de empuxo do devir”, sempre disponível a outras composições. Em seu ensaio Le processus dramaturgique (O processo dramatúrgico)11 , Kerkhoven nos alerta sobre certas especificidades relacionadas aos sentidos (e significados), que na dança estão sob suspensão e suspeita: “[…] a dança não é o meio mais adequado para se contar estórias” (1997, p. 3), posto que o modelo narrativo do drama, nos moldes aristotélicos de começo, meio e fim, não encontra aderência pacífica na dança. E isto o compositor de danças Jean-Georges Noverre (1727–1810) perece ter percebido. Ele, que bem recentemente passou a ser considerado por alguns pesquisadores como o primeiro dramaturgo da dança (teria de fato o sido?), posicionou-se contra as tratativas do drama aristotélico aplicadas à composição dos balés:

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[…] O balé é filho do poema e não pode de modo algum ser constrangido pelas regras estreitas do drama, por estes entraves que o engenho se impõe, que estreitam o espírito, comprimem a imaginação, destroem totalmente a composição do balé, privando-o da variedade que constitui seu encanto (noverre apud monteiro, 1998, p. 96–97).

É curioso constatar que, antes de Noverre, o padre jesuíta e compositor de danças Claude-François Ménestrier (1631–1705) sublinhara a superioridade mimética do gênero dança sobre as outras artes, mas por outras vias, mais precisamente pelas qualidades cinéticas do movimento, que seriam os intérpretes mais fiéis da natureza das coisas e das paixões. Para ele, a dança teria uma dupla ca11 N. do E.: Consultar tradução na página 179 do presente livro.

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pacidade de imitar as ações (mais visíveis) e as afecções (mais interiores) via movimento, questão que será retomada no final dos anos 1990 sob a perspectiva de uma dramaturgia do corpo.

(des)dramatizar para (des)mobilizar corpos De que corpos e de que danças falo ao (des)evocar o termo dramaturgia? Uma recente produção contemporânea de dança no Brasil endereça sua poética e estética de forma singular em uma proposição de encontros, recolocando questões outras ao problema da dramaturgia, outrora intensificada sobremaneira na presença do corpo e no movimento do intérprete. O que não implica, novamente destaco, em abandono de uma investigação da corporeidade. Trata-se de ativar o que não cabe no indivíduo – no corpo e na investigação do movimento dançado –, e que necessita reverberar no coletivo. Começaria por Finita (2013), o solo que a artista mineira Denise Stutz12 compôs depois da morte de sua mãe. Como descreve a artista, “[…] ali está tudo o que me foi deixando sem chão às vezes, e que também deixa sem chão as outras pessoas […] A minha história está no meu corpo, certas coisas ficaram como potência” (apud meyer, 2014). Contudo, o que no corpo é intensificado não está contido na artista, pois os modos como ela ativa presença e ausência (e não somente a sua e a de sua mãe, que ela evoca na obra, mas da própria dança em sua ontologia) permitem que a situação dramatúrgica seja elaborada com os espectadores. Denise desmobiliza a dança do corpo propriamente dito, recolocando-a no ambiente, e descaptura a atenção sobre si para o encontro com outro. O solo inicia com a pergunta: “Como é que eu posso me aproximar, como é que eu posso me relacionar?”, questão ética que redireciona os 12 Denise Stutz foi uma das fundadoras do Grupo Corpo. Fez parte da Lia

Rodrigues Cia de Danças como bailarina, professora e assistente de direção.

A partir de 2003, começou a desenvolver seu próprio trabalho solo, com destaque para: DeCor (2003), Finita (2013) e Entre Ver (2015).

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modos de estar junto, de acionar, de desdramatizar. No seu último trabalho, Entre ver (2015), ela praticamente não está em cena; o público a vê num segundo em que a luz acende, para depois desaparecer. O palco permanece desconcertantemente vazio na maior parte do tempo, espaço aberto a percepções dos presentes, estimuladas pelas falas em off da artista: “[…] porque não sei fazer para o público”.13 Se a noção de dramaturgia cabe aqui, ela não centraliza-se no corpo da artista; o sentido que possa vir a emergir acontece na relação com os seus interlocutores (e não para estes), num convite a suspender os regimes das corporeidades vigentes, considerando-se, ainda, que a ideia da dança como movimento dos corpos em cena tem sido colocada em questão na contemporaneidade. Trata-se de ativar outros dispositivos de interrupção, de suspensão, de desmobilização de modos já dados de captura do corpo, dos sentidos, da atenção. O performer e diretor Janez Jansa, na entrevista intitulada From Dramaturgy to Dramaturgical (2010)14 , chama atenção para os modos de composição da arte contemporânea, contrários à ideia de um fio condutor (aquele da dramaturgia dita clássica). A estrutura destas peças remonta a uma linha frequentemente interrompida: “Vemos que há buracos, que há pausas no meio, mas de alguma forma a estrutura ainda se mantém. A questão é: o que realmente sustenta esta estrutura?” (2010). Este é o primeiro ponto que o autor sugere para pensarmos em dramaturgia na performance contemporânea, na medida em que estes espaços vazios, ou elementos descontínuos na estrutura da performance, são locais de convite à percepção, à doação de sentido15 , à ferida aberta, ao encontro inesperado. Marcelo Evelin16 , a seu modo, também desmobi-

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13 idem.

14 Disponível em: . 15 A proposição deleuziana caberia aqui: “O sentido que é nunca princípio ou origem, ele é produzido. Ele não é algo a ser descoberto, restaurado ou

re-empregado, mas algo a produzir por novas maquinações” (DELEUZE, 2000,

p. 75). 16 Marcelo Evelin é coreógrafo, pesquisador e intérprete; vive e trabalha entre Amsterdam e Teresina. Em 1996, fundou sua empresa Evelin Demolition

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liza a dança esperada de cada corpo, colocando-o num movimento de alteridade radical. Remeto à Batucada (2014)17 , uma intervenção político-poética que mobiliza uma dança-multidão. A experiência proposta por Evelin não é a de um indivíduo e suas qualidades corporais como centro (ao menos um centro fixo). Não há um investimento de pesquisa de movimento verticalizada no corpo; importa mais o quanto um corpo pode mover a si e a outros corpos poética-ética-politicamente, visto que Batucada reúne cerca de 50 performers – profissionais e não profissionais – a partir de uma convocatória pública por onde é apresentada. Muitos são os corpos (e desconhecidos) a articular uma comunidade que não é soma de indivíduos; cada qual justapõe sua possível heterotopia para o exercício de olhar a diferença, mas que concomitantemente articulam um comum. Os instrumentos da batucada desta ensurdecedora minicomunidade (ou massa)18 são latas e panelas, numa festa-protesto (não há como ignorar a multidão que vem saindo às ruas desde junho de 2013). A multidão em Batucada (artistas e público) coengendra uma política coreográfica que descentraliza a esfera do sentido do corpo para o (des)encontro entre corpos. No final de Batucada, para sair do espaço, a multidão que presencia a performance tem que se misturar para encontrar as pequenas brechas entre os cerca de 50 corpos nus e exaustos deitados inertes ao chão. Para Evelin, o público faz parte desta massa. E o artista? Se pensarmos que “artista é público”, no sentido atribuído por Vitor Cesar (2009), podemos nos aproximar de uma formulação crítica que envolve não somente a Arte Pública realizada em espaços públicos da vida cotidiana, mas Inc. em Amsterdam. Em 2006, fundou o Núcleo do Dirceu, um coletivo de

artistas e plataforma para pesquisa e desenvolvimento das artes cênicas

contemporâneas, que coordenou até 2013, em Teresina, Piauí. 17 Projeto contemplado com o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2013, Batucada foi concebido para o Kunsten Festivaldes Arts, realizado em Bruxelas

os meios de interação com as pessoas. Cesar analisa as relações entre arte e aspectos públicos na obra de Joseph Kosut19 , cujo argumento opera “[…] no compartilhar a responsabilidade de ativação do trabalho com o espectador […] e abre diferentes caminhos que possibilitam a criação de um público e de uma esfera pública de discussão”. Esta ativação pode se dar dentro ou fora do espaço expositivo (ou espetacular, no caso das artes do corpo), “[…] o que importa é o modo de relação que a proposta artística estabelece com os espectadores”, o que Joseph Kosuth chama de “trabalhar diretamente com o mundo” na produção de sentido de um trabalho (apud cesar, 2009, p. 88, grifo nosso).

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acionar intensivamente um mundo

 

 

Volto aqui a reacionar a coreografia em um modo relacional, deixando a ver as transformações do conceito em direção a aspectos processuais comumente destacados na dramaturgia da dança. Na obra Always more than one: individuation’s dance, Erin Manning afirma que coreografar é um verbo, “[…] uma atividade de organizar relações entre corpos” (2013, p. 76). Coreografia é vista não como um princípio de organização de corpos pré-constituídos, ou uma prática realizada por um indivíduo para outro, mas uma ecologia emergente nas relações dos seres vivos entre si e com o ambiente. Aproximando-se da filosofia de Gilbert Simondon, a autora descreve o corpo como um processo de individuação que experimenta sua defasagem coletivamente. Coreografia seria um evento que se conecta com o “[…] meio relacional que excede o ser humano ou em que o ser humano é mais ecologia do que indivíduo” (manning, 2013, p. 76). A dança que acontece no corpo não é só do corpo. Nem o corpo nem a dança acontecem num a priori, e sim como relação no mundo. Como aponta Francisco Gaspar Neto

(Bélgica), onde aconteceu sua estreia internacional em maio de 2014.

18 No projeto anterior, De repente fica tudo preto de gente, Marcelo Evelin parte da ideia de massa, por meio da leitura de Massa e poder (1995), de Elias Canetti, no sentido de problematizar o viver junto.

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19 O artista visual americano Joseph Kosuth é considerado um dos principais artistas no desenvolvimento da arte conceitual.

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(2016, p. 103), citando Simondon, o conhecimento não é nem a priori nem a posteriori, mas a praesenti; […] a relação entre o sujeito e o objeto não se estabelece a partir de formas preexistentes no pensamento e coisas no mundo; ambos se criam ao mesmo tempo, na relação, e não como substâncias que se põem a relacionar posteriormente. Deste modo, não entramos em relação, mas existimos em relação, a relação é o meio através do qual começamos a existir e permanecemos na existência.

Manning pensa a coreografia e o problema da ação como um desdobrar-se em relação com o meio: “A coreografia torna-se um campo de expressão para o movimento quando o corpo torna-se um participante intensivo com o meio ambiente ao invés de simplesmente o instigador da ação”20 (2013, p. 101, tradução nossa). Apesar dos diferentes dispositivos e discursos operantes na história da dança, a coreografia e a dramaturgia na produção contemporânea aqui problematizada opera por uma ética do encontro entre artistas e seus públicos, em relações que oportunizam modos menos normativos de perceber/agir no mundo. A dramaturgia só existe em relação e emerge nas tensões do encontro entre as tantas coisas que a constitui na duração da experiência. Ainda que a cerquemos de todo modo querendo “produzir” sentido, a dramaturgia como relação não preexiste ao ato de conhecimento, no sentido que as informações já estariam dadas e disponíveis no mundo anterior ao encontro entre sujeitos e mundo, conformando o que Virgínia Kastrup (2014) descreve como uma política cognitiva realista. Uma dramaturgia do encontro se aproxima de outra política cognitiva, a que propõe que o conhecimento se dá em relação; o mundo e o agente de conhecimento produzem-se mutuamente, propiciando a invenção concomitante do sujeito e do mundo. Considerando ainda que, na prática artística, não exis20 Choreography becomes a field for movement expression when the body becomes

 

 

tem leis fixas que podem ser totalmente definidas com antecedência, pois toda produção faz seu próprio método de trabalho, como pontua Marianne Van Kerkhoven (1994). A política cognitiva definida por Kastrup (2014, p. 33) refere-se a um tipo de atitude ou de relação encarnada que se estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo. A dramaturgia entendida como política cognitiva pode propiciar um exercício ético para não se perder de vista a vida que emerge na composição de uma poética em dança. Uma dramaturgia implicada com o que emana e imana nas relações. O sentido deixa de ser fixado demasiado a priori para fluir no âmbito performativo, envolvendo numa mesma aventura dramatológica múltiplos interlocutores. Os “corpos que dançam” estariam implicados, então, para provocar uma experiência, e não para manipular seus sentidos, propiciando uma situação dramatúrgica que não se contenha apenas pelo corpo em movimento, mas pelas relações que o corpo pode mover. E não há prescrição prévia.

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DRA MATO LOGIAS DA DANÇA –––––– S A NDR A M EYER

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• ménestrier, Claude-François. Des ballets anciens et modernes selon les régles du théâtre. Reimpressão da edição de 1682. Genebra: Minkoff Reprint, 1972. • meyer, Sandra. Elementos para a composição de uma dramaturgia do corpo e da dança. In: meyer, Sandra; torres, Vera; xavier, Jussara (Orgs.). Tubo de ensaio. Experiências em dança e arte contemporânea. Florianópolis: Edição dos autores, 2006. • ______. Tessituras em ação. 7 breves notas sobre dramaturgia: tecer tramas sem dramas ou dramas sem tramas. In: bardawil, Andréa (Org.). Tecido afetivo: por uma dramaturgia do encontro. Fortaleza: Cia. da Arte Andanças, 2010. p. 35–37. • ______. Bio Grafia = Tensão entre corpo e escrita. InterArtive. n. 64, junho de 2014. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016.

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• mundim, Ana Carolina da Rocha. Dramaturgia, corpo e processos de formação em dança na contemporaneidade. Revista Dança. Salvador, v. 3, n. 1, p. 49–60, jan./jul, 2014. Disponível em: