Direito Internacional e (sua) Filosofia [1 ed.]
 9788592788117

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Org.)

Direito Internacional e (sua) Filosofia

O livro que o leitor tem em mãos é fruto, primeiramente, de uma relação de amizade e confiança que os autores têm entre si, condição necessária para, como dito acima, se disporem a escrever sobre o Direito Internacional e (sua) Filosofia. Além disso, muitos dos textos aqui presentes foram produzidos para os eventos organizados pelo Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional, da Universidade Federal de Rondônia, em especial o Direito das Gentes e Relações Internacionais na Filosofia Política Moderna. Assim como nesses eventos, a intenção primordial desse livro é resgatar o necessário diálogo entre a reflexão internacionalista, jurídica e/ou política, e as filosofias política e jurídica tão presentes na origem moderna do Direito das Gentes nos séculos XV e XVI. Basta-nos, nesse sentido, lembrar a distinção fundamental entre os pensamentos hobbesiano e grociano acerca da juridicidade do Direito das Gentes.

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Org.)

Direito Internacional e (sua) Filosofia

Ma rcu s Vin íciu s Xav ier de Ol i vei ra (Org. )

Direito Internacional e (sua) Filosofia

1ª Edição

São Carlos / S P Editora De Cas t ro 2019

Copyright © 2019 dos autores.

Editor da Editora De Castro: Carlos Henrique C. Gonçalves Projeto gráfico: Carlos Henrique C. Gonçalves Fotos para capa e miolo: Letícia Longo Revisão de texto e normas: Responsabilidade dos autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB(CIP) - 7/6971

Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971 ''LUHLWRLQWHUQDFLRQDOH VXD ILORVRILDRUJ0DUFXV 9LQ¯FLXV;DYLHUGH2OLYHLUD——HG——6¥R&DUORV'H &DVWUR2 SFP  ,QFOXLELEOLRJUDILD ,6%1  'LUHLWR)LORVRILD'LUHLWRLQWHUQDFLRQDO 5HOD©·HVLQWHUQDFLRQDLV)LORVRILD,2OLYHLUD0DUFXV 9LQ¯FLXV;DYLHUGH,,7¯WXOR   &''2

Todos os direitos desta edição reservados aos autores. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610). 16 3372-9679 [email protected] editoradecastro.com.br

Sumário Apresentação

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1 - Direito Internacional, Evgeny Pashukanis.

Traduçao de Vinicius Valentin Raduan Miguel ..................................................................... 15

2 - A genealogia da noção de Direito Internacional Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo ............................................................................ 33

3 - Os conceitos Hegelianos e Kantianos de Direito Estatal Externo, de Direito dos Povos ou Direito das Gentes ou Direito Internacional, de Guerra e de Paz Paulo Roberto Konzen .............................................................................................................. 69

4 - Hugo Grotius e a legitimidade internacional através do Direito Magnus Dagios .......................................................................................................................... 101

5 - O colonialismo como teoria da modernidade: esboço de uma pesquisa interdisciplinar em teoria social crítica Leno Francisco Danner, Agemir Bavaresco e Fernando Danner ................................... 115

6 - O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o julgamento de civis pela Justiça Militar: estudo do caso brasileiro David Alves Moreira e Ítalo José Marinho de Oliveira ..................................................... 167

7 - A liberdade antes do liberalismo: o caso de Francisco Suarez Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo ........................................................................... 185

8 - A essencialidade do Direito Internacional para a teoria do Direito de Kelsen Leonam Liziero e Bruna Rabêlo ............................................................................................. 213

9 - Soberania: conceito atual, mas a atualizar, do Direito Internacional Gills Vilar-Lopes, Dalliana Vilar-Lopes e Adriano Gonçalves Feitosa ................................................................................................. 227

10 - O Direito Internacional em Banksy: interlocuções entre Direito Internacional, Filosofia Política e street art Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ...................................................................................... 243

11 - Direito Internacional Ambiental: solidariedade intergeracional na pós-modernidade transnacional Layde Lana Borges da Silva e Thais Bernardes Maganhini ............................................. 265

12 - Caso Venezuela, soberania e sistema internacional de Direitos Humanos: uma reflexão sobre as implicações dos conceitos envolvidos Adriana Vieira da Costa e Wilson Simões de Lima Júnior ............................................... 279

13 - A discussão ético-política sobre Direitos Humanos em Seyla Benhabib Vinicius Valentin Raduan Miguel .......................................................................................... 295

14 - O conceito de Phrónesis em Aristóteles como etapa para conhecer a sua influência no pensamento de Ricoeur Deborah Christina Biet de Oliveira ...................................................................................... 305

15 - Os Direitos Humanos e a pedagogia do medo. Uma leitura desde uma espiadela “Na Construção da Grande Muralha”, de Franz Kafka Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ....................................................................................... 319

16 - Autores

............................................................................................................................... 333

A nossos amigos, mas na forma do endereçamento originário de Maurice Blanchot em seu Pour L’Amitié: A tous mes amis, connus et inconnus. Conforme o comentário de Eligio Resta, de quem extraiu-se esta passagem, os “[...] amigos são também desconhecidos, não vistos, não avizinhados. Eles se furtam ao vínculo da reciprocidade quotidiana, construída a partir de um ar comum que se respira. Pode-se compartilhar a vida sem compartilhá-la [...] os amigos podem não ser conhecidos, mas poderiam em cada momento ser reconhecidos, e é a este difícil evento do reconhecimento que se remete sua visível concretude”*

* RESTA, Eligio. O direito fraterno. Tradução Sandra Regine Martini Vial. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. p. 20-21.

Apresentação A amizade está tão estreitamente ligada à definição mesma de filosofia, que se pode dizer que sem ela a filosofia não seria propriamente possível [...] e é certamente por uma intenção em algum sentido arcaizante que um filósofo contemporâneo – no momento de formular a pergunta extrema: que é a filosofia? – chegou a escrever que esta é uma questão para se tratar entre amis. Giorgio Agamben

O livro que o leitor tem em mãos é fruto, primeiramente, de uma relação de amizade e confiança que os autores têm entre si, condição necessária para, como dito acima, se disporem a escrever sobre o Direito Internacional e (sua) Filosofia. Além disso, muitos dos textos aqui presentes foram produzidos para os eventos organizados pelo Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional, da Universidade Federal de Rondônia, em especial o “Direito das Gentes e Relações Internacionais na Filosofia Política Moderna”. Assim como nesses eventos, a intenção primordial desse livro é resgatar o necessário diálogo entre a reflexão internacionalista, jurídica e/ou política, e as filosofias política e jurídica tão presentes na origem moderna do Direito das Gentes nos séculos XV e XVI. Basta-nos, nesse sentido, lembrar a distinção fundamental entre os pensamentos hobbesiano e grociano acerca da juridicidade do Direito das Gentes. Embora esses autores, como sabemos, pertençam à tradição jusnaturalista – nada obstante Hobbes se constituir, por assim dizer, no pai do positivismo moderno, ao assentar a cogência da norma jurídica no fato de ela ser posta pelo Estado -, eles deram respostas diametralmente divergentes ao problema da obrigatoriedade das normas internacionais. Para Hobbes, por ser o Direito Internacional expressão do direito natural, seria ele destituído de juridicidade e imperatividade, servindo, quando muito, de paradigma moral para se aferir a justeza de um comportamento do soberano em suas relações com outros soberanos na “caótica”

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sociedade internacional, exemplo por excelência de uma sociedade em estado de natureza. Já para Grócio, a legitimidade e imperatividade do Direito das Gentes se assentava exatamente nisso: ser a expressão concreta na facticidade histórica do direito natural. Interessante, de Hobbes é possível aferir uma influência marcante nos pensamentos de dois grandes negadores da juridicidade do Direito das Gentes, John Austin e Hegel, sendo que desse último e a sua doutrina do Direito Público Externo, Georg Jellinek formula a sua conhecida teoria da autolimitação do Estado, expressão por excelência da teoria voluntarista que busca fundamentar a existência e a obrigatoriedade do Direito Internacional no consentimento dos Estados em relação às normas internacionais. O percurso teórico acima descrito, fragmentado e carente de desdobramentos, demonstra, quase como se fosse uma vacina às suas próprias deficiências, a necessidade de o Direito Internacional buscar, novamente, a interlocução com as filosofias do direito e política, pois somente isso permitirá que problemas teóricos que tocam fundo na compreensão da disciplina sejam discutidos em um contexto que fuja ao usual pragmatismo/realismo político que, em muitos sentidos, ecoa o famoso bordão dos personagens Chicó e João Grilo na conhecida peça de Ariano Suassuna, O Auto da Compadecida: “Não sei, só sei que foi assim...”. No que diz respeito, doutro giro, às diversas abordagens e escolhas temáticas, é preciso relembrar dois pontos essenciais daquilo que se poderia denominar de filosofia jurídica no geral e filosofia do Direito Internacional em particular: uma que é feita por filósofos (raposas), outra que é feita por juristas (ouriços), conforme a díade muito bem desenvolvida por Celso Lafer em seu A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. Distinção esta que decorre, historicamente, do famoso poema de Arquíloco: “πόλλ’ οἶδ’ ἀλώπηξ, ἀλλ’ ἐχῖνος ἓν μέγα” [A raposa sabe de muitas coisas, mas o ouriço sabe de uma coisa importante]. Entretanto, como expressamente reconhecido por Lafer, quem realmente elaborou contemporaneamente a polaridade raposa-ouriço foi Isaiah Berlin em seu The Hedhehog and the Fox: An Essay on Tolstoy’s View of History, na qual ele, tentando categorizar esse grande autor russo, concebeu-o como uma raposa que buscou expressar em sua obra literária todos os campos possíveis da experiência humana, mas que, do ponto de vista da convicção pessoal e da moralidade, era um ouriço.

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Pois bem. Conforme Lafer, o que diferencia uma filosofia do direito feita por filósofos de uma filosofia do direito feita por juristas não é, pois, a matéria bruta com a qual trabalham, mas os problemas que tencionam resolver e os paradigmas de que se apropriam nesse intento: aqueles, são filósofos que manifestam interesses em temas jurídicos; já estes são juristas com inquietações filosóficas e que se ocupam de problemas filosóficos suscitados pelas necessidades práticas da experiência jurídica de ir além dos dados empíricos do Direito Positivo para poder lidar com o próprio Direito Positivo. O livro se inicia com a tradução que o Professor Vinícius Raduan fez de um texto fundamental da teoria marxista do Direito Internacional de autoria de Evgeny Pashukanis – o verbete Direito Internacional -, inicialmente publicado na Enciclopédia de Direito e do Estado, editada sob a direção de Piotr Stuchka. A tradução se baseou na versão em inglês feita por Peter B. Maggs, professor de Direito na Universidade de Illinois, EUA. A ele se segue o trabalho de autoria do Professor Paulo E. V. Borges de Macedo, A genealogia da noção de Direito Internacional, que, em riquíssima discussão jusfilosófica e jushistórica, situa as origens da disciplina e de seus fundamentos. O Professor Paulo Roberto Konzen contribuiu com o capítulo intitulado Os conceitos Hegelianos e Kantianos de Direito Estatal Externo, de Direito dos Povos ou Direito das Gentes ou Direito Internacional, de Guerra e de Paz, no qual ele expõe o desenvolvimento e os principais problemas que o Direito Internacional desencadeou nos dois autores fundamentais do idealismo alemão. A ele se segue o trabalho do Professor Magnus Dagios, Hugo Grotius e a legitimidade internacional através do Direito, no qual ele expõe não somente o pensamento grociano em sua origem, mas também sua influência na atual corrente anglo-saxã das relações internacionais. Os Professores Leno Francisco Danner, Agemir Bavaresco e Fernando Danner apresentam, em seguida, o riquíssimo trabalho intitulado O colonialismo como teoria da modernidade: esboço de uma pesquisa interdisciplinar em teoria social crítica, no qual eles tecem críticas ao colonialismo e enfrentam o problema da emancipação desde uma perspectiva crítica. No trabalho O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o julgamento de civis pela Justiça Militar: estudo do caso brasileiro, os Professores David Alves Moreira e Ítalo José Marinho de Oliveira discutem o problema da incompatibilidade da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal face à da Corte Interamericana de Direitos Humanos no concernente ao julgamento de civis pela Justiça Militar, o que, de

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per se, demonstra os seríssimos problemas da teoria da dupla eficácia dos tratados internacionais de Direitos Humanos no Brasil desde o leading case RE 466.343/SP. No segundo texto da prestigiosa contribuição do Professor Paulo E. V. Borges de Macedo – A liberdade antes do liberalismo: o caso de Francisco Suarez -, é exposta, com percuciência e ampla consulta às fontes históricas, a antecipação no pensamento de Suarez de teses que seriam desenvolvidas pelo liberalismo nos séculos XVII e XVIII. Em A essencialidade do Direito Internacional para a teoria do Direito de Kelsen, Leonam Liziero e Bruna Rabêlo expõem o quanto o desenvolvimento da jusfilosofia de Hans Kelsen é dependente do Direito Internacional. Gills Vilar-Lopes, Dalliana Vilar-Lopes e Adriano Gonçalves Feitosa, por sua vez, discorrem sobre a necessidade de se compatibilizar o discurso jurídico-político da soberania ao atual contexto histórico e político, o que foi feito em Soberania: conceito atual, mas a atualizar, do Direito Internacional. O Professor Marcus Vinícius Xavier de Oliveira discorreu em, O Direito Internacional em Banksy: interlocuções entre Direito Internacional, Filosofia Política e street art, sobre a possibilidade de interlocução transdisciplinar entre o Direito Internacional, a Filosofia Política e a street art, tendo como paradigma um graffiti que Banksy fez no muro de um imóvel situado na Cisjordânia. As Professoras Layde Lana Borges da Silva e Thais Bernardes Maganhini contribuíram com o artigo de título Direito Internacional Ambiental: solidariedade intergeracional na pós-modernidade transnacional, sendo seguidas pelo trabalho de Adriana Vieira da Costa e Wilson Simões de Lima Júnior, que no artigo Caso Venezuela, soberania e sistema internacional de Direitos Humanos: uma reflexão sobre as implicações dos conceitos envolvidos, problematizam a possibilidade de intervenção internacional no contexto do conflito civil hoje existente na Venezuela. Encerram o presente livro os seguintes trabalhos: Vinícius Miguel discute as implicações ético-políticas dos Direitos Humanos no pensamento de Seyla Banhabib, enquanto Deborah Christina Biet de Oliveira apresenta os principais temas relativos ao conceito de phrónesis no pensamento aristotélico, bem como sua recepção no pensamento de Paul Ricouer. E, por fim, o texto Os Direitos Humanos e a pedagogia do medo. Uma leitura desde uma espiadela “Na Construção da Grande Muralha”, de Franz Kafka, de autoria de Marcus Vinícius Xavier de Oliveira, no qual o autor, utilizando-se de procedimentos transdisciplinares inerentes à interlocução entre direito, filosofia política e literatura, discute o

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problema das (im)políticas do exílio hoje praticadas por todos os Estados em relação aos imigrantes, e que não encontra qualquer distinção na prática e no discurso entre esquerda, direita e extrema direita. Como últimas palavras a título de apresentação, agradecemos a todos os autores que, com brilhantismo e distinção, contribuíram para a realização do presente livro que, para ficarmos na famosa distinção de Arquíloco, é uma obra de raposas e ouriços, bem como manifestar o desejo de que a presente obra encontre guarida e interesse pelo diálogo nos distintos leitores. Agradecemos, também, pela dedicação de nosso editor Carlos Henrique C. Gonçalves e à Editora De Castro por tornarem possível a publicação desse livro. Terras de Rondon, agosto de 2019. Prof Dr Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

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1 Direito Internacional Evgeny Pashukanis

Apresentação da tradução

Abaixo segue a tradução de um texto de Evgeny Bronislavovich Pashukanis, comumente transcrito no português como Pasukanis ou Pachukanis, no qual se observa as grandes linhas daquilo que poderíamos identificar como sendo a concepção soviética/socialista de Direito Internacional. Pashukanis foi um jurista soviético (23 de fevereiro de 1891 – data de morte incerta), tendo trabalhado no corpo diplomático de seu país e ocupado as posições de diretor do Instituto de Construção Soviética e Jurídica e vice-presidente da Academia Comunista de Ciências. Ao fim de sua vida, suas concepções jurídico-políticas, ao apontarem para o desaparecimento do Estado e da forma jurídica, conflitavam com o pensamento dominante na Rússia sob o mando de Stalin. Em razão disso, Pashukanis foi acusado de “inimigo do socialismo” e enfrentou a fúria de Andrey Vyshinsky, Procurador-Geral da União Soviética quando do Grande Expurgo. O presente texto foi inicialmente apresentado na Enciclopédia de Direito e do Estado (Mezhdunarodnoe pravo, Entsiklopediia gosudarstva i prava. v. 2, lzd., Moscow: Kommunisticheskoi akademii, 1925-1927. p. 858874), publicado entre os anos de 1925 e 1927, em três volumes, e editado pelo também jurista Piotr Stuchka. Na mesma obra, Pashukanis apresentou dois outros verbetes: “Leon Duguit” e “O Objeto do Direito”.

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A tradução foi feita a partir da versão em inglês, traduzida do russo por Peter B. Maggs, professor de Direito na Universidade de Illinois, EUA. Esta versão em inglês foi publicada como Pashukanis: Selected Writings on Marxism and Law, organizada por Piers Beirne e Robert Sharlet (London: Academic Press, 1979). E pode ser encontrada no The Marxists Internet Archive, graças à gentil cessão do tradutor. Seria impossível apresentar um sumário das ideias de Pashukanis sem que isso significasse, em razão da complexidade e progressivas alterações, a total desfiguração de seu pensamento jurídico, motivo pelo qual deixo de apresentar tal síntese. Espero que o texto que segue permita suprir a lacuna editorial e forneça subsídios para uma melhor compreensão da perspectiva soviético-socialista do Direito. O texto, escrito sob o marco temporal da partilha colonial do mundo e o enfrentamento entre as distintas potências imperialistas, versa sobre as origens do Direito Internacional e o seu papel na sociedade capitalista. [Verbete:] Direito Internacional

O Direito Internacional (ius gentium, droit des gens, Völkerrecht; do latim, francês e alemão, respectivamente: direito das gentes, direito dos povos e direito das nações) é repetidamente definido como a totalidade de normas que regulam as relações entre os Estados. Eis uma conceituação típica: “O Direito Internacional é a totalidade de normas definindo os direitos e deveres dos Estados em suas relações mútuas”1. Nós encontramos a mesma acepção entre os alemães Hareis, Holtsendorf, Bulmering, Liszt e Ulman, entre o belga Rivie, com os ingleses Westlake e Oppenheim e ainda com o estadunidense Lawrence, entre outros. Mas, nesta definição, técnica e formal, estão ausentes quaisquer indicações históricas, ou seja, do caráter de classe do Direito Internacional. É extremamente evidente que a jurisprudência burguesa, de forma consciente ou inconsciente, luta para encobrir este teor classista do Direito Internacional. Os exemplos históricos, presentes em qualquer livro de Direito Internacional, proclamam abertamente que o Direito Internacional é a forma jurídica que assume a luta entre os Estados capitalistas pela dominação do restante do mundo. No entanto, os juristas burgueses tentam, o tanto quanto possível, silenciar os eloquentes exemplos da intensificação das disputas e afirmam, falsamente, que os fins do Direito Internacional 1 H. Bonfils, Traite de droit international public (1894), Rousseau, Paris, p.1.

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são “fazer possível para cada Estado o que nenhum deles poderia fazer em isolamento, através da cooperação entre as várias nações”2. Os teóricos da Segunda Internacional também não foram capazes de se distanciarem dos juristas burgueses. Ao abandonar a concepção classista do Estado, estes teóricos descobriram, erroneamente, no Direito Internacional, um instrumento que se coloca fora e acima das classes sociais, para coordenar os interesses dos Estados individuais, com vistas a atingir o ideal da paz mundial. É a partir dessa perspectiva que o bem conhecido Bernstein3 e o igualmente famoso Renner4 abordaram o Direito Internacional. Com grande assiduidade, esses cavalheiros acentuaram as “funções pacifistas do Direito Internacional”, mas, ao fazê-lo, eles esqueceram que a melhor parte deste ramo jurídico versa sobre as normas de guerras navais ou terrestres, ou seja, o Direito Internacional assume diretamente a condição de conflito armado aberto. Mas, mesmo os demais ramos do Direito Internacional contêm uma parcela significante de normas e instituições que, embora se refiram às condições de paz, de fato, regulam a mesma luta, conquanto em outra e dissimulada forma. Cada conflito, incluindo a luta entre os Estados imperialistas, deve incluir a troca como um de seus componentes. E se uma etapa histórica de intercâmbio está concluída, então as formas de intercâmbio também devem acompanhar estas transformações. Mas a presença destas formas de intercâmbio não altera o conteúdo histórico e real mascarado sob elas. Em um dado estágio do desenvolvimento social, este conteúdo permanece a luta dos Estados capitalistas contra outros Estados igualmente capitalistas. Sob as condições dessa luta, cada troca é uma continuação de um conflito armado e o prelúdio para o próximo. Aí reside o atributo mais singular do imperialismo. Lênin discorreu que: Os capitalistas repartiram o mundo, não em decorrência de uma malevolência inerente, mas por conta do grau de concentração do capital atingido, que torna forçoso a adoção deste método para a obtenção de lucro. E eles dividem o mundo ‘em proporção ao capital’, ‘em proporção à sua força’, porque não há outro método de partilha sob a produção de mercadorias e o capitalismo. Mas a força acompanha o nível de desenvolvimento político e econômico. Com o objetivo de entender o que está acontecendo, é preciso saber quais 2 J. Louter, Le droit international public positif (1920), Oxford, p.17. 3 E. Bernstein, Völkerrecht und Völkerpolitik (1919). 4 K. Renner, Marxismus, Krieg und Internationale (1918), Vienna.

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as questões são decididas pelas trocas de poder. A questão de quando estas trocas são ‘puramente’ econômicas ou extraeconômicas (militar, por exemplo) é secundária... Mas substituir a questão do conteúdo dos conflitos e dos acordos (hoje pacíficos, amanhã violentos, no outro dia pacífico novamente), é cair no sofismo.5

Quando Renner descreve o desenvolvimento do Direito Internacional como a profusão de instituições que asseguram o interesse geral de todos os Estados, e quando tenta demonstrar que este desenvolvimento vem sendo retardado por políticas egoístas de apenas um dos Estados, o Reino Unido, ele cai neste sofisma. Renner deve, além disso, estar ao serviço do imperialismo austro-húngaro (o livro de Renner foi publicado antes da derrota dos poderes centrais pela Entente). Ao contrário, nós podemos ver que, entre os Estados capitalistas, mesmo os acordos que aparentam ser voltados ao interesse geral, de fato, significam, um meio de proteger os interesses particulares de cada um dos contratantes, ou impedindo a expansão da influência de seu rival ou afastando a conquista unilateral; ou seja, é outra forma de perpetuar a mesma situação de enfrentamento, condição esta que irá persistir enquanto durar a competição capitalista. Alguém poderia, ainda, exemplificar algumas das organizações internacionais, como as comissões internaciona is para a supervisão da navegação nos antigos “rios dos tratados” (O Rhine, o Danúbio, e antes de Versailles, o Elbe e o Oder). Mas é imperioso apontar que, mesmo a composição de cada uma dessas comissões reflete perfeitamente relações de forças específicas e que relações estas são, usualmente, o resultado de uma guerra. Depois da I Guerra Mundial, consequentemente, a Rússia e a Alemanha foram expulsas da Comissão sobre o Danúbio. Ao mesmo tempo, a Comissão sobre o Rhine foi transferida para Strasbourg e caiu sob as mãos dos franceses. Sob o Tratado de Versailles, a transformação dos rios alemães em rios sob o regime de tratados, que eram controlados por comissões internacionais, foi um ato de divisão dos espólios entre os vitoriosos. A Administração Internacional de Tangiers, um porto nos Marrocos onde os interesses da França, Inglaterra e Espanha se entrecruzavam, é o mesmo tipo de organização para a exploração e supervisão conjunta. Um exemplo, final e bem típico, é a Organização Internacional para a Extorsão de Reparações da Alemanha: a comissão de reparação e todos os tipos de agências para a supervisão elaboradas pelos especialistas. Assim que algu5 V. I. Lenin, Imperialism, the Highest Stage of Capitalism (1917), LCW, v. 22, p. 253.

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ma potência estiver fortalecida o bastante para tomar o botim como sua possessão exclusiva, ela irá começar a combater a “internacionalização”. No mesmo sentido, na Conferência de Londres (1883), a Rússia czarista foi sucedida em colocar o Kiliisky como um braço do Danúbio fora do controle da Comissão Europeia, por meio de um tratado internacional de 1889. A Comissão para a Supervisão para a Neutralização do Canal de Suez não pôde sequer ser formada: ela foi excluída, por tratado em separado, entre a Inglaterra e a França, onde a primeira comprou sua própria liberdade de atuação no Egito, ofertando, em troca, o Marrocos à segunda (Convenção Anglo-Francesa de oito de abril de 1904). A disputa entre os Estados imperialistas pelo restante do mundo é, então, um fator constituinte da natureza e do destino das organizações internacionais correspondentes. Restam os comparativamente poucos e altamente especializados tratados interestatais. Estes têm um caráter técnico e servem para coordenar as chamadas uniões administrativas internacionais, como, por exemplo, a União Postal Internacional. Estas organizações não servem primariamente como a arena para a luta entre grupos administrativos, mas estas instituições ocupam apenas uma posição secundária e subordinada. A origem da maioria destas organizações está nos anos 1870 e 1880, assim, no período em que o capitalismo ainda não havia desenvolvido completamente os seus monopólios e seus trejeitos imperialistas. A luta intensificada pela partilha do mundo já se move a tal extensão desde esses tempos que a atual capacidade dos Estados capitalistas para atender as necessidades econômicas e culturais gerais já se retraiu, ao invés de se expandir. A esse respeito, um claro recuo foi a I Guerra Mundial, que causou o colapso de uma série de laços culturais (em particular) e vínculos científicos. Os juristas burgueses não estão totalmente enganados ao considerarem o Direito Internacional como uma função de uma comunidade cultural ideal, mutuamente conectada por Estados individuais. Mas eles não enxergam, ou não querem enxergar, que esta comunidade de interesses reflete (condicionalmente e relativamente, é claro) os desejos comuns das classes poderosas e dominantes dos diferentes Estados que têm idênticas estruturas de classe. A ampliação e o desenvolvimento do Direito Internacional ocorreram com base na expansão e desenvolvimento do modo de produção capitalista. Não obstante, no período feudal, cada país europeu tinha seus códigos de honra militar e, de acordo com a sua lei de classe, os aplicava em guerras entre eles; mas não os empregava em guerras entre distintas classes, como por exemplo, na supressão dos burgos ou dos camponeses. A vitória da burguesia, em todos os países europeus, levou ao estabelecimento de novas regras e de

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novas instituições de Direito Internacional que protegem os interesses gerais e básicos da burguesia, isto é, a propriedade burguesa. Aí está o cerne do moderno Direito da Guerra. Enquanto na Europa feudal a estrutura de classe se refletia na noção religiosa de uma comunidade de todos os cristãos, o mundo capitalista criou seu conceito de “civilização” com os mesmos propósitos. A divisão de Estados em civilizados e “semicivilizados”, integrados e “semi-integrados” à comunidade internacional, revela explicitamente a segunda peculiaridade do Direito Internacional como o direito da burguesia. Isto aparece como a totalidade de formas pelas quais os Estados capitalista-burgueses se relacionam, enquanto o restante do mundo é considerado o simples objeto de suas transações. Liszt, por exemplo, ensina que [...] as guerras entre Estados e povos que estejam fora da comunidade internacional não devem ser julgadas de acordo com o Direito da Guerra, mas com base no amor pela humanidade e na cristandade.

Para avaliar a acidez dessa assertiva, há que se relembrar que, durante as guerras coloniais, os conspícuos representantes desses princípios, e.g., os franceses em Madagascar ou os alemães no sudoeste africano, liquidaram as populações locais sem qualquer distinção entre idade ou sexo. O verdadeiro conteúdo histórico do Direito Internacional, então, é a luta entre os Estados capitalistas. O Direito Internacional deve sua existência ao domínio que a burguesia exerce sobre o proletariado e sobre os países colonizados. Estes últimos são organizados em um número de entidades políticas em competição uns com os outros. Com o surgimento do Estado Soviético na arena história, o Direito Internacional assume um significado distinto, tomando a forma de um compromisso temporário entre dois sistemas de classes antagonistas. Este compromisso é resultante de um período em que um dos sistemas (o burguês) já é incapaz de assegurar sua dominação exclusiva e o outro (proletário e socialista) ainda não foi capaz de derrotar esse último. É neste sentido que é possível falar em Direito Internacional do período transicional. A importância desse período de transição consiste na substituição da luta descarada pela destruição (intervenção, bloqueio, não-reconhecimento) por um conflito dentro dos limites de relações diplomáticas normais e trocas contratuais. O Direito Internacional se transmuta em um direito interclasse e essa adaptação às novas funções inevitavelmente ocorre na forma de uma série de conflitos e crises. Esta teoria de Direito Internacional,

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durante esse período de transação, foi inicialmente elaborada na literatura soviética por E. Korovin6. Finalmente, o Direito Internacional adquire um sentido inteiramente diverso conquanto o Direito interestatal das unidades soviéticas. Nestas circunstâncias, é cessada a forma temporária de um compromisso sob o qual a exasperada luta pela existência se oculta. Por causa disto que a oposição, tão característica do período precedente, entre o Direito Internacional e o Estado, desaparece. Os Estados proletários, não tendo se fundido formalmente em uma federação ou união, devem se apresentar, em suas relações mútuas, a imagem de tal proximidade econômica, política e unidade militar, que a medida do “moderno” Direito Internacional se torna inaplicável para eles. Tornando agora a apreciar a forma jurídica do Direito Internacional, nós iremos inicialmente perceber que as teorias ortodoxas consideram, como sujeito das relações jurídicas internacionais, o Estado e somente o Estado, como se este fosse um todo. “Apenas são sujeitos do Direito Internacional, titulares de obrigações jurídicas e poderes legais, o Estado”7. A premissa histórica desta perspectiva é a formação de um sistema de Estados independentes que detém, dentro de suas fronteiras, um poder central suficientemente poderoso para permitir a cada um destes Estados atuar como um todo singular. “A soberania do Estado, i.e., sua independência de qualquer outra autoridade que lhe esteja acima, esta é a base do Direito Internacional”8. Estes pressupostos foram historicamente realizados na Europa e, apenas no fim da Idade Média, no período da conformação de monarquias absolutistas, que consolidaram suas independências da autoridade papal e que quebraram, internamente, a resistência dos senhores feudais. A base econômica foi o desenvolvimento do capital mercantil. A emergência de exércitos permanentes, a proibição de guerras privadas, o início dos empreendimentos governamentais, os impostos e a política colonial – esses são os fatores reais sobre os quais se assentam o coração da teoria do Estado como o sujeito único da comunidade internacional. A Igreja Católica, que havia até então clamado a posição de líder suprema dos Estados cristãos, sofreu um golpe decisivo com a Reforma. O Tratado de Westphalia, que em 1648 proclamou a igualdade como o fundamento entre os Estados católicos e os “heréticos” (os protestantes), é considerado a pedra angular do desenvolvimento histórico do Direito Internacional moderno (isto é, burguês). 6 E. Korovin, International Law of the Transitional Period (1924), Moscow. 7 F. Liszt, Das Volkerrecht (1925), Fleischmann, Berlin, sec.5. 8 Loening, Die Gerichtsbarkeit über fremde Souveräne (1903), sec.83.

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As revoluções dos séculos XVII e XVIII pavimentaram os passos seguintes desta mesma estrada. Elas completaram o processo de separação do poder do Estado do poder privado e converteram o poder político em uma força especial, ato contínuo, transformaram o Estado em um sujeito especial. As relações jurídicas do Estado surgiram independentemente e não se confundiam com as pessoas que, em algum momento passado, eram os titulares da autoridade estatal. Tendo subjugado ela própria ao maquinário estatal, a burguesia elevou a natureza pública da autoridade à sua máxima expressão. Pode ser dito que o Estado apenas se torna totalmente sujeito do Direito Internacional, quando se torna, ele próprio, um Estado burguês. A vitória da perspectiva burguesa sobre a acepção feudal-patrimonial se expressou, entre outras coisas, com a negação da imposição dos tratados dinásticos ao Estado. Assim, em 1790, a Assembleia Nacional da França rejeitou as obrigações assumidas pelos tratados familiares da Casa de Bourbon (1761), sob o fundamento de que Louis XV atuara como um emissário da dinastia e não como um representante da França. É típico que, ao mesmo tempo em que os autores franceses (Bonfils, por exemplo) consideravam adequada esta rejeição das obrigações assumidas por seu rei, os professores monarco-reacionários da Alemanha lecionavam que a Assembleia Nacional francesa violava o Direito Internacional com esta ação. O Papado Romano é um curioso resquício da Idade Média. Após a Igreja entrar na constituição da Itália, em 1870, o Papa continuou a gozar de extraterritorialidade e da prerrogativa de enviar e receber embaixadores, isto é, ela detinha certos atributos essenciais à autoridade soberana. Quando os juristas burgueses foram forçados a explicar este fenômeno que contradizia sua doutrina, eles comumente arguiam que o trono papal ocupava um status quase-internacional e que não seria, em sentido estrito, um sujeito do Direito Internacional. De fato, é óbvio que a influência nos assuntos internacionais do líder da Igreja Católica não é diferente da exercida pela Liga das Nações. Todos os autores classificam esta última como uma exceção dos sujeitos independentes do Direito Internacional, ao lado dos Estados individuais. Como uma força distinta da sociedade, o Estado conseguiu, finalmente, emergir no moderno período burguês-capitalista. Mas isso não significa que a forma contemporânea das relações jurídicas e as instituições individuais do Direito Internacional surgiram apenas nos períodos mais recentes. Ao contrário, é possível traçar suas origens às mais antigas épocas da sociedade de classes e mesmo às sociedades pré-classes. Con-

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siderando que as trocas não foram inicialmente feitas por indivíduos, mas entre tribos e comunidades, se pode afirmar que as instituições do Direito Internacional são às mais antigas instituições jurídicas e legais. Atritos entre as tribos, disputas territoriais, contendas por fronteiras – e acordos como um dos elementos destas altercações – são encontrados nos estágios mais remotos da história da humanidade. A vida tribal pré-estatal dos Iroquois e dos antigos alemães testemunharam a celebração de alianças entre os clãs. O desenvolvimento da sociedade de classes e o aparecimento da autoridade estatal tornaram possível a celebração de contratos e de tratados entre as autoridades. O tratado entre o Faraó Ramsés II e o Rei dos Hititas é um dos mais velhos registros de documentos deste tipo. Outras formas de relações são igualmente universais: a inviolabilidade de embaixadores, o costume de trocar prisioneiros, o pagamento de resgate por reféns, a neutralidade de certas áreas, o direito de asilo. Todas estas práticas eram conhecidas e empregadas por povos de um distante passado. Os antigos romanos observavam várias formas de declaração de guerra (ius fetiale), de conclusão de tratados, de recebimento e envio de embaixadores. Os embaixadores de países estrangeiros gozavam de inviolabilidade, etc. Um conselho especial de juízes-sacerdotes apreciava estas regras em Roma e a maioria dessas leis era, acreditavam, protegidas pelos deuses. A sanção religiosa não impedia, no entanto, que estas leis fossem brutalmente violadas. Por outro lado, diversas normas foram criadas para reger as relações internacionais. Isto foi uma necessidade, tanto para a regulação de conflitos entre as tribos e povos, como para assegurar o intercâmbio comercial entre indivíduos pertencentes a clãs e tribos diferentes. Por fim, estas normas se estenderam para albergar as organizações estatais. Neste sentido que se desenvolveu o chamado Direito Internacional Privado. Por exemplo, durante o período em que Atenas estava florescendo, havia não menos que 45.000 estrangeiros. Eles gozavam de todos os direitos civis e eram protegidos por um representante eleito entre eles (um embrião da representação consular). A proteção aos estrangeiros também se aplicava aos mercadores que fossem residentes temporários. O mesmo fenômeno se deu na Roma antiga quando um órgão especial (praetor peregrinus) foi instituído para apreciar casos judiciais de estrangeiros. Além do mais, as chamadas actiones fictitiae contribuíram para superar os requisitos estritos do procedimento romano que proibia o estrangeiro de defender seus direitos. No entendimento dos juristas romanos, o Direito das Nações (ius gentium) abraçou igualmente o que hoje é denominado Direito Interna-

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cional Público e a inapropriada denominação de Direito Internacional Privado. Conseguintemente, nós lemos nas coletâneas jurisprudenciais: Por Direito das Nações (ius gentium), guerras são travadas, nações são divididas, reinos são formados, propriedades são distribuídas, campos são fechados, construções são erguidas, mercados, compras, vendas, rendas e obrigações são estabelecidas – com a exceção de certas transações que são regidas pelo Direito Civil9.

Desta lista, se depreendem que as características essenciais do Direito Internacional não eram meramente regular as relações entre Estados (fronteiras, guerra, paz, etc.), mas, em contraste com o ius civile, estabelecer as bases para uma comunidade jurídica separada das peculiaridades locais e livre das colorações tribais e nacionais. Essas regras universais não poderiam ser outra coisa senão o reflexo de condições gerais de transações mercantis, i.e., elas foram reduzidas às bases da igualdade de direitos entre os proprietários, a inviolabilidade da propriedade e a consequente compensação por danos e, finalmente, a liberdade de contratação. Os vínculos entre o ius gentium – no sentido de leis inerentemente das nações – e normas regulando as relações entre Estados, foi, conscientemente, fortalecida pelo primeiro teórico do Direito Internacional, Hugo Grotius (1583-1684). Todo o seu sistema foi criado sobre a assertiva de que as relações entre Estados são relações entre senhores de uma propriedade privada. Ele declara que as condições necessárias para a execução da troca, i.e., troca de equivalentes entre proprietários, são as condições para a interação jurídica entre Estados. Estados soberanos coexistem e são contrapostos uns aos outros exatamente da mesma maneira como os proprietários individuais com iguais direitos. Cada Estado pode “livremente” dispor de sua propriedade, mas somente pode ter acesso à propriedade de outro Estado através de um contrato tendo por fundamento a compensação: do ut des (dar algo por algo). A estrutura feudal-patrimonial colaborou enormemente para que a teoria da administração territorial adquirisse um viés claramente civilista. Suseranos ou “Landesherren” consideravam-se proprietários de coisas sobre as quais sua autoridade se estendia; a posse era pensada como um direito privado, sujeita à alienação pelo proprietário. Entrando em relações uns com os outros, eles detêm suas titularidades como os proprietários que dispõem de seus objetos e os alienam de acordo com o sistema de direito privado (romano). Dessa feita, desde os primórdios, 9 1, 5 Digests, 1, 1.

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muitas das instituições de Direito Internacional encontram suas fundações no Direito Privado – incluindo a teoria do modi aecuirendi dominii (modo de aquisição de domínio) nas relações internacionais. Outros métodos são também reconhecidos: herança, doação, presente, compra e venda, troca, ocupação, prescrição. Com base na doutrina do Direito Natural, as ideias de Grotius continuaram a se desenvolver com os seguintes teóricos: Puffendorf (1632-1694), Tomasius (1655-1728), Wolff (1679-1754), Vattel (1714-1767) e Burlamaki (1694-1748). Estes pensadores lançaram os fundamentos para uma abstrata ou filosófica Teoria do Direito. Em contraste com essa escola, que deu preferência a conceitos abstratos, se começou uma seleção e sistematização dos atuais costumes e tratados internacionais e o estudo da prática internacional. Considera-se o fundador desta escola positiva e histórico-pragmática, Zouch (1590-1669), um professor de Oxford e juiz-almirante. Os representantes posteriores foram o holandês Binkerskuch (1673-1743) e Martens (1756-1821). A doutrina do Direito Natural cessou de gozar reconhecimento da maior parte dos juristas na segunda metade do século XIX, no entanto, mesmo nos dias de hoje, as fórmulas de Grotius persistem nos livros de Direito Internacional, sob o pretexto dos chamados “absolutos e básicos direitos” do Estado. Por exemplo, Hareis em Institutionen des Volkerrechts (Instituições de Direito Internacional, de 1888), arrola estes mencionados “direitos básicos”: o direito à autopreservação, o direito à independência, o direito ao comércio internacional e o direito ao respeito. Lê-se exatamente o mesmo em Liszt: Da ideia fundamental [das relações jurídicas internacionais] é que se derivam todo o conjunto de normas jurídicas, por meio das quais são definidos os direitos mútuos e as obrigações dos Estados que não requerem nenhum tratamento especial para o reconhecimento destes para serem mandatórios. Elas constituem uma base firme das regras jurídicas não-escritas do Direito Internacional e são os mais antigos, mais importantes e de sacro conteúdo10.

É mais do que óbvio que estamos lidando aqui com as ideias derivadas do Direito Civil, tendo por fundamento a igualdade entre as partes.

10 F. Liszt, International Law (1913), Russian translation from the 6th edition, edited by V.E. Grabar, p. 81.

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Em certo grau, a analogia pode ser estendida. O direito privado burguês assume que os sujeitos são formalmente iguais, não obstante permita, simultaneamente, a desigualdade real de propriedade. De igual forma, o Direito Internacional burguês, em princípio, reconhece que os Estados possuem direitos iguais, conquanto, na realidade, eles são desiguais em significância política e em seu poderio econômico e militar. Por exemplo, cada Estado é formalmente livre para selecionar os meios que entender necessário para aplicar no caso de infrações dos seus direitos; No entanto, quando um Estado central deixa saber que irá enfrentar o dano com ameaça ou o uso direto de força, um pequeno Estado meramente oferecerá resistência passiva ou será compelido a ceder11.

Estes benefícios dúbios da igualdade formal não são aproveitados por todas as nações, em especial por aquelas que não desenvolveram uma civilização capitalista e ainda se engajam, nas relações internacionais, não como sujeitos, mas como objetos da política colonial dos Estados imperialistas. Nas transações normatizadas pelo Direito Civil, no entanto, as relações entre as partes assumem a forma jurídica não apenas em decorrência de que derivam logicamente dos objetos (da lógica do ato de troca, mais precisamente), mas também porque nesta forma, encontra verdadeiros suporte e proteção do aparelho judicial e na autoridade estatal. A existência jurídica é materializada em uma dimensão especial, apartada da intrusão de fato puro. Na sua linguagem, o advogado expressa isto asseverando que cada direito subjetivo depende de uma norma objetiva e que as relações jurídicas privadas surgem da ordem público-jurídica. Ainda, no Direito Internacional, os sujeitos das relações jurídicas são os Estados por eles mesmos, os próprios titulares da autoridade soberana. Uma série de contradições lógicas segue este fato. Para a existência do Direito Internacional, é necessário que os Estados sejam soberanos (por soberania, em todos os casos, entende-se o equivalente à capacidade jurídica). Se não há soberania estatal, então não existem sujeitos do intercurso jurídico internacional e, por derradeiro, não há Direito Internacional. Mas, por outro lado, se existem Estados soberanos, então, isto significa que as normas do Direito Internacional não são normas de Direito? No caso oposto, eles devem possuir um poder externo que contenha o Estado, i.e., limite sua soberania. Conclusão: 11 V.E. Grabar, The Basis of Equality between States in Modern International Law (1912), Publishing House of the Ministry of Foreign Affairs, book 1.

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para que o Direito Internacional exista, é necessário que os Estados não sejam soberanos. A jurisprudência burguesa já dedicou grandes e infrutíferos esforços para solucionar esta contradição. Por exemplo, Pruess (o autor da atual constituição alemã, a de Weimar) tendeu à posição de sacrificar o conceito de soberania em defesa do Direito Internacional. Em sentido contrário, escritores como Zorn e, mais recentemente, Wendel, estão prontos a abandonar um Direito Internacional supraestatal. No entanto, estes argumentos dogmáticos não alteram em nada a realidade. Não importa quão eloquente sejam as provas da existência do Direito Internacional, a ausência de uma força organizacional que seja capaz de exercer uma coerção sobre o Estado, tal qual o Estado coage uma pessoa individual, continuará a ser um fato. A única garantia real das relações entre Estados burgueses (e no período transicional, entre Estados de outra natureza de classe) continuará a ser à base da troca de equivalentes, i.e., sob o fundamento jurídico (fundado no mútuo reconhecimento de sujeitos) do real equilíbrio de forças. Dentro dos limites estabelecidos pelo balanceamento de poderes dado, outras questões serão decididas pelos compromissos e pelo comércio, isto é, com base no Direito. Mesmo nesses casos, há a qualificação de cada governo clamando pelo Direito quando seus interesses o demandarem e, em cada outra hipótese, irá evitar aceitar uma norma se não lucrativa para ele12. Em períodos críticos, quando o equilíbrio de forças oscilou perigosamente, quando os “interesses vitais” e mesmo a própria existência do Estado estavam na agenda, o destino das normas de Direito Internacional se torna extremamente problemático. Isto particularmente é verdade para o período imperialista, com a extraordinária intensificação da competição derivada das tendências monopolísticas do capital financeiro e pela completa partilha do mundo, fazendo com que cada expansão só seja possível à custa do roubo de outro Estado. O melhor exemplo para isto é representado pelo último conflito, de 1914-1918, durante o qual, ambos os lados continuamente violaram o Direito Internacional. Em tal lamentável situação, os juristas burgueses podem apenas se consolar com esperança de que, o quão profundamente o equilíbrio for alterado, ele irá, apesar de tudo, ser restabelecido: a mais violenta das guerras irá terminar, as paixões políticas surgidas com estas guerras irão gradualmente alcançar a reconciliação, os governos irão retornar à objetividade e ao compromisso e, por fim, as normas de Direito Internacional irão novamente reinar. No entanto, soma-se a essa 12 L. Oppenheim, International Law: A Treatise (1905), Longmans, Green & Co., v.1, p. 65.

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esperança o argumento favorável à natureza positiva do Direito Internacional de que cada Estado violando-o, tenta-se descrever os acontecimentos como se nenhuma transgressão tivesse ocorrido. Encontramos em Ulman, curiosamente, a referência à hipocrisia dos Estados como uma prova da natureza positiva do Direito Internacional. Outro grupo de juristas, simplesmente nega qualquer existência de um Direito Internacional. Entre estes, temos o fundador da escola do positivismo inglês, Austin. Definindo “verdadeiramente o Direito” como uma ordem emanada de uma autoridade determinada e capaz de impô-la à força no caso de desobediência, Austin entende que o Direito Internacional é contradictio in adjecto. A medida que é Direito, não é internacional; a medida que é verdadeiramente internacional, não é Direito.

Gumplowicz detém a mesma opinião: Em um sentido próprio, Direito Internacional não é Direito assim como o Direito do Estado não é Direito13.

Lasson afirma que [...] as normas de Direito Internacional são regras da sabedoria do Estado, as quais o Estado observa, tendo em mente seu bem-estar e, das quais ele pode se desviar assim que seus interesses vitais demandem14.

Mas a perspectiva de Austin, Lasson, Gumplowicz e outros não é compartilhada pela maioria dos juristas burgueses. A negação escancarada do Direito Internacional não é politicamente lucrativa para as burguesias, pois as expõem para as massas e, desta maneira, cria óbice à preparação de novas guerras. É muito mais benéfico, para os imperialistas, atuarem à guisa do pacifismo e como defensores do Direito Internacional. No mais, o escritor inglês Walker15 censura as reclamações terminológicas de Austin, que não quis definir o Direito Internacional como Direito propriamente e exclama:

13 L. Gumplowicz, Allgemeines Staatsrecht (1907), sec. 415. 14 G. Lasson, Prinzip und Zukunft des Völkerrechts (1871), p. 49. 15 T.A. Walker, A History of the Law of Nations, n. d., p. 19.

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[...] é melhor permitir que a paz reine sem uma terminologia correta, do que permitir que a exatidão da linguagem exista com o espírito de desordem!

Os juristas que fazem um culto à força nas relações internacionais são simultaneamente inservíveis à burguesia (que não precisa de palavras, mas de violência real) e também perigosos, uma vez que acobertam as irreconciliáveis contradições da sociedade capitalista e comprometem a paz e a tranquilidade necessárias mesmo por um ladrão quando já está satisfeito e aproveitando-se de seus botins. Da perspectiva marxista, esta crítica niilista do Direito Internacional é um erro, pois, enquanto expõe o fetichismo em uma área, o faz ao custo de consolidá-lo em outras. Esta precária e instável natureza do Direito Internacional é contratada às outras, estáveis, firmes e absolutamente naturais vertentes do Direito. De fato, nós temos uma diferença de gradação. É apenas na imaginação dos juristas que a totalidade das relações jurídicas são inteiramente dominadas pela vontade do Estado. Na realidade, a maior porção das relações do Direito Civil ocorre sob a influência das pressões limitadas pelos próprios sujeitos. Além do mais, apenas sob a perspectiva do fetichismo jurídico que é possível pensar que a forma jurídica de uma relação altera ou destrói sua essência real e material. Esta essência, ao contrário, é sempre decisiva. A formalização de nossas relações com os Estados burgueses, por meio de tratados, é parte de nossa política externa, e é sua continuação em uma forma especial. Uma obrigação advinda de um tratado não é nada senão uma forma especial de concretização de relações políticas e econômicas. Mas assim que um grau apropriado de concretização é atingido, ele pode ser tomado em consideração e, dentro de dados limites, ser tomado como um objeto de estudo especial. A realidade deste objeto não é nada menos que a realidade de qualquer Constituição – ambas podem ser derrubadas pela intrusão da tempestade revolucionária. É lugar comum distinguir um componente geral do especial em relação à sistematização do Direito Internacional. A primeira versa sobre a teoria do Estado como o sujeito do Direito Internacional. Aqui reside a teoria da soberania, as várias formas de limitá-la, a teoria do Direito Internacional e da capacidade jurídica, entre outros. Começando da tradicional divisão do Estado em três elementos – Autoridade, Território e População – a maior parte das publicações inclui, dentro deste componente geral, a regulação de questões territoriais (fronteiras, águas territoriais, métodos de aquisição territorial, entre outros), e temas sobre a população (cidadania, nacionalidade, cláusulas de preferência de um 29

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credor em relação aos outros). O componente especial considera a organização e as formas de relações jurídicas internacionais – aqui a representação diplomática e consular, cortes internacionais e outras organizações internacionais, a teoria dos tratados internacionais, etc. Outros delineamentos conceituais são usualmente traçados, tais como tratados internacionais sobre regulação (transportes, comércio, navegação, correios e telégrafos, batalhas contra epidemias, a proteção de propriedade). Finalmente, chega à parte dedicada ao Direito da Guerra. Este é comumente prefaciado com considerações sobre os métodos pacíficos de resolução de conflitos (arbitragem). O Direito da Guerra pode ser dividido em Direito Militar, Direito da Guerra Marítima e a Teoria dos Direitos e Obrigações dos Estados neutros. Tradução Vinicius Valentin Raduan Miguel

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2 A genealogia da noção de direito internacional Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Introdução

A disciplina de direito internacional foi batizada, em 1780, pelo filósofo Jeremias Bentham, em seu livro An Introduction to the Principles of Moral and Legislation. Na tradução para o francês feita pelo suíço Étienne Dumont, em 1802, a expressão international law tornou-se droit international, e a nova denominação encontrou acolhida imediata entre a maioria dos doutrinadores e os programas oficiais de ensino. Dumont também inseriu o adjetivo “público” ao final (TRUYOL, 1952, p. 19). A tradução, de fato, revela-se imperfeita. Nation, em francês, provém de naissance, nascimento; enquanto, em inglês, conserva-se a polissemia de nação, país ou Estado. A ênfase de Bentham, no entanto, incidia sobre o prefixo “inter”. O pensador desejava enfatizar a ideia de que este ramo do Direito aplicava-se entre os povos; noção que, segundo Bentham, o primeiro nome da disciplina, Direito das Gentes, mantinha ambígua. O que Bentham julgava ambiguidade constituía outra concepção bastante diferente. De fato, o conceito de direito das gentes não equivale, de modo necessário, ao de direito internacional. Se este último for compreendido como um direito positivo entre Estados soberanos todos

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iguais juridicamente entre si, então, quiçá, o primeiro jusinternacionalista teria sido Emerich de Vattel. De fato, não há correspondência alguma entre os títulos de um sumário de um manual de direito internacional e os das obras de Hugo Grócio ou daquelas dos escolásticos espanhóis. Estes autores escreveram sobre um tema que guarda semelhanças com o direito internacional, mas que não coincide perfeitamente com ele. Trata-se do direito de guerra medieval, a doutrina da guerra justa. No final do século XIX e início do século XX, começa a surgir uma literatura que considera o jurista de Delft e seus precursores escolásticos como legítimos expoentes da tradição da guerra justa. Isso ocorre porque se passa a compreender esta doutrina como a origem do direito internacional. “A Idade Média viu surgir algumas instituições de direito das gentes, mas elas eram mirradas demais para que se pudesse levá-las em consideração. Apenas o direito da guerra se desenvolveria seriamente; ele forma o núcleo do direito internacional”1.

Antes mesmo do aparecimento de estudos autônomos sobre o direito das gentes, já havia trabalhos sobre alguns dos seus institutos – o direito das embaixadas, do comércio, a escravidão. O direito da guerra corresponderia à investigação mais antiga. Existe, não obstante, certo exagero em afirmar que a disciplina contemporânea de direito internacional originou-se, em sua inteireza, da doutrina medieval do direito da guerra. À exceção de Suárez e Grócio (pode incluir-se entre estes dois, não sem controvérsias, Vitória e, possivelmente, Vázques de Menchaca e Gentili), o conceito de jus gentium dos autores da tradição da guerra justa não equivale a um direito entre os povos, mas a um direito nacional comum, e ainda se encontraria imerso na órbita romana de Ulpiano – mencionada a seguir. Boa parte desses escritores cristãos nem mesmo apresenta a expressão jus gentium. De acordo com uma imagem bastante sugestiva de Haggenmacher, parece possível comparar a evolução da doutrina da guerra justa para o direito internacional com o crescimento de uma planta: se este corresponde a uma flor, o desenvolvimento do direito da guerra se identifica com o caule (HAGGENMACHER, 1983, p. 77). 1 “Le moyen âge voit se former quelques institutions du droit de gens, mais elles sont trop chétives pour qu’on puisse em tenir compte. Seul, le droit de la guerre se développe sérieusement; il forme le noyeau du droit International (NYS, 1882, p. 7)”. Confira, a título de ilustração, além da recém citada, outra obra que estabelece a origem do direito internacional no direito de guerra” (VANDERPOL, 1919).

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Quando Aristóteles introduz, no livro V da Ética a Nicômaco, a sua conhecida distinção entre justo natural e justo legal (ARISTÓTELES, 1973. p. 331. livro V, 7), também legou à posteridade (sobretudo à sua interpretação pela Escolástica) a noção de que o direito natural seria imutável, e o direito positivo variável de lugar para lugar. Um apresenta uma feição universal, o outro particularista. Um encontra-se radicado na verdade, na essência eterna das coisas, o outro na opinião, na doxa, tão inconstante como as circunstâncias humanas. Entretanto, essa bipartição teria vida curta. Um terceiro termo seria incluído: o direito das gentes. Esse ramo reuniria elementos dos outros dois, seria positivo, mas aplicável a todos os homens. Para um internacionalista contemporâneo, a natureza desse direito não constitui um problema: a sua característica de universalidade não deriva da razão natural; trata-se tão- somente de âmbito de validade espacial que cobre todos os Estados. Mas essa aparente simplicidade revela-se enganadora. A verdade é que o direito das gentes constitui um tertius genus, um meio-termo entre o direito natural e o direito positivo. O conceito de direito das gentes só se aproxima do de direito internacional quando passa a designar mais do que uma realidade “extranacional”; não só um direito que ultrapassa as fronteiras do Estado, mas que rege as relações entre os povos. A Concepção Romana

O direito romano exerceu profunda influência sobre os autores de direito internacional. Até o século XVIII, além das fontes, Roma legou a todo o Ocidente, inclusive ao Reino Unido, uma terminologia jurídica comum. Sempre que possível os autores se serviam do vocabulário e das fontes romanas. Em verdade, essas referências nada diziam sobre o direito internacional, mas constituíam uma tradição – bem como uma fonte de inspiração – obrigatória. As normas sobre a propriedade privada (dominium), por exemplo, foram aplicadas sem a menor distinção para a soberania territorial; das regras sobre os contratos internos se aduziram os tratados internacionais; as disposições sobre o mandatum se estenderam às funções dos agentes diplomáticos (NUSSBAUM, 1953, p. 14). Do mesmo modo, o conceito de direito das gentes é tomado dos romanos: corresponde à tradução literal de jus gentium. Surge primeiro em Roma, durante a organização tribal, mesmo antes da monarquia – que foi instituída ao mesmo tempo em que a Cidade, em 754 a.C. – com um significado bastante diferente de direito internacional. A organização social da península itálica baseava-se, nesses princípios, num sistema

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denominado “gentílico”, porque constituía o direito das gens, das pessoas que pertenciam ao mesmo clã ou a clãs aparentados. Era possível distinguir entre “o jus gentilicum que regia as relações entre as classes superiores e as inferiores no seio de uma mesma gente, o jus gentilitatis que compreendia as leis em vigor no seio da classe superior dos gentis e o jus gentium que regulava as relações entre as diferentes gentes”2. A gens representava tanto a fonte normativa como o fato jurídico por excelência; as normas jurídicas originavam-se e destinavam-se à gens romana. Mais tarde, o jus gentium romano passou a aplicar-se àquelas relações entre os estrangeiros (peregrini) entre si e com os cives romanos. Tratava-se de um conjunto de ordenações cujos destinatários eram seres humanos, não organizações políticas. Além disso, consistia num direito intra gentes, não inter gentes. A partir de 242 a.C., era ministrado por um praetor peregrinus, uma figura itinerante; fator que permitiu que seus editos pudessem harmonizar propostas culturais e tradições jurídicas distintas. O pretor precisava, pois, privilegiar os acordos reais, não os vínculos formais, a substância, em vez da forma, pois esta é própria de uma só comunidade e não se pode universalizá-la com facilidade. Nos contratos, deveria privilegiar a volutas, o consensus, ainda que a forma fosse precária. Essa qualidade destaca-se do restante do direito romano, formalista por essência. Mesmo nos seus primórdios, já se delineia a tarefa fundamental desse ramo: “governar as relações entre os ‘estranhos’, entre seres que não pertencem à mesma tribo, ao mesmo clã, à mesma nação, à mesma cultura, mas que compartilham somente uma humanidade comum”3. O jus gentium encerra consigo a exigência de um direito universal, de um direito que deveria ser, em princípio, aceito por todos os homens, deveria ser um ramo não nacional, mas aberto à diferença. Esse ramo pertencia, de fato, ao direito positivo, mas diversos elementos o aproximavam do direito natural. Como o orgulho romano impedia que se adotasse, de maneira direta, regras jurídicas externas, o jus gentium recepcionava e re-elaborava os usos e costumes dos outros povos. Introduziu-se assim um corpo de jus aequum, que pouco tem a ver com a doçura ou a mitigação dos rigores da lei – conforme uma definição bastante corrente, no Brasil, de equidade. Tratava-se antes de uma preferência pela vontade real, em vez de uma fórmula instrumental; uma exigência de universalidade para favorecer a comunicação. Ademais, a 2 “(...) le jus gentilicium qui gouvernait les relations entre les classes supérieures et les classes inférieures au sein d’une même gente, les jus gentilitatis qui comprenait les lois en vigueur aun sein de la classe supérieure des gentils et le jus gentium qui réglait les rapports entre les différents gentes” (LAGHMANI, 2003, p. 11). 3 “(...) gobernar las relaciones entre ‘extraños’, entre seres que no pertenecen a la misma tribu, al mismu clan, a la misma nación, a la misma cultura sino que comparten sólo una común humanidad” (VIOLA, 2004, p. 166).

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noção de bona fides, de fidelidade com a palavra empenhada, ocupava posição central. A boa fé revela-se fundamental para a estabilidade e a perenidade das relações comerciais e constitui uma garantia de credibilidade pessoal. Além de relações comerciais, Roma estabelecia com os estrangeiros relações de patronato, amicitia e hospitium. O jus gentium, assim, ocupava-se também da preservação dos mores. Esses conteúdos éticos tornavam o direito das gentes mais próximo do direito natural do que do direito positivo (VIOLA, 2004, p. 170). Dessa feita, como o jus gentium apresentava-se como um conjunto de normas universais, com um processo de formação bastante vinculado ao do costume – o qual se perde em tempos imemoriais –, não se deve estranhar o fato dele ter sido, não raro, confundido com o próprio direito natural. Cícero mesmo não faz distinção entre o jus naturalis e o jus gentium. No De Officiis, ele investiga a natureza das obrigações que proíbem prejudicar o próximo: “Ora, por certo isso não se dá apenas por força da natureza, isto é, pelo direito das gentes, mas também em virtude das leis dos povos, que sustentam a coisa pública em cada cidade. Elas preceituam igualmente que não é lícito prejudicar os outros em benefício próprio.” Adiante, Cícero demonstra a validade dessa lei mesmo diante da torpeza dos costumes e a corrupção da lei civil: Embora eu constate que semelhante embuste não é considerado torpe em virtude da perversão dos costumes, nem é proibido pela lei ou o direito civil, creio que a lei da natureza o proíbe. Com efeito, existe uma sociedade – já se disse muitas vezes, mas convém repeti-lo outras muitas – bastante ampla, a sociedade de todos os homens; uma mais restrita, a dos que integram a mesma família, e, por fim, uma ainda menor, as dos que são da mesma cidade. Quiseram, pois, nossos antepassados que existisse, por um lado, o direito dos povos, por outro, o direito civil. O direito civil não precisa ser necessariamente o direito dos povos, mas o direito dos povos precisa ser necessariamente o direito civil.4

Perceba-se que o direito civil, o direito da cidade, encontra-se contraposto ao direito das gentes, o direito que decorre da natureza, da ampla sociedade dos homens. Todo direito origina-se de uma sociedade: o 4 “Neque vero hoc solum natura, id est jure gentium, sed etiam legibus populorum, quibus in singulis civitatibus respublica continetur, eodem modo constitutum est, ut non liceat sui commodi causa nocere alteri.” E, adiante: “Hoc quanquam video propter depravationem consuetudinis neque more turpe haberi neque aut lege sanciri aut jure civilii, tamen natura elege sancitum est. Societas enim est (quod etsi saepe dictum est, dicendum tamen est saepius), latissime quidem quae pateat, hominum inter homines, interior eorum, qui ejusdem gentis sunt, propior eorum qui ejusdem civitatis. Itaque majores aliud jus gentium, aliud jus civile esse voluerunt. Quod civile, non idem continuo gentium; quod autem gentium, idem civile esse debet.” (CICERÓN, s/d. Liber III, V e XVII; tradução utilizada: CÍCERO, 1999. p. 136, 157).

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direito civil, de uma sociedade pequena que é a própria cidade, e o direito das gentes de uma magna communitas humana, a sociedade de todos os homens. Os pensadores romanos, influenciados pela filosofia estóica, ao confrontar o direito civil com o direito das gentes, promoviam generalizações que alteravam de maneira significativa o conteúdo do termo. O jus gentium histórico dos romanos utilizava a experiência estrangeira em casos muito particulares; contudo, o jus gentium filosófico compreendia normas e instituições jurídicas que se encontravam por todas as partes, como, entre outras, as relativas ao matrimônio, à defesa e à proteção da propriedade, às obrigações de reparar o dano. Tratava-se, pois, de um direito universal comum, o que dificultaria muito a distinção com o direito natural. Os grandes juristas romanos também apresentavam essa indeterminação. Nas compilações, eles não se limitavam a arrolar os institutos do direito das gentes, mas também buscavam defini-lo, e era a filosofia grega, não a prática jurídica corrente, que servia de matriz. Cumpre salientar que, entre as diversas matérias reguladas por esse jus gentium filosófico, algumas possuíam caráter internacional, como o direito de legação e as regras sobre o botim e os despojos de guerra, mas a maior parte concentrava-se no direito privado, acrescido de alguns temas de direito público interno, como o status dos deportados. Ainda não se mostra possível, portanto, estabelecer qualquer correlação com o direito internacional. No Digesto, o seu título inicial comporta duas definições principais de jus gentium, uma de Gaio e a outra de Ulpiano; ambas remetem o ramo a um fundamento natural. Para Gaio, Em todos os povos que são regidos pelas leis e pelos costumes, serve-se tanto do direito que lhes é próprio, como do direito que é comum a todos os homens. Com efeito, o direito que cada povo estabeleceu para si é próprio à cidade ela mesma; mas o direito que a razão natural estabeleceu entre todos os homens é uma regra segundo a qual todos observam igualmente e se chama direito das gentes, na medida em que é o direito que todas as nações se servem.5

Há, portanto, duas categorias de normas: o direito civil e o direito das gentes. Aquele é próprio de cada Estado, que é também seu autor; este é comum a todos os homens e se manifesta de forma igual em todos 5 “Omnes populi, qui legibus et moribus reguntur, partim suo proprio, partim communi omnium hominum iure utuntur nam quod quisque populus ipse sibi ius constituit, id ipsius proprium civitatis est vocaturque ius civile, quasi ius proprium ipsius civitatis: quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque ius gentium, quasi quo iure omnes gentes utuntur.” (IUSTINIANUS IMPERATOR, 1908, Digesto, 1, 1, 9).

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os povos. Os povos não o criam, ele decorre de um princípio superior, a naturalis ratio. Trata-se de um direito anterior ao direito positivo, originado num estado de inocência primitiva. Percebe-se, de maneira clara, a oposição entre o direito de um povo e aquele comum a todos os povos, um direito baseado na vontade humana e outro decorrente da reta razão, um direito escrito e outro não-escrito. Não há, pois, problema algum em substituir a expressão jus gentium pela de direito natural. lpiano, por sua vez, acrescenta um terceiro termo a essa divisão das fontes: jus naturale. Sua exposição principia por este nome, o qual compreende as funções vitais mais elementares – a união dos sexos, a procriação, a educação da prole – que a natureza reserva a todos os seres vivos, humanos ou animais. Esse jus naturale parece remontar à lei natural dos estoicos. Por oposição a esse conceito, o autor define o direito das gentes: “O direito das gentes é aplicado às gentes humanas, que por meio do entendimento pode depreender facilmente da natureza, e, entre todos os animais, apenas o homem compartilha [essa lei] entre si”6. O direito das gentes constitui a porção do direito natural que se aplica somente aos seres humanos. Essa divisão remonta a uma concepção pitagórica que pressupõe a existência de uma idade de inocência, uma era de ouro, a qual se contrapõe a uma idade do pecado, uma era de ferro. Nos tempos antigos, tudo seria comum, o homem seria livre e se encontraria inserido de modo direto na natureza. Depois, haveria seguido a perversão e o egoísmo, e teria instaurado-se a propriedade privada e outras instituições excludentes. Em Ulpiano, o direito natural corresponde ao período idílico, e o direito das gentes o período posterior (BARCIA TRELLES, 1933, p. 424). Apesar da inserção desse terceiro termo, tanto Ulpiano como Gaio consideram – consoante os ensinamentos de Aristóteles – o direito civil um ius proprium, e o opõem a um ius commune. A analogia ao estagirita revela-se, de fato, imperfeita, pois, se em Gaio o direito comum equivale ao direito das gentes, em Ulpiano o ius commune seria o direito das gentes e também o direito natural. Neste autor, tudo o que não for direito civil é direito comum. Portanto (com a insistência na analogia), uma vez que o direito civil mostra-se particular e mutável, o jus gentium compartilharia com o jus naturale a sua imutabilidade. Caso essa característica se imponha aos homens em virtude de um princípio superior, como a razão natural de Gaio, então o direito das gentes de Ulpiano não pertenceria ao direito positivo e não corresponderia à realidade histórica do jus gentium 6 “Ius gentium est, quo gentes humanae utuntur, quod a naturali recedere facile intellegere licet, quia illud omnibus animalibus, hoc solis hominibus inter se commune sit.” (IUSTINIANUS IMPERATOR, 1908, Digesto 1, 1, 1, 4).

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romano. Possuiria apenas uma natureza filosófica e helênica. Para evitar essa conclusão, a característica “comum” do direito das gentes de Ulpiano precisaria derivar de uma coincidência de institutos jurídicos entre os diversos povos. Ou Ulpiano seria um mau jurista, por não descrever o jus gentium histórico com a devida acuidade, ou seria um mau filósofo, por desconhecer os fundamentos da bipartição aristotélica. Em qualquer uma das interpretações, deve constatar-se que nem o jus gentium de Ulpiano nem o de Gaio assemelham-se ao direito internacional contemporâneo. Ainda que se apliquem aos mais diferentes povos, os verdadeiros sujeitos não são as gentes ou os populi que os autores mencionam. Como no direito civil e no direito natural, os sujeitos são os indivíduos. Em Ulpiano, a tônica repousa sobre o adjetivo humanae; o emprego do substantivo gentes, em vez de genus humanum – expressão a qual, deve salientar-se, foi empregada mais acima no texto –, serve para manter o jogo de palavras com o termo jus gentium e o valor probatório do qual ele supostamente deriva. O mesmo ocorre com Gaio. O termo populi não equivale ao sujeito do jus gentium nem em direito nem na sintaxe, pois o apud inserido no final o torna um complemento de lugar. Além disso, convém ressaltar a repetição de omnes, que aparece quatro vezes na frase. “Longe de ser ius inter gentes ou inter populos, o direito das gentes dos nossos dois autores deve ser entendido como inter homines”7. Os indivíduos são os sujeitos; mais precisamente os homens livres, por causa da oposição ao direito civil que se dirige aos homens que possuem, além da liberdade, o status civitatis. A concepção medieval

O conceito de direito natural de Ulpiano, próprio tão somente aos animais, iria sofrer repúdio pelos autores do Medievo. Concomitante a essa repulsa, iria surgir também o problema da individualidade do direito das gentes. Como visto, a Concordia de Graziano constitui um marco para tratar do direito da guerra. Da mesma forma, ela enuncia uma definição de jus gentium extraída de Santo Isidoro que haveria de se tornar célebre. No capítulo II das Etymologiae, o arcebispo de Sevilha, Santo Isidoro, procede a uma distinção bastante interessante entre leis humanas e divinas. Estas decorrem da natureza, aquelas dos usos; por essa razão, as leis humanas são variáveis de lugar para lugar, conforme a vontade dos povos, enquanto as divinas são imutáveis. Cumpre salientar que lex, para 7 “Loin d’être ius inter gentes ou inter populos, le droit des gens de nos deux auteurs doit s’entendre inter homines” (HAGGENMACHER, 1983, p. 318).

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Santo Isidoro, não significa jus; aquele termo constitui, ao lado de mores, espécie deste. O jus divide-se em natural, civil e das gentes, como uma categoria à parte. O direito civil é o direito positivo da cidade, e o direito natural destina-se somente aos homens. Resta definir o jus gentium. Sem defini-lo propriamente, o autor principia por indicar sua origem etimológica e recorda o conceito de Gaio, mas introduz uma sutil diferença: o direito das gentes apresenta-se “quase” universal. Então, enumera os institutos do qual este ramo se ocupa: O direito das gentes trata da ocupação, da edificação e da fortificação de castelos e cidades, da guerra, dos cativos de guerra, da escravidão, da recuperação de direitos pelo postliminium, dos acordos de paz, das tréguas, da inviolabilidade das embaixadas, e da proibição do casamento entre pessoas de religiões diferentes. E é assim o direito das gentes, pois é a lei dos usos de todas as gentes8.

A definição por meio da enumeração dos institutos já indicava uma tendência posterior que iria culminar na autonomia do jus gentium face à ratio naturalis. O modo medieval de se fazer jurisprudência – ciência do direito –, denominado de mos italicus por causa da influência de juristas como Baldo, Paulo Castrensis e Bártolo de Sassoferrato, consistia na redação de longos tratados sobre tudo o que havia para se conhecer do Direito de então. Os primeiros manuais apenas ressuscitavam o direito romano – o qual se considerava o pináculo da perfeição em termos jurídicos –; a seguir, principiou-se a combinar o legado romano com as instituições germânicas. Havia, pois, uma acentuada característica universalista (ainda que, por universal, se entenda europeia), e, de maneira bastante vagarosa, é que começou a despontar uma ou outra obra que versasse sobre temas do direito civil, interno a um só povo. Discorria-se por meio de topói e de questões formuladas pelos autores que já haviam escrito sobre o tema. Aos poucos, os tratados passaram a versar sobre questões jurídicas específicas, embora conservassem ainda a abordagem antiga9. Na área que seria o direito das gentes, surgem diversas 8 “Ius gentium est sedium occupatio, aedificatio, munitio, bella, captivitates, servitutes, postliminia, foedera, pacis, indutiae, legatorum non violandorum religio, conubia inter alienigenas prohibita. Et inde ius gentium, quia eo iure omnes fere gentes utuntur.” (ISIDORUS HISPALENSIS EPISCOPUS, 1911, V, VI). 9 Tratava-se da Retórica, considerada uma verdadeira vir civilis, uma virtude cidadã. A Lógica destinava-se somente à filosofia especulativa e à Teologia, que era a magna ciência. Santo Tomás, v.g., insere esta, consoante a conhecida gradação do conhecimento exposta pelo Estagirita no capítulo I do livro I da Metafísica, no cume da hierarquia, pois seria uma disciplina mais especulativa do que prática e, ainda, superior às demais. Cabe lembrar que o próprio Aristóteles havia estabelecido a Metafísica no topo da hierarquia, mas ela se chama de Metafísica somente quando aborda o ens commune; “‘filosofia primera’, en cuanto considera las causas primeras de las cosas; ‘teologia’, en cuanto considera las sustancias que no tienen materia, Dios, etc” (SCIACCA, 1976, p. 50). É o

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monografias sobre o direito das embaixadas, sem mencionar os livros da tradição da guerra justa (WIJFFELS, 1995-1996, p. 39). Alguns autores (RIVIER, 1883, p. 9-10) notam a semelhança entre a “definição” isidoriana e a moderna disciplina de direito internacional. Longe de ser fortuita, essa enumeração delimitaria três grandes círculos temáticos: um concernente à instituição do poder político, outro à guerra e às suas consequências e o terceiro ao direito dos tratados e das embaixadas. Cumpre salientar que, de fato, alguns institutos já assemelham o direito das gentes de Isidoro ao direito internacional contemporâneo. Contudo, outros – como é o caso das núpcias interditas aos estrangeiros – causariam espécie a um internacionalista. Este último, ainda, escapa a qualquer um dos círculos. Outros autores (WALKER, 1899, v. I. § 85), contudo, não encontram no jus gentium isidoriano qualquer vestígio de direito internacional. Embora Isidoro rejeite a definição de Ulpiano de direito natural, quando decide abordar o direito das gentes, sua imaginação não o conduz a outras paragens. O bispo de Sevilha teria apenas “esbarrado” no termo jus gentium, por causa da autoridade que os textos antigos haviam adquirido, e, assim, ele precisaria deter-se sobre o tema sob pena de seu texto tornar-se incompleto. A vagueza do texto permite, até mesmo, uma especulação que Francisco Suárez fará anos depois com a sua conhecida divisão de jus inter gentes e jus intra gentes. O direito das gentes de Isidoro equivaleria a este último, uma espécie de direito privado comum aos povos. O adjetivo “comum” é proveniente de uma mera coincidência, e não de uma determinação que obriga a todos os Estados, o que, de qualquer modo, não deixa de constituir uma diferença em relação ao jus gentium romano. Já são normas criadas pelo engenho humano – os usos, o costume: eo iure omnes fere gentes utuntur –, como o direito civil, e aplicáveis aos mais diferentes povos e homens, como o direito natural. Ainda assim, parece duvidoso que Isidoro haja distanciado-se de todo da órbita romana, uma vez que boa parte dos seus institutos coincidem com os do jus gentium helênico dos juristas romanos. Como o direito das gentes não ocupava o centro das atenções do autor, revela-se provável que o termo aludisse à realidade jurídico-política da Alta Idade Média: uma cristandade europeia bastante dividida, governada pelo papa e pelo imperador – uma autoridade mais simbólica do que efetiva tríplice aspecto de uma única disciplina. Todavia, as ciências práticas, como a Ética e o Direito, que visam o bem viver, não são expressas de acordo com os cânones da Lógica formal, mas conforme outra lógica que procura o convencimento e a persuasão: a Retórica e a Tópica.

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–, unida por uma vaga comunhão de interesses e por um direito positivo consuetudinário comum, as reminiscências do direito romano. Isso poderia explicar o caráter positivo do direito das gentes isidoriano, sem distanciá-lo das fontes antigas. Assim se apresentava o problema da autonomia do direito das gentes: o ramo contém institutos quem emanam da vontade humana, mas compartilha uma (quase) universalidade com o direito natural, o que remete ao problema de sua fundamentação. Em Ulpiano, ele constitui uma espécie do gênero direito natural, mas ele abrange normas de direito positivo. Os glosadores procuraram resolver essa questão ao cindir o direito natural ou o direito das gentes em diversas espécies. Isso obedecia a uma ideia de desenvolvimento progressivo do direito natural ao direito positivo num quadro temporal e genético. Assim, encontra-se na Summa Institutionum de Placentino um prima iura naturalia e um secunda iura naturalia, que correspondem, respectivamente, ao direito natural e das gentes. Etienne de Tournay, na Summa ad decretum, menciona, da mesma forma, um ius naturale primitivum, anterior à instituição da propriedade privada; esta própria do jus gentium. Diversas glosas relativas às Institutas distinguem um jus gentium criado junto com o homem, e outro criado por este: o primeiro se inspira em Gaio, e o segundo equivale ao direito das gentes positivo (HAGGENMACHER, 1983, p. 326). Esse tipo de solução iria perdurar até Grócio. Ela, de fato, possibilita conceder um conteúdo a uma noção que perambulava entre dois extremos. Entretanto, apenas esconde o problema da autonomia do jus gentium positivo face ao jus naturale e ao jus civile e ainda cria outro: o de uma subdivisão desnecessária. Revela-se desnecessário observar que este jus gentium em nada se parece com o direito internacional. Ao contrário dos juristas, legistas ou canonistas medievais, os teólogos ignoraram o direito das gentes. As Sentenças de Pedro Lombardo, bem como os comentários e as sumas dos teólogos posteriores ao século XIII, silenciam sobre o tema. Se, vez por outra, ocorre uma menção, o jus gentium desempenha apenas uma função ornamental (HAGGENMACHER, 1983, p. 327). A exceção é Santo Tomás de Aquino que atribui ao jus gentium um lugar privilegiado no seu pensamento e reúne toda a interpretação tradicional num conceito só. O Aquinate, cabe salientar, tal como Santo Isidoro, diferencia Direito de lei. O Tratado das Leis deve ser lido em conjunto com o Tratado da Graça, pois tanto as leis como a graça constituem princípios externos ao homem que regulam o seu comportamento e o movem para a retidão. O estudo do Direito insere-se, no Doutor

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Angélico, no Tratado da Justiça; o objeto de análise da virtude justiça é o próprio Direito, o iustum que corresponde ao dikaión aristotélico. Estudar as diferentes espécies de lei em Santo Tomás (lei eterna, lei natural, lei divina, lei humana) significa investigar o projeto ordenador de Deus para a criação, porque “a lei é uma certa regra e medida dos atos segundo a qual alguém é induzido a agir ou coibido de fazer algo”10. A lei não visa regular apenas a organização societária humana, mas todo o universo. Por sua vez, o problema todo do Direito resume-se à justiça. Trata-se de uma questão que um positivista moderno, como Kelsen, situaria fora dos domínios do estudo do Direito, mas não um jurista medieval e muito menos um teólogo. Haggenmacher afirma que Santo Tomás apresenta duas concepções diferentes de jus gentium: uma no Tratado das Leis e a outra no Tratado da Justiça. A diferença não se resumiria à diversidade de enfoque de um e do outro tratado. No primeiro, o Doutor Angélico retomaria a definição de Santo Isidoro – segundo a qual o direito das gentes pertenceria ao direito positivo –, e, no último, ele reconstruiria a dos romanos – para quem o ramo em questão se confunde com o direito natural. Uma vez que as duas noções não são compatíveis, a unificação proposta pelo Aquinate restaria ambígua (HAGGENMACHER, 1983, p. 328). Todavia, a conclusão de Haggenmacher não resiste a uma análise mais aprofundada. Uma inversão na ordem de exposição dos dois textos (primeiro o Tratado da Justiça, depois o Tratado das Leis) pode auxiliar a compreender melhor a proposta sintética do dominicano. Em Santo Tomás, como no Estagirita, o Direito (jus) pode proceder tanto da natureza das coisas (direito natural), como de uma convenção (direito positivo). Assim, o autor põe-se a questão de como diferenciar o direito das gentes do direito natural. O justo natural é aquilo que, por sua natureza, está “ajustado” ao outro. E isso ocorre de dois modos: Primeiro, considerando a coisa absolutamente em si mesma; assim o macho, por sua natureza, acomoda-se à fêmea para procriar com ela, e os pais ao filho, para alimentá-lo. Segundo, considerando a coisa não absolutamente, em sua natureza, mas em relação às suas consequências; por exemplo, a propriedade das possessões [de um terreno]11.

10 “(...) lex quaedam regula est et mensura actuum, secundum quam inducitur aliquis ad agendum, vel ab agendo retrahitur (...)” (AQUINO, 1947, 1-2 q. 90 a.1). 11 “Uno modo, secundum absolutam sui considerationem: sicut masculus ex sui ratione habet commensurationem ad feminam ut ex ea generet, et parens ad filium ut eum nutriat. Alio modo aliquid est naturaliter alteri commensuratum non secundum aliquid quod ex ipso consequitur: puta proprietas possessionum.” (AQUINO, 1947, 2-2 q. 57 a. 3).

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O direito natural, em si mesmo, já se encontra ajustado ao outro: a procriação é justa por natureza porque mulher e homem possuem órgãos reprodutivos que se compatibilizam perfeitamente, e o cuidado com a prole também se revela justo por natureza porque a mãe possui leite materno para alimentar o filho. O ajuste perfeito corresponde à evidência: ela se basta, não requer nenhuma comprovação. Santo Tomás denomina isso de direito natural primo modo. Todavia, algo, pela sua própria natureza, também pode vir a tornar-se justo, caso não o seja de imediato. O exemplo da propriedade revela-se bastante ilustrativo. De fato, de um terreno em si, não decorre necessidade alguma dele pertencer a esta ou àquela pessoa. Contudo, ao se considerar as suas consequências – o fato de poder ser cultivado –, pode extrair-se o título dominial: esta, não aquela outra pessoa, é quem tem vocação para agricultor, e é justo que ela possua o terreno. Este tipo de justiça não escapa dos domínios do direito natural, porque não há nenhuma convenção humana que determine isto ou aquilo. Mas a virtude não decorre da coisa em si mesma: fez-se necessária uma intervenção humana – o cultivo do terreno – para perfectibilizá-la. Santo Tomás chama isso de direito natural secundo modo ou direito das gentes. Cabe observar que as expressões primus e secundus modus aplicadas ao direito natural podem lembrar as concepções dos glosadores, mas o autor não as confere nenhuma característica temporal ou genética. Constituem apenas modos de adequação, conforme a natureza, de uma coisa a outra. Perceba-se que o homem compartilha o direito natural primo modo com os demais animais. Já o direito natural secundo modo é exclusivo do ser humano. Trata-se, sem dúvida, da concepção de Ulpiano. Porém, Santo Tomás inseriu o jus gentium no direito natural; interpretou, assim, o direito das gentes de Ulpiano como parte do direito natural, não conforme uma outra interpretação segundo a qual ele corresponderia a um direito positivo comum. Ou isso, ou o Aquinate conciliou as duas fontes romanas: utilizou-se de Ulpiano para definir o direito natural, e de Gaio para o direito das gentes. Em ambas as possibilidades, o jus gentium parece pertencer à natureza e proceder da razão humana. Ocorre que a redação do artigo terceiro da questão 57 do Tratado da Justiça se apresenta confusa. Santo Tomás, ao valer-se do método escolástico, nos questionamentos, menciona tão-somente a dicotomia direito natural / direito positivo, sem antever qualquer possibilidade de nuança. Como, em nenhum momento da resposta, afirma expressamente a naturalidade do direito das gentes, e já que ele distingue dois modos de “ajuste” de uma coisa a outra, o direito das gentes parece ser algo bastante distinto 45

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do direito natural. E o outro lado da equação só poderia ser o direito positivo. Por essa razão, até o momento, a hipótese de Peter Haggenmacher parece confirmar-se. O fato desse ajuste acontecer “de acordo com a natureza” pode perder-se em meio à falta de explicitação do raciocínio. A análise, porém, não pode deter-se aqui. Deve buscar-se, no Tratado das Leis, o conceito de lei. Lei, em Santo Tomás, não representa um dever ser, mas uma medida, um padrão de referência, um projeto ordenador da razão. São medidas pelas quais se pautam tanto o movimento dos astros, o curso dos rios, como o instinto dos animais e a vida humana em sociedade. Não se trata de um comando normativo, mas de um projeto racional que organiza os diferentes planos de existência do universo. Cada espécie de lei (eterna, natural, civil) incide numa esfera própria de atuação, mas todas consistem numa mesma realidade: a ordenação da razão. A lei civil, por exemplo, não difere em substância da lei eterna, pois ambas representam ordenações da razão divina (embora, na lei civil, haja a co-causalidade da razão humana); uma aplicada a todo o cosmos, e a outra à vida humana na cidade. Este projeto de organização divina aplica-se de uma forma escalonada aos diversos domínios da realidade: a lei eterna constitui o plano de Deus para toda a criação e procede diretamente Dele. Já a lei natural é a própria participação da lei eterna nos seres racionais. E a lei positiva decorre, de modo lógico, da lei natural. [...] a força da lei depende do grau da sua justiça. E, em se tratando das coisas humanas, sua justiça está em proporção com a sua conformidade com as regras da razão. E a primeira norma da razão é a lei natural, como já foi dito. Assim, toda lei humana terá caráter de lei na medida em que decorre da lei da natureza12.

Não apenas as diferentes espécies de lei guardam relações entre si; o próprio direito humano (o jus) decorre da lei (a lex) natural. O jus guarda relações com a lex. Todo o direito positivo, tanto o civil e como o das gentes, deriva da lei natural, mas de modo distinto. O primeiro provém per determinationem, e o segundo per conclusionem (1-2 q. 95 a. 4): Mas deve notar-se que uma coisa pode derivar-se da lei natural de dois modos: primeiro, como as conclusões derivam de um princípio; segundo, por meio de determinação, como as determinações de certas noções comuns. O 12 “Unde inquantum habet de iustitia intantum habet de virtute legis. In rebus autem humanis dicitur esse aliquid iustum ex eo quod est rectum secundum regulam rationis. Rationis autem prima regula est lex naturae, ut ex supradictis patet. Unde omnis lex humanitus posita intantum habet de ratione legis, inquantum a lege naturae derivatur” (AQUINO, 1947, 1-2 q. 95 a. 2).

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primeiro modo assemelha-se ao das ciências, as quais dos princípios se extraem conclusões demonstrativas. O segundo assemelha-se com o que ocorre nas artes: as formas abstratas materializam-se em algo particular; o arquiteto, por exemplo, materializa a forma genérica da casa neste ou naquele modelo de casa13.

A lei natural, portanto, determina os limites morais que o direito civil não pode ultrapassar. Assim como um arquiteto guarda em sua mente a noção de “casa” e a usa como modelo para construir a casa concreta, também a lei natural determina como um modelo a construção do direito civil. Mas a cor e a textura da casa não constam do projeto original, e há, pois, certa margem de discricionariedade. O mesmo não ocorre com o direito das gentes. Este deriva da lei natural como teoremas extraídos de um axioma lógico. A lei natural é sua premissa maior, e o direito das gentes a menor. Aqui se encontra o elemento que permite harmonizar as concepções de jus gentium de Santo Tomás. A derivação per conclusionem do Tratado das Leis corresponde à adequação secundo modo do Tratado da Justiça. Ambas se referem a formas da lei natural “produzir” o direito das gentes, e a maneira se dá não pela coisa em si, mas pelas suas consequências ou as suas conclusões. A diferença de enfoque deve-se ao fato de, no Tratado das Leis, o Doutor Angélico pretende distinguir o direito das gentes do direito civil, e, no Tratado da Justiça, procura diferenciar os modos de expressão do direito natural. Não há dois conceitos distintos de jus gentium; existe tão-somente a diversidade de propósitos. Cumpre salientar que o fato do Aquinate classificar o direito das gentes como positivo pode induzir o leitor ao erro. Em certo sentido, o direito das gentes revela-se bastante natural. “O direito das gentes, de certo modo, é natural ao homem, porque é algo racional, já que decorre da lei natural (...). Não obstante, ele se distingue da lei natural no aspecto em que esta é comum a todos os animais”14. Mas por que Santo Tomás emprega o termo “positivo”? Porque o Doutor Angélico não o emprega na sua acepção usual; deve substituir-se a expressão por “humano”. O direito das gentes consiste no direito natural humano: o seu fundamento é a razão natural, mas ele não se mostra evidente. Ele pressupõe certo es13 “Sed sciendum est quod a lege naturali dupliciter potest aliquid derivari: uno modo, sicut conclusiones ex principiis; alio modo, sicut determinationes quaedam aliquorum communium. Primus quidem modus est similis ei quo in scientiis ex principiis conclusiones demonstrativae produnctur. Secundo vero modo simile est quod in artibus formae communes determinantur ad aliquid speciale: sicut artifez formam communem domus necesse est quod determinet ad hanc vel illam domus figuram.” (AQUINO, 1947, 1-2 q. 95 a. 2). 14 “Ad primum ergo dicendum quod ius gentium est quidem aliquo modo naturali homini, secundum quod estrationalis, inquantum derivatur a lege naturali (...). Distinguitur tamen a lege naturali, maxime ab eo quod est omnibus animalibus commune.” (AQUINO, 1947, 1-2 q .95 a.4).

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forço humano para derivá-lo de verdades outras que – estas sim – são evidentes. De qualquer maneira, ele não depende de uma positivação para existir, como o direito civil. Ao supor uma intervenção da razão discursiva para deduzir aquilo que não aparece de forma imediata e absoluta para a inteligência, o direito das gentes tem algo de positivo, mas tomando o termo positivo num sentido muito amplo, que não é usual na terminologia teológica e no pensamento jurídico atual. O direito das gentes está constituído pelas conclusões deduzidas dos primeiros princípios, absolutamente evidentes, da lei natural. Há, portanto, um positivo esforço, embora muito fácil, para deduzir e determinar essas conclusões que estão muito próximas daqueles princípios e, por isso, encontram-se ao alcance de todas as gentes. Porém, a força ou o a validade da obrigação, nestas conclusões, provém do mesmo direito natural que substancialmente elas contêm. (grifo do autor)15

Observe-se o exemplo de um incontestável instituto de direito das gentes: reduzir o inimigo vencido à condição de escravo. Em certo sentido, trata-se de um preceito natural. Transformar o inimigo cativo em escravo revela-se menos cruel do que assassiná-lo fora de combate, e isso decorre logicamente do mandamento natural “não matarás”. Além disso, acreditava-se que o homem poderia dispor de sua própria liberdade; nada obsta que ele a perca numa guerra, ou para saldar dívidas. O direito das gentes, portanto, não é imediatamente natural, mas provém de preceitos naturais. Isso se deve ao fato de a lei natural produzir no homem três inclinações: uma primeira que concerne tudo aquilo que interessa para a conservação da vida; outra que o homem compartilha com os demais animais e que diz respeito à união dos sexos, à educação da prole, etc, e uma última que se apresenta propriamente racional e que se refere à tendência natural de conhecer as verdades divinas e a viver em sociedade (AQUINO, 1947, 1-2 q. 94 a.2). O direito ou o justo natural propriamente dito procede das duas primeiras inclinações da lei natural, pois ele decorre de maneira absoluta, como o macho se ajusta à fêmea, consoante a transcrição acima do Tratado da Justiça. Já o direito 15 “Al suponer una intervención de la razón discursiva para deducir lo que no aparece inmediata y absolutamente a la inteligencia, el derecho de gentes tiene algo de positivo, pero tomando el término positivo en un sentido muy amplio, que no es usual en la terminología teológica y en el pensamiento jurídico atual. El derecho de gentes está constituído por las conclusiones deducidas de los primeros principios, absolutamente evidentes, de la ley natural. Hay, pues, un positivo esfuerzo, aunque muy fácil, para deducir y dictaminar esas conclusiones, que están muy próximas a los principios y por eso se hallan al alcance de todas las gentes. Pero la fuerza o vigor de obligación, en esas conclusiones, viene del mismo derecho natural, que substancialmente contienem.” (SANTIAGO RAMIREZ apud AQUINO, 1947, t, VI, p. 148).

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das gentes decorre da terceira inclinação da lei natural; ele procede não de forma absoluta, mas de modo comparativo e consecutivo. Ele não brota da essência da coisa; exige a intervenção da razão humana. Por isso, ele é considerado humano: as suas conclusões são condicionais e hipotéticas, pois dependem do arbítrio dos homens, “mesmo que esse arbítrio não seja o de um poder particular ou de uma sociedade concreta, mas, em certo sentido, o de toda a humanidade, o de todas as gentes”16. A concepção tomista revela-se confusa e complexa, mas nunca ambígua. O direito das gentes é sempre direito natural. Trata-se apenas de um direito natural apenas “menos evidente” do que o propriamente dito. Em verdade, não corresponde a um ramo distinto, mas a um modo de derivação. Em Santo Tomás, o que o termo jus gentium ganhou em fundamentação e unidade perdeu em autonomia. De imediato, as considerações do Aquinate sobre o direito das gentes não repercutem entre os teólogos. Seria necessário esperar até o século XVI para surgir um Francisco de Vitória. Mas os juristas medievais continuaram a comentar o Digesto e as Institutas e seguiram com a tradição dos glosadores de dividir o direito natural ou o das gentes em ius primaevum e secundum, conforme uma sucessão cronológica. Bártolo de Sassoferrato divide o direito natural em dois, e separa também o direito das gentes em dois. O ius naturale secundum coincide com o ius gentium primaevum, aplica-se a todos os homens e decorre da ratio naturalis de Gaio. Já o ius gentium secundum corresponde a um direito comum a todos os povos e se origina das gentes mesmo. Esse tipo de desenvolvimento progressivo aparece também nos discípulos e seguidores de Bártolo, como Baldo de Ubaldo e Paulo de Castro. Essa terminologia sobrevive até o jovem Grócio, que vai empregá-la no De Jure Praedae (HAGGENMACHER, 1983, p. 331-333). Importa ressaltar aqui que, embora ainda não haja conquistado autonomia, já começa a surgir a ideia de um direito das gentes propriamente positivo, que procede dos usus dos mais diversos povos, não da razão natural. A concepçao vitoriana

Do final do século XIII e início do século XIV até o século XVI, o problema da autonomia do jus gentium não havia progredido. Somente quando a Suma Teológica de Tomás de Aquino termina por suplantar de vez o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, como manual de estudo 16 “(...) aunque ese arbitrio no sea el de un poder particular o de una sociedad concreta, sino, en cierto sentido, de toda la humanidad, de todas las gentes” (SANTIAGO RAMIREZ apud AQUINO, 1947, t.VI, p. 147).

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da Teologia, os teólogos passam a debruçar-se sobre o direito das gentes. A Espanha, em especial, conhece uma renovação tão profunda de interesse pela Escolástica que esse período se torna conhecido como neo-Escolástica, ou Segunda Escolástica. Como ele coincide com as Grandes Navegações, a Espanha experimenta o seu “século de ouro”. A Europa sofria profundas mudanças. Além da descoberta do Novo Mundo, data desta época a invenção da pólvora e da artilharia, a redescoberta da Antiguidade Clássica, a invenção da imprensa – que disseminou a palavra escrita – e do compasso marítimo, o desenvolvimento da ideia de soberania e o surgimento dos primeiros Estados nacionais. Com tantos progressos tecnológicos – os quais, de fato, alteraram a concepção de mundo –, a Teologia passou a se ocupar também de questões humanas. Um dos maiores autores desse tempo apresenta-se Francisco de Vitória. Por mais ortodoxo e fiel ao tomismo que fosse, ele vivia num mundo diferente daquele de Santo Tomás, e precisou confrontar-se com problemas inéditos; entre outros, a capacidade dos índios e o desfazimento da noção de império universal cristão. As Grandes Navegações haviam diminuído o tamanho do planeta e revelado uma multiplicidade de povos pagãos. Pela primeira vez, parecia possível um rei se tornar senhor de todo o mundo. E, também pela primeira vez, o cristianismo não parecia tão universal assim. Vitória tratou, pois, de atualizar Santo Tomás. O problema da alma dos índios trazia consigo uma delicada consequência jurídica: se povos não-cristãos poderiam exercer, de maneira válida, domínio sobre seus territórios. Segundo uma concepção muito divulgada, da noção extraída do Antigo Testamento de “terra prometida”, diversos canonistas concluíram que, tal como Deus havia presenteado a Palestina para um determinado povo (os judeus), Deus havia doado o mundo inteiro para os cristãos quando da vinda de Cristo. Assim, o credo “correto”, o cristianismo, consistiria num requisito para a aquisição válida de um território, e os infiéis poderiam ser legitimamente privados de suas terras (STUMPF, 2005, p. 71-72). Cumpre salientar que os cristãos não se mostravam de todo intolerantes. Na metade do século XIII, o Papa Inocêncio IV reconhece que os infiéis podem ser titulares de domínio, posse e jurisdição (TIERNEY, 2004, p. 8). Todavia, os infiéis deste tempo resumiam-se aos muçulmanos, uma civilização tão ou mesmo mais avançada do que a europeia. Como os cristãos, os islâmicos adoravam um Deus único, também professavam uma “religião do livro” e, junto com os judeus, observavam princípios morais que um europeu poderia reconhecer. No relacionamento entre os povos de religião monoteísta, ainda que não vigorasse a paz, existia respeito. Mas o que dizer de crenças que cultuam diversos deuses, inclusive 50

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personificações de forças naturais, praticam canibalismo e sacrifícios humanos? A distância em relação às religiões reveladas apresenta-se grande demais. Não há diálogo possível. Uma vez que o destinatário da tolerância do Pontífice Inocêncio IV era outro, o Islã, não deve causar surpresa a Igreja não aplicar essa posição em relação aos índios. Em 14 de maio de 1493, na famosa bula Inter caetera, o Papa Alexandre VI doou aos reis católicos as “ilhas remotíssimas e as terras firmes” já descobertas por Colombo e “as que se descubram depois”, para que possam exercer “plena autoridade e jurisdição” a ocidente de um meridiano ideal conhecido como “linha Alexandrina”, que passava a cem léguas a oeste das ilhas de Açores e Cabo Verde. Em 7 de junho de 1494, o Tratado de Tordesilhas, imbuído desse mesmo espírito de divisão do mundo, modificaria os limites preestabelecidos (BARTHÉLEMY, 1904, p. 15). No entanto, mesmo no século XVI, discutia-se a hipótese da bula papal conter autoridade o suficiente para transferir o domínio pleno dessas terras – descobertas e ainda por descobrir (frise-se) – ou haver tão-somente repartido a autoridade competente entre dois príncipes para a predicação cristã. Este último caso configuraria o que, em linguagem moderna, se denomina de “esferas de influência”; o exercício do poder, porém, condicionar- se-ia à propagação da fé. Francisco de Vitória iria defender esta última tese. Contudo, ele precisaria sobrepujar interesses quase invencíveis. A teoria rival da doação aparece no Requerimento redigido pela Junta de Burgos de 1512, obra de López Palacios Rubios. Após remontar à Criação do universo, o documento afirma que Deus confiou a São Pedro todos os homens, onde quer que vivam e sobre qualquer lei, seita ou crença que observem, para lhes servir de cabeça e senhor, e concedeu o mundo inteiro por seu reino e jurisdição. A seguir, refere-se, de forma expressa, ao ato de Alexandre VI como “doação”. Nessas linhas, aparecem todos os principais elementos de uma concepção variante do monismo imperial medieval que estabelece o Sumo Pontífice, em vez do imperador, como o senhor de todo o mundo. Esta teoria havia sido advogada por diversos canonistas, como o Cardeal Hostiensis e Inocêncio III, na decretal Novit Ille, e também por alguns teólogos, em especial, os espanhóis Álvaro Pelayo e Rodrigo Sánchez Arévalo (VIEJO-XIMÉNEZ, 2004, p. 365). A defesa da tese oposta não iria só contrariar a política oficial da Espanha, mas poria o seu expositor em rota de colisão com o próprio papa.

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Vitória ocupava o cargo de prima professor de Teologia em Salamanca, e suas opiniões mereciam respeito. Entretanto, para o dissabor de muitos, ele não endossava o monismo pontifício, nem a guerra contra os índios. Para Vitória, Deus havia distribuído a sua autoridade para todos os povos, não só os cristãos. Os índios também poderiam possuir terras e exercer soberania, pois se encontravam em “domínio pacífico de suas coisas públicas e privadas. Logo (salvo outro óbice em contrário), devem ser considerados verdadeiros senhores e, nessas circunstâncias, não se pode despojá-los de suas posses”17. Dessa feita, as Relecciones, quando publicadas, só escaparam do Index de obras proibidas por causa da inesperada morte do Papa Sexto V. Mas o rei sequer esperou a publicação. Em 1539, o Prior do Convento de Santo Estevão, Domingo de Soto, vespera professor de Teologia e seguidor de Vitória, recebeu uma carta assinada pelo próprio Carlos V que proibia os clérigos desse monastério de expressar posições que fossem de encontro à política ultramarina de Castela. Qualquer manifestação em contrário seria considerada uma ofensa pessoal (SCOTT, 2003, p. 84-85). Neste livro, o autor reproduz a carta. Tratava-se de uma indisposição bastante pontual e limitada a esta questão, porque, em diversos episódios anteriores e mesmo posteriores, o rei manifestou o seu apreço e admiração por Vitória. Por esse motivo – por causa da coragem de Vitória na defesa de suas ideias –, e em razão do afã pela busca de um novo pai para o direito internacional, lapidou-se uma imagem imaculada e um tanto caricata do dominicano. Cometeram-se dois exageros: Vitória, tal como seu irmão de ordem Las Casas, tornou-se um campeão na defesa dos direitos dos índios e o primeiro a apresentar uma visão moderna de direito internacional. Em outras palavras, o teólogo de Salamanca, segundo esta literatura, desenvolveu um conceito de jus gentium até então inédito, que regulamenta tanto os períodos de guerra como os de paz, e que incide sobre Estados soberanos; essa soberania, porém, não se mostra absoluta, porque haveria um princípio superior que a limita: o totus orbis, uma comunidade internacional e orgânica de todos os povos, que estabelece elos de solidariedade com vistas a um bem comum. Essa instância mundial encontra-se acima das vontades particulares dos Estados, edita normas internacionais e assegura a sua execução. Os próprios Estados, em virtude de um “desdobramento funcional”, funcionam como órgãos do orbis e valem-se da guerra justa para vindicar injustiças e corrigir enganos18. 17 “(...) in pacifica possessione rerum et publice et privatim. Ergo omnino (nisi contrarium constet) habendi sunt pro dominis. Neque in dicta causa possessione deturbandi” (VITORIA, 1960. De Indis, Relectio 1, 5. p. 651). 18 Esta corresponde à concepção institucionalista (DELOS, 1950, p. 187-228). Para a tese tradicional mais “pura”, confira todo o livro SCOTT.

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Essa concepção, segundo a qual Vitória já teria desenvolvido uma definição moderna de direito internacional, se funda no seguinte raciocínio. Como um legítimo herdeiro de Tomás de Aquino, Vitória compartilha da ideia da solidariedade natural do homem e da consequente naturalidade do Estado. E a sociedade internacional forma uma comunidade assemelhada a um Estado: “E o mundo todo, que de certo modo forma uma república, tem o poder de prescrever, a todos os súditos, leis justas, como são as de direito das gentes.”19 Da mesma maneira que as repúblicas consistem em agrupamentos naturais formados por indivíduos, existe outra comunidade natural que se compõe de repúblicas, e sobre elas exerce autoridade. Trata-se, segundo essa interpretação, de uma analogia com o próprio Estado; este seria o significado da oração aliquo modo est una republica. O orbe representa um corpus natural e orgânico, cujos membros são todas as repúblicas. Como qualquer comunidade política, ele promulga verdadeiras leis: “O direito das gentes não tem força somente pelo pacto e convênio dos homens, mas tem verdadeira força de lei”20. Assim, o jus gentium independe da vontade dos Estados. O totus orbis constitui uma instância legislativa superior à mera soma de todos os seus membros. Portanto, a soberania dos Estados resta limitada por um poder superior: o bem comum, o motivo pelo qual se constituiu o orbe. A solidariedade natural dos indivíduos torna-se um princípio válido para as relações internacionais. Um evento político que interessa um Estado afeta a todos. Assim, a justiça desse acontecimento deve ser mensurada de maneira global. “Como cada república é uma parte de todo o mundo, e sobretudo uma província cristã parte de uma república, se a guerra fosse útil a uma província ou a uma república, mas fosse prejudicial ao mundo ou à cristandade, penso que por esse fato ela seria injusta”21. Contudo, o principal argumento ainda estaria por vir. A literatura que buscou estabelecer Francisco de Vitória como o novo pai do direito internacional encontrou fundamento para a sua pretensão na famosa passagem em que o teólogo de Salamanca retoma a definição de jus gentium de Gaio: “Mas o que a razão natural estabeleceu entre todas as

19 “Habet enim totus orbis, qui aliquo modo est una republica, potestatem ferendi leges aequas et convenientes omnibus, quale sunt in iure gentium.” (VITÓRIA, 1960. De potestate civili, 21. p. 191). 20 “Quod ius gentium non solum habet vim ex pacto et condicto inter homines, sed etiam habet vim legis” (VITÓRIA, 1960. De potestate civili, 21. p. 191). 21 “Imo cum una respublica sit pars totius orbis et maxime christiana provincia pars totius reipublicae, si bellum utile sit uni provinciae, aut reipublicae, cum damno orbis aut christianitatis, puto eo ipso bellum esse iniustum.” (VITORIA, 1960. De potestate civili, 13. p. 168).

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gentes se chama direito das gentes”22 (grifo nosso). Vale a pena repetir o supracitado trecho final da definição do jurisconsulto romano: “Mas o direito que a razão natural estabeleceu entre todos os homens é uma regra segundo a qual todos observam igualmente e se chama direito das gentes, na medida em que é o direito que todas as nações se servem” (grifo nosso). Vitória substitui no texto original a palavra homines por gentes. Consoante essa literatura, não se trata de um pequeno engano por causa de uma citação das Institutas feita de memória pelo autor. A troca teria sido proposital e traria consequências bastante profundas: o sujeito do direito das gentes não mais seriam os homens – o que, conforme visto, confundia este ramo com o direito natural –, mas os povos. Esta inovação tem uma importância fundamental. Pois, com a substituição de gentes em lugar de homines, o antigo direito romano, que servia para reger as relações entre todos os homens por todas as partes do mundo, queda convertido num direito que rege as relações dos vários povos considerados como nações, ou melhor, como Estados.23

Assim, Vitória deixaria, em definitivo, a órbita romana e seria o primeiro a apresentar um conceito de jus gentium que corresponde ao de direito internacional contemporâneo. Ainda, para corroborar esta interpretação, a frase seguinte à passagem se inicia com Apud omnes enim nationes, o que permitiu de vez identificar as gentes de Francisco de Vitória com “nação”, e não mais com “homens”, como era no texto de Gaio. No entanto, essa literatura produziu uma versão um tanto direcionada da obra de Vitória. Os autores dessa época procuravam um substituto para Hugo Grócio, então trataram de fazer o maestro espanhol falar mais do que havia sido a sua intenção. Uma leitura a partir das próprias premissas de Vitória, em vez dessa permeada por pré-concepções atuais, revela um pensador preocupado em promover “os valores especificamente cristãos e em justificar aquilo que os espanhóis chamam com franqueza de conquista”24. A estrutura mesma das Relecciones sobre os Índios mostra o propósito de Vitória. Na primeira relección, a primeira seção inteira busca 22 “Quod naturalis ratio inter omnes gentes constituit, vocatur ius gentium” (VITORIA, 1960. De indis I, III, 2. p. 706). 23 “Esta innovación tiene una importancia fundamental. Pues, con la substituición de gentes en lugar de homines, el antiguo derecho romano que servía para regir las relaciones entre todos los hombres por todas las partes del mundo, queda convertido en un derecho que rige las relaciones de los varios pueblos considerados como naciones, o bien, como estados.” (SCOTT, 1938, p. 20). 24 “(...) des valeurs spécifiquement chrétiennes et à justifier ce que les Espagnols appelaient sans ambages une conquête” (HAGGENMACHER, 1993, p. 215).

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demonstrar que os índios possuem suas terras de maneira válida. Essa demonstração, inobstante as profundas consequências jurídicas, serve a um propósito maior: comprovar que o infiel pode ter domínio. Professar outra religião que não a verdadeira não constitui motivo para despojar os hereges de seus bens. Posse, propriedade, domínio e soberania representam institutos independentes de religião. Com isso, o autor prepara-se para atacar a ideia de que o papa poderia exercer jurisdição sobre o mundo inteiro. Essa lição cumpre o papel de introduzir a segunda seção. Nesta, Vitória procura refutar os títulos não-legítimos pelos quais os espanhóis conquistaram os “bárbaros do Novo Mundo” (barbari novi orbis). São os títulos previstos no Requerimento de Burgos. O primeiro afirma que o imperador é senhor do mundo. Vitória não poderia aceitar isso porque, de fato, não vivia mais num ambiente feudal. O imperador romano-germânico já ostentava um poder mais simbólico do que efetivo. Assim, Carlos V não poderia reivindicar as terras indígenas por sua própria autoridade. No segundo título, o autor rechaça o monismo pontifício. O papa não exerce jurisdição temporal em todo o orbe, porque Deus nunca fez essa doação. O terceiro título corresponde ao descobrimento. Todavia, aquelas terras não eram desprovidas de donos, por isso não há que se falar em nova aquisição. O quarto título refere-se à recusa dos índios em receber a fé de Cristo. Vitória não aceita este porque ele nega a legitimidade de todas as conversões forçadas. Pelo quinto título, os espanhóis poderiam declarar guerra aos índios por causa dos pecados destes; os quais atentariam não só contra a lei positiva divina, mas também contra a lei natural. Os índios comeriam carne humana e praticariam o incesto. Este motivo é bastante grave, mas o papa não exerce jurisdição espiritual sobre os não-convertidos e, pois, não poderia delegar a autoridade para corrigi-los. O sexto título corresponde à submissão voluntária dos índios aos espanhóis. Além do fato de que o medo e a ignorância viciam este tipo de eleição, os hereges já têm soberano. Por fim, o último título conferiria aos espanhóis direitos sobre todos os bárbaros por uma doação especial de Deus. Vitória não se detém muito aqui porque este argumento não se comprova nem pelas Escrituras, nem por milagre. Até o momento, os escritos parecem fazer jus à imagem de Vitória como um santo humanista; entretanto, a relección prossegue. Na terceira seção, o autor passa a analisar os títulos legítimos pelos quais os espanhóis podem conquistar os bárbaros. O primeiro diz respeito à comunicação natural que subsiste em todo o mundo. Os espanhóis possuem o direito de visitar e de se estabelecer nas terras dos índios, sem sofrer dano algum. Se este acontecer, será lícito guerrear. Deste título, deriva55

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-se ainda a legitimidade do comércio, do uso das coisas comuns e da migração. Todos estes institutos pertenceriam ao direito das gentes, e um descumprimento constitui motivo de guerra justa. O segundo título refere-se à propagação da religião cristã. Os índios não são obrigados a se converterem, mas devem suportar a evangelização. Este dever não é de direito das gentes, mas oriundo da verdadeira fé, e parece improvável que Vitória admitisse a reciprocidade. O terceiro e quarto título também correspondem a matéria de fé. Se alguns bárbaros se converterem, seus príncipes não podem empregar a força para volvê-los à idolatria, sob pena de uma guerra justa. E, após essa conversão ao cristianismo, o Papa pode, com justa causa, conceder um príncipe cristão aos índios. O quinto título corresponde à tirania dos senhores bárbaros que promulgam leis inumanas com o sacrifício de inocentes. Trata-se do que se pode qualificar como o embrião de uma intervenção humanitária. No sexto, Vitória retoma a ideia de submissão voluntária ao rei da Espanha, mas ressalta que o consentimento deve ser válido. O sétimo título refere-se a alianças que algumas tribos podem fazer com os espanhóis contra outras. Neste caso, é permitido prestar auxílio aos aliados. Por fim, se houver mesmo alguma comunidade incapaz de se governar, então, por caridade, os espanhóis podem conduzi-la. Contudo, devem fazê-lo não em proveito próprio, mas dos bárbaros. Ainda, cabe acrescentar que toda a Segunda relectio sobre os índios versa sobre o próprio direito da guerra dos espanhóis sobre os bárbaros. Assim, o dominicano faz regressar em novas bases tudo o que ele já havia refutado. O fato de os índios possuírem domínio não exclui a possibilidade de interdição. O papa pode não exercer jurisdição sobre eles, mas conta com um poder indireto. Os espanhóis podem lá se estabelecer, em virtude de uma sociedade natural de comunicação. Proíbe-se a conversão forçada, mas os índios devem suportar a evangelização. Práticas bárbaras, como sodomia e canibalismo, não justificam uma intervenção, mas esta pode ocorrer em defesa dos inocentes. Todas essas posições não se ajustam muito bem com a imagem de um defensor dos direitos dos indígenas. Vitória era, com absoluta certeza, um homem de convicções. Não aceitava as teses oficiais do Requerimento para a conquista dos índios, nem a ideia de que o papa poderia exercer autoridade sobre todo o mundo, mesmo o não-cristão. Mas era também tanto um patriota, como um defensor da fé cristã, ainda que a sua doutrina o afastasse dos argumentos corriqueiros de seu tempo. No debate entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda sobre o direito dos índios, Francisco de Vitória situava-se no meio.

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Mas o que dizer daquelas afirmações expressas de Vitória que expressariam a ideia de uma sociedade internacional, que limita a soberania dos Estados e que se rege pelo direito? De fato, o teólogo de Salamanca menciona com frequência a expressão totus orbis ou mesmo a variante totus mundus. Não há dúvidas de que ela constitui um quadro referencial, mas causa estranheza o fato de o autor nunca a definir. Haggenmacher analisa, nas obras de Vitória, todas as passagens em que os termos aparecem. Nalgumas vezes, eles possuem um sentido meramente factual e designam o “mundo inteiro”, como uma realidade geográfica. Noutras mais raras, eles denotam uma entidade moral, investida de auctoritas ou potestas. Nestas, o totus orbis aparece como fonte ou do direito das gentes, ou somente do direito da guerra exercido a título de sanção pelos soberanos (HAGGENMACHER, 1983, p. 39). Portanto, cumpre verificar se nestas ocasiões Vitória deseja introduzir uma noção original, assemelhada àquela de sociedade internacional. Em comentário ao Tratado da Justiça de Santo Tomás, Vitória analisa a questão 57 que, como visto, considera o jus gentium um direito positivo. A obscuridade do pensamento do Aquinate sobre a natureza do direito das gentes terá reflexos na obra de Vitória: em determinados momentos, o jus gentium pertence ao direito natural, noutros, ao direito positivo. Neste texto, o dominicano opta por este último. Trata-se, contudo, de um direito positivo bastante singular em virtude da aparente ausência de legislador. Isso ocorre porque o direito positivo se manifesta de duas maneiras: pela condicta privata – que procede dos contratos ordinários entre particulares – e pela condicta publica – que se origina das convenções adotadas pelo conjunto de uma comunidade (VITÓRIA apud SCOTT, 2003, Appendiz E, p. Cxii). Estas, normalmente, aparecem sob a forma de leis, o que garante a sua publicidade. Porém, quando se refere a um acordo entre todos os povos e nações do mundo inteiro, a publicidade é um elemento implícito. Segundo Haggenmacher, Vitória pretendia transpor uma distinção de direito civil para o direito das gentes. O aspecto público advém da universalidade da convenção. A linguagem do autor, portanto, mantém-se na esfera contratual, e o orbis não designa uma entidade autônoma e superior. A expressão corresponde tão-somente a um modo cômodo de se reportar à soma dos Estados (HAGGENMACHER, 1983, p. 41). Portanto, neste texto, apesar de aparentar uma fonte legislativa, o totus orbis não representa uma pessoa moral. Entretanto, como explicar a passagem na Relectio de potestate civili, a já mencionada aliquo modo est una republica, na qual o totus orbis promulga verdadeiras leis? O trecho, em verdade, apresenta-se como um

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corolário da demonstração que o precede. Vitória questiona se as leis civis obrigam também os legisladores e os reis (“An leges civiles obligent legislatores et maxime reges?”). Esta pergunta justifica-se porque alguns acreditam que eles se encontram acima de toda a república e, por conseguinte, não haveria nenhum poder superior para constrangê-los. Segundo o teólogo de Salamanca, os soberanos também integram a república, e, como a lei é válida para toda a comunidade, eles também devem observá-la. Em relação aos soberanos, ocorre o que se passa com os contratos: antes de acordar, a pessoa é livre, mas, depois da convenção, ela se obriga. A seguir, Vitória infere o corolário: “O direito das gentes não tem força apenas por causa do pacto e convenção dos homens, mas possui verdadeira força de lei. E o mundo todo, que de certo modo forma uma república, tem o poder de prescrever, a todos os súditos, leis justas, como são as de direito das gentes”25. Com essa afirmação, o autor deseja acentuar o caráter legal do direito das gentes. Contudo, isso não conflita com a natureza contratual acima exposta, pois a condicta publica possibilita essa equiparação com a lei. A ênfase deve-se a um raciocínio desenvolvido anteriormente. Vitória defende que a lei positiva, de modo diverso da lei natural, incide sobre ações que eram antes moralmente neutras. Mas, depois de editada uma lei positiva, a ação se torna proibida ou obrigada também pela lei natural. “Do que se depreende que pecam mortalmente todos os que violam os direitos das gentes”26. O dominicano não procurou contrariar uma constatação anterior e alterar a origem convencional do jus gentium, mas ressaltar o argumento de que este direito também obriga em consciência. Na Preleção sobre os índios, Vitória apresenta um duplo fundamento de validade ao direito das gentes: em algumas vezes, o direito natural, noutras, o consentimento humano. “Mas o que a razão natural estabeleceu entre todas as gentes se chama direito das gentes”. Ou: “E uma vez que nem sempre se derive [o direito das gentes] do direito natural, parece que basta o consentimento da maior parte do mundo, sobretudo se é para o bem comum de todos.”27 (grifo nosso). É revelador o fato de Vitória ter pronunciado esta lição um decênio após a anterior. Se o dominicano decidiu debruçar-se sobre a natureza do jus gentium, 25 “Quod ius gentium non solum habet vim ex pacto et condicto inter homines, sed etiam habet vim legis. Habet enim totus orbis, qui aliquo modo est una republica, potestatem ferendi leges aequas et convenientes omnibus, quale sunt in iure gentium.” (VITÓRIA, 1960. De potestate civili, 21. p. 191). 26 “Ex quo patet quod mortaliter peccant violantes iura gentium” (VITÓRIA, 1960. De potestate civili, 21. p. 191). 27 “Quod naturalis ratio inter omnes gentes constituit, vocatur ius gentium” e “Et dato quod non semper derivetur ex iure naturali, satis videtur esse consensus maioris partis totius orbis, maxime pro bono communi omnium.” (VITORIA, 1960. De indis I, 3, 2. p. 706 e I, III, 4. p. 710).

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mudou de opinião com os anos; de positivo, o direito das gentes passou a pertencer parte ao direito natural e parte ao direito positivo. Ou, ainda, resta a alternativa de que ele nunca haveria se preocupado com o jus gentium, e esse duplo fundamento denota a sua indiferença à questão. Em ambas as possibilidades, Vitória afasta-se de uma concepção mais moderna de direito internacional. Perceba-se que, neste último excerto, o jus gentium não retira a sua validade do totus orbis, mas da maioris partis totius orbis. A alteração – sem dúvida – resulta do alargamento do cam produz consequências bastante interessantes. O consentimento da maioria da humanidade pode impor-se sobre o mundo inteiro, mesmo contra a vontade de uma minoria (que não é tão esclarecida). É nessa imposição que se baseia a legitimidade da guerra que os europeus podem travar contra os índios, abordada na segunda preleção sobre os índios. Os príncipes exercem autoridade não só sobre seus súditos, mas também sobre estrangeiros para impedi-los de cometer erros. E esse poder decorre da autoridade de todo o orbe (VITÓRIA apud SCOTT, Appendiz B, p. lvi)28. Além da defesa do colonialismo espanhol, para o presente propósito, deve extrair-se outra consequência. Nas duas lições sobre os índios, o orbe parece mesmo constituir uma fonte legislativa, por vezes de todo o jus gentium, por vezes apenas do poder vindicativo dos soberanos. No entanto, salienta Haggenmacher que, em nenhum momento, Vitória investiga a figura do orbe em si. Ela aparece sempre em relação a outros problemas (o direito das gentes e o poder vindicativo) e nunca como o centro da discussão. Por esta razão, o seu conceito resta indeterminado. Por conseguinte, nas raras ocasiões em que o totus orbis se apresenta como um todo orgânico, superior à soma dos Estados, o autor não poderia estar referindo-se a uma realidade nova, a qual deveria demandar uma análise mais detida. Trata-se, portanto, de algo bastante velho, que dispensa apresentações e, por isso, provavelmente se perde num passado imemorial: o orbis christianus (HAGGENMACHER, 1983, p. 45-46). A Respublica Christiana correspondia a um quadro de referências antigo, que todo europeu conhecia. O totus orbis consiste numa abstração marginal dessa concepção, que já havia deixado de ser uma experiência. Significa uma atualização de uma realidade pretérita (ainda não esquecida de todo) por causa da descoberta de povos não-cristãos no Novo Mundo, mas que, de uma forma ou de outra, terminaram por se encontrar sob a jurisdição de povos cristãos. 28 Cabe observar que aqui esta norma de direito das gentes se funda no direito natural.

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A distinção entre cristãos e não-cristãos revela-se essencial para a compreensão do direito das gentes de Vitória. Assim como o jus gentium romano regia as relações entre romanos e estrangeiros, o jus gentium do teólogo de Salamanca governa as relações entre cristãos e não-cristãos. E, tal como aquele não guardava semelhança com o direito internacional contemporâneo, porque se aplicava no interior do Império Romano, este incide dentro de um império europeu alargado pelas Grandes Descobertas. Trata-se do direito interno de uma comunidade multi-religiosa mas de jurisdição cristã. As teses e ilustrações de Vitória foram pensadas em função do orbis christianus. O que ele fez foi derivar as consequências para toda a humanidade. Assim, da mesma maneira que cada província cristã integra a cristandade europeia, cada república faz parte do orbe. E o exemplo que o autor utiliza, na lição sobre a potestade civil, para comprovar que cada Estado possui uma ligação orgânica com o mundo inteiro se mostra bastante sugestivo. Afirma Vitória que um Estado, mesmo que possua uma causa justa, não deverá entrar em guerra se a mesma prejudicar o totus orbis. E “[...] se a guerra fosse dos espanhóis contra os franceses, mesmo que haja motivos justos e vantagem para a Espanha, caso a guerra cause maior dano e fratura para a cristandade, com o risco dos turcos ocuparem as províncias cristãs, deverá desistir-se dessa guerra”29.

A ilustração do autor não se refere ao totus orbis, mas tão-somente à Respublica Christiana. Consoante Haggenmacher, o teólogo de Salamanca escolheu um exemplo que iria, com toda a certeza, convencer seus expectadores, porque apelava para um receio geral que pairava sobre a atualidade política; porém, ele se ajusta mal ao conjunto do orbe, visto que era, como ainda é, uma perspectiva muito remota o mundo inteiro se tornar cristão. À época de Vitória, imaginar que o totus orbis poderia formar uma república só poderia ser aliquo modo. Trata-se de uma noção longínqua e impalpável, que foi evocada apenas para servir de explicação para certas regras de fundo; estas sim centrais ao raciocínio. Diversa é a situação no seio da cristandade, na qual Vitória poderia conceber sem qualquer dificuldade uma monarquia universal (HAGGENMACHER, 1983, p. 46). 29 “(...) ut si bellum hispaniarum esset adversus gallos alias ex causis iustis susceptum et alioqui regno hispaniarum utile, tamen cum maiore malo et iactura geritur christianitatis, puta qui turcae occupant interim provincias christianorum, cessandum esset a tali bello.” (VITÓRIA, 1960. De potestate civili, 13, p. 168).

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E o que afirmar da modificação que o teólogo de Salamanca teria realizado na definição de jus gentium de Gaio (Quod naturalis ratio inter omnes gentes constituit, vocatur ius gentium)? Se esta alteração foi intencional, Vitória desejava mostrar que o sujeito do direito das gentes consiste nos Estados, não nos indivíduos. No entanto, mesmo sem analisar o conceito de Estado para Vitória, é possível demonstrar que esta questão nunca se apresentou ao autor. Quando o dominicano indaga se os índios, antes da chegada dos espanhóis, possuíam a propriedade pública e privada de suas terras, ele não investiga a personalidade jurídica internacional dos índios, mas simplesmente a personalidade jurídica. Porque, em caso afirmativo, os conquistadores não poderiam despojá-los de seus bens, e as teses do Requerimento de Burgos não se aplicariam. As atenções de Vitória não se voltam a uma suposta diferença entre propriedade pública e privada, mas à capacidade jurídica dos índios. Ele não busca comprovar o caráter estatal das comunidades dos bárbaros do Novo Mundo, e sim a natureza plenamente humana dos indivíduos que a compõem. E, adiante, quando o autor trata dos títulos válidos de intervenção, o foco constitui sempre a barbárie ou a infidelidade dos indivíduos. Vitória procura por almas para converter e salvar (HAGGENMACHER, 1983, p. 50-56). O teólogo de Salamanca se ocupa de homens, não de Estados; até porque ele confunde o direito das gentes com o direito natural. A referência a Gaio encontra-se inserida no primeiro dos quatorze argumentos que visam demonstrar que os espanhóis podem visitar os índios. Na própria definição, o jus gentium decorre da razão natural. E o raciocínio inicia-se com “[p]rova-se, em primeiro lugar, pelo direito das gentes, que é direito natural ou dele derivado”30. Em oposição a sua tese anterior – segundo a qual o jus gentium procede de um acordo tácito –, Vitória aqui estabelece um fundamento natural. E não havia como isso ser diferente. Não existe nada em comum entre espanhóis e índios, salvo a própria natureza. Dessa feita, na definição de Gaio, Vitória não deseja sublinhar o inter omnes gentes, mas a naturalis ratio. Então por que o autor substituiu homines por gentes? No trecho inteiro – reproduzido acima –, apesar de mencionar homines, o jurista de Justiniano também fala em populi e gentes, e é a presença deste que pode explicar a origem etimológica da expressão jus gentium. Vitória, pois, tentou invocar a fórmula de Gaio, que ele cita de forma aproximada. Para o dominicano, inter omnes gentes não difere de inter omnes homines. A continuação de um, apud omnes enim 30 “Probatur primo ex iure gentium, quod vel est ius naturale, vel derivatur ex iure naturale” (VITORIA, 1960. De indis I, III, 2. p. 706).

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nationes habetur inhumanum, faz eco diretamente a do outro, apud omnes populos peraeque custoditur. Vitória, portanto, quis evocar a concepção romana de jus gentium, um direito interno comum com fundamento numa espécie de necessidade natural intrínseca. Cumpre salientar que a escolha do termo nationes não se mostra de todo fortuita. Vitória parece lembrar-se da definição de direito natural de Santo Isidoro de Sevilha: “O direito natural é comum a todas as nações e provém de um instinto natural”31. Conforme a vocação de sua obra, Isidoro produz um jogo etimológico que pode passar despercebido por um leitor moderno. Já que o direito natural se aplica a todas as nações e se origina de um instinto natural, deve existir algo em comum a todas essas palavras: a raiz comum, o verbo nasci. O direito natural constitui, pois, um direito “de nascimento”, que “nasce” junto com o homem, e não por uma convenção legislativa. Vitória, que por dever de ofício conhecia as Etimologias, quis discretamente insinuar essa conotação e inseriu a palavra nação para fazer correspondência ao ius naturale mencionado no início da passagem como fonte direta ou indireta do seu ius gentium (HAGGENMACHER, 1983, p. 61). Não restam dúvidas de que aqui o autor concentra os seus esforços para conferir um fundamento ao direito das gentes. Mas este repousa na natureza, o que o distinguiria do direito internacional. E revela-se curioso que o primeiro Vitória – que embasa o seu jus gentium numa convenção – não parece tão preocupado com a fundamentação: “Primeiro, a disputa diz respeito mais ao nome do que à coisa, porque importa pouco se alguém afirma isso [a pertença do direito das gentes ao direito positivo] ou aquilo [a pertença do ramo ao direito natural]”32. Quando Vitória se preocupa com o fundamento de validade, este decorre da natureza; quando ele considera a questão de somenos importância, a origem é de direito positivo. Assim, o teólogo de Salamanca não consegue ultrapassar a concepção romana de jus gentium. Este ainda é um direito interno de um império, comum a diferentes povos (mas não entre esses povos) e que, por vezes, se confunde com o natural. Entretanto, de modo bastante paradoxal, a fraqueza dos argumentos de Vitória sobre o direito das gentes constitui a força de seu legado. Ainda que nunca houvesse concebido um direito entre sociedades políticas, o dominicano, de fato, substituiu homines por gentes. Embora nunca tivesse conferido um fundamento muito claro ao direito das gentes, em determinado momento, ele o considerou parte do 31 “Ius naturale commune omnium nationum, et quod ubique instinctu naturae” (ISIDORUS HISPALENSIS, 1911, V, IV, 1). 32 “(...) first of all the dispute concerns the name more than the thing, for it matters little whether one says this or that” (VITÓRIA apud SCOTT, 2003, Appendiz E, p. cxi).

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direito positivo. Não obstante ter defendido o direito de intervenção dos espanhóis sobre os índios, ele concedeu aos “bárbaros do Novo Mundo” a possibilidade de domínio. E mesmo que o totus orbis não passasse de uma abstração inconsequente, a expressão foi empregada de forma recorrente. Vitória estabeleceu as bases para que outra pessoa que o lesse pudesse discorrer sobre um direito entre os povos, de natureza positiva, inserto numa sociedade internacional que se sobrepõe à soberania estatal. Considerações finais

Até a publicação da obra de Antoine Pillet (1904), Les fondateurs du droit international, a doutrina estava obstinada a encontrar um pai para o direito internacional. A lenda de um fundador único da disciplina coincidiu com a mitificação da figura de Hugo Grócio pela Escola do Direito da Natureza e das Gentes, e, durante trezentos anos, este autor desfrutou desse título. No entanto, quando se começou a questionar a modernidade do jurista holandês e a redescobrir a Escolástica Espanhola, constatou-se que o próprio Grócio possuía suas fontes, e a ideia de um direito entre os povos parecia mais velha. Recorreu-se, pois, a uma tradição cristã – mas de valor universal – bastante antiga: a doutrina da guerra justa. A guerra corresponde à forma de intercurso mais extrema que os povos podem apresentar; desta feita, uma regulamentação da guerra significaria, de maneira clara, uma manifestação de um direito internacional. Ademais, todos os candidatos a pai da disciplina, Grócio e a Escolástica Espanhola, pertenciam a essa tradição, o que reforça a noção de que ela representa a origem desse direito. Deveria, então, procurar-se o primeiro autor a defender este corpo doutrinário. Essa tarefa, contudo, não se mostra simples. As influências do direito de guerra medieval perdem-se na Antiguidade. Há reminiscências tanto hebraicas como helênicas e diversas afinidades com o jus fetiale romano. Parece, porém, existir um consenso na historiografia de que o primeiro escritor dessa tradição foi Santo Agostinho. Apesar desse acordo, as referências não-sistemáticas à questão da guerra, na obra do bispo de Hipona, não parecem traduzir uma preocupação com o tema da justiça numa guerra. Santo Agostinho, em verdade, ocupou-se da legitimidade de uma função pública: o serviço militar. Além dele, todos os autores da Alta Idade Média também não perceberam o direito da guerra como um problema autônomo. Somente no século XII, essa doutrina passa a tomar forma. Embora ela ainda não fosse a preocupação central do monge Graziano, o Decreto 63

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Gratiano ocupa posição de destaque na história da guerra justa. Nele, há uma gama de referências e citações um tanto descontextualizadas da Patrística, mas que foram organizadas em função de questões pontuais, e a guerra constitui a Causa XXIII do decreto. A partir de então, os escritores seguintes poderiam investigar a guerra por ela mesma. Canonistas, teólogos e decretistas voltam suas atenções para a temática. No século seguinte, um dos pensadores mais importantes de todos os tempos, Santo Tomás de Aquino, debruça-se sobre o problema da legitimidade da guerra. Para ser justa, ela precisa preencher três condições: autoridade competente, causa justa e intenção reta. Apesar de não aprofundar a análise sobre estes requisitos, em virtude da autoridade que sua obra adquire no Medievo, os mesmos se tornam referência obrigatória para os pensadores posteriores. O Aquinate, portanto, termina por conferir a formulação clássica à doutrina. Os seus seguidores apropriam-se dela de tal modo que se torna impossível dissociá-la da Escolástica, ainda que juristas leigos também tenham escrito sobre o direito de guerra. Todavia, as influências da doutrina escolástica da guerra justa sobre o direito internacional revelam-se fugidias demais para poder aceitar-se a ideia de que esta disciplina se originou, em sua inteireza, dessa tradição. Boa parte dos autores da guerra justa sequer apresenta um conceito de jus gentium. Inferir que a justiça numa guerra implica, de modo necessário, a existência de um direito entre as gentes negligencia o papel desempenhado por um direito universal, racional e decorrente da natureza. O direito natural, desde os romanos, cumpre a função de fundamentar o direito comum entre povos e indivíduos, que não tenha emanado da vontade legislativa de uma civitas. Somente quando o conceito de direito das gentes adquirir autonomia face ao de direito natural, será possível afirmar que existe uma concepção moderna de direito internacional. Ocorre que os romanos não eram bons filósofos e encontraram dificuldades para conferir um fundamento não-natural para o seu jus gentium. Cumpre salientar que, em Roma, este direito regia as relações entre estrangeiros dentro do Império. Não constituía um direito das gentes, mas das gens. Correspondia a um direito intra gentes, não inter gentes. Os autores do Medievo herdam a tripartição direito natural, civil e das gentes, mas tampouco conseguem encontrar uma fundamentação distinta para este último. Em verdade, o jus gentium não consiste numa preocupação central na Idade Média; revela-se mais um legado incômodo, o qual não se sabe o que fazer com ele ou onde o colocar. Santo Isidoro de Sevilha, de fato, considera o jus gentium um direito positivo, mas a ausência de uma definição clara compromete a originalidade de seu intento. Parece provável que, influenciado pela concepção imperial cristã 64

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da época, o autor concebesse este ramo como um direito comum quase universal, mas que não regulamenta as relações entre os povos. Em Santo Tomás de Aquino, o jus gentium traduz um dos modos de derivação da lei natural. Corresponde ao próprio direito natural aplicado a uma das facetas do convívio humano. A confusão com o direito positivo deve-se a uma definição deviante da palavra “positivo”. Para o Aquinate, positivo significa humano. O jus gentium não é produzido pelo homem, como o direito civil. Mas ele exige um esforço “positivo” do intelecto do homem para derivá-lo dos princípios naturais. Trata-se de uma das inclinações que a lei natural produz em todos os homens, mas distinta das demais e exclusiva dos seres humanos. É um direito “humano” não por ser criado pelo homem, mas porque este não compartilha esse impulso (natural) com os demais seres. A literatura que procurava uma paternidade única ao direito internacional voltou-se para o teólogo dominicano Francisco de Vitória. Nas lições deste, o jus gentium parecia aplicar-se aos mais distintos povos do mundo inteiro. Diante disso, essa literatura arguiu que, em Vitória, a soberania dos Estados se encontra limitada pela sua concepção de comunidade internacional: um todo orgânico, superior à soma das partes e fonte legislativa do direito das gentes. Ademais, concluiu que ele havia defendido os direitos dos índios contra os conquistadores espanhóis e proclamado a personalidade jurídica internacional daqueles. E, por fim, afirmou que o teólogo espanhol subverteu a definição de jus gentium de Gaio para adaptá-la ao conceito atual. Contudo, essas conclusões, numa análise mais detida, revelam-se precipitadas. A estrutura mesma das suas lições sobre os índios denota um defensor da conquista espanhola, embora por motivos distintos daqueles oficiais. Nas raras ocasiões em que a expressão totus orbis designa uma entidade legiferante, o autor a concebe em função da unidade moral da cristandade europeia. E a suposta subversão significa apenas uma citação de memória. Vitória não havia saído da órbita conceitual romana. Ainda que não se possa denominar Francisco de Vitória o “pai” do direito internacional, não se pode menosprezar a sua importância, pois ele deixou elementos para outros completarem o seu trabalho. Mas, para que o jus gentium se tornasse direito internacional, faz-se necessário sepultar a ideia de monismo imperial ou de orbis christianus. O surgimento da “internacionalidade” encontra-se estreitamente vinculado ao ocaso do império universal.

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3 Os Conceitos Hegelianos e Kantianos de Direito Estatal Externo, de Direito dos Povos ou Direito das Gentes ou Direito Internacional, de Guerra e de Paz Paulo Roberto Konzen

Introdução

O conceito hegeliano de “Direito Estatal Externo” (äußere Staatsrecht), exposto e analisado nos §§ 330-340 da sua Filosofia do Direito (FD) (Philosophie des Rechts - 1821) e no § 547 da sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas (ECF) (Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften - 1830)1, apresenta conteúdo assaz importante e com diversos elementos atuais e questionáveis. Especialmente, quando relacionado com o conceito hegeliano de “Völkerrecht” (traduzido por “direito dos povos”, “direito das gentes”, “direito internacional”, etc.), sobretudo para tentar 1 Os citados §§ de “β. O Direito Estatal Externo” (β. Das äußere Staatsrecht) constam ambos na 2ª subdivisão [entre “α. O Direito Estatal Interno” (α. Das innere Staatsrecht) e “γ. A História Mundial” (γ. Die Weltgeschichte)] da 3ª subdivisão “c. O Estado” (c. Der Staat), da 3ª subseção “c. A Eticidade” (c. Die Sittlichkeit), da “2ª Seção: O Espírito Objetivo” (2ª Abteilung: Der objektive Geist), da Filosofia do Espírito (Philosophie des Geistes) de Hegel.

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mediar, segundo Hegel, o sempre possível “conflito” ou “litígio dos Estados” (Streit der Staaten - § 334 - FD) e, com isso, tentar chegar à “possibilidade da paz” (Möglichkeit des Friedens - § 338 - FD). Além disso, convém examinar os conceitos hegelianos de “guerra” (Krieg) e de “paz” (Friede), tal como, por exemplo, quando Hegel fala do alegado “momento ético da guerra (sittliche Moment des Krieges), inclusive de supostas “guerras felizes” (glückliche Kriege), de “guerra defensiva” (Verteidigungskrieg), de “guerra de conquista” (Eroberungskrieg), de “guerra impopular” (unpopulärer Krieg), de “guerra inútil e desnecessária” (Krieg unnütz und unnötig), de “decisão sobre guerra e paz” (Entscheidung über Krieg und Frieden] e sobre “declarar guerra e paz e outros tratados” (Krieg und Frieden und andere Traktate zu schließen), analisando e discutindo ainda principalmente o conceito de “paz perpétua” (ewige Friede) de Kant. No caso, para compreender o pensamento hegeliano é necessário antes conhecer a filosofia kantiana. Em suma, o objetivo da pesquisa é buscar apreender devidamente o que Hegel expôs sobre esses conceitos essenciais de sua Filosofia do Direito e/ou de sua Filosofia Política, tendo presente antes o pensamento de Kant. Trata-se de pesquisa, exposição e análise crítica-filológica, histórica e hermenêutica das obras dos citados autores, buscando devidamente apreender os diversos conceitos mencionados. Com isso, em suma, se busca compreender, de forma apropriada, por exemplo, o pensamento hegeliano, examinando a sua obra diante das circunstâncias em que foi exposta, evitando as muitas exposições e interpretações equivocadas, pois há uma disputa entre o que Hegel, a princípio, disse e o que dizem que ele disse e/ou do que deveria ou poderia ter dito. Por isso, enfim, o trabalho propositadamente possuirá muitas citações, notas e aspas, nos fundamentando em textos clássicos e interpretativos hegelianos e kantianos. Aspecto Sistemático e Tríade da Filosofia de Hegel

Inicialmente, para compreender devidamente o citado conceito de “Direito Estatal Externo” (äußere Staatsrecht) de Hegel, é necessário ver onde e como ele apresenta e analisa este conteúdo. Ora, o Sistema da Ciência ou da Filosofia de Hegel é dividido em tríades, a saber: Filosofia ou Ciência (1) da Lógica; (2) da Natureza; e (3) do Espírito. Infelizmente, aqui não será possível expor todos os respectivos elementos do que isso representa e pressupõe2. Mas, por exemplo, convém ressaltar que a 3. Filosofia do Espírito é dividida também em: 3.1 Filosofia do Espírito 2 Sobre isso, ver, por exemplo: KONZEN, Paulo Roberto. Contexto Histórico e Sistemático da Filosofia do Direito de Hegel. In: HEGEL, G. W. F. Filosofia do Direito. São Paulo: Loyola; São Leopoldo: UNISINOS, 2010. p. 23-28.

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Subjetivo; 3.2 Filosofia do Espírito Objetivo; e 3.3 Filosofia do Espírito Absoluto. Além disso, a denominada 3.2 Filosofia do Espírito Objetivo [ou a Filosofia do Direito] é igualmente dividida em uma tríade, a saber: 3.2.1 Direito Abstrato; 3.2.2 Moralidade; e 3.2.3 Eticidade; e, no caso, a 3.2.3 Eticidade é também dividida em: 3.2.3.1 Família; 3.2.3.2 Sociedade Civil-Burguesa; e 3.2.3.3 Estado. Assim, convém destacar as várias tríades, em especial a estrutura tríade da Eticidade, cujo terceiro elemento é o Estado. Ora, no caso, o chamado 3.2.3.3 Estado é do mesmo modo dividido em tríade, a saber: 3.2.3.3.1 Direito Estatal Interno (innere Staatsrecht); 3.2.3.3.2 Direito Estatal Externo (äussere Staatsrecht) e, ainda, por fim, 3.2.3.3.3 História Mundial (Weltgeschichte). Sobre isso, convém citar devidamente3 o § 259 da FD de Hegel: A ideia do Estado tem: a) uma efetividade imediata, e é o Estado individual enquanto organismo que está em relação consigo, – constituição ou direito estatal [ou público] interno; b) ela passa à relação do Estado singular com outros Estados, – direito estatal [ou público] externo [äußeres Staatsrecht]; c) ela é a ideia universal enquanto gênero e potência [ou força ou poder = Macht] absoluta, contra os Estados individuais, o espírito que se dá sua efetividade no processo da história mundial. (HEGEL, 2010, p. 234-235).4

Inclusive no § 259 Z (Adendo), aparecem alguns elementos relevantes, sobretudo envolvendo o pensamento de Kant e o seu alegado conceito de “paz perpétua” (ewige Frieden), que buscaremos analisar devidamente na sequência da presente pesquisa: O Estado enquanto efetivo é essencialmente Estado individual e, além disso, ainda Estado particular. A individualidade é de distinguir da particularidade: ela [a individualidade] é momento da Ideia do Estado mesmo, enquanto que a particularidade pertence à história. Os Estados como tais são independentes uns dos outros, e a relação entre eles apenas pode, assim, ser exterior, de modo que necessita existir acima deles um terceiro [elemento] que os vincule. Esse terceiro é o espírito que dá efetividade na história mundial 3 Todas as citações de textos de Hegel, usando as respectivas traduções em português publicadas, sempre foram comparadas com o texto alemão original da Hegel Werke, que será também sempre devidamente registrado em notas de pé de página, fazendo ainda acréscimo de termos em alemão nas traduções, com o objetivo de destacálos, e algumas alterações na tradução, registradas e assinaladas com uso de colchetes [...]. O § citado seguido da letra A designa a Anmerkung (anotação) e, da letra Z, o Zusatz (adendo) ao caput. 4 Cf. Hegel Werke. 7/404-405 „Die Idee des Staats hat: a) unmittelbare Wirklichkeit und ist der individuelle Staat als sich auf sich beziehender Organismus, Verfassung oder inneres Staatsrecht; b) geht sie in das Verhältnis des einzelnen Staates zu anderen Staaten über, - äußeres Staatsrecht; c) ist sie die allgemeine Idee als Gattung und absolute Macht gegen die individuellen Staaten, der Geist, der sich im Prozesse der Weltgeschichte seine Wirklichkeit gibt.“

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e constitui o juiz absoluto [absoluten Richter] sobre eles. Podem, certamente, vários Estados como coligação [mehrere Staaten als Bund] constituir um tribunal [Gericht] sobre outros, podem ocorrer ligas entre Estados [Staatenverbindungen], como, por exemplo, a Santa Aliança [Heilige Allianz], mas estas são sempre apenas relativas e delimitadas [relativ und beschränkt], como a paz perpétua [ewige Frieden]. O único juiz absoluto [alleinige absolute Richter], que se faz valer sempre e prevalece perante o particular, é o espírito sendo em si e para si, que se apresenta como o universal e como o gênero operante na história mundial. [Weltgeschichte]5

Como veremos, destaca-se aí sobretudo a afirmação de que os “Estados como coligação” (Staaten als Bund) ou as “ligas entre Estados” (Staatenverbindungen), que busquem constituir um “tribunal” (Gericht) ou “juiz” (Richter) sobre outros, enquanto “Santa Aliança” (Heilige Allianz), serão ou são “sempre apenas relativas e delimitadas” (sind immer nur relativ und beschränkt), tal como a “paz perpétua” (ewige Friede). Trata-se de elemento mencionado em “Adendo” (Zusatz)6, mas que será apresentado ou reiterado também por Hegel em caput e/ou em anotação (Anmerkung), como ainda veremos. Além disso, é importante citar o § 536 da ECF de Hegel: O Estado é a) primeiro, sua configuração interior enquanto desenvolvimento que se refere a si mesmo: o direito estatal [ou político] interno ou a constituição; b) é [um] indivíduo particular, e assim em relação com outros indivíduos particu lares, o direito estatal [ou político] externo [das äußere Staatsrecht]; c) mas esses espíritos particulares são apenas momentos no desenvolvimento da ideia universal do espírito em sua efetividade – a história mundial. (HEGEL, 1995, p. 305)7 5 HEGEL. FD. § 259 Z, Tradução nossa. Cf. Hegel Werke. 7/404-405 „Der Staat als wirklich ist wesentlich individueller Staat und weiter hinaus noch besonderer Staat. Die Individualität ist von der Besonderheit zu unterscheiden: sie ist Moment der Idee des Staates selbst, während die Besonderheit der Geschichte angehört. Die Staaten als solche sind unabhängig voneinander, und das Verhältnis kann also nur ein äußerliches sein, so daß ein drittes Verbindendes über ihnen sein muß. Dies Dritte ist nun der Geist, der sich in der Weltgeschichte Wirklichkeit gibt und den absoluten Richter über sie ausmacht. Es können zwar mehrere Staaten als Bund gleichsam ein Gericht über andere bilden, es können Staatenverbindungen eintreten, wie z. B. die Heilige Allianz, aber diese sind immer nur relativ und beschränkt, wie der ewige Frieden. Der alleinige absolute Richter, der sich immer und gegen das Besondere geltend macht, ist der an und für sich seiende Geist, der sich als das Allgemeine und als die wirkende Gattung in der Weltgeschichte darstellt.“ 6 Convém destacar que os “adendos” (Zusätze) são registros discentes das aulas de Hegel e, assim sendo, devem ser qualificados como “adendos” (Zusätze) às “frases” (Sätze) de Hegel, pois, existe a “questão da autenticidade” (Authentizitätsfrage) desses registros e a questão do suposto “Hegel autêntico” (echter Hegel), quando Zusätze e Sätze diferem. Ora, independente da resposta para tais problemas, na presente pesquisa, citaremos e examinaremos o conteúdo dos adendos apenas para compará-lo com o das frases do texto em si publicado por Hegel, a saber, no caso, a Filosofia do Direito; afinal, consideramos que o Zusatz deve sempre servir “para” (zu) o Satz, não o contrário. Na dúvida, o que vale é o Satz e não o Zusatz. 7 Cf. Hegel Werke. 10/330 „Der Staat ist α) zunächst seine innere Gestaltung als sich auf sich beziehende Entwicklung,

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No caso, vemos claramente o aspecto sistemático e tríade da filosofia de Hegel, apresentando o “Direito Estatal [ou Público] [ou Político] Externo”8 (äußeres Staatsrecht), nas citadas obras, entre o chamado “Direito Estatal [ou Público] [ou Político] Interno” (innere Staatsrecht) e a História Mundial (Weltgeschichte). Não será possível aqui expor os devidos elementos sobre isso, mas convém registrar um fato peculiar e importante, a saber, a não existência de uma tríade nas subdivisões do denominado 3.2.3.3.1 Direito Estatal Interno (innere Staatsrecht), pois ele é dividido só em: 3.2.3.3.1.1 “I. A Constituição Interna Para Si”9 (I. Innere Verfassung für sich [§§ 272-320]) e 3.2.3.3.1.2 “II. A Soberania Externa (II. Die Souveränität gegen außen [§§ 321-329]), isto é, dividida apenas em duas partes. Assim sendo, não existe o item 3.2.3.3.1.3, isto é, não ocorre a tradicional tríade. Mas, por quê? Ora, os §§ 260-329 (= 80 §§) da FD e os §§ 537-546 (= 10 §§) da ECF, que expõem e analisam o citado “Direito Estatal Interno” (innere Staatsrecht), em especial nos seus parágrafos finais, apresentam o fator aparente da ausência do respectivo terceiro elemento, a saber, o chamado “estado” ou a “situação de guerra” (Zustand des Krieges) entre os Estados, em especial no processo da dita “conservação da autonomia do Estado” (Erhaltung der Selbständigkeit des Staats), como ainda veremos. Em suma, assim, ao iniciar a seção “Direito Estatal Externo” (äussere Staatsrecht), Hegel o faz sem antes suprassumir (aufheben)10 a seção anterior com uma habitual tríade, aspecto distinto e determinante para a Ciência ou a Filosofia Sistemática do autor.

- das innere Staatsrecht oder die Verfassung; er ist β) besonderes Individuum, so im Verhältnisse zu anderen besonderen Individuen, - das äußere Staatsrecht; γ) aber diese besonderen Geister sind nur Momente in der Entwicklung der allgemeinen Idee des Geistes in seiner Wirklichkeit, - die Weltgeschichte.“ 8 O termo alemão äussere Staatsrecht é traduzido de várias formas = Direito Estatal [Público, Político] Externo e, até, por Direito Internacional. A saber, Paulo Meneses et al. (2010) - Direito Estatal Externo; Marcos Lutz Müller (1998) - Direito Público Externo; Orlando Vitorino (1987) - Direito Internacional; Angélica Mendoza de Montero (1968) - Derecho Político Externo; Eduardo Vásquez (1991) - Derecho Externo del Estado; Ramón Valls Plana (2005) Derecho Político Exterior; André Kaan (1940) - Droit International; Robert Derathé (1986) - Droit Public International; Jean-François Kervégan (1998) - Droit Étatique Externe; S. W. Dyde (2001) - International Law; T. M. Knox (2008) - Right Between States. Infelizmente, por questão de espaço, os dados das respectivas traduções não constam aqui nem nas Referências. Mas, os dados bibliográficos dessas obras constam em: KONZEN, Paulo Roberto. O Conceito de Liberdade de Imprensa ou de Liberdade da Comunicação Pública na Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2013. p. 440-444. 9 Ela é igualmente subdividida em uma tríade: 3.2.3.3.1.1.1 O Poder do Príncipe (Die fürstliche Gewalt [§§ 275-285]); 3.2.3.3.1.1.2 O Poder Governamental (Die Regierungsgewalt [§§ 286-297]) e, ainda, 3.2.3.3.1.1.3 O Poder Legislativo (Die gesetzgebende Gewalt [§§ 298-320])) 10 Traduziu-se aufheben e Aufhebung por “suprassumir” e “suprassunção”, a fim de destacar o sentido pleno da polissemia contida na língua natural alemã e explorada especulativamente por Hegel para significar, ao mesmo tempo, suprimir [sumir], conservar [assumir] e elevar [supra+assumir]. Trata-se de conceito essencial de Hegel para o dito “lado especulativo ou positivamente racional” (die spekulative oder positiv-vernünftige - cf. ECF (I). § 79. 8/168) de sua filosofia ou de sua ciência.

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O Direito Estatal Externo (Das äussere Staatsrecht) de Hegel

Primeiro, convém referir que a seção “O Direito Estatal Externo” (Das äussere Staatsrecht) ocupa os §§ 330-340 (= 11 §§) da FD (2010) e, tão somente, o § 547 (= 1 §) da ECF (1995). Trata-se de grande diferença quantitativa, demonstrando a importância e a ênfase dada ao texto da Filosofia do Direito. Ora, no § 547, depois do subtítulo (β. O Direito Estatal [ou Político] Externo), afirma-se: Pelo estado [ou situação] de guerra [Zustand des Krieges], põe-se em jogo a autonomia dos Estados [Selbständigkeit der Staaten], e segundo um lado se efetua o reconhecimento recíproco [die gegenseitige Anerkennung] das livres individualidades dos povos (§ 430), e pelos acordos [tratados] de paz [Friedensvergleiche], que devem [ou deveriam - sollen] durar eternamente [ewig dauern], fixam-se tanto esse reconhecimento universal [allgemeine Anerkennung] quanto as autorizações particulares que os povos se dão uns aos outros. (HEGEL, 1995, p. 319).11

Trata-se, como veremos, do ponto principal da visão de Hegel sobre a questão da “guerra” (Krieg) ou do “estado [ou da situação] de guerra” (Zustand des Krieges) versus de “paz” (Friede) ou “acordos [tratados] de paz” (Friedensvergleiche); a saber, a diferença entre o que é ou vigora versus o que deveria ser. Trata-se de ponto reiterado várias vezes e que analisaremos logo mais. Depois da frase inicial, acima, do § 547, consta a afirmação abaixo: O direito estatal [político] externo [äußere Staatsrecht] repousa, de uma parte [teils], nesses tratados positivos [positiven Traktaten], mas nessa medida contém apenas direitos [nur Rechte], a que falta a verdadeira efetividade [die wahrhafte Wirklichkeit] (§ 545); de outra parte [teils], [repousa] sobre o que se chama direito dos povos [ou das gentes] [ou internacional - Völkerrechte], cujo princípio universal é o ser-reconhecido [Anerkanntsein] pressuposto [vorausgesetzte] dos Estados, e portanto limita [beschränkt] suas ações – que de outro modo

11 Cf. Hegel Werke. 10/346 „Durch den Zustand des Krieges wird die Selbständigkeit der Staaten auf das Spiel gesetzt und nach einer Seite die gegenseitige Anerkennung der freien Völkerindividuen bewirkt (§ 430) und durch Friedensvergleiche, die ewig dauern sollen, sowohl diese allgemeine Anerkennung als die besonderen Befugnisse der Völker gegeneinander festgesetzt.“

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seriam ilimitadas – umas em relação às outras, de forma que fique [ou permaneça = bleibt] a possibilidade da paz [die Möglichkeit des Friedens]; [direito] que também distingue os indivíduos enquanto pessoas privadas do Estado, e que de modo geral repousa nos costumes [ethos]. (HEGEL, 1995, p. 319).12

O texto é relativamente claro e autoexplicativo. Registramos os termos principais em alemão, a fim de destacar aspectos conceituais e de tradução, além dos grifos do próprio autor. No caso, convém registrar aqui sobretudo a questão da diferença entre ter e faltar “a verdadeira efetividade” (die wahrhafte Wirklichkeit), pois, como veremos abaixo, segundo Hegel, “a possibilidade da paz” (die Möglichkeit des Friedens) não é do âmbito do “ser” (Sein), mas do “dever ser” (Sollen). Sobre isso, na FD (2010), no primeiro § da seção “B. O Direito Estatal Externo”, a saber, no § 330, consta o seguinte: “O direito estatal externo procede das relações de Estados autônomos; o que é em si e para si no mesmo recebe, por isso, a forma do dever-ser [des Sollens], porque o fato de que ele seja efetivo [wirklich] repousa em vontades soberanas diferenciadas.” (HEGEL, 2010, p. 301.)13. No caso, entre outros, destaca-se igualmente a afirmação de que o Direito Estatal Externo tem ou recebe a forma do “dever-ser” (Sollen) e, assim, não necessariamente a forma de algo “efetivo” (wirklich). A seguir, no § 331, Hegel afirma: “[...] um Estado está consequentemente em face a outros na autonomia soberana. Ser enquanto tal para outro, isto é, ser reconhecido [anerkannt] por ele, é sua primeira legitimação absoluta”; e, em seguida, complementa: “Mas, essa legitimação é igualmente apenas formal [nur formell], e a exigência desse reconhecimento do Estado, meramente porque ele seja tal, é abstrata [abstrakt]” (HEGEL, 2010, p. 301-302)14. Depois disso, no § 331 A, consta que “a legitimidade de um Estado” requer o “reconhecimento dos outros Estados” e, ainda, que “esse reconhecimento exige uma garantia de que ele reconheça igualmente os outros [Estados], que devem reconhecê-lo [ihn anerkennen sollen], isto é, de que eles sejam respeitados em sua auto12 Cf. Hegel Werke. 10/346 „Das äußere Staatsrecht beruht teils auf diesen positiven Traktaten, enthält aber insofern nur Rechte, denen die wahrhafte Wirklichkeit abgeht (§ 545), teils auf dem sogenannten Völkerrechte, dessen allgemeines Prinzip das vorausgesetzte Anerkanntsein der Staaten ist und daher die sonst ungebundenen Handlungen gegeneinander so beschränkt, daß die Möglichkeit des Friedens bleibt, - auch die Individuen als Privatpersonen vom Staate unterscheidet und überhaupt auf den Sitten beruht.“ 13 Cf. Hegel Werke. 7/497 „B. Das äußere Staatsrecht“ - „Das äußere Staatsrecht geht von dem Verhältnisse selbständiger Staaten aus; was an und für sich in demselben ist, erhält daher die Form des Sollens, weil, daß es wirklich ist, auf unterschiedenen souveränen Willen beruht.“ 14 Cf. Hegel Werke. 7/497 „[...] ein Staat ist folglich gegen den anderen in souveräner Selbständigkeit. Als solcher für den anderen zu sein, d. i. von ihm anerkannt zu sein, ist seine erste absolute Berechtigung. Aber diese Berechtigung ist zugleich nur formell und die Forderung dieser Anerkennung des Staats, bloß weil er ein solcher sei, abstrakt;“

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nomia” (HEGEL, 2010, p. 301-302)15. Em suma, de novo a questão de que “devem” (sollen) fazer algo, isto é, no caso, devem “reconhecer” (anerkennen), mas que, porém, é algo “apenas formal” (nur formell) e/ou “abstrato” (abstrakt), não necessariamente algo concreto, efetivo. Além disso, diante do que acima é afirmado no texto, convém citar igualmente o mencionado § 545 da ECF, em que se afirma o seguinte: O Estado tem, enfim, a parte de ser a efetividade imediata de um povo singular e naturalmente determinado. Enquanto indivíduo singular, ele é exclusivo frente a outros indivíduos da mesma espécie. Na sua relação [Verhältnisse], de uns com os outros, tem lugar o arbitrário e a contingência [die Willkür und Zufälligkeit], porque o universal do direito, em razão da totalidade autônoma dessas pessoas, entre elas apenas deve ser [nur sein soll], não é efetivo [nicht wirklich ist]. Essa independência faz do conflito [Streit] entre eles uma relação de violência [de poder - Verhältnisse der Gewalt], uma situação de guerra [Zustand des Krieges], para o qual o estamento universal se determina em vista do fim particular da conservação da autonomia do Estado [Erhaltung der Selbständigkeit des Staats] perante os outros, em um estamento de bravura [valentia - Stande der Tapferkeit]. (HEGEL, 1995, p. 318)16

Portanto, registra-se, de forma reiterada, a chamada “efetiva” (wirklich) “situação [ou estado] de guerra” (Zustand des Krieges) entre os Estados versus de “paz” (Friede), a qual é, para Hegel, algo que “apenas deve [ou deveria] ser” (nur sein soll), mas que “não é efetiva” (nicht wirklich ist). Trata-se de item essencial, que é necessário analisar, citando e analisando, entre outros, o § 324 A da FD, no qual Hegel, inicialmente, fala do “momento ético da guerra” (sittliche Moment des Kriege) e, logo depois, afirma: A guerra [Krieg], como situação em que se torna algo sério a vaidade dos bens e das coisas temporais, que antes costuma ser um modo de falar edificante, é assim o momento em que a idealidade do particular recebe seu direito e torna-se efetividade; – ela [a guerra] tem a significação superior [höhere

15 Cf. Hegel Werke. 7/497 „Die Legitimität eines Staats [...] Anerkennung der anderen Staaten [...] Aber diese Anerkennung fordert eine Garantie, daß er die anderen, die ihn anerkennen sollen, gleichfalls anerkenne, d. i. sie in ihrer Selbständigkeit respektieren werde [...].“ 16 Cf. Hegel Werke. 10/344-345 „Der Staat hat endlich die Seite, die unmittelbare Wirklichkeit eines einzelnen und natürlich bestimmten Volkes zu sein. Als einzelnes Individuum ist er ausschließend gegen andere ebensolche Individuen. In ihrem Verhältnisse zueinander hat die Willkür und Zufälligkeit statt, weil das Allgemeine des Rechts um der autonomischen Totalität dieser Personen willen zwischen ihnen nur sein soll, nicht wirklich ist. Diese Unabhängigkeit macht den Streit zwischen ihnen zu einem Verhältnisse der Gewalt, einem Zustand des Krieges, für welchen der allgemeine Stand sich zu dem besonderen Zwecke der Erhaltung der Selbständigkeit des Staats gegen andere, zum Stande der Tapferkeit, bestimmt.“

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Bedeutung], como já mencionei em outro lugar17, de que por ela “a saúde ética dos povos [die sittliche Gesundheit der Völker] é mantida, e sua indiferença frente ao solidificar das determinidades finitas, como o movimento dos ventos preserva os mares da podridão, em que uma calma durável [eine dauernde Ruhe] os mergulharia, como faria para os povos uma paz durável ou inclusive uma paz perpétua [ein dauernder oder gar ein ewiger Friede]”. (HEGEL, 2010, p. 298)18

No caso, Hegel mostra ou demonstra que seu pensamento continua o mesmo, reiterando algo em 1821 que já havia afirmado em 1802, isto é, sua compreensão sobre a guerra e a paz perpétua não foi alterada. Ora, depois disso, na frase subsequente, consta a seguinte afirmação importante: Aliás, veremos adiante [§ 337] que isso é apenas [nur] uma ideia filosófica [philosophische Idee], ou então, como se costuma expressar de outro modo, uma justificação da Providência19, e que as guerras efetivas [wirklichen Kriege] carecem ainda de uma outra justificação. (HEGEL, 2010, p. 298)20

Assim, Hegel já destaca que a noção ou a pressuposição de “paz perpétua” (ewige Friede) é “apenas [nur] uma ideia filosófica [philosophische Idee]”, a qual, talvez infelizmente, é tão somente “um ideal [ein Ideal]”. Sobre isso, convém citar o § 324 Z da FD: Na paz [Im Frieden], a vida civil-burguesa se expande mais, todas as esferas se encasulam e, em longo prazo, os seres humanos estagnam como pântanos; a sua particularidade torna-se sempre mais fixa e se ossifica. Mas, faz parte da saúde [Gesundheit] a unidade do corpo, e quando as partes em si mesmas endurecem a morte [Tod] está aí. Paz perpétua [Ewiger Friede] foi frequentemente exigida [gefordert] como um ideal [ein Ideal], do qual a humanidade precisaria se aproximar [zugehen müsse]. Kant propôs, assim, uma coligação de príncipes [Fürstenbund], que deveria arbitrar [schlichten sollte] os conflitos dos Estados [treitigkeiten der Staa17 * Sobre as Maneiras Científicas de Tratar o Direito Natural = Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts, de 1802, Ed. Suhrkamp, vol. 2, p. 482. 18 Cf. Hegel Werke. 7/491-492 „Der Krieg als der Zustand, in welchem mit der Eitelkeit der zeitlichen Güter und Dinge, die sonst eine erbauliche Redensart zu sein pflegt, Ernst gemacht wird, ist hiermit das Moment, worin die Idealität des Besonderen ihr Recht erhält und Wirklichkeit wird; - er hat die höhere Bedeutung, daß durch ihn, wie ich es anderwärts ausgedrückt habe, „die sittliche Gesundheit der Völker in ihrer Indifferenz gegen das Festwerden der endlichen Bestimmtheiten erhalten wird, wie die Bewegung der Winde die See vor der Fäulnis bewahrt, in welche sie eine dauernde Ruhe, wie die Völker ein dauernder oder gar ein ewiger Friede, versetzen würde.“ 19 § 337, da FD: “[...] o governo é uma sabedoria particular, não a Providência universal (cf. § 324 A) [...].” 20 Cf. Hegel Werke. 7/492 „Daß dies übrigens nur philosophische Idee oder, wie man es anders auszudrücken pflegt, eine Rechtfertigung der Vorsehung ist und daß die wirklichen Kriege noch einer anderen Rechtfertigung bedürfen, davon hernach.“

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ten], e a Santa Aliança [Heilige Allianz] tinha a intenção de ser aproximadamente um tal instituto [Institut]. Só que o Estado é um indivíduo e, na individualidade, a negação [Negation] está essencialmente contida.21

No caso, percebe-se claramente a relação Kant e Hegel ou Hegel X Kant, pois são autores contemporâneos em parte (Kant: 1724-1804 e Hegel: 1770-1831) e a influência kantiana em Hegel é notável, tanto na forma de concordância quanto de discordância, sendo impossível compreender o pensamento hegeliano sem antes ter devidamente presente a filosofia de Kant. Por isso, a seguir, citaremos e analisaremos parte da filosofia kantiana sobre o citado tema. Mas, antes disso, sobre o aspecto em questão, convém ainda citar o § 333 da FD: O princípio fundamental do direito dos povos [Völkerrechte]22, enquanto direito universal [allgemeinen] que deve valer [gelten sollenden] em si e para si [an und für sich] entre os Estados, diferentemente do conteúdo particular dos tratados positivos [positiven Traktate], é que os tratados [Traktate], enquanto 21 HEGEL. FD. § 324 Z. TP. Cf. Hegel Werke. 7/492-493 „Im Frieden dehnt sich das bürgerliche Leben mehr aus, alle Sphären hausen sich ein, und es ist auf die Länge ein Versumpfen der Menschen, ihre Partikularitäten werden immer fester und verknöchern. Aber zur Gesundheit gehört die Einheit des Körpers, und wenn die Teile in sich hart werden, so ist der Tod da. Ewiger Friede wird häufig als ein Ideal gefordert, worauf die Menschheit zugehen müsse. Kant hat so einen Fürstenbund vorgeschlagen, der die Streitigkeiten der Staaten schlichten sollte, und die Heilige Allianz hatte die Absicht, ungefähr ein solches Institut zu sein. Allein der Staat ist Individuum, und in der Individualität ist die Negation wesentlich enthalten.“ Na sequência do § 324 Z, ainda consta: “Ainda que, portanto, um certo número de Estados se constitua numa família, esta associação, enquanto individualidade, tem de criar uma oposição e engendrar um inimigo. Não só os povos saem revigorados das guerras, mas as nações, que estão em discórdia dentro de si, alcançam com a guerra externa a tranquilidade interna. Certamente, pela guerra advém insegurança na propriedade, mas essa insegurança real nada mais é do que o movimento, o qual é necessário. Ouve-se dos púlpitos falar tanto da insegurança, da vaidade e da inconstância das coisas temporais, mas cada um pensa a respeito, por mais tocado que esteja, eu vou, contudo, reter o que é meu. Mas se essa insegurança vem efetivamente à baila, na forma de hussardos com sabres reluzentes, e é coisa séria, essa comovida edificação que tudo predisse volve-se, então, a proferir maldições sobre os conquistadores. Apesar disso, as guerras ocorrem quando estão na natureza da coisa; de novo as sementes germinam rapidamente, e o palavrório emudece diante das sérias repetições da história.” (Cf. Hegel Werke. 7/493 „Wenn also auch eine Anzahl von Staaten sich zu einer Familie macht, so muß sich dieser Verein als Individualität einen Gegensatz kreieren und einen Feind erzeugen. Aus den Kriegen gehen die Völker nicht allein gestärkt hervor, sondern Nationen, die in sich unverträglich sind, gewinnen durch Kriege nach außen Ruhe im Innern. Allerdings kommt durch den Krieg Unsicherheit ins Eigentum, aber diese reale Unsicherheit ist nichts als die Bewegung, die notwendig ist. Man hört soviel auf den Kanzeln von der Unsicherheit, Eitelkeit und Unstetigkeit zeitlicher Dinge sprechen, aber jeder denkt dabei, so gerührt er auch ist, ich werde doch das Meinige behalten. Kommt nun aber diese Unsicherheit in Form von Husaren mit blanken Säbeln wirklich zur Sprache und ist es Ernst damit, dann wendet sich jene gerührte Erbaulichkeit, die alles vorhersagte, dazu, Flüche über die Eroberer auszusprechen. Trotzdem aber finden Kriege, wo sie in der Natur der Sache liegen, statt; die Saaten schießen wieder auf, und das Gerede verstummt vor den ernsten Wiederholungen der Geschichte.”) 22 O termo alemão “Völkerrecht(e)(s)” (mencionado nos §§ 333 e 338 da FD e § 547 da ECF) é traduzido igualmente de várias formas, a saber: Paulo Meneses et al. (2010) - direito dos povos; Marcos Lutz Müller (1998) - direito internacional; Orlando Vitorino (1987) - direito dos povos; Angélica Mendoza de Montero (1968) - derecho internacional; Eduardo Vásquez (1991) - derecho de los pueblos; Ramón Valls Plana (2005) - derecho de gentes; André Kaan (1940) - droit des peuples - droit des gens; Robert Derathé (1986) - droit des gens; Jean-François Kervégan (1998) - droit des gens; S. W. Dyde (2001) - international law; T. M. Knox (2008) - international law.

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neles repousam as obrigatoriedades dos Estados uns frente aos outros, devem vir a ser observados [gehalten werden sollen]. Mas porque suas relações têm por princípio sua soberania [Souveränität], assim eles estão nessa medida em estado de natureza [Naturzustande] uns frente aos outros, e seus direitos [Rechte] têm sua efetividade [Wirklichkeit] não em uma vontade universal constituída como força [ou poder - Macht] sobre eles, porém em sua vontade particular [besonderen Willen]. Por isso, aquela determinação universal permanece [bleibt] no dever-ser [Sollen], e a situação torna-se uma alternância da relação conforme aos tratados [Traktaten] e da suprassunção [Aufhebung] da mesma. (HEGEL, 2010, p. 302.)23

De novo, destaca-se a questão da diferença entre ser do âmbito da “efetividade” (Wirklichkeit) e ser do “dever-ser” (Sollen) ou, então, de elementos que apenas “devem vir a ser observados” (gehalten werden sollen). Como vimos e ainda veremos, trata-se da tese principal de Hegel. Por fim, sobre isso, convém mencionar e considerar a nota 81 de Robert Derathé ao § 338 da FD, na qual se afirma o seguinte: Sobre a expressão “Völkerrecht”, que em geral Hegel evita empregar24, Kant faz a seguinte observação: “O direito dos Estados em suas relações recíprocas – um direito que se chama em alemão “das Völkerrecht” (direito dos povos) de maneira bastante incorreta, deveria ser chamado de “das Staatenrecht” (o direito dos Estados: jus publicum civitatum).” (DERATHÉ, 1986, p. 332)25

23 Cf. Hegel Werke. 7/498-499 „Der Grundsatz des Völkerrechts, als des allgemeinen, an und für sich zwischen den Staaten gelten sollenden Rechts, zum Unterschiede von dem besonderen Inhalt der positiven Traktate, ist, daß die Traktate, als auf welchen die Verbindlichkeiten der Staaten gegeneinander beruhen, gehalten werden sollen. Weil aber deren Verhältnis ihre Souveränität zum Prinzip hat, so sind sie insofern im Naturzustande gegeneinander, und ihre Rechte haben nicht in einem allgemeinen zur Macht über sie konstituierten, sondern in ihrem besonderen Willen ihre Wirklichkeit. Jene allgemeine Bestimmung bleibt daher beim Sollen, und der Zustand wird eine Abwechslung von dem den Traktaten gemäßen Verhältnisse und von der Aufhebung desselben.“ 24 De fato, Hegel usa poucas vezes a expressão ou o conceito de Völkerrecht na Hegel Werke, sendo que na FD somente duas (2) vezes: uma no citado § 333 e outra no § 338, em que a usa como adjetivo, a saber, ao falar de “determinação do direito dos povos” (“die völkerrechtliche Bestimmung”), como ainda veremos. Além disso, ele ocorre três (3) vezes em Jenaer Schriften; uma (1) vez em Nürnberger und Heidelberger Schriften; uma (1) vez em Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; e três (3) vezes em Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie; num total, então, de dez (10) vezes. Interessante notar que não ocoore na ECF. Mas, aqui, citaremos e analisaremos apenas as da FD. 25 TP: “Sur l’expression ‘Völkerrecht’” qu’en géneral Hegel évite d’employer, Kant fait la remarque suivante: “Le droit des Etats dans leurs rapports réciproques – droit qu’on appelle en allemand “das Völkerrecht” (droit des peuples) de manière assez incorrecte, devrait bien plutôt être appelé “das Staatenrecht” (droit des Etats: jus publicum civitatum).” Ver igualmente Nota 4, p. 263, ao § 259, de Robert Derathé (1986), TP: “Embora, diferente de Kant, Hegel não se serve da expressão direito público (öffentliches Recht), nós, no entanto, traduzimos inneres Staatsrecht por direito público interno e äusseres Staatsrecht por direito público internacional.” (Cf. “Quoique, à la différence de Kant, Hegel ne se serve pas de l’expression droit public (öffentliches Recht), nous avons néanmoins traduit inneres Staatsrecht par droit public interne et äusseres Staatsrecht par droit public international.”)

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Assim sendo, existe uma relação direta do pensamento de Hegel com o de Kant. Diante disso, convém citar e analisar antes o que Kant apresenta e defende sobre os citados conceitos. O Direito Estatal ou o Direito do Estado (Staatsrecht), o Direito dos Estados (Staatenrecht ou Recht der Staaten) ou o Direito dos Povos [das Gentes] (Völkerrecht) de Kant

Como vimos acima e veremos abaixo, de fato, Kant na sua obra A Metafísica dos Costumes (Die Metaphysik der Sitten)26 afirma a frase citada. O trecho da mencionada obra consta dentro da chamada “A Doutrina do Direito” (Der Rechtslehre), a qual está dividida em “O Direito Privado” (Das Privatrecht) e “O Direito Público” (Das öffentliche Recht), o qual está dividido em três, isto é: “Seção 1. O Direito Estatal” ou “O Direito do Estado” (1. Abschnitt. Das Staatsrecht); “Seção 2. O Direito dos Povos [ou das Gentes]” (2. Abschnitt. Das Völkerrecht) e, por fim, “Seção 3. O Direito Cosmopolita” (3. Abschnitt. Das Weltbürgerrecht). Ora, são diversos os elementos aí apresentados, o que infelizmente não é possível tentar desenvolver no presente texto, mas é necessário registrar, por exemplo, a afirmação de Kant no § 4327, a saber: O conjunto das leis que necessitam [bedürfen] ser promulgadas [einer allgemeinen Bekanntmachung], em geral a fim de criar uma condição jurídica [einen rechtlichen Zustand], é o direito público [das öffentliche Recht]. – Este [Dieses - direi26 Convém aqui antes registrar uma Cronologia Básica e Principais Obras de Immanuel Kant (Königsberg, * 22.04.1724 - † 12.02.1804), sobretudo até a mencionada obra, que pressupõe um histórico de estudos e publicações. 1724 - Nasce Immanuel Kant em Königsberg [renomeada Kaliningrado em 1946], no leste da então Prússia [agora da Rússia], em 22 de abril. 1770 - Kant, com 46 anos, é nomeado professor de Lógica e Metafísica na Universidade de Königsberg, aparecendo a dissertação Da forma e princípios do mundo sensível e do inteligível. 1781 - Crítica da Razão Pura, primeira edição [então com 57 anos]. 1783 - Prolegômenos a toda metafísica futura. 1784 - Ideias rumo a uma história universal de um ponto de vista cosmopolita; e também: Resposta à questão: O que é Iluminismo? 1785 - Fundamentos da metafísica dos costumes. 1787 - Crítica da Razão Pura, segunda edição. 1788 - Crítica da Razão Prática; 1790 - Crítica do Juízo, primeira edição. 1793 - Crítica do Juízo, segunda edição; e também: A Religião nos Limites da Simples Razão. 1795 - Da paz perpétua. Um projeto filosófico [Zum ewigen Frieden. Ein philosophischer Entwurf] 1796 - Em 23 de julho deste ano, aos 72 anos, Kant dá sua última palestra (sendo sobre Lógica). 1797 - Sobre um pretenso direito de mentir por filantropia [Über ein vermeintes Recht aus Menschenliebe zu lügen]; e também: A Metafísica dos Costumes [Die Metaphysik der Sitten] (publicada separadamente no mesmo ano: primeiro, a Doutrina do direito [Rechtslehre] e, depois, a Doutrina da virtude [Tugendlehre]); em 1798, tem uma segunda edição ampliada. 1798 - Antropologia num sentido pragmático; e também: O conflito das faculdades. 1800 - Lógica, por Jäsche. 1803 - Kant adoece [doença que apresentava sintomas semelhantes à Doença de Alzheimer, pois já não reconhecia sequer os seus amigos íntimos]; surge ainda sua obra Pedagogia (Educação), por Rink. 1804 - Morte de Immanuel Kant a 11 de fevereiro, com 79 anos, em Königsberg. Por isso, analisamos apenas a segunda obra, por ser posterior à primeira. 27 Usaremos a tradução Edson Bini (Bauru, SP: EDIPRO, 2003) de KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, mas sempre comparando com o original alemão (KANT. Die Metaphysik der Sitten), fazendo várias alterações e acréscimos de termos em alemão, a fim de destacar elementos importantes.

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to público] é, portanto, um sistema de leis para um povo [ein System von Gesetzen für ein Volk], isto é, uma multidão de seres humanos [eine Menge von Menschen], ou para uma multidão de povos [eine Menge von Völkern] que, porque se afetam entre si, precisam [bedürfen] de uma condição jurídica [des rechtlichen Zustandes] sob uma vontade que os una [unter einem sie vereinigenden Willen], uma constituição [einer Verfassung] (constitutio), de sorte que possam fruir o que é formulado como direito [Rechtens]. (KANT, 2003. p. 185)28

Logo em seguida, ainda consta: [...] assim [so], pelo conceito geral [universal - unter dem allgemeinen Begriffe] de direito público [des öffentlichen Rechts] somos levados a pensar [zu denken] não só [nicht bloß] no direito do Estado [das Staats-], porém também [sondern auch] num direito das gentes [ou dos povos = ein Völkerrecht] (ius gentium): visto que a superfície da Terra não é ilimitada, mas circunscrita, os conceitos de ambos [beides - direito do Estado e de direito das gentes ou dos povos] conduzem inevitavelmente [unumgänglich hinleitet] à ideia [Idee] do direito de todas as gentes [ou povos = Völkerstaatsrecht] (ius gentium) ou direito cosmopolita [Weltbürgerrechts] (ius cosmopoliticum). (KANT, 2003, p. 185)29

No fim do citado trecho, Kant afirma que são essas as “três formas possíveis de condição jurídica” (drei möglichen Formen des rechtlichen Zustandes). A riqueza de elementos é grande e foge da nossa pretensão analisar todos os aspectos, pois nos interessa aqui muito mais a questão da “guerra” (Krieg) e da “paz” (Friede). Sobre isso, convém citar outra parte do já citado § 53: O direito dos Estados [Das Recht der Staaten {≠ do Direito Estatal ou Direito do Estado = Das Staatsrecht}] na sua relação recíproca (o que em alemão é denominado [genannt wird], de forma não inteiramente correta [nicht ganz richtig], direito das gentes [Völkerrecht], mas que, ao invés disso, deveria ser denominado [heißen sollte] direito dos Estados [Staatenrecht] (ius publicum civitatum)) é o que temos de examinar sob o tí28 Tradução Alterada [TA]. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Der Inbegriff der Gesetze, die einer allgemeinen Bekanntmachung bedürfen, um einen rechtlichen Zustand hervorzubringen, ist das öffentliche Recht. – Dieses ist also ein System von Gesetzen für ein Volk, d.i. eine Menge von Menschen, oder für eine Menge von Völkern, die, im wechselseitigen Einflusse gegen einander stehend, des rechtlichen Zustandes unter einem sie vereinigenden Willen, einer Verfassung (constitutio) bedürfen, um dessen, was Rechtens ist, teilhaftig zu werden.“ 29 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „[...] so, unter dem allgemeinen Begriffe des öffentlichen Rechts, nicht bloß das Staats- sondern auch ein Völkerrecht (ius gentium) zu denken Anlaß gibt: welches dann, weil der Erdboden eine nicht grenzenlose, sondern sich selbst schließende Fläche ist, beides zusammen zu der Idee eines Völkerstaatsrechts (ius gentium) oder des Weltbürgerrechts (ius cosmopoliticum) unumgänglich hinleitet [...]“.

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tulo [ou nome - unter dem Namen] direito das gentes [Völkerrechts]. Neste caso, um Estado [ein Staat], como uma pessoa moral [eine moralische Person], é considerado como vivendo em relação com um outro Estado [gegen einen anderen] na condição [ou situação - im Zustande] de liberdade natural [der natürlichen Freiheit] e, portanto, numa condição de guerra constante [des beständigen Krieges][;] consiste, por conseguinte, em parte [teils], em seu direito de ir à guerra [das Recht zum Kriege], em parte [teils], em seu direito na guerra [das im Kriege] e, em parte [teils], em seu direito de se constrangerem mutuamente a abandonar esse estado de guerra [aus diesem Kriegszustande herauszugehen] e, assim, formar uma constituição [Verfassung] que estabelecerá paz duradoura [beharrlichen Frieden], isto é, seu direito após a guerra [das Recht nach dem Kriege] [...]. (KANT, 2003, p. 186-187)30

Trata-se, portanto, do trecho mencionado acima por Robert Derathé, agora apresentado no todo do seu contexto da obra, com diversos aspectos importantes sobre guerra e paz. Depois disso, no § 54, Kant fala de “condição [ou estado] de guerra” (Zustand des Krieges), em que predomina o assim denominado “direito do mais forte” (Rechts des Stärkeren), e ainda no § 55, menciona um “direito original” (ursprünglichen Rechte), que “Estados livres têm num estado de natureza de irem à guerra entre si” (zum Kriege freier Staaten gegen einander im Naturzustande). Em seguida, porém, ele pergunta ou questiona: “Que direito tem o Estado, frente aos seus próprios súditos, de os usar na guerra contra outros Estados, de despender seus bens e mesmo suas vidas nela, ou os expor ao risco [ou os colocar em jogo]?” (KANT, 2003, p. 188)31. Diante da “questão” (Frage) de “irem à guerra” (in den Krieg ziehen) ou não, sobretudo contra o “querer” (wollen) do “povo” (Volk), consta uma das passagens do pensamento de Kant certamente mais críticas sobre guerra: Ora, como se diz, já que vegetais (por exemplo, batatas [Kartoffeln]) e animais domésticos [Haustieren] são um produto humano [ein Machwerk der Menschen] que ele [soberano = Souverän] pode [kann] utilizar, consumir e destruir (matar) [gebrauchen, verbrauchen und verzehren (töten lassen)], assim [so] parece [scheint] que também podemos afirmar, visto que 30 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Das Recht der Staaten in Verhältnis zu einander (welches nicht ganz richtig im Deutschen das Völkerrecht genannt wird, sondern vielmehr das Staatenrecht (ius publicum civitatum) heißen sollte) ist nun dasjenige, was wir unter dem Namen des Völkerrechts zu betrachten haben: wo ein Staat, als eine moralische Person, gegen einen anderen im Zustande der natürlichen Freiheit, folglich auch dem des beständigen Krieges betrachtet, teils das Recht zum Kriege, teils das im Kriege, teils das, einander zu nötigen, aus diesem Kriegszustande herauszugehen, mithin eine den beharrlichen Frieden gründende Verfassung, d.i. das Recht nach dem Kriege zur Aufgabe macht.“ 31 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Welches Recht hat der Staat gegen seine eigene Untertanen, sie zum Kriege gegen andere Staaten zu brauchen, ihre Güter, ja ihr Leben dabei aufzuwenden, oder aufs Spiel zu setzen?“

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a maioria de seus súditos [Untertanen] são seu próprio produto [sein eigenes Produkt], que a suprema autoridade no Estado [der obersten Gewalt im Staat], o soberano [dem Souverän], teria [ou tem] [könne] o direito de conduzi-los à guerra [Recht ... in den Krieg ... zu führen] como os conduziria a uma caçada e a batalhas como a uma viagem de recreio [Lustpartie]. (KANT, 2003, p. 188)32

Trata-se, assim, de manifesta crítica kantiana ao modo como o povo era conduzido ou usado nas guerras. Mas, na sequência do § 55, Kant declara que o “povo” (Volk), frente ao “soberano” (Souverän), não deve ser “passivo” (passiv), mas “ativo” (selbsttätig) na questão de poder expressar “seu voto” ou “sua voz” (seine Stimme), enquanto “livre assentimento” (freie Beistimmung), na assim chamada “declaração de guerra” (Kriegserklärung)33. Depois, no § 56, consta o seguinte: No estado de natureza entre os Estados [Im natürlichen Zustande der Staaten], o direito de ir à guerra [das Recht zum Kriege]34 (envolver-se em hostilidades [Hostilitäten]) constitui a maneira pela qual se permite a um Estado exercer seu direito contra um outro Estado, a saber, mediante sua própria força [Gewalt], quando crê ter sido prejudicado pelo outro Estado. (KANT, 2003, p. 189)35

32 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Sowie man nun von Gewächsen (z.B. den Kartoffeln) und von Haustieren, weil sie, was die Menge betrifft, ein Machwerk der Menschen sind, sagen kann, daß man sie gebrauchen, verbrauchen und verzehren (töten lassen) kann: so, scheint es, könne man auch von der obersten Gewalt im Staat, dem Souverän, sagen, er habe das Recht, seine Untertanen, die dem größten Teil nach sein eigenes Produkt sind, in den Krieg, wie auf eine Jagd, und zu einer Feldschlacht, wie auf eine Lustpartie zu führen.“ 33 Sobre isso, convém citar: “Retornando a Kant, é necessário salientar que o mesmo concebe a constituição republicana como a única capaz de possibilitar a aproximação do ideal da paz perpétua porque nela a decisão sobre a guerra cabe ao cidadão e não à arbitrariedade de um monarca.” (LIMA, 2015, p. 116). 34 Na sequência do § 56 consta: “Quanto às violações ativas, que conferem um direito de ir à guerra, incluem atos de retaliação (retorsio), um Estado tomando sobre si mesmo a obtenção de satisfação por uma ofensa cometida contra seu povo pelo povo de um outro Estado, em lugar de buscar compensação (por meios pacíficos) do outro Estado. Do ponto de vista das formalidades, isso se afigura a iniciar uma guerra sem, primeiramente, renunciar à paz (sem uma declaração de guerra), pois se um deseja descobrir um direito numa condição de guerra, algo semelhante a um contrato tem que ser assumido, nomeadamente, a aceitação da declaração da outra parte de que ambas querem buscar seu direito dessa forma.” (TA. „Was die tätige Verletzung betrifft, die ein Recht zum Kriege gibt, so gehört dazu die selbstgenommene Genugtuung für die Beleidigung des einen Volks durch das Volk des anderen Staats, die Wiedervergeltung (retorsio), ohne eine Erstattung (durch friedliche Wege) bei dem anderen Staate zu suchen, womit, der Förmlichkeit nach, der Ausbruch des Krieges, ohne vorhergehende Aufkündigung des Friedens (Kriegsankündigung), eine Ähnlichkeit hat; weil, wenn man einmal ein Recht im Kriegszustande finden will, etwas Analogisches mit einem Vertrag angenommen werden muß, nämlich Annahme der Erklärung des anderen Teils, daß beide ihr Recht auf diese Art suchen wollen. ”) 35 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Im natürlichen Zustande der Staaten ist das Recht zum Kriege (zu Hostilitäten) die erlaubte Art, wodurch ein Staat sein Recht gegen einen anderen Staat verfolgt, nämlich, wenn er von diesem sich lädiert glaubt, durch eigene Gewalt.”

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Em seguida, no § 57, Kant afirma: A maior dificuldade [die meiste Schwierigkeit] no direito das gentes [Völkerrecht] diz respeito precisamente ao direito durante uma guerra [Das Recht im Kriege]; é difícil até mesmo formar um conceito disso ou pensar em lei nesse estado sem lei [in diesem gesetzlosen Zustande] sem contradizer a si mesmo (inter arma silent leges {Kant cita Cícero, no Pro Milone, IV, 10: Durante o combate as leis silenciam.}). Aquele [dasjenige - direito durante a guerra] teria que ser, então, o de travar a guerra [den Krieg ... zu führen]36 de acordo com princípios que deixam sempre em aberto a possibilidade [es immer noch möglich bleibt] de abandonar [herauszugehen] o estado de natureza entre os Estados [Naturzustande der Staaten] (na sua relação externa entre si) e ingressar [zu treten] numa condição jurídica [einen rechtlichen]. (KANT, 2003, p. 190)37

A preocupação de Kant, no mesmo § 57, é manter uma “condição de paz” (Friedenszustande) ou a “confiança” (Vertrauen) necessária ao estabelecimento de uma “paz duradoura” (dauerhaften Friedens) no futuro. Sobre isso, no § 58, fala-se sobre “o direito [do Estado] após a guerra” (das Recht nach dem Kriege), quando do “contrato de paz” (Friedensvertrag) e/ou “tratado de paz” (Friedensschluß), e no § 59, discorre-se sobre “o direito à paz” (das Recht des Friedens) e/ou sobre “o direito de estar em paz” (das [Recht], im Frieden zu sein). Vários elementos que não é possível analisar devidamente por questão de espaço, mas que convém registrar, a fim de mostrar o que Hegel conhecia ou podia conhecer do pensamento de Kant sobre o tema em questão. No § 60, Kant afirma que “o direito de um Estado contra um inimigo injusto não tem limites” (Das Recht eines Staats gegen einen ungerechten Feind hat keine Grenzen); porém, depois disso, ele questiona o leitor: “Mas o que é um inimigo injusto [ungerechter Feind], do ponto de vista dos conceitos do direito das gentes [Völkerrechts] no qual – tal como é o caso em um estado de natureza [Naturzustande] em geral – cada Estado é juiz em seu próprio caso?” (KANT, 2003, p. 192)38. Ora, entre outros, Kant regis36 No mesmo § 57, Kant alega que “nenhuma guerra” [Kein Krieg] de “Estados independentes entre si” (unabhängiger Staaten) “pode ser” (kann sein) uma “guerra punitiva” (Strafkrieg [bellum punitivum]), ou uma “guerra de extermínio” (Ausrottungskrieg [bellum internecinum]) ou “de subjugação” (Unterjochungskrieg [bellum subiugatorium]). 37 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Das Recht im Kriege ist gerade das im Völkerrecht, wobei die meiste Schwierigkeit ist, um sich auch nur einen Begriff davon zu machen, und ein Gesetz in diesem gesetzlosen Zustande zu denken (inter arma silent leges), ohne sich selbst zu widersprechen; es müßte denn dasjenige sein: den Krieg nach solchen Grundsätzen zu führen, nach welchen es immer noch möglich bleibt, aus jenem Naturzustande der Staaten (im äußeren Verhältnis gegen einander) herauszugehen, und in einen rechtlichen zu treten.” 38 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Was ist aber nun nach Begriffen des Völkerrechts, in welchem, wie überhaupt im Naturzustande, ein jeder Staat in seiner eigenen Sache Richter ist, ein ungerechter Feind?”

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tra: “É, entretanto, redundante [pleonastisch] falar de um inimigo injusto [eines ungerechten Feindes] num estado de natureza [Naturzustande]; pois o estado de natureza [Naturzustand] é ele mesmo uma condição de injustiça [ein Zustand der Ungerechtigkeit]” (KANT, 2003, p. 192)39. Por isso, no § 61, consta a seguinte afirmação kantiana: Uma vez que o estado de natureza entre os povos [der Naturzustand der Völker], como o estado de natureza entre seres humanos individuais [ou singulares - als einzelner Menschen], é uma condição [ein Zustand] que se deve abandonar [aus dem man herausgehen soll], a fim de ingressar-se numa condição legal [um in einen gesetzlichen zu treten], antes que isso aconteça, todos os direitos das gentes [ou dos povos = alles Recht der Völker], e qualquer coisa externa que seja minha ou tua que os Estados possam adquirir ou reter pela guerra [Krieg], são meramente provisórios [bloß provisorisch]. Somente numa associação universal de Estados [allgemeinen Staatenverein] (análoga àquela pela qual um povo se transforma num Estado) poderão os direitos vir a ter validade definitivamente [peremtorisch geltend] e surgir uma verdadeira condição de paz [ein wahrer Friedenszustand]. (KANT, 2003, p. 193)40

No caso, Kant reitera o que vários outros autores já registraram, a saber: “o estado de natureza entre os povos” (der Naturzustand der Völker) é “um estado” ou “uma condição” (ein Zustand) que “se deve abandonar” (aus dem man herausgehen soll), a fim de “surgir uma verdadeira condição [ou um verdadeiro estado] de paz” (ein wahrer Friedenszustand). Mas, de novo, como passar de algo que “deve ser” para algo do âmbito do “ser”? Depois disso, no mesmo § 61, ocorre a passagem ou a afirmação de Kant que, a princípio, mais influenciou o pensamento de Hegel, a saber: [...] a paz perpétua [der ewige Friede] (a meta final de todo o direito das gentes [das letzte Ziel des ganzen Völkerrechts]) é, com efeito, uma ideia inatingível [eine unausführbare Idee]. Mas, os princípios políticos dirigidos a ela [darauf - a paz perpétua], do ingresso em tais alianças dos Estados [Verbindungen der Staaten], que servem para a contínua aproximação [kontinuierlichen Annäherung] da mesma [demselben - a paz perpétua], não são inatingíveis [sind es nicht]; porém, 39 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Übrigens ist der Ausdruck, eines ungerechten Feindes im Naturzustande, pleonastisch; denn der Naturzustand ist selbst ein Zustand der Ungerechtigkeit.” 40 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Da der Naturzustand der Völker, eben so wohl als einzelner Menschen, ein Zustand ist, aus dem man herausgehen soll, um in einen gesetzlichen zu treten: so ist, vor dieser Ereignis, alles Recht der Völker und alles durch den Krieg erwerbliche oder erhaltbare äußere Mein und Dein der Staaten bloß provisorisch, und kann nur in einem allgemeinen Staatenverein (analogisch mit dem, wodurch ein Volk Staat wird) peremtorisch geltend und ein wahrer Friedenszustand werden.“

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visto que esta [diese = aproximação contínua] constitui uma tarefa [Aufgabe] fundada no dever [ou na obrigação - Pflicht] e, por conseguinte, no direito dos seres humanos e dos Estados [Recht der Menschen und Staaten], isso pode certamente ser atingido [ist ... ausführbar]. (KANT, 2003, p. 193)41

Assim, vemos como o próprio Kant apresenta a questão da “paz perpétua” (ewige Friede) como “uma ideia inatingível” (eine unausführbare Idee), mas da qual é ou seria possível uma “contínua aproximação” (kontinuierlichen Annäherung). O jogo de palavras entre o que é e o que deveria ser, entre o inatingível e o que pode [ou deveria] ser atingido precisa ser devidamente registrado e reconhecido, a fim de tentar compreender o texto ou o pensamento kantiano. Ainda no § 61, Kant apresenta elementos de como “preservar a paz” (den Frieden zu erhalten) e buscar a “manutenção da paz” (Erhaltung des Friedens) (KANT, 2003, p. 193)42, o que, aqui, infelizmente, não pode41 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „[...] so ist der ewige Friede (das letzte Ziel des ganzen Völkerrechts) freilich eine unausführbare Idee. Die politische Grundsätze aber, die darauf abzwecken, nämlich solche Verbindungen der Staaten einzugehen, als zur kontinuierlichen Annäherung zu demselben dienen, sind es nicht, sondern, so wie diese eine auf der Pflicht, mithin auch auf dem Recht der Menschen und Staaten gegründete Aufgabe ist, allerdings ausführbar“. 42 TA: “Tal associação de diversos Estados [einen solchen Verein einiger Staaten] com o propósito de preservar a paz [um den Frieden zu erhalten] pode ser chamada de um congresso permanente de Estados [permanenten Staatenkongreß], ao qual todo Estado vizinho está livre para juntar-se. Algo semelhante a isso sucedeu (ao menos no que respeita às formalidades do direito das gentes [Völkerrechts], com o objetivo da manutenção da paz [auf Erhaltung des Friedens]), na primeira metade do século atual * [Século XVIII. (n.t.)] na assembleia dos Estados Gerais em Haia [Versammlung der Generalstaaten im Haag]. Os ministros da maioria das cortes europeias, e mesmo das menores repúblicas [der kleinsten Republiken], apresentaram suas queixas a respeito de ataques empreendidos contra um deles por um outro. Desta maneira, cogitaram da Europa inteira [ganz Europa] como um único Estado confederado [einen einzigen föderierten Staat] que aceitavam como árbitro [als Schiedsrichter], por assim dizer, em suas disputas públicas [in jener ihren öffentlichen Streitigkeiten]. Mas posteriormente, ao invés disto, o direito das gentes [Völkerrecht] sobreviveu [geblieben] somente em livros [bloß in Büchern]; desapareceu [verschwunden] dos gabinetes ou então, após já se ter empregado a força [verübter Gewalt], foi relegado [anvertrauet] sob a forma de dedução [in Form der Deduktionen] à obscuridade dos arquivos [der Dunkelheit der Archive]. Entendese aqui por congresso [Kongreß] tão-somente [nur] uma coalizão voluntária [willkürliche ... Zusammentretung] de diferentes Estados [verschiedener Staaten] que pode ser dissolvida [ablösliche] a qualquer tempo [aller Zeit], e não uma união [Verbindung] (como aquela dos Estados norte-americanos) que é baseada numa constituição estatal [Staatsverfassung] e é, por conseguinte, indissolúvel [unauflöslich]. É somente através de um tal congresso que a ideia [Idee] de um direito público das gentes [öffentlichen Rechts der Völker] é exequível [errichtenden], direito a ser instaurado para a decisão de suas lides [disputas - Streitigkeiten] de uma maneira civil, como por meio de um processo, e não de uma maneira bárbara (a maneira dos selvagens), a saber, pela guerra [durch Krieg].” Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Man kann einen solchen Verein einiger Staaten, um den Frieden zu erhalten, den permanenten Staatenkongreß nennen, zu welchem sich zu gesellen jedem benachbarten unbenommen bleibt; dergleichen (wenigstens was die Förmlichkeiten des Völkerrechts, in Absicht auf Erhaltung des Friedens, betrifft) in der ersten Hälfte dieses Jahrhunderts in der Versammlung der Generalstaaten im Haag noch statt fand; wo die Minister der meisten europäischen Höfe, und selbst der kleinsten Republiken, ihre Beschwerden über die Befehdungen, die einem von dem anderen widerfahren waren, anbrachten, und so sich ganz Europa als einen einzigen föderierten Staat dachten, den sie in jener ihren öffentlichen Streitigkeiten gleichsam als Schiedsrichter annahmen, statt dessen späterhin das Völkerrecht bloß in Büchern übrig geblieben, aus Kabinetten aber verschwunden, oder, nach schon verübter Gewalt, in Form der Deduktionen, der Dunkelheit der Archive anvertrauet worden ist. Unter einem Kongreß wird hier aber nur eine willkürliche, zu aller Zeit ablösliche Zusammentretung verschiedener Staaten, nicht eine solche Verbindung, welche (so wie die der amerikanischen Staaten) auf einer Staatsverfassung gegründet, und daher unauflöslich ist, verstanden; – durch welchen allein die Idee eines zu errichtenden öffentlichen Rechts der Völker, ihre Streitigkeiten auf zivile Art, gleichsam durch einen

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remos analisar. Mas, no presente caso, importa examinar ainda trechos da “Conclusão” (Beschluß), em que Kant afirma: Ora, a razão moral-prática [moralisch-praktische Vernunft] pronuncia em nós [uns] seu veto irresistível [ihr unwiderstehliches Veto]: não deve haver nenhuma guerra [Es soll kein Krieg sein], nem guerra [der] entre tu e eu no estado de natureza [Naturzustande], nem guerra [der] entre nós como Estados, os quais, ainda que internamente numa condição legal [gesetzlichen], persistem externamente (na sua relação recíproca) numa condição ilegal [ou sem lei = gesetzlosen Zustande], pois ela [das - a guerra] não constitui o modo no qual todos [ou cada um = jedermann] deveriam buscar [suchen soll] seu direito [sein Recht]. (KANT, 2003, p. 196)43

Assim sendo, novamente convém destacar a expressão: “não deve haver nenhuma guerra” (Es soll kein Krieg sein), pois a guerra não é o modo como se “deveriam buscar” (suchen soll) nossos “direitos” (Rechten). De novo, a questão de como é versus como deveria ser. Por último, o trecho que reitera elementos controvertidos do § 60 acima: Assim, a questão não é mais se a paz perpétua [ewige Friede] é algo real ou ficção [ein Ding oder Unding], e se não estamos enganando [betrügen] a nós mesmos em nosso julgamento teórico quando supomos que é algo real [das Ding]. Porém, necessitamos agir [müssen so handeln] como se fosse algo real, a despeito de talvez não o ser [als ob das Ding sei, was vielleicht nicht ist]; temos que trabalhar no sentido de fazer o estabelecimento [Begründung] da mesma [desselben - da paz perpétua] e o tipo de constituição [Konstitution] que nos pareça [scheint] a que mais abra caminho para ela (talvez [vielleicht] um republicanismo de todos os Estados [den Republikanism aller Staaten], conjunta e separadamente), a fim de instaurá-la [ihn - a paz perpétua] e colocar um fim [ein Ende zu machen] à infame ação bélica [de guerra - dem heillosen Kriegführen]. (KANT, 2003, p. 196)44 Prozeß, nicht auf barbarische (nach Art der Wilden), nämlich durch Krieg zu entscheiden, realisiert werden kann“. 43 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Nun spricht die moralisch-praktische Vernunft in uns ihr unwiderstehliches Veto aus: Es soll kein Krieg sein; weder der, welcher zwischen mir und dir im Naturzustande, noch zwischen uns als Staaten, die, obzwar innerlich im gesetzlichen, doch äußerlich (in Verhältnis gegen einander) im gesetzlosen Zustande sind; – denn das ist nicht die Art, wie jedermann sein Recht suchen soll.“ 44 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „Also ist nicht mehr die Frage; ob der ewige Friede ein Ding oder Unding sei, und ob wir uns nicht in unserem theoretischen Urteile betrügen, wenn wir das erstere annehmen, sondern wir müssen so handeln, als ob das Ding sei, was vielleicht nicht ist, auf Begründung desselben, und diejenige Konstitution, die uns dazu die tauglichste scheint (vielleicht den Republikanism aller Staaten samt und sonders) hinwirken, um ihn herbei zu führen, und dem heillosen Kriegführen, worauf, als den Hauptzweck, bisher alle Staaten, ohne Ausnahme, ihre innere Anstalten gerichtet haben, ein Ende zu machen.“ Na sequência, consta ainda: “Pode-se afirmar que estabelecer

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Tudo isso, segundo Kant, seria uma “ideia” (Idee), mas que deveria ser colocada em prática inclusive da seguinte forma: [...] e aquela [welche - Ideia = Idee] não pode ser realizada por meio de revolução [revolutionsmäßig], por um salto [Sprung], isto é, por uma deposição violenta [gewaltsame Umstürzung] de uma constituição falha já existente (pois haveria então um momento interveniente no qual toda condição jurídica [alles rechtlichen Zustandes] seria aniquilada), porém [se essa tentativa] for buscada mediante reforma paulatina [allmähliche Reform], fundada em princípios sólidos [festen Grundsätzen], pode [kann] levar a uma aproximação contínua [kontinuierlicher Annäherung] do mais elevado bem político [zum höchsten politischen Gut], [isto é] da paz perpétua [ewigen Frieden]. (KANT, 2003, p. 197)45

Assim, como vemos, o próprio Kant admite que essa “paz perpétua” (ewige Friede) ou esse “estabelecer esta paz universal e duradoura” (diese allgemeine und fortdauernde Friedensstiftung) é “uma ideia inatingível” (eine unausführbare Idee), um mero ideal, no qual “necessitamos agir [müssen so handeln] como se fosse algo real, a despeito de talvez não o ser [als ob das Ding sei, was vielleicht nicht ist]”. Ser ou não o “mais elevado bem político” (höchsten politischen Gut) ou a “meta final de todo o direito das gentes” (letzte Ziel des ganzen Völkerrechts) é uma questão que parece menos importante do que a pergunta: É realmente possível a “paz perpétua” (ewige Friede)? Existe a “plena realizabilidade da paz perpétua”? ou, então, perguntado ainda de uma outra forma: Existe “a possibilidade real de uma paz perpétua”? ou, enfim, ela é “apenas um ideal”? Sobre isso, existem vários autores e suas respectivas interpretações, que variam em diversos aspectos ou nuances. Não é possível citar todos os intérpretes ou resumir seus pensamentos, mas, por exemplo, Bernd Ernst Dörflinger afirma o seguinte:

esta paz universal e duradoura [diese allgemeine und fortdauernde Friedensstiftung] constitui não apenas uma parte da doutrina do direito [Rechtslehre], mas todo o propósito final da doutrina do direito [den ganzen Endzweck der Rechtslehre] dentro dos limites exclusivos da razão; pois a condição de paz [der Friedenszustand] é a única condição na qual o que é meu e o que é teu estão assegurados sob as leis [Gesetzen] a uma multidão de seres humanos que vivem próximos uns dos outros e, portanto, submetidos a uma constituição [Verfassung]” („Man kann sagen, daß diese allgemeine und fortdauernde Friedensstiftung nicht bloß einen Teil, sondern den ganzen Endzweck der Rechtslehre innerhalb den Grenzen der bloßen Vernunft ausmache; denn der Friedenszustand ist allein der unter Gesetzen gesicherte Zustand des Mein und Dein in einer Menge einander benachbarter Menschen, mithin die in einer Verfassung zusammen sind“). 45 TA. Cf. KANT. Die Metaphysik der Sitten: „[...] und welche allein, wenn sie nicht revolutionsmäßig, durch einen Sprung, d.i. durch gewaltsame Umstürzung einer bisher bestandenen fehlerhaften – (denn da würde sich zwischeninne ein Augenblick der Vernichtung alles rechtlichen Zustandes ereignen) sondern durch allmähliche Reform nach festen Grundsätzen versucht und durchgeführt wird, in kontinuierlicher Annäherung zum höchsten politischen Gut, zum ewigen Frieden, hinleiten kann.

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Na “Doutrina do direito” da Metafísica dos costumes, Kant afirma que pertence à ideia da instauração de um direito das gentes o fato que esses decidem “seus conflitos de modo civil, como por um processo [Prozeß], e não de um modo bárbaro (ao modo dos selvagens), a saber, mediante a guerra” [...]. O que perturba um pouco nessa afirmação é a relativização daquele “como por um processo”. No contexto de um direito que fosse das gentes plenamente estabelecido não deveria tratar-se de algo que seja simplesmente análogo a um processo. Essa relativização é coerente com o ceticismo que Kant, no contexto da passagem em questão, manifesta no que diz respeito à plena realizabilidade da paz perpétua, que ele chama, ao mesmo tempo, de “o objetivo último de todo o direito das gentes” [...]. É coerente com aquela “aproximação contínua” a tal estado, julgada aqui meramente possível [...]. (DÖRFLINGER, 2017, p. 348)46

Além disso, o mesmo autor registra: De tudo isso segue-se que o projeto kantiano de um estado de paz ou da paz perpétua, e, correspondentemente, o projeto do tipo ideal de político por ele concebido se diferenciam claramente da ilusão de poder alcançar um estado de felicidade coletiva global entre os povos por meio de um uso prudente e hábil da razão técnico-prática. [...] O iludido que acredita na paz perpétua como estado de felicidade perpétua não é Kant, como seguem acreditando alguns que de À Paz perpétua não conhecem muito mais do que o título, mas é o tipo de político criticado por Kant, que concebe a paz como um bem material que pode ser alcançado através da prudência. A ideia kantiana de paz perpétua, pelo contrário, é a ideia, totalmente livre de sentimentalismo e de ilusões, de um direito das gentes global estabelecido de maneira duradoura, cuja vigência nunca exclui a possibilidade da violação do direito, mas em cuja vigência qualquer guerra representa uma violação do direito, contrariamente ao que acontecia no estado de natureza entre Estados. (DÖRFLINGER, 2017, p. 351-352) 46 Ver também: p. 343: “A ideia da razão de uma “comunidade pacífica completa [...] de todos os povos” é caracterizada por Kant na Metafísica dos costumes explicitamente como “princípio jurídico”, precisamente para diferenciá-la de uma ideia bem mais ambiciosa, que não precisa ser realizada em nome do caráter jurídico das relações entre povos”. p. 345-346: “O déficit do político naturalista, que apela para a facticidade do curso da história, que até o momento foi sempre marcado por guerras, e para a facticidade da correspondente natureza humana, e que, portanto, torna absolutas ambas [estas facticidades] e desconhece qualquer fonte de normas jurídicas contrafatual, não é, segundo Kant, um déficit meramente prático, pois não convence também do ponto de vista de uma intelectualidade teórica. Com sua constatação de que o ser humano nunca vai querer o que seria necessário para a paz perpétua, ou seja, um Estado universal das gentes regido por um direito das gentes irrevogável, ele acaba afirmando “mais do que consegue provar” [...]. Evidentemente avança a pretensão de afirmar algo que possui universalidade e necessidade em sentido estrito. [...] Enquanto indução baseada sobre a experiência histórica, pode ser meramente uma generalidade comparativa. Deve-se objetar-lhe, seguindo Kant: “a afirmação de que o que até agora não foi alcançado, por isso nunca será alcançado, não justifica nem sequer o abandono de uma intenção pragmática ou técnica; ainda menos então de uma moral, a qual, se só sua realização não for demonstrativamente impossível, se torna um dever.” (TP, AA 08: 309 s.)”.

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Porém, no caso, se é uma dita “paz perpétua”, em “cuja vigência nunca exclui a possibilidade da violação do direito”, isto é, “em cuja vigência qualquer guerra” pode sempre ocorrer, por mais que não seja do mesmo modo que “no estado de natureza entre Estados”, então, em outras palavras, não se trata de um “Estado de paz ou da paz perpétua”, mas, no máximo, uma realidade em que se busca uma “paz duradoura” ou uma paz que se perpetua47, contudo, que não é “perpétua” (ewig). Afinal, se é perpétuo [do latim perpetuu], então é algo incessante, contínuo, ininterrupto, vitalício, constante, contínuo, que dura sempre, que é eterno (no caso, convém registrar que, em Alemão, “ewiglich” significa “eternamente” e o substantivo “Ewigkeit” significa “eternidade”). Cabe também citar Francisco Jozivan Guedes de Lima, o qual, no livro A Teoria Kantiana das Relações Internacionais, afirma: “Na concepção de Kant, a paz perpétua é um ideal inatingível, mas os princípios basilares direcionados à sua aproximação são historicamente possíveis”; e ainda registra claramente: “O próprio Kant deixa claro que a paz perpétua é inatingível, mas os princípios direcionados a mesma são atingíveis. Trata-se, portanto, da aproximação de um ideal normativo” (LIMA, 2015, p. 13-14, p. 151)48. Além disso, convém citar a afirmação de Maria de Lourdes Alves Borges, que, no seu artigo Guerra e Paz Perpétua: Hegel, Kant e Guerras Contemporâneas, registra: Na Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, ele [Kant] enfatiza essa ideia do Estado das nações como inacessível, embora apenas esse Estado traga a possibilidade real de uma paz perpétua. […] Kant nos dá algumas razões pelas quais esse Estado de nações será impossível [...]. A consequência disso é que só podemos ter uma aproximação à paz perpétua através de uma associação de vários Estados. ‘Portanto, a paz perpétua, o objetivo final de todo o direito das nações, é de fato uma ideia inatingível. […]’ (DR, § 61). Como a paz perpétua em si é uma ideia inatingível, só podemos ter princípios dirigidos à paz, que não governe um Estado de nações, mas sim uma liga permanente de Estados, à qual cada Estado é livre para participar. (BORGES, 2006, p. 83-84)49 47 Cf. PIM, 2006, p. 48: “[...] a construção da paz exige aprender das experiências passadas, para saber quais se aproximam e quais se desviam deste caminho de paz duradoura, procurando, precisamente, como apontava Kant, a possibilidade de uma paz, se não perpétua, pelo menos estável;” 48 O citado autor, na p. 153, § final do livro, igualmente afirma: “Longe de ser um projeto quimérico, À paz perpétua é um projeto filosófico incisivo e pertinente que serve para iluminar o debate sobre os temas cruciais que perpassam a contemporaneidade, sobretudo aqueles vinculados ao direito internacional e ao direito cosmopolita.” 49 TP: “In the Metaphysics of Morals, Doctrine of Right, he stresses this idea of the state of nations as unreachable, although only this state will bring the real possibility of a perpetual peace. […] Kant gives us some reasons why this state of nations will be impossible […]. The consequence of this is that we can only have an approximation to perpetual peace through an

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Por fim, citamos ainda Sandra Zákutná, a qual reitera o seguinte: Para abordar o ideal de paz perpétua, os princípios a priori são necessários e devem ser reconhecidos também no real da experiência. Por outro lado, porque a ideia de paz perpétua é apenas um ideal, que nunca pode ser plenamente alcançado, o direito nunca pode tornar a ação política inútil. (ZÁKUTNÁ, 2017, p. 310)50

Enfim, no caso, vemos alguns intérpretes analisando a questão da paz perpétua de Kant. Como já registramos, não é nossa pretensão tentar esgotar o assunto, mas apenas apresentar certos dados que permitam compreender melhor o pensamento de Hegel. Em suma, o objetivo é apenas expor os conceitos kantianos que mais influenciaram a filosofia hegeliana. Por isso, retomemos, agora, a apresentação e a análise da filosofia hegeliana sobre os citados conceitos. Hegel e o Conceito Kantiano de “Paz Perpétua” (ewige Friede)

Ora, Hegel, a princípio, conhece a obra kantiana citada, mas, parece só destacar a declaração acima de que “paz perpétua” (ewige Friede) é “uma ideia inatingível” (eine unausführbare Idee). Sobre isso, no § 333 A da FD, consta até o seguinte: Entre os Estados não há pretor [Prätor], no máximo um árbitro e um mediador [Schiedsrichter und Vermittler], e também esse apenas de modo contingente [zufälligerweise], isto é, segundo vontades particulares. A representação kantiana [Kantische Vorstellung] de uma paz perpétua [ewigen Friedens], mediante uma liga de Estados [Staatenbund], que arbitraria todo litígio [disputa - jeden Streit] e regularia toda desavença [discórdia - jede Mißhelligkeit] enquanto força [Macht] reconhecida por todo Estado singular e, com isso, tornaria impossível [unmöglich] a decisão pela guerra [die Entscheidung durch Krieg], pressupõe [setzt ... voraus] a concordância [acordo unânime - Einstimmung] dos Estados, que repousaria em razões e considerações morais, religiosas ou outras, em geral, [repousaria] sempre [immer] na vontade soberana particular e, por isso, permaneceria afetada de contingência [Zufälligkeit]. (HEGEL, 2010, p. 303)51 association of several states. ‘So perpetual peace, the ultimate goal of the whole right of nations, is indeed an unachievable idea. […]’ (DR, § 61). Since perpetual peace itself is an unachievable idea, we can only have principles directed towards peace that are not to rule over a state of nations, but over a permanent league of states, which each state is free to join.” 50 TP: “To approach the ideal of perpetual peace, the a priori principles are necessary and they ought to be recognised also in the real of experience. On the other hand, because the idea of perpetual peace is only an ideal, which can never be fully achieved, the right can never make political action useless.” 51 Cf. Hegel Werke. 7/500 „Es gibt keinen Prätor, höchstens Schiedsrichter und Vermittler zwischen Staaten, und

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Assim, Hegel trabalha os conceitos de impossibilidade e possibilidade versus de necessidade e contingência. Ora, tornar impossível a possibilidade da guerra, conforme Kant, por meio de uma paz perpétua, não envolve, segundo Hegel, nenhuma necessidade (de algo que não pode não ser = de tem que ser), mas sim contingência (de algo que pode não ser). Em resumo, para Hegel, a paz, mesmo quando existe ou é do âmbito do ser, sempre pode não ser ou deixar de ser. Além disso, no § 334 da FD, afirma-se: “Por causa disso, o litígio dos Estados [Streit der Staaten], na medida em que as vontades particulares não encontram nenhum acordo [Übereinkunft], apenas [nur] pode ser decidido [entschieden] mediante a guerra [Krieg]” (HEGEL, 2010, p. 303)52. Como já vimos, em Hegel, não há um “pretor” (Prätor), no máximo um “árbitro e mediador” (Schiedsrichter und Vermittler) entre os Estados. No § 338 da FD, ainda afirma-se o seguinte: No fato de que os Estados se reconhecem reciprocamente como tais, permanece também na guerra [auch im Krieg], a situação da ausência de direito, de violência e de contingência, um laço [ou um vínculo = ein Band], em que eles valem [gelten] uns para os outros sendo em si e para si, de modo que, na guerra mesma [im Kriege selbst], a guerra [der Krieg] é determinada [bestimmt] como algo que deve ser passageiro [ein Vorübergehensollendes]. Com isso, ela [Er - a guerra] contém a determinação do direito dos povos [die völkerrechtliche Bestimmung] de que nela a possibilidade da paz [die Möglichkeit des Friedens] seja preservada [erhalten], assim, por exemplo, os embaixadores sejam respeitados e, em geral, que ela [a guerra] não seja conduzida [geführt] contra as instituições internas e a vida familiar e privada pacífica [friedliche Familien- und Privatleben], contra as pessoas privadas. (HEGEL, 2010, p. 305)53

auch diese nur zufälligerweise, d.  i. nach besonderen Willen. Die Kantische Vorstellung eines ewigen Friedens durch einen Staatenbund, welcher jeden Streit schlichtete und als eine von jedem einzelnen Staate anerkannte Macht jede Mißhelligkeit beilegte und damit die Entscheidung durch Krieg unmöglich machte, setzt die Einstimmung der Staaten voraus, welche auf moralischen, religiösen oder welchen Gründen und Rücksichten, überhaupt immer auf besonderen souveränen Willen beruhte und dadurch mit Zufälligkeit behaftet bliebe.“ 52 HEGEL. FD. 2010. § 334, p. 303. Cf. Hegel Werke. 7/500 „Der Streit der Staaten kann deswegen, insofern die besonderen Willen keine Übereinkunft finden, nur durch Krieg entschieden werden.“ 53 Cf. Hegel Werke. 7/502 „Darin, daß die Staaten sich als solche gegenseitig anerkennen, bleibt auch im Kriege, dem Zustande der Rechtlosigkeit, der Gewalt und Zufälligkeit, ein Band, in welchem sie an und für sich seiend füreinander gelten, so daß im Kriege selbst der Krieg als ein Vorübergehensollendes bestimmt ist. Er enthält damit die völkerrechtliche Bestimmung, daß in ihm die Möglichkeit des Friedens erhalten, somit z.  B. die Gesandten respektiert, und überhaupt, daß er nicht gegen die inneren Institutionen und das friedliche Familien- und Privatleben, nicht gegen die Privatpersonen geführt werde.“

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No caso, destaca-se a fala hegeliana de que a “guerra” (Krieg)54 é “determinada” (bestimmt) como “algo que deve ser passageiro” (ein Vorübergehensollendes), buscando, assim, a paz ou, então, pelo menos, “preservar” (erhalten) “a possibilidade da paz” (die Möglichkeit des Friedens). Hegel, a princípio, não quer promover ou incitar a guerra, mas antes registrar que sempre há ou pode haver a possibilidade da guerra. Assim sendo, paz e guerra não estão no âmbito da necessidade (do tem que ser/ ter = não pode não ser/ter), mas, como já afirmamos acima, estão no âmbito da contingência (do pode não ser/ter). Em suma, se hoje tem paz, amanhã pode não ter paz. Por fim55, no § 340 da FD, parágrafo final da seção em análise, Hegel afirma: Na relação dos Estados [Verhältnis der Staaten] uns frente aos outros [gegeneinander], porque estão aí como particulares, entra o jogo extremamente móvel da particularidade interna das paixões, dos interesses, dos fins, dos talentos e das virtudes, da violência, do ilícito e dos vícios, assim como o da contingência externa [äußeren Zufälligkeit] nas maiores dimensões do fenômeno, – um jogo no qual a totalidade ética mesma, a autonomia do Estado [Selbständigkeit des Staats], está exposta à contingência [Zufälligkeit]. Os princípios dos espíritos dos povos [Volksgeister], por causa de sua particularidade, em que eles têm sua efetividade objetiva e sua autoconsciência enquanto indivíduos existentes, são, em geral, delimitados [beschränkte], e seus destinos e seus atos, em sua relação uns aos outros, são a dialética fenomênica da finitude [erscheinende Dialektik der Endlichkeit] desses espíritos, a partir da qual o espírito universal [der allgemeine Geist], o espírito do mundo [der Geist der Welt], produz-se tanto como indelimitado [unbeschränkt], quanto é ele que exerce neles seu direito, – e seu direito é o mais elevado de todos, – na história mundial [der Weltgeschichte], enquanto tribunal do mundo [als dem Weltgerichte]. (HEGEL, 2010, p. 305-306)56 54 Lembrando que Hegel fala também de “guerras felizes” (glückliche Kriege), que teriam impedido agitações internas e consolidado a força interna do Estado; de “guerra defensiva X guerra de conquista” [Verteidigungskrieg X Eroberungskrieg]; de “guerra impopular” [unpopulärer Krieg]; de “guerra inútil e desnecessária” [Krieg unnütz und unnötig]; de “decisão sobre guerra e paz” [Entscheidung über Krieg und Frieden]; de “declarar guerra e paz e outros tratados” [Krieg und Frieden und andere Traktate zu schließen]; entre outros. 55 No § 338 Z, afirma-se: “As guerras mais recentes são por isso conduzidas mais humanamente, e as pessoas não se defrontam com ódio entre si” (Cf. Hegel Werke. 7/502 „Die neueren Kriege werden daher menschlich geführt, und die Person ist nicht in Haß der Person gegenüber.“). No § 339, consta: “De resto, o comportamento recíproco na guerra (por ex., que se façam prisioneiros) e os direitos para o intercâmbio privado etc., que um Estado em tempo de paz concede aos súditos de um outro, repousam precipuamente sobre os costumes das nações, enquanto universalidade interna da conduta, universalidade que se mantém em todas as relações.” (Cf. Hegel Werke. 7/501 „Sonst beruht das gegenseitige Verhalten im Kriege (z. B. daß Gefangene gemacht werden), und was im Frieden ein Staat den Angehörigen eines anderen an Rechten für den Privatverkehr einräumt usf., vornehmlich auf den Sitten der Nationen als der inneren unter allen Verhältnissen sich erhaltenden Allgemeinheit des Betragens.“). 56 Cf. Hegel Werke. 7/503 „In das Verhältnis der Staaten gegeneinander, weil sie darin als besondere sind, fällt das

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Enfim, são reiteradas afirmações de Hegel buscando mostrar sim que devemos buscar a “paz” (Friede) ou a “possibilidade da paz” (Möglichkeit des Friedens), mas que não seria possível garantir uma “paz perpétua” (ewige Friede), isto é, torná-la necessária, pois, antes, paz e guerra são do âmbito da “contingência” (Zufälligkeit), sendo que o autor usa duas vezes o citado termo. No caso, para Hegel, infelizmente, a paz é algo contingente (que pode não ser)57, por mais que todos possam concordar que é algo que deve ou deveria ser ou existir. Sobre isso, em suma, Denis Rosenfield registra o seguinte: Deve-se analisá-lo [o Estado] do ponto de vista da concretização da substância, sendo a guerra um meio de fortalecimento da unidade ética. Hegel vê a guerra – à parte o fato de que ela é um dado real das sociedades do seu tempo e, de um modo mais geral, de toda a história – como um meio de evitar uma privatização excessiva da vida e de elevar a consciência que um povo tem de si. A guerra é uma possibilidade inscrita na contingência das relações que os Estados mantêm entre si. (ROSENFIELD, 1983, p. 262-263)

Além disso, Rosenfield afirma que Hegel defenderia uma suposta “necessidade conceitual da guerra”, pois, segundo ele, “a lógica da guerra é também a do reconhecimento” (ROSENFIELD, 1983, p. 264). No caso, existem autores que defendem que “os argumentos de Hegel” não apenas soam ou soariam “como se a guerra pudesse nunca ser evitada”, mas também de que ela seria “ontologicamente necessária” e, que, assim, o autor estaria entre os “apologéticos da beligerância”; mas, em suma, a questão é ou parece muito mais a seguinte: “Para Hegel, a guerra não pode ser eliminada da política, pois o projeto de paz perpétua não se efetiva por ser irrealizável” (MACEDO, 2016, p. 51)58. Trata-se, portanto, da assim höchst bewegte Spiel der inneren Besonderheit der Leidenschaften, Interessen, Zwecke, der Talente und Tugenden, der Gewalt, des Unrechts und der Laster wie der äußeren Zufälligkeit, in den größten Dimensionen der Erscheinung - ein Spiel, worin das sittliche Ganze selbst, die Selbständigkeit des Staats, der Zufälligkeit ausgesetzt wird. Die Prinzipien der Volksgeister sind um ihrer Besonderheit willen, in der sie als existierende Individuen ihre objektive Wirklichkeit und ihr Selbstbewußtsein haben, überhaupt beschränkte, und ihre Schicksale und Taten in ihrem Verhältnisse zueinander sind die erscheinende Dialektik der Endlichkeit dieser Geister, aus welcher der allgemeine Geist, der Geist der Welt, als unbeschränkt ebenso sich hervorbringt, als er es ist, der sein Recht - und sein Recht ist das allerhöchste - an ihnen in der Weltgeschichte, als dem Weltgerichte, ausübt.“ 57 Cf. BAVARESCO; VELASCO, 2013. p. 55: “Hegel comenta a proposta kantiana de organizar uma liga de Estados com a finalidade de resolver os conflitos e arbitrar litígios, evitando a decisão pela guerra. Porém, esses acordos repousariam em razões morais, religiosas ou outras, ou seja, “sempre na vontade soberana particular”. A conclusão é que os contratos ou tratados entre os Estados permanecem contingentes.” 58 Cf. também: p. 8, Resumo: “O presente trabalho, a partir de uma exegese do texto hegeliano, encontra passagens que indicam que a questão da guerra não apenas reside somente no agir político do Estado, mas também consideram a chave ontológica ao tomar o recorte dos conceitos “liberdade” e “vontade” para elucidar as causas do conflito. Tal assertiva ser referenda na compreensão, dentro do Direito Estatal Externo, do que seja diferenciação entre Estados, pressuposto da individualidade jurídica e existencial de uma nação que, ontologicamente necessária,

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chamada “inevitabilidade da guerra” e/ou, então, de que “as guerras são inevitáveis entre os Estados”, como, por exemplo, afirma Maria de Lourdes Alves Borges, no seu artigo Guerra e Paz Perpétua: Hegel, Kant e Guerras Contemporâneas: As relações entre os Estados são a personificação da contingência e impedem que a solução kantiana de uma paz perpétua possa ser alcançada através de uma liga de nações. [...] Assim, a ideia de uma liga de nações [...] é apenas quimérica. [...] Para Hegel, o ideal de uma liga pacífica [foedus pacificum = pacific league] é uma quimera, já que não pode haver nenhuma associação estável de Estados para mediar seus conflitos e evitar a guerra. [...] De acordo com essa concepção, organizações políticas como a ONU sempre levariam a uma decepção, já que os Estados nacionais nunca reconhecerão, por sua própria natureza intrínseca, nenhum juiz legal acima deles, além da própria história mundial. Hegel vai além disso. Não só as guerras são inevitáveis entre os Estados, mas também são saudáveis para melhorar os princípios do Estado. Momentos felizes são páginas vazias na História, diz Hegel na Filosofia da História, mostrando a necessidade racional da guerra. (BORGES, 2006, p. 85-86)59 também provocaria inevitavelmente as tensões.” p. 26: “É possível depreender da versão original (HEGEL, 1986, p. 497) que o adjetivo “diferenciadas” (unterschiedenen), presente no § 330 da FD, se repete no § 383 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas (HEGEL, 2008), mas com o sentido de “exteriores”. Essa “diferenciação”, “discriminação”, é o que condiciona a particularização do ser dentro da universalidade. Os Estados, portanto, a partir do confronto textual, devem ser distintos entre si. Logo, é como se as tensões entre tais entes, além de ontologicamente necessárias, também fossem inevitáveis.” p. 51: “O que faz os argumentos de Hegel soarem como se a guerra pudesse nunca ser evitada (e assim vistos como apologéticos da beligerância) é o fato de que ele critica até a possibilidade de procurar a paz sempre e a qualquer custo. [...] Para Hegel, a guerra não pode ser eliminada da política, pois o projeto de paz perpétua não se efetiva por ser irrealizável.” p. 58-59: “O presente trabalho dissertativo, a partir de uma exegese do texto hegeliano, encontra indicações que apontam encontrar-se a resolução do problema tanto no agir político do Estado, quanto em algo que esteja relacionado à sua gênese (o que pode indicar uma causa ontológica para a guerra). [...] Os Estados, portanto, a partir do confronto dos textos acima mencionados, devem ser distintos entre si. Logo, é como se as tensões entre tais entes, ocasionadas para conservar sua autonomia no mundo, além de ontologicamente necessárias, também fossem inevitáveis.” 59 TP: “[…] The relations among states are the embodiment of contingency and prevent the Kantian solution of a perpetual peace to be attained through a league of nations. [...] Thus, the idea of a league of nations [...] is only chimerical. [...] For Hegel, the ideal of a foedus pacificum is a chimera, since there cannot be any stable association of states to mediate their conflicts and avoid war. [...] According to this conception, political organizations like the UN would always lead to a disappointment since the national states will never recognize, by their very intrinsic nature, any legal judge above them, apart the world history itself. Hegel goes further than that. Not only wars are not inevitable among states, but also they are even healthy for improving the state’s principles. Happy moments are empty pages in History, says Hegel in the Philosophy of History, showing the rational necessity of war.” Ver também p. 81, Resumo: “O artigo compara os pontos de vista de dois autores clássicos sobre a possibilidade de paz e a inevitabilidade da guerra: Kant e Hegel. O artigo argumentará que as principais linhas dessas duas escolas ainda estão vivas hoje em nossa política internacional contemporânea. A escola kantiana, com a possibilidade de paz, baseada em uma liga de nações, inspirou a criação das Nações Unidas. O modo de pensar hegeliano (não há juiz acima dos Estados nacionais, além da história do mundo) tem se mostrado contemporâneo como sempre, uma vez que se analisa alguns acontecimentos recentes da política internacional.” TP: “The paper compares the views of two classical authors about the possibility of peace and the inevitability of war: Kant and Hegel. The paper will argue that the main lines of these two schools are still alive today in our contemporary international politics. The Kantian school, with the possibility of peace, based on a league of nations, has inspired the creation of the

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Enfim, existem intérpretes, como Steven B. Smith, que afirmam, também, por exemplo, que “Hegel não está glorificando a guerra”, mas que “a guerra, ou pelo menos a vontade de fazer a guerra, é transformada em um componente importante do Estado”, afinal, dada a realidade, é preciso “pensar na guerra como necessária” (SMITH, 1983, p. 628)60 ou, pelo menos, de que não existe a possibilidade de uma suposta “paz perpétua”. Ora, sobre isso, Schlomo Avineri declara: De novo, o argumento de Hegel é de que a guerra enquanto tal é nada mais do que uma doença é para o corpo: somente quando um corpo particular é atacado por uma doença, pode-se julgar se ele é são ou não. A guerra não é a saúde de um Estado – na guerra, a saúde de um Estado é posta à prova. (AVINERI, 1972, p. 199)61

Por fim, Rosenfield ainda assevera: O direito internacional [ou direito dos povos ou das gentes] torna-se a expressão jurídica da necessidade e da contingência desta relação [de um Estado com um outro Estado]. É necessário aos Estados manterem relações jurídicas entre si, mas elas são contingentes, pois baseadas na soberania de cada Estado. Nenhuma instância pode erigir-se em juiz situado acima dos Estados efetivamente existentes. Para caracterizar a forma desta relação, Hegel reintroduz uma determinação que se pensava já superada, isto é, a determinação do “dever ser” (Sollen) (§ 330). Não se trata de um United Nations. The Hegelian way of thinking (there is no judge above the national states, besides the history of the world) has proven to be as contemporary as ever, once one analyzes some recent events of the international politics.” 60 Ver também p. 628: “Estas passagens não devem ser mal interpretadas. Hegel não está glorificando a guerra. Tampouco está empenhado em uma vingança puramente niilista contra a existência das coisas ou a objetividade do mundo externo. Antes, suas observações podem ser tornadas inteligíveis apenas à luz de sua concepção do Estado. O Estado, diz ele em sua A Constituição Alemã (1802), é uma “união” organizada em prol da defesa comum (HEGEL, 1964, p. 153). Assim, a guerra, ou pelo menos a vontade de fazer a guerra, é transformada em um componente importante do Estado. Sem uma vontade comum de mantê-lo unido, o Estado corre o risco de se tornar um mero agregado de interesses privados organizados em torno do princípio da sociedade civil.” p. 629: “Em 1821, ele ainda continua a pensar na guerra como necessária, não para encontrar, mas para preservar o Estado das tensões internas geradas pela sociedade civil (burgerliche Gesellschaft) e sua economia de mercado. A guerra torna-se, então, um tipo de escola para a educação cívica dos cidadãos modernos.” TP: “These passages must not be misunderstood. Hegel is not glorifying war. Nor is he engaging ina purely nihilistic vendetta against the existence of things or the objectivity of the external world. Rather his remarks can be made intelligible only in the light of his conception of the state. The state, he says in his early The German Constitution (1802), is a “union” organized for the sake of common defense (Hegel, 1964, p. 153). Thus war, or at least the willingness to wage war, is made into a major component of statehood. Without a common will to hold it together, the state is in danger of becoming a mere aggregate of private interests organized around the principle of civil society. [...] By 1821 he still continues to think of war as necessary, not to found but to preserve the state from the internal tensions generated by civil society (burgerliche Gesellschaft) and its market economy. War becomes, then, a type of school for the civic education of the modern bourgeois.” 61 TP: “Again, it is Hegel’s argument that war as such is no more than what a disease is to a body: only when attacked by disease can one form a judgment of whether a particular body is healthy or not. War is not the health of a state – in it a state’s health is put to the test.”

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dever-ser moral, pois este não pode fundar a relação jurídica entre Estados, nem de um dever-ser jurídico supondo obrigatoriedade para as partes contratantes, mas de um “dever-ser conceitual” que indica o caminho a ser seguido neste processo de reconhecimento mútuo entre Estados, uma vez que, através dele, o processo de condensação do conceito do Estado em vários Estados pode ser gerado. [...] Se os Estados estão num estado-de-natureza (Naturzustande) (§ 333), isto não significa que mantenham uma relação completamente arbitrária, da qual o único juiz seria uma forma de guerra perpétua. Entretanto, quando Hegel critica o projeto kantiano de uma paz perpétua (§ 333, Obs.) é com o propósito de assinalar a falta de efetividade de tal proposição. (ROSENFIELD, 1983, p. 265-266)

Assim sendo, reitera-se os aspectos acima já destacados, sobretudo de que Hegel considera a “paz perpétua” (ewige Friede) kantiana meramente “um ideal” (ein Ideal), realmente algo como o próprio Kant registra, a saber, “uma ideia inatingível” (eine unausführbare Idee), o que, contudo, não significa uma guerra perpétua. Trata-se, assim, da diferença entre algo ser do âmbito do “ser” (Sein) ou da “efetividade” (Wirklichkeit) e algo ser do âmbito do “dever ser” (Sollen). Considerações Finais

Apresentados e analisados os dados acima, convém questionar se o pensamento de Hegel é atual e/ou questionável; se as ideias sobre o citado “Direito Estatal Externo” (äußeres Staatsrecht) e o citado “Direito dos Povos [ou das Gentes ou Direito Internacional]” (Völkerrecht) são limitadas e determinadas pela sua época ou não. Em contraposição ou analogia, convém questionar o mesmo sobre o pensamento de Kant. No caso, em primeiro lugar, não se deve afirmar de que Hegel seja, por exemplo, um suposto apologista da guerra, pois ele busca e defende a “possibilidade da paz” (Möglichkeit des Friedens). Em segundo lugar, infelizmente, o dito Völkerrecht, apesar de todos os esforços posteriores a Hegel, parece continuar sob a determinação de mero “dever ser” (Sollen), porque permanece afetado pela “contingência” (Zufälligkeit), de algo que pode não ser, isto é, enquanto um “direito que deve valer em si e para si entre os Estados” (an und für sich zwischen den Staaten gelten sollenden Rechts), com supostas “obrigatoriedades dos Estados uns frente aos outros” (Verbindlichkeiten der Staaten gegeneinander) que “devem vir a ser observadas” (gehalten werden sollen), mas que, muitas vezes, não necessariamente valem ou são observadas – sofrem, assim, antes, de contingência. Afinal,

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o que obriga um Estado qualquer a necessariamente respeitar o que o assim alegado “Direito dos Povos [ou das Gentes ou Direito Internacional]” (Völkerrecht) expõe ou defende? Trata-se, assim sendo, de alguns aspectos que o pensamento hegeliano continua a nos questionar. Em suma, os conceitos de Hegel e Kant de Direito Estatal Externo, de Direito dos Povos ou Direito das Gentes ou Direito Internacional, de Guerra e de Paz são importantes e com vários aspectos atuais para tentar compreender melhor o Direito e as Relações Internacionais, que são um dos temas predominantes na atualidade. Conhecer esses pensadores clássicos modernos certamente permite trazer para a contemporaneidade luzes que nos guiem a encontrar os melhores caminhos para impedir, ao máximo, a guerra e/ou construir a paz. Referências

AVINERI, Shlomo. Hegel’s Theory of the Modern State. Cambridge: University Press, 1972. BAVARESCO, Agemir; VELASCO, Shirlene M. Hegel, Relações Internacionais e Globalismo Jurídico. In: Tábano, v. 9, p. 47-68, 2013. BORGES, Maria de Lourdes Alves. War and Perpetual Peace: Hegel, Kant and Contemporary Wars. Ethic@, Florianópolis, v. 5, n. 1, p. 81-90, jun., 2006. DERATHE, Robert. Notas. In: HEGEL, G. W. F. Principes de la Philosophie du Droit ou Droit Naturel et Science de l’État en Abrégé. Tradução Robert Derathé. Paris: Vrin, 1986. DÖRFLINGER, Bernd Ernst. O ideal do homem político na concepção kantiana do direito das gentes. In: SANTOS, Leonel Ribeiro dos; LOUDEN, Robert B.; MARQUES, Ubirajara R. de Azevedo (Orgs). Kant e o a priori. Marília: Oficina Universitária; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2017. p. 341-355. HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio [ECF] (1830): III – A Filosofia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995. ______. Filosofia do Direito [FD] (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio). Tradução, notas, glossário e bibliografia de Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, Danilo V.-C. R. M. Costa, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen. Recife, PE: UNICAP; São Paulo: Loyola; São Leopoldo: UNISINOS, 2010.

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4 Hugo Grotius e a Legitimidade Internacional através do Direito Magnus Dagios

Contexto histórico do trabalho de Hugo Grotius

Hugo Grotius (1583-1645) nasceu em Delft em 1583 na Holanda e morreu em 1645 na mesma época em que estava sendo negociada a Paz de Westphalia, que encerrou a Guerra dos Trinta anos. Era a fase das guerras religiosas em seus estágios finais, da formação do sistema de Estados soberanos das relações internacionais e também das rivalidades mercantis entre os grandes poderes europeus. Grotius se destacava como uma liderança intelectual. Era uma criança prodígio, que entrou na Universidade de Leiden aos onze anos, e aos quinze foi a Paris visitar o Rei Henry IV, que o chamou de “o milagre da Holanda”. Desde cedo se envolveu em casos públicos, primeiro relacionados a seu país e posteriormente para os casos europeus. Ocupou importantes cargos como Advogado Fiscal ou procurador geral da Província da Holanda, foi protegido de Johan van Oldenbarnevelt, líder de umas das principais facções políticas do país. Foi esse envolvimento que levou Grotius para a prisão e exílio. As disputas entre as províncias da Holanda, envolviam desde a independência da principal província (a própria Holanda), até disputas religiosas 101

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entre Calvinistas liberais e ortodoxos, como também a relação com a Espanha e o Catolicismo. Com a derrota do partido de Grotius, Oldenbarnevelt foi executado e Grotius condenado a prisão perpétua. Mas em dois anos foi o responsável por uma fuga um tanto inusitada, ao se esconder em uma cesta de livros (BULL, 2002b, p. 67-68). Foi para Paris sob a tutela do rei Louis XIII. Depois de esforços malsucedidos para retornar a Holanda por vias legais, se tornou embaixador na Suécia da corte de Louis XIII em 1635. Participou do acordo entre o Ministro Richelieu com o Chanceler Oxentierna no Tratado de Compiègne que aproximou a França da Suécia e com os Príncipes anti-imperiais germânicos, que derrotou o Império Habsburgo e culminou na Paz de Westphalia. Contudo Grotius não obteve o destaque como diplomata, pois demonstrou estar mais próximo dos trabalhos intelectuais do que dos políticos (BULL, 2002b, p. 69-70). A lei natural e a ideia de uma sociedade internacional

O pensamento político de Hugo Grotius nas relações internacionais está condicionado a centralidade do direito como uma instituição que governa uma sociedade de Estados. Instituições internacionais nesta acepção, conforme define Hedley Bull, não se refere necessariamente a uma burocracia, mas ao estabelecimento de hábitos e práticas partilhadas para a realização de objetivos em comum (BULL, 2002a, p. 71). Para Bull, as outras instituições além do direito internacional seriam a balança de poder, a diplomacia, o controle dos grandes poderes e a guerra. Grotius compreendia os Estados como fundamentais no processo de uma sociedade de Estados que unia todos os seres humanos. Aos Estados era designada a tarefa de respeitar e aplicar as leis internacionais, seja por meios judiciais ou pela guerra. Na época não foi citada expressamente por Grotius as noções da balança de poder e dos grandes poderes. Ele trabalhou sobre as embaixadas e sobre a diplomacia sem acrescentar grandes contribuições sobre o assunto. Da mesma forma, Grotius não elaborou uma sistematização de cortes internacionais de jurisdição, contudo argumentou pela arbitração para a resolução de conflitos e guerras. Mas a ideia de um organismo supranacional como a Liga das nações e a ONU estava ausente no pensamento de Grotius, tal como no sistema de Estados no período (KINGSBURRY; ROBERTS, 2002, p. 27). A principal contribuição de Grotius para as relações entre os Estados foi o desenvolvimento da noção do direito internacional dentro de suas obras principais, De Jure Praedae (1604) e De Jure Belli ac Pacis

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(1625). No Prolegomena no De Jure Praedae ele especificou leis como a inviolabilidade dos embaixadores, que expressa ou tacitamente os Estados são obrigados a aderir na sociedade internacional, e que são um complemento a lei natural baseada na razão, na natureza e na vontade divina. A fundamentação do direito das gentes, jus inter gentes, era originada da natureza, da vontade divina e da vontade humana (GROTIUS, 2005, p. 150-155). As leis da volição humana, as leis civis e as leis das nações, suplementam a lei divina e a lei natural, sem as superar. Derivadas da vontade humana, sua real força de obrigação se origina na lei natural. Grotius definiu assim a lei natural: Natural Right is the Rule and Dictate of Right Reason, shewing the Moral Deformity or Moral Necessity there is in any Act, according to its Suitableness or Unsuitableness to a reasonable Nature, and consequently, that such an Act is either forbid or commanded by GOD, the Author of Nature1. (GROTIUS, 2005, p. 150-151)

Segundo Grotius “As for the Rest, the Law of Nature is so unalterable, that God himself cannot change it” [Como de resto, a lei natural é tão inalterável, que Deus ele mesmo não pode mudá-la] (GROTIUS, 2005, p. 155). Contudo é motivo de disputas o modo de interpreção dessas leis naturais em que Grotius embasa as leis das nações. Não é fácil diferenciar as leis volitivas humanas das leis naturais, assim como as leis estabelecidas entre as nações são muitas vezes usadas como prova de conteúdo e de existência das leis naturais. Alguns autores argumentaram que a defesa de Grotius de que as sociedades e as leis existiam para proteger o direito natural, era prova de que o próprio direito natural deveria ser abandonado (KINGSBURRY; ROBERTS, 2002, p. 31). Mas para Grotius a lei natural possuía certas características que convêm mencionar. Ela obrigava Príncipes e pessoas indistintamente em toda a humanidade. Estas regras se referem a natureza social e racional dos homens, podem ser conhecidas tanto a priori, quanto a posteriori, quando são acordadas pelos homens mais ilustres ou todos os seres capazes de usar a razão. Elas não podem ser confundidas com a lei moral ou moralidade em geral, pois aludem somente aquelas regras de conduta racionais na sociedade. As regras morais do amor e da caridade, que Grotius defendeu para os tempos de guerra, não fazem parte da lei natural. Mas Grotius, diferente de outros defensores do direito natural, não adota 1 Tradução do autor: “O Direito Natural é a Regra e dita a correta Razão, mostrando a Deformidade Moral ou a Necessidade Moral, em qualquer Ato, de acordo com sua adequação ou inutilidade a uma Natureza razoável e, consequentemente, que tal Ato é proibido ou comandado por DEUS, o autor da natureza.”

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uma atitude exclusivista. As leis positivas ou da volição humana são também consideradas para julgar as ações dos Estados. Porém, não deixa claro se em caso de conflito, qual teria a prioridade. Portanto, parece adotar uma atitude eclética para o direito internacional. Grotius elaborou sua teoria em um tempo em que o direito internacional ainda não era um trabalho de especialistas, e os juristas internacionais ainda não existiam como profissão. As leis antigas e medievais eram lacunosas. Somente com a compilação de tratados e com a acumulação da experiência das práticas dos Estados soberanos, foi quando o direito internacional se afirmou mediante os códigos positivados, o que demonstrou que o direito natural contribuiu principalmente no período de transição para esta nova etapa (BULL, 2002b, p. 78-79). Por conseguinte, a tradição Grotiana pode ser vista como uma defensora dos direitos das nações na sociedade internacional. Além disso, a visão solidarista-cooperativa adjacente das ideais de Grotius, ora como descritiva, ora pensada como prescritiva para os casos internacionais da era moderna e contemporânea, colocam a sua concepção em um lugar de destaque, justamente por oferecer a ideia de uma sociedade de Estados que compartilham leis em comum. O argumento de que existem relações interestatais com regras explícitas e implícitas as quais as nações estão obrigadas a obedecer, trazem a superfície não somente a tradicional concepção de ordem, mas também as de cooperação e justiça. Com essas noções, que na contemporaneidade são amplamente debatidas, será possível sopesar as relações internacionais como não somente a mera obediência de leis positivadas nos tratados, mas em que medida elas proporcionam cooperações legítimas para os direta ou indiretamente envolvidos. Para a tradição dos estudos originados por Grotius, não apenas existe uma ordem internacional derivada de certas instituições, como o direito internacional, e mantida por um sistema de Estados independentes, como também existe uma sociedade internacional, que de acordo com Hedley Bull, “têm raízes importantes na real prática internacional” (BULL, 2002a, p. 23). Essa característica separa a vertente Grotiana das tradições Hobbesiana e Kantiana, cada qual com sua descrição e prescrição sobre a política mundial. Para a tradição Hobbesiana ou realista as relações internacionais podem ser descritas como uma arena em estado de guerra de todos contra todos, onde Estados competem pelo domínio. As relações são o reflexo de um conflito, em que há vencedores e perdedores, num jogo de soma-zero. São regrados essencialmente pelos interesses dos Estados, que estão em colisão com os objetivos dos demais. Os conflitos são qua-

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se sempre resolvidos através de guerras, que são praticamente contínuas sendo interrompidas por breves períodos na história. Todos os Estados são livres para perseguir seus objetivos, na medida em que não existem regras e os tratados são pouco mais do que pedaços de papel. Não existe uma restrição moral ou legal que limita a atuação dos Estados, pois não há uma força que obriga ou imponha a efetividade das regras. Os comportamentos morais dos Estados estão restritos a seus próprios princípios morais e legais. As ações dos Estados, na tradição realista ou Hobbesiana, obedecem a um cálculo de prudência que visa o autointeresse ou a conveniência (BULL, 2002a, p. 23-24). Segundo a tradição Kantiana ou universalista, as relações internacionais, não são uma esfera conflitiva, mas uma conexão de todos os cidadãos do mundo. Os Estados devem contribuir para a comunidade da humanidade, na medida em que são essas relações humanas que de fato estão ou devem estar implícitas em todas as ações dos entes soberanos. Mesmo que na realidade esta comunidade da humanidade ainda não se concretizou, ela tem todas as condições de se estabelecer no futuro e poderá modificar o sistema de Estados para um Estado Mundial. Para esta tradição, os interesses dos homens são similares e não correspondem a uma luta de perdedores e vencedores com objetivos em conflito. Tacitamente os valores dos homens são os mesmos e algumas diferenças devem ser creditadas por problemas de comunicação que serão resolvidos com certa mediação. O que a tradição Kantiana defende não é uma coexistência pacífica entre sociedades díspares, mas uma sociedade cosmopolita, em que o objetivo é alcançar um forte laço moral, que é mais exigente que a autonomia dos Estados soberanos que se relacionam por regras de conveniência (BULL, 2002a, p. 25). A tradição Grotiana se encontra em uma posição intermediária entre as perspectivas Hobbesiana e Kantiana. Ela defende uma sociedade de Estados, que por um lado não pode ser comparada a um estado de natureza Hobbesiano de todos contra todos, pois os Estados são limitados por regras em comum, como as do direito internacional e também por instituições, como a ONU (Organizações das nações Unidas). Mas a sociedade internacional não é uma sociedade cosmopolita e também não almeja ser. Os atores no cenário internacional são os Estados e não os indivíduos. Como explica Hedley Bull: “International politics, in the Grotian understanding, expresses neither complete conflict of interest between States, nor complete identity of interest; it resembles a game that is partly distributive but also partly productive” (BULL, 2002a, p. 25) [Política internacional, no entendimento Grotiano, expressa nem um conflito completo de interesses entre Estados,

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nem uma completa identidade de interesses; isso se assemelha a um jogo que é parcialmente distributivo mas também parcialmente produtivo]. Desse modo, a sociedade de Estados na posição Grotiana não é apenas uma arena onde os Estados se utilizam da prudência ou conveniência para o autointeresse, como defende a posição realista/Hobessiana, mas se constitui por compartilhamento de valores e leis internacionais. Entretanto, não é a sociedade cosmopolita Kantiana, uma comunidade universal de indivíduos, mas sim de Estados que cooperam para mútuos benefícios, como no comércio internacional e na troca de informações e conhecimentos. Para Bull, as características de uma sociedade internacional permanecem no sistema internacional moderno, embora muitas vezes de forma precária, e divide o espaço com aspectos Hobbesianos e Kantianos. Entre essas características pode-se citar: Estados com interesses em comum; aceitam regras e criam instituições; respeitam o instituto da soberania; respeitam os contratos; limitam o uso da violência; fortalecem o direito internacional com a criação de tribunais e códigos; se utilizam do expediente da diplomacia para a resolução de acordos e conflitos. Mesmo que de forma nem sempre eficaz esses elementos não têm desaparecido, e embasam a tradição Grotiana. Grotius e os não-europeus

O tema da relação entre europeus e não-europeus motivou algumas críticas ao trabalho de Hugo Grotius. Alguns argumentaram que ele estava fundamentando uma velha ordem caracterizada pela expansão europeia ao mundo não-europeu. Grotius não restringiria em seu sistema a subjugação dos povos colonizados e poderia ser um pretexto para a violência, baseado em leis na “preservação da ordem e da justiça”. Em De Jure Praedae e em De Jure Belli ac Pacis ele se envolveu nas questões legais e teológicas para o relacionamento com os outros povos, não-europeus e não-cristãos (KINGSBURRY; ROBERTS, 2002, p. 42-43). Tomás de Aquino defendia que aceitar a fé era uma matéria de vontade e respeito por uma obrigação. A fé não poderia ser imposta a menos que ela já tivesse sido aceita previamente. Da mesma forma, Francisco de Vitoria argumentava que os Índios aborígenes não poderiam ser obrigados a crer na fé cristã a menos que eles soubessem o que estava sendo matéria de fé, o que era evidente que não sabiam. As guerras não poderiam ser travadas em nome das religiões e não sendo uma justa causa de guerra. Grotius seguia essa fundamentação, e acrescentava que a guerra era justa contra aqueles que perseguiam os cristãos por defenderem sua fé (KINGSBURRY; ROBERTS, 2002, p. 44). 106

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Deve-se ter em consideração que a sociedade internacional concebida por Grotius não era uma exclusividade de povos europeus ou cristãos, mas se estendia para toda a humanidade. A lei natural deveria valer para todos os homens. As sociedades independentes das Américas, da África e da Ásia que estavam sendo contatadas pelos europeus faziam parte desta sociedade maior, e tinham direitos de propriedade, de independência política ou soberania, e não poderiam ser privados de direitos por serem considerados não-cristãos infiéis, ou porque tinham sido “descobertos” por europeus, por doação papal ou baseados em direitos de guerra (BULL, 2002b, p. 80). Diferentemente, alguns teóricos cristãos afirmavam que os não-cristãos não tinha direitos de propriedade e independência política, quando a chegada de Cristo revogou o direito de posse dos infiéis. Tais argumentos foram usados em guerras de conquistas e colonizações e seguiam as diferenciações Gregos/bárbaros, civilizados/não-civilizados. Grotius seguia Tomás de Aquino e Agostinho, ao dar independência política e propriedade aos não-Cristãos, como do “amor ao próximo” de Cristo justificava a amar todos os seres humanos (BULL, 2002b, p. 81). Muitos autores se dividem se Grotius concedeu demais aos Estados mais poderosos nas relações entre os povos. Não obstante, Grotius em De Jure Belli ac Pacis condenou com veemência a prática entre as nações poderosas de igualar seus costumes com a lei do direito natural com o claro objetivo de ganância para o que é do outro (KINGSBURRY; ROBERTS, 2002, p. 47). Entretanto, na visão de Grotius as relações entre povos cristãos eram governadas com regras diferentes das relações entre Cristãos e não-cristãos. Além do direito natural, eram as regras da volição humana ou positivas, que pesavam nas relações entre os povos, e os povos cristãos tinham desenvolvido suas próprias regras de relacionamento entre si. E nessas questões, Grotius não escondia a sua preferência pelos princípios da cristandade, tratando em separado os temas como, por exemplo, se os povos cristãos poderiam travar guerras entre si, do tema de se outros povos podem fazer guerras com os demais. Para Grotius, seguindo Francisco de Vitoria, era justificado aos cristãos usar a força para resolver problemas do comércio baseado na doutrina de que existe um direito universal de comércio entre os povos. O direito ao uso da força é assegurado em caso de obstrução. Tal doutrina desempenhou um papel considerável na expansão dos europeus na época dos descobrimentos e desconsiderou o direito que não-europeus reivindicavam de ficar de fora da economia internacional, de se isolar frente a outros povos.

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De acordo com Hedley Bull, nos séculos XVIII e XIX, a teoria de que a sociedade internacional era fundamentada na inclusão dos povos foi rejeitada na teoria e na prática. A preponderância dos povos cristãos e Europeus excluía as demais nações de forma política, econômica e culturalmente. No tempo de Grotius, esta segregação dava apenas seus primeis sinais (BULL, 2002b, p. 82-83). O direito de Guerra e o direito dos Mares

De Jure Belli ac Pacis publicada em 1625, durante a Guerra dos Trinta anos (1618-1648), permitiu a Grotius alcançar grande reputação em vida o que obscureceu o trabalho de outros internacionalistas no período. Muito do sucesso da obra se deve ao momento histórico, quando os Países Baixos conquistaram sua independência política da Espanha e se tornaram uma República, em que a liberdade política, a tolerância religiosa, um grau elevado de cultura e o comércio desenvolvido levaram a ser considerada a nação mais avançada politicamente da Europa. Grotius foi responsável pelo maior avanço na consideração das causas justas da guerra, onde o “justo” se refere as “causas da ação”. No direito, segundo Grotius, existem ações para danos ainda não feitos, ou para danos já realizados (GROTIUS, 2005, p. 393). Em analogia com o processo judicial, guerra era o método adotado pelos Estados para estabelecer suas reivindicações. Nenhum outro método tem a eficácia da guerra nas disputas entre os povos. Mas para ser reconhecido pelo direito, a guerra precisa ter uma causa justa, como ocorre em qualquer tribunal. Estas regras da guerra justa estão assentadas pelo direito das nações e podem ser de três modos: 1) Defesa contra um dano, real ou ameaça, mas sem antecipação; 2) Reparação do que é legalmente devido para um estado ofendido; 3) Punição sobre um Estado fora da lei (DRAPER, 2002, p. 195). A aceitação de guerras justas de acordo com essas regras não facultava a nenhum Estado a possibilidade de travar guerras por antecipação. Ameaças potenciais correspondidas com atos de guerra, para Grotius eram abomináveis, na medida em que as condições para vida humana não são garantidas em completa segurança. Tratados de aliança não eram obrigados em relação a Estados que lutavam guerras injustas e Estados travando guerras contra Estados engajados em guerras injustas poderiam infligir punição sobre contrabando de mercadorias. Os sujeitos convocados para pegar em armas em guerras injustas possuíam o dever de recusar. No caso dos países neutros, Grotius propôs a doutrina da neutralidade qualificada. Os países neutros não necessariamente deve-

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riam participar ativamente do lado daqueles que travam guerras justas, devendo sopesar o melhor modo de favorecer a parte que está de acordo com as regras. Possuem o dever de negar a passagem para Estados que lutam guerras injustas e fazer o contrário com aqueles que o fazem em justos termos (DRAPER, 2002, p. 196-197). Sobre a lei dos Mares, a defesa de Grotius sobre a liberdade dos oceanos foi escrita na obra De Jure Praedae Comentarius (publicada somente em 1864), para se colocar do lado da Companhia Holandesa das Índias Orientais para justificar a captura de um galeão Português. Um capítulo deste livro, intitulado, Mare Liberum, tinha sido publicado separadamente em 1609, solicitado em meio as tratativas entre Espanha e Holanda, que advogava o direito da Holanda para participar do comércio com as Índias Orientais. O objetivo era fortalecer o argumento da liberdade da Companhia Holandesa das Índias Orientais para o comércio naqueles territórios (BUTLER, 2002, p. 209-210). Quando Mare Liberum apareceu no começo do século XVII havia uma forte concorrência entre as grandes potências da época para o controle dos mares. Espanha, Portugal, Inglaterra e Holanda tentavam obter preponderância. Pouco depois da publicação o Rei James I da Inglaterra decretou que somente estrangeiros autorizados estavam aptos a pescar nos mares ingleses, além de dar o monopólio a uma companhia para pescar baleias nos mares do ártico. Mare Liberum originou também uma disputa entre intelectuais, como John Selden que em Mare Clausum defendia que os mares poderiam ser propriedades privadas como as terras, e que os oceanos sobre o domínio da Inglaterra eram propriedades do Império Inglês (BUTLER, 2002, p. 210-211). Em Mare Liberum e em De Jure Belli ac Pacis, Grotius apresentou a fundação do direito moderno para os altos mares. Estados não podem adquirir individualmente ou coletivamente para seu uso particular áreas em altos mares pois elas são res communis omnium [bem comum de todos]. A tese de Grotius demorou um tempo para ser aceita, mas desde o século XIX por interesses europeus e americanos, e nos séculos seguintes ela é considerada um princípio do direito internacional. Para Grotius a liberdade dos mares se evidencia baseado no direito das nações para o qual a navegação é livre para todos: “We will lay this certain rule of the law of nations (which they call primary) as the foundation, the reason whereof is clear and immutable: that it is lawful for any nation to go to any other and to trade with it” (GROTIUS, 2005, p.10) [Vamos colocar essa regra certa da lei das nações (que elas chamam de primária) como a fundação, a razão pela qual é clara e imutável, que é lícito para qualquer

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nação ir para qualquer outra e fazer comércio com ela]. Este direito das nações estava estabelecido por Deus e incorporado na natureza, e poderia ser assimilado pela razão com o argumento de que em muitos lugares não é fornecido todas as necessidades da vida, alguns se sobressaem em algumas coisas e outros em outras. A justiça de Deus determina que alguns povos devem prover certas necessidades de outros, e negar o direito das trocas mútuas se volta contra as leis mais básicas da Natureza (BUTLER, 2002, p. 213). Assim, as águas dos mares e o ar são propriedades comuns a todos. O uso de certos países dos oceanos para a navegação não faz eles serem não navegados pelos demais, enquanto que a propriedade de outros bens não é pensada da mesma forma. As partes dos oceanos e dos ares não podem ser divididas: a tentativa de demarcar linhas nos mares somente expressa uma vontade de ocupar e não uma capacidade para torná-la propriedade de alguém, dada as características físicas das águas. Grotius e a legitimidade da ordem internacional pelo direito. Suas ideias e nossos dias

É possível inferir das práticas do mundo antigo e moderno que as leis das nações e sua persecução por Grotius não eram somente uma sustentação de um status quo, mas de um processo de fundamentação da justiça internacional que garantiria legitimidade para as ações dos Estados. Adam Watson, representante da Escola da Sociedade Internacional, em sua obra “The Evolution of International Society” [A Evolução da Sociedade Internacional], argumentou que a legitimidade no mundo antigo era o óleo que lubrificava as máquinas operadas de uma sociedade (WATSON, 2010, p. 315). Ele definiu a legitimidade no sentido de leis e teorias do que é próprio e adequado e são culturalmente condicionadas e associadas com a tradição e precedentes. As pessoas são influenciadas pelo que elas acreditam que deve ser o direito, de Jure, assim como o que elas percebem que acontece de facto. E mais: elas são inclinadas para favorecer o que elas acreditam que deve ser, até mesmo quando isso não é de seu interesse material. A legitimidade conferida pelas leis e valores compartilhados são resistentes à mudança, mas pode ser alterada muito lentamente pelas práticas que seguem as vantagens quando as circunstâncias se alteram (WATSON, 2010, p. 130). De acordo com Watson, que pesquisou sobre os sistemas de Estados nas sociedades antigas, as relações entre as comunidades eram determinadas pelas práticas, mas também pelos valores que acreditavam ser os mais adequados. Quanto mais legítimas eram consideradas as regras e as instituições, mais influência exerciam sobre as práticas (WATSON, 110

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2010, p. 315). Não obstante, Watson melhor descreveu essas relações com uma fórmula que determinava o sistema de Estados no mundo antigo, entre dois extremos, onde em um lado existiriam sociedades com completa autonomia e no outro extremo o império: o ponto mais estável da curva não é uma fórmula invariável, mas um ponto ótimo que mistura legitimidade e vantagens, e que modificado por puxar o pêndulo longe dos extremos (WATSON, 2010, p. 131). Por conseguinte, no que se refere a Grotius, baseado nessa análise de Watson, era a busca de uma legitimidade possível que o pensador do direito das nações almejava quando retirava conclusões pela razão para descobrir as leis da natureza, através de uma relação entre o peso das circunstâncias com a premente necessidade de legitimidade para as relações internacionais que conviviam com as trocas e com as guerras. Para a atualidade, os ensinamentos de Grotius para o direito das nações devem ser contrabalançados com as circunstâncias do período. Algumas questões podem ser ponderadas. Sobre a legalidade do recurso para a guerra, como foi observado, Grotius argumenta que as causas das guerras justas só podem existir mediante um dano recebido que era relacionada em três categorias: defesa, retomada da propriedade, ou punição. Esta formulação era considerada um avanço para sua época, limitava o direito de guerra, e não permitia combates de conquistas territoriais ou para espólio. Na Carta das Nações Unidas em nossos dias, as causas para o uso da força se estreitam ainda mais. Nos seus artigos 2 e 5, a Carta da ONU de forma clara estabelece que a autodefesa é a única via legítima para o uso da força, bloqueando a opção do uso da força unilateral nos demais casos. Esse entendimento foi reafirmado pela Corte Internacional de Justiça em 1949 no caso Corfu Channel quando assegurou que o recurso à força não era permitido mesmo para assegurar o direito de liberdade de passagem nos mares. Essa decisão foi seguida no caso Nicarágua vs. United States of America em 1986 (HIGGINS, 2002, p. 269). A contribuição de Grotius foi mostrar que existem limites para o recurso a guerra, mas também que os meios para tal não podem ser ilimitados. Desde 1970 as Nações Unidas mostram um interesse no regramento do jus in bello (direito na guerra) e no desenvolvimento de leis humanitárias. Foi Grotius que principalmente insistiu sobre a necessidade de proteção dos não-combatentes em tempos de guerras, que hoje se adequam na categoria ‘protect persons’ da lei humanitária internacional (HIGGINS, 2002, p. 275). Apesar do desrespeito em muitos momentos contemporâneos em guerras de guerrilhas e em bombardeios, a distinção de Grotius entre combatentes e não-combates, e os horrores que elas causam nas populações civis e na opinião pública 111

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mundial, mostram a importância do seu integral cumprimento para a legitimidade da ordem internacional. Outro aspecto relevante das posições de Grotius para o mundo contemporâneo se dá com a questão da igualdade e distribuição de poderes desiguais entre os povos. Para Suganami, foi a combinação de três fatores que impede a visão de que Grotius sustentou uma ordem estratificada e hierárquica das relações entre as nações: a ideia de igualdade da soberania no que tange a igual capacidade para direitos, a crença na lei natural que obriga a todos na humanidade e a necessidade prática das relações comerciais e sociais reguladas pelo direito. Com a lei da soberania igual, Grotius assegurou que mesmo as diferenças de poder, e mesmo a existência de tratados injustos entre os Estados, eles possuem igualdade em direitos. Da mesma forma, Grotius assegurou a lei internacional para todos, inclusive para piratas e tiranos, que mesmo sendo considerados foras da lei, deveriam receber um tratamento justo na condição de homens, embora não abonasse seus crimes. Estas classes de pessoas poderiam ser readequadas na civilização sob o direito das nações. A igualdade soberana e o direito natural estão contemplados respectivamente na Carta da ONU e na Declaração Universal dos direitos Humanos (SUGANAMI, 2002, p. 237). Existe também uma passagem em De Jure Belli ac Pacis que Grotius sinaliza para a discussão contemporânea da necessidade de uma maior igualdade substantiva. “Quando em maior necessidade o direito primitivo de uso revive, como se a propriedade em comum tivesse permanecido depois de ter sido propriedade de alguém, a suprema necessidade se caracteriza como uma exceção” (GROTIUS, 2005, p. 434). Grotius não propôs o “direito de necessidade” para o direito das nações, contudo, para Suganami, se um seguidor de Grotius extrapolasse estas ideias para os dias atuais, os Estados soberanos seriam os verdadeiros proprietários das riquezas sob seus domínios, exceto quando as necessidades humanas básicas poderiam não ser atendidas dentro de algum Estado qualquer, facultando a possibilidade para estes povos utilizar medidas de emergência para a solução de suas condições precárias (SUGANAMI, 2002, p. 240). Um grande artista ou cientista possui uma intenção por detrás da obra ou do objetivo que procura. O resultado quase nunca é exatamente igual ao intencionado, geralmente um pouco a baixo, mas quase sempre aproximado. Essa é uma explicação metafórica das vias de interpretação para a obra de Hugo Grotius. Não é tanto se a lei natural é isso ou aquilo, se deriva de deus ou dos costumes, se ela comanda ou complementa as leis positivas, mas foi propriamente a intenção de Grotius que fez dele um digno representante do direito das nações, um dos pais fundadores 112

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da ordem internacional mediante regras. Pois o que está implícito é a tentativa de legitimar a ordem e torná-la mais cooperativa, diminuindo as chances de guerras e permitindo o comércio internacional, a liberdade dos mares, o direito de deslocamento dos indivíduos e comunicação, os limites dos meios em que as guerras podem ser travadas, a extensão dos direitos das gentes para além da cristandade e de dar possibilidade, não de haver uma desejável, mas de ter uma sociedade internacional possível. Desse modo, Grotius mostrou e indicou o caminho de que é possível e necessário oferecer maior legitimidade para as relações internacionais através do direito das nações. Referências

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5 O colonialismo como teoria da modernidade: esboço de uma pesquisa interdisciplinar em teoria social crítica

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Leno Francisco Danner Agemir Bavaresco Fernando Danner

Introdução

O colonialismo enquanto fenômeno simbólico-normativo e político-material não aparece nas teorias da modernidade europeias, nem encontra nelas centralidade em termos de análise epistemológico-política; ele não é citado por elas, quando da sua reconstrução filosófico-sociológica do processo de constituição, de desenvolvimento e de consolidação dessa mesma modernização como um sistema-mundo que é, em primeiro lugar, um processo ontogenético de constituição-desenvolvimento-consolidação endógeno, autorreferencial e auto-subsistente da Europa sobre si mesma e para si mesma e, depois, das sociedades industrializadas desenvolvidas contemporâneas sobre si mesmas e para si mesmas (este como herança-continuidade daquele) – inclusive, em muitos casos, a separação entre primeiro e terceiro mundos, entre capitalismo central e capitalismo periférico, foi entendida como apontando para sendas 1 Uma versão inicial deste artigo foi publicada em Ágora Filosófica, v. 1, n. 1, p. 149-201, 2017.

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evolutivas singulares, e não como processos correlatos e mutuamente dependentes de constituição-desenvolvimento. No máximo, o colonialismo simbólico-material aparece como um acontecimento fortuito, secundário, periférico àquele grande processo modernizante que é, fundamentalmente, um trabalho de si sobre si mesmo, um autoesforço hercúleo de superação do tradicionalismo em vista da consolidação da moderna visão de mundo – calcada no racionalismo e no universalismo – em termos societais-culturais e cognitivo-morais. Ao menos esse é o quadro teórico-político quando analisamos os discursos filosófico-sociológicos de grandes pensadores europeus de fins do século XIX em diante, em especial, para sermos mais específicos, Max Weber e a grande tradição da teoria crítica europeia na figura de Jürgen Habermas. Nesse texto, focando particularmente em Max Weber e em Jürgen Habermas, procuraremos defender que, de fato, o discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia sobre si mesma é marcado por uma cegueira histórico-sociológica (e até normativa) caracterizada pelos seguintes passos e pressuposições teórico-políticos, a saber: (a) é um discurso-processo autorreferencial, auto-subsistente e endógeno da modernidade sobre si mesma, que parte da diferenciação e da oposição entre a modernidade europeia, racional e universal, versus todo o resto como tradicionalismo em geral, dogmático e contextualista; (b) esse discurso-processo correlaciona (e, depois, contrapõe) modernidade-modernização, racionalismo e universalismo, bem como tradicionalismo, dogmatismo e contextualismo, o que significa a afirmação de que a modernidade, por meio da racionalização, gera crítica, reflexividade e emancipação, uma vez que é uma sociedade-cultura, consciência cognitivo-moral e paradigma normativo universalistas, ao passo que o tradicionalismo em geral não é racional e nem gera racionalização social, não permitindo, por conseguinte, a perspectiva teórico-prática universal e nem a consecução do criticismo social e da reflexividade política caudatários dessa mesma perspectiva teórico-prática universal; no mesmo sentido; (c) esse discurso-processo da modernidade-modernização sobre si mesma separa metodológico-programaticamente modernidade cultural enquanto esfera basicamente normativa e modernização econômico-social como esfera fundamentalmente material-institucional, tornando a primeira condição ontogenética da segunda, mas eximindo-a de qualquer patologia psicossocial, que fica diretamente ligada à modernização econômico-social, o que implica em que, por tal separação, a modernidade cultural pode ser afirmada como o autêntico universalismo epistemológico-moral (enquanto sociedade-cultura, consciência cognitivo-moral e paradigma

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normativo descentrados, pós-tradicionais), como a condição da crítica, da reflexividade e da emancipação, como o guarda-chuva por excelência das diferenças, para as diferenças e pelas diferenças, culpando-se apenas a modernização econômico-social das patologias psicossociais geradas em termos de modernização ocidental; com isso; (d) esse discurso-processo realiza a exclusão e o apagamento do colonialismo como ponto fundante e definidor da modernização, como consequência da modernização enquanto correlação de modernidade cultural e modernização econômico-social como um processo imbricado e mutuamente dependente, de modo a, mais uma vez, salvar a modernidade cultural em seu sentido universalista, como guarda-chuva normativo e paradigma epistemológico-político de todos os contextualismos e particularismos. Desse modo, defenderemos que esse discurso-processo filosófico-sociológico da modernidade europeia sobre si mesma, nas características caricatas por ele assumidas, conforme apresentado acima e conforme desenvolveremos logo adiante, não permite uma perspectiva crítica e reflexiva nem ao paradigma normativo da modernidade calcado na modernidade cultural (correlação de modernização, racionalização e universalismo via procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal enquanto o resultado mais fundamental dessa mesma modernidade cultural), que se afirma como o guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas e por todas elas, e nem, principalmente, uma práxis decolonial ou anticolonial própria às sociedades-culturas e aos sujeitos epistemológico-políticos periféricos, excluídos, gerados em termos do colonialismo levado a efeito pela modernidade enquanto sistema-mundo totalizante e desde a correlação de modernidade cultural, modernização econômico-social e o próprio colonialismo. Por isso, proporemos, nas páginas que se seguem, a partir da crítica à cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade, que esse discurso filosófico-sociológico da modernidade sobre si mesma, que a concebe como autêntico universalismo, somente pode ser realizado de modo crítico, reflexivo, emancipatório e, então, universalista se o colonialismo for trazido para o centro desse mesmo discurso, isto é, se ele for concebido como um pilar fundamental da constituição, da autocompreensão e do próprio desenvolvimento da modernidade euronorcêntrica e, com isso, como imbricando modernidade cultural e modernização econômico-social (até porque o colonialismo é sempre simbólico-normativo e político-material – é necessária a negação simbólica, normativa e moral como condição da instrumentalização e até da destruição material). Nesse caso, a reparação pelo colonialismo, e não mais a modernidade cultural (enquanto procedimentalismo impar-

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cial, neutro, formal e impessoal, enquanto racionalização cultural-comunicativa), ofereceria a base normativa da práxis, servindo, inclusive, como voz-práxis do outro da modernidade. Com isso, apontaremos que as ciências humanas e sociais do horizonte da modernidade periférica e a partir dela, uma vez fundadas na assunção do colonialismo como teoria da modernidade e na sua utilização como chave-de-leitura e mote normativo da práxis epistemológico-política decolonial, podem reconstruir o discurso filosófico-sociológico da modernidade, agora por meio do e a partir do próprio sujeito-contexto excluído-marginalizado-colonizado, que traz para dentro da teoria da modernidade e como voz-práxis desse mesmo excluído-marginalizado-colonizado as experiências correlatas de negação-deslegitimação simbólico-normativa e de destruição político-material, tendo condições de, no mesmo diapasão, apresentar valores, práticas, símbolos e formas de vida alternativas à própria modernização econômico-cultural. Em verdade, o sujeito epistemológico-político colonizado tem condições de, por meio da utilização do colonialismo como base fundante e definidora e também como resultado do processo de evolução da modernidade-modernização, expor a profunda ligação entre cultura e civilização material, geralmente ignorada-silenciada pelas teorias da modernidade tradicionais (por exemplo, no caso da teoria da modernidade de Habermas) que também faz parte do processo de modernização europeu – ligação essa que, de resto, faz parte da constituição, da organização, do desenvolvimento e da evolução de qualquer sociedade-cultura. Essa profunda ligação e dependência entre modernidade cultural e modernização econômico-social, juntamente com a colocação do colonialismo como ponto nodal da constituição-desenvolvimento-evolução da modernidade, permitem o desvelamento, a crítica e a desconstrução da cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade, além da suspeição relativamente à direta associação entre modernidade-modernização, racionalização, crítica, reflexividade, emancipação, universalismo e gênero humano – modernidade como gênero humano, como ápice, apogeu dele – que aparece como resultado direto do discurso filosófico-sociológico da modernidade sobre si mesma. Desse modo, nosso texto, ao defender o colonialismo como teoria da modernidade por excelência, uma vez que ele religa modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo, aponta para uma filosofia decolonial como a base teórico-política das periferias socioculturais e epistemológico-políticas, por meio de seus sujeitos epistemológico-políticos periferizados, negados, excluídos: aqui, portanto, a voz-práxis emancipatória é dada

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exatamente desde a periferia, desde a colônia, e por meio dos sujeitos epistemológico-políticos marginalizados, inferiorizados em termos de constituição e de desenvolvimento da modernização totalizante. A teoria da modernidade, a Europa e o outro da modernidade: sobre a construção do discurso filosófico-sociológico da modernidade

O discurso filosófico-sociológico da modernidade é, conforme pensamos, um dos pontos mais fundamentais da filosofia e da sociologia europeias desde pelo menos fins do século XVIII, em que as ideias de um novo tempo, de uma nova sociedade, de uma nova cultura, de um novo indivíduo-homem e, correlatamente, de uma nova proposta epistemológico-política e antropológico-ontológica, representadas por essa mesma Europa em termos societais-culturais, político-antropológicos e normativos, passam a ser ponto fundante e referência explícita nas produções de uma ampla gama de autores, passando por Kant, encontrando seu ápice em Hegel, passando, além disso, por Comte e Marx, por Nietzsche, Durkheim e Heidegger, etc. No mesmo sentido, a sociologia weberiana e, depois, a teoria social frankfurtiana, em particular no caso de Habermas, assumem exatamente a elaboração desse discurso como condição fundamental para pensar-se a relação teoria e práxis e, em verdade, para definir-se o tipo de abordagem relativamente à modernidade-modernização ocidental. Pode-se dizer, com isso, que a modernidade-modernização é o núcleo comum – ainda que percebida desde diferentes vieses e com características muito específicas a cada posição teórico-política –, o ponto de partida, a base de dinamização e certamente o ponto de chegada de todas essas posições filosófico-sociológicas. Nesse sentido, a abordagem dada à modernidade-modernização, o conceito de modernidade-modernização, uma vez definido, permite, como consequência, exatamente um tipo de criticismo social e de práxis política muito específicos, para não se falar também de uma postura estético-epistemológica frente a si mesmo, aos outros e ao mundo. A construção de um discurso filosófico-sociológico da modernidade, como herança mais fundamental da filosofia e das ciências sociais europeias, é a intenção-chave, o mote dinamizador de toda a excelente e instigante pesquisa de Jürgen Habermas. Com efeito, como ele salienta em muitos de seus escritos, a intenção dessa reconstrução a uma só vez filosófica e sociológica consiste em oferecer um contraponto às abordagens unidimensionais – tanto em teoria crítica quanto em termos de pós-estruturalismo, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político

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– acerca da modernidade, mostrando exatamente seu sentido plurívoco ou, pelo menos, para dizer o mínimo, seu sentido dual (HABERMAS, 1991, p. 166, 1997, p. 33-34, p. 140-154, 2012a, p. 09-14). Para Habermas, reduzir a compreensão da modernidade-modernização a um único princípio, por exemplo o trabalho ou a racionalidade instrumental (como o fizeram Marx, Weber e Adorno & Horkheimer, no entender do pensador em comento), implica em perder de vista toda a amplitude e riqueza dessa revolucionária base societal-cultural, antropológico-ontológica e epistemológico-política que é a modernidade (HABERMAS, 2012a, p. 267-268). No mesmo sentido, se quisermos – como Habermas quis – enfrentar o conservadorismo político-cultural, que compreende a modernidade como a época do relativismo, do individualismo e do ceticismo, precisamos de entender o que é a modernidade (HABERMAS, 1997, p. 140-141, p. 179). Se quisermos, ainda, pensar nas perspectivas de uma esquerda teórico-política frente à economia, ao Estado e à sociedade civil, necessitamos de reconstruir esse discurso filosófico-sociológico da modernidade, não mais unidimensional, mas exatamente plural, fazendo jus à amplitude e às diferenciações da modernidade (HABERMAS, 2003a, p. 11-13, 2005, p. 127-143). Em suma, fiel à tradição filosófico-sociológica europeia, que buscava na filosofia a fundamentação de um conceito objetivo de normatividade social garantidor da crítica, da reflexividade e da emancipação via práxis, e que buscava na sociologia um conceito objetivo de fato e de sujeito e de instituição sociais, Habermas quer, por meio de sua proposta de um discurso filosófico-sociológico da modernidade, dotar a teoria social crítica de uma base teórico-política capaz de, por um lado, avaliar a modernidade-modernização (europeia e, depois, o padrão evolutivo-constitutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas) em todas as suas potencialidades, bem como, por outro, perceber efetivamente suas patologias psicossociais, de modo a ter-se, com isso, uma base normativo-institucional que possa permitir sua diagnose e sua superação. Para isso, Habermas tem de construir correlatamente um conceito normativo e um conceito institucional-empírico de modernidade que possam dar suporte tanto ao criticismo social quanto à práxis política. Ora, mas como Habermas é filho e continuador da tradição iluminista moderna, também é de se esperar que o criticismo social e a práxis política emancipatória em termos de teoria crítica e a partir de um conceito de modernidade-modernização plural ou dual encontrem suporte em uma posição epistemológico-política universalista, isto é, em um paradigma normativo que não se restrinja apenas à própria modernidade, senão

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que tenha alcance maior, no próprio horizonte intercultural. Assim, o discurso filosófico-sociológico da modernidade por si mesma, sobre si mesma e para si mesma é também um discurso do gênero humano sobre si mesmo, para si mesmo e por si mesmo – da modernidade para o gênero humano, e deste para aquela (HABERMAS, 1990a, p. 13-21, p. 153, p. 194-228, 1999, p. 31-43). Ora, como dissemos, Habermas – situando-se na grande tradição da filosofia e da sociologia modernas, que têm, portanto, na categoria de modernidade-modernização sua base epistemológica, política e normativa (e certamente antropológico-ontológica) – tem por objetivo construir-reconstruir o processo de evolução da modernidade europeia com vistas a oferecer um contraponto às avaliações unidimensionais feitas dela, permitindo, com isso, sua retomada como fundamento da crítica social, da emancipação política e do universalismo epistemológico-moral ou do diálogo-práxis intercultural. Importante mencionar, no que diz respeito a essa reconstrução, que, quando falamos em modernidade-modernização de um modo geral e no caso de Habermas em particular, estamos falando na Europa moderna e, depois, no padrão evolutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas (nesse caso, América do Norte e Europa Ocidental) (HABERMAS, 1999, p. 50-80, 2012a, p. 355, 2012b, p. 551). Nas análises filosófico-sociológicas de fins do século XVIII em diante e, em especial, na filosofia e na sociologia do século XX, quando o conceito de modernidade-modernização é utilizado, ele o é exatamente para significar esse contexto social, cultural e normativo da modernidade-modernização central. Como veremos mais adiante, é nele que Habermas (assim como a grande tradição filosófico-sociológica que assume, da qual faz parte) percebe o grande ponto de viragem da história da evolução humana e, nesse sentido, o potencial efetivamente emancipatório, crítico e universalista que embasa a construção de seu conceito de racionalidade cultural-comunicativa como o núcleo comum da espécie humana como um todo – em primeiro lugar, a racionalidade cultural-comunicativa manifestou-se e consolidou-se em toda a sua pujança na Europa moderna, embora faça parte de todas as sociedades-culturas enquanto sua base ontogenética e dinamizadora, mesmo que não com tanta força, intensidade e radicalidade. O discurso filosófico-sociológico da modernidade é um discurso da modernidade europeia sobre si mesma, para si mesma e por si mesma, da mesma forma como ele é, depois, um discurso da modernidade-modernização central sobre si mesma, para si mesma e por si mesma. O que tem a modernidade-modernização europeia de tão especial que leva

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Habermas – assim como levou seus mestres na grande tradição filosófico-sociológica à qual ele se filia e dá continuidade – a utilizá-la como chave-de-leitura analítica e conceito político-normativo? A resposta é bem óbvia e totalmente alinhada àquela tradição filosófico-sociológica da qual Habermas é herdeiro e continuador: há uma correlação umbilical entre modernidade-modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, assim como há uma correlação fundamental entre modernidade-modernização, razão, crítica, reflexividade e emancipação. E, o que é mais importante, a modernidade europeia, pela primeira vez na história e na evolução do gênero humano, e como autocompreensão do gênero humano por si mesmo, alcançou essa correlação, tornando-se, por meio da razão-racionalização, uma sociedade-cultura, uma consciência cognitivo-moral e um paradigma epistemológico-político efetivamente universalistas, o autêntico guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas, por todas elas (HABERMAS, 1997, p. 163, 2012a, p. 355, p. 383-385). Não por acaso, aqui, a comparação entre modernidade e tradicionalismo e a diferença entre a modernidade como racionalização e universalismo e todo o resto como tradicionalismo em geral enquanto dogmatismo e contextualismo estritos são o ponto de partida e o pré-conceito político basilares, fundantes do discurso filosófico-sociológico da modernidade, de Habermas e da tradição filosófico-sociológica da qual ele faz parte. Essa diferenciação – e o espanto que os pensadores europeus sentem em relação a ela – faz parte da teoria da modernidade de Weber, definindo o estilo de suas análises sociológicas referentemente ao fenômeno da modernização e, claro, dos seus estudos sobre religiões e organizações sociais orientais (não por acaso, a sociologia europeia assume em cheio essa diferenciação e oposição entre Ocidente e Oriente). Com efeito, para Weber, quando nós, os filhos da modernidade-modernização, olhamos para a história universal, podemos perceber de modo direto exatamente a diferença entre a modernidade europeia e todo o resto como ponto fundante para pensarmos a própria condição da modernidade-modernização e, com isso, as perspectivas antropológico-ontológicas, socioculturais e epistemológico-políticas correlatas, caudatárias a essa mesma civilização ocidental em termos de modernidade-modernização. Com efeito, segundo Weber,

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O filho da moderna civilização ocidental, que trata de problemas histórico-universais, o faz de modo inevitável e lógico a partir da seguinte dinâmica: que encadeamento de circunstâncias possibilitou que aparecessem no Ocidente, e somente no Ocidente, fenômenos culturais (pelo menos como os representamos a nós) que apresentam uma direção evolutiva de alcance e de validade universais? (WEBER, 1984, p. 11, grifo nosso)

Perceba-se, aqui, o primeiro ponto teórico-político definidor do discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia sobre si mesma, que é exatamente a correlação de historicismo e universalismo, o que implica, aliás, de que somente em termos de Ocidente e por parte do Ocidente ocorram valores, práticas e sujeitos com vinculação, sentido e atuação universais, isto é, com uma perspectiva antropológico-ontológica, sociocultural e epistemológico-política transcendentes ao contexto. Mas por que a modernidade, e não qualquer outra sociedade-cultura, tem tanto essa correlação de historicismo e de universalismo quanto essa vinculação, esse sentido e essa atuação de alcance universais, ou seja, em nome de toda a humanidade e por parte dela, a partir dela? Qual categoria antropológico-ontológica, sociocultural e epistemológico-política permite e gera esse universalismo próprio à modernidade-modernização europeia? Weber responde: a racionalização cultural (WEBER, 1984, p. 11-24). Esse é o aspecto fundante, dinamizador e definidor da modernidade-modernização e, ao mesmo tempo, ele é o umbral que separa a modernidade europeia em relação a todo o resto como tradicionalismo. Segue Weber: Por que, nestes lugares, não ocorreram seja a evolução científica, seja o desenvolvimento da ciência, seja o desenvolvimento da arte e o do Estado, assim como o da economia, pelos caminhos da racionalização que são característicos do Ocidente? Pois é evidente que, em todos os casos mencionados, se trata de um ‘racionalismo’ de tipo especial da cultura ocidental. (WEBER, 1984, p. 20, grifo do autor)

Ora, é esse racionalismo de tipo especial da modernidade europeia que, como dissemos acima, separa a modernidade enquanto racionalização e universalismo relativamente a todo o resto como tradicionalismo em geral, de modo que um discurso filosófico-sociológico da modernidade sobre si mesma encontra nesta categoria e na diferenciação-oposição que ela pressupõe exatamente seu ponto de partida e seu mote teórico-políticos. Com efeito, no caso do sentido e do mote do discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia sobre si mesma, por si mes-

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ma e a partir de si mesma, o objetivo central consiste em “[...] conhecer a peculiaridade específica do racionalismo ocidental e, dentro dele, do racionalismo ocidental moderno, bem como de explicá-lo em sua gênese” (WEBER, 1984, p. 21, grifo do autor). Note-se que, em relação a isso, poder-se-ia objetar que a posição de Weber tanto em relação à especificidade da Europa moderna – porque, quando ele fala em civilização ocidental, é à Europa moderna que ele está se referindo, como o provam suas pesquisas – quanto em relação à contraposição, com base na categoria da racionalização, entre essa mesma Europa moderna e todo o resto como tradicionalismo seria apenas um ponto de partida metodológico-programático em termos de realização das pesquisas em ciências sociais, sem necessariamente estar comprometido com ou dependente de uma avaliação e de um enquadramento axiológicos mais amplos relativamente à superioridade ou à inferioridade de uma estrutura societal-cultural e epistemológico-política. Por outras palavras, quando Weber compara e opõe a modernidade europeia versus todo o resto como tradicionalismo, não necessariamente estaria em jogo, aqui, um juízo de valor sobre a superioridade ou a inferioridade de uma em relação à outra, do tradicionalismo em relação à modernidade-modernização. Trata-se, mais uma vez, de uma hipótese de pesquisa, de uma chave de leitura analítica para a abordagem propriamente sociológica. Se isso pode ser verdade para Weber, o mesmo não acontece com Habermas. Com efeito, para Habermas, essa correlação de modernização, racionalização e universalismo, assim como, em consequência, a separação entre modernidade europeia e todo o resto como tradicionalismo é não apenas um ponto de partida metodológico-programático, uma chave de leitura analítica para o entendimento e a reconstrução do processo de constituição e de evolução da modernidade-modernização, senão que um juízo epistemológico, político e normativo acerca da superioridade da sociedade-cultura, da consciência cognitivo-moral e do paradigma normativo modernos em termos de efetivamente gerarem racionalização social-cultural-comunicativa e, com isso, fundarem exatamente uma sociedade-cultura, uma consciência cognitivo-moral e um paradigma normativo universalistas. Se por um lado Habermas alerta que isso não significa que o indivíduo de uma sociedade tradicional é inferior cognitivamente falando em relação ao indivíduo moderno, por outro ele está afirmando que, sim, a estrutura sociocultural, cognitivo-moral e paradigmático-normativa da modernidade é superior em relação ao tradicionalismo exatamente por gerar, por fundar e por dinamizar a perspectiva sociocultural, antropológico-ontológica e epistemológico-política

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universalista (HABERMAS, 2012a, p. 95-96). Portanto, a separação entre modernidade e todo o resto, a associação de modernidade, racionalização e universalização, assim como a superioridade da modernidade (por causa da racionalização e do universalismo) em relação a todo o resto como tradicionalismo em geral, representam o ponto de partida epistemológico e o pré-conceito político-normativo fundantes da teoria da modernidade de Habermas. Ele diz, ao justificar essa base do discurso filosófico-sociológico da modernidade sobre si mesma: À medida que procuramos aclarar o conceito de racionalidade com base no uso da expressão ‘racional’, tivemos de nos apoiar sobre uma pré-compreensão que se encontra ancorada em posicionamentos modernos da consciência. Até o momento, partimos do pressuposto ingênuo de que na compreensão de mundo moderna expressam-se certas estruturas da consciência que pertencem a um mundo da vida racionalizado e por princípio possibilitam uma condução racional da vida. Implicitamente, relacionamos à nossa compreensão de mundo ocidental uma pretensão de universalidade. Para entender o significado dessa pretensão de universalidade, recomenda-se fazer uma comparação com a compreensão de mundo mítica. Em sociedades arcaicas, os mitos cumprem de maneira exemplar a função unificadora própria às imagens de mundo. Ao mesmo tempo, no âmbito das tradições culturais a que temos acesso, eles proporcionam o maior contraste em relação à compreensão de mundo dominante em sociedades modernas. Imagens de mundo míticas estão muito longe de nos possibilitar orientações racionais para a ação, no sentido que as entendemos. No que diz respeito às condições da condução racional da vida no sentido anteriormente apontado, constituem até mesmo uma contraposição à compreensão de mundo moderna. Portanto, na face do pensamento mítico não teriam de se fazer visíveis os pressupostos do pensamento moderno tematizados até o momento. (HABERMAS, 2012a, p. 94-95)

O que a racionalização cultural-comunicativa permite à modernidade em termos societais-culturais, cognitivo-morais e epistemológico-políticos? No mesmo sentido, o que a falta dela gera, em termos de sociedades-culturas tradicionais? Comecemos pela segunda pergunta. As sociedades tradicionais são marcadas pela férrea imbricação entre natureza ou mundo objetivo, sociedade ou cultura e subjetividade, no sentido de que a natureza aparece e é concebida em termos antropomórficos e a sociedade-cultura em termos naturalizados, de modo a subsumirem os indivíduos dentro dessa dupla e correlata estrutura societal-cultural e biológico-espiritual totalizante, que somente pode ser acessada pela 125

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magia ou pela religião, posto a natureza ser antropomorfizada e a sociedade-cultura naturalizada. Nesse sentido, as sociedades tradicionais não possuem nem a historicização e a politização da sociedade, nem a tecnicização da natureza e nem, ainda, uma noção fundante de subjetividade reflexiva, contrariamente à modernidade europeia. Com efeito, a naturalização da sociedade significa exatamente sua despolitização, a despolitização do status quo, das instituições e das autoridades político-culturais, o que também significa a consolidação de uma organização institucional dogmática e despótica. No mesmo sentido, a antropomorfização da natureza implica em que ela assuma um sentido mágico-animista, e não, como na modernidade, técnico-instrumental, o que tem como consequência que, nessas mesmas sociedades tradicionais, a natureza, ao possuir um sentido e uma dinâmica diretamente espiritualizados, mágicos, torna-se sobreposta ao ser humano, subsumindo-o. No mesmo diapasão, as sociedades-culturas tradicionais, dadas estas características, impedem, bloqueiam o surgimento de um indivíduo crítico-reflexivo que é independente tanto da natureza quanto da própria sociedade-cultura, como é o caso da subjetividade reflexiva moderna, senão que o esmagam e subsumem no caudal totalizante desse horizonte social-cultural-natural mágico. Por isso, esta estrutura sociocultural, antropológico-ontológica e epistemológico-política das sociedades tradicionais leva a que não exista criticismo social, práxis política e transformação institucional nessas mesmas sociedades, seja por causa da naturalização e despolitização da sociedade-cultura, seja por causa da antropomorfização da natureza, seja, por fim, pela inexistência de uma noção de subjetividade reflexiva, fundante (HABERMAS, 2012a, p. 94-141). Por isso a afirmação de Habermas, na passagem citada acima, de que as sociedades-culturas tradicionais não são racionais e nem geram racionalização social. Em contrapartida, a sociedade-cultura europeia moderna é racional e gera racionalização social, posto que ela é marcada pela gradativa separação entre natureza ou mundo objetivo, sociedade ou cultura e subjetividade. Nesse sentido, a natureza torna-se um campo e um objeto técnico-instrumental, a sociedade-cultura torna-se desnaturalizada e, portanto, politizada, e a subjetividade reflexiva pode, assim, separar-se tanto do mundo objetivo quanto dos limites socioculturais, tornando-se, em grande medida, independente deles – independente não no sentido de não possuir nenhum contexto de emergência, mas de posicionar-se exatamente a partir de uma perspectiva formalista e universal que, aliás, é a própria modernidade, gerada por esta. Importante, aqui, é exatamente o fato de que a modernidade, por meio da racionalização cultural-

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-comunicativa, consolida a secularização cultural-institucional como a base fundante dos processos de socialização e de subjetivação. Com a secularização cultural-institucional, a sociedade-cultura, seu status quo, suas autoridades institucionais centrais, seus valores, suas práticas e suas formas de organização etc., tornam-se todas politizadas, posto que desnaturalizadas. Elas passam, por conseguinte, a ser entendidas como uma construção humana em primeira mão, como um produto resultante da própria práxis humana consciente de si mesma, para si mesma, sobre si mesma (HABERMAS, 2002a, p. 03-25, 2012a, p. 140-142, p. 249, p. 299, p. 383-384, 2012b, p. 87-115, p. 196, p. 355). Aqui, na modernidade, por meio da racionalização cultural-comunicativa, o homem, no coletivo e individualmente, passa a ser o artífice de si mesmo, de seu próprio mundo, seja natural, seja societal-cultural – tudo torna-se profano, historicizado, politizado. É a época da política, da racionalização, da práxis humana. Ora, aqui aparece em cheio a afirmação habermasiana de que a modernidade europeia é racional e geradora de racionalização social, assim como sua outra e correlata afirmação de que há uma imbricação profunda, a ser desvelada e reforçada e sustentada pelo discurso filosófico-sociológico da modernidade, entre modernização, racionalização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo. Com efeito, em uma sociedade-cultura profana e politizada, caracterizada pela consolidação da subjetividade reflexiva, a validação das instituições, dos sujeitos, dos valores e das práticas socialmente vinculantes já não pode mais acontecer em termos essencialistas e naturalizados, dogmáticos e conservadores, como no caso das sociedades tradicionais, em que há uma imposição centralizada e verticalizada deles. Nas sociedades modernas, a validade objetiva dos valores, das práticas e dos poderes vigentes e instituídos acontece por meio de um processo público de justificação e de discussão-interação em que a racionalidade é tanto a chave da construção do posicionamento dos indivíduos e grupos quanto o fundamento para a aceitação do melhor argumento socialmente cogente. Por isso, como esfera público-política, os indivíduos e grupos sociais modernos são obrigados a substituírem fundamentações essencialistas e naturalizadas na esfera público-política e como esfera público-política por argumentos e práticas formais, imparciais, neutros e impessoais, como condição da justificação e do acordo intersubjetivos (HABERMAS, 2012a, p. 249, p. 448, 2012b, p. 87, p. 141, p. 280, p. 315-316). A racionalização cultural-comunicativa aponta para a necessidade de se usar conceitos formais, não mais vinculados a bases essencialistas e naturalizadas, fomentando e, ao fim e ao cabo, consolidando a racio-

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nalidade – nessas suas características de politização-secularização e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal – como a única base da práxis. Com isso, os indivíduos e os grupos sociais modernos conseguem pensar-agir-fundamentar com base em conceitos totalmente genéricos, substituindo, por exemplo, o conceito de comunidade de sangue-cultura pelo conceito de humanidade. Eles pensam-agem-fundamentam, por causa dessa generalidade e dessa abstração, em nome de todos, para todos e por todos, afinal, no exemplo acima, diferentemente da particularidade própria à comunidade de cultura, o conceito de humanidade permite assumir a todos os contextos e, desde eles, a todos os sujeitos epistemológico-políticos (HABERMAS, 1989, p. 143-233, 2012a, p. 148-168, p. 448, 2012b, p. 315). A modernidade europeia é racional e geradora de racionalização social porque substitui bases essencialistas e naturalizadas por racionalização cultural-comunicativa, por politização radical, por diálogo e interação permanentes como os únicos caminhos e meios da validação das normas, das práticas e das instituições, pondo de lado o e prescindindo do dogmatismo; no mesmo sentido, ela substitui a dependência e a férrea imbricação ao contexto, próprios do tradicionalismo e legitimados por este, por formalização, impessoalidade, neutralidade e imparcialidade. Ora, é aqui que a modernidade torna-se autêntico universalismo em termos societais-culturais, antropológico-ontológicos e epistemológico-políticos: dada a centralidade da racionalização cultural-comunicativa, é instituído, na sociedade moderna e a partir dela, o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como o modo por excelência de método, de práxis e de consciência cognitivo-moral próprias à sociedade moderna. Desse modo, a Europa moderna é uma sociedade-cultura, consciência cognitivo-moral e paradigma normativo descentrados, pós-tradicionais, calcados basicamente na racionalização cultural-comunicativa e dinamizados em termos de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, o que torna essa mesma sociedade-cultura moderna e seus indivíduos e seus grupos socioculturais fundamentalmente universalistas, altamente reflexivos, críticos e emancipatórios (HABERMAS, 1989, p. 61-132, 1990b, p. 65-103, 2012a, p. 142, p. 384-385, p. 587, 2012b, p. 87-202). Aqui chegados, Habermas, com a intenção de associar modernização, racionalização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo, realiza uma dupla estratégica metodológico-programática e epistemológico-política, a saber: separa modernidade cultural e modernização econômico-social, colocando aquela, enquanto esfera puramente normativa, como base ontogenética desta, que aparece como campo basicamente

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instrumental, lógico-técnico; e passa a conceber a racionalização cultural-comunicativa como tendência geral a todo o gênero humano, como o núcleo comum desse mesmo gênero humano, o que lhe permite a correlata afirmação de que todas as sociedades-culturas podem ser enquadradas a partir da racionalização cultural-comunicativa (podendo também, por conseguinte, utilizar o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como base do diálogo-práxis intercultural), bem como de que a modernidade-modernização europeia é a primeira sociedade-cultura a alcançar efetivamente esse estágio universal, enquanto racionalização cultural-comunicativa, descentração e procedimentalismo plenos, o que possibilita a associação, no caso de Habermas, entre modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernização como gênero humano (HABERMAS, 2012a, p. 355-357, 2012b, p. 202). A pergunta que Habermas se faz é bem direta, relativamente à associação-correlação de modernidade, racionalização, universalismo e gênero humano: a modernidade é uma sociedade-cultura, consciência cognitivo-moral e paradigma epistemológico-político universalistas ou ligados inextricavelmente a um contexto antropológico-ontológico e sociocultural particular? Ela pode assumir a pretensão de universalidade que afirma ou é apenas uma cultura marcada pela centralidade da ciência e, portanto, particularista? (HABERMAS, 2012a, p. 109-110). Lembremos que, consoante à tradição filosófica ocidental, a universalidade é a condição do contextualismo e da particularidade, a base ontogenética daquela, assim como a objetividade antropológico-ontológica e epistemológico-moral é a condição da crítica, da reflexividade, da emancipação e da justificação, interrompendo, mas não necessariamente eliminando, o ceticismo, o relativismo e o subjetivismo. Habermas está consciente dessa herança, aceita-a e utiliza-a como critério norteador da construção de sua teoria filosófico-sociológica da modernidade. Enfim, a modernidade é universal ou particular, independente do contexto material de que emerge ou presa a ele? Ora, se ela não for universal, independente do contexto material particularizado, então ela não pode ser assumida como guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas, por todas elas. Já foi dito acima que a modernidade europeia, calcada na e definida pela racionalização cultural-comunicativa, é universalista por fundar e dinamizar o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal – tanto como práxis quanto como método – em termos de base de qualquer processo de legitimação-fundamentação axiológica. Ela seria racional e geradora de racionalização social exatamente na medida em que esse mesmo procedimentalismo, em sua imparcialidade, neutralidade, forma-

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lidade e impessoalidade, libertaria os indivíduos e os grupos sociais relativamente ao contexto de que emergem, não no sentido de que seriam indivíduos e grupos sem contexto de gênese e de desenvolvimento, mas sim de que esses mesmos indivíduos e grupos poderiam fundamentar suas normas e suas práticas exclusivamente a partir de valores genéricos, formalistas, e por meio de práticas totalmente impessoais e imparciais. Aqui, instituir-se-ia uma sociedade-cultura e uma consciência cognitivo-moral descentradas ou pós-convencionais, isto é, que não necessitariam mais da referência direta a um contexto material-cultural concreto como base da objetividade dos valores, senão que apenas essa generalidade, formalidade, imparcialidade, impessoalidade e neutralidade seriam suficientes para garantir a objetividade e a intersubjetividade de tais valores e práticas vinculantes. Com isso, a modernidade europeia seria universal e consolidaria o universalismo porque, por meio da correlação de racionalização cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, embasaria e dinamizaria uma postura societal-cultural e cognitivo-moral não-egocêntrica e não-etnocêntrica, altamente promotora da alteridade. É nesse sentido, mais uma vez, que Habermas defende a superioridade da sociedade-cultura europeia moderna em gerar o universalismo epistemológico-moral (em termos do procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal) via consolidação da racionalização cultural-comunicativa. Aqui chegados, duas perguntas surgem: primeira, se a modernidade é diretamente universalista, geradora de crítica, reflexividade e emancipação por meio da racionalização cultural-comunicativa, como explicar as suas patologias psicossociais? No mesmo diapasão, como é possível afirmar-se a correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, isto é, a modernidade como ápice evolutivo do gênero humano em termos de sociedade-cultura e consciência cognitivo-moral descentradas, pós-convencionais? Como é possível, em relação à primeira pergunta, afirmar-se, por um lado, a universalidade da modernidade e, por outro, responder-se às suas graves patologias psicossociais? Não fazem elas, universalidade e patologias, parte de um mesmo horizonte totalizante e unidimensional como racionalização, por meio desta? Habermas responde: não. É necessário distinguir, na reconstrução do processo de modernização ocidental via discurso filosófico-sociológico da modernidade, entre modernidade cultural (e, aqui, racionalização cultural-comunicativa) e modernização econômico-social (e, aqui, racionalidade instrumental, lógico-técnica), o que também significa a distinção entre mundo da vida e sistema social

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(ou sistemas sociais – no caso, em particular, mercado capitalista e Estado burocrático-administrativo como os dois grandes sistemas sociais modernos). A modernidade cultural é, para Habermas, a base ontogenética do processo de modernização como um todo: foi por meio dela que nos tornamos modernos, que nossa sociedade-cultura tornou-se moderna, naquelas características acima definidas. E é a partir dela que a modernização econômico-social foi gerada, dela tendo-se separado ao longo de seu desenvolvimento. Com efeito, para Habermas, a modernidade cultural, em termos de racionalização cultural-comunicativa, ocasiona um duplo efeito em termos socioculturais e epistemológico-políticos. O primeiro, que já foi explicitado acima, consiste na desnaturalização e na politização da sociedade-cultura, de suas instituições, valores, práticas, autoridades e sujeitos epistemológico-políticos, com a consolidação da secularização cultural-institucional e da subjetividade reflexiva e fundante, basicamente politizadas e politizantes. O segundo, caudatário desse, é a desconstrução de uma sociedade totalizante e unidimensional, fundada em apenas um princípio e em apenas uma base normativa em termos de integração sociocultural e de fundamentação axiológica. A modernidade já não é mais uma sociedade-cultura imbricada de modo férreo em todas as suas partes e nem funciona com base em apenas um único e exclusivo princípio normativo em todas as suas esferas e por todos os seus sujeitos. Habermas fala, nesse diapasão, de que a modernização da sociedade significa a diferenciação das esferas de valor próprias à sociedade, com a consequente institucionalização dos sistemas sociais e das culturas de especialistas no que diz respeito a cada área da sociedade-cultura (HABERMAS, 2012a, p. 140-141, p. 299, p. 587, 2012b, p. 263, p. 521). Nesse sentido, a economia, o Estado, a escola, a arte, a religião etc. possuem campos específicos, com princípios, práticas, dinâmicas e sujeitos correlatos, que não funcionam ou não servem nos outros campos, que são próprios e particulares a cada campo da reprodução social. Aqui podemos situar a emergência dos sistemas sociais modernos, no caso o Estado e o mercado em termos de modernização econômico-social, cada um deles centralizando, monopolizando e, com isso, individualizando seu campo de atuação em termos societais. Diferentemente das sociedades tradicionais, centralizadas, totalizantes e unidimensionais, dotadas de um único princípio e de única base de integração e de fundamentação, a sociedade europeia moderna é, também aqui, descentrada e plural no que diz respeito aos princípios e às práticas de integração e de fundamentação, no sentido de que cada área da vida social é particularizada

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e diferenciada, exigindo consequentemente princípios, bases e sujeitos epistemológico-políticos correlatos e, por isso mesmo, singulares – isso, a diferenciação das esferas de valor sociais, na modernidade, é consequência da racionalização cultural-comunicativa. Portanto, a modernidade-modernização ocidental é separada, por Habermas, em um duplo, ainda que interligado, processo evolutivo-constitutivo: a modernidade cultural ou mundo da vida e a modernização econômico-social ou sistemas sociais modernos (HABERMAS, 2012a, p. 588-591, 2012b, p. 216-217). A modernidade cultural, primigênia ontogeneticamente falando em relação à modernização econômico-social, é uma esfera fundamentalmente normativa e é ela que serve de base à construção do paradigma normativo da modernidade enquanto correlação de modernização, racionalização e universalismo. A modernização econômico-social é uma esfera fundamentalmente lógico-técnica, de racionalidade instrumental, não-normativa e não-política (HABERMAS, 2012b, p. 424). Por meio dessa separação, que é a um só tempo metodológico-programática e político-normativa, Habermas pode defender (contra Weber, Adorno & Horkheimer e Marcuse) não apenas que não existe um único, totalizante e unidimensional processo de racionalização e que, em verdade, a modernidade dual começa como racionalização cultural-comunicativa, totalmente revolucionária e emancipatória, como um novo (e revolucionário e emancipatório, porque universal) estágio da evolução humana (HABERMAS, 2012b, p. 540), senão também que as patologias psicossociais geradas pela modernização ocidental têm sua causa na e por parte da modernização econômico-social (HABERMAS, 2012b, p. 551553). Com efeito, esta, marcada por sistemas sociais lógico-técnicos, instrumentais, não-políticos e não-normativos, tem a tendência de, vez por outra, ultrapassar seu campo de atuação e adentrar, colonizar, desde um ponto de vista lógico-técnico, instrumentalizado e instrumentalizante, a esfera própria ao mundo da vida, que é fundamentalmente normativa – o conceito habermasiano de colonização do mundo da vida é construído para representar, para significar esse processo de instrumentalização causado pelos sistemas sociais no mundo da vida (HABERMAS, 2012b, p. 330-331, p. 355). Com isso, a modernidade cultural é eximida da irracionalidade que, por outro lado, é percebida como tendo sua causa no desenvolvimento desmesurado e sem controle do mercado capitalista e do Estado burocrático-administrativo. De todo modo, essa diferenciação metodológico-programática e político-normativa entre modernidade cultural e modernização econômico-social, via discurso filosófico-sociológico da modernidade calca-

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do em uma noção de modernidade dual, serviu diretamente para duas tarefas basilares de uma teoria da modernidade europeia fiel à tradição filosófico-sociológica ligada à correlação de modernidade, universalismo e gênero humano: primeira, reafirmar a modernidade cultural como efetivo universalismo; segunda, apontar para o fato de que as patologias institucionais-societais modernas são causadas pelos sistemas sociais da modernidade ocidental, no caso o mercado e o Estado. A modernidade cultural, com isso, sai ilesa e sempre pode afirmar-se como inocente em relação a qualquer acusação de irracionalidade-violência que é feita contra a modernidade-modernização. A culpa é sempre da modernização econômico-social. É por isso que Habermas defende de modo enfático e contundente que, por causa da separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, e por causa do sentido primigênio ontogeneticamente falando daquela em relação a esta, a modernidade cultural é autorreflexiva e autocorretiva desde dentro, de si mesma e para si mesma, mantendo seu apelo e sua vinculação universalistas e podendo sustentar-se como tal (HABERMAS, 2012a, p. 227). No mesmo sentido, seja por causa de a modernidade cultural ser a base ontogenética da modernização econômico-social (situando esta no horizonte normativo mais amplo daquela), seja pela separação entre uma e outra, a modernidade cultural, sob a forma do mundo da vida, permite a crítica e a reflexividade sociais, assim como a emancipação política, na medida em que serve de critério paradigmático tanto para se avaliar os impactos dos sistemas sociais na vida cultural-normativa cotidiana (o mundo da vida), seja para se pensar a reorientação ou o refreamento dos sistemas sociais em sua tendência à colonização do mundo da vida, o que permite afirmar-se, mais uma vez, o sentido revolucionário em termos político-culturais e epistemológico-normativos da modernidade cultural (HABERMAS, 2003b, p. 83, 2012b, p. 403-404, p. 410). Ora, como se percebe ao longo do texto, há uma ênfase muito grande, no caso de Habermas, na ideia de que a modernidade é autêntico universalismo, totalmente adequado à época pós-metafísica, em que fundamentações essencialistas e naturalizadas já não são mais a base da objetividade antropológico-ontológica e epistemológico-moral, e nem do acordo político-normativo em termos intersubjetivos (ou até do diálogo-práxis intercultural). Por isso, Habermas dá, agora, depois dessa especificação do processo de modernização ocidental em seu sentido dual e, a partir dele, da diferenciação do que é modernidade cultural e do que é modernização econômico-social, um passo totalmente surpreendente e definitivo em sua teoria da modernidade, a saber, ele não apenas correlaciona modernização, racionalização e universalismo, senão que também 133

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aponta para a imbricação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernidade-modernização como gênero humano, a partir da ideia de que a racionalidade cultural-comunicativa, se por um lado encontrou seu apogeu em termos de modernidade europeia, por outro constitui o próprio núcleo ontogenético da espécie humana, na medida em que a fala-comunicação-razão é o que nos caracteriza de modo mais fundamental. No caso da modernidade, ela apenas representa a consolidação e a maturação desse passo evolutivo rumo à centralidade da racionalização cultural-comunicativa em termos evolutivos e constitutivos, um processo que aconteceu antes nela em relação às outras sociedades; entretanto, a racionalização cultural-comunicativa é um processo que faz parte em maior ou menor medida da constituição e da evolução de todas as sociedades-culturas, embora mais destacado, maturado e intensificado na Europa moderna. Essa ideia, muito surpreendente e impactante para a teoria da modernidade, pode ser percebida em cheio na passagem que segue, por parte de Habermas: Se não delineamos o racionalismo ocidental a partir da perspectiva conceitual da racionalidade propositada e da dominação do mundo e, mais que isso, se tomamos como ponto de partida a racionalização de mundo descentralizada, impõem-se as seguintes perguntas: onde se expressa um acervo formal de estruturas universais da consciência? Não é, afinal, nas esferas de valor culturais desenvolvidas de maneira obstinada sob os parâmetros valorativos abstratos de verdade, correção normativa e autenticidade? O que constitui, afinal, o patrimônio da “comunidade dos homens de cultura”, presente como ideia reguladora? Não são as estruturas do pensamento científico, das noções jurídicas e morais pós-tradicionais e da arte autônoma – tal como formadas no âmbito da cultura ocidental? A posição universalista não precisa negar o pluralismo e a incompatibilidade das marcas históricas da “condição cultural própria ao ser humano”, mas percebe que essa multiplicidade das formas de vida está restrita aos conteúdos culturais e afirma que toda cultura, se fosse o caso de alcançar um certo grau de “conscientização” ou de “sublimação”, teria de compartilhar certas qualidades formais da compreensão de mundo moderna. A assunção universalista refere-se, portanto, a algumas características estruturais e necessárias próprias a mundos da vida modernos. Por outro lado, quando tomamos essa concepção universalista como coerciva somente para nós, o relativismo que se refuta no plano teórico acaba retornando no plano metateórico. Não creio que um relativismo de primeiro ou de segundo grau possa conciliar-se com o âmbito conceitual em que Weber situa a problemática da racionalização. No entanto, Weber

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faz restrições relativistas. Elas se devem a um motivo que só teria deixado de existir se Weber não tivesse atribuído o que há de especial no racionalismo ocidental a uma peculiaridade cultural, e sim ao modelo seletivo que os processos de racionalização assumiram sob as condições do capitalismo moderno. (HABERMAS, 2012a, p. 325-326, grifo do autor)

A passagem citada diz respeito ao fato de Weber, no entender de Habermas, ter assumido o relativismo ou premissas relativistas quando de seu estudo do processo de modernização ocidental. Para além dessa interpretação e discussão sobre o relativismo weberiano, o que nos interessa é a resposta dada por Habermas, aqui, no que se refere à compreensão da modernidade europeia enquanto universalismo epistemológico-moral. Porque, na passagem, o que aparece de modo explícito é que somente somos relativistas, no entendimento do processo de modernização ocidental, se olhamos para a modernização econômico-social, isto é, para a racionalidade instrumental e lógico-técnica, bem como para os sistemas sociais modernos, Estado e mercado, que efetivamente são as principais estruturas-sujeitos instrumentais da modernidade-modernização e, como dissemos acima, os verdadeiros causadores das patologias psicossociais modernas. Porém, quando lançamos um olhar para essa estilização da modernidade cultural feita por Habermas, perceberemos, como ele quer, seu sentido e sua constituição direta e pungentemente universalistas, inclusive e porque, como vimos dizendo, a racionalidade cultural-comunicativa é a base da constituição, da reprodução, do desenvolvimento e da evolução do gênero humano ao longo do tempo e sobre si mesmo. Portanto, somente seríamos relativistas – e pessimistas – no que diz respeito à modernidade europeia se focarmos nela de modo unidimensional, enfatizando apenas a modernização econômico-social, esta sim um fenômeno que é próprio apenas à Europa moderna (ao contrário da modernidade cultural, da racionalização cultural-comunicativa, que, se é verdade que alcançou sua maturação enquanto universalismo na Europa moderna, por outro lado é parte constitutiva e definidora de toda e qualquer sociedade-cultura humana, permitindo-nos falar na racionalização cultural-comunicativa como o núcleo comum, ontogenético do e ao gênero humano); nesse sentido, quando lançamos um olhar para a modernidade cultural e, nela, para a racionalidade cultural-comunicativa, perceberemos seu sentido fundamentalmente crítico-reflexivo, revolucionário e emancipatório, entre outras coisas pela secularização cultural-institucional e pela consolidação da subjetividade reflexiva, pela diferenciação das múltiplas esferas de valor sociais e sua consequente institucionalização, 135

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assim como para o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, que dinamiza e é dinamizado por uma estrutura societal-cultural e por uma consciência cognitivo-moral descentradas, pós-convencionais. Ora, em primeiro lugar, a modernidade é universal porque elevou a ponto fundante exatamente a racionalização cultural-comunicativa secularizada, desnaturalizada, politizada, que consolida esse mesmo procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como método-práxis da fundamentação intersubjetiva. Como dissemos, entretanto, a racionalidade cultural-comunicativa faz parte de todas as sociedades-culturas humanas, posto que elas são e nós seres humanos somos constituídos, definidos e moldados pela fala­-práxis: muito mais do que o trabalho ou qualquer outro princípio antropológico-ontológico, é a linguagem que nos define de maneira fundamental, a nós, todos os seres humanos, todas as sociedades-culturas humanas. De mais a mais, todas as sociedades-culturas humanas fundam seus correlatos processos de socialização e de subjetivação na forte objetividade antropológico-ontológica e epistemológico-moral de seus valores, de suas práticas, de suas instituições e de seus sujeitos. Ora, como se pode fundar essa mesma objetividade e torná-la vinculante socioculturalmente? Exatamente por meio da racionalidade cultural-comunicativa, em que cada sociedade-cultura institucionaliza e realiza ao longo do tempo um processo permanente e direto de inculcação e de justificação de seus valores, práticas, instituições e autoridades. É a fala-práxis, também aqui, que aspira à objetividade, que a encampa, que a legitima e que a fomenta socioculturalmente; é a fala-práxis, portanto, que caracteriza todas as sociedades-culturas humanas, sua reprodução, sua estabilidade e sua evolução ao longo do tempo. Note-se, de todo modo, mais uma vez, o apelo da passagem de Habermas, acima citada: não podemos ser relativistas e isso nem é possível pelo fato de que existe um núcleo duro ao gênero humano, que é constituído e significado exatamente pela racionalidade cultural-comunicativa. Como dissemos acima, Habermas acredita que ela encontrou sua maturação e sua consistência pela primeira vez em termos de modernidade-modernização europeia (e dali para outras sociedades-culturas), mas em princípio a racionalização cultural-comunicativa, enquanto núcleo comum ao gênero humano, enquanto base ontogenética desse mesmo gênero humano em seu processo de constituição, desenvolvimento e evolução ao longo do tempo, é parte fundamental de todas as sociedades-culturas. Por isso sua afirmação de que apenas a modernização econômico-social, sob a forma dos sistemas sociais instrumentais e lógico-técnicos, como o Estado burocrático-administrativo e o mercado capitalista, é que constitui de modo específico à modernidade europeia, embora, repetimos, a modernida136

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de cultural, a racionalização cultural-comunicativa, que se faz presente em todas as sociedades-culturas em maior ou menor intensidade, que constitui diretamente todo o gênero humano, aglutinando-o, tenha encontrado sua maturação e seu desenvolvimento pleno na Europa moderna e sob a forma de modernização. Com isso, a teoria da modernidade, uma vez afirmada a universalidade da modernidade cultural europeia sob a forma da correlação de racionalização cultural-comunicativa e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, pode afirmar sem nenhum problema que, sim, efetivamente todas as sociedades-culturas podem ser enquadradas por um universalismo epistemológico-moral corretamente construído, posto que (a) a racionalidade cultural-comunicativa é o núcleo ontogenético das sociedades-culturas humanas e (b) todas estas culturas-sociedades humanas partem da objetividade de seus valores, práticas e sujeitos fundantes, realizando um processo público de legitimação, inculcação e fomento deles – o que significa que todas elas são racionais e usam a racionalização social como base de sua legitimação, de sua constituição e de seu desenvolvimento ao longo do tempo. Logo, existem pontos comuns entre as sociedades-culturas humanas que permitem a um paradigma epistemológico-moral universalista enquadrá-las e orientar o diálogo-práxis intercultural, intersubjetivo. No mesmo diapasão e em consequência, esse papel e essa práxis cabem e são fornecidos pela modernidade cultural europeia como autêntico universalismo, como ápice da evolução do gênero humano (e superior, portanto, aqui, nesse quesito do universalismo, ao tradicionalismo em geral). De antemão, para o paradigma normativo da modernidade, é possível o enquadramento, a crítica, a avaliação e a orientação das sociedades-culturas humanas particulares, porque existe unidade no gênero humano e sob a forma de racionalidade cultural-comunicativa, um papel e uma práxis que cabem à perfeição ao paradigma normativo da modernidade, na medida em que ele é marcado pela correlação de racionalização cultural-comunicativa e/como procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal. Diz Habermas: É certo que, por sua referência totalizante, as imagens de mundo estão eximidas da dimensão em que faz sentido um julgamento segundo critérios de verdade; até mesmo a escolha de critérios segundo os quais se julga a verdade em enunciados pode depender do contexto de uma imagem de mundo que seja relativo a conceitos básicos. Não decorre disso, porém, que se possa entender a própria ideia de verdade de maneira particularista. Seja qual for o sistema linguístico que escolhamos, sempre partimos intuitivamente do pressuposto de que a verdade seja uma pretensão univer137

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sal de validade. Quando um enunciado é verdadeiro, merece o assentimento universal, tenha ele sido formulado nesta ou naquela língua. Portanto, [...] imagens de mundo não só podem ser comparadas entre si sob os pontos de vista da coerência, profundidade, economia, completude etc. – pontos de vista como que estéticos e indiferentes à verdade –, mas também sob o ponto de vista da adequação cognitiva. A adequação de uma imagem de mundo linguisticamente articulada é uma função dos enunciados verdadeiros que sejam possíveis nesse sistema linguístico. (FORST, 2010, p. 334-345; HABERMAS, 2012a, p. 119-120)

Note-se a afirmação de Habermas, que corrobora o que dissemos acima: as diferenças entre as sociedades residem apenas ao nível dos conteúdos, o que também significa que o que há de contextual e particularizado a cada cultura-sociedade humana são exatamente seus conteúdos axiológicos. Porém, as estruturas e a práxis da fundamentação são a mesma, isto é, a objetividade axiológica, o diálogo-práxis como fundamentação, a referência ao mundo cotidiano e natural etc. São todos pontos comuns que provam, mais uma vez, tanto a possibilidade do diálogo-práxis intercultural desde a racionalização quanto, com isso, a universalidade da modernidade e, aqui, a correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernidade-modernização como ápice do desenvolvimento do gênero humano, posto que autêntico universalismo. Por isso, se todas as sociedades-culturas são racionais, estão embasadas na e dependentes da racionalização cultural-comunicativa em maior ou menor medida, então a sociedade-cultura que alcançou a maturação dessa mesma racionalização cultural-comunicativa, a Europa moderna sob a forma de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal (como a maturação da racionalização cultural-comunicativa), tem condições de intermediar e de orientar esse mesmo diálogo-práxis intersubjetivo e intercultural – o que reforça a correlação de modernização, racionalização, universalismo e/como gênero humano. No mesmo sentido, tais pontos provam exatamente que a evolução humana vai do tradicionalismo à modernização, começa como tradicionalismo enquanto dogmatismo e contextualismo-particularismo e chega à modernidade como racionalização cultural-comunicativa e universalismo, modernidade-modernização como superação do tradicionalismo. Ora, a evolução humana é superação do tradicionalismo e consolidação da modernidade-modernização? Como é possível provar isso? Habermas responde: por meio da psicologia moral em sua reconstrução do processo de desenvolvimento de nossa consciência cognitivo-moral (assim como por meio da análise sociológico-antropológica em sua separação entre 138

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sociedades modernas e sociedades tradicionais, bem como por meio da noção filosófica, própria à tradição filosófica europeia, de que o universalismo é a condição do particularismo e, aqui, de que existem sociedades-culturas universais – como é o caso da Europa moderna na visão de Hegel e do próprio Habermas). Com efeito, é daqui, da psicologia moral, que ele retira os conceitos de descentração e consciência cognitivo-moral pós-convencional enquanto as características-chave da moderna visão de mundo e do moderno sujeito epistemológico-político. A descentração da sociedade-cultura e da consciência cognitivo-moral, como resultado da correlação de racionalização cultural-comunicativa e de individuação forte próprias à sociedade moderna, consolida a perspectiva universalista enquanto procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, em que os indivíduos e grupos sociais do horizonte da modernidade assumem um posicionamento vital não-egocêntrico e não-etnocêntrico em relação a si mesmos, às tradições e à alteridade de um modo mais geral. É nesse contexto que a modernidade é uma sociedade-cultura pós-tradicional e consolida o nível pós-convencional ou descentrado da consciência, marcado pela autonomia, pela reflexividade, pela formalização e pelo posicionamento universal relativamente aos valores, às práticas e aos sujeitos epistemológico-políticos de um modo geral: aqui, todos os processos de fundamentação intersubjetiva são definidos e perpassados pela racionalização, bem como orientados por essa postura não-egocêntrica e não-etnocêntrica possibilitada pela modernidade-modernização enquanto sociedade-cultura pós-tradicional, descentrada, e expressa em termos de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal (HABERMAS, 1989, p. 49-58, 2012a, p. 142, p. 168). Isso prova, mais uma vez, a superioridade da modernidade-modernização, dada a centralidade, nela, da racionalização cultural-comunicativa, superioridade que se manifesta sob a forma desse universalismo epistemológico-moral como procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, e como consciência cognitivo-moral não-egocêntrica e não-etnocêntrica. O paradigma normativo da modernidade, por conseguinte, nessa correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, nessa correlação de racionalidade cultural-comunicativa e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, assim como nessa correlação de sociedade-cultura e de consciência cognitivo-moral descentradas ou pós-convencionais, torna-se o guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas, por todas elas, a condição fundante da crítica, da reflexividade, da emancipação e até do diálogo-práxis intercultural.

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O colonialismo como teoria da modernidade: repensando o discurso filosófico-sociológico sobre a modernização ocidental a partir da categoria do colonialismo

O discurso filosófico-sociológico da modernidade, no caso de Habermas, teve por objetivo basilar a reconstrução do processo de gênese, de constituição e de desenvolvimento da modernidade europeia, no sentido de apresentá-la como universalidade, assumindo, para isso, algumas estratégias metodológico-programáticas e pré-juízos epistemológico-políticos fundamentais, a saber: a autorreferencialidade, a endogenia e a autossubsistência do desenvolvimento da modernidade como um processo interno, um esforço de si por si mesma; a diferenciação e a contraposição com o outro da modernidade, com o tradicionalismo em geral, que partiam da e afirmavam a superioridade da sociedade-cultura e da consciência cognitivo-moral modernas em termos de racionalização; a separação entre modernidade cultural e modernização econômico social, a primeira enquanto esfera puramente normativa e condição ontogenética desta, a segunda como esfera basicamente instrumental, lógico-técnica, e verdadeira causa das patologias psicossociais das e nas sociedades modernas; a correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, com os argumentos de que a modernidade cultural europeia é autêntico universalismo epistemológico-moral e de que ela é o ápice do gênero humano como superação do tradicionalismo e consolidação da moderna visão de mundo universalista. O discurso filosófico-sociológico da modernidade é um discurso da modernidade sobre si mesma e por si mesma e, não obstante, (a) parte da contraposição com o outro da modernidade (que está fora dela), com a consequente superioridade da modernidade em relação ao tradicionalismo em geral (embora este outro da modernidade, ao estar fora dela, não ser analisado por esse discurso filosófico-sociológico endógeno e autorreferencial), bem como (b) correlaciona modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernização como gênero humano, de modo (c) a tornar essa mesma modernidade cultural europeia no guarda-chuva normativo das diferenças e por elas, bem como condição paradigmática da crítica social, da práxis política e do diálogo intercultural. Trata-se, portanto, de um discurso filosófico-sociológico da modernidade sobre si mesma, para si mesma e por si mesma, mas que, ao fim e ao cabo, é também um discurso sobre o gênero humano por si mesmo e para si mesmo! Trata-se de um discurso filosófico-sociológico sobre a constituição da modernidade europeia desde si mesma que, ao fim e ao cabo, percebe-se triunfantemente como o discurso do próprio gênero humano 140

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sobre si mesmo, a partir da ideia de que o processo de evolução humana (inclusive a psicologia moral utilizada provou isso) consiste na superação do tradicionalismo pela moderna visão de mundo e pela moderna consciência cognitivo-moral. O resultado do discurso filosófico-sociológico da modernidade é, com isso, o gênero humano, que se confunde diretamente com a própria modernidade cultural. No mesmo sentido, não vimos uma única vez, na teoria da ação comunicativa de Habermas (como de resto nas teorias da modernidade europeia de um modo geral), a menção ao colonialismo. Habermas até utiliza o termo colonização do mundo da vida, como dissemos na primeira parte, mas remetendo-o diretamente às patologias geradas pelo mercado e pelo Estado em termos de racionalidade instrumental, portanto como um fato próprio à modernização econômico-social europeia (ou como um fato próprio à modernização econômico-social em geral), e não ao fenômeno da negação e da conquista simbólico-materiais das sociedades-culturas dominadas pela Europa moderna universal – aqui, a colonização do mundo da vida refere-se às patologias próprias à sociedade moderna em primeira mão e em termos de racionalização instrumental (HABERMAS, 2012b, p. 355). Nesse sentido, nos perguntamos: é consistente um tal discurso filosófico-sociológico que, não obstante conceber o processo de modernização desde uma perspectiva interna, endógena, autorreferencial e auto-subsistente, pode tanto partir da contraposição com o e da inferioridade do outro da modernidade quanto, ao seu final, assumir-se como o ápice do gênero humano, servindo como base paradigmática não apenas para a Europa por si mesma, mas também para o outro da modernidade que ela de antemão excluiu e diminuiu? É realmente inovadora a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, que não apenas concebe a primeira como totalmente normativa e a segunda como totalmente lógico-técnica, senão que também assume a primeira como pura e santa, ao passo que entende a segunda como a causa de todas as patologias em termos de modernização, eximindo a modernidade cultural e condenando a modernização econômico-social? Por que, além disso, o colonialismo não é mencionado como parte fundante da própria teoria da modernidade? É possível que o paradigma normativo da modernidade seja crítico, reflexivo e emancipatório por si mesmo e sobre si mesmo, servindo também como o guarda-chuva normativo por excelência de todas as diferenças, para todas elas e por todas elas, a partir de tal diferenciação entre modernidade e o outro da modernidade e entre modernidade cultural e modernização econômico-social? Para responder a isso, queremos enfatizar que a teoria da modernidade de Habermas,

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ao assumir essas três premissas – contraposição ao outro da modernidade; endogenia, autorreferencialidade e autossubsistência do discurso filosófico-sociológico, mas universalismo e gênero humano como seu resultado final; separação entre cultura e civilização material –, sofre de uma cegueira histórico-sociológica que põe por terra, que deslegitima sua pretensão de universalidade, sua autoafirmação como o guarda-chuva normativo das diferenças e, finalmente, seu potencial crítico, reflexivo e emancipatório. Senão vejamos. Comecemos pela nossa pergunta mais importante? Por que o colonialismo não aparece na teoria da modernidade de Habermas? Em nossa compreensão, ele não aparece pelo fato de que apontaria para a intersecção e mútua dependência de e entre modernidade cultural e modernização econômico-social. Com efeito, o colonialismo não é nem apenas normativo-simbólico ou político-cultural e nem apenas material, mas a conjunção de ambas as dimensões. Ele é, portanto, simbólico, normativo, político, cultural e material concomitantemente. Em verdade, diríamos mais: a base fundante, ontogenética do colonialismo é cultural, normativa, política: há de, primeiramente, negar-se o outro em termos simbólico-normativos para, depois, instrumentalizá-lo materialmente, politicamente. No mesmo diapasão, a colonização, nesse sentido que a ela estamos dando, é gradativamente a destruição e substituição da sociedade-cultura colonizada pela sociedade-cultura colonizadora, quando não a destruição completa daquela por esta. De todo modo, aqui está, em nossa compreensão, o ponto basilar para o colonialismo não aparecer nas teorias da modernidade como parte constitutiva fundamental do próprio processo de modernização ocidental ou europeu: ele volta a interligar modernidade cultural e modernização econômico-social, cultura e civilização material em um bloco civilizacional unitário e dependente. Aqui, a cultura legitimaria exatamente a progressão totalizante, unidimensional e colonizatória da modernidade em relação ao outro da modernidade. Por isso mesmo, se devemos falar em modernização ocidental como um conceito abrangente e unitário que abarca tanto a modernidade central quanto a modernidade periférica, tanto as metrópoles quanto as colônias, então não podemos em absoluto silenciar sobre ou apagar o colonialismo, silenciar sobre ou apagar a correlação e mútua dependência entre modernização e colonialismo, modernização central e modernização periférica. Nesse caso, a compreensão da modernidade-modernização ocidental, por Habermas, está equivocada demais, seja em seu ponto de partida, seja em seu ponto de chegada: se é relativa apenas à Europa, como nós a entendemos, então não faria sentido nem

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a comparação-contraposição com o tradicionalismo em geral e nem, ao fim, a correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernização como gênero humano, que colocaria a modernidade europeia como ápice civilizacional e cultural, como apogeu do gênero humano enquanto superação do tradicionalismo e consolidação da moderna sociedade-cultura e da moderna consciência cognitivo-moral; se ela se refere à modernização ocidental em um sentido mais amplo (envolvendo, aqui, modernidade central e modernidade periférica, modernização e colonialismo), então o colonialismo deveria ser colocado como base fundante, parte constitutiva fundamental e consequência direta da própria constituição da modernidade naquela correlação de modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo. Em ambos os casos, o colonialismo seria um dos pontos centrais de uma teoria da modernidade que quer pensar não apenas o sentido da modernização central – primeiro a modernidade-modernização europeia e, depois, o padrão evolutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas –, mas também uma perspectiva epistemológico-moral universalista em termos de guarda-chuva normativo das diferenças, para elas e por elas mesmas, e em termos de diálogo­-práxis intercultural. No caso de Habermas, o silenciamento sobre o e o apagamento do colonialismo de sua teoria da modernidade europeia e, correlata a isso, sua separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, permitem-lhe, com uma só escolha metodológico-paradigmática que é também um pré-conceito político-normativo, responder a três desafios próprios à teoria social crítica, que lhe foram legados pelos seus predecessores: (a) a formulação de um conceito dual de modernidade, dependente em alguns casos (a modernidade cultural como base ontogenética da modernização econômico-social), independente em outros (a modernidade cultural como independente relativamente às patologias psicossociais próprias à modernização econômico-social), que supera a perspectiva unidimensional de Marx, Weber e, principalmente, Adorno, Horkheimer e Marcuse, calcada, no entender de Habermas, na modernidade-modernização instrumental, lógico-técnica (aqueles não viram ou não afirmaram a modernidade cultural); (b) a retomada de uma concepção de modernidade (no caso, a modernidade cultural) enquanto normatividade e universalismo, possibilitadas via racionalização cultural-comunicativa, capaz de autorreflexividade, autocrítica, autocorreção, por causa exatamente daquela separação entre cultura e civilização material, modernidade cultural e modernização econômico-social; e, por fim, (c) a consequente correlação de modernidade, racionalização, universalis-

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mo e gênero humano, tanto por causa dessa separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, que purifica a primeira e problematiza apenas a segunda, quanto por causa da pressuposição de que a racionalização cultural-comunicativa é tendência comum, núcleo comum ao gênero humano, à espécie humana, não obstante as diferenciações socioculturais próprias a cada contexto – a racionalização cultural-comunicativa como estrutura comum à constituição, ao desenvolvimento e à evolução da espécie humana. O colonialismo não pode ser introduzido na teoria da modernidade porque ele quebraria o encanto relativamente à modernidade cultural: ela já não apareceria como pura, ingênua e santa, senão que vinculada materialmente, como, de resto, qualquer outra posição antropológico-ontológica e sociocultural. Uma sociedade é um horizonte simbólico-material completo, em que essa diferenciação entre cultura e civilização material, que não é apenas metodológica, mas escolha política, não se sustenta, não podendo, por isso mesmo, ser afirmada como a condição do próprio universalismo. No mesmo sentido, a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, no caso da teoria da modernidade de Habermas, é conditio sine qua non da própria viabilidade da teoria, de sua proposta, de seus diagnósticos e de suas críticas. Explicamos: na teoria da modernidade de Habermas – como também no grande leque das teorias filosófico-sociológicas da modernidade europeia sobre si mesma – a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social (ou, pelo menos, a hipervalorizarão e sublimação da cultura moderna e sua ligação direta ao universalismo) e o silenciamento-apagamento do colonialismo têm de ser a base fundamente da própria construção teórico-política. Essa dupla escolha, política e metodológica, se quer assumir a modernidade como autêntico universalismo, como guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas e por todas elas, como, ainda, a condição da crítica, da reflexividade e da emancipação, necessita purificar sua base normativa, depurá-la de qualquer resquício ou ameaça de degeneração, de irracionalidade. Ora, a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social e o silenciamento-apagamento do colonialismo obedecem a essa lógica e têm como foco a depuração do paradigma normativo da modernidade como puro e santo universalismo epistemológico-moral. Por meio de ambas, qualquer crítica à modernização pode ser rebatida, por parte do paradigma normativo da modernidade, com a resposta – muito frequente em Habermas, aliás – de que se trata de um problema relativo à modernização econômico-social, à racionalidade instrumental e lógico-técnica, mas não à modernidade cultural e à racionalização cultural-comunicativa. 144

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Com efeito, conforme mencionamos acima, Habermas afirma que uma das características fundamentais da modernidade cultural europeia é sua autorreflexividade, sua autocrítica, sua capacidade de autocorreção e de autorreconstrução. Ela consegue perceber-se em suas potencialidades e problemas e, por isso, pode corrigir-se. Ora, é isso que lhe mantém esse sentido emancipatório e também universalista: na modernidade, há politização e individuação aceleradas e consolidadas, isto é, todos os problemas sociopolíticos, epistemológico-normativos e antropológico-ontológicos, dada a centralidade da racionalidade cultural-comunicativa, aparecem sempre e pungentemente na esfera público-política, não podendo ser velados e justificados ideologicamente – há, por assim, dizer, por causa da centralidade da racionalidade cultural-comunicativa, um criticismo social generalizado e permanente; no mesmo diapasão, essa capacidade autorreflexiva, autocorretiva e autorreconstrutiva a impulsionam sempre e sempre, e de modo pungente, a uma práxis emancipatória sobre si mesma e mais além, encampando sempre esses ideais universalistas próprios ao gênero humano e em nome dele, que o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal consolida e legitima. Note-se, nesse último caso, a própria ênfase em um procedimentalismo neutro, imparcial, formal e impessoal como método-práxis da fundamentação próprio à época pós-metafísica, gerado pela modernidade cultural europeia enquanto sociedade-cultura e consciência cognitivo-moral pós-metafísicas, isto é, pós-convencionais e descentrados: tais conceitos dão a ideia e querem exatamente significar a separação entre normatividade e base material, entre cultura e civilização material como chave-de-leitura e forma de intervenção e de enquadramento em termos de situações e sujeitos concretos, neles. Novamente, essa universalidade como condição do sentido somente é possível de ser sustentada a partir das quatro premissas e pré-juízos centrais utilizados por Habermas em sua teoria filosófico-sociológica da modernidade, a saber: discurso endógeno, autorreferencial e auto-subsistente que, entretanto, ao fim e ao cabo, alcança o universalismo, o gênero humano, confundindo-se com ele e, por isso, falando em nome dele; o silenciamento sobre o e o apagamento do colonialismo como parte fundante e constitutiva do processo de modernização; a separação entre modernidade cultural, normativa, e modernização econômico-social, instrumental, purificando a primeira e condenando a segunda; e, por fim, a afirmação, dependente destas e nelas baseada, de que um método-práxis calcado na diferenciação entre normatividade e materialidade, um método-práxis sem carnalidade e politicidade (formal,

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imparcial, neutro e impessoal) pode – ele e somente ele – servir de chão comum para o diálogo-práxis intercultural, entre as diferenças e por elas, e não exatamente sua carnalidade, politicidade e vinculação – o que significa, evidentemente, a pressuposição, por Habermas, de que o que une o gênero humano é um princípio formal, e não uma base material em comum. Atentemos para este ponto, que desenvolveremos mais detalhadamente agora: a racionalidade cultural-comunicativa é a estrutura formal que perpassa o gênero humano como um todo, aglutinando-o, e não algum princípio material mais específico (pense-se, por exemplo, no trabalho, de origem marxiana-marxista, que é mais particularizado, materializado, quanto, no caso de Habermas, ligado diretamente à racionalização instrumental, e não à racionalização cultural-comunicativa). Aqui, a identidade do gênero humano e o ponto comum a partir do qual o diálogo-práxis intercultural é possível sob a forma de procedimentalismo neutro, imparcial, formal e impessoal consistem nessa estrutura formal, e não na própria materialidade das correlações entre sociedades-culturas. Esse ponto é muito importante não apenas na definição da ética comunicativa de Habermas por meio da pragmática formal – como coroamento da correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, da correlação de modernização e gênero humano, da correlação de universalismo e/como procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal –, mas também para entendermos, por outro lado, o porquê seja de o colonialismo não entrar na teoria da modernidade, seja, além disso, de o concretismo próprio às sociedades tradicionais, como acredita Habermas, não servir como base paradigmático-normativa comum do diálogo-práxis intercultural. A estrutura formal própria ao gênero humano, de que fala Habermas, enquanto intersecção de racionalidade cultural-comunicativa e/ como procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, é algo que somente a cultura europeia moderna teria alcançado e realizado plenamente, efetivamente, no entender do referido pensador, permitindo, por conseguinte, que o paradigma normativo da modernidade – e, em certo sentido, a própria modernização central (veja-se a noção habermasiana de segunda chance da Europa ou a sua ideia de intervenção humanitária) – seja a única base e a condição fundante, dinamizadora, orientadora e definidora da crítica, da integração, do diálogo-práxis, da emancipação. Portanto, nesse caso, a correlação de modernização como racionalização e universalismo, calcada no procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, que parte da ideia de que existe uma estrutura formal às sociedades-culturas, ao gênero humano como um todo

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que permite a intermediação, ainda que mínima, leva, de um só golpe, à legitimação desse formalismo metodológico-axiológico próprio ao e representado pelo paradigma normativo da modernidade, com a consequente deslegitimação do tradicionalismo como arena, paradigma e práxis crítica, reflexiva e emancipatória. Aqui, o tradicionalismo somente consegue pensar-agir-fundamentar em termos concretistas, lançando mão de conceitos, de práticas e de valores que sempre se remetem a um objeto, a uma mágica, a uma situação e a uma autoridade materiais, concretas; em contrapartida, o sujeito epistemológico-político moderno, como filho da racionalização cultural-comunicativa e utilizando-se dela (em termos de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal), tem condições de pensar-agir-fundamentar a partir de conceitos genéricos e formais, sem necessidade de remeter-se diretamente ao contexto e às práticas concretas e autoridades normativas de determinado contexto sociocultural ou visão de mundo particularista. Por isso, o tradicionalismo, incapaz de formalização porque não possuindo racionalização cultural-comunicativa madura, não serve de base e de práxis da e para a fundamentação universalista. Se ele tem algo a dizer, isso somente é possível dentro do paradigma normativo da modernidade e por meio dele, e não o contrário. Isso, inclusive, justifica, na teoria da modernidade de Habermas, a ideia de que a evolução humana é modernização, leva à modernização, enquanto superação do tradicionalismo e consolidação da sociedade-cultura e da consciência cognitivo-moral modernas, um passo, aliás, ao qual não temos mais volta, restando-nos somente, como Habermas também defende, uma radicalização da modernidade cultural (HABERMAS, 2002a, p. 122, 2002b, p. 07-08). Gostaríamos de propor, como alternativa a essa estrutura formal como base do paradigma normativo da modernidade e como forma de deslegitimação do tradicionalismo em geral enquanto paradigma normativo do diálogo-práxis, o próprio colonialismo como fundamento da teoria da modernidade – o colonialismo como teoria da modernidade – que seria, em primeira mão e fundamentalmente, uma base material que, essa sim, possibilitaria o diálogo-práxis universal, posto que torna homogêneo o processo de modernização e, principalmente, permite correlações entre as sociedades-culturas frente à modernidade, com ela. Antes disso, dois esclarecimentos. Primeiro, quando falamos em paradigma normativo da modernidade, nos referimos a alguns pressupostos teórico-políticos centrais da própria categoria de modernidade utilizada tanto na filosofia quanto na sociologia: a primeira delas e mais central, diz respeito ao fato de que se concebe a evolução humana como superação

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do tradicionalismo e consolidação da modernidade, o tradicionalismo como dogmatismo, a modernidade como racionalização, o tradicionalismo como contextualismo estrito, a modernidade como universalismo, o que também significa que a evolução humana é um processo cujo sentido é reto e direto, a saber, a consolidação da modernização (nesse ponto, aliás, para Habermas, as ciências sociais, a psicologia moral e até a filosofia apontam para o fato de que a modernidade é uma sociedade-cultura, uma consciência cognitivo-moral e um paradigma normativo totalmente diferentes e mais universais que o tradicionalismo); a segunda delas, portanto, está na correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernização e gênero humano, assim como na correlação de modernização, racionalização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo; a terceira delas está na ideia de que o universalismo epistemológico-moral próprio ao mundo pós-metafísico tem de ser exatamente o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal relativamente aos contextos socioculturais e axiológicos particulares, fornecido pela modernidade cultural; a quarta delas consiste em que somente esse formalismo em termos de racionalização cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal pode fornecer a base comum do diálogo-práxis, inclusive e porque é o núcleo ontogenético comum ao gênero humano como um todo; a quinta delas consiste no argumento de que o universalismo é a condição do particularismo, do contextualismo, e de que, por conseguinte, somente um paradigma normativo universalista pode interromper o ceticismo, o relativismo e o subjetivismo, ainda que isso, na época pós-metafísica, não signifique sua eliminação. Portanto, por paradigma normativo da modernidade estamos entendendo – e Habermas está entendendo, a filosofia e a sociologia europeias estão entendendo – exatamente o universalismo como critério do sentido, da crítica e da emancipação relativamente ao contextualismo, assim como, a partir daqui, a correlação entre modernidade, racionalização, universalismo e gênero humano, que levam à centralidade da racionalidade cultural-comunicativa e do procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como base do diálogo-práxis intercultural, como a práxis e o paradigma por excelência de qualquer processo de justificação intersubjetivo entre a modernidade e o outro da modernidade. Segundo, as teorias da modernidade – citamos Weber e Habermas como exemplificação, mas o mesmo vale, por exemplo, para Giddens (GIDDENS, 1996), em termos contemporâneos – partem da diferenciação entre modernidade europeia e todo o resto, ou sociedades desenvolvidas (primeiro mundo) e sociedades subdesenvolvidas (terceiro mundo), o que

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significa, na linguagem das ciências sociais europeias, o padrão evolutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas (relativamente ao primeiro mundo, claro). De um lado, tem-se a modernidade europeia como racionalização e universalismo; de outro, tem-se o tradicionalismo em geral como dogmatismo e contextualismo; de um lado, tem-se o padrão de desenvolvimento do primeiro mundo e, de outro, tem-se o padrão subdesenvolvido do segundo, como polos não-dependentes, separados e puros em sentido bastante estrito. Queremos chamar a atenção, aqui, para essa divisão caricata e purista entre modernidade e todo o resto como tradicionalismo (ou, depois, entre desenvolvimento e subdesenvolvimento). E queremos chamar a atenção sobre dois problemas que emergem dessa separação. O primeiro como esse sentido totalmente delimitado e purista, afinal a modernidade não contém – a não ser com algo superado, como uma recordação apenas – o tradicionalismo e nem traços dele; o tradicionalismo, por assim dizer, não contém a modernidade – a não ser como potencialidade – e nem traços dela. Parece como se existisse uma divisão radical em termos socioculturais, civilizacionais, epistemológico-políticos, antropológico-ontológicos etc. Mas essa separação e oposição puristas e diretas, como ponto de partida programático-metodológico e pré-conceito político-normativo, mostram exatamente esse abordagem bastante problemática e, diríamos nós, dificilmente sustentável da modernidade europeia por parte das teorias da modernidade, inclusive porque descamba, nas teorias da modernidade, na ideia de que o tradicionalismo não possibilita crítica, reflexividade, mobilidade e transformação sociais, emancipação e universalismo, mas a modernidade sim. No mesmo sentido, a concepção purista de modernidade cultural, sustentada a partir daqui, impede-nos de entender as patologias psicossociais como possuindo base normativa, mas apenas instrumental, lógico-técnica, o que é outro grande problema. Afinal, normatividade não gera patologias individuais e sociais? É possível negar e marginalizar alguém sem base normativa, política e moral? O segundo consiste no fato de que se fala no tradicionalismo em geral, como se todas as sociedades-culturas não-modernas tivessem uma estruturação, uma constituição e uma dinâmica evolutivas totalmente similares umas às outras. Além disso, o tradicionalismo em geral significaria que todas as sociedades-culturas não-modernas possuem o mesmo princípio integrativo, o dogmatismo calcado em fundamentações essencialistas e naturalizadas, e de que uma tal base totalmente concretista e contextual é, em sua homogeneidade, fechada, acrítica, subsumindo seus indivíduos e seus grupos nesse horizonte antropológico-ontológico totalizante e unidimensional,

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impedindo-lhes de agirem-pensarem-fundamentarem de modo universalista e, assim, tornando inviável o diálogo-práxis intercultural desde o, com base no próprio tradicionalismo. Mas será possível homogeneizar todas as sociedades-culturas nesse conceito de tradicionalismo em geral? Note-se que isso permite, às teorias da modernidade, recusarem que o tradicionalismo seja uma arena, uma práxis e um arcabouço axiológico que permitam seja o universalismo epistemológico-moral, seja o diálogo-práxis intercultural. Esse mesmo universalismo, entendido pelas teorias da modernidade (e por muitas filosofias políticas liberais) como procedimentalismo neutro, formal, impessoal e imparcial, seria fornecido apenas pelo paradigma normativo da modernidade, e não teria carnalidade e nem politicidade como condição do entendimento e da objetividade axiológicas, o que significa que o outro da modernidade, o tradicionalismo em geral, se quiser alcançar a universalidade, deve assumir as pressuposições básicas ao paradigma normativo da modernidade, acima elencadas – enquanto ele for concretista, carnal e político, enquanto ele for vinculado e dependente do contexto de emergência, não terá voz-práxis formal, imparcial, neutra e impessoal, não podendo agir-pensar-fundamentar de modo racionalizado, intersubjetivista, universalista. Dito isso, argumentamos que é necessário aos contextos e sujeitos colonizados introduzir o colonialismo na teoria da modernidade, o colonialismo como teoria da modernidade, recusando uma de suas (das teorias da modernidade europeias) premissas centrais, a saber, a ideia de que a correlação de racionalidade cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal represente a estrutura formal própria ao gênero humano como um todo e, a partir disso, que o paradigma normativo da modernidade signifique esse mesmo gênero humano, por causa exatamente dessa formalidade (em termos do procedimentalismo), podendo falar em nome dele e exigindo que qualquer discussão em nome dele e por ele seja uma discussão modernizante, desde a modernidade, por meio da modernidade. Em primeiro lugar, portanto, o colonialismo na teoria da modernidade e como teoria da modernidade satisfaz uma das exigências fundamentais do paradigma normativo da modernidade, mas rompendo com ele, a saber, a necessidade de um solo comum, de uma base comum que permita o diálogo-práxis intercultural e reparatório. Como dissemos acima, sem essa base comum, em termos antropológico-ontológicos, não seria possível e nem viável a fundamentação de um paradigma normativo garantidor desse diálogo-práxis. Ora, o colonialismo possibilita essa base comum porque, em verdade, é por meio desse processo simbólico-material de assimilação, negação, transforma-

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ção e até destruição do outro da modernidade pela modernidade que efetivamente a história da civilização ocidental tem uma de suas dinâmicas centrais, desde fins do século XV em diante. Como vimos na primeira parte, a partir de Weber e de Habermas, a definição da modernidade por si mesma constrói-se exatamente por meio de sua contraposição, oposição e superioridade em relação ao outro da modernidade, que é afastado dela, excluído dela, o que mostra que, efetivamente, não seria possível construir-se um discurso filosófico-sociológico e uma autocompreensão normativa da modernidade sobre si mesma e por si mesma (e, depois, em nome de toda a humanidade, representando-se como toda a humanidade) sem a menção, ainda que enviesada, ao outro da modernidade. O colonialismo, conforme o entendemos, não é uma estrutura formal, sem carnalidade e politicidade, senão que exatamente esse contexto e essa práxis simbólico-materiais que interligaram e interligam diferentes sociedades-culturas e sujeitos epistemológico-políticos a partir do paradigma da modernização então em desenvolvimento e hoje já consolidado como sistema-mundo em grande medida totalizante e unidimensional. Somente por isso se fala em civilização ocidental, em modernização ocidental e em universalismo, ou seja, somente por causa de um processo de colonização que interligou, imbricou e confrontou diferentes sociedades-culturas, diferentes sujeitos epistemológico-políticos e que, ao fim e ao cabo, acabou definindo a própria consolidação da modernidade central em sua correlação com as modernidades periféricas – pensemos, aqui, nas Américas, na África e no Oriente Médio, apenas a título de exemplo. Aliás, em relação a isso, o colonialismo na teoria da modernidade e como teoria da modernidade permite perceber-se fenômenos socioculturais e político-institucionais fundantes tanto do contexto interno à modernização central quanto dos contextos próprios à modernização periférica. Fenômenos como a escravidão, a pauperização social, a dizimação de minorias, o confronto entre as religiões institucionalizadas europeias e as visões de mundo dos povos colonizados – indígenas e negros, principalmente –, as guerras entre metrópoles por colônias e dessas metrópoles relativamente às colônias, a atual globalização econômico-cultural, o terrorismo, a imigração forçada, a xenofobia etc. são caudatários diretos do colonialismo e da correlação de modernização central e modernização periférica, guardando com eles estreita conexão. No mesmo sentido, quando olhamos para a história das ex-colônias, por exemplo o Brasil, perceberemos o quanto fenômenos próprios à colonização e detonados por ela moldaram e ainda hoje repercutem em nossa constituição sociocultural e político-institucional, como o autoritaris-

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mo político, o preconceito cultural de raça-cor, a periferização cultural-econômica, a marginalização e até a destruição das minorias, a dependência externa, a corrupção estrutural, as desigualdades socioculturais e político-normativas caudatárias da escravidão etc. O colonialismo na e como teoria da modernidade, por conseguinte, é chave-de-leitura e ponto de partida político-normativo que permite uma reconstrução mais sólida e mais verdadeira, mais consciente e esclarecida-esclarecedora dessa mesma teoria da modernidade. Voltaremos sobre esse ponto – o colonialismo como princípio material, e não como estrutura formal de uma teoria da modernidade que tematiza o gênero humano – logo adiante. Por ora, é importante salientar-se, conforme pensamos, que o colonialismo na teoria da modernidade permite a superação disso que já chamamos de cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade, que leva a uma romantização e a uma superestimação acríticas e infladas do paradigma normativo da modernidade. Por cegueira histórico-sociológica entendemos aqueles três problemas fundamentais das teorias da modernidade europeias, em especial, para nosso caso aqui, da teoria da modernidade de Jürgen Habermas, a saber: (a) sua compreensão do processo de modernização europeu enquanto possuindo uma dinâmica autorreferencial, auto-subsistente e endógena, um esforço de si sobre si mesma da modernidade, sem qualquer correlação seja com outras sociedades-culturas, seja com o próprio colonialismo; (b) a separação purista e o corte radical entre modernidade como racionalização e universalismo e todo o resto como tradicionalismo enquanto dogmatismo e contextualismo; (c) a separação mais uma vez purista entre modernidade cultural enquanto esfera puramente normativa e modernização econômico-social como esfera basicamente lógico-técnica ou instrumental, o que significa, por um lado, que a primeira é a base ontogenética da segunda e esta é a única culpada por todas as patologias psicossociais modernas; (d) por causa dessa separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, e apenas por causa dela, a modernidade cultural, pura e santa, é alçada ao status de puro universalismo enquanto correlação de racionalização cultural-comunicativa e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, de modo que, aqui, se pode correlacionar modernização, racionalização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo; (e) com o silenciamento sobre o e o apagamento do colonialismo da teoria da modernidade, e tendo-se por fundamento a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, pode-se defender que o paradigma normativo da modernidade, baseado na modernidade cultural, é a

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condição fundante da crítica, da reflexividade e da emancipação, dentro e fora da modernidade, posto ser diretamente universalismo como procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, calcado na racionalização cultural-comunicativa enquanto tendência comum ao gênero humano; (f) ainda relativamente ao silenciamento sobre e ao apagamento do colonialismo na e da teoria da modernidade, sua exclusão desta permite ao filho iluminista dessa mesma modernidade sustentar essa função salvífica e messiânica da modernidade seja sobre si mesma, seja sobre o outro da modernidade, posto ser diretamente universalista, uma sociedade-cultura e uma consciência cognitivo-moral descentradas, pós-convencionais, não-egocêntricas e não-etnocêntricas; (g) em tudo isso, o paradigma normativo da modernidade pode, por um lado, reconstruir a gênese e o desenvolvimento da modernidade-modernização europeia como um processo endógeno, autônomo e autorreferencial da modernidade sobre si mesma, mas, ao fim e ao cabo, perceber e afirmar que esse processo representa a própria evolução do gênero humano ao longo do tempo, de modo que esse processo endógeno, interno e auto-subsistente da modernidade sobre si mesma é também o processo evolutivo-constitutivo do gênero humano de um modo mais geral, o que significa que, se inicialmente o discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia sobre si mesma buscava uma compreensão mais clara e complexa do próprio fenômeno da modernização, ao fim e ao cabo ele encontra o e se confunde com o gênero humano em um duplo sentido, a saber, permitindo afirmar-se que a evolução humana é processo evolutivo dinamizado e constituído como superação do tradicionalismo pela modernização, do dogmatismo-contextualismo pela racionalização e pelo universalismo, bem como, por causa disso, de que a modernização, enquanto microcosmo desse macrocosmo mais geral que é o gênero humano, já tendo alcançado o grau efetivamente universalista, pode representar esse gênero humano como um todo (por ser o estágio final dele), pode falar em nome dele, por ele e para ele, fornecendo o paradigma normativo universalista de todos os paradigmas normativos contextualistas e particularistas. A cegueira histórico-sociológica, portanto, possui duas características: confunde um processo civilizacional particular, no caso a Europa moderna (ou, depois, o padrão evolutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas), com o processo ontogenético próprio ao gênero humano como um todo, de modo que a sociedade-cultura e a consciência cognitivo-moral europeias representam o apogeu evolutivo desse mesmo gênero humano e uma sociedade-cultura e uma consciência cognitivo-morais efetivamente universalistas, as primeiras a serem universalistas

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em termos desse mesmo gênero humano; e constrói uma caricatura da modernidade que, dependente de modo fundamental do silenciamento sobre o e do apagamento do colonialismo na e da teoria da modernidade, da separação direta entre modernidade cultural e modernização econômico-social, assim como da oposição purista entre modernidade como racionalização e universalismo versus o outro da modernidade como tradicionalismo em geral, leva à afirmação de que a modernidade europeia, em termos de sociedade-cultura e de consciência cognitivo-moral, gera o autêntico universalismo epistemológico-moral, a partir da correlação de racionalização cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, o que significa que ela é superior relativamente ao tradicionalismo em geral no que diz respeito à fundamentação, à construção e ao sustento de um guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas, por todas elas, colocando-se como a única base paradigmática, política e normativa da crítica, do enquadramento e da transformação, dentro da modernidade mesma e fora dela, frente aos outros contextos. A razão de tudo isso é clara: o discurso filosófico-sociológico da modernidade ligou modernização e gênero humano, modernização como gênero humano, de modo que, por outro lado, o processo do constitutivo-evolutivo do gênero humano conduz à modernização (como racionalização cultural-comunicativa e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal), o que também significa que a modernização é o ponto de interligação entre as sociedades-culturas, exatamente por já constituir-se no processo evolutivo-constitutivo do gênero humano finalizado, consolidado, como um todo. Ora, a cegueira histórico-sociológica das teorias da modernidade, como seu ponto de partida tanto para a reconstrução do processo de modernização europeu quanto para a fundamentação do paradigma normativo da modernidade, gera e confere uma perspectiva acrítica e totalizante a esse mesmo paradigma normativo da modernidade, a saber, (a) de que ele é a condição fundante da crítica, da reflexividade, da correção e da emancipação; (b) de que ele é autêntico universalismo, desde a correlação de racionalização cultural-comunicativa e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, podendo servir como guarda-chuva normativo de todas as diferenças, para todas elas e por todas elas; e (c) de que ele é o elo em termos de gênero humano, podendo constituir e orientar o diálogo-práxis intercultural. De todo modo, é claro que isso não poderia ser de outro modo, posto que se idealizou a tal modo o paradigma normativo da modernidade, fundado na e dinamizado pela modernidade cultural europeia, que não haveria outra possibilidade de universalismo

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que não essa: a modernidade cultural é puramente normativa, totalmente positiva, não possui mancha, pecado ou irracionalidade; ela é um esforço de si sobre si mesma, que supera o tradicionalismo via racionalização, alcançando o universalismo, isto é, uma estrutura societal-cultural e uma consciência cognitivo-moral não-egocêntricas e não-etnocêntricas; e ela é o próprio núcleo do gênero humano em seu desenvolvimento e construção. Por outro lado, o tradicionalismo não teria condições de substituir paradigmaticamente a modernização, posto que ele não permite o universalismo, senão que é dogmático e preso ao e dependente do contexto, constituindo-se em uma perspectiva e em uma postura antropológicas concretistas. No mesmo diapasão, a evolução humana é superação do tradicionalismo enquanto dogmatismo e contextualismo estritos e consolidação da sociedade-cultura e da consciência cognitivo-moral modernas, de modo que, aqui, a evolução humana somente pode significar e implicar em mais modernização, e não uma volta ao tradicionalismo. Por isso, a invectiva de Habermas de que é necessário radicalizar o iluminismo, isto é, a modernização, se quisermos pensar na superação das patologias que, por ironia, foram causadas pela própria modernização. De todo modo, estamos nos esquecendo de mencionar, para sermos fiéis a Habermas, de que se trata de radicalizar a modernidade cultural, posto que essas mesmas patologias causadas pela modernização são geradas pela modernização econômico-social! Ou seja, como se pode perceber aqui, o paradigma normativo da modernidade é: (a) o modelo societal-cultural-paradigmático basilar, a superação do tradicionalismo e a consolidação do universalismo, de modo que qualquer análise teórico-prática o tem como padrão, meta e base analítica para avaliar-se o outro da modernidade; bem como (b) ele se torna o único paradigma de si mesmo e frente ao outro da modernidade, de modo que qualquer análise e enquadramento desse outro da modernidade são feitas a partir do paradigma normativo da modernidade, por meio dele e para ele; no mesmo sentido, (c) ele se torna intocado e intocável, totalmente insubstituível, por causa da separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, que purifica a primeira e estigmatiza a segunda. Mas, conforme já salientamos, o ponto de partida analítico e o pré-conceito político-normativo do paradigma normativo da modernidade consistem na inferioridade do outro da modernidade frente à própria modernidade, assim como o ponto de chegada desse mesmo paradigma normativo da modernidade é a correlação intrínseca e direta entre modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernização como gênero humano. Aqui, mais uma vez, a modernidade-modernização é seu único juiz, mas 155

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também é o único juiz e guia de tudo o que está fora dela, que somente pode justificar-se na medida em que assume estas pressuposições do paradigma normativo da modernidade. É por isso que, conforme pensamos, é importante e, em verdade, fundamental que, pelo menos para nós, os filhos e filhas da modernidade periférica, os produtos enviesados – e não assumidos, negados e deslegitimados como tal – do processo de modernização europeu enquanto sistema-mundo-paradigma totalizante, possamos reconstruir o discurso filosófico-sociológico da modernidade, se quisermos ter voz e vez nele e a partir dele. Com efeito, conforme argumentamos ao longo do texto, as condições fundantes e definidoras do paradigma normativo da modernidade, calcadas na cegueira histórico-sociológica que esclarecemos acima, apontam para o fato de que qualquer voz-práxis, dentro e fora da modernidade, se quiser estar justificada, necessita ser testada pelo paradigma normativo da modernidade, assumindo muitas de suas pressuposições centrais, mormente a correlação de racionalização cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, e aceitando, em última instância, a própria associação, legitimadora do paradigma normativo da modernidade, entre modernização, racionalização, universalismo e gênero humano. Por outras palavras, o outro da modernidade, se quiser falar-agir universalmente – porque, como outro da modernidade, ele não fala e nem age universalmente, sua voz-práxis é sempre contextualizada, particularista e embasada no e pelo dogmatismo –, deve tornar-se moderno, deve fazê-lo por meio da assunção e da utilização do paradigma normativo da modernidade. Como dissemos, entretanto, esse paradigma normativo da modernidade é diretamente colonizador, negador, deslegitimador do outro da modernidade, não obstante o argumento habermasiano de que o paradigma normativo da modernidade é sensível às diferenças – e de que esta seria uma de suas características mais importantes, resultado direto da correlação de racionalização cultural-comunicativa e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal (HABERMAS, 2002b, p. 07-08, 2012a, p. 683). Mas a separação estrita entre modernidade e tradicionalismo em geral, com a superioridade da primeira em relação ao segundo; a separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social, com a afirmação do caráter intocado da primeira e da (relativa) degeneração da segunda; um discurso-processo ontogenético autorreferencial, autônomo, endógeno e auto-subsistente que, ao final, descobre o próprio gênero humano, que, ao final, descobre-se como o próprio gênero humano; um discurso-processo que, por conseguinte, é a condição

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basilar e fundante de qualquer fala-práxis, inclusive do outro da modernidade que ele deslegitimou como fala-práxis, todas essas características e condições do paradigma normativo da modernidade, de sua autocompreensão, levam à conclusão de que o outro da modernidade somente pode ter um lugar periférico dentro da teoria da modernidade e por ela mesma. Por isso, o paradigma normativo da modernidade deve ser reconstruído e complementado com a categoria do colonialismo enquanto o fenômeno simbólico-material constituinte e definidor da própria modernização, de sua própria autocompreensão, como a base material a partir da qual o diálogo-práxis da modernidade sobre si mesma, da modernidade e do outro da modernidade e, por fim, do outro da modernidade em relação à modernidade são construídos, dinamizados e realizados. Entre outras coisas, a inserção do colonialismo na teoria da modernidade e como teoria da modernidade permitiria três pontos teórico-políticos fundamentais seja no que diz respeito à constituição e à legitimação do próprio paradigma normativo da modernidade, seja no que se refere à construção de um discurso-práxis decolonial ou anticolonial desde as margens, desde as periferias, e por parte dos sujeitos epistemológico-políticos marginalizados, periféricos – desde o e pelo outro da modernidade. O primeiro deles é o desvelamento, a crítica e a desconstrução da cegueira histórico-sociológica assumida e utilizada pelas teorias da modernidade, por meio da ligação de e entre modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo. Aqui, o colonialismo explicitaria exatamente o fundamento normativo tanto das patologias psicossociais modernas quanto, principalmente, do próprio fenômeno simbólico-material do colonialismo, de modo a negar essa associação direta de modernização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo, assim como a correlata imbricação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, a partir da contraposição purista entre modernidade e o outro da modernidade, por meio da superioridade da primeira em relação ao segundo. O colonialismo mostraria seja a dependência da modernidade em relação ao outro da modernidade, periférico, marginalizado, excluído, mas ao mesmo tempo assimilado, seja a própria ligação entre modernidade cultural e modernização econômico-cultural enquanto momentos interdependentes de um mesmo projeto societal-cultural, antropológico-ontológico totalizante e unidimensional (na medida em que percebe o desenvolvimento humano como modernização e a si mesmo como ápice do gênero humano). Com isso, ao ligar-se modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo, seria possível apontar-se para o fato de que a crítica à modernidade pode

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e deve desconstruir as ilusões e as caricaturas que ela fez de si mesma e para si mesma, que ela fez do outro de si mesma, como condição de sustentar-se enquanto universalidade. Ora, o colonialismo permite perceber-se a irracionalidade e a violência desse modelo de universalismo representado por um projeto societal-cultural, antropológico-ontológico e epistemológico-político que, como é o caso do paradigma normativo da modernidade, se autoconcede como o próprio gênero humano, podendo falar por ele, direcioná-lo, legitimá-lo ou deslegitimá-lo. A segunda grande contribuição teórico-política que o colonialismo pode dar à teoria da modernidade e, no caso, relativamente ao paradigma normativo da modernidade consiste em que, por meio de sua introdução naquela, a voz-práxis dos contextos socioculturais e dos sujeitos epistemológico-políticos periféricos pode construir sua própria compreensão do fenômeno da modernização de um modo geral e do paradigma normativo da modernidade em particular. Com efeito, não é uma questão ingênua, inocente e apolítica esse ponto de partida das teorias da modernidade, do paradigma normativo da modernidade, isto é, a divisão purista entre a modernidade e o outro da modernidade, com a superioridade da primeira em relação ao segundo; no mesmo sentido, não é nada ingênuo e inocente um discurso filosófico-sociológico que, se por um lado é endógeno, autorreferencial, auto-subsistente e autônomo, por outro descobre o e descobre-se como o gênero humano. Aqui, o outro da modernidade é diretamente escanteado e deslegitimado, ficando periferizado e tendo sua voz-práxis deslegitimada. Note-se, entretanto, que o outro da modernidade, na teoria da modernidade europeia, é uma construção desta, uma pressuposição do paradigma normativo da modernidade. Ele não diz sua palavra e não realiza sua práxis dentro da teoria da modernidade, senão que é engolfado, tragado, assimilado e assumido por esta, com a justificativa da correlação de modernização e gênero humano, modernização como gênero humano. A segunda grande contribuição teórico-política que a introdução do colonialismo na teoria da modernidade e como teoria da modernidade pode dar, portanto, é exatamente trazer para o centro desse mesmo discurso filosófico-sociológico da modernidade a voz-práxis das periferias e dos sujeitos epistemológico-políticos periféricos por eles mesmos, para eles mesmos, para a própria modernização. Com efeito, um dos pontos fundantes de uma posição teórico-política corretiva ao paradigma normativo da modernidade consiste exatamente na própria explicitação da fala-práxis dos excluídos por eles mesmos, do outro da modernidade por ele mesmo frente ao fenômeno simbólico-material da modernização to-

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talizante. O colonialismo, como base e produto da modernização, leva exatamente a que o discurso filosófico-sociológico da modernidade sobre si mesma e, depois, sobre o gênero humano inevitavelmente tenha de levar em conta o outro da modernidade e, principalmente, tenha de deixar falar-agir-fundamentar o outro da modernidade sobre si mesmo e por si mesmo. Doravante, o outro da modernidade, por meio da categoria do colonialismo, é quem construirá o discurso filosófico-sociológico da modernidade, estabelecendo suas potencialidades, mapeando suas patologias e irracionalidades e, assim, definindo o sentido paradigmático-normativo do diálogo-práxis universal, intercultural, que já não se confunde mais com modernização e com a assunção do paradigma normativo da modernidade pelo outro da modernidade, como condição da objetividade e da legitimidade de sua voz-práxis. A terceira grande contribuição dada pela introdução do colonialismo na teoria da modernidade, pela afirmação do colonialismo como uma teoria da modernidade, por conseguinte, está na substituição do paradigma normativo da modernidade, em sua correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, bem como em sua pressuposição da racionalização-cultural comunicativa como o núcleo comum e mediador do gênero humano (com a consequente instauração do procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, sem carnalidade e sem politicidade, como base do diálogo-práxis intercultural), pelo próprio colonialismo como fenômeno a uma só vez simbólico e material. O colonialismo não é uma estrutura formal sem carnalidade, sem politicidade e sem vinculação; e ele não estabelece que o critério da objetividade e da justificação intersubjetivas, interculturais e universais seja a impessoalidade, a neutralidade, a imparcialidade e a formalidade, mas sim a própria vinculação dos sujeitos epistemológico-políticos e dos contextos socioculturais em sua constituição simbólico-material. Ora, o colonialismo dá essa carnalidade, politicidade, vinculação e materialidade ao diálogo-práxis interculturais, posto que aproxima e estabelece as reais ligações, em nosso caso, entre modernidade e o outro da modernidade, não como dois polos separados, e separados de modo purista e direto e caricato, conforme estabelecido pelo paradigma normativo da modernidade, senão que como fazendo parte do mesmo processo civilizacional, antropológico-ontológico, sociocultural e epistemológico-político que é a modernização em sua tendência universalista, isto é, totalizante, assimilacionista e unidimensional. Com efeito, esse sentido altamente assimilacionista da modernidade pode ser percebido exatamente na sua autocompreensão normativa que a concebe e que se concebe como

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gênero humano, como ápice e apogeu dele; ela também se percebe no fato de que, de acordo com o paradigma normativo da modernidade, o diálogo-práxis intercultural necessita assumir a correlação de racionalização cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como fundamento e dinâmica da justificação objetiva, intersubjetiva, o que significaria que o outro da modernidade teria de se tornar moderno, de assumir o paradigma normativo da modernidade para falar objetivamente, para justificar-se intersubjetivamente. Porém, quando pensamos o colonialismo como teoria da modernidade, introduzindo-o na teoria da modernidade, nós podemos, ao ligar de modo ontogenético modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo, desconstruir o paradigma normativo da modernidade em sua autocompreensão como gênero humano, como voz-práxis das minorias e dos marginalizados sem a participação delas (e com a deslegitimação delas como ponto de partida e ponto de chegada), mostrando exatamente que não existe as separações e oposições por ele assumidas (modernidade e o outro da modernidade, modernidade cultural e modernização econômico-social). Essas separações e oposições estritas e puristas são ficcionais, estilizadas, caricatas ou, por outras palavras, uma construção do paradigma normativo da modernidade por si mesmo e para si mesmo, seja para sustentar sua autocompreensão purista, casta e santa, seja, a partir daqui, para legitimar sua vocação missionária e messiânica em termos universalistas, como a consequente correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano. Desse modo, a introdução do colonialismo na teoria da modernidade e como teoria da modernidade permite-nos, pelo menos a nós, os filhos bastardos e não-reconhecidos de nossa matriz civilizacional, antropológico-ontológica, societal-cultural e epistemológico-política, substituirmos o paradigma normativo da modernidade, em sua correlação de racionalização cultural-comunicativa e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, assim como em sua associação direta entre modernidade e gênero humano, modernidade como gênero humano, pelo conceito de reparação pelo colonialismo, em que a base de intersecção entre as sociedades-culturas e as reivindicações político-normativas reparatórias são dadas pelo próprio fenômeno normativo-material do colonialismo. Nesse caso, de guia e voz-práxis universais, a modernidade-modernização ocidental passa a ser ré no tribunal das sociedades-culturas e por meio dos sujeitos epistemológico-políticos subalternos, periferizados, que podem exigir seja uma reconstrução epistêmica mais justa, fiel e crítica do processo de modernização ocidental,

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seja certos direitos político-normativos reparatórios pelo colonialismo simbólico-material, pela negação normativa e pela destruição material das sociedades-culturas e das vidas humanas dizimadas pelo rolo compressor da modernização totalizante. Note-se que os dois pontos são fundamentais. Primeiro, a reconstrução do processo evolutivo da modernização social como um todo, naquele tripé de modernidade cultural, modernização econômico-social e colonialismo, a partir do reconhecimento de que o outro da modernidade, periférico, marginalizado, negado e, de modo mais dramático, totalmente caricaturizado, é uma construção da própria modernidade, sem que ele exprimisse sua voz-práxis e sem que ele participasse nesse processo construtivo – aliás, ele é sempre visto de fora, a partir da análise objetiva, imparcial, neutra e impessoal do antropólogo exótico, do cientista social asséptico, do filósofo messiânico e, por fim, da intervenção política salvífica em nome dos direitos humanos, da democracia e do desenvolvimento. Segundo, a práxis político-institucional reparatória em relação às chagas do colonialismo, que poderia ser assumida de vários modos: renda básica de cidadania universal, controle da globalização econômico-cultural calcada tanto no paradigma normativo da modernidade (e sua caricatura do tradicionalismo em geral, do outro da modernidade) quanto na dominação geopolítica e geoeconômica estratégicas, fim das guerras colonialistas e imperialistas, política de direitos humanos, reformulação do desenvolvimento socioeconômico global, controle do capital financeiro, combate ao desemprego e subemprego e à exploração do trabalho, acolhimento dos refugiados etc. Sobretudo, pelo menos para nós, os filhos e filhas bastardos e não-reconhecidos do paradigma normativo da modernidade e por ele (como construção dele, em verdade), precisamos reconstruir o discurso filosófico-sociológico da modernidade por nós mesmos, de modo a que nossa voz-práxis, a voz-práxis dos sujeitos epistemológico-políticos marginalizados e dos contextos socioculturais periferizados possam dizer como veem, o que pensam e como querem reformular o processo de modernização, tanto em termos normativos quanto em termos materiais. Com efeito, aqui está o desafio mais agudo, pungente e emancipatório para as periferias político-epistêmicas, socioculturais e econômicas, a saber, dar centralidade à voz­-práxis dos próprios marginalizados por eles mesmos e, com eles e por eles, buscar alternativas de integração, desenvolvimento e autocompreensão, uma tarefa que não pode ser definida de fora no duplo sentido do termo: pelo uso de paradigmas estranhos, alienígenas e até negadores desses sujeitos epistemológico-políticos marginalizados; ou mesmo pela intervenção de sujeitos epistemológico-políticos extempo-

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râneos ao próprio contexto, sem nenhuma vinculação com ele que não o seu ideal messiânico e salvífico alienígena e pretensioso. Para as academias das periferias e elas mesmas periféricas, que vivem das migalhas e das dinâmicas construídas nos e pelos centros epistêmico-políticos, a tarefa da descolonização do pensamento-práxis é dupla: primeiro, reconfigurarem seus paradigmas e proposições político-normativos, levando a sério o fato do colonialismo como teoria da modernidade e, com isso, estabelecendo a reparação pelo colonialismo como práxis crítico-corretiva sobre a modernidade – aliás, em relação a isso, há desenvolvimentos teórico-políticos muito consistentes e provocativos em nossas periferias e desde elas (BHABHA, 1998; DUSSEL, 1993; FANON, 1968; FREIRE, 1987; QUIJANO, 1992; MBEMBE, 2001, 2014; MIGNOLO, 2003, 2007; SPIVAK, 2010); segundo, e talvez mais revolucionário, transformar a academia exatamente na voz-práxis das vítimas, dos marginalizados, dos sujeitos epistemológico-políticos e dos contextos socioculturais periferizados, por eles mesmo e para eles mesmos. Esse passo é o mais difícil e o mais revolucionário, porque significa romper com a tendência, própria ao paradigma normativo da modernidade, de falar pelos marginalizados, pelas vítimas, em nome delas, como se o teórico social pudesse assumir por si e para si, desde seu paradigma descolado da práxis político-normativa, o sentido, os problemas, as dores e as potencialidades das vítimas, sem a voz-práxis dessas mesmas vítimas, desses mesmos sujeitos epistemológico-políticos marginalizados. Nesse sentido, ainda está por nascer e se consolidar o passo verdadeiramente revolucionário dos sujeitos epistemológico-políticos marginalizados e colonizados, a saber, uma academia como voz-práxis das vítimas por elas mesmas, que poderiam substituir ou pelo menos mediar os saberes e as práticas racionais-científicos gerados e legitimados pelo paradigma normativo da modernidade por uma retomada dos valores, das práticas e dos símbolos dos grupos marginalizados por eles mesmos. Porque, em última instância, o paradigma normativo da modernidade somente será implodido em sua correlação de modernidade e gênero humano, quando a construção do saber e a formulação de proposições político-normativas forem feitas pelos próprios marginalizados em sua voz-práxis e desde ela, mas de modo tal a pôr em xeque toda a estrutura epistêmico-política racional própria de nossas instituições políticas, culturais e científicas pela afirmação da centralidade dos sujeitos epistemológico-políticos outros que a modernidade, pela sua participação insubstituível e irrepresentável, para além e negadora do cientificismo, isto é, da tendência de o teórico substituir os sujeitos

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marginalizados, periféricos e excluídos, falando por eles e em nome deles desde seu paradigma cientificista fortemente institucionalizado, neutro, imparcial, impessoal e formal. Nesse caso, mas somente nesse caso, a título de conclusão, seria verdadeiro e efetivo o dito de Wittgenstein no Tratado lógico-filosófico, isto é, de que a academia percebeu-se incapaz de dizer-representar o oprimido e de falar-agir-fundamentar em nome dele (exigindo dele, inclusive, que sua voz-práxis torne-se científica, acadêmica, institucionalizada), o que significa que ela serrou de uma vez por todas a própria base em que se sustentava sua ilusão (o cientificismo do paradigma normativo da modernidade), percebendo, em grande medida, sua impotência teórica, política e normativa sem a própria voz-práxis do oprimido, do marginalizado e do excluído por ele mesmo, para ele mesmo, dirigida também à própria modernidade. Nesse caso, portanto, o dito de Wittgenstein seria verdadeiro e efetivo porque não seria apenas um gesto estético, apolítico e fatalista do sujeito moderno desiludido com a modernidade relativamente à impossibilidade da verdade, da justificação objetiva (pelo menos em termos de ciências humanas e sociais, porque lhe permanece certo ranço e certo resquício cientificistas), sujeito esse que, uma vez desiludido, entrega-se ao desânimo e ao ostracismo apolíticos, mas sim porque ele religa a verdade, a justificação e a política à voz-práxis dos oprimidos, dos marginalizados e dos excluídos como a fonte, a base e os sujeitos da esperança, da crítica, da reflexividade e da emancipação, irrepresentáveis e insubstituíveis pelo acadêmico objetivo, pelo paradigma universal assimilacionista e pelo político institucionalista. Referências

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6 O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o julgamento de civis pela justiça militar: estudo do caso brasileiro David Alves Moreira Ítalo José Marinho de Oliveira

Introdução

O Poder Judiciário brasileiro é definido diretamente na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (1988) e é composto, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal (doravante STF ou Supremo), pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelos juízes e tribunais especializados em matérias, dentre as quais está a militar. A Justiça Militar é, primeiro, organizada pela CF/88 em seu artigo 122 que estabelece que são órgãos da referida justiça especializada: o Superior Tribunal Militar (STM) e os Tribunais e Juízes Militares instituídos por lei. Tal dispositivo trata apenas da Justiça Militar Federal. No entanto, a própria Carta Maior autoriza os Estados federados a instituírem sua justiça especializada militar, o que de fato ocorre em todos eles,

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pelo menos em primeira instância. Na segunda instância, com a composição de Tribunais Militares estaduais a CF/88 autoriza, em seu artigo 125, § 3º, lei estadual criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, a ser composta, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo da polícia militar e do corpo de bombeiros militar, somados atinja mais de vinte mil integrantes. Os Tribunais de Segunda instância existem em alguns Estados à exemplo de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Já o §4º, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004 determina que compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados nos crimes militares e nas ações judiciais contra atos disciplinares, ressalvando-se a competência do júri. Isto porque, antes da emenda de 2004 a redação era a seguinte: “§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares nos crimes militares, definidos em lei […]”, que ainda dava margem para discussões sobre competência para julgar crimes dolosos contra a vida, pois até 1996 um homicídio doloso praticado por militar contra civil era julgado pela Justiça Militar, o que causou controvérsia, pois o acusado não se submetia a Júri e sim para o Conselho de Justiça, composto por apenas um juiz togado e quatro oficiais militares. A Lei nº 9.299, de 7 de agosto de 1996 (BRASIL, 1996) modificou o artigo 9º do Código Penal Militar (BRASIL, 1969a, 1969b) que determinava o crime como sendo de competência da Justiça Militar, passando-o para a Justiça comum. Não obstante, foi preciso aguardar a emenda constitucional para pôr um ponto final sobre o assunto. Ainda assim sobram algumas dúvidas, porquanto o Código Penal Militar versa sobre dois tipos de crimes, os propriamente militares, que somente militares, nesta condição, podem cometer, e os impropriamente militares que são todos os outros crimes comuns que estão no Código Penal. Isto é, qualquer crime comum cometido por militar é também um crime militar impróprio. É imperioso que se diga que a Justiça Militar estadual não julga civis. A problemática que se insere no presente trabalho diz respeito à Justiça Militar da União, que possui uma composição diferente da estadual. Além da Constituição Federal a Lei nº 8.457, de 4 de setembro de 1992 estabelece os órgãos e a composição destes órgãos na esfera da União, isto é, a justiça especializada que terá como matéria os crimes praticados por militares da Aeronáutica, da Marinha e do Exército brasileiros, bem como os crimes praticados por civis contra estas instituições.

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Dispõe a referida lei que são órgãos da Justiça Militar da União: I o Superior Tribunal Militar; II a Auditoria de Correição; III os Conselhos de Justiça; IV os Juízes-Auditores e os Juízes-Auditores Substitutos. Assim, há dois Conselhos de Justiça, o Conselho Especial de Justiça, constituído pelo juiz-auditor e quatro juízes militares, sob a presidência, dentre estes, de um oficial-general ou oficial superior, de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade (art. 16, a) e o Conselho Permanente de Justiça, constituído pelo Juiz-Auditor, por um oficial superior, que será o presidente, e três oficiais de posto até capitão-tenente ou capitão (art. 16, b). O artigo 18 estabelece que s juízes militares dos Conselhos Especial e Permanente são sorteados dentre oficiais de carreira, da sede da Auditoria, com vitaliciedade assegurada. Nota-se que, ao contrário da Justiça Militar estadual, na federal, a presidência de qualquer dos conselhos será do oficial militar mais antigo, isto é, de maior posto e não do juiz togado. Assim sendo, o presente trabalho abordará a impossibilidade estabelecida pela Direito Internacional dos Direitos Humanos da justiça castrense julgar civis. Julgamento de civis pela Justiça Militar

A competência da Justiça Militar da União é abrangente, alcançando fatos cometidos por civis contra as instituições militares federais, Exército, Marinha e Aeronáutica. Dispõe a Lei nº 8.457 de 1992, em seu artigo 27, II que compete ao Conselho Permanente de Justiça processar e julgar acusados que não sejam oficiais nos delitos previstos na legislação penal militar, mormente aqueles tipificados no Decreto-Lei 1.001 de 21 de outubro de 1969 – Código Penal Militar, que traz os mesmos crimes do Código Penal comum, perfazendo-se em crimes militares impróprios, que podem ser cometidos por militares e civis e também traz crimes peculiares, que são os crimes militares próprios, que somente podem ser cometidos, em tempo de paz, por militares. O Código Penal Militar dispõe: Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial; III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos: 169

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a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar; b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério Militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo; c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras; d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Não obstante, as dúvidas e polêmicas sobre o alcance da competência da Justiça Militar da União são inúmeras, como se verá adiante. A questão central deste trabalho é a possibilidade de julgamento de civis em face de crimes militares impróprios. Acerca disso está pendente no STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) sob nº 289, que aguarda deliberação da Suprema Corte há mais de seis anos. A arguição será melhor discutida no próximo tópico. Até o momento, contudo, é possível afirmar que, majoritariamente o entendimento da jurisprudência vem se firmando pela compatibilidade da competência da Justiça Militar para o julgamento de civis, nos casos de delitos militares impróprios. Principalmente em delitos cometidos por civis contra as instituições militares federais ou contra seus membros em suas funções típicas como é possível ver nos seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal: EMENTA DIREITO PENAL MILITAR. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/1973. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. SAQUE INDEVIDO DE PENSÃO MILITAR. CRIME COMETIDO POR CIVIL CONTRA A ADMINISTRAÇÃO MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. AUTORIA E MATERIALIDADE. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. REVOLVIMENTO DO QUADRO FÁTICO DELINEADO NA ORIGEM. SÚMULA Nº 279/STF. EVENTUAL VIOLAÇÃO REFLEXA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NÃO VIABILIZA O RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AGRAVO MANEJADO SOB A VIGÊNCIA DO CPC/2015. 1. Compete à Justiça Militar o julgamento do crime de estelionato (art. 251, caput, do Código Penal Militar) praticado em detrimento do Servi-

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ço de Inativos e Pensionistas da Marinha. O saque indevido de benefício de pensão militar efetuado por civil afeta bens e serviços das instituições militares, estando justificada a competência da Justiça Militar. Precedentes. 2. A controvérsia acerca da materialidade e autoria do delito imputado à agravante, a teor do já asseverado na decisão guerreada, não alcança estatura constitucional. Não há falar em afronta aos preceitos constitucionais indicados nas razões recursais. Compreensão diversa demandaria a análise da legislação infraconstitucional encampada na decisão da Corte de origem, bem como o revolvimento do quadro fático delineado, a tornar oblíqua e reflexa eventual ofensa à Constituição, insuscetível, como tal, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. Desatendida a exigência do art. 102, III, “a”, da Lei Maior, nos termos da remansosa jurisprudência desta Suprema Corte. 3. O crime de estelionato previdenciário, quando praticado pelo próprio beneficiário das prestações, tem caráter permanente, cessando a atividade delitiva apenas com o fim da percepção das prestações. Iniciado o prazo prescricional com a cessação da atividade delitiva, incabível o reconhecimento da extinção da punibilidade no caso concreto. 4. As razões do agravo não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada, mormente no que se refere à ausência de ofensa a preceito da Constituição da República. 5. Agravo interno conhecido e não provido. (G.N.) (ARE 835894 AgR, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 05/04/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-076 DIVULG 11-04-2019 PUBLIC 12-04-2019) [grifo nosso] EMENTA: PROCESSUAL PENAL MILITAR. AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. CRIME DE DESACATO (ART 299 DO CPM). COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. A orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF) é no sentido de que o trancamento de ação penal só é possível quando estiverem comprovadas, de logo, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a evidente ausência de justa causa. Precedentes. 2. O STF, atento às peculiaridades de cada processo, tem adotado interpretação restritiva na definição da competência da Justiça Militar para o julgamento de civis em tempo de paz. Hipótese em que ficou demonstrada excepcionalidade apta a justificar a competência da Justiça Militar da União, tendo em vista que a paciente praticou crime de desacato contra militar em atividade tipicamente militar Precedentes. 3. Ausência de teratologia, ilegalidade flagrante ou abuso de poder, notadamente porque a Segunda Turma do STF, em

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julgamento recente, entendeu que a criminalização do desacato é compatível com o Estado Democrático de Direito. HC 141.949, Rel. Min. Gilmar Mendes. 4. Agravo regimental desprovido. (G.N.) (HC 145882 AgR, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 31/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 14-09-2018 PUBLIC 17-092018) [grifo nosso] EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário. Processual Penal Militar. Competência. Estelionato previdenciário. Delito militar cometido por civil. Lesão a patrimônio sob a administração militar. Competência da Justiça Militar. Recurso interposto com o objetivo de sobrestamento do feito. Agravo regimental não provido. 1. Não há a necessidade de sobrestamento do feito, uma vez que a decisão está em perfeita consonância com a jurisprudência contemporânea da Corte Suprema no sentido da competência da Justiça especializada em hipóteses análogas à dos autos. Precedentes. 2. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (RE 874721 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 29/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-174 DIVULG 23-08-2018 PUBLIC 24-08-2018) [grifo nosso]

Entre vários outros julgados das duas turmas da Corte Maior, como o primeiro citado acima, tem sido decididos por unanimidade. Na Primeira Turma afirmaram a competência da Justiça Militar os julgados: HC 109574, Relator(a): Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, HC 114327, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 05/06/2013; HC 113423, Relator(a): Min. Rosa Weber. Por sua vez, na Segunda Turma: HC 116810, Relator(a): Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 03/12/2013, DJe 17-12- 2013; HC 115966, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 22/10/2013; HC 117180, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 05/12/2013. Em muitos desses julgados, como no citado HC 136.536 CE, a Defensoria Pública da União arguiu em primeiro lugar, a própria inconstitucionalidade do julgamento de civis por tribunais militares e, subsidiariamente, sustentou a inconstitucionalidade do aludido Conselho Permanente de Justiça. Por outro lado, tem sido os casos levantados pelas funções atípicas das forças armadas em atividades de segurança pública. Pois neste caso o problema da competência é ainda mais profundo. Trata-se da interferência das Forças Armadas nas questões de lei e ordem, isto é, na segurança pública, tema eminentemente civil. 172

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A lei que regula o tema é a Lei Complementar 97 de 09 de junho de 1999 que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas que, entre outras minúcias estabelece o que já é largamente divulgado na imprensa nacional como intervenção militar nas favelas cariocas, ou uso o Exército nas comunidades mais carentes do Rio de Janeiro a pretexto de combater o narcotráfico. Desta forma, estabelece a mencionada Lei Complementar: Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação. § 2o A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. § 3o Consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão constitucional.

Este dispositivo também é objeto de ações concretas e abstratas de inconstitucionalidade. No entanto, o que se destaca é a relação do deslocamento de competência da justiça comum para militar ocorrida pela a Lei nº 13.491/2017 (2017), que transferiu a atribuição, para a justiça castrense, julgar crimes cometidos por militares contra civis em determinadas circunstâncias. E mais pertinente ao presente texto, a competência da justiça militar da União para processar e julgar crimes praticados por civis contra militares em situações em que estes estão agindo na qualidade de garantidores da lei e da ordem e, portanto, em função atípica. Daí entendermos que surge um estado de exceção cunhado na busca pelo “inimigo”, por aquele que não responde às regras do jogo. Na atual ótica, seriam os traficantes de drogas que se escondem, se infiltram nos morros cariocas. A conceituação de inimigo concebida por Jakobs (2005) autoriza o Estado tomar medidas excepcionais contra determinadas pessoas ou grupo de pessoas, que, segundo a ótica do Direito Penal do Inimigo, não 173

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estariam dentro do contrato social, não se comportariam como cidadãos do estado, (portanto, não como cidadãos criminosos), mas sim como inimigos a serem eliminados pelas forças policiais e, neste caso específico, pelas forças militares federais em função de polícia ostensiva. Importante observar também que, nos processos em que se julgam civis que cometam crimes contra militares estaduais nas mesmas circunstâncias não haveria dúvida alguma de que a competência seria da justiça estadual comum. Segundo Jakobs (2005) os inimigos são assim tratados de antemão, preventivamente, isto é, ao contrário dos cidadãos que são levados à persecução judiciária penal para que se prove, diante de tantas instâncias quanto houverem, os inimigos são tratados sempre como suspeitos a serem vigiados, combatendo-os antes que cometam o crime, e não após. A questão da competência da justiça castrense para o processamento desses delitos, até mesmo os contra honra como o de desacato, resistência entre outros é apenas a extensão do tratamento de “inimigo” até os tribunais. A admissibilidade pelo Supremo Tribunal Federal de civis responderem na Justiça Militar fundado num argumento estritamente legal demonstra que mesmo passados 50 anos da Ditadura Militar, esta continua a julgar cidadãos como se inimigos fossem, fazendo apenas um deslocamento da guerra meramente política para a guerra contra as drogas. Revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

A ADPF 289 foi ajuizada pela Procuradoria Geral da República, no ano de 2013 cujo objeto é a declaração de interpretação conforme a Constituição do artigo 9º, I e III do Código Penal Militar para que civis não sejam submetidos à jurisdição militar em tempo de paz. De outro giro, não se descuida de que o julgamento de civis por tribunais militares afronta cabalmente os princípios democrático (art. 1º CRFB), do juiz natural (artigo 5º, inciso LIII, da CRFB), bem como contraria os artigos 124 e 142, ambos da Carta Maior. A submissão de civis ao julgamento perante juízes e tribunais militares contraria o princípio democrático, pois há déficit de legitimidade posto que justamente o que fundamenta a formação dos conselhos de justiça militares, tanto o Especial, quanto o Permanente, é semelhante ao argumento utilizado para fundamentar a legitimidade de outro conselho, o de sentença, no Tribunal do Júri: o julgamento pelos pares conforme nos informa Marcelo Adriano Menacho dos Anjos (DOS ANJOS, 2015, p. 143). Ocorre que no caso específico da Justiça Militar da União, não há que se falar em julgamento pelos pares, pois como vimos, o Conselho

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Permanente é composto por apenas um juiz togado e por quatro militares, e mais, que tal conselho é presidido por um dos militares. Quanto ao princípio do juiz natural os argumentos são semelhantes tendo em vista que a Constituição garante que ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente sendo que não há, em outro dispositivo da mesma carta, a menção da possibilidade de julgamento de civis por justiça castrense. Nem mesmo o artigo 124 dispondo que compete à justiça militar processar e julgar os crimes militares definidos em lei é suficiente para respaldar a posição que pugna pela constitucionalidade. De fato a Constituição autoriza que se organize a justiça especializada para julgar crimes militares definidos em lei. Contudo, tal autorização não dá ao legislador infraconstitucional a prerrogativa de transgredir o princípio do juiz natural, posto que civis não estão submetidos à mesma ordem e disciplina que os militares, pelo fato de que há juízes da justiça comum, estadual ou federal (princípio do juiz natural) aptos a processarem esses feitos. Noutro giro no referido habeas corpus 136.536 CE, a Defensoria Pública da União argumentou que não se justifica o julgamento de civis por juízes militares não togados, pela prática de condutas igualmente tipificadas na legislação penal comum, sobretudo porque “ausente a intenção deliberada de atingir as instituições militares em suas funções típicas”. Também argumenta a DPU, subsidiariamente que, em se tratando de acusado civil, somente cabe ao Juiz Auditor seu julgamento e não ao Conselho Permanente de Justiça. Dessa forma, pelo menos em parte, se estaria atendendo melhor aos ditames constitucionais e se afastando aos poucos dos resquícios deixados por anos de arbitrariedades. Inicialmente, este artigo abordou a evolução na matéria da justiça militar. Não obstante essa evolução, apresenta evidentes retrocessos. Diz-se que há evolução no sentido de que, paulatinamente a competência para julgar crimes cometidos por militares contra civis vêm sendo transferida para justiça comum, principalmente após os episódios da Favela Naval em 1996 que culminaram com a Lei 9.299/1996 que deu nova redação ao artigo 9º do Código Penal militar. Justamente o mesmo dispositivo que agora, 27 anos depois, foi modificado para uma posição próxima àquela. Importante esclarecer que, mesmo com o retrocesso já informado, crimes praticados por militares contra civis apenas serão julgados na justiça militar por militares federais em operação da Garantia da Lei e da Ordem.

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Pelos julgados aqui expostos até o momento e pela atual formação da PGR não há motivos para crer que a ADPF 289 terá seu mérito julgado procedente, sendo que a melhor saída, em um horizonte possível, seria a mudança, seja por meio da Corte Suprema, seja por meio de alteração legislativa, na competência interna do Conselho Permanente para que o juiz auditor, monocraticamente, julgasse civil nas situações aqui expostas. Impossibilidade decorrente do controle de convencionalidade

Não obstante o horizonte próximo chama a atenção para o fato de que tal matéria também está sujeita a outros mecanismos de aferição de compatibilidade. Como é sabido o ordenamento jurídico brasileiro não está restrito apenas à nossa Constituição Federal e às Leis que o Poder Legislativo edita. Também está atrelada ao chamado Bloco de Constitucionalidade que, nas palavras do professor André de Carvalho Ramos “consiste no reconhecimento da existência de outros diplomas normativos de hierarquia constitucional, além da própria Constituição” (RAMOS, 2016, p. 424), fazendo parte também, como permite o artigo 5º, § 2º, outros direitos e garantias que decorram de tratados de direitos humanos que o Brasil tenha aderido. Neste sentido pode-se afirmar que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou Pacto de São José da Costa Rica (doravante, Convenção ou Pacto de São José) faz parte do Bloco de Constitucionalidade e que pode, portanto ser parâmetro para controle de convencionalidade, isto é, aferição de compatibilidade das normas jurídicas brasileiras ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O controle de convencionalidade foi mencionado pela primeira vez no caso Almonacid Arellano vs. Chile. No mencionado caso foi fixado que os integrantes do Poder Judiciário dos Estados signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos devem observá-la, velando para seu cumprimento. Conforme fundamentação utilizada no mencionado caso (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019c): 124. La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que des-

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de un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.

Partindo desse pressuposto, embora a Corte Interamericana ainda não tenha se pronunciado expressamente sobre algum caso envolvendo o Estado brasileiro, outros países latinos americanos foram julgados por autorizarem a justiça castrense julgarem civis. Em tais julgamentos a Corte fixou alguns aspectos que servem de parâmetros para análise de casos semelhantes. Serão analisados dois casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Castillo Petruzzi e outros versus Peru; Caso Palamara Iribarne versus Chile. Caso Castillo Petruzzi e outros contra Peru

O caso Castillo Petruzzi e outros contra Peru (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019a) trata de possível responsabilidade internacional do Estado peruano por excessos na detenção e por submeter à jurisdição militar Jaime Francisco Sebastián Castillo Petruzzi, María Concepción Pincheira Sáez, Lautaro Enrique Mellado Saavedra e Alejandro Luis Astorga Valdez. O Estado peruano considerou que os mencionados civis participaram de conflito entre as Forças Armadas e grupos armados nos dias 14 e 15 de outubro de 1993. Em decorrência disso, prendeu os responsáveis e submeteu a julgamento perante a jurisdição penal militar por crime de traição contra a pátria, resultando na condenação de todos. Ao analisar o caso, a Corte concluiu que o Peru violou os artigos 1.1; 2; 5; 7.5; 7.6; 8.1; 8.2.b, c, d, f, h; 8.5; 9; 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para a presente abordagem será destacado a análise do artigo 8. O mencionado dispositivo trata das garantias judiciais e do devido processo legal, nos seguintes termos:

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8.1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019a)

Em sua fundamentação a Corte considerou que os tribunais militares que julgaram os civis por suposto crime de traição à pátria não satisfazem as condições inerentes a independência e a imparcialidade estabelecidas no artigo 8.1 da Convenção. Porquanto, partiu do pressuposto que a jurisdição militar tem a finalidade de manter a ordem e disciplina nas Forças Armadas reservando sua aplicação aos militares (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019a): 128. La Corte advierte que la jurisdicción militar ha sido establecida por diversas legislaciones con el fin de mantener el orden y la disciplina dentro de las fuerzas armadas. Inclusive, esta jurisdicción funcional reserva su aplicación a los militares que hayan incurrido en delito o falta dentro del ejercicio de sus funciones y bajo ciertas circunstancias. (…) El traslado de competencias de la justicia común a la justicia militar y el consiguiente procesamiento de civiles por el delito de traición a la patria en este fuero, supone excluir al juez natural para el conocimiento de estas causas. En efecto, la jurisdicción militar no es la naturalmente aplicable a civiles que carecen de funciones militares y que por ello no pueden incurrir en conductas contrarias a deberes funcionales de este carácter. Cuando la justicia militar asume competencia sobre un asunto que debe conocer la justicia ordinaria, se ve afectado el derecho al juez natural y, a fortiori, el debido proceso, el cual, a su vez, encuéntrase íntimamente ligado al propio derecho de acceso a la justicia.

Assim sendo, as Forças Armadas são utilizadas para combater determinado grupo de pessoas e estas, quando presas, são submetidas à justiça castrense. Que por sua vez, em sua instância recursal superior é nomeada diretamente pelo ministro chefe das forças armadas. Sendo que é a instância recursal superior que nomeia os juízes das instâncias inferiores. É questionável a imparcialidade dos juízes militares para julgar civis presos em operação das Forças Armadas. Por conseguinte, há evidente contrariedade ao princípio básico da independência dos juízes e do direito de toda pessoa ser julgada por tribunais de justiça comuns com procedimento legal previamente estabelecidos. 178

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Caso Palamara Iribarne contra Chile

O caso Palamara Iribarne contra Chile (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019b) a condenação penal do Sr. Humberto Antonio Palamara Iribarne por desacato. A acusação tem por base a proibição, por parte do Estado chileno, da publicação do livro Ética y Servicios de Inteligencia. O conteúdo da obra abordava aspectos relacionados com a inteligência militar e a necessidade de adequá-la a alguns parâmetros éticos. Ao analisar o caso, a Corte decidiu que o Chile violou, dentre outros, os direitos de liberdade pessoal e garantias judiciais previstos nos artigos 7.1, 7.2, 7.3, 7.4, 7.5, 8.1, 8.2 e 8.2.b da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Nesse aspecto, destacam-se três tópicos da fundamentação adotada pela Corte, quais sejam: direito de ser ouvido por um juiz ou tribunal competente e de ser julgado por juiz ou tribunal imparcial. No que diz respeito ao direito de ser ouvido por juiz ou tribunal competente, a Corte Interamericana destacou que os tribunais militares tem alcance restrito e excepcional, devendo se pautar na proteção dos interesses jurídicos especiais vinculados com as funções das Forças Armadas. Com efeito, os crimes a serem julgados pela justiça castrense somente podem ser cometidos por militares em ocasião das funções de defesa e segurança exterior do Estado. Acrescenta-se a análise da perspectiva do Estado Democrático de Direito (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019b): [...] La jurisdicción penal militar en los Estados democráticos, en tiempos de paz, ha tendido a reducirse e incluso a desaparecer, por lo cual, en caso de que un Estado lo conserve, éste debe ser mínimo y encontrarse inspirado en los principios y garantías que rigen el derecho penal moderno. [...] 139. El Tribunal ha señalado que la aplicación de la justicia militar debe estar estrictamente reservada a militares en servicio activo, al observar en un caso que “al tiempo en que se abrió y desarrolló [el] proceso [en su contra], [la víctima tenía] el carácter de militar en retiro, y por ello no podía ser juzgad[a] por los tribunales militares. […]

Nesse sentido, a Corte considerou que a justiça militar adentrou na competência da justiça comum, violando o direito ao juiz natural, o devido processo legal e acesso à justiça.

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Ao tratar sobre o direito de ser julgado por juiz ou tribunal imparcial, a Corte Interamericana entendeu que para garantir a imparcialidade de julgamento é indispensável a existência de um processo de ingresso, a estabilidade na função e garantia de inamovibilidade. Ao analisar a estrutura da justiça castrense chilena, foi considerado (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2019b): 155. La Corte estima que la estructura orgánica y composición de los tribunales militares descrita (…) supone que, en general, sus integrantes sean militares en servicio activo, estén subordinados jerárquicamente a los superiores a través de la cadena de mando, su nombramiento no depende de su competencia profesional e idoneidad para ejercer las funciones judiciales, no cuenten con garantías suficientes de inamovilidad y no posean una formación jurídica exigible para desempeñar el cargo de juez o fiscales. Todo ello conlleva a que dichos tribunales carezcan de independencia e imparcialidad.

Assim sendo, como forma de reparação ao Sr. Palamara Iribarne, a Corte determinou que o Estado adeque seu ordenamento jurídico interno para que a justiça militar se limite a julgar crimes cometidos por militares ativos, se considerar necessária a permanência dessa justiça especializada. Restrição de jurisdição militar

A Corte Interamericana de Direitos Humanos questiona a validade jurídica da existência da justiça miliar. Com efeito, constatou nos casos submetidos que, em regra, há violação à imparcialidade, ao juiz natural e ao devido processo legal. Porquanto, os juízes não gozam de garantias judiciais como estabilidade e inamovibilidade. Além disso, majoritariamente integram a carreira militar, submetendo-se à hierarquia da organização castrense. Portanto, o julgamento de civis pela justiça castrense viola os artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) do Pacto de São José. Em síntese, preconiza que devem ser julgados pela justiça castrense somente militares ativos que praticam crimes que lesam bens jurídicos militares, bem como sua composição e estruturação deve assegurar a imparcialidade dos julgadores.

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Considerações finais

Na composição do Poder Judiciário brasileiro existe uma justiça especializada na matéria militar. Não obstante seu caráter especializado, por meio de alterações legislativas há nítida ampliação da competência da justiça castrense, inclusive para julgar civis. Apesar da divergência jurisprudencial sobre a matéria, no Brasil tem prevalecido o entendimento de que civis podem ser julgados pela justiça castrense. Em contraponto com a jurisprudência brasileira, a Corte Interamericana de Direitos Humanos restringe rigorosamente tal possibilidade, e até questiona a viabilidade jurídica de um Tribunal Militar no regime democrático em tempos de paz. Não obstante, uma vez existente, deve ser limitar a julgar militares ativos que praticam crimes que lesam bens jurídicos militares. Por conseguinte, é imperiosa a alteração na legislação brasileira, bem como a reformulação do pensamento dos tribunais nacionais com o avanço da sua jurisprudência para restringir a competência de julgamento da justiça castrense. Do contrário, poderá o Estado brasileiro ser responsabilizado internacionalmente por violação aos direitos humanos, sobretudo os estabelecidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

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7 A liberdade antes do liberalismo: o caso de Francisco Suarez Paulo Emílio Vauthier Borges de Macedo

Prolegômenos à guisa de introdução

A Filosofia Jurídica Moderna foi injusta em relação a Francisco Suárez. O pensamento de Francisco Suárez influenciou sobremaneira a teologia católica e protestante, mas ele foi relegado entre os filósofos e os juristas. Quando muito, o teólogo granadino é lembrado como a fonte de um François Glisson. Sua maior obra jurídica-política, o De Legibus ac Deo Legislatore, acabou tão somente por ganhar pó nas estantes das bibliotecas. Já o seu segundo maior texto nesse gênero, a Defensio Fidei Catholicae adversus anglicanae sectae errores, foi, até mesmo, proibido em França e chegou a ser queimado na Inglaterra, tamanha a polêmica que causou. Isso deveria ser um indicativo das ideias que esse escritor defende. Somente na segunda metade do século XIX, quando se descobre que Hugo Grócio não detém, com exclusividade, a paternidade do direito internacional, os textos jurídicos e políticos de Suárez são revitalizados. Percebe-se, então, que Suárez não é apenas um grande teólogo – um dos maiores do chamado “século de ouro” da Espanha e o mais importante da segunda vaga da escolástica espanhola –, mas também antecipou teses jurídico-políticas bastante modernas como o contrato social, a origem popular do poder e a doutrina do tiranicídio. Além disso, o escritor apresenta uma noção de direito natural que se ajusta às mudanças históricas, 185

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o que salva o jusnaturalismo suareziano de uma das mais contundentes críticas que o positivismo profere contra o direito natural moderno. Tão original é o pensamento do autor que alguns comentaristas o consideram a fonte de uma modernidade alternativa. Ademais, ele desenvolveu uma concepção sofisticada e original de jus gentium. Francisco Suárez nasce em Granada, em 5 de janeiro de 1548 e morre em Lisboa, em 24 de setembro de 1617. Procede de uma família católica e nobre, que prestava serviços à Coroa desde os tempos da Reconquista. Estuda em Salamanca durante dois anos até solicitar o ingresso na recém fundada Companhia de Jesus – uma ordem intelectual desde as suas origens–, em 1564. Apesar da junta de examinadores reconhecer uma profunda vocação eclesiástica, ela reprova Suárez porque o considerou muito burro. O jovem parte para Valladolid e pede a intercessão do provincial de Castilha, Juan Suárez (que não possui maiores relações com Francisco, além do sobrenome). Todos os conselheiros emitem pareceres desfavoráveis à entrada, mas o provincial se apieda e entrega a Francisco Suárez uma carta de recomendação destinada ao reitor. O jovem finalmente consegue o noviciado, mas é admitido na qualidade de “Indiferente”, isto é, caso não demonstrasse aptidão para o estudo, iria se tornar um simples irmão coadjutor, uma condição aquém de sua fidalguia e formação (SCORRAILLE, 1912). Infelizmente, Suárez não se destaca nos estudos e revela uma dificuldade considerável com matérias abstratas. Então, procura manter-se calado e evita debates públicos sobre temas em que os demais alunos buscam se exibir. Seu mutismo lhe rende o apelido de “boi mudo”, numa clara alusão irônica a Santo Tomás de Aquino, o primeiro a exibir essa alcunha. Seus professores designam colegas para ajudá-lo nas provas, mas isso causa apenas maior mortificação ao jovem. Convencido de sua vocação como irmão de serviço, Suárez acode ao padre diretor Martim Gutierrez e, com abnegação, pede trabalhos braçais e afirma contentar-se em ser apenas servidor dos sábios (SCORRAILLE, 1912). Mais uma vez, a humildade de Suárez desperta piedade. Gutierrez responde que o jovem deve perseverar nos estudos, que a aparente inutilidade dos esforços somente aumenta o mérito. E acrescenta que iria rezar durante toda a noite e pedir ao Nosso Senhor Jesus Cristo para lhe conceder o dom da sabedoria. As orações parecem surtir efeito, e Suárez, de maneira gradual, torna-se um aluno melhor. Termina, em abril de 1570, os cursos de Teologia com certa notoriedade de sabedoria entre colegas e professores. Anos depois, em 1607, o Papa Paulo V refere-se a Suárez como Doctor Eximius et Pius. Também neste caso, o boi mudo mugiu (CORDEIRO, 1918, p. 16). 186

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Tradicionalmente, define-se a primeira matriz liberal – a jusnaturalista britânica – pela presença dos seguintes três elementos: o contrato social para legitimar a criação do Estado, a defesa de um governo limitado e a ideia de direitos naturais, em oposição ao jusnaturalismo antigo que só concebia a existência de uma lei natural. Essas três noções autorizaram a John Locke o epíteto de um dos pais fundadores do liberalismo. Já a ausência de apenas um desses elementos seria suficiente para descartar um Hobbes e um Rousseau como protoliberais. Porém, não há dúvidas de que essa leitura consiste numa categorização ex post. Nenhum dos três grandes contratualistas escrevia com o firme propósito de se tornar o pai do liberalismo. Isso se tornou especialmente claro quando, em Cambridge, Peter Laslett demonstrou que Locke havia se debruçado sobre os Dois Tratados do Governo Civil desde 1681, momento em que o partido Whig – ao qual o autor pertencia – planejava recorrer à violência política. Até então, sempre se havia pensado que o trabalho de Locke havia sido escrito para justificar a Revolução Inglesa de 1688-1689. Mas os dois tratados não eram a consolidação da Revolução Gloriosa; antes expressavam parte do debate e das tomadas de posicionamento dos atores da revolução. Eram textos que possuíam engajamento no contexto político e social da época. A filosofia política de Locke não se encontrava distante da ação política, numa torre de marfim, como se costumava pensar que a Filosofia (bem como a teoria política) deveria ser (POCOCK, 2012, p. 195). Ninguém escreve para uma plateia universal, mas para os debates da época em que se insere. E é por isso que fomos injustos com Suárez. Ele não seria lido no mundo anglo-saxão que despontava, por causa da proibição aos seus livros. E, por ser jesuíta, ele foi também esquecido no mundo ibérico, que já anunciava a decadência: o Marquês de Pombal mandou construir um mundo em frente ao túmulo de Suárez para impedir a visitação. O autor foi esquecido. Francisco Suárez se insere na tradição cultural escolástica. E foi um dos maiores. Ele sintetiza todo o pensamento escolástico de forma tão competente que Bossuet afirmou “en lui on voit toute l’École”. Mas ele não é só mais um tomista. O Aquinate não presenciou os acontecimentos, nem antecipou as discussões, que se imporiam sobre as gerações espanholas dos séculos XVI e XVII: o descobrimento da América, o direito dos índios, os limites ao direito de evangelização e a emergência de um controverso direito – defendido pelos Monarcomacci na Itália e, em Espanha, por Juan de Mariana – sobre desobediência civil. Por mais impactantes que tenham sido estes eventos, eles não poderiam invalidar a essência do

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tomismo. Isso era inegável até para os mais vulgares teólogos católicos; todavia, para os mais capazes, o tomismo precisava ser atualizado. Os direitos subjetivos

A tarefa de atualização tornou Suárez um tomista muito pouco ortodoxo. Na Idade Média, as obras de Metafísica não se apartavam dos cânones estabelecidos por Aristóteles. Étienne Gilson conclui que as Disputationes Metaphysicae constituem, em verdade, um tratado filosófico moderno, “pois o autor deliberadamente se apartou de toda a sujeição ao texto da Metafísica de Aristóteles (...). Pautar-se pelos objetos mesmos da Metafísica, e não mais pela letra de Aristóteles (...) é escrever sobre Metafísica em vez de escrever sobre Aristóteles” (GILSON, 1962, p. 145). A Metafísica suareziana descobriu o individual. Na Gnosiologia tradicional, o universal é “objeto do conhecimento direto e, portanto, é captado na simples apreensão que engendra o conceito”. Há uma correspondência direta entre o conceito e aquilo que existe: o universal possui existência real. Os nossos conceitos são de universais, e esses universais existem. Já a coisa “ut singularis só é conhecida indiretamente ou por uma reflexão que, por meio da espécie inteligível universal própria da cognição direta, converte a mesma em imagens da fantasia” (LARRAINZAR, 1977, p. 124)1 Atinge-se o individual por meio de um mecanismo complexo chamado de “individuação”; trata-se de um processo de reunião, num mesmo objeto, de diversos universais. Dessa maneira, v.g., define-se o individual “Sócrates” pelo conjunto de seus atributos universais: Homem, Mortal, Sexo Masculino, etc. Por esse motivo, os individuais consistem em substâncias compostas. Porém, Suárez não pensa assim. Ao usar o termo “espécie”, o autor quis designar uma realidade em si mesma. Diverso do exposto acima, para o autor, o “nosso entendimento conhece diretamente os singulares materiais sem a reflexão [dos fantasmas produzidos em nossa mente]”. E somente depois o “entendimento conhece como um conceito próprio, abstraindo dos singulares e não se preocupando com eles” (SUÁREZ, 1978a, IV, 3, 7 e IV, 3, 11. De Anima)2. O processo de cognição percorre o caminho inverso do que Santo Tomás preconizava: primeiro, conhece-se o singular, para depois abstrair deles o universal. 1 “(...) objeto del conocimiento directo y, por tanto, se capta en la simple aprehensión que engendra el concepto (...)”. “(...) la cosa ut singularis sólo es conocida indirectamente o por una reflexión que, a través de la especie inteligible universal propria de la cognición directa, convierte hacia las imágenes de la fantasía (...)”. 2 “Intellectus noster cognoscit directe singularia materialia absque reflexione”. “Intellectus cognoscit proprio conceptu universalia, abstrahendo a singularibus seu non curando de illis”.

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Esse axioma cognitivo irá ressoar na concepção suareziana de Direito Natural. Pensadores escolásticos redigiam um Tratado sobre as Leis e outro sobre a Justiça e o Direito, conforme disposto na Suma Teológica de Aquino. Um versa sobre os diferentes tipos de Lei (Lei Natural, Lei Civil, etc.) que correspondem, na verdade, à própria Lei Eterna de Deus em diferentes domínios de existência, o mesmo universal. E o outro trabalho tem por objeto a justiça, o ius, a coisa justa nas relações humanas, a justiça de uma determinada situação, uma coisa concreta e singular. Mas Suárez (1740) escreve tão somente um grande e abrangente Tratado das Leis e de Deus Legislador. Isso é muito significativo. A Lei Natural do autor confere direitos naturais a indivíduos, uma característica bastante moderna. Por isso, uma das acepções de ius, conforme o autor, é uma certa “faculdade moral que cada um tem em relação ao que é seu, ou ao que lhe é devido; na verdade, assim se diz que o dono de uma coisa tem direito sobre ela e que o trabalhador tem direito ao pagamento, razão pela qual se diz que merece a sua recompensa” (SUÁREZ, 1740. Tratactus de legibus, ac Deo Legislatore in decem Librus distributus [doravante DL] I, 2, 5)3. Trata-se da concepção moderna de direito subjetivo. Suárez chegou a esse conceito ao reinterpretar autores bastante antigos, como não poderia ser diferente. Num sentido mais estrito de justiça, como uma virtude específica, não como a virtude em geral, o tomismo tradicional retomava a divisão aristotélica da justiça em legal, comutativa e distributiva. A justiça legal trata das relações entre todas as pessoas que existem na cidade. O direito (ius) objeto dessa justiça corresponde às ações e aos bens dos súditos que devem conformar-se às leis. Ao Estado, exige-se apenas que legisle com vistas ao bem comum. Já a justiça distributiva ocorre entre pessoas desiguais, entre superior e inferior, entre o Estado e os súditos. O direito objeto dessa justiça é a distribuição dos bens públicos da polis. A coisa que se deve a alguém não pertence propriamente a esse alguém, mas apenas de forma relativa, segundo a sua capacidade ou dignidade. Trata-se de um direito num sentido menos rigoroso, mais fraco, bastante afastado da noção de domínio. Por último, o que hoje se denomina de direito subjetivo corresponde à re-interpretação de Suárez da justiça comutativa. Essa justiça opera nas relações entre os iguais, dos súditos entre si. A regra é a igualdade das trocas. Este é o direito por excelência, porque reflete a definição mais corrente de justiça (“dar a cada um o seu”). Suárez não emprega a expressão “justiça comutativa”, mas retoma a tradicional frase romana e 3 “(...) facultas quaedam moralis, quam unusquisque habet vel circa rem suam vel ad rem sibi debitam; sic enim dominus rei dicitur habere ius in re et operarius dicitur habere ius ad stipendium ratione cuius dicitur dignus mercede sua”.

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insere nela uma sutil alteração: o pronome “seu” torna-se uma espécie de “faculdade moral”: “certo poder ou faculdade moral que cada um tem sobre o que é seu e sobre aquilo que lhe devem” (DL. I, 2, 5)4. Com isso, ele consegue deslocar o foco desse conceito do objeto para o sujeito. Os clássicos centravam essa definição não no sujeito titular da coisa devida, mas na própria coisa devida. Era, pois, a situação, a coisa, que era “justa”. Antes, a definição mais corriqueira referia-se a algo bastante distinto. A ciência jurídica dos clássicos, para estabelecer o direito de alguém (jus suum cuique), não parte do indivíduo, mas objetivamente da massa dos bens sociais a dividir: o direito de alguém é um quociente. O direito não é pois um “atributo” do indivíduo, isoladamente considerado, mas uma coisa, uma coisa objetiva (“coisa incorpórea”), uma quantidade delimitada de prerrogativas ou de encargos. Ele não é um “poder” para realizar determinada atividade (circular, manifestar sua opinião, cultivar a terra), mas – e eis uma nuança essencial – uma zona de poder, um setor de ação delimitado por outros setores atribuídos a outros associados [de uma determinada sociedade]. (VILLEY, 1962, p. 160, grifo do autor)5

Até então, o direito de alguém correspondia ao reflexo do conjunto de deveres imposto a todo o restante da comunidade. O indivíduo podia reivindicar não o seu direito, mas o cumprimento, por parte de outrem, de uma obrigação que lhe era devida. Suárez passa a centrar a definição de ius no sujeito titular da coisa. Assim, o objeto da justiça comutativa torna-se uma “faculdade justa”. Essa faculdade pertence ao sujeito, como se emanasse dele próprio de modo independente da existência de uma lei – esta considerada uma tábua de obrigações –, que dispusesse sobre aquilo que os outros devem a esse sujeito. Uma das maiores diferenças entre o jusnaturalismo medieval e o moderno reside na concepção de direito subjetivo, o poder de agir conferido a um indivíduo. A lei natural, para os medievos, representa um ordenamento, um conjunto de deveres que se impõe aos homens. Ela designa tarefas e atividades de caráter obrigatório. Em certo sentido, a lei natural medieval opõe-se à liberdade do ser humano. No máximo, 4 “(...) ius vocari facultas quaedam moralis, quam unusquisque habet vel circa rem suam vela d rem sibi debitam”. 5 “La science juridique des classiques, pour établir le droit de chacun (jus suum cuique), ne part pas de l’individu, mais objectivement de la masse des biens sociaux à partager: le droit de chacun, c’est un quotient. Le droit n’est donc pas ‘l’attribut’ de l’individu, isolément considéré, mais une chose, une chose objective (‘chose incorporelle’), une quantité délimitée de prérogatives ou de charges. Il n’est pas ‘pouvoir’ d’accomplir telle activité (circuler – dire son opinion – cultiver l aterre), mais – voici la nuance essentielle – zone de pouvoir, secteur d’action délimité par rapport à d’autres secteurs attribués à d’autres associes”.

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ela estabelece o limite externo dessa liberdade; corresponde aos deveres do indivíduo em relação à comunidade. O direito natural moderno, ao contrário, confere ao homem um determinado poder em face de toda a sociedade. O direito subjetivo é sinônimo de poder. Trata-se de uma liberdade que o indivíduo possui mesmo que outro ordenamento jurídico (mormente o positivo) não lhe atribua. A existência desse direito independe do conjunto de leis; sua origem e fundamento repousam no próprio homem, não em algo externo. Ao descobrir o singular, em sua Metafísica, Suárez valoriza o indivíduo como criador e destinatário da lei. De um modo geral, a noção de direito subjetivo distingue o jusnaturalismo medieval do moderno e constitui o fundamento para o que pode ser chamado hoje de “direitos humanos”. Os direitos subjetivos existem para empoderar os indivíduos contra o arbítrio dos seus soberanos. Outrossim, limitam não só o poder do Príncipe, mas de toda a sociedade, são direitos contramajoritários: uma margem de liberdade no qual o indivíduo pode perseguir o seu próprio destino sem a interferência de toda a comunidade. E Suárez foi o primeiro a enunciar isso. A teoria do Estado

Francisco Suárez revela toda a sua modernidade, de maneira bastante contundente, na teoria política. Embora o seu objeto de estudo ainda fosse a Teologia, o autor se mostra um politólogo de primeira grandeza. De fato, ele defende teses que a filosofia protestante de um século depois apenas muito lentamente iria conseguir desenvolver. Ele trata de assuntos como a origem popular do poder, as relações entre a Igreja e o Estado e o direito de desobediência civil. Comparados à profundidade desses temas, Suárez influenciou pouco as gerações seguintes, e os comentários a essa parte de sua obra são escassos. A teoria do Estado de Suárez aparece no livro III do De Legibus, bem como na Defensio Fidei. A história desta obra é bastante conhecida. Desde 1600, o cardeal Roberto Berlarmino empenhava-se na restauração católica da Inglaterra e depositava esperanças na figura de Jaime I, então Jaime VI da Escócia. Mas os acontecimentos da Conjuração da Pólvora de 1605 resultaram em severos atritos entre o rei e os católicos, em especial os jesuítas. O provincial Garnet foi até mesmo executado por ordem real. A resposta do monarca não se encerrou com o castigo exemplar. Em 1606, votam-se leis persecutórias com base em um juramento de fidelidade (CARRILLO PRIETO, 1977, p. 58).

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Tratava-se do terceiro juramento que um monarca inglês impunha a seus súditos católicos desde a Reforma. O primeiro, imposto por Henrique VIII somente aos clérigos que podiam votar no Parlamento, recebeu uma nova formulação por Isabel I que o prescreveu a todos, à exceção das autoridades civis. Jaime I amplia de forma considerável tanto o texto como o conteúdo. Os católicos ingleses deveriam declarar, e Deus seria testemunha, que ele era o rei legítimo e supremo senhor do reino. O juramento ainda acrescenta que nenhuma potência estrangeira, em especial o papa, poderia interferir no seu governo, e nada nem ninguém teria autoridade para condenar os seus atos. Restaria aos súditos, apenas, o dever de obediência mesmo em face de uma sentença de excomunhão (Terceira Fórmula de Juramento Arbitrada e Defendida pelo rei Jacobus I (SUÁREZ, 1978b, p. 22-24). De modo aparente, o juramento possuía tão somente um caráter político e não poderia atrair a atenção da Igreja Católica. O monarca desejara garantir a sua supremacia e segurança pessoal ao consolidar a soberania absoluta sobre o Estado inglês. Tratava-se, em princípio, de uma manifestação do absolutismo corrente à época. Cabe observar que os últimos juramentos políticos haviam ocorrido na Alta Idade Média para sacralizar os deveres mútuos que uniam os senhores e os seus vassalos. Nessa época, não havia necessidade de seduzir o povo; este seguia, por necessidade ou instinto, os seus dirigentes. A opinião da massa popular pouco interessava. Contudo, os tempos mudaram, e fazia-se necessário apelar para a consciência individual, o que, até então, constituía um domínio reservado de um poder estrangeiro: a Igreja. Por esse motivo, o juramento de fidelidade política afetou também as relações entre a Igreja e o Estado (SUÁREZ, 1965). A tese absolutista de Jaime I mostrava-se um verdadeiro compêndio de toda a tradição política protestante. Por causa do voluntarismo nominalista, o protestantismo exaltava a onipotência dos soberanos, e o rei estava persuadido da sua superioridade. Acreditava de boa fé ser um teólogo genial que trazia a verdade aos ingleses desorientados. Jaime I considerava-se o primeiro teólogo da Europa. Proclamava que havia sido pessoalmente eleito por Deus para governar o seu povo, investido de seus poderes diretamente por Deus e que só era responsável perante Deus. (SUÁREZ, 1979, p, 16)6

6 “Creía de buena fe ser un teólogo genial que traía la verdad a los ingleses desorientados. Jacobo I se consideraba el primer teólogo de Europa. Proclamaba que había sido personalmente elegido por Dios para gobernar a su pueblo, investido de sus poderes directamente por Dios y que sólo era responsable ante Dios.”

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Jaime I defendia, pois, a origem divina do direito dos reis. Por mais estranho que possa parecer, eram os protestantes que advogavam esta tese. Faziam uma interpretação muito literal do “non est potestas nisi a Deo” do apóstolo Paulo. Os católicos, desde Francisco de Vitória, exaltavam a origem popular da soberania. Em verdade, esta teoria integrava a interpretação tradicional do tomismo. Já no século XIII, o pontífice Inocêncio IV enunciava, em termos explícitos que, enquanto o poder do papa provém de Deus – em virtude da doação feita pelo próprio Jesus Cristo a São Pedro –, o do imperador vem do povo (MERÊA, 2004, p. 119). A afirmação de Inocêncio IV parece, além de constatar o fundamento popular da autoridade, enaltecer o poder papal. Mas ela foi proferida em outros tempos, quando a noção de monismo imperial ainda pairava sobre as cabeças da cristandade. E, como se verá nas palavras de Suárez, uma variante desse monismo atribuía o título de imperador – e portanto senhor de todos os cristãos – ao papa. Todavia, são os próprios católicos que iriam reconhecer uma limitação à autoridade do Sumo Pontífice. O cardeal Belarmino, em 1568, antes mesmo da controvérsia com Jaime I, formulou a doutrina do poder indireto, segundo a qual ao papa se reconhecia a ingerência em assuntos temporais sempre que o reclamassem as conveniências espirituais da Igreja. Ela não concedia o poder temporal ao chefe da Igreja, mas permitia que, em defesa da fé, se poderia, até mesmo, depor os príncipes. Essa solução coincidia com a dos defensores mais moderados do papado; porém, uma vez que não enaltecia o poder pontifical como a doutrina do poder direto, escandalizou, de modo passageiro, a Santa Sé e Gregório XIII. Ainda assim, essa teoria encontrava-se mais consentânea com as condições políticas da época, e o livro de Belarmino foi retirado do Índice e reabilitado perante a opinião católica (MERÊA, 2004, p. 125). Dessa feita, em conformidade com a ingerência reduzida dos novos tempos, a resposta papal ao juramento de fidelidade foi uma simples condenação: num breve, Paulo V declara sua ilicitude. Jaime I replica com o tratado Apologia pro Iuramento Fidelitatis. Belarmino escreve uma primeira Responsio. O rei, por sua vez, ordena uma reimpressão da Apologia, precedida por um Prefatio Monitoria. Belarmino, então, deseja encerrar a polêmica com uma segunda Responsio (CARRILLO PRIETO, 1977, p. 58). Nesse contexto, começa a se gestionar na Igreja Católica para que Francisco Suárez interviesse em auxílio a Belarmino. A Reforma havia desferido seu mais poderoso golpe, então a Igreja recorre ao seu teólogo mais importante da época. Suárez aceita sob a condição de haver garantias papais à doutrina que iria expor. De posse dessa certeza, embora seu espí-

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rito fosse avesso às controvérsias, aceita, docilmente, seu encargo. Todavia, em vez de redigir uma obra de polêmica, o Doutor Exímio e Pio eleva a discussão e escreve um tratado científico de mais de oitocentas páginas. O rei Jaime I não se atreveu a responder a Defensio Fidei de Suárez. Pareceu-lhe mais cômodo ordenar aos doutores de Oxford para que rechaçassem Suárez e Belarmino num ato público. Além disso, mandou queimar o livro em Londres e proibiu sua leitura em toda a Inglaterra, sob severas penas. Também em França a obra foi queimada, no pátio do Parlamento, por causa da doutrina do tiranicídio. Como se tratava de um reino católico, o Conselho de Luís XIII prestou satisfações ao papa; no entanto, para não melindrar o Parlamento, conservou-se a proibição ao livro por tempo suficiente até tornar Suárez um autor mal quisto (SUÁREZ, 1965, p. 25-30). A origem do poder

Em teoria política, Francisco Suárez inova em relação ao tomismo tradicional. Esse tema não é tratado de forma perfunctória; o cuidado que o autor dispensa torna o mesmo um problema central. Suárez já havia abordado essa questão, de modo um tanto incipiente, num trabalho de juventude, De Opere Sex Dierum. Pode, pois, afirmar-se que a teoria política foi o tema mais recorrente da vida do jurista de Coimbra. Contudo, o autor não é um politólogo, e seu pensamento político ocorre sempre em função da Teologia. Portanto, não deve causar estranheza o fato de que a primeira questão que Suárez se propõe, no primeiro capítulo do livro III do De Legibus, seja se os homens têm poder, bem como legitimidade, para legislar. O problema político primordial, para o teólogo granadino, reside no binômio obediência-liberdade: Deus concedeu ou não poder de mando aos homens (ou somente a algum homem em especial) sobre outros homens? Em vista da igualdade de todos os homens, baseada na paternidade divina, como foi acontecer de um homem tornar-se anteposto a outro? Trata-se de uma questão que remonta a certa interpretação do bispo de Hipona a qual nega, ao Estado, um fundamento no direito natural. Santo Agostinho, ao transcrever uma passagem do Gênesis, afirma que Deus criou o homem para que dominasse os peixes do mar, as aves do céu, os animais da terra, mas não para que dominasse o seu semelhante. A partir disso, criou-se toda uma corrente de escritores que inferiram o caráter antinatural do poder; sua origem seria o pecado e a corrupção humana (CALAFATE, 2001, p. 576).

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Essa não é a posição de Suárez. O autor parte da concepção aristotélica de homem como um animal social. E, nesta qualidade, o homem só poderia dispensar o poder político se vivesse só, ou apenas no seio de sua família, mas a sociedade é natural. E “se não existisse nenhuma forma de poder, cada qual agiria de acordo com o seu interesse particular, sendo de considerar que o interesse particular não coincide necessariamente com o bem comum, e até muitas vezes se lhe opõe” (CALAFATE, 2001, p. 577). Mesmo uma sociedade de anjos pressupõe algum poder de mando, a fim de que haja ordem no agrupamento. O princípio diretivo do poder revela-se natural; apenas a sua porção coercitiva se deve à recalcitrância humana e ao pecado. Cabe observar que a palavra “sociedade” se mostra, por si, ambígua. Suárez distingue, como também Santo Tomás, a sociedade perfeita ou civil da imperfeita ou doméstica. A família corresponde à sociedade “mais natural” ou “puramente natural” e resulta das relações entre marido e mulher, pais e filhos, e, até mesmo, escravos e senhores. Ela consiste na sociedade natural por excelência, depende imediatamente do instinto natural inerente ao homem. Por isso, a família – embora sem o cotejo de algumas instituições como a escravidão e o serviço doméstico, as quais se desenvolveram depois do pecado original – já existia no estado de inocência. Entretanto, essa primeira comunidade humana chama-se imperfeita em relação à comunidade política, pois não se basta a si mesma. Nela, os homens não podem satisfazer todos os seus interesses e aspirações. Mesmo a satisfação das necessidades naturais, como a procriação, encontram-se bastante limitadas (DL. III, 1, 3). Existe, em Suárez, assim como nos escritores políticos modernos, um momento anterior à formação do Estado que o autor denomina de “estado de inocência”. O jurista português Diogo Freitas do Amaral (1994, p. 13) promove uma comparação interessante entre este e o estado de natureza hobbesiano e salienta três semelhanças: a liberdade natural, a ausência de poder político e a necessidade de um ato voluntário para a constituição do estado civil7. Há, no entanto, uma diferença fundamental: Suárez está preocupado com a salvação das almas, não com a legitimação do poder político. O estado de inocência suareziano desempenha uma função bastante diversa da do estado de natureza hobbesiano. O estado de inocência não constitui uma situação histórica, ou um momento ideal, 7 Embora este texto discorde da correspondência entre os dois termos, parece possível que o próprio Hobbes tivesse desejado fazer uma analogia com as categorias políticas escolásticas. É conhecida a fina ironia do filósofo de Malmesbury. Também as alusões que esse autor faz à Bíblia, como o monstro Leviatã, e à Teologia são diversas. Importa ressaltar que, embora o estado de natureza não cesse com a graça divina propriamente, ele finda com outra manifestação também divina, mas de um “deus mortal”, o Estado.

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anterior ao Estado, mas um estado que antecede o pecado original. E a expressão não se contrapõe a “estado civil”, como o estado de natureza, mas a “estado de corrupção”. O estado de inocência representa um tempo idílico, no qual os homens viviam tal como os animais: apenas para satisfazer os instintos básicos. Ele precede tanto o pecado original, como a posterior redenção por meio da infusão da graça divina. Não há Estado, porque não há poder coercitivo, porque não há pecado. Além disso, trata-se de um estado social. Em Suárez, nunca houve um momento pré-social, no qual os homens vivessem como indivíduos isolados. O homem nasce e, por sua própria essência, vive com seus semelhantes. No estado de inocência, o homem realizava a sua sociabilidade apenas na família. Após a corrupção, agrega-se à família o trabalho escravo e a servidão. Há, portanto, três relações: a do marido e da mulher, a dos pais e dos filhos e a dos senhores e dos escravos. As duas primeiras correspondem a necessidades naturais: a procriação e a sobrevivência e a educação da prole. Com o pecado, acrescenta-se o trabalho escravo e o servil para auxiliar na própria economia doméstica. Dessa forma, o pecado em si mesmo nada faz para incrementar as relações sociais além dos limites da sociedade familiar. No entanto, a família não contém em si mesma todos os serviços e ofícios necessários para a vida humana. Tampouco permite ao homem buscar aquela sua finalidade própria e racional: conhecer a Deus. É preciso que diversas famílias se reúnam em, ao menos, uma cidade ou numa agremiação ainda maior, um reino. Ademais, se todas as famílias estivessem divididas, poderia conservar-se apenas a paz entre os homens, mas não se poderia nem rechaçar nem punir as injustiças de forma ordenada (DL. III, 1, 3). Por esse motivo, a comunidade política e perfeita também decorre de uma necessidade natural, ainda que exclusiva do ser racional. Mesmo que os homens tivessem permanecido no estado de inocência, não deixariam de agrupar-se em comunidades perfeitas, mas não utilizariam o poder coercitivo. Em outras palavras, o Estado é uma prescrição de direito natural (DL. III, 1, 12). Até o momento, Suárez permanece fiel ao legado aristotélico: o appetitus societatis do homem o impele para a constituição do Estado. O autor não aceita a ideia de um estado de natureza em que os homens vivessem more bestiarum, nem lhe agrada explicar a criação da vida social pela degeneração das qualidades humanas e a consequente necessidade de remediar essa indigência. Suárez não pensa como Hobbes. Antes da formação das comunidades políticas, houve uma situação

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transitória em que existiam apenas famílias. Contudo, mesmo que o homem não houvesse conhecido o pecado, as sociedades familiares deveriam integrar-se em agrupamentos políticos perfeitos. Exceção feita ao poder de coação, o Estado. Não representa um remédio para a natureza corrupta do homem, um processo a que este tenha recorrido para se defender dos perigos do primitivo estado de natureza, mas sim um estado eminentemente natural, que convém ao homem em quaisquer circunstâncias e é uma condição imprescindível de sua perfectibilidade (MERÊA, 2004, p. 125). Esta concepção da autoridade política e da lei como necessidades naturais do homem constitui uma afronta às ideias políticas dos reformadores. Para escritores protestantes, havia um verdadeiro hiato entre Deus e o homem. Nessa lacuna, não existiriam institutos humanos, os quais seriam capazes de fornecer um fundamento racional para a moralidade humana. Somente a fé poderia cruzar o abismo entre Deus e a humanidade. Suárez, por sua vez, comunga de uma visão mais otimista. O Deus suareziano está mais próximo. A vida social e a autoridade política não correspondem a meios para compensar a degeneração; ao contrário, são um passo na caminhada para a realização humana. O pecado original apenas dificulta alcançar a perfeição neste e em outros aspectos da existência moral, mas não impossibilita (HAAKONSSEN, 1996, p. 18-25). Mesmo no De Legibus, antes de se inserir na polêmica, Suárez expõe uma teoria que, cedo ou tarde, iria sofrer repúdio pelos reformadores. Ao demonstrar que o Estado consiste num preceito natural, Suárez consegue responder parte da pergunta inicial “se os homens possuem poder de mando sobre outros homens?”. Por ser de direito natural, essa prerrogativa é legítima. Resta ainda investigar como se constituiu esse poder; em outras palavras, resta saber quem deve mandar e quem deve obedecer. Ainda que os escolásticos não acreditassem numa igualdade de fato entre os homens, em vista da igual paternidade divina, tampouco aceitavam alguma desigualdade substancial. Não se trata propriamente de uma igualdade jurídica, mas teológica. Mesmo assim, em face dessa igualdade, revela-se perturbador constatar que determinados homens mandam, e outros obedecem. Mostrar a necessidade do Estado não equivale a afirmar a sua criação. Nem sempre as necessidades são satisfeitas. É aqui que Suárez se afasta da tradição. Embora a família constitua a base indispensável da comunidade política, esta não representa um alargamento ou uma derivação daquela. O autor repele a teoria do patriarcado: o poder do pai difere, em essência, não apenas no número de pessoas que devem obedi-

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ência, do poder do príncipe. Mesmo Adão, o primeiro homem, possuiu apenas o poder doméstico, não o político (DL. III, 2, 3). A natureza pode impelir o homem para a criação do Estado, mas a causa imediata deste reside no próprio homem: a sua vontade. Os homens devem reunir-se e celebrar um pacto. Embora com colorações bastante diversas, em Suárez, já há uma doutrina do contrato social: “de outro modo, pois, pode ser considerada a multidão humana: por uma vontade específica ou um consentimento geral, ela se congrega num corpo político” (DL. III, 2, 4). Ou ainda: “Por esta razão, disse anteriormente que o poder do rei se funda num contrato ou quasi contrato” (SUÁREZ, 1613, III, 2, 20, grifo nosso. Defensio Fidei Catholicae et Apostolicae adversus Anglicanae sectae errores, cum responsione ad Apologiam pro Iuramento Fidelitatis et Praefationem Monitoriam Serenissimi Iacobi Angliae Regis. Conimbricae: Didacum Gomez de Loureyro [doravante DF])8. A palavra “pacto” permeia todo o livro III do De Legibus, bem como a Defensio Fidei. Apesar das referências expressas ao termo, o contratualismo suareziano guarda profundas diferenças com o dos contratualistas ingleses. Na concepção de Suárez, a liberdade dos homens não é um ato ex nihilo, mas uma deliberação racional que aperfeiçoa uma pulsão natural. A vontade humana constitui a causa imediata para o poder político, mas a decisão não é tomada sem a intervenção de qualquer a priori. Não há uma anarquia moral que precisa de uma redenção puramente da vontade humana. Em Suárez, a razão humana ratifica o impulso de verdadeiras estruturas morais naturais que impele o ser humano para o Estado. O homem no estado pré-político não é considerado em abstrato, desenraizado de um contexto social. Por esse motivo, Rommen (1951, p. 114) prefere o termo consensus em vez de um acordo. O Estado resulta da colaboração entre a natureza e a liberdade. A jusfilósofa Teresa Rinaldi (2001, p. 194) salienta que, em Francisco de Vitória, já existia a ideia de que o poder político seria formado pelo consenso dos homens. Mas o consenso nos dois autores difere. Falta a Vitória a dimensão voluntarista de Suárez. Naquele, o consenso é uma consequência natural da vida comunitária. O poder civil constitui-se de maneira consuetudinária, não mediante um liame formal expresso num ato único, mas todos os dias, por meio de pequenas resignações. Em Suárez, a autoridade provém da natureza, mas a sua instituição do engenho humano. Em Vitória, tanto a autoridade em si mesma como a sua instituição possuem um fundamento natural. 8 “Alio ergo modo consideranda est hominum multitudo, quatenus speciali voluntate, seu communi consensu in unum corpus politicum congregatur” e “Et ideo supra dixi potestatem regiam fundari in contractu vel quasi contractu”.

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A origem popular da soberania

Todavia, para que um contrato social possa fundar a autoridade do soberano, deve pressupor-se a origem popular do poder, não a divina. O teólogo granadino precisa, portanto, contornar a famosa afirmação de São Paulo, na Epístola aos Romanos (XIII,1): “não há autoridade que não provenha de Deus (non est enim potestas nisi a Deo).” A origem divina do poder representava um axioma comum e em si mesmo indiscutível. Mas a afirmativa do apóstolo respondia apenas à origem do poder em termos abstratos; já em concreto, impunha-se determinar como o poder foi transmitido aos chefes seculares. Cabe sublinhar que, no quadro da cultura cristã, delimitavam-se duas hipóteses: ou o poder seria transmitido diretamente por Deus ao soberano – como se lê na Bíblia no caso de Saul e de Davi –, ou por meio de um mediador. Jaime I defendia a primeira possibilidade, pois o retirava da subordinação tanto temporal como espiritual do papa. Suárez aceita a transmissão imediata do poder de Saul e Davi, mas considera este um caso extraordinário e sobrenatural. Normalmente, Deus age atrás da natureza: “segundo a providência geral e ordinária, não se transmite desse modo, porque os homens, consoante a ordem da natureza nas coisas civis, não se regem por revelações, mas pela razão natural”. Na Defensio Fidei, Suárez chega até mesmo a questionar a validade desta transmissão em tela, pois advoga que Deus teria somente escolhido a pessoa para rei, mas a eleição coube ao povo (DF. III, 3, 5-10)9. Uma vez excluída a primeira possibilidade, resta a da mediação. Como um bom homem religioso, Suárez aceita a validade da frase de São Paulo. Todo o poder, em abstrato, provém de Deus, mas Ele o conferiu posteriormente aos homens. E há duas maneiras pelas quais isso pode acontecer, o que acaba por gerar dois mediadores. “Primeiro, [Deus] confere um poder que, por essência, está necessariamente unido à natureza da coisa, a qual foi criada pelo mesmo Deus”. Aqui, o poder decorre da própria coisa, e Deus apresenta-se como o primeiro titular desse poder na medida em que criou a coisa. Deus dá imediatamente o poder não por uma ação especial, mas como autor da natureza. É o caso da autoridade do pai sobre o filho: a cessão deste poder ocorre com a paternidade. A outorga do poder e a criação da coisa originam-se de um só ato. “No outro modo, Deus confere imediatamente por si mesmo (por assim dizer) e mediante uma doação especial, um poder que não está 9 Vide também esta frase de DL. III, 4, 2: “(...) iuxta communem autem, et ordinariam providentiam non ita sit, quia homines iuxta naturae ordinem non revelationibus, sed naturali ratione regulatur in his, quae civilia sunt”.

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necessariamente vinculado à criação de um ser, mas Deus o confere, de forma tanto livre como aditiva, a uma natureza ou pessoa” (DF. III, 2, 3)10. Trata-se de uma outorga direta que Deus realiza para além natureza. Foi o que ocorreu quando Jesus Cristo confiou o governo da Igreja a São Pedro. Na primeira forma, o poder procede do direito natural; na segunda, do direito divino positivo. Portanto, os dois mediadores possíveis seriam o papa e a própria comunidade. A seguir, ver-se-á os motivos pelos quais Suárez exclui o sucessor de Pedro dessa qualidade. Para o autor, a autoridade política foi conferida por Deus aos homens no próprio momento da criação. Esta consiste na transferência primeira, os homens podem fazer o que desejarem desse poder depois. Porém, este poder não reside em cada homem individualmente considerado. Deus não concedeu a autoridade a nenhum homem em particular, nem a fracionou e distribuiu para cada ser humano. A autoridade só surge quando os homens se reúnem, não como uma simples multidão inorgânica, sem qualquer ordem ou laços físicos e morais. De outro modo, pois, pode ser considerada a multidão humana: por uma vontade específica ou um consentimento geral, ela se congrega num corpo político com um vínculo de sociedade e para ajudar-se mutuamente com vistas a um fim político, da mesma maneira que formam um corpo místico que moralmente pode chamar-se uno por sua natureza; este corpo, em consequência, tem necessidade de uma cabeça (DL. III, 2, 4)11. Somente quando os homens se agrupam de maneira ordenada, com propósitos (políticos) definidos, surge a autoridade como um predicado natural. O corpo místico consiste num verdadeiro organismo, não biológico, mas moral. Trata-se de um todo distinto da soma de suas partes, porque é qualificado pela autoridade. E, para conseguir os fins propostos, ele necessita de uma cabeça. Suposta, da parte de um grupo de homens, a vontade de se reunir em sociedade, a sujeição a um poder político consiste num corolário natural. A natureza, porém, pressupõe o concurso das vontades humanas. E é então que neste corpo místico vai ocorrer o pacto. Uma vez que a liberdade natural constitui um preceito de direito natural dominativo, ela pode ser alienada pelos homens para um ou mais indivíduos. Suárez retoma a tradicional tripartição das formas de governo em monarquia, 10 “Unus modus est dando potestatem, ut ex natura rei necessario connexam cum aliqua natura quam Deus ipse condit” e “Alio modo datur a Deo immediate potestas per se (ut ita dicam) et peculiari donatione, non ut necessario connexa cum alicuius rei creatione, sed ut voluntarie a Deo superaddita alicui naturae vel personae”. 11 “Alio ergo modo consideranda est hominum multitudo, quatenus speciali voluntate, seu communi consensu in unum corpus politicum congregatur uno societatis vinculo, et ut mutuo seiuvent in ordine ad unum finem politicum, quomodo efficiunt unum corpus mysticum, quod moraliter dici potest per se unum: illudque consequenter indiget uno capite”.

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aristocracia, e democracia, nas suas formas puras ou corrompidas, e as modalidades de governo misto. Embora ele prefira a monarquia, o direito natural não prescreve nenhum tipo em especial. A escolha vai depender do conteúdo do pacto; todas as formas de governo pertencem ao direito positivo (DF. III, 2, 7). A única exceção é a democracia. Ela poderia existir sem qualquer instituição positiva, apenas como resultado da sociabilidade natural (DF. III, 2, 8). Entretanto, ela não representa um mandamento da natureza, somente uma permissão. O direito natural não obriga a comunidade a conservar o poder de que se acha investida; em face das circunstâncias históricas e culturais, outra orientação política pode tornar-se mais aconselhável. Por isso, os homens podem escolher a forma de governo que lhes convier. Mas, perceba-se que, à diferença da teoria política moderna, não são os indivíduos que alienam os seus direitos naturais a um soberano, mas a comunidade como um todo. A autoridade constitui um predicado natural da multidão organizada, não dos homens singulares. Por causa do contrato, nenhum regime apresenta-se essencialmente mau. Em princípio, todos podem ser bons e úteis. Faz-se mister tão somente que o titular ou titulares do poder público tenham recebido este da comunidade (DL. III, 4, 1-2). A legitimidade do soberano encontra-se condicionada pelo que for disposto no acordo. Apesar de constituir um pacto de sujeição – o povo “aliena” de forma irrevogável o poder –, a comunidade pode inserir limites à autoridade do soberano. Assim, podem ou não existir constrangimentos até mesmo de direito positivo ao poder. Cabe observar que, à época de Suárez, vigia uma doutrina jurídica de poder político segundo a qual este pertencia à pessoa (ou às pessoas) do soberano, não ao Estado em si. Trata- se da teoria do Estado-objeto. O pacto, pois, não corresponde propriamente a um justo título de formação do Estado, mas à pertença da autoridade política por parte de determinado homem ou homens. Não obstante, esta potestas não sofre a menor comparação com o domínio de direito privado. “Acrescente-se que o reino não é comparável com outros bens ou com a administração do dote, porque ele é como um ofício da qual é incumbida a mesma pessoa a quem é conferido, e sua razão de ser não é tanto esta pessoa, mas aqueles que devem ser governados” (DL. III, 9, 12)12. Suárez perfilha, portanto, de uma concepção já difundida na Antiguidade e que mereceu da Igreja um favorável acolhimento: regnum non est propter regem, sed rex 12 “Accedit, quod in hoc non est comparandum regnum cum aliis bonis, seu cum administratione dotis, quia regnum est veluti quodam officium, quod incumbit propriae personae, cui confertur, et non tam est propter ipsam, quam propter eos, qui regen di sunt”.

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propter regnum. Para o autor, este é um critério seguro para distinguir o tirano do verdadeiro rei. O simples fato de emanarem do poder soberano não torna as leis humanas legítimas e respeitáveis. Deve observar-se o seu valor intrínseco: a sua conformidade com o direito natural e o bem comum e com as condições do pacto (MERÊA, 2004, p. 135). Além do contrato, existem outros títulos legítimos de poder político. A sucessão hereditária consiste num modo derivado, pois os sucessores recebem o poder do povo indiretamente. A guerra e a posterior conquista territorial também podem aumentar o tamanho de um Estado. No caso de uma guerra justa, o título revela-se legítimo ab initio; já quando se tratar de uma guerra injusta, pode ocorrer de o povo, com o passar do tempo, dar o seu consentimento e admitir a soberania do conquistador. Dessa maneira, a prescrição pode justificar a pretensão ao poder (DL. III, 4, 3-4 e DF. III, 2, 20). Dessa feita, Suárez já pode responder a pergunta inicial (se os homens podem mandar em outros homens?) na íntegra. Trata-se de uma afirmativa, porque os próprios homens acordaram dessa maneira. A autoridade em abstrato encontra-se em Deus e, em concreto, no povo, que pode fazer dela o que bem entender. A doutrina do tiranicídio

A outra opção possível de mediador seria o Sumo Pontífice. São Pedro recebeu seu poder diretamente de Jesus Cristo, e os seus sucessores, ainda que eleitos por um conselho, também recebem a sua autoridade de Deus. O ato humano, a eleição, constitui a causa próxima para que Deus, a causa principal, outorgue o seu poder. Embora a Igreja em si mesma forme uma comunidade, o poder não foi transferido por Deus para ela como um todo, mas somente ao seu chefe (DF. III, 3, 13). Porém, além de comandar a Igreja, poderia o papa governar todos os reinos, ou, ao menos, todos os reinos cristãos? Tratava-se de uma teoria muito difundida segundo a qual o papa conservaria o poder in habitu, e os príncipes cristãos reinariam como delegados desta autoridade central. Suárez demonstra o seu realismo ao constatar que essa delegação nunca existiu, pois não poderia ser desfeita. Todavia, a oposição de Suárez é mais profunda. Esta tese só poderia ser válida se, no decreto de doação a São Pedro, Jesus Cristo desejasse abranger todos os reinos. E o teólogo granadino lembra que a promessa era que Deus daria “as chaves do reino dos céus”, mas nada afirmou sobre as da terra. Ademais, o próprio Cristo sempre confirmou que o seu reino não era deste mundo. Portanto, a jurisdição do Pontífice restringe-se somente à Igreja (DF. III, 5, 14-15). 202

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Suárez concebe esta limitação à autoridade do Sumo Pontífice e, em consequência, de toda a Igreja, porque promove uma distinção bastante radical entre o poder temporal e o espiritual. Ao citar o papa Nicolau, numa carta ao arcebispo Albino, o Doutor Exímio lembra que a “Santa Igreja de Deus não tem outra espada fora a espiritual” (DF. III, 8, 9)13. Conclui que, mesmo nos Estados cristãos, ainda que integrem um só corpo místico e espiritual da Igreja, em virtude do direito natural, em toda a comunidade da Igreja, não existe imediatamente uma suprema jurisdição temporal e universal sobre toda a Igreja, mas existem tantas supremas jurisdições temporais quantas forem as comunidades políticas que não formam parte de um reino ou de um Estado. (DF. III, 5, 11)14

Em toda a Defensio Fidei, Suárez ressalta, de maneira expressa, que o poder espiritual pertence ao papa, e o temporal aos príncipes. O autor havia abandonado a ideia dos dois gládios da Igreja e, já no início do século XVII, acentua a diferença entre a jurisdição temporal e a espiritual. Não se pode inferir disso que o jurista de Coimbra estivesse a advogar a separação entre Igreja e Estado, mas ele conhecia sim a diferença entre o domínio político, essencialmente humano e terreno, e o religioso, que se apresenta divino e sobrenatural. Embora a concepção de um Estado laico pareça ainda estranha a Suárez, por sua vez, a noção de secularismo lhe é familiar. Suárez revela-se tão consequente com a distinção entre os domínios temporal e espiritual que se cristãos se encontrarem sob o jugo de um príncipe pagão, desde que não seja um tirano, não poderiam rebelar-se (DF. III, 4, 2). Ainda havia uma hipótese em que o papa pudesse exercer a jurisdição temporal sobre os reinos e os principados: se ele houvesse recebido do imperador. No primeiro caso, Suárez rechaça a ideia de um decreto de doação de direito divino positivo; agora, ele aborda um problema de direito humano positivo. Trata-se de uma variação da tese do monismo imperial segundo a qual o papa, não o imperador, exerceria a jurisdição sobre todos os cristãos. Para Suárez, não havia nada mais anacrônico.

13 “Sancta Dei Ecclesia gladium non habet, nisi spiritualem”. 14 “(...) ex vi iuris naturalis non est in tota communitate Ecclesia immediate uma suprema iurisdictio temporalis et universalis super totam Ecclesia, sed tot sunt iurisdictiones temporales supremae, quot sunt politicae communitates, quae non sunt membra unius regni seu reipublicae civilis”.

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Sucedeu-se que o mesmo império romano foi dividido em oriental e ocidental; ademais, o império ocidental (somente este ficou em poder dos cristãos, depois de o oriental ter sido conquistado pelos pagãos), ainda que se conserve, no que tange à sua dignidade, em uma só pessoa, a sua jurisdição foi repartida entre muitos príncipes e reis. E, embora alguns destes se encontrem submetidos ao imperador, os demais estão legitimamente isentos por direitos de prescrição, aos quais se acrescem, ao mesmo tempo, o consentimento dos povos, ou o título oriundo da guerra justa. Portanto, supomos agora que, além do imperador, há vários reis temporais completamente independentes de sua jurisdição, como são os reis de Espanha, França e Inglaterra. (DF. III, 5, 7)15

A concepção de império universal não fazia mais sentido à época de Suárez. Então, a doação do reino de Roma realizada pelo imperador Constantino ao Sumo Pontífice implica, no máximo, jurisdição sobre as cidades deste patrimônio, nunca sobre todos os cristãos (DF. III, 5, 13). Como observa Rommen (1951, p. 394), a ideia de unitarismo imperial sob a pessoa do papa encerrava em si mesma os gérmenes de sua destruição. Ao subtrair da figura do imperador tanto a sua independência última do papado como a sua legitimação divina face aos príncipes territoriais, perdeu ele a sua influência política. E, em tempos de Reforma, com a estruturação das igrejas nacionais, o título divino de legitimidade exclusivo do pontífice não mais convencia. Até o momento, Suárez não parece poder contraditar os interesses do rei da Inglaterra. A sua teoria, de um lado, prescreve o conformismo político, pois a transferência do poder do povo para o rei consiste num pacto de sujeição: houve uma verdadeira alienação. De outro, Suárez retira o poder temporal do papa, a única figura que poderia opor-se às pretensões do monarca inglês. Ademais, a conjuntura histórica e cultural que circundava o Doutor Exímio se mostrava pouco propícia para desenvolver teorias sobre a desobediência civil. Durante a segunda metade do século XVI – boa parte da vida de Suárez –, a guerra interna foi, nos países que passaram pela Reforma, em especial na França, o estado normal. Nessa época de atribulações religiosas e políticas, desenvolveu-se uma célebre literatura que fazia apologia aos direitos populares em detrimento do poder real, quando não legitimava a deposição ou, até mesmo, a execução do rei. 15 “Accedit illum ipsum romanum imperium in orientale et occidentale fuisse divisum, et deinde occidentale imperium (quod solum in christianis permansit, orientali a paganis occupato), licet quoad dignitatem in una persona duret, quoad iurisdictionem in multos principes et reges divisum esse. Ex quibus licet aliqui sint imperatori suiecti, plures censentur legitime exempti, iure praescriptionis, accedente simul populorum consensu vel titulo iusti belli. Ac proinde praeter imperatorem plures esse reges temporales ab illus iurisdictione omnino líberos, ut sunt rex Hispaniae, Galliae et Angliae, nunc supponimus”.

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Tratava-se dos “Monarcômanos”, segundo a designação de seu adversário William Barclay. Em Espanha, contudo, as condições eram outras. O fundo conservador e crente da população, avigorado pelo Santo Ofício, punham o país a coberto das turbulências políticas. À acentuada fé católica do rei, respondia num coro uníssono os sentimentos da nação. Causa estranheza, pois, o fato de o jesuíta João de Mariana, pouco mais velho do que Suárez, de temperamento exaltado, formular no De Rege – o qual, parece ironia, é dedicado ao monarca – a doutrina do tiranicídio. Esta obra, como era de se esperar, não foi bem recebida, nem mesmo pelos seus colegas da Companhia de Jesus (MERÊA, 2004, pp. 120-122). Mesmo assim, o Doutor Exímio a conhecia e, se ela não parecia válida ao contexto espanhol, poderia aplicar-se em outras paragens em que o soberano não fosse tão bem quisto. A doutrina do tiranicídio, pois, não se tratava de uma novidade, mas parecia excêntrica ao pensamento suareziano. Contudo, mesmo sem abrir mão da diferença entre poder temporal e espiritual – ou talvez porque não abriu mão dessa distinção –, Suárez pôde introduzir esta concepção. Aquele que detém a autoridade soberana – “suprema” no original latino –, para o autor, implica a negação de qualquer outra autoridade humana superior. Esta não submissão pode ser absoluta, quando não reconhece nenhum poder mais alto tanto em matéria temporal como espiritual, ou relativa somente a questões temporais (DF. III, 5, 1). Esta última corresponde ao grau de soberania dos príncipes temporais, uma vez que o papa também exerceria uma soberania espiritual. Pode ocorrer de um príncipe legislar em questões espirituais ou materiais conexas a questões espirituais. Neste caso, em virtude da soberania espiritual do papa (bem como da subordinação da felicidade temporal e política à espiritual e eterna), aquele soberano temporal encontra-se submetido, de modo indireto, à autoridade pontifical (DF. III, 5, 2). Já começa a se delinear o contra-ataque a Jaime I; trata-se da teoria do poder indireto do Sumo Pontífice. E a prova da validade dessa tese revela tanto o realismo, como a coerência teológica de Suárez: se, ao papa, Deus houvesse conferido autoridade nas questões políticas, este poder seria imperfeito porquanto ineficaz, e nada imperfeito pode provir de Deus (SCOTT, 1934, p. 268). E essa ingerência pontifical encontra-se muito bem delimitada. Não cabe ao arbítrio do Sumo Pontífice determinar os casos em que o soberano excedeu os limites de seu poder. As situações já são dadas a priori. Para explicar isso, Suárez distingue duas classes de tiranos: tirania quoad titulum e tirania quoad administratrionem. Na primeira forma, o ti-

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rano não corresponde propriamente ao soberano, pois usurpou o posto. No segundo modo, ainda que o príncipe ocupe o trono por justo título, ele reina de maneira tirânica. Isto, para Suárez, equivale a dizer que o soberano exerce o poder para benefício próprio em detrimento do bem comum: “[o tirano] oprime a seus súditos injustamente, espoliando, matando, pervertendo e perpetrando contra eles, em público, outras injustiças similares” (DF. VI, 4, 1)16. A tirania pode configurar-se primeiro por inobservância às condições estabelecidas no pacto – as quais eram chamadas de “lei régia”, à época de Suárez. Mas estas ressalvas precisam constar de forma expressa. Segundo, por desrespeito ao direito natural, que persiste na comunidade perfeita. De modo diverso ao que ocorre com o contrato hobbesiano, os homens não alienam a sua faculdade de interpretação da lei natural. Revela-se sugestivo em Hobbes (2002, p. 112) o fato de, no estado civil, as leis naturais permanecerem em vigor, mas somente o soberano possui a competência para interpretá-las. O homicídio, por exemplo, continua proscrito, mas cabe ao soberano definir o homicídio17. Essa diferença ocorre porque o direito natural em Hobbes, e nos modernos de um modo geral, funda-se em sentimentos ou pulsões do próprio homem, ou baseia-se num fato da ordem do ser, não num dever ser. Em virtude da lei natural, em Suárez – embora desvelada pela razão humana – proceder da vontade divina, ela não pode ser invalidada por qualquer ato humano e possui um fundamento objetivo, o qual prescinde da interpretação humana para existir. Nenhum fato da ordem do ser, nem mesmo a razão, cria a lei, somente a vontade. E, no que tange ao direito natural, trata-se da vontade mais suprema. Para lidar com a tirania, existem ainda diversos graus de desobediência civil anteriores ao regicídio. O jurista de Coimbra, em princípio, abomina qualquer forma de resistência a uma ordem do soberano. O autor revela-se um conformista. Se a injustiça do comando for leve, ele ainda aconselha o cumprimento em prol da ordem e do bem comum que seriam maculados com a insubordinação. No entanto, quando o próprio bem comum se encontrar em risco por causa de uma lei injusta, até mesmo se torna obrigatório a desobediência por parte dos súditos, pois não se trata de uma verdadeira lei (DL. III, 10, 7). Ainda assim, a ação do povo, até o momento, insere-se no plano da resistência passiva.

16 “(...) subditos iniuste affligit, spoliando, occidendo, pervertendo vel alia similia publice et frequenter iniuste perpetrando”. 17 “O roubo, o assassínio e todas as injúrias são proibidas pela lei de natureza; mas o que há de se chamar roubo, assassínio, adultério ou injúria a um cidadão não se determinará pela lei natural, porém pela civil”.

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Tudo se torna diferente no caso de um usurpador. Suárez menciona a deposição de maneira explícita. Não é o rei de direito, é inimigo do reino e encontra-se virtualmente em guerra com ele. Qualquer membro do Estado – e até um estranho – pode defender a comunidade até a morte. Faz-se necessário apenas que não haja um superior a quem recorrer, que o título seja notoriamente injusto, que não haja outro meio menos extremo para libertar o Estado, que não haja pacto ou tréguas com o povo, que o regicídio não venha a provocar maiores males, e que o povo – reunido em sociedade perfeita – não se oponha de modo expresso (DF. VI, 4, 7-11). Não obstante, entre as duas modalidades de tirania, Suárez prefere abordar aquela que, apesar do justo título, tornou-se ilegítima por causa do exercício, pois ela se ajusta melhor ao caso do rei inglês. O raciocínio parece simples. Se a comunidade perfeita transferiu o poder ao rei, foi mediante a condição deste não governar tiranicamente; portanto, se ele se tornar um tirano, a comunidade poderia retomar a sua autoridade inicial de forma justa. Pelo princípio da legítima defesa, o Estado poderia, para a sua conservação, insurgir-se, derrubar o tirano e, até mesmo, se não houver outro jeito para a sua defesa, condená-lo à morte. Todavia, o autor recorda que o Concílio de Constança condenou aqueles que atentam contra a vida do tirano por sua própria e privada autoridade. Cumpre ressaltar que este concílio ocorreu em 1415; ele antecede em mais de um século o cisma. A condenação dirigia-se à doutrina proposta por Wycliffe e John Huss, segundo a qual os senhores do mundo perderiam o seu domínio automaticamente por qualquer pecado mortal e poderiam ser castigados pelos seus súditos. O Concílio em nada se relaciona com a Reforma protestante. Mas Suárez, como um bom teólogo, não pode afrontá-lo. De fato, nenhum homem pode tirar a vida de seu rei por vários motivos: primeiro, porque punir e rechaçar as injúrias são prerrogativas daquele a quem se confia o bem comum; segundo, porque o poder coercitivo pertence somente ao soberano; terceiro, porque este tipo de ato provocaria tumulto dentro do Estado. Se um particular não pode matar outro particular, mesmo que este tenha cometido um crime, que dirá assassinar o rei, ainda que tirano (DF. VI, 4, 3-4). O problema resume-se à autoridade privada. Nenhum homem pode, por sua própria autoridade assassinar o tirano, pois o poder reside no povo, reunido num corpo místico, não nos homens individuais. Quando o rei se torna um tirano, o poder retorna à comunidade, não aos indivíduos isolados. Dessa feita, o corpo moral precisa constituir-se novamente, e a sentença ao tirano deve provir não de um indivíduo, mas de um conselho público de todas as cidades e procuradores. Neste instante, pode recorrer-se ao papa. O Estado pode reunir-se nesta espécie 207

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de assembleia pública sempre que as necessidades de sua conservação se impuserem. Mas, no caso especial de leis injustas sobre matérias espirituais ou conexas, a autoridade do Sumo Pontífice pode e deve ser ouvida (DF. VI, 4, 15). Trata-se da substituição de uma autoridade pública (a comunidade) por outra (o papa). Suárez, entretanto, não chega ao extremo de aplaudir a atitude de Sêneca que, sob as ordens do imperador tirano, aceita se matar. A proibição ao regicídio não impede a legítima defesa. O súdito, porém, não pode recorrer à violência se o valor em perigo for um bem material. Só a defesa da vida justifica a morte do tirano. Porque “o direito a proteger a própria vida está acima de tudo e, neste momento, a necessidade que move o soberano não é tão imperiosa a ponto de obrigar o súdito a sacrificar sua vida por ele; ao contrário, em vez disso, o soberano coloca-se ele mesmo em situação de risco” (DF. VI, 4, 5)18. Mesmo que o pacto preveja a sujeição absoluta dos súditos, sem qualquer reserva, inclusive sobre o direito à vida, Suárez admite a legítima defesa individual. Cumpre salientar que, à época do autor, os castigos corporais e a pena de morte representavam expedientes corriqueiros e eram considerados legítimos. Deve sublinhar-se, portanto, que Suárez não está advogando a abolição da pena de morte. A explicação possível reside no próprio pacto: ele foi estabelecido pela comunidade como um todo, reunida num corpo moral, não por cada indivíduo. A comunidade, conforme as circunstâncias culturais e históricas, decide aceitar ou não a aflição de castigos corporais e da pena de morte para manter a paz interna (o que constitui um requisito para o bem comum). Se houver reservas a isso, elas devem constar de forma expressa no pacto. Todavia, mesmo na ausência delas, foi a comunidade, não cada pessoa, que acordou a pena de morte. Mas uma pessoa em particular, destacada da convivência comunal, possui o direito a defender sua vida. O direito à legítima defesa revela-se a única exceção que alguém, movido por autoridade própria e privada, pode assassinar o rei. Ainda assim, Suárez adverte que este caso não deve estender-se a todas as situações, sempre. Se a morte do soberano trouxer à sociedade tamanhos distúrbios que possam lesionar o bem comum, o amor à pátria deve impedir o indivíduo de matar o príncipe, ainda que isso ponha a sua vida em risco. O teólogo granadino lembra, contudo, que esta obrigação foge ao escopo do Direito e se insere na ordem da caridade (DF. VI, 4, 5).

18 “(...) ius tuendae vitae est maximum, et tunc princeps non est in necessitate, quae obliget subditum ad vitam pro illo perdendam, sed ipse voluntarie et inique in illo discrimine constituit”.

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Assim, a desobediência civil – e o tiranicídio, na sua forma mais extrema – apresenta- se possível somente porque, apesar do pacto consistir numa alienação, o primeiro titular é o povo, e há formas deste reaver o seu poder original. Conclusão

Indubitavelmente, Suárez encontrava-se imerso na cultura católica, ibérica, aristotélica e tomista. Entretanto, esta tradição não era uma camisa de força e lhe permitiu lidar com as questões do seu tempo: a Reforma, a legitimidade do poder do Estado, o direito popular de resistência política, o direito internacional e o realismo político e o cinismo de um Maquiavel. Ao escrever no início do século XVII, Suárez consegue abraçar toda a tradição política medieval. Mas os problemas do seu tempo já eram outros. Ele viveu um período de transição de um mundo medieval e teocêntrico para outro moderno e secular; viu o desenrolar das últimas guerras de religião para um sistema internacional baseado na raison d’état e no equilíbrio do poder; sentiu o anacronismo das justificativas nostálgicas sobre o poder difuso da Respublica Christiana em descompasso com a consolidação dos Estados nacionais. Suárez é, portanto, um homem de transição. Mas Suárez não é só isso. Ele possui a originalidade dos liberais britânicos e a sutileza dos escolásticos; e essa combinação gera um diferente tipo de pensamento. Ele não se limitou a repetir o velho e a delinear o novo. O velho e o novo são combinados de modo a formar um sistema coerente de ideias em que se pode extrair o melhor dos dois mundos. As principais características do liberalismo clássico são os direitos naturais, o contrato social e os limites para o poder do Estado. Todos estes elementos podem ser encontrados na Defensio Fidei e no De Legibus. Francisco Suárez é o mais hispânico entre os pais do liberalismo.

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8 A essencialidade do Direito Internacional para a Teoría do Direito de Kelsen Leonam Liziero Bruna Rabêlo

Introdução

O Direito Internacional é um assunto que possui relevância fundamental para a Teoria do Direito de Kelsen, o que incorre na necessidade de considerar a ordem jurídica e a sistemática internacionais como um todo para compreender o normativismo kelseniano sem incorrer em insuficiências. Entre a Teoria do Direito proposta por Kelsen e o Direito Internacional existe uma relação que é, às vezes, controversa. Mas, essencial. A primeira questão a se pensar no Direito Internacional é uma diferença crucial na forma de reação contra uma situação considerada ruim para a sociedade, indevida ou proibida, em relação ao Direito Nacional e que, além de outros fatores, permitiu a consolidação do Estado na modernidade: a autotutela. Logo no início de A Paz pelo Direito, Kelsen (2012) esclarece que a sanção no direito primitivo era executada individualmente, uma vez que ainda era ausente a institucionalização da força. Para compreender o que é o Direito Internacional em Kelsen (e a importância para o normativismo) é preciso entender o que é a autotutela (self-help/ Selbsthilfe). Além disso, é preciso retornar suas lições sobre centralização e descentralização do monopólio da coação.

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A autotutela no Direito Internacional

Para entender a relação de essencialidade do Direito Internacional para a Teoria do Direito de Kelsen, é imprescindível estabelecer algumas considerações sobre o normativismo kelseniano que não podem ser desconsideradas para uma compreensão fidedigna. Para a atingir a finalidade da Teoria Pura do Direito, distante de qualquer forma de ideologia, Kelsen propõe que a norma seja vista sem amarras à ordens outras que não sejam o próprio ordenamento jurídico. O pensamento kelseniano não avalia a norma atribuindo condições valorativas que a qualificam positiva ou negativamente, seu exame leva em consideração a sua legalidade do ponto de vista formal, o que é suficiente para considerá-la válida. O Direito visto como um fato, não como um valor, é um fenômeno o qual o jurista deve buscar compreender como um objeto isolado, sem se envolver diretamente ou sem se deixar levar por suas concepções pré-concebidas acerca de justiça ou injustiça. Diz-se, portanto, que o Direito não se vincula à Justiça ou à Moral, conceitos constantemente mutáveis e indefinidos, no tempo e no espaço. Sobretudo, no espaço. A vigência de uma ordem jurídica afirmada pela ciência do Direito, independentemente de seu conteúdo, é baseada em um paradigma de ciência como o estudo avalorativo dos fatos. Do mesmo modo que um cientista das ciências naturais deve olhar para um objeto e estudar suas propriedades sem considerar se aquilo é bom ou mau, o jurista deve, segundo o normativismo kelseniano, observar as normas (ou ordenamento) e realizar uma atividade descritiva. Uma das principais questões do positivismo jurídico é a identificação do direito como uma ordem social caracterizada por sua coercitividade. Kelsen explica esta coercitividade do direito como o poder que uma ordem jurídica possui de estabelecer reações aos integrantes da comunidade jurídica a que ela se refere, se determinado ato praticado por um indivíduo for considerado socialmente nocivo ou contrário à conduta prescrita na norma. Neste sentido, o Direito será qualquer ordem social normativa cuja coerção socialmente organizada, institucionalizada, seja possível (KELSEN, 2006, p. 54). Uma das mais significativas distinções do Direito em relação à outras ordens sociais é seu caráter de sanção heterogênea e da eficácia de compelir condutas prescritas pela norma por meio do uso da força. No segundo capítulo de Teoria Pura do Direito é possível inicialmente pensar na questão do caráter justo ou injusto de algumas normas. Todavia, a questão aqui extrapola esta primeira impressão. En214

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tender o Direito Internacional também significa pensar na justiça ou injustiça de ordenamentos jurídicos e que, ainda que num juízo de valor sejam com considerados injustos, não perdem seu caráter jurídico por isso (KELSEN, 2006, p. 74). Feitas essas breves considerações, Kelsen considera em sua obra duas espécies de ordenamentos jurídicos, a considerar a característica de centralização: (i) ordens jurídicas centralizadas, ao se referir, de modo geral, ao Direito Nacional e; (ii) ordens jurídicas descentralizadas, a fazer referência às ordens primitivas e ao Direito Internacional. Ao tratar de ordem centralizada, a coercitividade do ordenamento é identificada de forma institucionalizada, socialmente organizada. Em ordens primitivas, regem-se pelo princípio da autotutela, como já fora brevemente relatado no início deste capítulo. Dizer que determinada sociedade é regida pelo princípio da autotutela é dizer, em linhas gerais, que a aplicação da sanção por um dever jurídico descumprido é executada por uma reação do próprio indivíduo prejudicado pelo descumprimento. Esse primeiro raciocínio se direciona aos escritos anteriores ou contemporâneos da Segunda Guerra Mundial. Haverá uma atualização disso na segunda edição de Teoria Pura do Direito, em razão das mudanças na ordem internacional, apesar de substancialmente os principais aspectos permanecerem. A ordem internacional se assemelha à ordem jurídica primitiva no sentido de não haver um órgão central responsável por aplicar e fiscalizar as normas jurídicas. É, portanto, também regido pelo princípio da autotutela. A semelhança, entretanto, não é absoluta. É necessário, para a ordem jurídica primitiva, pensar na distinção entre o ato de matar como delito e sanção. O Direito Internacional segue a mesma perspectiva, ao pensar a guerra como delito diferente da guerra como sanção. Mas, há o cuidado com a potencial impossibilidade de fazer tal distinção, na prática, que responda com exatidão se a guerra empreendida é ou não uma “guerra justa”, Kelsen (2005, p. 480) adverte essa objeção. A ideia de autotutela, em si, é dotada de peculiaridades. As sociedades primitivas, por exemplo, admitiam a vingança de sangue apenas em um senso de obrigatoriedade comum aos membros daquela comunidade (KELSEN, 2005, p. 481). Autotutela é, neste sentido de Kelsen, uma técnica de aplicação de sanções de modo individual e espontâneo por aquele que é vítima de alguma antijuridicidade. Essa forma de aplicação de sanção característica das sociedades primitivas e do Direito internacional é somente válida, portanto, se autorizada pelo ordenamento jurídico que rege a relação. Isso porque esbarra numa característica essencial do Direito: o monopólio da força (KELSEN, 2010, p. 42). 215

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Uma das características da ordem jurídica é a concentração do monopólio da força, ainda que não seja exercido de forma centralizada. Mas, falar em centralização, é falar em manutenção da segurança coletiva. Fala-se em segurança coletiva “quando os membros da comunidade jurídica são obrigados – e não apenas autorizados – a ajudar a vítima em sua legítima reação ao delito, ou seja, na aplicação da sanção, ou quando a aplicação está reservada a um órgão especial da comunidade” (KELSEN, 2010, p. 43). Em nome da segurança coletiva, portanto, é possível transformar uma ordem descentralizada em ordem centralizada. A segurança coletiva, nesse sentido, tem dois estágios de desenvolvimento (que se relacionam diretamente com a escala descentralização/ centralização), que didaticamente são apresentados: (i) no primeiro estágio, prevalece a técnica da autotutela. Portanto, vigora uma ordem jurídica descentralizada. Os indivíduos (sujeitos) prejudicados por algum ilícito podem aplicar, por si mesmos, a sanção. Neste estágio, os membros da comunidade são obrigados a ajudar uma vítima de um delito; (ii) no segundo estágio, prevalece a técnica de divisão social do trabalho e a aplicação da sanção é institucionalizada. Transforma-se em ordem jurídica centralizada. Há a instituição de órgãos especiais cuja finalidade é a aplicação de sanções. Assim, a ordem não detém apenas o monopólio da força; este monopólio é centralizado (KELSEN, 2010, p. 42-43). É possível identificar nesta breve descrição de estágios, a diferença elementar entre o Direito Internacional e o Direito Nacional, respectivamente. Ainda que o Direito Internacional tenha a prevalência da técnica da autotutela, é considerado como Direito, todavia com o monopólio da força descentralizado, como demonstra o primeiro estágio (KELSEN, 2010, p. 44). O Direito Nacional, ao deter o monopólio da força e o exercê-lo de forma institucionalizada, protagoniza a centralização. Uma questão interessante: não há ordem positiva sem um mínimo de autotutela. Assim, mesmo em um Estado, cuja autotutela é quase que totalmente substituída pela técnica de divisão social do trabalho, a autotutela está preservada sob a forma de legítima defesa, presente, inclusive, nos mais modernos ordenamentos, que é um tipo de autotutela: “é o emprego lícito da força por um indivíduo contra o emprego ilícito da força por outro indivíduo” (KELSEN, 2010, p. 45). Uma das principais dificuldades que o Direito Internacional encontra no âmbito jurídico é a sua caracterização como um ordenamento que tenha a possibilidade de fazer valer a sua normatização, já que depende de uma atitude positiva dos destinatários, o que importa para a identificação no pensamento kelseniano, a ausência de meios eficazes que possam fazer valer suas disposições. 216

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Em lições muito basilares sobre Kelsen, diz-se que o Direito é distinto da Moral porque faz valer suas normas por meio do uso da força. O monopólio da força caracteriza o Direito. Mas, como fazer valer um compromisso internacional se o Estado violador for mais forte do que o atingido pela violação? Kelsen (2005, p. 55) deixa evidente em diversas passagens de suas obras mais importantes que a eficácia, apesar de não se confundir com validade, é condição necessária para a existência de uma ordem jurídica. Pois bem, neste raciocínio, a eficácia deve ser também condição para o Direito Internacional. Sim, é correta esta afirmação, mas deve ser pensada de modo diferente. Pensar na eficácia do Direito Internacional remete à uma questão mais basilar ainda como um todo na teoria de Kelsen: a distinção e relação entre sanção e delito. As sanções têm caráter coercitivo; “são estabelecidas pela ordem jurídica com o fim de ocasionar certa conduta humana que o legislador considera desejável” (KELSEN, 2005, p. 71). A sanção é uma aplicação da força, mas se difere do delito por ser uma consequência deste. Em Kelsen (2005, p. 73), em sentido amplo, “delito é a condição à qual a sanção é vinculada pela norma jurídica”. Determinada conduta então será ilícita porque o Direito vincula tal conduta à imputação de uma sanção. Delito, em Kelsen, tem um caráter puramente jurídico. Portanto, não pode ser considerado meramente como um ato que viola a lei ou a descumpre. Delito é, pois, “a conduta do indivíduo contra o qual é dirigida a sanção, como consequência de sua conduta” (KELSEN, 2005, p. 76-77). No Direito Internacional, a pessoa jurídica é a responsável pelo delito internacional, considerado este em sentido jurídico, ainda que tenha sido cometido por uma pessoa de determinado órgão. Neste caso, a pessoa a ser responsabilizada é o Estado. Nas palavras de Kelsen (2005 p. 81), “certo Estado é considerado o sujeito desse delito, apesar do fato de o delito consistir na conduta de um indivíduo definido, por exemplo, o chefe de Estado ou ministro das Relações Exteriores”. Ao estabelecer que determinado comportamento será como consequência uma sanção, o Direito Internacional estabelece que tal comportamento é considerado delito. Este delito internacional, que condiciona a sanção, é composto de dois atos: (i) o comportamento que provoca o dano a outro Estado; (ii) a ausência de reparação do dano (KELSEN, 2010, p. 81). No plano internacional, a sanção, ato coercitivo, consiste na interferência na soberania de um Estado. A manifestação da sanção pode consistir em duas formas: (i) limitada, caracterizada pela reação contra um delito, uma forma de sanção admitida como uma reação a um mal provocado por um Estado, denominada represália (reprisal); ou (ii) 217

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ilimitada, em breve síntese, a guerra (KELSEN, 2010, p. 53). A guerra, para Kelsen (2005, p. 474), “é uma interferência ilimitada nos assuntos de outro Estado que implica o emprego da força; é uma intervenção que possivelmente conduz à destruição completa da independência externa e interna de outro Estado”. Incontroversa é a aceitação da represália como sanção no Direito Internacional (KELSEN, 2005, p. 471). Neste aspecto, Kelsen (na época da publicação de Teoria Geral do Direito e do Estado) apresenta duas posições contraditórias acerca do caráter da guerra: a guerra enquanto instituto fora do alcance do Direito, de modo a não configurar sanção ou delito; e a doutrina do bellum justum, segundo a qual a guerra é normalmente proibida, mas permitida em apenas como reação à um ato antijurídico, chamada, neste caso, um tipo de “contraguerra”, expressão que Kelsen utiliza para diferenciar da guerra considerada como delito (KELSEN, 2005, p. 472). A doutrina do bellum justum foi base para alguns importantes tratados da época, como o Tratado de Versalhes (1919) e o Pacto Kellogg-Briand (1928). Estes tratados trazem reflexões interessantes sobre este período. A par das especificidades de cada um deles, o que é comum a ambos é a imposição de sanções contra uma guerra considerada como delito, em linhas gerais, um reflexo decorrente da doutrina do bellum justum (KELSEN, 2005, p. 475-476). O maior problema da guerra, até então, é o modo sem tecnicidade de ser estabelecida como sanção e, de certa forma, com a ausência de um padrão. Ainda que se pense que moralmente a guerra seria proibida e que aquele que provoca um conflito injustificadamente deva ser punido, a guerra possui um caráter diferente das outras manifestações de sanções. Não há garantia que na guerra, apenas o Estado violador seja atingido por um mal que causou (naquele sentido de retribuição, desenvolvido em Teoria Pura do Direito): “Na guerra, não é vitorioso quem está certo, mas quem é mais forte” (KELSEN, 2006, p. 475, p. 480). Ao escrever esta passagem, Kelsen expressa o problema pontual de considerar a guerra como uma possível sanção na ordem internacional antes do paradigma Nações Unidas. Se um Estado mais potente belicamente fosse a parte que cometeu a violação ao Direito Internacional contra um Estado mais fraco, este não conseguiria executar a sanção (não ao menos sozinho) de acordo com a técnica da autotutela, consiste esta numa das maiores objeções à teoria do bellum justum. Após 1945, com a instituição da Organização das Nações Unidas (ONU), Kelsen acrescenta algumas observações sobre a guerra enquanto sanção e enquanto conduta proibida pelo Direito Internacional em sua 218

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obra. Em 1952, com a publicação de Princípios de Direito Internacional, fica evidente uma certa modificação na regência da autotutela nas Relações Internacionais. Há um passo na escala de transformação da descentralização em centralização, uma vez que a segurança coletiva, agora, com a ONU, funciona de modo diferente. Veja-se: Não há menção ao termo guerra no art. 2º, § 4º, da Carta da ONU, segundo o qual guerras são proibidas. Em si, a norma proíbe o uso da força nas relações internacionais. Deste modo, um Estado é proibido de usar a força contra outro Estado, qualquer que seja a atitude deste. A guerra, neste sentido, “deve ser entendida como o emprego da força direcionada por um Estado contra outro, desconsiderando o contra-ataque deste não apenas quando guerra é um delito, mas também quando a guerra é uma sanção” (KELSEN, 2010, p. 60). É um ponto importante para o sistema inaugurado em 1945, com a possibilidade do envolvimento do uso de força armada para cessar uma ameaça à paz ou à segurança internacionais. Este emprego da força é reservado, pela Carta da ONU, à um dos órgãos centrais desta organização: o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Acerca do monopólio da força no Direito Internacional, observa expressamente Kelsen (2010, p. 80): “A segurança coletiva estabelecida pela Carta se caracteriza por um monopólio de força centralizado na organização”. Este monopólio do uso de força é conferido ao Conselho de Segurança expressamente no art. 24 da Carta da ONU, cuja “ação imediata e efetiva” é pormenorizada dos art. 37 ao 50. Esta ação é coercitiva. As medidas coercitivas tomadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, em caso de ameaça à paz e segurança internacionais podem envolver ou não o uso da força armada. Se não houver envolvimento de força em tais medidas, possui o caráter de represália; se envolver uso de força armada, possui o caráter técnico de guerra (KELSEN, 2010, p. 81). O monopólio do CSNU, porém, é também limitado pela própria Carta. De modo semelhante à legítima defesa dos indivíduos, os Estados podem exercer a legítima defesa contra o uso da força ilícita de outros Estados. É o previsto no art. 51 da Carta. A ordem internacional, com o paradigma Nações Unidas, rege-se ainda pela autotutela, mas com o monopólio da força centralizado no Conselho de Segurança. O direito à legítima defesa está implícito na ideia de autotutela (KELSEN, 2010, p. 97). Ainda é ordem jurídica descentralizada, pois não possui um sistema de aplicação de sanções vinculante geral, em relação a todos os Estados, de modo institucionalizado e socialmente organizado, mas com um passo a mais para a centralização, em comparação ao paradigma de Vestfália (KELSEN, 2006, p. 358). 219

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A tendência é a evolução jurídica e o desaparecimento da descentralização do Direito Internacional, ou seja, a formação de um Estado mundial, a seguir o paradigma pretendido pelas Nações Unidas (KELSEN, 2006, p. 364). Entretanto, até o tempo presente desta análise, não há que se falar em tal unidade. Se um Estado não houver se obrigado praticamente em se abster do uso da força nas relações internacionais, poderia, em tese, recorrer à guerra, sem que houvesse violação ao Direito Internacional (KELSEN, 2006, p. 357). Por força do compromisso assumido pelos Estados na Carta da ONU, a guerra se perfaz como sanção do vigente Direito Internacional. Na segunda edição de Teoria Pura do Direito (1960), Kelsen menciona a Carta da ONU ao dissertar sobre a essência do Direito Internacional. O princípio do bellum justum, presente no Direito Internacional em pactos anteriores à Segunda Guerra Mundial, tornou-se conteúdo de tratados internacionais, como o Pacto Kellogg-Briand (1928) e a Carta da ONU (1945). Especificamente há transformação em Direito Internacional positivo. A ordem jurídica do Direito Internacional possui, em síntese, as seguintes características: é descentralizado, no que difere do Direito Nacional; e de caráter dinâmico, no que se assemelha. Já estabelecidos estes principais argumentos pelos quais Kelsen entende a juridicidade das normas internacionais, é preciso agora entender o porquê o Direito Internacional e o Nacional constituírem uma única ordem jurídica e a tese da primazia do primeiro em relação ao último. A primazia do Direito Internacional

Um dos assuntos iniciais em manuais de Direito Internacional Público é a relação entre o Direito interno dos Estados (Direito Nacional) e o Direito Internacional. Para isso, apresentam-se três principais correntes de pensamento: a teoria dualista, a teoria monista com primazia do Direito Nacional e a teoria monista com primazia do Direito Internacional. A esta última o nome de Kelsen é atribuído como seu principal expoente. Não será objeto aqui apresentar cada uma destas correntes. Kelsen é um defensor do monismo internacionalista. Portanto, é a tese que aqui interessa. O monismo compreende a unidade sistêmica entre o Direito Internacional e as diversas ordens jurídicas internas. Assim, o fundamento do Direito – Interno ou Internacional – é um só; o que os diferencia é a centralização (do Direito Nacional) ou descentralização (do Direito Internacional). Ambas ordens possuem um mesmo sistema de validade. O

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Direito Internacional, assim, é uma ordem jurídica comum aos Estados, da mesma forma que faz parte do mesmo sistema jurídico interno de tantos quantos forem os Estados que a este se submetem. É certo que a doutrina monista internacionalista difere em ponto específico da doutrina monista nacionalista, diferença que pode ser deduzida da própria nomenclatura, quanto à primazia do Direito Internacional e do Direito Nacional, respectivamente. Traço em comum é que ambas se opõem à doutrina dualista e possuem o mesmo fundamento para os dois âmbitos das ordens jurídicas. Além de pertencerem a um mesmo sistema, de acordo com o monismo, as ordens podem ter os mesmos destinatários. Normas internacionais têm vigência nos Estados, a depender de cada ordem nacional, com procedimentos de incorporação ou não. Uma vez pertencentes a um mesmo sistema, Direito Internacional e Direito Nacional podem ter antinomias entre si. Se constituem um só ordenamento, estão sujeitos ao princípio da unidade, segundo o qual se deve eliminar normas contraditórias entre si. De acordo com Kelsen (2010, p. 520-521), ambas as ordens poderiam ter a primazia em um sentido lógico, uma vez que tanto Direito Nacional quanto Direito Internacional retiram a validade de suas normas de uma única fonte, mas jamais poderiam estar lado a lado, sem considerar uma posição de superioridade e inferioridade. A opção de Kelsen pela primazia deste último é uma escolha filosófica. A primazia do Direito Internacional parte do pressuposto de que a validade de todo o sistema jurídico que comporta os dois tipos de ordem encontra seu fundamento de validade em âmbito externo. Deste modo, a validade das normas está além da autolimitação da soberania estatal. Caso o Estado retirasse toda sua validade de sua própria soberania, haveria um inevitável solipsismo do Estado (Staatssolipsismus), o que consequentemente levaria à um cataclisma constante das relações internacionais. Essa posição de Kelsen está presente tanto na primeira quanto na segunda edição de Teoria Pura do Direito, assim como em Teoria Geral do Direito e do Estado, o que demonstra uma permanência desta concepção em seu pensamento, apesar das alterações paradigmáticas do Direito Internacional entre 1934 a 1960. A diferença entre as duas perspectivas se baseia na oposição entre a concepção de mundo (Weltanschauung) subjetivista e objetivista. O monismo com primazia do Direito Nacional, do mesmo modo que a concepção subjetivista parte da noção de Eu (Ego) para compreender o mundo o compreende apenas como representação e vontade do mesmo Eu,

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parte do princípio de que o primado da ordem jurídica parte do Estado soberano para as outras ordens nacionais e para o Direito Internacional. Neste sentido defendido por Kelsen (2006, p. 384), “o primado da ordem jurídica do nosso próprio Estado pode ser designado como subjetivismo, ou mesmo como solipsismo de Estado”. Por sua vez, a concepção de mundo objetivista concebe o Eu a partir do exterior, não somente o Eu próprio, mas qualquer Eu. Deste modo, o Eu em si se concebe como mais um dentre tantos, como parte do mundo. De modo similar, a primazia do Direito Internacional possibilita conhecer os Estados como partes de um todo. Nessa perspectiva, cada Estado é um ordenamento jurídico parcial que, juntos, se incorporam no Direito Internacional (KELSEN, 2006, p. 384). O princípio da efetividade (Effektivitätsprinzip), segundo Kelsen (2006, p. 374), é compreendido como uma norma de Direito Internacional positivo, cuja função é delimitar os quatro domínios de validade dos Estados: territorial, pessoal, material e temporal (ordens jurídicas nacionais). A primazia da ordem jurídica internacional é reafirmada pelo princípio da efetividade. Para Kelsen (2006, p. 385), a decisão sobre qual das duas perspectivas deva prevalecer é política, não científica. Aos Estados cujos valores de exaltação soberana sobressaem com sua consciência de pertencimento de mundo, será preferível o monismo nacionalista. Aos que estiverem inseridos em uma concepção de mundo na qual a organização mundial seja mais importante, a escolha é pelo primado internacionalista. Em si, é uma opção também filosófica; no primado nacionalista, há um inevitável solipsismo que se manifesta na ideologia política do imperialismo (KELSEN, 2006, p. 386); no primado internacionalista, não. Ao contrário. Apesar de se perceber também um sofisma no primado internacionalista, Kelsen (2006, p. 386) deixa evidente que ao menos desempenha um “um papel decisivo dentro da ideologia política do pacifismo”. Não sendo, portanto, a escolha da primazia decorrente de uma escolha lógica, técnica, formal, mas sim uma escolha política, que é mais relevante para a atitude política de determinado Estado, não se enquadra no âmbito de análise da ciência jurídica. Uma vez esclarecido este debate acerca do monismo em Kelsen, é preciso pensar como a ordem internacional valida as ordens internas. Os domínios de validade oferecem o referencial necessário para esta compreensão. Assim como o Direito do Estado possui quatro domínios de validade (pessoal, territorial, material e temporal), o Direito Internacional (enquanto ordem jurídica) também os possui.

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Como o Direito Internacional impera na totalidade mundial, as normas internacionais têm uma função de delimitação dos domínios de validade dos Estados (e, assim, os tornam ordenamento jurídicos parciais). O Estado, deste modo, é a delimitação definida pelo Direito Internacional da validade nos quatro domínios. Sendo a fonte do direito a origem de expressão de juridicidade a noção de norma fundamental do Direito Internacional surge em relação ao escalonamento desta ordem. Deve-se, para encontrar a norma fundamental, ter normas de escalão mais baixo do Direito Internacional como ponto de partida. Tais normas são decisões de tribunais internacionais, que são válidas em razão da existência de um tratado que constitui tal tribunal. Por sua vez, este tratado é válido em razão de uma norma de Direito Internacional geral que obriga que os Estados se conduzam de acordo com o que foi estabelecido no tratado (pacta sunt servanda). O Direito Internacional geral é criado por meio do costume constituído pelos atos dos Estados. A norma fundamental do Direito Internacional, portanto, deve ser pensada (por ser pressuposição lógico-transcendental) como uma norma que aprove o costume como fato criador das normas (KELSEN, 2005, p. 525). O Direito Internacional costumeiro, validado pela lógica na norma fundamental, constitui o primeiro estágio na hierarquia possível do ordenamento internacional. O estágio seguinte é formado pelos tratados internacionais, denominado como Direito Internacional convencional (ou pactício). O último estágio, por sua vez, constitui-se de normas emanadas por órgãos criados por tratados internacionais. As duas principais fontes do Direito Internacional são os costumes e os tratados, o que gera uma ordem internacional composta por Direito Internacional consuetudinário (Gewohnheitsvölkerrecht), que por sua vez dá validade ao Direito Internacional convencional (Vertragsvölkerrecht). No Direito Internacional “o costume é o curso usual ou habitual de uma ação, uma prática há muito estabelecida; nas relações internacionais, o costume é uma prática de Estados de longa data” (KELSEN, 2010, p. 380). São dois elementos que permitem reconhecer a formação de costume: (i) a frequência da conduta; (ii) a percepção de que tal conduta seja obrigatória. O costume como fonte constitutiva do Direito, diferente de outras explicações que o denominam como mera declaração, pode ser compreendido cientificamente (KELSEN, 2010, p. 383). A ideia de norma fundamental encontra sua real função apenas se pensada também para o Direito Internacional: “a única norma fundamental verdadeira, uma norma que não é criada por um procedimento

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jurídico, mas pressuposta pelo pensamento jurídico, é a norma fundamental do Direito internacional” (KELSEN, 2005, p. 175-176). Tal proposição é evidente ao levar em consideração que todas as normas pertencem ao mesma sistema jurídico, mesmo que tais normas possuam estruturas diferentes. É dizer, tanto a norma nacional, inserida numa estrutura centralizada, possui a mesma norma fundamental que a norma internacional, prevista numa estrutura jurídica descentralizada. Por pertencerem ao mesmo sistema jurídico e, portanto, podem se contradizer em algum momento, na resolução do conflito de normas (antinomias), com base na teoria kelseniana, a considerar a estrutura escalonada de normas jurídicas, à primeira vista, as normas internacionais deveriam prevalecer sobre as nacionais, uma vez que supostamente estas retirariam validade daquelas. Todavia, a relação normativa entre os dois âmbitos não é tão simples, uma vez que estão conectadas por uma mesma norma fundamental. O conflito entre as duas ordens é hierárquico, sem que haja risco à unidade do Direito Nacional (KELSEN, 2005, p. 527). Considerações finais

O fato de uma norma se contradizer com relação à outra, não compromete a unidade do sistema, ainda que seja uma norma nacional em conflito com uma norma internacional. A forma de resolução da aparente contradição é a mesma que se chega quando da norma infraconstitucional que não é válida em relação à Constituição e, mesmo sendo inconstitucional, não afeta o Direito Nacional como um todo. Uma norma interna que contrariar o ordenamento internacional pode ser devidamente revogada pelos órgãos do próprio Estado. Uma norma inferior que não corresponda com a superior significa que tal norma foi ou criada certo modo ou tenha certo conteúdo que possibilite que algum órgão (como o judiciário) a revogue de outro modo que não o normal. No caso da norma internacional, por figurar numa posição hierárquica superior à norma nacional, para a teoria kelseniana, é possível que um Estado se sujeite à alguma sanção internacional (como represálias), por conferir conteúdo à uma norma que o contradiga, já que o fundamento de validade da norma se encontra na ordem superior. O Direito Internacional é, pelo apresentado nesta pesquisa, essencial para uma efetiva compreensão da teoria kelseniana. De fato, a grande questão epistemológica da Teoria Pura do Direito, a norma fundamental, apenas pode ser compreendida por completo quando o Direito Internacional é colocado em perspectiva. Como fundamento de validade

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presente na concepção do sujeito que busca compreender o fenômeno jurídico, a norma fundamental oferece condições para o Direito ser pensável como ciência autônoma e, de modo objetivo, compreendido. Referências

KELSEN, Hans. A Paz pelo Direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012 ______. Princípios do Direito Internacional. Tradução Ulrich Dressel e Gilmar Antonio Bedin. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010 ______. Reine Rechtslehre: Einleitung in die rechtswissenschaftliche Problematik. Studienausgabeder 1. Auflage 1934. Tübingen: Mohr Siebeck, 2008. ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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9 Soberania: conceito atual, mas a atualizar, do Direito Internacional Gills Vilar-Lopes Dalliana Vilar-Lopes Adriano Gonçalves Feitosa

Introdução

Este trabalho analisa um conceito muito caro às ciências sociais e suas subvertentes, em especial o Direito e a Ciência Política, qual seja: a soberania, elemento de inquestionável importância para a legitimação institucional do ente estatal no concerto internacional. Objetiva, portanto, desenvolver uma discussão teórica renovada acerca do conceito de soberania. Para tanto, intercala-se um diálogo entre Ciência Política e Direito com aportes interdisciplinares do italiano Luigi Ferrajoli, do austríaco Fritjof Capra e do português Boaventura de Sousa Santos – três pensadores das ciências humanas e sociais, cujos nomes traduzem reputações acadêmicas, compartilhando os esforços de inovação teórica em suas propostas de intervenção social. Esse diálogo, diga-se de passagem, torna-se necessário, pois existe “[...]uma ligação lógica entre a concepção jurídica do Estado soberano e a definição da ciência política como ciência do Estado”. Tal tema foi, por muito tempo, tratado na lógica interna de cada disciplina, seja na seara normativa da Filosofia do Direito, seja nas elucubrações mais pragmáticas e técnicas da teoria política do limiar da Modernidade. Evidentemente, ele transcende denominações ou repar227

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tições disciplinares. É de interesse comum às diversas ciências que se debruçam sobre os fenômenos do Poder e do Estado, direta ou tangencialmente, tanto no nível teórico quanto em uma dimensão mais prática. Não é à toa que, neste raiar de novo milênio, em que o fenômeno da globalização e da revolução das tecnologias de informação e comunicação trazem desafios ontológicos e empíricos ao Estado, ecoam na Academia termos como Estado pós-westfaliano e, mesmo, “fronteiras líquidas” – isso sem mencionar os constrangimentos de toda ordem causados pela geopolítica do ciberespaço e pelas Relações Internacionais Cibernéticas (CiberRI). Além de traçar um panorama histórico e teórico acerca da questão da soberania, o presente texto visa a ressaltar interpretações e propostas de adequação do conceito à contemporaneidade, tendo em vista a incompatibilidade, ou, pelo menos, a aparente contradição, teorizada no auge da história da Filosofia Política com a realidade hodierna. Aquela, em suas linhas gerais, embora travestida de outra racionalidade, ainda permanece no meio acadêmico, regendo em determinados momentos a convivência interestatal na comunidade internacional. Do ponto de vista metodológico, o presente capítulo filia-se ao estilo qualitativo de pesquisa, tendo em vista que a análise do seu objeto de estudos – a soberania – ensejou esforços oriundos da revisão bibliográfica. Para atingir seu intento, o texto está dividido em duas partes principais. A primeira situa o conceito de soberania em sua vertente clássica, moderna; já a segunda parte discute três propostas contemporâneas que tentam enquadrá-lo em diferentes moldes permeados por desafios de toda ordem – jurídico, social, político, geopolítico etc. A soberania no limiar da modernidade

Um dos clássicos da Ciência Política já apontara que “[a] definição jurídica tradicional do Estado repousa sobre a ideia da soberania. É uma noção passivelmente obscura, que não é fácil de exprimir com precisão” (DUVERGER, 1981, p. 19-20). Todavia, é o francês Jean Bodin quem define o que vem a ser soberania: “poder absoluto e perpétuo de uma República[...]” (BODIN, 2011, p. 195). Não deixando de sucumbir, ainda que brevemente, à tentação de consultar vozes da tradição jurídica dogmática, bem como o intuito de estabelecer um ponto de partida conceitual para a análise aqui empreendia, pode-se encontrar uma definição para soberania no “Black’s Law Dictionary”1: “poder supremo, absoluto e incontrolável, com o qual todo 1 Tradicional repositório de verbetes e definições jurídicas editado primeiramente por Henry Campbell Black (18601927) e continuamente atualizado desde sua morte.

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Estado independente é governado”, apresentando-a ainda no mesmo verbete como autoridade política suprema, ou uma fonte autossuficiente de poder político, “de onde emanam todos os outros poderes específicos; a independência internacional de um Estado, combinada com a prerrogativa e poder de autorregular seus negócios internos, sem imposições externas” (BLACK, 1968, p. 1568, tradução nossa). No Brasil, pontuais foram as lições de juristas nesse mesmo sentido, como as de Darcy Azambuja, que já afirmara a respeito da summa potestas: A soberania designa não o poder, mas uma qualidade do poder do Estado. [...] É o grau supremo a que pode atingir esse poder, supremo no sentido de não reconhecer outro poder juridicamente superior a ele, nem igual a ele dentro do mesmo Estado. [...] Na esfera da sua autoridade, na competência que é chamado para realizar a sua finalidade, que é o bem público, ele representa um poder que não depende de nenhum outro poder, nem é igualado por qualquer outro dentro do seu território. (AZAMBUJA, 1963, p. 59)

A propósito, aquela definição de Black também é referenciada didaticamente por Azambuja enquanto soberania interna, ou seja, a capacidade de se limitar, via coação ou influência externa, a “autoridade do Estado, nas leis e ordens que edita para todos os indivíduos que habitam seu território e as sociedades formadas por esses indivíduos” (AZAMBUJA, 1963, p. 59-60). A manifestação desse poder indivisível e independente, nas relações recíprocas entre os Estados, i.e., perante o concerto de nações, dar-se-ia enquanto soberania externa, significando a inexistência de relação de subordinação ou dependência entre Estados (REZEK, 2013, p. 23). Gaspar Guimarães, inclusive, já havia tecido críticas a respeito dessa tradicional bipartição da soberania, em especial sua manifestação externa. Para o autor, sendo a soberania “a propriedade fundamental do Estado, e, por sua natureza, indivisível”, sua aparente projeção externa seria “mera ficção de direito, porque, diante dela, surge a soberania do Estado onde o indivíduo se encontra e a lei a qual ele se submete”, aduzindo em suma que “a soberania do Estado não pode ir além do seu território, desde que tem de acabar onde a soberania do outro Estado começa” (GUIMARÃES, 1914, p. 49). Em outras palavras, “[...]os Estados têm o direito de fazer, dentro das suas fronteiras, tudo o que lhes autoriza a soberania[...]” (ARON, 2002, p. 181).

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Menezes (1960, p. 163) também coaduna a ideia de Azambuja supra referenciada, invocando as lições de Sahid Maluf, no sentido de que a soberania não trata apenas do poder nem mesmo de um elemento constitutivo do Estado, mas, sim, um atributo do governo, este sim elemento constitutivo estatal, junto com a população e o território. Assim, um governo independente – e soberano – seria “o terceiro elemento estatal, que tende a efetivar-se, em ambiente democrático, pelo respeito acentuado aos direitos dos cidadãos, que assim se erigem em supremos intérpretes da soberania popular”. Os esboços conceituais acima expostos demonstram sua pertinência ao direito internacional por dois motivos. Em primeiro lugar, por representarem, no contexto da época em que foram cunhados2, uma visão jurídica tradicional, compiladora, já tendente à objetivação, e que já se fechava em si mesma, legitimando o conceito soberano como sua pedra-de-toque. Em segundo lugar, por permitir avançar sobre o tema, dando vazão ao resgate de outras empreitadas intelectuais prévias, das tentativas antecedentes de sistematização científica do pensamento político, em especial no tocante às relações interestatais. Por ora, cabe resgatar os primórdios do tema, remontando a preleções clássicas do frei dominicano Francisco de Vitória (1483-1546)3 e ao advento das teses de Jean Bodin (1530-1596) e Thomas Hobbes (1588-1679). Francisco de Vitória (1483-1546), jurista e teólogo catedrático da Universidade de Salamanca, considerado um dos pais fundadores do direito internacional moderno, é o primeiro autor digno de nota aqui, precisamente por fornecer uma nova roupagem às ideias de convivência humana em um nível mais amplo, o das nações ou das gentes. Adriano Broleze destaca que um dos méritos de Vitória foi o de ter dado início a uma tentativa de conciliação intelectual entre poder temporal e espiritual, tendente a harmonizar a convivência humana em comunidade, segundo princípios não apenas da cristandade, mas também dos direitos naturais. Com efeito, o autor afirma, in verbis, que: Em uma época em que a atividade humana estará marcada pela exigência de ir além daquilo que se presumia até então, marcadamente pelas descobertas e mudanças de parâmetros, o direito positivo e o direito natural terão em Vi2 Por exemplo, o de Black, no final do século XIX, ou seja, na transição de um século muito importante para o desenvolvimento da ciência moderna, com o despertar das ciências sociais cientificistas; e os de Darcy Azambuja e Aderson de Menezes, em meados do século XX, ainda repercutindo no Brasil as teorias clássicas da soberania. 3 Evidentemente, outros nomes se associam ao deste, em matéria de pioneirismo e originalidade, tais como Vásquez de Menchaca (1512-1569), Balthazar de Ayala (1548-1584), Francisco Suarez (1548-1617), Alberico Gentili (1552-1608) e Hugo Grotius (1583-1645).

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tória um dever fundamental. [...] Vitória sustenta e chama a atenção sobre a perenidade da natureza, permitindo fornecer um direito que seja per se et ex se. [...] A questão decisiva do jusnaturalismo espanhol se aponta já nos escritos de Vitória, que considera a pertença do direito natural a uma lei positiva, em conformidade a cada época e circunstâncias. [...] Assim, busca harmonizar os poderes temporais e espirituais, do príncipe local e do papado, reconhecendo a particularidade de cada um, sem minoritar nenhum, desenvolvendo com mãos mestras a razão da autonomia do Estado, dentro do pensamento escolástico. (BROLEZE, 2017, p. 9-11, grifo do autor)

As ideias de Vitória, o “mais antigo teórico internacional” depois de Maquiavel (WIGHT, 2005, p. 152), circunscrevem, enfim, três aspectos principais, no tocante à temática ontológica do direito internacional, a saber: (i) a configuração da ordem mundial como sociedade natural de Estados soberanos; (ii) a teorização de uma série de direitos naturais dos povos e dos Estados; e (iii) a reformulação da doutrina cristã da “guerra justa”, redefinida como sanção jurídica às iniuriae (ofensas) sofridas (FERRAJOLI, 2002, p. 7). O frei concebia o mundo como uma grande sociedade de Estados e a humanidade como uma comunidade digna de unificação em torno de princípios gerais – o que o assemelha, por exemplo, a jusfilósofos de vertente liberal institucionalistas como Kant (2008) –, comumente aceitos em quaisquer dos pontos da orbe terrestre; daí, sua concepção de communitas orbis, ou universalis respublica. Os vários “direitos das gentes” que Vitória esboçou a partir dessa perspectiva4, por mais avançados e bem intencionados que estivessem – pois ancorados nos princípios cristãos e na jurisprudência eclesiástico-canônica, como a alteridade e a solidariedade cristãs –, eventualmente acabaram por legitimar a conquista dos povos do Novo Mundo, fornecendo, ainda, o “alicerce ideológico do caráter eurocêntrico do direito internacional, dos seus valores colonialistas e até mesmo das suas vocações belicistas” (FERRAJOLI, 2002, p. 10). Se Vitória tratou com pioneirismo e originalidade a soberania externa, é com Bodin (2011) que a soberania interna estatal é primeiramente analisada de forma mais detalhada e criteriosa, tratando o poder soberano como princípio originário da República – ou, em termos contemporâneos, o Estado –, pelo reconhecimento mútuo entre Estado e cidadãos da submissão destes, de forma a propiciarem uma coexistência harmoniosa (BARROS, 1996, p. 142). 4 Ius communicationis, ius peregrinandi et degendi, ius commercii, ius occupationis, ius migrandi, ius praedicandi et annuntiandi Evangelium, ius correctio fraterna e ius ad bellum et in bello.

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Contudo, as análises bodinianas deram abertura a uma soberania absolutista, pois ele entendia imprescindível a centralização do poder soberano em uma única figura que liderasse uma comunidade; caso contrário, se a soberania fosse repartida entre diversos setores – como na Roma Antiga, entre o povo, os cônsules e o Senado –, a soberania estaria fadada à autodestruição, a fragilizando e dispersando, portanto (BARROS, 1996, p. 144-145; BODIN, 2011). O próprio Bodin (2011) se aproxima de Hobbes (2005) ao afirmar que quem demanda deve ser e estar superior às próprias leis. Para o teórico inglês, os únicos limites ao caráter absoluto da soberania estatal seriam as leis divinas e os direitos naturais (FERRAJOLI, 2002, p. 19; HOBBES, 2005, passim). Sobre a obra magna Bodin, Lenz (2004, p. 123) afirma que “[...] Bodin publicou um dos últimos espelhos de príncipes, visando a orientá-los na manutenção da ordem em prol do desenvolvimento econômico do Estado”. No contexto da ruptura do pensamento político com as fundamentações teleológico-metafísicas de outrora, assim como Bodin, Hobbes (2005) também vislumbrava a centralização do poder como qualidade do Estado soberano. É com Thomas Hobbes que o Estado ganha uma nova forma antropomorfizada, um Estado-pessoa, como suscitado não apenas na capa de O Leviatã (1651), mas em todo o seu corpus (HOBBES, 2005, passim; MIRANDA, 2013, p. 131). Essa figura centralizada e centralizadora, legitimada na ficção-especulativa de uma delegação dos poderes individuais de cada cidadão à entidade máxima do Estado, perpetuou-se no direito público moderno, cuja lógica persistiu no juspositivismo do século XX e que permanece presente nas teorias administrativistas organicistas que, hodiernamente, ainda se divulgam academicamente. Uma consequência do pensamento hobbesiano para a formulação dos preceitos do Estado Moderno – e, consequentemente, para o Direito Internacional – é a interpretação de que a soberania externa de cada Estado, somada à de outros, é capaz de reproduzir uma liberdade selvagem na comunidade internacional, um “estado de desregramento”, ou no que se conhece, nas Teorias de Relações Relações, por anarquia internacional, ou seja, uma total ausência de governo mundial do qual emanem ordens vinculativas a todos os Estados (BULL, 2002; PROENÇA JR; DINIZ, 1998, p. 7; REZEK, 2013, p. 25).

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Concepções e propostas para além da modernidade O pensamento de Luigi Ferrajoli

Em A soberania no mundo moderno, Ferrajoli (2002) registra três hipóteses de trabalho – marcadamente aporias, de acordo com o próprio autor –, quais sejam: (i) a doutrina da soberania, enquanto construção de cariz jusnaturalista, seria um resquício pré-moderno que “serviu de base à concepção juspositivista do Estado e ao paradigma do direito internacional moderno”, originária da “modernidade jurídica e, simultaneamente, em virtual contraste com esta”; (ii) o desenvolvimento simultâneo e contraditório das histórias da soberania interna e da soberania externa, tendo esta última se fortalecido com o passar dos tempos, ao passo que aquela passou a se diluir com a ascensão do constitucionalismo e da democracia representativa; e (iii) a antinomia irredutível entre as ideias de soberania e direito, à medida que, nas circunstâncias contemporâneas, a ideia de soberania plena tal como era formulada deixou de ter sentido, em vista das normas de direito internacional que condicionam e são ratificadas cada vez mais pelos Estados no contexto de órgãos internacionais dos quais são membros-signatários (FERRAJOLI, 2002, p. 2-3). A respeito da primeira aporia, Ferrajoli (2002, p. 2) afirma que, ainda que Hobbes tenha inovado metaforicamente com seu Estado-Leviatã, a ideia de soberania sempre foi autossustentável, a partir de uma imagem personificadora: desde a ideia da soberania como atributo do princeps (príncipe) às concepções jacobinas, organicistas e democráticas antes da soberania nacional e depois da soberania popular”, também se espraiando pela “doutrina juspublicista, vigente no século XIX, do Estado-pessoa e da soberania como atributo ou sinônimo do Estado”. Quanto à trajetória histórica contraditória entre as duas manifestações bivalentes da soberania, o pensador italiano destaca que, em seu decorrer, a soberania interna foi sendo atrofiada, em vista dos ideais democráticos em ascensão, que iam de encontro com resquícios de autoritarismos absolutistas. Externamente, a soberania apenas expandiu sua área de influência, ao se tornar atributo garantidor de independência no concerto internacional. O autor ressalta a não coincidência das duas histórias das definições: A da soberania externa iniciou-se primeiro e, diferentemente daquela da soberania interna, ainda está longe de concluir-se e continua a mostrar-se como uma ameaça permanente de guerras e destruições para o futuro da humanidade. (FERRAJOLI, 2002, p. 3)

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Em sua última hipótese de trabalho, de que há uma antinomia inerente ao binômio “soberania-direito”, Ferrajoli aduz que qualquer ideia de soberania parece contrariar a máxima do Estado de direito, consoante a qual haveria “sujeição de qualquer poder à lei”, não se olvidando da questão das normas internacionais incorporadas pelos Estados por força de órgãos internacionais a que passaram a se submeter ao longo da história. Internamente, portanto, não faria sentido o reconhecimento de um poder supremo, alheio e superior à lei, sem que se fosse necessário descartar o próprio paradigma da legalidade; da mesma forma, externamente, fica esvaziado de sentido dizer que um Estado membro da Organização das Nações Unidas (ONU) é plenamente soberano, quando por força das recomendações acordadas na sede daquele órgão, eventualmente acaba por se ver obrigado a reconhecer e incorporar normas, abster-se de certas condutas, ou mesmo se comprometer a praticar certos atos sob pena de sanções (FERRAJOLI, 2002, p. 3). Luigi Ferrajoli, ademais, considera que o Estado-nação, tal como ainda em vigência, está em crise. E as respostas a isso se encontram apenas na seara do direito internacional. Tomando emprestada expressão notória de Ronald Dworkin, Ferrajoli propõe que, hoje, deve-se “levar a sério” o direito internacional: [...] e, portanto, assumir seus princípios como vinculadores e seu projeto normativo como perspectiva alternativa àquilo que de fato acontece; validá-los como chaves de interpretação e fontes de crítica e deslegitimação do existente; enfim, planeja as formas institucionais, as garantias jurídicas e as estratégias políticas necessárias para realizá-los. (FERRAJOLI, 2002, p. 47)

As propostas do italiano giram, enfim, em torno de uma espécie de constitucionalismo internacional, tendente à integração mundial baseada no direito internacional, que se impõe, por cima e por baixo, principalmente por força do fim da era dos grandes blocos contrapostos – ao menos, no grau de intensidade do pós-Segunda Guerra –, pelo surgimento e rápida proliferação de tecnologias que tornam as esferas individuais mais autônomas em face do Estado, por exemplo, a comunicação instantânea e a ampla disponibilidade de informações via maios cibernéticos, e em decorrência do inquestionável poder destrutivo que a humanidade concentra em suas mãos mais do que nunca, representando um grave risco ao equilíbrio internacional e à manutenção da paz: as “armas nucleares, as agressões sempre mais catastróficas ao meio ambiente, o au234

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mento das desigualdades e da miséria, a explosão dos conflitos étnicos e intranacionais” (FERRAJOLI, 2002, p. 47). O pensamento de Fritjof Capra e Ugo Mattei

Há pelo menos quatro décadas, o trabalho do físico austríaco Fritjof Capra, radicado nos Estados Unidos da América (EUA), e seus colaboradores de diversas áreas do conhecimento, desponta como um importante marco teórico-reflexivo sobre a condição humana, a ecologia, a consciência ambiental e o sentimento de pertencimento e interação com os sistemas naturais. Seu empenho é direcionado, sobretudo, a construir uma concepção sistêmica, holística, interconectada da vida e de seus fenômenos, propagando e difundindo os ideais de conscientização ecológica. Em obra recente, A revolução ecojurídica, fruto da parceria com o jurista italiano Ugo Mattei, Capra centraliza a revisitação de suas análises a questões de fundo da legitimidade estatal – como razão, ciência, poder e mercado – e suas práticas consolidadas na contemporaneidade – tais como mecanicismo, tecnicismo, corporativismo e extrativismo insustentáveis e consumismo exacerbado). São três os temas sobre os quais se constroem os eixos centrais da sua obra, a saber: A relação entre ciência e teoria do direito e entre as “leis naturais” e as leis humanas; as contribuições da teoria do direito e da ciência para a moderna visão de mundo, bem como as contribuições da modernidade para a atual crise global; e a recente mudança de paradigma na ciência e a necessidade de uma mudança correspondente no direito, que nos permita desenvolver uma ordem jurídica de caráter ecológico. (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 11)

A obra trata semelhanças e diferenças entre ciência e teoria do direito; revisa a trajetória do pensamento científico ocidental desde a Antiguidade até o Iluminismo; discute o mecanicismo inerente ao pensamento jurídico ocidental; descreve a ascensão da modernidade jurídica, que culminou no excesso de capital e escassez de bens e recursos comuns; recapitula as mudanças de paradigmas científicos; reproduz e demonstra a insuficiência da crítica evolucionista para superar o cartesianismo; denuncia as armadilhas mecanicistas que dão esteio à atual situação das coisas; delineia três princípios fundamentais à superação do mecanicismo – soberania comunitária, em oposição à velha soberania absoluta; propriedade criativa e generativa e desconectar o direito do poder e da violência –; avalia a estrutura jurídica dos commons – i.e., bens e recursos 235

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comuns – como modelo ideal de todo e qualquer sistema jurídico; e, por fim, esboça princípios de uma ordem “ecojurídica”, correlacionando-os a casos concretos e contemporâneos. A soberania do Estado, absoluta e ficta, é alvo da análise crítica dos autores, que resgatam o caso das primeiras grandes empresas a serviço do capital que se organizavam no limiar da modernidade. Por exemplo, Hugo Grotius, o eminente teorizador da liberdade de navegação nos mares internacionais (WIGHT, 2005), não fez tal defesa desinteressadamente, dizem os autores, relembrando que o jurista foi por toda vida conselheiro e advogado da Companhia Holandesa das Índias Orientais, muito provavelmente a primeira empresa multinacional da história. Foi com embasamento nos direitos naturais de livre navegação e trânsito, bem como de livre comércio, que Grotius defendia o direito que a Companhia detinha para conquistar e explorar territórios estrangeiros não utilizados, ou subutilizados (res nullius) (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 130-131). “Argumentos jurídicos muito semelhantes foram criados pelas autoridades britânicas para proteger o direito de as empresas inglesas negociarem ópio na China ou abrirem mercados na América Latina” (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 132). Nos séculos XVI e XVII, “inovações jurídicas compatíveis com o novo espírito do tempo foram introduzidas para obter o tipo de poder e concentração econômica que se fazia necessário para que o Estado moderno se estabelecesse como um poder soberano”, capaz de propagar o imperialismo, expandindo-se rumo às terras do Novo Mundo (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 93). Neste sentido, de certa forma, o direito ao comércio e o direito empresarial parecem confrontar ou contestar a soberania – daí as contradições antinômicas a que Ferrajoli fizera menção –, propondo-se talvez como direitos alheios, superiores, à summa potestas em si. Afinal, ainda hoje, “nenhum poder público pode limitar o direito empresarial de percorrer o planeta para adquirir controle sobre os recursos humanos ou naturais” (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 132). Os autores também atribuem ao soerguimento da modernidade racionalista de Bacon e Locke o “triunfo absoluto da propriedade privada moderna”, e a derrocada dos commons (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 92).Para eles, “[a] redução do sistema jurídico a um acordo entre a propriedade privada e a soberania de Estado foi um poderoso instrumento para dominar a natureza e a comunidade”, complementando que “[n]unca mais tornou a surgir uma maneira de conceber o direito com base na comunidade” (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 151-152).

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Como propostas para a superação da soberania imposta desde o advento da modernidade pela lógica de acumulação de capital, apresentam a recuperação dos commons e de estilos de vida comunalistas, que se opunham à rigidez da propriedade privada – com o exemplo contemporâneo das cooperativas e das habitações colaborativas –, bem como a reaproximação dos sujeitos no nível de inserção em sua comunidade mais imediata e a auto-organização dessas comunidades (CAPRA; MATTEI, 2018, p. 212, 216, 225-226). Diante do reconhecimento da necessidade de um novo modo de pensar a soberania, desponta outra necessidade, que é reconhecer que o aparato do Estado deve adequar-se às novas necessidades emergentes de um mundo globalizado e, cada vez mais, interdependente. Pautando-se em princípios ecológicos, de preservação e respeito às dimensões múltiplas de conhecimentos e experiências – local, regional, informal, oral etc. –, os autores apregoam uma nova consciência planetária, fraterna não só entre humanos, tendo-se como iguais e passíveis de coexistência harmoniosa, mas igualmente respeitosa para com todo o sistema terrestre. O pensamento de Boaventura de Sousa Santos

Pode-se principiar a análise do pensamento do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos5 consignando sua busca por dar voz às narrativas e perspectivas do “Sul” – como superação do eurocentrismo originário das ciências sociais – e à reconstrução de uma epistemologia fundada nessa premissa, com ênfase no contexto pós-colonialista, ainda que não inteiramente superado o colonialismo em si, como o próprio autor aponta (SANTOS, 2006, p. 32). Tal abordagem se mostra meritória diante da originalidade e do empenho com que o pensador, questionador dos modelo de racionalidade ocidental – tanto como fizera Fritjof Capra –, vem mantendo sua posição nas últimas quatro décadas – posicionamento este que, se possível receber uma alcunha, seria a de pós-modernismo crítico de oposição, ou contra-hegemônico, marcado pela crítica da crítica celebratória e pessimista, porém com autoridade no assunto e esperança emancipadora na realidade que há de emergir por imposição das atuais circunstâncias desagregadoras da humanidade. O que Boaventura de Sousa Santos evidencia como uma das problemáticas da contemporaneidade é a propagação radical de uma globa5 Que, consoante MACEDO (2018, p. 81), é “[…] um dos autores que mais investe nas questões da descolonialização dos saberes no momento[...]”.

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lização hegemônica. De acordo com ele, “o processo através do qual um dado fenômeno ou entidade local consegue difundir-se globalmente e, ao fazê-lo, adquire a capacidade de designar um fenômeno ou uma entidade local como rival” (SANTOS, 2006, p. 86). A proposta do autor para tratar desse processo é a imersão recíproca do sujeito, a partir de sua própria cultura, em outra cultura, exercendo um diálogo tópico (“hermenêutica diatópica”, na expressão do autor), isto é, em várias camadas e assuntos de referência, o que viabilizaria uma percepção de incompletude de toda e qualquer cultura e, consequentemente, uma melhor compreensão comunicativa e tolerância intercultural (SANTOS, 2006, p. 86-87), algo semelhante à ideia de “pesquisa contrastiva” desenvolvida por Macedo (2018), no âmbito das ciências antropossociais. Outra proposta de Boaventura é denominada de “governo humano”, cuja finalidade seria balancear, ou equilibrar, a instabilidade entre as teorias da união e as teorias da separação, em referência ao que a humanidade carrega em comum e em diferenças – consciente do sofrimento humano gerado pela governação não humana movida pelo consumismo e pela lógica exclusivista do mercado liberal. Para Boaventura, A ideia de totus orbis, formulada por [...] Francisco de Vitória, deve ser hoje reconstruída como globalização contra-hegemônica (em oposição à globalização neoliberal, hegemônica), como cosmopolitismo subalterno e insurgente. (SANTOS, 2006, p. 84, grifo do autor)

Sob a lógica do capital neoliberal, em evidência desde o final do século XX, e com sinais de agravos na década que se aproxima, Boaventura ainda ressalta que as teorias da união, guiadas pelo livre mercado e democracia liberal, “[...]têm redundado por vezes em práticas de neofeudalismo e neocolonialismo”, ao passo que as contra-hegemônicas da separação “[...]que subjazem a muitas políticas de identidade, porque desprovidas do contrapeso das teorias da união, têm redundado por vezes em práticas fundamentalistas ou neotribais” (SANTOS, 2006, p. 87). Esse estado de coisas, de acordo com o autor português, resulta uma era de extremos simultâneos, marcada por separatismos e segregacionismos. Também é de se destacar que, para Boaventura, o Estado, a partir do pós-Segunda Guerra, reveste-se de uma nova roupagem, nascendo o Estado-Providência (Welfare State, ou Estado de Bem-Estar), que, fazendo uso de seu poder supremo (a summa potestas interna), e sob a justificativa de seguir o bem comum como norte de suas ações, passa a intermediar as relações sociais entre as classes dominante e trabalhadora, visando a

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pacificar – se não, amainar – as potenciais subversões da ordem e do status vigente. Instrumentalizando a social-democracia, ajusta-se um pacto em que os trabalhadores “renunciam às suas reivindicações mais radicais, as da eliminação do capitalismo e da construção do socialismo, e os patrões renunciam a alguns dos seus lucros, aceitando ser tributados com o fim de se promover uma distribuição mínima de riqueza” (SANTOS, 2006, p. 286). Boaventura, contudo, aponta que essa lógica já não mais persiste, principalmente em razão de fatores econômicos em constante transformação – em uma proporção muito mais avassaladora do que inicialmente se poderia prever (SANTOS, 2006, p. 287). Em verdade, a crise é mais para as classes populares, como diz o autor, à medida que os sacrifícios da máquina burocrático-administrativa, diante da crise econômica, são, em linhas gerais, em desfavor da continuidade de políticas sociais antes implementadas para o benefício da força produtiva (SANTOS, 2006, p. 288), o que se coaduna com a visão neomarxista de Dos Santos (2000, p. 39). Outra crítica que o sociólogo português suscita é a respeito da “desnacionalização do Estado, um certo esvaziamento da capacidade de regulação do Estado sobre a economia política nacional” (SANTOS, 2006, p. 289), fenômeno em que o poder de decisão em matéria de autorregulação transpassa do ambiente intraestatal para o supraestatal. Santos (2006, p. 289), por fim, assevera que essa “desnacionalização ‘para cima’ altera o padrão e as condições de eficácia da intervenção do Estado”, que passa a ser mero executor, “sem grande iniciativa, de políticas de regulação decididas transnacionalmente com ou sem a sua participação”. Como se vê, essas três visões contemporâneas tangenciam a questão da soberania, sobretudo a partir de uma perspectiva pós-moderna, ou seja, de que o Estado ainda joga um papel importante na vida das sociedades internas e da chamada comunidade internacional, mas que é um conceito que precisa ser atualizado para a realidade “líquida” dos últimos lustros, principalmente no que tange a diluições de todo o tipo de fronteiras. Considerações finais

Com este trabalho, buscou-se trazer à tona o tema da soberania, resgatando alguns aspectos principais das raízes do direito internacional, no tocante ao jus gentium, ou “direito das gentes”, em sua vertente moderna. Ademais, rediscutiu-se a ambivalência das soberanias interna e externa sob enfoques diferentes, tais como o eminentemente jurídico, do jurista italiano Luigi Ferrajoli, a contribuição inovadora entre o físico Fritjof Capra e o jurista italiano Ugo Mattei, que ora tende a uma aná-

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lise mais voltada às ciências sociais, ora mais jurídica, e o pensamento de vanguarda do já consagrado sociólogo lusitano Boaventura de Sousa Santos, questionador e, ao mesmo tempo, inclusivo em suas análises. Todas as propostas, sugestões e elucubrações teóricas sobre o tema da soberania, apresentadas explicitamente ou meramente referenciadas, carregam valores às vezes contraditórios, às vezes sinalizando caminhos racionais a serem considerados. Evidentemente, tanto o constitucionalismo internacional, regente da “aldeia global” que Ferrajoli busca construir, quanto o comunalismo solidário, de Capra e Mattei, e a governação humana inclusiva e contra-hegemônica de Boaventura são formulações teóricas aptas a ajudar a solucionar a complexa equação, ainda em aberto, de desigualdades e justiça social, e que persistirá complexa à medida que a realidade social, dinâmica por natureza, também se complexifica a cada instante. Por isso mesmo, a temática aqui apresentada, entendemos, urge atualizações e restruturações, que pelo menos provoquem reflexões quanto às bases dos conceitos de soberania em voga, ou em vias de institucionalização. Daí o subtítulo deste trabalho, que opta por não determinar – nem se atreve a prever –, senão apenas expor três alternativas palpáveis, embora em níveis distintos de exequibilidade, aos grandes desafios postos à sociedade de Estados soberanos em um sistema internacional anárquico. Referências

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10 O Direito Internacional em Banksy: Interlocuções entre Direito Internacional, Filosofia Política e Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

Estou muito feliz que você me fez essa pergunta, já que muitas vezes eu encontro com pessoas que me chamam de pessimista. Em primeiro lugar, em um nível pessoal, isto não é verdade em todos os casos. Em segundo lugar, os conceitos de pessimismo e de otimismo não têm nada a ver com o pensamento. Debord citou muitas vezes uma carta de Marx, dizendo que “as condições desesperadoras da sociedade em que vivo me enchem de esperança”. Qualquer pensamento radical sempre adota a posição mais extrema de desespero. Simone Weil disse: “Eu não gosto daquelas pessoas que aquecem seus corações com esperanças vazias”. Pensamento, para mim, é exatamente isso: a coragem de desesperança. E isso não está na altura do otimismo? Giorgio Agamben*

*VERSO BOOKS. CERF, Julliet. Thought is the courage of hopelessness: an interview with philosopher Giorgio Agamben. 17 jun. 2014. Disponível em:. Acesso em: 18 jun. 2014. epígrafe

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Introdução, ou para não ser um casmurro: transdisciplinariedade e Direito Internacional

Acessa-se, sem muito esperar, o Instagram. Entre fotos e mais fotos de sorrisos, viagens, pratos e eventos gastronômicos, e muita, mas muita propaganda das mais variadas mercadorias e serviços, depara-se com a seguinte imagem: uma pomba branca, de asas abertas e levando em seu bico um ramo de oliveira – imagem que, como sabemos, é associada à paz e à esperança de dias mais propícios à convivência pacífica entre os povos -, mas que, no entanto, está vestida com um colete à prova de balas e encontra-se sob a mira de uma arma de grosso calibre, cujo agente ameaçador, em razão da tecnologia empregada, pode estar a uma distância considerável de seu alvo. Impossível não sentir, ao mesmo tempo, um pesar pela realidade representada pela imagem, como também ver se formar no rosto um sorriso, se não de condescendência, mas de cansaço e de compreensão de que a afirmação confuciana - “uma imagem vale mais que mil palavras” – é, em muitos aspectos, verdadeira. A imagem acima descrita, e que se encontra registrada em um muro da cidade de Belém, na Cisjordânia, é do artista plástico contemporâneo Banksy, cuja obra, em grande medida, se manifesta por meio de uma das formas mais democráticas e acessíveis nos dias atuais, a street art, essa estranha miscelânea de pichos, desenhos e mensagens de elevação ou vulgaridade que marcam as atuais (grandes) cidades do mundo como verdadeiras tatuagens de um corpo que parece demandar, para expressar toda a complexidade de sua identidade, muito mais do que o próprio corpo: é preciso ser marcada, desenhada e coberta de imagens e mensagens que teriam ou têm o condão de as comunicar e dar inteligibilidade1. É certo, entretanto, que o mundo da arte em geral, e da pintura em particular, não é estranha ao Direito Internacional. Se ficarmos, por exemplo, no evento magno que deu origem ao sistema westfaliano, teremos tanto no âmbito da literatura – Der abenteuerliche Simplicius Simplicissimus, 1 Que as tatuagens – e grafites, por extensão – têm o condão de expressar o pertencimento e a identidade dos indivíduos – e das cidades -, encontra-se presente, por exemplo, no belíssimo poema “Também no Estado de Bem Estar”, de Thomas Tranströmer: “Também no estado de bem estar/ existe a mulher só/ que golpeia em seu apartamento/ com o martelo de suas lágrimas./ E encolhido em seu agasalho/ um homem no café/ que remói e remói/ a mesma palavra no almofariz de sua boca./ E os meninos do reformatório/ que se tatuam mutuamente/ para assinalar/ que pertencem a outra tribo./ A presença da beleza/ pode ser perigosa./ A ausência da beleza/ é mortal” (livre tradução; grifamos). A presente tradução foi feita desde a versão espanhola de Francisco J. Uriz, e que foi publicada no volume 22 na Minerva, Revista del Círculo de Bellas Artes, em 2014, cujo conteúdo ali registrado é o seguinte: “También en el estado de bienestar/ existe la mujer sola/ que golpea en su apartamento/ con el martillo de sus lágrimas./ Y acurrucado en su abrigo/ un hombre en el café/ que machaca y machaca/ la misma palabra en el almirez de su boca./ Y los chicos del reformatorio/ que se tatúan mutuamente/ para marcar/ que pertenecen a otra tribu./ La presencia de la belleza/ puede ser peligrosa./ La ausencia de la belleza/ es mortal”. (TRANSTRÖMER, 2015).

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de Hans Jakob Christoffel von Grimmelshausen, novela satírica escrita em 1648 e publicada em 1649, que narra as (des)venturas de seu personagem no curso da Guerra dos Trinta Anos em terras germânicas, cujos fatos e circunstâncias são filtrados por uma disposição de espírito que faz jus a seu nome2 -, como no da pintura, obras de qualidade invulgar que procuraram retratar esse fato importantíssimo para a história da disciplina. Um exemplo dentre os últimos é o quadro que pertence à National Gallery de Londres, de autoria de Gerard ter Borch II, intitulado The Swearing of the Oath of Ratification of the Treaty of Münster, de 1648, e que retrata o ato de ratificação do Tratado de Münster nesse mesmo ano, com o qual se pôs termo à Guerra dos Oitenta Anos entre a Holanda e a Espanha, e que toma parte, historicamente, dos tratados que compõem à Paz de Westfália, Figura 1. Figura 1 - Gerard ter Borch II: “The Swearing of the Oath of Ratification of the Treaty of Münster”, 1648

Fonte: National Galley, London, United Kingdom

2 Sobre este personagem, Negri e Hardt afirmaram: “Simplicissimus is born in the midst of Germany’s Thirty Yers’ War, a war in which one-third of the German population died, and true to his name Simplicissimus views this world with the simplest, most naive eyes. How else can one understand such a state of perpetual conflict, suffering, and devastation? The various armies- the French, Spanish, Swedish, and Danish, along with the different Germanic forces - pass through one after the other, each claiming more virtue and religious rectitude than the last, but to Simplicissimus they are all the same. They kill, they rape, they steal. Simplicissimus’s innocent open eyes manage to register the horror without being destroyed by it; they see through all the mystifications that obscure this brutal reality” (HARDT; NEGRI, 2004, p. 5).

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A pintura retrata o encontro das delegações holandesa (os seis homens ao centro da mesa) e espanhola (os dois homens à direita) na Ratskammer da Prefeitura de Münster, no momento em que ratificam, simultaneamente, as duas versões do Tratado. Ponto interessante é que, à extrema esquerda do quadro e junto à delegação espanhola, foi retratado um padre franciscano, e à extrema esquerda, um autorretrato do pintor. A composição tem, no todo, setenta e sete homens. A solenidade com que a imagem foi feita evidencia, doutra parte, o seu caráter oficial, como seja, a pretensão de retratar, para os seus contemporâneos e para a posteridade, o evento tal como ele, pretensamente, ocorreu, bem como a importância do ato e dos atores envolvidos. O presente trabalho, no entanto, intenta aproximar, desde uma perspectiva transdisciplinar, uma possível interlocução entre Direito Internacional, street art e filosofia política, cujo principal objetivo é o de demonstrar, de um lado, que os problemas sentidos pela comunidade de internacionalistas é compartilhada por outras formas de expressão da razão e da emoção humanas, mas sem a usual contenção que a Ciência Jurídica interpõe como parâmetro de fazer-se ciência para ser-se relevante e aceitável, aqui representada pela figura do Casmurro3, e de outro lado perceber, desde esta perspectiva transdisciplinar, que é possível não somente enriquecer-se o discurso jurídico, mas também torná-lo relevante e audível por outros campos da razão e da emoção humanas, e com isso permitir-se, quem sabe, o diálogo entre saberes. A transdisciplinariedade que guia este trabalho é identificada a partir das lições do filósofo italiano Giorgio Agamben e o seu conceito de paradigma. Possibilidades e exigências da interlocução entre Direito Internacional, Filosofia Política e Street art

Afirma-se que existe interlocução quando, e somente quando, as disciplinas que se põem a dialogar, seja por um ato pessoal (em um artigo orientado pela transdisciplinariedade, por exemplo) ou coletivo (em um artigo coletivo escrito por autores de duas ou mais áreas do conhecimento, mas também numa mesa redonda ou ciclo de conferências etc), abdicam, cada qual, de sua pretensão à hegemonia discursiva e à apresentação da “palavra final”4, e se abraça a exigência da construção de 3 Conforme Houaiss (2009): “Diz-se de ou indivíduo fechado em si mesmo; ensimesmado, sorumbático”. 4 Impossível não nos lembrarmos do poema A Palavra Final, de Elemér Horváth, na tradução de Barreto Guimarães: “A palavra final pertence ao Editor/ ele tem um secretário da cultura/ o Secretário tem um primeiro-

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uma narrativa construída pelo diálogo plural, cujo resultado é a presença, nesse relato, de todos os campos chamados à sua composição. A interlocução, portanto, constitui-se numa exigência. Mas o que vem a ser uma exigência? Qual o seu estatuto epistemológico? Conforme Giorgio Agamben (2018, p. 611), Uma exigência nunca coincide com as categorias modais com as quais estamos familiarizados. O objeto da exigência não é nem necessário nem contingente, não é possível nem impossível. Pode-se dizer, entretanto, que uma coisa “exige” ou demanda [a] outra quando ocorre que, se a primeira coisa é, a outra também tem que ser, sem que, necessariamente, a primeira esteja logicamente implicada na segunda ou forçando-a a existir no âmbito dos fatos. Uma exigência é simplesmente algo além de toda necessidade e de toda possibilidade. É similar a uma promessa que somente pode ser cumprida por aquele que a recebe.

Se os tempos que hoje correm tendem a impedir o diálogo e a construção de alternativas às catástrofes que nos abatem, a interlocução entre disciplinas constitui-se, a todo rigor, numa exigência de nosso tempo, e que somente pode ser assumida por aquele que internaliza o cumprimento da promessa contida no ideal emancipatório concernente aos princípios que fundamentam o Direito Internacional dos Direitos Humanos e à Democracia e uma filosofia política de natureza crítica. Disso não se segue, doutra banda, que a interlocução terá, como efeito concreto, a alteração da realidade. Por ser, ao mesmo tempo, uma postura e um procedimento, terá, necessariamente, aquela topologia que Michel Foucault tão bem descreveu em O que é a crítica? Crítica e Aufklärung, isto é, a exterioridade, uma vez que, tendo a pretensão de desempenhar o papel de polícia (criticar o poder e a verdade), não tem a capacidade de fazer a lei (FOUCAULT, 2006). Como já afirmado, o cumprimento dessa exigência de interlocução no presente trabalho se dará a partir do conceito agambeniano de paradigma. Todos, de uma forma ou de outra, principalmente os que fazem das comunidades universitárias sua forma de vida, usam, correta ou incorretamente, o conceito de paradigma e suas variações nas mais diversas acepções epistemológicas possíveis. Paradigma, portanto, será ou um conceito epistemológico ou um chavão/muleta linguística em uso corrente na vida acadêmica ou mesmo fora. ministro/ o primeiro ministro tem um governo/ o governo tem uma polícia/ a polícia tem armas./ Eu tenho um poema/ o poema é um tirano/ recusa assumir compromissos/ no sentido estrito da palavra/ é a palavra final/ a neve é azul como uma laranja” (HORVÁTH, 2018).

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Por que esse conceito é importante para o presente trabalho? Simplesmente porque Agamben define o seu trabalho intelectual essencialmente como arqueológico e paradigmático. Em 2006, numa entrevista dada a Flávia Costa, Agamben assim definiu o seu pensamento: Meu método é arqueológico e paradigmático num sentido muito próximo ao de Foucault, mas não completamente coincidente com ele. Trata-se, diante das dicotomias que estruturam nossa cultura, de ir além das exceções que as têm produzido, porém não para encontrar um estado cronologicamente originário, mas, ao contrário, para poder compreender a situação na qual nos encontramos. A arqueologia é, nesse sentido, a única via de acesso ao presente. Porém, superar a lógica binária significa, sobretudo, ser capaz de transformar cada vez mais as dicotomias em bipolaridades, as oposições substanciais num campo de forças percorrido por tensões polares que estão presentes em cada um dos pontos sem que exista alguma possibilidade de traçar linhas claras de demarcação. Lógica do campo contra lógica da substância. Significa, entre outras coisas, que entre A e B se dá um terceiro elemento que não pode ser, entretanto, um novo elemento homogêneo e similar aos anteriores: ele não é outra coisa que a neutralização e a transformação dos dois primeiros. Significa, enfim, trabalhar por paradigmas, neutralizando a falsa dicotomia entre universal e particular. Um paradigma (o termo em grego quer dizer simplesmente “exemplo”) é um fenômeno particular que, enquanto tal, vale por todos os casos do mesmo gênero e adquire assim a capacidade de construir um conjunto problemático mais vasto. Nesse sentido, o panóptico em Foucault e o duplo corpo do rei em Kantorowicz são paradigmas que abrem um novo horizonte para a investigação histórica, subtraindo-a aos contextos metonímicos cronológicos (França, o século XVIII). No mesmo sentido, em meu trabalho, lancei mão constantemente dos paradigmas: o homo sacer não é somente uma figura obscura do direito romano arcaico, senão também a cifra para compreender a biopolítica contemporânea. O mesmo pode ser dito do “muçulmano” em Auschwitz e do estado de exceção. (COSTA, 2006, p. 132-133, grifo nosso)

Esse conceito foi mais bem desenvolvido por Agamben (2008) em seu Signatura Rerum: Sul Metodo. Assim, segundo ele, o seu pensamento é paradigmático, e não histórico, sendo essa afirmação importante por dois motivos: a uma, para defenestrar os críticos que pretendem ver em seu trabalho o mesmo défice que se tentou apontar no de Foucault – o de que ele fazia história, e não filosofia -, e a duas, para se compreender corretamente o que ele pretende descrever em termos filosóficos quando se 248

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utiliza de conceitos como homo sacer, estado de exceção, biopolítica, teologia econômica, teologia política etc, e que estão presentes em sua obra. Para Agamben, o paradigma é compreendido desde a obra de Aristóteles, que em sua Retórica, afirmou que o exemplo – que ele utiliza como sinônimo de paradigma – não concerne à parte em relação ao todo, nem ao todo em relação à parte, mas sim que este atine a uma relação da parte consigo mesma. O exemplo, por isso, não se move do particular ao geral – indução -, nem do geral para o particular – dedução -, mas sim que o exemplo se move do particular para o particular, manifestando a sua própria singularidade. Nesta relação da parte consigo mesma ocorre uma neutralização das substâncias, surgindo um novo elemento – o exemplo -, que em sua singularidade não gera uma oposição – ou A ou B -, mas sim uma tensão bipolar – entre A e B surge um tercium genus antes oculto, um novo elemento -, e com ela, um novo contexto ontológico capaz de explicar ambas as polaridades (AGAMBEN, 2008, p. 11-35). Um exemplo significativo em sua obra é o homo sacer. O homo sacer era uma figura pertencente ao direito romano arcaico que identificava uma pessoa condenada pela sociedade por ter praticado um determinado ilícito, sendo, em razão disso, posta numa zona de gris entre o direito divino e o direito humano, tornando-se, pois, em uma vida insacrificável, porém matável. O que isto quer significar? Que essa pessoa, em razão da sua condenação (sacer esto), somente pertencia à esfera do direito humano na medida em que qualquer um que a encontrasse poderia matá-la, sem com isso atrair a imputabilidade jurídico-penal pela prática do homicídio. Era, portanto, matável. De outro giro, o homo sacer não poderia ser oferecido em oblação aos deuses, porquanto excluído da esfera do direito divino. Era, portanto, insacrificável (AGAMBEN, 2004). Se o homo sacer é um paradigma, é porque desde o mesmo se pode levantar três hipóteses bastante interessantes acerca da relação entre vida, poder e direito (DE OLIVEIRA, 2014, p. 50-52): a) que o princípio da sacralidade da vida humana, reitor da política moderna, deve ser interpretado como o ponto de indecidibilidade em que a vida humana, embora sacra e inviolável por força das normas jurídicas, se torna matável sempre que se instaura o estado de exceção, entendido, em sentido político, como a suspensão voluntária da vigência do ordenamento jurídico; b) como primeira consequência, a principal característica da política moderna é a de gerar homines sacri, já que aquela se funda, desde sempre sobre a vida, como seja, é desde sempre uma biopolítica. Com efeito, essa teoria da filosofia política contemporânea 249

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se caracteriza pela crítica que faz ao fato de que a gestão da vida biológica pelo poder estatal implica no estabelecimento de políticas sanitaristas e em práticas eugenistas, bem como na adoção de políticas humanitárias, isto é, em atos de gestão política que têm por finalidade a depuração das doenças e pestes que possam criar riscos à população, como também, na adoção de políticas que, pelo exercício da violência ou mesmo da guerra, pretendem salvar a vida humana. O que qualifica, neste sentido, a biopolítica é que a vida humana, nas suas manifestações mais comezinhas – nascimento, morte, trabalho, sexualidade, saúde etc – se torna em objeto de controle do poder político, podendo, em muitos casos, converter-se numa tanatopolítica, valer dizer, numa gestão econômica da morte daqueles sobre quem se decide serem portadores de “uma vida indigna de ser vivida”; e c) como segunda consequência, como o estado de exceção se tem tornado a regra no regime político ocidental, todos os homens são passíveis de se tornarem homines sacri, seja na figura do refugiado, do além-comatoso, dos favelados que são os alvos preferenciais das políticas de segurança pública ou pelos assistidos de ajuda humanitária, cujas vidas, embora sacras e invioláveis, são matáveis sempre que uma decisão jurídico-política os declarem portadores de uma vida que não merece ser vivida. Para o presente trabalho será exemplar, isto é, paradigmática, a obra de Banksy abaixo reproduzida, e que foi extraída da página que o artista mantém no Instagram, e que será mais bem analisada e discutida no tópico que segue. Banksy e o do Direito Internacional

De Banksy, mesmo, pouco se sabe além daquilo que ele tenha revelado de si, por exemplo, no documentário Exit Throught the Gift Shop - que venceu nessa categoria o Oscar de 2011, competindo, dentre outros, com o filme sobre a obra do artista plástico brasileiro Vik Muniz, Lixo Extraordinário -, uma vez que ele decidiu adotar a persona que dá visibilidade pública à sua obra, ocultando, nesse sentido, a própria. Com isso, a discussão acerca da (real) identidade de Banksy – se uma pessoa ou um grupo de artistas, por exemplo - se tornou em um fenômeno cultural par excellence, espocando cá e lá matérias que tentam identificar o indivíduo

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por trás da persona5. A prática, como se sabe, não é estranha ao mundo das artes em geral, bastando lembrar, nesse sentido, que ela foi adotada pelo grupo de hard rock Kiss durante muito tempo, isto é, desde 1973, com a formação da banda e o lançamento do primeiro álbum em 1974 – Kiss -, até 1983, quando foi divulgado o seu décimo primeiro álbum – Lick it up -, no qual eles apareceram na capa do disco sem as famosas máscaras. Interessante lembrar que a ocultação da identidade do artista e a adoção de uma persona que lhe dá visibilidade pode ser remontada à origem do teatro grego e à civitas romana. Com efeito, a palavra grega que dá origem à expressão pessoa na conotação ora estudada – πρόσωπον [prósopon; no plural πρόσωπα, prosopa]; a outra é ύπόστασιϛ [hypostasis], sendo que esta última geralmente é empregada no contexto da ontologia ocidental para identificar a substância, o próprio ser - originou-se, segundo Boécio, [...] daquelas pessoas que nas comédias e tragédias representavam homens; pois pessoa vem de “apresentar-se”, porque devido à concavidade, necessariamente se fazia mais intenso o som. Os gregos chamaram a estas pessoas prosopa, posto que punham sobre a face e os olhos para ocultar o rosto. (BOETHIUS, 1968, p. 85-87)

Já no contexto romano, o conceito de prosopa-máscara passou a identificar a própria identidade do cidadão romano, uma vez que Persona significa na origem “máscara” e é através da máscara que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social. Assim, em Roma, cada indivíduo era identificado por um nome que exprimia a sua pertença a uma gens, a uma estirpe, mas esta era, por sua vez, definida pela máscara de cera do antepassado que cada família patrícia guardava no átrio de sua casa. Daqui a fazer persona a “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social, a distância é curta e persona acabou por significar a capacida

5 Por exemplo: THE TELEGRAPH. Who is Banksy and what is his real name? The man behind the myths and rumors. Disponível em:. Acesso em: 20 jan. 2018; BBC. Who is the street artist Banksy? Disponível em:. Acesso em: 20 jan. 2018; NEXO JORNAL. A identidade de Banksy pode ter sido revelada. Para além do nome, por que sua obra importa. Disponível em:. Acesso em: 20 jan. 2018; FOLHA DE SÃO PAULO. Sem querer, identidade de Banksy pode ter sido revelada por amigo. Disponível em:. Acesso em: 20 jan. 2018.

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de jurídica e a dignidade política do homem livre. Quanto ao escravo, do mesmo modo que não tinha nem antepassados, nem máscara, nem nome, não podia também ter uma “pessoa”, uma capacidade jurídica (servus non habet pernsonam) (AGAMBEN, 2009, p. 61, grifo do autor)

Importante lembrar que a obra de Banksy não pode ser circunscrita somente à street art. Nada obstante tenha sido esta forma artística aquela que lhe deu visibilidade desde sua (possível) cidade-natal, Bristol (BULL, 2015), hoje ela se dispersa em diversas formas, desde a vídeo instalação, passando pela performance, chegando a outras que se situam no limiar entre todas as outras, como, por exemplo, o parque Dismaland (a Disneylândia para anarquistas)6, e o denominado “hotel com a pior vista do mundo”, o Walled off Hotel, que foi por ele aberto com o apoio de outros artistas na cidade de Belém, na Cisjordânia, em frente ao muro construído por Israel na zona ocupada da Palestina7, muro que foi considerado como uma violação ao Direito Internacional pela Corte Internacional de Justiça no Parecer Consultivo Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestine Territory (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 2004). Outro ponto interessante de sua produção artística concerne ao fato de que em recente pesquisa junto à opinião pública inglesa acerca da obra de arte que os súditos da rainha mais apreciavam, o grafite/quadro The Girl with Baloon de Banksy foi a escolhida8, à frente, por exemplo, dos clássicos pintores ingleses – e altamente rentáveis – J.M.W. Turner, Antony Gormley e John Constable9 -, o que levou a crítica especializada

6 HUFF POST. The Lasting Legacy Of Banksy’s Dismaland. Disponível em:. Acesso em: 30 ago. 2016. 7 THE GUARDIAN. Banksy Walled Off Hotel in Palestine to sell new works by elusive artist. Disponível em:. Acesso em: 10 set. 2017b. 8 THE GUARDIAN. Banksy stencil soars past Hay Wain as UK’s favourite work of art. Disponível em:. Acesso em: 26 jul. 2017a. 9 INDEPENDENT. Banksy’s ‘Balloon Girl’ beats paintings by Constable and Turner to be named Britain’s favourite artwork. Disponível em:. Acesso em: 25 jul. 2017. A relação de artistas/obras, por ordem de preferência foi a seguinte: 1. Banksy: Balloon Girl; 2. John Constable: The Hay Wain; 3. Jack Vettriano: The Singing Butler; 4. JMW Turner: The Fighting Temeraire; 5. Antony Gormley: The Angel of the North; 6. L S Lowry: Going to the Match; 7. John William Waterhouse: The Lady of Shalott; 8. Peter Blake: Sgt Pepper album cover; 9. Hipgnosis and George Hardie: Dark Side of the Moon album cover; 10. George Stubbs: Mares and Foals; 11. Thomas Gainsborough: Mr and Mrs Andrews; 12. John Everett Millais: Ophelia; 13. Andy Goldsworthy: Balanced Rock Misty; 14. David Hockney: A Bigger Splash; 15. Bridget Riley: Movement in Squares; 16. Anish Kapoor: ArcelorMittal Orbit; 17. Stik: A Couple Hold Hands in the Street; 18. Maggi Hambling: Scallop; 19 Henry Moore: Reclining Figure; 20. Jamie Reid: Never Mind the Bollocks album cover. BBC NEWS. Banksy’s balloon girl chosen as nation’s favourite artwork. Disponível em:. Acesso em: 27 jul. 2017.

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a, em muitos casos, tachar à opinião pública de ignorante e estúpida10. Essa dissociação entre opinião pública e crítica especializada, mais do que demonstrar a inexistência de uma ponte entre os dois âmbitos de apreciação estética, evidencia o próprio auto encerramento da crítica e do mundo da arte num círculo pouco afeito, se não completamente ignorado e ignorante à externalidade na qual vive, como se, entre os dois polos, existisse, quando menos, uma aporia, se não uma anfibologia, isto é, uma impossibilidade de predicação e compreensão que os impede de se comunicar e se compreender. Feitas estas ligeiras considerações biobibliográficas de Banksy, passemos a analisar a obra que escolhemos para firmar a interlocução entre Direito Internacional e street art. Si vis pacem para bellum

A paz continua a ser, como sempre foi, uma trégua entre duas guerras Norberto Bobbio*

A obra de Banksy que escolhemos, Figura 2, foi aquela inicialmente relatada no presente trabalho, e que se encontra abaixo reproduzida.

10 THE GUARDIAN. Britain’s best-loved artwork is a Banksy. That’s proof of our stupidity. Disponível em:. Acesso em: 26 jul. 2017c. * BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias da paz. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

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Figura 2 – Pomba branca vestida com colete à prova de balas e sob a mira de uma arma

Fonte: Banksy, Bethlem, Cisjordânia

Como o sabe qualquer professor da disciplina, um dos primeiros problemas que é preciso ser enfrentado na compreensão dessa imagem desde uma interlocução com o Direito Internacional é a necessária distinção entre conflito e guerra, internacional ou não. Com efeito, ao ler-se o disposto nos artigos 1.1 e 2.3 da Carta das Nações Unidas, o que o Sistema da Carta busca assegurar não é a inexistência de conflitos, conceito que pode ser interpretado desde aquele que é dado pela ciência processual – pretensão resistida de interesse, no caso, nacionais ou internacionais entre Estados -, mas a guerra, entendida em sentido jurídico-internacional, conforme Oppenheim, como “[...] a contenda entre dois ou mais Estados por meio de suas forças armadas, com o propósito de sobrepor um ao outro e impor condições de paz aprazíveis ao vitorioso” (apud Dinstein, 2004, p. 5). Com efeito, segundo já afirmara Rousseau, Não é, pois, a guerra uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares apenas acidentalmente são inimigos, não na qualidade de homens, nem mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada Estado não pode ter como inimigo senão outro Estado, nunca homens, entendido que entre coisas de naturezas diversas é impossível fixar uma verdadeira relação. (ROUSSEAU, 2007, s/p.)

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Hans Kelsen, em seus comentários à Carta das Nações Unidas, assim se manifestou sobre esta distinção: The peace maintenance or restoration of which is a purpose of the United Nations is characterised (sic) as international peace. In ordinary language, international peace is a condition of absence of force in the relations among the states […] Hence the Principles formulated as obligations of Members: to settle international disputes by peaceful means and to refrain from threat or use of the force, apply also to non-members states. (KELSEN, 1951, p. 19)

Em síntese, no Sistema da Carta objetiva-se a manutenção da paz internacional – entendida como a inexistência de conflitos armados entre Estados, obrigação que se estende inclusive para aqueles Estados que não são membros das Nações Unidas (artigo 2, 5 e 6 da Carta) -, mas não os conflitos de interesses. Se estes existirem, constitui-se em obrigação internacional dos Estados buscarem a solução do diferendo por formas pacíficas (artigo 2, 3 da Carta), que sendo uma obrigação de comportamento, abre um amplíssimo espaço para que eles escolham o meio de se obter a solução do conflito, conforme expresso no princípio de livre escolha dos meios (Declaração de Manila sobre a Solução Pacífica de Conflitos Internacionais, Resolução 37/10 da Assembleia Geral das Nações Unidas)11. Contextualizada, no entanto, a imagem de Banksy, é bastante claro que ele não se preocupou em retratar o problema das diversas guerras que espocaram desde a aprovação da Carta das Nações Unidas em 1945, mas os fracassos dos acordos de paz entre Israel e a Palestina, aos quais se poderia jungir as diversas Resoluções das Nações Unidas que busca(ra)m impor limites vis-à-vis aos contendores, desde a proibição da ampliação de novos assentamentos judeus em terras palestinas aos bombardeios em terras israelenses promovidos pelo Hamas, passando, por obviedade, pela adoção, por Israel, de uma genuína política de Apartheid em relação aos árabes e palestinos que vivem em Israel e na Cisjordânia, que se acentuou, da perspectiva constitucional, com a aprovação da Lei do Estado-Nação que declara Israel Estado judeu12, e a recente declaração unilateral de que ele pretende exercer soberania sobre as Colinas de Golã, até o momento reconhecida somente pelos Estados Unidos. 11 “International disputes shall be settled on the basis of the sovereign equality of States and in accordance with the principle of free choice of means in conformity with obligations under the Charter of the United Nations and with the principles of justice and international law. Recourse to, or acceptance of, a settlement procedure freely agreed to by States with regard to existing or future disputes to which they are parties shall not be regarded as incompatible with the sovereign equality of States”. 12 Disponível em:. Acesso em: 31 jan. 2019.

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Entretanto, a questão mais interessante da imagem é o fato de ela expor, imageticamente, um conhecido princípio das relações internacionais que pode ser sintetizado na sentença que Gerald Flavius Vegetius Renatus cunhou em seu Epitoma Rei Militaris, segundo a qual “[i] gitur qui desiderat pacem praeparet bellum [...]” (REEVE, 2004, p. 64)13, popularmente conhecida “si vis pace para bellum”: se queres a paz, prepara-te para a guerra. Conforme demonstrou Christopher Allmand em seu The De Re Militari of Vegetius. The reception, transmission and legacy of a roman text in the middle ages, a obra de Vegetius se constituiu numa das principais referências da polemologia e de estratégia militar durante largos séculos, tendo influenciado a obra de autores tão importantes como John de Salisbury, Alfonso X e suas Siete Partidas, Jean Juvénal e Maquiavel (ALLMAND, 2011, p. 83-147), mormente pelo fato de este autor ter posto a relação guerra-paz não numa perspectiva transcendental tão comum ao pensamento medieval, mas realista, uma vez que o ponto central de sua concepção polemológica funda-se sobre o conceito de prudentia, pois o estar preparado para a guerra “[...] involved the provision of adequate arms, and in particular armour, and proper training in the use of both, as well as the creation of a psychological background favourable to those about to go into battle [...]” (ALLMAND, 2011, p. 258). Mas não somente a preparação material, como também a de natureza psicológica e de formação e treinamento contínuo dos soldados, uma vez que Vegetius defendeu consistentemente a importância da formação moral das tropas, […] emphasising that the state of mind of those actively participating in war could be a crucial factor in deciding the outcome of events. Fear was one such factor to which Vegetius made reference, directly or indirectly, on several occasions. Men, he argued, were not naturally brave, but might become so with training, as weapons properly used helped to inspire confidence. The part to be played by morale was something which Vegetius understood very well. More than once he underlined the need for every commander to address his men before battle, a practical step to encourage confidence in their ability to defeat the enemy. Over the centuries the leader’s stirring address became an essential part of any description of a battle about to take place. (ALLMAND, 2011, p. 258)

13 O texto integral do parágrafo é o seguinte: “Igitur qui desiderat pacem praeparet bellum; qui victoriam cupit milites imbuat diligenter; qui secundos optat eventus domicet arte, non casu. Nemo provocare, nemo audet offendere, quem intellegit superiorem esse si pugnet” (REEVE, 2004, p. 64).

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Essa concepção polemológica parece, em muitos sentidos, distante do pensamento contemporâneo que pretendeu, pelo menos desde o entre guerras, proscrever a guerra como meio de solução de controvérsias internacionais14, tendo mesmo, logo após o término da Segunda Guerra, erigido o sistema internacional da Carta, cuja meta mais ambiciosa é aquela que se encontra inscrita nas palavras iniciais do preâmbulo: “[...] preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade [...]”. Com efeito, conforme afirmado por Prosper Weil, “La Charte des Nations Unies [...] substitué au ‘modéle de Westphalie’, caractérisé par la force comme principale source de légitimité, le ‘modéle de la Charte’ [...] qui refuse toute légitimité au recours à la force” (WEIL, 1992, p. 28), pelo que o jus ad bellum restou convertido no jus contra bellum e no jus in bellum na forma da legítima defesa, individual, mas principalmente coletiva (DE OLIVEIRA, 2014, p. 153-182). Que o sistema da Carta tenha abolido a legitimidade da guerra como forma de solução de controvérsias internacionais não implica em afirmar-se, no mesmo passo, que os Estados tenham renunciado ou devam renunciar à máxima de Vegetibus, e não devam se preparar para a guerra, caso ela venha a espocar há qualquer momento. Tanto isso se constitui num truísmo das relações internacionais em qualquer época, que a própria Carta da Nações Unidas, em seu capítulo VII, institui tanto a legitimidade internacional da legítima defesa individual em face de uma agressão armada (artigo 51)15, uma vez que, da perspectiva tanto do Direito Internacional como do Direito Penal Internacional, a agressão armada é qualificada como espécie de crime internacional próprio (artigo 5º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional), ensejando a persecução penal internacional direta pelos tribunais penais internacionais, bem como a imputação de responsabilidade internacional pelo cometimento de ato ilícito internacional excepcionalmente grave (exceptionally 14 “Your don’t have to be an expert in international relations to know that the agreement – referem-se ao Pacto BriandKellog – signed that day […] failed to end war. Three years after the grand pronouncement, Japan invaded China. Four years after, Italy invaded Ethiopia. Four years later, Germany invaded Poland and the most of Europe. With the exception of Ireland, every one of the states that had gathered in Paris to renounce war was at war. And the ensuing catastrophe was for more destructive than the one that proceeded it” (HATHAWAY, SHAPIRO, 2017, p. xi). 15 Importante lembrar que no Relatório Ago do draft sobre Responsabilidade Internacional dos Estados, ele havia proposto que aquilo que o Relatório Crawford mais tarde denominou de exceptionally serious wronful act deveria ser identificado como Delito Internacional. Conforme Ago, tal se justificava pelo seguinte motivo: “La notion du délit, ou plus exactement celle du tort ou du fait illicite, dont, pour des raisons de commodité terminologique, nous la considérerons comme synonyme, entre dans cette catégorie de notions (droit subjectif, devoir juridique, contrat, acte juridique, etc) qui n’appartiennent pas plus au droit étatique qu’au droit international, mais qui, même si eles ont été étudiées plus spécifiquement par rapport à une certaine branche du droit, ont par ailleurs été admises dans le domaine de la théorie générale du droit [...] l’attribution de la qualité juridique d’illicite à um fait donné s’identifie une obligation de réparer ou bien légitimant l’application d’une sanction” (AGO, 1939, p. 422-426).

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serious wronful act), como também atruiu competência para que o Conselho de Segurança, na qualidade de garante da segurança e da paz internacionais, possa adotar todas as medidas necessárias para obrigar a um Estado que tenha praticado uma agressão internacional a cessá-la, inclusive mediante a intervenção armada internacional, para a qual os Estados membros deverão prestar colaboração, bem como acatar as resoluções de natureza substantiva proferidas pelo órgão (artigos 45-50 da Carta). Royo Villanova, em obra precursora dos estudos entre literatura e Direito Internacional – Cervantes e o Direito das Gentes, de 1907-, assim asseverou este truísmo: Entretanto, há muitos que estranham quando se afirma que a finalidade das armas é a paz (e Conferência da Paz se chamou àquela que se reuniu na Haia com o frustrado propósito do desarmamento) e, no entanto, D. Quixote afirma, no referido discurso, que “a finalidade das armas é a paz, que é o maior bem que os homens possam desejar nessa vida”. Assim traduzia D. Quixote o célebre apotegma si vis pacem para bellum cada vez mais comprovado pela triste e reiterada experiência dos povos. A causa da guerra não [se] fundamenta tanto na força dos poderosos como na fraqueza dos débeis. Se Espanha tivesse conhecido sua debilidade ou tivesse se inteirado da fortaleza dos ianques, certamente que não teria ido à guerra. Se Rússia, ao mesmo tempo em que rogava a Deus pela paz na generosa iniciativa de Nicolau II, continuasse a se preparar (no original, [...] rogando à Dios por la paz [...] hubiesse seguido dando al mazo [...]) de provisões e armamentos, não teria o Japão se atrevido a perturbar a paz dos Czares. Isso significa as alianças na Europa conforme a afirmação pacífica de Soberanos e Chanceleres. Essa acumulação de forças em extraordinários armamentos são uma garantia da paz pela inquietude que assalta os ânimos dos estadistas face à ideia de turbá-la, rompendo hostilidades cujo começo é sabido, mas cujas consequências ninguém poderia calcular. Dize-o bem D. Quixote: “a finalidade das armas é a paz”. (ROYO VILLANOVA, 2019, s/p.)

Para Royo Villanova, devia a Rússia, enquanto rogava a Deus pela paz, “[...] hubiesse seguido dando al mazo [...]” pois, para ficarmos em mais expressão cervantina, em matéria de defesa nacional, “[t]anto se pierde por carta de más como por carta de menos”, sendo esse princípio político uma exigência ainda persistente nas relações internacionais entre os Estados, nada obstante todo o rechaço – devido e necessário – à guerra.

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Conclusão, ou do abandono...

A própria natureza do presente escrito – mais um ensaio que um artigo científico – afasta(ria) a exigência de uma “conclusão”, pelo menos aquela definida pela metodologia científica na forma da lógica da pesquisa científica – problema/hipótese – pesquisa – resultado = conclusão. Talvez se possa aplicar, no presente caso, a lógica agambeniana do abandono, por ele definida no penúltimo volume da série Homo Sacer16. No entanto, ante a prevalência dos casmurros/apolíneos na comunidade científica sobre os dionisíacos, procurar-se-á nas linhas abaixo sintetizar uma espécie de conclusão, assim consignada: 1. A interlocução entre saberes e o método transdisciplinar é uma exigência contemporânea. Enquanto exigência, a única possibilidade de sair do âmbito da potência de não para a potência de sim, e com isso fazer-se ato, é se assumir a promessa de defesa renhida, consistente e permanente dos princípios fundamentais da comunidade internacional, sintetizadas, ao modo kantiano, no conceito de dignidade humana, isto é, “[...] quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade.” (KANT, 2013, p. 82). 2. A paz que se busca assegurar pelo Direito Internacional contemporâneo é aquela caracterizada pela ausência de um conflito armado entre dois os mais Estados. Nada no sistema da Carta ilide ou infirma a existência de um conflito de interesses entre os Estados. As principais exigências, caso eles surjam, são que: a) seja solucionado de forma pacífica; e b) que os Estados se abstenham da propaganda de guerra ou de ameaça como forma de compelir à contraparte à solução do conflito. No entanto, nesse âmbito, aos Estados se assegura uma ampla discricionariedade internacional. 3. Nesse sentido, como tem sido indicado por Pastor Ridruejo, a característica mais destacada da sociedade internacional contemporânea é a de se encontrar numa fase de transição de uma sociedade de justaposição – modelo westfaliano de Estados independentes -, para uma sociedade de cooperação – modelo da Carta -, em que, ao lado dos interesses particulares dos Estados, passa-se a ter um 16 Coloro che hanno letto e compreso le parti precedenti di quest’opera sapranno che non devono aspettarsi né un nuovo inizio né tanto meno una conclusione. Occorre, infatti, revocare decisamente in questione il luogo comune, secondo cui è buona regola che uma ricerca cominci con una pars destruens e si concluda con una pars construens e, inoltre, che le due parti siano sostanzialmente e formalmente distinte. In una ricerca filosofica, non soltanto la pars destruens non può essere separata dalla pars construens, ma questa coincide in ogni punto senza residui con la prima (AGAMBEN, 2014, p. 9).

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maior compartilhamento de interesses e valores universais e/ou comuns que devem ser protegidos não pelo Estado, mas pelos Estados a partir de um regime de cooperação que tem na juridicização (Direitos Internacionais Especiais), na institucionalização (constituição de Organizações Internacionais e/ou regimes internacionais) e na jurisdicionalização (sistemas judiciais ou quase-judiciais de soluções de controvérsias) as suas marcas mais significativas (PASTOR RIDRUEJO, 2014, p. 48-49). Entretanto, as conhecidas deficiências do Direito Internacional, sinteticamente alocadas por este autor nas expressões “carências institucionais” e “politização alargada” (PASTOR RIDRUEJO, 2014, p. 23), somente poderão ser mitigadas não com a infirmação das jurisdições nacionais (rectius: soberania), mas com a exigência de atuação concreta e institucionalmente adequada dos Estados na defesa dos valores e interesses comuns da humanidade. 4. Até que se opere aquela transição acima indicada, os Estados continuarão sendo os principais atores internacionais, seguindo, pois, desde uma perspectiva do realismo político, a máxima de Vegetibus. 5. A unir as duas concepções, ter-se como guia a lição que Pastor Ridruejo consignou: para ser-se idealista é preciso, antes de tudo, ser-se realista, isto é, sustentar a necessidade de aperfeiçoamento dessas instituições com pés firmes na realidade das relações internacionais tal como elas efetivamente se concretizam e de conformidade com o Direito Internacional posto (PASTOR RIDRUEJO, 2014, p. 42-43), e não em ideais (ainda) inatingíveis e moralizações que tendem a excluir a própria esfera política de que se revestem as relações entre Estados.

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11 Direito Ambiental Internacional: solidariedade intergeracional na pós-modernidade transnacional Layde Lana Borges da Silva Thais BernardesMaganhini

Introdução

O equilíbrio entre o meio ambiente e o desenvolvimento econômico é uma das tarefas mais difíceis que a humanidade já enfrentou. O dilema é constante e desafia a humanidade no sentido de que, para se manter o meio ambiente equilibrado é preciso abrir mão de certas práticas econômicas, agronegociais, a utilização de componentes e defesas químicas da produção agrícola, entre outras, e para sobrevivência humana, é preciso sacrificar parte do meio-ambiente, já que é necessário substituir florestas por áreas agriculturáveis. Os riscos ambientais são criados a partir de algumas ações humanas que se revelam antrópicas, mas há os riscos que se desconhecem. São insondáveis, estão encobertos pela incerteza sobre sua existência.1 Frente tais riscos, buscam-se um novos diálogo interculturais, tecnologias menos agressoras ao meio-ambiente e ainda, uma legitimação social, onde estejam presentes, a responsabilidade e a solidariedade universais. 1 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010.

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A sociedade de risco – paradigma recente incorporado às discussões ambientais, sociológicas e filosóficas, tem agregado ao seu discurso, o componente da transnacionalidade. O presente artigo visa discutir e compreender como o Direito Ambiental, a sociedade de risco e a transnacionalidade influenciam e são influenciados pela normativa ambiental internacional da pós-modernidade. Utilizam-se a pesquisa bibliográfica, eletrônica, documental, a descrição operacional dos termos, o método dedutivo e a observação direta, fruto de anos de acompanhamento e mesmo, vivência dos problemas socioambientais na Amazônia. Surgimento do Direito Ambiental Internacional e seu arcabouço jurídico legitimado pela perspectiva filosófica

O meio ambiente é entendido latu sensu como tudo o que engloba a natureza, seja original ou artificial, assim como seus bens culturais, tais como o solo, água, flora, fauna, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. Há muito tempo, ele vem sofrendo com a exploração desenfreada pelo homem, que lhe retira as bases mínimas de sobrevivência e reprodução dos ecossistemas, seja pelo desmatamento, queimadas, assoreamento dos rios, que por sua vez, promove a “expansão da agropecuária em todo país, principalmente na região amazônica, contribuindo assim para escassez” e para precarização dos chamados “Serviços Ambientais” (MAGANHINI, 2016). Como exemplo dessa degradação, podemos citar a redução da polinização por insetos, a falha na conservação da biodiversidade, vez que certas plantas e componentes da fauna são constantemente ameaçados de extinção,2 a inércia de ações fiscalizadoras dobre a outorga da água e seus usos (D’ISEP, 2009),ausência de fiscalização e proteção socioambiental aos índios, ribeirinhos, quilombolas e outras comunidades tradicionais (BECK, 2010, p. 89), decorrentes de empreendimentos estatais e grandes obras de infraestrutura, entre tantas outras ações deletérias ao meio-ambiente. O Direito Ambiental é fruto de uma história de reinvindicações sociais, políticas, culturais e filosóficas3 desde muito tempo, dessa forma, foi possível amadurecer conceitos como dignidade ambiental, equidade 2 Vide caso do peixe-boi amazônico. 3 Especificamente em relação à filosofia, objeto de nossas digressões, apontamos como força propulsora dessa maturação de ideias em torno de um direito ambiental, inclusive em âmbito internacional, os estudos filosóficos biológicos com as questões sobre a essencialidade, evolução e estudos populacionais dos autores Dennet, Darwin, as filosofias antropológicas, de Lévi-Staruss, Clastres, Lienhardt entre outras.

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intergeracional, sustentabilidade, socioambientalidade, e reconhecer direitos daí oriundos. Inicialmente mediante normas costumeiras, e depois positivadas, com o disciplinamento de um ramo jurídico, dotado de autonomia e de instrumentos de efetivação. Assim, o Direito Ambiental se converte também em Direito Fundamental, que visa garantira continuidade da vida humana. A maior justificativa para a preocupação internacional com o que acontece com o meio ambiente em outros países é a interligação dos sistemas ambientais pelos continentes. A água e o ar, que circulam ao redor do planeta são capazes de transportar resíduos, lixo, micro-organismos, de um lugar para outro completamente diferente, de forma silenciosa, e perigosa, aumentando os riscos de desastres ambientais, que muitas vezes acontecem, sem que se tenha conhecimento. A propósito, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 2002, estabeleceu que a água e seu acesso são direito humano, portanto, é preciso assegurar que “todos tenham água suficiente, segura, aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para usos pessoais e domésticos” (ONU, 2019). Maganhini correlaciona, exemplificativamente, as interações simbióticas que podem ocorrer, afetas à questão hídrica, gerando problemas transnacionais: As florestas estão inteiramente interligadas com a água, pela simbiose e necessidade que uma tem da outra, não podendo ser dissociadas, principalmente, pelo papel protetor que a floresta realiza. [...] há vários benefícios com a preservação da água, como por exemplo, “a floresta em pé” que contribuem de diversas formas, como maior absorção de água, proteção dos solos contra erosão, aumento das matas ciliares. A carência da proteção e preservação dos recursos hídricos e florestais acarretam problemas de dimensão global, como a crise climática, aquecimento global, enchentes, inundações, falta da água propriamente dita e etc., acarretadas pelo aumento demográfico e ocupacional, expansão das fronteiras agropecuárias, consumo exacerbante, poluição generalizada entre outros [...]. Além da disponibilidade da água, outro fator importante é a sua capacidade de resiliência, para sua recomposição e regeneração, retornando à sua condição original, que é muito difícil de acontecer, posto que os recursos naturais tenham sua velocidade e qualidade de se recompor inversamente proporcional ao consumo em massa. Com todos estes problemas e cada vez mais aumentado, o pagamento por serviço ambiental vem como um instrumento indutor de forma positiva, a preservação e conservação do tão valioso elemento “água”, melho-

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rando de forma contínua a qualidade e quantidade dos recursos hídricos. Os serviços ambientais hidrológicos, como mencionados acima, tem estreita relação, entre a floresta e água, cujo esquema de pagamento destes serviços, visa a internalização das externalidades positivas nas atividades produtivas e conservadoras. (MAGANHIN, 2016)

Melo e Santos afirmam que, com o aparecimento do fenômeno transnacionalização, modificaram-se as “mais diversas relações e os enfrentamentos que decorrem da novidade”, por isso, uma nova abordagem do direito é imprescindível, e assim é que são criados novos paradigmas, bem como há implemento de normas universais, que passam a se sobrepor à “qualquer sistema jurídico interno”, que se revela uma “medida não somente necessária, mas imprescindível” (MELO, 2018, p. 138). A preservação ambiental deixa de fazer parte apenas das discussões teóricas e passa a ter factibilidade. O meio ambiente é objeto de proteção jurídica, tanto no âmbito interno dos Estados quanto externo. O marco inicial de proteção ambiental no ambiente internacional foi a Declaração de Estocolmo em 1972. Foi por meio dela que os Estados-Nações reconheceram que o meio ambiente ecologicamente equilibrado era direito atribuível à todos, indistintamente, ao redor do globo, como uma decorrência dos direitos sociais do homem cuja integridade é direito-dever de todos. Consignou a existência de: [...] níveis perigosos de poluição da água, do ar, da terra e dos seres vivos; grandes transtornos de equilíbrio ecológico da biosfera; destruição e esgotamento de recursos insubstituíveis e graves deficiências, nocivas para a saúde física, mental e social do homem, no meio ambiente por ele criado, especialmente naquele em que vive e trabalha. (ONU, 1972)

A partir desta, diversas outras conferências internacionais foram realizadas sobre o tema. Passou a constituir um desafio da própria comunidade internacional, encontrar saídas para promover o desenvolvimento sustentável que fosse capaz de permitir a renovação das fontes e serviços ambientais usufruíveis pela sociedade nacional e internacional. O marco do Direito ao Desenvolvimento Sustentável no Direito Ambiental Internacional

A Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e desenvolvimento, que se realizou no Brasil em junho de 1992, na cidade do Rio

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de Janeiro, chamada de 1992 – ECO/92 inseriu, em seu princípio 3º, a essência de que se deveria entender como “desenvolvimento sustentável”. Consignou-se que o direito ao desenvolvimento deveria ser exercido com atendimento equitativo das necessidades de desenvolvimento e ao mesmo tempo das demandas ambientais de gerações presentes e futuras. Consagrou-se por esse dispositivo a chamada solidariedade intergeracional, que passaria a ser pedra de toque das reinvindicações, discussões, estudos e dos documentos internacionais. Na ECO/92 foi que se definiu o conceito de desenvolvimento sustentável como o que atende as necessidades do presente, contudo, sem irremediavelmente se comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades. Consignou-se no princípio 4º, que “para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento, e não pode ser considerada isoladamente deste” (ECO/92). Um dos instrumentos de compatibilidade entre o desenvolvimento econômico e meio ambiente, foi a compensação ambiental, que trouxe instrumentos econômicos como alternativa para neutralizar os danos ambientais decorrentes da atuação humana. A mobilização da comunidade internacional em torno da criação de um arcabouço jurídico-ambiental que pugnasse pelo equilíbrio na relação meio-ambiente/ser humano, deu ensejo a realização de um grande número de eventos, reuniões e documentos versando sobre a matéria, como a Reunião de Copenhague, em 2009; a Assembleia do Milênio em 2000; o Protocolo de Kioto em 1997; a Eco 92, no Rio de Janeiro (MAGANHINI; SILVA, 2019). É fato que nem todos os países quiseram pagar a conta da substituição de seus parques industriais e de suas atividades econômicas poluentes, a exemplo dos Estados Unidos, que relutante, não aderiu ao Protocolo de Kioto, que previa a redução da emissão de poluentes na atmosfera, traçando metas progressivas. Não obstante o modesto sucesso na conscientização da sociedade, em compreender a emergência de preservação dos recursos ambientais, a nova mentalidade, disseminada nesses eventos nacionais e internacionais sobre meio-ambiente, impulsionaram pouco-a-pouco a sociedade, a repensar as formas empregadas para a exploração dos recursos naturais e assim criar “alternativas de exploração ambiental, buscando ora a precaução quanto ao potencial danoso de certas atividades, ora a recompensa daquilo que se extraía para atender as necessidades e o conforto dos grupos sociais” (SANTOS, 2017).

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Dentre as tratativas internacionais e internas, para a questão da gestão socioambiental, a despeito de toda a complexidade, em que a temática é envolvida, identifica-se que é preciso lidar com as desconfianças em relação ao direito ambiental econômico, pois este, se bem instrumentalizado, pode constituir uma via de acesso ao desenvolvimento, de comunidades pobres e esquecidas do Estado, que podem organizar-se em cooperativas e receber por pagamentos de serviços ambientais, entre outras alternativas, para a remuneração e otimização dos serviços ecossistêmicos, Figura 1. Figura 1 - Ciclo de proposta de remuneração estatal aos que promovem preservação ambiental

Fonte: Veiga e Galvadão, 2011

Dado que a agenda do desenvolvimento social precisa de maior atenção, pois ainda é demasiada incipiente, com muitos brasileiros desguarnecidos de serviços ambientais básicos como água, bem como, não possuem segurança alimentar, (DINIZ, 2011) mais justificativa se encontra para atrelar o direito ambiental econômico, à subsistência de pessoas que cuidam e promovem a preservação ambiental (DERANI, 1997). Oportuno lembrar que é necessário todo cuidado para não se cair na armadilha nem da excessiva economcização, desvirtuando os possíveis resultados positivos da proposta acima aventada e nem na esparrela da neocolonização, ou seja, da exploração dos recursos naturais de países em desenvolvimento, para abastecer os países desenvolvidos, a preços irrisórios, semelhante ao que acontece com o mercado de commodities brasileiro, do qual o país se tornou dependente. De igual modo, como pontuado, não se pode admitir a acumulação e a busca pelo progresso a qualquer preço, sob pena de se repetir mais do

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mesmo, com reprodução da “exploração predatória dos recursos naturais e da biodiversidade ao redor do globo [...] a constante evolução da produção” (SANTOS, 2017) e os “avanços tecnológicos que conduziram o homem a patamares elevados de confortos, praticidades, rapidez” (TORRES, 2010), mas acabaram por estimular um desenvolvimento insustentável. No Brasil, o panorama não foi diferente em relação à depredação de diversos ecossistemas tais como a hoje reduzida Mata Atlântica, o Pantanal, tomado pela pecuária e a desmatada Amazônia que sendo preocupações constantes quando o assunto é sustentabilidade social, econômica, ecológica, espacial e cultural. Não causa espanto que o fluxo e refluxo de acontecimentos nestas regiões brasileiras afetem todo o restante do país, inclusive em sua dimensão internacional. Esse movimento ambiental foi um processo, onde muitas disputas foram e ainda o são, prejudiciais aos resultados de preservação ambiental desejados. (SANTOS, 2019)

A ganância em se obter o desenvolvimento “econômico não considerava as características limítrofes do ecossistema” (MALVEIRA, 2009, p. 23-24), e o agravaram a situação ambiental cada vez demonstrando seus sinais de esgotamento. Segundo Vieira, a sustentabilidade, sob a ótica internacional, resultou de um construído histórico, de um esforço para compatibilizar meio-ambiente, economia e desenvolvimento, que desde o início do século XX se encontra em fase de implementação em âmbito internacional, e em âmbito interno (SANTOS, 2017). O país busca replicar esta perspectiva, em âmbito interno, em suas políticas públicas e em geral, no aparato jurídico-normativo de referência. O paradigma do Direito Ambiental Internacional Intergeracional

Como vimos, o reconhecimento do direito a um meio ambiente saudável é uma necessidade atrelada irremediavelmente à sobrevivência humana. Na inexistência de condições ambientais satisfatórias, a vida se torna impossível, e perece, juntamente com a humanidade e seu futuro. O ser humano depende diretamente dos recursos naturais produzidos pela natureza, sem os quais, se extinguiria a vida humana na Terra. A promoção de um meio ambiente equilibrado é, pois, uma conditio sine qua non para o gozo dos demais direitos dos seres humanos. A solidariedade intergeracional deve se formar na consciência individual e coletiva, daqueles que compartilham esperanças em uma so271

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ciedade “nascida das semelhanças”, e da solidariedade que ligam os indivíduos entre si, e reúnem estes à sociedade (DURKHEIM, 2007, p. 76). Novos conceitos e práticas ambientais surgem, adotam-se tecnologias “limpas” e se adotam novos parâmetros de sustentabilidade. Francis Snyder afirma que coexiste, no mundo moderno, um complexo emaranhado de “conjunções estrategicamente determinadas”, contextualmente específicas, que apresentam conjunções episódicas irradiadas a partir de vários lugares, que carregam elementos normativos, institucionais, e processuais específicos, que levam a um pluralismo jurídico (SNYDER, 1999, p. 334). Foi a partir dessa tessitura global que desencadeiam as legislações de Direitos Humanos, as construções teóricas neoconstitucionais, as ideias de ecoprodução e proteção ambiental intergeracional. É dessa forma que a civilização deve passar por um processo de reabilitação, que implica em redefinir ou redescobrir o bem comum, para saber existir juntos, munidos de um novo sentido para a vida. Inauguram se outros paradigmas de desenvolvimento, ligada aos materiais reciclados e à gestão de resíduos, a proteção das diversidades naturais, culturais e de direitos, passam a fazer parte da agenda ambiental e das discussões ambientais atuais – cria-se uma “diretriz multidimensional de desenvolvimento econômico” (SANTOS, 2017). Esse inédito “paradigma secular” aparece no cenário mundial com a mesma importância do “humanismo no séc. XVIII, questão social no séc. XIX, democracia social no séc. XX, e sustentabilidade no séc. XXI” (CANOTILHO, 2010). A Declaração Universal dos Direitos do Homem cria um standard mínimo de direitos universais que refletem, em parte, o pensamento ocidental (TAYLOR, 1994, p. 43), mas não anulam os inegáveis avanços reflexo da criação de um rol de direitos asseguráveis a todos os seres humanos, que buscam sedimentar-se e lastrear-se universalmente. Enfraquecem as malfadadas particularidades nacionais, regionais e culturis com que buscam se justificar violações aos direitos humanos, seja qual for o contexto político, econômico, social ou cultural em que se esteja inserido. A “equidade intergeracional” precisa ser mantida, em especial, ante a crescente utilização dos recursos naturais, para atender à “sociedade da pós-modernidade”, aí inseridos os conceitos de sociedade de consumo, de bens naturais, e artificiais, mas não só em função do que esses recursos podem oferecer, mas em função da preservação das mesmas condições encontradas nessa etapa de desenvolvimento da humanidade, preservando-se tanto quanto for possível a qualidade do ar, das águas, do clima, da fauna, flora, enfim, dos serviços ecossistêmicos e ambientais

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[...] pela função ecológica que exercem, vale dizer, pela necessidade de manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à vida de todas as espécies, aqui considerado o direito intergeracional. Chocando-se direitos e garantias individuais com coletivos, prevalecem os coletivos. Entre os coletivos e os transgeracionais, prevalecem os transgeracionais, sempre que a questão envolver a sobrevivência das espécies, inclusive da humana. (JARDIM, 2016)

A “era ecológica”, com a adoção de uma ética ambiental desencadeia um novo direito, o Direito Humano Fundamental Transnacional Ambiental, em superação aos antigos constructos da concepção geracional, das “hierarquizações, interações ou interdependências”, passando-se da “sucessão de gerações para um sistema de direitos humanos” (GAILLARD apud JARDIM, 2016, p. 38). Inserir os assuntos emergentes do direito ambiental nas normas constitucionais foi um grande passo, mas é preciso ainda uma mudança de mentalidade em relação ao espaço e valorização das regras de mercado. Os novos parâmetros constitucionais acarretaram [...] mudança de paradigma em relação ao tratamento jurídico dado às questões relacionadas ao meio ambiente. ‘No entanto, parece, em muitos casos, que este direito fundamental cede espaço para outros valores ligados ao mercado’ uma vez que em alguns casos concretos de ocorrência de dano ambiental, a consideração do meio ambiente equilibrado como um direito fundamental por si só não se verificou suficiente. (MAGANHINI; SILVA, 2019, p. 92)

A ideia de sustentabilidade ambiental está enfeixada justamente à dos Direitos Humanos, ambos os assuntos estão no centro da agenda dos debates políticos e acadêmicos a defesa da sustentabilidade passa a ser num dos meios de promoção dos Direitos Humanos. Ambiente sustentável significa constituir uma dinâmica de sociobiodiversidade, tanto sob a perspectiva de Direitos Humanos quanto os Direitos Ambientais com seus aparatos nacionais e internacionais. Segundo Gaillard, degradações ambientais, diretas ou indiretas, imediatas ou transgeracionais têm em comum o fato de que, a médio ou a longo prazo, colocam em risco os direitos humanos (GAILLARD apud JARDIM, 2016, p. 57). No campo dos temas sociais e conferências internacionais os assuntos mais importante são os que reputam aos Direitos Humanos, cuja evolução é similar à temática ambiental (PECEQUILO, 2012, p. 333). A construção de um Direito Ambiental Internacional Intergeracional pressupõe a solidariedade intergeracional, que se perfaz na ga273

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rantia de um direito/princípio constitucionalmente implícito, sobre o qual não se admitam retrocessos (GAILLARD apud JARDIM, 2016, p. 103), ao contrário, deve ser integrado por outros princípios e progressivamente ampliados. Ferrer, Glasenapp e Cruz afirmam sobre a o movimento de sustentabilidade, que ela é um “marco civilizatório” contemporâneo que deve ser empregada tanto nas ações públicas quanto privadas (FERRER; GLASENAPP; CRUZ, 2014), se considerando elemento estruturante do Estado Constitucional, e orientador de toda a atuação da jurisdição constitucional, norteando a “comunidade política” (CANOTILHO, 2010). O novo paradigma da sustentabilidade ambiental nada mais e do que a expressão do próprio Direito Internacional Ambiental, que se encaixa na dimensão conceitual dos Diretos Humanos, e se adensa na transgeracionalidade. Um Direito Humano Transnacional Ambiental interna e externamente, que se pretenda intergeracional, pode ser analisado a partir diferentes enfoques, mas apesar de eventuais disparidades, há o elemento de intersecção, esses olhares preocupam-se em preservar a dignidade humana como um direito fundamental conservável, para que se garanta aos habitantes sucessores, de gerações vindouras, que tenham plenas condições de vida no planeta. Considerações finais

O grande dilema-desafio humano da pós-modernidade é compatibilizar o desenvolver-se economicamente com o eco-preservar-se emergencialmente. É certo que o Estado tem um papel de busca de encontrar meios para compatibilizar desenvolvimento e meio-ambiente, em virtude de que não existe vida sem meio ambiente, e consequentemente não existe desenvolvimento econômico sem natureza. O ser humano é integrado ao “meio-ambiente” e dele faz parte. Assim, uma superação do antigo paradigma utilitarista ocorreu, colocando o homem como parte do conceito. Não só importa para o discurso jusfilosófico a as condições de vida atuais, como também deve-se resguardar um mínimo ético e de recursos naturais a fim de que as próximas gerações possam manter o continum vital no planeta. Para conservar um meio ambiente equilibrado, discutiu-se a necessidade de se renunciar a certas práticas econômicas, táticas agressivas da agricultura extensiva e de priorização de commodities, a utilização de agrotóxicos, entre outras práticas. Os riscos ambientais são ofuscados pela incerteza sobre sua existência, gravidade e amplitude. 274

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Um desastre ambiental em um país pode gerar doenças, chuvas ácidas, poluição, perda de espécies etc. Os objetivos de investigação e análise dos fundamentos, viabilizadores das normas internacionais ambientais foram debatidos. Concluiu-se que os eventos internacionais, o diálogo transnacional, e a adoção de novas ideias, tornaram possível conceber a existência de um Direito Internacional Ambiental Transgeracional, como um novo paradigma, ao lado da sustentabilidade que passa a orientar a filosofia e a normativa ambiental, bem como a atuação estatal. Dada a relevância da questão ambiental no contexto da sociedade contemporânea, é tese irrefutável que o meio ambiente seja considerado um direito fundamental, por ser indissociável e imprescindível à manutenção da vida humana e dos outros seres na Terra. São horizontes do futuro, criar um sistema de direitos humanos ambientais, que se consolide e trace os caminhos para uma visão e tratamento sistêmico de direito humano à sustentabilidade e ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado para essa e as gerações do porvir. Referências

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12 Caso Venezuela, soberania e Sistema Internacional de Direitos Humanos uma reflexão sobre as implicações dos conceitos envolvidos Adriana Vieira da Costa Wilson Simões de Lima Júnior

Introdução

Justificado pela ocorrência de muitos exemplos semelhantes no mundo, porém mais focado na realidade política da Venezuela, o artigo realiza uma reflexão de atuações do sistema internacional de direitos humanos, na hipótese de considerar a existência de afrontas a direitos humanos fundamentais. O estudo pretendeu questionar até que ponto o sistema internacional de direitos humanos pode interagir na proteção dos interesses da população venezuelana, com análises necessárias à soberania estatal. Aliado a uma pesquisa bibliográfica e documental, percebeu-se cautela necessária pelos agentes internacionais no trato de questões que envolvam questões internas. Atitudes de interferência direta podem parecer mais efetivas, mas guardam obstáculo aos princípios

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internacionais, bem como à possibilidade da utilização de motivos escusos para expandir domínio sobre outros países. A existência de Estados que ofendem direitos humanos fundamentais não é coisa de séculos passados. Mesmo num pressuposto progresso social adquirido com o passar dos anos, a realidade política de alguns países ainda vai na contramão dos direitos internacionais tidos como universais. Justamente o próprio Estado que supostamente deveria ser o protetor e garantidor dos mais fundamentais dos direitos, acaba agindo na afronta de reconhecidas normas internacionais de pacificação e desenvolvimento humano. Para situar em casos concretos e notórios, pode-se citar o caso do ex-presidente Omar Ahmad Al-Bashir que foi indiciado por crimes de guerra e genocídio pelo Tribunal Penal Internacional enquanto esteve à frente do governo centralizador e opressor de liberdades desde 1993 a 2008. Tem-se também o caso da guerra civil da Síria, onde o Governo de Bashar Al-Assad encara uma rebelião interna armada na qual provoca caos humanitário, tortura, com perdas na democracia e liberdades individuais da população síria. Não menos impactante é a realidade da Coreia do Norte, um Estado ditatorial que imprime um sistema fechado, com prejuízos nas liberdades individuais, de pensamento, de locomoção, de comunicação e de manifestação. Além desses, cita-se o caso da Venezuela, país sulamericano que sofre de uma crise política interna na qual compromete as estruturas sociais e afeta direitos básicos da população, implicando em prejuízo de cidadania e valores democráticos, típicos direitos humanos fundamentais já positivados constitucionalmente. Em todos esses Estados, uma realidade em comum: o Estado ofende em alguma proporção considerável às convenções internacionais de um sistema internacional de direitos humanos, justamente quando deveria protegê-los conforme pacto constitucional e internacional. Frente a essa realidade, o sistema internacional de direitos humanos, que se entende universal, se vê no impasse de como efetivar uma interação nesses casos, sem comprometer outros compromissos internacionais, bem como não desmerecer respeito à soberania de Estado. Trata-se de um tema instigante, já que normalmente um Estado não se autodeclara abertamente contra os direitos humanos. Em um governo despótico não há expresso em sua constituição inscrição contrária a tais valores. Ao contrário, em uma observação paradoxal, é comum governos antidemocráticos ou autoritários gritarem a seu favor o conteúdo de direitos humanos, como se defensores fossem. Ao passo que poucos países não elevam os direitos humanos a direitos funda-

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mentais, muitos são os Estados que não observam os seus mais ordinários princípios (GARCIA, 2005). A reflexão sobre as formas de ação entre o sistema internacional de direitos humanos – com todos os seus agentes internacionais (Estados Soberanos e organizações internacionais), normas, diretrizes e convenções de natureza supranacional – e a afronta de um determinado Estado a direitos humanos fundamentais, com os contornos atuais sobre soberania, é o objeto de estudo do presente artigo. Para tanto, é necessário revisitar conceitos de soberania estatal, entendê-los de que forma se ligam ao Estado como poder, comparando com a própria evolução do sistema de proteção internacional dos direitos humanos, sobre qual sofreu influência no passar dos anos. Ao fim, retoma-se ao caso recente da Venezuela para que dentro dos conceitos refletidos, possa considerar opções de ações do sistema internacional de direitos humanos em casos de afronta a direitos humanos fundamentais. Tendo como proposta o debate da relação entre Estado Soberano que ofende direitos humanos fundamentais e a proteção existente a respeito do sistema internacional de direitos humanos, esse artigo se apoiou em debate de ideias para discutir os temas que têm sido enfrentados até os dias atuais. Para tal discussão, foi necessário utilizar de pesquisa exploratória com aprofundamento bibliográfico e documental. Explorar o tema em questão por meio do debate bibliográfico requer que os autores sejam escolhidos por um critério confiável. Nesse sentido, escolheu-se os autores por relevância e pela contemporaneidade da discussão dos temas. Para auxiliar e reforçar ideias e discussões, foram utilizados os seguintes documentos: Carta das Nações Unidas (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A interpretação de tais documentos foi feita conjuntamente com as reflexões bibliográficas. Assim, autores clássicos de cada tema enfrentado foram utilizados para demonstrar a evolução dos conceitos até os dias atuais, servindo como base de discussão para os mesmos temas tratados pelos atuais autores, num diálogo necessário para compreensão dos múltiplos raciocínios existentes sobre a temática apontada. Ao final, o enfrentamento de teses antagônicas é encarado pelo autor que se posiciona com base nos argumentos levantados.

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O Estado e a soberania

O Estado é fruto evolutivo da sociedade. Ao se regredir nos tempos, verifica-se que o ser humano possui uma atração natural pela associação com os demais seres humanos. Foi um aprendizado necessário para que pudesse superar as necessidades e manter sobrevivente. Instintivamente, o meio associativo mais natural são os grupos familiares. De forma gradual, o ser humano vai expandindo o meio associativo, aparecendo relações mais amplas e complexas, surgindo sociedades primitivas. A evolução que dota tal sociedade primitiva de um senso coletivo superior a indivíduo, com a fixação a um território específico e a identificação de um poder de comando faz surgir o Estado (FRIEDE, 2000). Em um primeiro momento, nota-se que o Estado surge como corpo moral e coletivo responsável pela execução de decisões. O tomador de decisões é o soberano – geralmente um conjunto de pessoas associadas para tal fim. A partir do momento que o Estado cumpre com o papel de não ser somente o executor, mas também o tomador de decisões, fala-se em Estado Soberano. A soberania, como poder inalienável e indivisível, representa qualidade na forma de governo do Estado (DALLARI, 1993). Cronologicamente, tem-se autores de necessária citação que escreveram sobre a soberania de natureza institucional, a exemplo da teoria hobbesiana publicada pelo livro Leviatã em 1651. Essa teoria foi a que vinculou as características da soberania de ser absoluta, ilimitada e irrevogável, como forma de não ocorrência da desagregação do Estado. Qualidade de soberano requer que fosse absoluto, inquestionável, para agir sem limitação, inclusive sobre a esfera privada (HOBBES, 2003). Locke (1998) publicou seu livro no ano de 1689 e lá definiu a soberania pautada em valores da individualidade, pela garantia dos direitos individuais, dando ênfase na importância do poder legislativo. Para o referido autor, proteger direitos individuais seria estender tal proteção à sociedade livre, preservando o bem comum. A soberania seria o poder supremo da sociedade em fazer valer os valores dos direitos individuais em sua escala mais ampla, abrangendo a liberdade, a propriedade e igualdade. Ao falar sobre soberania, vinculada ao povo, Rousseau (1996) em 1762 atesta que as características são a inalienabilidade, indivisibilidade, infalibilidade e o fato de ser absoluta, mas não ilimitada. Inalienável porque o poder pode até ser transmitido, mas não a vontade do povo; indivisível pois sua vontade é geral, sendo que oposto disso seria no máximo a expressão de um decreto; infalível já que o povo emana decisões retas e de seu próprio bem e utilidade pública; e por último absoluta, mas não

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ilimitada pois o soberano deve tratar todos igualmente, não distinguindo os corpos de uma nação, sob pena desse povo voltar-se contra o soberano. Ainda que em algumas características haja alguma divergência, na literatura apresentada o termo soberania esteve atrelado ao poder institucional conferido pelo povo ligado ao Estado. A evolução do conceito de soberania aliada ao Estado chega ao estágio de ter contornos internos e externos. Internamente, a soberania representa o poder de império sobre seu território e sua população. Externamente, é o poder que faz ter igualdade perante os demais Estados, como sinônimo de sua independência e a capacidade de se autodeterminar. Reflete, portanto, como elemento formal essencial ao Estado (GUIMARÃES, 1999). Com o surgimento das organizações internacionais, os arranjos internacionais de mercado e outros entes afins, fez surgir a necessidade de Estados se obrigarem reciprocamente em nome do desenvolvimento (REZEK, 2018). Potencializados pelo fenômeno da globalização, da tecnologia, das inovações empresariais, da dinâmica de mercados que interligaram o mundo no final da segunda metade do século XX e a internacionalização dos direitos humanos fizeram com que o conceito de soberania (que era tratada como valor absoluto, inabalável e não mitigável) tivesse que ser revisto e atualizado. Não se trata de deslocar o conceito da soberania para entidades políticas supranacionais, mas encontrar meios para que os efeitos da globalização não afetem ou inviabilizem a cidadania e os direitos humanos. Nesse sentido, é a soberania que deve ser flexibilizada para que abranja a necessária proteção dos valores atuais que regem a sociedade (ALVES, 2005). Direitos Humanos Fundamentais

Antes de terminar qual a terminologia adotada no artigo, trazemos à baila a impossibilidade de fazermos uma distinção ontológica do que seria direitos humanos e direitos fundamentais, pois os conceitos dos termos ou expressões foram decorrentes dos fenômenos sociais e construídos pelo direito, contudo não foram à primeira vista tratados pela ciência jurídica. Ao argumentar a impossibilidade da distinção de Direito Humanos e direito fundamentais reside justamente porque sua base ontológica é a mesma, para a filosofia do direito é ai que reside a dificuldade em separá-los analiticamente, pois estão arraigados numa mesma consciência jurídica que “exige a proteção à dignidade da pessoa, que positiva normas universalmente reconhecidas, no plano internacional, pela co-

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munidade de Estados, [...] bem como positivas essas normas no plano interno” (BAMBIRRA, 2014, p. 137), deste modo, sendo postas tanto de modo individual como universal, por determinado Estado. Deste modo, a terminologia aqui adotada de direitos humanos fundamentais é a opção pela simplificação dos conceitos mais básicos advindos de direitos humanos e direitos fundamentais. Silva (2000) alerta que recorrentemente direitos humanos e direitos fundamentais são tidos como termos sinônimos devido ao processo de envolvimento de processos históricos nas conquistas do ser humano e sua propagação no nível internacional, dificultando a definição em palavras simples e sintéticas. Para Mendes, Coelho e Branco (2009), na ótica constitucionalista, os direitos fundamentais são aqueles consagrados em preceitos da ordem jurídica, ou seja, positivados, geralmente em ordem constitucional. Quanto aos direitos humanos, a positivação não é critério para sua definição, mas “reivindicações de perene respeito a certas posições essenciais do homem”, cujos postulados são de natureza filosófica e alicerces jusnaturalistas. Segundo os autores, essa diferenciação não afasta a íntima correlação existente em ambos os conceitos, já que não estão em esferas incomunicáveis. Historicamente, os direitos fundamentais positivados foram fruto de reconhecimento do reflexo de direitos humanos em outros documentos internacionais. Opostamente considerada, é fato que os direitos humanos internacionais perderiam em efetividade se não fossem positivados como direitos fundamentais em ordenamentos jurídicos. Nessa esteira, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948) é documento que ilustra as linhas anteriores, na medida em que direitos humanos foram reconhecidos pelos signatários, de tal sorte que seu texto influenciou a elaboração de vários documentos ou ordens constitucionais de Estados. E ao inseri-los em ordem positivada, além de difundir tais direitos, o compromisso estatal de respeito ao mencionado documento internacional serve também de base para a efetivação em ordem interna. Ciente da dificuldade conceitual, opta-se pela expressão “direitos humanos fundamentais”, a qual foi expressa pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO (criada em 1945). Moraes (1998), ao interpretar o texto que contém tal expressão, os enxerga tanto no ponto vista de que são a forma institucional de proteger os direitos da pessoa humana contra os desmandos do Estado, quanto sob o prisma do conjunto de normas que possibilitam o ser humano ao acesso das potencialidades da vida e desenvolvimento da personalidade humana. Por abranger justamente tais pontos sensíveis a que se pretende

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discutir, adota-se a terminologia “direitos humanos fundamentais” para também demonstrar força normativa e efetividade de tais direitos. Descumprimento de Direitos Humanos Fundamentais e a soberania

Se de um lado é necessária a reflexão de que a soberania de um Estado teve de ser mitigada frente aos acontecimentos do século passado, de outro lado resta indagar até que ponto vai essa mitigação. O Estado Soberano já não é mais soberano quando se trata de descompromisso com direitos humanos fundamentais? Assim como apontado no início do artigo, os casos de possíveis afrontas aos direitos humanos fundamentais pelo próprio Estado são noticiados pela mídia internacional. Entre inúmeros, cita-se: a imputação de crimes de guerra e genocídio ao então presidente do Sudão em 2008 (Omar Ahmad Al-Bashir), os de tortura na Síria em 2013, as perseguições e outras violências à liberdade na Coreia do Norte e o mais recente que é o da Venezuela, que no momento encontra-se com o regime de Nicolás Maduro Moros, acusado de ter fraudado a última eleição presidencial e que recusa adotar diálogo democrático com as outras forças, ao ponto que o membro do parlamento Juán Gerardo Guaidó Márquez se autodeclarou presidente interino, o qual tem sido reconhecido por mais de cinquenta outros Estados Soberanos. Em todos eles, o elemento comum que se questiona é justamente entender a atuação do sistema internacional de direitos humanos quando o próprio Estado é quem descumpre regras básicas de direitos humanos fundamentais. Como reflexão inicial, é primordial lembrar que da doutrina clássica citada, tanto Locke (1998) quanto Rousseau (1996) acreditam em uma limitação da soberania absoluta justamente por ser expressão do povo (ainda que haja divergências nos objetivos da soberania). Naturalmente, em um Estado descumpridor de direitos humanos fundamentais, o descumprimento afetaria o bem comum ou a liberdade individual, razão pela qual desassocia da vontade de quem confere tal poder, sendo passível então de desconsideração. Contrário a essa ideia encontra-se Hobbes (2003), que entende que a soberania é absoluta e ilimitada, logo tais Estados possuem legitimidade em realizar tais ações afrontadoras, pois o povo escolheu seu soberano com tal ideal. No raciocínio de uma doutrina de soberania enquanto poder de representação interna (poder de império no seu território e para seu povo) e de representação externa (reconhecimento de igualdade entre soberanias

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de Estados) – o Estado guarda para si uma proteção contra qualquer interferência. Como já explicitado por Guimarães (1999), o necessário respeito pela autodeterminação de seu povo em seu território é elevado ao máximo valor, como retribuição à negativa de interferência do Estado afrontador àqueles outros Estados. Do ponto de vista de um país autoritário, essa argumentação é pertinente, vez que possibilita eliminar qualquer possibilidade de soluções estrangeiras de adentrarem em suas fronteiras. Além disso, as organizações internacionais não teriam poder superior a nenhuma outra soberania estatal, o que implica que nada podem fazer ou interferir em assuntos internos, mesmo que abertamente afrontem os direitos humanos fundamentais. Ainda que se admita a ideia de uma soberania absoluta, torna-se frágil esse argumento frente à possibilidade de ações ou intervenções internacionais indiretas. Em outras palavras, os meios diretos de interferência – como é o caso de invasão violenta, interferência política direta, envio de grupos de proteção de minorias, entre outros afins – deixam de ser utilizados para dar espaço a outra forma de pressão estrangeira com resultados igualmente potente: as sanções comerciais. Como efeito da própria globalização, é comum um Estado depender de algum elemento essencial de outros países, os quais são supridos nos acordos comerciais. À medida que o Estado declaradamente afronta direitos humanos fundamentais, outros Estados Soberanos que possuem laços comerciais deixam de realizar novos acordos comerciais por não concordarem com as condutas do Estado descumpridor. A esse tipo de pressão internacional, que leva a escassez de elementos importantes ao consumo e/ou desenvolvimento normal do Estado, a interpretação clássica de soberania não se sustenta: o Estado acaba afetado, comprometendo abastecimento de alimento, matérias-primas ou produtos importados. Nesse sentido, é correto compreender que mesmo que se admita um respeito mútuo de soberanias absolutas entre Estados, os descumprimentos de deveres contra os direitos humanos fundamentais são relevantes o suficiente para que os demais Estados Soberanos ajam, indiretamente, para pressionar um Estado autoritário e afrontador do sistema internacional de direitos humanos a corrigir seus atos perante sua população. Se considerar que a soberania tem tido o conceito flexibilizado pelos efeitos da globalização e pela propagação internacional dos direitos humanos fundamentais, a reflexão do parágrafo anterior se difere. Isso porque a flexibilização da soberania dá uma nova roupagem a esse poder. Inicialmente, é o reconhecimento de que soberanias deixaram de ser absolutas a partir do momento em que o Estado se obriga perante outro através de convenções internacionais. Trata-se do próprio Estado esco286

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lher espontaneamente – exercendo seu poder soberano nessa escolha – e de se obrigar a comportar de determinada maneira perante outro Estado em concessões múltiplas. A realidade conceitual então se altera: o exercício da soberania do Estado está na escolha de se obrigar perante outro; e a consequência é não ser absoluta, sem restrições, mas ter obrigações a cumprir (e também exigir) de outros Estados (FURLAN, 2010). A existência de convenções e tratados internacionais são elementos que denunciam que a soberania não é mais possível de ser concebida como absoluta. Ao contratá-las, há a necessidade do Estado observar o seu direito interno e o novo regimento internacional do qual se comprometeu, harmoniosamente. Relativiza-se, então, o poder de decisão quanto aos assuntos tratados nessa convenção que, a partir de então, serão o norte que restringirá a forma de decidir dos Estados contratantes nos moldes expressamente tratados. Na evolução desses tratados, cada vez mais complexos, encontram-se os Estados em real interdependência, criando uma ordem político-jurídica internacional, tendente a uma unificação de Estados de caráter supranacional (LITRENTO, 1991). É necessário acrescer sobre as organizações internacionais, que começaram a surgir no início do século XX, que detém personalidade jurídica internacional derivada dos Estados. São geralmente uma pluralidade de Estados Soberanos que se associam criando um ente internacional para desempenhar determinada função de interesse a todos os países signatários. Tais organizações internacionais foram relevantes para a propagação e estabelecimento de um sistema internacional de direitos humanos. A exemplo de organizações internacionais que surgiram com o intuito de enaltecimento da paz tem-se a Liga das Nações, que surgiu em razão da I Guerra Mundial, em 1919, pelo Tratado de Versalhes. Tal organização, mais tarde, acabou sendo a base da Organização das Nações Unidas, ou seja, uma nova tentativa para unir Estados Soberanos no intuito de traçar fundamentos para convivência e resolução de conflitos pacíficas no âmbito internacional. Oficialmente, após ter sido elaborado a Carta das Nações Unidas, a existência da Organização das Nações Unidas – ONU – foi oficialmente tida em 1945. Em resumo ao que foi dito, a flexibilização da soberania implica que os Estados se submetem sua liberdade a uma nova ordem em nome de uma convivência social pacífica e harmoniosa, mantendo autonomia no campo interno e independente no campo externo, porém com atuação limitada pelas regras as quais se aderiu em compromisso internacional, com a possibilidade de internalizar alguns valores em comum entre os signatários. Nessa realidade de soberania flexibilizada, por mais que a soberania ainda se ligue com autonomia e independência, ao Estado não cabe 287

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utilizar de tal argumento para justificar ou blindar atuações autoritárias, muito menos aquelas que afetem direitos humanos fundamentais (SÁ, 1997). Se o faz, utiliza arbitrariamente do conceito, de tal sorte que não estará agindo conforme a vontade do povo, pilastra do poder soberano. Dentro do campo do Estado com soberania flexibilizada, é necessário a reflexão sobre se haveria espaço para algum tipo de atuação do sistema internacional de direitos humanos em casos de ofensas aos direitos humanos fundamentais. Note-se que admitir flexibilização da soberania não significa negar a existência da soberania. Ainda que condicionada ao sistema de forças internacionais, o poder soberano do Estado é presente ao passo que existem nações distintas, com valores e interesses diversos (REALE, 2000). No raciocínio do parágrafo anterior existe, pois, uma soberania estatal. Condicionada, limitada, mitigada, mas existe. E isso continua produzir o efeito de autodeterminação do Estado em seu território para seu povo, porém agora com a necessária consonância com os compromissos internacionais. Em que pese a atualidade do conteúdo desses compromissos internacionais se traduzirem no respeito aos direitos humanos fundamentais, o Estado ofensor de tais normas consagradas e por ele ratificadas passa a poder sofrer sanções previstas nesses mesmos tratados. As sanções dos tratados internacionais prezam por restrições econômicas, isolamento internacional e outras medidas semelhantes. Ademais, em nome da pacificação mundial e melhor solução de conflitos, é presente a cláusula de não-interferência (militar ou de outra natureza) direta pelas organizações internacionais. A Carta das Nações Unidas (1945), por exemplo, estatuiu como princípio a igualdade soberana dos Estados e o princípio de não-interferência em questões internas de um Estado soberano no mesmo texto em que assenta o princípio de obediência à Carta. Nesse cenário, há, no mínimo, duas possibilidades de atuação das organizações internacionais e demais Estados Soberanos frente a um Estado ofensor de direitos humanos fundamentais. O primeiro cenário é semelhante às considerações quanto a soberania absoluta, ou seja, indiretamente se levantam barreiras comerciais e entraves nos relacionamentos internacionais como forma de pressão ao Estado ofensor para que mude sua atitude interna. É uma atuação moderada, condizente com os princípios estabelecidos, porém que se mostra de uma efetividade vaga, uma vez que os representantes de um Estado ofensor quase nunca reconhecem estar contrariando tais normas fundamentais. A segunda forma de atuação dos Estados Soberanos e organizações internacionais frente a um Estado ofensor de direitos humanos funda-

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mentais é mais radical: como a soberania é expressão da vontade popular, e esse mesmo povo não tem seus direitos humanos fundamentais garantidos, logo se concluiria que tal Estado já não goza mais de soberania. A soberania tem o dever de salvaguardar mormente os direitos humanos fundamentais; ao contrariá-los, contraria-se também a existência de poder soberano legítimo. Na falta de legitimidade, é necessário que os agentes internacionais interfiram para devolver a ordem social e a garantia dos direitos humanos fundamentais, substituindo o princípio da não-intervenção pelo dever de proteger (ICISS, 2001). Nessa última, percebe-se maior valor dado à população do que o respeito formal da soberania estatal. Em análise mais profunda, quem defende a segunda forma de atuação reconhece nos direitos humanos fundamentais o novo elo de ligação com a soberania estatal. Estado Soberano passa a ser aquele que zela pelos direitos humanos fundamentais. Ainda que munido de intenções protecionistas aos direitos humanos fundamentais, exemplos como a interferência em Kossovo1 demonstraram que esse caminho pode representar também a abertura para que interesses escusos de outros Estados Soberanos tenham o respaldo necessário para adentrar e ter acesso a riquezas e outros elementos territoriais de um suposto Estado ofensor de direitos humanos fundamentais. Ou seja, em nome de uma defesa humanitária, Estados invadem outros Estados para, na verdade, expandir domínio e ocupação (DAUDÍ, 2006). Considerações finais

Diante de evidências de agressão a direitos humanos fundamentais por um Estado, é comum questionar até que ponto os demais Estados Soberanos e as organizações internacionais devem se comportar (no mínimo, em três formas diferentes): como observadores, ou com atitudes indiretas, ou por último, com atitudes de interferência direta? Contextualizando: se chegar a se comprovar na Venezuela atrocidades contra os direitos humanos fundamentais realizadas por um governo autoritário, qual seria a atitude a ser tomada pelos agentes internacionais? Como se pôde perceber pelas reflexões acima, não há uma resposta fácil e seguramente efetiva. 1 Guerra do Kosovo foi o conflito armado ocorridos entre 1998 e 1999, entre forças de segurança sérvias, Iugoslávia e o Exército de Libertação do Kosovo. O motivo foi a luta pela independência da província de Kosovo. Fracassadas as tentativas de paz com o governo sérvio, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) interferiu militarmente no conflito para evitar uma “limpeza étnica” em Kosovo. Após setenta e nove dias de bombardeio, anunciou-se acordo de paz: as tropas sérvias se retirariam e estabeleceu-se uma força internacional de paz em Kosovo, com direito a instauração de um governo provisório, sob tutela da ONU.

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No caso da Venezuela, em específico, é um Estado Soberano signatário da Carta das Nações Unidas desde a sua elaboração, em 1945. Ou seja, o conteúdo dos direitos humanos fundamentais não é novidade, assim como também não são novidade as notícias de um governo autoritário, que leva à crença de cometimento de ofensas capitais à direitos constitucionalmente reconhecidos. A solução na forma de interferência direta não tem sido adotada até então pelos agentes internacionais, frente às barreiras principiológicas da não-interferência, bem como na aposta da solução pacífica do conflito pelo diálogo. O receio de uma interferência internacional na ordem interna venezuelana, munida dos propósitos mais escusos, são argumentos que tornam suspeitos quaisquer agentes internacionais de agirem ativamente, uma vez que notoriamente lá se encontram grandes quantidades de reservas de petróleo. Tem-se notado, politicamente, preferir a cautela à precipitação da interferência direta. Quanto ao campo da observação, tal atitude do sistema internacional de direitos humanos se equivaleria a nada realizar e esperar que a situação política venezuelana se resolva dentro de seus próprios esforços. Estar apenas em observação esperando passivamente pelo estabelecimento da ordem pelas vias internas, em casos de prejuízos evidentes nos direitos humanos fundamentais, assemelha-se à omissão e à fuga do compromisso principiológico de proteção de tais direitos consagrados internacionalmente. Resta ao campo das atitudes indiretas dos agentes internacionais em pressionar outras searas, em troca do reconhecimento forçado do Governo Maduro em tornar-se mais democrático e cumpridor de direitos humanos fundamentais. Nesse sentido, restrições econômicas, sociais e demais relações internacionais rompidas têm servido de elemento de pressão para que, através de um isolamento, force o Governo Maduro a aceitar diálogo aberto com os opositores internos. Acaba sendo um paradoxo: o isolamento internacional afeta com mais rigor a escassez de alimentos e condições mínimas de usufruir dos direitos humanos fundamentais, os quais tanto se deseja proteger pelas normas internacionais pactuadas. E nessa lógica, prolonga-se uma possível violação de direitos humanos fundamentais em razão de uma forma de solução que se mostra pouco efetiva em resultados emergenciais, ou pelo menos, de resultados mediatos. O que se pode dizer ou afirmar é que não há uma fórmula simples e precisa que seria capaz de atender à urgência de salvaguardar os direitos humanos fundamentais, respeitar os preceitos básicos da soberania e, ao mesmo tempo, efetivar o sistema internacional de direitos humanos.

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Entretanto, é possível afirmar que o reconhecimento da flexibilização do conceito de soberania por meio de tratados e convenções que compõem o sistema internacional de direitos humanos não elimina nem torna irrisório tal poder soberano. Logo, qualquer pretenso argumento do Governo Maduro sobre comprometimento da soberania nacional por causa da necessidade de proteção dos direitos humanos fundamentais (seja pela ordem interna ou pela ordem internacional), não guardaria harmonia com a plena manifestação da soberania, que hoje se encontra ligada com a efetivação dos direitos humanos. Por outro lado, restringir atos democráticos, direito de manifestação e liberdade de expressão e coibir atos de opositores da população venezuelana denuncia que o Governo Maduro desvaloriza o valor da cidadania, como elemento necessário a um saudável poder soberano estatal. Além disso, a frequente negativa quanto à solução pacífica de conflitos com os opositores torna o Governo Maduro não somente violador dos mandamentos constitucionais, mas um governo que nega direitos humanos reconhecidos internacionalmente. A iniciativa de se cobrir eventuais afrontas de direitos humanos fundamentais pelo manto da soberania estatal foi superada há tempos por uma soberania que se manifesta plenamente quando a vontade popular se vê refletida nas ações estatais e corrobora os pactos internacionais. Assim, não há sentido nas ações do Governo Maduro em pretender se fechar internacionalmente aos demais Estados Soberanos, uma vez que afrontando direitos humanos fundamentais, tal violação se torna preocupação de toda a comunidade nacional/internacional e enseja proteção pelo sistema internacional de direitos humanos. Portanto, ao considerar que o Governo Maduro mantenha o possível endurecimento da posição antidemocrática e autoritária na ordem interna, tais atos provocam a necessidade de se buscar medidas de intervenção mais objetivas dos agentes internacionais difusores e protetores da efetivação dos direitos humanos fundamentais, até que o sistema internacional de direitos humanos possua estrutura de intervenção forte o suficiente para inibir e combater o surgimento de outros Estados violadores de direitos consagrados.

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13 A dis cu s s ão étic o- p olít i c a so bre Direitos H u ma nos em Seyla Benh a b i b Vinicius Valentin Raduan Miguel

Comentários introdutórios

A proposta do corrente artigo é apreciar as concepções de Seyla Benhabib, professora da Universidade de Yale, de origem turca, nascida em 1950. A professora Seyla Benhabib abordou a temática de Direitos Humanos em diversos de seus artigos (BENHABIB, 2007a, 2008, 2009) e tendo dedicado ao menos uma obra in totum ao assunto: “Dignidade na adversidade: direitos humanos em tempos turbulentos” (2011), a despeito da centralidade-transversalidade do objeto em sua produção acadêmica, pautada na Teoria Crítica, instrumental teórico por meio do qual explorou elementos de gênero, identidade e ética. A ubiquidade discursiva dos direitos humanos

Seyla Benhabib, apresentando que o vocabulário político dos Direitos Humanos é onipresente em termos mundiais e empregado para formatar instituições transnacionais, ao mesmo tempo em que objeto 295

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de profunda controvérsia conceitual entre filósofos e juristas em um mundo guiado por conflitos (2008, 2011), a autora, em um de seus textos (2008), expõe os argumentos, verbi gratia, de Michael Walzer, John Rawls, dentre outros, tendo por paradigma a Declaração Universal de Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (de 1948). Benhabib, em uma difusa exploração de ética em temas de relações internacionais, bem anota que os documentos internacionais são “filosoficamente confusos”, “politicamente compromissários” e “resultado de contínuas negociações” (2008, p. 95-96). Ao lembrar o repertório de documentos, formando a base para um Direito Internacional Público, Benhabib aponta que, seguindo à Declaração Universal, foram promulgados a Convenção Contra o Genocídio (1948), a Convenção sobre Refugiados (1951) e as gemelares Cartas Internacionais de Direitos Civis e Políticos (os blue rights, insertos na categoria de direitos de primeira geração) e a de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais (os red rights, direitos de segunda geração, na tipologia clássica) (BENHABIB, 2008, 2009). Tais documentos, se ainda utópicos para ser a base jurídica de uma Constituição Mundial, também não podem ser contemplados como meros tratados interestatais. Na leitura de Benhabib, referenciados documentos vem ocasionando uma transformação política, sendo elementos constituintes de uma sociedade civil global, em que os “indivíduos são titulares de direitos não apenas em virtude de sua cidadania dentro dos Estados, mas, em primeiramente, em virtude de sua humanidade”1 (BENHABIB, 2008, p. 97). Apesar de expor que as/os filósofas/os pouco podem oferecer em caráter terminativo, Seyla Benhabib faz a ressalva de parte da ambiguidade teórica sobre direitos humanos como componente do medo do uso por um moralismo político (no sentido kantiano, de exploração equivocada e retórica da concepção, como assevera alhures), a serviço de hegemonias políticas: Certamente, muito da reticência recente no discurso contemporâneo sobre a justificação de direitos humanos pode ter suas origens encontradas na sua instrumentalização para fins políticos por alguns e no temor por parte de outros de que a robusta linguagem de direitos humanos pode conduzir a um imperialismo moral2 (op. cit., 2008, p. 98). 1 No original: “In this global civil society, individuals are rights-bearing not only in virtue of their citizenship within states but, in the first place, in the virtue of their humanity” (p. 97). 2 “Certainly, much of the recent reticence in contemporary discourse about the justification of human rights can be traced back to their instrumentalization for political ends by some, and to the fear on the part of others that the robust language of human rights can usher in moral imperialism” (p. 98).

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É compreensível a observação, em caráter de advertência, mormente diante da “responsabilidade de proteger” empregada vagamente em casos de “intervenções humanitárias” que deveriam (ou, quiçá, poderiam) ser delatadas filosoficamente enquanto parte de um imperialismo humanitário-moral visando mudanças de regimes, de acordo com as afluências e necessidades de uma geopolítica de ocasião, levadas a cabo por medidas unilaterais. Essas ponderações levam a outra reflexão da autora, que abordaremos em seguida. Em busca da unidade e da diversidade

Em outro de seus desafiadores artigos, Seyla Benhabib (2007a) perquire a tradicional dicotomia entre relativismo e universalismo ou, em suas palavras, a aparente contradição entre “unidade e diversidade” em Direitos Humanos. Aparente, pois, na produção acadêmica da autora em comento, se evidencia que unidade e diversidade são postas lado a lado, em caráter suplementar e de mútuo enriquecimento às unidades socioculturais. Ressalte-se que Benhabib, esgotando a literatura existente, relembra a persistente disputa entre os campos da Legalidade x Moralidade x Política para situar os Direitos Humanos: A difusão de direitos humanos, assim como a sua defesa e institucionalização se tornaram uma linguagem incontestável, ainda que não na realidade, na política global. É em termos de uma linguagem de direitos humanos que eu gostaria de colocar a questão do universalismo na presente aula. Argumento que há um direito moral fundamental, o “direito a ter direitos” que cada ser humano tem, que é ser reconhecido pelos outros e reconhecer os outros, por sua vez, como uma pessoal titular de respeito moral e de direitos legalmente protegidos em uma comunidade humana. Direitos Humanos, eu mantenho, articulam princípios morais protetores da liberdade comunicativa de indivíduos, enquanto tais princípios são distintos da especificação legal de tais direitos, ainda que exista uma necessidade e não apenas uma ligação contingencial entre direitos humanos como princípios morais e sua forma jurídica. (BENHABIB, 2007a, p. 9)3

3 “The spread of human rights, as well as their defense and institutionalization, have become the uncontested language, though not the reality, of global politics. It is in terms of the language of human rights that I, as well, wish to pose the question of universalism anew in this lecture. I will argue that there is one fundamental moral right, the “right to have rights,”6 of every human being, that is, to be recognized by others, and to recognize others in turn, as a person entitled to moral respect and legally protected rights in a human community. Human rights, I will maintain, articulate moral principles protecting the communicative freedom of individuals; while such moral principles are distinct from the legal specification of rights, nevertheless there is a necessary and not merely contingent connection between human rights as moral principles and their legal form.” (2007, p. 9).

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Outrossim, a despeito de serem princípios situados no campo da moralidade, guardando especificidade em relação à dimensão do jurídico-político, vinculam-se e há um dever-poder de serem identificados na forma “lei” (a dimensão jurídico/legal). Numa tipologia similar, no mesmo texto, Benhabib (2007a, p. 14) preleciona que “os direitos humanos são princípios morais que protegem o exercício da liberdade comunicativa e para os quais demandam a personificação na forma jurídica”4. A professora Benhabib estipula que os direitos humanos, conforme estatuídos em diversas normas de direito público, são a um passo, um mínimo a ser mantido e, n’outro horizonte, um máximo enquanto aspiração de seres humanos que se reconhecem enquanto titulares de direitos. Dessa maneira, qualquer repertório de direitos será marcado pela incompletude, se sujeitando a um rosário de novos requerimentos de acordo com as lutas e processos de aprendizagens da humanidade5. Ainda, Benhabib sopesa que direitos humanos podem ser considerados como “condições ativadoras” (enabling conditions), permitindo iterações democráticas (democratic iterations) entre culturas/povos diversos no mundo: conversações continuadas, um complexo diálogo que imponha o questionamento da completude e dos limites de cada marco civilizacional, permitindo que cada agrupamento social questione a si próprio a partir da(s) perspectiva(s) do(s) outro(s) e, desse modo, compreender a variedade aceitável de contextos e hermenêuticas de direitos humanos, que não são sólidas e tampouco irreversíveis6. Com a explicação de que as iterações democráticas são processos de vários campos, que permitem (re)discutir a norma, Benhabib quebra 4 “Human rights then are moral principles that protect the exercise of your communicative freedom and which require embodiment in legal form.” (2007, p. 14) 5 Vide a autora: “Human rights and the various public law documents in our world define both a minimum to be maintained and a maximum to be aspired to among human beings who have recognized each others’ right to have rights. There will always be debate about their meaning as well as their comprehensiveness; therefore, any list we provide of them is necessarily incomplete. New moral, political, and cultural struggles will bring forth rights to be added to the list and to extend the maximum that humans can aspire to. For example, technological developments in human cloning, gene therapy, and gene manipulation are likely to lead to some basic rights protecting human beings’ biological and species integrity in the near future. Precisely because they emerge out of such struggles and learning processes, human rights documents cannot simply embody an “overlapping consensus” or “minimum conditions of legitimacy”; they give voice to the aspirations of a profoundly divided humanity by setting “a common standard of achievement for all peoples and all nations.” (Universal Declaration, Preamble) (2007, p. 18). 6 Na obra, essa acepção é delineada na seguinte maneira: “One way to look at human rights is to consider them as enabling conditions, in the legal and political senses, of “uncoerced democratic iterations” among the peoples and cultures of the world. Such iterations cannot be understood as agreements frozen in time and space, but only as a continuing conversation, a complex dialogue, which challenges the assumptions of completeness of each culture, by making it possible for its members to look at themselves from the perspectives of others. Since the goal is not an irreversible agreement but the enlargement of perspectives, the consequence of such dialogues is to educate us to the range of acceptable variation in the interpretation and contextualization of human rights. It is a broadening of our understanding of the unity and diversity of human rights to equality and toleration, to property, privacy, and citizenship.” (2007, p. 23).

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o gesso da lei (e sua hermenêutica) como algo de simples assujeitamento dos indivíduos: “Iterações democráticas são processos linguísticos, legais, culturais e políticos de repetições-em-transformação, invocações que são também revogações” (2012a, p. 41). Há, de tal modo, uma reapropriação/reinterpretação que transcende a legitimidade pelo simples fato da legislatura haver promulgado a norma, o que é reiterado pelas maiorias democráticas e a constante formação da norma pela “argumentação, contestação, revisão e rejeição”. Em outro texto, ela aponta que: Por interações democráticas eu pretendo expor os complexos processos da argumentação pública, deliberação e intercâmbios através dos quais expressões de direitos universais são disputados e contextualizados, invocados e revogados, posicionados e afirmados através de instituições políticas e legais, assim como por associações da sociedade civil. (2007a, p. 21)

Registrando que o “direito a ter direitos”, reiterando a célebre expressão de Hannah Arendt, Seyla Benhabib, em complementaridade com o já aduzido, afiança. Que os direitos humanos devem conter um mínimo do direito à vida, à liberdade, propriedade pessoal e garantia de bem-estar socioeconômico, incluindo o básico nutricional, habitacional e educacional. Repisando os dizeres de Bloch em uma de suas aulas, a filósofa rememora: Na medida em que não há dignidade humana possível – do tipo essencialmente intencionado pelo direito natural – sem libertação econômica, também não poderá se suceder qualquer libertação econômica sem que se inclua a questão dos direitos humanos... E, portanto, não há qualquer conquista real de direitos humanos sem o fim da exploração, mas também não há qualquer fim real da exploração sem a conquista de direitos humanos. (BLOCH apud BENHABIB, 2012b, p. 6)

Outra vez, por meio da citação, Benhabib persevera na interdependência de um mínimo socioeconômico e no fim da exploração, apresentando os direitos fundamentais como estruturantes e, de modo simultâneo, resultantes de um discurso emancipatório. A Democracia e Direitos Humanos

A política é outro tema central de Seyla Benhabib, mas no caso específico, iremos abordar os reflexos de sua teoria da democracia (in casu, de-

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mocracia deliberativa) a partir de um texto em particular (2007b) para dali extrair suas noções sobre a inter-relação democracia e direitos humanos. Aqui, importante fazer referência à ideia de bens públicos, que Benhabib colaciona como fundamentalmente três: (1) a legitimidade; (2) o bem-estar econômico; e (3) um sentimento viável de identidade coletiva. Segundo ela, pode se dar um conflito (ou submeter-se ao risco disto) com a maior implementação de um de tais bens públicos sobre o(s) outro(s). A ênfase na identidade coletiva pode, por exemplo, acarretar na supressão de grupos minoritários. A preponderância do bem-estar econômico, se pautado em medidas de livre mercado e minando direitos sociais, pode comprometer a legitimidade política. Assim, é esperada alguma forma de balanço entre os três bens indigitados. A legitimidade, elemento nuclear para a discussão aqui em comento, é percebida como “o resultado de uma deliberação livre e não constrangida de todos em torno das questões de preocupação comum” (2007b, p. 48), ligando-se à acepção de democracia. A legitimidade é o output de um consenso produzido a partir das trocas discursivas e dialógicas de cidadãs/ãos livres no que usualmente concebemos como democracia. A democracia é, na obra, apresentada como um modelo organizativo do exercício do poder (coletivo/público) tendo por parâmetro o preceito de que as decisões amplas, que impactam no tecido social, devem ser o produto “de um procedimento de deliberação livre e racional entre indivíduos considerados iguais política e moralmente” (2007b, p. 48). Mas a deliberação pressupõe participantes, os quais devem tomar como pedra angular a lógica da igualdade formal e da simetria entre os participantes, metarregras que impõem a possibilidade dos partícipes de contrapor, rearticular e testar os argumentos na racionalidade deliberativa. Daí decorre a percepção de um pluralismo de valores nas sociedades complexas, mas tendo por acordo uma ética discursiva de reconhecimento moral recíproco para o diálogo político. Se há igualdade/simetria entre os concorrentes na democracia deliberativa a partir dessa ética de reciprocidade/reconhecimento, persiste também o reconhecimento das minorias e dos dissidentes. Nessa seara, os direitos humanos são “normas institucionais constitutivas e reguladoras do debate em sociedades democráticas, que não podem ser transformadas e anuladas por uma decisão majoritária simples” (2007b, p. 69), sendo, portanto, descartada – ao menos na dimensão desta teoria da democracia deliberativa – a “tirania da maioria”. Assim, da teoria política de Benhabib, se extrai uma conexão com os direitos humanos, a saber, a igualdade formal dos sujeitos que deliberam, e cujos direitos servem de guidelines para a decisão na esfera pública, mas cujo limite é a própria anulação/revogação do estatuto mí300

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nimo dos outros sujeitos (o dilema do reconhecimento e respeito dos indivíduos/coletividades). Direitos Humanos diante do aparente declínio da soberania: Política além do Estado

Vigora, atualmente, a fixação, em muitos Estados nacionais, da participação na vida política como privilégio de seus cidadãos, excluindo estrangeiros (migrantes, requerentes de asilo e refugiados e mesmo aqueles que tenham obtido a cidadania/nacionalidade). A filiação/pertença à uma unidade política, substancializando-se em participação plena da democracia deliberativa ainda é restrita, mesmo com a progressiva feitura de normas cosmopolitanas (2012a). Essa situação sobrerreferencia se soma com outra: diante do estado de exceção (re)anunciado com o 11/09/2001, a promessa de uma soberania pós-westfaliana, com um regime internacional de direitos humanos, parece provocar, senão a ruína, alguma ranhura na tradicional forma política do Estado em sua comunidade internacional, com igualdade formal de integrantes, diante de ameaças aos seus indivíduos/cidadãos. Embora diante de uma dicotomia entre o que poderia ser realidade X utopia (guerra imperial X ordem global de justiça cosmopolitana), é certo que algumas normas (sejam declarações, tratados ou práticas políticas) emergem visando resguardar a cidadania e, talvez, uma sociedade civil global, diante de abusos estatais. A forma de exercício da soberania, assim, não que seja enfraquecida, mas remodelada e reconfigurada para acomodar-se com o respeito de direitos humanos, mesma redefinição já testemunhada da transição da soberania política (do Estado Absolutista) para a soberania popular (em decorrência da Revolução Francesa e as exigências democráticas e, ulteriormente, sociais, que desse contexto insurgiram). Da mesma forma que são necessárias regulações e clarificações nas normas e justificativas para as intervenções humanitárias, Benhabib opina que é importante criar formas de uma governança mundial e da ativa cidadania, com o envolvimento em organizações transnacionais e a intervenção vital da sociedade civil global, essa rede de entidades/movimentos que postulam um ativismo cívico internacional. Sua premissa de que há uma vindoura (ou existente) Política para além do Estado, associando a democracia deliberativa com a cidadania mundial e a sociedade civil global, é atraente. Ipsis litteris:

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Na verdade, a democracia é o processo pelo qual a soberania popular tenta domesticar a soberania de estado, fazendo-a responsiva, transparente e responsabilizável perante o povo. A difusão de normas cosmopolitanas que visam a proteger o ser humano enquanto tal, independente da sua filiação nacional, mas antes como cidadão de uma sociedade civil global, e a soberania popular mutuamente reforçam uma à outra. (...). Em primeiro lugar e sobretudo, o estado é submetido ao elevado escrutínio jurídico e popular, ajudando assim a afirmação da soberania popular. O suposto conflito entre a difusão de normas cosmopolitanas e soberania popular está baseado sobre uma equação errônea do estado com a soberania popular, (2012a, p. 42)

Sem descuidar da dimensão difícil de escolhas, que imporão o “peso da história”, Benhabib remete que é imprescindível libertar a narrativa de Direitos Humanos da “retórica intervencionista”, que usualmente é manuseada, sobretudo se tal intervenção vier acompanhada da ameaça ou do uso da força militar e quando tão somente Estados são os agentes desse processo decisório (2007a, p. 23).Formata-se uma inter-relação entre o que era anunciado como um negativo “declínio do Estado/Soberania”, para uma profícua difusão de normas cosmopolitanas de Direitos Humanos a partir de uma soberania popular, que, espera-se, circunde com a reivindicação democrática não só os Estados nacionais, como as organizações transnacionais de governança mundial. Considerações finais

As concepções sobre Direitos Humanos são nucleares no pensamento de Seyla Benhabib, permeando sua argumentação sobre democracia, política, relações internacionais e gênero. Os Direitos Humanos, em sua produção acadêmica, são indissociáveis e interdependentes, não se podendo falar em dignidade, liberdade econômica ou demais direitos fundamentais sem a vinculação entre estes. Nos seus textos, vê-se uma conectividade entre as normas cosmopolitanas inscritas ou não em documentos internacionais de direitos humanos e o refazimento do Estado. A concepção de democracia, se funde com a necessidade legitimidade e de justificativa, com a proteção de direitos e com a atualização hermenêutica/interpretativa das normas, considerando os destinatários da norma igualmente como partícipes/sujeitos, que deve tomar como pressuposto a igualdade formal, o mútuo reconhecimento e a impossibilidade de eliminação das minorias a partir da vontade vencedora (cláusula contramajoritária). 302

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Nos seus textos mais recentes, Seyla Benhabib debruçou-se sobre a questão da relação Estado e Direitos Humanos, debate com implicações concretas, sobre a eventual erosão da soberania política ou o arrefecimento das fronteiras e limites territoriais do exercício do domínio do poder público. Atinente a este ponto, uma possibilidade de construção democrática – tanto no plano interno quanto extraterritorial – é a resposta de Benhabib, indicando que estamos diante da possibilidade de que documentos internacionais de direitos humanos remodelem os Estados como que o desafio também é democratizar as estruturas de governança mundial, passos simultâneos e necessários para a difusão de uma sociedade com maiores amarras contra os totalitarismos e violências imperiais. Com essa desenvoltura teórica e ampliada leitura sobre os problemas, Seyla Benhabib fornece subsídios para a interpretação de grandes temas da política contemporânea. Referências

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14 O conceito de em Aristóteles Deborah Christina Biet de Oliveira

Esse artigo toma parte de um projeto mais amplo acerca do conceito de Phrónesis, no qual se busca compreender a sua recepção no pensamento de Paul Ricouer. Assim, tendo em vista a história do conceito de Phrónesis na história da filosofia, discorreremos aqui sobre a sua significação na obra de Aristóteles. A palavra Phrónesis traz em si uma carga semântica própria do mundo grego. Aristóteles, em seu livro Ética à Nicômaco (Aristóteles, 1991), ressalta que o propósito de cada um é a causa eficiente (sem ressaltar que é causa final) porque seu objetivo consiste em elucidar de que modo a Phrónesis é “realizadora de ações”1. Sua intenção última consiste em mostrar que a eficácia na realização de ações vai além do propósito e exige o cômputo correto dos fatores singulares envolvidos na circunstância de cada ação. Ou seja, “um pensamento que deseja, ou um desejo com pensamento”. Inicialmente devemos descobrir qual é o tema da investigação de Aristóteles em seu escrito Ética a Nicômaco: que seria o Sumo Bem.

1 Para Gadamer: “A questão que é então levantada por Aristóteles diz respeito à possibilidade de um conhecimento filosófico do homem como ser ético [...] A tarefa própria à consciência ética é avaliar uma situação concreta à luz das exigências éticas mais gerais. O outro lado da moeda é que um conhecimento geral que não leva em conta o modo de sua aplicação a uma situação concreta ameaça, em razão de sua generalidade, obscurecer o sentido daquilo que uma situação de fato pode concretamente exigir dele” (GADAMER, 1998, p. 49).

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Já que, evidentemente, os fins são vários e nós escolhemos alguns dentre eles (como a riqueza, as flautas e os instrumentos em geral), segue-se que nem todos os fins são absolutos; mas o sumo bem é claramente algo de absoluto. Portanto, se só existe um fim absoluto, será o que estamos procurando; e, se existe mais de um, o mais absoluto de todos será o que buscamos. (ARISTÓTELES, 1991, p. 14)

Sumo significa tudo aquilo que é excelente, excelso, extremo ou supremo, é, pois, o mais excelente de todos os fins. Para que esse Bem seja Sumo, Aristóteles afirma que para alcança-lo não poderia haver bens secundários, um bem em função de outro. Aristóteles entende que é necessário que a ação humana tivesse um fim último. O Sumo Bem é desejado por si mesmo, não como uma forma de alcançar outro fim, ele é o Bem Comum para todos os Homens. O Sumo Bem é considerado, também, o objeto da ciência política. A política é considerada por Aristóteles uma ciência superior às outras e tem por finalidade o bem comum de todos. Dessa forma o Sumo Bem não é algo a ser buscado de forma individual, é algo a ser buscado de forma. Para isso a política deve legislar sobre o que se deve ou não fazer, assim as outras ciências são subordinadas a ela e seus imperativos. Ora, a política mostra ser dessa natureza, pois é ela que determina quais as ciências que devem ser estudadas num Estado, quais são as que cada cidadão deve aprender, e até que ponto; e vemos que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas a ela. Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançá-lo para uma nação ou para as cidades-Estados. Tais são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciência política numa das acepções do termo. (ARISTÓTELES, 1991, p. 6)

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A ação assim como o Sumo Bem é colocada por Aristóteles como objeto da Política: Retomemos a nossa investigação e procuremos determinar, à luz deste fato de que todo conhecimento e todo trabalho visa a algum bem, quais afirmamos ser os objetivos da ciência política e qual é o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação. (ARISTÓTELES, 1991, p. 8)

Pois, os homens que estão de acordo com os imperativos da política, estão de acordo com um princípio racional, portanto, realizam ações justas e temperantes. Para que as ações do indivíduo sejam justas e temperantes, este deve ter o conhecimento e experiência em sua vivência de ações semelhantes, ou seja, deve ter tido o contato com ações justas e temperantes. Este indivíduo deve ser continente e temperante, isso significa que ele deve saber se conter, porque os imperativos da razão, que são contrários as noções dos nossos desejos, deve subjugar a parte que busca realizar as vontades contrárias dos imperativos da razão, para que isso aconteça ele deve ter sido educado nos bons hábitos, mas não apenas para que esse indivíduo seja capaz de realizar ações justas e temperantes, mas para que ele seja capaz de compreende-las. Por conseguinte, as ações são chamadas justas e temperantes quando são tais como as que praticaria o homem justo ou temperante; mas não é temperante o homem que as pratica, e sim o que as pratica tal como o fazem os justos e temperantes. É acertado, pois, dizer que pela prática de atos justos se gera o homem justo, e pela prática de atos temperantes, o homem temperante; sem essa prática, ninguém teria sequer a possibilidade de tornar-se bom. Mas a maioria das pessoas não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira. Nisto se portam, de certo modo, como enfermos que escutassem atentamente os seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhes prescrevessem. Assim como a saúde destes últimos não pode restabelecer-se com tal tratamento, a alma dos segundos não se tornará melhor com semelhante curso de filosofia. (ARISTÓTELES, 1991, p. 35)

As ações são importantes na vida do indivíduo em sua busca pelo Sumo Bem. Aristóteles usa a palavra Práxis para fazer referência a essa ação. Práxis não é apenas uma ação, ela é algo mais profundo e carrega um significado maior, pois é a Práxis quem conduz a ação para a obtenção de um fim, pôr em Prática aplicações teóricas no mundo físico e 307

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por meio disso obter experiência, as ações praticadas. A Práxis possui fim em si mesma, sendo esse fim a própria Eudaimonia: “A felicidade é, portanto, algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação” (ARISTÓTELES, 1991, p. 15). A Práxis está presente também na Filosofia de Ricoeur (2008, 2014) e possui um papel importante em seu pensamento, o qual abordaremos no Capítulo 2. A Práxis e a Phrónesis estão ligadas, uma vez que Phrónesis significa Sabedoria Prática e Práxis é a Ação Prática que conduz o homem a ter experiência, conforme se verá mais à frente. Aristóteles define o sumo bem como Eudaimonia (felicidade), ela é a causa final do homem. Ora, nós chamamos aquilo que merece ser buscado por si mesmo mais absoluto do que aquilo que merece ser buscado com vistas em outra coisa, e aquilo que nunca é desejável no interesse de outra coisa mais absoluto do que as coisas desejáveis tanto em si mesmas como no interesse de uma terceira; por isso chamamos de absoluto e incondicional aquilo que é sempre desejável em si mesmo e nunca no interesse de outra coisa. Ora, esse é o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. É ela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra, ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos (pois, ainda que nada resultasse daí, continuaríamos a escolher cada um deles); mas também os escolhemos no interesse da felicidade, pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria. (ARISTÓTELES, 1991, p. 14)

Por ser a causa final, não é algo que pode ser usado para alcançar qualquer outro fim, ela é o fim último. Aristóteles exemplifica isso quando nos revela sobre os três tipos de vida: Vida de Gozos, Vida Consagrada ao ganho e Vida Política. A vida de gozos diz respeito às pessoas que identificam os prazeres como felicidade, chegando até comparar tais pessoas com escravos e afirma que seus gostos são muito semelhantes aos do mítico Rei Sardanapalo2:

2 Segundo a mitologia, foi o último rei do Império Assírio. Sardanapalo era conhecido por viver sua vida de forma luxuriosa, vestindo-se de mulher e por usar maquiagem, além de também possuir uma grande quantidade de amantes, não apenas mulheres, mas também homens. Quando Aristóteles faz tal comparação, significa que seus gostos são voltados para a luxúria.

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A grande maioria dos homens se mostram em tudo iguais aos escravos, preferindo uma vida bestial, mas encontram certa justificação para pensar assim no fato de muitas pessoas altamente colocadas partilharem os gostos de Sardanapalo. (ARISTÓTELES, 1991, p. 9)

A vida consagrada ao ganho trata-se da vida das pessoas que acreditam que no acumulo de bens e capitais, e que através desses capitais irão atingir outras finalidades, mais uma vez Aristóteles afirma não estar correto, pois estes bens são amados em si mesmos, e em sua busca ele procura algo útil. Quanto à vida consagrada ao ganho, é uma vida forçada, e a riqueza não é evidentemente o bem que procuramos: é algo de útil, nada mais, e ambicionado no interesse de outra coisa. E assim, antes deveriam ser incluídos entre os fins os que mencionamos acima, porquanto são amados por si mesmos. Mas é evidente que nem mesmo esses são fins; e contudo, muitos argumentos têm sido desperdiçados em favor deles. Deixamos, pois, este assunto. (ARISTÓTELES, 1991, p. 10)

A vida política é a vida que o indivíduo busca ser virtuoso, honrado e assim também busca o bem comum de todos os indivíduos. A consideração dos tipos principais de vida mostra que as pessoas de grande refinamento e índole ativa identificam a felicidade com a honra; pois a honra é, em suma, a finalidade da vida política.

A vida política é a vida do homem que busca honra, mas a honra é algo particular, o homem a busca como forma de convencer a si mesmos de que são bons. Na vida política vale mais o “por que’” de ser honrado do que a honra em si, ela não possui fim em si mesma. Mais vale quem a outorga, trata-se mais de algo relacionado a resultado e consequência de que um fim. [...] No entanto, afigura-se demasiado superficial para ser aquela que buscamos, visto que depende mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado. Dir-se-ia, além disso, que os homens buscam a honra para convencerem-se a si mesmos de que são bons. Como quer que seja, é pelos indivíduos de grande sabedoria prática que procuram ser honrados, e entre os que os conhecem e, ainda mais, em razão da sua virtude. Está claro, pois, que para eles, ao menos, a virtude é mais exce-

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lente. Poder-se-ia mesmo supor que a virtude, e não a honra, é a finalidade da vida política. Mas também ela parece ser de certo modo incompleta, porque pode acontecer que seja virtuoso quem está dormindo, quem leva uma vida inteira de inatividade, e, mais ainda, é ela compatível com os maiores sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo quem queira sustentar a tese a todo custo, ninguém jamais considerará feliz um homem que vive de tal maneira. (ARISTÓTELES, 1991, p. 9)

Por ela não ter fim em si mesma, a vida política não é o caminho para a Eudaimonia que possui fim em si mesma, e como podemos perceber a vida política é algo que se busca para conquistar honra. Mas nenhum desses tipos de vida corresponde a Eudaimonia, pois para alcança-la o Homem precisa aperfeiçoa-se enquanto Homem, ou seja, aperfeiçoa-se nas atividades que o distingue dos outros animais. Aristóteles afirma que a Vida Contemplativa é a melhor atividade e ela é compatível com a Eudaimonia, pois ela é uma atividade incessante, o prazer desta atividade está na contemplação da verdade e assim como a Eudaimonia, a vida contemplativa possui autossuficiência. Ora, isto parece estar de acordo não só com o que muitas vezes asseveramos, mas também com a própria verdade. Porque, em primeiro lugar, essa atividade é a melhor (pois não só é a razão a melhor coisa que existe em nós, como os objetos da razão são os melhores dentre os objetos cognoscíveis); e, em segundo lugar, é a mais contínua, já que a contemplação da verdade pode ser mais contínua do que qualquer outra atividade. E pensamos que a felicidade tem uma mistura de prazer, mas a atividade da sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais aprazível das atividades virtuosas; pelo menos, julga-se que o seu cultivo oferece prazeres maravilhosos pela pureza e pela durabilidade, e é de supor que os que sabem passem o seu tempo de maneira mais aprazível do que os que indagam. Além disso, a autossuficiência de que falamos deve pertencer principalmente à atividade contemplativa. Porque, embora um filósofo, assim como um homem justo ou o que possui qualquer outra virtude, necessite das coisas indispensáveis à vida, quando está suficientemente provido de coisas dessa espécie o homem justo precisa ter com quem e para com quem agir justamente, e o temperante, o corajoso e cada um dos outros se encontram no mesmo caso; mas o filósofo, mesmo quando sozinho, pode contemplar a verdade, e tanto melhor o fará quanto mais sábio for. Talvez possa fazê-lo melhor se tiver colaboradores, mas ainda assim é ele o mais autossuficiente de todos.

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E essa atividade parece ser a única que é amada por si mesma, pois dela nada decorre além da própria contemplação, ao passo que das atividades práticas sempre tiramos maior ou menor proveito, à parte da ação. (ARISTÓTELES, 1991, p. 233)

Para deixar mais claro, Aristóteles utiliza o conceito de função para exemplificar o que é Eudaimonia. Função em Aristóteles trata-se da atividade que é particular a um indivíduo. O flautista tem a função de tocar flauta, o professor tem a função de ensinar. Função seria então, o proposito dos indivíduos. Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o “bem feito” residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função. (ARISTÓTELES, 1991, p. 15)

Quando aplica o conceito de Função em Eudaimonia, Aristóteles explica que cada coisa ou cada indivíduo pode realizar sua função com excelência, realizá-la bem. Sendo assim, o indivíduo para alcançar o Sumo Bem, Eudaimonia, deve realizar sua função com excelência. Mas qual seria a função do Homem? Se para alcanças a Eudaimonia o Homem precisa aperfeiçoar-se na atividade que faz o homem ser vivo diferente dos outros, então que atividade é essa? Onde está essa característica? Para responder a essas perguntas devemos antes entende o que Aristóteles entende por alma. Alma em Aristóteles é o que diferencia os seres inanimados dos seres animados, tal diferença é caracterizada no fato de que a alma é o princípio que concede movimento aos seres, logo somente os seres animados a possuem. Vale lembrar que a alma em Aristóteles tem sentido amplo e não se limita ao conceito de que a alma pertence somente aos seres humanos. Em sua metafísica Aristóteles apresenta a alma como um elemento que organiza a matéria dos seres animados de maneira que esses seres sejam capazes de realizar seus movimentos, suas funções. Alma está ligada aos fins de cada ser. Portanto, alma é o princípio de movimento de cada ser, e também compreende a causa final de cada um desses seres. Aristóteles apresenta uma tipologia para definir as características da alma humana e nos mostrar o que a faz diferente das almas das plantas e animais, Aristóteles afirma que nossa alma é dividida em dois aspectos: o primeiro seria o elemento racional e o outro é o elemento que é privado de razão.

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Por exemplo: que a alma tem uma parte racional e outra parte privada de razão. Que elas sejam distintas como as partes do corpo ou de qualquer coisa divisível, ou distintas por definição, mas inseparáveis por natureza, como o côncavo e o convexo na circunferência de um círculo, não interessa à questão com que nos ocupamos de momento. (ARISTÓTELES, 1991, p. 27)

O elemento que é privado de razão também é dividido em dois elementos que Aristóteles nomeia de: elemento vegetativo e elemento desiderativo. Por conseguinte, o elemento irracional também parece ser duplo. Com efeito, o elemento vegetativo não tem nenhuma participação num princípio racional, mas o apetitivo e, em geral, o elemento desiderativo participa dele em certo sentido, na medida em que o escuta e lhe obedece. (ARISTÓTELES, 1991, p. 28)

O elemento vegetativo é o que regula as atividades biológicas, todos os seres vivos o possuem em sua alma, pois ele é responsável pelos instintos, crescimento, impulsos, nutrição e reprodução dos seres vivos. As plantas, em sua alma, possuem apenas esse elemento, mas ele é comum nos animais e nos seres humanos. O elemento desiderativo é responsável pelas percepções das particularidades de cada objeto, pelas sensações e coordena os movimentos corporais, está presente nos animais e seres humanos. O elemento desiderativo, de uma forma positiva, está subordinado ao princípio racional, isso significa que o elemento ouve os imperativos e regras da razão e resiste aos instintos, ao passo que o elemento vegetativo não tem participação nenhuma. A alma humana possui uma particularidade, esta particularidade trata-se do elemento racional, que proporciona ao indivíduo pensar racionalmente, elaborar teorias, é desse elemento que procede a capacidade de formar juízos sobre a realidade. Essa é a característica que nos diferencia dos outros animais, uma vez que o elemento racional persuade o elemento irracional: Que, de certo modo, o elemento irracional é persuadido pela razão, também estão a indicá-lo os conselhos que se costuma dar, assim como todas as censuras e exortações. E, se convém afirmar que também esse elemento possui um princípio racional, o que possui tal princípio (como também o

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que carece dele) será de dupla natureza: uma parte possuindo-o em si mesma e no sentido rigoroso do termo, e a outra com a tendência de obedecer-lhe como um filho obedece ao pai. (ARISTÓTELES, 1991, p. 28)

As ações que procedem do elemento racional são chamadas de virtudes. Aristóteles também classifica as virtudes de forma dualista. São elas Virtudes intelectuais e Virtudes morais. A virtude também se divide em espécies de acordo com esta diferença, porquanto dizemos que algumas virtudes são intelectuais e outras morais; entre as primeiras temos a sabedoria filosófica, a compreensão, a sabedoria prática; e entre as segundas, por exemplo, a liberalidade e a temperança. Com efeito, ao falar do caráter de um homem não dizemos que ele é sábio ou que possui entendimento, mas que é calmo ou temperante. No entanto, louvamos também o sábio, referindo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor chamamos virtudes. (ARISTÓTELES, 1991, p. 28)

Para explicar como podemos ser virtuosos, Aristóteles usará sua teoria de ato e potência. As virtudes não estão em nós por natureza, nos tornamos virtuosos, “perfeitos pelo hábito” (ARISTÓTELES, 1991, p. 29), então as virtudes estão em nós em potência, temos o potencial de sermos virtuosos. Ao contrário dos sentidos que já o temos em ato, não os adquirimos pelo uso continuo. Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiro adquirimos a potência e mais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente no caso dos sentidos, pois não foi por ver ou ouvir frequentemente que adquirimos a visão e a audição, mas, pelo contrário, nós as possuíamos antes de usá-las, e não entramos na posse delas pelo uso. Com as virtudes dá-se exatamente o oposto: adquirimo-las pelo exercício, como também sucede com as artes. Com efeito, as coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo; por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo esse instrumento. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a temperança, a bravura, etc (ARISTÓTELES, 1991, p. 29)

Aristóteles exemplifica: [...] Ainda mais: é das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destrói toda virtude, assim como toda arte: de tocar a lira surgem os bons e os maus músicos. Isso também vale para os arquitetos e todos os demais; construindo

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bem, tornam-se bons arquitetos; construindo mal, maus. Se não fosse assim não haveria necessidade de mestres, e todos os homens teriam nascido bons ou maus em seu ofício. Isso, pois, é o que também ocorre com as virtudes: pelos atos que praticamos em nossas relações com os homens nos tornamos justos ou injustos. (ARISTÓTELES, 1991, p. 30)

O que podemos entender é que virtudes são ações praticadas. Vemos aqui a aplicação da Práxis, por suas ações virtuosas praticadas o homem poderá alcançar a Eudaimonia. Aristóteles aprofunda mais ainda, ao afirmar: “a investigação não visa o conhecimento teórico” (ARISTÓTELES, 1991, p. 30), agora ele examinará a natureza dessas ações, o que as fazem ser ações virtuosas. A natureza desses atos podem ser destruídas pela falta ou excesso, assim como a força: “Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força;” (ARISTÓTELES, 1991, p. 30) e também a saúde: “da mesma forma, o alimento ou a bebida que ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, aumentam e preservam” (ARISTÓTELES, 1991, p. 31). A virtude se baseia em uma mediania. A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria prática. E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio-termo. E assim, no que toca à sua substância e à definição que lhe estabelece a essência, a virtude é uma mediania; com referência ao sumo bem e ao mais justo, é, porém, um extremo. (ARISTÓTELES, 1991, p. 38)

Essa mediania não é baseada em proporções aritméticas, ela vária de indivíduo para indivíduo, pois o que para um indivíduo sua ação pode estar muito perto de exceder o que é considerado o limite, para o outro aquilo é somente a mediania. Da mesma forma acontece com as ações que encaminham o indivíduo a ser virtuoso ou viciosos, o Homem deve encontrar uma mediania em suas ações, ela também deve ser aplicada conforme as circunstâncias para determinar se o indivíduo foi ou não virtuoso de acordo com aquelas circunstâncias. Contudo ainda há uma questão: o que é Virtude? “Devemos considerar agora o que é a virtude. Visto que na alma se encontram três espécies de coisas — paixões, facul314

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dades e disposições de caráter —, a virtude deve pertencer a uma destas” (ARISTÓTELES, 1991, p. 35). Porém virtude não pode ser as paixões, pois a paixão em si mesma é indiferente moralmente. Por paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos que são acompanhados de prazer ou dor;[...] Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões, porque ninguém nos chama bons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido às nossas virtudes ou vícios, e porque não somos louvados nem censurados por causa de nossas paixões (o homem que sente medo ou cólera não é louvado, nem é censurado o que simplesmente se encoleriza, mas sim o que se encoleriza de certo modo); mas pelas nossas virtudes e vícios somos efetivamente louvados e censurados. (ARISTÓTELES, 1991, p. 35)

A virtude também não pode ser uma faculdade, pois a faculdade trata-se da capacidade do ser sentir as paixões, as faculdades pertencem à natureza da alma. [...] faculdades, as coisas em virtude das quais se diz que somos capazes de sentir tudo isso, ou seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou compadecer-nos; [...] Por estas mesmas razões, também não são faculdades, porquanto ninguém nos chama bons ou maus, nem nos louva ou censura pela simples capacidade de sentir as paixões. Acresce que possuímos as faculdades por natureza, mas não nos tornamos bons ou maus por natureza. (ARISTÓTELES, 1991, p. 36)

Virtude é, então, uma disposição de caráter, pois está relacionada com a mediania relativa ao indivíduo, que é estabelecida pelo princípio racional. A virtude é a pratica do bem universal. [...] por disposições de caráter, as coisas em virtude das quais nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com referência à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou demasiado fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que se relaciona com as outras paixões [...] Por conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta uma alternativa: a de que sejam disposições de caráter. (ARISTÓTELES, 1991, p. 36)

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A disposição de caráter é o que torna o homem bom e que o faz desempenhar bem a sua função, isso ocorre quando este homem tem diante de seus olhos o meio termo, para que possa analisar suas ações, seus atos, sempre pondo na balança, para que suas ações sejam sempre na medida, nunca excedendo. [...] e por isso dizemos muitas vezes que às boas obras de arte não é possível tirar nem acrescentar nada, subentendendo que o excesso e a falta destroem a excelência dessas obras, enquanto o meio-termo a preserva; [...] Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meio-termo, e em que sentido devemos entender esta expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos. (ARISTÓTELES, 1991, p. 36-37)

Para Aristóteles há uma virtude que é a mais completa e perfeita, ela é a justiça: “o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e a mais completa” (ARISTÓTELES, 1991, p. 16), “a justiça neste sentido não é uma parte da virtude, mas a virtude inteira” (ARISTÓTELES, 1991, p. 99). Mas quando Aristóteles diz que a justiça é uma virtude completa, inteira e não apenas uma parte da virtude, isso ocorre quando o homem é honesto por conta das leis que são produzidas para ordenar as práticas de atos virtuosos, pois a virtude é completa quando é realizada pelo melhor dos homens, isto é, ele exerce sua virtude não para beneficiar a si mesmo, mas para que possa beneficiar a outros também, ai está seu prazer. Essa forma de justiça é, portanto, uma virtude completa, porém não em absoluto e sim em relação ao nosso próximo. Por isso a justiça é muitas vezes considerada a maior das virtudes, e “nem Vésper, nem a estrela-d’alva” são tão admiráveis; e proverbialmente, “na justiça estão compreendidas todas as virtudes”. E ela é a virtude completa no pleno sentido do termo, por ser o exercício atual da virtude completa. É completa porque aquele que a possui pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas também sobre o seu próximo [...]. (ARISTÓTELES, 1991, p. 98)

Tendo visto todos esses conceitos em Aristóteles, retomaremos ao que se propõem este capítulo, que é entender o que vem ser a Phrónesis em Aristóteles. Phrónesis é a sabedoria prática que leva o indivíduo a Eudaimonia. A Phrónesis segue um caminho, que se inicia na Praxis, passa pelas virtudes e A Phrónesis é a sabedoria adquirida pelas práti316

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cas dessas ações, ela permite que o homem delibere sobre o que lhe é bom e conveniente, não para si mesmo, mas que contribua para a vida boa de forma coletiva. A sabedoria prática, pelo contrário, versa sobre coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação; pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem. Mas ninguém delibera a respeito de coisas invariáveis, nem sobre coisas que não tenham uma finalidade, e essa finalidade; um bem que se possa alcançar pela ação. De modo que delibera bem no sentido irrestrito da palavra aquele que, baseando-se no cálculo, é capaz de visar à melhor, para o homem, das coisas alcançáveis pela ação. No que tange à sabedoria prática, podemos dar-nos conta do que seja considerando as pessoas a quem a atribuímos. Ora, julga-se que é cunho característico de um homem dotado de sabedoria prática o poder deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para ele, não sob um aspecto particular, como por exemplo sobre as espécies de coisas que contribuem para a saúde e o vigor, mas sobre aquelas que contribuem para a vida boa em geral. Bem o mostra o fato de atribuirmos sabedoria prática a um homem, sob um aspecto particular, quando ele calculou bem com vistas em alguma finalidade boa que não se inclui entre aquelas que são objeto de alguma arte. (ARISTÓTELES, 1991, p. 127-131)

A maneira pela qual Paul Ricouer conceitua a vida boa em muito se assemelha à de Aristóteles. Nas duas filosofias, a boa vida não é identificada com o próprio bem, mas de um que seja comum a todos; ela faz parte da busca do homem pela Eudaimonia, e assim como a Eudaimonia, a vida boa não se circunscreve a algo particular, mas antes comum a todos as pessoas. Referências

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991. GADAMER, Hans Georg. O problema da consciência histórica. Tradução de Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. RICOEUR, Paul. O justo 1: a justiça como regra moral e como instituição. Tradução de Ivone G. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. ______. O si-mesmo como outro. Tadução de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. 317

15 Os Direitos Humanos e a pedagogia do medo. Uma leitura desde uma espiadela ‘Na Construção da Grande Muralha’, de Franz Kafka Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

Sobre o método

Se fará, inicialmente, uma ligeira exposição do porquê do tema escolhido, bem como da metodologia adotada. Vivemos numa época em que a palavra “crise” ganhou o status de palavra de ordem que está a legitimar aquilo que poderíamos denominar de excepcionalidade normalizada. Fala-se de crise para, mais do que explicar, justificar e tornar incontestáveis a adoção de práticas e/ou políticas que, não fosse a estrutura semântica e política do conceito, não cogitaríamos em hipótese nenhuma em nos submeter. Em outros termos, crise identificará, ao mesmo tempo, um julgamento orientado por aquele acrônimo geralmente atribuído a Pierre Bordieu - T.I.N.A (There Is No Alternative) - (BAUMANN, 2006, p. 217), mas que na verdade foi inicialmente usado pela então Primeira Ministra inglesa Margareth Thatcher para justificar a implementação de políticas neoliberais e a derrocada de 319

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direitos sociais, reverberando, como não podia deixar de ser, um bordão publicitário do Partido Conservador, mas também uma palavra de ordem idêntica àquela que se atribui a Frederico Guilherme II em resposta ao sapere aude kantiano: “pensem o quanto quiser desde que obedeçam” (ROVIGHI, 2002, p. 590). Esta percepção é confirmada pela origem do vocábulo crise, que provém do grego κρίσις (krisis) (M. PABÓN, 1967), cuja utilização primeva pertencia à arte médica: no curso do tratamento, ao médico chegava um tempo de krisis, de julgamento, isto é, de tomar uma decisão acerca da sobrevivência ou não do paciente. Da arte médica, o conceito passou à teologia cristã para identificar o tempo da parousia, da segunda vinda, com a qual se consumará a história humana em seu momento crítico, isto é, de julgamento. Nestes dois contextos, e nos que se seguiram em variados campos até chegarmos ao momento presente de economicização absoluta da vida e da política, crise identifica um momento de deficium, de resolução, de consumação, de julgamento e, portanto, de decisão sobre a excpetio, isto é, sobre aquilo que está, ao mesmo tempo, dentro e fora da norma. E por vivermos num período de crise contínua, o seu uso é o canal de normalização da excepcionalidade política (AGAMBEN, 2004, 2012). Escolhemos, nesse contexto, um tema e um problema que nos tocam como pessoa e estudiosos, isto é o problema das imigrações (i)legais e das (im)políticas de exílio que o mundo tem vivido não somente em razão dos conflitos bélicos que se têm espraiado pelo mundo (AGAMBEN, 2013), mas também em decorrência do aumento da pobreza causada pelas assimetrias econômicas, das violações contínuas e sistemáticas dos direitos humanos realizadas pelos governos de todos os Estados e de problemas climático-ambientais relacionados à desertificação, a falta de acesso à água, produção de alimentos, à gentrificação das cidades etc, fatores estes que têm empurrado cada vez mais um número infinito de pessoas a buscarem novos sítios fora de seus países, em especial nos desenvolvidos, os quais, por motivos que todos sabemos, se fecharam em copas, suscitando a produção de imagens e políticas de proteção da fronteira que pensávamos ter sido sepultadas com “plus jamais çá” enunciado desde a “descoberta” de Auschwitz. É como, portanto, se o “çá” antes negado se constituísse, na verdade, na única assinatura perene da história humana, dada a sua contínua repetição, como se a única certeza que podemos dela haurir é que, em algum momento, alguéns serão mortos violentamente ou abandonados a sua própria sorte, pondo em suspensão, ou mesmo revogando, qualquer

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traço de civilidade que nós entendemos como sendo a essência de nossa alteridade em relação às demais espécies animais. Metodologicamente, entretanto, a exata compreensão do fenômeno exige muito mais do que o referencial habitual que trabalhadores do direito costumam utilizar, isto é, teorias e normas jurídicas, construídas, por obviedade, a partir de uma postura interdisciplinar que poderia ser assim caracterizada: ao se buscar interpretar determinado fenômeno em seu “contexto”, o trabalhador do direito sai de sua caixinha de teorias e normas jurídicas, apreende o significado nas caixinhas de outras disciplinas – v.g. sociologia, antropologia, filosofia política etc -, e uma vez apreendido o significado, abandona àquelas caixinhas e volta para o quadro usual de teorias e normas jurídicas que passam a ser interpretadas com o auxílio daqueles referenciais. Com isso, portanto, nega-se, de um lado, a complexidade da realidade vivida – afinal, existiria uma autonomia quase absoluta entre as caixinhas -, e de outro lado mantem-se a ilusão de uma interpretação adequada, pela qual a resposta encontrada é a única possível, ou uma das possíveis, porquanto pretensamente contextual. Contra esta compreensão equivocada de autocontenção/compreensão da realidade em disciplinas autônomas que se comunicam somente se, e desde que, o intérprete decida sair de seu âmbito de trabalho, a transdisciplinariedade nos impõe uma tarefa muito mais árdua, por suposto, mas também mais adequada à conjunção entre texto/contexto/interpretação: por ser a realidade complexa, como complexa é a vida humana em todas as suas manifestações, texto e contexto tomam parte de uma realidade multifatorial em que a autonomia disciplinar-metodológica faz-se em pedaços (RESTA, 2004, p. 9-19), e assume um status análogo a um campo de força, ao redor do qual gravitam todas as formas e modos dispostos pela razão humana para se tentar compreender a realidade vivida, isto é, transita-se, sem mais, e não só interage-se (AGAMBEN, 2008, p. 11-34). E para demarcar, desde já, o campo de força desse trabalho, ei-lo: a pessoa humana não em sua individualidade, mas como pluralidade, conceito que conjumina todas as pessoas e seu ambiente por meio de seus direitos inalienáveis na seguinte ideia: coisas têm valor, isto é, preço; a pessoa humana tem dignidade, independentemente de qualquer outro fator econômico, psíquico, físico ou social que se possa utilizar para demarcar a pluralidade humana tal como compreendida por Hannah Arendt, segundo a qual ninguém foi, é ou será igual a outra pessoa (ARENDT, 2005, p. 31-83).

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De fato, a distinção operada acima tem seu fundamento no pensamento kantiano, para quem [n]o reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade. (KANT, 2011, p. 82)

Nessa distinção, portanto, se funda não somente sobre a alteridade (a diferença entre pessoas e coisas ou entre coisas), mas a outredade, isto é, a diferença existencial que nos giza, e por isso todos temos dignidade, e não um preço. Sobre este tópico, Agamben, discorrendo sobre o conceito filosófico da amizade, assim se manifesta, esclarecendo a diferença entre alteridade e outredade: O amigo é, por isto, um outro si mesmo, um heteros autos. Na sua tradução latina, alter ego, esta expressão tem uma longa história, e aqui não é o lugar para se fazer a sua reconstrução. Contudo, é importante verificar que a formulação grega é mais expressiva do que os ouvidos modernos conseguem perceber. Em primeiro lugar, o grego, assim como o latim, tem dois termos para identificar a outredade: allos (lat.: alius), e que identifica a generalidade dos outros, enquanto que heteros (lat.: alter) é a outredade como uma oposição entre dois, como heterogeneidade. Além disso, o latim ego não traduz exatamente autos, que significa “si mesmo”. O amigo não é um outro Eu, mas uma outredade imanente em si-mesma, e que se manifesta em outro ser. No momento em que eu percebo o prazer de minha existência, minha percepção é atravessada por uma percepção concorrente que a desloca e transporta-a para o amigo, na direção do outro ser. A amizade é esta dessubjetivação presente no coração da mais íntima autopercepção. (AGAMBEN, 2014, p. 322, grifo do autor)

Mas apesar disso, ou mesmo por conta disso, insistimos em construir muros reais ou fictos com os quais objetivamos nos separar, nos atomizar, negar, desde o chão comum que todos pisamos – o mundo no sentido arendtiano -, a pluralidade que nos concerne. Por isso escolhi esse conto de Kafka ora intitulado A muralha da China ora Na Construção da Grande Muralha da China, escrito entre 1917/1918 (KAFKA, 1984, p. 1239-1280, v. 1), mas publicado postumamente só em 1934.

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Em se tratando de um trabalho de Kafka não publicado em vida, somente podemos agradecer que seus desejos finais confiados a seu amigo Max Brodi não tenham sido atendidos. Isto quer significar, portanto, que este conto tem para mim uma estatura filosófica comum a muitas outras obras literárias – 1984, de Orwell, Bartleby, de Melville (AGAMBEN, DELEUZE, LUIS PARDO, 2005a; BENTO, 2005;), para ficarmos em alguns exemplos evidentes -, posto revelar-se, para a compreensão do tema proposto, como um paradigma no sentido próprio da palavra: um exemplo. E como todo exemplo, nos obriga a sairmos dos usuais métodos indução/dedução para nos concentrarmos na hipótese exemplar que anula as relações particular-geral, geral-particular por se tratar, conforme Aristóteles, numa relação particular-particular (DE OLIVEIRA, 2014, p. 246). A construção da grande muralha e a pedagogia do medo

Pois bem. Nessa obra Kafka nos conta, através da um narrador que somente depois se identificará como um dos tantos trabalhadores que obraram na construção da Muralha da China, as diversas circunstâncias políticas, morais, psicológicas, pedagógicas, técnicas etc que envolveram a execução dessa obra de engenharia militar que tem 8850 quilômetros de extensão e com, em média, 7 metros de altura, e que demorou mais de 2 mil anos para ser concluída. Engenharia militar porque desde o início consigna-se que a finalidade declarada era a de impedir a invasão da China pelos bárbaros do norte1. Portanto, trata-se, de uma narrativa em primeira pessoa. Mas que tipo de pessoa nos relata esse fato? E em que momento? O narrador é um contemporâneo ao início das obras, e se identifica, sem mais, como um dos milhares de trabalhadores que despenderam sua força de trabalho em favor do projeto engendrado pelo Imperador. E aqui nós temos no conto um primeiro tema que poderíamos identificar pelo conceito de “mútua dessubjetivação”: na medida em que o Imperador, conforme indicado no conto, é não somente inacessível ao seu próprio séquito, quanto mais a seus súditos, mas também desconhecido – o narrador inclusive afirma que o poder era tão distante geográfica, funcional e pessoalmente, que não raro as pessoas afirmavam estar 1 Sobre este conto, assim se manifestou Borges: “En el más memorable de todos sus relatos —“la construcción de la muralla china”, 1919—, el infinito es múltiple: para detener el curso de ejércitos infinitamente lejanos, un emperador infinitamente remoto en el tiempo y en el espacio ordena que infinitas generaciones levanten infinitamente un muro infinito que dé la vuelta a su imperio infinito”. Disponível em:. Acesso em: 20 jan. 2009.

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no império uma dinastia que há muito já fora substituída por outra -, e que no mais das vezes uma ordem ou lei imperial, quando chegava aos rincões mais distantes do reino, há muito que seu autor falecera e a ordem ou lei fora revogada por seu sucessor. E o que é um poder “pessoal” que, em razão de sua conformação, distanciamento e impessoalidade, não mostra o “rosto”? Uma dessubjetivação absoluta em que a palavra, a ordem dada, é exercida e obedecida “como se”, de fato, pertencesse a seu enunciador, algo símile à democracia que vivemos em nossos dias, em que o poder pertence ao povo, mas exercido por outrem em seu lugar. Uma (a)democracia, portanto, que em razão da força que o poder econômico desempenha, seria mais bem compreendida como plutocracia. Acerca da dessubjetivação, eis o que afirmou Agamben Sobre a dessubjetivação, como experiência vergonhosa e, no entanto, inevitável, existe um documento excepcional. É a carta enviada por Keats a John Woodhouse em 27 de outubro de 1818. A “confissão vergonhosa” de que se trata na carta se refere ao próprio sujeito poético, a seu incessante faltar-se a si mesmo para consistir unicamente na alienação e na inexistência. As teses que a carta enuncia em forma de paradoxo são bem conhecidas: 1) O eu poético não é um eu, não é idêntico a si: “Quanto ao caráter poético propriamente dito (me refiro a essa espécie de que, se sou algo, sou membro)... não é ele mesmo, não tem eu – é tudo e nada -, não tem caráter [...]. 2) Não há nada mais apoético que um poeta, porque é sempre algo distinto de si, está sempre no lugar de outro corpo: “Um poeta é o menos poético do quanto possui existência, porque não tem identidade, está continuamente atrás dela e ocupando qualquer outro corpo [...]. 3) O enunciado “eu sou um poeta” não é um enunciado, mas uma contradição em termos, que implica a impossibilidade de ser poeta: “Assim, pois, se não tem eu, e se eu sou um poeta, que há de estranho que se diga que não escreve mais?”. 4) A experiência poética é a experiência vergonhosa de uma dessubjetivação, de uma desresponsabilização integral e sem reservas, que afeta a todo ato de palavra e situa ao sedicioso poeta em um nível mais abaixo que o do quarto das crianças [...]

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Mas o último paradoxo é que, àquilo que na carta segue imediatamente à confissão, não são o silêncio e a renúncia, mas a promessa de uma escritura absoluta e indefectível, decidida a destruir-se e se renovar dia após dia, como se a vergonhosa dessubjetivação que está implícita no ato de palavra contivesse uma secreta beleza e não pudesse mais que empurrar o poeta a testemunhar incessantemente sobre a própria alienação [...]” (AGAMBEN, 2005b, p. 117-119, tradução nossa)

Sabemos, ademais, que esse poder sem forma, nem rosto, nem presença é usual na obra de Kafka como o demonstram, e.g., outras de suas obras, o Processo na figura do Tribunal, e os donos do Castelo, a quem o agrimensor nunca chega a ver. Ao lado dessa dessubjetivação de um poder que em essência é pessoal, temos também a do narrador. Ele jamais se nomeia, ou identifica a sua estirpe, formação, laços familiares ou pessoais. Ele é tão-só um súdito a quem tocou, em seus dez anos de idade, ser testemunha do início do projeto imperial de construção do muro, e a quem, em sua idade adulta, foi dada a “oportunidade” de trabalhar nas obras, sempre muito distantes de seu chão natal. Esse narrador que só tem voz, mas não persona, pode ser apreendido como um mero objeto (por isso mesmo súdito) do poder dessubjetivado que determina a realização da obra. Ele não tem individualidade, não é um sujeito que junge em sua narrativa personalidade individual e realidade, mas um narrador que tem sua voz utilizada para descrever os fatos tais como se passaram, e por mais esdrúxulas que fossem as normas, suspender o pensamento mediante uma certeza incutida de que a “Direção da Obra” detinha mais sabedoria, conhecimento e razão que qualquer outra pessoa, mormente no que concernia à forma descontinua de construção da Muralha: Talvez agora possamos discutir sem perigo, [pois] nesses dias o pensamento secreto de muitos, quanto mais dos melhores, era este: “Trata de compreender com todas as tuas forças as ordens da Direção, mas só até certo ponto; a partir daí, deixe de pensar”. Um pensamento dos mais razoáveis, que se desenvolveu numa parábola que obteve ampla difusão: Pare de pensar, mas não porque o possa prejudicar, já que tampouco existe certeza de que te possa prejudicar; as ideias, preconceituosas ou não, não têm nada a ver com assunto. (KAFKA, 1984, p. 1250-1280, v. 1, tradução nossa)

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Um poder personalizado cujo exercício dessubjetiva inclusive o seu titular; uma forma de exercício do poder que despersonaliza o sujeito e o converte em mera engrenagem no funcionamento do “sistema” também: a isto conhecemos pelo nome de totalitarismo. Outro ponto que se de ve destacar em relação à obra é este: no conto, assim como na realidade histórica, a Muralha foi construída de forma descontínua, vale dizer, por partes, e tinha por função unicamente proteger aos chineses dos estrangeiros, desde logo assimilados a bárbaros. Sobre este primeiro tópico afirmou o narrador: A muralha da China foi concluída em sua extremidade setentrional. De sudoeste a sudeste a construção foi elevada aos poucos e unida aqui. Em escala menor, esse sistema de construção por partes foi seguido também dentro de dois grandes exércitos de trabalho, do leste e do oeste. Acontecia assim: grupos de cerca de vinte trabalhadores eram formados, um grupo tinha que executar uma parte do muro de cerca de quinhentos metros de comprimento, um grupo vizinho erguia um bloco de muro do mesmo tamanho em direção ao outro grupo. Mas, depois de realizada a junção, a construção não continuava a partir desses mil metros, os grupos de trabalhadores eram mandados para regiões completamente diferentes da construção da muralha. Naturalmente, dessa maneira foram deixadas grandes lacunas, que foram preenchidas pouco a pouco, algumas até depois da construção da muralha ter sido declarada completa. Sim, dizem que há lacunas que sequer foram fechadas, afirmação que possivelmente pertença apenas às muitas lendas a que a construção deu origem [...] e que não podem ser verificadas, pelo menos não por uma só pessoa com os próprios olhos e com a própria escala, por causa da dimensão da construção [...]. (KAFKA, 1984, p. 1259, v. 1, tradução nossa)

O que mais chama atenção nessa narrativa é que a grande muralha, tendo sido construída para impedir as invasões dos povos do norte, foi feita de forma descontínua, uma estrutura paradoxal de fechamento/ abertura, e nisso é possível inclusive imaginar a seguinte imagem: se a intensão era impedir a invasão “bárbara”, sempre que o imperador saísse de seu recolhimento e desse uma espiada na praça à frente de seu palácio, veria ali os bárbaros sentados num de seus bancos ou trocando conversas amigáveis com os seus súditos. Trata-se, a todo rigor, num empreendimento, fisicamente ineficaz, mas não culturalmente, isto é, um empreendimento de proteção cultural e de subjetivação do medo. 326

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O outro ponto diz respeito, como já dito, à intensão: manter afastado, ao longe, os outros. E para isso foi necessário muito mais do que uma determinação imperial de se fazer a muralha. Foi necessária a instituição de uma pedagogia do medo, do terror, em que o Outro é sempre o bárbaro, o medonho, o perigoso: Do que nos ia proteger a Grande Muralha? Dos povos do Norte. Eu venho do Sudoeste da China. Nenhum povo do Norte nos ameaça. Lemos as histórias antigas e as crueldades que esses povos cometem seguindo os seus instintos, [o que] nos fazem suspirar sob as nossas pacíficas árvores. Nos desenhos oficiais dos pintores vemos a esses rostos cruéis, essas faces abertas, essas mandíbulas cingidas de dentes pontiagudos, esses olhinhos entornados que parecem buscar uma carne fraca para o brilho de seus dentes [...] Mas isto é tudo o que sabemos desses homens do Norte. Nunca os vimos e se permanecermos em nossa aldeia não os veremos jamais, ainda que resolvessem se precipitar por sobre nós sob o largo galope de seus cavalos selvagens... a terra é demasiadamente vasta e não os deixaria aproximar-se... sua corrida se destroçaria no vazio (KAFKA, 1984, p. 1263, v. 1, tradução nossa)

Nenhuma política autoritária ou totalitária é eficaz sem uma pedagogia do medo. E não o medo de um fato concreto, real, atual ou iminente – isto diz respeito à imprevisibilidade da vida -, mas um medo incutido, curtido, promovido politicamente, em que se faz temer o Outro por sua exclusão do gênero humano. Sabemos que a palavra bárbaro provém do grego βάρβαρος (bárbaros), que em seu étimo se reporta a onomatopeia bar-bar, isto é, o som que os gregos ouviam, mas não entendiam, quando um xenos lhes falava em sua língua materna. Se o lugar originário da pessoa humana é a linguagem, negar que o Outro tenha uma linguagem é o mesmo que lançá-lo na categoria dos animais, que conforme Aristóteles, falam, mas não têm linguagem (rectius: razão) (ARISTÓTELES, 2004, p. 146). Mas não basta assimila-lo às bestas, é preciso representa-lo, imageticamente, enquanto tal. E somente uma vez operada não uma dessubjetivação, mas uma completa animalização do Outro, é que a pedagogia do medo logra operar eficácia e ganhar foros de verdade e de adesão dos “protegidos”.

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Coisas que passam, pessoas que ficam, salvo se coisificadas...

Chegados a esse ponto torna-se, pois, necessário, dar um fechamento ao tema e buscar, quem sabe, uma saída. Um ponto central que devemos insistir é isso: pessoas têm dignidade, e não preço. Isto quer significar, doutro passo, que nenhum atributo é apto a qualificar alguém acima dos outros, ou a sua falta em fazê-lo perder sua estatura de humano, pois dignidade humana significa isso: todas as pessoas, apesar de suas diferenças, são indivíduos a quem se deve assegurar o standard mínimo para uma vida digna: vida, liberdade, igualdade, honra etc. E é para assegurar este mínimo, que em nosso atual contexto é o máximo do máximo, que internacionalmente se proclamaram inúmeros tratados internacionais de direitos humanos, e em nível interno declarações de direitos fundamentais. Agora, assim como no entre guerras e no curso da segundo guerra mundial, nunca o mundo se deparou com tantas e tantas pessoas espoliadas de seus direitos mais básicos, e que aparecem em cena na forma daquilo que Hannah Arendt, apropriando-se de um conceito benjaminiano, identificava como vida nua, isto é, os imigrantes em massa, quando aparecem em cena, o fazem como pessoas em sua mais pura acepção, destituídas, portanto, de todos os demais atributos que o direito geralmente utiliza para qualificar a nossa espécie: nem nacionalidade, nem propriedade, salvo os bens que conseguem carregar em suas bagagens, nem direitos políticos, sociais, liberdades fundamentais... nonada: aparecem como pessoas em sua mais pura acepção: O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam acreditar nesse se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exceto que ainda eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser unicamente humano (ARENDT, 1989, p. 333).

E contra essas pessoas, pelos motivos os mais variados, se construíram e se constroem, literal ou figurativamente, muros, muralhas, cercas, barras de contensão etc. Isto é prova, doutro passo, que a pedagogia do medo tem funcionado de forma muito mais eficaz na era da globalização do que em tempos passados. E a grande calamidade não é somente humana, mas principalmente ética e moral, na medida em que produtos – coisas – têm livre trânsito nas fronteiras, coisas que, como dito, têm preço, mas jamais dignidade. 328

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Pessoas têm dignidade, mas se chocam contra os muros; coisas têm preço, mas circulam livremente por entre fronteiras. Entretanto, se a pessoa for reduzida à condição análoga à de escravo – portanto, coisificada -, não há fronteira que impeça a sua inserção no regime de exploração que a criminalidade transnacional executa. E é isso o que significa a construção de muros, a vida nua reduzida a uma coisa desmerecida e menos valiosa que um produto, ou reificada como um produto. Contra os muros devemos, portanto, construir pontes, e que no contexto da filosofia política deve ser identificado com a desconstrução de todas as políticas e pedagogias do medo, e no âmbito de proteção aos exilados com a execução de políticas humanitárias cooperativas de aceitação e concessão de abrigo por todos Estados com capacidade de fazê-lo, o que, per se, ilidiria a acusação, assaz conhecida, de que referidos excedentes – mais um vocábulo de coisificação da pessoa – criam défices econômico-financeiros. Numa síntese possível, termos aquela percepção que Arendt intuiu no problema dos exemplos que seguimos, pois Tentei mostrar que as nossas decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha da companhia, daqueles com quem desejamos passar a nossa vida. Uma vez mais, essa companhia é escolhida ao pensarmos em exemplos, em exemplos de pessoas mortas ou vivas, reais ou fictícias, e em exemplos de incidentes passados ou presentes. No caso improvável de que alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais chegasse perto de nós [...] [Pois] A partir da recusa ou da incapacidade de escolher os seus exemplos e a sua companhia, e a partir da recusa ou incapacidade de estabelecer uma relação com os outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo tempo, a banalidade do mal. (ARENDT, 2003, p. 212)

Mas isso, doutro passo, somente será possível se, em âmbito interno, isto é, em nossas ideias, concordarmos todos de que pessoas têm dignidade, e não as coisas.

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Referências

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Relação de Autores Adriana Vieira da Costa Professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia. Doutoranda em Direito Internacional pelo Centro Universitário de Brasília/UniCEUB. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Adriano Gonçalves Feitosa Mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Agemir Bavaresco Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutor em Filosofia na Université Paris I (PantheonSorbonne) (1997). Pós-Doutorado na Fordham University (2009). Visiting Scholar na University of Pittsburgh (2011 e 2012). Pesquisa pós-doutoral na University of Sydney (2013). Pesquisa e solidariedade na University of Guyana (2014). Pesquisa pós-doutoral na Columbia University (2015). Bruna Rabêlo Mestranda em Ciências Jurídicas pela UFPB. Dalliana Vilar-Lopes: Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça (DHJUS) pela UNIR. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Procuradora do Trabalho no Ministério Público do Trabalho (MPT/MPU). David Alves Moreira Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia. Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Deborah Christina Biet de Oliveira Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Rondônia. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Fernando Danner Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. Mestre e Doutor em Filosofia. Pós-Doutor em Filosofia pela Sorbonne.

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Org.)

Gills Vilar-Lopes Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Líder do Grupo de Estudos de Defesa e Análises Internacionais (GEDAI). Ítalo José Marinho de Oliveira Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade Associadas de Ariquemes. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em Direito Público pela Faculdade de São Vicente. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Layde Lana Borges da Silva Professora do Departamento de Ciências Jurídica da Universidade Federal de Rondônia. Doutora em Ciência Política pela UFRGS. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Leno Francisco Danner Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. Mestre e Doutor em Filosofia. Pós-Doutor em Filosofia pela PUC/RS. Leonam Liziero Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Magnus Dagios Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. Mestre e Doutor em Filosofia. Pós-Doutor em Relações Internacionais pela UFSC. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Marcus Vinícius Xavier de Oliveira Professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Rondônia. Mestre e Doutor em Direito. Líder do Jus Gentium: Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional (UNIR/CNPq). Paulo E. V. Borges de Macedo Professor de Direito Internacional na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Graduação e Mestrado/Doutorado). Mestre e Doutor em Direito Internacional. Pós-Doutor pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Paulo Roberto Konzen Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. Mestre e Doutor em Filosofia. Pós-Doutor em Filosofia pela PUC/RS e UFSC.

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Direito Internacional e (sua) Filosofia

Thais Bernardes Maganhini Professora do Departamento de Ciências Jurídica da Universidade Federal de Rondônia. Doutora em Direito pela PUC/SP. Vinicius Valentin Raduan Miguel Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia. Doutor em Ciência Política pela UFRGS. Membro do Jus Gentium – Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional. Wilson Simões de Lima Júnior Doutorando em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.

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