Origens da Idade Média

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WIÍliAM CARRQIL BARK A

T E O C R A C IA

B IZ A N T IN A

Steven R unciman

O propósito desse livro é descrevei um Império cuja constituição se baseava numa clara convicção religiosa -V- a de que Bizâncio era a "cópia terrena do Reino dos Céus". Assim como Deus governa no Céu, também o Imperador, feito à Sua imagem e semelhança, deveria governar sobre a Terra e fazer executar Seus mandamentos como se estes fossem um estatuto jurídico. Essa era a teoria mas, na prática, o Estado jamais se libertou de seu passado romano, em especial da legislação romana, e de sua herança cultural helénica. Muitas tribos e nações se julgaram — ou se julgam — filhas diletas de Deus ou Seus "povos eleitos’’, Sempre que se instaurou uma monarquia, o monarca tratou de se considerar uma emanação de Deus, ou um des­ cendente de Deus, ou Seu Sumo Sacerdote, o homem nomeado pot Ele para "olhar por seu povo. A coroa era sagrada por "direito divino” . Mas o Império de Bizâncio manteve uma concepção mais ampla. Idealmentc, deveria abranger todos os povos e nações da Terra, que seriam membros de uma única Igreja Cristã, a Ortodoxa. O Mal penetrara na criação de Deus e o Homem estava contaminado pelo pecado. Mas se a "imitação” pudesse ser realizada, com o Imperador, seus ministros e conse­ lheiros imitando Deus com Seus arcanjos, anjos e santos, então a vida na Terra seria numa preparação adequada para a realidade mais autêntica da vida no Céu. S ir Steven R unciman reconstitui as diversas formas através das quais o Imperador tentou converter a teoria em prática teocrática e, portanto, as diferentes relações entre a Igreja e o Estado, desde a época de Constantino I aos últimos dias de Constantino X I. O Império Bizan­ tino durou onze séculos, ao final dos quais o Imperador governava sobre pouco mais do que uma cidade-estado em decadência. Afinal, o pecado triunfata e Deus punia o seu Império na Terra por não ter copiado o exemplo divino. O absolutismo estatal, a opulência escandalosa da classe tiominánte em meio â miséria do povo, a corrupção e a dissolução dos costumes aristocráticos, jogaram por terra o Vice-Reinado dos Céus.



Str Steven Runciman, um dos mais prestigiosos historiadores britâ­ nicos contemporâneos, especialista de renome em civilizações euro-orientajs e do Oriente Médio, reuniu nesse volume a série de conferências sobre Bizâncio proferidas em 1973 no Well Institute for Studíes in Religian and Humanities, de Cincinnati, Estados Unidos. Do mesmo autor encontra-se também publicado nesta mesma coleção A Civilização Bizantina, já em segunda edição.

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. a cultura a serviço do progresso social

EDITORES

ISBN 85-245-0020"'

biblioteca de cultura histórica j EDITORES

O R IG E N S D A I D A D E M É D I A 4," edição

Examina este livro como e em que circuns­ tâncias terminou o mundo antigo e começou o medieval, num esforço para esclarecer as ten­ dências gerais de um momento da História que, embora seja dos mais importantes, não foi, ain­ da, suficientemente estudado. Por se tratar, acima de tudo, de uma interpretação crítica, não deve ser confundido com relato puramente narrativo — pois objetiva contribuir para conhe­ cimento mais amplo daquele período, por mui­ tos considerado, apenas, de transição.

ORIGENS

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idade média

Ê dentro desse espírito que as condições cultu­ rais, religiosas, económicas e sociais então preva­ lecentes são estudadas e interpretadas à luz do moderno conhecimento histórico. O resultado é um trabalho que, pela agudeza de sua análise, é considerado de leitura indispensável para o entendimento global da Idade Média.

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De particular importância é o capítulo que trata do colapso da liderança romana no Ocidente e das modificações na estrutura social que se seguiram à substituição do sistema económico, estimulando o surgimento e o fortalecimento de uma rtova sociedade, cujos novos modos de pen­ samento e de expressão permitiram a conquista final do Ocidente pelo Cristianismo, que se estabeleceu sobre as ruínas do mundo clássico e pagão. Obra madura de um erudito, assim é este Origens da Idade Média, de leitura fascinante, e que integra nossa Biblioteca de Cultura His­ tórica, coleção que se propõe, basicamente, a revelar ao leitor e ao estudioso os principais eventos e os grandes nomes do pensamento histórico moderno.

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BIBLIOTECA DE CULTURA HISTÓRICA

W IL L IA M

G A R R O LL BARK

ORIGENS DA IDADE MÉDIA Tradução de

Waltensib D utra

Quarta edição

ZAHAR

EDITORES

RIO DE JANEIRO

CIP — Brasil. Catalogasào-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Bark, Williara Carroll. B254o Origens da Idade Média / William Car* 4.ed. rol! Bark; tradução dc Waltenslr Dutra. — 4a ti. — Rio de Janeiro; Zahar, 1983. (Biblioteca de cultura histérica) T radu ção dei Origíns o f the medieval vvorid. IS B N 85-243*0020-4 1. Idade M édia I, Dutra, Waitensir II. Titulo H l. Série 85-0801

C D D — 909.1

Í N D I C E Título original; ORIGÍNS OF TH E MEDIEVAL WORLD Traduzido da edição original publicada em 1958 pela

Stanford Vnlverslty Press, Stanford, E. V. A.

1 - O INICIO DA IDADE MÉDIA ...............................................

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Natureza das civilizações — A utilidade da kistórla — Data do Início da Idade Média,

Copyright © 1958 hy the Board ofTrustees of the Leland Stanford funior Unmrsity

capa de É R IC O

Direitos exclu sivo s p ara a língua portuguesa Copyright ® by ZAHAR E D IT O R E S S.A .

Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Jan eiro , R J — C E P 20040 1979 — 5 4 3 2

Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de partes do mesmo, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrónico, mecânico, gravação, fotocópia, ou outros), sem permissão expressa da Editora,

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PROBLEM A DO INÍCIO M EDIEVAL , ..........................

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Os vários sentidos da Idade Média — Discutsão da tese de Henri Pirenne sabre a Idade Média; as modificações ocor­ ridas no Ocidente romano antes da invasão árabe, a unidade do Mediterrâneo, os aspectos culturais e religiosos. 3 - A LIDERANÇA ROMANA NO O CID EN TE

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Modificações políticas — Modificações económicas e sociais — Ouro e comércio - Economia natural e sistema do patro­ nato — Observações gerlis sobre n última sociedade rofnana — O inicio de uma novf sociedade. 4 - A M ETAM ORFOSE M EDIEVAL ..............................................

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As novas condições — fcíovos modos de pensar e expressar — A sociedade pioneira: os monges missionários e a con­ quista do Ocidente p ar* o cristianismo — Uma nova socie­ dade: o sistema senboriêl — Uma nova sociedade; tecnolo­ gia, adaptação, invenção. 5 - EPÍLOGO SOBRE O PASSADO E O P R ESE N T E

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Utilidade do estudo histórico - As deficiências básicas do Ocidente romana; economia, sociedade, religião - As condi­ ções excepckmaÍ! do Inicio da Idade Média ~ Resultados positivos de queda de {fonte - O caminho par» a liberdade,

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PREFACIO

ahtigo definido foi deliberadamente omitido antes de Origens, no título deste livro, pois seu objetivo não é apre­ sentar urn relato narrativo, mas uma interpretação crítica. Examina, especificamente, como e em que circunstâncias o mundo antigo chegou ao fim na Europa ocidental e teve ini­ cio o mundo medieval. Há muitos relatos apresentados em ordem cronológica, alguns realmente muito úteis, mas talvez seja chegado o tempo de limparmos o caminho, da melhor maneira possível, do que resta de interpretações e opiniões não mais sustentáveis. Algumas delas, antigas e nonas, são apresentadas nas páginas seguintes. Ho curso dessa análise, fizemos todo o esforço para esclarecer as tendências gerais e acentuar a predominante importância formativa do período que estudamos — em suma, para apresentar o cenário, sem ó qual a simples história do que aconteceu parecerá apenas es­ tranha e incompleta,

Apesar de todos os esforços dos medievallstas para des­ fazer nas dltimas décadas o mal causado pelos autores que usavam óculos de diferentes cores, tem sido extremamente difícil persuadir o mundo moderno a considerar o período medieval s»m noções preconcebidas. Ê um problema antigo no estudo da história, tão antigo quanto melancólico. Em nosso caso, significa que o Ocidente tem permanecido, ern grande parte, inconsciente de uma parte crucial de sua pró­ pria tradição, um setor de sua experiência que pode tornar seu caráter mais compreensível. :

Poderá o estudo da história pretender isso? Sc pode, é um conhecimento muito oportuno para nossa época, particularmentc quando profetas, fantasiados de historiadores, en­ chem nossos ouvidos com advertências de ruína. Suas pala­ vras mais recentes são as do retorno dos Césares, que esta­ riam existindo sob nossas vistas, nesse momento exato. Pode a história tornar o presente compreensível ao presente? Os melhores historiadores acham que sim. Ninguém mostrou isso melhor nem mais sucintamente do que R. G. Colltngwood. Ao lhe perguntarem para que serve a história, res­ pondeu que serve para o conhecimento da humanidade pela própria humanidade. E mais: “A única chave para escla­ recer o que o homem pode fazer é aquilo que o homem já fez" e “o valor da história. . . é nos ensinar o que o homem tem feito e portanto o que ele 6”. Será sem dúvida prudente não aplicar a fórmula de Collingwood muito rapidamente, mas, tendo em mente o con­ selho de Sólon a Creso, deixar alguma margem, por prudên­ cia e pensando na fragilidade humana. Os aspectos da vida de um homem só se revelam na sua totalidade quando ele morre, e o mesmo se pode dizer de uma civilização. O his­ toriador deve recolher todos os fatos disponíveis, o máximo possível do que estiver registrado, e ter esperança de que isso baste. A história pode não dizer ttido o que desejamos sa­ ber, mas continua sendo nossa melhor fonte de informações sobre ,a potencialidade do homem. Se não pudermos obter dela essas informações, nâo há outra fonte a que recorrer — nem medindo o peso de dez mil cérebros humanos, ou regis­ trando dez mil aspectos externos do comportamento humano, ou por quadros ou cartas ou equações diferenciais. Deve­ mos penetrar no espírito do homem, nos pensamentos que o moveram e orientaram, nas invenções, na política, no desper­ dício do dinheiro, na elaboração de superstições, na criação dc poemas, nos empreendimentos comerciais, nas guerras, e em tudo o mais que de esplêndido, tolo, construtivo e crimi­ noso ele faz. Ê mais ou menos como diz Collinawood: A única indicação, que não constitui garantia, da alreçâo na qual o homem (ou um país, ou uma civilização) segue nos é proporcionada pelos traços ou pela esteira que deixa após

seu avanço — a história do que fez, ou permitiu que se fizesse, em muitas circunstâncias diferentes. Quem quiser compreen­ der o caráter da civilização ocidental, que hoje inclui as Amé­ ricas, a Rússia e muito da Ásia, junto com a Europa, faria bem em examinar a história de suas origens, os obstáculos que superou, as decisões que tomou, os caminhos que inicial­ mente palmilhou, em seus começos. Essa história constituirá uma leitura tâo interessante e informativa quanto (embora talvez menos chamejante) as notícias de morte publicadas pelos inspetores cíclicos das entranhas. Lucien Febvre, numa homenagem às opiniões de Mêrc Bloch sobre as obras de história, observou que Bloch sabia melhor do que ninguém que o tempo não se detém e que os livros de história, para serem úteis, devem ser discutidos, saqueados, contraditos e continuamente corrigidos e revistos. Palavras mais certas não poderiam ser escritas. Como Feb­ vre acrescentou, o homem terá que ser estúpido para se consi­ derar infalível. Uma das esperanças que acalento para este Hvro é a de que seja debatido, contradito e corrigido. Uma das melhores pessoas a tanto indicadas é o homem a quem o dedico. Embora este ensaio nâo deva ser consi­ derado como prova disso, M. L. W. tstistner ensinou-me muito, Inclusive a mais valiosa de todas as lições: que os estudantes, para adquirirem maturidade intelectual, devem aprender a pensar sozinhos. Nada poderia ter sido trans­ mitido de forma mais completa e mais detalhada do que essa verdade me foi transmitida pelo maior dos meus profèssores. Tenho ainda muitas outras dívidas, adquiridas no pro­ cesso de pesquisa, preparo e publicação deste livro. Desejo agradecer aos funcionários da Stanford University, da Stanford University Library e da Stanford University Press pelo estí­ mulo, conselho e assistência que me proporcionaram. Muitos amigos e colegas responderam generosamente ao meu apelo de sugestões e críticas. Quanto a isso, agradeço principal­ mente ao Professor Cari Fremont Brand do Departamento de História de Stanford, que leu quase todo o original e com

suas recomendações proporcionou-me as vantagens de sua longa experiência e agudo senso crítico. Minha mulher, E lea nor Carlton Bark, com seus comentários sobre o original, e sob muitos outros aspectos, foi-me um auxílio precioso. W x u lia m G a r r o u . B ark Frenchman's House Stanford University 0 de novembro, 1957.

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queda de R o m a suscita indagações sobre a natureza mes­ ma da civilização. Para o Professor Michael Rostovtzeff, ela representa uma lição e uma advertência: “Nossa civilização não durará a menos que seja a civilização não de uma clas­ se, mas das massas”. Levantou ele duas perguntas: “É possivel estender a civilização superior às classes inferiores sem degradar seu padrão e sem diluir sua qualidade até o ponto de desaparecimento? Não estará toda a civilização destinada à decadência, tão logo comece a penetrar as massas?” 1 Es­ sas perguntas merecem reflexão pelos cidadãos de qualquer democracia, em qualquer época, e não apenas da nossa. Elmer Davis, num discurso perante a Phi Beta Kappa Society, de Harvard, em 1953, palestra "um tanto motivada pela discortjfipcia com as doutrinas do Dr. Toynbee”, citou esta última flergunta de Rostovtzeff, com o seguinte comen­ tário: “Só)podemos dizer que o saberemos com o devido tempo”. 2 Niém de algumas alusões às idéias de Toynbee, muito tem $ dizer sobre a queda de Roma em relação ao atual estada de nossa civilização ocidental. Davis, embora um dos maií inteligentes e mais bem informados, não é de

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1 Michael Rostovtzeff, The Saciai and Economtc History of the Homan Empire (Oxford, 1920), pp. 486-7. 2 Elmer Davis, “Are We Worth Savfng? And If So, Why?”, em But We Wcrc Born Free (Indianápolis e Novft York, 1953), p. 217.

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fornia alguma o único observador contemporâneo a voltar-se para o destino de Roma com um olhar interrogador, tendo em vista o presente. Estadistas, filósofos da história e ana­ listas do presente tèm discutido freqúentemente nossa época em termos do que ocorreu às civilizações do passado, e a maioria dessas análises remontam, cedo ou tarde, ao caso sobre o qual dispomos de informações relativamente substan­ ciais, ao declínio e queda do Império Romano. Em mani­ festações populares em jornais e revistas, pelo rádio e tele­ visão, essa preocupação tem sido expressada em termos de uma iminente Idade das Trevas da barbárie, de uma nova agressão do Oriente ao Ocidente e um retorno ao despotis­ mo e à escravidão. O interesse pelos problemas desse gênero, e a busca de uma solução em certos fatos sombrios do passado, nunca fo­ ram mais atuais do que hoje. Estariam Spengler e Toynbee certos? Deveremos esperar o declínio de uma civili­ zação velha e gasta? Afinal de contas, a civilização da Eu­ ropa ocidental, que inclui hoje todo o hemisfério ocidental, é séculos mais velha do que a greco-romana, na época em que desapareceu. Nos últimos 50 anos, guerras de caráter singularmente destrutivo ressaltaram e acentuaram os indícios do desequilíbrio social e moral. Homens preocupados falam de uma volta à barbárie t lembram o destino do brilhantis­ mo grego e do poderio romano. Os sombrios paralelo* eiitre o presente e o Último Im­ pério são realmente surpreendentes, e as conclusões que ne­ les se baseiam têm sido apresentadas com força a brilho, Há porém outro aspecto doMfcclínio e queda, que tem sido em grande parte desprezado» » lenta e difícil emergência e as­ censão da civilização clf||ã medieval, a primeira fase da civilização da Europa o^fcjental hoje transformada em pro­ blema. Embora muito sa,possa aprender com o fim da civi­ lização antiga, tanto ou iíbbís se pode aprender com o co­ meço da nova. E se ^ovemos extrair da primeira uma advertência, podemos encontrar estímulo na segunda. É fá­ cil esquecer que o munda clássico, apesar de muitas seme­ lhanças surpreendentes, ora, sob muitos aspectos vitais, di­ verso da presente tradição Ocidental, ao passo que o mundo medieval, social e culturalmente, se situa como antecedente

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e progenitor direto dos tempos modernos. Rostovtzeff tinha razão, sem dúvida, sobre a lição e a advertência da queda de Roma, mas seria oportuno considerar também como nossa própria civilização nasceu, quais eram seus objetivos, quais as condições em que então vivia, os obstáculos que superou e as qualidades e características que lhe deram vida e vigor. Se devemos consultar a história sobre os problemas moder­ nos, devemos não só examinar os erros do passado, mas re­ considerar ainda suas realizações positivas e o espírito que as tomou possíveis. Ê dessas realizações e desse espirito que este livro se ocupa. Quando findou a civilização clássica e teve inicio a Ida­ de Média? Muitas datas foram sugeridas. A deposição de Rômulo Augústulo em 470 foi, durante muito tempo, 'a fa­ vorita. Mais recentemente, o ano de 395 - quando Teodósio I morreu e com ele a última e breve reunificação do Império — conquistou adeptos. No extremo oposto, alguns historiadores ingleses levam o princípio da Idade Média até o período imeaiatamente anterior à Conquista Normanda. Quando existe tal variedade de opiniões, somos tentados a supor que pouca importância tem a precisão das datas, e apelar para o lugar-comum de qua todas as idades são perío­ dos de transição, sem "princípio” tem "fim”. Nem a procura de uma data exata nem a rejeição das datas tem muita importância em si. O começo da Idade Média foi realmente uma época de transição, mas de transi­ ção no sentido estrito e adequado, um período caracterízado por modificações excepcionalmente rápidas e significativas, e assinalando a passagem decisiva de um estágio para outro. Foi uma fusão e não urna interrupção abrupta Ou um fluxo intempestivo. Não foi questão do uma data, ou de nenhu­ ma, mas de muitas. A importância de quando teve início a Idade Média está na sua ligação inseparável com o púr que e o como, e tam­ bém com o que era exatamento • nova Idade. Seria tão inútil tentar compreender a civilização medieval sem exami­ nar essas questões de quando e por que, de como e que, como tentar explicar a civilização, americana contemporâ­ nea sem referência à colonização européia, à Revolução e ao

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início da expansão para o oeste. Para compreender determi­ nada civilização ou estágio de civilização, devemos conhecer as condições de seu nascimento e infância, e tudo o que pu­ dermos sobre os períodos anteriores ~ suas condições pré-natais, por assim dizer. Nada poderia ilustrar isso de forma mais convincente do que a transformação histórica que exa­ minamos neste ensaio. Na submersão gradual da antiga civi­ lização e na emergência da civilização medieval há um con­ traste e uma inter-relação notáveis entre as antigas e novas instituições e valores. Ê aqui que vemos a fusão mencio­ nada acima. Naturalmente essa fusão toma impossível datar o início da Idade Média com uma precisão de calendário, É também por isso que diferentes historiadores, alguns consi­ derando principalmente as inovações políticas, outros dando maior peso à evolução religiosa, económica, ou outra, chega­ ram a diferentes datas. É possível debater amplamente a importância relativa dessas várias evoluções. Nem sempre, porém, foi assim. Há meio século, George Burton Adams, então o “decano dos medievalistas americanos”, segundo James Westfall Thomp­ son, expressava a opinião predominante de que “a história da Europa desde o começo do século V até o fim do IX” havia sido tão investigada que sobre todas as questões im­ portantes do período “há atualmente um consenso de opinião geral, ou quase geral, entre os estudiosos do assunto”. 8 Felizmente, porém, o suposto consenso não foi no final de contas tão geral, e vários especialistas — em Economia, Direito e Filologia — continuaram a fazer valiosos acréscimos ao reconhecimento do período como um todo, muitos deles alterando a interpretação histórica.

s "The Present Problems of Medieval Hlstory” , International Congress of Aris and Science, editado por Howard J. Rogers, Vol. III (Londres e Nova York, 1900), pp. 126-28. Apesar da opinião dissi­ dente de Thompson, expressa em "Profitable Fields of Investigation in Medieval Hlstory”, American Social Review, XVIII (1013), e foi emi­ tida pouco depois da publicação do pronunciamento de Adams, a opi­ nião deste predominou por longo tempo entre os medievalistas ame­ ricanos.

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Como era de esperar, as contribuições mais decisivas vieram dos chamados historiadores sociais e económicos, ho­ mens como Bloch, Dopsch, Mickwitz, Rostovtzeff, Pirenne. Num sentido geral, sua obra foi principalmente destrutiva: tornou insustentável o que restava do velho consenso, mas não ofereceu nenhuma interpretação para substituí-lo, ne­ nhuma perspectiva geral que pudesse ser adotada pelos his­ toriadores religiosos e literários, digamos, bem como pelos seus próprios discípulos. Para que os vários especialistas se entendessem entre si, foi necessário apelar para o histo­ riador geral, com todos os riscos que lhe são inerentes. Este livro constitui uma tentativa para ver o problema do fim do mundo antigo e do começo do medieval como um todo. Sua finalidade e tornar mais clara a relação do perío­ do de fundação do Ocidente tanto com a antiguidade como com os estágios posteriores da civilização ocidental. Seu método é antes seletivo e analítico do que amplo e narrati­ vo. Sua premissa básica é a de que o maior valor, da histó­ ria medieval não é sua contribuição às nossas grandes cole­ ções de fatos — frequentemente inúteis, mal dispostas, sem relação, historia gratia historie — mas sua contribuição para o entendimento do confuso, vário, refratário e mágico mundo a que o caminho tomado no despontar da Idade Média levou, Os historiadores americanos gostam de lembrar os sacri­ fícios dos Patriarcas da Independência e o legado de liber­ dade e dignidade que deixaram a seus sucessores. Mas hou­ ve também Patriarcas de nossa civilização ocidental, e é oportuno reconhecer que Washington e seus companheiros herdaram um rico capital para investir. Conceitos modernos como a igualdade das mulheres, direitos e dignidade do traba­ lho, conveniência da instrução, leis iguais, e direitos e respon­ sabilidades do indivíduo na sociedade não são criações originais de nossa época: vieram de uma tradição antiga e forte, Nossa preocupação aqui é o canteiro dessa tradição, o período da história em que tais idéias deitaram as primeiras raízes num solo muito rochoso.

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2 O PROBLEMA DO INICIO M EDIEVAL

língua inglesa tem umt acentuada preferência pelo uso do plural em muitas expressões que as demais línguas européias se contentam em formular no singular, Ê assim que os autores de língua inglesa examinam começos ou origens, des­ crevem períodos árduos, têm antes finalidades e objetivos do que uma finalidade ou um objetivo, e no que se relaciona com o passado histórico, vêem no período medieval não ape­ nas uma idade, mas várias idades entre a antiguidade e os tempos modernos (outro plural). * Talvez essa preferência pelo plural venha da cautela, de uma insistência jurídica em prever todas as contingências possíveis; quaisquer que sejam suas raízes porém, o plural se aplica à Idaae Media. H á vários estágios no desenvolvimento medieval que se podem distinguir tão claramente entre si como dos estágios subsequentes dos tem­ pos modernos. O princípio da Idade Média assinala simples­ mente o início de várias instituições básicas, idéias, valores e modos de vida da nova civilização da Europa ocidental, que sc seguiram ao declínio de Roma no Ocidente, e novamente aqui os plurais são cabíveis. Desse aspecto dc nosso tema, os iní­ cios de uma nova civilização, falaremos mais adiante. Há outro sentido no qual houve não uma Idade Média, mas várias Idades Médias: nas atitudes filosóficas cm rela-

* O Autor se refere ao fato de que a expressão Idade Média é em inglês usada habitualmente no plural: Middle Ages. (N . do T .)

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çâo ao período. Para a Renascença, a Idade Média signifi­ cou um período de barbárie e crueza gótica. Para um Vciltaire ou um Bentham, a época medieval fai uma "Idade da Fé”, pelo que entendiam uma idade õ> superstição, que em sua sombria totalidade não valia nem um dia da luminosa época em que viviam, Alguns românticos, rejeitando essa e outras opiniões “racionalistas”, foram longa demais no sen­ tido oposto e passaram a considerar a Idade Média apenas através de seus vitrais coloridos. Encontraram nela também o que buscavam, os pajens pitorescos, os cavaleiros de arma­ duras reluzentes envoltos em mantos ne^os como carvão, senhoras de alto coturno em palafréns brancos como leite, castelos, tomeios, donzelas desgraçadas, ale^ es padres e mon­ ges, camponeses exóticos e um ou dois saSacenos cruéis. Houve outras formas de Idade Média, talvez menos inte­ ressantes, mas refletindo com a mesma fidelidade os precon­ ceitos, necessidades e erudição das épocas em que surgiram. À reação "científica” apresentou duas variedades principais, ambas uni tanto emocionais. Primeiro, houve um sentimento de repulsa contra a ignorância e a superstição supostamente criadas por uma Igreja autoritária, que foram más porque retardaram o progresso da ciência - expressão que para os cientistas naturais significa principal e quase exclusivamente o conhecimento da natureza. Os defensores dessa opinião vêem com grande desprezo os erros, a cegueira e as imper­ feições de homens que pouco antecederam Galileu, sendo porém tolerantes para com os erros cometidos em épocas mais próximas da sua. Em segundo lugar estão as críticas feitas mais ou menos dentro dos conhecimentos médicos, orienta­ das principalmente para as condições higiénicas do período medieval, sua falta de sanidade e suscetibilidade às doenças. Para os que adotam esse ponto de vista, a Idade Média era dciiberadamente imunda. Houve outras opiniões sobre a Idade Média — jurídicas, constitudonnis, nacionais, religiosas, mas provavelmente a mais construtiva e historicamente útil foi a económica.- Os historiadores da Economia começaram a suspeitar, há mais de meio século, que informações importantes poderiam ser obtidas, em quantidades compensadoras, do exame do perío­ do, e desde então inuito trabalharam para mostrar a exati­

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dão dessa suspeita. Entre os que assim pensavam estava Henri Pirenne, um dos mais destacados historiadores que a Bélgica produziu no século XX. Devido ao brilhantismo de uma tese sua sobre o início da Idade Média e dafodo à in­ fluência estimulante dessa tese, toma-se necessário dizer algo mais sobre Henri Pirenne e sua interpretação, ao iniciarmos o estudo do problema da Idade Média. Podemos dizer, des­ de logo, que a tese de Pirenne, que há vinte anos era am­ plamente adotada pelos historiadores da Idade Média, não é hoje aceita por ninguém sem restrições importafctes, Esse fato não destrói o valor da obra de Pirenne sobre o inído do medievalismo. Sua contribuição teve o enorme valor de pôr em discussão as explicações aceitas e provocar o exame crítico dos clichés históricos. Na tribo dos historiadores, Pi­ renne pertence aos mais favorecidos, pois levantou problemas. O objetivo do presente capítulo é abrir caminho para a apresentação da tese deste estudo como um todo, Isso se fará melhor pela análise da natureza da Idade Média e sua relação com a antiguidade. O “problema da Idade Média" pode, por sua vez, ser melhor abordado por rtieio de um breve exame da famosa interpretação do começo do medievalismo, feita por Henri Pirenne, e da posição que ela atualmente ocupa no quadro dos estudos sobre o assunto. Mais de 35 anos transcorreram desde que Pirenne suge­ riu a tese que seria finalmente apresentada em seu livro, de publicação póstuma, Mahomet et Charlemagne, segundo a qual o começo da Idade Média está inseparavelmente ligado à expansão ocidental do Islã e à destruição da unidade do Mediterrâneo, há muito preservada pelos romanos. Maomé e Carlos Magno aparecem no título porque, nas palavras de Pirenne, “é rigorosamente certo que, sem Maomé, Carlos Magno é inconcebível”. Não foram as invasões germânicas que provocaram a grande ruptura entre a antiguidade e a Idade Média, não os visigodos, certamente não os ostrogodos, e nem mesmo os francos merovíngios. Foram os sarracenos. Sua conquista do Norte da África e Espanha significou, após o século VIII, uma posição de domínio para os francos no Ocidente. Os muçulmanos agravaram também a separação entre Oriente e Ocidente; como seu choque com o poder bi­ zantino no Oriente impedia o imperador oriental de ir em

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ajuda do papado contra os lombardos, os papas tinham for­ çosamente que se voltar para o único poder da Europa oci­ dental, para o rei franco, que logo se tornaria imperador. Foi assim, na opinião de Pirenne, que Maomé preparou caminho para Carlos Magno e pôs em movimento toda uma sequência de acontecimentos importantes. Governo, as re­ lações entre a Igreja e o Estado, o lugar da Igreja na socie­ dade, tudo isso se modificou. O feudalismo substituiu o Es­ tado centralizado, e a instituição eclesiástica assutniu a li­ derança de uma sociedade antes secular. O Mediterrâneo tornou-se um lago muçulmano, e o centro da vida dá Europa ocidental foi empurrado do Mediterrâneo para o norte. Um longo processo de evolução culminou finalmente no ano 800 da era cristã, com a coroação de Carlos Magno em Roma e o estabelecimento de um novo império. O que pareceu a alguns estudiosos o indício de uma al­ teração decisiva do status quo, ou seja, as invasões germâni­ cas dos séculos IV e V, muito antes do nascimento do Pro­ feta, foi considerado por Pirenne apenas uma novidade polí­ tica superficial. Nada se modificou realmente com os ale­ mães, que admiravam-as instituições romanas e desejavam preservar aquilo que haviam herdado. Não introduziram uma nova forma de governo. Politicamente, não foram além da substituição do velho Estado romano unificado por uma pluralidade de Estados. Nessa análise, Pirenne parece ter partido da premissa de que se os alemães não provocaram modificações, então não houve realmente modificações, Essa premissa é fundamental, e dela depende a validade de sua tese. Se um exame posterior mostrasse que, embora os ale­ mães em si não tivessem introduzido modificações básicas, tais modificações ocorreram, e tinham ocorrido antes que eles aparecessem, nesse caso a relação entre Maomé e Canos Magno estaria seriamente abalada. O movimento dos sar­ racenos em direção do Ocidente e seu domínio do Mediter­ râneo ocidental seria então apenas parte de um processo ini­ ciado muito antes de Maomé, Clóvis ou mesmo Alarico. No final das contas, foi um domínio gótico, e não romano, que os sarracenos derrubaram na Espanha, e no norte não foram os galo-romanos que se opuseram aos novos invasores, mas as forças de cavalaria de seus senhores francos. A Gália

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continuava sofrendo um longo processo de transformação pa­ ra tomar-se a França. Dúvidas e questões semelhantes são provocadas pela afirmação de Pirenne de que não houve modificação funda­ mental na situação económica do Ocidente romano antes dos sarracenos. Supostamente, a antiga vida comercial conti­ nuou, sofrendo apenas uma redução devido à "barbarizaçãõ” dos costumes. O mesmo ocorreu com a agricultura, finan­ ças, impostos e outros aspectos da organização económica. Pirenne sustentava que ainda no século VII nada indicava a morte da comunidade de civilização estabelecida pelo Im­ pério Romano. “O novo mundo” não perdera o caráter mediterrânico do "mundo antigo”. Outros, porém, viram de modo diverso o curso dos acon­ tecimentos. Norman Baynes sugeriu, há alguns anos, que talvez a frota pirata dos vândalos tivesse destruído a uni­ dade do mundo mediterrânico no século V, muito antes do aparecimento do Islã. ‘ François Ganshof e Robert S. Lopez discutiram a afirmação de Pirenne de que o comércio teve fim no Ocidente após a expansão sarracena.D Das duas crí­ ticas — a que se ocupou do tratamento dado por Pirenne ao período anterior a esse século crucial, 650-750, e a outra, sobre sua interpretação da era imediatamente posterior, a carolíngia — a última é a que apresenta maior vigor. O co­ mércio continuou e Lopez chama a atenção para importan­ tes aspectos do problema, totalmente desprezados por Pi­ renne. Vemos assim que as oscilações na utilização do pa­ piro, das roupas de luxo do Oriente, da moeda-ouro e das especiarias foram provocadas por modificações internas não* * Ver a crítica de Norman Baynes sobre o Uvto de Pirenne, em Journal of Roman Studtes, XI (1929), pp. 224-35; o artigo "The De­ cline of the Roman Power in Western Europe. Some Modem Explanations” , em Journal of Roman Studles, XXIII (1943), pp. 29-35, Archlbald R. Lewis, Naoal Pcnoer and Trade In the Meaiterranean, A. D. 500-1100 (Princeton, 1951), p. 19, n.° 58, acredita que Baynes exa­ gera o papel do poder marítimo dos vândalos, » François Ganshof, "Note sur les ports do Provence du VIII» âu X‘ »iácle’\ fleiHie hUtorlque, CLXXXIII (1938), pp. 28-37, e Robert S. Lopez, Mohammed and Charlemagne; a Revision”, Speçulum, XVIII (1943), pp. 14-38.

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só no Ocidente como também no Oriente, segundo a eficiên­ cia do controle estatal dos monopólios pelos bizantinos e ára­ bes e do sistema de aliança entre os dois governos orientais. Lopez levanta ainda outro ponto interessante, sugerido antes de forma muito mais geral por Rostovtzeff, de que as pos­ síveis alterações de gosto também deviam ser levadas em conta, Pode ter ocorrido que os bárbaros ocidentais não se Importassem com as brilhantes roupagetis e picantes espe­ ciarias do Oriente, ao contrário de seus predecessores o su­ cessores, multo mais refinados. • Em suma, pode ter havido modificações relevantes tanto no Ocidente como no Oriente, que nada tinham a ver com a abertura do Mediterrâneo às viagens e ao comércio. A opinião de Pirenne de que a irrupção do Islã no Mediterrâ­ neo ocidental teve uma repercussão ipiediata na Holanda pode constituir uma deformação de proporções considerá­ veis. 7 O fato de que apenas roupas de linno ou de lã fossem usadas no Ocidente após o inicio do péríodo carolingio e do que tenham sido escolhidas por Carlos Magno roupas frísias para oferecer ao Califa Harun al Rashid pode significar que muitos dos ativos e combativos francos da época de Carlos Magno tivessem sobre o Unho e a lã uma alta opinião, não só por serem mais baratos e mais fáceis de encontrar, rrtas também porque eram, sob certos aspectos, superiores às rou­ pas orientais de luxo. Em suma, a redução das exportações dos francos não foi simplesmente uma questão de obstrução pelos sarracenos da Espanha. A recusa dos governantes bi­ zantinos e, em menores proporções, dos muçulmanos orien­ tais em permitir que seus produtos fossem enviados ao Oci-8 8 Lopez, "Mohammed and Charlemagne” , loc. clt., e Rostovtzcff, “The Decay of the Ancient World and Its Economic Explanations”, Economic Hlstory Reoiew, II (1930). T Henri Pirenne, "The Place of the Nethcrlands in the Econo­ mic History of Mediaeval Europe” , Economic Hlstoru Reoiew, II, n.° 2 (1929). hJcsse artigo, Pirenne sugere tambím, falando da causa da súbita descida dos nórdicos .sobre a Inglaterra e o Continente, no sículo IX, “ser extremamente provável que sc possa considerá-la sob certos as­ pectos como consequência da Invasão do IslS”. Ê igualmente provável, por outro lado, que o movimento tenha sido independente dos sarra­ cenos, c que Hvcssé ocorrido mesmo sem a conquista sarracena.

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dente era também um fator, e talvez dos mais importantes. Presumivelmente, os francos tinham muito poucas coisas que pudessem interessar ao mundo oriental e, como dissemos, há pelo menos a possibilidade de que a procura ocidental de artigos de luxo do Oriente tivesse decaído.8 ' Outro ponto fraco, economicamente, na argumentação de Pirenne está na reduzida importância dada às modificações económicas fundamentais na Gália, no período anterior ao domínio dos franco», principalmente à destruição generali­ zada do mercado dos produtos naturais da região. Devemos acrescentar de passagem que Pirenne, repeti­ das vezes, tal como nesse exemplo, teve dificuldades com a escassez de informações existentes. Um exame da "prova” que extraiu de Gregório de Tours deixa no leitor a impres­ são de que Pirenne não só era capaz de fazer tijolos sem palha, como por vezes não precisava nem mesmo do barro. Os dois problemas básicos, político e económico, que Pirenne lutou em vão para resolver, afirmando ousadamente que o velho sistema romano sobreviveu até a era carolíngia, surgem juntos, como um monstro de duas cabeças, na forma dos reis merovíngios. Vendo neles a imagem dos impera­ dores romanos e bizantinos, Pirenne atribuiu-lhes coisas as mais extravagantes. Eram absolutos, sendo muito poderosos tanto no sentido militar como, possuidores de uma enorme quantidade de ouro, no financeiro. Além disso, os reis merovingios constantemente aumentavam sua fortuna de todas as formas possíveis, inclusive aceitando enormes subsídios 8 V. Daniel C. Dennett Jr„ "Pirenne and Muhammad", Speculum, XIII (1948), pp. 178-80, sobre a natureza dos produtos gálicos de um periodo de prosperidade anterior, e sobre as modificações ocorridas no inicio do periodo franco; ver também, os notáveis estudos de Maurice Lombard, “Les Bases monétaires dune supréraatie économique, L ’or musulman de VII* au XI» siécle”, Annales, vol. II, n.° 2 (1 9 4 7 ), e “Mahomet et Charlemagne, Le Problème économique’', Annales, vol. III, n.° 2 (1948). No primeiro artigo, Lombaxd afirma que o comércio realizado pelos mercadores levantinos com o Ocidente bárbaro era ex­ clusivamente de importação. As terras ocidentais nada tinham que o Oriente desejasse, para pagar suas importações, a não ser o ouro. Quan­ do o sortimento de ouro ocidental tomou-sa multo reduzido, os levan­ tinos perderam o interesse.

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bizantinos, e, como os imperadores de Bizâncio, utilizavam liberalmente seu tesouro com objetivos políticos. Na rea­ lidade, porém, esses pequenos reis, notáveis pela sua ambi­ ção, parece não terem tido muito interesse em fomentar um comércio mais intenso com as terras do Mediterrâneo orien­ tal, possivelmente porque era muito mais simples e fácil acei­ tar subsídios. Não se pode negar que tenham assumido a autoridade política e se apoderado de grandes riquezas, mas não se âepreende daí que tivessem senão concepções as mais simples sobre a relação entre o governo e a economia do E s­ tado. Seu “absolutismo” tinha apenas uma leve semelhança com o dos ricos potentados de Bizâncio. E usar o tesouro para objetivos simples, como vantagens pessoais, para evitar um perigo imediato, ou para vingar-se, não é compreender e desenvolver as fontes de riqueza. Fazer desses príncipes insignificantes mais do que pálidas sombras dos grandes im­ peradores romanos e orientais é algo que raia o fantástico. Outra razão para rejeitarmos a alegação de riqueza e absolutismo feita em relação a esses monarcas é a de que lhes faltam tanto a visão política como o poder de manter o imposto territorial. Aceita-se de forma mais ou menos unâ­ nime que esse tributo seja a principal fonte de renda de uma sociedade agrícola, como a merovíngia foi no inicio do século VI. Entretanto, apesar de terem herdado um bem organi­ zado sistema de impostos sobre a terra, equipado totalmente com registros cadastrais e uma organização para a coleta de tributos, os merovíngios pouco uso fizeram dessa principal fonte de renda e a deixaram desaparecer.0 Foi um golpe » Ver Fustel de Coulanges, Les Transformations de la rouauté pendant Vépoque carollngicnne (Paris, 1892), observando as referên­ cias de Pirenne a assa passagem e a outras de Fustel, Mahomet, pp. 171 ss. Pirenne parece ter caído numa contradição, pois diz ao mesmo tempo que o Imposto territorial compreendia a maior parte das rendas dos reis merovíngios e que os tributos comerciais eram a maior e a mais importante parte de seus recursos. Admitiu que eies não conhe­ ciam o valor de suas terras e a renda delas auferida, mas teve dificul­ dade em explicar o que ocorreu com o imposto territorial, em compa­ ração com o tributo comercial. Ver Fustel, Transformations, pp. 30, 30 ss,, e Silv#ster Hofbauer, Die Ausblldung der grossen Grandhenschaftm Irn Reiche dei Merowinger (Viena, 1927).

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económico e politicamente fatal, pois levou inevitavelmente ao empobrecimento da monarquia e à fragmentação da uni­ dade política de épocas anteriores. Os herdeiros desse pro­ cesso de descentralização foi a aristocracia franca, que sem dúvida tinha dos impostos e do comércio a mesma reduzida compreensão que seus confrades reais. Tal como os merovíngios eram muito cegos para ver a importância do imposto territorial, executar os serviços públi­ cos que o justificam, supervisionar sua coleta e revê-lo perio­ dicamente para maior justiça e eficiência, também deixaram de compreender a natureza real de seu poder soberano, Isso se demonstra claramente pelas concessões de imunidades que fizeram, ou seja, a missão de diplomas que impediam os fun­ cionários reais de entrar num determinado território, que ficava habitualmente isento de impostos. Essas imunidades sem dúvida ajudaram a realizar na prática aquilo que nunca se realizara pela ação oficial: a abolição do imposto sobre a terra. Outras imunidades isentavam os sacerdotes e seus agentes da coleta de tributos comerciais e outras taxas, como as do direito de passagem por um rio ou uma terra, e a renda real reduziu-se ainda mais. Impõe-se naturalmente saber por que os reis se toma­ ram assim tolamente cegos a seus principais interesses. A resposta de Pirenne é que isso não ocorreu. A principal fon­ te de renda real, insiste ele, era a tributação do comércio que, ao contrário do imposto da terra, era muito fácil de recolher e provocava pouca resistência. Segue-se que, quan­ do o comércio começou a desaparecer devido à expansão ma­ rítima dos sarracenos, os ricos governantes merovíngios co­ meçaram a ficar sem dinheiro. Isso por sua vez significa que a perda de seu poder económico e político ocorreu não através de uma incapacidade própria, mas antes através da ação dos sarracenos, que fecharam as vias marítimas ao co­ mércio franco. Teria sido isso, c não a incapacidade real, que secou as fontes de ouro supostamente proporcionadas pelos tributos comerciais, aos. cofres dos reis. Tal resposta foge aos problemas verdadeiros. Um pon­ to capital, que Pirenne não examinou, embora o mencione de passagem, é o de que o imposto sobre a terra era difícil

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de recolher e provocava muita resistência. Devemos inda­ gar por que isso ocorria, e o que representava para a realeza, Parece que os reis se estavam tomando fracos antes mesmo que seu comércio fosse atacado de anemia, e o próprio Pi­ renne nota que os aristocratas, observando essa crescente fraqueza, dela se aproveitavam para arrancar mais e mais concessões de imunidades. Por que estavam os príncipes merovíngios se enfraquecendo a tal ponto que seus próprios condes podiam prevalecer sobre eles? Uma resposta que re­ duzisse a importância do que ocorria em relação à terra, in­ clusive a incapacidade dos governantes de governarem, e que ao invés disso ressaltasse o declínio do comércio, dificilmente poderia mostrar-se adequâda. Pirenne enfraqueceu ainda mais sua argumentação ao praticamente dissociar a esfera política da económica, em­ bora ambas sejam inseparáveis nesta série de acontecimentos. Embora Fustel de Coulanges há muito tivesse chamado a atenção para o papel da Igreja na concessão de imunidades e no enfraquecimento do poder real, Pirenne deixou de dar a devida influência desse fato no curso dos acontecimentos. Ê evidente que o caráter da sociedade franca se estava mo­ dificando — testemunhando o enfraquecimento do poder cen­ tralizado absoluto, a maior importância dos proprietários de terra e a crescente influência da Igreja nessa modificação social — muito antes do aparecimento dos sarracenos. Pi­ renne viu que a concessão de imunidades era uma consequên­ cia da fraqueza do rei, mas não compreendeu que essa fra­ queza já K>ra demonstrada antes na era merovíngía, com o desaparecimento dos serviços públicos. Nem parece ter da­ do o devido crédito ao testemunho de Grcgório de Tours, a outros respeitos tão exaustivamente explorado, dc que no século VI a Igreja saíra em defesa daqueles a quem a mo­ narquia já não procurava servir, tomando-se com isso, desde logo, um agente imensamente poderoso na vida política e económica da França merovingia. Aos que abordam o periodo merovingio através da his­ tória romana, um dos aspectos mais perturbadores da expli­ cação dada por Pirenne ao início medieval deve ser a redu­ zida importância atribuída âs condições internas do Império, que se modificavam. Esse tratamento muito superficial pode

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ter lurado nosso autor a simplificar excessivarnente, e por vezes adotar uma perspectiva deformada desta segunda situaçâ# histórica, pelo fato de passar depressa demais pela primara, A principal questão do atual contexto é se a eivilizaçjp romana sofreu uma modificação séria e significativa entr® os séculos 11 e V da era cristã. Pirenne não parece ter penfído nem mesmo na possibilidade, pois fala da continuilÇáo da Romania, de um tipo romano de governo abso­ luto 0 da comunidade romana da civilização. t>cvemos concordar que a interpretação das causas que d e ra » início à Idade Méaia depende naturalmente da forma pela qual se examinar a primeira fase daquela era. Do ponte de vista das fases posteriores, apenas, seu aspecto é um; se o período inicial, de grandeza romana, for também examinado, a aparência se modifica. Por isso Rostovtzeff, conhecendo a natureza crucial das modificações que ocor­ riam no Último Império, adverte contra a subestimação da “decadência” romana, pois o que então ocorreu parecia-lhe uma “lenta e gradual modificação, uma substituição de va­ lores na consciência dos homens”. Não obstante, sustentava q u » a "antiga civilização em sua forma greco-romana” desa­ parecera, e sublinhou o antiga. Esse desaparecimento coin­ cidiu cronologicamente com a “desintegração política do Im­ pério Romano e com unm grande modificação em sua vida económica e social”. 10 Foi realmente uma “grande modi­ ficação”, de sentido amplo para as eras posteriores. Ignorá-la seria uma omissão fatal em qualquer tentativa de explicar jo Rostovtzeff, 'T h e Decay of the Ancient World”, loc. ctt.i ver tembém H. St. L. B. Moss, “The Economic Consequences of the Barbarian Invasions", Economic! History Review, VII (1936*37). Nu­ ma análise de certas opiniões económicas de Pirenne e do mestre aus­ tríaco Alfons Dopsch, Moss indaga o que foi feito da "grande modi­ ficação” de Rostovtzeff. Moss interpreta a “economia de casa fechada” da Europa ocidental em 800 como "diretamente provocada pelo colapso do governo romano, das comunicações e do comércio” , e coloca o ponto crucial no periodo 233-85 de nossa era, Esse meio século tem sido reconhecido por muitos especialistas do período anterior (se nRo por Pirenne e outros que trabalharam partindo de um período mais recente para um mais remoto) como uma época de modificações vitais, drás­ ticas, talvez o mais decisivo dos pontos cruciais no período de cerca de 180 a cerca de 500.

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o problema como um todo. Referir-se simplesmente à con­ tinuação do comércio, principalmente pelos sírios e judeus residentes na Gália franca, e à existência de portos e cidades, pouco poderia explicar um desenvolvimento complexo. Pana uma situação tão cheia de aspectos diversos, a explicação "sarracena” é simples demais. Outras perguntas surgem em rápida sucessão. Uma com­ paração, por mais rápida que seja, entre o Oriente e o Ocidente, por exemplo, deve sugerir inevitavelmente certas linhas de reflexão. Não poderá esse contraste nos propor­ cionar mais informações do que Pirenne julgava ú til?11 É realmente importante que entre os meios económico e social das partes oriental e ocidental do Império Romano fosse gran­ de a diferença, A forma pela qual cada uma delas reagiu à rígida estabilização efetuada pelos imperadores do século IV basta para acentuar essa importância. O Oriente ti­ nha uma longa história de monopólio e controle helénico, e gozava condições de relativa prosperidade. O Oriente era mais urbano, o Ocíidente mais rural, e o comércio e a indús­ tria se baseavam muito mais fortemente num do que no outro. Também poderíamos perguntar por que, se a Gália merovíngía prosperou tanto quanto Pirenne afirma antes da in­ vasão muçulmana, os francos não desenvolveram outros pon­ tos de escoamento, pela Itália e o Adriático, ou pela estrada oriental para a Rússia. É claro que ainda havia comércio ao longo dessas rotas, tal como havia ainda comércio marítimo do Sul da França. Esse movimento, porém, decresceu muito antes das incursões muçulmanas, devido à reduzida capaci­ dade de produção do Ocidente, nas condições predominantes após o século III, A Gália sofrera a guerra civil, a destrui­ ção de seus mercados, invasão, c o governo fraco e incapaz dos merovíngios. Não foi portanto o fechamento das vias marítimas pelos muçulmanos, ou sua hostilidade para com o H Ao iniciar o exsrae da navegação oriental { Mahomet, p, 63), Pirenne julgou suficiente assinalar apenas que, das duas partes do Im­ pério, a grega fora sempre mais adiantada em civilização do que a latina. “Inutile 1‘insister sur ce fait évident” . Não se tratava de insis­ tir. absolutamente, mas de explicá-lo.

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Ocidente, exceto a principio, que reduziu o comércio. Foi antes a fraqueza e a ineficiência internas, e o empobreci­ mento das mercadorias de exportação. Os muçulmanos, na verdade, contribuíram mais tarde para a restauração do co­ mércio entre o Ocidente e o Oriente tanto bizantino como muçulmano. A rápida prosperidade comercial dos sarracenos suscita mais uma ou duas perguntas, Pirenne deu muita importân­ cia à unidade mediterrânica, que considerou uma questão vi­ tal. Não obstante, os sarracenos, controlando apenas certas partes do mar, puderam realizar, apesar disso, um comércio marítimo florescente. Não era a unidade do mar que tinha tanta importância, é o que devemos concluir, mas a situa­ ção económica dos homens que desejavam usá-lo. O mar era apenas uma via, e não uma garantia do sucesso comercial. Se os povos da Europa ocidental nada tivessem para trans­ portar através dele, pouca diferença fazia que a extremi­ dade ocidental estivesse bloqueada pelos vândalos ou pelos muçulmanos, ou completamente livre, como ocorreu nos séculos IV, V e parte do VI. Não devemos esquecer que no século VI o rico Império Bizantino pôde, a um custo enorme, invadir o Mediterrâneo. Posteriormente, porém, os bizan­ tinos não conseguiram manter os lombardos fora da Itália e os árabes fácil e rapidamente tomaram-lhes as possessões africanas e espanholas.18 Ê evidente que os sarracenos trouxeram consigo um elemento que há muito faltava na eco­ nomia da Roma imperial, excessivamente predatória.ls Os í * , Lott> Les Invasiotvi germaniques. La pdnétratlon mutuelle dv monde barbare et du monde romaln (Paris, 1945), pp. 151 M. " O pendant la dominatíon byzantíne se seralt peut-étre prolongée, blen que péniblement, sans laeeldent Imprévisible de la naissance et de 1’expansJon de Ilslam . Teria sido um prolongamento dc valor dúbio. Refiro-me à incapacidade das autoridades romanas de desen­ volver um sistema adequado de empreendimentos particulares que su­ plantasse o antigo sistema de pilhagem, sob várias formas, das áreas realmente produtivas do Império, das quais se obtinha o sustento do Homa e Itália, dando-lhe em troca, pelo menos durante algum tempo, uma administração unificada e proteção. Ver as observações de Lot,

U QauU. Le» Fondements ethniques, sociaux et polttlque de la naUon ftançalse (Paris, 1947), pp, 380-87. Entre os fatos que levaram ao

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empreendimentos económicos dos sarracenos, apoiados por suprimentos de ouro recém-encontrados, muito contribuíram para despertar o Ocidente para uma nova e diferente vida comercial. Uma das correlações mais interessantes e mais forçadas da análise que Pirenne faz da história política e económica do período franco surge da suposição de uma distinção agu­ da entre governantes merovíngios e carolíngios em termos de riqueza e poder. Seu argumento é mais ou menos o se­ guinte; a modificação básica nas relações do rei com a aris­ tocracia coincidiu com a expansão sarracena, quando os go­ vernantes proporcionaram concessões a seus vassalos, em tro­ ca do serviço militar. Carlos Martelo introduziu a prática com propriedades confiscadas da Igreja, e o sistema continuou após sua época. A transformação, quando eclodiu, ocorreu porque os reis da nascente linhagem carolíngia, ao contrário dos merovíngios, eram pobres. E eram pobres devido i queda das rendas comerciais que se seguiu à expansão sarracena e ao fechamento do Mediterrâneo: Tom ar os sarracenos indiretamente responsáveis pelo iní­ cio do feudalismo medieval, de tal forma, é evidentemente erróneo. Essa explicação deixa inteiramente de lado a ine­ ficiência do governo merovíngio.. Não é bastante dizer sim­ plesmente que o Estado merovíngio continuou as formas de governo imperiais, com a suposição de que o sistema romano de administração interna tivesse sobrevivido praticam ente sem alterações.*14 Modificações de grande alcance haviam ocor­ nascimento de uma nova economia na Europa medieval ~ pob era muito diversa da economia antiga — deve-se incluir certamente algo mais do que a riqueza dos muçulmanos e o desejo de encontrar novo» mercados e novas fontes de abastecimento. Foi muito importante, por exemplo, o progresso técnico nos métodos de agricultura, que fizeram da agricultura medieval européia superior, sob certos aspectos, As do mundo antigo e do mundo bizantino. 14 Sabemos que muitas instituições romanas sobreviveram na Gálk merovíngia, mas houve também importantes inovações germânicas, como as concessões de imunidades. Dcnnett ( “Pirenne and Muhammad , Speculum, XXIII 1948), justifica a concessão de Imunidades ainda no século VI como um "ato do curta visão" e uma causa da fraqueza dos reis. Pirenne considera as imunidades nío como a caiu a, mas antes

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rido; houve o declínio económico, como mencionamos acima e houve também uma redução cada vez mais acentuada da tranquilidade interna, bem como contribuições alemãs, sem duvida importantes, à estrutura governamental, muito antes do início da era carolíngia. Quanto à alegada adoção e con­ tinuação das formas de governo romanas, pelos alemães, é impossível acreditar que os merovíngios pudessem assumir o controle e operar satisfatoriamente um sistema administra­ tivo que fora incapaz, na época imediatamente anterior, de salvar seus senhores romanos do colapso. Devemos deduzir que as condições em transformação haviam tomado o ins­ trumento inútil, antes que ele se partisse nas mãos de seus inventores. Dificilmente se concebe que os merovíngios pu­ dessem ter sido mais romanos de que os próprios roinanos. Concordamos que houve momentos de bom governo, ou pelo menos governo forte, sob um Teodorico ou um Clóvis mas que dizer de seus sucessores? Mesmo Teodorico, segundo boécio nem sempre pôde controlar a rapacidade e a corrupção. Nas questões locais, o direito e os costumes romanos mantiveram, sem duvida, alguma influência, mas antes como um freio do que como uma barra de direção. Outro aspecto da questão está relacionado com a muito celebrada 'unidade do Mediterrâneo”. Segundo a argumen­ tação de Pirenne, Bizâncio impediu os sarracenos, depois que estes transformaram o Mediterrâneo num lago muçulmano, de dominar toda a região. Portanto, o velho mar romano tomou-se a fronteira entre o Islã e o Cristianismo, e o Oci­ dente foi separado do Oriente. Dessa forma, o Islã rompeu a unidade que qs invasores alemães haviam deixado intacta. hssa ruphrra, “o fato mais essencial” na história européia desde as Guerras Púnicas, aos olhos de Pirenne marcou o fim da tradição antiga e o começo da Idade Média, no momento preciso em que a Europa estava sendo bizantinizada. c o »o « conseqUéncia da fraqueza dos reis, provocada pela perda das rendas. Como ja vimos, porém, a moléstia tinha raízes; mais profunq j ^ queí t',essas expirações mostra, e se localizava na longu incapacidade dos reis de governarem. Esse fato tinha várias cautas e estava sem dúvida em relação com a incapacidade semelhante dos últi­ mos imperadores ocidentais, como acima sugerimos.

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Já se sugeriu, principalmente nas esclarecedoras obser­ vações de Robert Lopez sobre o comércio, ou falta dele, do Ocidente com o Oriente, que essa “bizantinização não toi um resultado inevitável Além disso, Pirenne observou que um pouco mais tarde os interesses comerciais de Nápoles, Gaeta e Ámalfi levaram essas cidades a abandonar Bizâncio e entrar em negociações com os muçulmanos, defecção que permitiu aos sarracenos tomar finalmente a Sicília. Esse fato revela, por um lado, que os sarracenos não eram totalrnente intratáveis e, por outro lado, que um conflito^ de interesses entre os negociantes ocidentais s bizantinos não era impos­ sível. Na concepção de Pirenne, porém, as coisas são intei­ ramente diversas. Carlos Magno é apresentado como incapaz de transformar os francos numa potência marítima, apesar do grande lucro que isso poderia proporcionar. Veneza apa­ rece como participando da órbita bizantina, e os sarracenos surgem sempre como o perigo temível. Nesse trabalho de detetive, Pirenne não acusou o ver­ dadeiro culpado. A Europa ocidental tinha acesso a uma boa via comercial, e esse acesso lhe foi tomado não pelos mu­ çulmanos, mas pelos bizantinos.1516 É certo que os muçul­ manos controlavam a parte ocidental do mar, mas após sua hostilidade inicial ao Ocidente e ao seu comércio evidente­ mente não mostraram aversão ao trato com os francos e ita­ lianos. A realidade é que Bizâncio se opôs à intrusão dos francos carolíngios, que por sua vez foram pouco mais^ enér­ gicos do que os merovíngios na melhoria das condições de comércio. Quanto aos vênetos, negociavam com qualquer um, desde que houvesse lucro a obter. Vendiam escravos e eunucos cristãos aos muçulmanos, e formavam as alianças que a conveniência ditava. Devemos acrescentar que, nessa disposição para comerciar, os'vênetos não eram essencialmen­ te diferentes dos italianos, muçulmanos e bizantinos. E os muçulmanos não estavarri menos livres do que os cristãos do Oriente e do Ocidente de ter dissensões internas. 15 Pouco depois de ter escrito essas palavras, verifiquei que Lewis, Naval Power, p. 97, diz praticamente a mesma coisa, he., que Pirenne “ escolheu mal o bandido e que ráo íoirn os árabes, ma Bizâncio, que destruíram a antiga unidade do Mediterrâneo ,

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Toma-se cada vez mais claro que o centro de gravidade político e económico da Europa começou a deslocar-se para o norte muito antes que os sarracenos conquistassem a E s­ panha, e podemos mesmo sugerir que fortes tendências espi­ rituais também começaram a mover-se naquela direção numa data muito remota. Essa transferência do poder ó eviden­ ciada, ou pelo menos se toma perceptível, numa leitura cui­ dadosa de Mahomet et Charlemagne, muito embora Pixenne, encantado pela sua teoria sarracena, não tenha dado essa in­ terpretação aos elementos que manuseava. Suas opiniões sobre à Bretanha do início do medievalismo, ou seja, anglo-saxônica, constituem um excelente exemplo dessa preo­ cupação. A Bretanha, após as invasões germânicas, diferia acentuadamente do resto da Europa, segundo Pirenne, pois ali começou a surgir um novo tipo de civilização, de caráter nórdico ou germânico. O Estado romano desapareceu com­ pletamente e com ele seu ideal legislativo, sua população civil e sua religião cristã. Substituiu-o uma "sociedade que preservava entre seus membros o laço sanguíneo, a comuni­ dade centralizada em tomo da família com todas as suas con­ sequências no direito, moralidade e economia, um paganismo semelhante ao das lendas históricas . Começava assim uma nova era na Bretanha, de aspecto antes nortista do que sulis­ ta, e nada tendo com a Romanio. Desse ponto de vista, os invasores anglo-saxônicos da Bretanha romana nenhuma ’ in­ fluência sofreram da civilização romana, e o historiador tinha de concluir que “a alma germânica, nórdica, a alma dos povos cujo estado de civilização era, por assim dizer, homé­ rico, foi nessa terra o fator histórico essencial”, segundo ns palavras do próprio Pirenne. Essa descrição é poética, romântica mesmo, mas infeliz­ mente não e histórica. Embora Pirenne tivesse vislumbrado a sociedade que surgiria tendo o Norte como centro, foi en­ tretanto uma visão fugaz, e ele não tirou conclusões impor­ tantes das modificações que ocorriam. Continuou a basear-se em sua velha suposição de que a sociedade franco-merovingia era muito superior, por ser romana, à que surgio na Bretanha após as invasões anglo-saxônicas. A crueldade e a dissipação dos príncipes merovíngios nada representavam

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para ele. Devemos indagar, embora em vão, se Pirenne acha­ va a alma angio-saxônica mais “germânica, nórdica e bar­ bara” do que, digamos, a alma lombarda, Quanto ao caráter "nortista” da nova civilização da Bretanha, devemos insistir numa comparação com outras áreas invadidas da metade oci­ dental do Império e lembrar que, pelo menos em certos as­ pectos, o movimento do norte foi iniciado pelos francos ainda no século VI, ou talvez antes. Nem podemos esquecer, com referência ao forte paganismo anglo-saxônico, que o movi­ mento para levar os povos do Norte à Igreja foi Iniciado pelo Papa Gregório o Grande, também no século VI, Outra simplificação excessiva envolve os celtas do Norte, que desaparecenf do cenário um pouco abmptamente, Intelizmente para a interpretação dada, houve celta* na Bre­ tanha bem como nas ilhas e no Continente-, e, embora não tossem nórdicos, fizeram a. história nesse período crucial. Utn exemplo: Pelágio, monge celta provavelmente de origem bri­ tânica, incitou Santo Agostinho de Hipo à formulação de algumas de suas opiniões dogmáticas mais fortes o mais in­ fluentes. Ê Igualmente indefensável passar-se por sobre as atividades de outros monges celtas,, notadamente Columba e Columbano, no século VI, ou reduzir a importância da conti­ nuação de seu trabalho pelos eruditos, professores e missio­ nários anglo-saxônicos do século VII e VIII, culminando na obra destacada de Bede, Bonifácio e Àlcufno, O isolado, pa­ gão e homérico Norte influiu realmente nos francos e mesmo na Itália mediterrânica antes, durante e depois da expansão sarracena, Aqui, como em diversos outros momentos, o que sur­ preende mais na argumentação de Pirenne é que ele tinha consciência da íntima ligação entre Roma e as Ilhas Britâ­ nicas, após a época de Gregório o Grande,^ Apesar disso, pôde concluir que pela "Inversão mais curiosa” o Norte subs­ tituiu o Sul como centro literário e político da Europa, e que esse acontecimento constitui a “mais surpreendente confirma­ ção da ruptura provocada pelo Islã”, A realidade inevitável é que na Bretanha e na Irlanda a nova civilização em pro­ cesso de crescimento muito deveu à combinação do vigor e entusiasmo anglo-saxônicos e celtas com a habilidade e ex­ periência italianas e orientais da organização e administração.

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É sensato supor que a nova civilização moldada por celtas e saxônios, por francos, sírios e romanos, teria seguido mais ou menos o mesmo curso se não tivesse havido qualquer ex­ pansão sarracena. ’ Essa afirmativa pode servir para introduzir outra prova à validade da tese de Pirenne. Se ele estivesse certo, a cultura e as direções culturais da Europa ocidental como um todo deviam ser perceptivelrnente diferentes após a ex­ pansão sarracena, e a diferença teria de ser claramente atri­ buível às forças postas em movimento pela irrupção sarra­ cena Pirenne tratou coerentemente a modificação cultural tal como fizera com a social, absolvendo os bárbaros germâ­ nicos de toda responsabilidade. Afirmou, assim, que “as in­ vasões germânicas não podiam, em qualquer aspecto, alterar" a tradição antiga, isto é, a velha unidade da vida intelec­ tual. Em apoio dessa inteipretação pôde indicar um ou ou­ tro leigo destacado, corno Cassiodoro ou Boécio, declarar que um latim simples foi escrito por Eugípio, Cesário de Arles e Gregório o Grande, de tal forma que o povo podia compre­ ender, e argumentar que a Igreja absorveu o Império, tornan­ do-se assim uma poderosa agência de romanização. Concor­ dou em que a vida intelectual e a cultura antiga entraram em decadência após o século III, a “decadência de uma deca­ dência". Insistiu apenas em que os alemães não romperam com a tradição clássica, que a ruptura surgiu mais tarde, com os sarracenos. O problema é aqui mais ou menos idêntico, em propor­ ções maiores, ao da Bretãnha anglo-saxònica. A questão essencial é saber se a transição intelectual para a Idade Mé­ dia estava muito adiantada antes da penetração germânica dos séculos IV e V, para nfo falar da fase posterior da ex­ pansão sarracena, Iníelizmeute, Pirenne nío enfrenta essa pergunta básica diretamente e de modo positivo. Consequentemente, a im­ pressão que se tem ao ler setl capitulo sobre a vida intelec­ tual após as invasões, em Mahomet et Charlemaene, é principalmente de deficiência. Após referir-se à decadência geral na ciência, arte e lerias, a partir do fim do século III, rirenne procura traçar um rápido esboço das condições inte­

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lectuais. Alguns, embora nem todos, dos assuntos que de­ viam ser mencionados, o são. Há referência, por exemplo, à crescente Influência cristã, ao crescimento do monasticismo, ao permanente processo de orientalização c à deterioração do conhecimento e da literatura clássica. É príncipalmente das conclusões tiradas desse exame que fica a impressão de uma visão deformada e um trabalho inacabado. Alguns exemplos bastam para esclarecer a objeção. Se­ gundo Pirenne, no reinado ostrogodo “tudo continuou como no Império” e “basta lembrar os nomes de dois ministros de Teodorico: Cassiodoro e Boécio”. Dois curtos e secos pará­ grafos são dados a esses homens extraordinariamente influen­ tes, e mesmo essas referências breves são apresentadas de forma a dar uma impressão falsa em favor da tese. Trata-se de uma atitude desorientadora silenciar sobre o cristianis­ mo de Boécio e sobre seu interesse pelas grandes controvér­ sias teológicas da época, que tiveram um impacto destruidor na unidade dogmática do Oriente bizantino e contribuíram também para distanciar as Igrejas Oriental e O ciden tal10 Ninguém suspeitaria, pela leitura desse pequeno parágrafo, que Boécio foi, com razão, denominado “o primeiro dosi es­ colásticos” bem como “o último dos rornanos . Também Cassiodoro é afastado de cena bruscamente. Sua dedicação à vida religiosa em Vivário e o patrocínio que dava aos monges são mencionados, mas nada se diz de suas obras íeligiosas, ou de suas opiniões sobre a educação, ou ainda do seu verdadeiro caráter, O que se diz é exato, como no caso de Boécio, mas como muita coisa se omite, novamente o efeito é incompleto e leva ao erro. Pirenne menciona, por exem­ plo, que Cassiodoro desejava que seus monges reunissem todas as obras literárias da antiguidade clássica, afirmação

i« pirenne atribui acertadamente a execução de Boécio à sus participação numa conspiração com a corte bizantina, row deixa de lado o aspecto teológico dessa conspiração. Mencionei essa questão num artigo publicado anos após a morte de Pirenne, Theodoirie vs, Boethius: Vlndication and Apology", American HUtoHcd Reoiw , X LIX (1944). A opuscula sacra devia ter sido mencionada mesmo num breve esboço dos interesses intelectuais de Boécio em relação 1 sua época.

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perfeitamente aceitável em si. Mas, ao referir-se a Enódio, dá a impressão de que a retórica antiga florescia mais forte do que nutica, tanto entre cristãos como entre pagãos.1714 Fica evidentemente implícito que a tradição clássica vicejava plenamente, sem qualquer alteração essencial em seu espi­ rito e valores. A realidade, porém, era muito diversa. A formulação de Pirenne ignora o estado agônico da retórica e da literatura pagã em geral e a luta amarga, muito antes e ainda muito depois da época de Cassiodoro, contra a tra­ dição profana na literatura, e da qual participarão tão ativamonte Jerônimo, Agostinho e Gregório o Grande, Tentar usar Boécio e Cassiodoro como evidências de que a sociedade era ainda secular e essencialmente inalterada, deixar de assi­ nalai o contato íntimo de ambos com o crescimento das idéiãs e instituições cristãs num momento crucial, foi um erra capital. Pirenne argumenta ainda vigorpsamente para mostrar que o ust de um latim simples por autores da Igreja, como Cesá» rio $le Arles, Gregório I e Eugipio, não indica qualquer afas­ tamento significativo da velha tradição, mas que a Igreja deliberadamente simplificava a língua para fazer da litera­ tura um instrumento de cultura, ou antes de edificação do povo. Essa adaptação pôde então ser descrita como nada mais do que uma continuação da antiga cultura mediterrânica. Por essa engenhosa, mas inaceitável, reconstrução, Pi­ renne transformou a mais poderosa instituição isolada que participou da formação de uma nova sociedade ocidental — a Igreja Cristã - apenas num agente da preservação da fíomania, com toda a sua tradição clássica e paga. Os fatos, porém, exigem uma interpretação bem diferente. A simpli­ ficação do latim era outro indício do declínio cultural que há muito se observava. Cesárío e outros escreveram em lin­ guagem simples devido ao grande aumento do analfabetismo do povo a que serviam. 17 ? lre,nn1l Mohomet, pp. 102-4. Mas ver Pierre de Labrlolle, Hisioite de Ic Uttérature lútine chrétienne, 3.a ed-, revista e ampliada por Gustave Bardy (Paris, 1947). Bardy assinala em nota à p. 12 que a esterilidade generalizada entre os retóricos pagáos a partir do fim do século IV é também evidente entre certos autores crlstíos entre os quais Enódio é o mais destituído de interesse,

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Ainda neste exemplo Pirenne dei)#u de fortalecer sua argumentação, mas apenas descreve, sem; compreender, o pro­ cesso básico de modificação que estava ‘pcorrendo. O mes­ mo ocorre aproximadamente com outras observações sobre o uso do latim, Ele interpreta, por exemplo, a utilização do latim clássico pelo clero em fins da Idade Média como indi­ cio de qu'e essa lingua se havia tornado um ifistrumento culto, utilizado apenas pelos homens da Igreja,11 O conhecimento e a qualidade do latim falado e escrito, e realmente das línguas vernáculas, variaram muito de lugar para lugar e de época para época no período que vai de 300 a 1600 e mais tarde. O problema de transformação linguística apresenta muitas complexidades e dificuldades, $ é perigoso genera­ lizar sobre ele em apoio de uma tese, Há boas razões para acreditar que tanto o latim egcrito como o falado evoluíram em fases, partindo do latim clássico, passando pelo medie­ val e suas últimas manifesiaçõfcs. A opinião de Pirenne sobre o desenvolvimento linguístico Ira exccsstvamcnte limitada. O que caracterizava os nomens *como mais ou menos "medie­ vais" e se correlacionava em valores e perspectiva não era seu dominio da língua, mas afguilo que, através dela, expres­ savam, Na época dos Hoheitetaufen e dos Plantagenetas, a poesia latina cra escrita por leigos e para leigos. As can­ ções de Goliardi eram também latinas, e dificilmente se pode­ rá considerá-las como destinadas apenas aos homens da Igre­ ja. Presume-se que os cortesãos de Londres e Palermo, os estudantes errantes e os trovadores não perderam seu cará­ ter "m edievar devido à qualidade do que escreviam. Pirenne aplicou também o tratamento algo descuidado de Boécio à vida intelectual do período, como um todo, Acentuou certos tipos de evidências, notadamente as econó­ micas, a tal ponto que freqiientemente deixou de perceber, em parte ou no todo, a significação de aspectos importantes. Somente um leitor altamente imaginoso poderia suspeitar, pela leitura de Pirenne, que os séculos V e VI eram parte de 14 Pirenne, Mahomet, p. 112, Seria Igualmente erróneo afirmai que o aparecimento de boa escrita vernácula nos séculos XII e XIII significou o fim do latim. Ver Em st R. Curtíus, Eurnpoische Lttoratur und. laleinkches Mlttelaker (Berna, 1948), pp. 33-34.

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uma Idade Patrística, É certo que os Pais são mencionados em conexão com as simplificações de Cesário, mas o grande volume de escritos patrísticas sobre muitos assuntos, inclu­ sive o dogma, é desprezado. Nenhuma expressão do pensa­ mento diferencia mais claramente o medieval do clássico que as controvérsias teológicas, frequentes nos séculos IV, V e VI, e que continuaram ainda por muito tempo. Mais tarde, foram uma das principais fontes do escolasticismo medieval. De tudo isso, porém, não há hraço no esboço de Pirenne, Uma realidade de grande importância nessa era crucial é a de que só na literatura cristã se encontrava vitalidade; so­ mente os cristãos tinham convicções a defender ou opiniões originais a expressar,10 Não obstante, tal como deixara de ver na simplificação do latim a ligação entre esta e outras modificações concomitantes, Pirenne não analisa devidamen­ te o sentido da nova literatura cristã, e nem mesmo da flo­ rescente instituição do monasticismo. Nenhuma outra par­ ticiparia de forma mais completa do padrão da vida medie­ val, nenhuma modificação institucional marca o rompimento com a sociedade clássica de foima mais evidente — e apesar disso Pirenne apenas menciona São Benedito de Núrsia.

Essa tendência também faz sentir seus efeitos prejudi­ ciais na exposição que Pirenne faz da educação do século V ao VII. Nenhum assunto proporciona melhor ilustração das consequências de grande alcance do colapso da unidade im­ perial, que Pirenne afasta tão displicentemente. A educação clássica, na medida em que proporcionada pelo govemo, so­ freu o destino de outros ramos semelhantes do govemo cen­ tral e local. A partir de princípios do século V, portanto, o velho sistema desapareceu da Bretanha e da Gália, e a educação clássica sobreviveu ainda por um século em mãos particulares, como na época de Sidônio Apolinário. Na Itá­ lia e na África a tradição de erudição durou mais, porém mes­ mo nessas regiões houve modificação considerável, e a ins­ trução clássica foi amplamente dominada por homens que eram ao mesmo tempo líderes cristãos e homens cultos, no sentido antigo. A essência da nova escola cristã, ou seja, medieval, está na íntima associação da instrução literária e educação reli­ giosa, e na fusão dos ensinamentos mundanos e espirituais. Pirenne sustentava, porém, que como os governantes alemães empregavam funcionários administrativos e judiciais, devia ter existido escolas leigas para tais funcionários. As escolas, como notamos, eram religiosas, embora alguma instrução leiga continuasse a ser ministrada.so Quanto ao aumento ine­ gável do domínio da educação pelos cristãos, não se tratava simplesmente de uma questão de edificação e adaptação, como Pirenne sugere ao apresentar Cesário de Arles, Sig­ nificava, antes, a construção de um sistema de educação to­ talmente novo, com valores e objetivos novos. Os indícios que levam a essa conclusão são abundantes e numerosos nas páginas mesmas de Pirenne.

Outras omissões impróprias - impróprias porque impor­ tantes para a tese que Pirenne apresentava - poderiam ser mencionadas em quantidade, Basta acrescentar que o gran­ de Papa Gregório I merece apenas uma apresentação sucinta, que Santo Agostinho de Hipo passa sem referência à sua nova concepção da história cristã, que outros historiadores, como Orósio e Salviano, são também ignorados. O que mais espanta, no meio de tantas omissões, exageros e redução de importância é a descrição de Isidoro de Sevilha, de quem se diz a princípio que nada conservara do antigo espírito e, mais adiante, que ele também era um mediterrínico.

% 1» Labriolle, Littérature lallne chrétienne, pp, 12-13. Apesar das deficiências dos autores cristãos, como sua aceitação do gosto retórico da épica, eles a io brincavam com a literatura, apenas, como os escritores pagãos. Os cristãos, dia Labriolle, “acreditavam no que dlxiam, falavam do coração, e toda a sua morai se expressava nos escritos .

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ao Pirenne se refere também a um trabalho anterior, De 1 état de 1’instruction des laíques à 1’époque mérovingienne’’, Revue bínédictlne, XLV I (1934), e acrescenta que mesmo entre os lombaidos tais escolas sobreviveram. G. Salvioli, L'Iríruzione pubblíco in Italla nei secolt VI]J, IX e X (Florença, 1898), também menciona uma escola leiga na Itália, do período lombãrdo, mas nío apresenta provas dessa afirmação.

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Também na arte Pirenne nâo pôde ver nenhuma mo­ dificação importante na situação que há muito perdurava na região mediterrânlca. O processo de orientalização sim­ plesmente continuou ao longo do curso determinado pela arte de Bizâncio, cujo exemplo em questões artísticas era seguido por toda a bacia do Mediterrâneo, diz Pirenne. Ainda uma vez devemos acautelar-nos contra a disposição, sem dúvida inconsciente, das provas para servir a uma teoria. Modifi­ cações importantes ocorreram, tais como a orientalização que Pirenne tentou afastar tão apressadamente, e Outras modifica­ ções provocadas também pelos bárbaros. A arte clássica estivera atravessando um periodo de mo­ dificação - não necessariamente de declínio - durante al­ gum tempo, antes das invasões germânicas, certamente a partir do fim do século II da era cristã, e a tendência orien* tal, envolvendo estilo, espirito e os artistas mesmos, estava também firmemente estabelecida. Essa modificação sem dú­ vida reflete as condições em transformação de Outros seto­ res da vida ocidental, tais como as dificuldades económicas do século II e a violência e desordem provocadas pelas guer­ ras civis e a anarquia do século III, Como a literatura clás­ sica, a arte clássica estava moribunda na época em que o cristianismo venceu; o sabor e o vigor desapareceram grandemente de ambas. O triunfo oriental na arte foi culturalmen­ te uma evolução inteiramente isolada da realização artística clássica greco-romana. A ascendência do gosto oriental na arte não foi, portanto, apenas a continuação de uma velha tradição. Na realidade, significou que uma modificação im­ portante estava ocorrendo na parte ocidental do Império, antes das invasões. Ao examinar o efeito das próprias invasões sobre a arte ocidental, Pirenne seguiu novamente a tendência já mani­ festada. Os germanos nada de novo introduziram, mas ape­ nas ampliaram a influência da arte oriental, o que para Pi­ renne não constituiu uma modificação. A suposição de que os indícios artísticos também comprovavam a tese de Piren­ ne era, porém, altamente discutível desde o início, e pesqui­ sas recentes, amplas e proveitosas, tomaram insustentável es­ sa opinião, Muito naturalmente, grande parte do que era romano perdurou, pois em quase toda a Europa ocidental os

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invasores eram uma minoria reduzida, pouco inclinada a se fundif livremente com os conquistados. Gradualmente, po­ rém, uma grande modificação ocorreu, e, juntamente com o oriental, muitas coisas novas e bárbaras foram introduzidas. Os bárbaros tinham uma arte própria, que recebeu certas in­ fluências mediterrânicas e orientais, mas sua fonte principal, numa forma decadente, foi a grande arte proto-histórica assi­ milada pelos godos no Sul da Bússia.5,1 Pirenne admite tudo isso, mas insiste também que a arte dos alemães era apenas popular e que na Gália era obra de artesãos galo-romanos. Estes últimos argumentos foram, po­ rém, contestados por bfenri Focillon, um dos críticos de Pi­ renne em questões artísticas, e por bons motivos. Pirenne subestimou a importância das modificações sociais que ocor­ rem antes das invasões e continuaram durante e após estas, modificações que afetaram tanto a população antiga como a nova, constituída da minoria dominante. Houve um acen­ tuado movimento no sentido do primitivo, que Focillon atri­ bui à influência alemã. A velha cultura humanista feneceu: a preocupação artística pelo rosto e pelo corpo humano deu lugar ao formalismo geométrico c a arquitetura às artes de­ corativas menores. No Império Oriental, que escapou ao dominio bárbaro, mas naturalmente nâo ao ortentnlismo de Pirenne, a questão foi inteiramente diversa. Na arte, como em outros setores, a explicação de Pirenne é lamentavelmente inadequada. Parece, por exemplo, não ter havido qualquer ruptura entre as artes merovingia e carolíngia, como teria ocorrido se o “fechamento do Mediter­ râneo fosse o fato histórico decisivo que Pirenne pretendia, Além disso, após o fechamento do grande mar e numa época em que a Europa ocidental teria ficado inteiramente isolada e inteiramente germanizada, a arte de representar a forma humana reapareceu em manuscritos ilustrados e começou a recuperar sua grandeza perdida. O Mediterrâneo não salvou a Europa da "barbárie” na arte no período ^nterior à expanai Ver Henrl Focillon. Moijen Age: Suroiwmceê ti ráotils. Êtudes d’art et dlxlstoke (Montreal, 1045)s Salin, Édotitrds L