Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da sociedade moderna
 9788580062502, 9788515045341

Table of contents :
Capa
Sumário
Introdução
1- A estrutura da sociedade inglesa
2- Transformações socioeconômicas
3- O Estado na alvorada da modernidade
4- As rebeliões populares
5- O esforço colonial inglês
Conclusão
Bibliografia

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Pedro Rocha de OUvelra

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- ~

Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da sociedade moderna

PUC RIO

Reitor Pe. Josafá Carlos de Siqueira SJ

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Decanos Prof. Júlio Cesar Vali adão Diniz (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Luiz Alencar Reis da Silva Mello (CTC) Prof. Hilton Augusto Koch (CCBS)

Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da sociedade moderna Estudo sobre a acumulação primitiva de capital

Pedro Rocha de Oliveira

EDITORA

PUC RIO

Edições Loyola ,

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Preparação de originais: Ivone Teixeira Revisão tipográfica: Cristina da Costa Pereira Projeto gráfico de capa e miolo: Regina Ferraz Ilustração de capa: retirada da obra Monstrorum Historia, de Ulisse Aldrovandi, edição de 1642. Domínio público. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita das editoras. ISBN (PUC-Rio): 978-85-8006-250-2 ISBN (Loyola): 978-85-15-04534-1 © EDITORA PUC-RIO, Rio de Janeiro, Brasil, 2018. © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2018.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Oliveira, Pedro Rocha de Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da sociedade moderna : estudo sobre a acumulação primitiva de capital / Pedro Rocha de Oliveira. - Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Edições Loyola, 2018. 304 p.; 21 cm Inclui bibliografia 1. Consumo (Economia) -Aspectos sociais. 2. Inglaterra - Condições económicas. 3. Capitalismo. 4. Mercadorias. 1. Título. Elaborado por Marcelo Cristovão da Cunha - CRB-7/6080 Divisão de Bibliotecas e Documentação - PUC-Rio

Sumário

Introdução

7

A Inglaterra no final do século XV

15

1 A estrutura da sociedade inglesa

21

Os camponeses

21

A aristocracia

37

A Coroa

47

A Igreja

53

As cidades

61

A estrutura da sociedade inglesa e as origens do capitalismo

70

2 Transformações socioeconômicas

73

A ascensão da manufatura rural

73

A concentração e a mercadorização da terra

77

A Reforma Anglicana

91

A pobreza moderna

103

A concentração de riqueza

107

A ascensão das elites econômicas

114

3 O Estado na alvorada da modernidade

119

Estruturas de governo no final do século XV

120

A monetarização da Coroa e as novas elites econômicas

130 ,

A reforma militar e a concentração de poder pela Coroa

136

A Coroa e o Parlamento na política de terras

145

A dimensão judicial da concentração de poder pela Coroa

151

O controle estatal da pobreza

161

Reforma religiosa e consolidação estatal

167

4 As rebeliões populares

175

Revolta e relações de classe no final da Idade Média

176

Transformações socioeconômicas, rebelião popular e repressão estatal

187

O processo concreto da rebelião popular na alvorada da modernidade

191

5 O esforço colonial inglês

213

Expansão e intensificação do domínio sobre a Irlanda

213

Comércio ultramarino e pirataria

247

Os assentamentos nas Américas

251

Conclusão

275

Poder estatal e oligarquia econômica

275

A forma de vida capitalista como fonte e finalidade do governo moderno

279

Modernização e colonização

287

Os inimigos da sociedade moderna

291

Bibliografia

301

Introdução Neste livro procuramos contar a história da origem da determinação da vida social pela produção de mercadorias. É verdade que o consumo e a produção de mercadorias são práticas humanas muito antigas; porém, em períodos históricos recentes, elas se tornaram as formas principais e inescapáveis de satisfação de necessidades, condicionando todas as nossas experiências sociais e construindo todo um mundo de instituições e relações políticas. Este trabalho se debruça sobre o lugar e o momento em que essa centralidade socioeconômico-política da produção de mercadorias começa a se verificar: a Inglaterra do século XVI. Nesse período, delineia-se um processo violento e definitivo de inviabilização da agricultura de subsistência; intensifica-se a mercadorização da terra e, com isso, entre o trabalho no campo e a satisfação das necessidades materiais humanas surge a mediação do dinheiro e do mercado. A colaboração comunal para a produção de alimentos - que, ao que tudo indica, foi o ponto de partida para a socialização humana desde que a espécie apareceu sobre a Terra - desintegra-se paulatinamente. Aldeias, e depois regiões inteiras, têm seu padrão de ocupação violentamente alterado: os camponeses que, por gerações incontáveis, apropriavam-se diretamente das coisas de que precisavam para viver, dão lugar aos pastos para os rebanhos privados ou às comunidades de fiadores em perpétua dívida com os proprietários de seus casebres. Os espaços tradicionais de plantio, de criação de animais, de habitação, de celebrações coletivas e de organização política vão sendo transformados e destruídos. A lã, a carne, os grãos tornam-se acessíveis apenas a quem o mercado atribui utilidade econômica por meio do assalariamento. A miséria - anteriormente, o produto de catástrofes naturais, como secas ou epidemias - aparece como produto [7]

ordinário do funcionamento econômico, e multidões de sem-terra amontoam-se nas novas periferias urbanas ou vagueiam pelas estradas. A rebelião social explode, protagonizada tanto por essas populações expropriadas, que lutam por manter ou reaver os meios de subsistência, quanto pelas classes médias interessadas nos frutos da expropriação. Promovendo a conversão da terra e de seus produtos em mercadorias, crescem e enriquecem novas elites cujo poder estará ligado não mais à antiguidade do sangue, mas ao dinheiro - não mais à posse da terra, mas ao uso comercial dela. Respondendo aos anseios dessas elites, beneficiando-se de seu enriquecimento, coordenando seus esforços pela intimidação legislativo-judicial e pelo favorecimento burocrático, a monarquia também se transforma. Monetarizando-se, cria um mecanismo de administração social baseado em pagamentos e privilégios econômicos, cada vez mais independentes dos laços de lealdade dinástica. Enquanto a elite vai perdendo sua importância militar, e assim seu poder de coagir a Coroa, desenvolve suas vocações manufatureiras e comerciais e, com bênçãos monárquicas, se lança nas empreitadas coloniais. [Acumulação primitiva]

A inspiração fundamental deste trabalho é o conceito de "acumulação primitiva de capital", exposto por Karl Marx no famoso capítulo 24 do Livro 1 de O capital. Fundamentalmente, esse conceito refere-se aos processos que precisam ter lugar antes que o capitalismo exista como sistema social. Mas, porquanto tenha uma dívida para com a extensa literatura que discutiu e restabeleceu o conceito de acumulação primitiva desde sua formulação original, este livro não se dedica a questões técnicas do marxismo. Pouco afeitos a discussões metodológicas, acreditamos que a relevância das categorias fundamentais do pensamento crítico só [8]

pode ser estabelecida pela sua aplicação na interpretação da realidade. Assim, as análises e evidências documentais da bibliografia marxista e marxiana foram constantemente cotejadas com fontes e abordagens empregadas por não marxistas - não para testar sua validade, mas para fazer aparecer seu potencial cognitivo por contraste e pela lida direta com a história. [História do capitalismo)

Também é importante deixar claro que, antes de ser um trabalho sobre a história da Inglaterra, este livro é um estudo sobre a história do capitalismo. Enquanto analisamos processos que tiveram lugar na sociedade inglesa do século XVI, estamos preocupados em extrair daí lições a respeito da natureza e da origem do sistema sob cuja influência direta ou indireta vive, hoje, a totalidade da espécie humana. Apostamos na ideia de que esse sistema teve sua origem num momento determinado e num lugar determinado, e nos esforçamos por apresentar ao leitor uma imagem desse momento e desse lugar. Ao mesmo tempo, trata-se de entender os fatores que se somaram para tornar a sociedade inglesa pioneira na forma social que veio a difundir-se por todo o planeta. Assim, dedicando-nos à Inglaterra de séculos atrás, estamos falando de algo que nos diz respeito diretamente hoje: a mediação da vida humana pela produção de mercadorias. Já no final do século XVII, 40% dos ingleses viviam de ocupações não agrícolas, 1 de modo que, diferentemente da maior parte da humanidade desde suas origens, já tinham em comum conosco, habitantes do capitalismo tardio, o fato de existirem num tempo e num lugar onde a comida era produzida para ser vendida, e só podia ser 1

Dimmock, Spencer. The origins of capitalism in England, 1400-1600. Leiden: Brill, 2014, p. 150.

[9]

adquirida por quem encontrasse oportunidade de vender sua força de trabalho em troca de dinheiro. [Periodização]

O período em que nos concentramos abrange desde o final do século XV até o início do século XVII - o longo século XVI, a alvorada da modernidade. As balizas que delimitam o período são 1485- a ascensão da dinastia Tudor, sob Henrique VII, reconhecido reformador do aparato monárquico - e 1625, quando termina o reinado de James I, da dinastia Stuart. O período seguinte, particularmente complexo, marcado pela guerra civil inglesa, pela experiência republicana e pelo protetorado, será assunto de um estudo futuro. Evidentemente, não é possível colocar uma data precisa na origem de formas sociais tão complexas quanto o capitalismo e o Estado moderno, mas o período que escolhemos oferece algumas vantagens do ponto de vista da tentativa de focar a atenção sobre sua ascensão. Por um lado, encontramos nesse período uma relativa homogeneidade política - a despeito dos problemas sucessórios, em meados do século XVI, e da mudança dinástica no início do século XVII-, ao mesmo tempo marcada por interessantes transformações institucionais - ou seja, transformações na maneira como o poder político é exercido. No plano econômico, os processos de concentração de riqueza e de transformação da forma de lida com a terra, embora perceptíveis em séculos anteriores, intensificaram-se consideravelmente, de modo a facilitar sua visibilidade teórica. [Definições preliminares]

Não podemos, na Introdução deste trabalho, estabelecer rigorosamente os conceitos de capitalismo e de Estado com que trabalharemos: tal estabelecimento é o objetivo do livro, atingido apenas no decorrer do estudo. Contudo, parece[ 1 O]

-nos útil compartilhar com o leitor as inspirações teóricas que perseguimos nos capítulos que se seguem. Como já sugerimos, consideramos que compreender a gênese do capitalismo equivale a compreender a origem da sociedade produtora de mercadorias. Chamamos assim à sociedade na qual, tendencialmente, os produtos do trabalho humano existem primeiramente para serem vendidos, e apenas secundariamente para satisfazer necessidades. E entendemos que a sociedade onde esse estado de coisas se generalizou - onde o arroz e o feijão não existem porque saciam a fome, mas porque (às vezes) podem ser trocados por dinheiro, e algo análogo pode ser dito dos livros, casas, sapatos, casacos etc. - só é possível quando as pessoas comuns são impedidas - por meio da força - de produzir autonôma e coletivamente as coisas de que necessitam para satisfazer suas necessidades. Trocando em miúdos, partimos da ideia de que a sociedade produtora de mercadorias é, sobretudo, a sociedade em que a agricultura de subsistência foi inviabilizada e, com ela, tendencialmente, a totalidade da autonomia produtiva das pessoas comuns. Atentando para o processo daquela inviabilização - o qual, aliás, é um processo contínuo deparamos com a expropriação da terra - do espaço e dos recursos naturais - pela constituição de uma série de instituições jurídicas, políticas e militares funcionando no horizonte da propriedade privada, e antepondo-se à posse comunal primitiva ou a esquemas antigos e medievais de lida com a terra, nos quais a atividade humana estava centrada na satisfação coletiva de necessidades. O surgimento dessas novas instituições jurídicas, políticas e militares, oriundas do esforço de expropriação e privatização da terra, e daí desenvolvidas para abarcar potencialmente todas as relações sociais, é o que, de início, entendemos pela ascensão do Estado moderno.

[Organização do livro]

Nossa apresentação da gênese do capitalismo e do Estado moderno está organizada em cinco capítulos, que se seguem a um panorama geral da Inglaterra do período. No Capítulo 1, traçamos um mapa da estrutura da sociedade inglesa pelo exame das capacidades políticas e funções econômicas do campesinato, da aristocracia, da Coroa, da Igreja e das cidades. No Capítulo 2, partindo dessa estrutura de distribuição de poder, analisamos os impactos econômicos e sociais do processo de mercadorização da terra. No Capítulo 3, focando as consequências dessas transformações econômicas para a administração social, analisamos reconfigurações das instituições de governo e das relações de força e de interesse entre a monarquia e as elites novas e tradicionais. No Capítulo 4, debruçamo-nos sobre as rebeliões sociais do período, que entendemos como reação popular à violência econômica e extraeconômica envolvida nas transformações descritas nos Capítulos 2 e 3. No Capítulo 5, sobre o esforço colonial inglês, damos conta da maneira como tais transformações impulsionam a elite inglesa a estender suas práticas econômicas sobre territórios e populações na Irlanda e no continente americano. [O procedimento de exposição]

Na medida em que nosso trabalho está preocupado com a ascensão de formas sociais - ou a construção histórica de um complexo conjunto de práticas sociais, econômicas e políticas, e o estabelecimento de um modo de vida catastroficamente novo na história da humanidade -, nossa preocupação foi sobretudo a de delinear processos históricos: acontecimentos ou fenômenos complexos que tiveram lugar ao longo de amplitudes variadas de tempo. Ainda que recheada de comparações numéricas e exemplos documen[ 12]

tais, essa ênfase nos processos intencionalmente distancia o nosso texto das histórias gerais e das narrativas episódicas. Aqui, dar conta de alguma batalha nos interessa menos do que a discussão das instituições e arranjos de força que tornavam as batalhas possíveis e necessárias, e a promulgação de uma legislação importa menos que a explicitação das razões pelas quais certos acordos políticos são celebrados sob a forma de lei. De igual maneira, as sucessões dinásticas, os conselhos de governo, as lideranças políticas não nos interessam aqui enquanto coleções de indivíduos chamados X e Y, que em tal e tal dia tomaram tal decisão etc., mas enquanto instituições com determinadas capacidades e limites, a serem explicitados tão minuciosamente quanto possível. Conscientemente procuramos evitar a construção de uma narrativa articulada em termos de "gran des nomes "e"gran des momentos "E . m narrativas desse tipo, a história assume o aspecto de um relato sobre decisões portentosas de indivíduos especiais particularmente poderosos, de caráter brilhante, dotados de extenso séquito, de convicções inquebrantáveis, muito ricos, coerentes ou incoerentes etc. -, e parte da experiência intelectual do leitor torna-se um esforço por formar as imagens pontuais que sobressaem de um pano de fundo mais ou menos desprezável. A historiografia - especialmente sobre a Inglaterra, com sua antiga tradição aristocrática - está cheia de trabalhos assim, e a sua leitura pode até ser muito proveitosa. Contudo, o seu pressuposto - a similitude entre a história e a novela - não é compartilhado por nós. O que nos preocupa e fascina é que tanto a fonte das ações individuais dos "grandes nomes" quanto o destino dessas ações são o colossal e sempre urgentemente complexo emaranhado da realidade social, e que é possível desenvolver uma narrativa que verse diretamente sobre esse emaranhado, sem necessariamente filtrá-lo em termos dos caprichos e inclinações das [ 13]

pessoas incomuns. Afinal, quando tal filtragem é feita, a rainha fulana ou o seu sicrano adquirem valor cognitivo, enquanto os infelizes que morreram seguindo suas ordens ou a inspiração de suas palavras desaparecem à sua sombra: ou seja, na história novelizada, as hierarquias morais, políticas, estéticas, sob as quais padece a maior parte da humanidade, acabam reproduzidas diretamente pela forma narrativa. Não acreditamos, por outro lado, que seja desejável tentar dissolver tais hierarquias por meio de uma visada propícia ou de uma maneira de escrever. Para começar, as narrativas históricas que, em vez de falar dos grandes nomes, resolvem falar do sujeito comum da esquina, tendem a fazê-lo nos mesmos termos novelescos tradicionalmente reservados aos príncipes e princesas, os quais rejeitamos. Mais importante do que isso, contudo, é o fato de que o poder e a violência são parte da realidade sobre a qual a nossa narrativa histórica quer falar - e são a fonte de horrores passados e presentes. Como são os horrores presentes que nos fazem querer iluminar a história, os horrores passados nos importam mais do que as micronarrativas particulares de sucesso. Ao mesmo tempo, não se trata apenas de atentar para um conjunto determinado de fatos repulsivos, de vidas determinadas destruídas. Tal esforço, embora legítimo, não é o nosso. O que tentamos fazer é expressar o próprio processo histórico na medida em que é intrinsecamente violento e destrutivo. Por isso, a nossa narrativa é montada em termos mais ou menos anônimos: é, principalmente, uma história das coisas - a terra, a lei, o dinheiro, o governo - que, com a modernização da sociedade, tornam-se a fonte do padecimento humano. Estamos cientes de que essa escolha pode ser percebida como metodologicamente problemática: algum bem-intencionado poderia objetar que colocamos as coisas acima das pessoas. Tal objeção seria absolutamente [ 14]

acurada; contudo, não acreditamos que seja metodologicamente resolvível. Estamos convencidos de que o poder das coisas sobre as pessoas é constitutivo do problema real que precisamos entender e, por isso, sua dissolução por meio de alguma receita para falar corretamente nos tornaria cegos para a sua horrenda extensão e implicações. Vejamos se, à altura da nossa Conclusão, tal convicção será partilhada pelo leitor.

A Inglaterra no final do século XV No início do período que nos interessa analisar, a Inglaterra era um reino com limites geográficos externos semelhantes aos de hoje. Como resultado de conquistas militares e alianças políticas que remontavam ao século XI, a Coroa inglesa reivindicava poder sobre a Irlanda e sobre o País de Gales, mas, concretamente, sua autoridade jurídica, administrativa e fiscal nessas regiões era muito tênue. Já a Escócia era um reino independente e separado, politicamente próximo da França, então o grande inimigo inglês. Assim, não havia nenhuma unidade política equivalente ao que hoje se chama Reino Unido - mas, no final do período que estudaremos, essa situação se alteraria ligeiramente. Internamente, a divisão da Inglaterra em condados ( counties ou shires) sofreu pouca alteração desde o período que estudaremos até hoje. Os condados eram regiões político-administrativas controladas sobretudo pela aristocracia os condes, ou earls- e subdivididas internamente, conforme teremos ocasião de discutir. Regionalmente, os condados eram - como ainda são - usualmente agrupados em quatro ou cinco regiões: o Norte, cuja principal província é York; as Midlands, às vezes separadas em Midlands Orientais e Ocidentais, que vão desde os condados fronteiriços ao País de Gales no oeste, até a costa leste; o Sudoeste; e os Home [ 15]

Counties, os condados do sudeste vizinhos a Londres. O Sudoeste e os Home Counties são, às vezes, tratados como região única, o Sul. Ademais, persistem algumas subdivisões que remontam a períodos bastante antigos, tais como a designação de East Anglia para os condados orientais de Norfolk e Suffolk. Havia grande diversidade econômica e cultural no interior da Inglaterra. Em Londres, a existência de dezenas de milhares de pessoas girava em torno das corporações comerciais, enquanto no condado episcopal de Durham, no norte, os camponeses viviam sob esquemas muito próximos aos do feudalismo continental. De fato, era apenas aí e em outras regiões isoladas que aquilo que usualmente chamamos de feudalismo persistia na Inglaterra: na maior parte de seu território, relações propriamente feudais não sobreviveram ao final do século XIV. Na fronteira com a Escócia e no País de Gales, práticas de pilhagem regiam as relações entre os senhores de terras, em prontidão militar permanente. No sudoeste, a maior parte da população tinha como primeira língua não o inglês, mas o cómico, um idioma céltico. Tal diversidade tinha certa expressão política. Afinal, boa parte dos aristocratas ingleses - especialmente no norte -, embora não questionasse abertamente a autoridade monárquica, tampouco a obedecia incondicionalmente: antes, governavam seus condados, ou as subdivisões destes, numa espécie de parceria com o governo central. Certo número de cidades era governado por oligarquias que, em suas operações quotidianas, deviam pouca satisfação à Coroa. E a Igreja católica, da mesma forma que no continente europeu, formava uma estrutura de poder paralelo ao monárquico. Em 1485, a população inglesa era de cerca de 2,5 milhões; nas primeiras décadas do século XIV, contudo, havia sido de cinco milhões. A epidemia de peste negra, que chegou à Inglaterra por volta de 1350, é responsável pelo declí[ 16]

nio populacional, e a lentidão da subsequente retomada demográfica deve-se, pelo menos parcialmente, a alterações no padrão de ocupação da terra relacionadas com a mercadorização da sociedade. Enquanto, no total, as famílias aristocráticas reuniam alguns milhares de indivíduos, e a população urbana era de cerca de 200 mil pessoas, a maioria esmagadora dos ingleses era de camponeses. Havia poucas grandes cidades, mas Londres era uma das maiores metrópoles europeias: sua população havia dobrado ao longo do século XV, chegando a cerca de 80 mil pessoas no início do século XVI - e cresceria enormemente até o final de nosso período, chegando a 200 mil habitantes no início do século XVII e a 350 mil por volta de 1650. 2 Das demais cidades, a maior era Norwich, em East Anglia - uma área de mercadorização precoce-, com cerca de 16 milhabitantes; Conventry (nas Midlands), York (no Norte) e Exeter (no Extremo Oeste) tinham entre 6-8 mil. 3 Como afirmamos na Introdução, este trabalho se ocupa pouco da história dos grandes nomes: estudaremos a instituição monárquica, mas apenas raramente nos reportaremos a características específicas ou momentos particulares Para efeitos de comparação, Paris tinha 200 mil habitantes, no início do século XVI, e chegaria ao final do século XVII com 450 mil habitantes. 3 As estimativas populacionais para o nosso período e períodos anteriores são baseadas sobretudo em documentos produzidos pela coleta de impostos. Dado que os métodos de tal coleta variavam regionalmente em eficiência, e uma parcela da população não pagava impostos, tais estimativas envolvem o emprego de complexos modelos matemáticos, combinados a palpites fundamentados em escolhas teóricas e interpretativas. Também é importante manter em mente que os insalubres subúrbios londrinos, onde os despossuídos oriundos de todos os cantos da Inglaterra amontoavam-se, constituem um território largamente indocumentado em nosso período e, portanto, desconhecido (cf. Clay, C.G.A. Economic expansion and social change: England 1500-1700. Vol. II: Industry, trade, government. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 97). 2

[ 17]

dos governos por que passou a Inglaterra entre 1485 e 1625. Como, contudo, a maior parte da literatura a respeito de nosso período está organizada em termos de reis, rainhas e regentes, é útil sumarizar para o leitor a ordem sucessória pela qual passou, então, o trono da Inglaterra. Nosso período começa com o reinado de Henrique VII, inaugurador da dinastia Tudor, que subiu ao trono da Inglaterra em 1485 por meio de uma guerra civil. Em 1509, sucedeu-o seu filho, Henrique VIII, famoso pelos seis casamentos que perpetrou e por ter dado início ao processo de separação entre a Igreja católica romana e a Igreja anglicana - processo esse que exigirá a nossa atenção nos capítulos subsequentes. Quando da morte de Henrique VIII, em 1547, subiu ao trono seu único filho homem, Eduardo VI, uma criança de nove anos de idade e saúde frágil. Durante os seis anos de seu reinado, foram estabelecidas duas regências: a do populista duque de Somerset, até 1550, e a do conde de Warwick, feito duque de Northumberland, entre 1550 e 1553. Como Eduardo VI morreu jovem demais para deixar sucessores naturais à Coroa, sua morte foi ocasião para conspirações sucessórias - nas quais, aliás, o duque de Northumberland se envolveu, o que lhe custou a cabeça. Fracassadas essas conspirações, subiu ao trono Maria I, a filha mais velha de Henrique VIII. O reinado de Eduardo VI fora marcado pela aproximação com o protestantismo, mas Maria I era católica, e, enquanto ocupou o trono, empreendeu esforços contrarreformadores buscando uma reaproximação com a Igreja romana, com o papa e com a Espanha - a potência católica de então, e terra de sua mãe, Catarina de Aragão. De fato, Maria I casou-se com o príncipe Felipe, herdeiro do trono espanhol, mas - depois de uma gravidez psicológica que agitou a corte com a perspectiva de uma criança que fosse simultaneamente herdeira da Inglaterra e da Espanha - morreu sem [ 18]

deixar filhos em 1558, tendo reconhecido como herdeira a protestante Elisabete, sua meia-irmã, filha de Henrique VIII com sua segunda esposa. Elisabeth I subiu ao trono em 1559 e reinou até 1603. Investindo no culto à sua própria personalidade altiva e virginal, morreu sem herdeiros, o que deu um fim à dinastia Tudor. Foi sucedida por James, da dinastia Stuart, um primo distante, fruto do casamento de Margareth, irmã de Henrique VIII, e Jaime IV, rei da Escócia. De fato, James I da Inglaterra foi, também, James VI da Escócia, e seu reinado unificou as duas Coroas. Herdando e expandindo os esforços colonizadores de sua antecessora sobre a Irlanda, James I foi o primeiro a intitular-se rei da Grã-Bretanha. Quando morreu em 1625, deixou o trono para seu filho Charles I, cujo reinado sai do alcance deste trabalho. Também é importante situar o leitor na política internacional do período. A Inglaterra, em 1485, era uma potência militar medíocre cujas terras eram disputadas pela aristocracia francesa. A razão de tal disputa remontava à conquista normanda do século XI, quando a aristocracia francesa substituiu a saxã no controle da Inglaterra. Disso resultava que, em nosso período, olhando para trás, era possível afirmar que os reis da França e da Inglaterra possuíam antepassados comuns, com base no que cada um deles podia afirmar direitos sobre parte das terras do outro. Assim, no início de nosso período, houve épocas de hostilidade entre os dois reinos devido à afirmação desses direitos, e Henrique VIII gastou rios de dinheiro em campanhas pueris e infrutíferas contra seu inimigo continental. A preocupação inglesa com a ameaça militar francesa também foi recorrente em nosso período, especialmente na primeira metade dele e nos momentos de regência e sucessão monárquica problemática. O recalcitrante, porém internacionalmente reconhecido alinhamento com Estados [ 19]

protestantes, posicionava a Inglaterra contra uma possível aliança das grandes potências católicas: a França, o Sacro Império e a Espanha. Contudo, os problemas da política continental acabaram desviando a atenção das potências europeias da Inglaterra. A ameaça otomana foi uma constante no período. Ademais, o imperador Carlos V tinha pretensões sobre a França, e também sobre a Itália, e passou boa parte da primeira metade do século XVI envolvido em conflitos militares aí. Entre 1568 e 1648, a Holanda lutou uma guerra de independência particularmente destrutiva contra a Espanha - a chamada Guerra dos Oitenta Anos -, a qual, aliás, contou com a participação da Inglaterra de Elisabeth I no lado holandês. Assim, por mais que as cidades costeiras do sul da Inglaterra tenham vivido momentos de paranoia militar, e até sofrido alguns ataques marítimos esporádicos, as complicações europeias e a condição insular da Inglaterra serviram para protegê-la de invasões durante a maior parte de nosso período. A exceção foi a ameaça da chamada Invencível Armada, organizada pela Coroa Espanhola em resposta à participação inglesa na defesa da Holanda. O ataque, lançado em 1588, foi, contudo, destruído em alto-mar, antes que as tropas espanholas pudessem desembarcar em solo inglês. Embora uma tempestade inclemente tenha desempenhado certo papel na derrota marítima da Espanha, outro fator crucial foi uma marinha inglesa experiente e muito mais bem aparelhada que a do início do período. Esse desenvolvimento militar foi, de fato, uma importante dimensão das transformações sociais de que daremos notícia no que se segue.

(20]

1

A estrutura da sociedade inglesa

Os camponeses [A agricultura mista]

No final do século XV - para nós, a alvorada da modernidade -, a Inglaterra era uma sociedade majoritariamente rural. Camponeses viviam numa economia de subsistência, dividindo o trabalho em família e comunalmente. Suas unidades domésticas eram compostas, geralmente, por duas gerações (pais e filhos) 4 e aglutinavam-se em aldeias que tinham território mais ou menos fixo, definido pela tradição e que, em sua maioria, contava entre algumas dezenas e umas poucas centenas de habitantes. Tipicamente (mas nem sempre), em qualquer momento do ano, o território rural dessas aldeias estava dividido em quatro partes: 1. A terra arável propriamente dita era destinada à produção de grãos (principalmente aveia, centeio e trigo) e dividida em faixas estreitas de terra (strips), dispostas de maneira aparentemente aleatória. 2. Uma parte da terra - o pasto (grassou meadow) - era destinada à pastagem de rebanhos e/ou à plantação de feno para os meses de inverno. 4

A presença de apenas duas gerações sob o mesmo teto era uma peculiaridade da sociedade inglesa do século XV. Em regiões como a Europa Central, não era incomum que uma família fosse composta por três gerações em coabitação. Cf. Clay, C.G.A. Economic expansion and social change: England 1500-1700. Vol. I: People, land and towns. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 60

3. Uma proporção variável da terra cultivável ficava em repouso - o alqueive, ou fallow. 4. Finalmente, uma parte do terreno pertencente à aldeia era deixada com sua cobertura vegetal natural: era o waste, ou forest, que, seguindo a designação feudal portuguesa, chamaremos de "bosque", embora seja necessário manter em mente que nem sempre se tratava literalmente de área arborizada: podia ser um charco, uma região de urze etc. Por meio de tradições que variavam regionalmente, estabelecidas pela experimentação acumulada ao longo dos séculos, era mantido um regime de rotação, a cada poucos anos, entre a terra arável, o pasto e o alqueive, de tal modo que o solo sobre o qual os animais pastavam era adubado pelas suas fezes, depois permanecia "descansando" para possibilitar a reprodução das bactérias e nitrificação, e só então era semeado. Esse quádruplo esquema, que é usualmente denominado "agricultura mista" ( mixed farming), satisfatório do ponto de vista didático, tinha, entretanto, inúmeras variações regionais, dependendo do clima, do tipo de vegetação e de solo, dos costumes locais etc. [Especialização agrícola]

Uma vez definida a agricultura mista, contudo, é necessário dizer que existe um amplo debate sobre a especialização agrícola regional na Inglaterra no nosso período. Como teremos oportunidade de discutir adiante, em determinadas regiões pouco propícias ao plantio de cereais a aldeia podia dedicar um território maior para o pasto e para o bosque, onde os camponeses complementariam a dieta com a coleta de frutos e a carne de pequenos animais, visto que os grandes, como os veados, costumavam ser reservados para a aristocracia caçadora. Os próprios contemporâneos definiam de forma mu(22]

tuamente excludente a atividade de suas aldeias em termos de duas variedades amplas de atividade agrária, de modo a falar de regiões de lavoura ( arable farming) e regiões de pecuária (pastoral farming), sendo que as primeiras eram, no início de nosso período, mais comuns que as segundas. [Uso da terra e posse da terra]

Nessa sociedade majoritariamente agrária, a relação com a terra não era de propriedade, mas de usufruto. Isso significa que o que o camponês podia fazer com a "sua" terra era trabalhá-la e dispor ou usufruir dos frutos desse trabalho. A prerrogativa de fazer uso da terra era obtida pelo contrato de posse ( tenure) com o detentor da terra (landholder), o qual, aliás, geralmente também não era proprietário e podia ser um outro camponês, um membro da aristocracia ou do clero. De forma simplificada, podemos dizer que os contratos de posse eram contratos de aluguel ou arrendamento. Contudo, os esquemas de posse existentes no início de nosso período envolviam complexas combinações entre formas de estipular a duração e o tipo de usufruto, as quais variavam regionalmente. Na maioria desses esquemas, a prerrogativa do uso da terra envolvia o pagamento de obrigações - o qual, desde o século XIII, geralmente não era mais feito em parte da produção ou em trabalho, mas em dinheiro,5 ao contrário do que ocorria em grande parte da sociedade agrária europeia, ainda funcionando em esquemas feudais. Assim, além de obter da terra o necessário à subsistência, as famílias eram obrigadas a produzir um pequeno excedente comercializável, de modo a pagar as obrigações relacionadas à sua posse. Essas obrigações dependiam do tipo de posse de 5

Hoyle, R.W. Rural economy and Society. ln: Tittler; R. Norman,

A companion to Tudor Britain. Oxford: Blackwell, 2004, p. 312.

J. (Orgs.).

terra, mas geralmente tinham a forma de um valor fixo a taxa de acesso, ou entry fine - pago ao detentor da terra no momento em que assumia a posse por determinado número de anos (ou de "vidas", em caso de posses hereditárias) e de um aluguel anual prefixado. [Terras comuns: pastos, bosques]

Na maior parte da Inglaterra, os contratos de posse incluíam, além da prerrogativa de lavrar uma faixa de terra que ficava sob a responsabilidade da família contratante, o direito de fazer uso das terras comuns da aldeia. A extensão dessas terras comuns é desconhecida pelos historiadores de hoje,6 mas há evidências de que eram abundantes o suficiente para serem determinantes na subsistência dos camponeses. O pasto era, usualmente, uma dessas terras comuns: nele, pastavam os rebanhos de todos os habitantes da aldeia, embora, aqui e ali, houvesse regulamentos estabelecendo o limite do tamanho desses rebanhos, e qualquer aldeão que quisesse ultrapassar esse limite teria que obter pasto por outros meios. O bosque também era de uso comum: ele servia de fonte de material para construção, confecção de ferramentas, combustível, além de fornecer recursos cuja diversidade e utilidade se perderam com as tradições orais dizimadas. [Campos comuns]

Talvez a tradição de terra comum mais importante, entretanto, fosse a do campo de cultivo comum (commonfield), que existia, em geral, nas regiões onde se praticava a agricultura mista. No sistema do campo comum, os habitantes da 6

Overton, Mark. Agricultura[ revolution in England. The transformation of the agrarian economy, 1500-1850. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 192.

[24]

aldeia não tinham posse sobre parcelas de terra específicas, mas sobre um número de faixas de terra (strips). As faixas de terra envolviam um processo ancestral de divisão do trabalho na terra baseado em terrenos de cultivo familiar que, comparados com os praticados na maior parte da Europa, eram longos e estreitos. A função dessa divisão espacial peculiar era a melhor distribuição dos diferentes graus de fertilidade e produtividade da terra. Ademais, na medida em que as faixas eram sorteadas entre os habitantes da aldeia detentores da prerrogativa de cultivo, o sistema de faixas impedia a acumulação de terras: ainda que uma família específica transferisse para outra seu direito de cultivo, o eventual beneficiário teria direito apenas a uma parcela aleatória de terra, inutilizável fora do contexto do trabalho aldeão comunal. Isso porque o formato estreito das faixas tornava sua preparação com o arado pouco prática individualmente. Desse modo, o trabalho de preparar a terra, bem como a colheita, era realizado em comum: as famílias só cuidavam separadamente das faixas na época da semeadura e durante o período do crescimento dos grãos. [Costume, liberdades e necessidades materiais específicas]

O uso das terras comuns estava regulado pela tradição jurídica conhecida como "costume". Em termos concisos, o costume era simplesmente a maneira como as coisas eram feitas em determinada aldeia tradicionalmente, na formulação usual "por tanto tempo quanto é possível lembrar". Eventualmente, essa tradição era registrada e formalizada sob a forma de prerrogativas específicas relacionadas a características singulares do espaço aldeão. Essas prerrogativas eram conhecidas como "liberdades" (liberties) e diziam respeito à satisfação de necessidades materiais pelo uso dos recursos naturais disponíveis no espaço da aldeia. (25]

Nesse esquema, os habitantes de determinada aldeia podiam ter, por exemplo, a "liberdade" de entrar no bosque em determinada época do ano para pegar galhos caídos ou caçar determinado animal, ou levar seus porcos para comer as bolotas de carvalho etc. Se a área de bosque incluísse água doce, provavelmente haveria liberdade específica relacionada à pesca naquele rio ou lago específico, em determinada época do ano e em determinada altura da corredeira etc. Nas áreas de agricultura mista e campos de cultivo comuns, a prerrogativa de catar (manualmente!) os grãos deixados nos campos depois da colheita (gleaning) proporcionava, para muitas famílias, alimentos suficientes para meses.7 Para designar os recursos e espaços regidos por liberdades desse tipo, os contemporâneos usualmente empregavam a expres- " commons,,, c01sas . comuns. sao [Trabalho comum]

Onde os recursos e as terras eram empregados em comum, cada família era individualmente responsável por sua própria manutenção e pelo cultivo de suas faixas de terra apenas até certo ponto. Tarefas fundamentais do ciclo de produção agrário eram realizadas coletivamente. Visto que os rebanhos da aldeia pastavam juntos, as tarefas ligadas a essa atividade eram usualmente desempenhadas coletivamente. Da mesma forma, todos os aldeões participavam coletivamente do preparo da terra e da colheita na totalidade dos campos da aldeia, ignorando as divisões familiares das faixas de terra. No final da colheita, os animais de toda a aldeia também eram conduzidos coletivamente às terras cultiváveis para alimentarem-se do restolho - a parte do caule dos cereais ceifados que fica na terra. 7

Overton, p. 177.

[26]

[Vida comunal]

O compartilhamento de recursos e de trabalho tornava as aldeias um espaço de experiência comunal. Ainda que as unidades habitacionais e os contratos de posse de terra estivessem atrelados à família nuclear, a manutenção da vida nas aldeias era de responsabilidade comum, e toda uma cultura de cooperação e convivência desenvolveu-se em torno disso. A aldeia dispunha de mecanismos políticos - desconhecidos em detalhe, porque antiquíssimos e não documentados - por meio dos quais os próprios aldeões regulavam o quando e o onde das tarefas comuns. Esses regulamentos versavam sobre o pastoreio e a colheita, e também sobre atividades de manutenção, como a limpeza das valas de escoamento que impediam o encharcamento dos solos nas estações chuvosas. Havia, inclusive, penalidades para aqueles que fracassassem no desempenho de suas tarefas, administradas pela própria comunidade. Dimensão essencial da vida comunal aldeã eram as inúmeras festividades, frequentemente atreladas a datas simultaneamente pagãs e cristãs, que marcavam os ciclos naturais que regulam o trabalho agrícola. Numa época anterior à dissociação entre a experiência lúdica, a experiência religiosa e o trabalho para satisfazer necessidades materiais, a síntese entre "o pão nosso de cada dia" e o "pai nosso que está no céu" era experimentada simbolicamente e em grupo por meio, por exemplo, das festividades da rogação, no final de abril, quando os fiéis, que eram também os habitantes da aldeia que nela trabalhavam e dela viviam, peregrinavam por seus limites costumeiros, aprendendo de cor onde começava a terra comum, onde a terra do senhor, onde o pasto coletivo, onde a aldeia vizinha etc.

[27]

[Subsistência; venda de excedentes; trabalho remunerado]

No fim das contas, pelo trabalho familiar e comunitário na terra arável, no pasto e no bosque - e também de pequenos terrenos ( doses) junto aos vilarejos onde se mantinham hortas de legumes e verduras-, a maioria dos camponeses ingleses, no início do nosso período, obtinha a totalidade das coisas de que necessitava para sobreviver: desde alimentos para si e seus animais até matéria-prima para suas casas, ferramentas, vestuário, mobiliário etc. Há evidências de que, para uma parte da população inglesa, esse esquema de subsistência comportava certa dose do que os economistas chamam de subemprego voluntário, ou seja, a manutenção de largos períodos de ócio,ª proporcionados, por um lado, pelo acesso direto aos recursos naturais e pela desobrigação de acumular e, por outro, pelo desenvolvimento técnico a que chegara a agricultura familiar, que contava com todo um universo de métodos de adubagem, controle de pragas, emprego de culturas auxiliares para a preparação do solo etc.9 Entretanto, o limite da vida da subsistência e do subemprego voluntário estava nas obrigações de posse de terra a serem pagas em moeda. A utilização cotidiana do dinheiro aponta para a imposição de uma necessidade de produzir coisas para além das necessárias à satisfação material direta: em geral, excedentes de alimentos que pudessem ser vendidos e para os quais a urbanização inglesa oferecia demanda desde o século XIII. Há evidências de que a produção de excedentes e a obtenção de dinheiro não eram uma tarefa fácil para parte significativa da população inglesa. Era preciso que coincidissem diversas condições naturais propícias para que as famílias que 8

Clay, II, p. 5.

9

Cf. Overton, p. 3ss e l l 7ss.

(28]

não dispunham de terras abundantes - ou de terras particularmente férteis - pudessem produzir mais do que precisavam para se manter. Caso essas condições não se realizassem, de modo a obter o dinheiro para pagar suas obrigações, o camponês podia, sempre que houvesse demanda para tanto, desempenhar um trabalho remunerado - seja lavrando o campo de outrem, seja como artesão etc. [Setores do campesinato]

Diferentes relações do camponês com o trabalho na terra e com as demais formas de atividade econômica no campo eram refletidas por um jargão de hierarquia social que subdividia aquilo que até agora chamamos de "camponês" em três grupos. 10 De fato, o termo "camponês" não encontra correspondente único na fala típica do período. Para tratar da classe social 11 das "pessoas comuns", 12 não nobres, que 10

11

12

É digno de nota que a distinção entre os diferentes tipos de camponeses, bem como outras distinções sociais que envolviam divisões internas da aristocracia, haviam sido fixadas por uma lei de 1413 que exigia que certas ações judiciais fossem organizadas em termos do grau de propriedade das partes (cf. Hilton, Rodney. Bond men made free. Medieval peasant movements and the English rising of 1381. London: Routledge, 2003, p. 176). Também vale observar que, ao longo dos séculos XV e XVI, existiam leis estabelecendo códigos de vestuário, determinando que as distinções sociais estivessem visíveis nos materiais, formatos e cores das roupas (Clay, II, p. 34). Evidentemente, a sociedade moderna gradativamente deixaria de lado esses códigos, confiando na simples impossibilidade econômica de as pessoas comuns adquirirem os produtos com os quais as elites econômicas se distinguem enquanto tais. Ao longo deste trabalho, utilizaremos indiferentemente as expressões "classe social" e "setor social" para designar grupos que, em determinadas situações, aparecem ou bem atuando politicamente de forma mais ou menos coerente ou bem posicionados de maneira particular na produção material. O termo em inglês é "commons': o qual não deve ser confundido com os "commons" em que consistiam os recursos naturais de utilização comum.

(29)

viviam prioritariamente da terra, três termos eram geralmente utilizados, os quais refletiam as condições de inserção dentro da hierarquia da posse de terra: husbandmen, cottagers e yeomen. 13 Referindo-se à população não nobre, o termo "commons" às vezes também englobava a população urbana. O emprego historiográfico desse termo deu ensejo a consideráveis dificuldades - não tanto por sua vagueza, quanto pela dificuldade de adaptá-lo a uma discussão organizada em termos dos conceitos da sociologia moderna. A nosso ver, o principal problema conceituai envolvido é a possibilidade de colocar no mesmo saco a elite intelectualizada não aristocrática e a massa camponesa - as quais, para os contemporâneos, eram, em certo sentido, todos "pessoas comuns". Andy Wood ( The 1549 rebellions and the making of early modem England. Cambridge: Cambridge University Press, 2007) vai um pouco por esse caminho quando flerta com a identificação entre os "commons" - que incluíam desde o cottager mais miserável até o aldeão oligarca e, às vezes, também o comerciante rico - com o jargão thompsoniano de "labouring people''. Tal movimento argumentativo tem certa afinidade com o de Steve Hindle ( The state and social change in early modem England, 1550-1640. New York: Palgrave, 2002): com a intenção legítima de combater a historiografia construída em torno de indivíduos importantes, Hindle procura chamar a atenção sobre a participação das pessoas comuns na política do período; contudo, para fazê-lo - devido à escassez documental sobre a vida dos pobres - precisa tratar como paradigma de "pessoa comum" a elite aldeã. Assim, nessa historiografia produzida nas últimas décadas, e que quer construir um discurso ao mesmo tempo materialista e sensível à "micropolítica" (Wood, p. xvi), uma interessante e original história da classe média do início da modernidade é às vezes embrulhada numa embalagem de história da política popular. Em contraste, as pessoas comuns cuja vicejante atividade política radical é explorada por Peter Linebaugh e Marcus Rediker ( The many-headed

hydra. Sai/ors, slaves, commoners and the hidden history of the revolutionary Atlantic. Boston: Beacon Press, 2000) são inequivocamente os setores sociais que o "middling sort" de Hidle e boa parte dos "comuns" de Wood chamariam de "ralé". No presente trabalho, é sobretudo ao baixo campesinato e a 13

essa ralé que nos referimos pela expressão "pessoas comuns". O último termo pronuncia-se "iôumen''. Devido à ausência de uma prática consistente de tradução discriminada desses três termos para a língua portuguesa, ele será empregado em inglês ao longo do presente trabalho.

[30]

[Husbandmen]

Os husbandmen eram fazendeiros de pequeno a médio porte. Trabalhavam na terra com as próprias mãos, com a ajuda de sua família e, dependendo do tamanho de seus arrendamentos, de um ou alguns trabalhadores assalariados, que o mais das vezes eram contratados apenas nas épocas do ano em que o ciclo de produção rural exigia maior emprego de mão de obra. Nas épocas em que, ao contrário, as demandas de trabalho na terra eram menores - especialmente de maio a agosto, período entre o plantio e a colheita das chamadas safras de primavera ( cevada, aveia, favas) -, mui tos husbandmen ofereciam-se, eles mesmos, como trabalhadores assalariados. Então, desempenhariam em terra alheia ( quando possível, depois de desempenharem nas suas próprias) tarefas relacionadas à manutenção da fazenda, como confecção de ferramentas, construção ou manutenção de moradias e armazéns etc. Dependendo das características da região onde viviam, poderiam empregar-se, ainda, na manufatura, na mineração ou em outras atividades industriais. Assim, via de regra, o termo husbandmen era empregado para descrever aqueles fazendeiros predominantemente autossuficientes no que dizia respeito à produção de alimentos, com uma produção de excedentes eventual ou medianamente frequente. [ Cottagers 1

Era sobretudo nesse ponto que a vida dos husbandmen contrastava com a do grupo dos cottagers. Uma cottage é uma casa rústica, e os cottagers são gente que dispõem de sua casa e, no máximo, de uma pequena horta onde plantar umas abóboras, mas de extensão insuficiente para permitir a autossuficiência alimentar. As famílias de cottagers mantinham-se vivas pela combinação de serviços de criadagem ou seja, o trabalho residente em casa alheia -, trabalho [31

l

assalariado e a prestação de pequenos serviços em troca de dinheiro ou víveres. Em épocas de alta do preço dos alimentos ou escassez de demanda de trabalho, podiam depender, também, de caridade. Sobretudo, a subsistência dos cottagers dependia das prerrogativas de uso das terras comuns - e é aí que fica especialmente visível a peculiaridade desse sistema. Como as terras comuns pertenciam à aldeia - ou, antes, eram parte dela -, o seu uso era prerrogativa dos habitantes da aldeia, e não tinha conexão com a posse de terra em sentido estrito. Dessa forma, uma família cottager desprovida de prerrogativa de cultivo, podia, ainda, catar frutas no bosque, pescar no rio etc. [Yeomen]

No extremo oposto aos cottagers estavam os yeomen, detentores de posses de terras mais vultosas. Podiam dedicar-se pessoalmente ao trabalho na terra, mas vários provavelmente envolviam-se apenas na supervisão e administração de suas posses. Empregavam mais mão de obra assalariada e mais criados que os husbandmen, produzindo excedentes para venda de forma sistemática e planejada. Dependendo das condições de suas posses, dos preços dos alimentos que comercializavam e de outras condições econômicas, os yeomen podiam, ainda, escolher cultivar diretamente a terra ou sublocá-la. A origem socioeconômica dos yeomen estava ligada ao desenvolvimento comercial da Baixa Idade Média e ao acúmulo de riquezas por fazendeiros que se tornaram capazes de estender suas posses de terras. Por um lado, isso vinha afetando os husbandmen: há indícios de que, entre o início do século XII e o final do século XIII, a proporção de pequenos fazendeiros parcialmente dependentes de trabalho [32]

assalariado na Inglaterra tenha crescido de um terço para metade. 14 Por outro lado, a própria aristocracia também foi afetada, com diminuição média de 25% do tamanho da terra cultivada diretamente por ela ao longo dos séculos XIV e XV. 15 Em nosso período, a concentração de terras protagonizada pelos yeomen chegaria a produzir uma categoria social de sem-terra: gente que não conseguia inserção econômica suficiente nem mesmo para arrendar uma cottage, trabalhava em troca de dinheiro apenas muito esporadicamente e dependia predominantemente da caridade para viver. Ao longo de nosso período, essa população de despossuídos os "vagabundos", ou gente que vagueia, já que não tem onde viver - aumentará significativamente. [Distribuição populacional e problema documental]

No que diz respeito à distribuição populacional entre os três tipos de camponeses e os sem-terra, o consenso historiográfico é de que, no início do nosso período, os husbandmen seriam, de longe, os mais numerosos, seguidos pelos cottagers e, então, pelos yeomen, enquanto os sem-terra constituiriam uma fração bem pequena da população rural.16 Contudo, parece-nos necessário tomar aquele consenso criticamente. Com base na legítima ambição historiográfica de apresentar o que se sabe, ele está construído sobre o menosprezo pela proporção do que não se sabe. A bem da verdade, os únicos indícios de que a historiografia dispõe para avaliar a distribuição socioeconômica da população inglesa no período derivam ou das iniciativas de controle econômico do Estado sobre a riqueza - censos, relatórios de 14

15

16

Hilton, Rodney. Bond men made free. Medieval peasant movements and the English rising of 1381. London: Routledge, 2003, p. 32. Dimmock, p. 146. Clay, I, p. 58; Overton, p. 40-41.

(33]

impostos etc. - ou dos esforços privados de controle da propriedade - testamentos, inventários etc. 17 A natureza desses documentos aponta, necessariamente, que tenhamos informações rigorosas apenas sobre os setores sociais que podiam dispor livremente de propriedade e riqueza quantificável, taxável, herdável: ou seja, os husbandmen e os yeomen. Para além de tais documentos, a única coisa de que dispomos são relatos contemporâneos, de forma ensaística, eles mesmos redigidos numa época em que a reflexão social assumia a forma típica de textos de intervenção num acalorado debate sobre a pobreza, o crime, a importância da riqueza pessoal, da intervenção estatal etc.: ou seja, documentos que não oferecem parâmetro seguro para ultrapassar as limitações intrínsecas dos documentos centrados no controle da riqueza. Desse modo, os números exatos da pobreza e dos quase pobres na alvorada da modernidade constituem um indelével ponto de interrogação - como, aliás, já constituíam na época, como admitiam os contemporâneos. 18 Vale observar, ademais, que vícios técnico-ideológicos parecidos persistem mesmo nos dias de hoje, atentando contra a quantificação da pobreza: os mecanismos de que se dispõe para mensurar e controlar a população, no presente como no passado, são sensíveis apenas à relevância econômica dessa população, 17

18

Cf. Dobson, Barrie. General survey, 1300-1540. ln: Palliser, D.M. (Org.). The Cambridge urban history of Britain. Vol. 1. 600- 1540. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 277-9. Ver também Thirsk, Joan. The sources of information on population, 1500-1760. In: The rural economy of England. Collected Essays. London: Hambledon Press, 1984, p. 17-26. E também: Thirsk, Joan. The content and sources of English agrarian history after 1500. Ib., p. 1-15. A autora, referência fundamental para a formação do supracitado consenso entre as gerações posteriores, reconhece a parcialidade da natureza dessas fontes, porém não reconhece os consequentes problemas que estamos apontando ou, pelo menos, escolhe não trabalhar com eles. Clay, II, p. 102.

[34]

o que dota a pobreza extrema de uma opacidade constitutiva ao longo de toda a história da sociedade moderna. [Autonomia econômica das pessoas comuns]

Não obstante a proporção populacional, parece acertado dizer que, no início do nosso período, boa parte da população rural gozava de um grau considerável de autonomia, tanto do ponto de vista da subsistência quanto da organização econômica. Em tal contexto histórico, falar em autonomia significa dizer: para se manter viva, a pessoa comum contava sobretudo com a apropriação direta dos frutos do próprio trabalho e do trabalho daquelas pessoas com as quais compartilhava o espaço da aldeia. Ao mesmo tempo, essa autonomia tinha limites importantes. Como mencionamos acima, a imensa maioria da terra era arrendada, o que significa que, para a quase totalidade dos camponeses, o trabalho na terra dependia de um pacto anterior de acesso à terra pelo arrendamento. Parte considerável da terra era arrendada de outros camponeses; mas, por mais que o cottager A pudesse arrendar terra de um husbandman B que, por sua vez, arrendava terra de um yeoman C, em última análise haveria, na maioria das vezes, um personagem D ou E que seria o detentor de terras eclesiástico ou aristocrata - o responsável por um condado ou alguma de suas subdivisões - e que não arrendava a terra, mas detinha posse dela por concessão real. Também havia camponeses que alugavam terra diretamente do rei, mas discutiremos esse caso mais adiante, de modo que, por enquanto, consideraremos que, no ponto extremo da cadeia de arrendamento de terra, o trabalho da terra dependia de uma relação com a aristocracia ou com a Igreja. Ademais, mesmo que a terra trabalhada numa aldeia não fosse alugada da Igreja, esta tinha papel fundamental na manutenção da vida, tanto pela supracitada inserção da vida religiosa na orga[35]

nização comunal quanto pelas suas prcrrogat ivas _jurídicas (tribunais eclesiásticos com competência p,1ra julgar uma série de pequenos delitos), burocráticas ( rl'gist ro de nascimentos, casamentos e mortes) e materiais (rnid,1do com idosos, órfãos, pobres etc.). [Aldeia; vila; herdade; paróquia]

Ao relacionarem-se com a terra, os camponeses se relacionavam socialmente consigo mesmos, com a aristocracia e com a Igreja. Tratava-se de três relações sociais distintas, simultâneas e mediadas pela terra - e que, portanto, expressavam-se em três espaços político-econômicos diferentes, nos quais a aldeia camponesa estava simultaneamente inserida: a vila, a herdade e a paróquia. A vila - que a historiografia geralmente chama de "vil!", tomando emprestado um termo normando - correspondia aos limites físicos da terra da aldeia e encerrava-a na autonomia política campesina e na vida em comunidade imediata entre seus coabitantes. 19 Em outras palavras, a vila era o espaço da aldeia entendido como espaço comunal camponês. A herdade ou senhorio ( manar) era a possessão aristocrática dentro da qual a aldeia estava situada. Essa possessão podia ser laica - quando o senhor de herdade pertencia à hierarquia da aristocracia laica, ou seja, era barão, marquês, conde, cavaleiro etc. - ou religiosa - quando o senhor de herdade seria abade, prior etc. Na medida em que os aldeões eram também fiéis da Igreja católica, com obrigações e expectativas a isso atreladas, a aldeia pertencia territorialmente a uma paróquia. A paróquia, a princípio, estava associada a uma igreja. Contudo, caso a aldeia pertencesse a uma herdade ou senhorio religioso e não houvesse uma igreja nas redondezas, a sede da 19

Comninel, p. 34.

(36]

herdade poderia ser a casa religiosa presidida pelo abade. Contudo, é importante manter em mente que, mesmo nesse caso, a paróquia e a herdade não se confundiam: enquanto o senhorio ou herdade era a unidade de administração da terra, a paróquia não administrava a terra, mas as almas.

A aristocracia O grupo social que desigriaremos "aristocracia" englobava - como engloba até hoje - dois subgrupos distintos. No primeiro grupo está a nobreza propriamente dita, os "lordes": sobretudo condes (ou earls) e duques. O outro grupo aristocrático é a pequena nobreza, ou a gentry, que incluía todos aqueles chamados de "Sir": baronetes, cavaleiros, esquires. No início de nosso período, havia algo em torno de 50 famílias nobres e três mil membros da gentry. 20 [A herdade]

A aristocracia era sobretudo terratenente, ou seja, ela administrava localmente a terra da Inglaterra e fazia-o enquanto manar lord, ou senhor de "herdade" - termo que designa ao mesmo tempo a grande casa de pedra ou castelo de propriedade de um detentor de terras aristocrata e o vasto terreno que a circundava, e que usualmente englobava de algumas poucas a várias aldeias. A rigor, o único proprietário de terras na Inglaterra, no início de nosso período, era o monarca 21 - de fato, por causa 20

21

Ao longo do presente trabalho, seguindo essa importante distinção expressa na terminologia usual na língua inglesa, usaremos "nobre" e "nobreza" apenas para designar a alta nobreza, reservando para a pequena nobreza os termos "gentlemen" (para indivíduos pertencentes a tal setor social) e "gentry" (para o setor social como um todo). Empregaremos aqui o gênero preferencial em língua portuguesa, mas é importante lembrar que, em nosso período, o trono inglês foi ocupado por

[3 7]

disso, a própria noção de "propriedade" não se aplicava juridicamente à terra. 22 Mas, por princípio, e historicamente, o senhor de herdade tinha o direito exclusivo de uso da terra atrelada à herdade, e um pouco menos de dois terços da terra trabalhável da Inglaterra era terra desse tipo. Assim, a aristocracia controlava diretamente a maior parte da terra trabalhável: do restante, a quase totalidade era terra da Igreja, mas a Coroa ainda controlava diretamente quantidade significativa. 23 O tamanho de uma herdade - bem como o número de herdades sob controle de um aristocrata-podia variar muito, mas ela geralmente estava dividida fundamentalmente em duas partes. Uma parte era o chamado domínio (em inglês, demesne), e dizia respeito à parte da terra de que o aristocrata fazia uso direto, dispondo como propriedade privada dos frutos desse uso. As cerca de 50 famílias nobres do início de nosso período detinham algo entre 5-10% da terra da Inglaterra em seus domínios, enquanto os três mil gentlemen detinham cerca de 25% dela. 24 Para além do domínio, as demais terras da herdade eram alugadas ou arrendadas para os camponeses, através dos supramencionados contratos de posse. Além de controlar o acesso à terra, o senhor de herdade podia possuir, dependendo do costume local, prerrogativas relacionadas com os recursos naturais da herdade. Por

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23

24

rainhas em duas ocasiões: com a morte de Eduardo VI, em 1553, ascendeu ao trono Maria I, que reinou até 1558, e foi seguida por Elizabeth I, que reinou até 1603. Buck, A.R. The politics ofland law in Tudor England, 1529-1540. ln: Journal of Legal History, 11:2. 200-217. 1990, p. 201. Como veremos mais adiante, havia ainda pequena quantidade de terras que eram controladas diretamente por yeornen. Bucholz, R.O.; Key, Newton. Early modern England, 1485-1714: a narrative history. Oxford: Blackwell, 2004, p. 24.

[38]

exemplo, podia ter monopólio sobre a caça de veados no bosque, sobre a pesca no rio ou sobre a construção e manutenção de moinhos para farinha, para utilização dos quais cobrava uma taxa (mill-tall). [Tribunal de herdade e costume legal}

Expressão fundamental do controle da terra pela aristocracia eram os tribunais de herdade ( manaria[ caurts). Presididos pelos senhores de herdade, esses tribunais registravam os contratos de arrendamento de terra celebrados na herdade, bem como algumas das disposições regulatórias do trabalho comunal e da divisão das terras aldeãs. 25 O tribunal de herdade, assim, tinha papel absolutamente fundamental na economia agrária, mas também desempenhava funções judiciais: julgava dissídios civis entre camponeses (quando uma solução comunal não era alcançada), pequenos crimes como agressões ou roubos 2 " e dissídios entre locatários diretos da herdade - ou seja, gente que tinha contratos de posse de terra com o senhor - e sublocatários. No sistema jurídico inglês - que até hoje funciona na base do chamado "precedente judicial" -, as decisões tomadas nos tribunais de herdade consistiam não apenas em vereditos pontuais para casos específicos, mas eram reunidas em uma coleção de decisões que, dependendo de seu alcance, história e contexto, podiam valer indefinidamente. Isso significava que cada herdade possuía um conjunto particular de doutrina jurídica, designado "costume legal" (custam law), ao qual os habi25

26

Joan Thirsk (The common fields. In: The rural econamy af England. Collected Essays. London: Hambledon Press, 1984, p. 36) não trabalha com adistinção entre vil/ e manar em que Comninel insiste, e assume que a regulação do trabalho passa toda necessariamente pelo manar caurt. Briggs, John; Harrison, Christopher; Mclnnes, Angus; Vincent, Davis. Crime and punishment in England. An intraductory histary. London: UCL Press, 2005, p. 10.

[39]

tantes da herdade estavam submetidos e que podia variar substancialmente de herdade para herdade. O costume legal não era a mesma coisa que o costume em sentido amplo de que tratamos acima quando discutimos as liberdades de uso da terra comum. Contudo, na medida em que os contratos de posse de terra lavrados com o senhor de herdade e registrados no tribunal de herdade há séculos registravam, com os termos de posse, os costumes de divisão de terra- ou seja, o tamanho e a localização das parcelas de terras arrendáveis, em contraste com as terras do domínio-, bem como a extensão, a localização e o emprego de terras comuns, os costumes populares haviam adquirido feição de precedente legal em grande parte das herdades inglesas. Nesse sentido, sempre que utilizarmos o conceito de "costume", estará em jogo muito mais do que apenas uma forma de fazer as coisas que era repetida ao longo do tempo. A adesão ao costume não se dava apenas por mero hábito, passível de mudança, mas devido ao seu caráter pactua! e eventualmente jurídico, que funcionava como baliza das potencialmente conflituosas relações entre os diferentes setores sociais e o trabalho na terra. [lá não havia servidão]

Um aspecto fundamental da relação entre camponeses e senhores era que, no final do século XV, a servidão em grande escala, bem como as obrigações de arrendamento tipicamente feudais, envolvendo trabalho, já não existiam na Inglaterra, exceto em determinadas regiões muito reduzidas.27 Assim, para trabalhar seu domínio, o senhor de terras 27

Vale sublinhar que o crescimento mercantil ao longo dos séculos XIII e XIV, de que demos conta acima, teve lugar especialmente em regiões onde também se verificou marcada intensificação das obrigações feudais, como em East Anglia (cf. Dimmock, p. 14). Isso nos diz algo sobre a compatibilidade

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no início de nosso período tinha que empregar trabalhadores pagos. O simples fato de que o camponês não estava juridicamente obrigado a trabalhar para o senhor tinha consequências econômicas significativas. Visto que os camponeses trabalhavam também uns para os outros, e visto que existia um incipiente mercado de alimentos, o trabalho para o senhor precisava ser atrativo economicamente. Assim, houve épocas, ao longo de nosso período, em que os senhores diminuíram seus domínios consideravelmente, apenas porque o preço da força de trabalho havia subido demais, de tal modo que arrendar a terra se tornava mais interessante para a aristocracia do que trabalhá-la diretamente. [Autonomia campesina e paternalismo senhorial]

Sendo desobrigado de trabalhar e dotado de relativa autossuficiência alimentar, o camponês, embora necessariamente associado ao senhor, não era exatamente dependente dele no início de nosso período. De fato, estava estabelecida entre a aristocracia e as "pessoas comuns" uma política de reciprocidade. Isso era resultado de uma série de lutas populares que, especialmente nos séculos XIV e XV, haviam arrancado concessões materiais importantes dos senhores,2B que também se enfraqueciam devido ao prenúncio das transformações que discutiremos no Capítulo 2. Em paralelo a esse histórico de vitórias políticas campesinas, ao longo da Idade Média desenvolvera-se todo um discurso centrado na incapacidade das pessoas comuns de governarem a si mesmas,

28

entre métodos não modernos de controle do trabalho e produção de mercadoria, e insere importante nuance na discussão sobre o aspecto violento da ascensão do capitalismo. Cf. Hilton, op. cit., e Harvey, 1.M.W. Jack Cade's Rebellion of 1450. Oxford: Oxford University Press, 1991.

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l

por um lado, e na aptidão natural para mandar nos outros das "classes superiores", amparado numa representação religiosa do mundo, paralelos para com a relação entre Deus e os mortais, desembocando eventualmente numa teoria política estruturada a partir de uma visão atemporal e imutável da hierarquia social. Mas, ao mesmo tempo que abundavam representações do camponês como dócil e reverente, o aristocrata era retratado como alguém imbuído de autoridade condescendente e disposição benigna - algo que a historiografia, às vezes, caracteriza como cultura paternalista. [Os camponeses armados]

O fato essencial a respeito da ideologia paternalista não é tanto sua falsidade interesseira - a representação mentirosa de uma classe dominante benfazeja-, mas a situação política que a tornava necessária. Se o senhorio se representava como responsável pelo bem-estar dos "de baixo", como se dizia, isso se devia em grande medida ao fato de que fora obrigado a tanto pelas lutas políticas dos períodos anteriores. E o fundamento dessas lutas políticas, por sua vez - o caráter tendencial e reincidentemente violento da relação entre o campesinato e a aristocracia -, era o fato de que as forças militares eram compostas simplesmente pela população masculina em geral, que tinha, em tese, o dever de obedecer a eventuais chamados às armas emitidos pelo nobre ou gentleman local. Até que essa situação fosse alterada, com a gradual introdução de exércitos permanentes e comandantes profissionais ao longo do nosso período, a ação militar na sociedade inglesa estava mais ou menos ao alcance do homem comum. Isso tinha, principalmente, duas consequências. A primeira era que a violência mais ou menos organizada do campesinato era potencialmente tão destrutiva quanto a deflagrada por qualquer pequeno exército - portanto, algo a [42]

ser temido. 29 A segunda era que o poderio militar da nobreza e da gentry dependia de um pacto com o campesinato. Ora, esse poderio militar era característica fundante da aristocracia medieval. Era como classes potencialmente armadas que a nobreza e a gentry posicionavam-se diante da Coroa, em sua capacidade tanto de prestar serviço militar ao monarca quanto de resistir às potenciais arbitrariedades da Coroa, armando contra ela a população de suas terras, com resultados muitas vezes historicamente significativos - por exemplo, a Magna Carta, ou a ascensão da dinastia Tudor. Mas, para armar-se de fato, o gentleman ou o nobre não possuía outro recurso se não sua boa relação com o campesinato,30 devendo, então, esforçar-se por mantê-la pelo exercício eficaz do paternalismo. A cultura de complacência aristocrática era usualmente evocada pelos contemporâneos por meio da expressão "bom senhorio" (good lordship). Essa expressão implicava que a expectativa do senhor de ser obedecido tinha uma contraparte no campesinato, que esperava dele um trato não apenas justo, mas até mesmo generoso. [Revoltas camponesas]

Na Inglaterra do final da Idade Média, portanto, a despeito da ideologia que menosprezava politicamente as pessoas comuns, a relação entre os detentores de terra e os camponeses consistia num jogo de forças delicado e, de fato, razoavelmente equilibrado, especialmente se levamos em conta quão usual era que camponeses descontentes promovessem atos de desobediência, destruição de patrimônio e, eventualmente, de revolta declarada, conforme veremos no Capítulo 4. 29

30

Cf. a caracterização da ameaça militar oferecida pela Peregrinação da Graça, importante rebelião do século XVI em Dickens, G.A. Reformation Studies. London: Hambledon Press, 1982, p. 60. Clay, II, p. 5.

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Nesses casos, obviamente, os aristocratas geralmente solidarizavam-se uns com os outros e tentavam mobilizar seus próprios homens contra os revoltosos - embora condições políticas específicas às vezes acabassem estimulando membros da aristocracia a comprar o barulho dos camponeses revoltosos. Ademais, em tais situações, o nobre ou o gentleman podia ter que enfrentar a eventual relutância dos camponeses em pegarem em armas e combaterem-se mutuamente - especialmente quando isso significava largar as ferramentas e abandonar as terras na época da semeadura e da colheita. Essa relutância manifestava-se nos momentos mais delicados: ver, por exemplo, os levantes que se sucederam à tentativa da gentry de chamar os camponeses às armas contra a chamada Rebelião de Kett, em 1549. 31 Com tudo isso, não era raro que camponeses em revolta às vezes tivessem sucesso em forçar os detentores de terra - ou até a Coroa - a aceitar suas demandas. Antes de nosso período, um excelente exemplo disso foi o levante de 1381, detonado por uma tentativa de reforma do sistema de impostos: em virtude da violenta resposta popular, essa reforma foi adiada e acabou demorando séculos para ter lugar. [Guerra civil e tratado de paz como paradigma da ação política: a Magna Carta]

Nesse contexto, também é importante levar em conta que conflitos políticos no seio das "classes superiores" pipocavam periodicamente na Inglaterra, e uma cuidadosa escolha de lados e eventual participação neles eram, o mais das vezes, decisivas para a manutenção de títulos, posse de terra, favores do monarca ou de outros aristocratas etc. A importância desses conflitos civis armados na vida política das 31

Fletcher, Anthony; MacCulloch, Diarmaid. Tudor Rebellions. London: Pearson, 2008, p. 69-70.

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"classes superiores" adicionava mais uma dimensão à sua necessidade de construir com o campesinato uma relação de amistosidade e reciprocidade, o que não poderia escapar da percepção coletiva dos camponeses. Há evidências importantes disso: em especial, a maneira como a manutenção das prerrogativas de uso das terras comuns, de interesse majoritariamente camponês, estava atrelada à participação dos camponeses nos conflitos armados da aristocracia. Afinal, a formulação desses direitos vigentes no início do século XVI remontava à Magna Carta de 1215-1217, que havia sido uma espécie de tratado de paz firmado no final de uma guerra entre a nobreza e a Coroa. Vale a pena dizer algumas palavras sobre esse processo que deu origem à Magna Carta, pois ele ilustra eloquentemente o tipo de relação política entre Coroa, aristocracia e campesinato que ainda vigia no início de nosso período. A guerra civil conhecida como Guerra dos Barões - como toda guerra de então, lutada majoritariamente pelo campesinato armado, militarmente liderada pela aristocracia - teve como resultado a derrota do rei Henrique III, em 1216. Como parte de sua rendição militar aos aristocratas revoltosos, o monarca afirmou por escrito uma série de limitações de seu próprio poder e prerrogativas para a aristocracia. Através dos séculos, algumas dessas concessões tornaram-se princípios determinantes para o pensamento jurídico ocidental: sobretudo a ideia do julgamento pelos pares, ou seja, a de que uma pessoa acusada por um crime só pode ser punida se for julgada culpada por pessoas socialmente comparáveis a ela. Nesse princípio está enraizado o dispositivo jurídico hoje conhecido como habeas corpus, por meio do qual se reclama o direito de responder em liberdade a acusações por um crime qualquer. A sua aplicação na hierarquizada sociedade medieval tinha relevância apenas para a aris[45]

tocracia: significava, na prática, que nenhum nobre podia ser preso sumariamente por ordem do rei, mas deveria ser julgado por um júri de nobres. No que dizia respeito à relação entre campesinato e aristocracia, as prerrogativas das cortes de herdade ainda os deixavam, até certo ponto, à mercê da vontade dos senhores. Assim, a concessão relativa ao julgamento pelos pares representava sobretudo a vitória da nobreza sobre a Coroa. Contudo, a Magna Carta incluía concessões de outra ordem, ligadas à manutenção da vida das pessoas comuns. Por exemplo, estabelecia expressamente que os oficiais da Coroa não tinham prerrogativas sobre a posse alheia, especificando que estavam proibidos de apropriar-se de bens ou comida, nem requisitar para serviço pessoas, animais de carga, veículos ou ferramentas sem o devido pagamento. Também garantia direito de livre circulação a mercadores em todo o reino, estabelecendo parâmetros de peso e de medida que facilitassem suas transações. 32 E - o que era talvez mais importante - fixava uma série de direitos de acesso das pessoas comuns às terras comuns - as "liberdades" de que falamos acima -, trabalhando com conceitos incompatíveis com a forma de vida na sociedade da mercadoria e que, portanto, não deixaram legado significativo no imaginário ou na prática jurídica burguesa. O acesso às florestas, à água, à matéria-prima de construção, ao pasto e a alimentos para os animais significava que a Magna Carta deixou registrada como vontade do rei - e, portanto, como lei - a prerrogativa das pessoas comuns de preservarem sua autonomia econômica, mantendo-se vivas pela apropriação direta dos frutos de seus próprios esforços. 33 Evidentemente, tal prerrogativa 32

33

Linebaugh, Peter. The Magna Carta manifesto. Berkely: University of California Press, 2008, p. 30-31. Linebaugh, p. 35ss.

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podia entrar em conflito com os interesses da aristocracia, a quem poderia parecer mais vantajoso, por exemplo, transformar as terras comuns em terras de domínio a serem arrendadas ou de onde extrair mercadorias, ou matéria-prima para a produção de mercadorias. Nesse sentido, as "liberdades" consistiam na expressão de uma vitória política específica do campesinato que, portanto, mesmo participando dos conflitos políticos das "classes superiores': era capaz de fazer reivindicações específicas e de conquistá-las.

A Coroa [O costume e as concessões reais de terra]

Afirmamos que toda terra inglesa era detida em usufruto, e não como propriedade, sob a forma de concessões de posse. Também descrevemos uma hierarquia de concessões de posse envolvendo como o camponês arrendava do aristocrata, que por sua vez detinha terra por concessão do monarca. Tais concessões reais de terra estavam, elas mesmas, regidas por costumes análogos àqueles que regiam os contratos de arrendamentos de terra junto aos senhorios aristocráticos e eclesiásticos. O costume fixava não só o nome, o tamanho, a localização e a hierarquia dos senhores laicos ou eclesiásticos - condados, ducados, baronatos, arcebispados, bispados etc.-, mas as prerrogativas envolvidas nas herdades: principalmente, as prerrogativas de arrendar a terra, administrá-la localmente em nome do rei, organizar localmente as forças militares do reino e instituir o tribunal de herdade. No fim das contas, a validade do costume legal fixado nos tribunais de herdade advinha do fato de que a prerrogativa senhorial de presidir esses tribunais estava, ela mesma, fixada pelo costume e confirmada pelo ato de concessão real pelo qual o monarca atribuía o senhorio ao senhor. (4 7]

[Peculiar vulnerabilidade da aristocracia inglesa diante da Coroa]

A concessão real de terra tinha, na Inglaterra do início de nosso período, diferenças significativas frente ao esquema que vigira na sociedade feudal - e, até certo ponto, ainda existia no continente. Ao contrário daquela da maior parte do continente europeu, a aristocracia inglesa não tinha sobre suas herdades direitos sucessórios garantidos indefinidamente, o que, em certa medida, a colocava à mercê do favor real. Essa peculiar prerrogativa sobre a terra que a monarquia inglesa possuía - a qual, como veremos, foi determinante para a capacidade centralizadora do Estado inglês - tinha origens medievais: mais precisamente, a conquista normanda no século XI. [A conquista normanda, a recriação da aristocracia e a posse

in capitel

O estopim da conquista normanda foi uma disputa sucessória. O rei saxão Eduardo, o Confessor, morreu sem filhos em 1066. Guilherme II, duque da Normandia, tinha parentesco com Eduardo, e invadiu a Inglaterra para reivindicar o trono, meses depois de sua morte. Seguiram-se anos de guerra com a aristocracia saxã. Guilherme terminou vencedor, tornou-se rei e ficou conhecido como o Conquistador. Guilherme adotou um procedimento de guerra comum, mas suas consequências foram de vulto. À medida que ia arrancando militarmente território à aristocracia saxã, dissolvia seus títulos e realizava atos de concessão de novos títulos para seus seguidores que se destacavam militarmente. Isso significou que Guilherme criou uma nova aristocracia armada normanda durante o processo de invasão, com interesses estreitos em manter o recém-conquistado domínio territorial sob sua guarda. Essa nova aristocracia pôde dispor de enormes extensões de terra de herdade, reorganiza[48]

das e redistribuídas conforme a conveniência de uma administração territorial militar que estava ciente dos anos de rebeliões que enfrentaria. 34 Ao mesmo tempo, os títulos dessa aristocracia derivavam diretamente do ato pessoal de concessão pelo novo rei: eram os chamados títulos de posse in capite. Isso contrastava com o que já se havia tornado típico na Europa continental: aí, no século XI, já existia uma complexa rede de vassalagem. Os senhores de terra in capite eram minoria, e a maioria dos aristocratas detinha terras por concessão de algum outro aristocrata, que as havia recebido de outro aristocrata, e assim por diante, até chegar ao rei. [Prerrogativas da concessão in capitel

É preciso enfatizar algumas das vantagens que a posse in capite concedida à monarquia. Para começar, a cada 25 anos, um quarto das famílias aristocráticas desaparecia na Inglaterra por falta de herdeiros. 35 Combinado ao fato de que a aristocracia não tinha poder testamentário sobre a terra - ou seja, não podia designar herdeiros para além de seus descendentes diretos -, isso significava que, a cada 25 anos, um quarto da terra concedida retornava para o controle do rei. Ademais, ser senhor direto de grande parte dos senhores do reino dava ao monarca inglês uma série de prerrogativas sobre a aristocracia, as quais envolviam direitos fiscais e de controle sobre a herança da terra (alguns dos quais, de fato, continuam válidos até hoje). 36 Na Inglaterra de Guilherme, 34

35

36

Comninel, George C. English feudalism and the origins of capitalism. ln: The Journal of Peasant Studies, vol. 27, n. 4, July 2000, p. 22. Bucholz e Key, p. 28. Em outubro de 2012, o jornal britânico Telegraph publicou uma reportagem sobre o mecanismo por meio do qual a riqueza não testamentada do Reino Unido é herdada pela família real britânica (www.telegraph.co.uk/news/

[49]

o herdeiro de um senhorio aristocrático só poderia assumir sua posse se efetuasse um pagamento - a chamada "homenagem" (homage), que consistia em uma soma a ser entregue ao senhor que concedia a terra. Assim, se o conde de Y era o senhor do barão de X, e o barão de X morria, seu filho Z só podia tomar posse do baronato mediante pagamento ao conde de Y, e, enquanto o pagamento não fosse feito, podia dispor das terras como bem entendesse. O direito de cobrar a "homenagem" foi abolido para a aristocracia inglesa no século XIII; porém, o monarca preservou esse direito até meados do século XVII. Isso foi de enorme importância, tendo em vista que o monarca era o senhor direto de grande parte das concessões aristocráticas da Inglaterra. O direito à "homenagem" não significava apenas importante fonte de rendas para a Coroa, mas também a capacidade de virtualmente eliminar da aristocracia as famílias financeiramente falidas, incapazes de pagar seu acesso à terra herdável. Junto com a prerrogativa da "homenagem", havia o direito de guarda sobre herdeiros menores de idade ( wardship). Essa guarda funcionava assim: se as terras e o título de aristocrata haviam sido conferidos pelo rei, e esse aristocrata morria deixando um filho menor de idade, era o rei que tinha a guarda da criança, e não algum eventual parente próximo vivo. Isso significava que o rei é que tomaria a importante decisão de com quem o jovem se casaria quando esse momento chegasse, o que, no fim das contas, dava à Coroa enorme poder de controle sobre as dinastias inglesas. 37 Ademais, para sair da guarda do rei e assumir a posse de terras, o herdeiro que atingia a maioridade tinha que pagar à mo-

37

uknews/ prince-char les/9 58 3 920/ 1m -from- those-w ho-die-wi thout -wills-passes-to-Prince-Charless-estate.html). Buck, A.R. The politics ofland law in Tudor England, 1529-1540. ln: Journal of Legal History, 11:2. 200-217, 1990, p. 20lss.

(50]

narquia uma taxa de acesso - enquanto não pagasse, as terras ficavam sob controle da Coroa. [Fontes de receita da Coroa]

A importância das concessões in capite, contudo, era majoritariamente política. Embora substanciais em termos absolutos, as taxas e outras prerrogativas advindas dos atos de concessão de terra, no início do século XVI, correspondiam a apenas 5% da receita da Coroa. 38 A maior parte dessa receita, portanto, vinha de outras fontes. A primeira eram as taxas alfandegárias que a Coroa tinha prerrogativa de recolher "desde tempos imemoriais", como se dizia. A segunda eram suas terras de domínio: a exploração direta com finalidade comercial, seu arrendamento e os impostos cobrados conforme o costume. 39 Além dessas fontes de receita, também é verdade que a posição mesma do monarca como defensor da terra e da fé o autorizava, por princípio, a lançar mão da propriedade de seus súditos para manter-se a si mesmo e aos seus exércitos. Contudo, na Inglaterra, a tradição era que ações desse tipo só fossem tomadas em situações extremas, às vezes causando atritos graves entre a monarquia e os aristocratas - por exemplo, a Guerra dos Barões que discutimos acima e, de fato, a guerra civil no século XVII. Assim mesmo, os direitos do rei sobre a propriedade dos súditos encontravam expressão, no início do nosso período, na instituição do purveyance - literalmente, "suprimento". Ligada à função monárquica de manutenção do reino, essa prerrogativa significava que a Coroa podia obrigar os súditos a venderem mercadorias "ao preço do rei': ou seja, por um valor determinado pela Coroa sempre 38 39

Bucholz e Key, p. 52. Braddick, Michael J. State formation in early modern England, 1550-1700. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 246.

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l

que as transações comerciais envolvessem interesse supostamente público: por exemplo, o suprimento dos exércitos. [Concentração real do poder jurídico e lei comum]

Outra importante prerrogativa real era a administração da lei. Aqui, novamente, a monarquia inglesa estava numa posição peculiar frente aos demais estados do período, e as razões, novamente, remetem-nos à conquista normanda. Além de esquadrinhar a Inglaterra com senhorios concedidos in capite, Guilherme, o Conquistador, deixou o legado de tribunais reais com jurisdição sobre todo o território conquistado. Concretamente, isso significava que os senhores teriam seus poderes sobre os habitantes da herdade limitados pelo poder legal feito e exercido nos tribunais do rei. Ê importante observar que isso representava o retorno a uma centralização monárquica que remontava ao império carolíngio, mas que já não vigia na Europa do século XI, quando os senhores feudais já tinham, ao longo dos últimos séculos, conquistado enorme autonomia jurídica e política perante os monarcas. 40 Ao contrário, a Inglaterra normanda nasce marcada pelo que viria a ser conhecido como "lei comum": a capacidade real concreta de legislar e julgar em todo o território inglês. [Os tribunais de circuito)

Na prática, é verdade que, com o passar do tempo, em comparação com o esquema estabelecido com a conquista normanda, a prerrogativa real de aplicar a lei comum foi mitigada pela autonomia jurídica dos tribunais de herdade. Por outro lado, a Coroa desenvolveu mecanismos para continuar exercendo poder jurídico pela aplicação da lei comum na quase totalidade dos seus domínios. Para começar, já no século XII foram estabelecidas seções judiciais periódicas,

° Comninel, p. 19.

4

(52]

inicialmente presididas pelo rei em pessoa, e mais tarde por representantes diretos de seu poder judicial. Tais seções eventualmente cristalizaram-se sob a forma de tribunais permanentes cujas decisões acumulavam sob a forma de precedente, contribuindo para o corpo da lei comum. Os tribunais reais, contudo, estavam atrelados à Corte, de modo que só podiam julgar os casos que fossem trazidos até Westminster. Esse isolamento geográfico da lei comum foi resolvido pela monarquia inglesa com a criação e manutenção dos tribunais itinerantes (inicialmente, os justices in eyre; posteriormente, os circuit courts) que, na prática, tornaram-se as principais instituições de aplicação da lei comum. Esses tribunais peregrinavam pelo reino num percurso e numa periodicidade preestabelecidos. Inicialmente, os tribunais de circuito tinham autoridade para ouvir as apelações que se faziam ao rei como juiz supremo. Com o tempo, entretanto, receberam atribuições exclusivas de julgar disputas específicas envolvendo posse de terra, além de furtos (acima de determinado valor), assaltos e assassinatos- sempre segundo a lei comum, e não o costume legal da herdade, independentemente do local onde o tribunal estivesse atuando. Além do fato de que todas as multas aplicadas como penas por infrações da lei comum eram recolhidas para os cofres da Coroa - o que constituía considerável fonte de receita-, a importância desses tribunais estava na afirmação do poder do monarca pela competência jurídica exclusiva, a qual impunha limites legais claros ao poder aristocrático.

A Igreja Em paralelo ao esquema monárquico e senhorial de poder e propriedade, que colocava em relação política e econômica os camponeses, a aristocracia e a Coroa, existia um esquema eclesiástico análogo. "Em paralelo", aí, quer dizer: a Igreja [53]

mantinha relações específicas com o campesinato, regidas por costumes e códigos autônomos e independentes da Coroa e da aristocracia, com o qual, entretanto, entrava em contato e, eventualmente, em conflito. [A Igreja e a Coroa]

Não obstante essa estrutura de poder paralelo, em comparação com outras monarquias europeias, a inglesa tinha influência significativa sobre o esquema eclesiástico de posse de terra. A origem disso datava da época do Grande Cisma, no século XIV, quando a aliança estreita entre o papa e a monarquia francesa levou à existência de duas cortes papais em competição: uma em Avignon, na França, e outra em Roma. Uma vez que era o papa que mediava os conflitos territoriais e dinásticos entre as monarquias europeias, uma corte papal francesa representava enorme vantagem política. Em resposta a tal afronta, foi promulgada na Inglaterra uma série de leis que limitavam consideravelmente as prerrogativas que o papa usualmente detinha frente aos monarcas cristãos - as quais, para a maioria dos outros reinos europeus, continuavam válidas no início do nosso período. Assim, para começar, nos domínios da monarquia inglesa a nomeação dos detentores de senhorios eclesiásticos ( benefices), incluindo bispos e arcebispos, não era realizada com completa autonomia pelo papa ou pela hierarquia eclesiástica inglesa, mas envolvia um jogo político com a Coroa, quando não dependia dela inteiramente. Ademais, as bulas papais de excomunhão não tinham validade na Inglaterra, cujos súditos também eram proibidos de apelar casos judiciais nas cortes papais. Essa relativa autonomia da Coroa inglesa frente ao papado somava-se ao seu incomum poderio sobre as herdades aristocráticas, funcionando como fator de importância significativa nos processos ulteriores de centralização do poder monárquico. [54]

[O senhorio de terras eclesiástico]

Como afirmamos, a Igreja detinha, no início de nosso período, cerca de um terço das terras da Inglaterra. Nos termos da racionalidade feudal, os títulos eclesiásticos de terra eram conferidos em troca de serviços espirituais - as funções institucionais ordinárias da Igreja, fundadas na doutrina cristã. Dado que, oficialmente, o alto clero não podia casar e ter filhos - embora, na prática, o contrário se verificasse comumente e fosse até bem aceito em certas regiões das Ilhas Britânicas -, os títulos de terra eclesiásticos não eram hereditários. Enquanto os títulos aristocráticos estavam associados a herdades, os títulos eclesiásticos estavam associados a casas religiosas ou monastérios: abadias, conventos etc. Como sedes de senhorios de terra, os monastérios possuíam tribunais análogos aos tribunais de herdade da aristocracia, e a terra associada aos monastérios estavam divididas de forma análoga àquela dos senhorios aristocráticos: uma parte era trabalhada diretamente pelos religiosos (com ajuda de trabalho assalariado quando necessário e/ou possível), e outra parte era alugada por meio de contratos de arrendamento formalmente idênticos (e igualmente variados) àqueles lavrados entre camponeses e aristocratas. Ê importante observar que, talvez aproveitando-se da tradicional cultura burocrática da Igreja, há evidências de que desenvolveu-se na Inglaterra um sistema de administração comercial das terras eclesiásticas particularmente eficiente, que tornava a produção de excedentes agrários mais sistemática e mais lucrativa que nas terras aristocráticas. [O dízimo e o arrendamento da coleta de obrigações]

Contudo, a Igreja na Inglaterra não se mantinha e enriquecia apenas pelo arrendamento e o trabalho direto da terra, mas também pela prerrogativa de coletar o imposto do dízi(55]

mo (tithe). Em tese, o dízimo correspondia à décima parte da produção e não incidia apenas sobre a produção de camponeses que fossem arrendatários de terras eclesiásticas, mas estava ligado à entidade territorial da paróquia, a qual existia em paralelo aos territórios das herdades, como vimos. De fato, o valor do dízimo podia variar muito, devido a questões envolvendo o costume local e precedentes legais resultantes de disputas jurídico-políticas relacionadas à superposição entre aldeia, senhorio e paróquia. Na hierarquia territorial eclesiástica, as paróquias estavam agrupadas em dioceses, controladas por bispos. Assim, como não houvesse terra na Inglaterra que não estivesse associada a uma igreja, não havia quem não pertencesse a alguma paróquia e, portanto, estivesse isento do pagamento do dízimo. A responsabilidade de coletar o dízimo era do padre da igreja paroquiana - ou, em alguns casos, do abade da casa religiosa. Era pago em gêneros produzidos ou em moeda. Crescentemente, entretanto, o direito de coletar o dízimo nas paróquias vinha sendo vendido pelas dioceses. Nesses casos, o portador laico do direito ao dízimo apropriava-se dos gêneros devidos em troca de um pagamento fixo em moeda para a diocese, que, então, ficava responsável por pagar o pároco. Essa prática de arrendar direitos de coleta de impostos ou obrigações não era rara no mundo medieval e no início da era moderna, tendo sido empregada não apenas por instituições eclesiásticas. Sua justificativa era ao mesmo tempo contábil e política. Em primeiro lugar, pensava-se que, ao fixar um preço para o direito de coleta, a instituição originalmente detentora desse direito ficava protegida de eventuais fracassos na coleta, relacionados à incompetência e à desorganização ou a causas naturais, como colheitas ruins. Em segundo lugar, a secular racionalidade política medieval, [56]

baseada em esquemas hierárquicos de favor, funcionava inerentemente por meio de pactos desse tipo, em que uma prerrogativa convertível em renda era trocada por uma relação de lealdade. Assim, o direito de coletar determinado imposto funcionava como dádiva que um membro da hierarquia eclesiástica - ou, mais tarde, como veremos, da burocracia estatal - podia trocar por lealdade política. A venda do direito de coletar o dízimo representava uma diminuição da autonomia local do pároco e um crescimento do poder administrativo da Igreja. [O dízimo e a função social das instituições eclesiásticas]

É importante observar que não havia nada no esquema aris-

tocrático que equivalesse ao alcance universal do imposto do dízimo; a Coroa tinha prerrogativas universais de taxação, mas as sutilezas políticas envolvidas aí exigem que adiemos a discussão desse assunto para nosso enfrentamento com os problemas políticos da administração central, mais à frente. De todo modo, o dízimo estava intimamente ligado ao custeamento de uma série de serviços prestados pelas instituições eclesiásticas para a sociedade em geral, serviços esses que eram inextricáveis da forma de vida de então. Para começar, a manutenção dos padres das paróquias, realizada pela diocese, era nominalmente financiada pelo pagamento do dízimo. O padre realizava as missas, o batismo, a confirmação, o casamento e os funerais, fundamentais para a salvação da alma, mas também indissociáveis da manu tenção do corpo, visto que era a instituição religiosa que, pelos sacramentos específicos, registrava os vínculos familiares, nascimentos e mortes aos quais a posse da terra estava ligada. Assim, era por necessidade material, tanto quanto espiritual, que a ausência de um padre - ou a presença de um padre não afinado com a comunidade paroquiana causava, às vezes, conflagrações populares. As quantias pagas (57]

pelas dioceses aos padres, contudo, no início de nosso período, tendiam a ser menores do que suas necessidades de . subsistência,4 1 o que levava vários padres a desempenharem trabalhos adicionais, negligenciando suas atribuições sacerdotais e, portanto, criando atrito entre os oficiais eclesiásticos e a população em geral. O dízimo também revertia na manutenção física da igreja pela paróquia ou pela diocese. O edifício da igreja era fundamental não apenas como sede da experiência religiosa propriamente dita, mas como espaço de socialização em geral. Era no gramado que usualmente circundava a igreja local (o church green) que aconteciam a maior parte das festividades especiais da cultura camponesa, laicas ou religiosas, além de eventos cotidianos, como jogos com bola, competições esportivas, produção coletiva de alimentos e bebidas, entretenimentos cênicos e musicais etc. A igreja era o principal ponto de referência para a convivência paroqmana. [Tribunais eclesiásticos]

A paróquia tinha, ainda, uma expressão jurídica sob a forma dos tribunais eclesiásticos. Tais tribunais assumiam as funções de registro associadas aos sacramentos ministrados pelo padre paroquiano: reconheciam burocraticamente os casamentos, os nascimentos (pelo batismo) e a morte (pelos testamentos). Além disso, promoviam uma regulação do comportamento pela aplicação de normas específicas que, como se poderia esperar, baseavam-se na doutrina cristã em especial, nos dez mandamentos - e, portanto, diziam respeito sobretudo a obrigações morais. Nesse sentido, julgavam casos que diziam respeito ao que, hoje, chamaríamos de esfera privada: gente que se embriagava, faltava à 41

Bucholz e Key, p. 101-2.

[58]

missa dominical para dançar ou jogar bola, proferia injúrias contra alguém etc. Ademais, também era competência dos tribunais eclesiásticos receber queixas relacionadas ao sacramento do casamento, ou seja, denúncias de adultério, maus-tratos ou negligência das esposas ou filhos por seus maridos ou pais (a maioria dos autores de queixa nesse tribunais eram mulheres), 42 desobediência por parte das esposas ou filhos. O tribunal também ouvia denúncias contra o eventual feiticeiro ou bruxa que estivesse fazendo o gado adoecer ou estragando o queijo. Casos sérios de condenação por feitiçaria ou heresia eram raros no início do nosso período e, de qualquer modo, não eram julgados pelo tribunal eclesiástico paroquiano. Este só tinha competência para administrar penas que envolvessem a restauração do caráter do punido: assim, diziam respeito geralmente a castigos humilhantes por exemplo, ficar parado com uma placa pendurada no pescoço na saída da missa por várias semanas - ou multas pagas em dinheiro. A exceção era a excomunhão: punição de caráter praticamente irreversível e que vedava ao punido o acesso não só aos principais espaços de socialização, mas tornava sua palavra eminentemente suspeita (já que sua alma estava perdida, o que invalidava seus juramentos), impedia-o de assumir cargos oficiais, o casamento, o testamento e o enterro em solo consagrado. No fim das contas, portanto, a Igreja era uma instituição materialmente fundamental à manutenção da vida social no início de nosso período, e continuará assim até o final dele e posteriormente. Para entender seu papel nos turbilhonados eventos político-econômicos que estudaremos mais adiante, é preciso jamais perder de vista que a existência material de suas práticas de fundo religioso tinha na realidade social uma influência determinante. 42

Briggs et al., p. 32.

[59]

[Os monastérios]

Associados à expressão territorial da Igreja, havia os chamados "monastérios" ou "casas religiosas" - que eram senhorios eclesiásticos, como vimos acima. Por um lado, eram expressões eclesiásticas da posse direta da terra; por outro, eram instituições eclesiásticas de auxílio aos necessitados, uma prática enraizada na doutrina cristã. É preciso entender que, no início de nosso período - e, via de regra, na Europa medieval-, a prática religiosa da caridade não consistia apenas em um monte de palavras eventualmente concatenadas em ações pontuais e calculadas, mas numa atividade contínua da qual a vida das pessoas comuns dependia fundamentalmente. Nesse sentido, a função social precípua dos monastérios - além da subsistência dos monges que neles viviam - era cuidar de todos aqueles que estavam incapazes de trabalhar: idosos, órfãos, enfermos. Os monastérios ofereciam refeições, alojamento e cuidados médicos. No início de nosso período, começavam a multiplicar-se, ainda, as escolas nas quais se oferecia instrução básica. Ora, os monastérios realizavam seus serviços de assistência pela administração do excedente produtivo de que se apropriavam por meio do trabalho direto da terra, do arrendamento e, conforme o caso, do dízimo. Essa riqueza apropriada, sob a forma de víveres e de moeda, também tinha, ela mesma, funções sociais essenciais. Os depósitos de alimentos dos monastérios funcionavam como reservatórios para tempos de fome - colheitas ruins, alta dos preços etc. -, quando a comida era distribuída ou vendida a um preço reduzido ou, às vezes, pilhada pela população faminta e revoltada. E, numa época anterior às instituições bancárias, os próprios cofres dos monastérios também realizavam a função social fundamental (e semioficial) de financiar investimentos na produção rural da herdade e, eventualmente, da [60]

paróquia, emprestando dinheiro para pagamentos de arrendamentos, compra de sementes, alimentos e animais, pagamentos de trabalhadores etc. Os monastérios também funcionavam como sedes de sociedades religiosas compostas por pessoas comuns que realizavam obras de caridade em toda a extensão da paróquia, organizavam missas periódicas para os mortos, faziam a manutenção de capelas construídas por iniciativa laica, organizavam festividades comunitárias etc. Por intermédio de uma política de doações e homenagens, essas sociedades religiosas tinham interferência significativa na política aldeã (e também na urbana, como veremos), permitindo a expressão, a construção e o reconhecimento da hierarquia social local de prestígio e riqueza, _interferindo na nomeação para os conselhos aldeões e cargos oficiais paroquianos.

As cidades Vimos como a economia agrária inglesa do início de nosso período funcionava, em grande medida, pelos arrendamentos de terra pagos em dinheiro pelo trabalho assalariado. Uma forma de economia de subsistência que funciona com pagamento em dinheiro, venda de excedentes da produção agrícola e trabalho assalariado necessita de espaços permanentes de circulação, compra e venda de mercadorias e força de trabalho. Esses espaços eram as cidades. [Espaço comercial urbano e economia agrária]

O desenvolvimento urbano inglês esteve inicialmente ligado à demanda econômica criada pelas feiras e mercados periódicos. Estes multiplicaram-se entre os séculos XII e XIV, indicando a crescente mercadorização da sociedade. Na altura do século XV, entretanto, começam a diminuir em [61 l

número, 43 dando sinal do início de um processo de concentração de riqueza que desembocará na formação de uma classe mercantil especializada e de uma bem delimitada elite urbana. Ainda assim, na Inglaterra de 1485, as cidades de porte pequeno a médio controladas por essa elite - as market towns - continuavam inegavelmente associadas à economia agrária, usualmente atendendo a uma zona rural de mais ou menos 15 km de raio. 44 [Os conselhos citadinos]

É importante frisar que, no fim da Idade Média, a designa-

ção de "cidade" (town) não compreendia apenas uma forma de ocupação espacial - casas, ruas, muralhas etc. -, mas sobretudo uma delimitação jurídica: as cidades propriamente ditas eram aquelas que recebiam do monarca uma "carta de liberdades". Para obter essa carta de liberdades, a elite citadina se reunia e se "incorporava": pagava uma taxa para a Coroa, geralmente comprometendo-se a pagar um imposto real periódico e permanente. Esse pagamento assegurava a manutenção das "liberdades", ou seja, de prerrogativas que conferiam à corporação citadina ( town corporation) total autonomia diante das hierarquias aristocráticas e/ou eclesiásticas dos territórios circundantes. Assim, a incorporação ou a aquisição do estatuto de cidade permitia a existência de um conselho citadino autorizado a recolher impostos para a manutenção da cidade ( e o pagamento da taxa devida à Coroa!) e de um tribunal citadino com extensa competência jurídica sob jurisdição da lei comum. O conselho citadino era eleito pelos cidadãos, por mandados que podiam variar muito e até assumir caráter vitalício. Amparado na carta de liberdades, o conselho citadino podia chegar a ter atribui43 44

Dimmock, p. 129-30. Bucholz et ai., p. 17.

(62]

ções executivas bastante amplas: o controle da construção civil e pública (incluindo fortificação e defesa, em regiões de fronteira), a vigilância sanitária, a execução de sentenças penais. Isso quer dizer que o conselho citadino precisava, às vezes, empregar uma burocracia ou até mesmo uma (limitada) força armada pública com poder policial, recrutada entre os cidadãos. [O sentido da cidadania]

De fato, a atribuição de cidadania era a função fundamental do conselho citadino. Cidadãos não eram meramente os habitantes da cidade, mas aqueles que compravam do conselho o direito de operar economicamente na cidade sempre em um ou mais ramos especificados -, em troca do pagamento de imposto. Existiam, além disso, graus diferentes de cidadania: o grau mais alto- geralmente reservado ao grupo de indivíduos responsáveis pela aquisição da carta de liberdades - incluía, além do exercício de atividade econômica, o direito de votar para a escolha do conselho ou de candidatar-se em tais eleições; o mais baixo era, muitas vezes, uma cidadania de caráter temporário que permitia a um ator econômico operar na cidade por curto espaço de tempo ou por um único dia, no caso, por exemplo, de algum mercador que fosse participar de uma feira semanal, por exemplo. De todo modo, a atribuição de cidadania tendia a ser controlada e restringida pelos membros do conselho, visando garantir que a operação econômica dos cidadãos ocorreria com o mínimo de competição e com o máximo de vantagens. O conselho citadino tinha, portanto, uma função precípua de controle do privilégio econômico. Por causa disso, o ambiente político das cidades era intrinsecamente conflitivo. Para entender as nuances desse conflito, é preciso [63]

atentar para as diferentes operações econômicas desempenhadas na cidade, bem como para os setores sociais a elas associados. [Mercadores. Especialização agrícola. Crescimento das cidades]

Para começar, o desenvolvimento das cidades como espaço de comércio determinou que estivessem sob influência do setor social dos mercadores. Esse termo não descreve a atividade dos fazendeiros que esporadicamente dirigiam seus excedentes produtivos pessoalmente até a feira mais próxima, mas gente que vivia principalmente do comércio: os chamados "intermediários" (ou míddlemen), tão frequentemente vilipendiados por uma sociedade que ressentia a mediação do dinheiro e da mercadoria. A origem da atuação deles está no fato de que o espaço mais propício para a venda dos excedentes eventualmente ficava distante do local de produção, tornando oneroso para o fazendeiro deixar sua terra a fim de empreender pessoalmente seus negócios. Tal distância entre os mercados e os fazendeiros crescera consideravelmente antes de nosso período e continuaria a crescer ao longo dele, devido à especialização agrícola que vinha tendo lugar na Inglaterra. Onde há especialização agrícola regional - ou seja, sempre que determinada região se especializa em produzir um dos muitos produtos necessários à subsistência -, o excedente precisa deixar a região onde é produzido para ser comercializado. Ora, como vimos no início de nosso período, certa especialização já marcava a economia rural inglesa: aquela que separava as regiões de lavoura das regiões de atividade pastoril. Nestas últimas, a tendência era maximizar as terras de pasto, diminuindo as plantações de grãos ao mínimo. A produção sistemática de animais aí significava a necessidade de exportar esses animais, por um lado, e importar alimentos, por outro, o que podia envolver viagens longas. [64]

Ao mesmo tempo que o crescimento do setor mercantil, e portanto das cidades, é estimulado pela especialização econômica, o próprio crescimento das cidades cria uma demanda por alimentos que intensifica essa especialização econômica. Já no início de nosso período, algumas cidades haviam crescido tanto que a zona rural necessária para manter seus habitantes alimentados estendia-se por dezenas de quilômetros. [Manufatura. Guildas]

Ao lado do comércio, outra função típica das cidades no final do período medieval era a manufatura, que se desenvolve tanto mais quanto a produção e o comércio sistemático de excedentes agrícolas permitem a subsistência de uma população urbana desconectada da produção direta de alimentos. Como no resto da Europa, em 1485 a produção manufatureira inglesa encontrava-se majoritariamente sob controle de craft guilds ou gilds - as guildas ou corporações de ofício. As guildas funcionavam como sociedades fechadas que tinham autorização real para monopolizar a produção de determinado tipo de mercadoria. Assim, havia a guilda dos sapateiros, dos açougueiros, dos fabricantes de barris, dos tecelões, dos curtidores etc., e cada uma delas controlava quem podia produzir - e como deveria produzir - sapatos, carnes, barris etc. A produção ocorria em oficinas - inicialmente, de escala doméstica - presididas por um mestre artesão ou de ofício, o qual supervisionava um grupo pequeno de trabalhadores aprendizes. É importante ter em mente que a autonomia para abrir uma oficina e produzir uma mercadoria era prerrogativa reservada aos mestres de ofício: a cidade podia multar, expulsar ou punir de outras formas praticantes de ofício que não fossem licenciados pela guilda. Antes de poder abrir [65]

uma oficina e se tornar mestre, era preciso ser aceito na guilda como aprendiz e passar longos anos servindo essencialmente como mão de obra barata para um mestre até que considerações a respeito do número de produtores e demanda pelo produto, bem como a qualidade do trabalho, fizessem com que os mestres aceitassem e autorizassem a graduação do aprendiz ao estatuto de mestre. Internamente, as guildas eram geralmente regidas por um conselho eleito. E é importante observar, ainda, que os mercadores também tinham suas associações, que funcionavam de maneira análoga às guildas de ofício. As guildas de uma cidade eram, a princípio, não apenas independentes das guildas de outras cidades, mas adversárias comerciais delas, e guardavam zelosamente eventuais segredos técnicos que caracterizassem a confecção de seus produtos. Assim, os produtos manufaturados no final da Idade Média eram geralmente reconhecidos pela cidade de sua origem: por exemplo, o pano verde de Lincoln era o pano verde produzido pela única corporação de tecelões e tingidores de Lincoln. [Associações de jornaleiros. Segredos tecnológicos]

Como órgãos de controle da produção, as guildas eram associações de mestres de ofício. Os trabalhadores aprendizes - também chamados jornaleiros (journeymen), visto usualmente receberem pagamentos por dia de trabalho - não pertenciam à guilda de seus mestres, mas tinham suas próprias organizações. Ao contrário das corporações de ofício, as associações de jornaleiros podiam transcender os limites citadinos, provinciais e - no continente - até mesmo os territórios monárquicos. Às vezes designadas compagnonnages, tais associações interterritoriais promoviam intercâmbios, greves e pressão política sobre as corporações. [66]

Visto que não eram membros das guildas, mas entravam em contato com o processo de confecção dos produtos das guildas, os jornaleiros eram obrigados a jurar guardar os segredos de seus mestres, que, ademais, procuravam desencorajar ao máximo a migração de aprendizes. Contudo, há numerosas evidências de que, a despeito do poderio das corporações de ofício, sua capacidade de fazer valer seus regulamentos fora dos limites das cidades onde estavam sediadas era muito limitada. De fato, mesmo em suas próprias cidades, o poder numérico e associativo dos jornaleiros representou, muitas vezes, um empecilho definitivo para o exercício desenvolto do interesse das corporações. [Corporações citadinas. Conflito econômico-político]

Ê importante não confundir as corporações de ofício com as

corporações citadinas: como vimos, as primeiras eram os organismos políticos da autonomia urbana, órgãos de controle da produção manufatureira. A despeito dessa diferença institucional, contudo, havia uma coincidência entre os membros da corporação citadina e os membros das corporações de ofício: na medida em que as corporações citadinas eram constituídas pela elite urbana, e os membros dessa elite eram justamente os mestres de ofício - além dos mercadores-, é acertado dizer que, usualmente, os membros da corporação citadina - ou seja, os cidadãos plenos - seriam justamente os mestres das guildas. De fato, uma das importantes funções das associações de ofício e mercantis era a capacidade de coordenar recursos, ou seja, juntar dinheiro para realizar empreendimentos de maior monta, e um desses empreendimentos podia ser justamente a compra de uma carta de liberdades por membros de uma ou mais corporações de ofício que operassem em uma aldeia pertencente a uma herdade aristocrática ou eclesiástica. Quando um grupo de atores econômicos se juntava [67]

para comprar a carta de liberdades, esse ato fundante tendia a estender-se indefinidamente sobre a manutenção da cidade pela sua influência determinante no conselho citadino. Em torno do conselho citadino, e por meio da composição da corporação citadina, existia, desde a Idade Média, uma rivalidade econômica e política, de um lado, entre as associações de mercadores e, de outro, entre as corporações de ofício. Evidentemente, era interesse dos mercadores comerciar o mais livremente possível, transportando qualquer produto entre origens e destinos tais que lhes proporcionassem o maior lucro. Por outro lado, a princípio, às guildas interessava não apenas manter a produção sob seu controle exclusivo, mas também controlar, se não diretamente a distribuição de seus produtos, pelo menos as condições dessa distribuição. A expressão jurídica desse conflito era sobremaneira complexa, devido ao fato de que competências legais diferentes superpunham-se. Muitas vezes, para produzir e/ou comerciar com determinada cidade, era necessário interagir com diversos planos político-jurídicos diferentes: o conselho citadino, que conferia a cidadania; a guilda mercantil, que autorizava o comércio; a guilda de ofício, que autorizava a produção e tinha certa ingerência sobre a venda; o senhor local, que podia ter controle sobre a circulação de pessoas fora dos limites físicos da cidade; os tribunais citadinos e/ou de herdade, que podiam ser chamados para interferir caso houvesse conflito de jurisdição ou razão para apelação; os tribunais reais itinerantes, caso o conflito não envolvesse apenas atores econômicos individuais, mas corporações de cidades diferentes etc. É importante lembrar que a autoridade de cada uma dessas instâncias, no fim das contas, provinha da mesma fonte: o favor do rei, comprável pelas cartas de liberdade, monopólios manufatureiros, posse de herdade etc. [68]

[Guildas religiosas]

Em paralelo às guildas profissionais, mercantis e manufatureiras, existiam, ainda, as guildas religiosas. A princípio, tratava-se de associações que estavam, por um lado, ligadas à celebração de festas religiosas específicas no espaço urbano; por outro lado, muitas dessas guildas funcionavam, na prática, como associações profissionais - estando limitadas a mestres artesãos, mercadores ou jornaleiros de determinado ramo etc. - ou como associações de associações, cumprindo a função de concentração de recursos. Por meio da coleta periódica de doações de seus membros, as guildas religiosas podiam oferecer escolas para as crianças, pensão para os inválidos, cuidados em hospitais próprios, amparo às viúvas de membros falecidos, alojamento para viajantes e demais serviços comparáveis aos que os monastérios ofereciam no meio rural, além de possuírem sedes para socialização dos membros, oficinas e depósitos próprios. De fato, durante o nosso período, essas guildas tornaram-se os maiores proprietários de imóveis nas cidades e até mesmo no campo45 (em esquemas que veremos em detalhes mais adiante), os quais eram usados não apenas para prestar serviços aos membros, mas também como investimentos da guilda enquanto tal, que depois redistribuía aos membros os lucros auferidos com o emprego desses imóveis. As próprias festividades organizadas pelas guildas também desempenhavam papel importante na socialização urbana. As procissões de dias santos eram entrecortadas de performances religiosas e profanas, e a pompa e o ruído dessas celebrações funcionavam como exibição de prestígio e riqueza, tanto das corporações como um todo quanto de 45

Kermode, Jennifer. The greater towns, 1300-1540. In: Palliser, D.M. (Org.). The Cambridge urban history ofBritain. Vol. 1. 600-1540. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 459.

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membros individuais, o que influenciava nas eleições dos conselhos corporativos e citadinos.

A estrutura da sociedade inglesa e as origens do capitalismo Na imagem da sociedade inglesa que esboçamos neste capítulo, procuramos apresentar uma sociedade predominantemente agrária que, no entanto, vinha há séculos sendo permeada por vários elementos que já prenunciavam os desenvolvimentos posteriores. Já havia considerável grau de monetarização social, com o pagamento de arrendamentos de terra em dinheiro, e um incipiente mercado de alimentos, o qual possibilitava certo grau de desenvolvimento urbano. Ao mesmo tempo, a Coroa inglesa gozava de prerrogativas peculiares que a dotavam, em comparação com a maioria das monarquias europeias, de particular influência direta sobre a vida social. Como veremos nos capítulos seguintes, é a partir desses elementos que terá lugar o processo de ascensão do capitalismo e do Estado moderno. Ora, sempre que tratamos de processos, esbarramos na dificuldade teórica de descrever elementos e fenômenos que ao mesmo tempo perduram e se modificam. Por um lado, alguns dos termos que definem a forma social capitalista já estavam presentes na Inglaterra da Baixa Idade Média; 46 por outro lado, contudo, estamos convencidos de que é apenas no século XVI que a interconexão desses termos resulta inequivocamente no delineamento de uma sociedade propriamente capitalista. O fundamento dessa convicção - que tem 46

Um bom resumo sobre as principais posições no debate a respeito da periodização da ascensão do capitalismo, incluindo um enfrentamento das inumeráveis sutilezas metodológicas envolvidas, pode ser encontrado em Dimmock, op. cit., especialmente os Capítulos 1 e 7.

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a ver com o conceito de capitalismo que procuramos desenvolver - só ficará plenamente claro na conclusão deste estudo; mas podemos adiantar que a análise das transformações sociais de nosso período resultará num contraste entre a sociedade agrária e de subsistência que funcionalizava a produção de mercadorias, na Baixa Idade Média, e a sociedade produtora de mercadorias que relativizará a produção para a subsistência na modernidade. Assim, nos dois capítulos que se seguem, apresentaremos, por um lado, a intensificação dos processos de mercadorização e concentração de poder pela Coroa que descrevemos como estando enraizados no medievo. Por outro lado, veremos também como a intensificação desses processos resulta numa transformação de seu sentido social.

2

Transformações socioeconôm icas

A ascensão da manufatura rural [Origens da indústria de exportação de lã]

A indústria de tecidos à base de lã de ovelha voltada para a exportação existia na Inglaterra desde o século XII. É possível que as atividades dessa indústria tenham exercido papel importante na origem da peculiar monetarização das relações sociais no campo inglês: as trocas mercantis com o exterior e a necessidade de mover riqueza para realizar investimento comercial introduzem tanto uma oferta quanto uma demanda por moeda. 47 Ademais, a demanda de lã por parte dessa indústria foi determinante para o surgimento da especialização agrária pastoril. Nas regiões onde tal especialização se verificava, a terra destinada ao cultivo de alimentos havia sido, em certa medida, substituída pelo pasto de animais - o que exigia que os alimentos viessem de outro lugar, estimulando a produção de grãos para venda e o aparecimento de uma classe mercantil para transportar esses grãos etc. Inicialmente, a exportação inglesa de lã dependia prioritariamente da produção realizada nas cidades pelas guildas de tecelões. Os próprios camponeses, ou mercadores os "intermediários" -, realizavam o transporte da lã entre o campo e a cidade, vendendo-a para as guildas. Mercadores com autorização real especial realizavam o comércio com o continente europeu. Com o passar do tempo, com o processo econômico usual de acumulação e concentração 47

Hoyle, p. 311 ss.

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de riqueza, tendências econômicas específicas afetaram cada um dos setores sociais envolvidos. No início do século XVI, contudo, ao lado da manufatura citadina, controlada pelas guildas, crescia uma manufatura rural, controlada pelos mercadores. O desenvolvimento dessa manufatura rural será determinante para a economia inglesa em nosso período, apresentando extensas implicações que vieram a afetar todos os setores da população inglesa. [Limites da produção de tecido pelas corporações de ofício]

Para entender o surgimento da manufatura rural, suas peculiaridades e consequências, é preciso compará-la com a manufatura urbana e, para tanto, precisamos atentar para o modo de funcionamento das corporações de ofício. O primeiro fato a seu respeito que precisamos levar em conta é que, devido ao modo de funcionar das guildas, a expansão dos negócios - o aumento do número de produtores ou da produtividade - era, para os mestres tecelões, uma faca de dois gumes. Com o limite no número de trabalhadores aprendizes que cada mestre era capaz de supervisionar, o aumento da produção dependia, em última análise, do aumento do número de mestres. Entretanto, para os mestres que controlavam as guildas - detentores da prerrogativa de conferir o título de mestre, e com ele o privilégio de produzir - a inclusão de novos mestres significava o aumento da oferta do produto da guilda e, potencialmente, a redução do preço do produto. Assim, as corporações de ofício operavam, tendencialmente, no sentido de expandir a produção o mínimo possível, e o setor social dos mestres de ofício, como um todo, tendia a não investir a riqueza acumulada na expansão da produção, mas no aumento do seu nível de vida, consumindo objetos de luxo, construindo casas, se alimentando mais abundantemente etc. Em meados [7 4]

do século XV, isso já acarretava um crescimento historicamente perceptível da desigualdade econômica urbana, com o aumento relativo não apenas do número de trabalhadores jornaleiros, mas também do de desempregados, 48 de um lado, e a formação de uma casta reduzida de cidadãos detentores de riqueza ostentosa. [Os mercadores e a manufatura doméstica rural]

Para a classe dos mercadores, contudo, o sentido da acumulação e do crescimento dos negócios pode ter sentido diferente. Embora, por um lado, suas associações também tendessem ao controle e à limitação, mercadores individuais estavam desprovidos da limitação espacial que marcava o monopólio produtivo das guildas de artesãos, confinadas a produzir única e exclusivamente nos limites de uma cidade. Ademais, se a produção no espaço urbano estava geralmente regrada e condicionada à participação no monopólio da guilda, não havia qualquer limitação para atividades manufatureiras no campo. Assim, desde a Idade Média, os mercadores tinham estabelecido com os camponeses mais pobres - sobretudo os cottagers já descritos - relações de produção manufatureira doméstica baseada no chamado "sistema putting-out", originário dos subúrbios miseráveis de Londres:49 o mercador vendia para o camponês uma quantidade de lã crua e se comprometia a comprar tecido de lã em determinada quantidade. O camponês realizava a transformação da lã em sua casa, com ferramentas que possuía. Uma peculiaridade do putting-out era que, o mais das vezes, devido ao baixo grau de monetarização da sociedade de então, o camponês só podia adquirir a lã crua, matéria-prima de seu trabalho, pegando dinheiro emprestado. 48 49

Clay, II, p. 1O. Clay, II, p. 11.

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Devido à total ausência de instituições de crédito, esse empréstimo era geralmente contratado com o próprio mercador, de quem, então, o camponês ficava duplamente dependente: tanto porque devia-lhe dinheiro quanto porque precisava vender-lhe o produto de seu trabalho de modo a poder pagar-lhe de volta. Desenvolvendo-se no meio rural, a manufatura doméstica não era regulada pelas guildas. Dava-se ao largo das organizações dos jornaleiros, e foi impulsionada pela capacidade dos mercadores de reinvestir a riqueza acumulada no comércio exterior da lã no aumento da produção. Ê importante entender que essa capacidade de reinvestimento, a partir de certo ponto, tornou-se significativa, especialmente devido ao fato de que eram poucos os mercadores realizando o comércio exterior: essa atividade dependia de autorização explícita da Coroa. Isso significa que o tecido de lã produzido na Inglaterra acabava passando por poucos intermediários, e a riqueza acumulada com o comércio ficava concentrada em poucas mãos, o que elevava a capacidade de reinvestimento. [A expansão da manufatura rural, o trabalho assalariado e a terra]

O investimento mercantil na expansão da produção de tecidos de lã tinha dois efeitos econômicos imediatos: 1. O primeiro era o aumento da demanda de trabalho doméstico. Ao longo do século XVI, esse aumento significará, de início, uma reorientação do trabalho rural. Dependendo do preço da lã crua e do preço do tecido de lã, em comparação com o preço dos alimentos, poderia ser mais vantajoso para um pequeno camponês trabalhar na terra ou na manufatura, de modo a conseguir dinheiro para pagar suas obrigações de posse de terra. [7 6]

2. Entretanto, a pressão pelo aumento da produção de tecidos de lã também aumentava a demanda por matéria-prima, a lã crua. O aumento da produção de lã crua dependia, fundamentalmente, do aumento da extensão da terras totais disponíveis para o pasto dos rebanhos de ovelhas. Assim, os investimentos no aumento da produção de tecidos de lã acabavam significando uma pressão econômica no sentido da conversão das terras aráveis em terras pastoris. Essa pressão, por sua vez, resultava em pressão para uma reconfiguração na distribuição de terras e da população: onde várias famílias trabalhavam na produção de grãos, umas poucas eram necessárias para o pastoreio de ovelhas. Isso significa que, tendencialmente, uma parcela maior de camponeses não poderia mais trabalhar diretamente na agricultura de subsistência, o que tornava uma parcela maior da população rural disponível para o trabalho na indústria doméstica da lã. No que se segue, analisaremos detidamente os pontos fundamentais desse processo circular.

A concentração e a mercadorização da terra Como já indicamos, na alvorada da era moderna qualquer pressão econômica para uma reconfiguração na distribuição de terras esbarrava no fato de que a maior parte da população camponesa tinha com a terra uma relação de subsistência. Havia uma expressão legal para tal relação: os esquemas de posse de terra que, com certas modificações, remontavam às origens da sociedade medieval. Tais esquemas ainda estruturavam fundamentalmente toda a produção na alvorada do século XVI, e eram em parte incompatíveis com a conversão da terra em mercadoria e em fator de produção de [77]

mercadorias. Assim, para avançarmos na discussão dos impactos do desenvolvimento da indústria de lã, precisaremos voltar ao tema da posse de terra, dedicando-lhe, dessa vez, um pouco mais de atenção. [Esquemas de posse de terra]

Devido à relação entre a posse de terra e o costume, os esquemas de posse de terra podiam variar muito regionalmente. Se somarmos a isso o fato de que várias sutilezas do direito feudal permaneciam vivas no início de nosso período, torna-se impossível fornecer, em espaço razoável, um relato completo do tema. Assim, no que se segue, apresentaremos quatro modalidades caracteristicamente diferentes que funcionarão como exemplos paradigmáticos das formas como os camponeses podiam ter posse de terra no início de nosso período, tanto em senhorios aristocráticos quanto em senhorios eclesiásticos: 1. Em primeiro lugar, havia a "posse por costume herdável" ( copyhold of inheritance), que empregamos como exemplo típico da posse de terra no Capítulo 1. Tratava-se de uma forma de posse de terra mais antiga, praticada geralmente nas regiões em que vigia a agricultura mista, sobretudo no leste da Inglaterra. Na posse por costume herdável, o camponês geralmente detinha a terra por um número de anos e pagava uma taxa de acesso - entry fine- para tomar posse da terra, bem como um aluguel anual. Os valores da taxa inicial e do aluguel eram fixados pelo costume da herdade, que podia apontar para valores prefixados desde tempos imemoriais ou indicar tão somente que os valores deveriam ser "razoáveis". Ao contrário do que pode parecer, o significado desse termo era bastante preciso: indicava que a taxa de acesso não devia ser tão alta a ponto de impedir a continuação da posse, o que tinha a ver com seu caráter "herdável". Mesmo depois de passada a vigência da posse, o camponês [78]

- ou um herdeiro seu - tinha a expectativa de poder renová-la, pagando novamente a taxa de acesso. Caso o senhor, por algum motivo, se negasse a renovar a posse por costume com uma família determinada, depois de expirado o prazo da posse, essa família podia recorrer aos tribunais de lei comum, que tendiam a defender o camponês. 50 Assim, a posse por costume herdável conferia a uma família camponesa a expectativa de posse de terra por tempo indefinido. 2. No oeste da Inglaterra, existia uma variação da posse por costume, sem direito de herança e sem os limites "razoáveis" para as taxas de acesso. Assim, se era verdade que, onde vigia a posse por costume com direito à herança, a família camponesa podia como que contar indefinidamente com a posse da terra que ocupava - e o senhor com o aluguel e a taxa de acesso fixos -, o mesmo não valia para as regiões onde o costume era a posse sem direito à herança. Aí, a vida dos camponeses era consideravelmente mais instável, e os senhores podiam variar as taxas de acesso conforme lhes aprouvesse. As parcelas de terra destinadas ao arrendamento sob o regime da posse por costume - tanto herdável quanto não herdável - estavam fixadas pelo costume da herdade. Eram terras que não pertenciam ao domínio propriamente dito, consistindo na parte da herdade colocada aos cuidados do senhor pelo rei para provimento de seus súditos. Desse modo, o senhor não podia dispor delas como quisesse, mas ti50

Hoyle, p. 319. Os contratos de copyhold derivam de documentos da Alta Idade Média nos quais eram repetidamente gravadas as obrigações de trabalho feudal (Hilton, p. 65). Dado o caráter relativamente vantajoso dos contratos de copyhold em nosso período, parece ter ocorrido uma curiosa transformação segundo a qual documentos de obrigação deram lugar a documentos de prerrogativa. Essa transformação nos diz algo a respeito do caráter e do resultado das lutas de classe que separam a Alta e a Baixa Idade Média inglesa.

[ 79]

nha que disponibilizá-las para arrendamento em termos sempre praticamente idênticos, lavrados no livro do tribunal da herdade. Contudo, os detentores de um título de posse por costume podiam vender a posse para o senhor, o que resultava na incorporação da posse ao domínio do senhor. Isso significava que, potencialmente, o senhor podia aumentar as terras de seus domínios. Terras adquiridas assim - como todas as terras de domínio - podiam ser alugadas pelo senhor por meio de outros esquemas de posse que a posse por costume. 3. Empregaremos a expressão "posse por locação" (leaseholà) para designar conjuntamente uma variedade de esquemas de posse de terra que envolviam terras de domínio e, portanto, não eram regidos pelo costume, mas - conforme se dizia na época - pela "vontade do senhor". A locação podia ser por um período variável - fossem anos ou meses -, o que acarretava, para o camponês, uma existência extremamente instável, se comparada com os esquemas de posse por costume. A locação envolvia terra que já era de posse do senhor, posse essa a que tinha direito por concessão real da herdade. Por causa disso, a vontade do rei não valia nessas terras, de modo que a posse por locação consistia simplesmente num acordo entre o locatário e o senhor, fora da jurisdição da lei comum. Assim, não havia qualquer direito de herança, e o senhor tinha total liberdade para expulsar o camponês quando bem entendesse. Embora não fosse de bom-tom expulsar um locatário antes do final do termo previsto no ato de posse, caso isso acontecesse o camponês só poderia apelar ao tribunal da herdade, que era presidido pelo próprio senhor. Assim, a posse por locação não conferia nenhuma segurança ao camponês. 4. O senhor podia, ainda, vender seu direito de posse sobre parte da terra de domínio. Aquele que comprasse esse direito não se tornava senhor, mas adquiria o que designa[80]

remos pelo termo "posse livre" (freehold) e que se assemelhava bastante ao que hoje chamaríamos de propriedade privada da terra. A posse livre estava regida pela lei comum - afinal, o que o senhor vendia era uma parte da concessão de terra que lhe havia sido feita pelo rei, e a relação direta com o rei é que demarcava a jurisdição da lei comum. Ademais, seu detentor, embora devesse imposto ao rei, não tinha que pagar aluguel a ninguém, podia designar herdeiros e vender sua posse conforme lhe aprouvesse. Podia trabalhar diretamente a terra, administrando-a pessoalmente, ou fracioná-la e arrendá-la. Neste último caso, como a terra estivesse fora do senhorio e da herdade, estava fora, também, da vigência de qualquer costume, de modo que a posse dos arrendatários se daria por esquemas idênticos à posse por locação. A posse livre era bastante vantajosa para o detentor de terra: salvo sua morte sem testamento ou alguma calamidade política que justificasse a desapropriação pelo rei, a terra era sua e de sua família indefinidamente. Pela mesma razão, o detentor de terra por posse livre que resolvesse alugar parte de sua terra fazia-o por livre e espontânea vontade, sem qualquer coerção do costume, e num contrato direto com o locatário. Isso significa que os termos desse contrato podiam variar irrestritamente, o que podia ser bastante desvantajoso para o locatário, que, em nosso período, ficaria à mercê da inflação e das oscilações do mercado de trabalho e de terra. Por outro lado, a quebra dos termos desses contratos podia ser reclamada num tribunal de lei comum. Imediatamente antes da conquista normanda, estima-se que um quarto dos camponeses tinha posse livre da terra. 51 Essa proporção diminuiu consideravelmente, contudo, com a dissolução e a recriação da nobreza inglesa, discutida acima. 51

Comninel, p. 29.

[81

l

[Posse de terra e pressão econômica]

É preciso perceber como esses diferentes esquemas de posse de terra constituíam limites jurídicos para a reação de camponeses e senhores às pressões econômicas oriundas do aumento da demanda por lã. Tomemos, por exemplo, um senhor - aristocrata ou eclesiástico, tanto faz - interessado em aumentar seus rebanhos, de modo a responder à demanda por lã. A princípio, ele poderia fazer isso em suas terras de domínio: nas terras livres, bastava emitir as ordens necessárias para seus administradores e trabalhadores assalariados; nas terras arrendadas, poderia esperar o fim dos contratos de arrendamento ou, caso fosse politicamente poderoso, podia simplesmente expulsar os camponeses da terra. Para expandir o pasto para além do domínio, contudo, ele precisaria interferir na posse de terra dos camponeses da herdade. Onde vigia a posse por locação, entraria em jogo a questão contábil quanto a valer mais a pena receber o aluguel em dinheiro ou ocupar a terra com rebanhos e vender a lã. Conforme fosse, o senhor precisaria unicamente esperar que o período de posse de determinada parcela de terra chegasse ao fim para reincorporá-la ao domínio e estabelecer pastos em toda a sua extensão, se assim quisesse. Onde vigia a posse por costume, entretanto, o ato real de concessão de terras para o senhor previa que as parcelas permanecessem externas ao domínio e fossem continuamente arrendadas. Mesmo nesses casos, entretanto, nem tudo estava perdido para o senhor resolvido a participar da lucrativa produção de lã, especialmente onde a posse por costume se dava sem direito à herança. Aí, o senhor podia simplesmente aumentar indefinidamente a taxa de acesso. Sempre que não houvesse quem arrendasse nas condições oferecidas, o senhor podia, na prática, fazer uso das parcelas regidas pelo costume como se fossem terras de domínio: [82]

embora não houvesse previsão legal para tal apropriação, tampouco havia legislação contra ela, visto que, em épocas históricas anteriores, a ideia de terra fértil desocupada estava atrelada a catástrofes demográficas - mortandade epidêmica e falta de gente para trabalhar a terra -, e não a manobras econômicas para manter as pessoas fora da terra. [O caráter de classe da conversão de terra arável em pastoril]

Assim, a demanda inicial por lã, provocada pela expansão da indústria rural, impulsionada pelo aumento dos investimentos por parte de mercadores, resulta numa tendência dos senhores a converter a terra arável em terra pastoril. É importante enfatizar que, quando dizemos "senhores", estamos nos referindo sobretudo a membros da gentry, que, no século XVI, foram os principais atores das transformações econômicas no mundo rural de que estamos tratando. O engajamento na administração de cunho comercial dependia da presença do senhor em suas terras, algo bastante raro entre a alta nobreza, que passava quase todo o seu tempo na Corte, defendendo seu favor político junto ao monarca. Ademais, a concentração de riquezas nas mãos da alta nobreza alçava-a a outro grau de participação na mercadorização da sociedade inglesa: por exemplo, como financistas, administradores e detentores de privilégios comerciais. O caso da gentry era diferente. O sucesso ou o fracasso de uma linhagem de pequenos senhores dependia do sucesso ou fracasso da administração da herdade. E o exercício das prerrogativas associadas à sede da herdade imbuía a gentry como um todo de uma intimidade com os negócios diários das grandes propriedades de terra. Ademais, seu papel tradicional na burocracia regional (o qual teremos mais ocasião de discutir no Capítulo 3) dava à pequena nobreza acesso privilegiado à dimensão financeirizada da vida social. Final[83]

mente, a rígida hierarquia interna da aristocracia inglesa e sua dependência da boa vontade do monarca faziam com que o empreendimento comercial se oferecesse como o único caminho aberto para a ascensão socioeconômica do gentleman ambicioso. [Resultados imediatos da conversão de terra arável em pastoril]

Ora, a conversão da terra arável em pastoril ocasionava uma redução na produção de alimentos, ou seja, uma redução na oferta de alimentos, o que redundava em aumento do preço. Em segundo lugar, visto que os camponeses que outrora praticavam agricultura de subsistência nessas terras não mais poderiam fazê-lo, a conversão de terra arável em terra pastoril também significava aumento da oferta de mão de obra disponível para o trabalho assalariado - e, portanto, tendencialmente, a redução dos salários 52 - e aumento da demanda comercial por alimentos e, portanto, aumento no preço dos alimentos. Tratava-se, no fim das contas, de um impulso para o aprofundamento da especialização regional que já vinha tendo lugar na Inglaterra havia séculos, mas que, com o incremento da capacidade de investimento dos mercadores, ocorreria de modo cada vez mais célere. Enquanto as regiões marcadas pela posse por costume sem herança e por domínios extensos realizavam a conversão para a terra pastoril, as regiões marcadas pela posse porcostume com herança fixaram-se na agricultura mista e na produção de grãos. Porém, como veremos, mesmo essas regiões experimentarão tendências à destruição da posse costumeira e da privatização da terra.

52

Há evidências de que, ao longo do século XVI, os salários reais de trabalhadores agrícolas e do setor da construção urbana caíram, respectivamente, 44% e 38% (Clay, II, p. 28).

[84]

[Especialização regional ➔ mercado de alimentos ➔ escassez e alta dos preços]

A especialização regional avança em paralelo ao desenvolvimento de um mercado de alimentos. Mais uma vez, estamos diante de fatores econômicos que se condicionam e se reforçam mutuamente. A conversão de terra arável em terra pastoril só é possível porque já existe a capacidade de fazer circular alimentos, sob a forma de mercadorias, por um amplo território. Tal capacidade depende da existência de uma classe mercantil no sentido próprio do termo: gente cuja atividade econômica principal é comprar alimentos aqui e vender acolá. O desenvolvimento de um mercado de alimentos, ademais, é condicionado pelo aumento da produção de alimentos nas terras aráveis. De fato, sem aumento, não apenas na produção, mas na produtividade da terra, é impossível que os níveis populacionais sejam mantidos, como foram, ao mesmo tempo em que tem lugar uma redução da extensão de terra dedicada à produção de alimentos. Ao mesmo tempo, sabemos que, na Inglaterra das primeiras décadas do século XVI, ocorreu aumento considerável do preço dos alimentos, ao lado de escassez crônica que produziu alarme entre os governantes e revolta entre os camponeses. O consenso historiográfico é que o crescimento da população e a diminuição relativa da terra arável somaram-se a um aumento insuficiente da produtividade da terra para produzir essa situação. No entanto, num momento em que o mercado de alimentos ainda está se consolidando, a escassez de alimentos não significa necessariamente um desequilíbrio entre a população e a produção, mas envolve, também, limitações da própria capacidade distributiva da classe mercantil. Ademais, a expansão de um mercado de alimentos de longo alcance tem, em si mesma e por si só, impacto no preço dos alimentos: a produção e o consumo [85]

regional dos alimentos funcionavam em torno da demanda, da produção e da população locais. A partir do momento em que surge uma demanda de escala nacional, 53 impulsionada pela especialização regional, o escoamento dessa produção para outras regiões faz o preço dos alimentos disparar. Todos esses fatores conjuntamente fizeram com que o preço dos alimentos quadruplicasse ao longo do século XVI5 4 - um aumento realmente trágico se considerarmos que, na Idade Média, mesmo diante de altas de preço momentâneas em resposta a colheitas ruins etc., os preços tendiam a se manter estáveis por décadas a fio. [Alta do preço dos alimentos: falências]

O aumento dos preços dos alimentos tinha efeitos diversos sobre os diferentes setores sociais. Como afirmamos, a grande maioria da população inglesa de nosso período vivia de uma agricultura de pequeno porte voltada para a subsistência. Contudo, subsistência não quer dizer autonomia: fatores tão diversos quanto uma estação chuvosa demais, uma praga difícil de conter etc. podiam tornar o camponês incapaz de produzir o suficiente para a manutenção de sua família, obrigando-o a recorrer ao mercado de alimentos. Ademais, um aumento no preço dos alimentos podia combinar-se tragicamente a um aumento no aluguel ou na taxa de acesso à terra. Nesses casos, o pequeno agricultor precisava lançar mão de um malabarismo contábil que sopesasse ao mesmo tempo o valor das obrigações a serem pagas em moeda e o valor de mercado dos alimentos. Se fosse obrigado a vender 53

54

Nosso emprego do termo "nacional" procura apontar unicamente para a dimensão totalizada do território inglês, em oposição à fragmentação regional e local em senhorios. Portanto, não está implicada aí qualquer conotação étnica, tal como a que o termo assumirá na retórica política da virada do século XIX para o XX. Bucholz et ai., p. 153.

(86]

uma parte maior de sua produção do que o suficiente para sua manutenção, precisaria endividar-se para comprar mais comida; se usasse o dinheiro para pagar as obrigações, poderia acabar tendo que adquirir alimentos caros, recorrendo, novamente, a empréstimos. Na maioria das vezes, o resultado da alta dos preços dos alimentos, para o pequeno produtor que se relacionava apenas esporadicamente com o mercado, era a ruína. 55 Isso porque, embora a alta dos preços dos alimentos permitisse um ganho maior com a venda de alimentos, a produção de excedentes era apenas esporádica, enquanto a necessidade de comer e pagar o aluguel era permanente. A escassez comercial de alimentos significava que épocas de colheitas ruins, em que os preços dos alimentos usualmente já aumentavam, seriam experimentadas por grande parte da população como financeiramente problemáticas e potencialmente fatais. [Mercadorização da terra ➔ aumento da concentração de terras]

Ora, a falência dos pequenos camponeses significava que o senhor poderia dispor de ainda mais parcelas para a conversão em terra pastoril. Assim, estamos diante de um processo cíclico. Para expandir a exportação de tecidos de lã, evitando a regulação urbana das guildas, os mercadores intensificam os investimentos na manufatura doméstica rural. Isso acarreta aumento da demanda por lã, o que constitui um estímulo para a conversão de terras aráveis em terras pastoris pelos senhores, com o aumento de seus domínios quando possível. Aquela conversão resulta na especialização regional que divide grande parte do mundo rural inglês entre áreas de produção de alimentos e áreas de produção de lã. A especialização regional estimula o crescimento do mercado de alimentos, ao mesmo tempo em que a produção de alimentos diminui. 55

Overton, p. l 9ss.

[8 7]

O resultado é o aumento do preço dos alimentos, o qual tem impacto negativo sobre a economia de subsistência dos pequenos camponeses. O endividamento e a falência crônica desses pequenos camponeses liberam mais terra para a conversão de arável em pastoril, realimentando o processo de concentração de terras e alta dos preços dos alimentos. [Os

yeomen como agentes da concentração de terras]

É importante observar, contudo, que membros da gentry não foram os únicos agentes da concentração de terras: os yeomen, camponeses detentores de extensões de terra maiores que a média, tiveram importante papel nesse processo. Ao contrário dos pequenos camponeses, os yeomen que atuavam em zonas aráveis produziam excedentes agrícolas sistematicamente e, portanto, estavam em posição de beneficiar-se da alta do preço dos alimentos. Muitos tornaram-se, ao lado dos senhores, importantes fornecedores para o comércio nacional de alimentos, e alguns até ingressaram nesse comércio pessoalmente, dirigindo operações mercantis. Nas zonas pastoris, os yeomen, muitas vezes, possuíam riqueza suficiente para pagar os preços altos das taxas de acesso à terra, assumindo os arrendamentos no lugar dos pequenos camponeses e acumulando terras por meio de títulos de posse. No final do nosso período, alguns yeomen chegaram a ter posse de terras que, no século XVI, eram ocupadas por até quinze famílias. 56 [Concentração de terras e cercamento dos campos; destruição dos recursos comuns]

Os contemporâneos referiam-se às práticas relacionadas à acumulação de terra usando dois termos, às vezes, intercam56

Hindle, Steve. The state and social change in early modern England, 15501640. New York: Palgrave, 2002, p. 47.

[88]

biáveis: "engrossment" - termo que, nesse contexto, pode ser traduzido por "açambarcamento" - e "enclosure", "cercamento': Ambos são de emprego consagrado na historiografia, embora haja controvérsias sobre seu sentido preciso e especificidades. 57 Empregaremos a expressão "concentração de terra" como sinônimo do processo mais amplo que, conforme nos parece, era designado engrossmentpelos contemporâneos, e falaremos de "cercamento dos campos" quando o que estiver em questão for algo mais específico: uma alteração na posse de terra, frequentemente (mas não exclusivamente) ligada à concentração de terra e à conversão de arável em pastoril, e que envolvia a transformação da terra comum em terra de uso privado. Tal transformação tinha lugar sobretudo em três situações: 1. quando a concentração de terra resultava da venda de um título de posse por costume, e a terra era incorporada ao domínio; 2. quando o senhor ocupava uma terra deixada vaga por arrendatários que não podiam mais pagar suas obrigações; 3. quando tinham lugar situações análogas envolvendo não um senhor, mas um yeoman. Dependendo da extensão das parcelas que caíam sob controle do "açambarcador", ele poderia erguer cercas para separar das terras comuns aquelas de que passaria a fazer uso privado, o que resultava na inviabilização das formas de convivência e satisfação de necessidades ligadas às liberdades e aos recursos e trabalho em comum. Afinal, como vimos, as garantias de emprego das terras comuns parasatisfação direta de necessidades pelos camponeses estavam 57

Comparar Wordie, p. 484, com Comninel, p. 31, e, ainda, o sentido claramente físico que o termo assume em Thirsk, op. cit.

[89]

ligadas à posse de terra por costume. Parcelas de terra incorporadas ao domínio estavam sujeitas inteiramente à "vontade do senhor", e seu arrendamento passava a ser regido pelo sistema da posse por locação descrito acima. Ademais, existiam sutilezas jurídicas envolvidas nos títulos de posse por costume que podiam ser exploradas por senhores e yeomen que adquirissem tais títulos. Em primeiro lugar, como aquelas posses envolviam usufruto de bosque e/ ou pasto, era possível afirmar que sua aquisição dava direito não apenas a um pedaço de terra arável do campo comum, mas também a um pedaço do bosque e do pasto, os quais eram, então, igualmente cercados. Em segundo lugar, como as liberdades, às vezes, diziam respeito ao usufruto de recursos especificamente ligados a formas de vegetação do bosque, a destruição dessa vegetação abolia, na prática, a existência de uma liberdade: a liberdade de colher galhos caídos só existia enquanto existissem galhos para cair; se a floresta fosse derrubada, o direito era destruído; de forma análoga, o direito a caçar nos pântanos deixava de existir se os pântanos fossem drenados. 58 Não foram poucos os senhores que lançaram mão desse recurso de transformação ambiental para se verem livres mais rapidamente das posses por costume em suas herdades. É verdade que, nesses casos, os camponeses podiam apelar aos tribunais reais contra a destruição dos bosques, e até podiam levantar-se contra o senhor, lutando com as armas de que dispusessem para impedir fisicamente a destruição de suas liberdades. A drenagem dos pântanos no leste e no sudeste da Inglaterra causou significativas convulsões sociais. Vitórias ocasionais foram alcançadas pelos camponeses de uma forma e de outra, porém foram apenas ocasionais, como veremos. 58

Hindle, p. 44.

[90]

Finalmente, não apenas os campos comuns e os bosques, mas também as próprias aldeias, como espaço de socialização e satisfação de necessidades por meio de espaços e trabalho comunais, foram diretamente atacadas pela concentração de terras. Tratou-se, em verdade, de um processo de alcance e profundidade alarmantes, que afetavam não algumas poucas parcelas de terra, mas vilarejos inteiros: sabemos que, em certas regiões da Inglaterra, entre 1450 e 1600, uma entre cada seis aldeias foi despovoada, suas terras privatizadas e tragadas pelas cercas. 59 O processo de cercamento se retroalimentava exponencialmente: o sistema dos campos comuns dependia de uma extensão de terra mínima para que a agricultura mista fosse realmente viável: afinal, dependia de uma correspondência entre a extensão dos pastos e dos rebanhos, e as de terras a serem adubadas e cultivadas etc. Depois que certa parte dos campos comuns era cercada, sua eficiência começava a decair, o que acabava forçando os aldeões remanescentes a venderem suas posses de terra também.60 O problema foi tão grave que, na última década do século XV, a Coroa preocupava-se com o fato de que adespopulação causada pelo açambarcamento de terras poderia deixar a Inglaterra vulnerável a uma ocupação militar." 1

A Reforma Anglicana Um elemento indispensável para a compreensão das transformações socioeconômicas pelas quais passa a Inglaterra na alvorada da modernidade é o complexo tema da chamada Reforma Inglesa ou Anglicana. Trata-se do processo de rompimento das instituições eclesiásticas inglesas com a Igreja 59 60

61

Clay, I, p. 76. Sobre despovoamento no século XV, cf. Dimmock, p. 141. Overton, p. 158. Clay, I, p. 67.

[ 91 l

católica, acarretando a dissolução das sociedades religiosas e monastérios e a disponibilização de enorme quantidade de terras para aplacar a demanda provocada pela mercadorização. Ademais, por meio de um instrumento parlamentar o Ato de Supremacia, editado em sua primeira versão em 1534 -, o monarca inglês foi transformado em chefe supremo de uma Igreja anglicana autônoma e independente frente ao papado romano. No que se segue, analisaremos as origens e as consequências econômicas da Reforma Anglicana, deixando a análise de seu sentido político para o Capítulo 3. [Diferença em face da Reforma Protestante continental]

Logo de início, é importante deixar claro que, apesar de a designação usual sugerir uma analogia com a chamada Reforma Protestante que vinha tendo lugar no continente europeu mais ou menos na mesma época, o processo inglês tem, em nosso período, muito pouca semelhança com o movimento desencadeado por Zwingli, Lutero e Calvino. Se, por um lado, a Reforma Inglesa envolve esforços de reformulação doutrinária, acompanhados por experimentos de pensamento político, tais esforços, por outro lado, foram comparativamente tímidos e pontuais, 62 às vezes aproximando-se, mas outras vezes distanciando-se da teologia do protestantismo continental. Adernais, como acontecimento social e político, a Reforma Inglesa foi substancialmente diferente do processo suíço e alemão. Enquanto este teve o caráter de movimento social deslanchado na ausência de 62

É verdade que havia, dentro da elite intelectual, grupos restritos que, em conexão com o processo da Reforma Anglicana, manifestavam-se politicamente em termos religiosos (cf. Gunther, K.; Shagan, E. Protestant radicalism and political thought in the reign of Henry VIII. In: Pasta and Present, n. 194, Feb. 2007, p. 35-74). Em nosso período, contudo, tais grupos não chegaram a ter expressão social significativa.

[92]

um poder central desenvolvido ou em conflito explícito com esse poder central, na Inglaterra, em contraste, a reforma nasce como obra do Estado monárquico e se desenvolve inicialmente como função e expressão da centralização de poder que marca aquele período. 63 [Pouca importância da motivação doutrinária]

Nesse sentido, é preciso entender que, no impulso monárquico de reforma religiosa, as questões de fé funcionaram como apenas um dentre tantos outros fatores - mesmo porque há indícios significativos de que existia pouquíssima unicidade doutrinária na prática da Igreja inglesa no século XVI. 64 A crença e a prática religiosa das pessoas comuns eram, de fato, indiferentes às sutilezas da doutrina católica (seria Maria tecnicamente virgem, seria Jesus filho de Deus no sentido literal ou no sentido figurado, qual seria a natureza metafísica da transformação do vinho em sangue? Etc.). O inglês ordinário tinha na Igreja romana uma das instituições de referência para a organização da sua vida social; entretanto, não estava usualmente preocupado com as questões teológicas de seu tempo. Se podemos dizer que o catolicismo tinha enorme penetração cultural e grande diversi63

64

É verdade que desenvolvimentos ulteriores - em especial, o movimento

puritano, que começa a conformar-se no reinado de Elizabeth - colocarão em conflito a Coroa e o elemento social oligárquico - a pequena nobreza e a burguesia - que mais se beneficiou do impulso inicial da Reforma Inglesa. Porém, esse conflito só eclodirá realmente no período seguinte: com a maturação do puritanismo, aparecerá na Inglaterra um legítimo movimento social protestante, permeando diversos setores sociais, agindo de forma autônoma frente ao maquinário estatal, combinando intimamente posturas políticas e variações da teologia calvinista. Então, os problemas religiosos virão temperar as turbulências políticas e econômicas que resultarão na guerra civil. Bucholz e Key, p. 70.

[93]

dade regional, isso não se devia à experiência intelectual da doutrina, que de qualquer maneira era inacessível para uma população amplamente analfabeta, mas devido a uma ancestral tradição oral que deitava raízes até o paganismo e o cristianismo primitivo. As questões de doutrina interessavam a grupos sociais reduzidos e específicos: para começar, o próprio rei Henrique VIII que, antes de se converter em apóstata, havia escrito uma refutação de Martinho Lutero. E, para além dos próprios eclesiásticos e professores de teologia, havia ainda figuras da elite intelectual, que era também a elite comercial, baseada sobretudo em Londres, e para quem a proximidade com o poder permitia vivenciar as questões teológicas em conexão íntima com os problemas da organização da Igreja e do Estado, e as disputas de poder entre ambos. De fato, as altas rodas de mercadores com circulação internacional desempenharam papel fundamental mesmo na propagação do luteranismo no continente, 65 aproveitando-se da quase imunidade política conferida pelo privilegiado estatuto jurídico-espacial das cidades e das sedes corporativas. Contudo, uma vez que, como veremos, nosso período está marcado pela cooperação entre a Coroa e esses setores socioeconômicos, o protagonismo religioso das elites enriquecidas e cultas será exercido como parte da relação política com a monarquia, e de costas para a rica cultura religiosa do povo inglês. 66 Assim também, como uma decisão de cúpula, sem qualquer apoio popular significativo, desencadeou-se a Reforma Anglicana.

65

Dickens, A.G. The English Reformation. London: Collins, 1970, p. 105.

66

É essa a tese fundamental de Duffy, Eamon. The strippling of the altars. Tra-

ditional religion in England e. 1400-c. 1580. London: Yale University Press, 1992.

(94]

[O divórcio de Henrique VIII]

Com isso, é preciso procurar compreender como a Reforma Inglesa está enraizada nos interesses políticos e econômicos da Coroa e das elites de nosso período. E uma das motivações usualmente trazidas à baila nesse contexto é a questão do divórcio de Henrique VIII. O monarca era casado com Catarina de Aragão, com quem teve uma filha, Maria. Contudo, depois de abortos e filhos natimortos, ficou claro que Catarina, seis anos mais velha que o marido, teria dificuldades de produzir um herdeiro homem para o trono da Inglaterra. Em 1525, com base em sutilezas jurídico-teológicas relacionadas ao fato de que Catarina havia sido a mulher de seu falecido irmão, Henrique começou a fundamentar um pedido de anulação do casamento junto ao papa. Divórcios desse tipo, embora raros, e de difícil enquadramento na doutrina católica, já haviam sido concedidos pelo pontificado antes. Entretanto, Catarina era ligada, por laços de parentesco, a uma das principais forças políticas europeias, a monarquia espanhola, que, na época, havia ainda se combinado ao Sacro Império pela figura de Carlos V, sobrinho de Catarina. Questões doutrinárias à parte, a presença militar dos exércitos de Carlos V na Itália, na mesma época do pedido de divórcio, seriam suficientes para dissuadir o papa de responder positivamente ao pedido de Henrique VIII. A questão do divórcio, a partir de então, passou a envolver não apenas a vontade do rei de mudar de esposa, e a preocupação generalizada de que ele tivesse um filho homem para manter uma sucessão real inconteste, mas também a competição internacional por supremacia diplomática e militar na Europa. Assim, quando a Coroa inglesa começa a agir de maneira inequívoca no sentido de romper com a Igreja católica, o fato de que tal rompimento permitiria ao rei e ao bispado [95]

inglês decidir com autonomia a questão do divórcio é apenas uma dentre uma miríade de consequências no jogo político inglês e europeu. [O problema dos tribunais eclesiásticos]

Para além das questões centradas na figura do monarca e da política externa, vários fatores políticos e econômicos catalisaram os interesses materiais das elites inglesas em torno do cisma eclesiástico. Como vimos (na seção "As cidades"), o poder laico que a Igreja possuía na Inglaterra no início de nosso período não era desprezível. Tratava-se de uma importante proprietária de terras, o que, por sua vez, implicava numerosas prerrogativas fiscais, jurídicas e burocráticas desde o dízimo até os tribunais eclesiásticos. Estes últimos constituíam, em certo sentido, uma pedra no sapato da aristocracia inglesa. Em primeiro lugar, seu poder de exercer controle moral e espiritual sobre a vida das pessoas comuns podia ser usado para exercer pressão contra a aristocracia sobretudo a gentry, que funcionava política e economicamente no mesmo nível dos monastérios. O tribunal eclesiástico não poderia obrigar civil ou penalmente um membro da baixa nobreza que estivesse devendo dinheiro a um monastério; porém, poderia, por exemplo, submetê-lo a um humilhante processo eclesiástico por bebedeira ou libertinagem. Contudo, muito mais grave do que isso, da ótica da aristocracia como um todo, era o fato de que os tribunais eclesiásticos detinham a competência para avaliar a legitimidade dos testamentos, o que significava que, no fim das contas, a continuidade da transferência da propriedade nas famílias de sangue azul estava fundamentalmente nas mãos da Igreja- o que, sem dúvida, terá custado mais de umas poucas noites de sono aos filhos mais velhos dos "lordes" e "Sirs'' de reputação sexual duvidosa. [96]

[O problema do poder político dos bispos e dos legados papais]

O próprio fato de que a Igreja detinha terras tinha consequências políticas de monta. Afinal, existia um vínculo estreito entre a posse de terras e o exercício do poder político direto, de tal modo que, para efeitos parlamentares, os bispos, bem como alguns abades, eram considerados "lordes" e, de fato, antes da Reforma, constituíam, em conjunto, a maioria na Câmara Alta.67 Se, por um lado, a Coroa influenciava a escolha dos bispos que atuavam na Inglaterra, cada um desses bispos estava, ao mesmo tempo, submetido à autoridade do papa em diversos sentidos, o que significava que, por meio deles, havia ingerência dos interesses de Roma na política doméstica inglesa. Sobretudo, pela designação de representantes eclesiásticos - os legados papais-, o papa possuía a prerrogativa de criar, no território inglês, um instrumento direto para a nomeação de cargos, avaliação e substituição de clérigos de qualquer hierarquia, redistribuição de terras e de outros benefícios eclesiásticos, bem como administração do dízimo e taxações semelhantes. Tanto a aristocracia quanto as elites citadinas eram profundamente hostis à concentração de poder nas mãos dos legados - entre eles, o cardeal Wolsey, morto em 1530 em meio aos preparativos políticos para a Reforma Inglesa, foi especialmente detestado. Some-se a tudo isso o fato de que os bispos tradicionalmente desempenhavam junto à Coroa inglesa o papel de oficiais de Estado, seja como enviados diplomáticos, seja como burocratas da alta administração monárquica. Nesse sentido, concorriam com a aristocracia e com os grandes mercadores na divisão de poderes cujos interstícios teremos oportunidade de analisar no Capítulo 3. Para aquelas elites, 67

O funcionamento político do Parlamento inglês será discutido no Cap. 3.

[97]

apoiar a Coroa no rompimento com a Igreja católica e reconstruir uma instituição eclesiástica pela ação do Parlamento significavam, portanto, a possibilidade de coibir o poder político e administrativo eclesiástico, redistribuir as atribuições desse poder entre as elites laicas e submeter definitivamente a Igreja inglesa ao seu controle. Está aí a plenitude do sentido essencialmente monárquico e oligárquico da Reforma Inglesa. [Taxas e competição econômica]

Na medida em que era proprietária de significativa parcela da terra da Inglaterra, a Igreja detinha ainda importante papel econômico. Para começar, havia os impostos eclesiásticos - sobretudo sob a forma do dízimo -, os quais eram altamente impopulares e frequentemente questionados judicialmente.68 Na seção ''A Igreja", vimos como esses impostos permitiam aos monastérios exercer uma miríade de funções, entre as quais os empréstimos de dinheiro. Se, por um lado, esses empréstimos viabilizavam uma redistribuição dos escassos meios de circulação, permitindo aos pequenos e médios agricultores o pagamento de aluguéis antes da venda das safras ou o investimento comercial de pequeno e médio porte, também é verdade que o monastério se tornava, para os meios sociais que precisavam apelar a esses empréstimos, perpétuos cobradores de dívidas, o que contribuía pouco para o estabelecimento de relações amistosas e, em certos meios sociais, alimentava um anticlericalismo que, na Inglaterra, já era antigo. Para além do problema do dízimo, contudo, também é importante notar que boa parte dos monastérios na prática funcionava parcialmente como empreendimento comercial. O tamanho e a complexidade operativa dos maiores deles 68

Dickens, p. 134.

[98]

eram comparáveis às propriedades rurais da gentry, o que significava que consistiam em importantes competidores no nascente mercado de produtos agrários, especialmente porque dispunham - novamente, devido ao dízimo - de vantagens consideráveis no que diz respeito à capacidade de investimento. Isso quer dizer que as terras eclesiásticas participavam marginalmente da produção de mercadorias agrárias, sem entretanto poderem ser inseridas completamente no processo de mercadorização da terra, uma vez que as terras dos senhorios eclesiásticos por definição deveriam permanecer com as ordens religiosas, não podendo trocar de mãos com a mesma maleabilidade que os senhorios aristocráticos. Antes do Ato de Supremacia, esses fatores já haviam encorajado o Parlamento a aprovar uma série de estatutos limitando a atuação econômica dos eclesiásticos, e vinham há tempos fazendo crescer nas elites proprietárias um apetite pelas terras que apenas a cisão com Roma tornaria livremente acessíveis. [Dissolução dos monastérios]

Em vista disso tudo, não é de surpreender que a chamada dissolução dos monastérios seja um dos processos que marcaram mais significativamente a Reforma Inglesa. Tendo lugar sobretudo nas décadas de 1530 e 1540 - quando as terras eclesiásticas rendiam cerca de dez vezes mais que as terras da Coroa69 - , a dissolução foi desencadeada por estatutos parlamentares e teve duas expressões: a supressão das casas monásticas e a extinção dos senhorios eclesiásticos. A extinção do senhorios eclesiásticos significava basicamente que a Coroa se apropriaria das terras cuja posse até então era gozada pelos monastérios. As herdades apropriadas a princípio permaneciam intocadas do ponto de 69

Overton, p. 168.

[99]

vista espacial e do costume; porém, seu senhor (no caso, um membro da hierarquia eclesiástica ou alguém por ele apontado) era substituído por um administrador designado pela Corte de Aditamentos. Esses administradores - quase sempre, membros da gentry capazes de atrair o favor monárquico, fosse por bajulação, fosse por competência - ficavam encarregados de gerir as terras em proveito dos cofres reais. Já a supressão das casas monásticas significava que os monastérios aos quais os senhorios estavam associados seriam fechados. O impacto mais imediato disso, evidentemente, foi sobre os 90 mil religiosos e religiosas que então viviam nos monastérios. Os monges receberam pensões miseráveis, e as monjas foram enviadas de volta para suas famílias - ou ficaram no olho da rua, caso não tivessem familiares vivos. Os prédios mesmos das abadias, mosteiros etc. foram demolidos. Esculturas, pinturas, objetos de culto ornamentados ou feitos de metais preciosos, mobília etc. foram apropriados pela Coroa ou vendidos a preço de banana pelos paroquianos quando os rumores sobre a dissolução começaram a circular. As bibliotecas de tamanho e valor científico e artístico inestimáveis foram desmontadas e dadas como perdidas: até hoje, fragmentos delas de vez em quando emergem nas estantes da alta aristocracia britânica. Ademais, com a dissolução, a população em geral também não poderia mais contar com as inúmeras funções que tais instituições assumiam na manutenção da vida na sociedade agrária pré-moderna, conforme vimos. Os espaços a partir dos quais eram organizados os serviços de caridade, muitas das sociedades religiosas e inúmeras atividades de socialização deixariam de existir. Assim, a dissolução dos monastérios combinou-se tragicamente à miséria crescente e à desestruturação econômica inicial das relações de cooperação ligadas às terras comuns. [ 1 00]

[Criação de um mercado de terras]

As apropriações de terras eclesiásticas foram tão amplas, e os problemas administrativos criados por elas tão volumosos, que foi criada uma comissão especial para gerenciá-las: a Corte de Aditamentos ( Court of Augmentations), a qual, na prática, funcionou durante anos como uma espécie de secretaria-geral do Tesouro. O gerenciamento das terras confiscadas foi empreendido, principalmente, em dois sentidos. O primeiro foi a incorporação dos novos senhorios aos domínios reais. Nesses casos, o objetivo primordial era auferir riqueza por meio de arrendamentos, mas também pelas taxas semelhantes ao dízimo que foram instituídas sobre rendas relacionadas à terra nos senhorios incorporados: 70 o irônico argumento era que, se a Igreja tinha a prerrogativa de recolher dízimo, e o monarca era o novo chefe da Igreja, então a Coroa tinha uma prerrogativa análoga. Assim, se a Coroa, na figura de seus administradores, arrendava uma terra a alguém que a sublocava, a Coroa coletava a décima parte dos valores auferidos nessa sublocação. Contudo, grande parte das terras apropriadas não foi mantida a longo prazo sob administração direta da Coroa, mas foi vendida pelos esquemas de posse livre ou então doada para cortesãos, aristocratas e burocratas importantes. A razão disso foi uma só: em meados do século XVI, por causa de gastos relacionados a campanhas militares e desenvolvimento da máquina estatal, a Coroa estava praticamente falida. Assim, precisava obter quantidade volumosa de riqueza a curto prazo para refinanciar suas dívidas ou, de forma alternativa, podia usar doações de terra em troca de favores de ordem administrativa, financeira ou militar. 70

Youings, Joyce A. The terms of the dispasa) of the Devon monastic lands, 1536-58. ln: The English Historical Review, vol. 69, n. 270 (Jan., 1954), p. 27. [ 1o1l

Discutiremos os problemas fiscais da Coroa inglesa e o contexto político das doações de terra no capítulo seguinte; por ora, o que é importante frisar é que a venda progressiva das terras confiscadas instituiu, na prática, um até então inexistente mercado de terras na Inglaterra. Isso significa que, a partir de então, a aquisição direta de terras tornou-se mais um caminho para promover o acúmulo ulterior de riquezas. Ao mesmo tempo, a mercadorização da terra intensificou o processo de conversão de terra arável em pasto e de cercamento dos campos descritos acima: afinal, as terras provindas da dissolução dos monastérios podiam ser livremente convertidas em posses livres pela vontade soberana do monarca. [As chantries e as questões doutrinárias]

O processo de dissolução das propriedades eclesiásticas não ficou restrito aos monastérios, contudo, mas atingiu também as chamadas chantries. Tratava-se de capelas associadas a dotações - ou seja, doações de renda à perpetuidade - para a celebração de missas pelas almas de indivíduos ou famílias endinheiradas. Na medida em que a celebração de missas, no catolicismo, está ligada à redução dos castigos recebidos no Purgatório, a destruição das chantries foi o único capítulo da Reforma Inglesa que teve inequívoca expressão doutrinária. As terras destinadas à manutenção das chantries e dos padres responsáveis pelas missas não eram exatamente terras eclesiásticas e, por isso, não estavam cobertas pelos estatutos que regeram a dissolução dos monastérios. Se, por um lado, a justificativa para os estatutos que dissolviam os monastérios era explicitamente de ordem política e fiscal? o estatuto específico que autorizava o confisco das dotações capelinas podia apelar para o argumento que, na teologia protestante continental, já havia sido empregado contra as 71

Dickens, p. 349.

[ 1 02]

indulgências e outras instituições clássicas do catolicismo: nas Escrituras não havia qualquer menção ao Purgatório. 72 [As

chantries e a autonomia paroquiana]

Ê importante notar que, por outro lado, o desmonte das chantries - que, como no caso dos monastérios, também teve expressão arquitetônica e artística, com a demolição de edifícios antiquíssimos, destruição de ornamentos famosos, derretimento de pratarias etc. - contrariava um importante princípio protestante que, curiosamente, o catolicismo popular inglês realizava a despeito da centralidade nominal da Igreja católica: o controle paroquiano sobre a vida religiosa. Isso porque, na prática, grande parte dos padres mantidos nas numerosas capelas espalhadas pela Inglaterra acabava desempenhando as funções de padre de paróquia - o qual, assim, era assalariado pelos administradores da dotação, geralmente figuras de destaque na comunidade local. Então, ao lado das sociedades religiosas discutidas acima, as chantries influíam no sentido da desierarquização eclesiástica e do controle paroquiano sobre a vida religiosa. Nesse sentido, sua destruição contribuiu para a padronização e centralização religiosa que marcam o contraste entre a Reforma Inglesa, estatalmente protagonizada, e o movimento social da Reforma Protestante continental, baseado fundamentalmente na religiosidade local.

A pobreza moderna [Proletarização]

Uma vez deflagradas na forma descrita acima, a concentração e a mercadorização da terra tornaram-se uma constante da sociedade moderna inglesa, alargando-se e intensifican72

Dickens, p. 285.

[ 103]

do-se ao longo do século XVI e das primeiras décadas do XVII (e para além delas, mas com formatos específicos que saem do escopo do nosso trabalho). Trata-se de um processo que, a partir da violência da pressão econômica, forçando a conversão de fazendeiros economicamente autônomos (husbandmen) em camponeses de subsistência precária, dependentes do trabalho assalariado ( cottagers), obrigou populações inteiras a desenraizarem-se de espaços rurais de subsistência e socialização, em grande parte convertendo-as em populações rurais de migrantes permanentes despossuídos - os "vagrants" ou "vagabundos". [Pobreza rural e desenraizamento populacional]

Estima-se que a porcentagem da população rural que dependia principalmente do trabalho assalariado para sobreviver tenha subido de cerca de 20% no início do século XVI para 50% no final de nosso período 73 e que o número de despossuídos, então, passasse de 400 mil, 74 ou seja, 1% da população inglesa. É possível que esse número fosse muito maior. Os contemporâneos falavam em bandos deles que vagavam pelas estradas e aldeias oferecendo sua força de trabalho quase de graça, mendigando ou apelando para o banditismo. Grande parte ia ter às cidades de médio e grande porte - sobretudo, Londres -, onde apinhavam-se em subúrbios. Essas áreas urbanas periféricas - como, aliás, ocorre na sociedade moderna até os dias de hoje - cresciam para além dos limites oficiais da cidade, numa região limítrofe entre o perímetro urbano e o rural. Assim, as atividades econômicas praticadas aí ficavam de fora da regulação das guildas e até mesmo do conselho citadino, 75 o que signi73 74

75

Hindle, p. 48. Hindle, p. 51. Kermode, p. 460.

[ 104]

ficava, para a nova indústria doméstica de tecidos, uma excelente oportunidade de expandir a produção sem impostos e pagando salários de fome para uma população miserável. Devido àquele caráter espacialmente informal, a vida em tais subúrbios transcorreu indocumentada,76 de tal modo que ela cai além da capacidade quantitativa da historiografia, mas não há razão para crer que os subúrbios da alvorada da era moderna não fossem extensos, crescentes e especialmente insalubres. [Queda real do salário]

Ao transformar agricultores autônomos, que trabalhavam para si mesmos, em cottagers que precisavam vender sua força de trabalho, a concentração de terras causa liberação de mão de obra. Isso ocorreu enquanto a única demanda crescente significativa de força de trabalho advinha do crescimento da manufatura doméstica. Esta, entretanto, apenas crescia lentamente, obedecendo a flutuações da demanda externa, sem ocasionar aumento contínuo e acentuado da demanda por trabalho assalariado. Lembremos, ainda, que a mercadorização dos alimentos vinha resultando em aumento dos seus preços, aumento esse que acaba refletindo em toda produção de mercadorias, visto influenciar o custo de subsistência dos produtores e trabalhadores. Isso tudo, combinado ao aumento populacional natural, resultou numa situação em que os salários aumentavam menos do que os preços - ou seja, uma queda real dos salários desde o início do século XVI até as primeiras décadas do século XVIl. 77 A acumulação de terras criava uma pobreza que, por sua vez, tendia a gerar mais pobreza. 76

77

Clay, II, p. 97. Clay, I, p. 217.

[ 1 05]

[Novidade da pobreza moderna]

Ocorre que a sociedade inglesa não havia, até então, conhecido o fenômeno de uma pobreza endêmica, em crescimento contínuo e sem causas naturais palpáveis. 78 É verdade que variações ambientais ou pragas causavam, vez por outra, destruição das lavouras, resultando em ondas esporádicas de pobreza. Contudo, hordas de miseráveis em migração constante, oscilando entre o crime e a mendicância, eram uma memória social distante, associada à epidemia de peste negra de meados do século XIV, que desestruturou a economia agrária da época ao dizimar a população rural, tornando impossíveis as atividades normais de trabalho comunal. O quadro na alvorada da modernidade era diferente, visto que não havia causa natural detectável. Alguns anos de colheitas particularmente ruins no século XVI foram especialmente lamentados pelos contemporâneos, mas, a médio prazo, ficou claro que fatores desse tipo apenas vinham intensificar um processo socioeconômico de fundo: o açambarcamento de terras, o cercamento dos campos, a alta dos preços. É verdade que, então como hoje, essas alterações socioeconômicas foram sobretudo lidas em termos morais: como resultado da ganância e da falta de escrúpulo de arrendadores e mercadores. De todo modo, é significativo que o aumento gradativo de populações despossuídas e reduzidas à miséria engendrou respostas políticas em termos de administração estatal: 79 leis contra o cercamento dos campos, leis de assistência social baseadas no trabalho obrigatório e assalariado, e o enrijecimento da política penal. Teremos oportunidade de debruçarmo-nos sobre algumas dessas medidas no Capítulo 3. 78

79

Hindle, p. 50. Clay, I, p. 79; II, p. 203.

[ 106]

A concentração de riqueza [O aumento da desigualdade]

A concentração de terras e as demais transformações no campo marcam nosso período com um agudo crescimento da desigualdade econômica, 80 ou seja: os ricos tornaram-se mais ricos, e os pobres, mais pobres. Em algumas cidades, menos de 10% da população chegou a possuir mais de dois terços da riqueza. 81 No campo, a gentry, que correspondia a cerca de 2% da população inglesa, chegará a possuir, durante nosso período, entre um terço e metade das terras da Inglaterra. 82 O setor social dos yeomen expandiu-se à custa da pauperização do resto do campesinato: estima-se que chegou a 8% da população por volta de 1600, detendo, então, cerca de um quarto das terras. Mas, se é verdade que, até o fim de nosso período, os setores médios - gentry, yeomen, comerciantes de pequeno e médio porte - expandiram-se significativamente, a maior parte da riqueza então acumulada estava nos bolsos de uns poucos indivíduos, membros das elites comercial e terratenente. Nesses estratos mais altos, os diferentes setores sociais se confundiam: as maiores fortunas mercantis formadas no período, investidas em enormes operações empregando centenas de fiandeiros domésticos, reverteram também na aquisição de extensas posses de terra e, eventualmente, na compra de um título de gentleman ou na aquisição de tal título por meio de favores financeiros ou administrativos para a Coroa. 83 Alimentando-se do aumento da pobreza, as vastas mansões e propriedades desses magnatas empregavam mul80

81

Hindle, p. 46. Clay, I, p. 215.

82

Bucholz e Key, p. 155.

83

Clay, II, p. 12.

[ 1071

tidões de serviçais que, no final do século XVII, chegariam a corresponder a 10% da população da Inglaterra. 84 [Londres e seus mercadores]

Essa nata da elite agrário-mercantil estava sediada em Londres. A cidade estava no centro do processo de concentração de riqueza do período, 85 e isso por mais de uma razão. Para começar, Londres concentrava grande parte da demanda econômica de natureza comercial. A lã produzida na Inglaterra para exportação passava toda ela pelas mãos de mercadores londrinos detentores de monopólios comprados da Coroa. A Corte - sediada na vizinha Westminster, que não tardaria a ser engolida pela metrópole londrina -, bem como as mansões dos magnatas, geravam, por si mesmas, enorme demanda econômica por artigos de luxo - de cristais e vinhos a carnes exóticas, vestuário e especiarias - a ser atendida por uma classe mercantil também de origem londrina e com atuação em toda a extensão do território inglês, bem como no continente. Os negócios de Estado também passavam todos pelas mãos dos mercadores da cidade: em especial, as volumosas e custosas compras e encomendas industriais relacionadas ao provimento da marinha e dos exércitos ligados diretamente à Coroa. Finalmente, em torno dessa intensa e concentrada atividade econômica, amontoava-se uma população desproporcionalmente numerosa. De cerca de 60 mil pessoas no início do século XVI, Londres chegaria a aglomerar 200 mil pelos 84 85

Clay, II, p. 35. Por volta de 1540, cerca de 80% das exportações de lã, e 70% de todas as exportações e importações da Inglaterra passavam por Londres (Barron, Caroline. London. 1300-1450. ln: Palliser, D.M. (Org.). The Cambridge Urban History of Britain. Vol. 1. 600-1540. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 412-3).

[ 1 08]

idos de 1600 ( ou 4% da população inglesa, estimada, então, em 4,5 milhões). Londres crescia no dobro da velocidade do resto da Inglaterra, recebendo contínuas ondas anuais de imigrantes, de tal modo que, no início do século XVII, cerca de 17% da população inglesa residia ou havia residido na cidade em algum momento de sua vida. 86 Para satisfazer as necessidades alimentares dessa multidão, a rede de intermediários sediada em Londres chegaria a trazer grãos até do sul de Yorkshire, a 150 km de distância. 87 De fato, os mercadores de grãos de Londres vinham especializando-se e acumulando riqueza em sua função desde o século XIV. 88 Devido ao volume de seus negócios, a sua atuação foi fundamental para a mercadorização da produção de alimentos na Inglaterra. Há séculos encastelados no conselho citadino, esses mercadores controlavam estreitamente o credenciamento de novos comerciantes, e tal controle político contribuiu para seu desproporcional enriquecimento. Em nosso período, sua capacidade de investimento era tão alta, e suas operações tão vastas, que Londres tornou-se uma espécie de centro de redistribuição comercial doméstico: não apenas de grãos, mas de artigos manufaturados. 89 Em toda a Inglaterra, produzir mercadorias - de tecidos a alimentos, de carvão a alfinetes - significava cada vez mais vender para os mercadores londrinos, que tinham a capacidade de mover o maior volume de coisas vendáveis de um lado para outro. [Dimensão espacial da concentração econômica]

O controle exercido pelo conselho citadino de Londres no sentido de limitar a multiplicação dos atores econômicos de 86

Bucholz e Key, p. 184.

87

Overton, p. 140. Overton, p. 138. Clay, II, p. 89.

88 89

[ 109]

grande porte e a demanda oriunda da atividade econômica centralizada na cidade produziram gigantesca concentração de riqueza que tinha expressão espacial: essa concentração se irradiava desde a sede do governo monárquico em Westminster, relacionava-se com os gastos empreendidos pela Corte e pela administração estatal, com a rede de favores que conectava o conselho citadino londrino com a monarquia, e com a pululante atividade econômica que se desenvolvia no entorno de tudo isso. O intenso comércio que passava pela cidade demandava toda uma gama de serviços, uma variedade de trabalhadores assalariados e provedores intermediários. Era para ocupar esses postos que as volumosas ondas de imigrantes assomavam à cidade, numa oferta constante e crescente de mão de obra, que se somava à massa de mendigos, prostitutas, assaltantes e andarilhos. Depositada, ademais, nos subúrbios - portanto, fora da jurisdição das guildas -, essa massa estimulou a formação de uma indústria de tecidos análoga à manufatura doméstica rural, que pôde abastecer, por sua vez, a demanda local por tecidos e outros artigos de baixa qualidade, mas também de artigos de luxo. Afinal, a concentração de investimentos e de assalariamento na área londrina também significava a concentração de poder aquisitivo. 90 [Concentração de riqueza e diversificação econômica]

Finalmente, a concentração de riqueza preparou o terreno para a diversificação econômica. A lógica desse processo pode ser explicitada resumidamente. Por um lado, como vimos, a funcionalização comercial da terra - a produção de lã, a mercadorização dos alimentos e a criação de um mercado de terras - teve impacto amplo sobre todos os setores 90

Clay, II, p. 91; Dimmock, p. 149.

[11 O]

da sociedade inglesa. Por outro lado, no coração de todo esse processo estava uma relativamente pequena quantidade de operações comerciais de larga escala - a produção e o transporte de alimentos em grandes distâncias, o estabelecimento de putting-out em amplas regiões, os rebanhos de dezenas de milhares de ovelhas - controladas por um número reduzido de indivíduos ou consórcios. Assim, ao mesmo tempo que toda a sociedade se monetizava, grande parte da produção de riqueza nesse período estava concentrada em poucas mãos. Ora, os altos lucros auferidos por essa elite dentro da elite só podiam ser reinvestidos na ampliação da produção agrário-mercantil até certo ponto, além do qual esbarravam em limites como a limitada disponibilidade de terra e as flutuações de demanda do mercado continental de tecidos. Parte desse lucro que não podia ser reinvestido era desviado para o consumo de artigos de luxo e para a construção urbana, como vimos; outra parte podia ser empregada no desenvolvimento de ramos comerciais e industriais não conectados à produção agrário-mercantil. Um desses ramos foi a própria construção civil, atendendo à demanda criada pelas próprias elites econômicas de renovação e aumento de suas residências, em proporção ao seu enriquecimento. A construção civil, por sua vez, estimulava outras indústrias, como a da extração de madeira - que, em grande parte, tinha que ser importada, especialmente da Irlanda e da Escandinávia, implicando oportunidade de investimentos comerciais de médio porte - e de metais - como os necessários para a fabricação de pregos, e o chumbo, usado para encanamento e revestimento de telhados. De fato, o chumbo foi a atividade extrativa que mais cresceu no período. Embora as minas individuais fossem pequenas, empregando geralmente não mais de dez traba(111]

lhadores, mercadores individuais ou associados passaram a controlar grande número delas. A concentração de lucros aumentou a capacidade de reinvestimento e a velocidade da expansão. No Norte, ao longo daquele período, regiões inteiras vieram a se tornar fundamentalmente dependentes da mineração do chumbo. 91 A crescente oferta do metal tornou possível o desenvolvimento de uma incipiente indústria de munições e, no final do período, de armamentos, em conexão com o desenvolvimento da marinha, que discutiremos no Capítulo 3. Outros ramos extrativistas que sofreram considerável expansão foram o ferro e o estanho, conectados a grande número de outras atividades industriais - fabricação de ferramentas, utensílios domésticos etc. Na medida em que exige grande investimento inicial, envolve alto risco e retorno relativamente lento, a mineração só se desenvolve significativamente em ambientes econômicos de concentração relativamente alta. Essa característica da economia inglesa possibilitou ainda que, ao lado do crescimento da mineração, fossem importadas tecnologias de fundição, resultando no estabelecimento de fornalhas de proporções até então nunca vistas na Inglaterra, cujos foles eram movidos por engenhos de água e que consumiam quantidade enorme de carvão. De fato, a mineração de carvão também aumentou consideravelmente: as minas do século XVI, com várias dezenas de trabalhadores, produzindo milhares de toneladas anuais, ofereciam notável contraste com as pequenas operações da Idade Média. A multiplicação dos engenhos ou moinhos d'água, atrelados como fonte de energia mecânica a equipamentos com as finalidades industriais mais variadas - martelar pregos, 91

Clay, II, p. 57.

[ 112]

prensar barras de ferro, serrar madeira, pisoar panos etc. é outra evidência de alto grau de concentração econômica. Esse maquinário- com o qual o leitor brasileiro estará familiarizado devido ao seu emprego na produção de açúcar em nosso período colonial - tratava-se do mais sofisticado então disponível. Os altos investimentos necessários para sua construção e manutenção - nas quais estavam envolvidos, além de trabalho especializado, materiais de alta qualidade - são sinal claro de que a riqueza produzida no período passava por umas poucas mãos, que eram então capazes de canalizá-la para operações de alto custo, inacessíveis para pequenos capitalistas ou para elites amplas com riqueza total dispersa entre grande número de indivíduos ou operações. Assim, de fato, a concentração econômica que marcou a origem agrária da ascensão do capitalismo comercial no século XVI marcou também a diversificação econômica que resultou dela. 92 O processo de concentração, sinônimo da atuação das novas elites econômicas, atingiu e transformou inclusive indústrias tradicionais. Foi o caso da mineração de estanho do Sudoeste inglês, que, em nosso período, combinou-se sazonalmente ao sistema de putting-out da indústria de tecidos, resultando numa população que oscilava, ao longo do ano, entre a dependência econômica frente à mineração e frente à manufatura. Tal oscilação, aliás, sublinha a relação íntima entre a conversão da população camponesa em cottagers despossuídos pela mercadorização da terra e sua disponibilização como mão de obra assalariada para qualquer ulterior desenvolvimento industrial. A inviabilização da agricultura de subsistência e a subsequente formação de uma população dependente do trabalho assalariado eram, afinal, algumas das condições de possibilidade para qualquer desenvolvimento industrial. 92

Clay, II, p. 64.

(113]

A ascensão das elites econômicas Uma vez que descrevemos em termos gerais algumas das importantes transformações que marcaram nosso período, precisamos retornar ao início do presente capítulo e sublinhar a razão pela qual qualificamos tais transformações de socieconômicas. O que está em jogo no emprego dessa expressão é a ideia de que a intensificação de determinados procedimentos econômicos acarreta importantes diferenciações sociais. A produção de lã e a manufatura já existiam há séculos na Inglaterra, mas a sua intensificação ao mesmo tempo é possibilitada e possibilita uma transformação na elite econômica que a desencadeia. Inicialmente, as corporações mercantis eram sobretudo organismos subsidiários à produção mercantil de alimentos, atrelados à incipiente monetarização da sociedade, como vimos. Na medida em que essas corporações começam a atuar sistematicamente no desenvolvimento de uma manufatura fora das cidades, seu perfil muda consideravelmente. A partir de certo ponto, devido à possibilidade de incremento quantitativo contínuo, as corporações mercantis passam a apresentar uma competição significativa à produção das guildas urbanas, cujo funcionamento dependia estruturalmente de uma limitação quantitativa, como vimos. Ademais, em contraste com as corporações de ofício, que tinham sua atuação constitutivamente encerrada em espaços urbanos determinados, as corporações mercantis podiam atuar regionalmente e inter-regionalmente. Assim, o domínio da produção de tecidos pelas corporações mercantis, num momento em que parte significativa da atividade econômica da Inglaterra estava sendo transformada pela mercadorização da terra atrelada à produção de lã, significa a constituição de um novo setor social com capacidade de concentração de riqueza muito maior do que a das [ 114]

guildas que vinham desalojar. Tal capacidade de concentração de riqueza terá um reflexo sobre a administração social, na medida em que a Coroa poderá dispor, por meio de umas poucas alianças e empréstimos pontuais, de volume maior de dinheiro para investir nas reformas militar e burocrática. A relação entre processo econômico e transformação social não se limita às consequências da competição entre mercadores e corporações de ofício. A capacidade de investimento concentrada do setor mercantil tem impacto, também, sobre os setores terratenentes, estimulando-os a intensificar o uso comercial da terra. A sua associação intensificada com a produção de mercadorias e com a circulação de moeda transforma o sentido de sua relação com a Coroa: de devedores de serviços feudais tornam-se pagadores de impostos e taxas, em grande medida interessados em flexibilizar os termos da posse de terra, os quais, por séculos, haviam sido o fundamento da sua importância política e de sua manutenção econômica. A mercadorização da terra, ademais, transforma o caráter do campesinato, obrigando-o a depender crescentemente do salário, da moeda e da mercadoria, ao mesmo tempo que lutava pela manutenção das práticas autônomas de subsistência. Por um lado, o que nos parece particularmente importante perceber é que, crescentemente, o que se configura é uma situação em que as elites políticas precisam, antes, ser elites econômicas, em contraste com períodos anteriores, quando o privilégio político era o fundamento de prerro_gativas econômicas. Assim, no paradigma medieval, a capaddade aristocrática de enriquecer dependia sobretudo dos direitos sobre a terra que possuía, e esses direitos estavam fundamentados em seu sangue azul, o qual a colocava em relação próxima com a monarquia. Em nosso período, a aquisição de terras para além das posses tradicionalme_nte atreladas ao título aristocrático será o instrumento funda[ 11 5]

mental do enriquecimento da gentry, de modo que o dinheiro, e não o sangue, será o fundamento de seu novo estatuto social. Por outro lado, é igualmente notável que o privilégio político foi, em grande medida, a condição de possibilidade da conversão acima sublinhada e da constituição de uma elite propriamente econômica. A riqueza acumulada pela gentry antes de ela se tornar uma classe capaz de explorar sistematicamente a terra para produzir mercadorias advinha dos resquícios de privilégios feudais que possuía. Só a partir de certo ponto de acumulação dessas riquezas de origem feudal, ao longo de gerações e gerações, é que foi possível para certos membros dessa classe investirem na mercadorização da terra. Essa interconexão entre o privilégio político arcaico e a mercadorização moderna é mais evidente e característica no caso dos mercadores. Por um lado, é verdade que desenvolveram a manufatura rural explorando um limite do antigo privilégio político das guildas urbanas: a liberdade de submeter a população rural despossuída ao esquema do putting-out, convertendo-a em mão de obra assalariada e endividada, existia nos interstícios do antigo controle espacial das atividades econômicas. Por outro lado, também é verdade que as corporações mercantis eram, elas mesmas, aparatos baseados no monopólio feudal, licenciadas especialmente pela Coroa para atuar em tal e tal região - ou, eventualmente, em toda a Inglaterra ou em grande parte dela, se o favor real fosse comprado com serviços ou riquezas suficientes. Foi, também, o privilégio político feudal que fundamentou a acumulação de riquezas do setor mercantil que permitiu o seu posterior deslanche no ramo da manufatura. A novidade do capitalismo está, portanto, baseada na antiguidade das formas tradicionais de controle socioeconô[ 116]

mico - de fato, no prolongamento e continuação dessas formas, visto que a novidade da transformação das elites políticas em elites econômicas não aboliu os privilégios políticos daquelas elites. A gentry continuou tendo prerrogativas de sangue, e o setor mercantil continuou operando com base em licenças conferidas pelo favor real para ricaços dispostos a se tornarem úteis para a Coroa. É pensando nisso que dedicaremos o próximo capítulo a esmiuçar algumas das relações intestinas entre a constituição e o funcionamento do Estado moderno e a ascensão das elites econômicas.

3

O Estado na alvorada da modernidade

Como vimos, no final do período medieval, as relações políticas entre os diferentes setores sociais eram sobretudo relações hierárquicas de dependência mútua. O monarca possuía prerrogativas legislativas e jurídicas de onde emanava a posse de toda terra; o poderio militar e administrativo necessário para manter, colocar em prática e eventualmente expandir tais prerrogativas derivava de sua relação com a aristocracia militarizada e com a Igreja burocratizada. O aristocrata exercia prerrogativas legislativas e jurídicas em nível local, fosse em nome do monarca, fosse em causa própria, e fazia-o por meio da graça do monarca - da relação com quem dependiam suas prerrogativas territoriais -, pela capacidade política de fazer valer sua vontade junto aos camponeses, e de suas relações com outros aristocratas. Por sua vez, os camponeses constituíam uma força numérica na qual estava em grande parte incorporado o poder bélico das outras classes, o que tornava possível o exercício da desobediência como tática corriqueira para o alcance de demandas populares. No que se segue, estudaremos mais a fundo essas relações político-sociais, analisando, ademais, as inflexões que sofreram diante das transformações socioeconômicas que descrevemos no Capítulo 2. Começaremos atentando para os setores sociais que reivindicavam para a si mesmos a qualidade de governantes: a aristocracia e a monarquia.

[ 119]

Estruturas de governo no final do século XV [O poder de fato da Coroa inglesa e o serviço aristocrático]

Vimos como a monarquia desempenhava importante papel no controle aristocrático sobre a terra. Grande parte da aristocracia detinha suas terras por relação direta com o próprio monarca, o que o dotava da capacidade de interferir na herança dos senhorios. Também vimos como a lei comum tornava a vontade do rei especialmente importante para a vida jurídica da Inglaterra. A política secular de instituir caráter itinerante para os tribunais reais garantia à monarquia capacidade de interferência em nível local, inclusive em certas questões relativas à posse de terra. Finalmente, por meio dessa interferência em nível local, a Coroa mantinha, potencialmente, uma relação direta com a totalidade de seus súditos, o que não ocorria na maior parte da Europa continental, onde tal relação era mediada pela pirâmide das concessões de terra entre aristocratas, as quais muitas vezes carregavam consigo prerrogativas legais absolutas. Mesmo na Inglaterra, contudo, onde a monarquia possuía peculiares prerrogativas, a manutenção do poder da Coroa como governo central dependia consideravelmente da aristocracia enquanto classe. Isso se devia à estrutura mesma da sociedade medieval, que operava principalmente pelos laços de favor e fidelidade. Não havia lugar para corpos burocráticos assalariados - não havia nem mesmo receita suficiente para tanto, dado o baixo grau de monetarização da sociedade. No esquema medieval, portanto, o governo era realizado pelo serviço aristocrático à Coroa, serviço que era uma contraparte das concessões e prerrogativas que o rei era capaz de conferir. Assim, na medida em que concedia terra, era prerrogativa do rei - por exemplo - convocar para serviço na Corte, como conselheiro, um aristocrata qualquer. Esse aristocrata, por sua vez, devido a essa proximi[ 120]

dade com o rei, esperava conseguir, pelos favores especiais ou simples bajulação, novas concessões e prerrogativas - tais como a licença para recolher taxas em nome do rei, em troca de uma quantia fixa, numa região determinada. É preciso atentar para a natureza dos laços políticos nos quais esse sistema estava embasado. Por meio dele, a aquisição e a acumulação de riqueza por parte da aristocracia estavam definitiva e pessoalmente associadas ao rei. No limite, isso significava que a manutenção das concessões e prerrogativas não estava garantida caso o rei fosse outro, o que sedimentava o apoio político e o privilégio econômico das elites em relações pessoais com seus membros entre si e com o monarca. Evidentemente, esse esquema era uma faca de dois gumes: por um lado, o rei podia contar com o fato de que a aristocracia favorecida procuraria defendê-lo; por outro, os não favorecidos, caso ficassem suficientemente descontentes, teriam interesse em derrubá-lo. [Favor e aristocracia nos níveis local e central]

Esse esquema de serviço pelo favor permeava todas as dimensões do exercício do poder da Coroa. A expressão mais antiga disso era o serviço militar, que tivemos ocasião de discutir acima: o rei tinha a prerrogativa de convocar às armas os nobres e gentlemen que fossem seus súditos diretos. Mas, como também já apontamos, o mesmo valia para a coleta de impostos, a administração de terras - por exemplo, cargos na supramencionada Corte dos Aditamentos - e o funcionamento dos tribunais itinerantes, que eram presididos por aristocratas comissionados, e não por juristas profissionais. Uma vez que estivessem ligados à concessão de terras, todos esses serviços - exceto o dos tribunais itinerantes - tinham expressão espacial, no sentido de que o aristocrata era convocado a prestá-los no território da localidade que lhe era concedida. Podemos nos referir aos serviços prestados [ 121 l

à Coroa pela aristocracia nas localidades como o nível local

do exercício do governo na Inglaterra de nosso período. 93 Mas a aristocracia também atuava no nível central do governo: nos tribunais, cortes, comissões e conselhos que, pela sua ligação direta com o monarca e sua vontade, constituíam aquilo a que nos referimos com o termo "Coroa". Todas as posições em tais organismos eram ou desempenhadas por aristocratas convocados para tanto ou por não aristocratas, membros da elite econômica que, ao receberem tal convocação, geralmente recebiam, em troca, concessões de senhorios acompanhadas por uma posição de nível variável dentro da gentry. Esta última prática implicava o permanente crescimento de uma espécie de "nova gentry" não tradicional, que nada tinha a ver com a ideia do "sangue antigo" que corria nas veias da aristocracia mais tradicional. Contudo, na Inglaterra, onde o monarca exercia vasto controle sobre os títulos de terra, não era incomum que famílias de gentlemen fossem extintas e criadas todo o tempo, de modo que, em nosso período, não chegou a haver diferença substancial de perfil, ambições e comportamento político-econômico entre a aristocracia tradicional e aquilo que, no continente europeu, era chamado de "nobreza togada". [Governo e concessão de terras]

Se a monarquia só podia contar com o serviço das elites pela concessão de terras, havia uma relação estreita entre a 93

Seremos obrigados a deixar de lado uma discussão detalhada das interessantes especificidades do governo do País de Gales e da Escócia. O primeiro, no início de nosso período, estava sob poder da Coroa inglesa apenas de direito, mas não de fato; a segunda será a ela submetida com a união das Coroas sob a dinastia Stuart, nas últimas décadas de nosso período. Tudo o que, adiante, dissermos sobre a resistência política e militar da aristocracia local contra o impulso centralizador da monarquia vale com maior intensidade ainda para esses dois espaços.

[ 122]

quantidade de terras de que a Coroa dispunha para distribuir - e o consequente desgaste das fontes monárquicas de receita - e a expansão de sua capacidade administrativa. De fato, para recolher os provimentos de todas as suas fontes de receita, a Coroa dependia fundamentalmente do serviço aristocrático. Ocorria algo semelhante ao que foi descrito quando falávamos sobre o dízimo: como não podia pagar oficiais para a coleta dos impostos, a Coroa usualmente vendia o direito de coletá-los para comerciantes ricos ou aristocratas, ou solicitava a supervisão daquela coleta como parte dos serviços por eles devidos. Condicionada ao equilibrismo entre a manutenção de suas fontes de receita e a ampliação de sua capacidade real de recolher essas receitas, a Coroa tinha, nos últimos séculos, deixado a balança pesar para o lado da garantia do serviço da aristocracia, em detrimento da posse direta de terras. De todo modo, diante disso fica claro o sentido especificamente político da venda e distribuição de terras após a dissolução dos monastérios: a criação, pela Coroa, de novos senhorios, a partir das terras confiscadas, significava a possibilidade de crescimento da rede de favores e lealdade que permitia à Coroa exercer o poder de fato. Tal crescimento atingiu níveis realmente surpreendentes em nosso período. Estima-se que a gentry- em todos os seus níveis - cresceu de cerca de 6 mil indivíduos em 1500 para cerca de 19 mil indivíduos em 1640. 94 [Os parlamentos]

O sistema de favorecimento e reciprocidade que colocava a Coroa e a aristocracia em relação política tinha sua síntese na instituição dos parlamentos. Tratava-se de plenárias, convocadas (e dissolvidas) unilateralmente pelo monarca nas 94

Bucholz e Key, p. 155.

[ 123]

quais compareciam as elites do reino: em nosso período, a nobreza - na Câmara Alta, ou House of Lords, - e os estratos mais altos da gentry, além de representantes citadinos, na Câmara Baixa, ou dos comuns (House of Commons). 95 Os membros desta última eram eleitos por gente que pudesse comprovar certa renda: no campo, além da maioria da própria gentry, alguns yeomen, e até alguns husbandmen, participavam como eleitores; nas cidades, a representação parlamentar era escolhida pela elite oligárquica: o conselho citadino e algumas dezenas de cidadãos plenos. É importante entender que o Parlamento inglês em nosso período não é uma instituição permanente nem mesmo periódica. O monarca não estava obrigado a chamar parlamentos com nenhuma frequência: fazia-o apenas quando era de seu interesse e, uma vez chamados, podia dissolvê-los quando lhe aprouvesse. O objetivo precípuo da Coroa em convocar essas reuniões, desde a Magna Carta, era a obtenção de consenso junto às elites para fazer guerra ou recolher impostos. Em nosso período, tais impostos parlamentares consistiam em arrecadações únicas, específicas, e não em taxas constantes que recairiam periodicamente. A funcionalidade do Parlamento dependia de que - para recolher um imposto especial novamente - o monarca tivesse que convocar o Parlamento de novo. O interesse das elites em comparecer aos parlamentos estava em que o seu assentimento à política real podia ser 95

É necessário salientar, em consonância com observações anteriores, que embora alguns dos "comuns" parlamentares fossem "pessoas comuns", no sentido de que não eram aristocratas, não podemos de forma alguma olhar para a Câmara Baixa do Parlamento como representante dos estratos mais baixos do campesinato ou da população urbana. Como veremos no Capítulo 4, os setores populares estavam bastante conscientes disso, muitas vezes designando a si mesmos - como na rebelião de 1381 - como "os verdadeiros comuns da Inglaterra".

1124]

barganhado. Numa sociedade regida pelo favorecimento, é impossível não atentar para o fato de que, para boa parte da gentry, participar de um Parlamento significava viajar desde um rincão distante do reino para aproximar-se fisicamente da Corte, que era o lugar onde os favores eram concedidos. Sobretudo os parlamentos também tinham autoridade legislativa para alterar a lei comum. A legislação parlamentar - sob a forma de "estatutos" ou "atos" (acts) - podia confirmar ou repelir práticas jurídicas comuns ou, ainda, dar forma legal a um reclame específico oriundo de membros das Câmaras. Um exemplo de tal reclame poderia vir de um grupo de gentlemen interessados em cercar os campos de seus senhorios, circunscritos por determinada região administrativa. Esse grupo poderia sugerir no Parlamento uma proposta legislativa ou projeto de lei ( bill) determinando a extinção das terras comuns dessa localidade, com base em algum fundamento legal ou econômico. Isso ocorreu ostensivamente no século XVIII, quando houve um concerto de interesses entre as classes proprietárias, mas também em nosso período, quando esse concerto ainda não existia. Assim, também podia ocorrer que os yeomen de determinada região, querendo fazer uso das terras comuns para pastorear seus rebanhos, levassem ao Parlamento uma proposta de medidas contra a privatização das terras comuns pela gentry de sua região. De forma semelhante, se um oficial da Coroa estivesse abusando de seu poder em um condado pelo método como colhia impostos ou como fiscalizava o comércio, era possível aos membros das Câmaras Alta ou Baixa pressionar a Coroa para reconhecer a malfeitoria e condená-la oficialmente por meio de um estatuto que especificasse como exatamente a coleta de impostos ou a fiscalização deveria ser feita, e prevendo penas para quem não obedecesse. [ 125]

Dessa forma, para o monarca, recolher um imposto especial significava abrir um canal formal de comunicação com as elites do reino. Eventualmente, tinha que dar o braço a torcer diante da opinião de seus súditos sobre a maneira como a administração do reino vinha sendo exercida ou fazer concessões políticas e econômicas. A compreensão do funcionamento do Parlamento na alvorada da modernidade fornece uma imagem eloquente da maneira como a capacidade de governo é o resultado de um jogo de distribuição de privilégios que, no fim das contas, são de natureza econômica. [Poder central e poder local]

Qualquer ação parlamentar, fosse uma solicitação real de taxação, fosse um projeto de lei de autoria da Coroa ou das Câmaras, tinha que ser votada e aprovada pelos lordes e pelos comuns, e subsequentemente pelo monarca, para virar lei. Contudo, ainda que transformada em estatuto, qualquer legislação dependia da mecânica do favor para ser tornada efetiva nas localidades do reino. Afinal, como salientamos, no início de nosso período a Coroa não tinha condições contábeis de assalariar funcionários para implementar localmente qualquer das suas políticas, fossem aquelas que partissem diretamente dos órgãos de governo executivo da Corte, fossem aquelas que se originassem no Parlamento. Aquela implementação estava condicionada, portanto, à dependência mútua, ao favor e à lealdade interessada que regiam as relações entre a Coroa e a aristocracia. Acontece que, embora houvesse certo nível de reciprocidade em tais relações, na prática a gentry usava em favor próprio a distância espacial entre suas localidades e a sede do poder monárquico. Isso quer dizer que, no fim das contas, qualquer negociação entre a Coroa, a alta nobreza e a gentry estava sempre implicitamente temperada pela afir[ 1 26]

mativa de que quem implementaria e fiscalizaria qualquer política governamental era a gentry, os senhores que realmente estavam presentes nas localidades. Assim, por exemplo, quando o Parlamento relutantemente aprovou impostos especiais no início do século XVI - os "subsídios"-, os oficiais encarregados de fazer o censo atualizado dos setores sociais endinheirados e recolher pagamentos à Coroa com base nesse censo eram oriundos desses mesmos setores sociais. Incumbida de calcular sua própria riqueza taxável, a gentry subestimou essa riqueza consideravelmente e recolheu as taxas devidas com toda pachorra e ineficiência que pôde, conforme posteriormente avaliado pelos altos tribunais da Coroa. 96 [Os juízes de paz e a seletividade administrativa]

Outra expressão particularmente importante da dimensão espacial das relações de poder no início de nosso período é a atividade dos juízes de paz (justices of the peace, JPs). Tratava-se de oficiais, geralmente oriundos da gentry, apontados pela Coroa para desempenhar em sua localidade uma série de importantes funções judiciais, executivas e de fiscalização, atreladas aos tribunais reais e, portanto, à lei comum. Em média, havia algumas dezenas de juízes de paz por condado e, no fim do século XVI, cerca de 1.500 JPs na Inglaterra. 97 Para começar, o juiz de paz podia receber queixas de súditos do rei e ordenar investigações para averiguar sua pertinência. Casos que envolvessem contravenções de menor gravidade podiam ser resolvidos pelo próprio juiz de paz; os demais eram por ele redirecionados ao tribunal iti96

97

Braddick, p. 236; Sayer, Derek. A notable administration: English state formation and the rise of capitalism. In: American fournal of Sociology, vol. 97, n. 5, Mar. 1992, p. 1397. Fletcher e McCulloch, p. 5.

[ 127]

nerante. Tendo em vista a larga periodicidade desses tribunais, esse aspecto da atuação dos juízes de paz era fundamental para que as pessoas comuns pudessem iniciar ações judiciais. Os juízes de paz também eram responsáveis por fiscalizar a implementação de política real, tais como o licenciamento de tabernas, o cumprimento de monopólios, o preço do pão e as práticas de venda de grãos, que passaram a maior parte de nosso período sob estrita regulação, como veremos. Para conduzir investigações, convocar testemunhas para obter evidência, exercer suas atribuições reguladoras, o juiz de paz apontava oficiais em nível paroquiano, usualmente gente oriunda da elite aldeã - leia-se: yeomen. É importante observar que o cargo de juiz de paz não era remunerado. Ele podia guardar para si parte das multas que aplicava, em nome do rei, no exercício de sua atividade de fiscalização. Contudo, as verdadeiras vantagens em aceitar uma indicação para tornar-se juiz de paz deviam-se sobretudo ao misto de prestígio e capacidade de extorsão inerentes ao cargo 98 - e algo semelhante, mas em nível menor, valia para os oficiais paroquianos apontados pelo juiz. No que praticamente monopolizava regionalmente o recebimento de queixas judiciais, a sua capacidade de favorecimento era tremenda: uma boa relação com o juiz de paz podia tornar alguém judicialmente invulnerável, exceto por meio do (custoso) apelo direto aos tribunais reais em Westminster. Ademais, uma vez que eram membros da elite terratenente, os juízes de paz tinham posse de terras e interesses no comércio de alimentos etc., e a atribuição de fiscalizar a si próprios representava evidente vantagem. Ao mesmo tempo, um juiz de paz tinha uma tremenda capacidade de prejudicar seus adversários: remetendo a um exemplo anterior, 98

Briggs et ai., p. 54ss.

[ 128]

para beneficiar um adversário comercial ou um inimigo pessoal, podia denunciar (ou mesmo inventar) casos de subavaliação nos cálculos da riqueza taxável para efeitos da coleta dos subsídios, e daí por diante. De fato, há ampla evidência de abusos de poder por parte dos juízes de paz,99 e a capacidade de favorecer aliados e prejudicar inimigos parecia redundar no crescimento do prestígio e do clientelismo em torno dos juízes de paz: tanto é que, nos parlamentos do final do século XVI, a maioria dos parlamentares eleitos eram, também, juízes de paz em suas localidades. 10º Tal coincidência entre parlamentares e juízes de paz significava que grande parte do Parlamento devia ao monarca o favor de sua nomeação. Com isso, chegamos a um procedimento pelo qual a Coroa podia exercer certa influência sobre as decisões do Parlamento. Ao atribuir poder local, a Coroa criava um laço com um indivíduo determinado e com sua clientela de aliados. Em virtude da atribuição de poder, esse indivíduo tornava-se poderoso localmente e, portanto, criava sua própria rede de favorecimento. Essa rede melhorava suas chances de ascender à função de representante parlamentar. Se tivesse sucesso, seria, provavelmente, um defensor dos interesses da Coroa na Câmara Baixa. Assim, receber do rei uma nomeação de confiança, tal como a de juiz de paz, trazia substanciais vantagens pessoais, as quais funcionavam em via dupla: o tamanho dessas vantagens tornava a dependência dos juízes de paz frente à Coroa maior e mais interessante. Como essas vantagens eram oriundas de uma aplicação seletiva dos regulamentos reais, podemos perceber que o jogo político de que dependia a efetiva implementação local da política da Coroa implicava 99

'ºº

Braddick, p. 81 ss. Hindle, p. 187.

[ 129]

que a Coroa aceitasse aquela seletividade, sacramentando, por meio do favorecimento, a autonomia discricionária e até o autoritarismo de seus agentes locais. Estes, por sua vez, estavam submetidos ao favor arbitrário da Coroa, é verdade, mas num contexto que lhes proporcionava, em troca, poderes arbitrários em suas localidades.

A monetarização da Coroa e as novas elites econômicas No final da Idade Média, a Inglaterra tinha em comum com as monarquias europeias o fato de estar cronicamente endividada. Uma combinação de fatores contribuía para esse estado de coisas: a forma como a política de favores pela concessão de terras exigia tendia a causar diminuição contínua das terras de domínio da monarquia; a ineficiência constitutiva dos métodos de coleta de impostos, que colocavam nas mãos das elites locais a mensuração de sua própria riqueza; o aumento de gastos militares que precisava acompanhar mudanças tecnológicas nos exércitos e na marinha; o estilo de vida ostentatório e a cultura de irresponsabilidade administrativa dos reis. Diferentemente da maior parte das monarquias europeias do período, contudo, a inglesa beneficiou-se da ascensão e expansão de uma elite econômica, ou seja, de grupos sociais com capacidade de acumular e dispor de riqueza em volume cada vez maior. Esse fato determinou mudanças significativas na forma do exercício do poder monárquico. [Relações políticas na ascensão da sociedad~ produtora de mercadorias]

Para começar, é preciso atentar para a maneira como o esquema de exercício do poder pelo favor, que discutimos [ 130]

anteriormente, sofreu uma inflexão substancial ao longo do nosso período. Tal sistema se havia constituído ao longo de séculos de desenvolvimento de uma forma de vida centrada majoritariamente na posse de terra e na riqueza derivada diretamente dela. Entretanto, como vimos, nosso período assiste à ascensão de relações sociais ligadas à produção e à circulação de mercadorias. Em torno dessas relações, e para os principais atores econômicos responsáveis por elas, o problema da posse de terras assumiu um caráter secundário: de concessão real e bem imóvel, e virtualmente permanente, a terra tornou-se, para as novas elites econômicas, mero meio para um fim e, ademais, uma mercadoria ela mesma. Começa a se delinear, consequentemente, uma esfera de atuação política que só tange marginalmente a posse de terra, e tem mais a ver diretamente com a produção e a circulação de mercadorias. Como sugerimos na conclusão do Capítulo 2, o que tem lugar em nosso período é um processo paralelo de criação de novas formas de exercício de poder, ou novos espaços de pacto político, e significativa transformação das estruturas de poder já existentes. Uma dessas transformações ocorrerá em torno de um antigo instrumento real de governo: os monopólios. [Monopólios ➔

concentração de riqueza]

Vimos como, no esquema medieval, as atividades industriais e comerciais - a produção artesanal, a manufatura, a mineração, o comércio internacional ou em regiões determinadas - só podiam ser empreendidas mediante autorização específica da Coroa. Essa autorização era concedida pela compra de um monopólio: um pagamento que assegurava, para o pagador, exclusividade temporária e/ou espacial para o desenvolvimento da atividade econômica. Os valores para manutenção desses monopólios, pagos à Coroa, eram muito [ 131 l

inferiores aos lucros auferidos por seus detentores, de modo que, na concessão de monopólios, vigia uma lógica de favor semelhante à da concessão de terras: mais do que um benefício monetário direto, tratava-se do estabelecimento de uma relação política. Diante disso, no século XVI, em paralelo ao desenvolvimento e à diversificação econômica, a Coroa agiu na direção de aumentar o peso da venda de monopólios sobre sua receita. Para tanto, expandiu a regulação e o controle sobre os mais diversos ramos da produção industrial, de tal modo que, de elementos de um sistema de favores, os monopólios começaram a funcionar, de fato, como instrumentos paralelos de taxação real. Assim, por exemplo, produtos de estanho, cartas de baralho e janelas de vidro eram produzidos ou importados monopolisticamente, o que significava, ao mesmo tempo, que a indústria era protegida da competição - o que possibilitava a prática de preços altos, livres de concorrência, e favorecia a concentração-, mas, também, que dependia de pagamentos regulares à Coroa para continuar funcionando. Em breve, essa política foi expandida para o licenciamento de tabernas, o que dá dimensão das ambições fiscais da política de monopólio ao longo de nosso período. Ora, deixamos sugerido, acima, como a mecânica dos monopólios foi fundamental para a consolidação de uma elite produtora e circuladora de mercadorias na alvorada da sociedade moderna inglesa. Para um comerciante ou produtor, a garantia de mercado proporciona enorme liberdade na administração de fatores como a qualidade do produto, o preço de venda e o volume de fabricação, possibilitando controle sobre o grau de investimento para garantir lucratividade máxima. Nos ramos envolvendo produção e circulação de produtos de primeira necessidade - vestimenta, construção, ferramentas, utensílios de cozinha-, os detento[ 132]

res de monopólios tinham a garantia de acumular quantidade assombrosa de riqueza, o que, por sua vez, permitia a expansão da indústria - pela concentração,'º 1 e não tanto pela multiplicação de atores econômicos - ou o investimento em novos ramos, ou em terras. [Monopólios ➔

diversificação econômica]

A lógica dos monopólios também auxilia o surgimento de indústrias pioneiras: é o caso de produtos com mercado ainda não consolidado ou de atividades inerentemente arriscadas, como a mineração, na qual conhecer a real rentabilidade de uma mina depende de grande investimento de capital. Nesses casos, a garantia de um monopólio e a possibilidade de lucros enormes funcionam como atrativo adicional para o investimento de risco. Nesse sentido, há evidências de que a prática monopolista da Coroa inglesa funcionou como estímulo para a diversificação econômica, inclusive estimulando a entrada de capitais estrangeiros, trazendo para a Inglaterra tecnologias de ponta até então ausentes em vários ramos, como a fabricação de vidros, a metalurgia e a mineração. 102 Esse é, portanto, mais um exemplo de como a atuação estatal protecionista foi fundamental para o estabelecimento de uma sociedade produtora de mercadorias na Inglaterra. [Os empréstimos monárquicos e as origens do sistema financeiro]

A expansão do sistema de monopólios foi apenas um dos caminhos pelos quais a Coroa aumentou sua capacidade monetária. Outra forma de fazê-lo foi a contratação de empréstimos de largas proporções. Clay, II, p. 75ss. º Clay, II, p. 80ss.

101

1 2

[ 133]

Para começar, é importante entender a origem de um sistema financeiro capaz de suportar empréstimos volumosos de dinheiro. Na sociedade inglesa, a existência de tal sistema foi uma novidade de nosso período, e sua origem está ligada à rotinização de operações mercantis de média e grande proporção. Tais atividades dependem intrinsecamente de um avanço de capital para adquirir as mercadorias a serem comerciadas e que pode ser restituído com acréscimo após a venda lucrativa delas. A origem de tais empréstimos foi, a princípio, a própria elite terra tenente e comercial, e sua única garantia era a palavra dos comerciantes - a qual, contudo, tendia a ser tanto mais confiável quanto maior a riqueza acumulada. Por outro lado, o ato de emprestar dinheiro subentende alto grau de concentração de riqueza, ou seja, a existência de agentes econômicos que possuem mais dinheiro do que podem gastar na manutenção de suas vidas nababescas, por um lado, e no reinvestimento na atividade da qual obtiveram a riqueza, por outro. Assim, o sistema de crédito se sedimentou em torno da concentração de capital que caracteriza o período. Ademais, também é necessário que haja demanda financeira, ou seja: agentes econômicos que precisam pegar dinheiro emprestado e confiam que serão capazes de pagar o preço do empréstimo (os juros) mediante o emprego da riqueza na produção de mais riqueza. Tal expectativa só existe onde os agentes econômicos percebem uma tendência para o crescimento econômico em geral: no aumento da produção e do consumo. No que diz respeito aos empréstimos monárquicos especificamente, ocorre que a Coroa era, tradicionalmente, péssima pagadora. De fato, em nosso período, frequentemente lançará mão da antiga prerrogativa dos empréstimos forçados, pelos quais um súdito - sobretudo um detentor de terra da capita - podia ser obrigado a disponibilizar somas [ 134]

à Coroa, sem juros e sem prazo de pagamento. As vezes, a prerrogativa do empréstimo forçado era combinada à do conferimento de monopólios: a Coroa podia chantagear detentores desses privilégios - corporações mercantis, guildas, proprietários de direitos de mineração etc. -, ameaçando a suspensão do monopólio caso o beneficiado não se tornasse seu credor. Muitas vezes, tais empréstimos não seriam pagos jamais - como, aliás, era de se esperar, visto a publicamente precária situação fiscal da monarquia inglesa no período. Por outro lado, além dessas táticas de intimidação das elites, a combinação entre monetarização social e a ancestral política de favorecimento permitiu, também, medidas de colaboração, como o emprego sistemático do afiançamento: de modo a apresentar-se como cliente em potencial dos provedores de crédito, a Coroa lançava mão de intermediários que garantiam seus empréstimos. Esses fiadores eram obtidos pelo esquema de favor, segundo uma lógica que apelava tanto para sua lealdade para com a Coroa quanto para a sua confiabilidade frente ao credor. Isso porque a condição de fiador da Coroa vinha, muitas vezes, atrelada a uma concessão que envolvia receita garantida: por exemplo, o direito de recolher um imposto. No que concedia - digamos a um membro da gentry, ou a um consórcio de mercadores, o direito de recolher os impostos reais sobre a pesca numa determinada região ou as taxas alfandegárias por determinado período, a Coroa criava um sujeito econômico dependente de si própria e também um provável concentrador de riqueza, eventualmente capaz de um desfalque junto a algum credor. Outro curioso procedimento de afiançamento de empréstimos da Coroa envolvia a nomeação de oficiais para postos governamentais responsáveis por gastos particular[ 135]

mente vultosos. 103 Um aristocrata que ocupasse um posto desse tipo - por exemplo, o de supervisão de um setor da marinha de guerra - seguramente teria controle sobre enorme quantidade de recursos financeiros da Coroa. Isso, por si só, lhe dava credibilidade e liquidez para garantir um empréstimo. Entretanto, em casos desse tipo a sua qualidade de fiador ia mais longe: o dinheiro que lhe fosse emprestado seria gasto adquirindo mercadorias da própria elite comercial manufatureira, que, assim, no fim das contas, ganhava duplamente: ao emprestar à Coroa os recursos que possibilitariam a compra de seus próprios produtos e no recebimento dos juros de seus empréstimos. Exemplos como esse permitem um vislumbre particularmente revelador dos mecanismos pelos quais o Estado moderno efetivamente governa por meio de uma indissociável dependência mútua para com a elite produtora e circuladora de mercadorias.

A reforma militar e a concentração de poder pela Coroa A reconfiguração da relação política entre a Coroa e as elites bem como o desenvolvimento da capacidade financeira da Coroa, aconteceram em paralelo a outras transformações no esquema medieval de governo por meio do serviço: em especial, transformações no campo militar. [Limites do serviço militar medieval]

Vimos como a relação entre a aristocracia e a Coroa estava historicamente enraizada no serviço militar. Essencialmente, tal serviço consistia na prerrogativa da Coroa de mobilizar uns aristocratas montados e armados com o que de melhor possuíam para garantir sua própria eficiência e segurança 103

Braddick, p. 251 ss.

[ 136]

em combate e, além disso, exércitos mais ou menos treinados formados por pessoas comuns com os armamentos rústicos que estavam ao alcance da riqueza acumulada pelos aristocratas individualmente. Em nosso período, esse esquema apresentava limitações consideráveis. Especialmente a partir do século XV, a introdução de avanços na tecnologia militar vinha tornando os últimos armamentos cada vez mais inacessíveis para a aristocracia. Esta última, ademais, relutava em destinar sua riqueza acumulada a investimentos militares, especialmente tendo em vista que a geografia insular da Inglaterra a protegia naturalmente de invasões: a última de proporções significativas tinha sido a normanda, no século XI. De fato, toda atividade militar inglesa nos últimos séculos tinha envolvido guerras civis e levantes populares ou tentativas, por parte da monarquia, de expandir seus domínios no continente europeu. Eram estes últimos os conflitos que demandavam mais homens e recursos: pode-se dizer que eram a principal fonte de gastos para a Coroa, que precisava não apenas bancar a caríssima logística de enviar e manter tropas a ultramar, mas também a atualização do custoso equipamento bélico da época em que a pólvora vinha se tornando crescentemente determinante para a atividade militar. Os generais que comandavam as tropas reais nessas campanhas continentais eram geralmente membros da aristocracia esperançosos de conseguir favor real pelos seus feitos militares; porém, para além desses poucos indivíduos, tais campanhas traziam pouco ou nenhum benefício direto à aristocracia que, portanto, mostrava-se particularmente relutante em envolver-se nelas. Ora, a atividade militar era uma das poucas maneiras pelas quais a Coroa podia conquistar mais terras - e já vimos como, no início de nosso período, a conquista de terras [ 13 7]

era fundamental para a expansão e manutenção do poder da Coroa. Ao mesmo tempo, a Coroa tinha que ser capaz de bancar por si mesma a maior parte das empreitadas militares em que se envolvia. A esse problema somou-se uma peculiar configuração internacional que colocou a Inglaterra quase continuamente em estado de guerra com as grandes potências europeias. O momento mais dramático dessa configuração foi a deflagração da chamada Invencível Armada pela monarquia espanhola, em 1588, a qual configurou a única real ameaça palpável de invasão desde a conquista normanda, mas pôs em evidência a fragilidade e o tamanho comparativamente reduzido das Forças Armadas inglesas. [Monetarização dos serviços

militares ➔

centralização do exército]

De fato, a Inglaterra do início do século XVI era tida como uma potência militar medíocre diante de parâmetros europeus. Mas, ao longo de nosso período, a Coroa tomou medidas claras no sentido de transformar essa situação. No centro dessas medidas esteve a gradual monetarização dos serviços militares, ou seja, a substituição do serviço militar direto da aristocracia por pagamentos em dinheiro. 104 Assim, por exemplo, em vez da prerrogativa de ordenar à aristocracia que fornecesse equipamento militar para determinado contingente, a Coroa estabeleceu valores em moeda para esse equipamento e determinou seu recolhimento junto à aristocracia. Dessa prática decorreu uma alteração de suma importância para a organização militar inglesa: afinal, por meio dela, a Coroa passaria a centralizar parte significativa dos recursos socialmente despendidos no exército. Assim, tratava-se de uma dupla afronta aos interesses da aristocracia: não apenas porque impunha a ela gastos em moeda, 104

Tratava-se de um processo que, na Europa continental, vinha ocorrendo desde o século XIV.

[ 138]

mas porque, eventualmente, retiraria de seu poder direto o controle sobre as Forças Armadas, colocando-o nas mãos da monarquia. 105 É verdade que esse processo de centralização militar só chegará ao seu apogeu na guerra civil inglesa, na década de 1640. Assim, na prática, em nosso período, a milícia organizada localmente pela gentry ainda teve importância significativa. No entanto, mesmo em seus estágios iniciais, não é razoável esperar que a gentry tenha ficado alheia ao significado político das mudanças que a Coroa lentamente implementava. Afinal, tais mudanças implicavam uma alteração substantiva no jogo de forças com a aristocracia e o rei, que eventualmente poderia não apenas prescindir dos serviços militares de seus súditos, mas também poderia contar com um exército próprio, independente da aristocracia e que, portanto, poderia ser usado contra ela a seu bel-prazer. Ora, como consistia num ataque frontal aos interesses de curto e longo prazo da aristocracia, a Coroa não podia apostar no serviço ordinário da gentry para implementar a monetarização dos serviços militares. O que fez, então, foi criar uma classe nova de oficiais, os lugares-tenentes (lieutenants). Esses oficiais ficariam encarregados não apenas de coletar as tarifas militares, mas também de empregá-las para organizar o exército real em nível regional. Embora, às vezes, oriundos da gentry, os lugares-tenentes estavam no centro de uma política de favorecimento seletivo: o ganho em termos de poder regional de tais oficiais era tal que justificava que atuassem contrariamente ao seu interesse de classe. O controle sobre gastos militares, ainda que em nível regional, implicava ter à disposição quantias substanciais de moeda. Isso trazia aos lugares-tenentes nítidas vantagens clientelistas, sob a forma da escolha discricionária de qual fornecedor 105

Braddick, p. 181.

[ 139]

usar para suprir os equipamentos, por exemplo, o que podia criar toda uma rede de lealdade e favorecimento. Ao mesmo tempo, enquanto concentrador de moeda, o lugar-tenente aumentava sua capacidade privada de conseguir crédito para suas próprias atividades econômicas, uma considerável vantagem econômica. Ao mesmo tempo, há evidências de que os lugares-tenentes originários da gentry não eram escolhidos por critérios de prestígio local - de fato, às vezes, nem mesmo atuavam em sua localidade de origem -, mas de competência militar. Afinal, em nosso período, devido às suas campanhas no continente, já havia se formado um estrato de comandantes experimentados e competentes. 106 Dessa forma, ao mesmo tempo que deslocava a organização regional do exército da divisão aristocrática do espaço, a monetarização militar introduzia a questão do profissionalismo e da habilidade técnica no seio das questões de administração pública - algo que também caracterizará a organização dos conselhos pela Coroa em nosso período. Nesse sentido, já em meados do século XVI, os lugares-tenentes receberam instruções explícitas da Coroa para contratar suboficiais especializados em armas de fogo. A aristocracia, afinal, estava historicamente alheia às técnicas e táticas envolvidas em sua utilização, não podendo, portanto, satisfazer as necessidades da Coroa nesse sentido. Esses suboficiais eram, na prática, colocados no comando dos regimentos que a gentry continuava encarregada de convocar para o treinamento periódico, o que consistia numa afronta adicional à aristocracia. 107 106

107

Nolan, John S. The militarization of the Elizabethan state. In: Journal of Military History. Vol. 58, n. 3 (Jun. 1994), p. 404ss. Braddick, p. 186.

[ 140]

[A marinha mercante como marinha de guerra]

Um movimento análogo ao de centralização do exército foi desencadeado pela Coroa na reforma da marinha de guerra. Como veremos com mais detalhes do Capítulo 5, devido ao turbulento cenário internacional, a manutenção do comércio de importação e exportação, tão fundamental para as novas elites econômicas, necessitou de amparo militar ao longo de todo o nosso período. Embora as cidades costeiras tivessem obrigação de prestar serviço nesse sentido, fornecendo embarcações e armamentos, sua implementação era precária, por razões análogas às relacionadas acima ao serviço militar da gentry. Em nosso período, o que se dava na prática era que os próprios mercadores responsáveis pelo comércio internacional providenciavam as embarcações armadas, às vezes por intermédio dos conselhos citadinos, funcionando como instituições organizadoras e centralizadoras de recursos. A Coroa participava desse esforço diretamente, pagando prêmios para quem construísse embarcações de médio porte; 1º8 em troca, afirmava sua prerrogativa de poder convocar esses navios e suas tripulações para a atividade militar sob comando monárquico. Esse estímulo financeiro governamental foi fundamental para estimular a expansão da indústria naval e a consolidação de uma indús- . tria metalúrgica, inclusive de armamentos. 1º9 [A pirataria e a monetarização dos serviços de marinha]

Entretanto, as oscilações diplomáticas do nosso período interferiam no bom funcionamento desse sistema. Alterações no cenário internacional causavam divergência de interesses entre a Coroa e a classe mercantil: a expansão do comércio º'

1

Braddick, p. 205.

º Braddick, p. 204.

1 9

[141 l

de tecidos de lã com o continente conflitava ora com os embargos mútuos declarados entre a Inglaterra e as potências europeias - o que causava potencial diminuição dos mercados -, ora com a suspensão desses embargos, o que aumentava a concorrência. 1 w No que tange aos nossos temas, duas consequências palpáveis emergiram dessa situação. A primeira foi a consolidação da pirataria corsária, ou seja, com licença e patrocínio da Coroa- em inglês, a prática de privateering. Os corsários, ou privateers, emergiram como um setor de mercadores militarizados que enriqueciam por meio de um misto de pilhagem, saque, contrabando e comércio regular. Esse setor consolidou-se firmemente na Inglaterra, recebendo investimentos constantes das elites econômicas, fazendo fortunas, estimulando o crescimento de uma classe de marinheiros e comandantes experientes, bem como de toda uma tecnologia naval específica para produzir navios ágeis para a guerra e o comércio. A segunda consequência foi uma tendência da classe mercantil a negligenciar ao máximo os serviços de marinha que devia à Coroa, fazendo com que esta, por sua vez, respondesse com uma progressiva monetarização desses serviços. 111 Assim, no final de nosso período, abandonando o subsídio indireto à construção de navios, a Coroa criou impostos especiais, as tarifas de marinha, os quais, somados às taxas alfandegárias recentemente reajustadas, possibilitaram a centralização e o controle direto da produção de uma marinha de guerra nova em folha, composta de embarcações feitas exclusivamente para operações militares, e não mais para a dupla tarefa da guerra e do comércio. Com isso, acompanhou uma tendência europeia de empregar navios de guerra de maior porte, com canhões mais pesados e mais 11

º Nolan, p. 415.

111

Braddick,p.241ss.

[ 142]

numerosos. Trata-se, portanto, de um movimento complementar ao que foi empreendido com respeito ao exército. [O acirramento da relação entre a Coroa e a gentry]

A prática dos empréstimos forçados, a monetarização dos serviços e a centralização das Forças Armadas foram todas ações por parte da Coroa no sentido claro de concentrar o poder, diminuindo sua dependência frente às elites em sentido amplo, ao mesmo tempo que reafirmavam a dependência para com determinados membros e subgrupos dessas elites. A aristocracia não ficou cega a esse movimento. Em particular, a gentryvia atacado um dos fundamentos de sua relação com a Coroa: aquela entre taxação e representação. Os parlamentos haviam servido, "desde tempos imemoriais", para condicionar o financiamento da Coroa à negociação dos interesses da aristocracia. O fato de que a Coroa convertia serviços em pagamentos e extorquia a aristocracia pelos empréstimos forçados significava que, na prática, a Coroa vinha desenvolvendo uma prática de "taxação sem representação': conforme formulado pelo discurso político da época. Esse discurso estava enraizado sobretudo em meio à gentry. Afinal, era sua riqueza - uma novidade histórica criada pelos desenvolvimentos socioeconômicos recentes - que a Coroa procurava atingir pelas transformações na política fiscal. A articulação política dos gentlemen será um fator determinante no final do nosso período e culminará na guerra civil do período seguinte. [Especificidade do Estado moderno inglês explicitada militarmente]

A lenta, porém clara, superação do sistema de favor e serviço na dimensão militar restabeleceu o poderio militar inglês sob novas bases: agora não dependeria mais exclusivamente da fidelidade específica entre a figura pessoal do monarca e o [143]

setor social da aristocracia, mas da capacidade fiscal da Coroa ou do seu poderio econômico. Isso, entretanto, não significa que, para o exercício do poder militar, a Coroa se tornou independente de relações pessoais - o que acontece é que essas relações pessoais passaram a ser mediadas pelo dinheiro. Essa transformação é notável e, para nós, é nela que jaz o caráter moderno da operação da Coroa que faz com que essa operação possa ser designada pela expressão "Estado moderno". Trata-se de determinada conformação política envolvendo a Coroa e as elites econômicas, com a finalidade do exercício do poder - no caso, militar - e baseado no poder econômico. Olhando retrospectivamente, podemos dizer que esse quadro é o oposto do que se dava na sociedade inglesa pré-moderna, no qual a posição econômica privilegiada da elite e da Coroa estava baseada num pacto militar - o serviço feudal-, em vez de sustentar o poder militar. É claro que, no fim das contas, o poder militar, tanto na sociedade moderna quanto na pré-moderna, tem como finalidade a manutenção dos privilégios políticos e econômicos; entretanto, nossa observação não diz respeito à função do poder militar, mas ao seu fundamento e a sua origem. O xis da questão, segundo nos parece, é que a Coroa, na sociedade moderna, mantém o poder militar pelo incremento de sua riqueza e da relação com elites que, por sua vez, não colaboram com a manutenção do poder militar na medida em que exercem, elas mesmas, poder militar: não são mais a nobreza armada, mas fazendeiros e comerciantes endinheirados. Como veremos, essa primazia do econômico que se evidencia na caracterização militar do Estado moderno transbordará a dimensão militar. Assim, no que se segue, assistiremos a uma repetição desse tema em outros planos da atividade da Coroa. O resultado de tal repetição será a imagem do Estado moderno que importa formar no presente trabalho. [ 144]

A Coroa e o Parlamento na política de terras Outra importante expressão da alteração da relação entre a Coroa e as elites econômicas inglesas é o problema da legislação e da ação monárquica e parlamentar em torno da questão da terra. [As comissões de despovoamento]

Desde o século XV, a ocupação territorial se havia configurado como um problema para a administração social inglesa. Observamos acima como o processo de conversão de terras aráveis em terras pastoris havia tornado parte da elite inglesa sensível ao problema do despovoamento ou da remoção das aldeias camponesas para dar lugar aos rebanhos de ovelhas. Sem falar no impacto monstruoso que teve sobre a vida das pessoas comuns, esse processo atingia a economia agrária pré-moderna centralmente. A diminuição da população rural significava, em primeiro lugar, a diminuição da mão de obra disponível, o que atingia senhores, grandes fazendeiros e médios camponeses, que, sem relação direta com a criação comercial de animais, ainda desenvolviam atividades conectadas ao plantio. Em segundo lugar, a indisponibilidade de braços para o treinamento militar miliciano afetava a capacidade militar da aristocracia, especialmente da gentry. Em terceiro lugar, ainda que a Coroa eventualmente tivesse estabelecido um imposto especial sobre os rebanhos, o despovoamento tinha evidentes impactos fiscais. Finalmente, em regiões costeiras, o despovoamento podia significar que o território ficaria simplesmente desguarnecido pela ausência de habitantes e, portanto, vulnerável a invasões sorrateiras. Atenta a todos esses problemas, e ocasionalmente tocada por considerações humanísticas a respeito da função da terra para a sobrevivência humana, ao longo dos séculos XV [ 145]

e XVI, a Coroa foi levada a criar as chamadas comissões de despovoamento. Consistiam em pequenos organismos executivos, compostos, como sempre, por membros da aristocracia local, convocados a prestar serviço administrativo, com a finalidade de estudar em sua localidade a amplitude e as causas do despovoamento e, quando necessário, remediá-lo. O fato de que, no mesmo período, algumas comissões de cercamento também foram estabelecidas sugere que a Coroa estava ciente das causas do despovoamento e, até certo ponto, estava disposta a lutar contra elas. Contudo, na medida em que os responsáveis por essas comissões eram membros dos mesmíssimos grupos sociais que empreendiam o cercamento e a concentração de terras que estavam por trás do despovoamento, é de se esperar que sua eficácia tenha sido bastante reduzida. [Política judicial contra a concentração de terras]

As comissões, contudo, não foram a única expressão da política da Coroa contra a concentração de terras. Como vimos, o impulso econômico que levou à concentração de terras esbarrava nos esquemas medievais de posse, em especial a terra comum. Também deixamos assinalado que os tribunais de lei comum - diretamente subordinados à prerrogativa jurídica do monarca - geralmente atuavam em prol da proteção das liberdades comunais. Assim, se um senhor agia no sentido de aumentar os aluguéis de modo a expulsar os camponeses da terra, muitas vezes os camponeses conseguiam coibir essa ação apelando ao juiz de paz ou a um tribunal real - processos custosos, que envolviam viagens a Westminster, mas que, às vezes, podiam ser custeados conjuntamente pelos habitantes de uma aldeia. De fato, por exemplo, entre 1517 e 1518, os altos tribunais da Coroa obrigaram vários dos maiores terratenentes da Inglaterra a reabrir as terras comuns em seus senhorios. [146]

[Política parlamentar contra a concentração de terras]

Essa política judicial era complementada no plano legislativo: não foi apenas a Coroa como poder executivo e judicial que teve uma política de proteção da terra comum, mas também o aparato legislativo monárquico-parlamentar. De fato, nos anos de 1488 e 1489, foram aprovados estatutos contra as práticas que culminavam na conversão da terra arável em pasto. Ao longo do século XVI, novos estatutos de caráter idêntico foram aprovados sucessivamente. Um imposto especial sobre o tamanho dos rebanhos foi estabelecido em 1548. Ademais, as comissões especiais contra odespovoamento, embora apontadas diretamente pela Coroa, eram aprovadas no Parlamento. Isso significa que, até certo ponto, tais comissões tinham a aprovação das elites econômico-políticas inglesas. [Oscilações na política de terras]

Afinal, por que motivo a Coroa, e sobretudo o Parlamento, agiriam contra os interesses da concentração de terras? O mais esperado não seria que o Parlamento atuasse consistentemente na defesa e promoção da concentração de terras? De fato, sabemos que tal atuação não foi absolutamente consistente, mas apresentou oscilações desconcertantes, especialmente no final do século XVI e no início do século XVII. 112 Assim, no Parlamento de 1593, estatutos anteriores que protegiam a terra arável foram anulados, apenas para serem restaurados em 1597 e anulados novamente em 1607 etc. [Levantes populares]

O que se passa é que grande número de fatores entrava em jogo para determinar a política de terras na Inglaterra de 112

Clay, II, p. 240ss.

nosso período. Havia, para início de conversa, o problema das revoltas populares, tão numerosas. Trataremos delas com mais detalhes no Capítulo 5. Por ora, basta dizer que, quando a concentração de terras começava a atuar consistentemente no sentido de limitar as liberdades comunais, a população enraivecida promovia levantes custosos não apenas em termos da propriedade destruída mas também do ponto de vista do pacto de classes entre a aristocracia e o campesinato. O Parlamento podia sentir-se obrigado a manifestar-se em termos legislativos como resposta a esses levantes - os quais, de fato, às vezes ocorriam durante os parlamentos ou envolviam petições formais à Coroa e à aristocracia. [Alta dos preços dos alimentos e instabilidade econômica]

A política contra a concentração podia ser, ainda, uma resposta à alta nos preços dos alimentos. Vimos como a mercadorização dos alimentos resultou em aumento considerável dos preços dos alimentos ao longo de nosso período. Concretamente, esse aumento tomava a forma de picos regionais de alta e baixa dos preços, conectados à diminuição da quantidade das terras disponíveis para produção de alimentos, em virtude da conversão da terra arável em pastoril. Do ponto de vista das elites, as altas dos preços dos alimentos provocavam turbulências em todas as esferas da economia: geravam pressão para o aumento dos salários, aumentavam os gastos familiares, inviabilizando o pagamento dos aluguéis (o que, evidentemente, não é ruim apenas para quem vive na terra, mas para quem a aluga), além de causar levantes populares. Com isso, às vezes interessada na manutenção pontual de certa estabilidade econômica, a elite terratenente parlamentar podia ter razões para atuar na direção da limitação da concentração de terras. [ 148]

[A Coroa contra a aristocracia]

Por parte da Coroa, além de algum escrúpulo relacionado aos deveres do monarca para com seus súditos - fator usualmente enfatizado pela historiografia-, as razões para empreender uma política contra a concentração de terras certamente tinham suas bases no delicado equilíbrio que regia as relações entre o monarca e a aristocracia. Vimos como uma das vantagens históricas da Coroa inglesa, derivadas da conquista normanda, era o poder peculiar que a Coroa tinha sobre a manutenção dos títulos aristocráticos. Esquemas de concentração de terras que passassem pela aquisição de títulos de posse livre criavam uma classe de proprietários de terras imunes às prerrogativas medievais da Coroa, visto que a posse livre não dependia de serviços de qualquer espécie, já que não passava por um ato de concessão real. Um gentleman que usasse sua riqueza para adquirir títulos de posse livre saía, assim, parcialmente do escopo do poder político do monarca. [A ineficácia dos estatutos)

Assim, a Coroa tinha razões para pressionar o Parlamento no sentido da aprovação de estatutos contra a concentração de terra - e, portanto, contra o interesse dos parlamentares. Estudar os sutis jogos de poder envolvidos na aprovação de cada uma dessas leis extrapolaria o escopo do presente trabalho. Contudo, podemos dizer que, por trás de cada aprovação dessas, estava uma gentry convicta de que, devido aos esquemas do exercício de poder local e do favor e serviço, a implementação da legislação caberia a ela própria. No fim das contas, ainda que obrigada a aprovar ou comprada para aprovar determinada legislação, a gentrypodia simplesmente tratar sua implementação com negligência. Como vimos, em certa medida, a instituição dos juízes de paz funcionava no sentido de coibir a negligência da gentry; mas, a longo [ 149]

prazo, diante do fato consumado da concentração de terras no período, sabemos que essa coibição foi ela mesma relutante e ineficiente. [Divergências políticas no Parlamento]

Também não é difícil imaginar que as oscilações na política de terras se devessem a oscilações de configurações de interesse dentro do Parlamento. Dependendo da maneira como a concentração de terras vinha sendo empreendida em cada período, a resposta de cada setor social representado nele poderia ser diferente. Os impostos contra os grandes rebanhos, por exemplo, não afetavam diretamente os fazendeiros que estivessem investindo na concentração de terras para a venda de alimentos. Por outro lado, a gentry podia concentrar terras forçando ativamente sua desocupação pelo aumento dos aluguéis e fechando terras comuns - algo que poderia ser fiscalizado pelos tribunais de lei comum. Os yeomen, por outro lado, concentravam terras em menor escala e menos velozmente, e, como membros do campesinato, suas posses podiam depender do uso de terras comuns para ter eficácia econômica. Assim, os yeomen, mesmo quando envolvidos nas mesmas atividades econômicas que a gentry, podiam divergir dela quando o assunto era as terras comuns e as liberdades comunais. [Concentração de terras e problema jurisdicional]

Finalmente, havia uma sutil questão jurisdicional envolvida na concentração de terras, ligada à forma como a terra era obtida, e que determinava, para a Coroa, um comportamento dúbio com relação ao problema do engrossment e do cercamento dos campos. Vimos como o senhorio aristocrático compreendia não apenas um espaço de exploração da terra e do trabalho, mas, também, de exercício de um poder jurídico e legislativo específico: para questões de posse da terra, [150]

ofensas civis e pequenos delitos, a autoridade máxima, nas terras de domínio, era o tribunal de herdade. Em contraste, a terra sob posse livre, e controlada por yeomen, ficava fora de todo senhorio, fora da jurisdição do tribunal de herdade e, portanto, inteiramente sob a jurisdição da lei comum e dos tribunais reais. Isso quer dizer que, do ponto de vista do exercício do poder jurídico, havia, para a Coroa, uma diferença substancial na acumulação de terras pela aristocracia, cujo poderio se expandia à custa da jurisdição dos tribunais reais, e a acumulação de terras via posse livre, praticada geralmente pela yeomanry, que corroía as terras de domínio e expandia a jurisdição dos tribunais de lei comum. Portanto, havia razão para que, diante de cada uma dessas formas de acumulação de terras, praticada por diferentes setores sociais, a Coroa reagisse de forma diferente.

A dimensão judicial da concentração de poder pela Coroa As sutilezas da política de terras lançam luz sobre um traço importante da atividade da Coroa em nosso período: sua preocupação em fortalecer e expandir seu poderio judicial e sua capacidade efetiva de exercê-lo. Vimos como, historicamente, a monarquia inglesa gozava de prerrogativas privilegiadas nesse sentido. Em nosso período, a erosão gradual do sistema de favor e serviço operou simultaneamente sobre essas prerrogativas no sentido de sofisticá-las, resultando numa série de práticas de governo por meio da lei, muitas delas dando-se à margem da relação com o Parlamento. [As proclamações reais]

Uma das expressões mais eloquentes disso foram as proclamações reais. Tratava-se de manifestações oficiais da vonta[ 151 l

de do monarca, e tinham feição ao mesmo tempo legislativa e executiva. Era por meio de proclamações, por exemplo, que a Coroa convocava os parlamentos ou os dissolvia, ou, ainda declarava guerra ou estado de sítio. Contudo, as proclamações alcançaram enorme escopo. De 1597 até o final de nosso período, a Coroa emitiu uma série de proclamações convocando a gentry a ocupar seus lugares na administração local, em vez de ausentar-se do campo para cuidar de assuntos privados. Essas proclamações foram, às vezes, reforçadas por ações no tribunal supremo - a chamada Câmara Estrelada (Star Chamber)-que, algumas vezes, convocava pessoalmente os aristocratas a prestar satisfações sobre sua negligência na implementação dos comandos reais, o que podia gerar um custoso processo por desobediência. Além disso, as proclamações reais expandiram em escopo, abarcando várias dimensões da vida social: houve proclamações regulamentando o preço do pão, a caça ilegal, a boataria política, a hospedagem, a fabricação de bebidas, os duelos, o comércio de rua, o linguajar vulgar no trato dos negócios de estado, e daí por diante. 113 [Expansão das atribuições dos JPs. Controle administrativo direto]

Proclamações tão específicas quanto essas são peculiares de nosso período, e atestam a ambição da Coroa de interferir diretamente nos afazeres do reino em nível local. Ora, como vimos, o esquema do serviço aristocrático tornava a Coroa refém dos interesses da aristocracia no que dizia respeito à implementação local da sua política de governo. Assim, para fazer valer as proclamações de tipo específico exemplificadas acima, a Coroa também atuou no sentido de regular a atividade dos tribunais reais itinerantes, bem como dos juízes de 113

Hindle, p. 63.

[ 152]

paz - os quais, lembremos, estavam subordinados diretamente à Coroa. As atribuições dos juízes de paz foram expandidas para incluir a implementação das proclamações, e novas proclamações foram editadas regulando a atividade dos tribunais reais e dos juízes de paz. Manuais legais para ampla circulação foram encomendados pela Coroa e produzidos pela primeira vez na Inglaterra, de modo a padronizar sua atividade. 114 Comissários nomeados pela Câmara Estrelada eram sistematicamente encarregados de supervisionar essa atividade, e a Câmara emitia constantemente ordens de serviços cobrando dos juízes de paz obediência às suas diretrizes. Essas ordens eram transmitidas nas reuniões mensais mandatárias dos juízes de paz nos tribunais regulares de lei comum. É importante observar que, devido ao seu estatuto de tribunal supremo, a Câmara Estrelada tinha autoridade e autonomia para multar ou punir de outras formas os juízes relutantes: de fato, em determinados casos, a Câmara flertava com a ideia de que desobedecer uma proclamação real era crime de alta traição, insinuando que estaria disposta à aplicação da pena capital! Era assim, portanto, que a Coroa assegurava que haveria oficiais em nível local para implementar sua política. Note-se bem: não mais pelo favor, mas pelo controle administrativo direto. É verdade que esse controle não alcançou eficácia total durante o nosso período, 115 entretanto, mesmo em seus estágios iniciais, consiste numa ruptura clara com a exclusividade do sistema de favorecimento e privilégio seletivo por meio do qual buscava fazer valer sua vontade em nível local. A tentativa de compelir os juízes de paz a fazerem valer a lei comum e a vontade do rei equivale a tratar os juízes de paz, membros da elite, como pessoas comuns, subme114

Briggs et ai., p. 49.

115

Clay, II, p. 237.

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tidas aos reis, como o mais humilde camponês. Esse controle judicial-administrativo exercido pela Coroa sobre seus próprios oficiais distancia a atividade monárquica de governo dos esquemas medievais de favor, alçando-a à esfera específica do Estado moderno. [Interferência governamental sobre a economia]

A judicialização da atividade governamental não ficou restrita às proclamações reais. A legislação que se desenvolveu em torno do problema da concentração de terras envolveu, em nosso período, uma série de estatutos que reafirmavam a prática ancestral do controle do preço dos alimentos, e a implementação dessa legislação também coube aos juízes de paz, que foram incumbidos de fiscalizar os preços praticados nos mercados a partir de 1527. Essa fiscalização deveria ser implementada segundo um procedimento centralizado, rigidamente delineado e apresentado pela Coroa para todos os juízes de paz do reino, e que eventualmente tomou a forma dos chamados "Dearth Orders': que aqui traduziremos livremente por "regimentos contra a carestia': sistematicamente reemitidos a partir de 1586. 116 Tratava-se de ordens executivo-administrativas que especificavam, pela manifestação da vontade do rei, e sob a fiscalização do tribunal superior, as formas do cumprimento de legislatura aprovada pelo Parlamento. Na prática, os regimentos contra a carestia constituíam uma ferramenta permanente de controle dos preços nos territórios da Coroa, e em seu nome. É importante enfatizar esse caráter permanente, que contrastava com medidas anteriores que dependiam de discussão e aprovação parlamentar e, como sempre era o caso na sociedade pré-moderna, dependiam exclusivamente do serviço aristocrático para sua implementação. Mais uma vez, portanto, testemunhamos 116

Clay, II, p. 228.

[ 154]

um movimento, por parte da Coroa, de empregar um viés judicial-administrativo para contornar o esquema medieval de serviço e compelir à obediência os juízes de paz, enquanto oficiais especiais submetidos a regulamentos. A intervenção judicial-administrativa da Coroa sobre a economia teve, ainda, outra expressão importante, na forma do Estatuto dos Artífices (Statute of Artificers) de 1563. O que essa legislação parlamentar realizou foi transferir do Parlamento para os juízes de paz a responsabilidade sobre a fixação dos salários. Isso significou maior agilidade e maior especificidade local para as intervenções governamentais sobre a economia, o que claramente interessava à gentry que operava economicamente em nível local - e à Coroa, que intensificava seu poder de fato. [Judicialização da vida e o declínio da justiça comunal]

A intensificação da atividade judicial-administrativa não ficou restrita, contudo, às relações de governo entre a Coroa e as elites. Nosso período também assistiu à maior penetração dos tribunais reais e da lei na esfera da vida privada. Se, por um lado, como vimos, os tribunais de herdade e os tribunais eclesiásticos tinham competência para tratar de assuntos que iam desde crimes contra a propriedade até o controle da sexualidade, por outro lado também é verdade que grande parte dos casos levados a esses tribunais não resultava em processos formais. Quer dizer que as cortes que presidiam esses tribunais ouviam e registravam queixas, porém não chegavam a pronunciar-se sobre a culpa ou inocência dos acusados, nem, portanto, a aplicar penas, porque as partes envolvidas realizavam acordos extrajudiciais. Assim, por exemplo, um camponês fazia uma queixa contra um vizinho, acusando-o de lhe roubar uma ovelha. Oficiais paroquianos de pequeno grau tinham autoridade para ouvir essa queixa e testemunhar a celebração de um acordo de [ 155]

reparação: o ladrão devolvia a ovelha, pedia desculpas formalmente, eventualmente oferecia também uma compensação monetária, e a coisa acabava aí. 117 Além desses acordos informais, também existiam procedimentos cotidianos de punição comunitária que se davam às margens dos tribunais e que usualmente eram aplicados contra infratores de normas morais. Esses procedimentos envolviam sobretudo rituais de humilhação pública, como acompanhar o infrator pelas ruas batendo panelas e entoando canções indecentes ou assomar à casa do infrator com baldes de estrume de manhã cedo etc. O lado cômico dessas punições não deve obscurecer seu sentido absolutamente prático. Uma vez que muito da divisão do trabalho, tanto no vilarejo camponês quanto no espaço urbano, dependia da aprovação política, o julgamento popular de imoralidade podia ter graves consequências, servindo como justificativa para a aplicação de sanções de ordem material. Assim, um indivíduo que fosse submetido à humilhação pública dificilmente seria elegível para o oficialato paroquiano e podia ser impunemente desfavorecido durante os processos de divisão de terras. Também seria fácil justificar a negação de seu pedido de cidadania ou de promoção à categoria de mestre artesão, ou mesmo a manutenção de seu contrato como aprendiz. É importante observar que formas extremas de punição comunitária, envolvendo violência ou morte, parecem ter sido raríssimas, sendo geralmente exercidas apenas em situações de levante generalizado, em que comissionários, oficiais do fisco ou mercadores percebidos como gananciosos eram atacados. O que é relevante ter em conta aí é que, para o mal e para o bem, a comunidade rural e urbana, pelas punições comunais e os acordos extrajudiciais, exercia controle judicial 117

Briggs et ai., p. 58.

[ 156]

imediato sobre seus próprios assuntos. Ocorre que, em nosso período, justamente o caráter imediato desse controle é que começa a desaparecer: em paralelo à concentração de poder pela Coroa e pelas novas elites econômicas, a justiça oficial e centralizada dos tribunais começa a substituir gradualmente a justiça popular. O número de condenações em tribunais itinerantes parece ter crescido em torno de 30% nas últimas décadas do século XVI. 118 Isso quer dizer que, na prática, ao longo de nosso período, a justiça real se fez crescentemente mais determinante na vida das pessoas comuns. [A obrigação judicial]

Uma das expressões mais eloquentes dessa tendência de mediação da vida comum pelos tribunais em nosso período é o instrumento da obrigação judicial (binding over). Tratava-se de uma ordem emitida por um juiz para que um indivíduo jurasse "manter a paz", o que podia incluir desde não proferir palavrões e sacrilégios até não se aproximar da propriedade de alguém ou não agir agressivamente com relação a alguém. Uma multa era fixada pela ordem do juiz, de modo que, caso quebrasse seu juramento, além de colocar sua alma em perigo, o obrigado tinha que efetuar um pagamento em dinheiro para o tribunal. Assim, a obrigação judicial colocava um preço sobre o bom comportamento, demonstrando como a expansão da atividade judicial e a monetarização andam juntas na consolidação do Estado moderno. Observe-se que a ordem de obrigação judicial era proferida por um juiz de um tribunal de lei comum, mas podia ser requisitada por qualquer pessoa. Diante de tal requisição, o juiz analisava os precedentes do possível obrigado e emitia a ordem discricionariamente. Na prática, tratava-se de um exercício de poder penal antes de o delito ser cometido. Por 118

Hindle,p.117.

[ 15 7]

razões óbvias, os muito pobres estavam imunes à obrigação judicial: era inútil colocar um preço em suas palavras e ações, visto que não teriam dinheiro para pagar a multa. Como envolvia uma questão de honra, a obrigação judicial não podia ser aplicada a indivíduos pertencentes à alta nobreza, que eram considerados eminentemente honrados. Contudo, a obrigação judicial podia funcionar como instrumento de imposição de bom comportamento à gentry. De fato, uma lista de razões plausíveis para uma ordem de obrigação judicial, constante de um manual jurídico de 1618, incluía práticas de demonstração de poder da pequena nobreza, como locomover-se a cavalo acompanhado por grande número de serviçais ou entregar armamento para empregados. Finalmente, a obrigação judicial também podia servir para aumentar a eficácia da atuação dos juízes de paz, visto que ameaçá-lo ou desobedecê-lo, segundo o mesmo manual, também era causa suficiente para imposição de uma obrigação judicial. Embora tivesse sua origem em dispositivos judiciais do século XIV, a emissão de obrigações judiciais aumentou consistentemente em nosso período. Em alguns condados, esse aumento foi de quase 700% entre 1590 e 1609, com mais de duas centenas de ordens nesse sentido sendo emitidas anualmente. 119 [Aumento da ação da Câmara Estrelada]

Como excluía a nobreza e os pobres, e só se aplicava especificamente à gentry enquanto tal em situações específicas, a obrigação judicial foi sobretudo uma ferramenta de mediação das relações sociais entre as chamadas "classes médias" (middling sort, no jargão da época): pequenos e médios proprietários rurais e urbanos. De fato, grande parte da inten119

Hindle, p. 99ss.

[158]

sificação da atividade judicial do período esteve ligada a questões de propriedade, inclusive um elemento particularmente importante daquela intensificação: o aumento da ação da Câmara Estrelada e a expansão de sua competência. Antes de nosso período, a Câmara Estrelada, como tribunal superior do reino, tinha competência apenas para investigar e julgar questões de Estado - ou seja, que dissessem respeito à ordem pública, a instruções diretas da Coroa ou do seu Alto Conselho (o Privy Council) - ou recursos de decisões tomadas por tribunais locais de lei comum. Como recursos desse tipo necessariamente envolviam não apenas o custo das próprias ações, mas também viagens a Westminster, eles sempre estiveram apenas ao alcance da elite econômica. Contudo, como a Câmara tinha funcionamento permanente e competência idêntica ao alcance universal da lei comum, tornou-se gradualmente um espaço para a judicialização das disputas privadas da aristocracia, que, ao contrário do que ocorria no continente, havia muito não usava as armas para resolver suas disputas internas. De fato, à medida que a elite econômica se endinheirava mais e mais, os recursos na Câmara Estrelada tenderam a vulgarizar-se. Por exemplo, desenvolveu-se a prática de instrumentalizar as apelações na Câmara unicamente com a finalidade de obrigar adversários a gastar dinheiro com a causa e, eventualmente, desistir dela. Assim, dois gentlemen que fossem rivais em sua localidade e estivessem envolvidos numa disputa de terras não apenas processavam-se no tribunal local, mas podiam levar à Câmara Estrelada uma acusação totalmente infundada de - digamos - conspiração contra a Coroa. Obrigado a iniciar sua defesa formal, o acusado de conspiração, só por ser acusado, já tinha que despender quantias consideráveis de dinheiro. Não era raro que, em retaliação, entrasse com denúncia semelhante contra seu adversário. [ 159]

Essa instrumentalização privada da Corte Suprema do reino dá testemunho da importância da atividade dos organismos da Coroa, como aparatos do Estado moderno, na mediação das relações sociais. É claro que tais práticas tendiam a atravancar a operação da Câmara Estrelada, diminuindo sua eficiência no tratamento dos casos de interesse direto da Coroa. Por outro lado, o emprego privado do tribunal aumentava a frequência de sua operação e as custas processuais recolhidas, o que revertia para os cofres monárquicos. De fato, a própria Coroa não deixou de empregar privadamente a Câmara: comutou outras formas de punição em multas altíssimas e também direcionou a iniciativa da Câmara na investigação e instauração de processos de casos que pudessem resultar em multas. Assim, a Câmara tornou-se um bizarro instrumento da política fiscal da Coroa. O aumento da atividade da Câmara Estrelada, no início do nosso período, foi notável: o número de casos tratados pelo tribunal cresceu quase dez vezes entre 1500 e 1520, passando de 12,5 casos para 120 casos anuais. Nas primeiras décadas de 1600, a Câmara já tratava de 800 casos por ano! 120 [Expansão da competência da Câmara Estrelada]

A instrumentalização privada da Câmara responde apenas por uma parte desse aumento, contudo. Isso porque, a partir de tal instrumentalização, os juristas que atuavam nela gradualmente empreenderam uma guinada na interpretação tradicional da sua competência. Afinal, se a atividade· comercial e a acumulação de riqueza sob forma monetária se tornavam fundamentais para a elite política, então as questões envolvendo a propriedade privada tinham que gradualmente assumir interesse de Estado. Assim, a destruição de propriedade passou a ser um crime da competência da Câ120

Hindle, p. 69.

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mara Estrelada, o que foi transformação fundamental no sentido de intensificar a atuação do Estado numa época de privatização da terra e luta popular contra a acumulação de terras e o cercamento dos campos. Na prática, isso quer dizer que a destruição de uma cerca ou a caça em terra de bosque recentemente cercada podiam ser denunciadas no Tribunal Superior e processadas em vista da aplicação da pena capital. Assim, a Câmara Estrelada funcionou como importante instrumento de coerção social e suporte para o exercício da violência econômica em nosso período. É interessante notar que o desenvolvimento desse instrumento se dá de maneira constante, contínua e coerente, mesmo ocorrendo em paralelo à oscilante política de terras da Coroa e do Parlamento. Isso quer dizer que, embora do ponto de vista legislativo a posição do governo quanto à questão da concentração de terras fosse hesitante, no plano jurídico e executivo ocorreu um inequívoco desenvolvimento da capacidade estatal de proteger os interesses das novas classes proprietárias e a concentração de terras.

O controle estatal da pobreza A monetarização e o desenvolvimento da capacidade da Coroa de exercer poder de governo diretamente também tiveram consequências para os setores sociais mais empobrecidos - e, como se pode esperar, consequências ruins. [Dúbio sentido econômico das populações despossuídas]

Tradicionalmente, na Inglaterra, a pobreza era assunto das localidades: em especial, como vimos, da paróquia, por meio das sociedades religiosas e dos monastérios. Mas a dissolução dos monastérios desarticulou o sistema paroquiano de assistência, justamente numa época de incremento da miséria no campo. Populações despossuídas e desassistidas em [ 161 l

migração permanente tornaram-se, como vimos, um traço de nosso período. A relação das elites econômicas com essa população foi dúbia. Por um lado, dependendo da demanda econômica, a manufatura doméstica rural podia absorver parte dessas populações. Para seus potenciais empregadores, o melhor era que essa população fosse o mais desamparada e numerosa possível, pois isso tenderia a rebaixar os salários. Ao mesmo tempo, há sinais de que a demanda por trabalho assalariado só chegou a absorver pequena parcela dos despossuídos. Contudo, como carregassem em sua memória social recente a experiência da agricultura de subsistência, interrompida pela mercadorização da terra, tais populações às vezes simplesmente recusavam-se a assentir à violência da expropriação e dar o passo cultural e existencial necessário para distanciar-se definitivamente da autonomia econômica, aderindo ao trabalho assalariado. Assim, persistiram nas práticas pré-modernas da mendicância, que outrora complementavam seu trabalho na terra ou, formando bandos de andarilhos, dedicaram-se à pilhagem e à bandidagem. Ao mesmo tempo, buscaram reposicionamento no meio rural, o que envolvia conflito com as forças político-econômicas da mercadorização de terras e, em especial, uma luta pelo usufruto das liberdades comunais, conforme veremos no Capítulo 4. Nesse sentido, em vez de constituírem recursos econômicos importantes, as populações despossuídas precisavam ser alvo da repressão militarizada. [As Leis dos Pobres]

A partir desse caráter dual do sentido econômico que a população despossuída assumia segundo a perspectiva das elites, a Coroa e o Parlamento construíram para todo o reino uma política calculista e discriminatória para lidar com a pobreza, em substituição aos instrumentos locais da fase pré-moderna, extintos com a dissolução dos monastérios. [ 162]

A peça-chave dessa política foi um conjunto de estatutos que ficaram conhecidos como Leis dos Pobres (Poor Laws), o primeiro dos quais foi aprovado em 1536. Um dos dispositivos fundamentais das Leis dos Pobres era uma caracterização físico-econômica dos pobres: a distinção entre os "mendigos aptos" (sturdy beggars) e os "mendigos inaptos" (infirm). Estes últimos eram, na verdade, a pobreza pré-moderna: aqueles que, por características físicas incontornáveis, eram incapazes de sobreviver pelo próprio trabalho: crianças órfãs, idosos, aleijados etc. Esses pobres pré-modernos haviam sido objeto das políticas paroquianas de assistência. Diante de sua extinção, com a destruição dos monastérios, o governo ofereceria uma política centralizada alternativa. A base fiscal dessa política foi a coleta de um tipo novo de imposto, as "tarifas dos pobres" (poor rates). A cobrança de tais tarifas ocorreu em nível paroquiano, ficando a cargo dos juízes de paz, os agentes privilegiados da Coroa inglesa na alvorada da modernidade. Um tipo novo de funcionário, os inspetores de pobres ( overseers of the poor) supervisionava a aplicação dos fundos em obras de caridade, as quais eram formalmente idênticas às promovidas pelos monastérios. O que as marca como obra do Estado moderno é o fato de não serem mediadas pelo governo central, mas efetivadas por intermédio do dispêndio de dinheiro. Em contraste, como vimos, a assistência oferecida pelos monastérios passava ao largo de ambas as instâncias modernas: os monges proviam para os pobres com o fruto direto do trabalho em suas terras, atuando espacialmente nas localidades onde essas terras estavam situadas. [Os mendigos aptos]

Os "mendigos aptos", por sua vez, eram os pobres especificamente modernos: gente fisicamente capaz de sustentar-se a [ 163]

si mesma, porém impossibilitada de fazê-lo simplesmente por não ter terra em que trabalhar. Tratava-se, em certo sentido, de uma novidade: nunca antes, na história da Inglaterra, populações de regiões inteiras haviam sido expulsas e impedidas de acessar o meio de produção básico em que estava baseada a milenar agricultura de subsistência. Tratava-se de populações reduzidas à mendicância pela violência econômica da concentração de terras, mas também pelo caráter historicamente recente de seu estado de despossessão e miséria, que ainda não havia sido longo o suficiente para transformar a forma de vida fundamentalmente pautada pela autonomia econômica, forjando a forma de vida especificamente moderna, centrada no trabalho assalariado e na mercadoria. Esses novos miseráveis e despossuídos tinham nas costas uma cultura milenar que os levava a olhar a centralidade do trabalho assalariado como algo análogo à escravidão ou à servidão - segundo o jargão dos rebelados nas regiões manufatureiras, como veremos no Capítulo 4 -, algo mais indigno que a mendicância. De fato, no final de nosso período, há sinais de que os salários médios eram realmente tão baixos que tornavam a mendicância contabilmente equivalente ao emprego na indústria doméstica rural e preferível do ponto de vista existencial: o mendigo, pelo menos, continuava dono do seu tempo, em contraste com o assalariado, que tinha que passar os dias trancado em seu casebre miserável para vencer a dívida do aluguel e dos materiais. De todo jeito, para os cottagers, que constituíam parte considerável da população rural do período pré-moderno, a mendicância já era uma dimensão essencial da manutenção material, atrelada ao funcionamento contínuo dos mecanismos de assistência dos monastérios. 121 121

Bucholz e Key, p. 175.

[ 164]

[Criminalização da pobreza]

O que as Leis dos Pobres de nosso período a princípio reservaram para esses pobres de novo tipo foi uma política penal que, em certa medida, era a repetição de uma legislação tão antiga quanto o processo moderno de concentração de terras. Exemplo dessa legislação era um estatuto de 1495, que ordenava que os "mendigos aptos" fossem colocados no pelourinho por três dias, chicoteados e enviados de volta às suas paróquias de origem. As punições físicas foram reafirmadas pelo estatuto de 1536, e o transporte forçado para a paróquia de origem foi reintroduzido no chamado Estatuto contra a Vadiagem, de 1547. Uma vez que o retorno às paróquias de origem provavelmente representava o retorno a um espaço rural transformado no qual a manutenção da subsistência material já estava inviabilizada - tendo sido a causa da emigração, para início de conversa -, a política contida nessa legislação era uma mistura de repressão irresponsável com a tentativa de transformação forçosa do despossuído em trabalhador assalariado. Esses dois aspectos - que remontam ao duplo sentido econômico da população despossuída - foram centrais para um novo estatuto, de 1572. Por um lado, essa lei previa punições escalonadas: indivíduos de ambos os sexos, fisicamente capazes, detidos por mendicância pela primeira vez, seriam chicoteados ("até que as costas fiquem cobertas de sangue", nas palavras dos legisladores) e teriam a orelha direita perfurada. Mutilações desse tipo marcavam o indivíduo como tendo sido punido urna vez, o que era fundamental para o escalonamento. Os detidos pela segunda vez eram oferecidos corno escravos na paróquia e, caso não houvesse demanda por seu trabalho, eram submetidos a julgamento por crime grave, punível com castigos físicos e mutilações ulteriores. Detidos pela terceira vez eram enforcados. [ 165]

[Trabalhos forçados]

Ao mesmo tempo, o estatuto de 1572 inaugurou, sob a forma de política de governo, um novo horror da sociedade moderna: a prisão de trabalhos forçados, a chamada workhouse. Consistia no novo destino dos mendigos aptos condenados à servidão: em vez de atuarem como forçados domésticos, supervisionados pelos oficiais paroquianos, seriam internados em oficinas penais, obrigados a exercer atividades conectadas à indústria da lã. A intenção didática da instituição era tripla: por um lado, obrigando a um trabalho supervisionado, incutiria à força nos despossuídos o hábito da atividade repetitiva e incessante que tentavam evitar, desentranhando a percepção fluida do tempo infundida por séculos de cultura de subsistência. Ao mesmo tempo que ensinaria a trabalhar, a workhouse ensinaria um trabalho no sentido técnico do termo: o prisioneiro, muitas vezes habituado apenas ao trabalho na terra, desenvolveria uma habilidade útil para a indústria praticada em sua região. Tudo isso era especialmente significativo, visto que crianças também seriam encarceradas nas workhouses. Em terceiro lugar, a experiência deveria ser toda tão torturante que incutiria o terror à mendicância, e a entrega desesperada ao trabalho assalariado em vez da migração permanente. Junte-se a tudo isso que o prisioneiro supostamente pagaria, com o seu próprio trabalho, o custo de sua assistência que, uma vez destruídos os monastérios, as elites paroquianas relutavam em pagar. A experiência das workhouses, inaugurada em nosso período, propagou-se pelos séculos. Há evidências de que os picos em sua multiplicação corresponderam a períodos em que a demanda por força de trabalho foi alta o suficiente para pressionar os salários para cima e, portanto, tornar economicamente vantajoso escravizar os trabalhadores, [ 1 66]

transformando sua subsistência miserável em fator contábil da produção. 122 Em nosso período, contudo, sua viabilidade econômica oscilou. Várias workhouses inauguradas por particulares como forma de investimento produtivo dependeram sistematicamente de suporte financeiro da paróquia, via as tarifas dos pobres, pagas, nesse caso, simplesmente para manter os miseráveis encerrados, fora das estradas, ruas e campos. Ademais, nas décadas finais de nosso período, uma diminuição na demanda continental determinou desaceleração da indústria inglesa e, portanto, do trabalho forçado. Nessa época, as workhouses funcionaram como simples depósitos de gente.

Reforma religiosa e consolidação estatal Para finalizar a nossa análise da conformação do Estado moderno na Inglaterra, retomaremos uma sugestão feita no Capítulo 2 de que é possível ler a Reforma Anglicana na chave do movimento geral de concentração de poder pela Coroa em nosso período. Tendo em vista as considerações que fizemos a respeito das transformações no governo e na relação entre as elites, cabe examinar tal sugestão mais de perto. [Acordo político e reforma religiosa)

Para começar, é importante enfatizar e tirar consequências do fato de que, em suas primeiras expressões, a Reforma teve expressão legislativa: a cisão com o papado romano, o confisco das terras da Igreja católica e a instauração do monarca como chefe da Igreja anglicana foram decisões tomadas pela Coroa em concerto com o Parlamento- e, portanto, com as elites político-econômicas. Assim, foram lavradas sob a for'" Rusche, Georg; Kirchheimer, Otto. Punição e estrutura social. Trad. G. Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. l0lss.

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ma de estatutos, grande parte editada nas décadas de 1530 e 1540. Em conjunto, esses instrumentos legislativos ainda extinguiram o poder dos tribunais eclesiásticos e da Convocação, assembleia dos bispos ingleses que legislava para esses tribunais, revogando todos os pagamentos de impostos eclesiásticos coletados no solo inglês ao papado. Finalmente, os estatutos da Reforma Anglicana afirmaram que a Inglaterra era um "império", o que, no idioma político da época, significava um corpo político absolutamente autônomo, governado pelo rei e por seu Parlamento, e que não devia satisfação jurídica nem obediência política a nenhuma outra pessoa ou corpo político. 123 O concerto político que produziu essa legislação estava amparado nos interesses materiais que discutimos na seção "A Reforma Anglicana", e que, partindo da satisfação dos caprichos conjugais do rei, envolviam: a garantia de manutenção da linhagem real e, portanto, da estabilidade política; a satisfação do apetite por terras das elites econômicas - sobretudo da gentry, dos camponeses de médio porte e dos mercadores; a extinção do dízimo dos tribunais eclesiásticos. A legislação sacramentava esse acordo, mas o pano de fundo religioso permitia e exigia outras expressões de adesão à Reforma, que deixassem claras, internacional e domesticamente, a guinada política que a Inglaterra estava tomando. Assim, a reforma do culto religioso foi assunto de uma série paralela de instrumentos legais - estatutários e infraestatutários, mas sempre partindo da Coroa e de seus órgãos de exercício direto de poder-, que versaram sobre transformações na vestimenta dos padres, nos utensílios do culto, na posição do altar e na própria natureza e significado do culto. Foram abolidas as missas em latim e introduziu-se uma bíblia traduzida para o inglês. Para sistematizar todas essas mudanças e registrá-las 123

Isso está formulado explicitamente no Act in Restraint of Appeals de 1533.

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sob a forma de um manual acessível, a Coroa produziu diversas versões dos "Livros de Oração comum" (Books of Common Prayer ou Prayer Books), que fez imprimir e distribuir amplamente entre as paróquias da Inglaterra. O obedecimento às suas injunções seria o sinal público de adesão subjetiva ao novo pacto político forjado em torno da Reforma. [Os Livros de Oração]

Os Livros de Oração foram a culminância de um ambicioso esforço de nacionalização, estatização e padronização religiosa e disciplinamento da vida. Em suas páginas, a língua inglesa, que há tempos havia substituído o latim como idioma da burocracia, afirmava-se também como língua dos assuntos sagrados e era empregada para delinear de maneira "simples e fácil de entender" - nas palavras do prefácio da edição de 1549 - as especificidades do culto na nova Igreja anglicana. A preocupação era, ao mesmo tempo, com a adesão popular e com o baixo nível geral de educação do clero. A política religiosa de Estado procura adaptar-se a essa realidade - em vez de lamentá-la copiosamente, como os altos escalões do braço inglês da Igreja romana tinham feito até então - visando à instauração de uma religião de massas concretamente funcional. Os Livros de Oração estabeleciam com minúcia o conteúdo dos cultos dominicais - de comparecimento obrigatório para toda a população, segundo promulgado em estatuto - e dos cultos diários, bem como das cerimônias de batismo, confirmação, matrimônio e sepultamento. Até mesmo o comportamento dos sacerdotes nas visitas aos doentes era padronizado. As disposições sobre a leitura dos Salmos continham, ainda, calendários que abrangiam décadas, fixando o começo e o fim dos dias santos e das temporadas do calendário religioso - algo de inegável utilidade laica, aliás, dada a importância de tais datas para a contagem do tempo. Do ponto de vista doutrinário, a forma [ 169]

dos ritos em geral fazia transparecer uma solução de compromisso entre a teologia protestante e a católica. Algumas versões dos Livros de Oração divulgavam os estatutos parlamentares que dispunham sobre a unidade religiosa na Inglaterra, salientando os desejos expressos do monarca de que todos os seus súditos a ela aderissem obedientemente. Nesse sentido, como vias de comunicação direta entre os altos escalões da administração social e o cotidiano das pessoas comuns, os Livros de Oração não consistiam tanto em documentos de doutrinação ideológica, mas em receituários para se evitar a repressão estatal. Afinal, uma vez que o acordo político da Reforma havia sido feito totalmente de costas para o povo - indiferente ao papado, dependente dos monastérios e acostumado ao culto católico - foi preciso, também, reafirmar como crimes capitais a heresia, as injúrias contra o rei ou contra o seu divórcio. De fato, a oposição política do período em grande parte será articulada em termos religiosos: a parcela da alta nobreza que, devido à sua posição hierárquica e econômica tradicional, será indiferente às vantagens materiais da Reforma Inglesa, permanecerá católica e se organizará pela recusa ao comparecimento aos cultos reformados dominicais. O caráter público dessa recusa catalisará certa resistência popular (como veremos no Capítulo 5) e a recusa será combatida de maneira feroz e eficaz pela ação militar estatal. [A tradução da Bíblia]

Parte fundamental da nacionalização da religião, a tradução da Bíblia acompanhou disposições estatutárias que reafirmavam o caráter centralizador da Reforma. Nosso período assistiu ao estabelecimento e renovação de contínuos monopólios de impressão da Bíblia, os quais permitiam à Coroa controlar simultaneamente o preço - e, portanto, a circula[ 170)

ção - e o conteúdo do texto do livro sagrado. Se, por um lado, a legislação estabeleceu como obrigatório que todas as paróquias possuíssem a versão autorizada da Bíblia traduzida, por outro lado controlou e limitou a relação das pessoas comuns com a palavra sagrada: embora qualquer um pudesse realizar sua leitura na igreja, ficavam terminantemente proibidas as discussões públicas do texto. No espaço privado, as mulheres e os empregados não deveriam manusear livremente a Bíblia, mas podiam ouvi-la sendo lida pelo chefe da casa. Assim, em geral, frente ao potencial popularizador da reforma religiosa, a Coroa reformadora de nosso período não atuou simplesmente para reprimir, mas para controlar. Ao mesmo tempo, circunscreveu a eficácia desse controle ao plano penal e administrativo: é digno de nota que em nenhuma etapa da Reforma a Coroa empregou missionários para assegurar adesão espiritual aos seus ditames teológicos. 124 Do ponto de vista do Estado reformador, o fundamental não era a crença, mas a obediência e sua demonstração. [Outros aspectos institucionais da Reforma]

Observamos, pelas considerações sobre o mercado de terras, como as questões econômicas foram centrais para o desencadeamento da Reforma Anglicana. A preocupação com tais questões não foi de forma alguma objeto de disfarce por parte do Estado reformador: ao contrário, vários dos documentos oficiais da dissolução dos monastérios - desde os confiscas de terras até as apropriações de capelas e requisições de prataria - justificavam as medidas muito mais frequentemente pela enunciação despudorada das necessidades fiscais da Coroa do que pela menção a questões doutrinárias. 124

Dickens, p. 382.

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Essas considerações orçamentárias também fundamentaram a lida com as taxas eclesiásticas que, tão logo abolidas, foram reinstauradas como taxas governamentais: afinal, o monarca era o novo chefe da Igreja anglicana. Assim, nesse quesito específico, as ambições das elites econômicas foram frustradas. Contudo, consideradas em conjunto, as ações estatais traduzem claramente as aspirações pactuais que, em nosso período dominaram as relações entre a Coroa e as elites econômicas. Os tribunais eclesiásticos tiveram suas funções limitadas e submetidas ao controle da máquina estatal monárquica. Pela injunção real para o estabelecimento de registros paroquianos, a Coroa também criou uma instituição laica capaz de manter transcrições unificadas, razoavelmente padronizadas e confiáveis, dos nascimentos, casamentos e mortes, viabilizando um controle maior sobre a transferência da propriedade. A representatividade parlamentar dos eclesiásticos diminuiu em virtude dos confiscos de terras e, ademais, ainda perdeu grande parte de sua autonomia, visto que a Coroa rompeu as barreiras herdadas do período anterior no sentido de assumir controle total sobre a nomeação dos bispos. [As novas elites econômicas e a manutenção da Igreja inglesa]

O gigantesco impacto econômico da redistribuição de terras ocasionada pela dissolução dos monastérios resultou numa profunda reconfiguração da elite inglesa. A manutenção do pacto político expresso pela Reforma significava, por um lado, a manutenção dessas novas fortunas criadas pela compra e venda das terras eclesiásticas. Isso tinha reverberações fundamentais na política fiscal e de favorecimento seletivo desempenhada pela Coroa, envolvendo a monarquia nos interesses econômicos da elite. É curioso observar que, a partir de certo ponto, formou-se um bloco na aristocracia que, apesar de distintamente católico, manteve-se verbosa[ 172]

mente leal à Coroa inglesa e, consequentemente, à Igreja inglesa: fossem católicos ou protestantes (a rigor, em termos doutrinais, ninguém podia ser chamado ainda de "anglicano"), os proprietários de terra eram sensíveis ao fato de que uma reaproximação com o papado romano poderia colocar em questão o enorme processo de transferência de terras de que se haviam beneficiado. [A política externa]

Ao mesmo tempo, o problema religioso estava intimamente ligado com a política externa: em virtude da Reforma Protestante no continente, as alianças europeias já começavam a se colocar em termos de afinidades religiosas. À medida que a Coroa mantinha alto grau de autonomia na condução dos assuntos internacionais, estes converteram-se em zona de tensão para a política doméstica: a aproximação ou o distanciamento frente aos Estados católicos funcionou como ficha de barganha para a Coroa frente às elites inglesas. Afinal, uma eventual reaproximação com o papado poderia significar um restabelecimento da presença da Igreja na vida econômica e política. [A desarticulação do poder local]

Finalmente, é importante salientar os efeitos da Reforma sobre a desarticulação do poder local - mais uma vez, em harmonia com a lógica geral da atuação do Estado no período. O confisco de propriedade ligado à dissolução das instituições católicas tradicionais chegou, como vimos, às chantries. Ao apropriar-se das dotações designadas para a manutenção das capelas onde se rezavam as missas para os mortos, a Coroa desarticulou, como vimos, instituições que, na prática, permitiam às populações locais selecionar de forma autônoma os clérigos responsáveis por sua vida religiosa. Contudo, é importante observar que esse controle [173]

local sobre as dotações era, muitas vezes, parte da complexa estrutura comunitária de autogoverno: não era raro que os fundos da capela fossem parcialmente desviados para fins de bem público, como a restauração das estradas, a manutenção de diques etc. 125 Ao mesmo tempo, quando discutimos as corporações de ofício (na seção "As cidades"), sugerimos a importância das sociedades religiosas mantidas pelos seus membros. Sua atuação ia desde o exercício de controle paroquiano sobre a religiosidade até os serviços de assistência e numerosos aspectos da vida cultural urbana. Pois bem: o confisco de propriedades envolvido na Reforma Inglesa não deixou essas sociedades incólumes. Amparadas triplamente nas necessidades fiscais da Coroa, na crítica teológica aos santos e na supremacia do Estado inglês sobre todas as instituições ligadas à religiosidade, as sociedades religiosas sofreram um vigoroso ataque que, entretanto, não foi indiscriminado: afinal, as sociedades ligadas às grandes corporações mercantis citadinas, com as quais a monarquia contava política, econômica e contabilmente, foram deixadas ilesas. Desse modo, a dissolução das sociedades religiosas foi expressão do embate entre a Coroa e as antigas elites urbanas, em seu esforço de ampliar o controle estatal sobre o trabalho e a produção, e passar o poderio econômico das mãos das fragmentadas guildas de ofício de atuação local para as poderosas corporações mercantis que, sobretudo a partir de Londres, tornavam-se responsáveis por operações de escala nacional e internacional.

125

Dickens, p. 289.

[ 17 4]

4

As rebeliões populares

Nos Capítulos 2 e 3, procuramos analisar as violentas transformações socieconômicas que caracterizaram a ascensão do capitalismo agrário-mercantil e relacioná-las a transformações políticas e institucionais na forma do exercício do poder estatal, protagonizadas pela Coroa e pelas novas elites econômicas. Agora, voltaremos nossa atenção para a maneira como as pessoas comuns atuaram politicamente fora daquela reconfiguração institucional e contra ela, nas rebeliões populares que marcaram o longo século XVI. Pelo menos em parte, essas rebeliões consistiram no fechamento desgraçadamente fracassado - de uma onda de resistência popular medieval à modernização capitalista, a qual tinha como referências anteriores, na Inglaterra, conflagrações camponesas ocorridas em 1381 e 1450. O caráter anticapitalista dessas referências medievais merece ser destacado e explicado. Por um lado, é verdade que as rebeliões dos séculos XIV e XV articularam-se sobretudo em termos de um ataque a privilégios aristocráticos que remontavam à organização feudal da produção e ao controle direto do trabalho do campesinato. Por outro lado, como sugerimos, a produção mercantil pré-capitalista primeiro articulou-se na Inglaterra por uma intensificação das obrigações feudais. Tanto a chamada Rebelião dos Camponeses, de 1381, quanto a Rebelião de Jack Cade, de 1450, tiveram seu epicentro em regiões da Inglaterra onde a produção comercial de alimentos e de lã, para atender à demanda londrina, já marcava fundamentalmente a vida social desde o final do século XIII. Foi contra os termos desfavoráveis de posse de terra que incluíam obrigações de trabalho, contra a apro[ 175]

priação das terras comuns pelas elites aristocráticas e eclesiásticas, e contra o controle dos salários pela Coroa e suas comissões, que a população de Kent e Sussex então levantou-se, num movimento que, em ambos os casos, reverberou regionalmente e terminou em ataques à cidade de Londres. No século XVI, quando as obrigações feudais já estavam praticamente extintas, as consequências desastrosas da mercadorização da terra, contudo, intensificavam-se, e foi em regiões especialmente atingidas por elas que as chamadas rebeliões da Era Tudor eclodiram.

Revolta e relações de classe no final da Idade Média [Desobediência cotidiana]

Para entender a lógica dessa onda de resistência popular, temos que começar com algumas considerações a respeito do significado geral da revolta política no início de nosso período. É importante levar em conta que, para a grande maioria da população, alijada dos restritos processos de representação parlamentar, agir politicamente significava, necessariamente, agir a despeito da lei contra ela. Assim, há abundante evidência documental de casos de desobediência civil: cercas derrubadas para permitir acesso às terras comuns, mercadores sequestrados e obrigados a baixar o preço dos alimentos, bosques privados invadidos para a coleta de madeira etc. Por um lado, a maior parte dos casos desse tipo de que temos notícia chegou até nós pelos livros das herdades e das aldeias. Portanto, constituíam material de processos judiciais movidos por senhores e oligarcas ultrajados contra indivíduos e comunidades aldeãos. Contudo, também sobreviveram relatos (em ensaios, relatórios governamentais, cartas etc.) de casos idênticos que escaparam da judicializa[ 176)

ção, ficando no plano unicamente político da revolta popular bem-sucedida, e temos razões para crer que tais casos seriam tão numerosos quanto os outros ou mais. Isso porque indiciar judicialmente membros de uma multidão revoltada poderia ser ocasião para mais violência e humilhação das autoridades. Afinal, como vimos, a participação e a colaboração das pessoas comuns eram fundamentais para a manutenção da ordem e, em condições normais, a capacidade de coação das elites locais era baixa. Desse arranjo de forças de dependência mútua entre os senhores e as pessoas comuns derivava um caráter quase cotidiano para a desobediência e a revolta populares. [Cultura de revolta]

Outro fator fundamental para entender as rebeliões de nosso período é o papel que a revolta desempenhava no imaginário político popular. Ao longo dos séculos XIII, XIV e XV, a Inglaterra havia testemunhado diversos episódios de revolta aristocrática, rebelião popular generalizada e guerras civis de alcance variável, mas em intervalos razoavelmente pequenos. Todos esses episódios haviam sido resolvidos com participação popular, e não era difícil ter histórias de família ou lembranças regionais coletivas a respeito do envolvimento nas facções de Henrique VI ou Ricardo de York no fim das Guerras das Rosas etc., para não falar de memórias locais a respeito das lutas populares das gerações anteriores. Assim, é preciso ter em mente que a relação entre luta e poder se encontrava presente na prática, no imaginário e na experiência memorável das pessoas comuns. Ao mesmo tempo que a teoria política e os sermões na igreja paroquiana condenavam a revolta como um evento extraordinário e anômalo, contrário à ordem natural e divina, e que colocava em perigo a alma dos participantes, a experiência histórica palpável mostrava justamente o contrário - fato que não pode [ 177]

ser negligenciado quando tentamos formar uma ideia da mentalidade política do período. [Revolta popular e normalidade política]

Justamente por tudo isso, contudo, é preciso acrescentar que, apenas com algumas exceções, as rebeliões do período não se voltaram contra a estrutura de exercício de poder vigente, mas encaixaram-se nela de determinada maneira, mesmo se começavam como atos locais de desobediência. Ainda que, de vez em quando, fosse ouvido entre os rebeldes o brado popular que soara durante o Grande Levante de 1381- "Kill all the gentlemen!" -, e mesmo quando a revolta organizava-se em termos de queixas contra a elite local, não há, na Inglaterra de nosso período, evidências de tentativas populares consistentes de substituição do governo ou de alteração de sua forma: essa perspectiva simplesmente não estava colocada para o imaginário político nem dada como possibilidade concreta, diante da implicação fundamental entre a agricultura de subsistência e a estrutura aristocrática de poder ( evidentemente, as coisas mudariam na década de 1640). De fato, o esquema de dependência mútua que dava à revolta e à desobediência um caráter usual também a colocava como parte da estabilidade política ordinária. Como discutimos na seção ''A aristocracia", o campesinato e a aristocracia encontravam-se em íntima relação político-econômico-militar. A revolta usualmente constituía um instrumento por meio do qual o campesinato apelava às responsabilidades da aristocracia, lembrando-a de que suas próprias funções junto à Coroa dependiam da colaboração das pessoas comuns. Nesse sentido, não parece ter sido incomum que, pelos atos pontuais de desobediência, os camponeses conseguissem chamar a atenção da aristocracia [1 78]

local para seus problemas, inclusive garantindo sua colaboração. Assim, um senhor podia ser pressionado a mandar seus oficiais de herdade olharem para o outro lado enquanto uma pequena multidão enfurecida coagia um mercador a vender alimentos por um preço acessível; ou podia fazer ouvidos moucos aos queixumes de um yeoman que tivesse seus rebanhos gigantescos expulsos do pasto comum por husbandmen modestos, porém dispostos a cercar a casa da herdade; ou podia, ainda, ser coagido a voltar atrás numa decisão de cercar parte dos campos ou decidir, no tribunal de herdade, a favor dos comuneiros ameaçadores numa disputa de terras. Assim, em termos sintéticos, podemos dizer que um aspecto do jogo de poder estabelecido no início de nosso período era a necessidade de as elites político-econômicas tolerarem, até certo ponto, as ações populares diretas de apropriação de recursos materiais. [A revolta aristocrática]

Em paralelo ao cotidiano de revoltas populares, contudo, delineava-se um horizonte de revolta aristocrática que, no nosso período e no período anterior, foi substancialmente diverso. Os exemplos mais extremos dessas revoltas consistiram em episódios de guerra civil declarada. Eram, muitas vezes, empreendidas para fazer valer reivindicações a títulos nobiliários ou à Coroa, como no caso das Guerras das Rosas que haviam levado a dinastia Tudor ao poder no final do século XV: um primo distante de um rei falecido havia décadas afirmava seu direito sucessório preferencialmente a um outro primo distante recém-coroado; a aristocracia descontente dividia-se entre as facções dos pretendentes ao trono; Deus supostamente decidia a sucessão ao favorecer um dos dois lados no campo de batalha e, conforme fosse, o rei era substituído, e a nobreza que apoiara a facção derrotada era [ 179]

reprimida ou eliminada. Embora não se dirigisse contra a estrutura de poder, a guerra civil aristocrática podia alterar substancialmente as posições dos membros das elites dentro dessa estrutura. [Revolta aristocrática e revolta popular]

Mas a elite política do final do medievo também fazia uso mais cotidiano de seu estatuto de aristocracia armada: episódios de desobediência e de demonstração de força pelos quais manifestava seu descontentamento para com a política da Coroa, às vezes chegando ao ponto do confronto armado, mas sem resvalar para a guerra civil declarada. De fato, nessa zona cinzenta da atuação política não institucional, a elite terratenente e as pessoas comuns ocasionalmente encontravam-se. Foi assim em 1497, quando a administração de Henrique VII começou a implantar uma nova política de impostos, que, em substituição aos valores dizimais fixados no século anterior, pretendia submeter as classes proprietárias a um censo individualizado de posses de modo a elevar a taxação. Tais mudanças, embora não afetassem os cottagers e fazendeiros mais pobres, teriam significativo impacto na vida de husbandmen, yeomen e artesãos citadinos, afetando, também, a aristocracia. Em resposta, membros desses setores levantaram-se em protesto em numerosos pontos da Inglaterra. Multidões atacaram os coletores de impostos e assaltaram os armazéns onde eram guardados os bens recolhidos pela Coroa, redistribuindo-os entre a população. Na Cornualha, no Extremo Oeste da Inglaterra, a rebelião generalizada, liderada por um ferreiro, foi massacrada por um exército de 25 mil homens reunidos por meio dos métodos medievais de serviço militar. Da mesma forma, na década de 1520, diante da implantação do "subsídio" como forma adicional e especial de taxa[ 180]

ção, membros da gentry de diversas regiões da Inglaterra simplesmente recusaram-se a pagar. A desobediência dos senhores ocorreu em consonância com protestos populares em várias regiões, ecoando os acontecimentos de 1497. Essa consonância deve ser sublinhada: à medida que as transformações socioeconômicas de nosso período afetavam simultaneamente setores diferentes da população inglesa, produziram ocasiões para a unidade política. Assim, a gentry viu-se algumas vezes formando fileiras com a "gente comum" do campo e da cidade em revoltas de amplo alcance em que as demandas e os incômodos misturavam-se. [O Levante de Lincolnshire, 1536]

Um exemplo de tal unidade política é o chamado Levante de Lincolnshire. Em setembro de 1536, três comissões reais simultâneas encontravam-se no condado: a primeira, avaliando a riqueza individual dos habitantes para a coleta do subsídio; a segunda e a terceira, expressões iniciais da Reforma Anglicana, examinavam as condições educacionais dos sacerdotes, e iniciavam os trabalhos para a dissolução dos monastérios. Além da tensão usual envolvida na coleta de taxas, rumores variados espalhavam-se em torno da atividade dessas comissões - que sacrílegas novidades seriam introduzidas no serviço religioso? - e crescia a apreensão a respeito das consequências sociais da dissolução dos monastérios. 126 O estopim da rebelião foi a visita à cidade de Louth empreendida pelo bispo de Lincoln. Percebido como agente da Reforma, Sua Excelência foi aprisionado pela população citadina enraivecida. A tesouraria paroquiana foi arrombada e, com o dinheiro que lá havia, foram adquiridos armamentos e mantimentos para uma multidão liderada por um indivíduo que ficou conhecido como "capitão sapateiro': Em poucos dias, 126

Cf. seção "A Reforma Anglicana".

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l

os oficiais encarregados das comissões foram também capturados e, em breve, vários membros da gentry aderiram à revolta, apresentando-se junto às manifestações montados em seus cavalos de batalha, guarnecidos com seus brasões oficiais e acompanhados das suas forças militares pessoais. A Coroa não recuou diante dessa manifestação de poder aristocrático, contudo. Por ordem real, foi organizado um exército posto sob a liderança do duque de Suffolk, que tinha instruções de não negociar com os rebeldes. Tal recusa era uma expressão do poder monárquico: a Coroa estava em posição de exigir que a gentry reconhecesse como, no fim das contas, estava inevitavelmente à mercê das comissões reais - leia-se, da parcela da aristocracia que colaborava com a Coroa -, não tendo condições de fazer valer demandas contra a cobrança do subsídio, e muito menos sustentar uma guerra civil. A demonstração de força aristocrática, embora eloquente, não podia ter maiores consequências naquele momento: a não ser a marcação de posição política, atrelada a uma imagem de proximidade para com as pessoas comuns da localidade - talvez até de influência sobre elas -, a qual podia ser usada em jogos de poder futuros. Para alcançar esses objetivos - ou seja, para afirmar-se como oposição política militarmente significativa-, a baixa aristocracia precisava apenas alçar-se em armas à frente do povo: não precisava derrotar a Coroa ou mesmo interromper a coleta do subsídio. Assim, quando as tropas reais se aproximaram de Lincolnshire, rebelado havia semanas, os gentlemen envolvidos formalizaram um pedido de perdão ao duque de Suffolk e depuseram as armas, recomendando à população que fizesse o mesmo. Nos inquéritos que se seguiram, os gentlemen afirmaram ter estado todo o tempo no controle da população sublevada e alegaram que apenas sua interferência mini[ 182]

mizou o alcance da revolta e seus efeitos destrutivos. Por outro lado, também consta nos autos daqueles inquéritos que um dos líderes populares presos para julgamento teria exclamado: "Que filhos de umas putas fomos por não termos matado os senhores; sempre achei que nos trairiam." 127 [Os gentlemen como líderes rebeldes]

O Levante de Lincolnshire exemplifica os limites da colaboração política entre a gentry e os setores populares. Contudo, não podemos perder de vista o quadro geral de interdependência política entre as pessoas comuns e a aristocracia que, no final da Idade Média, impunha certo grau de colaboração de classe mesmo a despeito daqueles limites ou contra eles. De fato, a participação da gentry nas rebeliões era, muitas vezes, exigida pela população local sublevada, mesmo quando, ao contrário do que ocorrera em Lincolnshire, os senhores não promoviam espontaneamente levantes paralelos aos levantes populares. Há vários indícios de gentlemen que, tendo a vida ameaçada por multidões raivosas, somente relutantemente assumiram o encargo de liderá-las. Em nosso período, bem como nos períodos anteriores, 128 é bem comum encontrar, nos inquéritos posteriores às rebeliões derrotadas, depoimentos de aristocratas que afirmavam ter participado das "desordens" apenas de modo a tentar coibir os instintos destrutivos da multidão ignara. Em certo sentido, o apelo popular à gentry era uma faceta do paternalismo aristocrático: um dos papéis esperados dos senhores era o de zelar pelas condições de subsistência dos habitantes de suas terras. Era o senhor que ocupava o lugar do qual podia ser exercido o poder eficaz de alcance 127

128

Fletcher, Anthony; MacCulloch, Diarmaid. Tudor Rebellions. London: Pearson, 2008, p. 30. Hilton, p. 122.

[ 183]

local, e era ele, portanto, que devia ser chamado à responsabilidade caso houvesse empecilhos à satisfatória reprodução social da vida em nível local. Em segundo lugar, o poder numérico do povo armado era o poder bélico da gentry e, nesse sentido específico, o senhor era um componente natural da sublevação popular, entendida como multidão disposta à guerra. Assim, a participação do gentleman local podia dar aspecto mais legítimo à rebelião, o que poderia ser um fator importante para convencer camponeses relutantes. Ademais, embora recebesse algum treinamento militar, a população em geral provavelmente dependeria do conhecimento técnico da aristocracia armada caso pretendesse levar suas intenções rebeldes até as últimas consequências: mais de uma rebelião popular foi derrotada devido a decisões táticas ruins. Em terceiro lugar, se as pessoas comuns, a aristocracia e a Coroa formavam os três polos do jogo de forças político no final da Idade Média, sempre que o primeiro grupo quisesse se voltar contra uma política monárquica procuraria no segundo uma aliança natural. [Transformações no jogo de forças político]

Na prática, evidentemente, importantes diferenças internas sempre marcaram tanto o setor da "gente comum" quanto a aristocracia, que, ademais, sempre esteve dividida devido a alianças políticas pessoais e laços de parentesco. Em nosso período, uma série de fatores aprofundou aquelas diferenças internas e embaralhou o tríplice esquema medieval, de tal forma a limitar significativamente sua utilidade para a compreensão dos fatos políticos de nosso período. Em primeiro lugar, a cisão interna da aristocracia aprofundou-se e alargou-se significativamente. No Capítulo 3, vimos como a estratégia de favorecimento seletivo por parte da Coroa, nos planos administrativo e militar, criou uma nova elite que, pela sua participação no processo de centra[ 184]

lização e consolidação do poder estatal, foi levada a agir pelo interesse monárquico e contra os interesses do resto da aristocracia. No Capítulo 2, vimos como uma parte da aristocracia - em especial, uma gentry conectada com as elites mercantis londrinas - protagonizou os processos de mercadorização da terra. Diante desse quadro, uma população revoltada contra aspectos das transformações socioeconômicas do período, muitas vezes, estaria se manifestando contra os senhores locais, e com plena ciência disso. Nesses casos, a aliança natural que decorria do tripé de poder medieval viria por terra. Para a política popular, a desfuncionalização daquele tripé marca o final de uma era que teve seu pináculo na Guerra dos Barões e na promulgação da Magna Carta no início do século XIII (cf. seção "A aristocracia"). [As elites mercantis como novo elemento político]

Ê preciso, ademais, levar em conta a introdução de um quar-

to elemento no esquema tríplice medieval: a elite mercantil, setor especial da elite urbana que adquiriu, como vimos, enorme projeção política e econômica em nosso período. Na Alta Idade Média, as corporações citadinas participavam do jogo político em nível local, mas seu estatuto jurídico-político especial (cf. seção "As cidades") tipicamente as colocava numa relação direta com a Coroa. Por outro lado, com o crescimento da população das cidades, e a interdependência para com o campo que caracterizava a economia de subsistência, o século XV já assistira a conflagrações populares que eram ao mesmo tempo urbanas e rurais, quadro que se mantém no século XVI. Aí, artesãos frequentemente aparecerão lutando contra algumas das agruras que atingiam também os camponeses e vice-versa: desde o controle dos salários e o alto preço dos alimentos até a destruição dos monastérios, a dissolução das sociedades religiosas, as alterações no culto e reconfigurações na posse de terra, da qual [ 185]

várias famílias de trabalhadores urbanos podiam depender substancialmente. Em paralelo a essa política popular urbana que se somou à tradição de resistência que datava do século XIV, contudo, a consolidação de uma classe mercantil com capacidade de exercício de poder econômico em níveis regional e inter-regional empoderou significativamente a política citadina. Mas, em nosso período, a atuação das novas elites urbanas esteve concentrada nos altos escalões da Corte e da burocracia monárquica. Assim, embora responsável e beneficiária de grande parte das transformações socioeconômicas do período, a minúscula elite mercantil permaneceu de fora da onda de rebeliões de nosso período - tanto como atores quanto como alvos dela. As multidões raivosas da Era Tudor frequentemente atacaram os chamados "atravessadores" (middlemen), pequenos e médios mercadores de atuação meramente local: era, afinal, nesse âmbito local que o tripé da política do final da Idade Média estava embasado, e era nele, também, que a alta dos preços dos alimentos e demais efeitos da mercadorização da terra eram sentidos. Ao contrário, os donos das novas fortunas comerciais inglesas permaneceriam refugiados em Londres, junto ao epicentro do novo poder estatal, operando a transformação socieconômica a distância. Isso os deixou fora do alcance da política popular do nosso período - que, ao contrário de 1381 e 1450, não conseguiu chegar à capital. Essa distância, ao mesmo tempo espacial e política que o capitalismo agrário-mercantil e o Estado moderno inseriram entre as pessoas comuns e os detentores do poder econômico - e, consequentemente, político -, limitou a efetividade das rebeliões populares de nosso período e, quando foi ultrapassada pela guerra civil no período seguinte, transformou essencialmente tanto o caráter da revolta quanto seus objetivos. [ 186]

Transformações socioeconômicas, rebelião popular e repressão estatal [Motins contra os enclosures]

Ainda que envolvessem colaboração - voluntária ou relutante - de setores das classes proprietárias, as rebeliões de nosso período foram sobretudo rebeliões populares: começaram invariavelmente com manifestações locais de descontentamento, protagonizadas pelas pessoas comuns. Essas manifestações tinham a forma de episódios de desobediência civil pontuados de destruição de propriedade, e apenas raramente envolviam ataques a pessoas. Como indicamos acima, suas causas tipicamente remontavam às transformações socieconômicas do período. Assim, ocorreram inúmeras revoltas contra os cercamentos dos campos e o acúmulo de terras. Os aldeões mais pobres ( cottagers) e fazendeiros independentes (husbandmen) que participavam dessas revoltas visavam sobretudo liberar diretamente o acesso aos recursos materiais que lhes permitiram desenvolver suas atividades de subsistência. Contudo, alguns fazendeiros ricos (husbandmen que praticavam agricultura comercial e yeomen) -inclusive, de fato, cercadores de campos e acumuladores de terras-, às vezes, também uniam-se aos revoltosos quando os ataques à propriedade atingiam seus rivais comerciais. [Centralização da repressão política e criminalização da pobreza]

Os ataques populares ao cercamento dos campos acompanham toda a história da expropriação das terras comuns, desde o século XIII. Contudo, com o empobrecimento rural que marcou nosso período, tais ataques cotidianizaram-se e intensificaram-se. Em resposta, o concerto de elites que se desenvolveu em torno da consolidação estatal tornou possível uma repressão organizada nacionalmente. Na última [ 187]

década do século XVI, o Parlamento transformou a destruição de cercas em crime de alta traição. Isso significava não apenas que os condenados poderiam receber pena capital, mas também que os acusados seriam julgados pelos tribunais monárquicos de lei comum - fora do alcance, portanto, dos tribunais senhoriais, que podiam ser coagidos pela organização popular ou cair sob o controle de membros da elite econômica local, capazes de utilizá-lo para benefício próprio (inocentando gente que atacasse seus rivais, por exemplo). Essa medida de repressão à ação política popular foi complementada, em 1601, por um estatuto que também tornava crimes de lei comum a invasão à propriedade e várias atividades especificamente conectadas ao usufruto das prerrogativas comunais, como catar os grãos deixados no campo depois da colheita ou a coleta de madeira e frutos na área de bosque. Notavelmente, tal lei, promulgada numa época de ascensão da manufatura, justificava a criminalização das prerrogativas comuns com a observação de que seu usufruto encorajava a preguiça e a vagabundagem. Assim, tratava-se de mobilizar o aparelho estatal, que então se sofisticava, não apenas para reprimir a atuação política popular, mas também para coagir economicamente os novos pobres da modernidade, empurrando-os para o assalariamento e a normalização da miséria. [Motins para apropriação de alimentos]

Outro gesto popular típico de revolta popular eram os motins para apropriação de alimentos. Embora não fossem, tampouco, peculiares de nosso período, nele intensificaram-se como consequência da crescente mercadorização da produção de comida. É interessante notar o protagonismo feminino nessas revoltas: as multidões que então atacavam os mercados, apropriando-se diretamente dos alimentos ou obrigando os mercadores a baixarem os preços eram fre[ 188]

quentemente lideradas por mulheres. Muitas vezes, o que essas multidões exigiam era simplesmente que se aplicassem leis locais antigas que outrora garantiam um preço pagável para os grãos, mas que haviam sido relegadas ao esquecimento pelos tribunais senhoriais controlados pelas elites econômicas. Nesse contexto, é digno de nota que uma das providências das Leis dos Pobres era, por meio de taxas específicas ou do confisco de grãos, fornecer comida subsidiada para o consumo dos mais pobres em algumas paróquias (cf. "O controle estatal da pobreza"), num gesto estatal de substituição das funções desempenhadas pelos monastérios. A reação popular a essa intervenção é curiosa: há vários relatos de ataques aos armazéns e comboios que, sob as ordens da Coroa, guardavam ou transportavam os grãos destinados à alimentação dos pobres. [Motins militares]

Essa reação à tentativa de controle sobre a venda de alimentos mostra que o desenvolvimento estatal, por um lado, se expressou numa organização da repressão às classes populares revoltosas e na administração social da pobreza, mas por outro lado também adicionou ingredientes à revolta popular. Algo semelhante pode ser dito da crescente militarização social do período. Como consequência das numerosas campanhas militares internas e externas, as cidades inglesas especialmente Londres e os grandes portos - viviam sob um constante influxo de soldados e marinheiros, o que significava sobretudo, como vimos, pessoas comuns armadas. 129 Como as Forças Armadas permanentes eram reduzidas, grande parte desses soldados e marinheiros era desmobiliza129

Para se ter uma noção, durante o reinado de Elizabeth as operações militares parecem ter envolvido um total de 100 mil soldados (Nolan, p. 408).

[ 189]

da depois das ações militares, o que significava concretamente que eles tinham suas armas confiscadas e eram instruídos a voltar para casa- às vezes, recebendo o pagamento devido ou tendo esse pagamento prometido quando do retorno à sua região de origem. Acontece que, às vezes, a província de origem era muito distante ou o pagamento podia parecer insuficiente; outras condições podiam inspirar nos homens armados certa relutância em depor as armas. Nesses casos, não raro promoviam saques e/ou ameaçavam "virar a Inglaterra de ponta-cabeça" - uma expressão popular comum para designar a revolta social - caso suas demandas geralmente, por dinheiro - não fossem atendidas. Ademais, devido ao seu perfil social, os soldados ou marinheiros recém-desmobilizados o mais das vezes uniam-se às multidões de miseráveis que vagavam pela Inglaterra do período, empregando sua experiência militar na prática do banditismo. Assim, entre a década final do século XVI e os primeiros anos do século XVII, os motins de grandes proporções eram ocorrência quase anual, geralmente tendo lugar nas cidades mais militarizadas da Inglaterra, como Chester, Bristol ou Londres. Em 1589, por exemplo, em plena guerra com a Espanha, e em meio ao contínuo conflito de ocupação da Irlanda, número considerável de veteranos insatisfeitos amotinou-se nas proximidades da Corte. Em resposta, a Coroa decretou lei marcial, autorizando chefes militares locais a executar sumariamente desertores e revoltosos em toda a Inglaterra, o que, devido à coincidência de perfil social, serviu de pretexto para imprimir um caráter militar ao tratamento estatal dos "vagabundos': O estado de sítio foi estendido até o final do século e, posteriormente, reinstaurado em 1626 e em 1635. Comissões comandadas por oficiais especiais (os provost-marshals) foram criadas para supervisionar sua aplicação localmente - por cima da autoridade da aristocracia. [ 1 90]

Não parece haver evidências particularmente eloquentes de alguma conexão estreita entre os motins de soldados desmobilizados ou mesmo o crescimento desse setor popular e as rebeliões do período. Contudo, a julgar pelo papel que a população armada desempenhou na guerra civil no período seguinte, parece-nos importante manter em mente que, em qualquer episódio de revolta popular sobre o qual lancemos nossa atenção, é provável que alguma parcela dos envolvidos tivesse antecedentes de militar amotinado.

O processo concreto da rebelião popular na alvorada da modernidade Uma vez compreendida a implicação entre as transformações socioeconômicas e a reconfiguração das elites e dos setores populares, bem como as consequências políticas dessa implicação, é útil atentar para o processo concreto de algumas das rebeliões populares de nosso período. [A Peregrinação da Graça]

A rebelião que ficou conhecida como Peregrinação da Graça, ocorrida em 1536, quase ao mesmo tempo que o Levante de Lincolnshire, eclodiu mais ou menos simultaneamente em Yorkshire, no Norte, com reverberações em Cumberland, Durham, Lancashire e Derby. A historiografia ressalta a combinação paradoxal entre a desconfiança e a hostilidade contínuas da população sublevada e a gentry, que, ao mesmo tempo, constituíam os líderes dos diversos bandos regionais. 130 É digno de nota que alguns desses líderes de proveniência aristocrática tinham conexões com a chamada "facção aragonesa" - os cortesãos fiéis à ex-rainha Catarina. Ao seu falecimento, em janeiro de 1536, seguiram-se 13

° Fletcher e MacCulloch, p. 45. [ 191

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a perseguição e o aprisionamento de alguns de seus antigos apoiadores, e o quadro desfavorável torna compreensível o recurso desesperado à participação na rebelião popular. Vários dos indivíduos que mais tarde constaram como líderes revoltosos, contudo, pertenciam a setores sociais medianos: eram yeomen, artesãos e, em grande parte, clérigos paroquianos. Robert Aske, tratado pela historiografia como o principal desses líderes, apesar de filho de um gentleman de Yorkshire, era advogado e fazendeiro. [Conteúdo religioso da Peregrinação da Graça]

O descontentamento popular que produziu a Peregrinação da Graça, provavelmente, pode ser atribuído às mesmas causas do Levante de Lincolnshire: o subsídio e as comissões reais. Por outro lado, seu conteúdo religioso parece ter sido mais pronunciado. Assim, embora a proeminência dos clérigos entre os líderes rebeldes fosse comum - afinal, tratava-se de indivíduos com certa posição de prestígio e que compartilhavam das mazelas da vida empobrecida -, seu significado na Peregrinação da Graça deve ser ressaltado. O caráter antirreformador da rebelião ficou eloquentemente claro pelos esforços dos revoltosos de, espontaneamente, em diferentes regiões, reconstruírem várias das casas religiosas que haviam sido destruídas pela dissolução dos monastérios. Ademais, a aura mística foi reforçada pela maneira como a organização política parece ter sido articulada em termos do proferimento de juramentos. Vimos acima (em especial, p. 151ss) como o juramento constituía uma instituição jurídica importante no período, relacionando-se ao mesmo tempo com as obrigações civis e/ ou penais e com a dimensão sagrada da individualidade. Na década de 1530, contudo, a instituição do juramento recebeu, ademais, importantes empregos políticos. Como desdobramento fundamental do divórcio de Henrique VIII e [192]

Catarina de Aragão, e o casamento posterior do monarca, em 1534, o Parlamento aprovou o chamado Primeiro Ato de Sucessão, que reconhecia Elizabeth, filha de Ana Bolena, como legítima sucessora do trono inglês e obrigava todos os súditos do reino a jurar lealdade a ela. O juramento também envolvia a recusa explícita do reconhecimento de "qualquer autoridade ou potentado estrangeiro" acima do rei da Inglaterra, o que constituía o comprometimento pessoal com o "império" inglês que advinha da Reforma Anglicana (ver p. 167ss). Na prática, não havia instituições capazes de impor o juramento a toda a população inglesa, de modo que, em grande parte das localidades, apenas os homens com mais de 14 anos que precisassem comparecer a algum tribunal eram realmente obrigados a prestar o juramento. Por outro lado, na ocasião houve uma onda de cerimônias voluntárias de juramento, que parece ter fortalecido a presença dessa prática no imaginário político popular. Assim, apropriando-se da instituição do juramento, os rebeldes de 1536 promoveram autonomamente cerimônias solenes em que fortaleciam seu vínculo mútuo por meio de diversos juramentos: à Santa Madre Igreja (ou seja, contra a Reforma Anglicana), ao Commonwealth - literalmente, ao bem comum ou à sociedade inglesa inteira, entendida como o povo e suas terras e posses - ou ao rei. Não era raro, de fato - tanto na Inglaterra quanto no continente, no nosso período e nos anteriores - que o discurso da população rebelada, em tempos de crise, caracterizasse os problemas sociais em termos de ameaças à pessoa do rei. Assim, vários dos documentos produzidos pelos rebeldes retratavam o monarca como uma espécie de vítima da política cortesã e de conselheiros interesseiros, alguém que devia ser salvo de seus inimigos pela população fiel, num mesmo gesto - a rebelião - pelo qual a população seria salva de seus infortúnios. [ 193]

O conteúdo religioso da Peregrinação da Graça refletiu-se também na organização dos bandos ou "companhias" de rebeldes - os quais foram baseados, aliás, nos mecanismos feudais de regimentação miliciana. Em várias localidades, os "capitães" dessas companhias receberam apelidos que remetiam aos personagens arquetípicos das procissões religiosas: Caridade, Fé, Pobreza, Piedade. [Ação militar e negociações]

A alusão à procissão, contudo, não despia as companhias de sua função basicamente militar. A disposição dos rebeldes para a violência ficou clara desde os primeiros momentos. Enquanto os primeiros juramentos foram feitos em Yorkshire, no fim de setembro, em meados de outubro mais de dez mil homens e mulheres já estavam às portas de Carlisle, na província vizinha de Cumbria, exigindo que a cidade aderisse à rebelião. Inicialmente relutantes, os conselheiros citadinos foram convencidos por um cerco e sucessivas tentativas de tomar a cidade à força. Ao mesmo tempo, diante de rumores de que o conde de Derby- outra província vizinha de Yorkshire - se uniria aos rebeldes, o rei foi compelido a conceder-lhe uma comissão especial com poderes militares sobre toda a região do Noroeste inglês e do Norte do País de Gales. Esse ato de extorsão política e suborno ilustra bem o interesse aristocrático nas rebeliões do período. De todo modo, o conde de Derby tornou-se, a partir de então, uma força importante de oposição à Peregrinação e, junto com outros membros da nobreza, organizou um exército de cerca de 8 mil homens sob o comando do duque de Norfolk. Contudo, quando as forças reais conseguiram reunir-se para confrontar os rebeldes, nas proximidades de Pontefract, em Yorkshire, eles já eram mais de 30 mil pessoas. Então, os gentlemen que atuavam como líderes convenceram a multidão a negociar com o duque de Norfolk que, ao mesmo [ 194]

tempo, escrevera ao rei garantindo que qualquer acordo que fizesse com os rebeldes, por mais que desse sua palavra, deveria ser considerado posteriormente nulo. De acordo com os documentos sobreviventes, a negociação envolveu pontos relativos à cobrança de impostos e ao repúdio das transformações no culto religioso introduzidas pela Reforma. Também há evidências de que o duque de Norfolk teria tentado convencer os gentlemen a trair e entregar os demais líderes rebeldes, no que não obteve sucesso apenas pelo medo inspirado pela multidão que assistia de longe às negociações na Ponte de Doncaster. Como resultado dessas negociações, foi estabelecido que dois representantes dos rebeldes - um gentleman e um advogado - iriam apresentar as reivindicações diretamente ao rei. Em Yorkshire e em Lancaster, corriam rumores de que a traição da gentry era iminente, e os rebeldes permaneceram de prontidão, acampados nas proximidades de Doncaster. O rei recebeu os representantes rebeldes no dia 2 de novembro e entregou-lhes um documento no qual elogiava seu próprio governo - sua justeza "perante todos, os de cima, tanto quanto os de baixo" 131 - , prometia que levaria as demandas dos sublevados em consideração e que perdoaria a todos, exceto dez líderes, que seriam executados como exemplo. Nesse meio-tempo, contudo, outro exército real movia-se no Sul. No dia 10 de novembro foi lida para os rebeldes uma carta na qual Thomas Cromwell, então o principal conselheiro de Henrique VIII, jurava que, se a rebelião se estendesse, seria massacrada de tal modo que "seu exemplo encherá de medo todos os súditos por tanto tempo quanto dure o mundo". 132 Mesmo assim, um mês inteiro passou sem que os rebeldes se desmobilizassem. No início de dezem131

132

Apud Fletcher e MacCulloch, p. 36. Idem.

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bro, cartas foram enviadas aos líderes locais das províncias setentrionais, convocando-os para uma assembleia em Doncaster. A ela compareceram 20 gentlemen e 20 "pessoas comuns", bem como o duque de Norfolk. Se, por um lado, vários desses líderes ajoelharam-se diante do representante monárquico pedindo o perdão do rei, os rebeldes, ao mesmo tempo, insistiram que os monastérios deveriam ser restaurados e o confisco das terras eclesiásticas interrompido. O duque de Norfolk desconversou: afirmou que os confiscas continuariam, mas que os monastérios seriam mantidos em atividade pela Coroa. Prometeu, ainda, que um novo Parlamento seria convocado para discutir essa e todas as demais preocupações dos rebeldes. A essa altura, o número de acampados havia sido reduzido para três mil. Aparentemente, a recusa inicial aos termos apresentados pelo duque de Norfolk foi generalizada, mas Robert Aske - que foi convidado a passar o Natal com o rei em Windsor - convenceu-os a voltar para casa. [Novo levante em 1537]

Aske voltou para o Norte no final de 1536, reafirmando os compromissos de Henrique VIII. Meses se passaram sem que nenhuma providência concreta fosse tomada, o que era especialmente preocupante, visto os termos vagos da promessa de perdão anunciada em novembro. Episódios de violência e desobediência continuaram até fevereiro de 1537, quando a cidade de Carlisle foi atacada novamente por uma multidão. Dessa vez, apesar da participação de uns poucos gentlemen, a população sublevada parece ter agido de forma majoritariamente independente. É digno de nota que um dos líderes populares que então emergiu, Francis Bigod, era um conhecido protestante. Sua influência entre os descontentes lança luz sobre o duplo aspecto das objeções da população contra a Reforma Anglicana: tais objeções não [ 196]

diziam respeito apenas às transformações do catolicismo tradicional, com a introdução de elementos protestantes no culto, mas também ao fato - registrado documentalmente pela pena de Bigod 133 - de que, pela Reforma, a monarquia inglesa estava se apropriando diretamente do cuidado das almas, centralizando a atividade religiosa. Tal preocupação será um elemento fundamental do protestantismo radical que marcará a atividade política no período seguinte. [Repressão monárquica ao levante de 1537]

A gentry posicionou-se rapidamente contra a irrupção de 1537. Diante da decretação de lei marcial, alguns dos que haviam atuado como líderes na Peregrinação da Graça assumiram de bom grado a função de reprimir a nova rebelião e mandar pessoalmente enforcar as novas lideranças. Essa colaboração foi resultado de um cálculo que permitiu a alguns dos envolvidos nos eventos de 1536 escapar da onda de retribuição monárquica que, a partir de julho de 1537, se abateu sobre o Norte. Entre pessoas comuns e membros da gentry (inclusive Robert Aske e os antigos participantes da facção aragonesa) foram executadas 144 pessoas por sua conexão com a Peregrinação da Graça, e um número desconhecido em ligação com o Levante de Lincolnshire. As execuções de membros da gentry em resposta ao seu envolvimento na rebelião consistiu numa mensagem política eloquente para a população do Norte em geral e também para a aristocracia inglesa. Contudo, tais execuções criaram um problema de longo prazo para a Coroa: ao mesmo tempo que afirmava sua capacidade de implementar políticas de administração social a despeito das objeções de parte da gentry, também inviabilizava a colaboração desta última na manutenção da ordem nos locais onde havia atuado de for133

Fletcher e MacCulloch, p. 49.

[ 19 7]

ma repressora. Assim, durante décadas, a fronteira norte da Inglaterra não poderia mais ser patrulhada pela aristocracia armada: em seu lugar, a Coroa seria obrigada a empregar, de forma contínua e custosa, guarnições de mercenários. [A Rebelião Ocidental, 1549)

O conteúdo religioso e popular da Peregrinação da Graça também esteve presente na chamada Rebelião Ocidental de 1549,já durante o reinado do jovem Eduardo VI. Numerosas expressões de descontentamento popular com a Reforma Anglicana foram registradas na Cornualha, no Extremo Oeste da Inglaterra, já em 1547. Em 1548, uma comissão real para supervisão da destruição das imagens religiosas - um aspecto da conformação do cristianismo anglicano ao protestantismo continental - foi atacada na cidade de Helston por uma multidão liderada por um padre. O arquidiácono da Cornualha, chefe da comissão, foi morto. Seguiu-se a prisão de algumas lideranças populares, e os juízes de paz, temendo a insurreição popular, realizaram os julgamentos numa cidade vizinha. Em 1549, com o anúncio de que o Primeiro Livro de Oração deveria ser obrigatoriamente empregado para as celebrações do Pentecostes (o sétimo domingo depois da Páscoa), a sublevação foi deflagrada. Em vários pontos da Cornualha, os padres que não se recusaram a empregar o Livro de Oração e rezar a missa católica tradicional foram obrigados a tanto por paroquianos revoltados. Houve gentlemen que, ao tentarem apaziguar os levantes, foram atacados e mortos. Coordenados pelos métodos que não deixaram testemunho para a historiografia, bandos rebeldes marcharam de todos os cantos da Cornualha até a cidade de Bodmin, onde ergueram um acampamento em junho. Ocupando o lugar usual de liderança de elite estava Humphrey Arundell, um yeoman primo de um influente gentleman local, pertencente a uma família católica tradicional. [ 1 98]

[Expressão militar da Rebelião Ocidental]

Embora não tenhamos estimativas numéricas precisas do número de acampados em Bodmin, os historiadores concordam que, àquela altura, uma marcha em direção a Londres teria conseguido alcançar seu objetivo, dada a lentidão com que as forças monárquicas foram organizadas pelo regente, o duque de Somerset. Os relatos confusos de que dispomos parecem indicar que parte da gentry enveredou numa campanha de intimidação popular pelo ataque a vilarejos, ao que a população respondeu organizando-se em bandos, sitiando cidades e casas de herdade, e capturando mercantes e gentlemen nas províncias do extremo ocidente inglês. Decididos a sedimentar sua posição na região, os rebeldes sitiaram Exeter, a principal cidade da província de Devon. Aí, cerca de dois mil rebeldes eram liderados por três pessoas comuns, três gentlemen da Cornualha e três gentlemen de Devon. A corporação citadina, em contato com mercantes e gentlemen de outras regiões da Inglaterra, tentou organizar localmente um exército para combater a rebelião, mas sua tentativa foi frustrada pela desobediência das pessoas comuns da Cornualha e das províncias vizinhas. [Demandas rebeldes na Cornualha de 1549]

Durante o cerco a Exeter, a Rebelião Ocidental produziu documentos pelos quais registrou suas demandas políticas, enviadas para o conselho de regência. A diversidade das demandas, de caráter econômico e religioso, retrata o problema da organização política de nosso período: a colaboração limitada, com limitada sobreposição de interesses, entre a gentry e os yeomen, de um lado, e as pessoas comuns, de outro. Assim, a despeito das lideranças pertencentes à elite católica, os rebeldes não exigiam que a missa fosse rezada em latim, em vez do inglês prescrito pelas medidas reformado[ 19 9]

ras, mas em cómico, o idioma céltico falado regionalmente no Extremo Ocidente. Os rebeldes também faziam menção à diminuição dos impostos sobre rebanhos e dos controles sobre a exportação de tecido, o que claramente favorecia apenas a elite proprietária - ou, a bem da verdade, uma parte reduzida dela, dado o grau relativamente baixo do desenvolvimento da manufatura na região - ao mesmo tempo, contudo, em que reclamavam sobre o alto preço dos alimentos, o que, como sabemos- e como sabia-se no período - era resultado dos processos econômicos de mercadorização da terra conectados à produção manufatureira da lã. Uma exigência particularmente curiosa era a de que os círculos de empregados diretos dos gentlemen fossem de alguma forma limitados. As consequências de tal limitação iam desde a redução da capacidade da gentry de mobilizar exércitos privados, para além dos mecanismos milicianos, até o encurtamento de sua capacidade de exercer influência política pelo favor - e, portanto, tal demanda relaciona-se com a manutenção da autonomia política e militar das pessoas comuns. [As comissões de cercamento]

É digno de nota que, ao longo de 1549, ao mesmo tempo que preparava uma resposta militar para os numerosos levantes populares, o protetor Somerset editou várias proclamações contra a prática do cercamento dos campos e do acúmulo de terras, e algumas vezes comunicou-se por carta com populações locais prometendo-lhes a participação das pessoas comuns na escolha dos integrantes das comissões, que então atuavam em várias regiões da Inglaterra para avaliar e "remediar" o problema da despovoação e do cercamento dos campos. Tal medida deixa claro que, na interpretação da administração estatal, problemas conectados à mercadorização da terra desempenhavam papel privilegiado na causação dos levantes populares. [200]

[Derrota militar da Rebelião Ocidental)

Depois que as tropas fiéis à Coroa :finalmente chegaram à Cornualha, os registros de sucessivas batalhas travadas indicam diferentes grupos rebeldes atuando de maneira coordenada, contando com até seis mil pessoas. Aparentemente, os bandos rebeldes ofereceram resistência acirrada, inclusive atacando forças militares mais numerosas. Porém, pelo emprego de mercenários e de táticas de destruição de recursos - a queima de campos de trigo e de armazéns de alimentos -, os rebeldes acabaram derrotados militarmente. Os membros sobreviventes dos bandos dissolvidos voltaram para suas casas, enquanto alguns dos líderes capturados foram enforcados - inclusive os padres, que foram pendurados das torres de suas igrejas adornados com o aparato de culto católico proscrito pelo Livro de Oração. As execuções dos padres chamam atenção especial como expressões da centralização do poder estatal: afinal, antes da Reforma Inglesa, membros de instituições eclesiásticas só podiam ser julgados por tribunais eclesiásticos, os quais, no máximo, aplicavam penas de prisão. A submissão dos padres revoltosos aos rigores mais extremos da lei comum mostra bem quão seriamente a Coroa de nosso período podia, na prática, fazer valer sua afirmação de autonomia governamental . ou 1mpeno. Depois da vitória militar sobre os rebeldes foi decretada lei marcial. Os exércitos reais foram dispersos pelo interior das províncias envolvidas e autorizados a promover saques nos vilarejos. Esse gesto calculado juntava uma brutal tática de punição contra a população em geral a uma solução bizarra à incapacidade da Coroa de pagar os soldados em tempos de crise, afastando das grandes cidades os homens armados e descontentes que - como vimos - consistiam em recorrente problema no período. ((.

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[Rebelião nos Home Counties, 1548-9]

Simultaneamente às rebeliões que ocorreram no Oeste, a população também sublevou-se na região Sudeste- nas províncias geralmente denominadas Home Counties, por sua proximidade com Londres. A agitação começou em maio de 1548, pouco mais de um mês depois do assassinato do comissário real em Helston, na Cornualha. Na ocasião, Sir William Cavendish, um gentleman de Northaw, Hartford (hoje Hertfordshire), havia sido encarregado da comissão real de averiguação do problema do cercamento das extensas terras comuns da região. Ocorre que Cavendish era, ele mesmo, um dos maiores responsáveis pelo cercamento, motivo pelo qual encontrou feroz resistência popular. A multidão invadiu suas terras de domínio e destruiu suas extensas criações de coelhos - aparentemente apropriando-se de dois mil animais e utilizando pólvora para explodir as tocas. Cavendish, infelizmente, conseguiu fugir. Por medo de represálias, os oficiais locais, membros da gentry, recusaram-se a punir os rebeldes. Nos meses que se seguiram, a região foi palco de uma série de atos de desobediência contra as reformas religiosas. [A rebelião se espalha, 1549]

A partir de maio de 1549, levantes contra o cercamente dos campos começaram a ocorrer também mais para o Oeste, em Wiltshire e Somerset, e na cidade de Bristol, bem como nas imediações dos Home Counties, em Northampton, Suffolk e Kent. Nesse contexto, em julho, nobres e gentlemen de várias regiões da Inglaterra foram convocados para discutir em Windsor suas contribuições para o exército que combateria a Rebelião Ocidental. As populações dos locais de origem desses aristocratas reconheceram o movimento de preparação militar das elites e responderam com violência organizada. Seguiu-se uma cronologia concertada de levan[202]

tes nos Home Counties, em East Anglia, e nas Midlands. A dimensão desses levantes foi tal que, enquanto o protetor Somerset enviava cartas oferecendo perdão a diversos acampamentos rebeldes, num claro reconhecimento de que não seria capaz de agir militarmente em tantas frentes, o próprio prefeito de Londres instituiu um esquema especial de proteção da cidade. De fato, antes do fim do mês, um bando provindo de Kent chegou às proximidades de Greenwich, a cerca de 40 quilômetros do centro governamental em Windsor, levando o governo da capital a declarar lei marcial. Documentos datados de agosto atestam que a elite londrina tomou uma série de medidas de precaução para o caso de a cidade ser sitiada, estocando alimentos e inclusive mobilizando o aparato logístico e coercitivo do Conselho para garantir suprimento suficiente de carne. Ao longo do mês, uma série de execuções exemplares de rebeldes capturados foi seguida pela ornamentação dos edifícios governamentais com seus corpos mutilados. [Razões da revolta popular em East Anglia]

É provável que os ânimos populares estivessem particular-

mente propensos à revolta em East Anglia, região onde a combinação entre o desenvolvimento da agricultura comercial e a mão forte do senhorio remontava aos antecedentes da rebelião de 1381, e a apropriação das terras comuns combinara-se, recentemente, ao desenvolvimento da manufatura e tentativas reiteradas de reimpor aspectos do controle feudal sobre o trabalho. Aí há evidências de que os rebeldes teriam planejado o assassinato de vários gentlemen, suas esposas e filhos. 134 Em Wymondham, Norfolk, a população reuniu-se para realizar, em homenagem a um santo local, festividades que a Reforma havia recentemente proscrito e 134

Wood, p. 59.

[203]

terminou a procissão arrebentando as cercas dos yeomen e gentlemen da região. Nas proximidades de Norwich, em resposta às invasões de terras, Robert Kett, um yeoman de família tradicional, resolveu voluntariamente derrubar suas cercas e liberar as terras para cultivo comum. A historiografia - seguindo, contudo, o discurso oficial da repressão estatal - terminou estabelecendo Kett como uma das principais lideranças de 1549, ao mesmo tempo que reconhece a pobreza documental legada pelo movimento popular. [Os acampamentos]

A exceção a essa pobreza documental é a evidência indireta derivada da reação monárquica e das elites à rebelião. Tal reação legou-nos testemunhos da organização política popular, especialmente sob a forma dos acampamentos, aos quais fizemos breve menção quando discutimos a rebelião de 1536. Tais acampamentos foram tão típicos dos eventos de 1549 e marcaram de tal forma a experiência popular da época, que muito tempo depois ainda se falava da "gente acampada" ( the camp-men) e da "época dos acampamentos" ( the camping time): encontramos remissão a essas expressões nas evidências de uma pequena revolta local em Kent, em 1596. 135 Aí, bem como em outras províncias, a "gente acampada" autointitulou-se "a Commonwealth de Kent", clamando para si, com esse título, o estatuto de representantes da província e da prosperidade das pessoas comuns que nela viviam. A curiosa coordenação entre as ações de depredação, invasão e demais manifestações rebeldes, em todo o Sul inglês, dá indícios de que tais acampamentos funcionavam como centros locais de uma organização de caráter regional e inter-regional, a qual, notavelmente, seguia a geografia dos centros de poder administrativo local e monárquico. Há 135

Fletcher e MacCulloch, p. 72.

[204]

indícios de que alguns dos acampamentos chegaram a reunir milhares de pessoas e, em algumas províncias, as lideranças aristocráticas foram explícita e reiteradamente recusadas: em Hellesdon, Norfolk, um gentleman que procurou oferecer um banquete aos acampados foi atacado, teve suas insígnias e vestuário rasgados, atirado em um fosso e posteriormente aprisionado. Houve outros exemplos de recusa ao paternalismo aristocrático. Vários dos acampamentos, para se manterem, organizavam saques às terras de açambarcadores, por meio dos quais animais oriundos das dispensas, parques e criações dos membros das elites terra tenentes eram apropriados por pessoas que normalmente, e em sua maioria, comiam carne apenas muito raramente. Assim, em 1550, um homem foi processado em Norwich por afirmar em público que desejava jamais ter abandonado o acampamento, onde "passava os dias comendo presunto roubado". 136 [Demandas rebeldes em Norfolk, Kent e Yorkshire]

Sobreviveu também o conjunto de demandas formuladas por alguns dos acampamentos rebeldes. O bando liderado por Robert Kett produziu um documento no qual eram afirmados os interesses das pessoas comuns e dos yeomen claramente distinguíveis uns dos outros, entretanto - contra os da gentry. Assim, os senhores locais eram denunciados como proprietários de terra gananciosos que atacavam as terras comuns e que desempenhavam suas funções oficiais em benefício próprio. Tais reclamações provavelmente espelhavam tanto os interesses dos pequenos fazendeiros quanto dos envolvidos em agricultura comercial, os quais muitas vezes abusavam das prerrogativas aldeãs inundando os pastos comuns com seus extensos rebanhos. Esses yeomen se136

Wood, p. 77.

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riam os óbvios beneficiários da exigência rebelde de que as pessoas comuns elegessem os oficiais locais das comissões reais de avaliação do problema do cercamento dos campos: provavelmente contavam com o clientelismo e a projeção social para tomar em suas mãos a revisão dos cercamentos, de modo a manipulá-los em detrimento de seus competidores na agricultura comercial local. Da mesma forma, propostas educacionais que se antepunham às previstas pela Reforma, ao mesmo tempo que focavam princípios protestantes de autonomia local, atendiam provavelmente os interesses da elite aldeã. A única demanda inegavelmente popular era a que se voltava contra a reintrodução das obrigações feudais pelo senhorio do Norfolk: "Rogamos que todos os servos sejam libertados, pois Deus fez de todos livres ao derramar seu precioso sangue." 137 De todo modo, para além de qualquer documento individual, o caráter e a frequência dos ataques às terras cercadas, durante as rebeliões de 1549, e nos momentos imediatamente anteriores e subsequentes, mostram bem que, no que tange à participação dos despossuídos e pequenos fazendeiros - indubitavelmente a maioria dos rebeldes, mesmo quando a documentação disponível não dá evidência direta disso - tratou-se de respostas populares à privatização da terra e demais transformações econômicas do período, quando primavam as tentativas de apropriação direta dos recursos necessários à subsistência. Ao mesmo tempo, havia regiões onde a mercadorização da terra já havia avançado a tal ponto que o retorno e a manutenção das condições de subsistência já não consistiam numa opção tangível para a população sublevada: assim, em Canterbury, na província de Kent, os acampados - em grande parte, trabalhadores rurais e urbanos - insultaram e atacaram o enviado real, 137

Wood, p. 64.

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exigiram do Conselho que recebessem pagamento por cada dia que permaneceram acampados, além de aumento dos salários pagos na região. Já em Yorkshire, é notável a combinação entre o radicalismo político e o conteúdo religioso na sublevação que teve lugar no final de julho de 1549. A documentação disponível dá conta de que as 3 mil pessoas envolvidas foram inspiradas por uma curiosa profecia republicana que dizia que "nenhum rei haveria mais de governar a Inglaterra; e os nobres e gentis-homens haveriam de ser destruídos; e o reino haveria de ser governado por quatro governadores que seriam eleitos e designados pela gente comum, presidindo um Parlamento amotinado". 138 Seguindo à risca as etapas iniciais desse programa, os rebeldes do Norte não apenas capturaram uma série de gentlemen - o que também ocorreu em outras regiões -, mas assassinaram alguns deles. [A tomada de Norwich]

Enquanto a historiografia - devido às peculiaridades da disponibilidade documental - valoriza especialmente o cerco de Exeter em sua descrição da Revolta Ocidental, na rebelião em East Anglia são geralmente o cerco e a tomada de Norwich que recebem ênfase especial. O feito militar foi realizado pelo bando liderado por Robert Kett, que, conforme consta, chegou a reunir entre 8 mil e 20 mil pessoas (dependendo das fontes), e possuir um arsenal que incluía canhões roubados de fortalezas costeiras. O assalto à cidade de Norwich, capital de Norfolk, ocorreu no final de julho de 1549. Conflitos internos causados pelo fato de que parte da população urbana era simpática aos rebeldes dificultaram sua defesa, e episódios de bravura popular irreverente marcaram o cerco: armados apenas com lanças, forquilhas, machados de lenha, e umas pou138

Wood, p. 54.

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cas espadas, consta que os rebeldes derrotaram os arqueiros da cidade arriando as calças e mostrando-lhes a bunda em meio à enxurrada de flechas, o que teria, segundo o relato de uma testemunha, "retirado [dos arqueiros] toda coragem': 139 Depois de tomada, a cidade foi "liberada" por mercenários italianos, mas em seguida retomada pelos rebeldes, que parecem ter tido especial deleite em massacrar os soldados estrangeiros. Mantendo a sede de suas operações num acampamento nas proximidades de Norwich, em vez de dentro de seus muros, o bando também atuou na vizinha Yarmouth, onde destruiu o novo porto que estava sendo construído com dinheiro advindo da dissolução de uma casa religiosa local. Há, de fato, diversos outros exemplos de ataques específicos a alvos conectados à dissolução dos monastérios, como a destruição de uma criação de pombos construída no lugar onde antes havia um hospital de leprosos dedicado a Santa Maria Madalena, em Norfolk. [Repressão monárquica às rebeliões de 1549]

Aparentemente, em algumas das regiões sublevadas, uma solução de compromisso foi alcançada entre os rebeldes e as autoridades locais: em Sussex, por exemplo, os rebeldes depuseram as armas em troca da promessa aristocrática de que alguns dos cercamentos seriam removidos e as terras entregues ao uso comum. Ê de se esperar que medidas concretas no sentido de aumentar o usufruto das terras comuns pelas pessoas comuns tenham sido tomadas em pequena escala em várias regiões. Contudo, está claro que os acampamentos maiores foram alvo de uma repressão militar que, embora tenha demorado a organizar-se, foi eficaz e letal, muitas vezes seguindo o formato punitivo exibido na sequência do rompimento do cerco de Exeter, na Rebelião Ocidental. 139

Fletcher e MacCulloch, p. 73.

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O bando liderado por Kett, após várias vitórias pontuais, foi derrotado em Dussindale pela cavalaria empregada com perícia pelo conde de Warwick, no final de agosto, numa batalha que parece ter custado a vida de pelo menos 2 mil rebeldes. Os sobreviventes receberam uma oferta de perdão, a qual alguns recusaram, sendo subsequentemente enforcados. A liberação da cidade de Norwich da presença rebelde exigiu dias de batalha acirrada nas ruas estreitas, durante os quais as forças de Warwick bateram-se com a população local unida aos últimos dos rebeldes acampados. Na ocasião, a corporação citadina abdicou de suas prerrogativas legais, entregando ao comandante o poder absoluto sobre a vida dos seus habitantes. Depois de reincorporada, a cidade continuou sob lei marcial, e, nos próximos dias, centenas de rebeldes e colaboradores foram enforcados, enquanto a elite citadina erguia na porta de suas casas o brasão de Warwick. De fato, consta que essa elite empreendeu sucessivas peregrinações até a residência onde o comandante das forças reais ficara alojado, sempre pedindo novas execuções exemplares até que o aristocrata lhes disse, com sarcasmo, que a menos que estivessem dispostos a lavrar seus próprios campos, era necessário diminuir o número de condenações. 140 [Emprego privado e político da lei marcial]

Ocorre que a lei marcial decretada em Norwich fornece uma excelente oportunidade de perceber o sentido extremo que poderia assumir o emprego privado dos tribunais pelas elites proprietárias em nosso período, especialmente sob 14

º Wood, p. 72-3. É digno de nota que, de herói local em Norfolk, o conde de Warwick tornou-se herói de grande parte da elite terratenente inglesa quando, por meio de uma conspiração política e militar, derrubou o populista Somerset, substituindo-o na regência do reino. Warwick ocupou tal posição até 1553, quando se envolveu na tentativa de barrar a ascensão de Maria I, o que lhe custou a vida.

[209]

lei marcial. Segundo relatos da época, a comissão real que foi estabelecida para supervisionar a punição dos rebeldes, composta por membros da elite local, parece ter funcionado com base menos na investigação de suspeitos acusados de participar da rebelião do que na acusação de adversários políticos e econômicos. Julgados sob lei marcial, os rebeldes podiam ser condenados por alta traição, o que, de acordo com a lei vigente, autorizava à Coroa- ou aos seus representantes locais - o confisco de seus bens no ato de sua execução. Nos meses que se seguiram, é impossível dizer quantos em meio às centenas de julgados o foram menos por seu envolvimento na rebelião do que por terem suas terras cobiçadas pelos jurados, comissionários ou oficiais. 141 Quanto a Robert Kett, ele e seus irmãos receberam punições exemplares e tiveram seus corpos dependurados em locais estratégicos. A história de sua iniciativa derrotada tornou-se parte da educação popular, sendo introduzida no material didático - padronizado como parte da Reforma Anglicana - com que a geração seguinte aprenderia o abecedário nas escolas paroquianas. Nos Midlands, rebeldes foram enforcados nas praças dos mercados das principais cidades, e suas cabeças dependuradas nas muralhas e torres das igrejas. Sob a lei marcial em Oxfordshire, os oficiais locais aproveitaram para perseguir e exterminar os católicos mais conhecidos por sua oposição à Reforma Anglicana, tivessem ou não relação com a rebelião. 141

Para registros dessa apropriação privada da repressão política na sequência da rebelião de 1381, ver Hilton, p. 177 e 185. É digno de nota que, dada a perspectiva de confisco de bens dos condenados por traição, não é improvável que houvesse uma tendência dos tribunais, interessados em dividir os espólios desses confiscos, em qualificar como líderes rebeldes as pessoas de posse, em detrimento dos miseráveis, o que cria uma dificuldade adicional na interpretação dos documentos históricos relacionados com a rebelião popular.

[21 O]

Na cidade de Colchester, a corporação citadina presenteou com dois bois um juiz de paz que demonstrou rigor especial com os acusados. O bizarro espetáculo das execuções e o eficiente maquinário de redistribuição da propriedade continuaram funcionando a pleno vapor até os primeiros meses de 1550 em Suffolk, Essex e Sussex, no Leste. É digno de nota que as penas para condenados por traição variavam conforme o gênero: enquanto os homens eram enforcados e esquartejados, as mulheres eram queimadas vivas. [Concessões e precauções das elites]

Quem está lutando para a subsistência imediata, contudo, não pode simplesmente desistir, e há sinais de que a organização popular persistiu mesmo em Norfolk, com diversos casos de roubo de comida e destruição de cercas. Para lidar com a contínua desobediência popular, uma combinação de punições exemplares e concessões de perdão foi empregada pelas autoridades locais. Ao mesmo tempo, gentlemen e membros da corporação citadina uniram-se para estabelecer um fundo para compra de comida para os pobres. Com o pretexto da assistência social, contudo, em Norwich foi organizado um censo da população urbana: oficiais citadinos fizeram listas de pobres e visitaram seus domicílios, num gesto que facilitava o controle administrativo da população percebida como particularmente propensa a sublevar-se. Em outros pontos de Norfolk, interditaram-se locais de reunião popular, tais como tabernas. Em Londres, a corporação citadina decretou uma redução no preço dos alimentos, e tal controle durou até o final do reinado de Eduardo VI. A elite citadina - "os bons e [... ] substanciais chefes de família", de acordo com o documento oficial 142 - foi convidada a equipar-se com armas e armadu142

Wood, p. 80.

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ras para o caso de precisar resistir a uma insurreição plebeia, e foi instituída uma guarda-noturna. Foi recomendado aos chefes das corporações que supervisionassem as conversas de seus membros; as apresentações teatrais e outras atividades culturais foram mantidas sob supervisão das autoridades. Era nas reuniões desse tipo que, muitas vezes, os discursos exaltados provocavam a multidão a empreender atos de destruição e desobediência. [O fim do ciclo de revoltas populares]

Enquanto o clima de revolta persistiu durante anos, sob a sombra das transformações socioeconômicas canalizadas e potencializadas pela violência cultural da Reforma Anglicana, nenhuma nova rebelião popular de monta teve lugar em nosso período. Quando o Norte sublevou-se novamente, em 1554 e 1569, não se tratou realmente de ações populares, mas de revoltas aristocráticas: a primeira, causada pelo acirramento de ânimos da gentry diante do anúncio do possível casamento da rainha Maria com o rei Filipe da Espanha; a segunda, parte de um complô católico intrincado para evitar a ascensão de Elizabeth I, em favor da rainha Maria da Escócia. Enquanto os problemas socioeconômicos acumulavam-se e intensificavam-se, a eficácia da repressão estatal e a crescente unidade política das elites tradicionais impediram as sublevações de caráter regional. Ao mesmo tempo, o dissenso interno das classes médias, a ampliação da população urbana empobrecida, a difusão do radicalismo religioso na esteira da Reforma e os contínuos conflitos no campo resultaram num quadro político-econômico particularmente explosivo. Sua detonação, com a guerra civil inglesa, em 1642, teria enormes consequências, não apenas para a sociedade inglesa, mas para os desenvolvimentos ulteriores da organização social produtora de mercadorias.

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5

O esforço colonial inglês

Uma compreensão satisfatória da formação da sociedade moderna não pode escapar da consideração da maneira corno o processo doméstico de transformação socioeconômica transbordou o território inglês, impulsionado pela força política dos interesses agrário-mercantis que discutimos nos capítulos anteriores. A capacidade administrativa e militar acumulada pelo Estado, e a riqueza acumulada pelas elites proprietárias permitiram urna expansão das relações sociais modernas para a vizinha Irlanda e para o chamado Novo Mundo. Ao observarmos essa expansão, encontraremos modulações do processo de modernização social doméstico que estudamos acima, as quais precisam ser entendidas para que o quadro esquemático completo da sociedade produtora de mercadorias possa ser montado. Assim, no que se segue, promoveremos uma análise do esforço colonial inglês em nosso período. Discutiremos, nessa ordem, a expansão e a intensificação do domínio inglês sobre a Irlanda, o comércio ultramarino e os primeiros assentamentos ingleses na América.

Expansão e intensificação do domínio sobre a Irlanda No início de nosso período, a Coroa inglesa já exercia certo poder sobre o território irlandês, e os múltiplos títulos dos monarcas ingleses incluíam o de "senhor da Irlanda". Tal afirmação de senhorio remontava a supostos direitos arrancados à nobreza tribal nativa no século XII por uma invasão que contou com bênçãos papais e que foi uma espécie de desdobramento da conquista normanda da Inglaterra. A [213]

despeito do sucesso dessa invasão, contudo, até o século XVI o domínio anglo-normando não chegou a estender-se para além da região circundante a Dublin, conhecida como "The Pale". 143 Em nosso período, a intensificação e a expansão territorial desse domínio foram parte do esforço geral de consolidação do Estado moderno na Inglaterra. Ao contrário do que teve lugar em solo inglês, entretanto, não era possível à Coroa ancorar tal esforço no desenvolvimento das novas elites econômicas: a conversão social que ocorreu na Inglaterra havia deixado a ilha vizinha incólume. Por outro lado, a Corte inglesa já contava com burocratas, aventureiros, empreendedores e aristocratas suficientemente perspicazes para entender o sentido geral das recentes transformações por que passava sua sociedade, a ponto de permitir certo grau de planejamento no sentido de promover sua paulatina repetição em solo irlandês, como veremos. [A Irlanda no início do século XVI]

Para começar, é importante assinalar que, na Irlanda do início de nosso período, a combinação de elementos feudais com estruturas célticas resultava numa sociedade bastante diferente da inglesa. 144 Ainda que, em regiões estritas do Pale, vigesse um sistema de herdades semelhante ao descrito acima, a grande maioria dos irlandeses vivia sob formas tribais em que os chefes locais operavam com razoável indiferença frente à aristocracia. Esta descendia das forças de ocupação normandas que, ao longo dos séculos, se havia unido com as 143

144

Essa expressão evoca um espaço delimitado como que por uma cerca. Em certo sentido, o mesmo valia para o País de Gales, que tinha uma estrutura política e econômica semelhante à da Irlanda no início de nosso período, e passou por um processo semelhante de submissão da elite local, conversão econômica forçada e "pacificação" militar da população. Como observamos, infelizmente não temos espaço para discutir em detalhes esse processo importante e interessante.

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famílias nativas pelos laços de casamento, em grande medida adotando seus costumes e idioma, porém exercendo-os dentro da estrutura hierárquica feudal, mais rígida que a endógena, e nominalmente subordinada ao senhorio monárquico inglês. A forma de vida tribal articulava-se em torno de um pastoreio itinerante: a maior parte da esparsa população seguia os rebanhos para as colinas nas estações mais quentes. As aldeias tendiam a prescindir daquilo que, na Inglaterra, chamava-se improvements ou melhoramentos: com exceção das casas dos chefes, com seus salões de festins, as construções permanentes eram praticamente inexistentes. Os enclosures eram dispensados pela criação comum dos animais e pelo cultivo comum do solo, e impossibilitados pelos mecanismos ancestrais de ocupação de terra que previam sua remarcação e redivisão periódica, tanto no nível dos locatários comuns quanto no nível dos chefes e da aristocracia. Nessa economia de subsistência, o comércio interno era de baixa intensidade, compreendendo sobretudo trocas de matérias-primas. E, por causa de tudo isso, as vias de circulação interna eram praticamente inexistentes. A criação itinerante era, ademais, permeada pela cultura das expedições armadas para roubo de gado que remontava à Antiguidade e que determinava a independência política recíproca entre as tribos, bem como o caráter guerreiro dos chefes e da aristocracia. Sob o comando desta última, grupamentos militares regulares (os chamados kerns, na grafia anglicizada) exerciam funções tanto de defesa quanto administrativas em nível local, e eram complementados por clãs mercenários especializados ( os galloglass, de origem escocesa). Essas classes militares eram mantidas pelos excedentes de víveres que os chefes coletavam como tributo e ao mesmo tempo mantinham guardados em suas amplas habitações como reservas comunais para os tempos difíceis. [215]

Festins periódicos em seus salões exibiam a extensão dessas reservas, mediam o prestígio da comunidade e atraíam guerreiros para sua defesa e seu serviço. Para além do nível tribal local, o que dava unidade política aos irlandeses eram algumas longevas alianças que perfaziam a história dos conflitos tribais e os transferiam para o nível regional. Por isso, como nas demais sociedades com uma aristocracia armada razoavelmente independente - inclusive na Escócia e no País de Gales -, mesmo algumas das regiões reconhecidas como domínio de determinada família eram instáveis, tendo suas divisões internas e fronteiras externas periodicamente reordenadas em função de rivalidades tradicionais. Por outro lado, os irlandeses estavam objetivamente unidos pela língua - o gaélico, que originalmente não tem proximidade alguma com o inglês - e pelo modo de vida. Mesmo assim, existia, ainda, o contraste entre as regiões de cultura e economia gaélicas e aquelas áreas do Pale em que imperava uma organização econômica semelhante à da Inglaterra do início do período e que estava mais diretamente submetida ao controle administrativo e militar da Coroa inglesa. A aristocracia e a yeomanry dessas regiões não raro lamentavam-se a respeito das incursões de roubo de gado e pilhagem que, nas fronteiras do Pale, eram temperadas pela hostilidade ao poderio estrangeiro. A Igreja na Irlanda encontrava-se numa situação de dispersão econômica e política análoga. No plano hierárquico, os bispados gozavam de total autonomia recíproca, cada um deles respondendo diretamente a Roma. Doutrinariamente - como, aliás, era válido também para a Inglaterra e para a Europa como um todo, em diferentes graus-, não há indícios de que houvesse maior unidade: à onipresente doutrina católica misturava-se uma miríade de crenças populares e cultos de santos que seriam destruídos e relegados ao esquecimento pela padronização religiosa inglesa dos séculos se[216]

guintes. O sistema paroquiano - e, com ele, a coleta do dízimo - que havia sido implantado pela invasão normanda funcionava muito mal no Pale e era inexistente fora dele: a vida religiosa girava em torno dos monastérios e casas religiosas, e não do chamado clericato regular. Nas terras dessas casas - bem como nas herdades da nobreza de origem normanda - vigiam sistemas semelhantes ao feudalismo continental: a posse de terra envolvia prestação de serviços e o pagamento de parcelas da produção, às vezes proporcionais à quantidade de sementes fornecidas pelos senhores, o que consistia numa peculiaridade do sistema irlandês. A sustentação das casas religiosas contava, ademais, com contribuições de senhores, o que potencializava as funções de assistência. Inseridos na economia de subsistência, os monastérios irlandeses mantiveram-se alheios à inflexão moderna por que passaram as casas religiosas inglesas, e não chegaram a desempenhar as funções econômicas da agricultura comercial, do aluguel de terras em troca de moeda ou dos empréstimos de dinheiro. No Pale, os traços socioeconômicos não modernos conviviam e misturavam-se com algumas estruturas semelhantes àquelas estudadas acima para o caso inglês: em particular, esquemas de posse de terra condicionados ao pagamento em dinheiro. Uma classe de camponeses abastados, semelhantes à yeomanry inglesa, também já tinha se desenvolvido, embora não fosse expressiva econômica ou politicamente. A nobreza de origem normanda havia se ligado a famílias tradicionais inglesas. Umas poucas cidades, funcionando em esquema corporativo como as cidades inglesas, desenvolviam atividades econômicas de alcance internacional - tais como a pesca, o processamento de couro, a exportação de madeira e a fabricação de navios. O governo inglês, na figura do lorde lugar-tenente (Lord Lieutenant) ou lorde delegado (Lord Deputy), auxiliado pelo [217]

Conselho irlandês, presidia sobre a Irlanda como um todo - mas, de fato, apenas sobre o Pale. As elites rurais e urbanas estavam representadas pelo Parlamento irlandês. Essa instituição, largamente ignorada por parte significativa da aristocracia de fora do Pale, funcionava de maneira semelhante à análoga inglesa, com a peculiaridade de que todos os atos submetidos para sua votação precisavam, antes, ser aprovados pelo Conselho, pelo lorde delegado e pelo monarca inglês. A lei comum inglesa valia nominalmente em todo o território, porém suas cortes eram inexistentes fora do Pale: a população gaélica vivia sob esquemas antigos e complexos de lei céltica, mantida viva pela tradição oral dos bardos, e presididos por oficiais tribais. [As rebeliões aristocráticas na Irlanda]

Como era usual para as monarquias pré-modernas, a manutenção do controle sobre a Irlanda, do ponto de vista da Coroa inglesa, envolvia um jogo político contínuo com suas elites. Esse jogo era especialmente delicado, porque estruturalmente multilateral. O monarca inglês tinha sua autoridade requisitada para julgar sobre as rusgas entre os aristocratas anglo-normandos, muitas das quais, aliás, envolviam uma disputa por favores junto à administração inglesa. Ao mesmo tempo, os chefes e a aristocracia gaélica frequentemente desencadeavam conflitos armados entre si ou contra a aristocracia anglo-normanda do Pale. Não raro, a escala desses conflitos ou o caráter dos envolvidos exigia que a Coroa inglesa - na figura do lorde delegado - se envolvesse militarmente. Como vimos, entretanto, a capacidade militar da Coroa inglesa ainda dependia em grande medida da colaboração da aristocracia e, no início do nosso período, isso valia para as atuações militares na Irlanda. Ademais, o complexo sistema local de alianças, às vezes, tornava impossível à Coroa [218]

inglesa manobrar os oficiais e a aristocracia de forma satisfatória para todos os lados. Daí eclodiam periódicos conflitos que acabavam colocando em xeque os limites do exercício do poder territorial inglês na Irlanda: as numerosas rebeliões aristocráticas que caracterizaram a história da região desde o período anterior. [Inflexão na política de governo inglesa]

Dessa série de revoltas aristocráticas, a chamada Rebelião dos FitzGeralds de Tyronne, de 1534, nos interessa particularmente: não tanto pelos nomes dos envolvidos, mas pelo contexto em que foi lutada. O leitor se lembrará que, na Inglaterra, o ano em questão testemunha a aprovação, pelo Parlamento, do Ato de Supremacia, que assegurou o reconhecimento, pelas elites inglesas, do rompimento da Igreja anglicana com o papado romano, estabelecendo o rei Henrique VIII como seu chefe. Mencionamos que o texto desse ato, caracteristicamente, associava ao Estado inglês a expressão "império" (p. 168). Naquele contexto, tal termo indicava sobretudo o poder autônomo e insubmisso da Coroa, ou seja, um domínio sobre si mesmo, mais do que um domínio sobre outrem, que é provavelmente a conotação mais presente para um leitor dos dias de hoje. Ao mesmo tempo, naquele mesmo ano, a Coroa inglesa começou discussões com o Parlamento irlandês no sentido do reconhecimento da prerrogativa daquele monarca autônomo de dispor da terra da Irlanda, entendida como um território militarmente conquistado. Devemos lembrar que tal gesto estava enraizado no momento de intensificação da mercadorização da terra, que teve sua primeira culminância na dissolução dos monastérios, que começaria dois anos depois. Como era comum na aristocracia gaélica - a bem da verdade, hibérnico-normanda, como vimos-, os FitzGeralds tinham um histórico de serviço à monarquia Tudor, pon[219]

tuado por momentos de insubordinação e intimidação mútua. Em 1534, Gerald FitzGerald, então lorde delegado, recalcitrava frente à política de terras anunciada por Henrique VIII. Depois de envolver-se num episódio usual de rivalidade com a família dos Butlers de Ormond, contudo, FitzGerald foi chamado oficialmente a Westminster. Como sua presença na Corte se prolongasse, rumores de que teria sido aprisionado pela Coroa inglesa fizeram com que seu filho "Silken" Thomas - declarasse rompida sua lealdade para com a monarquia inglesa. A consequente conflagração militar foi eventualmente derrotada, como haviam sido tantas outras antes dela. Mas o que se seguiu a essa derrota não foi um restabelecimento da relação tensa de sempre entre a aristocracia irlandesa e a Coroa inglesa, mas a instauração de um esquema novo de ocupação e intimidação militar que sofreu um incremento contínuo nos anos e décadas que se seguiram e culminou na ampliação do poder de fato da Coroa inglesa em solo irlandês. [Transformações no governo da Irlanda]

Uma das indicações mais explícitas de que a rebelião de 1534 foi um marco na história da dominação inglesa sobre a Irlanda foi o fato de que Gerald FitzGerald foi o último lorde delegado irlandês: o cargo foi doravante confiado apenas a membros da gentry e da nobreza inglesas. Tratava-se de um sinal claro de que a política de dominação da Irlanda sofreria uma inflexão. Em primeiro lugar, indicava urna indisponibilidade da Coroa inglesa de fazer concessões à elite irlandesa. De fato, o caráter dessa indisponibilidade ficou explicitado no fato de que os lordes delegados a partir de então apontados foram preferencialmente indivíduos com experiência militar: a colaboração das elites locais passaria a ser obtida pela intimidação das armas. É digno de nota, adernais, que ingleses substituíram irlandeses também em vá[220]

rios dos cargos altos da representação inglesa, e a burocracia dublinense foi gradualmente sendo controlada por cortesãos que deviam seus cargos prestigiosos unicamente à defesa dos interesses da Coroa inglesa no solo irlandês e, portanto, não eram afetados pela rede de lealdades locais. Essas transformações no método do governo inglês sobre a Irlanda é expressão evidente da aproximação entre a Coroa e as elites inglesas, em grande medida ocasionada, como vimos, pela política de terras decorrente da dissolução dos monastérios. Ora, o que se anunciava em 1534, com a afirmação de Henrique VIII de que a terra irlandesa estava à disposição da monarquia inglesa, era uma extensão daquela política de terras para a Irlanda. De olho em tal perspectiva, parte da elite inglesa atuaria de boa vontade como agente da intensificação do poder de fato da monarquia inglesa na Irlanda. [Rendição e reconcessão]

A primeira medida concreta empreendida por esse aparato de governo em transformação foi uma série de campanhas militares para a intimidação da aristocracia gaélica. Iniciadas em meados da década de 1530, tais campanhas foram uma constante ao longo de todo o período e culminaram na política conhecida como "rendição e reconcessão" ( Surrender and Regrant). Acompanhados de suas tropas, os lordes delegados peregrinaram à Irlanda fazendo visitações nas quais sugeriam aos aristocratas que jurassem fidelidade ao rei da Inglaterra e rendessem a ele suas próprias terras em troca de novas concessões das mesmas terras. Essas novas concessões seriam válidas sob a lei inglesa e, por serem in capite, eles estariam submetidos a todas as prerrogativas da Coroa, tais como pagamento de impostos e controle sobre a herança e os herdeiros (ver "A Coroa"). Ademais, as terras reconcedidas geralmente continham cláusulas que obrigavam a suspensão das relações de vassalagem e posse de terra [221

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por serviço - típicas dos traços feudais vigentes na Irlanda - e a introdução de pagamentos em dinheiro, estabelecendo a monetarização moderna por decreto. Para que a reconcessão pudesse implicar laços individuais bem definidos entre o novo aristocrata e o monarca, o sistema gaélico de redivisão periódica de terra, onde existia, tinha que ser abolido. O que a Coroa inglesa oferecia aos aristocratas irlandeses - além da evitação de uma provável acusação de traição diante de sua recusa a jurar fidelidade a Henrique VIII eram concessões de terra que não poderiam, em tese, ser arbitrariamente abolidas, e portanto estariam protegidas da política de terras que se anunciava. Ademais, onde necessário, os chefes gaélicos seriam convertidos em aristocratas no modelo inglês, com os títulos e prerrogativas equivalentes. O objetivo da política de rendição e reconcessão era, evidentemente, criar uma dependência umbilical da aristocracia irlandesa para com a figura do monarca inglês, incorporando-a à área de atuação do Estado inglês pelas medidas que eram ao mesmo tempo jurídicas e militares, dado que a ameaça das tropas dos lordes delegados não desempenhava em todo o processo papel menor. De fato, um dos lordes delegados, Robert Devereux, Earl de Essex, chegou à Irlanda em 1599 no comando do maior exército já reunido pela Coroa inglesa, totalizando 16 mil homens. 145 Ademais, na legislação então vigente, a traição era fundamento suficiente para o confisco de terras, o que significava que, ao aceitar a reconcessão, a aristocracia irlandesa admitia que não mais usaria a rebelião esporádica como ferramenta política fundamental de sua lida para com a Coroa inglesa nos últimos séculos. Em um nível político mais sutil, a reconcessão podia representar outra vantagem importante para os chefes e aris145

Moody, p. 117.

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tocratas irlandeses: tornar-se aliados formais da poderosa monarquia estrangeira inseria um fator de peso nos conflitos entre os senhores locais. As terras reconcedidas eliminavam as dubiedades das concessões ancestrais, nas quais estava baseada grande parte desses conflitos, de modo que uma reconcessão estratégica podia significar enorme vantagem, do ponto de vista jurídico e político, de um chefe ou aristocrata rival. Por outro lado, a lógica inversa também se aplicava: onde uma terra reconcedida eliminava a justificativa jurídica para uma disputa de terra, a Coroa inglesa podia ter certeza da inimizade das partes deslegitimadas. Nesse sentido, a rendição e a reconcessão funcionavam como uma eficiente estratégia de divisão política dos senhores gaélicos, cujo limite foi alcançado, contudo, quando as reconcessões multiplicaram-se, e a vantagem relativa de obter um título reconcedido foi desaparecendo, à medida que a Coroa não sustentaria ações contra senhores que já tivessem aceitado a reconcessão. [Guerra de conquista e projeto genocida]

De todo modo, para parte expressiva da elite irlandesa, o ônus político do gesto de submissão e as desvantagens administrativas e contábeis da reconcessão pareceram um preço alto demais a ser pago para uma monarquia que, segundo tudo indicava, tornava-se cada vez mais poderosa. Enquanto uma minoria rapidamente aceitou as condições apresentadas pelos lordes delegados, a política de rendição e reconcessão redundou numa série de rebeliões aristocráticas que, em sua totalidade, compõe uma longa guerra de conquista e subjugo, um segundo capítulo daquela que havia tido lugar no século XII. No contexto da alvorada da modernidade, contudo, a guerra implicava uma ordem de considerações estratégicas e administrativas específicas. Desde o início da renovação [223]

do esforço de conquista territorial no século XVI, a Coroa inglesa deu indícios de que entendia com clareza que não se tratava de uma tentativa de reconfiguração das relações feudais, tais como havia ocorrido quatrocentos anos antes, mas de disponibilizar terra para a exploração comercial. Assim, não bastava empregar um procedimento análogo ao da conquista normanda, de substituir a aristocracia: seria preciso transformar a própria forma de vida irlandesa. Assim, em meio ao número crescente de revoltas regionais, um documento de 1540 dá testemunho de que Henrique VIII teria cogitado ordenar a "extirpação completa e destruição total de todos os irlandeses dessa terra", visando à sua substituição por colonos ingleses. O Conselho, entretanto, objetou: não com base em pudores de ordem moral, mas por tratar-se de "tarefa impressionantemente cara e grandemente difícil, considerando-se tanto a falta de habitantes e as grandes severidades e misérias que esses irlandeses conseguem aguentar". Afinal, "a terra é tão grande [... ] que, para habitá-la inteiramente com novos habitantes, o número seria tal que não há príncipe cristão que comodamente poderia dispor de tantos súditos': 146 Ora, um programa genocida como o de Henrique VIII só fazia sentido porque subentendia uma total reconfiguração da relação com a terra. Do ponto de vista da vida material feudal, a remoção de uma população subentenderia uma interrupção desastrosa da produção de alimentos, a desarticulação da estrutura de posse de terra centrada na aldeia e nos senhorios, e a inviabilização da acumulação esporádica de excedentes. A raiz do programa genocida, portanto, era econômica: era a perspectiva de submeter um território, reduzido a uma tabula rasa, à racionalização dos negócios, 146

His Majesty's Commission. State papers. Vol. III: King Henry the Eighth. Part III. London: 1834, p. 176.

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que, de todo modo, como a experiência inglesa já vinha demonstrando, precisa mesmo destruir as aldeias e remover a população, substituindo-a por ovelhas laneiras ou reorganizando as posses de terra de modo a permitir a produção sistemática de excedentes alimentares. Assim como a base do programa genocida seria um raciocínio econômico, sua rejeição também o foi: o que o Conselho objeta é que, do ponto de vista do recurso econômico conhecido como "população", a proposta do monarca é inviável. [A política de guarnições]

Em lugar do extermínio metódico, entretanto, o que o Conselho sugeriu foi um extermínio rapsódico. O processo começou com a política de guarnições que foi adotada nas próximas décadas. Os senhores locais que recusavam render suas terras para reconcessão eram acusados de traição, enfrentados militarmente, e à sua derrota - que foi geralmente o caso em nosso período, devido sobretudo à superioridade organizacional e tecnológica das forças inglesas, que, à diferença das irlandesas, contavam com artilharia - seguiam-se a extinção de seu direito sobre as terras, a reconcessão dessas terras para um senhor fiel ao governo inglês (ou algum oficial da administração) e o estabelecimento de guarnições militares permanentes. Essas guarnições auxiliaram numa reconfiguração administrativa de parte do território irlandês, visto que seu raio de ação projetado determinava para as comunidades vigiadas a obrigação de auxiliar na construção das fortificações e na manutenção das tropas. Na prática, à medida que se espalharam geograficamente, as guarnições levaram consigo um regime de guerra permanente. Se, por um lado, os novos fortes coibiam não apenas a revolta aristocrática e popular, mas também a cultura de pilhagem e o roubo de gado, por outro lado instauraram um (225]

novo regime de extorsões, pois as comunidades ocupadas, em geral acostumadas a formas de produção voltadas à subsistência, relutaram o quanto puderam em produzir os excedentes destinados à manutenção das forças de ocupação e tiveram que ser coagidas continuamente a entregá-los: na prática, eram pilhadas cotidianamente pelos soldados. De fato, há sinais de que até mesmo no Pale - ou seja, nas terras em que a economia de excedentes era mais comum e onde a cultura de pilhagem originava tantas reclamações à administração inglesa - as populações locais percebiam a manutenção das tropas inglesas como uma forma de opressão a ser resistida. A política das guarnições não foi aprovada nem mesmo pelas elites locais que, por afinidade de interesses com a Coroa inglesa, apoiavam as forças de ocupação. Tais elites procuraram repetidas vezes reafirmar a necessidade de regular sua participação no esforço de ocupação ou - para utilizar um termo da época - "pacificação" pelo Parlamento irlandês, o qual, insistiam, deveria ponderar e aprovar uma taxação para manutenção das guarnições, bem como o "preço justo" dos víveres fornecidos para sustento das tropas. Por meio de tal demanda, parte da aristocracia irlandesa procurava sugerir que desejava estabelecer com a Coroa uma relação idêntica à que esta última tinha com a aristocracia inglesa. A resposta da monarquia inglesa a essa demanda variou. Por um lado, as elites locais materialmente alinhadas com a Coroa inglesa dependiam dela econômica e militarmente: estavam numa posição política delicada, constantemente hostilizadas pela elite gaélica numericamente superior que queria operar independentemente da Inglaterra. Sabendo de tal dependência, a Coroa inglesa estava em posição de rejeitar qualquer exigência daquelas elites. Por outro lado, do ponto de vista da Coroa, o esforço de aprofundamento [226]

do domínio territorial sobre a Irlanda era financeiramente muito custoso, de modo que era preciso modular a pressão política sobre as elites que lhe eram fiéis de modo a garantir alguma participação dela no provimento daqueles custos. [Os governos militares, os massacres e a destruição econômica]

Onde a resistência às guarnições foi mais forte e mais duradora, a Coroa inglesa estabeleceu governos militares regionais capazes de agir de forma autônoma dentro de territórios designados. Esses governadores - cujo perfil social reforça a ideia de que o esforço de colonização, tanto na Irlanda quanto, como veremos, ultramar, foi levado a cabo sobretudo por aventureiros endinheirados com conexões pessoais na Corte - estabeleceram e normalizaram uma política de terror: o extermínio de aldeias inteiras, execuções sumárias sob lei marcial, exibições de corpos mutilados, queima de colheitas, matança de rebanhos. Tratava-se de uma abordagem deliberadamente violenta e brutal: nas palavras de um relatório ao governo inglês de 1600, "quando cessarem a lavoura e a criação, acabará a rebelião". 147 Não havia registros, na memória popular, da prática de massacres em solo irlandês, que ficaram para a história local como uma inovação militar inglesa. Tais massacres deixavam claro que, do ponto de vista do programa de dominação inglês, não obstante as admoestações supracitadas arespeito da impossibilidade de extirpar da Irlanda todos os irlandeses, parte dessa população foi percebida e tratada como economicamente dispensável. A política de terra arrasada foi admitida pelos comandantes militares ingleses que, em seus relatórios, contavam como "os condados[ ... ] foram pilhados e espoliados, a maior parte de seu gado e bens des147

Moody, T.W.; Martin, F.X.; Byrne, F.J. A new history of Ireland III. Early modem Ireland, 1534-1691. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 131.

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truída, todas as suas plantações, e quase todas as suas casas, queimadas, deixando-os com pouco ou nada para seu sustento''.148 Chegou-se a dizer de Ulster, a região irlandesa meridional onde a resistência local foi mais aguerrida, que havia sido transformado em um deserto. 149 Ou seja: admitia-se a destruição econômica de ambientes e de recursos que não estavam incorporados ao circuito inglês de produção de mercadorias. O projeto genocida de Henrique VIII era, afinal, até certo ponto economicamente viável. Assim, com os governos militares, na segunda metade do século XVI, as consequências usuais da revolta e da rebelião foram a derrota militar, a expulsão ou o extermínio populacional, o confisco de terras e a distribuição dessas terras para colonos ingleses, às vezes oriundos das próprias Forças Armadas que haviam realizado o extermínio. Ao mesmo tempo, dado que a política de reconcessão chegava aos seus limites - em especial diante de urna elite irlandesa profundamente alarmada - e dado o grau extremo de transformação da forma de vida que ela implicava, a revolta e a rebelião tampouco podiam ser evitadas. [A implantação do sistema comercial de posse de terra]

Do ponto de vista do esforço colonial inglês, as vitórias na guerra de conquista e ocupação eram medidas em termos da eliminação da aristocracia irlandesa revoltosa e da população rebelada, e do estabelecimento, no lugar do governo regional e da forma de vida gaélicos, do sistema inglês. Isso incluía a transformação das regiões conquistadas em condados (shires), a concessão da terra desses condados pelo monarca para aristocratas escolhidos a dedo (geralmente, membros da gentry que participavam do esforço colonial) 148

149

Moody et ai., p. 146. Moody et ai., p. 147.

[228]

e a revisão dos contratos de posse de terra no novo condado em termos do sistema inglês adaptado à produção comercial, o que implicava uma transformação da forma de vida das populações envolvidas. Assim, a reconcessão de terras e a imposição do sistema jurídico inglês acabaram acontecendo mesmo onde a população e a aristocracia irlandesas resistiram. [A política de assentamentos]

Ao mesmo tempo, na prática, a política de ocupação entrou em choque com as necessidades da implantação de uma agricultura comercial. As guarnições tinham efeito deletério sobre a economia local, e a guerra de extermínio acabou, de fato, esvaziando o território mais rapidamente do que ele podia ser repovoado. Isso tudo ameaçava tornar a ocupação irlandesa contabilmente insustentável. Na visão da Coroa inglesa, a terra precisava ser reocupada por atores econômicos capazes de pagar impostos. E foi assim que nasceu, no Alto Conselho, o plano de criar no território irlandês "plantações de homens" que praticassem ali as formas modernas de lida com a terra que vinham desenvolvendo-se no território inglês. Essas plantations, oriundas do flerte do imaginário político do Renascimento com a história clássica - no caso, a exportação de villas romanas da fase imperial seriam a base econômica para uma reconfiguração das relações de poder com o senhorio local, a criação de uma nova aristocracia e uma conquista militar definitiva. 15º A despeito da inspiração romana, a implementação dos assentamentos foi integralmente moderna: tratou-se de tentativas concretas de substituir diretamente o sistema de agricultura de subsistência e pastoreio itinerante pelas formas 15

° Canny, Nicholas.

The Oxford history of the British Empire. Vol. I. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 7-8.

(229]

inglesas de agricultura comercial. A política de assentamentos combinava com transparência (1) a perspectiva de uma política de Estado, (2) as vantagens particulares à monarquia e (3) às elites econômicas. Afinal, a dominação política do território da ilha vizinha ampliava a jurisdição da Coroa inglesa e o espaço de recolhimento de tributos ( 1). Ao mesmo tempo, o aumento do número de concessões in capite (isto é, de senhores que detinham terra por concessão real direta) aumentava o volume da aristocracia sujeita às prerrogativas reais (2). Na base de tudo isso, a iniciativa empreendedora das elites encontrava espaços adicionais para o investimento econômico e o exercício das atividades ligadas à agricultura comercial (3). Em alguns dos assentamentos, a ocupação territorial propriamente dita contou com investimentos diretos da monarquia; em outros, esteve inteiramente nas mãos dos próprios colonos e dos administradores empreendedores (undertakers). Estes últimos, em geral, compravam à Coroa o direito de ocupar as terras confiscadas por meio de contratos que previam pagamentos de impostos em determinados volumes depois de determinado período e faziam contratos de posse de terra com colonos em troca de pagamentos em dinheiro. Os colonos também eram obrigados a fazer um juramento de aceitação da supremacia religiosa anglicana, o que na prática significava que, caso se manifestassem em assuntos políticos ou religiosos em contradição com a linha oficial, podiam ser declarados traidores e imediatamente despojados de suas terras. Em alguns casos, a Coroa vendia, ainda, cartas monopolísticas que atribuíam exclusividade ao aventureiro comprador no desenvolvimento de uma atividade econômica específica numa área específica: por exemplo, a construção de uma cidade em uma região assolada pela guerra para a exploração da pesca na costa. [230]

[Assentamento como continuação privada da guerra de ocupação]

Os primeiros assentamentos foram realizados nos territórios de rebeldes derrotados, nas regiões de Leix e Offaly, em 1557. Por determinação do Parlamento inglês, os títulos de terra originais e o sistema jurídico gaélico seriam revogados, substituídos por novos títulos e pela lei comum. O ato parlamentar previa, também, que os eventuais novos senhores daquelas terras - que lhes seriam concedidas diretamente pelo rei - estariam autorizados a ocupar dois terços do território com colonos a serem importados do Pale ou da Inglaterra - e, no final de nosso período, também da Escócia-, removendo para a terça parte restante a população nativa que sobrevivera à rebelião derrotada. Tais autorizações e/ou exigências de remoção da população originária foram uma marca geral do sistema de plantations. Ademais, o contrato de posse de terra podia envolver cláusulas obrigando os colonos a providenciarem a construção e a manutenção de fortificações. Em alguns casos, as concessões estiveram condicionadas à oferta de contratos de posse especialmente vantajosos para indivíduos que haviam servido nas tropas do lorde delegado, com o que se visava conscientemente, segundo atestam os documentos 151 - à criação de uma classe de camponeses soldados capazes de atuar ao mesmo tempo como atores econômicos e força de ocupação permanente e vitalícia - além de gratuita. 152 151 152

Moody, p. 95. A imaginação política do período de consolidação do Estado moderno desde a cultura citadina italiana até a monarquia insular, que é nosso objeto - voltava-se frequentemente para a ideia de uma nação de lutadores prontos a defender a terra, antecipando o serviço militar obrigatório e os exércitos nacionais. Cf. Bacon, Francis. Of the true greatness of kingdoms and estates. ln: Essays. New York: Prometheus Books, 1995. Nosso período, entretanto,

[2311

De fato, essa transformação da guerra de conquista em assunto privado também se expressava numa responsabilização dos administradores-empreendedores pela remoção ou realocação da população nativa, resultando em operações militares de proporções e resultados variáveis. Com isso, a política dos assentamentos inseria uma nuance na guerra de ocupação permanente, tornando-a uma guerra civil permanente. Era projetada uma relação extremamente hostil entre os colonos e a população nativa, mesmo nos territórios que já haviam passado pelo regime de massacres e destruição econômica pelas tropas dos lordes delegados. [Guerra civil permanente e discurso de civilização]

É macabramente interessante como, em meio ao quadro de

opressão generalizada e vitória militar inconteste, os vencedores preocuparam-se, ainda, em tecer um discurso - dispensável, do ponto de vista da implementação material da ocupação - a respeito do ganho moral e econômico pelo qual passaria a população conquistada. Tal discurso renascentista de civilização e aculturamento também tinha inspiração clássica e pintava um paralelo entre a relação dos ingleses com os irlandeses e aquela dos romanos com os povos chamados "bárbaros". A caracterização dos irlandeses como bárbaros obedecerá à mesma lógica envolvida na caracterização das primeiras hordas modernas de miseráveis como incivilizados economicamente imprestáveis. Na implicação repugnante de que esse caráter imprestável tornava justificável o genocídio está ainda está distante do nacionalismo e da confusão entre o interesse das classes dominantes e a obrigação ideológica do povo de sacrificar-se no campo de batalha: tratava-se apenas de projetar forças de ocupação que, com o mesmo fôlego, pagassem impostos e defendessem a própria pele.

[232]

contida uma verdade fundamental a respeito do impacto civilizacional que então ocorria na Inglaterra e na Irlanda. Da ótica da sociedade moderna inglesa, os irlandeses - assim como o grosso do povo inglês - tratava-se, de fato, de uma população sem serventia. Afinal, não existiam numa cultura material em que a vida humana era funcionalizada pelo acúmulo de riqueza: ao contrário, a vida humana era ela mesma sua própria finalidade, como havia sido desde o início dos tempos. O que chamamos de "agricultura de subsistência", e que parecia aos empreendedores ingleses uma espécie de desperdício, não era nada mais, nada menos que uma organização social que tinha por finalidade manter as pessoas vivas. A guerra colonial inglesa foi justamente o esforço de submeter a vida humana à utilidade econômica, e seu caráter violento deve-se precisamente a isso. [Marginalização e funcionalização econômica da população irlandesa]

Ê digno de nota, contudo, que o projeto de conversão ter-

ritorial da sociedade de subsistência supostamente bárbara em sociedade produtora de mercadorias monetarizada, quando começa a se realizar concretamente, só o faz na medida em que mantém a agricultura de subsistência viva em determinadas regiões. Isso quer dizer que, para entender a modernização da Irlanda pelo esforço comercial inglês, temos que descrever um processo paradoxal no qual a conversão da cultura material de subsistência em uma sociedade produtora de mercadorias depende da manutenção, em estado precarizado, de espaços de cultura material de subsistência. Ou seja: a modernização colonial da Irlanda é levada a cabo na medida em que não se completa. O que se passa é que, por um lado, a administração inglesa, ciosa do perigo de rebeliões, coerentemente insistiu em esquemas rigorosos de marginalização da população irlan(233]

desa sobrevivente e prescreveu esse regime para os colonos ingleses e para todos os níveis da administração colonial. As concessões de terras do monarca para os administradores-empreendedores, bem como os contratos de posse de terra entre estes e os colonos, geralmente incluíam cláusulas proibindo expressamente a locação e a venda para irlandeses. Nas parcelas do território assentado em que os habitantes originais teriam permissão para viver, os aluguéis cobrados deveriam ser mais altos-duas vezes mais altos, às vezes- do que os cobrados dos colonos de origem inglesa ou escocesa. Ora, esses aluguéis mais altos, combinados à própria incompletude da expulsão dos irlandeses, por um lado projetavam uma discriminação da população nativa, mas, por outro lado, organizavam uma forma de convivência entre eles e os colonos. O cálculo da administração colonial era que os colonos necessitariam do auxílio da mão de obra local no monumental esforço inicial de reconstrução econômica e reconfiguração da terra para a agricultura comercial. De fato, a Corte inglesa chegou a cogitar a escravização da população nativa sobrevivente, num desenvolvimento das formas de escravidão que existiam na Inglaterra, a servidão penal e militar. Contudo, a segregação acabou sendo, de fato, a solução economicamente mais funcional: afinal, a população nativa permanecia obrigada a pagar aluguéis para novos senhores ingleses - que, por sua vez, pagavam tributos para a Coroa - e, por isso, era obrigada a trabalhar em troca de salários com que pagar os aluguéis. Pela relação salarial, e à diferença da relação servil, os colonos ingleses que contratavam os irlandeses segregados eram desobrigados de sustentá-los materialmente. Os salários baixos pagos, contudo, exigiam uma manutenção da agricultura de subsistência, sem a qual os trabalhadores simplesmente morreriam de fome. Assim, a conversão da forma de vida irlandesa não foi [234)

total, e é por isso que podemos falar rigorosamente de uma segregação espacial, cultural e econômica. O paradoxo da modernização colonial da Irlanda não parou por aí. Em breve tornou-se claro, tanto para os colonos e administradores-empreendedores quanto para a Coroa, que a quantia dos impostos e outros pagamentos contratados para as plantations excederia a capacidade desses assentamentos de desenvolverem-se economicamente. Isso se deveu especialmente ao fato de que não havia colonos suficientes: mesmo nas condições de violenta transformação da relação com a terra na Inglaterra - ou por causa dessas condições - não havia mão de obra inglesa sobrando, suficientemente equipada com capital próprio, para empreender a sangrenta aventura colonial na ilha vizinha. No fim das contas, os impostos e pagamentos eram calculados proporcionalmente à quantidade de terras destinadas às plantations, mas a extensão dessas terras era desproporcionalmente grande para a quantidade de colonos. Assim, esses colonos, depois de firmemente estabelecidos no território pago ao preço do sangue alheio, eram menos numerosos do que o necessário para honrar seus compromissos financeiros, e começaram a fazer o possível para sublocar parte de suas terras à população nativa, logrando as prescrições da Coroa. Essa população, por sua vez, além de materialmente desguarnecida, seguia inserida em uma cultura material avessa à monetarização, de tal modo que, muitas vezes, tais contratos de sublocação tinham que ser feitos a preços muito inferiores aos prescritos pela Coroa - ou até muito inferiores àqueles pagos pelos próprios colonos. E o fato é que as plantations que não se tornaram inviáveis, e que não foram, por isso, eventualmente abandonadas, levando seus investidores à falência, sobreviveram apenas pelo estabelecimento, com os nativos subjugados - e na medida em que [235]

estavam subjugados-, de laços econômicos estreitos e absolutamente funcionais, mas que os mantinham como participantes de segunda ordem da conversão agrícola-comercial do território. [A revisão dos títulos de posse de terra]

Na altura das décadas finais do século XVI, a guerra de conquista e pacificação, combinada à formação de condados e o estabelecimento de plantations, já havia trazido significativos territórios para dentro da esfera jurídica, fiscal, econômica, militar e política inglesa. Prova da capacidade de ação efetiva da burocracia de Dublin nesse período, e do poder que as elites e o colonato inglês ganhavam por meio dela, foi o estímulo oficial à investigação dos títulos de terras ditos «defeituosos". Assim foram chamados os títulos de posse de terra lavrados segundo o sistema de posse irlandês, antes da imposição da lei comum inglesa. A princípio, eram títulos que remontavam ao período anterior à retomada da guerra de conquista no século XVI, e cuja existência continuada inseria pontos cegos no espaço de influência da Coroa e das elites inglesas. Para remediar isso, foi estabelecida a Comissão de Remediação, que empreendia visitas às novas herdades e paróquias, e inspecionava os títulos de posse de terra do campesinato. Na prática, "remediar" os títulos significava declará-los nulos, o que permitia ao senhor dispor das terras como bem entendesse - inclusive recontratar com o antigo inquilino, agora em termos mais vantajosos. Mas havia situações em que a remediação de títulos defeituosos também podia significar, à discrição da comissão, a retirada da terra do âmbito da herdade e sua contratação como posse livre, o que envolvia, como vimos, uma relação direta entre o ocupante da terra e o rei. A Comissão dividia com a Coroa a autonomia para designar os benefi[236]

ciários desses novos contratos. Assim, pela revisão dos títulos de terra, a burocracia dublinense funcionava como uma câmara de distribuição de favores das elites burocráticas ( e para elas mesmas) e da Coroa. O caráter arbitrário da remediação foi posteriormente aprofundado, quando a Comissão passou a autorizar e premiar a investigação privada dos títulos. Isso significava que indivíduos quaisquer - mas, geralmente, membros da elite do colonato - podiam denunciar à Comissão o caráter defeituoso de um título de terra. Ao prestarem esse prestimoso auxílio à padronização jurídica da posse de terra no espaço colonial, os denunciadores recebiam vantagens para a negociação do título remediado, tais como aluguel ou taxa de acesso mais baixos que os normais. Como a Comissão era formada por membros da administração colonial, por princípio distantes da população irlandesa, e indiferentes às suas necessidades e destinos, é evidente que denúncias desse tipo eram em geral aceitas. [Alterações na distribuição de terras]

As plantations e a remediação de títulos defeituosos combinaram-se ainda a repetidas ordens ou autorizações para o confisco de terras de católicos, imprimindo sobre a distribuição de terras na Irlanda alterações numa direção semelhante àquela que vinha tendo lugar na Inglaterra, porém de maneira mais rápida e sob supervisão administrativa. Foi desencadeado um processo de concentração de terras que beneficiou o colonato e ajudou a criar uma casta de proprietários rurais semelhantes à yeomanry inglesa. Em meados do século XVII, a terra da Irlanda já havia passado, em sua maior parte, das mãos de irlandeses para as de ingleses ou de famílias do Pale. A ocupação propriamente dita da terra, contudo, continuou predominantemente marcada pela pre(23 7]

sença irlandesa, 153 o que significa que, após os massacres cujo número de vítimas jamais será quantificado, as primeiras décadas da retomada inglesa da colonização da Irlanda em nosso período transformaram a população nativa, de detentores de títulos de terra, em trabalhadores rurais despossuídos que, enquanto tais, desempenharam papel econômico fundamental na economia inglesa. [A reconfiguração da elite na Irlanda]

Retornando ao plano das elites irlandesas, é importante fazer notar de que maneira elas foram afetadas por essas transformações. Como vimos, devido aos critérios de participação parlamentar, o poder político em nosso período estava ligado à posse da terra e, portanto, é de se esperar que alterações na distribuição de terras tivessem reverberações nesse âmbito. De fato, a concentração de terras nas mãos de ingleses acarretou um aumento da participação de ingleses no Parlamento irlandês. Por outro lado, a relação da Coroa inglesa com a elite inglesa da Irlanda não passava simplesmente por questões de nacionalidade porque, como vimos, a Reforma Anglicana criara divisões nas elites inglesas, e essas divisões tiveram importantes consequências para a administração colonial da Irlanda. Para começar, a retomada da guerra de conquista em nosso período envolveu um jogo de poder com a elite do Pale. Por um lado, sua colaboração era necessária para a submissão da aristocracia gaélica; por outro lado, tal submissão se dava em termos do desenvolvimento de um aparato militar que prescindiria dela militarmente e que claramente projetava uma aristocracia irlandesa desarmada, fora e dentro do Pale. Assim, embora mais próxima da Coroa inglesa, e mais capaz de extrair dela benefícios ao longo do 153

Moody et ai., p. 169.

[238]

processo de intensificação do domínio territorial - por exemplo, por meio da Comissão de Remediação de Títulos -, a aristocracia do Fale também tinha a perder com o fortalecimento da Coroa na Irlanda: o que se avizinhava, em suma, era um processo de favorecimento seletivo semelhante ao que analisamos na seção "A Coroa". Um importante instrumento que a aristocracia do Pale empregou a seu favor nesse jogo de forças foi a exigência de aceitação formal à Reforma Anglicana e às alterações na linha sucessória henriquina pelo juramento, da mesma forma que havia sido feito na Inglaterra. Mostrando-se recalcitrante na adesão a tal juramento e no abandono das práticas católicas, a aristocracia do Fale não apenas se aferrou a um importante aspecto da sua forma de vida, mas empregou-a como moeda de troca política para arrancar benefícios da Coroa inglesa. Por seu turno, esta última utilizou como contrapeso à hesitação da aristocracia do Pale a ameaça do confisco de terras dos católicos. Para entender as consequências desse jogo de forças, é preciso atentar para o fato de que, em torno dele, as elites irlandesas estavam objetivamente divididas em três grupos com interesses às vezes conflitantes, às vezes coincidentes: a aristocracia anglo-normanda do Pale, predominantemente católica (também conhecida como os "Old English"), a aristocracia gaélica, também católica (os" Old Irish") e a elite do colonato (os "New English"). Este último grupo, embora originalmente composto, em grande parte, por ingleses católicos que quiseram fugir das condições desfavoráveis da Inglaterra recém-reformada, 154 rapidamente identificou-se 154

A partir do reinado de James VI e I (1603-1625), cujas raízes escocesas fundamentaram o discurso a respeito da "Grã-Bretanha'; uma parte importante do colonato na Irlanda seria oriunda dos meios protestantes (presbiterianos) da Escócia.

[239]

com o protestantismo de modo a diferenciar-se da aristocracia católica do Pale, tendo em vista que a Coroa inglesa utilizaria o filtro da religião para orientar a aplicação de sua política de intimidação militar e jurídica. As várias autorizações e ordens para o confisco de terras de católicos emitidas pela Coroa em nosso período colocavam, assim, a aristocracia católica gaélica e a anglo-normanda contra o colonato, que seria o beneficiário imediato de tais confiscas. De forma semelhante, nosso período foi entrecortado por determinações da Coroa que proibiam o acesso de católicos a determinados cargos administrativos. Por um lado, é verdade que essas políticas de corte religioso jamais chegaram a ser implementadas à risca: como sua implementação dependia de uma burocracia em parte aliada por laços sanguíneos e interesses econômicos à aristocracia do Pale, quando não idêntica a ela, suas principais vítimas foram sobretudo membros do pequeno campesinato. Isso resultou na clara dimensão religiosa da reorganização da posse de terra na Irlanda: se a maior parte das posses de terra estava nas mãos de católicos no início do século XVII, essa proporção diminuirá até cerca de 50% em meados dos 1600, caindo para cerca de 20% à altura do final do protetorado, em 1659 - ao mesmo tempo que, ao longo de todo esse período, a maioria da população continuou católica. 155 Por outro lado, o impedimento do acesso dos católicos aos altos cargos da administração colonial voltava-se justamente contra o tipo de favoritismo que blindava a elite católica, e conseguiu coibi-lo em certa medida, resultando no enfraquecimento político da aristocracia do Pale. Ademais, o simples fato de que houve exemplos de aristocratas anglo-normandos desprovidos de suas terras com base em 155

Moody et ai., p. 1.

[240]

sua fé professada teve peso significativo a favor do esforço da Coroa inglesa de destruir a autonomia da elite do Pale. Por mais que as políticas de corte religioso, às vezes, tornassem a aristocracia anglo-normanda e a aristocracia gaélica aliadas naturais - o que, de fato, chegou a uni-las militarmente em insurreições ao longo dos séculos XVI e XVII -, seu resultado ao final de nosso período foi a destruição de parte da aristocracia gaélica, o subjugo da aristocracia do Pale e o fortalecimento do colonato e de uma aristocracia irlandesa protestante. Ao derrotar política e militarmente as forças políticas locais que mais capacidade tinham de organizar a resistência em nível regional, a Coroa inglesa dá sinais, antes do fim de nosso período, de que seria triunfante em seu esforço de retomada da conquista e da dominação da Irlanda. [A reconfiguração da representação política]

É importante frisar, contudo, como a conquista e a dominação não tinham sua expressão única, ou principal, no plano militar. A ocupação armada não podia generalizar-se por motivos contábeis e logísticos: foi, nada mais, nada menos, um elemento importante para a intimidação e o controle das elites e da população irlandesa. Outro desses elementos foi a reconfiguração da representação parlamentar. Essa reconfiguração foi necessária na medida em que, para viabilizar contabilmente o esforço colonial a médio e longo prazo, era necessário instituir para com a elite irlandesa uma relação estável e regrada que envolvesse os mecanismos de aprovação de taxação, alocação de recursos e padronização jurídica análogos aos regidos pelo Parlamento inglês. Ademais, para garantir o pacto de classes entre a aristocracia e a Coroa, o costume jurídico exigia que, mesmo em caso de traição e rebelião, o processo de julgamento e destituição de um aristocrata (attainder) fosse aprovado pelo Parlamento. Ao mesmo [241

l

tempo, a relação parlamentar amistosa entre a Coroa e a aristocracia irlandesa era inviabilizada pelo corte religioso que, embora fundamental para a administração da violência colonial, também aliava as elites anglo-normanda e gaélica em maioria parlamentar católica que, no século XVI, foi repetidamente capaz de frustrar as propostas legislativas da Coroa. Para resolver esse impasse legislativo, nas primeiras décadas do século XVII a monarquia inglesa inaugurou uma política de estímulo à incorporação citadina - ou seja, a criação oficial de cidades, com títulos de liberdade, conselhos locais e garantia de representação parlamentar -, que foi aplicada discricionariamente de modo a beneficiar apenas localidades protestantes, a começar pelas vilas do colonato das plantations. Visto que a população irlandesa continuava largamente católica, essa medida significou aumento desproporcional da representação política protestante. Várias aldeias com menos de uma centena de habitantes foram incorporadas, adquirindo estatuto pleno de cidades e assentos garantidos na Câmara dos Comuns. Assim, no Parlamento de 1612, por meio de um cálculo cuidadoso, combinou-se enorme expansão do número de assentos na Câmara dos Comuns, de 148 para 232, com aumento do número dos representantes protestantes. Ou seja: deu-se aumento da representação política das elites irlandesas, paradoxalmente combinado a uma diminuição da representatividade da população católica. Já na Câmara Alta, a solução foi mais simples: assim como na Inglaterra, o bispado irlandês tinha lugar no Parlamento junto aos lordes. Acontece que, em seguida ao rompimento anglicano com o papado romano, os bispos irlandeses foram substituídos por clérigos que dependiam da afirmação de seu protestantismo (mesmo que apenas nominalmente), de modo a conservar seus recém-adquiridos cargos e terras. Os vinte assentos protestantes desse novo [242]

episcopado protestante, que havia jurado lealdade à Coroa inglesa e dependia da colaboração com ela para manutenção de seus cargos, garantiam maioria sobre os dezesseis votos da aristocracia católica irlandesa. Combinando a imposição de juramentos - inclusive com a execução de "recusantes", ou aristocratas e oficiais que, mesmo citados, persistiam na afirmação de seu catolicismo -, a manipulação numérica dos assentos e as negociações em torno do número de cidades incorporadas - as quais incluíam uma matemática difícil de seguir para quem não estava inteiramente por dentro das artimanhas da burocracia dublinense -, a Coroa inglesa conseguiu forjar um Parlamento funcional. A aristocracia católica irlandesa acabou sendo obrigada a participar desse Parlamento, e sua oposição parlamentar organizada, segundo a bizarra mecânica do funcionamento do Estado moderno, em vez de inviabilizar o precário pacto de classes entre os protestantes, os católicos e a monarquia, acabou legitimando essa precariedade e normalizando-a. A precariedade desse pacto não é de se desprezar, contudo: ela regeu as relações entre as elites irlandesas e o governo britânico até o século XX, quando a guerra anticolonial libertou a Irlanda - com exceção do Ulster - da dominação inglesa, sendo que, no Ulster, ela dura até hoje. Por outro lado, a manutenção dessa precariedade consiste exatamente na unificação institucional da Irlanda pelo domínio colonial inglês, e a destruição do que, do ponto de vista dessa unificação, podemos chamar de fragmentação regional e pré-moderna. [As peculiaridades da modernização colonial]

Em resumo, o esforço colonial inglês foi composto pela repactuação da posse de terra, a ação militar de remoção, extermínio populacional e intimidação da aristocracia local, e o confisco de terras para assentamentos. Nestes, colabora[243]

vam aventureiros da elite, emigrados dos setores médios, e a própria Coroa, ora como investidora direta, ora como planejadora, ora meramente como gestora das forças de ocupação e do aparato político-jurídico que os tornava possíveis. O fundamento da ocupação e da repactuação da posse de terra foi a extirpação das formas feudais e comunais de concessão, produção, posse, aluguel, pagamento etc. - e sua substituição por formas modernas monetarizadas e compatíveis com a lei inglesa. Nesse sentido, um dos resultados da renovação do esforço colonial que estudamos acima foi a modernização da relação com a terra na Irlanda. Em nosso período, tal modernização reconfigurou o perfil da aristocracia irlandesa e criou um setor camponês médio. Contudo, é importante notar que o desenvolvimento da economia moderna na Irlanda tomou um caminho bastante diferente daquele da Inglaterra. Em especial, a versão irlandesa dos novos setores sociais não chegou a desenvolver uma agricultura comercial ou uma atividade manufatureira comparável às análogas inglesas. Isso deveria causar interrogação: afinal, como vimos no Capítulo 2, dois dos principais requisitos para tais desenvolvimentos estavam presentes na Irlanda: a mercadorização forçada da terra e a inviabilização da agricultura de subsistência, com a conversão do campesinato em proletariado rural. Ocorre que certas características do espaço colonial funcionaram como importantes contrapesos à presença desses requisitos. Em primeiro lugar, em nosso período, o desenvolvimento de uma manufatura doméstica esbarrou no problema da concentração da riqueza. No início do século XVI, o nível de monetarização da sociedade irlandesa era baixíssimo - muito mais baixo que o da sociedade inglesa, especialmente fora do Pale. Quando se deu um aumento da monetarização, concomitantemente à política de segregação populacional, isso [244]

aconteceu pela imposição do sistema de pagamento de aluguéis em dinheiro sobre uma população despossuída, incapaz de produzir excedentes convertíveis em moeda, e parcialmente inserida numa economia de subsistência, como vimos. Se essa população trabalhava em troca de dinheiro, esse dinheiro era usado tão somente para pagar o acesso à terra. Assim, em nosso período, a riqueza expressa em moeda ficou concentrada nas mãos dos pequeníssimos setores sociais que controlavam o acesso à terra, ou seja, tal riqueza permaneceu tão concentrada quanto a própria terra. Isso significava que apenas uma parcela minúscula da sociedade poderia funcionar como consumidora: essa é uma das importantes consequências do fato de que a economia de subsistência continuou existindo ao lado da mercadorização da terra, afinal. A concentração de riqueza tinha ainda uma segunda consequência deletéria ao desenvolvimento da manufatura: a indisponibilidade de capitais. A moeda, que até então só circulava marginalmente na Irlanda, e que portanto não existia em abundância, encontrava-se quase toda ela encerrada no sistema de pagamento de salários, aluguéis e impostos. Como consequência, as taxas de juros eram altíssimas e tornavam o investimento industrial financeiramente menos atrativo que o investimento em terras, o que retroalimentava a supracitada concentração de terras e de riqueza. O que tornava o investimento na manufatura especialmente pouco atrativo, contudo, eram as condições desfavoráveis de competição com o já estabelecido sistema manufatureiro inglês - e isso não apenas no que diz respeito aos problemas intrinsecamente econômicos de tal competição. Um dos fatores fundamentais a que se deveu a diferença entre as consequências da modernização da relação com a terra na Irlanda e na Inglaterra foi a ação legislativa das elites inglesas contra a produção manufatureira no espaço colonial. Nosso período assistiu a uma série de atos [245]

protecionistas que, passados no Parlamento inglês, coibiram a exportação de diversos produtos irlandeses não apenas para a Inglaterra, mas para países com os quais a elite mercantil inglesa mantinha relações. É importante observar que tal protecionismo tinha enorme peso na relação entre a Coroa e as elites irlandeses, na medida em que unia contra o governo colonial tanto o colonato quanto a aristocracia anglo-normanda, que tiveram sua oportunidade de inserção limitada no crescente mercado europeu. Devido ao protecionismo inglês, as atividades que mais se desenvolveram na Irlanda no período foram aquelas que, sem competir seriamente com as desempenhadas pelas elites econômicas inglesas, complementavam-nas de alguma forma: a exportação de lã em estado bruto para a Inglaterra, em alguns períodos; a criação de gado, que beneficiou a indústria inglesa do couro; e a extração madeireira, visto que, em nosso período, em comparação com as irlandesas, as florestas inglesas já estavam seriamente exauridas. Uma incipiente manufatura de lã desenvolveu-se, também, para atender o mercado interno, mas só teve alcance internacional nos períodos em que a produção inglesa precisou dela para ocupar-se de determinadas partes do processo produtivo, em momentos de grande demanda continental. Levando tudo isso em conta, podemos dizer que estabeleceu-se entre a Irlanda e a Inglaterra o tipo de relação econômica que marcará a atividade colonial moderna ao longo dos séculos seguintes: a exportação de matérias-primas para a metrópole do espaço colonial - onde são produzidas por uma população parcialmente inserida em formas de vida pré-modernas e que, portanto, forma uma mão de obra mais barata-, o ulterior desenvolvimento da manufatura metropolitana e o incremento da exportação de bens manufaturados do espaço metropolitano, inclusive para o consumo das elites coloniais. [246]

Comércio ultramarino e pirataria Estudamos as consequências do crescimento e do enriquecimento das elites econômicas inglesas para a expansão da forma social da produção de mercadorias pelo território inglês e - de modo diferente, como vimos - irlandês. Agora, acompanharemos aquela expansão para espaços mais longínquos que a ilha vizinha. [Confinamento doméstico inicial das elites econômicas inglesas]

Para começar, é importante ter em mente que, no início de nosso período, a atuação direta das elites econômicas inglesas estava confinada ao âmbito doméstico. Embora a lã inglesa fosse exportada para o continente desde o século XIV, no início do século XVI a maior parte dessa operação ainda era conduzida por mercadores ibéricos, italianos e holandeses, que tradicionalmente dominavam o comércio internacional europeu. Como parte das transformações econômicas de nosso período, esse quadro sofreria importante inflexão. O crescimento e a concentração da riqueza controlada pelos setores mercantis ingleses possibilitaram um alargamento de sua capacidade de investimento, tornando contabilmente viável seu crescente envolvimento em operações de comércio internacional. Ao mesmo tempo, a partir de meados do século XVI, flutuações no mercado europeu diminuíram a demanda pelo tecido de lã inglês, liberando capital para investimento em outros ramos. O primeiro resultado palpável disso foi a participação cada vez maior de mercadores ingleses no provimento de artigos de luxo - sobretudo tecidos, especiarias e vinhos - no mercado inglês, em detrimento dos comerciantes europeus. É interessante notar que a demanda por artigos de luxo partia das próprias elites econômicas inglesas e, portanto, era outro aspecto do processo geral de concentração de riqueza de nosso período. Ora, o domínio [24 7]

inglês sobre o processo de importação exigia que os comerciantes ingleses atuassem nos territórios estrangeiros onde as mercadorias se originavam. Tal atuação determinou a criação das companhias comerciais de nosso período. [Criação das companhias comerciais]

Em nossa análise de outros aspectos da ascensão do capitalismo em nosso período, assistimos a uma confluência de interesses que unia a Coroa e as classes proprietárias inglesas. Pois bem: assim como em certas dimensões da colonização da Irlanda, no desenvolvimento da empreitada comercial ultramarina essa relação se estreitou e tomou a forma da colaboração direta. Para facilitar e estimular a atuação internacional dos comerciantes ingleses, a Coroa estabeleceu monopólios geograficamente definidos e vendeu esses monopólios para consórcios interessados, criando, assim, as companhias Levantina, Turca, Russa, Amazônica e das Índias Orientais. As cartas dessas companhias garantiam exclusividade para a importação de produtos oriundos desses destinos, e a monarquia tornou-se investidora em algumas delas, chegando inclusive a dotá-las de embarcações escolhidas dentre "as naus de Sua Majestade': Afinal, como vimos (p. 136ss), dado o caráter turbulento das relações internacionais do período, a expansão mercantil inglesa participou do processo de consolidação simultânea de uma marinha mercante e de guerra. Ficava subentendido não apenas que o estabelecimento de novas rotas comerciais inglesas acarretaria necessariamente o conflito armado, mas também que tal estabelecimento passaria necessariamente pela pirataria. De fato, grande parte dos artigos de luxo que os barcos das companhias inglesas levaram para casa no nosso período tinham sua origem não na África ou nas "índias", mas nos porões dos navios espanhóis e franceses. [248]

[Caráter comercial-militar das companhias]

O caráter paramilitar da operação das companhias ultramarinas deixou sua marca no perfil dos favorecidos pela política de monopólios: participaram dessas empreitadas não apenas cortesãos e membros de corporações citadinas com disposição aventureira, mas também oficiais de marinha. Financiadas por métodos marcadamente modernos, mesmo as operações de pirataria receberam capital não apenas da Coroa - que participava como ente privado - e dos ricaços que compravam as cartas monopolistas, mas também de toda sorte de gente de meios: membros da nobreza e da gentry até investidores pequenos - tais como artesãos e yeomen - tornavam-se acionistas de fundos rudimentares 156 e participavam proporcionalmente do lucro das pilhagens. Assim, no mar do Norte, navegadores exímios, financiados pela Companhia Moscovita, tentavam encontrar uma passagem pelo gelo que permitisse acesso aos portos russos, para viabilizar o escoamento da produção doméstica de tecidos, bem como o contato, por meio de intermediários, das rotas comerciais com o Oriente Médio e com o Extremo Oriente. Ao mesmo tempo, as operações montadas na segunda metade de 1500 para penetrar no negócio de pimenta, ouro e marfim na África Ocidental envolveram verdadeiras esquadras e um conflito acirrado com o monopólio português sobre a região. Embora tenham sido realizadas tentativas de interferir no comércio de escravos para abastecimento das colônias ibéricas na América do Sul, seu sucesso foi limitado: os mercadores ingleses ainda teriam que esperar um século antes de marcarem presença significativa no lucrativo ramo da mercadorização de corpos humanos. 156

Appleby, John C. War, politics and colonization, 1558-1625. ln: Canny, Nicholas. The Oxford history of the British Empire. Vol I. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 76.

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Talvez a incorporação mais marcante do período tenha sido a da Companhia das Índias Orientais. Capitaneada por piratas experientes, aristocratas aventureiros, membros da corporação citadina de Londres, a Companhia buscava, inicialmente, estabelecer acesso direto às mercadorias de luxo que vinham da Ásia, ao mesmo tempo que previa, em sua carta, a possível prática de pirataria. [Consequências econômicas e políticas da pirataria]

O sucesso dessas companhias variou: muitas - como a Companhia Amazônica - tiveram vida bastante curta, enquanto outras conseguiram viabilizar enriquecimento gigantesco pela reexportação das cargas roubadas ou obtidas pelos cinzentos métodos do comércio costeiro com as tribos africanas e americanas. De todo modo, os excedentes acumulados com a expansão econômica doméstica, e mais tarde os lucros da própria pirataria, foram altos o suficiente para manter uma canalização constante para as empreitadas ultramarinas, o que colaborou com a consolidação da construção naval inglesa e estimulou o desenvolvimento de uma indústria bélica. Combinados ao treinamento de gerações de marinheiros e comandantes, esses fatores econômicos resultaram, no final de nosso período, em que a Inglaterra tivesse suplantado o lugar de Portugal e Espanha como principal poder marítimo europeu e pudesse rivalizar com o até então inconteste poderio comercial holandês. Estimulados política e financeiramente pela Coroa, numa época de instáveis relações entre as potências europeias, os corsários ingleses do período rodaram o mundo - literalmente, no caso do célebre Francis Drake, que empreendeu uma viagem de circum-navegação entre 1577 e 1580 - e viabilizaram a construção de uma das mais importantes Forças Armadas da Europa do início do século XVII. [250]

Os assentamentos nas Américas O desenvolvimento simultaneamente mercantil e militar descrito acima, característico do comércio internacional de nosso período, levou a monarquia inglesa a seguir os passos de Portugal e Espanha no esforço de colonização das Américas. Contudo, até o início do século XVII, o nível da participação inglesa na ocupação do Novo Mundo não chegou a ser comparável ao das potências ibéricas: o foco da monarquia inglesa, então, foi o subjugo, a ocupação e a transformação socioeconômica da Irlanda, processo que consumiu enorme quantidade de recursos administrativos e militares. Ao mesmo tempo, no período abrangido pelo presente trabalho, a aliança entre a Coroa e as elites comerciais inglesas produziu resultados de importância fulcral para os desenvolvimentos coloniais ulteriores na América Central insular e na América do Norte. É sobre esses resultados que nos debruçaremos agora. Começaremos fazendo algumas considerações sobre o sentido geral do assentamento ultramarino inglês e prosseguiremos numa análise resumida do processo concreto de estabelecimento e desenvolvimento dos principais assentamentos de nosso período. [Pirataria, bases militares e assentamentos]

Como se sabe, a presença europeia no Novo Mundo se deu inicialmente sob a forma de iniciativas privadas de pequena escala que estabeleceram um sem-número de acampamentos sazonais ao longo da costa - sobretudo, bases para pesca, caça e extração de madeira. Contudo, a obtenção de mercadorias - fosse pela troca com a população ameríndia, fosse pela pilhagem ou pelos rudimentares assentamentos agrícolas que combinavam os métodos anteriores à agricultura comercial - esteve desde o início temperada pela pirataria, que, operando à grande distância dos portos de origem, ne(251

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cessitava de postos avançados de municiamento. Estes, por sua vez, exigiam assentamentos que viabilizassem certa autonomia alimentar para as guarnições permanentes, e foi com esse projeto em mente que as coroas europeias inicialmente autorizaram e estimularam as expedições transatlânticas de exploração e ocupação. [A pobreza moderna e a população colonial]

No caso inglês, aquele projeto tomou forma pelo protagonismo de membros das classes proprietárias dispostos a arriscar parte de suas fortunas. Esses primeiros empresários transatlânticos empregaram aventureiros com experiência militar e se beneficiaram da existência de populações despossuídas que podiam ser transportadas pelo oceano a baixo custo e involuntariamente. É bom frisar que, se a emigração religiosa marcará a experiência colonial inglesa no período seguinte ao nosso, a maior parte das milhares de pessoas que seguiram os aventureiros empreendedores de nosso período foi composta de degredados. Tratava-se de homens, mulheres e crianças despossuídos que, pelos termos de legislação vigente (no caso, o Ato dos Mendigos, o Beggar's Act, de 1598), haviam sido condenados reincidentemente por vagabundagem ou mendicância e que, portanto, podiam ser transportados involuntariamente para além-mar, onde seriam obrigados a trabalhar por determinado número de anos (ao qual, no mais das vezes, não sobreviviam). Esse sistema de degredo deve ser entendido como uma continuação da política estatal para a pobreza (discutida no Capítulo 3): de fato, nas palavras de Richard Hakluyt, eminente empreendedor colonial do período - além de capelão e conselheiro real-, as colônias deveriam ser percebidas como "prisões sem muros" que dariam utilidade econômica para a população que, expulsa dos campos, vagava [252]

inutilmente pelo território inglês. 157 Em regiões, contudo, onde faltavam os condenados reincidentes, os empreendedores coloniais apelavam para outros métodos. Por um lado, organizavam gangues de raptores (conhecidos como spirits), que - ao modo dos oficiais de recrutamento militar involuntário -vagavam pelas estradas capturando homens, mulheres e crianças para serem vendidos como escravos nas colônias. Por outro lado, firmavam acordos com as prisões mantidas pelas corporações citadinas, por meio dos quais compravam presos comuns que eram então transportados para as colônias. Um acordo desse tipo permitiu a um empreendedor, em 1619, arrematar uma carga de 165 crianças órfãs, então encarceradas na infame prisão londrina de Bridewell. Transportadas para a Virginia, apenas 12 delas sobreviveram até 1625. 158 Entre os colonos havia também os chamados indentured servants, ou servos por contrato: eram despossuídos que, antes de serem presos ou raptados, submetiam-se à escravidão durante um período pré-acordado ao longo do qual pagavam com seu trabalho o preço de sua passagem para o Novo Mundo. Finalmente, é importante frisar que, mesmo aqueles que participavam dos empreendimentos ultramarinos como marinheiros ou soldados, equipados por conta de serviços militares prestados à Coroa pelos aristocratas que os comandavam, muitas vezes haviam sido vítimas do recrutamento forçado ( impressment) e, da mesma forma que os degredados, estavam submetidos a circunstâncias análogas à escravidão. 159 157 158 159

Citado em Linebaugh e Rediker, p. 20 e p. 56. Linebaugh e Rediker, p. 59. Cf. Linebaugh e Rediker, p. 56. De fato, no período seguinte, durante as rebeliões dos setores mais baixos do colonato, o termo "escravidão" (slavery) será empregado para descrever e condenar as condições a que estavam

(253]

[Assentamentos coloniais como empreendimentos privados]

Para a maioria dos colonos, portanto, a colonização significava o prolongamento e a intensificação da política estatal punitiva desenvolvida em nosso período para lidar com a pobreza produzida pelo processo de modernização econômica. Da ótica dos empreendedores coloniais, o objetivo primeiro da ocupação territorial era o enriquecimento pela exploração comercial da terra. Embora, para a Coroa, os assentamentos ultramarinos possibilitassem a expansão da área de influência política e militar, essa dimensão privada da colonização também estava no centro de suas preocupações. A autorização monárquica para que empreendimentos ultramarinos fossem realizados em seu nome, o apoio direto oferecido pelo desvio pontual de Forças Armadas e o suporte econômico-jurídico pelas cartas de monopólio de assentamento podiam ser defendidos nos tribunais de lei comum, uma contrapartida idêntica àquela da pirataria corsária do período: a possibilidade, pela colaboração com as elites econômicas, de fincar a presença militar em territórios externos aos domínios imediatos nas Ilhas Britânicas. Ao mesmo tempo, como no caso irlandês, a Coroa também vislumbrava, a médio ou longo prazo, a possibilidade de coletar impostos de colônias prósperas a ultramar - possibilidade que, contudo, não se concretizou em nosso período. [A colônia de Roanoke]

A primeira tentativa inglesa de estabelecer um assentamento permanente em solo americano foi a colônia erguida em 1586 na ilha de Roanoke, no que hoje é a Carolina do Norte. Custeada privadamente, foi capitaneada por empreendedores aventureiros - entre eles, Sir Walter Raleigh, feito arissubmetidos tanto os indentured servants quanto os que haviam sido vítimas das press gangs.

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tocrata depois de sua participação na guerra de conquista irlandesa, quando perpetrou um memorável massacre. A experiência de Roanoke foi marcada pela incapacidade dos colonos de alcançar um estágio de autossuficiência agrícola. Dependentes de carregamentos ingleses de víveres que não podiam chegar com regularidade, voltaram-se contra os numerosos e diversos indígenas da região, procurando extorqui-los de suas reservas alimentares. Até o fim da década de 1580, os investidores iniciais ainda tentaram estabelecer outros assentamentos na região, mas, entre a fome e as relações hostis com os nativos, nenhum deles vingou. Enquanto alguns dos habitantes originais de Roanoke voltaram para Londres, os que não o fizeram desapareceram misteriosamente em 1587, deixando para trás suas casas intactas. [A Companhia da Virgínia]

Os problemas fundamentais que marcaram a efêmera existência de Roanoke repetiram-se nas tentativas de assentamento subsequentes, inclusive naquela que foi a mais característica de nosso período, a colônia de Jamestown. Estabelecida em 1607, foi o primeiro assentamento inglês em ultramar a ser financiado e operado por uma corporação, a Companhia da Virgínia. A carta de incorporação da Companhia, assinada pelo rei James I em 1606, combinava o idioma das plantações irlandesas com o das organizações de comércio e pirataria, e assim previa a ocupação, a exploração e a defesa da terra, a busca por metais preciosos, a propagação da fé cristã entre os nativos e o pagamento de impostos à monarquia. A incorporação da Companhia da Virgínia previa número indefinido de assentamentos, os quais, numa lógica derivada das cartas de incorporação citadina, gozariam de razoável autonomia governamental, sob a forma de conselhos coloniais. Na prática, contudo, tais conselhos acabaram pas[255)

sando a maior parte de nosso período sob controle de governadores dotados de autoridade absoluta e atuando pela lei marcial, num regime político-econômico de militarização oligárquica que, de fato, caracterizará a experiência colonial inglesa ainda no século XVIII. Em nosso período, os governadores coloniais tentaram exercer, com sucesso limitado, estrito controle sobre os colonos determinando seu horário de descanso e trabalho, impedindo-os de circular livremente fora dos assentamentos e limitando ao mínimo seu contato com os indígenas. Seguindo orientação da Companhia, alguns governadores tentaram, ainda, submeter a população a treinamento militar contínuo, porém sem resultados significativos em nosso período. Tanto os conselhos quanto os governadores das colônias estabelecidas pela Companhia da Virgínia estavam submetidos ao conselho de investidores sediado em Londres. A esses investidores incorporados, a carta da Companhia atribuía o monopólio do assentamento e da exploração: textualmente, era-lhes simplesmente concedida, dentro do espaço circunscrito por tais e tais latitudes - uma faixa que hoje se estenderia da Carolina do Sul ao Maine -, a propriedade sobre "todas as terras, solos, chãos, enseadas, portos, rios, florestas, minas, minerais, charcos, águas, pescarias, mercadorias e demais propriedades herdáveis quaisquer", e ficava estabelecido que "a nenhum de nossos súditos será permitido, ou ordenado, que plantem ou habitem atrás ou pelas costas deles, em direção ao interior daquela terra, sem expressa licença do conselho daquela colônia': 160 Os investidores e colonos eram designados como detentores de posse livre da terra (free and common Soccage), e explicitamente dispensados das obrigações da posse in capite. Eram autorizados a 16

° Charter of Virginia,

1606. Disponível em https://en.wikisource.org/wiki/ Charter_of_Virginia,_1606. Acesso em jan. 2017.

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produzir legislação - a qual deveria apenas ser submetida à aprovação do rei -, cunhar moeda própria ( o que não chegou a acontecer em nosso período) e dispor autonomamente das capacidades militares que conseguissem reunir para defender suas possessões ultramarinas. Ao mesmo tempo, a Coroa proclamava, de forma mais ou menos vaga, que defenderia os interesses dos investidores frente a potências estrangeiras que praticassem hostilidades contra as colônias. Finalmente, ficava restrito o comércio proveniente dos territórios coloniais: todas as mercadorias aí produzidas ou obtidas deveriam ser necessariamente negociadas em território inglês. [Paradoxo do governo acionário]

A carta de incorporação da Companhia da Virgínia expressava em seus termos jurídicos cobiçosos a ideia de infinitas possibilidades econômicas despertada pela terra extensa e virgem de qualquer atividade comercial. Contudo, a partir de tal ideia, a ocupação territorial de fato, e as atividades econômicas concretamente desenvolvidas pelos indivíduos trazidos para o território colonial obedeceram a duas tendências contraditórias. Por um lado, os documentos mostram como, inicialmente, os burocratas e acionistas da Companhia só conseguiam vislumbrar o aproveitamento daquelas possibilidades econômicas por meio do imaginário colonial clássico que já encontramos quando estudamos o caso irlandês, pautado pela ideia da villa romana ou do transplante da vida rural da elite econômica inglesa. A abundância de terras e as diferenças climáticas encheram os primeiros teóricos ingleses da colonização de alucinações a respeito da diversidade econômica que seria possível construir nas Américas e das fortunas que seriam acumuladas pela substituição de importações, tão logo a agricultura comercial inglesa - com sua aristocracia empreendedora e seu [25 7]

campesinato semiassalariado - fosse transplantada para o outro lado do Atlântico. Por outro lado, contudo, na medida em que o que pagava a permanência dos colonos e de seus capatazes do outro lado do Atlântico era investimento de capital, a Companhia exigia frequentemente retorno rápido sob a forma de qualquer coisa comercializável, mas, principalmente, de metais preciosos. Ademais, devido a especulações geográficas e relatos de índios gozadores, os europeus estavam convencidos da existência da chamada "passagem noroeste", um caminho navegável através do gelado extremo setentrional americano, que permitiria o estabelecimento de um acesso circum-navegante às mercadorias orientais. Assim, ao mesmo tempo em que acreditava no modelo romano de ocupação territorial, a Companhia também pressionava os colonos a despenderem tantos esforços quanto possível buscando ouro e explorando a costa americana. Ora, os objetivos da caça ao ouro e do laborioso trabalho da terra competiam entre si. Como o prospecto do enriquecimento rápido falasse mais alto - inclusive na medida em que, para os escravizados, encontrar um tesouro podia significar a liberdade imediata -, tal competição resultou em que os colonos e seus líderes inicialmente negligenciassem o problema do preparo do solo e da viabilização da produção de alimentos suficientes para a sustentação da colônia. Como decorrência dessa negligência inicial, como havia acontecido em Roanoke, os habitantes de Jamestown voltaram-se para os indígenas da região circundante. Quando esses indígenas se mostraram incapazes e desinteressados em cumprir o papel de provedores de víveres, os colonos apelaram para a intimidação militar e para o roubo de alimentos. O acirramento das hostilidades e a estratégia de ataque surpresa dos indígenas tornaram o trabalho do cultivo do solo impossível [258]

para os colonos, de modo que o problema da insuficiência alimentar marcou fundamentalmente a primeira década da história de Jamestown. [A economia extrativista]

O fato de que a busca por metais preciosos, a pilhagem dos índios e o comércio com eles, a prospecção de solos e o corte de madeira sistematicamente desviaram os esforços necessários ao estabelecimento de uma mecânica social de subsistência não escapou ao conselho acionista londrino. Entretanto, a organização e a disposição necessárias para a implantação de uma forma de vida minimamente semelhante à aldeã permaneceram ausentes mesmo nos períodos em que a Companhia emitiu ordens contra a busca de ouro, quando os governados tentaram obrigar os colonos a produzirem alimentos por meio de leis marciais e de controle do trabalho extremamente rígidas. E não foi apenas em Roanoke e Jamestown que o degredo, o governo corporativo militarizado e a produção de mercadorias combinaram-se de maneira precária. Também mais ao norte, na colônia (não incorporada) de Newfoundland, a lógica extrativista conspirou contra o estabelecimento de assentamentos estáveis em nosso período: lá, a pesca comercial funcionava satisfatoriamente a partir de acampamentos sazonais que eram periodicamente destruídos por piratas pescadores rivais, e continuamente reconstruídos simplesmente dispensando que se lavrassem campos e construíssem vilas, independentemente do que os empreendedores e acionistas ingleses desejassem ou acreditassem. Dessa forma, as primeiras décadas da atividade colonial inglesa nos permitem visualizar como a funcionalização de um território para a produção de mercadorias pôde prescindir completamente do estabelecimento de uma sociedade autônoma. Na alvorada da sociedade produtora de merca[259]

dorias, o desenvolvimento econômico não implica necessariamente o desenvolvimento ou a extensão de formas sociais estáveis do ponto de vista da reprodução da vida humana. É importante fazer essa observação porque, conforme lemos na carta de incorporação da Companhia da Virgínia, e em outras cartas semelhantes do nosso período e do período subsequente, essa independência entre a extensão da sociedade inglesa e o desenvolvimento econômico não era inteiramente compreendida pelos empreendedores e administradores do esforço colonial: parecia-lhes, ou pelo menos queriam fazer parecer, que a atividade econômica produtora de mercadorias, frequentemente qualificada pelo sinônimo de "prosperidade", traria a reboque uma sociedade tão mais vicejante quanto maiores fossem os lucros. E não era apenas a retórica dos apologistas que continha tais crenças, mas a própria estratégia de longo prazo que se depreende das ordens do conselho de acionistas e das expectativas monárquicas cristalizadas sob a forma da carta de prerrogativas. [Nova lógica colonial: o tabaco]

Esse quadro geral só se transformou quando o interesse econômico mais ou menos imediato combinou-se a uma necessidade de instaurar uma relação permanente com a terra, com o advento da exportação de tabaco. Essa mercadoria, que no final de nosso período tornou-se um bem de consumo de massa na Europa, sobreviveu a uma bolha especulativa e impôs a disciplina do cultivo da terra aos colonos da América do Norte. 161 O longo ciclo do tabaco prolongou-se no período seguinte e foi fundamental para pôr em marcha 161

É bom lembrar que foi quando uma associação derivada da Companhia da Virgínia levou o tabaco para Bermuda que, no final de nosso período, os ingleses empregaram o trabalho de escravos africanos nas Américas pela primeira vez.

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o processo definitivo e extensivo de colonização inglesa das Américas. É preciso mencionar, no entanto, que a maior parte do volumoso comércio da erva plantada em Jamestown jamais chegou a ficar sob o controle da Companhia da Virgínia. Os verdadeiros empreendedores do tabaco, e beneficiados por sua cultura, foram plantadores independentes que, enquanto arrendatários da terra controlada pela corporação, pagavam aluguéis fixos e não contribuíram proporcionalmente para seu enriquecimento. De fato, a difusão do cultivo de tabaco entre os colonos por volta de meados da década de 1610 teve o contraditório efeito de, por um lado, acabar com a dependência alimentar dos ingleses, mas, de outro, esvaziar Jamestown, o que estimulava a população a debandar para fazendas licenciadas ou terras ocupadas sem autorização da Companhia. A reação da corporação diante da expansão da produção do tabaco foi dúbia. A posição oficial do conselho acionista era que, do ponto de vista financeiro, o tabaco era um mau investimento: tratava-se de uma bolha especulativa que estouraria a qualquer momento ( o que de fato ocorreu, mas não impediu que as plantações continuassem se expandindo até o final do século XVII). Assim, a Companhia emitiu, por todos os canais possíveis, ordenamentos contra a produção de tabaco e, pelo desenvolvimento de uma agricultura diversificada que comportasse outras atividades extrativas, realizasse o antigo sonho da substituição de importações inglesa. Essas ordens foram, contudo, sistematicamente desrespeitadas - mesmo porque, por outro lado, devido à pressão imediata por retorno financeiro, a Companhia não hesitou em vender numerosas patentes de plantação independentes para aventureiros interessados em custear suas próprias fazendas nos arredores dos assentamentos. Quando a Companhia da Virgínia teve sua falência [261

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decretada em 1624 e foi apropriada pela Coroa, o boom do tabaco ainda ia de vento em popa. É importante observar que, embora tenha sido acompanhado pelo desenvolvimento de uma agricultura de subsistência, o tabaco não deixou de frustrar o imaginário colonial clássico, uma vez que não contribuiu realmente para a fundação da extensão da sociedade inglesa no território ultramarino. Nos períodos seguintes, com a concentração de terras e o subsequente empoderamento dos plantadores, o tabaco os fixou no isolamento de suas unidades de produção autônomas por onde, ademais, o emprego do trabalho escravo se espalharia no século XVIII. Se, nesse contexto, foi possível produzir uma sociedade estável, capaz de sustentar significativo crescimento demográfico (principalmente pela imigração), tratava-se, por outro lado, de uma forma social nova, com uma cultura material e uma economia profundamente diferentes daquelas que vigiam na Inglaterra e no Velho Mundo em geral. Essa forma de sociabilidade inventada de forma espontânea para a apropriação agrário-comercial do território gradualmente se ofereceu para os teóricos da colonização como uma alternativa mais realista e mais lucrativa ao imaginário colonial do período clássico. [O desencadeamento do extermínio indígena na América do Norte]

Ao lado da alteração da lida com a terra proporcionada e exigida pela economia do tabaco, um elemento imprescindível para a colonização extensiva da América do Norte foi a remoção, pelo extermínio, da população americana original. Esse extermínio - que, como se sabe, segue em curso ainda hoje - teve sua bem definida origem em nosso período, sob os auspícios da Companhia da Virgínia e de seus precursores, os colonos de Roanoke. [262]

[Os relatos sobre as relações entre ingleses e indígenas]

No que se segue, nos debruçaremos de maneira mais detida sobre os rumos brutais das relações entre europeus e indígenas no espaço colonial inglês. Antes, porém, é preciso repetir, nesse contexto, uma observação que fizemos acima numerosas vezes enquanto contávamos a história da formação do Estado moderno e da sociedade produtora de mercadorias: trata-se do problema documental. Para começar, os documentos de que dispomos são, em sua grande maioria, obra de homens brancos. E tais homens não estavam apenas implicados nos eventos que relataram, mas também obviamente interessados em produzir resultados específicos com seus relatos. É verdade que, a partir desses relatos, combinados a evidências arqueológicas, foi construída uma extensa tradição de interpretação e análise. Contudo, segundo nos parece, o fato de que ampla historiografia foi produzida a partir do tipo de evidência existente deve-se mais à necessidade dos historiadores de fazer história ou emitir juízos críticos ou enaltecedores - sobre os primórdios da odisseia americana, do que à sua capacidade de estabelecer, a partir de suas fontes, o que realmente aconteceu. Em nossa leitura, os relatos ingleses a respeito dos primeiros contatos com indígenas servem muito mais para lançar luz sobre a mentalidade dos aventureiros que os escreveram e sobre as forças sociais que os impulsionaram a atravessar o oceano do que para informar a respeito de acontecimentos determinados. Dois exemplos são bem ilustrativos disso. O primeiro é o de John Smith, autor de alguns dos principais relatos disponíveis desse tipo, cobrindo os primeiros anos de existência da colônia de Jamestown. Smith é, também, autor de uma autobiografia cujo conteúdo mirabolante é manifestação daquela astúcia cortesã que precisava ser demonstrada pelos aventureiros necessitados de favores das classes superiores. [263]

Suas memórias incluem escapadas miraculosas de prisões turcas, proezas táticas envolvendo sofisticado maquinário bélico, favores de belas donzelas aristocráticas de cinco diferentes nacionalidades (seis, se incluirmos Pocahontas), combates corpo a corpo com adversários famosos e a aquisição e a perda de um título de nobreza austríaco. 162 Suas narrativas das belicosas relações que travou com os índios na Virgínia precisam ser compreendidas como um capítulo dessas memórias, pelo qual visava influenciar as opiniões dos homens que, de Londres, mandavam no esforço colonial transatlântico - e de cujo favor dependia para manter-se no comando. Tendo isso em vista, e também levando em conta a inexistência de fontes independentes alternativas que confirmem ou refutem a maioria dos fatos que Smith reporta - e o mesmo se aplica à maioria das demais fontes-, temos que admitir a possibilidade de que esses fatos tenham sido, no mínimo, filtrados e maquiados, e postos a serviço do objetivo fundamental de obter aquele favor. Assim, quando Smith diz que fuzilou sem piedade duzentos índios traiçoeiros que se recusaram a vender-lhe comida, o número de índios pode ser função da necessidade de Smith de mostrar sua capacidade bélica, sua disposição para cometer carnificina em nome da Companhia ou um número verdadeiro, embora nada obrigasse Smith a fornecer números verdadeiros para a Companhia. De fato, nada obrigava Smith a fornecer informações, acuradas ou não, para a Companhia, exceto, unicamente, sua necessidade de demonstrar subserviência, para obter, em troca, o favor de permanecer no comando - o que funcionou durante alguns anos. O fato de que podia não ter funcionado, entretanto, é que é crucial para entendermos a natureza de todos os documentos produzidos por sua pena. 162

Cave, Alfred. Lethal encounters. Englishmen and Indians in colonial Virgínia. Santa Barbara: Praeger, 2011, p. 63ss.

[264]

O segundo exemplo do caráter especial dos documentos do período são as cartas e relatórios de George Thorpe, parlamentar, proeminente colono e membro do Conselho da Virgínia. Entre 1620 e 1622, Thorpe desenvolveu toda uma teoria sobre a maneira como as boas relações com os índios, e sua eventual conversão poderiam ser estimuladas pelas demonstrações das vantagens materiais da civilização europeia. Seus prolixos relatos narram como o próprio líder indígena Opechancanough teria, por meio desse método, se aproximado gradativamente dos ingleses até chegar a admitir que a forma de vida indígena era pecaminosa. Em um de seus últimos relatórios, Thorpe celebrava a eminente conversão do chefe algonquiano ao cristianismo - mas, enquanto suas palavras promissoras cruzavam o Atlântico, teve lugar o chamado "levante" indígena de 1622: um ataque matutino coordenado que, em poucas horas, resultou na morte de um quarto da população total de cerca de 1.300 colonos, e matou centenas de outros devido à crise alimentar subsequente. Na ocasião, Thorpe teve seu cadáver desmembrado pelos índios. É importante notar que existem evidências seguras de que, por sua vez, a Companhia da Virgínia filtrava os relatos enviados por homens como Smith e Thorpe, de modo a produzir relatos derivados a serem apresentados - juntamente com relatórios de lucros maquiados, como depois se descobriu - a possíveis investidores que quisessem afundar uma parte de suas riquezas nas empreitadas transatlânticas. Esses textos de propaganda - alguns dos quais tinham a forma de sermões semirreligiosos que eram proclamados diante da catedral de São Pedro-, muitas vezes mentiam deslavadamente sobre a natureza das relações com os indígenas, periodicamente ocultando do público seu caráter extremamente violento e desfavorável, ao mesmo tempo que os problemas insolúveis de tais relações eram discutidos interna[265]

mente pelo conselho. Finalmente, também é perceptível um constante desencaixe entre os relatos enviados pelos governadores de Jamestown à Companhia, e as instruções que a Companhia emitia em resposta, 163 e tal desencaixe, nos parece, é um sinal de que os negociantes londrinos levavam tais documentos muito menos a sério do que nossos bem-intencionados historiadores. Diante disso tudo, o que nos parece mais interessante fazer - e, de todo modo, não está em desarmonia com o projeto geral do presente trabalho - é mapear os vetores gerais que, a partir do esforço colonial inglês, regeram arelação entre europeus e indígenas na Virgínia. [Os algonquianos da Virgínia]

Os índios que habitavam originalmente a região da Virgínia eram de fala algonquiana. Na época da chegada dos ingleses, grande parte deles - mas não se sabe exatamente qual proporção - encontrava-se politicamente unificada em torno da tribo paspahegh, e de seu chefe, Mamanotowick- o qual os colonos chamavam de Powhatan, que, na verdade, era o nome de sua aldeia natal. Até onde sabemos, Mamanotowick chefiou essa confederação desde o início da década de 1570 até a primeira ou segunda década de 1600, quando foi sucedido pelo irmão Opechancanough. É importante observar que a unidade política da confederação algonquiana não implicava o controle político e militar sugerido pelo imaginário treinado no paradigma europeu. Há sinais de que os chefes pertencentes à confederação não deviam obediência a Mamanotowick, apesar de suas importantes funções cerimoniais e de unificação política, mas o conhecimento preciso sobre o funcionamento das confederações ameríndias desse tipo foi sepultado junta163

Cave, p. 79.

(266]

mente com elas. Aparentemente, existia uma rede de pagamentos tributários, os quais, conforme se crê, consistiam sobretudo em bens de ostentação, tais como cobre e pérolas, e não de alimentos, e os favores políticos e militares dos chefes tribais submetidos à confederação dependiam do oferecimento de presentes por parte das lideranças. De todo modo, como os anos provaram, a capacidade de mobilização militar da confederação não era desprezível e, na época da fundação de Jarnestown, calcula-se que Mamanotowick podia comandar cerca de trinta guerreiros para cada colono inglês.' 64 Se o inventário cultural algonquiano incluísse algo comparável com a política de extermínio inglesa, está claro que o resultado das interações iniciais teria sido a destruição imediata da colônia. Em vez disso, a estratégia militar dos indígenas sempre foi de ataques pontuais e de cercos, que, por longos períodos, praticamente impossibilitaram que os ingleses se aventurassem fora dos limites dos assentamentos cercados, mas que não configuraram tentativas diretas de eliminação da população inglesa. [Os indígenas como meros fatores econômicos]

Desde os primeiros momentos, a abordagem dos colonos ingleses aos indígenas americanos envolveu urna combinação de hostilidade genocida e comércio amistoso. Repetidamente, ao longo de nosso período, governadores e outras autoridades comerciais empregaram um discurso no qual afirmavam sem pudores que as relações ideais com os indígenas seriam regidas por um misto de "amor e medo". 165 Essa abordagem ambivalente esteve presente antes mesmo das primeiras tentativas de erguer assentamentos permanentes em território indígena: as expedições prospectivas 164 16;

Cave, p. 35. Cave, p. 14.

[26 7]

no que hoje é o Canadá já foram marcadas pela afirmação da incompatibilidade entre o modo de vida indígena e a produção sistemática de mercadorias, por um lado, e da superioridade bélica dos ingleses, por outro, combinada, entretanto, com sua inferioridade numérica. A mentalidade extrativista derivou desses fatores uma estratégia de assassinato, pilhagem e captura de espécimes para exibição na Europa (as quais invariavelmente duravam muito pouco), alternada com o escambo conforme as necessidades e limitações de cada encontro pontual. No século XVI, não há nenhuma evidência documental de que exploradores e colonos tivessem em mente uma política de longo prazo que resultasse em outra coisa que na remoção das populações indígenas do caminho da apropriação inglesa do território. Mesmo quando a colônia de Roanoke ou, posteriormente, a Companhia da Virgínia produziram admoestações para que os indígenas não fossem desnecessariamente atacados, a relação projetada para com os nativos era de dominação e subserviência, e o objetivo imediato era viabilizar um comércio de alimentos urgente para suprir necessidades da colônia. Ou seja: tanto a existência continuada dos índios quanto o seu extermínio foram perspectivas que, nos documentos oficiais emitidos a partir dos dois lados do Atlântico, se apresentaram unicamente desde sua utilidade econômica. [O inviável comércio sistemático com os indígenas]

Nos termos das necessidades inglesas, contudo, o trato com os indígenas não era realmente viável. É notável a incapacidade ou a recusa dos ingleses de aceitar o interesse limitado que o comércio sistemático podia oferecer para sociedades cuja produção material estava voltada para a satisfação de necessidades, e não para a produção de excedentes. Em troca das quinquilharias que os ingleses traziam da Europa a bai[268]

xo custo - espelhos, contas de vidro, pequenos objetos de cobre etc. -, era às vezes possível obter dos indígenas peles raras de alto valor no mercado europeu, bem como os alimentos que os assentamentos ingleses não foram capazes de produzir em quantidade suficiente. Contudo, devido à natureza da sociedade indígena, a demanda por aquelas quinquilharias esgotava-se rapidamente: utilizadas sobretudo como ornamentos e símbolos de poder, tornavam-se obsoletas a partir de certo ponto. Mesmo as contas de vidro que, entre alguns indígenas do Norte, substituíram outras, de origem natural, que funcionavam como moeda para trocas intertribais, perdiam o valor quando penetravam num mercado onde operavam povos cuja vida material normal tendia à autossuficiência. De fato, em sociedades assim, a troca tende a ter uma função eminentemente política, funcionando como gesto de afirmação de uma relação intertribal tendencialmente permanente. Assim, em vez de ser uma transação comercial que se encerra quando as partes envolvidas recebem o equivalente daquilo que fornecem, a troca que os indígenas praticavam envolvia costumeiramente uma falta de equivalência, um desequilíbrio entre o valor dado e o recebido. Esse desequilíbrio tinha um efeito dinâmico: incorria na necessidade ulterior de compensação, acarretando o estabelecimento de uma nova relação de troca. Nessa nova relação, contudo, o desequilíbrio não era sanado numa soma zero, mas repetido num novo nível, sinalizando que a relação entre as partes não estava encerrada, mas exigia uma nova compensação, e assim por diante. Dessa forma, os grupos indígenas tendiam a ser excessivamente generosos em suas primeiras trocas com os ingleses, esperando uma exibição ulterior de generosidade. Mas os ingleses, ao contrário, estabeleciam a partir dessas trocas - que liam como contabilmente vantajosas um padrão constante para as trocas futuras: um "preço de [269]

mercado". Quando os indígenas - seja devido às suas regras políticas da troca, seja devido à diminuição de seu interesse nas quinquilharias - inevitavelmente sinalizavam uma tentativa de mudar os termos da troca, os ingleses invariavelmente interpretavam tal gesto como logro desonesto. As acusações e discussões que caracterizavam tais encontros não raro terminavam com a apropriação violenta de bens e o assassinato. Especificamente, as recusas dos indígenas de fornecer alimentos para os ingleses foram geralmente registradas nos relatos coloniais como tentativas deliberadas de atraiçoá-los e matá-los de fome. Na verdade, eram provavelmente momentos inevitáveis da relação com povos que simplesmente não produziam alimentos em quantidade muito maior do que a necessária para viver. Os assentamentos ingleses eram sistematicamente incapazes de atingir autossuficiência alimentar, e esperavam poder contar indefinidamente com o comércio indígena para adquirir alimentos. A consequência dessa expectativa irreal era a prática sistemática de ataques visando ao roubo de mantimentos, e a consequência desses ataques significava que os indígenas passariam fome, e não que seriam desprovidos de mercadorias estocadas e que se recusavam a negociar "segundo as leis naturais", corno diziam os governadores impregnados da ideologia moderna. Outra derivação do sentido político específico que a relação de troca tinha entre os indígenas era seu hábito de quando em contato com os europeus - apropriar-se diretamente de objetos que lhes pareciam úteis ou interessantes: em especial, ferramentas e armas. Na lógica indígena, tais apropriações visavam estabelecer a necessidade de trocas futuras, mas os relatos coloniais mostram que os ingleses invariavelmente as percebiam como tentativas de roubo, usualmente respondidas com violência. De fato, a primeira visita indígena a Jamestown, em 1607, terminou em derra[270]

mamento de sangue justamente devido ao conflito em torno da propriedade de uma machadinha ... É preciso, contudo, colocar em seu devido lugar os inúmeros desentendimentos ocasionados por essas importantes diferenças culturais - aos quais deviam se somar problemas gigantescos de comunicação. O fato central aí é que a resposta inglesa a tais desentendimentos foi sempre a resposta de quem tinha consciência de sua superioridade bélica e já tinha de antemão feito a opção genocida. O discurso da superioridade moral, religiosa e racial foi subsidiário disso. O conflito entre colonos e indígenas foi, a rigor, contínuo, e suas causas não foram pontuais, mas estruturais. [A proporção do genocídio indígena em nosso período]

Na altura do final de nosso período, o surto populacional acarretado pela imigração de mão de obra (em grande parte, degredada), combinado à expansão do território colonial, impulsionada pelo contínuo aumento da demanda por tabaco na Europa e pela degradação do solo, característica de sua cultura, resultou na intensificação do conflito com os indígenas. As terras mais férteis, buscadas pelos ingleses, eram exatamente aquelas que desempenhavam papel mais fundamental no cultivo de subsistência praticado pelos algonquianos da região. O custo demográfico e cultural da perda dessas terras foi acumulando até tornar-se irrecuperável. Por volta de 1620, estima-se que, na região da Virgínia, uma população inglesa de poucos milhares já superava a indígena, que outrora, havia sido de dezenas de milhares. [Os "selvagens" de ambos os lados do Atlântico]

Fato incontornável para entender o caráter estrutural da disposição genocida dos ingleses é que os primeiros exploradores e colonizadores, quando agiam como se os indígenas fossem destrutíveis, o mais das vezes carregavam nas [271

l

costas a memória recente da destrutividade das populações pré-modernas do outro lado do Atlântico. O discurso e a prática racista de conquista, deslocamento e genocídio foram claramente desenvolvidos simultaneamente contra os sem-terra ingleses, a população irlandesa e a população indígena da Virgínia. Os termos são os mesmos, os problemas são os mesmos, os objetivos são os mesmos, e vários de seus defensores e propositores são os mesmos - como no caso de Francis Bacon, que torturava rebeldes e prescrevia loquazmente a destruição dos "selvagens" de ambos os lados do Atlântico, 166 ou de Hebert Gilbert, que na Virgínia foi encarregado de repetir os massacres que perpetrara na guerra de conquista da Irlanda. Do ponto de vista do processo de modernização - entendido como a consolidação do Estado moderno e do capitalismo -, aquelas três populações são uma mesma figura: por um lado, não podem ser automaticamente funcionalizadas pela produção de mercadorias, seja porque se recusam a abandonar formas de reprodução imediata da vida, seja porque, de todo modo, são expropriadas muito mais rapidamente do que podem ser absorvidas como força de trabalho assalariado. Por outro lado, ocupam um território que pode ser imediatamente funcionalizado para a produção de mercadorias. Mesmo antes de responder à altura a violência econômica que as priva das coisas de que precisam para viver, essas populações já aparecem, desde a ótica da modernização, como quantitativamente destrutíveis, porque inúteis. Esse tríplice paralelismo do discurso e da prática do genocídio fica transparente nos inúmeros documentos - relatórios, sermões, cartas pessoais e oficiais - em que o caráter 166

Cf. Bacon, Francis. Essays. New York: Prometheus Books, 1995. Comparar, por exemplo, a linguagem empregada no ensaio 15, ''As sedições e turbulências''. com aquela do ensaio 33, "As plantações''.

[2 72]

"bárbaro", "selvagem" ou "incivilizado" das populações não modernas da Inglaterra, da Irlanda e da Virgínia é explicitamente associado ao simples fato de que sua lida com a terra é pouco produtiva. E essa ideia de que a agricultura de subsistência e a recusa de produzir excedentes sistemáticos - ou mercadorias - seriam em si mesmas condenáveis e moralmente repulsivas teve vida longa, figurando, inclusive, como peça importante e paradoxal do direito natural de John Locke. 167 Finalmente, é importante observar que, na medida em que vários dos colonos eram oriundos dos setores sociais despossuídos, a identificação do miserável inglês com o indígena pelo conceito de selvagem não ocorria apenas na retórica colonialista - ou nos relatos dos governadores que lamentavam o caráter "selvagem" dos homens sob seu comando - mas também, ironicamente, na prática popular: não foi raro que o colono degredado se percebesse mais daquele que cerca os campos [ enc/ose], e deriva de dez acres de terra maiores conveniências para a vida do que poderia extrair de noventa acres deixados à natureza, pode-se verdadeiramente dizer que deu noventa acres para a humanidade. (... ) pois eu pergunto, se nas matas selvagens e ermos não cultivados da América, deixados à natureza, sem qualquer melhoramento [ improvement], lavoura ou criação, mil acres de terra rendem aos miseráveis habitantes tantas conveniências para a vida quanto dez acres igualmente férteis do Devonshire, onde são bem cultivados?" (Locke, John. Two treatises of government anda letter concerning toleration. New Haven: Yale University Press, 2003, p. 116. Segundo Tratado, §37). Importante ressaltar que esse conjunto de ideias impregnou diretamente a intelectualidade do século XX: no revisionismo liberal por que passou a historiografia inglesa nos anos 1970-80, um raciocínio nitidamente herdeiro do de Locke serve para naturalizar os enc/osures dos séculos XVI-XVIII como processos absolutamente sensatos, necessários para aumentar a eficiência do cultivo (Cf. Thirsk, Joan. The sources of information on population, 1500-1760. ln: The rural economy of England. Collected Essays. London: Hambledon Press, 1984, p. 18).

167 " ...

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semelhante ao índio do que aos colonos livres - os empreendedores e funcionários da Companhia. Desde as primeiras experiências no Canadá do século XVI até as etapas mais maduras e destrutivas da colonização inglesa no século XVIII, o problema da defecção ou da fuga de colonos para viver entre os índios jamais foi desprezível. Em nosso período, e nos seguintes, a legislação colonial deixou registrado tal problema por meio de punições particularmente violentas para quem fosse pego tentando fugir, ao mesmo tempo que os governadores teciam uma retórica enganosa a respeito de "prisioneiros" ou "escravos" mantidos pelos índios - os quais, às vezes, uma vez "libertados': acabavam inexplicavelmente fugindo para unir-se a seus captores novamente. De qualquer forma que se interpretem tais fugas, são elas que fornecem o relato mais eloquente e sintético a respeito da natureza da forma social que a modernidade inglesa exportou para as Américas - e, ulteriormente, para todo o mundo, de tal modo que, para nós, a possibilidade de escape foi inviabilizada.

[2 74]

Conclusão

Poder estatal e oligarquia econômica Tivemos numerosas ocasiões, nas páginas precedentes, de descrever transformações no campo político da elite. O processo mais notável foi a ascensão das classes proprietárias modernas, que brotaram de dentro e de fora da aristocracia tradicional, tomaram seu lugar e se assenhoraram das prerrogativas e funções que lhes haviam competido em períodos anteriores. [Elite econômica ➔ monetarização da sociedade ➔ da Coroa)

O sistema de lealdade e favor que regia a relação da aristocracia medieval consigo mesma e com a Coroa se havia constituído ao longo de séculos de desenvolvimento de uma forma de vida exclusivamente centrada no controle sobre a terra. Com a ascensão da produção sistemática de mercadorias, começou a se delinear uma esfera de atuação econômica que tangia apenas indiretamente a posse de terra. Não apenas para os setores mercantis, mas também para os detentores de terra, a riqueza tornou-se crescentemente expressa na forma do dinheiro, e o dinheiro assumiu crescentemente a forma de capital, ou seja, de investimento para fazer mais dinheiro. Partes substantivas das classes senhoriais foram, assim, distanciando-se das formas tradicionais de controle sobre a terra ou renovando-as, ora substituindo arrendatários por trabalhadores assalariados, ora obrigando os arrendatários a assumir obrigações monetárias cada vez mais altas, ora livrando-se dos arrendatários e convertendo plantações em pastos para produção de lã. As consequências de tais transformações extrapolaram as relações entre a aristocracia e o campesinato. O desenvolvi(2 75]

mento de atividades econômicas voltadas para a produção de mercadorias pelos senhores - mediadas por uma classe mercantil que datava de períodos anteriores - estimulou a monetarização da sociedade como um todo, o que incidiu sobre a maneira de exercer poder de governo. Os serviços de administração social tornaram-se crescentemente mediados por pagamentos em dinheiro: a monarquia tornou-se cobradora de pagamentos, compradora de serviços, contratadora de empréstimos e pagadora de juros. O favor real - ou a capacidade da monarquia de conferir privilégios de maneira mais ou menos arbitrária - também reconfigurou-se nos termos monetarizados dos monopólios comerciais, privilégios de coleta de impostos e comissões que garantiam vantagens político-econômicas. Os objetos desse favor real não eram mais, sobretudo, os descendentes de famílias tradicionais com antepassados ilustres e leais, mas membros da elite econômica: mercadores muito ricos, gentlemen e fazendeiros capazes de financiar a Coroa ou, por meio de suas conexões locais, implementar suas políticas. Sua habilidade administrativa ou militar e a natureza de seus negócios tornaram-se mais importantes do que seu nome e, às vezes, garantiram-lhes entrada no universo aristocrático. [Monetarização



concentração de poder]

Em especial, na esfera militar, a monetarização da Coroa permitiu a coordenação de recursos para a construção de Forças Armadas independentes do serviço feudal aristocrático e da mobilização em arma da população ordinária. Isso teve amplas reverberações, alterando significativamente, em favor da Coroa, o balanço de poder que era mantido entre a aristocracia tradicional, a monarquia e as pessoas comuns: quanto mais dependia de comandantes e soldados pagos, e menos precisava contar com pessoas comuns armadas eco[276]

mandadas pelos aristocratas, mais a Coroa tornava-se capaz de dar respaldo militar a posicionamentos políticos contra a aristocracia e contra as pessoas comuns. Ao mesmo tempo, as novas práticas de governo possibilitadas e necessitadas pela monetarização da sociedade e da Coroa causaram notável concentração do poder em nível local pela criação de uma poderosa embora pouco numerosa burocracia de oficiais com atribuições judiciais, fiscais e militares. Essa elite dentro da elite, além de estar inserida na produção e circulação de mercadorias - seja na comercialização de alimentos, de lã, na manufatura rural ou no comércio internacional - também se tornou responsável pela execução da política monárquica nas localidades. Por isso, foi capaz de influenciar essa política: tanto no que submetia sua implementação aos seus interesses pessoais quanto no que recebia, pelas prerrogativas jurídicas e regulatórias da Coroa, benefícios concretos para o desenvolvimento de suas atividades econômicas. Ademais, enquanto podia contar com esquemas monetarizados de mobilização militar, essa elite tornava-se crescentemente capaz de implementar políticas antipopulares. [Elite econômica

~

Coroa]

A proximidade política entre as novas elites econômicas e a monarquia também se escorou no fato de que eram os fazendeiros e mercadores/manufatureiros que sustentavam financeiramente a Coroa. Por um lado, essa relação passava pelo Parlamento e abrangia a quase totalidade das classes proprietárias inglesas que nele tinham representatividade formal. Por outro lado, empréstimos privados, contratados com determinados magnatas frequentadores da Corte, e por fora da instituição parlamentar, tornaram-se uma fonte fundamental de financiamento para a Coroa. Nesse sentido, um (277]

tipo especial de proximidade política desenvolveu-se entre a Coroa, de um lado, e um grupo pequeno de indivíduos extremamente ricos, de outro. Na medida em que dependeu crescentemente desses empréstimos privados para realizar suas operações administrativas e militares cotidianas, a Coroa também contribuiu para a formação e a manutenção de fortunas vultosas o suficiente a ponto de possibilitarem os empréstimos de que necessitava. Assim, presenteou os membros da oligarquia mercantil-financeira com tarefas administrativas que associavam diretamente sua riqueza privada à prestação de serviços à Coroa, tais como a coleta de impostos e a compra e o gerenciamento de suprimentos militares. Encarregados dessas tarefas, os magnatas de nosso período tornaram-se capazes de mobilizar quantidades assombrosas de dinheiro, canalizando e focalizando a riqueza produzida socialmente, criando demandas comerciais e industriais específicas que, muitas vezes, eram atendidas por eles mesmos. Os destinos da oligarquia mercantil-financeira, das classes proprietárias em geral e da Coroa, tornaram-se, assim, indissociáveis. O governo que passou a exercer poder por meio do dinheiro e do conferimento de vantagens jurídico-econômicas tornou-se estruturalmente dependente do sucesso da atividade econômica da elite e fez-se colaborador ativo na conformação da vida social à produção de mercadorias. A forma e as instituições específicas de governo que emergem em nosso período - o Estado moderno - serão, nesse sentido, instrumentos da produção da forma de vida social que é intrinsecamente permeável à administração pelo dinheiro e dependente da produção de mercadorias.

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A forma de vida capitalista como fonte e finalidade do governo moderno A forma geral do exercício de poder que se desenvolve no período que estudamos contrasta com aquela que predominava em períodos pré-modernos e tem em comum com a que vige em nosso tempo o fato de que sua condição de possibilidade é um processo politicamente administrado de contínua e crescente acumulação de riqueza pelo circuito fechado de produção, circulação e venda de mercadorias. Aquele processo é tal que constrói, em torno da acumulação de riqueza, uma realidade social completa, dotada de instituições e mecanismos que condicionam ao seu sucesso todas as demais relações sociais, inclusive aquelas de que depende a sobrevivência humana. Na medida em que a produção de mercadorias envolve essa mediação e condicionamento da subsistência humana, a construção da forma de vida capitalista envolveu a violência originária da expropriação, aquela que dissociou as pessoas comuns dos recursos naturais que permitiam a satisfação de suas necessidades. Na medida em que a administração social naturalizou e automatizou a forma de vida capitalista, também naturalizou e automatizou aquela violência originária, tornando-a perpétua e sistemática. O Estado moderno será aquele conjunto de práticas e instituições que tornará possível essa perpetuação. [Dimensão espacial do capitalismo]

Ora, o capitalismo agrário-mercantil depende da mobilização comercial da terra, de sua transformação de lugar da reprodução material endógena e comunal da vida humana em propriedade privada. Por isso, é importante enfatizar o caráter intrinsecamente territorial da violência expropriatória originária. Se, eventualmente, em períodos posteriores, a questão do território - então chamado "nacional" [279]

- tornar-se-á fundamental para a definição do Estado moderno, o poder de controle especial necessário para implementar tal violência não foi inicialmente exercido pela Coroa, mas pelas elites, em nível local. Os fundamentos do exercício desse poder local foram, de fato, as prerrogativas aristocráticas herdadas do período medieval - em especial, a dimensão privada dessas prerrogativas: os tribunais de herdade e as brechas legais dos esquemas de posse de terra de modo a maximizar a renda obtida com os aluguéis e taxas de acesso ou aumentar as terras de domínio. [Poder territorial aristocrático]

O exercício de prerrogativas aristocráticas no sentido da comercialização da terra estava limitado ao escopo da concessão de terra gozado pelo detentor do título de senhor. Ao mesmo tempo, o comportamento local de comercialização da terra evidenciou-se em várias regiões da Inglaterra, e eventualmente generalizou-se. Isso dá testemunho do desenvolvimento de uma classe proprietária com caráter nacional - ou seja, uma elite unificada pela afinidade de interesses e pelo comportamento econômico, ainda que territorialmente dispersa no que tange à sua capacidade de exercer poder diretamente. Nesse sentido, também é digno de nota que as operações econômicas típicas da oligarquia comercial londrina - que, aliás, teve suas raízes no período anterior, beneficiando-se da secular unidade monetária e territorial do reino - também tinham caráter nacional: envolviam, afinal, o deslocamento transregional de lã, grãos, gado de corte, madeira, tecido etc., e a concentração desses recursos em Londres, para sua ulterior destinação à indústria local, ao consumo pela Corte, ou à exportação. Da mesma forma, passava por Londres o comércio de importação de objetos de luxo que [280]

escoava para as casas senhoriais e opulentas residências urbanas que pontilhavam o território inglês quanto mais enriqueciam e diversificavam-se as classes proprietárias. Assim, para além da ressonância nacional do comportamento econômico da elite aristocrática em nível local, havia, também, uma elite dentro da elite que podia exercer poder econômico direto transregionalmente, ou seja, nacionalmente. [Unidade econômica x unidade administrativa]

Inicialmente, os aspectos espaciais da afirmação de eficácia nacional do poder da Coroa contrastaram com os interesses das classes proprietárias. Exemplo particularmente eloquente disso, e dos paradoxos que daí decorrem, foram as comissões e proclamações contra a então chamada "despovoação" causada pela concentração de terras que decorria do desenvolvimento acelerado do capitalismo agrário-mercantil. A resposta da elite agrário-mercantil a tais políticas nacionais foi, como vimos, a simples recusa e obstaculização de sua implementação em nível local. Ao mesmo tempo, embora tenha resistido à implementação das políticas reais de caráter nacional aferrando-se às suas prerrogativas medievais de caráter local, a dispersão nacional da elite, combinada à homogeneidade de seus interesses econômicos, avançou nacionalmente a expropriação da terra. Nesse sentido, em nosso período, a Inglaterra atingiu certa unidade econômica nacional, ao mesmo tempo que estava administrativamente fracionada. Os esforços regionais e independentes de mercadorização da terra e de seus produtos engendraram a especialização e desenvolveram-se complementarmente: as localidades de lavoura forneceram comercialmente grãos para as localidades pastoris e manufatureiras. Estabelecem-se rotas transregionais de troca sobretudo, a lã que descia do Norte, e os grãos que para lá [281

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subiam do Sudeste. E isso graças à resistência local das classes proprietárias contra a (pontual e limitada) política nacional da Coroa contra a mercadorização da terra. [Integração econômica ➔ integração administrativa]

O caso das comissões e proclamações contra o despovoamento, e o esporádico conflito de poder envolvendo as novas elites econômicas e a monarquia, em torno da mercadorização da terra, nos dizem muito a respeito do caráter atomizado e independente, mas ao mesmo tempo homogêneo e interconectado, da operação econômica capitalista, e sua relação potencialmente dúbia para com a centralização política. Como vimos, o efetivo exercício de poder monárquico nas localidades tornou-se possível quando a Coroa colocou a implementação das prerrogativas monárquicas nas mãos das elites econômicas, estabelecendo laços de lealdade com membros seletos dela. Então, a Coroa associou seu destino ao das novas classes proprietárias, para todos os efeitos resignando-se à impossibilidade de implementar as políticas contra o despovoamento, entre outras. Assim, na Inglaterra, a integração econômica de escala nacional precedeu a real integração administrativa e, no fim das contas, moldou esta última. Será que, diante disso, temos que rever uma afirmativa que fizemos numerosas vezes nas páginas precedentes - a de que o Estado moderno e o capitalismo nascem juntos? Cremos que não: afinal, a precedência da elite econômica diante do Estado moderno é apenas esquemática: os processos históricos complexos de que estamos tratando não são estanques, mas entrelaçados. Ao mesmo tempo, se o esforço de centralização da Coroa encontra inicialmente um obstáculo no caráter misto das elites econômicas - ao mesmo tempo medievais, e portanto regionalmente poderosas, e [282]

capitalistas-, essa obstaculização é removida na medida em que a Coroa assume e incorpora sua dependência frente a essas elites, tornando política de governo a política econômica dessas elites. Esse fato deve nos dizer alguma coisa: que o capitalismo - na forma da atividade econômica das elites econômicas - condiciona o Estado moderno e o determina, infundindo-lhe, de fato, um caráter capitalista - ou seja, constituindo-o pela compatibilidade para com a operação econômica e a forma de vida capitalistas. [A mercadorização da terra como política de governo]

Podemos representar esquematicamente exatamente o que queremos dizer quando falamos da mobilização do poder de governo em prol da mercadorização da terra. Tal esquema desenvolver-se-ia em termos de três dimensões inter-relacionadas: a legislativa, a militar e a judicial. ( 1) No plano legislativo, a Coroa atuou em concerto com o Parlamento para afirmar legalmente a disponibilidade econômica de vastas extensões de terra ocupadas por populações que desenvolviam práticas majoritariamente comunais e de subsistência. A lei, então, foi utilizada, por um lado, como documento de pactuação política, uma espécie de tratado pelo qual a Coroa assumia publicamente que estava unindo seu destino ao destino das elites econômicas; por outro lado, constituiu um instrumento de oficialização da violência, autorizando e prescrevendo a abolição das formas pré-modernas, não comerciais de lidas com a terra, declarando guerra às pessoas comuns que dependiam dessas formas para viver. A dimensão legislativa da ação da Coroa em prol da implantação da forma social capitalista fica nítida no caso da Reforma Anglicana. O resultado final da efetiva criação de um mercado de terras dependeu de etapas marcadas pela [283]

produção e aprovação de estatutos parlamentares: a autorização do divórcio real, a dissolução dos vínculos com o papado romano, os estatutos de dissolução das casas religiosas etc. De forma análoga, transformações legislativas importantes marcaram a disponibilização do território irlandês para a apropriação comercial pela elite inglesa. Aí, o processo começou com a intimidação militar da aristocracia e da população irlandesa - com participação direta de cortesãos ingleses no comando de vastos exércitos - e depois chegou à extensão manipulada da participação dos colonos no Parlamento irlandês. No caso da América do Norte, também houve uma imbricação estreita entre esforço colonial e atividade legislativa. Em especial, as cartas de incorporação conferidas pela monarquia à Companhia da Virgínia, enquanto instrumentos legais, atribuíam estatuto de propriedade privada a vastas extensões territoriais então ocupadas por populações sobre as quais nem se conheciam os números, as línguas ou os costumes. No contexto que ora nos preocupa discutir, o fundamental dessas cartas era o caráter de direito que as prerrogativas nelas contidas assumiam: outros indivíduos ou consórcios - ingleses ou não - que procurassem apossar-se daquelas terras - inclusive seus habitantes originais - teriam que ver-se com os tribunais e, quiçá, com o poderio bélico da Coroa inglesa. (2) No plano militar, tivemos dimensão da mobilização do aparato de governo para a conformação de uma sociedade produtora de mercadorias quando analisamos as rebeliões da Era Tudor. Tratou-se, em grande medida, de reações populares à violência econômica da conversão da terra em mercadoria, à qual somou-se a multifacetada destruição da forma de vida pré-moderna desencadeada pela Reforma Anglicana. A resposta do Estado inglês foi sobretudo militar, e em concerto com a aristocracia. [284]

Fenômeno análogo transcorreu no contexto do esforço colonial. A retomada do esforço de controle territorial sobre a Irlanda em nosso período teria sido impensável sem a colaboração entre a coordenação logística da Coroa e a estrutura militar aristocrática, a qual, contudo, foi colocada não sob o comando da nobreza tradicional, mas de cortesãos dotados de experiência e conhecimentos técnicos. Esses cortesãos feitos comandantes, apontados especialmente pela monarquia, desempenharam, como vimos, funções mistas de comando militar, intimidação política e coordenação direta da apropriação comercial do território. (3) Finalmente, no plano judicial, a Coroa estabeleceu para as cortes reais e para os juízes de paz uma política compatível com as transformações econômicas necessárias, e impôs essa política pelos métodos de supervisão que discutimos acima. Em especial, na medida em que a Coroa colocou cargos e comissões de prestígio nas mãos da nova elite econômica, assumiu de vez que membros seletos da elite seriam seus agentes de implementação da lei. Isso tudo teve consequências importantes para a repressão política das rebeliões do período: em especial, a Câmara Estrelada julgou diversos líderes rebeldes e ameaçou com pena capital quem praticasse os atos de rebeldia popular que haviam marcado a relação entre as pessoas comuns e os senhores nos períodos anteriores. No caso específico da Irlanda, a Coroa inglesa ordenou uma padronização judicial à revelia dos costumes legais endógenos, o que, na prática, tornou possível a anulação dos títulos tradicionais de posse de terra. Combinou-se, assim, a oficialidade da lei com a seletividade jurídica para submeter a terra aos interesses da elite colonial. A monetarização da sociedade também inseriu uma nuance especial na prática do litígio comum, como vimos. [285]

Por um lado, é verdade que os chamados "tribunais do rei" - as cortes de última instância - sempre praticaram custas judiciais, e portanto sempre estiveram conectados indiretamente à produção de mercadorias. As pessoas comuns não foram indiferentes a esse fato, e as épocas em que a Coroa envidava esforços especiais no sentido da formalização de um sistema de justiça em nível nacional geralmente testemunharam reações populares consideráveis, como a perseguição e a matança de advogados durante o Grande Levante de 1381. Afinal, quanto mais centralizadas as instituições de justiça, menor a autonomia judicial dos espaços campesinos - ou seja, menor a capacidade da comunidade aldeã de resolver seus próprios litígios. Nesse sentido, especificamente em nosso período, o investimento da Coroa na intensificação da funcionalidade do aparato institucional ligado à lei comum, combinado ao aparecimento de elites aldeãs endinheiradas, resultou na possibilidade de judicialização dos procedimentos econômicos de concentração de terra e cercamento de campos. Os yeomen, assim, empregaram os tribunais de lei comum para mover ações uns contra os outros e contra detentores de terra de menor escala, de modo a defender seus interesses contra terras comunais, contra prerrogativas de posse de terra por costume etc., cientes de que, no mais das vezes, seriam capazes de derrotar seus adversários pelo simples fato de que tinham mais dinheiro do que eles para impetrar recursos, deslocar-se para a Corte, pagar advogados etc. Assim, o desenvolvimento das instituições judiciais modernas - leia-se, centralizadas e com eficácia nacional - não foi realmente dissociável de um processo de elitização da justiça ou de emprego privilegiado dessas instituições pelas novas elites econômicas para fazer avançar seus interesses.

[286]

Modernização e colonização [Guerra de classe e mercadorização]

Em termos concisos, o incremento da capacidade de ação legislativa, militar e judicial da Coroa em nosso período foi idêntico ao aumento da capacidade das elites de agir de forma consciente, coerente e organizada contra as pessoas comuns. Depois que a ressonância nacional da economia agrário-mercantil coalesce em torno do Estado moderno, torna-se possível falar de uma guerra de classe, mediada pelo aparato estatal e empreendida pelas elites econômicas contra as pessoas comuns e sua forma de vida. Ao mesmo tempo, é preciso entender essa guerra como um esforço de construção social: a modernização como processo concreto de constituição da sociedade produtora de mercadorias. A violência constitutiva e contínua da modernização capitalista aparece com maior nitidez quando analisamos o que usualmente se chama de colonização: em nosso caso, a ação do Estado e das elites inglesas na Irlanda e na América do Norte. Contudo, como vimos, os resultados aí pretendidos, os métodos e aparatos empregados foram essencialmente idênticos àqueles desencadeados domesticamente contra as populações inglesas. Por isso, é útil entender a modernização como colonização: a simultânea destruição e conformação social, tendo como alvo determinados territórios e populações, e empreendida de fora desses territórios. [Centralização e colonização]

Assim, para retomarmos os exemplos paradigmáticos que evocamos nas páginas precedentes, a Reforma Anglicana e o esforço colonial concerniram a mobilização do aparato de governo para a destruição de formas pré-modernas de subsistência e a implantação violenta da lida comercial com a terra. De Londres, residência da oligarquia agrário-mer[287]

cantil e sede da Coroa, assento das operações que criavam e satisfaziam grande parte da demanda econômica inglesa, emitiam-se tanto os comandos militares e administrativos da modernização quanto os pagamentos que tornavam possível sua realização. Na Virgínia e na Irlanda, ou em Yorkshire, Cornualha e Norfolk, as elites locais mediavam aquelas ordens e pagamentos, submetendo-se seletivamente aos comandos de oficiais comissionários ou assumindo cargos desse tipo, tornando-se expressões locais do governo centralizado e da economia centralizada. A gente comum que vivia da terra nesses espaços passava a figurar como obstáculo aos interesses mercantis- uma população de numerário indiferente a ser espacialmente removida para dar lugar aos rebanhos de ovelha - ou como recurso econômico - mão de obra para as operações produtivas, a ser empregada, contudo, apenas nas quantidades julgadas contabilmente necessárias. Tanto a remoção da população quanto sua integração econômica seriam levadas a cabo mediante o exercício das atribuições militares e pactuais - jurídico-legais - das instituições estatais, com a mediação ou a colaboração das elites econômicas. [Centro e periferia]

Dada a importância da centralização econômico-política e a decorrente afinidade entre modernização e colonização em geral, a totalidade da economia e do governo modernos pode ser esquematicamente decomposta em termos de uma ação contínua de integração territorial envolvendo o centro - a sede da administração e do investimento de capital - e a periferia - o espaço da realização das políticas. O que rege a diferenciação conceitua! entre esses dois espaços não são critérios geográficos, mas econômico-administrativos: são os dois lados da relação de poder pela qual a modernização é levada a cabo. Os desenvolvimentos locais têm sua gênese [288]

histórica no centro e estão hierarquicamente submetidos a eles, na medida em que dependem de seu sucesso e continuidade econômicos, e devem a utilidade e a eficácia de suas ações econômicas e administrativas às demandas propagadas do centro. Isso é especialmente perceptível no funcionamento das instituições modernas de representação política - em nosso caso, o Parlamento. Trata-se de um aparelho de comunicação entre a oligarquia e a elite ampla, que legitima mutuamente o poder central e seus operadores locais, ao mesmo tempo fixando a separação entre centro e periferia e integrando os dois espaços. Pela produção contínua de legislação, versando direta ou indiretamente sobre assuntos econômicos, o Parlamento permite o estabelecimento de negociações em torno de interesses determinados e forja pactos de cooperação para a sua realização - ou obstrução. Como o Parlamento é um órgão da Coroa, participar de seu espaço de mediação é submeter-se à institucionalidade centralizada do Estado moderno, assumindo-o como meio privilegiado para a realização de interesses no território nacional. [Perspectiva nacional e mediação moderna da vida]

Isso quer dizer que a perspectiva nacional na administração e na economia se abre para determinados setores da sociedade inglesa e pela ação desses setores - é uma perspectiva de elite, a qual atinge as pessoas comuns de fora, na medida em que transforma suas localidades, impondo sobre elas a forma de vida capitalista, nos termos emanados do centro. Assim, de início, os únicos verdadeiros "ingleses" de nosso período - gente para quem a nacionalidade significava, mais que um nome, um horizonte de ação concreto - serão os integrantes das classes proprietárias, capazes de realizar operações econômicas de escala transregional (e, eventualmente, transoceânica), e influenciar diretamente decisões políticas de impacto territorial amplo. [289]

Ao mesmo tempo, também é verdade que uma dimensão nacional vai se inserindo necessariamente na vida das pessoas comuns, em geral à medida que o Estado e o mercado se consolidam como estruturas de mediação da satisfação de necessidades. Com a mercadorização da terra, o desenvolvimento da manufatura, a especialização agrícola e o crescimento das cidades, parte substancial da população inglesa passa a depender do mercado para satisfazer suas necessidades - seja para comprar comida, roupas, ferramentas, seja para vender a força de trabalho e conseguir dinheiro -, o que conecta o destino das pessoas comuns com o das classes proprietárias e suas operações econômicas de caráter nacional. Algo análogo acontece como consequência da expansão do equipamento jurídico, penal e assistencial do Estado. A interferência dos tribunais monárquicos na resolução de questões de desobediência, propriedade de terras e litígios civis, a prática da obrigação judicial e sobretudo as leis dos pobres alienaram das pessoas comuns as práticas e recursos por meio dos quais satisfaziam suas necessidades, e até mesmo o próprio espaço local onde tal satisfação acontecia: embora às vezes continuassem existindo ao alcance da mão, os campos comuns, a floresta, a aldeia tornaram-se alheios à vida e à vontade dos novos pobres da modernidade. É assim que o mercado e o Estado interpõem-se entre a população da periferia econômico-política e sua sobrevivência, condicionando-a às práticas de acumulação de riqueza e concentração de poder que têm lugar no centro, e potencialmente obstaculizando-a totalmente sempre que a existência de tal população perdesse a serventia para aquelas práticas. Assim, o caráter nacional podia ser rigorosamente aplicado a migrantes econômicos involuntários, gente forçada a deixar sua localidade devido à concentração de terras e ao cercamente dos campos, reduzidos à mendicância, e a vagar [290]

indiferentemente e sem rumo pelo território sobre o qual o Estado moderno inglês exercia seu poder. Sua localidade tornara-se para eles um espaço inabitável, onde não era mais possível enraizar-se pela manutenção das práticas de subsistência e apropriação direta de recursos e do espaço para a satisfação de necessidades. À medida que - em consequência de sua superfluidade econômica - tornaram-se alvos das políticas militares, penais e assistenciais do Estado moderno, esses sem-terra figuravam como as primeiras pessoas comuns realmente inglesas.

Os inimigos da sociedade moderna [As margens da socialização capitalista]

A existência de populações economicamente supérfluas, combinada ao fato de que o fracasso da povoação da Irlanda e do Novo Mundo trouxe a reboque, não obstante, operações econômicas lucrativas, teve consequências significativas para a política colonial e para a administração social moderna em geral. Tornou-se logo claro que, a partir de certo grau de maturidade, a generalização da produção de mercadorias e o monopólio do poder territorial pelo Estado seriam possíveis sem a extensão contínua de práticas de reprodução da vida social. No âmbito doméstico, manifestação disso foi a despovoação, e a substituição da vida aldeã, com suas relações comunais de manutenção material, pelos amontoados de cottages onde a indústria doméstica podia funcionar bastante bem, ou pelos subúrbios, especialmente londrinos, onde gerações de populações miseráveis nasceram e morreram tão indocumentadas e ignoradas quanto os indígenas inabsorvíveis pela produção de mercadorias na América do Norte e no Caribe. Do ponto de vista do centro, tais espaços estavam mais além da periferia: não era necessário travar neles relações de reciprocidade e legitimação mútua. Ali, nas [291 l

margens da sociedade moderna, a modernização foi - e continua sendo - experimentada como contínua destruição, embora levada a cabo pelas mesmíssimas forças e instituições que, no centro e na periferia, organizam a vida social. Retomemos os argumentos precedentes em outros termos. Podemos dizer que o binômio Estado-mercado fimciona bloqueando formas espontâneas de organização para satisfação de necessidades, limitando as maneiras corno a organização e a satisfação podem ser alcançadas, e então abrindo caminhos específicos para a organização e a satisfação, que passam necessariamente pela mediação da mercadoria- e, portanto, do dinheiro e formas de trabalho assalariado - e por aparatos de reconhecimento e de ação eficaz monopolizados pelo Estado - tais como a representação política e o direito. Se a expropriação desorganiza, a extensão do trabalho, da representação e do direito organiza e possivelmente satisfaz as necessidades das populações expropriadas no centro e na periferia. Como tal organização da população constitui uma atribuição do centro por meio da qual a oligarquia estende sua área de atuação, do ponto de vista lógico pode parecer que tal extensão tende ao infinito, ou seja, que é do interesse da oligarquia levar a cabo a organização moderna indefinidamente, incorporando todas as populações no espaço periférico. Historicamente, contudo, o momento da expropriação - a obstaculização da vida organizada local e comunalmente para a subsistência - não foi seguido automaticamente pelo momento da organização. Particularmente no período que estudamos no presente trabalho, a mobilização de espaços e recursos pela acumulação capitalista foi marcadamente mais intensa do que a necessidade de organizar a vida das populações expropriadas que deles sobrevivia. Essas populações, assim, constituíram as margens da modernização: espaços em que a satisfação por meio da mercadoria tornara-se mais ou menos impos[292]

sível, e a satisfação por meio da apropriação direta de recursos naturais estava obstaculizada. Do ponto de vista da acumulação capitalista, tratava-se de populações descartáveis, a serem depredadas ou consumidas pelo processo de modernização, em vez de convertidas e reproduzidas por esse processo. [A rebelião como política marginal]

O caráter descartável da população marginal transpareceu nas práticas da administração social moderna e também foi conscientemente debatido e refletido pelos seus feitores. O despovoamento contínuo pelos enclosures, o debate sobre o extermínio da população irlandesa e indígena, e as políticas penais contra a pobreza, envolvendo mutilações e execuções, dão testemunho da concepção, por parte das oligarquias governantes, do caráter variável do contingente populacional necessário ao processo de modernização. Reciprocamente, a prática política das pessoas comuns em nosso período foi adequada ao seu estatuto de população sobrante. Pelo menos até certo ponto, tratou-se, como vimos, de revolta contra os processos de modernização. Ê verdade que as rebeliões de nosso período envolveram uma multiforme e limitada colaboração política entre setores das elites econômico-políticas, de um lado, e as pessoas comuns, de outro. Essa colaboração foi função do fato de algumas das transformações socioeconômicas do período terem causado ressentimento a diferentes setores sociais: era o caso dos novos métodos monetizados de taxação, que recaíam tanto sobre a aristocracia quanto sobre os yeornen e husbandrnen. Contudo, foram os cottagers e pequenos camponeses - a maioria esmagadora da população inglesa -, bem como a população semirrural que orbitava a economia das cidades de médio porte, que tiveram a experiência mais radical da tragédia da mercadorização da sociedade: a obs[293]

taculização da reprodução autônoma da vida pela lida direta com a terra. Em nosso período, sua reação política foi atacar as manifestações do processo de modernização no nível local. Assim, se a constituição dos aparatos judicial, penal e de assistência, nos termos monetizados do Estado moderno, significou, para parte da população inglesa, a simples inviabilização de práticas ordinárias de manutenção da vida, sua resposta teve a forma dos motins para a apropriação de alimentos, os raptos dos mercadores de trigo, os ataques aos armazéns onde os governos locais estocavam os grãos para cumprir as cotas de vendas a preços controlados pelas leis dos pobres. Passando ao largo, tanto da mediação da mercadoria quanto da ação estatal, essas ações visavam reinstaurar as práticas autônomas de subsistência. Da mesma forma, as tentativas de reconstrução dos monastérios que tiveram lugar durante as rebeliões contra a Reforma Anglicana visavam restabelecer a imediatidade e a dimensão espacial local das complexas relações sociais referenciadas nas instituições religiosas - relações de ordem cultural, política, espiritual e material. Foram ações contra os aspectos destrutivos da modernização, oriundas de populações que não se percebiam de forma alguma beneficiadas por seus aspectos supostamente construtivos e civilizatórios: eram, afinal, populações economicamente supérfluas. É importante observar o caráter negativo, antimoderno e - para usar a palavra de forma provocativa - rigorosamente retrógrado dessas formas de ação política popular. Enquanto os yeomen, os husbandmen endinheirados e parte da aristocracia lutaram nos tribunais e pressionaram a Coroa, a elite cortesã e a oligarquia mercantil para participar do processo de modernização, garantindo sua representatividade política, presença nos aparatos estatais e vantagens para a produção e comercialização de mercadorias, parte consi[294]

derável dos setores populares não buscou um lugar na sociedade capitalista, mas lutou contra ela. Ideologicamente, tinham seu ponto de partida na secular cultura aldeã, fundamentada nas prerrogativas de manutenção da vida, as quais eram simples expressão da necessidade e da capacidade de lidar diretamente com a natureza e com o espaço para obter comunalmente as coisas necessárias à sobrevivência. Tais prerrogativas nada tinham a ver com o que a sociedade moderna plena chamará de "direitos" - reivindicações formalmente reconhecidas como legítimas pelas instituições estatais -, mas estavam essencialmente ligadas à capacidade das comunidades de âmbito local de atuarem autonomamente, sem interferência do Estado. Foram, em contraste, as elites econômicas que, em nosso período, apelaram para a esfera do direito em sentido estrito, crescentemente expressando suas contendas internas, e com os setores populares, pelo aparato de judicialização da vida social criado pelo Estado moderno em ascensão. Já a experiência social e política das pessoas comuns, como ilustrado pela matança de advogados durante a rebelião de 1381, estava iluminada pela ideia de que o âmbito do direito não podia possivelmente dizer-lhes respeito, visto seus interesses estarem ligados a processos materiais que a mercadorização da terra vinha aniquilar. O aspecto negativo da ação política popular também aparece quando prestamos atenção à destruição de enclosures. A partir de certo ponto, tais atos de rebeldia não tinham mais o sentido de episódios cotidianos de desobediência, nos termos tipicamente medievais da relação com o senhorio, e cujo objetivo final era a manutenção do jogo de forças com a aristocracia. Ao contrário, passaram a funcionar como um ataque às classes proprietárias modernas em ascensão, visando à transformação da realidade econômica na localidade, com a restauração das condições de reprodu[295]

ção material autônoma. De fato, tanto em nosso período quanto no anterior, o equilíbrio político medieval ficava bloqueado onde a terra se mercadorizava: o paternalismo e a simetria de poder desapareciam com a centralização do poderio militar e o advento dos processos econômicos que relativizavam a população, em vez de estarem baseados em sua manutenção continuada, conforme a lógica medieval. Diante disso, eclodia a rebelião generalizada, frequentemente animada pela palavra de ordem que pedia o assassinato de aristocratas: não o estabelecimento de relações mais equânimes com a classe social que, na localidade agrícola, geralmente capitaneava a mercadorização da terra, mas a interrupção desse processo moderno pelo extermínio de seus perpetradores. Tratava-se da resposta popular à altura para a relativização de sua própria existência pela ascensão da forma de vida capitalista. [O sentido histórico da luta contra a modernização]

Para o observador contemporâneo, que olha para o passado do ponto de vista do conhecimento íntimo da destruidora plenitude da sociedade moderna, o vislumbre da negatividade radical da luta popular contra a modernização capitalista, na época de sua origem, pode introduzir uma pulga atrás da orelha da consciência histórica. Por um lado, sabemos que, a partir de certo ponto, o processo de modernização tornou possível a concentração e a mobilização de forças políticas e econômicas de gigantescas proporções. Irresistíveis do ponto de vista das pessoas comuns, essas forças condicionaram nossas existências às fortunas privadas de uma elite minúscula, condenando grande parte da humanidade às incertezas da miséria, ameaçando eventualmente aniquilar toda a vida na Terra por meio de uma combinação de catástrofes que remontam todas à economia centrada no dinheiro e na produção de mercadorias, [296]

e que incluem desde detonações nucleares até envenenamento por poluentes. Por outro lado, a atenção ao século XVI nos lembra que um dia pareceu tanto razoável quanto possível recusar absolutamente esse processo e lutar contra ele, insistindo nas formas de existência social pré-modernas baseadas da manutenção autônoma da vida em nível local. Conhecemos a história do fracasso dessa recusa, ocasionado sobretudo pela inviabilização da ação popular violenta pela centralização estatal. Diante desse fracasso militar, a modernização sedimentou um sistema social de expropriação permanente no interior do qual a satisfação de necessidades só é possível pela interferência do binômio Estado-mercado. A total dependência que caracteriza o atrelamento de nossas existências concretas ao trabalho, à mercadoria, ao direito e ao dinheiro estende-se à nossa imaginação política, acossada pela dupla tarefa de enraizar-se nas categorias econômico-políticas da sociedade moderna e pensar para além delas, num momento histórico em que sua destrutividade se insinua com muito mais evidência na nossa experiência social do que seus supostos efeitos civilizatórios. Estes são, no máximo, evocados por memórias curtas da belle époque ou das "décadas de ouro" do pós-guerra, mobilizadas para insuflar a imagem meramente intelectual de dias melhores. Do ponto de vista econômico e social, estamos infinitamente distantes da origem dessas memórias. Enquanto a contração do mercado de trabalho e a financeirização, causadas pela Terceira Revolução Industrial, tornam os níveis de concentração de riqueza, no início do século XXI, não apenas comparáveis, mas superiores àqueles do início do século XVI, 168 168

Cf. Clay, I, p. 215, e Kermode, p. 464. Estimativas de distribuição de renda urbana para a segunda década do século XVI apontam que 5% a 7% da população concentravam 50% a 75% da riqueza. Em comparação, estimativas de 2013 sugeriam que cerca de 8% da população mundial então pos-

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e as pressões do capital internacional tornam os Estados nacionais na prática ingovernáveis, uma população economicamente inútil é tragada pelo encarceramento em massa e por outros métodos punitivos que, na prática, diminuem ou extinguem sua capacidade de participação na produção de mercadorias. 169 Rigorosamente, os processos socioeconômicos que, no intervalo de tempo que separa esses dois extremos, imbuíram a cultura política moderna com a esperança do desenvolvimento civilizatório centrado no assalariamento e nos direitos, hoje só se oferecem como baluartes desesperados de contenção da desagregação social e expansão das margens da modernidade, e não mais para a manutenção ou expansão da economia política do centro e da periferia, com aumento da colonização econômica e da representatividade política. Esse quadro vem reduzindo objetivamente uma parte crescente da humanidade à posição de inimigos da modernização - a mesma posição em que se encontravam as primeiras vítimas da expropriação capitalista. O clamor daquelas populações de outrora pela destruição das elites proprietárias - o "kill all the gentlemen!" de que tratamos algumas vezes - não consistia apenas em ameaça retórica. Era parte de um conjunto de ideias políticas cuja viabilidade e penetração a escassez usual de documentação jamais nos permitirá avaliar com transparência. Podemos, não obstante, emitir juízo sobre sua coerência, que nos parece sublinhada pelos planos plebeus, na Inglaterra datados do século XIV, de instauração de governos populares locais

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suía algo em torno de 80% da riqueza existente (Credit Suisse. Global Wealth Report 2013. Credit Suisse Research Institute, 2013, p. 22. Disponível em https://publications.credit-suisse.com/tasks/render/file/?fileID=BCDB 1364-Al 05-0560- l 332EC9 l 00FFSC83). Cf. Oliveira, Pedro Rocha de. Paradigmas de política penal e sentido econômico da população. Das punições corporais às UPPs. ln: Revista Em Pauta, n. 37, v. 14, p. 243-269. Rio de Janeiro, 1º semestre de 2016.

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em relação direta com a monarquia, sem o intermédio dos bispos, da gentry ou dos nobres. 17º A imagem é a de um rei amado pelas massas, provavelmente, mas também acossado por uma população impossível de ser intimidada, concretamente desobediente e inevitavelmente mobilizada militarmente. Que ideias como essa tenham sido formuladas no contexto do Grande Levante de 1381 - na rebarba da peste negra e no coração da época que a tradição moderna batizou de "idade das trevas" - é por demais raramente levado em conta quando se tenta reconstruir a tradição do pensamento político ocidental, em especial seu viés democrático. Este é geralmente percebido como resultado da modernidade, peça original e constituinte dela, e não justamente daquelas forças sociais que se voltaram com justificada fúria contra a ordem moderna. É para essas forças sociais, e para esse seu caráter negativo, que temos que olhar quando atentamos para a combinação de luta pelo acesso à terra com a ação política popular que animou a guerra civil inglesa, e para o legado que essa experiência deixou para os conflitos políticos posteriores a Guerra de Independência, a Revolução Francesa, e daí por diante. A guerra social do século XVI nos sugere que, no fundo, a história da luta de classes talvez não tenha sido impulsionada por alguma contradição interna à modernização capitalista - cuja destrutiva coerência tragou para o seu interior todas as relações sociais e naturais, a ponto de nos deixar inteiramente dependentes dela -, mas por uma potência negativa que se originava em seu exterior, e é constitutivamente incompatível com a existência do Estado e da produção sistemática de mercadorias: a simples e razoável prerrogativa de interagirmos uns com os outros imediatamente para a satisfação autônoma de nossas necessidades. 170

Hilton, p. 227.

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A compreensão das crises e dos conflitos que marcam desde sempre o sistema capitalista muito se enriquece com o conhecimento de sua origem, dos processos justamente chamados de "acumulação original" ou "acumulação primitiva': De fato, no famoso capítulo 24 do Livro 1 de O capital, o próprio Marx relaciona os processos sociais que descreve ao "pecado original" cometido por Adão e Eva no Éden. Assim como para eles rompeu-se a unidade paradisíaca com a natureza, para os europeus no começo da Idade Moderna cinde-se de modo definitivo o vínculo imediato entre trabalho e posse dos meios de produção. Explicar como isso se deu em seu berço, a Inglaterra do século XVI, é o objetivo deste livro de Pedro Rocha de Oliveira. O autor procura antes de tudo contar a história das profundas transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas na Inglaterra à época da dinastia Tudor como o ponto de partida do sistema que viria daí a dominar o planeta. Fica claro nesse ponto que a acumulação "original" também é "primitiva", pois está fundada em horrores de violência e em uma catástrofe na raiz da concentração da propriedade da terra e das novas formas de poder correspondentes a ela. Ao destruir o modo comunitá-

rio do trabalho agrícola e a possibilidade de se viver sem recorrer à compra de mercadorias, a exclusão brutal dos camponeses preparou as condições para o comando do capital. A partir desse fato, explica Pedro Rocha de Oliveira, a Inglaterra teve força para estender seu domínio sobre outras regiões, formando enfim a Grã-Bretanha, iniciando a colonização da América do Norte e, depois, obtendo supremacia econômica e política sobre o mundo. O livro para por aí, mas pelas explicações detalhadas e incisivas que fornece, o leitor pode facilmente seguir tirando suas próprias conclusões.

Jorge Grespan Professor de História da USP

Pedro Rocha de Oliveira é professor

da Unirio e doutor em filosofia pela PUC-Rio, tendo feito estágio de doutorado na Universidade de Manchester. Suas publicações incluem artigos e capítulos de livros sobre pensamento social brasileiro, a Escola de Frankfurt, criminologia crítica, e filosofia moderna e contemporânea. É coautor do livro Até o último homem: vi-

sões cariocas da administração armada da vida social (Boitempo, 2013).

Este livro foi composto em Minion para texto, e Meta para títulos. Miolo impresso em papel Pólen Soft 80g/m 2 e capa em Cartão Supremo 250g/m'.