Volúpia do desastre - Notas soltas para Cioran

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Ricardo Gil Soeiro

VOLÚPIA DO DESASTRE Notas soltas para Cioran

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Albrecht Dürer, Die vier apokalyptischen Reiter (1498) 2

Siglas utilizadas As obras de Cioran são indicadas no texto pelas seguintes siglas:

BD – Breviário de Decomposição C – Cahiers 1957-1972 CA – Confissões e Anátemas E – Entretiens HU – História e Utopia IN – Do inconveniente de ter nascido O – Oeuvres SA – Silogismos da Amargura TE – A Tentação de Existir As referências destas obras são fornecidas na bibliografia no fim do volume.

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Volúpia do desastre * Só nos resta escrever; escrevamos, pois.

* Como compulsar uma escrita em ruínas, uma obra que nunca terá propriamente começado? Uma tal escrita do desastre expressa a ruptura com o astro (dis-astrum): ter nascido sob má estrela significa acolher o infortúnio, ser um exilado das estrelas. No sibilino livro de Blanchot, L´écriture du désastre, lemos que “le désastre signifie être séparé de l’étoile” (1980: 9). Como acolher a expatriação do absoluto e a despertença ontológica? Como pensar o fundo sem fundo do nosso pensamento? É dessa errância que se faz a estranha fala de Cioran (1911-1995): vertigens e delírios, impasses e impotências, a paixão pelos abismos e outros desastres.

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* Estimar o desamparo essencial...do qual jamais se sairá incólume: “Tranquilidade extraordinária quando pensamos que, sendo homens, nascemos sob uma estrela má, e que tudo o que fizemos ou faremos será acarinhado pelo infortúnio” (IN: 129).

* Não se trata de ler uma obra, mas de sucumbir à sua vertigem, sofrer abruptamente um efeito de contágio. Amar a dilaceração que emerge das páginas soltas de um magistral derrotista, sentindo como sua uma ferida incurável que se recusa a cicatrizar. O rancor de um solitário, militante do Vago, fundamentalista do Talvez; simplesmente uma alma partidária do desastre. * Porque toda a análise implica um esquartejamento, leiamos com, leiamos amorosamente: “Não há nada mais abominável do que o crítico e, por maioria de razão, o filósofo que existe em todos nós: se eu fosse poeta, reagiria como Dylan Thomas, que, quando comentavam os poemas dele na sua presença, se deixava cair por terra e se entregava a contorsões” (IN: 69). Amar o texto, em vez devassá-lo como um cadáver por autopsiar. * 5

Crítica literária? Haverá decerto maneiras mais subtis de torturar um autor.

* As únicas obras que valem a pena ser escritas são aquelas que se revogam a si próprias.

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Como responder ao repto deste apátrida do sentido,1 à tempestade das suas palavras? Porquê fazer proliferar a metástase do comentário? Não seria preferível deixar a obra intacta, à mercê do seu silêncio imperiosamente loquaz?

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Será lícito urdir uma contra-palavra perante a singularidade irredutível de uma obra? Como moldar uma réplica fiel à invocação do texto? Porquê porfiar pleonasticamente numa soberania que se basta a si mesma? Se não é possível esgotar o dom infinito da obra, qual o propósito da glosa, seja ela dócil ou disruptiva? Ler, em clave blanchotiana, seria, muito Um escritor extraterritorial para utilizar a caracterização celebrizada por Steiner. Cf. G. Steiner (2014), Extraterritorial: em torno da Literatura e da Revolução da Linguagem, Lisboa, Relógio D’Água. 1

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simplesmente, dar assentimento, formular a aquiescência crítica perante o inacabamento do texto, perante o seu excesso de sentido, uma incandescência que acende o enigma e o limiar das vozes. O acto de leitura constituir-seia, em suma, como a tarefa humilde de ousar responder ao apelo inquieto das palavras, idioma onde inscrever o nosso espanto.

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Arruinando o princípio tutelar da obra, Cioran aspira apenas a um rumor, à latência estilhaçada do impossível – a palavra prometida à dissipação.

* Em Confissões e Anátemas, Cioran denunciará o lado caricato dos possessivos: “Os meus livros, a minha obra... O aspecto grotesco de todos estes possessivos. Tudo se perverteu no dia em que a literatura deixou de ser anónima. A decadência remonta ao primeiro autor” (CA: 53). Numa das entrevistas expressa a sua renúncia à obra, que vê como sintoma da tentação metafísica: “Je ne suis rien de plus qu’un Privat Denker – un penseur privé –, j’essaie de parler de ce que j’ai vécu, de mes expériences personnelles, et j’ai renoncé à faire oeuvre. Pourquoi une oeuvre? Pourquoi la métaphysique? Carnap à dit une chose profonde: «Les métaphysiciens sont des musiciens sans don musical” (E: 103). À hagiografia da obra contrapõe Cioran o désoeuvrement do neutro, um 7

movimento perpétuo de deslocação de forças e intensidades, a ruína do edifício.

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A filosofia é a obliteração do pensamento vivo. Pensar é o ponto sem retorno de uma lucidez implacável. * Porque o saber triunfante lhe causa repulsa, a escrita fragmentária é a forma que melhor serve a sua paixão pela incompletude. Idólatra da sabedoria da brecha e da fissura, o fragmento parece salvaguardar o fogo oculto das suas visões vertiginosas: “As obras morrem, os fragmentos não tendo vivido, também não podem morrer” (IN: 150).2 Os aforismos, em particular, constituem um meio privilegiado para multiplicar os ângulos de visão sobre as coisas, pontos irradiantes de uma infinitude inviolada. Subtis, lapidares, irónicos – assim são estas deambulações vorazes, assim são estas considerações intempestivas que se plasmam num palco polifónico, em que o texto rodopia e essa volúpia irreprimível deixa entrever um pensamento da intermitência. * Numa das entrevistas, Cioran esclarece: “Une pensée fragmentaire reflète tous les aspects de votre expérience; une pensée systématique n’en reflète qu’un seul aspect, l’aspect contrôlé, et par là même, appauvri. En Nietzsche, en Dostoïevski, s’expriment tous les types d’humanité possibles, toutes les expériences. Dans le système est toujours la voix du chef: c’est pour cela que tout système est totalitaire, alors que la pensée fragmentaire demeure libre” (E: 23). 2

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A fantasmagoria pungente do absurdo impõe-se-nos de uma forma concreta. Basta recordar a visão de uma sepultura e de um cemitério ou o odor de um cadáver.

* A humilhação que o tempo nos inflinge é a forma mais alta de tormento metafísico que nos coube experimentar. * Malogro – o que de mais íntimo albergamos. * Viver é encetar uma intrépida expedição pelo Nada. * Filósofo? Jamais. Quando muito, um poeta das lágrimas e dos suspiros, acalentando a glória nula do desespero. Um rapsodo de cumes e abismos.

* Um pensamento sem consolação só pode ser um pensamento verdadeiro. 9

* Quando tudo se esgota e nem o tédio chega para nos entreter, é então que urge meditar, sem concessões, sobre o incondicional. Para além de um pensamento calculativo que decreta a cobiça e o domínio pela técnica, insinua-se um pensamento meditativo que nada tem para oferecer; indagação que é puro espanto em delírio declinado: “meditar significa despertar o sentido para o inútil” (Heidegger, 1999: 9).

* Todos nós somos cúmplices das palavras, réus da pestilência do Verbo. Escravos do logos e do sentido, somos obrigados a pensar pela palavra. Mesmo os nossos sonhos estão cativos do dizer. No capítulo “Atrofia do verbo”, incluído em Silogismos da Amargura, assistimos a uma crítica mordaz à loquacidade da nossa espécie gárrula. A arte literária, em particular, padece desse palavroso mal: “Prolixa por essência, a literatura vive da pletora dos vocábulos, do cancro da palavra” (SA: 17). * A única questionação radical que realmente conta é aquela que aplicamos a nós mesmos: “Apenas cultivam o aforismo aqueles que conheceram o medo no meio das palavras, esse medo de se desmoronarem com todas as palavras” (SA: 9). 10

* Uma ideia, um desígnio, um conceito que, após um exame profundo e intransigente, se torna obsoleto ou vulgar, ridiculariza-nos a nós próprios. Assim se explica o estilo belicoso e intransigente de Cioran: “Só os espíritos superficiais abordam uma ideia delicadamente” (SA: 8). * Como encarar o lirismo ácido de Cioran? O acento misantrópico, a ferocidade do seu estilo espasmódico, a generosidade do seu fel (que o irmana a Nietzsche, Proust, Baudelaire e Rimbaud), decorrem de uma exigência ética provinda de um desnudamento absoluto que não ameniza, antes afronta e fustiga sem contemplações. * A meditação anti-filosófica de Cioran consiste num exercício de des-mascaramento e não propriamente de destruição absoluta. Trata-se de subtrair a impostura em que se alicerçam as nossas convicções, as crenças em que repousa o nosso pensamento. É um cessar do fingimento, um retirar de máscaras. “Entricheiramo-nos por detrás do nosso rosto” (SA: 42), ao passo que o louco deixa cair a máscara, exibindo com garbo os seus enigmas, porque “máscara é tudo o que não seja a morte” (TE: 159).

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* O falso pensamento é aquele que se deixa coroar por um conjunto de axiomas triunfantes. Pensar verdadeiramente é outra coisa: é hybris, é exibir um rosto partido sucumbindo à desmesura. É ser confissão e lamento. Filosofar é tão-só aprisionar o conhecimento; pensar é despertar o tumulto, incitar à fuga do assombro. * A escrita é um exercício puramente individual e clínico: “As «fontes» de um escritor são as suas vergonhas; aquele que as não descobre em si, ou que se lhes furta, está votado ao plágio ou à crítica” (SA: 11). Perfilha-se uma escrita do corpo, em que se atesta o laço vital entre pensar e viver: “Com Baudelaire, a fisiologia entrou na poesia; com Nietzsche, na filosofia. Graças a eles, as perturbações dos órgãos foram elevadas ao canto e ao conceito” (SA: 12). Cioran representa o pensador que encarna a própria filosofia, edificando uma obra anti-sistemática em que não há preceitos, nem doutrinas, antes Leitmotive obsessivos, cogitações que brotam do coração de um labirinto. O legado cioraniano é um inferno gentil, meditação que sonda um abismo incompulsável. * Em Do Sentimento Trágico da Vida, Unamuno discorre sobre o homem de carne e osso por oposição ao homem que 12

unicamente pensa com o cérebro: “O nosso homem é o homem de carne e osso; sou eu; és tu, leitor; e aquele outro de mais além, somos todos nós os que pisamos a terra” (Unamuno, 2007: 11), o sujeito que pensa “com todo o corpo e toda a alma, com o sangue, com o tutano dos ossos, com o coração, com os pulmões, com o ventre, com a vida. E as pessoas que só pensam com o cérebro tornam-se definidores, fazem-se profissionais do pensamento” (2007: 20). É em senda similar que Cioran rejeitará a reflexão abstracta e exangue de vida, contrapondo-lhe uma poética vivencial, ecoando o célebre aforismo do Zaratustra nietzschiano: “Escreve com o sangue e verás que o sangue é o espírito” (Nietzsche, 1998: 45). * O texto genuíno, isto é, o texto que produz uma verdade que lhe é absolutamente necessária, a sê-lo, só poderá ser a expressão de uma indignação orgânica e visceral: “Gosto do pensamento que conserva um sabor de sangue e de carne, e à abstracção vazia prefiro muito mais uma reflexão que proceda de um arrebatamento sensual ou de um desmoronamento nervoso” (O: 32). * As páginas cioranianas vibram com uma trepidação orgânica.3 Cativo dos seus humores e profundamente antiparmenídico, o autor limita-se a corporizar uma fisiologia do Trata-se de uma visão somatopsíquica, para utilizar a terminologia de Vartic (2009), que advoga a influência do corpo sobre a mente. 3

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existir, partilhando uma meditação inquieta sobre os seus caprichos. * Para Cioran não há mistério: reconhecê-lo seria forjar ilusoriamente uma semântica filosófica das profundezas que urge combater. * Pergunta calamitosa, tendo em vista a apologia da virtualidade: “Se for verdade que através da morte voltamos a ser o que éramos antes de nascermos, não teria sido melhor ficarmo-nos pela pura possibilidade e não nos afastarmos dela? Para quê esse desvio, quando poderíamos ter permanecido para sempre numa plenitude irrealizada?” (IN: 131). Corolário fatal: é um desperdício de tempo nascer e viver, quando tudo desemboca na perenidade do vazio. Remate final: a sensatez da apologia da não-existência, a elegância do nada por oposição à rudeza do ser, o facto de estarmos condenados a existir. * Meditar sobre a morte é poder desfrutar dela convenientemente. É poder viver da forma mais livre possível, antes que ela chegue, quando ela já não terá qualquer utilidade. * 14

Preciosa lição das trevas: “Não há nada a exaltar, nada a condenar, nada a acusar, mas há muitas coisas risíveis; tudo é risível quando se pensa na morte” (Bernhard, 1993: 41). * Acolher o pluriperspectivismo equivale a experimentar um descentramento identitário que recusa o monologismo e que forja uma palavra plural capaz de albergar uma vibrátil acumulação de vozes: “Um mínimo de sabedoria obrigarnos-ia a defender simultaneamente todas as teses, num ecletismo do sorriso e da destruição” (SA: 13). * Aceitar unicamente as conclusões de um pensamento que resulte das verdades sujas da nossa inquietude. Que nos faça engolir uma escuridão em chamas, o lado nocturno do desejo. Tudo o resto é exegese, estéril exercício de fantasmas barafustando no escuro. * Embora um renegado da humanidade, a fatalidade do pessimista é que até o pessimista se vê “obrigado a inventar todos os dias novas razões para existir: é uma vítima do «sentido» da vida” (SA: 13).4 J. F. Dienstag opera, de um modo persuasivo, uma reabilitação do pessimismo filosófico, dedicando um estimulante capítulo à obra de Cioran. Cf. Joshua Foa Dienstag (2009), “«Consciousness Is a Disease»: Existential Pessimism in Camus, Unamuno, and Cioran”, in: Pessimism: Philosophy, Ethic, Spirit, Princeton, Princeton University Press, pp. 118158. 4

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* Goethe representa o artista completo, avesso ao inacabamento. Não admira que suscite o desprezo de Cioran: “O seu destino luminoso desencoraja-nos” (SA: 14). A sua predilecção vai para a taras, as obsessões, as anomalias, os caprichos, todas aquelas idiossincrasias insubsumíveis a quaisquer esquemas analíticos. Em suma, tudo aquilo que constitui testemunho irredutível de um eu que se arrisca no acto de pensar, de um corpo que se interroga hic et nunc, que se debate com a sua própria existência e que sofre… Os impasses, os riscos, os abismos. Situo, pois, Cioran sob o mesmo signo de Hölderlin, Kleist e Nietzsche (tal como estas três figuras são definidas em Combate com o Demónio, de Stefan Zweig), por oposição a Goethe (na perspectiva de Zweig, o grande inimigo de todo o demonismo): se a fórmula olímpica, personificada por Goethe, constitui um círculo (símbolo do acabamento perfeito), o trajecto dos demoníacos exibe a fórmula de uma parábola, “uma ascensão rápida, impetuosa, numa única direcção, ao encontro de um infinito que é um máximo de elevação, logo seguida de uma curva abrupta e de uma vertiginosa queda” (Zweig, 2004: 21). * Do seu catálogo do desespero, do seu alfabeto da amargura, emerge, todavia, uma iniludível poética do encontro: “Todo o comentário de uma obra é prejudicial ou inútil, pois tudo o que não é directo é nulo” (SA: 15). É desconcertante a afinidade desta posição iconoclasta com a discussão de George Steiner em torno do regime do parasitário. Segundo o autor de Presenças Reais, “pretendemos uma remissão do encontro directo com a «presença real» ou com a «ausência real dessa presença», uma vez que as duas fenomenologias 16

são rigorosamente inseparáveis, a que uma experiência estética responsável nos obriga. Procuramos a imunidade do indirecto. Na figura do crítico, do jornalista cultural ou do mandarim do comentário, saudamos os que podem domesticar, secularizar o mistério e as exigências da criação” (1993: 44). * No universo cioraniano, todavia, o mistério é uma categoria supérflua, é a prova cabal do comportamento patético dos humanos relativamente ao seu não-saber, à sua ignorância originária. Expatriar o mistério equivaleria, assim, a revelar o absurdo, a miséria que orgulhosamente alcançamos quando somos atingidos pela lucidez do incurável. Estar em consonância com o irreparável, estar em sintonia com o desespero, estar em harmonia com o abismo – eis a única existência vagamente autêntica para Cioran. A única saída digna para a existência seria aperfeiçoar a arte de se tolerar a si mesmo e o mundo em redor. * As suas paixões arrebatadoras, os seus exercícios de admiração: Bach, a quem Deus tudo deve; Dostoiévski, o escritor mais profundo de todos os tempos; Dürer, o seu profeta que, com a gravura Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, captou o sentido do desenrolar das eras…

* Como é possível amar a vida? Deixamos a pergunta reverberar no seu atrevimento sumptuoso: “Mais do que ser 17

um erro de fundo, a vida é uma falta de gosto que nem a morte, nem sequer a poesia conseguem corrigir” (SA: 18). O apequenamento da existência, o aviltamento da vida, o amesquinhamento do mundo-espelunca são estratégias que visam operar uma subtracção da aura de gravitas que imerecidamente lhe é conferida. Este ardil de mitigação do tom enfático e do pathos consuma-se também na confrontação de duas esferas distintas: “Mudei de desespero como quem muda de camisa” (SA: 109); “Desde o princípio dos tempos, Deus tudo escolheu para nós, até as nossas gravatas” (SA: 66). Põe-se em cena um registo ambivalente onde o banal e o metafísico se entrecruzam, produzindo uma colisão paródica entre duas esferas antitéticas: a esfera do pateticamente trivial e a esfera do escatologicamente incomensurável. É daí que nasce uma fecunda tensão que põe a nu a feição grotesca dos nossos frémitos. * Estética do não-ser: a elegância imperturbável daquilo que ousou escapar ao primado da matéria. * Sonhemos com a pureza do caos que, hélas, está condenado a degradar-se em universo. * Cada livro de Cioran põe-nos à prova. É como se fôssemos intimados a ler após termos sido despojados de tudo aquilo que de supérfluo nos atrapalhava a existência, desde logo a ideia da sacralidade da própria existência. Ler Cioran é 18

atingir assim o derradeiro estágio de uma lucidez maldita, quando caem, de uma assentada, o rosto e as máscaras. Aproximando-se do pessimismo antropológico de Fernando Pessoa, Cioran vê o homem como um animal enfermo e um ultraje risível, a existência como traição à imobilidade e à soberana serenidade do não-ser. A cada renovada experiência de leitura experimentamos o estranhamento do mundo: o espanto que derrama inquietude sobre os seres e as coisas. * É sobejamente conhecida a afinidade electiva entre Cioran e Pessoa,5 nas isotopias e na cosmovisão que ambos exploram. Se em Cioran deparamos com a dureza do gesto e com a ferocidade da palavra, em Pessoa o registo hiperbólico dá lugar a uma subtileza crepuscular que varia Veja-se a seguinte enumeração dos pontos de contacto entre ambos os autores, elaborado por João Maurício Brás no seu artigo “Fernando Pessoa e a filosofia: um diálogo com Emil Cioran e John Gray: “Lucidez, desengano, tédio, um pensar orgânico e visceral, a impotência de agir, a sabedoriamais que o conhecimento, a importância e problematização da clarividência, o horror e fascínio de ser humano, a inanidade do sentido e da vida, são lugares primordiais que ambos [Cioran e Pessoa] de modo muito idêntico. A consciência dolorosa das nossas alienações, as limitações da nossa condiçção, o Shakesperiano asco perante a nossa fragilidade, a dor da diferença e a necessidade de um saber como suportar a vida, em que cada um encontra o seu conjunto de estratégias vitais, são programáticos em ambos” (Brás, 2016: 116). Para além deste artigo de J. M. Brás, refira-se os seguintes estudos sobre a relação entre os dois autores: Dagmara Kraus (2010), “Pessoa’s involvement with the birth theme in Cioran’s De l’inconvénient d’être né”, in: Paulo Borges (ed.), Olhares Europeus sobre Fernando Pessoa, Lisboa, CFUL, pp. 255-277; José Thomaz Brum (2008), “Cioran et le portugais. Histoire d’une rencontre”, in Eugène Van Itterbeek (ed.), Approches critiques, pp. 65-75; Paulo Borges (2017), “Saudade et Nostalgie de l’absolu chez Fernando Pessoa et Emil Cioran”, in: Anale Seria Drept, vol. XXVI, pp. 41-58. 5

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diversamente, de acordo com as máscaras heteronímicas que se queiram compulsar. Em ambos, no entanto, constata-se um negrume que tinge o pensamento e que nasce de uma clarividência implacável. Ao pessoano cadáver adiado que procria replicará similarmente Cioran: “Exceptuando a dilatação do eu, fruto da paralisia geral, não há qualquer remédio para as crises de aniquilamento, para a asfixia no nada, para o horror de se ser apenas uma alma dentro de um escarro” (SA: 21). * “A inacção é divina”, sentencia Cioran” (IN: 171) e assim se irmana à inércia de abdicador do Pessoa do Desassossego. Para o autor maldito, que nunca terá escrito uma única linha na sua temperatura normal, é impossível reprimir a sensação física de náusea que envolve o frenesim estulto da acção - a estridência dos gestos e da agitação febril do mundo exterior.

* Ambos se assumem como escritores fragmentários, desconfiando da vacuidade das nossas doutrinas, da precariedade das nossas convicções e dos nossos sistemas: “Neste universo provisório, os nossos axiomas valem tanto como um fait-divers” (SA: 24), censura Cioran. Pessoa fará a mesma crítica mordaz à tentação metafísica: “A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la-íamos; tudo o mais é sistema e arredores” (1998: 65). 20

* Aprofundando o gosto pelo ímpeto especulativo, ambos intersectam pensamento e sensação, intelecto e corpo. Ao fazê-lo, o seu canto plangente torna-se concreto, realidade palpável, como algo físico que se ergue diante de nós. Numa passagem que poderia perfeitamente ter sido escrita por Pessoa, lemos: “O real dá-me asma” (SA: 28). Em certo sentido, as obras de Cioran e de Pessoa põem em cena um pensamento do corpo que apenas visa professar uma perturbadora incompetência para a vida: “Não toquemos na vida nem com a ponta dos dedos” (Pessoa, 1998: 186). * Ambos perfilham um desencanto e um cepticismo corrosivo de matizes anti-humanistas, deixando até entrever uma tonalidade pós-humanista. Em Cioran, por exemplo, o pendor anti-humanista plasma-se num ódio à humanidade e será essa aversão à pertença na espécie que abrirá caminho para uma reflexão sobre outros modos de existência, contrários ao malogro da experiência humana, marcada pelo funesto peso da consciência: “A planta é ligeiramente atingida, o animal faz por se perturbar; no homem exasperase a anomalia de tudo o que respira” (SA: 22). Ou ainda: “É preferível ser animal do que homem, insecto do que animal, planta do que insecto, e assim sucessivamente. A salvação? Tudo o que diminui o reino da consciência e lhe vem comprometer a supremacia” (IN: 31). Esta sensibilidade com matizes pós-humanistas, embora nunca se concretizando cabalmente, encontra-se disseminada ao longo de toda a sua obra. Em Do inconveniente de ter nascido, por exemplo, lemos: “O grande erro da natureza foi não se ter sabido limitar a um único reino. Comparado com o vegetal, tudo parece intruso, inoportuno. O sol deveria ter 21

amuado com a chegada do primeiro insecto e mudado de casa com a irrupção do chimpanzé” (IN: 47). * A cosmovisão pós-humanista invoca uma leitura contrapontística do logos humanista, promovendo uma percepção crítica dos limites dos tradicionais pressupostos antropocêntricos. Uma tal hermenêutica pós-humanista desafia as fronteiras entre humano e não-humano, entre o Eu e o Outro, fazendo apelo às canções para serem entoadas para além dos humanos, de que nos fala Paul Celan no poema Sóis Desfiados: “es sind/noch Lieder zu singen jenseits/der Menschen” (Celan, 1996a: 122). Atentemos, por exemplo, no trecho “Passaram meses sobre o último que escrevi” (fragmento 334, datado de 16 de Março de 1932), incluído no Livro do Desassossego, que se centra sobre o episódio da mosca varejeira, em que se descreve a identificação de Bernardo Soares com uma mosca: Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório!) poisada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo anónimo e desperto. Ela tinha tons verdes de azul preto e era lustrosa de um nojo que não era feio. Uma vida! Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro, que 22

fiz a comparação risível. Fui mosca quando me comparei à mosca. Senti-me mosca quando me supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que ao mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto, não baixasse sobre mim uma régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia” (Pessoa, 1998: 316).

Estamos perante um soberbo excerto de reverberações póshumanistas, em que se encena um descentramento da posição privilegiada do ser humano relativamente aos demais seres. Pessoa enceta uma experiência ficcional de metamorfose, fazendo o movimento da esfera humana à esfera não-humana. Inicialmente assente no procedimento comparativo (Soares sentiu-se como uma mosca), a descrição do encontro de Bernardo Soares com a mosca evoluirá no sentido de uma metáfora (Soares transformou-se na mosca); é através desse aprofundamento (só possível através do poder exercido pelas sensações: “mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente, com um horror profundo e escuro”) que se torna possível operar uma radicalização da plena metamorfose do humano no inumano, esbatendo-se, assim, a cesura ontológica que demarcam as distintas esferas das espécies. Note-se, no entanto, que o que ocasiona inicialmente o impulso comparativo é um posicionamento hierárquico que integra os deuses (plano superior), Soares (plano intermédio) e a mosca (plano inferior): “Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles?” De resto, a ambiguidade é conservada intacta, até porque a mosca afigura-se como algo repulsivo e atractivo para B. Soares: 23

“lustrosa de um nojo que não era feio.” Como sustenta Victor Mendes, a metamorfose pós-humanista empreendida pela figura pessoana é um movimento contemplativo (“Contemplei-a”) e involuntário: “O episódio da mosca varejeira está informado por uma retórica do involuntário; Soares ergue os olhos para o teto involuntariamente; ficou mosca também involuntariamente; e o espaço onde está é descrito no fim como “escritório involuntário”. Pelo que para já resulta desta análise detalhada, o escritório de Bernardo Soares poderia ser descrito como um laboratório acidental de sensibilidade em que uma memorável, brevíssima e aterradora transferência de consciência entre o animal humano e o não-humano aconteceu” (Mendes, 2015: 189). O desfecho do episódio revela a centralidade da presença da mosca para a alterização entretanto operada, de tal modo que, sem a mosca, não haveria a elucubração filosófica de que o trecho constitui vigoroso testemunho: “Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca, sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.” Em suma, é o fugaz encontro com a mosca que proporciona a Soares uma radical experiência de alteridade, promovendo uma desestabilização do humanismo que nos permite perspectivar um outro modo de ser. * O posicionamento anti-antropocêntrico de Cioran é perceptível à luz da soberba humana. Num passo que lembra o mosquito que se sente o centro esvoaçante do mundo (imagem niezschiana utilizada no opúsculo Acerca da Verdade e da Mentira, 1873), Cioran interrogar-se-á: “Como é que alguém pode ser filósofo? Como é que se pode ter a ousadia de enfrentar o tempo, a beleza, Deus, e tudo o 24

mais? O espírito incha e saltita desavergonhadamente. Metafísica, poesia – impertinências de um piolho…” (SA: 25). * Vasculhamos as suas páginas e a dor que delas exuma. Com Cioran aprendemos a perguntar: não será a verdadeira vertigem a ausência de loucura? * Amar é já uma espécie de despedida.

* A futilidade de tudo, um jogo inútil, uma dança obsessiva de antíteses igualmente desprovidas de sentido. Um tudo-nada, frivolamente defunto. * A acreditarmos na felicidade só o poderíamos fazer se a considerássemos como uma distracção ou uma traição imperdoável, um magnífico ultraje que encobre o alcance da nossa cobardia: “Somos todos farsantes: sobrevivemos aos nossos problemas” (SA: 21).

* 25

O tédio é a antecâmara do desespero. Somos nós, tomando consciência de o tempo a dilacerar-se. Epicentro de todas as obsessões, o tédio é objecto de atracção e de repulsa. Se, por um lado, sucumbe à imprecisão, por outro consubstancia a vacuidade, conferindo-lhe o direito à existência e dotando-a de inteligibilidade. É o cansaço de existir, que nos remete para os fatigados versos de Álvaro de Campos (“Não, cansaço não é.../É eu estar existindo/E também o mundo”, Pessoa, 2013: 455), os instantes arrastando-se dolorosamente, marcando o compasso da nossa derrocada. * Estamos perante um pensador enamorado da incompletude que põe em cena uma verdade nómada, situada nos antípodas de um conhecimento apodíctico: “As nossas hesitações trazem a marca da nossa probidade; as nossas certezas, a da nossa impostura. A desonestidade de um pensador reconhece-se pela quantidade de ideias precisas que propõe” (SA: 23). Em muitos dos seus textos fragmentários, Cioran parece estar a querer dizer que a sensualidade de um texto é directamente proporcional ao seu grau de inacabamento. Escutando a audaz lição de Nietzsche, parece estar a dizer que nada bate o erotismo de um pensamento inconcluso: a subtileza de uma meditação que se recusa a concluir, que previne o desenlace. Assim será um livro para espíritos livres – para o leitor que se entrega ao devir e que retoma a volúpia que apenas se deixa adivinhar. * 26

A única absolvição para o logro que a obra é reside no facto de ela ser perecível. * A apetência pela negação vivificante, à beira de um niilismo resignado. A admiração do Irrevogável, a perplexidade do Insolúvel. * Poética do ressentimento, imune à esperança. * Derradeira objecção: apesar de tudo, os pedaços de um espelho partido...ainda reflectem. * O texto cioraniano exibe diferentes velocidades. “Ter experimentado o fascínio dos extremos, e ter parado algures entre o diletantismo e a dinamite!” (SA: 27). O seu lirismo luciferino alimenta-se de invectivas, exclamações e interrogações desarmantes. Ensaia um movimento que vai da voragem do voo à queda abrupta. A pontuação é utilizada ora de forma sôfrega, ora de forma sóbria, produzindo um fluxo discurso, ora dócil, ora feroz: “A minha cosmogonia acrescenta ao caos primordial uma infinidade de reticências” (SA: 27). 27

* Cioran é aprendiz da sabedoria de Sileno, o sátiro companheiro de Dionísio que detinha o conhecimento trágico. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche refere-se ao episódio lendário segundo o qual, interrogado pelo rei Midas, Sileno afirma que a melhor coisa que lhe poderia acontecer seria nunca haver nascido, não ser, nada ser, e a segunda melhor seria morrer em breve: “Existe a velha lenda segundo a qual o rei Midas perseguiu por muito tempo o sábio Sileno, companheiro de Dioniso, sem o apanhar. Quando por fim ele caiu no seu poder, o rei pergunta o que haveria de melhor e mais excelso para o ser humano. Inflexível e imóvel, o demónio silencia; até que, coagido pelo rei, solta com um riso estridente estas palavra: «Estirpe miserável e efémera, filhos do acaso e da fadiga, porque me obriga a dizer-te o que para ti é mais proveitoso não ouvir? O melhor é para ti totalmente inatingível: não haver nascido, não ser, nada ser. Mas a segunda coisa melhor para ti é morrer em breve»” (Nietzsche, 1997: 34). Sabemos como Nietzsche inverterá uma tal sabedoria, postulando a fértil aliança entre a bela aparência apolínea e a exaltação dionisíaca, a embriaguês dionisíaca coberta pelo véu da ilusão apolínea: “Daquele fundamento de toda a existência, o subsolo dionisíaco do mundo, só pode chegar à consciência do indivíduo humano exactamente tanto quanto puder ser superado por aquela força apolínea de transfiguração” (1997: 171). A verdadeira tarefa de Apolo seria tornar, assim, “a existência em cada instante digna de ser vivida, incitando a viver o momento próximo” (1997: 171), que desaguará num 28

amor fati, expresso admiravelmente em Ecce Homo numa “fórmula de suprema afirmação, nascida da plenitude, da superabundância, um dizer que sim sem reservas, até mesmo ao sofrimento, à própria culpa, a tudo o que há de problemático e estranho na própria existência” (Nietzsche, 2000: 174). Já para Cioran, a vida é indigna de ser vivida, a inocência do devir converte-se num calvário do devir que, sob o princípio da ruína, desagua num odium fati de recortes schopenhauerianos: “Odor nauseabundo de um universo indigno do perfume do espírito” (BD: 164).

* Contrariamente ao que Susan Sontag insinua (1969: 81), Cioran nunca se tornou epigonal em relação a Nietzsche. Depois de um período de arrebatado entusiasmo,6 Cioran afastar-se-á resolutamente de Nietzsche, apartando-se da idolatria da força e da afirmação dionisíaca da existência que ama a vida, o sim rejubilatório ao mundo por parte do filósofo de Sils-Maria, afastamento este que é atestado pela pungente interrogação extraída do seu Breviário de Decomposição: “Há coisa mais vil do que dizer sim ao mundo?” (BD: 67), até porque o “grande sim é o sim à morte” (TE: 172). Já em Silogismos da Amargura, reconhecerá que o filósofo alemão terá sido o encantador da sua juventude: “em Nietzsche gostámos de Zaratustra, das suas A veemente adesão, numa fase inicial, deve-se ao posicionamento libertador do pendor anti-sistemático e fragmentário da filosofia nietzschiana: “Nietzsche a été éminement libérateur. C’est lui qui a saboté le style de la philosophie académique, qui a attenté à l’idée de système. Il a été libérateur, parece que après lui, on peut tout dire…” (E: 22). Adesão, pois, de um ponto de vista formal e não propriamente ao nível de uma visão do mundo partilhada. 6

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poses, da sua palhaçada mística, verdadeira feira dos cimos…” (SA: 30), rejeitando, no mesmo lance, o culto da vitalidade e a ideia de super-homem. Cioran acredita que foi mais longe do que Nietzsche em virtude do seu cinismo, reconhecendo embora o alcance da sua influência e a sua estética da intensidade: “Medimos a sua fecundidade pelas possibilidades que ele nos oferece de o renegar continuamente sem o esgotar. Espírito nómada, ele escuta a variação dos seus desequilíbrios. Sobre todas as coisas, defendeu o pró e o contra: é esse o procedimento daqueles que se entregam à especulação por não poderem escrever tragédias, dispersar-se em múltiplos destinos. – A verdade é que, ao expor as suas misérias, Nietzsche nos libertou dos pudores das nossas; as suas misérias foram-nos salutares” (SA: 31). * Sob tutela schopenhaueriana, Cioran perfilha um niilismo passivo (ascético), indeferindo, assim, o niilismo activo (dionisíaco) de Nietzsche. Segundo o autor de Die Welt als Wille und Vorstellung (1819), a Vontade, desprovida de meta ou finalidade, constituiria a fonte metafísica de todos os sofrimentos. A felicidade seria então somente a efémera interrupção de um querer cego e avassalador, gerador de eterna insatisfação. Toda a concretização de uma acção seria, assim, apenas o perpétuo ponto de partida para novas aspirações insaciáveis que apenas sublinhariam a incompletude do nosso estar-no-mundo. Para Schopenhauer, o caminho para a supressão da dor encontrar-se-ia na evasão da asfixia do eu, por via da libertação proporcionada pela contemplação artística e pela ascensão a um outro nível ético (ética da comiseração), 30

sendo que mesmo estas formas de libertação do eu apenas seriam paliativos momentâneos. Apenas através da renúncia quietista a todas as solicitações do mundo seria possível ao sujeito consumar a auto-anulação da vontade e ensaiar a fuga para o Nada. As reflexões cioranianas sobre a inacção e a renúncia radicam justamente neste niilismo passivo de feição schopenhaueriana. * Schopenhaueriana é também a visão de Cioran, segundo a qual a fruição estética seria apenas uma sofisticada ilusão, encarando a arte como bálsamo, a beleza como refrigério, a verdade como subterfúgio. Também Freud, em A Civilização e os seus Descontentamentos, produziu páginas poderosas sobre a dimensão consolatória das grandes realizações artísticas. Submetidas ao princípio do prazer, as mesmas produzem aquilo a que chama um sentimento oceânico que, tangendo o acorde da infinitude, alimentam um narcisismo ilimitado. Visto que a vida é demasiado dura, carecemos de paliativos: “Os prazeres substitutos tais como propostas de arte, são ilusões em contraste com a realidade, mas não menos satisfatórias para a mente, graças ao papel que a fantasia reserva a si mesma na vida mental” (Freud, 2005: 21).7 O próprio Cioran admitirá que escrever terá sido a sua superstição mais comprometedora, a desforra da criatura perante a criação sabotada. Importa, no entanto, ressaltar que Cioran nutria uma profunda desconfiança em relação à obra freudiana: “Freud avait beaucoup d’esprit et très peu d’humour. J’entends qu’il n’avait pas assez de distance avec son œuvre. C’est un prophète, un chef de secte, un réformateur ‘religieux’. Il a constamment confondu sa mission avec la vérité, au grand préjudice de celle-ci. On ne se figure pas esprit moins objectif, parmi les hommes de science, bien entendu. Il y avait en lui du fanatique, de l’homme de l’ancienne Alliance” (C: 688). 7

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* Pode uma filosofia ser trágico-cómica? “Schopenhauer é o único filósofo alemão que tem humor, o único que me faz rir. As suas explosões de coléra, as suas indignações” (C: 970).

* Desencadear uma leitura filosófica de Cioran é situar a filosofia sob a égide do riso: “Troçar da filosofia é verdadeiramente filosofar” (Pascal, 2008: 15). Estimemos, pois, o eco das gargalhadas da serva trácia que, de acordo com a célebre história, relatada por Platão em Teeteto, não terá contido o riso quando Tales de Mileto caiu dentro de um poço enquanto observava os astros.8 * Prodigiosamente virulento e fúnebre, espírito atormentado postulando um vazio triunfal. * Flanêur da filosofia, gnóstico contemporâneo, fisiologista de ideias? Apenas alguém apaixonado pela urgência do pior.

Cf. Hans Blumenberg (1994), O Riso da Mulher de Trácia. Uma Pré-História da Teoria, Lisboa, Difel. 8

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* Derradeira aspiração: manter a melancolia à tona, a amargura intacta. Paliativo contra a servidão de se ter de existir. * O encanto que há em desesperar… Nada como a volúpia da dor e do sofrimento, insinuando-se ao pensamento. Assim se compreende o comprazimento cioraniano nas sensações insuportáveis, nos excruciantes paroxismos, numa estranha alquimia em que o veneno se transmuta em volúpia. É por isso que o “defeito da filosofia é ser demasiado suportável” (SA: 24). O tédio, o absurdo e a amargura tornam-se companheiros de jornada, vírus que embala, reconfortante, a nossa beleza indestrutível. Prazer masoquista que anuncia a arte da tristeza, o “artesanato do Vago” (SA: 38), o Vazio enquanto premissa dos preguiçosos. * Sentimentos-limite elevados a quase-conceitos, única ocasião em que as palavras são merecedoras de maiúsculas reverenciais: Intolerável, Irreparável, Incurável.

*

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O sofrimento é a matéria-prima de um pensamento de primeira ordem.

* Sofro, logo existo. * A dor é prima philosophia, o derradeiro laço que nos une à vida. * A consciência do Tempo é intuída como uma fatalidade, como um acontecimento de proporções trágicas porque “se, por infelicidade, associamos os nossos actos ao Tempo, tempos e actos evaporam-se: é a aventura no Nada, a génese do Não” (SA: 39). O cansaço é a banda sonora dos nossos ápices, dos nossos pensamentos agonizantes: “Entediarmonos é mascar tempo” (SA: 39). Ser mortal é estar à mercê do tempo, isto é, oscilar entre o assombro e o flagelo: “É entre o Tédio e o Êxtase que se desenrola toda a nossa experiência do tempo” (SA: 42). * A alegria carece de rigor, a fel ressuma lógica. 34

* Súmula cioraniana: “A vida – essa trivialidade da matéria” (SA: 68). * É tudo tão, tão simples. A vida é uma aberração que se alimenta do vil embuste que é a esperança. * Obra que fere, que golpeia, que mina a placidez das nossas convicções e das nossas vidas desacertadas. Dela brotam palavra-punhais ao serviço de um pensamento fulminante, interrogação dilacerada para o próprio autor, já que, como defende Sontag, em Cioran “Philosophy becomes tortured thinking. Thinking that devours itself – and continues intact and even flourishes, in spite (or perhaps because) of these repeated acts of self-cannibalism. In the passion play of thought, the thinker plays the roles of both protagonist and antagonist. He is both suffering Prometheus and the remorseless eagle who consumes his perpetually regenerated entrails” (1969: 80-81). O pensador como a ferida e o punhal, a vítima e o carrasco, a águia e as entranhas. * Visto que nenhum “tipo de originalidade literária é ainda possível se não torturarmos, se não esmagarmos a 35

linguagem” (IN: 29), o trabalho do escritor está, assim, condenado a um trabalho de desmantelamento demiúrgico, devendo, segundo Beckett, empreender um ataque às palavras em nome da beleza. Escavar buracos na linguagem para espreitar o que está escondido por debaixo. Resgatar hipóteses de luz do fundo da mina escura.9 * Ars poetica: voltar as palavras contra as palavras. * Apoteose da beleza é poder dizer, num só fôlego: a vida é uma rosa sem porquê.

* Para Cioran, a morte de Deus e a ascensão do super-homem não resolvem coisa nenhuma: é apenas uma mera substituição de carcaças.

Nos seus Cahiers, Cioran transcreve o que lhe transmitira Beckett após ter lido a sua obra Le mauvais démiurge: “Dans vos ruines je me sens à l’abri” (C: 715). O que está aqui em causa, mais uma vez, é o oxímoro fecundo que brota de um pensamento em ruínas que, paradoxalmente, proporciona uma estranha forma de consolação ontológica. Em Exercices d’admiration, Cioran refere-se-lhe da seguinte forma: “Plus d’une de ses [Beckett] pages m’apparaît comme un monologue après la fin de quelque période cosmique. Sensation d’entrer dans un univers posthume, dans quelque géographie rêvée par un démon, déchargé de tout, même de sa malédiction!” (O: 1577-1578). 9

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* Preconizando um heroísmo da enfermidade, Cioran é o filósofo-uivador,10 um pistoleiro auto-proscrito do pensamento diletante, arruaceiro lupino que se limita a esbanjar “tiros sem que nenhum acerte no alvo, atacar toda a gente sem que ninguém se aperceba disso, lançar flechas cujo veneno apenas nos atinge a nós!” (IN: 55). * A negação vivificante não brota de um raciocínio lógico, mas dos escombros de um domínio obscuro e ancestral. * Há sempre uma pérola negra que insiste em brilhar nos confins da solidão: “Nós amamos sempre…apesar de tudo; e este «apesar de tudo» cobre um infinito” (SA: 91). * Para quê escrever? Intransigente e clarividente como só ele soube ser, Cioran disse uma vez que escrever literalmente salvou-o. Sabemos como essa ideia da escrita como salvação caiu em descrédito, e justificadamente. Por ser demasiado solene e grandiloquente. Porém, Cioran, o mais corrosivo de Nos seus Cahiers, Cioran desarma os leitores com o seguinte auto-retrato: “Je suis un philosophe-hurleur. Mês idées, si ideés il y a, aboient; elles n’expriment rien, elles éclatent” (C: 14). 10

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todos os pensadores, não hesitou em afirmá-lo, reconhecendo que, se não fosse a escrita, provavelmente teria cometido suicídio. Por muito sombria que seja uma determinada visão da existência, o facto de poder verbalizála através da escrita como que torna mais tolerável essa ausência de sentido. Não traz propriamente redenção. Mas é a ideia de que formular o desastre e o absurdo de algum modo mitiga e confere algum tipo de sentido e de dignidade verbal a esse desastre, ao naufrágio da nossa condição. Há como que um júbilo na nobreza de reconhecer a incomensurabilidade das nossas existências e de sorvermos a visceral estranheza das coisas.11 * A escrita é como a vida, simultaneamente indefensável e irresistível. Como se lê em “Carta a propósito de certos impasses”, incluído n’A Tentação de Existir: “Escrever livros A concepção de escrita enquanto experiência terapêutica aproxima Cioran de Kafka, para quem escrever obedecia a um desejo interior irreprimível que não podia ser silenciado. Ambos são, para utilizar a célebre expressão que Álvaro de Campos aplicou a Fernando Pessoa (nas suas Notas para a Recordação do meu Mestre Caeiro), um “novelo embrulhado para o lado de dentro” (Pessoa, 2017: 82). Para Kafka, a escrita era perspectivada como uma necessidade ontológica (“eu não tenho interesses literários, mas sou feito de literatura, não sou mais nada, e não posso ser mais nada”, como confessa numa carta a Félice). Já para Cioran a escrita assume-se quase como uma espécie de grafoterapia, como uma premência infeliz, porém indispensável: “Não acredito na literatura, só acredito nos livros que expressam o estado de ânimo de quem escreve, a necessidade profunda de se libertar de algo. Cada um dos meus escritos é uma vitória sobre o desânimo. Os meus livros têm vários defeitos, mas não são fabricados, são escritos verdadeiramente com toda a paixão; em lugar de esbofetear alguem, escrevo algo violento. Não se trata portanto de literatura, mas de terapêutica fragmentária: são vinganças” (Cioran, citado por Brás, 2006: 130). 11

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é algo que não deixa de ter relação com o pecado original. Porque, que é um livro senão uma perda da inocência, um acto de agressão, uma repetição da nossa queda? Publicar as próprias taras para causar divertimento ou exasperação! Um vandalismo contra a nossa intimidade, uma profanação, uma infâmia. E uma tentação” (TE: 79). * A morte é o nosso absoluto. Ousamos viver, enquanto a grande niveladora exerce em surdina o seu íntimo magistério, o seu “solilóquio ininterrupto” (IN: 38). A morte tem a decência de nos vir interromper, de pôr cobro à imperdoável megalomania do nosso narcisismo. Tem o bom senso de devastar a nossa “teimosia em subsistir” (IN: 89). Em boa verdade, a morte é apenas outra palavra para salvação. * N’As Anotações de Malte Laurids Brigge, anunciar-se-á a distinção rilkiana, tão cara a Heidegger, entre morte própria (der eigene Tod) e a morte alheia (der fremde Tod), sendo que aquela corresponde justamente à morte que nos diz respeito e que nos é insubstituível (a morte pessoal, Rilke, 2003: 39) e a última a uma morte universal e anónima. O Livro de Horas instaura uma outra dicotomia: a morte pequena – der kleine Tod – e a morte grande – der grosse Tod. Na óptica rilkiana, todos nós somos Todgebärer, aqueles que em si mesmos albergam a morte, revelando-se esta como realidade funda que existe, desde sempre, embrionariamente no nosso ventre: “A grande morte, que cada um em si traz,/é o fruto à volta do qual tudo gira” (2009: 299). Cioran reportar-se-á a esta noção rilkiana numa das suas entrevistas: “Comme Rilke parle de la mort qu’on a en soi” (E: 94). 39

* É na dança entre ser e não-ser que irrompe o impiedoso anátema contra o nascimento: “Não termos nascido; só de pensarmos nisso, quanta felicidade, quanta liberdade, quanto espaço!” (IN: 24). Se a existência é a usurpação de uma plenitude entretanto perdida, a natalidade seria uma espécie de evento fatídico, um acontecimento nefasto que acarretaria uma catástrofe irreparável, ou seja, a procriação como flagelo, fonte de todos os danos. O derradeiro desastre estaria, assim, atrás de nós e não à nossa frente, aguardando-nos no futuro. O nascimento assumir-se-ia enquanto profanação desse não-ser (que radicaliza a Grundfrage leibniziana: Por que é que há algo e não nada?), da beatitude do pré-real. O acto de nascer agudizaria o escândalo que preside ao acto de existir – a infâmia da criação. Acto, portanto, perfeitamente evitável que contribuiria apenas para perturbar a sageza do não-ser. * O visionário desordeiro é aquele que expia o sofrimento daqueles que sofrem e que ignoram quão afortunada é a sua cegueira. * Se existir é traficar ilusões num universo malogrado, morrer afigura-se como um excelente prelúdio para coisa nenhuma. 40

* Como discordar? Antes ser um caluniador do universo que um filósofo. Um filósofo é uma coisa indecente e grosseira, uma máquina monstruosa de produzir conceitos e postulados. Antes alguém que preza a esterilidade e a abstinência do que um mortal insolente, espiando o espírito de deus.

* Animada pela obsessão da continuidade, a obra sistemática é simplesmente demasiado coerente para ser verdadeira.12 * O absoluto é apenas um truque barato do espírito, é mera acrobacia do sublime, charlatanismo do inefável.

O pensamento-ultimato de Cioran, a sua clarividência nefasta, só poderia materializar-se formalmente numa tipologia textual que se situa nos antípodas da filosofia sistemática. No texto “Valéry Face à ses Idoles”, incluído em Exercices d’admiration, Cioran faz justamente a apologia da discontinuidade por oposição ao horror do sistema: “l’ennui, c’est la discontinuité, la lassitude de tout raisonnement soutenu, fondé, l’obsession pulvérisée, l’horreur du système (le Livre n’eût pu être que système, système total), horreur de l’insistance, de la durée d’une idée” (O: 1563). Cf. o capítulo V da Primeira Parte, “O pensar como modo de estar” (especialmente as páginas 110-113) da obra O Pensamento Insuportável de Émile Cioran, de João Maurício Barreiros Brás, que continua a ser uma das obra mais sólidas no âmbito da fortuna crítica cioraniana. 12

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* Apoteose da amargura é reconhecer o monopólio da morte: “Todas as vezes em que não penso na morte, tenho a impressão de estar a fazer batota, de enganar alguém em mim” (IN: 30). * Conhecimento póstumo, sabedoria extrema e desprovida de fundamento. A obra que brota desta clarividência de crepúsculo só poderia ser uma obra herética em relação a si própria: “Só deveríamos escrever livros para nele dizermos coisas que não ousaríamos contar a ninguém” (IN: 27). Ou seja, se vamos interromper o silêncio, façamo-lo em grande estilo. Só vale a pena verter os pensamentos impuros e as infâmias inconfessáveis. A matéria apetecível das fraquezas grotescas que desagua na alta literatura dos nossos pecados abomináveis. * Somos um bicho especulativo. Caracteriza-nos a infatigável necessidade de ruminar sobre o sentido de tudo. É essa a fatalidade do homo quaerens. É essa a nobreza que nos arruina. * A uma teoria da anti-evolução deverá corresponder necessariamente uma arte da dissipação: “Devíamos ficarnos pelo estado de larvas, esquivar-nos a evoluir, 42

permanecer inacabados, contentar-nos com a sesta dos elementos e dissipar-nos tranquilamente num êxtase embrionário” (IN: 98).

* Tudo se passa como se fosse impossível distinguir a coragem de continuar vivo e a cobardia de perseverarmos no jogo inútil da vida. * A dissipação das ilusões passa por minar a cilada do narcisismo, sabotando a ideia de posteridade, de tal forma que o seguinte verso borgesiano poderia ter sido proferido pelo próprio Cioran: “Lego o nada a ninguém” (Borges, 1998: 88). * A Queda é, em Cioran, uma categoria de pensamento e um dos substractos mais vigorosos da sua escrita, sendo um dos privilegiados instrumentários metafórico-conceptuais com que vai urdindo as suas intuições. Queda no ser e no tempo, no horror de existir, na prisão do eu e da linguagem, no veneno da consciência. Exílio, em suma, de uma inocência primordial.13 A grelha hermenêutica utilizada por Stephen Mulhall em relação a Nietzsche, Heidegger e Wittgenstein poderia ser aplicada, com total propriedade, a Cioran: “For if redemption is what we need, then our present state must be seen not as one of imperfection but as one of 13

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* Desabrigados, resta-nos apenas testemunhar o fiasco da criação.

* Uma sabedoria genuína é uma sabedoria incompleta: uma não-sabedoria. Comparemos este ofício da penumbra com o logro de uma filosofia sistemática, o penoso estertor do pensamento enquanto entretenimento ocioso. De um lado, o homem de carne e osso que pensa e sofre; do outro, a cegueira dos filósofos-funcionários, os tristes profissionais do pensamento. A filosofia é, em suma, uma forma degradada de sabedoria, o saber que fracassou e que, por isso, redundou em técnica. * A noite que nos vigia e que sangra até ao dia seguinte.

wretchedness—more specifically, one of perversity. These philosophers find that we are flawed in our very structure and constitution—not only naturally capable, or even disposed, to act in ways that go against our own best interests and deepest nature, but always already turned against ourselves by virtue of what makes us human” (Mulhall, 2005: 118). Para uma abordagem detalhada da noção de queda em Cioran, cf. Joseph Acquisto (2016), “The Eternal Fall: Cioran”, in: The Fall Out of Redemption. Writing and Thinking Beyond Salvation in Baudelaire, Cioran, Fondane, Agamben, and Nancy, NY/London, Bloomsbury, pp. 139-170.

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* A dureza da visão cioraniana, a sua exigência de um total esvaziamento de sentido, explica-se em boa parte pelo efeito devastador da insónia. Refém desse pecúlio precioso que esculpiu o seu destino, Cioran encarou-o como uma catástrofe feliz porque lhe permitiu ter consciência da continuidade ininterrupta e vazia do tempo. É nas noites vazias e plenas de lucidez que se torna possível atingir um êxtase negativo e intuir que a nossa morada é um exílio absoluto. A clarividência aterradora de em tudo vislumbrar apenas uma falácia… * A experiência da insónia em Cioran poder-se-ia aproximar da descrição levinasiana do horror da noite do il y a. Os primeiros escritos textos filosóficos de Lévinas, De l’évasion (1935) e De l’existence à l’existant (1947), inspirados pela reflexão heideggeriana sobre a relação do homem com o ser, debruçavam-se sobre a sensação de se estar encurralado em si mesmo, o eu preso a si próprio sem escapatória possível. Descrevia-se, assim, a sufocante tragédia do ser, sem possibilidade de deserção, a que o sentimento de desespero kierkegaardiano decerto não é alheio. Lévinas fala do ser no seu anonimato tenebroso, como um ruído espectral no silêncio de tudo. Na obra De l’existence à l’existant fala desse peso do ser e da monotonia absurda do tempo: “La veille est anonyme. Il n’y a pas ma vigilance à la nuit, dans l’insomnie, c’est la nuit elle-même qui veille” (Lévinas, 1947: 111). Para Cioran, a insónia assume contornos existenciais, dado que o próprio padeceu dessa situação-limite durante a sua 45

juventude. Trata-se da instauração da ditadura de um tempooutro, de um tempo sem pausas e sem rupturas. A insónia enquanto tempo usurpado do tempo, tempo-sem-tempo, tempo perpétuo: “C’est une expérience extrêmement douloureuse, c’est une catastrophe. […] l’insomnie vous met en dehors des vivants, en dehors de l’humanité. Vous êtes exclu. […] Il n’y a aucun progrès. Il n’ya a que cette immense nuit qui est là. Et la vie n’est possible que par la discontinuité. […] La disparition du sommeil crée une sorte de continuité funeste. Vous n’avez qu’un seul ennemi, c’est le jour, c’est la lumière du jour” (E: 86). E, mais adiante, “dans l’insomnie le temps, c’est votre ennemi” (E: 87). O capítulo “Invocação à insónia”, incluído no Breviário de Decomposição, constitui um comovente testemunho desse tempo partido em que habita aquele que, ao contrário dos que esperam pelo sono para baixarem as guardas das suas vidas, apenas conhecem a fecundidade da vigília: “Até que tu vieste, Insónia, para sacudir minha carne e meu orgulho; […] Tudo dormia, tudo dormia para sempre. Nenhuma aurora mais: velarei assim até ao fim das eras: me esperarão então para pedir-me contas do espaço em branco de meus sonhos… Cada noite era igual às outras, cada noite era eterna” (BD: 164). * Para além de mestre da recusa, Cioran é um “aristocrata dos vencidos”; daí a sua predilecção pelos mendigos, pelos ociosos, pelas prostitutas, pelos coveiros, pelas figuras que se encontram na margem.

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* A estupefacção de um eu que aqui se pensa e que, perante a vida, obviamente hesita: inconveniência ou tentação? * Aprender a amar os nossos naufrágios, a idolatrar as ideias póstumas que não cessamos de perder. * A escrita cioraniana exibe muitos timbres: hiperbólico e pleonástico, cínico e cáustico, irónico e irado, insubmisso e condescendente. Essa arte polifónica visa desconcertar o leitor, mas sobretudo testar as contradições e habitar as antinomias de que se faz um pensamento movente.14 * A fragmentação estilística é apenas um meio para que o autor possa acompanhar a decomposição ontológica de um eu que, ao escrever, vai ensaindo a coreografia da sua desolação. Do lirismo luficerino e torrencial das obras Sylvie Jaudeau sugere de modo persuasivo que os muitos tons, evidenciados pela obra Précis de Décomposition, visam operar igualmente uma sabotagem do registo grandiloquente: “Le ton de ce livre se hausse à une rare violence et est habité par une démesure qui s’atténuera dans les oeuvres suivantes. Le ton est prophétique presque nietzschéen. Cioran confessera plus tarde qu’il s’attribuiait celors une mission, en dépit du titre d’antiprophète qu’il se donne ici. Les figures de rhétorique échappent de justese à la grandiloquence. Invectives, harangues, prières, visions se déchaînent en une tempête où affleurent parfois des instants poétique qui nous font songer à William Blake” (Jaudeau, 1990: 40). 14

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iniciais (com especial destaque para Nos Cumes do Desespero) até à prosa mais cirúrgica de Silogismos da Amargura ou à feição testamentária de Confissões e Anátemas, a diversidade estilística da escrita cioraniana pode ocorrer no seio de uma mesma obra: o registo mais ensaístico de alguns livros parece esboroar-se à medida que eles se aproximam das suas páginas finais. Atente-se, por exemplo, nas secções que encerram as obras Écartelement (“Ébauches de vertige”, O, pp. 1443-1504) e Le Mauvais Démiurge (“Pensée Étranglées”, O, pp. 1230-1259). É quase como se a tentação de um discurso mais metódico, sucumbindo à fadiga, resvalasse inevitavelmente para um esboroamento, patente na radicalização do registo fragmentário que o aforismo corporiza. Sloterdijk, no livro Tens de Mudar de Vida, apresenta uma visão cómica, embora profundamente apta, do processo composicional da escrita cioraniana, nela postulando o primado da leitura: O “autor” Cioran é meramente o chefe-de-redacção que retoca e edita os produtos da sua redacção. Colige, sob a forma de livros, os textos que os seus colaboradores internos fornecem por rotina. Estes apresentam o material em reuniões irregulares — aforismos do serviço de blasfémia, observações do grupo temático da misantropia, farpas da secção de perda das ilusões, proclamações do gabinete de imprensa do circo dos solitários, teses da agência das imposturas à beira do abismo e venenos do gabinete editorial encarregado de tornar desprezível a literatura contemporânea. A única tarefa que é da competência do chefe de redacção é a formulação da ideia de suicídio. Essa ideia contém evidentemente o exercício de que dependem todas as outras séries de repetições. Só ela permite, duma crise para a seguinte, restabelecer o sentimento de continuar a ser soberano na miséria — um sentimento que assegura um mínimo de apoio à vida ressentida. De resto, os responsáveis pelos diferentes temas sabem o que produzem as redacções vizinhas, o que quer dizer que cada vez 48

mais se citam mutuamente e se alinham entre si. O “autor” Cioran simplesmente inventa os títulos dos livros, que conterão uma alusão ao respectivo género — silogismos, anátemas, epitáfios, confissões, vidas de santos ou manuais do fracasso. Dele são também os subtítulos, com uma lógica semelhante. No quotidiano é menos um homem que escreve do que um homem que lê, e se houve na sua vida uma actividade que de longe se assemelhava a um trabalho regrado ou a um exercício formal, foi a leitura e a releitura de livros que lhe serviam como fontes de consolação ou contradição (Sloterdijk, 2018: ).

* Do dramatismo exacerbado e do lirismo efusivo das obras iniciais ao estilo parcimonioso e ao fulgor epigramático das obras da maturidade, os seus pensamentos permanecem os mesmos relâmpagos de um pavor incurável. * O tom15 invectivo do seu discurso fulgurante plasma-se num uivo e não num silogismo lógico.16 Mais do que o ponto final é a exclamação inflamada que concita a sua adesão. Cioran distancia-se, assim, daquilo que Derrida apelida de “neutralidade do tom” (1997: 13) e que, pretensamente, deveria presidir à escrita filosófica mais convencional. 16 É essa a linha de reflexão de Françoise Susini-Anastopoulos que nos fala de um estilo imprecatório por oposição a um estilo clássico de recorte cartesiano: “Quant à Cioran l’Imprécateur, son style ne se prête à d’aussi arachnéennes et subtiles arabesque. Ses modèle son plutôt anathème, le juron, le télégramme, l’épitaphe, la laconisme de l’interjection ou encore le hurlement comme «dernier estade du lyrisme»” (2007: 372). 15

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Como nos diz num passo dos seus Cahiers: “Si je voulais rendre le ton de ce que je ressens, il me faudrait mettre un point d’exclamation après chaque mot” (C: 222). Em Confissões e Anátemas, sumariza a sua posição da seguinte forma: “Se me pedissem para resumir o mais brevemente possível a minha visão das coisas, para a reduzir à expressão mais sucinta, em vez de palavras utilizaria um ponto de exclamação, um ! definitivo” (CA: 57). É, pois, um pensamento interjectivo em que os conceitos se encadeiam como “suspiros dissimulados”, em que toda a reflexão “ocupa um lugar de interjeição” e em que “uma tonalidade plangente submerge a dignidade da lógica” (BD: 37-38). * No capítulo “Para além do romance” (A Tentação de Existir) Cioran assinala que os únicos romances verdadeiramente dignos de interesse são justamente aqueles em cujo seio nada ocorre: “deliciosamente ilegíveis, sem pés nem cabeça”, tais obras poderiam interromper-se “logo na frase inaugural ou prolongar-se por milhares de páginas” (TE: 108-109). Uma “meditação sem conteúdo”, um “desenrolarse estacionário”, que poderíamos aproximar dos universos de Lispector, Beckett, Broch, Llansol, Musil… Romance enquanto solilóquio do vazio e o romancista enquanto arqueólogo da ausência: “O advento do romance sem conteúdo desferiu no romance um golpe mortal. Já não há efabulação, nem personagem, nem intriga, nem causalidade. Excomungado o objectivo, abolido o acontecimento, subsiste apenas um eu sem amanhã, que se agarra ao Indefinido, o vira e revira, o converte em tensão, numa tensão que só a si própria conduz: êxtase nos confins das Letras, murmúrio incapaz de se desvanecer em grito, litania e solilóquio do Vazio, apelo esquizofrénico que recusa o 50

eco, metamorfose em algo de extremo que se esquiva e que não procura nem o lirismo da invectiva nem o da oração. Aventurando-se até às raízes do Vago, o romancista torna-se um arqueólogo da ausência que explora as camadas do que não é nem poderia ser, que escava o incaptável e o desenrola perante os nossos olhos cúmplices e desconcertados” (TE: 114). A escrita do desastre é animada justamente por esse desejo de captar o esplendor fugaz de certos instantes que, em virtude da sua incandescência, não se deixam aprisionar em anquilosadas cristalizações. Trata-se de uma escrita sem âncora e, por isso mesmo, mais fiel e verdadeira à inalienável finitude que se apodera dos nossos gestos. * Saudemos a sensatez tardia de um “adeus à filosofia”, ensaiado no Breviário de Decomposição. O mundo inteligível de Platão, a mónada leibniziana, o espírito absoluto de Hegel, o conatus de Espinosa, a filosofia kantiana, a vontade de poder de Nietzsche, o Ser heideggeriano – apenas delírios sofisticados, brilhantes tautologias, fábulas mais ou menos verosímeis fabricadas por espíritos enfatuados. * Não são obras, são destroços. Não é filosofia, são estilhaços de uma explosão. Não é doutrina, é uivo indómito: “Se tivesse de renunciar ao meu diletantismo, seria no uivo que me especializaria” (SA: 56). É pensamento em chamas nos cumes do desespero. * 51

A extravagância de acrescentar mais ruído ao mundo: “Um livro é um suicídio adiado” (IN: 91). Se se tiver absolutamente que escrever que seja para fustigar os leitores, para lhes passar a lepra do desconcerto, a ferida incurável que o viu nascer.

* Homo homini lupus: somos todos predadores dissimulados, tiranos frustrados. A crueldade é o nosso estado natural. O amor o milagre com que sabotamos a cilada do tempo. * Prosseguimos de ilusão em ilusão, transbordando de quimeras e de propósitos. Esperamos, quando o sensato seria desesperar. Sábio é aquele que não deixa vestígio, que não deixa obra. Aquele que sucumbe ao propício reino dos pesadelos. * Somos patéticos animais metafísicos: alimentamo-nos de dogmas, de crenças e de sentido. Exibimos uma carência visceral de sermos iludidos. O amor e a esperança estão mais do que à altura da tarefa. *

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Ser humano é padecer de uma enfermidade, viver é submeter-se à experiência capital de uma agonia prolongada. A possibilidade do suicídio é a inalienável magia que se furta à lei de um funesto demiurgo.

* Aprofundando a arte de pensar contra si próprio, adensando os paradoxos e aporias, a escrita cioraniana mostra-nos como uma filosofia confessional não invalida o distanciamento irónico em relação às suas posições: o ensaísta seria então actor, fingindo os dramas íntimos, as trevas e abismos que deveras sente.17

* Desmantelando a pretensão a um saber absoluto, a arte da contradição mobilizada por Cioran insurge-se contra estéreis abstracções e univocidades esclerosadas. Ao comprazer-se com os efeitos que o seu pensamento antinómico produz, ao cambiar constantemente de perspectiva, o seu pensamento permite-nos, não só superar o dogmatismo, Para uma interessante apreciação da dimensão teatral e ficcional do sujeito escrevente em Cioran: “Cioran clearly expects his readers to […] appreciate his ironic (yet serious) adoption of the role of the putative suicide; the narrator is a suicide, a self-killer. But for Cioran, this fictional self is a rhetorical, theatrical gesture, by which he hopes to save his real self. By casting himself in this character, Cioran commits suicide metaphorically while managing to survive the call of death by releasing through his invented character the surplus of lyrical energy he felt surging through him” (Zarisfopol-Johnson, 2009: 77). 17

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mas também apreender os diferentes matizes de que se tece uma realidade em permanente metamorfose: “Mestres na arte de pensar contra si próprios, Nietzsche, Baudelaire e Dostoievski ensinaram-nos a apostar nos nossos perigos, a alargar a esfera dos nossos males, a ganhar existência através da divisão interna do nosso ser” (TE: 8-9).

* Anti-profeta, anti-filósofo, místico sem Deus, secretário das próprias sensações, um Hieronymus Bosch contemporâneo, homem do subterrâneo, dotado de uma lucidez demoníaca e ensaindo a revolta metafísica (Camus, 2017: 37) que escolheu para seu destino.

* À traição do pensamento chama-se filosofia. * Cúmulo do paradoxo: execrar a vida por amá-la de mais. * Em Cioran não há propriamente espírito trágico, há apenas a serenidade da constatação do desastre. O sopro prometeico está ausente. Estamos perante um espírito que, despido de qualquer intuito de insurreição, apenas 54

testemunha e regista, atónito e incrédulo, o nosso amável naufrágio, as nossas mentiras vitais (Ibsen, 2008: 428). Alguém que se compraz com o circo da humanidade e a capitulação do existir. A sua pena trocista, as diatribes cínicas que pontuam a sua argumentação felina, não se compadecem com a ternura irónica, como aquela que encontramos, por exemplo, na poesia de W. Szymborska, cuja complexa amálgama combina júbilo e dor, êxtase e desencanto: “E por isso, na alegria – a angústia misturada,/no desespero – sempre uma esperança calada” (2004: 209). * Cioran padece de um exílio metafísico, sem nome e sem porquê. Percorre-o uma vaga nostalgia cujo único refrão é a melodia que ressoa nas falésias da alma. * A aguda consciência da ausência, o rumor de algo que desconhecemos, mas que nos torna cientes daquilo que nos falha: “A substância de uma obra é o impossível” (IN: 87).

* Oprime-o a consolação do queixume metafísico, liberta-o o cepticismo enquanto versão profana do demoníaco. * 55

Vida interior – fenómeno tardio e puramente acidental. * A ideia de salvação é irrisória e indecorosa. Extirpa-nos da honra de que nunca gozámos: “A sociedade é um inferno de salvadores! O que Diógenes buscava com uma lanterna era um indiferente” (BD: 13). Mais do que salvar, a questão é saber se somos ou não merecedores do caos. * Há uma estética muito própria na volúpia do desastre. Tratase de forjar a majestade do absurdo (Celan, 1996b: 46), sorver o desabrochar da catástrofe, saborear o desabamento interior que nos desvenda a existência enquanto suplício. * A sabedoria da desilusão que nos proporciona Cioran pode ser irmanada às posições de Camus: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia” (2002: 13). Para Camus, é preciso imaginar Sísifo feliz. Para Cioran, uma tal concessão significaria uma desistência, traição imperdoável à própria nobreza que é vivermos até ao fim a íntima tragédia que nos coube. *

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O que o anima não é um espírito proselitista, mas sim um espírito de dissensão e dissonância. Como sustenta Valéry num aforismo que poderia muito bem ter sido escrito por Cioran: “Não pretendo convencer ninguém, nem sequer ser convencido” (1994: 69). * Como justificar perante nós mesmos a cobardia que é sobreviver? A sobrevivência é a ignominiosa prova da nossa deslealdade para com uma impiedosa lucidez. É a divisa da teimosia das nossas ilusões teleológicas, o fôlego esfarrapado que ainda nos prende à respiração. * Sobreviver é oscilar entre o conforto da apatia e a doce promessa do suicídio. * O texto cioraniano encena a escrita do desastre. É a escrita destituída de poder, a palavra do neutro. A escrita que não fala a linguagem da ordem. O fragmento mina o despotismo do sistema, expondo o leitor a uma perplexidade tumultuosa.

* Quanta escuridão pode um mortal suportar? 57

* Cioran admira em Kierkegaard a sua veia anti-hegeliana. Ao excesso de seriedade de Hegel, Cioran contraporá o delicado humor de Kierkegaard. Hegel leva-se muito a sério. Kierkegaard diverte-se e divide-se, comprazendo-se na criação de múltiplas máscaras heteronímicas. O autor de Migalhas Filosóficas proclamará um conhecimento subjectivo e irónico, uma verdade irredutivelmente singular que dirá apenas respeito à concretude de um sujeito pensante individual. * O que se está a fazer quando se faz filosofia? Esgravata-se impiedosamente a linguagem. Fabrica-se a ilusão de se estar a fazer sentido. Mente-se a si próprio. * Mais próximo de Beckett (para quem a linguagem é mácula no silêncio) do que de Heidegger (que fala da linguagem como mansão do Ser), Cioran desconfia da doutrina mística do inefável e do fulgor ontológico da linguagem.18 Para ele, a O afastamento de Heidegger prende-se, de acordo com o próprio Cioran, com o facto de estarmos perante uma filosofia pretensiosamente hermética, exercendo o seu fascínio através de uma acrobacia verbal que exemplifica o caminho a evitar nos trilhos filosóficos: “La fascination qu’exerce le langage explique à mon sens le succès de Heidegger. Manipulateur sans pareil, il possède un véritable génie verbal qu’il pousse 18

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palavra é moeda gasta, apenas mais um vício insuportável do ser humano, desastrada interrupção do silêncio originário. * À rebours da sua desvinculação relativamente a Heidegger, a verdade é que é possível vislumbrar uma afinidade electiva entre a reflexão cioraniana e o Heidegger tardio que se socorre da palavra Gelassenheit (serenidade) que, tomada de empréstimo de Mestre Eckhart, aponta para o “puro deixar ser” e para o “escutar sereno” que nada espera e que nada deseja para si (linha de pensamento que se aproxima da meditação libertadora do Budismo), disponíveis para aquele que já se fez ao caminho. * Deus não existe: é essa a sua única desculpa. E assim se torna um pouco menos obsceno.

* Na obra Nos Cumes do Desespero, a escrita é apresentada como meio de exorcização, como tábua de salvação. Não espanta que o texto seja marcado por uma exaltação ígnea, pelo fogo cependant trop loin, il accorde au langage une importance vertigineuse. C’est précisément cet excès qui éveilla mes doutes, alors qu’en 1932 je lisais Sein und Zeit. La vanité d’un tel exercice me sauta aux yeux. Il m’a semblé qu’on cherchait à me duper avec des mots. Je dois remercier Heidegger d’être parvenu, par sa prodigieuse inventivité verbale, à m’ouvrir les yeux. J’ai vu ce qu’il fallait à tous prix éviter” (E: 216).

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intacto das suas obsessões. O furor ditado por uma necessidade interior.

* Somos criaturas de uma beleza sem clemência, isto é, somos mortais que padecem de esperança. Hiperbólica, absoluta, incondicional, pertence-lhe o reino do porvir, a irrupção daquilo que rasga todo o horizonte de expectativa. A esperança é a invenção do impossível. Como sugere Vergílio Ferreira, a “esperança mais intensa é a do impossível. É quando muda de nome e se chama desespero” (Ferreira, 2013: 274).

*

Somos as cinzas que o tempo deixou a arder, somos os vermes que o devir, displicente, se esqueceu de espezinhar.

*

É preciso liquidar a metafísica – eis, numa prontidão brusca e rude, a derradeira afirmação metafísica.

* 60

Um pensamento desprovido de humor é um pensamento petrificado como o olhar da Medusa.

*

Ancorado no tenaz labor da ironia e no teor áspero do sarcasmo, o humor cioraniano19 impede que a sua poética do suplício deslize perigosamente para o reino do dogma. Um riso preventivo e libertador que escarnece do próprio horror. O passo seguinte da obra Ensayo sobre Cioran (exercício de aproximação e de distanciamento face ao cepticismo radical cioraniano), pela clareza e contundência da sua exposição, oferece confirmação cabal sobre a centralidade do humor na forma mentis de Cioran: Si hay algo que desvanece la impresión de dogmatismo [...] del estilo de Cioran es su humor. Quizá sea el humor la característica más acusada de su forma de escribir, la que crea su prosa y aleja de sus libros el ridículo énfasis de lo fúnebre o ese riesgo de lo siniestro que amenaza, en mayor o menor medida, a todo Discordo, pois, de Zagajewski, quando acusa Cioran de falta de sentido de humor, quando comparado, por exemplo, com Czesław Miłosz, prendendo-se essa acusação com o excesso de negrume da escrita cioraniana (Zagajewski, 2005: 151). Para o poeta polaco, o contraste entre ambos estaria bem expresso na analogia com duas distintas naturezas-mortas: “In one, in Miłosz’s work, you see a splendid apple and a gleaming oyster in the foreground, and only by peering deep into the background will you glimpse the indistinct silhouette of a guillotine. In Cioran’s picture, on the other hand, pride of space is given to a bare skull and a thin stream of sand trickling through an elegant hourglass that blocks a bunch of grapes” (Zagajewski, 2005: 150-151). 19

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pesimismo riguroso. El humor rescata a Cioran del sermón de los ejercicios espirituales [...] del «no somos nadie» funerario de quien no se hubiera atrevido a decir eso mismo en vida del difunto o de su propia vida; el humor le salva de cualquier tipo de unción, y garantiza que la lucidez crítica del discurso no prescinde de volverse contra su misma empresa, que la lucidez tiene mucho de opaca y el sarcasmo también es risible. El humor preserva y confirma la reversibilidad del discurso, su circularidad; [...] Cioran se empecina en negarlo todo y en negarse; un ejercicio tan torvo, tan improbable, debe suscitar la risa: la risa preventiva, azorada, de quien trata de evitar que un discurso demasiado terrible sea tomado en serio, pero también la risa liberadora de quien por fin se atreve a saber. No es el severo ropón académico, la lúgubre máscara de quien lleva en sus hombros el pene teórico del mundo, lo que corresponde a la revelación nihilista: dejemos eso para quien tiene ele Sistema – y, por tanto, en el campa de la risa, de la sonrisa inspirada, al borde del estallido, de la carcajada refrenada en estilo: en esto está la maestría del de Cioran. [...] Según su sarcasmo se va transformando en risa exterminadora ante el azar esencial, a medida que la presentuosa miseria del discurso de los hombres va dejando paso a un vacío más impersonal, la acerada ironía de Cioran se va convirtiendo en profundo humor, en una plena forma de humor que encierra una toma de postura metafísica, que nos remite a esa «felicidad aterradora» de venas en las que se dilatan miles de planetas. Ese humor es no sólo el instrumento, sino la última palabra del pensamiento lúcido de Cioran. En una definitiva carcajada se liberan todos los impulsos jubilares que la desaparición de los referenciales estables provoca; risa mezclada com humor, por supuesto, pero riendo indisolublemente del horror mismo: lo indecible causa un movimiento conjunto de espanto y alegría, la alegría misma es motivo de espanto y el espanto se transmuta en irremediable júbilo. [...] En la prosa de Cioran, la risa es un rumor de fondo, como el murmullo de ese mar que fue llamado «el de la risa 62

innumerable». Ese rumor desmiente la vertiente tenebrista que pudiera tener la obra del desengaño” (Savater, 1992: 165-67).

O riso cioraniano é o expediente catártico que permite que a lucidez irrespirável não se arvore em prima principium, que a clarividência não se degrade em culto. É a subversão derrisória passível de minar o sistema (o sério), a transgressão e a irreverência capazes de se esquivar à sacralização de uma negatividade exacerbada. O riso é, assim, barca redentora para que o descensus ad inferos iniciático não se transforme em naufrágio absoluto. Só assim é possível que, de acordo com a admonição nietzschiana, ao contemplarmos o fundo do abismo, o abismo não devolva o olhar.

*

Assumindo uma dupla função de desmembramento (destruição) e de regeneração (reconstituição), oscilando entre a devastação degradadora e a reparação nobilitante, a irrupção do riso opera uma reivindicação desrespeitosa da liberdade, precipitando uma mitigação do sublime e da aura reverencial outorgada à categoria do sério. Em clave baudelairiana, poder-se-ia afirmar que o homem morde com o riso (2001: 10), sendo que, por vezes, a subversão cómica se revela capaz de exprimir uma gravidade outrora oculta que o próprio discurso do sério camufla.

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* À semelhança de Kafka que, segundo Max Brod, não continha as gargalhadas ao ler o primeiro capítulo d’O Processo, gosto de imaginar Cioran a soltar um riso desenfreado, enquanto redige as coléricas e agónicas páginas de Breviário de Decomposição ou os desafiadores aforismos dos Silogismos da Amargura: “O riso é a única desculpa da vida, a grande desculpa da vida! E devo dizer que, mesmo nos momentos de grande desespero, tive força para me rir. […] Rir é um acto libertador. […] O riso é um acto de superioridade, um triunfo do homem sobre o universo, uma descoberta maravilhosa que reduz as coisas às suas justas proporções” (O: 1778). * O riso constitui o fiel contraponto ao desespero negro. É a astúcia de que Cioran se socorre para gerar um autodistanciamento irónico que duvida da fatalidade do seu próprio cepticismo e que troça de si mesmo. O humor desconcertante, a mordacidade ácida e o riso demolidor convocam a figura da hiena, a estridente gargalhada perante o Nada: “Um mundo sem tiranos seria tão fastidioso como um jardim zoológico sem hienas” (HU: 93). * Leio a obra de Cioran como a consumação de uma espécie de carnavalização metafísica da existência, uma procissão

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dos deuses destronados.20 A explosão de alteridade, pontuada pela apologia do marginal e do periférico, constitui uma oposição ao hierárquico e ao dogmático. Uma tal cosmovisão visa a suspensão de todas as hierarquias e a criação de um mundo às avessas. Assim se explica a declinação do cómico, o riso paródico, o destronamento da solenidade que percorre os seus escritos. A linguagem carnavalesca de Cioran (as profanações, as blasfémias, as imprecações)21 consubstancia uma ética da ruptura que visa estilhaçar a ordem instituída. No capítulo “O pensador de ocasião”, do Breviário de Decomposição, Cioran confidencia que brinca com os seus pensamentos como um bufão da fatalidade (BD: 102), ao passo que, nos Silogismos da Amargura, sustentará que tanto a sátira como o suspiro lhe parecem igualmente válidos (SA: 70). Daí a profusão no texto cioraniano de tipos carnavalescos, representativos desse espírito antifrástico, de transgressão libertadora, como o louco, o néscio, o bobo, o palhaço ou o bufão. Estamos perante a irrisão carnavalesca enquanto procedimento visceral de tornar convulsa a realidade anquilosada, consumando-se uma operação de dessacralização do poder oficial do texto filosófico.

* Penso obviamente na categoria celebrizada por Mikhail Bakhtine no volume A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. Cf. Bakhtine, 1970. 21 De acordo com Michel Jarrety, no seu ensaio “Cioran: la passion de l’indélivrance”, aquilo que “rend parfois étrangement gaie la lecture de Cioran et procède directement de la jubilation sensible, et justement de la dérision, qui accompagnent les modaliés de la négation, que son écriture multiplie: contre-pied, sarcasme, blasphème ou anathème” (1999: 130). 20

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Num escrito pleno de fina ironia, em que disserta sobre o cómico absoluto e sobre a dimensão satânica do riso, Baudelaire incrimina o sábio que teme o riso, o lídimo representante da ortodoxia (os mestres que não riem de si, escarnecidos por Nietzsche), afirmando que o “o Homem sábio por excelência, o Verbo Incarnado, nunca se riu. Aos olhos Daquele que tudo sabe e tudo pode, o cómico não existe” (2001: 9). Como não nos lembrarmos do frade Jorge de Burgos, a personagem inspirada em Borges, que, n’O Nome da Rosa, de Umberto Eco, considerava o riso como a antecâmara do pecado, tendo, por isso, envenenado as páginas do livro perdido da Poética, de Aristóteles, dedicado à comédia... * Segundo Umberto Eco, o “cómico e o humorismo são o modo como o homem tenta torna aceitável a ideia insuportável da sua morte – ou arquitectar a única vingança que lhe é possível contra o destino ou os deuses que o querem mortal” (Eco, 2000: 97). O riso seria, assim, o antídoto para o saber mumificado, a arma capaz de tudo dissolver, até o nada, sobretudo o nada. Um pouco como aquele riso de vitória sobre a angústia de que Ulisses é acometido após ter relatado o modo engenhoso e cómico como, através de um jogo de palavras (“Ninguém é como me chamo.”), ludibriou o medonho Cíclope Polifemo (canto IX, Odisseia). * O riso afirmativo e criador, enaltecido por Nietzsche em obras como A Gaia Ciência e Assim Falava Zaratustra, 66

assume-se enquanto mecanismo de libertação. No magnífico § 294 de Para Além do Bem e do Mal, o pensador alemão, impugnando a posição hobbesiana, sugere que se faça uma hierarquia dos filósofos a partir da qualidade e da intensidade do seu riso: “Não obstante aquele filósofo que, como verdadeiro inglês, procurou criar, para o riso, em todas as cabeças pensantes, uma má reputação – ‘O riso é um defeito da natureza humana, que qualquer cabeça pensante se deverá esforçar por superar’ (Hobbes) –, gostaria de me permitir estabelecer uma classificação dos filósofos, de acordo com o nível do seu riso, até àqueles que são capazes do riso dourado” (Nietzsche, 1999: 254). O riso não é signo de comedimento, o riso extravasa; devedor da convulsão, é a insígnia profanatória da ordem hierática. * Ter a coragem de rir é lutar contra a tentação de um niilismo totalitário, até porque a leveza do riso oculta um abismo. Num dos seus Pensamentos, Giacomo Leopardi escreve: “Grande entre os homens e de grande terror é o poder do riso, contra o qual ninguém na sua consciência se encontra inteiramente armado. Quem tem coragem de rir é dono do mundo, quase como quem está pronto para morrer” (2018: 111). A dado passo, no volume Pequenas Obras Morais, confrontamo-nos uma vez mais com uma apologia desse desespero magnânimo: “Dizem os poetas que o desespero tem sempre um sorriso na boca” (2003: 218).

* 67

No seu livro A Era do Vazio, Lipovetsky examina o declínio do riso intempestivo por oposição à ascensão de um riso sem espessura, positivo e desenvolto. Segundo o filósofo francês, o que a sociedade pós-moderna e hedonista produziu foi justamente o obliteramento da fase satírica e negativa do humor, sendo o espírito satírico substituído por uma tonalidade lúdica do cómico. O que impera é um humor pacificado e estéril, próprio de uma sociedade pósmoderna que gera uma auto-absorção narcísica, e não a exuberância do “riso demonstrativo, o riso louco, a explosão de jovialidade” (1989: 136).

*

No capítulo “O inextinguível riso dos deuses” da sua História do riso e do escárnio, Georges Minois descreve uma belíssima cosmogonia que faz residir a origem do universo na eclosão de um primordial riso divino: “«Depois de o deus rir, nasceram os sete deuses que governam o mundo... Quando ele rompeu às gargalhadas, surgiu a luz... Gargalhou segunda vez, e tudo foram águas. À terceira gargalhada, apareceu Hermes; à quarta, a geração; à quinta, o destino; à sexta, o tempo.» Depois, antes do sétimo riso, o deus inspirou fortemente, mas tanto riu que até chorou, e das suas lágrimas nasceu a alma” (2007: 13). Tudo o que conhecemos teria brotado então de um enorme ataque de riso de um deus que, assim, cria, não pela palavra, mas pela explosão de um riso incontrolável: “E depois deste big bang cómico e cósmico, o deus e o universo – aquele que ri e a sua explosão de riso – ficam num eterno cara-a-cara, 68

interrogando-se mutuamente sobre o que fazem aqui” (p. 13). É como se a plenitude tautológica do incriado tivesse sido abalada pelo riso, resgatando as coisas do seu perfeito torpor, do seu silencioso ainda-não. Porém, logo nesse momento inicial espreita o absurdo da morte: “o riso só é verdadeiramente alegre para os deuses. Para os homens, nunca é alegria pura: a morte nunca está muito longe, e esta intuição de um nada sobre o qual todos estamos suspensos contamina o riso” (p. 18). Dir-se-ia que a ubíqua presença de Thanatos jamais oblitera a comparência do humor: “O riso e a morte dão-se bem. Basta olhar para uma caveira para disso se ficar convencido: nada lhe pode tirar o sorriso eterno” (p. 21), asserção que nos remete para o macabro episódio de infância, narrado por Cioran em algumas entrevistas e incluído num dos seus Silogismos da Amargura: “Na minha infância, eu e os meus colegas divertíamo-nos a ver o coveiro trabalhar. Às vezes ele dava-nos um crânio com o qual jogávamos futebol. Era para nós uma alegria que nenhum pensamento fúnebre vinha obscurecer” (SA: 58).

* Epílogo ou da tentação de interromper o silêncio: “Toda a palavra é uma palavra a mais. Mas trata-se de escrever, não é verdade? Pois escrevamos…, enganemo-nos uns aos outros” (TE: 80).

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 Não restará na noite uma só estrela. Não restará a noite. Morrerei e comigo irá a soma Do intolerável universo. Apagarei medalhas e pirâmides, Os continentes e os rostos. Apagarei a acumulação do passado. Farei da história pó, do pó o pó. Estou a olhar o último poente. Oiço o último pássaro. Lego o nada a ninguém. Jorge Luis Borges

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