Dez Erros Filosoficos
 9786587138220

Table of contents :
OdinRights
AO LEITOR
PRÓLOGO
Pequenos erros no princípio
As dez matérias sobre as quais se erra
PARTE I
CAPÍTULO I
A consciência e seus objetos
CAPÍTULO II
O intelecto e os sentidos
CAPÍTULO III
As palavras e os significados
CAPÍTULO IV
Conhecimento e opinião
CAPÍTULO V
Valores morais
PARTE I
CAPÍTULO VI
Felicidade e contentamento
CAPÍTULO VII
Liberdade de escolha
CAPÍTULO VIII
Natureza humana
CAPÍTULO IX
Sociedade humana
CAPÍTULO X
Existência humana
EPÍLOGO
Ciência moderna e sabedoria antiga
NOTAS

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Sumário AO LEITOR PRÓLOGO Pequenos erros no princípio As dez matérias sobre as quais se erra PARTE I CAPÍTULO I A consciência e seus objetos CAPÍTULO II O intelecto e os sentidos CAPÍTULO III As palavras e os significados CAPÍTULO IV Conhecimento e opinião CAPÍTULO V Valores morais PARTE I CAPÍTULO VI Felicidade e contentamento CAPÍTULO VII Liberdade de escolha CAPÍTULO VIII Natureza humana CAPÍTULO IX Sociedade humana CAPÍTULO X Existência humana EPÍLOGO Ciência moderna e sabedoria antiga NOTAS

Dez erros filosóficos Mortimer J. Adler Tradução de Adriel Teixeira VIDE EDITORIAL

Dez erros filosóficos Mortimer J. Adler Primeira edição — março de 2021 — CEDET Título original: Ten Philosophical Mistakes Copyright © 1985 by Mortimer J. Adler Publicado em acordo com a editora original, Touchstone, uma divisão da Simon & Schuster, Inc. Todos os direitos reservados. Os direitos desta edição pertencem ao CEDET Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Av. Comendador Aladino Selmi, 4630, galpão 8 CEP: 13069-096 —Vila San Martin, Campinas-SP Telefone: (19) 3249-0580 e-mail: [email protected] Editor: Thomaz Perroni Tradução: Adriel Teixeira Revisão: Thauan Monteiro Preparação de texto: Letícia de Paula Diagramação: Maurício Amaral Capa: Bruno Ortega Conselho editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Avila Silvio Grimaldo de Camargo FICHA CATALOGRÁFICA Adler, Mortimer J. Dez erros filosóficos / Mortimer J. Adler; tradução de Adriel Teixeira — Campinas, SP: Vide Editorial, 2021. ISBN: 978-65-87138-22-0 1. Filosofia. 2. História da filosofia. I. Autor II. Título CDD — 100 /109 ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO 1. Filosofia —100 2. História da filosofia — 109 VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.    

AO LEITOR  

Títulos de livros são com frequência enganosos; às vezes são imprecisos. O do meu não é enganoso, mas é impreciso. Os leitores descobrirão que há mais de dez erros filosóficos considerados e corrigidos neste livro. Mas há dez matérias sobre as quais se erra normalmente. Um título mais preciso, mas também mais enfadonho, teria sido: Dez matérias sobre as quais errou-se filosoficamente. Creio que os leitores compreenderão por que optei pela forma mais curta, porém menos precisa, do título. Os leitores também irão achar que os cinco capítulos da Parte i são mais longos que os outros cinco da Parte n. O motivo disso é que os erros discutidos na Parte i são mais difíceis de serem expostos claramente. É mais difícil também explicar o que está envolvido na sua correção. Talvez eu devesse acrescentar que, a meu ver, os erros filosóficos discutidos na Parte i são mais fundamentais e dão azo a consequências mais sérias para o pensamento moderno. Não tentei argumentar a favor ou provar apoditicamente a veracidade das correções oferecidas por mim como solução para os erros propostos. Apelo então ao senso comum do leitor para que consiga discernir se tais correções possuem ou não o selo da verdade.  

PRÓLOGO Pequenos erros no princípio  

1 “O mínimo desvio inicial da verdade multiplica-se posteriormente em mil e um outros desvios”. Assim escreveu Aristóteles no quarto século antes de Cristo. Dezesseis séculos mais tarde, Santo Tomás de Aquino fez ecoar a observação do Estagirita: parafraseando-a, disse o Aquinate, com efeito, que pequenos erros no princípio conduzem a graves consequências no final. Mas nem Aristóteles nem Santo Tomás tinham em mente os equívocos filosóficos — todos constituindo pequenos erros no princípio — com que este livro está preocupado. Tratam-se, todos eles, de erros da Modernidade, cometidos por diversos filósofos a partir do século XVII — o século que foi marcado pelos desvios de pensamento que se iniciaram com Thomas Hobbes na Inglaterra e com René Descartes na França. Em um ou dois casos, os erros filosóficos de que aqui nos ocuparemos repetem outros que em primeiro lugar ocorreram na Antiguidade. Mas isso não muda o fato de que todos esses erros são tipicamente, senão totalmente, modernos na origem e nas sérias consequências a que conduziram no pensamento moderno. Essas graves consequências não apenas impregnam o pensamento filosófico contemporâneo, como se manifestam em populares equívocos amplamente difundidos nos dias de hoje — equívocos estes que tendem todos para a mesma direção; que afetam a compreensão que temos de nós mesmos, de nossas vidas, de nossas instituições e de nossa experiência; e que desorientam nossas ações do mesmo modo que turvam nosso pensamento. Não se trata de erros enclausurados de relevância meramente acadêmica, mas de noções que foram popularizadas e espalhadas por toda parte nas mais variadas formas e pelos mais variados meios de difusão. Muitos de nós acolhemos involuntariamente alguns desses equívocos em

nossas mentes sem saber de onde vieram ou como ali se alojaram. 2  

Chamar a esses equívocos de pequenos erros não é diminuir-lhes a importância. Convém antes dizer que são equívocos extremamente simples, capazes de serem postulados em uma única sentença ou duas, e que as verdades que os corrigem são igualmente simples e similarmente capazes de serem estatuídas com brevidade. Entretanto, a sua simplicidade não impede que sobrevenham algumas complicações. Alguns desses pequenos erros envolvem um número correlato de questões; outros, uma série de vários aspectos; e outros ainda vêm aos pares, incluindo ambos os extremos de uma falsa polaridade. Vistos em sua simplicidade, ou mesmo com suas respectivas complicações, estes são equívocos que ocorrem no início de um longo encadeamento lógico, que conduz de premissas errôneas, através de diversos passos, até falsas conclusões ou consequências, às quais aquelas premissas dão ensejo. Logo no início, antes de as consequências serem discernidas, o equívoco parece inocente e passa despercebido. Somente quando somos confrontados com as repugnantes conclusões, a que raciocínios convincentes nos conduzem, é que somos forçados a retraçar nossos passos a fim de descobrir onde erramos. Só então a premissa errônea, que a princípio parecia inocente, revela-se como a grande culpada — um lobo em pele de cordeiro. Infelizmente, grande parte do pensamento moderno não procurou, nesse sentido, evitar aquelas conclusões que já haviam sido consideradas inaceitáveis por um motivo ou outro. Em vez de retraçar os passos que reconduziriam à fonte dos pequenos erros no princípio do raciocínio, os pensadores modernos tentaram por outras vias contornar os resultados daqueles erros iniciais, frequentemente multiplicando as dificuldades em vez de superá-las. Os avanços realizados pela filosofia moderna não foram suficientes para mitigar os desastres produzidos por aquelas

conclusões que não foram abandonadas quando da descoberta dos equívocos iniciais que as originaram. A opção por adotar novos pontos de partida, substituindo premissas falsas por verdadeiras, teria mudado radicalmente a imagem que a filosofia moderna ora nos apresenta.  

3  

A ordem em que os equívocos filosóficos irão aparecer nos próximos capítulos é um tanto arbitrária, conquanto não inteiramente. Se a gravidade de cada um deles para a vida e a ação humanas tivesse sido o critério adotado para decidir qual deveria vir primeiro, a ordem talvez tivesse sido invertida. Os últimos seis dos dez capítulos são dedicados a temas de importância mais obviamente prática para a nossa vida cotidiana; já os quatro primeiros parecem mais teoréticos, mais distantes dos nossos interesses imediatos. Contudo, embora sejam de fato mais teoréticos, os quatro primeiros capítulos abordam equívocos subjacentes a muito do que se seguirá posteriormente. Trata-se de equívocos que guardam, entre suas graves consequências, pequenos erros no princípio de outras linhas de raciocínio. O equívoco sobre a consciência, de que trata o primeiro capítulo, é, de todos, talvez, o mais importante, pois está instalado no âmago mesmo do pensamento moderno, determinando sua compleição característica. Quando combinado ao equívoco sobre a mente humana, estudado no segundo capítulo, termina por lançar o pensamento moderno numa desventura que inclui muitos outros desvios para direções erradas. 4  

O equívoco que iremos estudar no primeiro capítulo talvez se prove, aos olhos do leitor, o mais intrincado ou mesmo o mais desconcertante de todos, pois não apenas filósofos modernos, mas, de um modo geral, a maioria das pessoas está inclinada a cometê-lo. Sem refletir muito sobre o assunto,

tendemos a supor que estamos diretamente conscientes dos conteúdos de nossa própria mente. Mas só o estamos, de fato, quando, conscientemente, sentimos prazer ou dor físicos, quando corporalmente sofremos ou realizamos esforços. Tais sentimentos, contudo, são completamente diferentes das nossas percepções, memórias, imaginações, sonhos e pensamentos ou conceitos. A estes últimos — pensamentos ou conceitos —, por falta de vocábulo melhor que os designe, chamemo-los genericamente “idéias”. Pois bem, nossas idéias têm a característica e função especiais de colocar objetos ante a nossa mente. É sempre da idéia do objeto de que estamos diretamente conscientes, nunca da idéia enquanto tal. As próprias idéias — ou as idéias enquanto tais — não são senão os meios pelos quais apreendemos os objetos que elas são capazes de colocar ante a nossa mente. Em si mesmas, elas são inapreensíveis. O segundo equívoco complementa o erro do primeiro. A falha em distinguir entre pensamento perceptual e pensamento conceituai — entre perceber os objetos sensíveis que encontramos na experiência diária e pensar sobre objetos que não podem ser percebidos ou imaginados — acarreta sérias consequências para a nossa compreensão das matemáticas, da física teórica, da filosofia, da teologia e das diferenças entre a mente humana e a mente animal. O terceiro grupo de equívocos é composto de erros que, não fossem os dois primeiros, não se teriam perpetuado no campo da filosofia da linguagem — a saber, na tentativa de explicar o significado das palavras. A raiz desses erros está na incapacidade de reconhecer que idéias são significados. Como tais, elas são a única fonte a partir da qual tudo o mais — desde palavras até toda sorte de outros signos e símbolos criados pelo homem — pode adquirir os sentidos que adquiriram no uso que fazemos delas. O quarto equívoco traça a linha divisória entre conhecimento e mera opinião de modo a colocar de um lado — o do conhecimento, obviamente — as matemáticas, a ciência investigativa e a história, e a relegar tudo o mais para o outro

— o da mera opinião —, o que equivale a negar a legitimidade da alegação feita pela filosofia acerca da própria capacidade de nos dar a conhecer a realidade e de nos prover com verdades que sejam, talvez, mais fundamentais e importantes do que aquelas obtidas por meio das ciências. O quinto equívoco também estabelece uma linha divisória entre o que é conhecimento genuíno e o que é mera opinião. Desta vez, o erro consiste em colocar todos os juízos sobre valores morais — sobre o que é bom e o que é mau, o certo e o errado, bem como todos os juízos acerca do que deve ser ou não buscado ou feito. O sexto equívoco segue de perto o quinto. Ele consiste na identificação da felicidade — uma palavra que todos nós usamos para algo que todos buscam por sua própria conta — com o estado puramente psicológico de contentamento, que experimentamos quando temos a satisfação de obter algo que queremos. O pensamento moderno e as pessoas de um modo geral em nossa época têm ignorado completamente o outro significado de felicidade como qualidade moral de toda uma vida bem vivida. Esse erro, junto com dois outros erros relacionados — a falha em distinguir entre necessidades e desejos e entre bens reais e bens meramente aparentes —, mina todos os esforços modernos de produzir uma filosofia moral sadia. O sétimo erro difere de todo o resto. Preocupamo-nos aqui com a antiga controvérsia entre aqueles que afirmam o livrearbítrio humano e os deterministas, que o negam sob fundamentos científicos. A falha, aqui, é de compreensão. Esse equívoco é acompanhado, da parte dos deterministas, por uma errônea visão da relação entre livre-arbítrio e responsabilidade moral. A questão entre as duas partes da controvérsia não se junta. Os deterministas não compreendem as bases sobre as quais a defesa do livre-arbítrio e da vontade livre repousam. Então seus argumentos erram o alvo. O oitavo erro consiste na espantosa negação, ainda amplamente reinante em nossos dias, da natureza humana — negação esta que chega ao extremo de postular que nada de

comum a todos os seres humanos subjaz às diferentes tendências comportamentais e características encontradas nos diversos subgrupos da espécie humana. O nono erro diz respeito à origem das várias formas de associação humana — a família, a tribo ou aldeia, e o estado ou sociedade civil. Falhando em compreender como as formas básicas da associação humana são tanto naturais quanto convencionais (diferente a esse respeito das associações de outros animais gregários, que são determinadas instintivamente e, portanto, são apenas naturais), esse equívoco nos impinge dois mitos totalmente desnecessários: (i) o mito de que no estado primitivo da humanidade os indivíduos viviam totalmente isolados uns dos outros; e (n) o mito de que foi por meio de um contrato social que a humanidade saiu desse estado de isolamento individual primitivo para adentrar a sociedade civil. O décimo erro é de ordem metafísica. Trata-se de um erro que pode ser chamado falácia do reducionismo e que consiste em atribuir um grau de realidade muito maior às partes de um todo organizado do que ao próprio todo; ou, ainda pior, sustentar que apenas as últimas partes componentes de um todo têm realidade e que as totalidades que elas constituem são meras aparências ou mesmo ilusões. De acordo com essa concepção, as existências reais que constituem o mundo físico são as partículas elementares que compõem o átomo. Quando consideramos os indivíduos humanos como dotados da existência real e da identidade duradoura que eles aparentam ter, estamos padecendo de uma ilusão. Se esse é o caso, então novamente estamos dispensados da responsabilidade moral por nossas ações. Como já salientei, alguns desses erros têm seus protótipos na Antiguidade, mas onde é esse o caso, podemos encontrar uma refutação em Aristóteles. A repetição desses equívocos no pensamento moderno indica uma clara ignorância das correções feitas por Aristóteles. Espero que este breve resumo das dez matérias sobre as quais foram cometidos erros filosóficos nos tempos modernos

estimule o apetite do leitor para explorá-los e aprender como podem ser corrigidos ou remediados. Ao terminar de fazer isso, os leitores poderão se voltar ao Epílogo para obter uma explicação histórica de por que esses erros foram cometidos, quem os cometeu, e como poderiam ter sido evitado    

As dez matérias sobre as quais se erra PARTE I

CAPÍTULO I A consciência e seus objetos  

1  

Comecemos com algo que todos compreendem e façamos algumas perguntas sobre isso. E para tais questões que respostas opostas são dadas — respostas certas e respostas erradas. Quando estamos dormindo e não sonhando, estamos inconscientes. Quando nos descrevemos como inconscientes, estamos, com efeito, dizendo que: - Estamos inconscientes do que quer que esteja acontecendo no mundo ao nosso redor ou mesmo em nossos próprios corpos; - Não estamos apreendendo nada, não estamos conscientes de nada; - Nossas mentes estão vazias; - Não estamos experimentando nada, ou estamos vivendo através de um intervalo de tempo não experimentado. Dizer que não estamos conscientes de nada, ou que não estamos apreendendo nada, é equivalente a dizer que não estamos percebendo nada, lembrando nada, imaginando nada, pensando em nada. Podemos acrescentar que não estamos sentindo nada nem física nem emocionalmente. Tais palavras — “perceber”, “lembrar”, “imaginar”, “pensar” e “sentir” — aproximam-se bastante do conjunto exaustivo dos atos em que nossa mente se engaja quando estamos acordados e conscientes. Quando nenhum desses atos está ocorrendo, nossas mentes estão vazias. Quando é o caso, pode-se dizer também que não temos nenhuma percepção, memória, imagens, pensamentos, sensações ou sentimentos. À primeira vista, parece que muito do que precede é repetitivo. Parece que estamos a dizer a mesma coisa sempre de novo e de novo. Mas não é o caso, como em breve teremos oportunidade de ver. Dentre as várias asserções feitas acima, algumas conduzem a respostas certas e outras a respostas

erradas acerca da seguinte questão fundamental: quando estamos conscientes, o que é aquilo de que estamos conscientes? Deixe-me colocar a questão em outros termos. Do que estamos conscientes? Do que estamos tendo experiência quando estamos conscientes? A palavra crucial em todas essas questões é a preposiçãozinha “de”. Gramaticalmente, ela pede um objeto. Qual é o objeto que responde a todas essas questões relacionadas? Ainda uma última questão: quando estamos conscientes, e então nossas mentes não estão vazias, com o que elas estão preenchidas? Tornou-se costumeiro falar de fluxo de consciência ou de pensamentos para descrever o que sucessivamente preenche nossa consciência ou modela nossa experiência de momento a momento. Em que isso consiste? Em outras palavras, qual o conteúdo mutável da consciência? Uma resposta para a questão é dada pelo uso da palavra “idéia” para todos os tipos de coisas bem diferentes que preenchem nossa mente quando estamos conscientes. Esse vocábulo foi muito empregado pelos filósofos modernos, notadamente por John Locke, que introduziu o seu uso. Na introdução ao seu Ensaio sobre o entendimento humano, ele esclareceu aos leitores como pretendia usar a palavra “idéia”. Antes de prosseguir no que pensei sobre este assunto, aproveito esta oportunidade para pedir perdão ao meu leitor pelo uso frequente da palavra idéia, que ele encontrará adiante no tratado. Julgo que, sendo este o termo mais indicado para significar qualquer coisa que consiste no objeto do entendimento quando o homem pensa, usei-o para expressar [...] tudo o que pode ser empregado pela mente pensante [...]. Suponho que me será facilmente concedido que há tais idéias nas mentes dos homens. Cada um tem consciência delas em si mesmo e as palavras e ações dos homens o persuadirão de que elas existem nos outros. O uso que Locke faz da palavra “pensamento” é tão elástico quanto o que ele faz da palavra “idéia”. Ele usa “pensamento”

para todos os atos da mente, exatamente como ele usa a palavra “idéia” para se referir a todos os objetos da mente quando esta está pensando, ou para todos os conteúdos de consciência quando estamos conscientes. Assim usada, a palavra “pensamento” representa todas as atividades mentais que, quando distinguidas, atendem por nomes como “perceber”, “lembrar”, “imaginar”, “conceber”, “julgar”, “raciocinar”; e também “sentir”, seja no sentido físico, seja no sentido emocional do termo. Do mesmo modo, a palavra “idéias”, usada em sentido maximamente elástico, abrange uma grande variedade de coisas que também podem ser distinguidas umas das outras: percepções, memórias, imagens, pensamentos ou conceitos, sensações e sentimentos. Seria injusto com Locke não declarar desde logo que ele diferenciava esses diversos itens, todos os quais agrupava sob o único termo “idéia”. Ele também distinguia os diversos atos da mente que trazem idéias de todos os tipos para dentro dela, ou que produzem idéias das quais a mente se torna consciente. Que isso fique estabelecido, conquanto permaneça a questão de saber se Locke os distinguiu corretamente ou não. Isso, por sua vez, leva à questão crucial com a qual estamos aqui preocupados: quais são os objetos da mente quando ela está consciente de algo? A resposta errada a essa pergunta, com todas as conseqüências que se lhe seguem, é o erro filosófico de que este capítulo trata.  

2  

Na passagem introdutória do Ensaio de Locke citada acima, duas coisas são ditas ao leitor. Uma é que Locke espera que o leitor concorde que ele tem idéias em sua própria mente, idéias das quais está consciente. A outra é que o leitor concederá que outros indivíduos também têm idéias em suas próprias mentes, idéias das quais eles, também, estão conscientes. Desde que ninguém esteja consciente das idéias que estão na mente alheia, Locke qualifica este segundo ponto dizendo que, a partir do modo como os outros falam e se comportam,

inferimos que eles também têm idéias em suas mentes, às vezes até bem parecidas com as nossas. Esses dois pontos em conjunto introduzem uma nota de fundamental importância. As idéias em minha mente são as minhas idéias. As idéias na sua são as suas. Esses pronomes possessivos chamam a atenção para o fato de que as idéias na mente de alguém são subjetivas: elas pertencem àquela única pessoa e a ninguém mais. Assim como há tantas mentes no mundo quanto indivíduos, do mesmo modo há tantos conjuntos de idéias quanto mentes individualmente distintas. Cada pessoa tem seu próprio conjunto de idéias. De acordo com Locke, apenas as próprias idéias da pessoa são seus objetos de consciência quando ela está consciente. Mais ninguém pode estar consciente das idéias de outra pessoa. Essas idéias não são nunca objetos dos quais mais alguém esteja imediatamente consciente. Conceder que outros indivíduos também tenham idéias, das quais nós mesmos não podemos estar diretamente conscientes, deve resultar sempre de um ato de inferência, baseado naquilo que dizem e fazem. Se a palavra “objeto”, na medida em que se aplica a idéias como aquelas de que temos consciência quando estamos conscientes, nos leva a pensar que idéias são objetivas ou dotadas de objetividade, então nos defrontamos com uma aparente contradição. Parece que estamos dizendo coisas opostas sobre as idéias: de um lado, que minhas idéias, sendo exclusivamente minhas e não suas nem de mais ninguém, são subjetivas-, de outro, que minhas idéias também são dotadas de objetividade. Parece que somos compelidos a admitir que, para todo indivíduo, as idéias nas mentes de outros indivíduos não são objetos dos quais se possa estar consciente. Suas subjetividades as colocam para além do alcance da consciência imediata dos demais. Em outras palavras, as idéias na mente de uma determinada pessoa são objetos apenas para aquela pessoa. Elas estão para além da imediata apreensão de outrem.

Façamos uma pausa por um momento para considerar o significado das palavras “objetivo” e “subjetivo”. Dizemos que algo é objetivo quando é o mesmo para mim, para você e para qualquer outra pessoa. Dizemos que algo é subjetivo quando difere de um indivíduo para o outro, e quando é da posse exclusiva de um indivíduo e de ninguém mais. Para reforçar essa compreensão da distinção entre o subjetivo e o objetivo, permita-me introduzir outro par de palavras: “público” e “privado”. Essas duas palavras podem ser usadas para dividir toda nossa experiência entre aquilo que é público e aquilo que é privado. Uma experiência é pública se for comum a dois ou mais indivíduos. Pode não ser realmente comum a todos, mas deve ser ao menos potencialmente comum a todos. Uma experiência é privada se pertencer a um único indivíduo e não puder ser diretamente compartilhada com mais ninguém. Deixe-me ilustrar essa divisão de todas as nossas experiências entre públicas e privadas propondo o que eu vejo como — e no que espero que os leitores concordem comigo — claros e indiscutíveis exemplos de cada tipo. Nossas sensações corporais, incluindo nossas emoções ou paixões, são privadas. Minha dor de dente, taquicardia, ou raiva são coisas experimentadas diretamente apenas por mim. Eu posso conversar com você sobre elas e, se você também já tiver tido essas sensações corporais, será capaz de entender do que estou falando. Mas entender do que estou falando é uma coisa; e ter essas experiências você mesmo é outra bem diferente. Pode ser que você já as tenha vivido no passado, e isso o ajudará a compreender do que eu estou falando. Mas você precisa não vivê-las no mesmo momento que eu para compreender do que eu estou falando. De todo modo, você não pode jamais compartilhar comigo as sensações corporais que eu estou tendo e das quais estou falando. Em nítido contraste com nossas sensações corporais, nossas experiências perceptuais são públicas, não privadas. Quando eu e você estamos sentados no mesmo cômodo, com uma

mesa entre nós sobre a qual há copos e uma garrafa de vinho, você e eu estamos perceptualmente apreendendo os mesmos objetos — não nossas próprias idéias, mas a mesa entre nós, os copos e a garrafa de vinho. Se eu mover a mesa um pouquinho, ou despejar um pouco de vinho da garrafa nos copos, você e eu estaremos compartilhando a mesma experiência. Essa é uma experiência pública, assim como o sabor do vinho ou a taquicardia que ele causa em mim não o é. Minhas percepções (ou perceptos) não são idênticas às suas. Cada um de nós tem as suas próprias percepções, assim como cada um de nós tem as suas próprias sensações corporais. Mas, embora as minhas percepções e as suas sejam nesse sentido subjetivas (pertencendo exclusivamente a cada um de nós), o fato de nós as termos resulta numa experiência coletiva, ao contrário do que acontece com nossas sensações corporais subjetivas. Para usar a terminologia de Locke, tanto as percepções quanto as sensações corporais são idéias e cada um de nós tem as suas próprias. Mas certas idéias subjetivas, tais como as sensações corporais, são exclusivamente subjetivas. Elas são objetos de consciência apenas para aquele que as experimenta. Embora por essa razão possam ser chamadas objetos, não têm qualquer objetividade. Em contraste, outras idéias subjetivas, tais como os perceptos ou percepções, resultam em experiência pública, não privada, pois seus objetos podem ser direta e simultaneamente experimentados por dois ou mais indivíduos.  

3  

Todas as idéias são subjetivas. Eu tenho as minhas; você tem as suas; e elas nunca são idênticas ou comuns a nós dois. Elas não podem ser assim, ao menos não mais do que as células e doenças do seu corpo podem ser idênticas ou comuns às células e doenças do meu. É necessário que introduzamos, aqui, uma distinção entre idéias, sensações corporais, emoções e sentimentos. Desafortunadamente, Locke falha em observar essa distinção.

O que quer que possa ser propriamente chamado idéia tem um objeto. Percepções, memórias, imaginações, conceitos ou pensamentos são idéias neste sentido do termo; mas sensações corporais, emoções e sensações não o são. Nós as apreendemos diretamente. Elas não nos servem como instrumentos por meio dos quais apreender outras coisas. O que acabei de dizer se aplica também, em raras circunstâncias, às sensações geradas pela estimulação dos nossos órgãos dos sentidos externos, tal como o súbito raio de luz que vemos, o inesperado barulho que ouvimos, o estranho odor que não conseguimos identificar. Essas sensações não entram em nossa percepção de nada. Ao contrário, quando estamos percebendo algo, estamos diretamente conscientes de outra coisa que não os nossos perceptos. O que é essa outra coisa? Eis a resposta: a mesa, a garrafa de vinho e os copos que você e eu percebemos quando estamos compartilhando a experiência resultante de nossa atividade perceptual. Nossa experiência da mesa, da garrafa, e dos copos, é uma experiência pública, não uma experiência exclusivamente privada a cada um de nós. Essas coisas realmente existentes são os objetos da nossa consciência perceptual, não os perceptos ou percepções que nos permitem apreendê-las ou delas estarmos cônscios. E por isso que podemos conversar um com o outro sobre elas como coisas que estamos experimentando em comum. A mesa, por exemplo, que é o objeto perceptual que estamos ambos apreendendo ao mesmo tempo, é a mesa que eu e você podemos juntos levantar e mover para outro canto da sala. Para John Locke, a consciência que temos de nossas próprias idéias é inteiramente uma experiência privada, exclusiva de cada um de nós. Isso vale para todos que, de um modo ou de outro, adotam sua concepção das idéias como sendo nossos objetos mentais quando estamos conscientes de algo — objetos dos quais estamos imediatamente cônscios e que diretamente apreendemos. Eles estão, com efeito, a dizer que todas as idéias que um indivíduo tem em sua mente quando está consciente resultam para ele em experiências privadas,

experiências que ninguém mais pode compartilhar. Dizer isso é um erro filosófico que acarreta sérias consequências para o pensamento moderno.  

4 Antes de apontar as consequências do erro filosófico que se encontra na visão de Locke acerca da consciência e suas idéias, permita-se que eu exponha um pouco mais da visão oposta. Postulá-la em seus próprios termos não só delineará mais claramente o problema criado pela oposição dessas visões como também iluminará certas dificuldades inerentes à concepção oposta. Isso precisa ser resolvido. As objeções à visão contrária podem já ter ocorrido aos leitores das páginas anteriores. Eles podem ter notado as dificuldades que foram apenas mencionadas. Eles podem pensar que a visão contrária vai muito longe na direção oposta e que dá origem a consequências tão censuráveis quanto as resultantes da visão de Locke quando levada às suas conclusões lógicas. E necessário lembrar que a visão contrária não se aplica a todas as idéias, mas apenas a algumas. Excluem-se sensações corporais, sentimentos, emoções e, em casos raros, sensações geradas por estimulação ou por nossos sentidos externos. Concede-se que todas essas sejam experiências privadas, nas quais estamos diretamente conscientes da dor que sentimos, da raiva que sofremos, ou do súbito brilho da luz, do ruído alto inesperado, do estranho odor que não podemos identificar e que não faz parte da nossa percepção de nada. Todos esses são objetos de experiência imediata. Eles não servem como meios para apreender outra coisa. Eles próprios são os objetos da nossa apreensão. Observadas todas essas exceções, todas as nossas outras idéias podem ser caracterizadas como cognitivas — como instrumentos de cognição. Em vez de serem elas mesmas objetos de apreensão, elas são meios pelos quais apreendemos os objetos que não são idéias.

Essas duas palavrinhas — “pelos quais” — encerram a pista para diferenciarmos a concepção de Locke da sua oposta. Para Locke, todas as idéias são aquilo que nós apreendemos quando estamos conscientes de algo. Para a concepção oposta, algumas idéias (nossas idéias cognitivas) são aquilo pelo qual nós apreendemos os objetos de que estamos conscientes. Essa visão é expressa por Santo Tomás de Aquino em uma breve passagem, comparável à breve passagem da introdução ao Ensaio sobre o entendimento humano de Locke. Irei parafraseá-la de modo a evitar usar uma terminologia que possa se provar desconcertante aos olhos do leitor contemporâneo. No “Tratado sobre o homem”, que se encontra na Primeira Parte da sua Suma teológica, o Aquinate levanta a questão de se as nossas idéias (estou aqui utilizando o termo no sentido omni-abarcante de Locke) são aquilo que apreendemos quando estamos conscientes ou aquilo pelo qual apreendemos objetos que não são idéias. Com uma qualificação, a ser reservada para consideração posterior quando esta for mais apropriada, a resposta que ele dá é enfática: aquilo pelo qual. Deixe-me destrinchar essa resposta em todos os seus detalhes significativos. Ela quer dizer que experimentamos coisas percebidas, mas nunca os perceptos por meio dos quais as percebemos. Lembramo-nos de eventos ou acontecimentos passados, mas nunca estamos conscientes das memórias por meio das quais nos lembramos deles. Podemos estar conscientes de objetos imaginários ou imaginados, mas nunca das imagens por meio das quais os imaginamos. Apreendemos objetos de pensamento, mas nunca os conceitos por meio dos quais pensamos neles. “Você quer dizer” — o leitor pode perguntar — “que eu nunca estou consciente das memórias ou imagens que sou capaz de evocar, e que não sou capaz de examinar diretamente os conceitos ou concepções que minha mente foi capaz de formar?”. A resposta para essa questão, por contrária que possa ser aos nossos frouxos hábitos discursivos, é enfaticamente

afirmativa. Uma idéia cognitiva (incluindo aqui perceptos, memórias, imagens e conceitos) não pode, a um só e mesmo tempo, ser tanto aquilo que apreendemos diretamente como aquilo pelo qual apreendemos outra coisa — algum objeto que não é uma idéia em nossas próprias mentes, mas que, diferente de nossas idéias subjetivas, é antes algo que pode ser um objeto de consideração ou de conversação para duas ou mais pessoas. Voltemos um instante à mesa sobre a qual se encontram taças e uma garrafa de vinho e à qual eu e você estamos sentados. Observamos anteriormente que nossa consciência desses objetos era uma experiência pública ou comum que ambos partilhávamos. Isso poderia não ser assim se cada um de nós estivesse consciente apenas de suas próprias idéias perceptivas — de suas próprias percepções sensíveis. Ser uma experiência comum a nós dois, partilhada por ambos, depende de que ambos apreendamos os mesmos objetos perceptivos — a mesa, a garrafa e as taças realmente existentes —, não as percepções exclusivamente privadas que temos desses objetos. Diferenças subjetivas interferem em nossas percepções de algo que é um único e mesmo objeto comum para duas ou mais pessoas. De um modo geral, não é difícil levá-las em consideração. Por exemplo, você e eu sentados à mesma mesa e olhando para a mesma garrafa de vinho comunicamos diferenças de percepção um ao outro. Eu digo que a garrafa de vinho parece ter a coloração de um borgonhês, ao passo que você diz parecer ter a coloração de vinho tinto. Após uma consideração momentânea, percebemos que minha percepção da garrafa como sendo de um tom avermelhado mais escuro se deve ao fato de que estou sentado com as costas voltadas para a fonte de luz e que, portanto, para mim, a garrafa se apresenta numa região penumbrosa. Já você está sentado numa posição em que a luz advinda da janela recai diretamente sobre a garrafa. Outro exemplo: você percebe as taças sobre a mesa como se fossem esverdeadas, enquanto eu as percebo como se

fossem acinzentadas. Você, então, pergunta se eu sou daltônico, e eu confesso que esqueci de mencionar esse fato. Apesar de tais diferenças subjetivas na percepção, o objeto percebido continua a ser o mesmo ente individual para os diferentes sujeitos percipientes — a mesma garrafa, as mesmas taças. As diferenças subjetivas, quando notadas, sejam elas explicadas ou não, não causariam àqueles a dúvida sobre estarem olhando para os mesmos objetos perceptivos ou não. Entretanto, isso pode acontecer nos exemplos seguintes. Se eu dissesse da garrafa que estamos ambos a olhar que ela está meio vazia e você dissesse que ela está meio cheia; ou se eu dissesse que ela está arrolhada e você que ela está desarrolhada; então poderíamos ter algumas dúvidas em relação ao nosso diálogo acerca do mesmo objeto perceptivo. Mas é difícil imaginar que ocorram tais diferenças de percepção, a não ser que estas se encontrem sob circunstâncias extraordinárias e anormais. Sob condições ordinárias, a experiência perceptiva é uma apreensão dos objetos percebidos. Isso se aplica também a memórias, imagens e concepções. O que é verdade acerca de um tipo de idéia cognitiva — nossas percepções — é verdadeiro em relação a todos os outros tipos de idéias cognitivas — todas elas os meios, não os objetos, da apreensão; aquilo pelo qual, não aquilo que, nós apreendemos. Há uma diferença importante entre nossas percepções e nossas outras idéias cognitivas — nossas memórias, imagens e concepções. No caso desta última, nossa apreensão direta ou imediata dos objetos que são postos ante nossas mentes deixa aberta a questão de se esses objetos são ou não coisas realmente existentes. Eis alguns exemplos de como essa questão vem à tona. Recordamos algum evento ou acontecimento passado. Mas sabemos que nossa memória pode nos pregar peças. Podemos, então, ser suficientemente cautelosos ao indagar se aquilo de que lembramos realmente aconteceu no passado tal como o estamos lembrando. Há várias maneiras de descobrir isso.

Recorrendo a elas, nos convencemos de que nossa memória estava correta, e assim julgamos que o evento que é objeto de nossa memória realmente aconteceu no passado tal como o lembramos. É necessário notar aqui que há dois atos separados da mente. O primeiro é um ato de simples apreensão — o ato por meio do qual rememoramos um evento passado. O segundo é um ato de julgamento mais complexo, resultante usualmente do raciocínio ou da ponderação de evidências relevantes. O juízo pode ser tanto afirmativo quanto negativo. Ele pode asseverar que aquilo de que nos lembramos de fato ocorreu no passado, ou pode consistir numa negação disso. Deslocando-nos da memória para a imaginação, descobrimos que a questão acerca da existência real dos objetos imaginados vem à baila de um modo diferente. Na maioria dos casos, os objetos da nossa imaginação são objetos que nós construímos a partir das nossas experiências de percepção; por exemplo, um centauro, uma sereia ou uma montanha de ouro. Porque nós mesmos os construímos, sabemos de imediato que eles são objetos puramente imaginários, de modo que nem por um momento hesitamos em negar-lhes a existência real. Todavia, somos às vezes levados a imaginar algo que pode realmente existir e ser percebido, seja por nós, seja por outra pessoa. É possível então que, após refletir, afirmemos a existência real do objeto por nós imaginado, embora não o tenhamos percebido. O que é verdadeiro acerca de apenas alguns objetos da imaginação o é para todos os objetos de pensamento. Pois, em relação a todos estes, que apreendemos por meio dos nossos conceitos ou concepções, nos defrontamos com a questão que clama por um juízo acerca da existência deles na realidade. Além de ser um objeto de pensamento, o qual pode ser público ou comum e, portanto, capaz de ser objeto da conversação de duas ou mais pessoas, é ele também algo que realmente existe? O objeto de pensamento, tal como eu e outros o

apreendemos e discutimos, permanece o mesmo não importa que resposta se dê a tal questão. Quando, por exemplo, anjos são concebidos como mentes sem corpos, eles são objetos de pensamento que podem ser discutidos por dois indivíduos, um dos quais afirma a sua existência real enquanto o outro a nega. Na medida em que diferem de julgamento acerca deste ponto, é possível que continuem a ter o mesmo objeto de pensamento ante suas mentes e que concordem, à luz da concepção de anjo que compartilham, que estes não ocupam lugar no espaço do mesmo modo que os corpos ocupam. A questão a respeito da existência real dos objetos perceptíveis não é levantada em relação à maioria das nossas percepções. Sob circunstâncias normais, fazemos o julgamento que assevera a existência real dos objetos de percepção no mesmo exato instante em que os apreendemos. Dizer que eu percebo a mesa à qual você e eu estamos sentados inclui dizer que ela realmente existe. Se eu tivesse a menor dúvida quanto à sua real existência, eu não ousaria dizer que a percebo. No caso das percepções normais, o simples ato de apreensão é inseparável do juízo que assevera a existência real do objeto apreendido. Alucinações e sonhos se mascaram de percepções. A pessoa que está sofrendo de uma alucinação acredita estar percebendo algo que, a rigor, não está percebendo de maneira alguma, porque o objeto da sua percepção anormal não existe realmente. Assim também no caso dos sonhos: enquanto estamos sonhando, sofremos a ilusão de estar tendo experiências de percepção. O sonhador sofre uma ilusão do mesmo tipo que o alucinado. Ambos são tomados por falsas experiências de percepção e, portanto, enganam-se no exato momento em que acreditam que esses falsos objetos perceptivos realmente existem. Uma vez desperto, ou curado da alucinação, a ilusão se desfaz. Nada nessas experiências era real; tudo era imaginado, nada percebido.  

5  

Os objetos apreendidos que são apresentados às nossas mentes por intermédio de nossas idéias cognitivas são objetos públicos ou comuns. Eles são objetos para duas ou mais pessoas, objetos sobre os quais elas podem conversar. E isso segue sendo verdadeiro tanto em relação aos objetos do pensamento, da memória e da imaginação, quanto em relação aos objetos da percepção. Pode ser útil considerar como é possível para algumas pessoas levar em consideração um determinado e mesmo objeto quando uma delas o está percebendo, outra o está lembrando, e outra ainda o está imaginando. Devo reservar para posterior consideração (para o próximo capítulo) a explicação de como duas ou mais pessoas podem discutir o mesmo objeto de pensamento. Desde que uma das três está percebendo o objeto que lhes é comum a todas e lhes é acessível por diferentes modos de apreensão, sabemos que o objeto em questão é um objeto realmente existente. Concedamos que o objeto físico em questão seja um papel de parede num quarto de mulher. A mulher está sentada em seu quarto olhando para o papel de parede enquanto conversa ao telefone sobre ele com seu marido. Para ela, o papel de parede é um objeto perceptivo; para ele, é um objeto lembrado. Embora a mulher e seu marido estejam operando com idéias que não são apenas numericamente distintas, mas também distintas em seu caráter (uma é um percepto, outra é uma memória), ambas as idéias podem apresentar o mesmo objeto às suas mentes. Ademais, se se trata de um e mesmo objeto que ambos estão a apreender, ainda que por diferentes modos de apreensão, deve-se seguir também então que o objeto que está sendo lembrado pelo marido deve ser uma entidade que também existe realmente, porquanto este mesmo objeto é um objeto que está sendo percebido por sua esposa. Se esse objeto não fosse uma entidade que também existe realmente, ela não o poderia estar percebendo. Até agora, então, podemos dizer que o papel de parede tem dois modos de existência:

existência real na parede e existência objetiva tanto como algo percebido quanto como algo lembrado. Um pouco mais tarde a mulher telefona para uma amiga sua e conversa sobre o papel de parede, pedindo-lhe conselhos sobre se deveria colocar outro papel de parede de idêntico padrão na parede do quarto de hóspedes. A amiga afirma nunca ter visto o papel de parede em questão. A mulher então lhe conta que o padrão é o mesmo do papel de parede do quarto da amiga, exceto pelo fato de as cores serem vermelho e branco, não azul e branco. Neste momento a amiga diz que é capaz de imaginar o papel de parede e recomenda que o coloque na parede do quarto de hóspedes. Para a amiga, o papel de parede não é nem um objeto percebido nem um objeto lembrado. É um objeto imaginado. Por mais que uma imagem seja diferente de um percepto e de uma memória, do mesmo modo ela é capaz de apresentar à mente da amiga o mesmo objeto que se apresenta à mulher por meio da percepção e ao marido por meio da memória. Trata-se, então, de um único e mesmo objeto de discurso para todos os três. Ademais, por ser um objeto de percepção para um deles, este que é um objeto comum para todos os três, conquanto apreendido de modos diferentes por cada um deles, deve ser uma entidade que também tem existência física na parede do quarto. Isso equivale a dizer que é bem possível não apenas lembrar, mas também imaginar um objeto que também existe realmente. Se duas pessoas estão conversando sobre um determinado objeto que é um objeto de memória ou de imaginação para ambas, ou um objeto de memória para uma e um objeto de imaginação para outra, a questão acerca de se este objeto comum é uma entidade que também existe realmente, ou que já tenha existido realmente alguma vez, ou que ainda venha a existir realmente no futuro, não pode ser facilmente respondida. Consideremos em primeiro lugar o caso de duas pessoas, ambas as quais estão se lembrando do mesmo objeto. Este objeto pode ser uma entidade que agora realmente existe e

que, portanto, é capaz de ser percebida por uma terceira pessoa. Se essa terceira pessoa não estiver participando da conversa, a conversa entre as outras duas sobre o que a princípio parece ser um objeto de memória comum exigirá que elas tomem duas precauções. Em primeiro lugar, elas devem fazer um esforço discursivo para estarem certas de que as suas memórias numericamente distintas têm o mesmo objeto. Elas o podem fazer dirigindo perguntas uma à outra acerca do objeto que está sendo lembrado e assim, com razoável certeza, chegarem à conclusão de que se trata do mesmo objeto para ambas. Em segundo, elas não devem se precipitar ao julgar se o objeto lembrado existe realmente agora ou se já existiu alguma vez e não existe mais. Garantir-lhes que estão ambas a lembrar-se do mesmo objeto dificilmente é garantia de que o objeto lembrado é uma entidade que tem ou teve existência real. Elas poderiam estar totalmente enganadas a esse respeito, ou estar erradas em alguma medida. Se elas não estiverem enganadas ou erradas, e se o objeto de que estão a se lembrar em comum já existiu realmente alguma vez, porém não mais existe, podemos dizer que uma e a mesma entidade tem existência como um objeto apreendido e existência real como uma coisa? A resposta deve ser negativa, na medida em que sabemos que o objeto que está sendo lembrado não existe mais realmente. Ainda assim, alguma vez existiu. O fato de que os seus dois modos de existência não sejam simultâneos, como no caso da percepção, não altera o princípio subjacente. O que foi dito aplica-se ao caso de duas pessoas, duas das quais estejam imaginando o mesmo objeto. Elas devem tomar as mesmas precauções de modo a assegurarem-se de que o objeto que cada uma está imaginando é comum a elas duas; e de modo a discutirem entre si se aquele objeto comum terá existência real em algum momento futuro ou não. Tal discussão, por exemplo, pode vir à tona em função de uma invenção que estão ambas imaginando. Se elas concordarem no juízo segundo o qual a peça particular do

aparato que elas inventaram usando a imaginação é um objeto imaginado que também é capaz de adquirir existência real no futuro, o princípio já postulado se aplica; a saber, que o objeto de suas imaginações pode também ter existência real em algum momento futuro como ente físico.  

6  

As visões opostas acerca da consciência e seus objetos já foram suficientemente expostas para os nossos presentes propósitos. Adiamos a consideração de certos problemas porque pode ser mais apropriado lidar com eles no próximo capítulo, no qual devemos nos ocupar das concepções opostas acerca da mente humana. O que ainda resta a ser tratado aqui são as consequências de se esposar uma ou outra das concepções opostas acerca da consciência e seus objetos. Examinemos primeiramente as consequências do erro filosófico. Vejamos então se a concepção que corrige esse erro nos permite evitar as consequências que consideramos repugnantes à razão e ao senso comum. Aqueles que sustentam a concepção errada acerca das idéias como estas sendo aquilo que cada indivíduo apreende diretamente — os objetos imediatos de que cada indivíduo está consciente — nos encerram a cada um de nós no mundo privado da própria experiência subjetiva. Pode-se pensar que, da experiência que temos de nossas próprias idéias, podemos de algum modo inferir a existência de coisas que não são idéias em nossas mentes — a existência de individualidades outras que nós mesmos, e de todos os outros corpos que, como é de senso comum, supomos serem constituintes do mundo físico. Entretanto, na medida em que não posso ter acesso direto ou consciência imediata de algo que não seja uma idéia em minha própria mente, fica difícil enxergar como alguma tentativa de argumentar a favor ou de provar a existência de uma realidade externa pode ser levada a cabo satisfatoriamente.

As últimas consequências a que somos então levados são tão drásticas e repugnantes que os nomes que lhes atribuímos são, em geral, pejorativos. Nenhum filósofo mentalmente são jamais desejou abraçá-las ou esposá-las, embora, a partir do errinho inicial de Locke, Hume tenha descoberto que aquele filósofo foi inexoravelmente levado a conclusões tão extremas ao ponto de o senso comum impedir que quaisquer outras pessoas as adotassem. Um desses posicionamentos extremados consiste no ceticismo total em relação à possibilidade de termos conhecimento de realidades externas às nossas mentes. Outro é o chamado solipsismo — a asserção segundo a qual tudo de quanto estou consciente é uma invenção da minha própria mente. O senso comum, à luz das experiências que todos temos, nos compele a rejeitar essas conclusões como absurdas. Não podemos torcer nossas mentes no sentido de considerar todas as conversas que temos com outras pessoas como completamente ilusórias — conversas nas quais você e eu dialogamos sobre objetos que ambos experimentamos, objetos a que ambos nos referimos por meio das palavras que usamos para nomeá-los, entre os quais se podem encontrar aqueles com os quais ambos podemos estar lidando ao mesmo tempo em que sobre eles conversamos. Certamente não estamos falando das idéias na minha mente ou das idéias na sua mente. Nem a Locke nem a qualquer dos seus seguidores, incluindo mesmo o cético David Hume, faltou o senso comum. Eles o tiveram em suficiente medida para que fossem prevenidos de adotar as conclusões extremas a que a premissa inicial errônea inexoravelmente conduz. Com efeito, Locke, na passagem de abertura em que anuncia o seu uso da palavra “idéia” para designar aquilo de que temos consciência quando estamos despertos, também anuncia que nas páginas seguintes do seu Ensaio se ocupará com a questão de onde vêm as idéias que estão em nossas mentes. Tendo argumentado, no Livro i do Ensaio, contra a visão de que nossas mentes são preenchidas com idéias inatas no

momento do nascimento, Locke prossegue no Livro n explicando como as mais simples das nossas idéias adentram nossas mentes pela ação das coisas externas físicas sobre os nossos órgãos dos sentidos. Não há nada em nossas mentes que não tenha sua origem última na experiência sensorial. A reiteração que Locke faz desse ponto revela o seu tácito reconhecimento da existência do mundo newtoniano de corpos em movimento, incluindo nossos próprios corpos e aqueles que atuam sobre nós estimulando nossos órgãos dos sentidos. Pode-se pensar que rejeitar como absurdas as conclusões a que a premissa inicial errônea inevitavelmente conduz resultaria em uma rejeição da própria premissa igualmente absurda. Esse é o modo como um argumento do tipo reductio ad absurdum deve funcionar. Quando nos é mostrado que fomos conduzidos a uma conclusão absurda por termos seguido logicamente as implicações de uma premissa inicial, espera-se que rejeitemos a premissa como se ela própria fosse absurda. Isso é o que deveria ter acontecido à premissa inicialmente falsa de Locke. Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário, o erro filosófico de que ora nos ocupamos foi, de fato, elaborado pelo esforço de evitar-lhe as conseqüências absurdas de um outro modo, um modo que não envolve a rejeição da premissa inicial como intrinsecamente absurda. Qual foi o outro modo? Consistiu em dizer que as idéias em nossas mentes — se não todas, ao menos algumas —, além de serem os objetos de que estamos direta e imediatamente conscientes, são também representações de coisas que realmente existem no mundo externo ou físico. Destaquei a palavra que descreve o erro. Quando podemos dizer que uma coisa representa outra? Apenas quando observamos alguma semelhança entre o que é dito ser a representação e a coisa supostamente representada, como quando dizemos que um retrato é a representação da pessoa retratada. Tendo por base esta compreensão do que seja uma representação, como podem nossas idéias (os únicos objetos

com os quais temos conhecimento direto) serem consideradas representações de coisas realmente existentes (das quais não podemos estar diretamente conscientes em absoluto)? Não há resposta satisfatória para essa questão. Em face deste problema, é impossível sustentar que as idéias são os únicos objetos que apreendemos diretamente e que, ademais, são também representações de realidades que nunca são objetos apreendidos por nós diretamente, pois só se pode dizer que uma representa a outra se ambas puderem ser diretamente apreendidas e comparadas. Não obstante, converter ilicitamente idéias em representações reforçou de algum modo a crença infundada em um mundo externo, independente, de existências reais, um mundo com o qual nenhum de nós, se aprisionados à vida privada de nossas próprias mentes, poderia alguma vez ter tido contato consciente. O endosso dessa crença irracional é um mistério que permaneceu não resolvido. As inúteis tentativas de resolvê-lo produziram uma variedade de outros mistérios, resultando em obscuridades e perplexidades que tornaram enigmática a filosofia moderna nos séculos XIX e XX. O pensamento moderno poderia ter tido um melhor fim se, em vez de ter se enredado em todos os seus serpentinos volteios e torções, no sentido de deslindar-se das absurdidades resultantes do esforço de considerar todas as idéias como os únicos objetos diretamente apreendidos, tivesse substituído a visão oposta. Ademais, o erro seguinte consiste em considerar algumas idéias como representações de realidades que não podem ser diretamente apreendidas. A visão oposta não apenas nos salva facilmente do ceticismo e do solipsismo como também nos salva dos inúteis esforços de provar a existência de uma realidade física, externa. Em nossas experiências perceptivas, tomamos conhecimento direto tanto da existência de outros corpos como do nosso próprio corpo. Ademais, todos os outros objetos sobre os quais nos pomos a dialogar uns com os outros — os eventos ou acontecimentos de que nos lembramos, as ficções que

podemos imaginar, os objetos do pensamento conceptual, bem como os objetos da nossa experiência perceptiva — são todos públicos, comuns, objetos a respeito dos quais podemos nos comunicar mutuamente. Não falamos — a rigor, não o podemos — um com o outro acerca de nossas próprias idéias — nossos perceptos, nossas memórias, nossas imagens, nossos pensamentos ou conceitos. De nossos sentimentos subjetivos, sim; mas não de idéias que apresentam objetos a nós. Estamos conscientes apenas dos objetos apreendidos, não das idéias por meio das quais os apreendemos. A profunda diferença que faz substituir a visão correta pela errada pode ser resumida como se segue. Quando idéias são tratadas como as únicas coisas das quais temos conhecimento direto por meio da consciência imediata que temos delas como objetos apreendidos, somos obrigados a viver em dois mundos sem nenhuma ponte entre eles. Um é o mundo da realidade física, no qual nossos próprios corpos ocupam espaço, se movem e interagem com outros corpos. Nossa crença na existência desse mundo é uma fé cega e irracional. Outro é o mundo completamente privado em que cada um de nós está encerrado — um mundo em que nossa única experiência é a experiência constituída pela consciência das nossas próprias idéias. A presunção de que outros indivíduos também e, similarmente, vivem no mundo privado de suas próprias experiências conscientes é uma fé tão cega quanto a crença de que todos vivemos juntos no único mundo da realidade física externa. Quando corrigimos o erro inicial que engendra todos esses resultados, descobrimo-nos vivendo juntos no mundo da realidade física, um mundo do qual tomamos conhecimento direto em nossas experiências perceptivas. Não apenas temos contato corporal um com o outro neste mundo; também nos comunicamos um com o outro a seu respeito quando nos pomos a discutir objetos de percepção com os quais podemos interagir conjuntamente.

Este não é o único mundo em que podemos viver juntos. Também vivemos no mundo público constituído por nossas experiências comuns de objetos distintos daqueles objetos perceptivos que também são coisas físicas perceptíveis. Estou me referindo aqui a eventos passados ou a acontecimentos de que nos lembramos, a objetos imaginários assim como a coisas que imaginamos que podem também existir ou serem capazes de existência real, e a todos os objetos de pensamento. Há ainda um terceiro mundo no qual vivemos — o mundo da nossa experiência estritamente privada e subjetiva, no qual cada um de nós está consciente das suas próprias sensações corporais, sentimentos e emoções — experiências nas quais estamos totalmente sozinhos. Talvez fosse mais acurado e conforme ao senso comum falar desses três reinos de experiência como três dimensões do único e mesmo mundo, não como três mundos separados. As três dimensões consistem em (1) objetos perceptivos que são coisas ou eventos realmente existentes; (2) todos os outros objetos que podem ou não existir, podem ter existido no passado, mas não mais existem, e objetos que não existem no presente, mas podem vir a existir no futuro; e (3) as experiências subjetivas que existem apenas para a mente individual que as têm. As duas primeiras são públicas; a terceira, privada. Além disso, há as idéias cognitivas que têm existência na mente, mas, sendo os meios pelos quais apreendemos todos os objetos que apreendemos, eles mesmos nunca são apreendidas. Apenas quando falhamos em rejeitar o erro fundamental introduzido por Locke acerca da consciência e de suas idéias, e talvez por Descartes antes dele, é que convém falar, por um lado, do reino da realidade física e, por outro, do reino da experiência mental consciente como dois mundos separados — a relação entre os quais não podendo ser explicada satisfatoriamente por nós. O erro filosófico, quando visto em todas as suas consequências, é repugnante tanto à razão como ao senso comum. A correção desse erro produz o resultado oposto —

uma visão coerente da consciência e de seus objetos que não envolve nenhuma crença inexplicável e que concorda com o senso e a experiência comuns.

CAPÍTULO II O intelecto e os sentidos  

1 Uma vez mais, comecemos a partir daquilo que todos nós já sabemos. Referimo-nos ordinariamente a qualquer organismo vivo que tenha alguma consciência de si mesmo e do ambiente que o circunda como tendo uma mente. Também atribuímos inteligência a esse organismo se, além de tal consciência, ele reage de alguma maneira discriminadora em relação ao ambiente de que tem consciência. Poderíamos acrescentar, talvez, que geralmente consideramos a mente e a inteligência como os meios pelos quais os organismos sencientes aprendem a partir da experiência e modificam seus comportamentos em conformidade a esse aprendizado. Por esses critérios, os únicos animais a que não poderíamos atribuir uma mente ou inteligência seriam aqueles cujo comportamento é completamente determinado por padrões de comportamento inatos e pré-formados aos quais damos o nome de instintos. Os padrões de comportamento instintivos de insetos tais como abelhas, formigas e traças são adequados para todos os propósitos da vida e da sobrevivência das espécies. Por conseguinte, não precisam aprender a partir da experiência ou modificar seus comportamentos em decorrência desse aprendizado. Justifica-se, então, dizermos que eles não têm nenhuma mente, nenhuma inteligência. Entre os vertebrados, e especialmente entre os mamíferos superiores, alguns comportamentos têm caráter instintivo, mas não todos. Com efeito, na medida em que ascendemos na escala zoológica, o conjunto de comportamentos que são modificados pelo aprendizado aumenta em relação ao conjunto que permanece puramente instintivo e não modificado pela experiência.

Por esse critério, acreditamos estar certos ao dizer que os animais superiores têm mentes e inteligência em maior grau que os animais inferiores. Certamente, sendo organismos sencientes, todos têm órgãos dos sentidos; e é pelo funcionamento dos seus diversos sentidos que eles aprendem a partir da experiência. Se nos voltarmos agora de todos os organismos infra- humanos para o homem, uma diferença radical vem à tona. No sentido estrito do termo instinto, a espécie humana não tem instintos — nenhum padrão de comportamento inato e préformado. Temos um pequeno número de pequenos reflexos inatos, apenas alguns sendo congênitos. Temos também o que poderia ser chamado de impulsos ou condutas instintivas. Mas, levando esses impulsos em consideração, os membros da espécie humana se comportam de maneiras amplamente variadas. Eles não manifestam todos um único padrão de comportamento, tal como manifestam todos os membros de uma espécie particular de abelhas, formigas ou traças. Apesar dessa diferença radical entre os seres humanos e as outras espécies animais, permanece ainda apropriado usar palavras como “mente” e “inteligência”, quando aplicadas a seres humanos e a outros animais, no mesmo sentido. Para nós como para eles, mente ou inteligência querem dizer faculdades ou potências empregadas no aprendizado a partir da experiência e na modificação de comportamento decorrente de tal aprendizado. Porque diferimos dos outros animais por sermos totalmente ― por John Locke, George Berkeley, David Hume e por muitos outros que vieram depois deles. Esta é, como tentarei mostrar, a resposta errada — um engano que acarreta sérias consequências. A segunda alternativa constitui a resposta que prevaleceu nos tempos antigos e durante a Idade Média. Ela continuou a existir nos tempos modernos, notavelmente nas filosofias de René Descartes, Immanuel Kant, Georg Friedrich Hegel, e seus seguidores. Esta é, no meu julgamento, a resposta correta, que corrige o erro e evita as consequências a que conduz.

Entre aqueles que dão a resposta correta, alguns vão muito longe e seu extremismo necessita de correção. Antes de nos debruçarmos sobre isso, consideremos os pontos que distinguem a resposta certa da errada. O primeiro ponto, repisado de novo e de novo nos escritos de Platão e Aristóteles, é que os objetos que apreendemos se dividem entre aqueles que são sensíveis e aqueles que são inteligíveis. A totalidade dos objetos que apreendemos pela percepção sensível pertence, certamente, ao primeiro grupo. Esse grupo também inclui os sensíveis particulares que podemos lembrar e imaginar — tal como a nossa memória da mesa de jantar à qual sentamos na última noite, ou nossa imaginação da casa que estamos planejando construir. Ao segundo grupo pertencem todos os objetos puramente inteligíveis, como os objetos do pensamento matemático, ou tais objetos metafísicos na condição de entes puramente espirituais; por exemplo, almas, anjos e Deus. Também estão incluídos objetos de pensamento como a liberdade, a justiça, a virtude, o conhecimento, o infinito, e mesmo a própria mente. Nenhum desses pode ser percebido pelos sentidos. Nenhum é um sensível particular. Um segundo ponto se segue imediatamente do primeiro. Na medida em que os objetos que apreendemos recaem desprovidos de instintos, precisamos da mente ou inteligência em um grau superior. Todos os nossos ajustamentos ao ambiente devem ser aprendidos. Muito do aprendizado realizado pela mente ou inteligência humana é baseado na experiência sensível. Temos órgãos dos sentidos que são genericamente os mesmos que os órgãos dos sentidos possuídos por outras espécies. A extensão da experiência que o funcionamento deles nos prevê define limites ao nosso aprendizado.  

2  

Observados todos esses apontamentos bem óbvios, estamos preparados para enfrentar a questão para a qual

respostas certas e erradas foram dadas ao longo dos vinte e cinco séculos de pensamento ocidental. A questão ocupa- -se da mente humana e das suas relações com os sentidos. Seria a mente humana uma potência cognitiva única, embora complexa, que envolve o funcionamento dos nossos sentidos e o que quer que se siga a este funcionamento, tal como a memória e a imaginação, ou deveria ser ela dividida em duas potências cognitivas bem distintas — os sentidos e tudo o mais a que estes dão origem, por um lado, e o intelecto, capaz de entender, julgar e raciocinar, por outro? A questão se nos apresenta com alternativas irreconciliáveis. Uma dessas alternativas identifica a mente humana com os sentidos, incluindo todo o espectro de consequências que se seguem do fato de termos sensações ou percepções sensoriais. A outra alternativa divide a mente humana em duas partes distintas — sentidos e intelecto — e considera que essas duas partes perfazem funções cognitivas bem diferentes. A primeira alternativa constitui a resposta avançada nos tempos modernos, começando por Thomas Hobbes e levada adiante por seus sucessores na filosofia britânica num desses dois grupos distintos, é forçoso que tenhamos duas potências distintas para apreendê-los — os sentidos, de um lado, e o intelecto, do outro. Pode ser útil repetir um terceiro ponto, já mencionado. Os sentidos — ou a sensibilidade — incluem uma série de potências, tais como as potências de perceber, lembrar e imaginar. O intelecto também inclui uma série de potências, como as de entender, julgar e raciocinar. Reunimos às vezes tudo quanto resulta do exercício de nossas potências sensitivas sob a categoria da experiência sensível. Assim, também, reunimos todas as operações das nossas potências intelectivas sob a categoria do pensamento. Para além desses três pontos, compartilhados por todos que dão essa resposta à questão, certas divergências devem ser observadas. Platão e Descartes, e posteriormente também Kant e Hegel, vão muito longe na separação que fazem dos

dois domínios — o sensível e o inteligível. Isso resulta do fato de que eles atribuem ao intelecto uma autonomia que faz do seu funcionamento, em parte ou integralmente, independente da experiência sensível. Isso levou Platão e Descartes a preencherem o intelecto com idéias inatas — idéias que em hipótese alguma derivam da experiência sensível. As categorias transcendentais de Kant são uma outra versão deste mesmo erro. Comentei este erro longamente alhures, num livro intitulado Os anjos e nós, em que o intelecto humano é abordado como se fosse um anjo encapsulado ou associado a um corpo humano. O extremismo que acabamos de salientar é evitado pelo reconhecimento, em primeiro lugar, de que o intelecto depende da experiência sensível em todas as suas apreensões primárias; e, em segundo lugar, de que, enquanto alguns objetos de pensamento são puramente inteligíveis, nossa experiência sensível nos dá acesso a objetos que, com raras exceções, nunca são puramente sensíveis. Este segundo ponto precisa de uma maior explicação. Os objetos da nossa experiência sensível são, em sua maior parte, objetos que não apenas percebemos, mas também entendemos. Em raras e excepcionais ocasiões, quando apreendemos algo como uma individualidade única que não conseguimos classificar de maneira alguma, é que trata-se de um objeto ininteligível. Normalmente, os objetos sensíveis que percebemos, os percebemos como particulares de um tipo ou de outro — um gato ou cachorro em particular, um chapéu ou casaco em particular, uma árvore ou flor em particular. Uma individualidade particularizada é um objeto tanto inteligível quanto sensível. Não apenas o percebemos como esta coisa individual. Entendemos tratar-se também de uma coisa particular de um certo tipo. Os sentidos e o intelecto cooperaram para a nossa apreensão desse objeto. Ele não seria um particular se não fosse, a um só tempo, um objeto tanto sensível quanto inteligível.

Em contraste, objetos de pensamento como a liberdade, o infinito e Deus são puramente inteligíveis. Direi mais acerca do caráter especial desses objetos mais tarde. Gostaria de acrescentar aqui um último comentário acerca da resposta correta para a questão da mente humana e dos sentidos. Isso nos permite, retrospectivamente, corrigir o uso omni-compreensivo que Locke faz da palavra “idéia”. No capítulo anterior, nos debruçamos inteiramente sobre o erro de Locke ao considerar as idéias como se fossem sempre os objetos da nossa compreensão quando estamos conscientes ou quando estamos pensando em alguma coisa. Seguimos o uso omni-compreensivo que ele faz da palavra “idéia” para cobrir sensações, percepções, memórias, imagens, sentimentos, e mesmo aquilo que, em certas passagens, ele denominou idéias gerais ou abstratas. Esse uso elástico da palavra “idéia” se encaixou com o uso que ele faz de outras palavras como “mente” ou “entendimento” para se referir a uma única faculdade ou potência cognitiva, de caráter essencialmente sensitivo. A visão oposta, que acabamos de abordar — a visão que atribui à humanidade duas potências ou faculdades cognitivas distintas, a sensitiva e a intelectual —, insta-nos a mudar o modo como usamos essas palavras. De acordo com essa visão, nossas percepções, memórias, e imagens não são idéias. Essa palavra deveria ser reservada exclusivamente para designar os conceitos ou concepções por meio dos quais nós apreendemos ou objetos de pensamento puramente inteligíveis ou, quando nossos intelectos cooperam com nossas potências sensitivas, objetos sensíveis particulares que são também inteligíveis. Nem a expressão “entendimento humano” deveria ser usada, como Locke e Hume a usaram, para designar a mente humana como um complexo de potências sensitivas. O vocábulo português “entendimento” traduz o grego nous e o latim intellectus. É paradoxal, para dizer o mínimo, que essa expressão tenha sido adotada por Locke e Hume para expor

uma concepção da mente humana que nega a presença do intelecto como algo bem distinto dos sentidos. Quando, consoante a visão oposta, a palavra “idéia” é usada exclusivamente para designar conceitos ou concepções que são instrumentos por meio dos quais compreendemos o que quer que tenha inteligibilidade, deveríamos lembrar que, conforme esta visão, idéias ou conceitos não são aquilo que compreendemos, mas somente aquilo pelo qual apreendemos os objetos de pensamento, aquilo que de fato compreendemos. Em nosso cotidiano, coloquialmente, frequentemente violamos essa precaução de ordem crítica. Falamos ou escrevemos sobre esta ou aquela idéia como se se tratasse do objeto em consideração. Eu sou tão culpado por este coloquialismo quanto qualquer outra pessoa. Escrevi livros e ministrei palestras sobre as grandes idéias. Utilizei o vocábulo “idéia” nos títulos das minhas obras como se estivesse me referindo a um objeto de pensamento que estivesse sob consideração naquele momento. Meu único pedido de desculpas por esse uso incorreto e impreciso do vocábulo “idéia” é que seria estranho sempre falar ou escrever com a precisão necessária. Em vez de intitular um livro A idéia de liberdade, eu teria de intitulá-lo Liberdade como um objeto de pensamento. Em vez de palestrar ou escrever sobre as grandes idéias, eu teria de me referir às matérias sobre as quais discurso como aos grandes — básicos ou fundamentais — objetos de pensamento.  

3  

A visão errada da mente, tomada sem qualificação por Hobbes, Berkeley e Hume, pode ser simplesmente postulada nos seguintes termos: a mente, na medida em que funciona como um instrumento cognitivo, é uma faculdade inteiramente sensitiva, desprovida de qualquer traço de intelectualidade. Todas as suas “idéias” ou “pensamentos” (coloquei essas palavras entre aspas para chamar a atenção para o seu uso indevido) são sensações, percepções sensíveis, ou imagens; e suas imagens são percepções sensíveis recordadas ou

construídas a partir de materiais fornecidos a partir da experiência sensível. “Imaginação”, escreve Hobbes, “não é nada mais que sentido decadente; e é encontrada no homem e em muitas outras criaturas vivas, assim como o dormir e o caminhar”. Em uma passagem subsequente, ele nos diz que “a imaginação que vem à tona no homem [...] por meio de palavras, ou outros sinais voluntários, é o que geralmente denominamos entendimento, e é comum ao homem e à besta”. Berkeley, similarmente, divide todas as idéias entre aquelas que pertencem aos sentidos e aquelas que pertencem à imaginação, distinguindo as primeiras das últimas por sua vivacidade; e ele também utiliza imprecisamente o termo “entendimento” para se referir à potência cognitiva da mente nos atos de sentir e imaginar. Assim como Hume, que em sua Investigação sobre o entendimento humano “divide todas as percepções da mente em duas classes ou espécies, que são distinguidas por seus diferentes graus de força ou vivacidade. As menos fortes e vivazes são comumente denominadas pensamentos ou idéias”; as mais vivazes Hume as denomina “impressões”, por meio das quais ele quer se referir a “todas as nossas percepções mais vividas, quando escutamos, vemos ou sentimos”. Em todas essas asserções, dois erros se combinam: um é o erro de considerar nossas percepções e imagens, indevidamente denominados “idéias”, como se fossem os objetos imediatos da nossa consciência; o outro é o erro de reduzir a mente humana a uma faculdade puramente sensitiva, apta a estar consciente apenas do que pode ser percebido por meio dos sentidos ou, como resultado das nossas percepções sensíveis, do que pode ser imaginado. Omiti as referências ao Ensaio sobre o entendimento humano de Locke porque, na medida em que os mesmos dois erros são cometidos neste livro, ele também contém passagens em que o autor dá notícias de certas atividades da mente humana que são antes intelectivas do que sensitivas. Uma mente que se caracterizasse por ser puramente sensitiva não

poderia realizar tais atividades. Apesar disso, Locke não reconhece explicitamente que a mente humana consista em dois conjuntos distintos de potências cognitivas — aquelas pertencentes aos sentidos, por um lado, e aquelas pertencentes ao intelecto, por outro. Nem todas as nossas “idéias”, declara Locke, são derivadas dos sentidos. Algumas são derivadas da reflexão da mente acerca de suas próprias operações. Ela está consciente de suas próprias atividades — do seu perceber, do seu lembrar, do seu imaginar, e assim por diante. De acordo com a visão oposta acerca da mente humana, segundo a qual esta é constituída tanto pelo intelecto quanto pelos sentidos, apenas a potência intelectiva é reflexiva, não a sensitiva. O intelecto tem uma autoconsciência que os sentidos não têm. E este fato que confere significado especial à distinção introduzida por Locke entre idéias sensitivas e idéias reflexivas, uma distinção que não será encontrada nem em Hobbes, nem em Berkeley, nem em Hume. A segunda qualificação introduzida por Locke deve ser encontrada em passagens em que ele lida com o que ele chama “idéias gerais ou abstratas”. Apenas o homem tem tais idéias; “os brutos não abstraem”, ele sustenta. Uma vez mais, é a visão oposta que confere significado especial a este ponto no pensamento de Locke; pois, de acordo com essa visão, a abstração é uma atividade do intelecto, não dos sentidos. A mente humana só tem idéias abstratas (ou seja, conceitos) porque se constitui não apenas dos sentidos, mas igualmente de um intelecto. Neste segundo ponto, os outros três autores — Hobbes, Berkeley e Hume — são mais enfaticamente negativos. Eles são mais consistentes que Locke em reconhecer que, na medida em que a mente humana é uma faculdade inteiramente sensitiva, não pode ter quaisquer idéias abstratas. Berkeley e Hume, que seguiram a Locke e leram seu Ensaio, o atacam explicitamente por sua inconsistência nesse ponto. Ele deveria ter percebido que nada de genérico ou abstrato

pode ser encontrado em todo o espectro das percepções sensíveis e imaginações. A crítica que eles dirigem a Locke é bem fundamentada num certo sentido. Desde que Locke não reconhece a presença de um intelecto humano como algo bem distinto de todas as outras potências humanas sensitivas, sua tentativa de explicar idéias gerais e abstratas vacila e fracassa. Ele afirma a existência delas, mas não consegue explicá-las. Ele as trata como se fossem fotografias compostas, nas quais os detalhes que as particularizam são turvados pela superposição de imagens sobre imagens. Isso, como veremos, está muito distante do caráter abstrato de um conceito intelectual, produzido por um ato de entendimento, que é radicalmente diferente de qualquer ato sensitivo ou imaginativo. Chegamos agora ao cerne da questão entre essas visões opostas da mente humana — uma que nega o intelecto, outra que o afirma. Elas constituem respostas opostas a uma questão: Temos ou não temos idéias abstratas (ou seja, conceitos), bem como percepções sensoriais e imagens? Hobbes, Berkeley e Hume dizem, categoricamente, que nós não as temos. Locke tergiversa. Ele deveria ter dito que nós não as temos, mas por uma razão muito boa, que surgirá atualmente, ele não poderia tê-lo feito. Dos três, o Bispo Berkeley leva ao máximo o seu esforço para expor o que ele considera ser o absoluto nonsense de supor que qualquer idéia possa ser geral ou abstrata. Uma grande parte da introdução ao seu Princípios do conhecimento humano é ocupada com uma refutação dessa doutrina e com uma crítica a Locke por tê-la abraçado. Por questão de brevidade, podemos tomar o resumo que Hume faz do argumento, ao qual ele anexa uma nota de rodapé expressando a sua dívida para com Berkeley Que qualquer homem tente conceber um triângulo em geral, que não seja isóscele nem escaleno, nem tenha qualquer tamanho ou proporção particular de lados; e ele logo perceberá o absurdo de todas as noções escolásticas em relação à abstração e às idéias gerais.

Digamo-lo em poucas palavras: se tudo o que temos são percepções sensíveis e imagens derivadas dos sentidos, então não podemos nunca estar conscientes de nada a não ser de um triângulo em particular — um triângulo que seja ou isóscele ou escaleno ou equilátero, um triângulo que tenha um certo tamanho ou área, um triângulo cujas linhas sejam ou pretas ou de alguma outra cor, e assim por diante. O que se diz aqui a respeito de triângulos pode ser dito no mesmo sentido em relação a tudo o mais. Nunca estamos conscientes de nada senão de individualidades em particular, seja perceptiva ou imaginativamente, isto é, desta ou daquela vaca, desta ou daquela árvore, desta ou daquela cadeira, cada uma com suas próprias características individuantes, o que as torna um exemplo particular de um certo tipo de coisa. Podemos ter um nome para esse tipo específico, como fazemos quando usamos palavras tais como “triângulo”, “vaca”, “árvore” e “cadeira”, mas não temos idéia alguma dos próprios tipos enquanto tais. Não temos nenhuma idéia ou compreensão da triangularidade enquanto tal, ou de como alguma individualidade deve ser para poder ser considerada um triângulo, uma vaca, uma árvore ou uma cadeira em particular. Apenas as nossas palavras (como estas acima, as quais chamamos “substantivos comuns”) são genéricas. Nada na realidade é genérico; tudo é particular. Assim, também, nada na mente é genérico; tudo é particular. A generalidade existe apenas nas palavras da nossa linguagem, nas palavras que são nomes comuns, não nomes próprios. Aqueles que consideram a mente humana como composta tanto de potências intelectivas quanto sensitivas não têm qualquer dificuldade em encarar frontalmente o desafio proposto por Hume. Por meio de um conceito abstrato, compreendemos o que é comum a todas as vacas, árvores e cadeiras em particular que possamos perceber ou imaginar.  

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Que sérias consequências decorrem da concepção errônea da mente segundo a qual o intelecto é negado e, com ele,

também o são os conceitos ou as idéias abstratas? A consequência é uma doutrina inerentemente insustentável chamada nominalismo, a qual é tão repugnante à razão e ao senso comum quanto os -ismos (subjetivismo, solipsismo e o completo ceticismo) que, no capítulo precedente, assinalamos como sendo consequências do engano em relação aos objetos de consciência. Uma consequência mais remota é aquela que afeta a nossa compreensão acerca do lugar do homem na natureza. Antes de chegar a esse ponto, tentarei explicar por que o nominalismo é inerentemente insustentável. Mostrar ser este o caso equivale a mostrar que a concepção da mente que inevitavelmente conduz ao nominalismo é também inerentemente insustentável. O respeito de Locke pela razão e pelo senso comum o preveniu de se tornar um nominalista, embora a sua falha em reconhecer a presença no homem de uma potência intelectual distinta o tenha impedido de dar uma resposta adequada ao problema das idéias genéricas e abstratas. Na concepção de Locke, os nomes que usamos derivam sua significação das idéias a que se referem em nossas mentes. Uma vez que nossa linguagem inclui nomes que têm significado geral, tais como “triângulo”, “vaca”, “árvore”, e assim por diante, devemos ter idéias gerais. De outro modo esses nomes não poderiam ter qualquer significado, pois não haveria nada a que se referirem. Corrigindo a concepção errônea que Locke tem das idéias como sendo os objetos dos quais estamos diretamente conscientes, podemos recolocar o seu argumento nos seguintes termos: a menos que, por meio dos nossos conceitos abstratos, possamos compreender a triangularidade enquanto tal ou aquilo que é comum a vacas, árvores e cadeiras em particular, os nomes genéricos ou comuns que usamos não podem ter nenhum significado, pois não se referem a este triângulo em particular ou a esta vaca em particular, mas a triângulos em geral e a vacas em geral.

Como os nominalistas, que negam que qualquer coisa de genérico exista, seja na realidade seja na mente humana, lidam com esse argumento e explicam o significado dos nomes genéricos, os quais, diga-se, eles também utilizam? Eles dizem que um substantivo comum, como “cachorro”, é um nome genérico, ou um nome que é genérico em sua referência, porque o aplicamos indiferentemente a qualquer ente num universo de entes particulares, isto é, sem discriminar entre este e aquele ente em particular de alguma maneira que faria a palavra “cachorro” não ser aplicável a ambos. O significado geral da palavra “cachorro” é tal, sustentam eles, que eu posso usá-la hoje, ao ver um poodle descer a pista, e amanhã, ao ver um airedale descer a pista, em ambas as ocasiões podendo dizer igualmente “eu vejo um cachorro descer a pista”. Se, em ambas as ocasiões, uma outra pessoa presente ouvir minha afirmação e não estiver olhando na mesma direção que eu, ela compreenderá que me refiro a um cachorro em particular, mas não saberá sem olhar se me refiro ao mesmo cachorro de ontem ou a um cachorro diferente. Ambas as hipóteses são possíveis. A explicação oferecida, ora em exame, se reduz à assertiva de que um nome abstrato ou genérico é aquele que pode ser aplicado a duas ou mais individualidades que são a mesma em certo sentido, ou que têm alguma característica ou características em comum. Afirmá-lo é, decerto, equivalente a reconhecer que dois ou mais objetos percebidos, a que um nome comum pode ser aplicado, são entes particulares, sendo cada um dos quais um ente particular único ou singular, mas também cada um dos quais um ente particular de um certo tipo, ao qual o nome comum ou genérico se aplica. Se todos esses entes particulares não tivessem algo em comum, ou não fossem o mesmo em alguma medida, então o mesmo e único nome comum ou genérico não poderia ser corretamente aplicado a todos eles indiferentemente, como insistem aqueles que aderem a essa concepção.

Se, neste ponto, eles negassem que dois ou mais entes podem ser o mesmo em algum aspecto, ou que tivessem qualquer coisa de comum, então a única explicação que poderiam nos oferecer estaria invalidada na base, deixandonos enfim sem nenhuma explicação. Suponhamos, então, que eles não chegassem ao extremo de negar que dois entes pudessem ter qualquer coisa de comum ou ser o mesmo em algum aspecto. Estamos, então, obrigados a indagar-lhes se somos capazes de apreender o que é comum a dois ou mais entes ou de apreender os aspectos em que eles são o mesmo. Se a resposta que derem a essa questão for negativa, novamente eles invalidaram na base a própria explicação acerca do significado dos nomes comuns na condição de serem aplicáveis a dois ou mais itens indiferentemente (isto é, com respeito a algum ponto em que não sejam diferentes). Se não podemos apreender qualquer aspecto em que dois ou mais itens sejam o mesmo, não podemos aplicar-lhes o mesmo e único nome indiferentemente. A única alternativa que lhes foi deixada aberta é uma resposta afirmativa à seguinte questão: somos capazes de apreender aquilo que é comum a dois ou mais entes, ou de apreender aspectos nos quais eles são o mesmo? Se eles responderem afirmativamente, porque devem ou dar essa resposta afirmativa ou admitir que não têm nenhuma explicação a oferecer, tal resposta equivalerá, então; a uma refutação do seu posicionamento original. Afirmar que aquilo que é comum a dois ou mais entes, ou que aquilo que é o mesmo em relação a eles, pode ser apreendido, é estatuir um objeto de apreensão que é bem distinto do objeto apreendido quando da nossa percepção deste ou daquele ente particular enquanto tal. Mas essa é precisamente a posição que os oponentes do nominalismo consideram como a solução correta para o problema; a saber, que há outros objetos de apreensão que os entes particulares

percebidos. Mas é precisamente isso que é inicialmente negado por aqueles que negam o intelecto e, como ele, todos os conceitos abstratos ou idéias gerais.  

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Para rejeitar o nominalismo como uma doutrina que se autoinvalida não é preciso chegar ao extremo oposto — aquele a que Platão chegou. Atribuindo ao homem um intelecto independente dos sentidos, Platão também conferiu realidade independente aos objetos inteligíveis — os arquétipos universais. Em sua visão, são esses arquétipos eternos e universais — do triângulo, da vaca e de tudo o mais — que verdadeiramente têm ser, e mais realidade que os sempre mutáveis entes particulares do mundo sensível. Não é necessário chegar a esse extremo para corrigir a errônea concepção da mente humana que considera esta como uma faculdade totalmente sensitiva e que, negando o intelecto, fica compelida a adotar um insustentável nominalismo. Dizer que os objetos do pensamento conceitual são sempre universais não é dizer que esses universais existem como tal na realidade, independentes da mente humana que os apreende. Basta dizer que os universais inteligíveis do pensamento conceitual são públicos do mesmo modo que os sensíveis particulares da percepção, memória e imaginação também o são. Assim como duas ou mais pessoas podem conversar uma com a outra sobre um objeto perceptual ou evento lembrado que é apreendido comumente por elas, assim também duas ou mais pessoas podem conversar sobre a liberdade ou a justiça como objetos comuns do pensamento, ou sobre a triangularidade ou a circularidade, ou sobre as diferenças entre a árvore e o arbusto como tipos distintos de vegetação. Elas o podem fazer sem qualquer referência aos particulares sensíveis que podem fornecer exemplos concretos dos universais sobre os quais estão debatendo. Pode ser útil a elas referir-se a tais particulares, quando se dispõe deles, para

deixar claro que elas têm o mesmo objeto de pensamento ante suas mentes; mas há outras maneiras de identificar um objeto de pensamento no sentido de alcançar tal clareza. Uma questão ainda permanece. Estabelecido que os universais que apreendemos como objetos inteligíveis podem ser objetos de consideração e discussão para duas ou mais mentes, o que pensar acerca da realidade desses universais? No caso dos objetos perceptuais, essa questão, como já observamos, não se coloca. O que é percebido é uma coisa individual realmente existente. Se a coisa realmente não existe, não pode ser percebida; do contrário, estaríamos tendo então falsas percepções, estaríamos alucinando ou sonhando. No caso dos objetos da memória ou imaginação, podemos perguntar se o objeto lembrado alguma vez existiu no passado ou se, talvez, ainda existe; podemos perguntar se o objeto imaginado pode vir a existir no futuro. Há várias maneiras de averiguar as respostas a tais questões. Enquanto os objetos universais do pensamento nunca realmente existem como tal, isto é, existem na realidade independentes da nossa mente, algum grau de realidade é exigido por eles. Talvez possamos apontar para exemplos particulares deles que realmente existam. Podemos nos lembrar de exemplos particulares deles que uma vez existiram na realidade. Podemos inclusive imaginar exemplos particulares deles que venham a ter existência real no futuro. Sempre que um universal inteligível é exemplificado, ou seja, sempre que conseguimos apontar para um exemplo particular percebido, lembrado ou imaginado de um objeto conceituai, transcendemos o objeto de pensamento e alcançamos existências reais ou possíveis. Mas não precisamos fazer isso. Podemos contentarmos em lidar com o objeto de pensamento enquanto tal, e não ir além disso. Desconsiderando todos os exemplos particulares atuais ou possíveis do objeto universal sobre o qual estamos pensando, podemos nos concentrar sobre este por seu próprio valor e natureza.

Há ainda um outro modo pelo qual os objetos universais do pensamento conceituai adquirem certo grau de realidade. Para que certo número de indivíduos sejam exemplos particulares de certo universal, eles devem realmente ter algo em comum. Um exemplo talvez nos ajude a esclarecer este ponto e o que isso quer dizer. Tomemos o objeto universal ao qual o substantivo comum “cisne” se refere. Esta palavra denomina um tipo que tem exemplares na realidade; ela designa uma classe de coisas perceptíveis que possui membros realmente existentes. Dizer que cada um desses exemplares é um cisne particular é também dizer que cada um deles participa no que quer que seja comum a todos os cisnes. Se não houvesse nada de comum a todos os cisnes — nada que fosse o mesmo em todos eles —, os exemplos em questão não poderiam ser apreendidos como cisnes particulares. Apreender algo como um exemplo particular de um certo tipo envolve uma apreensão do próprio tipo. Isso, por sua vez, depende da apreensão do que é comum ou o mesmo nos diversos exemplos concretos que estão sendo considerados. Logo, no caso do tipo nomeado pelo vocábulo “cisne”, quando exemplos particulares realmente existem, é também verdadeiro que o elemento comum que os une na condição de cisnes particulares é algo que realmente existe neles. Negar tal realidade a um universal que tem exemplos particulares é serrar o próprio galho em que se está sentado, como fazem os nominalistas, que negam que possamos apreender universais e atribuem generalidade apenas às palavras, sem serem capazes de explicar como palavras podem ter significado geral se não somos capazes de apreender quaisquer objetos universais. Uma outra complicação deve ser observada. Nem todos os universais, que são os objetos inteligíveis do pensamento conceituai, podem ser instanciados pela percepção, memória ou imaginação de particulares. A instanciação — exemplificação por meio de particulares — é possível apenas para aqueles conceitos que o intelecto forma por meio da abstração a partir da experiência sensível.

Nem todos os conceitos que o intelecto é capaz de formar são abstrações da experiência sensível, como o são, por exemplo, nossos conceitos de “vaca”, “árvore” ou “cadeira”. Alguns são construções intelectuais feitas a partir do material conceituai oriundo dos conceitos abstraídos da experiência sensível. Nesse sentido, o intelecto funciona de modo análogo à imaginação. Algumas das nossas imagens são memórias das percepções sensíveis, mas algumas são constructos da imaginação — imagens construídas a partir do material fornecido pela experiência sensível; por exemplo, a imagem construída de uma sereia ou de um centauro. Chamamos a essas ficções de imaginação. Assim, também, constructos conceituais podem ser chamados de ficções do intelecto, com esta única e muito importante diferença. Reconhecemos ao mesmo tempo que as ficções de nossa imaginação são objetos que não têm existência atual na realidade. Mas muitos dos constructos conceituais que empregamos no pensamento filosófico e científico dizem respeito a objetos tais como buracos negros e quarks na física, e Deus, espíritos e almas na metafísica. Estes são objetos cuja existência na realidade é de fundamental importância indagar. Desde que estes constructos conceituais não tenham exemplos perceptivos, tentar responder a essa questão é algo que se deve dar de modo necessariamente indireto e inferencial. A existência real de exemplares concretos de tais objetos pode ser postulada apenas com base no fato de que, se não existissem, os fenômenos observados não poderiam ser adequadamente explicados.  

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A descendência do homem, de Charles Darwin, livro publicado em 1871, mais de uma década depois de A origem das espécies, rejeitou a visão tradicional do estatuto ontológico da espécie humana, uma visão que foi reinante no pensamento ocidental desde a Antiguidade até o século XVII e, em algumas partes, até depois disso.

De acordo com a visão tradicional, o homem, como animal racional, difere radicalmente em tipo de todos os outros animais em virtude do fato de que o homem — e apenas o homem — tem, além dos sentidos, que compartilha com os outros animais, um intelecto. Darwin compilou evidências que tentavam mostrar o oposto; a saber, que o homem diferia apenas em grau dos outros animais. Hobbes e Hume anteciparam Darwin em séculos, embora pouco se tenha notícia deste fato. A consequência mais séria da errônea visão que estes pensadores tinham da mente humana como constituída por sentidos e imaginação e destituída de intelecto é a conclusão de que os homens diferem dos outros animais apenas em grau, não em tipo. Eles não hesitaram em chegar a essa conclusão. Pois se as várias potências que nos proporcionam experiências sensíveis e nos permitem aprender com elas são comuns ao homem e às outras espécies animais, então as únicas diferenças entre um e outros só poderão ser diferenças de grau. Desde a época de Darwin, a experimentação com animais em laboratórios de psicologia apresentou muitas evidências adicionais que foram consideradas como corroborantes dessa conclusão. Interpretaram-se essas evidências como se mostrassem que os outros animais tivessem tanto conceitos quanto perceptos, mesmo que não tenham intelectos no sentido tradicional deste termo. Junto com esta atribuição de inteligência conceituai aos outros animais veio a atribuição de performances linguísticas a eles, as quais se supõem diferir apenas em grau do uso humano da linguagem. Se essas interpretações e atribuições estivessem corretas, muito do que foi dito nas páginas precedentes teria de ser retirado. Mas elas não estão corretas. Reservando minhas críticas às reivindicações falaciosas sobre as performances linguísticas dos outros animais para o próximo capítulo, concentrar-me-ei aqui sobre a falsa interpretação da evidência que supostamente mostra que outros animais têm conceitos que lhes permitem lidar tanto com generalidades quanto com particularidades.

Para colocar a questão brevemente, a evidência experimental mostra que outros animais, sob condições laboratoriais, podem aprender a discriminar entre diferentes tipos de objetos percebidos. Eles aprendem a reagir de um determinado modo em relação a quadrados e de outro em relação a círculos, por exemplo; ou a comer o que é colocado sobre uma superfície verde e a evitar o que é colocado sobre uma superfície vermelha. Tais discriminações indicam que eles são capazes de generalizar, e esta é considerada a base para lhes atribuir tanto conceitos quanto perceptos. O erro aqui consiste em pensar que ser capaz de discriminar entre diferentes tipos de objetos é equivalente a ser capaz de entender tipos distintos e suas diferenças. Considerar a habilidade de um animal para discriminar entre similaridades percebidas e dissimilaridades como evidência de pensamento conceituai por parte dele implica em um equívoco uso do termo “conceito”. Em sentido estrito, conceitos são disposições adquiridas para (a) reconhecer objetos percebidos como um ser deste ou daquele tipo; (b) entender, ao mesmo tempo, como este ou aquele tipo de objeto é; e (c) perceber, por conseguinte, certo número de particulares como sendo o mesmo em tipo e discriminar entre eles e outros sensíveis particulares que são diferentes em tipo. Ademais, conceitos são disposições adquiridas para entender o que certos tipos de objetos são (a) quando, embora perceptíveis, não são atualmente percebidos, e (b) também quando não são de modo algum perceptíveis, como é o caso de todos os constructos conceituais que empregamos na física, na matemática e na metafísica. Não há qualquer evidência empírica de que conceitos, assim precisamente definidos, estejam presentes no comportamento animal. A inteligência destes é inteiramente sensorial. Suas operações são limitadas ao mundo dos objetos perceptivos e imaginativos. O que transcende a percepção e a imaginação ultrapassa totalmente as potências da mente ou inteligência animal. Apenas animais com intelecto, apenas membros da

espécie humana, possuem potências conceituais que lhes permita lidar com o não percebido, o imperceptível, e o inimaginável. É necessário corrigir a errônea visão da mente humana primeiramente propalada por Hobbes, Berkeley e Hume, de modo a defender a proposição segundo a qual o homem difere radicalmente em tipo dos outros animais. A diferença é antes de tipo que de grau, porque apenas a mente humana inclui potências tanto intelectuais quanto sensitivas. A diferença em tipo é radical porque as potências intelectuais do homem não estão atreladas às operações do cérebro e do sistema nervoso do mesmo modo que as potências sensitivas estão. A explicação completa do que acabou de ser dito é muito complexa para ser exposta aqui. Eu abordei este assunto em pelo menos dois livros anteriores, A diferença do homem e a diferença que isso faz, publicado em 1967, e Os anjos e nós, publicado em 1982. Entretanto, um ponto crucial pode ser brevemente colocado aqui. A relação das potências sensitivas com o cérebro e o sistema nervoso é tal que o grau em que uma espécie animal possui essas potências depende do tamanho e complexidade de seu cérebro e sistema nervoso. Não é este o caso em relação às potências intelectivas. Que a mente humana tenha tais potências não depende do tamanho ou complexidade do cérebro humano. A operação do cérebro é apenas uma condição necessária, mas não suficiente, para o funcionamento da mente humana e para as operações do pensamento conceituai. Não pensamos com nossos cérebros, embora não consigamos pensar sem eles.

CAPÍTULO III As palavras e os significados  

1 Todos nós já tivemos a experiência de ver as páginas de um jornal estrangeiro ou de ouvir uma conversa sendo conduzida em uma língua estrangeira. Percebemos que as marcas impressas na página e os sons falados são palavras dotadas de significado para aqueles que conseguem ler e falar o idioma estrangeiro — mas não para nós. Para nós, são marcas e sons desprovidos de significado, e marcas e sons desprovidos de significado não são mais do que o balbucio de um bebê antes que este aprenda a produzir sons que nomeiem coisas para as quais ele aponta. Quando um bebê aprende a falar e posteriormente a ler, ou quando aprendemos um idioma estrangeiro, marcas e sons (utilizemos o termo “notações” para nos referir a ambos) inicialmente desprovidos de significado tornam-se significativos. Uma notação significativa é uma palavra. Notações podem ser desprovidas de significado, mas não há palavras que o sejam. Outro fato com o qual estamos todos familiarizados é que a maioria das palavras tem múltiplos significados. A mesma palavra pode ter uma ampla gama de significados. Ademais, no curso do tempo, uma palavra pode perder um determinado significado e ganhar outro — um novo significado. Um dicionário é o livro de referência que usamos quando queremos averiguar os vários significados de uma determinada palavra. Os grandes dicionários frequentemente nos contam a história daquela palavra — os significados que já teve, mas já não tem, e os novos significados recém-adquiridos. Tudo isso é familiar a todos nós. Mas nós raramente paramos para perguntar como aquilo que inicialmente era uma notação desprovida de significado adquiriu o significado que a transformou numa palavra significativa ou inteligível — uma unidade no vocabulário de uma determinada língua, algo a ser

encontrado no dicionário daquela língua. De onde vieram o significado ou os significados adquiridos pela notação nãosignificativa para transformá-la numa palavra? Procurar a palavra no dicionário não responde a essa questão. O que se encontra ao olhar o significado de uma palavra no dicionário é um conjunto de outras palavras que pretende estabelecer o seu significado ou significados. Se nesse conjunto de palavras houver um ou dois significados desconhecidos, pode-se, é claro, conferi-los em seguida no mesmo dicionário, em seus respectivos verbetes. O que se encontrará de novo é um outro conjunto de palavras que pretende estabelecer os significados daquelas, e então ou se entenderão os significados de todas essas novas palavras encontradas ou se terá uma vez mais de repetir todo o processo de procurar os significados destas últimas palavras no mesmo dicionário. Se fossem conhecidos os significados de todas essas palavras no dicionário, jamais seria preciso, é claro, recorrer a ele. Mas, mesmo que o fosse, o dicionário não poderia ajudar a descobrir como qualquer uma dessas palavras nele contidas adquiriu significado pela primeira vez. Deixe-me garantir que isso tenha ficado bem entendido. Consideremos alguém que busque um dicionário para aprender o significado de uma notação que, à primeira vista, lhe pareceu uma “palavra” estranha ou simplesmente uma notação, não sendo, portanto, ainda propriamente uma palavra para ela. Este procedimento, embora adequado para algumas notações, não o pode ser para todas. Se a única abordagem ou meio de uma pessoa aprender um idioma estrangeiro fosse consultando um dicionário desta língua — e precisamente um que se utilizasse apenas desta língua —, ela não conseguiria aprender o significado de nenhuma das suas palavras. Apenas sob a condição de que ela já soubesse ou pudesse de algum modo aprender os significados de certo número de palavras sem precisar recorrer ao dicionário, poderia este tornar-se útil como meio de aprendizado dos significados de outras palavras naquele idioma.

Para que uma criança chegue ao ponto em que consiga mover-se eficazmente dentro da circularidade de palavras de um dicionário, é preciso que algumas notações não- significativas tenham se tornado palavras significativas para ela — e isso sem a ajuda de um dicionário. O dicionário, portanto, não pode ser a resposta para a questão de como marcas ou sons não-significativos tornam-se palavras significativas. Isto não é desmerecer a utilidade dos dicionários. Aprendemos frequentemente o significado de uma palavra que nos é nova e estranha por meio de outras cujos significados já conhecemos. Então, por exemplo, quando uma criança que está crescendo ouve a palavra “jardim-de-infância” pela primeira vez, e pergunta o que ela significa, pode ser que fique bem satisfeita com a seguinte resposta: “É um lugar onde crianças vão para brincar umas com as outras e para aprender”. Se as palavras na resposta forem inteligíveis para a criança, ela será capaz de acrescentar uma nova palavra ao seu vocabulário. Uma notação que era desprovida de significado para ela se tornou uma palavra por meio de uma descrição verbal do objeto significado. A resposta à questão da criança é como uma definição dicionarizada — uma descrição verbal do objeto significado pela palavra em questão. Tais descrições podem ser reforçadas por aquilo que é chamado “definição ostensiva” — apontar para o objeto ou palavra. Isso, no entanto, não é suficiente como solução para o problema de como notações não-significativas tornam- -se palavras significativas para nós. Pode funcionar para algumas palavras, mas não para todas. Aprendemos os significados de algumas palavras em nossos vocabulários aprendendo as descrições verbais dos objetos que elas significam. Mas se tentássemos aplicar essa solução a todas as palavras, andaríamos em círculo infinitamente até não mais conseguirmos encontrar uma solução para o problema. De que outra maneira, sem ser por descrições verbais, podem as notações não-significativas adquirir significado e se

tornar palavras? A resposta é pela familiaridade direta com o objeto que a notação não-significativa é usada para significar. O mais simples exemplo disso pode ser encontrado no nosso aprendizado dos significados dos nomes próprios. Lembremos ou não do que nos foi ensinado na escola sobre a diferença entre nomes próprios e comuns — ou substantivos próprios e comuns —, todos nós sabemos a diferença entre “George Washington” e “homem” como nomes ou substantivos. O primeiro nomeia uma única e singular pessoa — este e apenas este. O segundo nomeia um tipo distinto de organismo vivo, um tipo que inclui apenas certos organismos vivos e exclui outros. Palavras que nomeiam objetos únicos, singulares, são nomes ou substantivos próprios; palavras que nomeiam tipos ou classes de objetos são nomes ou substantivos comuns. Escolhi “George Washington” como exemplo de nome próprio justamente para deixar claro que podemos aprender o significado de alguns nomes próprios apenas por meio de descrições verbais. Nenhum de nós jamais foi ou será apresentado a George Washington. Podemos não ter nenhuma familiaridade direta com ele. Sabemos o que o seu nome próprio significa quando nos é contado que significa o primeiro presidente dos Estados Unidos. A situação é bem diferente com outros nomes próprios — os nomes de todas as pessoas em nossas próprias famílias ou pessoas a que fomos apresentadas no curso de nossa experiência. A apresentação verbal pode ser tão breve quanto: “Deixe-me apresentá-lo a John Smithers”. Mas esta apresentação acompanha a sua familiaridade direta com o objeto nomeado. E assim que “John Smithers” torna-se para você o nome próprio da pessoa que lhe foi apresentada. Por ora, tudo bem. Mas como notações não-significativas se tornam nomes comuns, em contraste com os nomes próprios, antes por familiaridade direta que por meio de descrições verbais? Praticamente do mesmo jeito. E dito ao bebê que o animal em seu parquinho é um cão ou cãozinho. Pode ser que isso seja repetido algumas vezes. Logo o bebê, apontando para o animal, profere “cão” ou “cãozinho” ou algo que soe

parecido. Um nome comum significativo foi adicionado ao vocabulário do bebê. Isso terá de ser confirmado por uma outra etapa do aprendizado. Pode ser que o bebê, em outra ocasião, encontrese na presença de um outro animalzinho, desta vez um gato, e o chame de cãozinho. O erro de designação deve ser corrigido. Nem todos os animaizinhos são cães. Quando a palavra “gato” é adicionada ao vocabulário do bebê como um nome comum que significa um objeto bem distinto de um cão — ambos objetos com os quais o bebê travou contato e se familiarizou diretamente —, as duas palavras não apenas têm significado para o bebê, mas significados diferentes. E agora, resolvemos o problema? Não exatamente. Pois no curso do crescimento da criança, com sua educação na escola e posteriormente na faculdade, e com todo o aprendizado que ela adquire através de uma ampla variedade de experiências, o seu vocabulário de nomes comuns será enormemente expandido. Para designar aqueles mesmos dois objetos que, no berçário, chamou de gato e cão, ela estará apta a usar outros nomes comuns como “felino” e “canino”, “persa” e “poodle”, “mamífero”, “quadrúpede”, “vertebrado”, “animal doméstico”, “animal de estimação”, “organismo vivo”, e assim por diante. Se disséssemos que todos esses nomes comuns adquiriram seu significado através de nosso contato direto com os objetos nomeados, deveríamos estar bastante confusos com a questão de como exatamente o mesmo objeto com os quais lidamos diretamente pode resultar nessa extraordinária variedade de nomes. Se uma notação não-significativa adquire significado e se torna uma palavra para nós quando é atribuída a um objeto com o qual lidamos diretamente, como é possível que exatamente o mesmo objeto com o qual lidamos diretamente dê significados bem distintos a todos os nomes comuns que utilizamos para nos referir a ele? O problema complica-se ainda mais pelo fato de que nem todos os nomes comuns que usamos se referem a objetos que percebemos por meio dos sentidos, tal como cães e gatos.

Nem todos significam objetos perceptuais com os quais podemos travar contato diretamente. O que dizer de nomes ou substantivos comuns tais como “liberdade”, “igualdade”, “justiça”, ou “elétron”, “nêutron”, “positron”, ou “inflação”, “crédito”, “incentivo fiscal”, ou “mente”, “espírito”, “pensamento”? Nenhum destes é um objeto perceptual com o qual possamos lidar diretamente. Como, em tais casos, se tornaram palavras úteis para nós aquelas que devem ter sido primeiramente notações não significativas? Seria a resposta aquela que diz que, nesses casos, todos os significados foram adquiridos por meio de descrições verbais? Ora, já vimos que essa resposta é insatisfatória, pois nos lança num problema de circularidade infinita. Seria a resposta aquela que, de novo, afirma que nesses casos travamos contato diretamente com os objetos nomeados, mas por outros meios que não a percepção, a memória e a imaginação que, em última análise, repousam no uso dos sentidos? Se for assim, qual a natureza deste contato direto e qual o caráter dos objetos nomeados, com os quais lidamos diretamente por outros meios que a operação dos nossos sentidos em ordem à percepção, imaginação e memória? Somos confrontados agora com um problema que os filósofos modernos falharam em resolver por causa de uma série de erros filosóficos que cometeram. Dois dos três erros que irei comentar e tentar corrigir neste capítulo são consequências dos erros discutidos nos dois capítulos precedentes: um é o erro de tratar nossas idéias — nossas percepções, memórias, imaginações, concepções e pensamentos — como objetos dos quais estamos diretamente conscientes; outro é o erro de reduzir todas as nossas potências cognitivas àquelas dos cinco sentidos externos e falhar em distinguir entre os sentidos e o intelecto como meios bem distintos, embora interdependentes, de apreender objetos.

Mas antes que eu me volte para uma consideração da falha moderna em resolver o problema de como notações nãosignificativas se tornam palavras através da aquisição de significado, devo chamar a atenção para um outro ponto que talvez seja familiar a todos nós ao considerar palavras e significados. Uma palavra significativa, uma notação dotada de significado, é um signo. Um signo funciona apresentando à atenção da mente um outro objeto diferente dele mesmo. Assim, quando eu digo a palavra “cão”, você não apenas ouve a palavra em si, mas ouvi-la serve para trazer à sua mente o objeto assim nomeado. Nem todos os signos funcionam desse jeito, especialmente signos que não são palavras. Dizemos que nuvens significam chuva; que fumaça significa fogo; que o soar da sineta significa que a refeição está pronta. Tais signos, diferente das palavras, são sinais, ao passo que as palavras são usualmente usadas não como sinais, mas como designadores — signos que se referem aos objetos que elas nomeiam. Palavras podem, é claro, funcionar tanto como sinais quanto como signos. “Fogo”, gritado em um teatro lotado, não apenas designa o objeto assim nomeado, mas também significa um iminente perigo que clama por ação. Assim, também, a palavra “jantar”, gritada dos degraus de uma escada de uma casa de fazenda para os trabalhadores no campo, funciona exatamente do mesmo modo que o soar da sineta que anuncia que a refeição está pronta. Com uma leve exceção que não nos deve preocupar aqui, todos os signos são ou sinais ou designadores ou ambos, em ocasiões diferentes e quando usados com intenções diferentes. O que é comum a todos os signos, que são ou sinais ou designadores ou ambos, e que viemos considerando até agora, é que eles mesmos são objetos dos quais estamos perceptivamente conscientes, bem como instrumentos cuja função é trazer à mente os objetos que significam. Denominemos, então, tais sinais e designadores “signos instrumentais”. O ser inteiro deles não consiste em apenas

significar. Eles têm existência perceptível em si mesmos além de significar, mas são também instrumentos que funcionam neste último sentido. A distinção entre signos que são apenas e sempre sinais e signos que são designadores sejam estes ou não também sinais, terá um efeito direto, como veremos, sobre a diferença entre o uso humano dos signos e o uso que outros animais fazem deles. Uma outra diferença dirá respeito ao único modo pelo qual os animais adquirem signos que são designadores e aos dois modos pelos quais isso acontece no caso dos seres humanos. Retornaremos a esse assunto em uma seção posterior deste capítulo, mas primeiro, e mais importante, é a consideração do problema que colocamos sobre palavras no vocabulário humano que funcionam como signos designadores. Como iremos descobrir, a solução desse problema envolverá a descoberta de um outro tipo de signo designativo, um cuja totalidade do ser consiste em significar outra coisa. Como outros signos, os signos desse tipo especial apresentam à mente objetos diferentes deles mesmos. Mas diferente de outros signos, eles mesmos são entidades das quais não temos qualquer consciência. Eles são então radicalmente distintos do tipo de signos que denominamos “signos instrumentais”. Chamemo-los “signos puros” ou “formais”. O erro filosófico sobre o qual ora nos debruçamos consiste na negligência dos signos puros ou formais na tentativa de explicar como notações não significativas adquirem seu significado designativo e se tornam palavras nos vocabulários das línguas humanas ordinárias.  

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Em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1689), dividido em quatro livros, John Locke devota a totalidade do terceiro livro às palavras e seus significados. Tendo inicialmente, nas próprias páginas de abertura do Ensaio, cometido o erro de considerar as idéias como objetos que

apreendemos diretamente, ou dos quais estamos imediatamente conscientes, ele não poderia evitar um erro crucial em seu esforço de explicar como palavras adquirem seus significados. Ele estava correto em pensar que notações sem sentido (não-significativas) se tornam palavras significativas por meio de nossa imposição voluntária delas sobre objetos que apreendemos. Isto, como vimos, vale para algumas palavras, mas não para todas — apenas para aquelas cujo significado para nós depende do nosso contato e familiaridade com o objeto nomeado, não para aquelas cujo significado depende de descrições verbais do tipo que encontramos nos dicionários. Locke foi negligente em observar essa distinção entre significados adquiridos por contato direto e significados adquiridos por meio de descrições verbais. Mesmo assim, ele estava correto em pensar que nossa imposição voluntária de uma notação não-significativa sobre um objeto apreendido é o meio pelo qual ao menos algumas palavras devem adquirir seus significados. Seu erro consistiu em pensar que idéias são objetos aos quais todas as palavras significativas se referem diretamente e a nada mais. Dizer isso é dizer que, quando um indivíduo usa palavras referencialmente, ele está sempre e apenas se referindo a suas próprias idéias e a nada mais. “E perverter o uso das palavras”, escreve Locke, “e traz inevitável obscuridade e confusão à sua significação, sempre que as fazemos representar algo diferente daquelas idéias que temos em nossas próprias mentes”. Locke negou explicitamente que pessoas possam usar palavras para se referir às idéias nas mentes das outras. E ainda mais firmemente negou que pessoas possam usar palavras para significar as coisas que existem na realidade, suas qualidades ou outros atributos, ou os eventos que ocorrem no mundo em que elas vivem. Nós não temos e não podemos ter nenhuma consciência direta de tais coisas. Os únicos objetos que nós apreendemos diretamente são nossas próprias idéias.

Mas mesmo sendo explícito e firme quanto a esses dois pontos, Locke percebeu que esse relato de como as palavras ganham sentido e têm significado referencial derrota completamente aquele propósito que torna a linguagem tão importante para a vida humana — a comunicação. As idéias que cada pessoa tem em sua própria mente existem em um domínio que é completamente privado. Como podem duas pessoas conversar sobre suas idéias, se as palavras que cada uma delas usa se referem apenas às idéias próprias e exclusivas de cada uma? Ainda mais acachapante é o fato de que duas pessoas não possam conversar sobre as coisas ou eventos realmente existentes ou que ocorrem no mundo em que elas vivem. Tendo dito que “palavras não podem ser signos voluntariamente impostos sobre coisas desconhecidas”, e tendo, ao longo de seu Ensaio, sustentado que nós apreendemos diretamente apenas nossas próprias idéias, não coisas existentes na realidade (as quais, de acordo com Locke, agem sobre nossos sentidos e permitem que tenhamos idéias), como pode ele explicar que conversemos uns com os outros sobre o mundo real que é constituído por “coisas desconhecidas”, isto é, coisas que não se podem apreender diretamente? A simples verdade desta questão é que Locke não pode explicar satisfatoriamente o uso da linguagem para o propósito da comunicação sobre o mundo real em que todos nós vivemos. O esforço que ele empreende para fazê-lo o envolve numa contradição tão autodestrutiva quanto o embaraço do qual não pode escapar ao postular a existência de coisas físicas que, agindo sobre os nossos sentidos, são as causas originais das idéias que surgem em nossas mentes; pois, de acordo com seus próprios princípios, ele não tem nenhum meio de apreender tais realidades físicas e nenhuma base para a crença na existência delas. Os esforços de Locke para explicar o que para ele deveria ser inexplicável envolve um segundo passo em sua narrativa de como as palavras adquirem significado. Nossas idéias,

sendo representações das coisas que existem na realidade, elas próprias significam as coisas que elas representam. Nossas idéias, em outras palavras, são signos que se referem a coisas, coisas que nós mesmos não podemos apreender diretamente. Em sendo assim (embora não haja maneira de explicar como isso é assim), o segundo passo de Locke lhe permite dizer que as palavras, significando diretamente nossas próprias idéias, indiretamente se referem às coisas reais que nossas idéias significam. Logo, podemos usar palavras para conversas uns com os outros não sobre nossas próprias idéias, mas sobre o mundo real em que vivemos.  

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Se, como se argumentou no primeiro capítulo, as idéias nas nossas mentes não são aquilo que apreendemos diretamente, mas aquilo pelo que apreendemos o que quer que apreendamos, todas as contradições e embaraços em que Locke se enreda podem ser evitados. Os objetos aos quais damos nomes e aos quais nos referimos quando usamos as palavras que os significam são os objetos que diretamente apreendemos por nossas idéias, não as idéias pelos quais os apreendemos. Isto, como podemos presentemente ver, é verdadeiro tanto para os objetos inteligíveis do pensamento conceituai quanto para os objetos sensíveis da percepção, memória e imaginação. Anteriormente neste capítulo, chamei a atenção para a distinção entre signos instrumentais e signos formais. Signos instrumentais — tais como nuvens significando chuva ou a palavra “nuvem” designando certas formações visíveis no céu — são eles mesmos objetos que apreendemos tanto quanto o são os objetos a que esses signos se referem. Mas um signo formal nunca é um objeto que apreendemos. Toda sua existência ou ser consiste na função que ele desempenha como signo, ao referir-se a algo que apreendemos, algo que ele serve para trazer às nossas mentes. Ele é, por assim dizer, discreto ao desempenhar essa função.

A verdade básica aqui, aquela que corrige o erro de Locke e nos fornece uma explicação satisfatória ao problema do significado das palavras, é que as idéias em nossas mentes são signos formais. Um outro jeito de dizer isso é que as nossas idéias, enquanto signos dos objetos que elas nos permitem apreender, são significados. Deixe-me repetir este ponto: nossas idéias não têm significado, elas não adquirem significado, elas mudam, ganham ou “perdem” significado. Cada uma das nossas idéias é um significado e isso é tudo que elas são. A mente é o reino no qual os significados existem e através do qual tudo o mais quanto tenha significado adquire significado, muda de significado ou perde significado.1 Os significados referenciais que algumas de nossas palavras adquirem quando notações não-significativas nelas se convertem derivam do fato de serem tais notações voluntariamente impostas sobre os objetos com os quais travamos contato direto. Estes objetos são os objetos significados, referidos, intencionados, trazidos ante nossas mentes pelas idéias que são seus signos formais. Locke nos obrigaria a apreender diretamente esses signos formais (que são completamente inapreensíveis) e, por meio deles, indiretamente apreender as coisas da realidade (cuja representação é inexplicável). Assim, sustentou ele erroneamente que nossas palavras significam diretamente nossas idéias como seus objetos, e, por meio de nossas idéias, indiretamente significam as coisas da realidade que elas representam. A correção deste erro filosófico consiste em ver que nossas idéias são os signos formais que não conseguimos jamais apreender. Eles nos permitem apreender todos os objetos que apreendemos. Aquelas palavras que não adquirem significado por meio de descrições verbais dos objetos nomeados o adquirem por meio de nosso contato direto com os objetos que nossas idéias nos permitem apreender. Estes são também os objetos a que nossas idéias, funcionando como signos formais, se referem.

Além disso, porque as palavras que usamos têm significado referencial como signos instrumentais através da associação com as idéias que funcionam como signos formais, conseguimos usar palavras não apenas para nos referir aos objetos que diretamente apreendemos por meio de nossas idéias, mas também para fazer emergir nas mentes de outras pessoas aquelas idéias associadas, de modo a que elas tenham os mesmos objetos ante suas mentes. É nesse sentido que nos comunicamos uns com os outros sobre objetos que são públicos, no sentido de que são objetos apreendidos por duas ou mais pessoas, e assim são comuns a elas. É de tão grande importância que compreendamos tais coisas que elas merecem uma exposição mais detalhada — primeiramente, com respeito aos objetos sensíveis que apreendemos pela percepção, memória e imaginação; depois, com respeito aos objetos inteligíveis do pensamento conceituai. Tal exposição será encontrada nas duas próximas seções.  

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Os objetos apreendidos pela percepção diferem de maneira radical dos objetos apreendidos por nossa memória e nossa imaginação. Os objetos da nossa imaginação podem ou não existir na realidade; podem ser objetos que não existem agora, mas podem vir a existir em algum tempo futuro; ou podem mesmo ser objetos puramente ficcionais que não existem, nunca existiram nem nunca existirão na realidade. Os objetos da nossa memória — eventos passados que alegamos lembrar — podem não ter existido tal como deles nos lembramos. Nossas memórias podem ser mudadas por outros que alegam lembrar-se do evento de maneira diferente, ou mesmo por quem nega que aquilo que alegamos lembrar não aconteceu realmente. Em outras palavras, os objetos tanto da nossa imaginação quanto da nossa memória são objetos sobre os quais um

questionamento relativo às suas existências reais pode sempre ser colocado. Não é assim no caso da percepção. Quando você ou eu dizemos que percebemos a mesa ante a qual estamos ambos sentados, estamos também afirmando que aquela mesa existe na realidade. Se estamos percebendo algo, não tendo uma alucinação (que é exatamente o oposto de perceber), então o objeto que estamos percebendo é também algo que realmente existe. Não deveríamos nunca perguntar se um objeto percebido realmente existe. A única questão possível é se estamos de fato percebendo ou padecendo de alguma alucinação, tal como os alcoólatras quando alegam ver elefantes cor-de-rosa que não estão realmente presentes. A não ser por apreensão perceptual, apreender um objeto não envolve o juízo sobre se o objeto realmente existe tal como apreendido, se existirá no futuro ou se existiu no passado. Apreensão e juízo são dois atos distintos e separados da mente, um anterior, o outro posterior. Em si mesmas, apreensões não são nem verdadeiras nem falsas: elas não afirmam nada. Apenas juízos fazem asserções — afirmações ou negações — que são verdadeiras ou falsas. O que a percepção tem de especial é que, nela, enquanto apreensão e juízo são distintos, são também inseparáveis. Alegar que percebemos algo é afirmar que o objeto percebido também existe realmente. Se este juízo for falso, então o que alegamos ser uma percepção é na verdade uma alucinação. Com estes apontamentos em mente, podemos agora colocar a seguinte questão: é possível que o exato mesmo objeto de discurso seja um objeto perceptual para uma pessoa, um objeto lembrado para outra, e ainda um objeto imaginado para uma terceira? Desde que uma das três pessoas esteja se referindo a um objeto perceptual (neste caso, assumamos que ela está percebendo, não tendo uma alucinação), o objeto sobre o qual as três estão conversando deverá ser também algo que realmente existe.

O caso de uma conversação entre duas pessoas sobre um objeto de que uma delas está se lembrando e a outra imaginando não levanta ·nenhuma nova consideração. As mesmas precauções devem ser tomadas; os mesmos princípios se aplicam. Dediquemos um momento a mais ao uso que fazemos de palavras para significar objetos imaginários que não são nunca objetos de percepção ou de memória. Frequentemente conversamos uns com os outros sobre tais objetos. Estamos aqui preocupados com objetos que ninguém pode perceber ou lembrar porque são entidades2 que nunca existiram na realidade, não existem agora nem nunca virão a existir. Chamemo-los “objetos puramente imaginários” ou, como às vezes são chamados, “ficções da imaginação”. De todas as artes criativas, apenas a literatura, porque a linguagem é o seu meio, produz objetos imaginários ou ficções da imaginação sobre os quais podemos nos comunicar descritivamente. O poeta, novelista ou dramaturgo descreve um personagem ficcional que é o produto de sua imaginação (Capitão Ahab, por exemplo, em Moby Dick, ou, nesse mesmo sentido, a própria Baleia Branca); ou descreve algumas entidades ou lugares imaginários (a majestosa cúpula do prazer de Kublai Khan em Xanadu) que sua imaginação produziu. Dependendo de suas capacidades imaginativas, e da assiduidade dos seus esforços, os leitores da obra deste autor estarão aptos a produzir por si próprios os mesmos objetos imaginários, ou ao menos alcançá-los de maneira aproximada, suficiente para os propósitos da conversação. Tais diálogos se dão de muitas formas e com uma miríade de exemplos sempre que os seres humanos conversam uns com os outros sobre os livros que leram. O fato de que o Capitão Ahab ou a própria Baleia Branca não existam realmente, e de que nunca venham a existir, não impede que as pessoas conversem sobre esses objetos como objetos de referência comum, exatamente como conversam sobre o atual presidente dos Estados Unidos, ou sobre Abraham Lincoln, ou sobre o cavalo branco que George Washington cavalgou, ou

sobre a fronteira de Delaware em Valley Forge. Se pensássemos que é impossível para as pessoas conversarem sobre os objetos imaginários inicialmente produzidas pelos poetas e ficcionistas, estaríamos forçados a concluir contraditoriamente que um professor de literatura e seus alunos não poderiam nunca se engajar em uma discussão sobre uma mesma obra que todos leram. Basta pensar nas incontáveis horas que foram devotadas por estudantes, professores, críticos literários e outros à discussão das ações e do próprio personagem Hamlet, de Shakespeare, para descartar como absurda mesmo a mais débil sugestão de que os objetos imaginários não possam ser objetos comuns de discurso. A menção ao Hamlet de Shakespeare nos levanta uma última questão sobre os objetos no reino da imaginação. Alguns deles, como os personagens fictícios da mitologia (por exemplo Cérbero ou Caronte), têm nomes próprios que não aparecem nas páginas da História; mas alguns, como Hamlet e Júlio César, aparecem nas peças de Shakespeare e também em escritos que não são normalmente considerados ficcionais. O nome próprio “Hamlet” pode ser usado para se referir não apenas ao personagem criado por Shakespeare, mas também àquele que pode ser considerado o seu protótipo na Historiae Danicae de Saxo Grammaticus, um historiador dinamarquês do século xii; ademais, se o relato de Saxo Grammaticus for confiável, “Hamlet” foi o nome próprio de um singular príncipe da Dinamarca, que viveu em uma certa época e estava envolvido com regicídio, usurpação, incesto e outras coisas do tipo. Assim, também, “Júlio César”, como nome próprio, se refere a, pelo menos, três objetos singulares diferentes: (1) o personagem principal de uma peça de Shakespeare; (2) uma figura histórica descrita em uma das Vidas de Plutarco; e (3) o general romano que viveu em certa época, conquistou a Gália, escreveu uma história das suas batalhas naquela província, cruzou o Rubicão, e assim por diante.

Se desejamos conversar sobre o personagem e as ações de Júlio César tal como retratado na peça homônima de Shakespeare, temos de identificar o objeto imaginário do nosso discurso por meio de uma descrição definida sua, como “o personagem que tem tal nome em uma peça de Shakespeare intitulada Júlio César, primeiramente produzida em tal data, etc.”. Seria confuso, decerto, se uma ou duas pessoas que estivessem engajadas em um debate sobre Júlio César usassem este nome próprio uma para se referir ao Júlio César de Shakespeare e outra ao Júlio César de Plutarco. Elas poderiam chegar ao ponto de fazer afirmações contraditórias sobre o objeto aparentemente comum de seus discursos, apenas para descobrir que elas não tinham um objeto comum, mas estavam de fato conversando sobre objetos diferentes — objetos parecidos sob certos aspectos, mas diferentes sob outros. O Júlio César de Shakespeare é um objeto imaginário de discurso que ninguém questionará. O fato de que haja certas semelhanças entre o Júlio César de Shakespeare e o de Plutarco, e também entre este e o Júlio César romano, que foi general, primeiramente cônsul, e ditador entre os anos 55-44 a.C., não muda o estatuto da invenção de Shakespeare. O seu Júlio César é uma ficção da imaginação não menos que o Cérbero e o Caronte da mitologia. Seríamos nós, por força deste argumento, levados à mesma conclusão a respeito do Júlio César de Plutarco e, ainda mais, sobre todos os personagens históricos descritos pelos historiadores e biógrafos?  

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Voltemo-nos agora dos objetos de percepção, memória e imaginação, que são objetos que nomeamos quando usamos palavras para nos referir a eles, para os objetos do pensamento conceituai. Defrontamo-nos de imediato com o mesmo problema que enfrentamos antes com respeito aos objetos da memória e imaginação. Aqui como lá, a apreensão do objeto não é apenas distinta, mas também separada de qualquer juízo

que possamos fazer acerca de se o objeto que estamos apreendendo realmente existe. Para ser mais preciso o juízo não deveria versar sobre se o objeto apreendido do pensamento conceitual realmente existe, mas se um ou mais exemplos particulares perceptíveis — ou, de outro modo, detectáveis — deste objeto existem na realidade. A razão para isso é que as palavras que nomeiam os objetos apreendidos do pensamento conceituai são sempre nomes ou substantivos comuns. Estes são nomes que significam um tipo ou classe de objetos, não um objeto único singular que é significado por um nome próprio. A única maneira de indagar sobre a realidade existencial de um tipo ou classe é indagar se esta é uma classe vazia (uma classe que não contém nenhum exemplar concreto existente) ou cheia (uma classe que tem um ou mais exemplares concretos realmente existentes). Em outras palavras, tipos ou classes, ou o que às vezes é chamado universais, não existem realmente como tal. Todos os constituintes da realidade são indivíduos particulares. Se os universais, ou tipos de classes, têm algum grau de realidade, este reside em alguma propriedade ou atributo comum a certo número de particulares que são todos exemplares do mesmo tipo ou membros da mesma classe. O que acabou de ser dito explica, a propósito, como o objeto perceptivo que uma criança em desenvolvimento nomeia chamando-o “cãozinho” pode posteriormente ser nomeado pelo adulto educado por meio de palavras tais como “canino”, “mamífero”, “quadrúpede”, “vertebrado”, “organismo vivo”. Estes outros nomes significam exatamente o mesmo objeto perceptivo, mas agora conceitualmente entendido de maneiras variadas. Como Tomás de Aquino apontou, “podemos nomear um objeto apenas na medida em que o compreendemos e de acordo com o modo com que o compreendemos”. Desde que o mesmo objeto perceptual possa ser conceitualmente entendido de diversas maneiras (isto é, possa ser compreendido como um exemplo particular de uma variedade de diferentes tipos de

classes), toda uma série de nomes comuns pode ser usada para se referir a ele. Quanto a muitos dos objetos apreendidos do pensamento conceituai a que nos referimos por nomes comuns, raramente paramos para nos colocar a questão judicativa acerca da sua real existência: os exemplos concretos perceptíveis ou detectáveis de um determinado tipo ou classe nomeada realmente existem? Não nos ocorreria perguntá-lo em relação a cisnes brancos, mas certamente nos ocorreria se pensássemos em cisnes negros. Não o faríamos em relação a cães ou gatos, ou árvores e vacas, mas decerto o faríamos em relação a buracos negros, quarks, mésons e outros objetos da física teorética contemporânea, e também em relação a anjos, espíritos e outros objetos totalmente imperceptíveis, e ainda em relação aos objetos sobre os quais conseguimos pensar por meio dos conceitos que formamos. O relato anterior sobre a maneira como usamos palavras para nomear e nos referir aos objetos do pensamento conceituai coloca-nos uma vez mais face a face com outro sério erro filosófico, amplamente prevalente no pensamento moderno, embora não tenha origem exclusivamente moderna. Trata-se do erro conhecido como nominalismo, que consiste na negação do que é chamado às vezes de “idéias abstratas”, às vezes de “conceitos gerais”, mas que, embora nomeadas, são idéias que nos permitem entender tipos ou classes sem qualquer referência a exemplos particulares concretos que possam ou não existir. É por meio dessas idéias que os nomes comuns no nosso vocabulário significam e se referem aos tipos ou classes que nos permitem apreender como objetos do pensamento. A negação nominalista de que tenhamos tais idéias compele os seus adeptos a oferecerem outra explicação para o problema do sentido ou significado dos nomes comuns ou para o que é às vezes chamado “termos gerais”. Já mostramos em outra parte que todos os esforços envidados por eles para realizá-lo são autodestrutivos.3  

6 Outro erro relativo à linguagem que se segue como conseqüência da falha em distinguir o intelecto humano dos sentidos é, estritamente falando, não um erro filosófico, mas um do qual psicólogos da vida animal e cientistas de orientação behaviorista têm a maior parte da culpa, embora muitos filósofos contemporâneos se associem à posição tomada por estes estudiosos do comportamento animal. No estudo que fazem sobre a evidência da comunicação animal, eles raramente — para não dizer nunca — observam a diferença entre signos que funcionam meramente como sinais e os signos que funcionam como designadores — como nomes que se referem a objetos. Quase todos os berros, sons, gestos, que tanto animais selvagens quanto domésticos usam para expressar suas emoções e desejos funcionam como sinais, não como designadores. E apenas no laboratório e sob condições experimentais, frequentemente com aparatos especiais muito engenhosamente inventados, que tais mamíferos superiores e chimpanzés, bem como golfinhos nariz-de-garrafa, parecem estar se comunicando pelo uso de palavras como se elas fossem nomes, e mesmo formulando sentenças com algum vestígio de sintaxe pela justaposição de tais supostas palavras. A aparência é então interpretada erroneamente pelos cientistas como uma base para asseverar que as diferenças entre a linguagem humana e a animal são apenas de grau, não de tipo — uma diferença no número de palavras-nomes em relação ao vocabulário de um animal e uma diferença na complexidade dos enunciados que são tomados por sentenças. Esta falsa interpretação surge da negligência ou ignorância, da parte dos cientistas, acerca da diferença entre pensamento perceptual e conceituai. Isto, por sua vez, decorre da falha deles em reconhecer a diferença entre os sentidos e o intelecto ou da sua negação de que tal diferença existe. Que estas diferenças não devessem ser ignoradas nem pudessem ser negadas, deveria ter sido admitido por quem quer que olhasse para a evidência com um olhar puro, desprovido de preconceitos — por qualquer um que não

partisse do princípio de que seres humanos e bestas diferem apenas em grau. Enquanto há evidência de que chimpanzés, submetidos a condições experimentais, utilizam signos artificialmente inventados para designar ou nomear coisas, as coisas que eles nomeiam são todas elas objetos da percepção concreta. Não há nem um átomo de evidência que mostre a habilidade dos chimpanzés de utilizar signos para designar o que não é percebido por meio dos seus sentidos ou o que se encontra para totalmente além do reino sensível e é intrinsecamente imperceptível. Reside aí a diferença entre a potência animal para o pensamento perceptual e a potência humana para o pensamento conceituai. Não há dúvidas de que a potência animal para o pensamento perceptual permite aos animais realizarem atos de abstração e generalização que guardam certa similitude com a abstração e generalização humanas. O comportamento animal manifesta diferentes reações aos objetos que são diferentes em tipo. Mas os tipos de coisas que os animais parecem diferenciar são todos do tipo que encontram exemplos perceptuais concretos na experiência do animal. Já os seres humanos são capazes de diferenciar tanto tipos ou classes para os quais não há quaisquer exemplos perceptuais concretos em sua experiência, quanto tipos ou classes para os quais nem mesmo pode haver essa percepção. Esta é a característica distintiva do pensamento conceituai e a evidência irrefutável da presença do intelecto no homem e da sua ausência nas bestas. Se os psicólogos da vida animal tivessem observado um pouco mais, talvez seus olhos tivessem sido abertos para a diferença de tipo, não de grau, entre a linguagem humana e a aquisição de signos que parecem funcionar como nomes designativos por parte dos animais — o que envolve a distinção, já feita, entre uma palavra que adquire seu significado designativo por meio do contato perceptual direto com o objeto nomeado e uma que o adquire por meio da descrição verbal, como quando uma criança aprende o significado da palavra “jardim-de-infância” ao lhe ser ensinado

que se trata de um lugar onde crianças se reúnem para brincar e aprender. Em nenhuma das pesquisas experimentais já feitas com animais há algum exemplo de um signo utilizado por um animal que tenha adquirido seu significado a partir do uso de outros signos que parecessem expressar seu significado. Em todos os casos de aquisição de vocabulário por parte do animal, um novo signo adquirido só se torna significativo ao ser associado a um objeto perceptual com o qual o animal tem contato direto. Se os estudiosos do comportamento animal se tivessem aprofundado em suas observações e experimentos com reconhecimento da diferença entre pensamento perceptual e conceituai, e de que seres humanos têm tanto intelecto quanto sentidos, ao passo que aos animais falta o primeiro, decerto não estariam tão propensos a ignorar ou negar a diferença de tipo entre o uso animal e o humano de signos como nomes ou designadores. 7  

Finalmente, chegamos a mais um erro filosófico que teve consequências muito sérias para a filosofia contemporânea da linguagem. Diferente de todos os erros observados nas seções precedentes deste capítulo, não é um erro que decorre dos erros discutidos nos capítulos um e dois. Este erro foi introduzido no pensamento moderno por Thomas Hobbes em seu Leviatã (1651), capítulo quatro, que se ocupa do discurso. Nos séculos anteriores a Hobbes, o termo “não-significativo” teve um significado puramente descritivo. Significava que um determinado som ou marca simplesmente carecia de sentido; que era como as sílabas glub e trish [em inglês], desprovidas de sentido. Hobbes introduziu um uso não lógico do termo “não- significativo”. Para ele, uma palavra como “anjo”, ou seu equivalente frasal “substância incorpórea”, é uma expressão desprovida de significado por causa de sua adesão ao materialismo como doutrina metafísica, de acordo com o qual apenas corpos ou coisas materiais existem na realidade. Uma

vez que, de acordo com esta doutrina, anjos ou substâncias incorpóreas não existem, as palavras “anjo” ou “substância incorpórea” devem ser desprovidas de significado. Elas nada designam; não se referem a nada. Hobbes fundamenta o erro que comete aqui sustentando que uma expressão como “substância incorpórea” é uma contradição em termos e não pode existir. Mesmo que alguém pudesse provar com absoluta certeza a verdade de sua premissa materialista, segundo a qual nada existe exceto os corpos ou substâncias corpóreas, ainda assim não se seguiria necessariamente disto que as substâncias incorpóreas, isto é, os anjos, não pudessem possivelmente existir. A única conclusão que se pode extrair daquela premissa é que os anjos não existem, não que são impossíveis, como se a expressão “substância incorpórea” fosse auto-contraditória no mesmo sentido em que a expressão “quadrado redondo” o é. Este, contudo, não é o principal ponto a ser considerado. O ponto principal é que Hobbes reduziu a referência designativa das palavras-nomes a uma única modalidade, que é a da referência a algo realmente existente ou a uma classe de coisas das quais há exemplos concretos particulares realmente existentes. Se apenas colocarmos a questão de se os anjos existem ou não, e se certamente afirmarmos ou negarmos que sim, a palavra “anjo” deve ter algum significado. Se fosse totalmente desprovida de significado, como afirma Hobbes, não poderíamos colocar essa questão, nem lhe afirmar ou negar qualquer resposta, não mais do que poderíamos indagar [em inglês] se glub existe ou negar a existência de trish.. As únicas notações verdadeiramente não-significativas são sílabas desprovidas de sentido, como glub ou trish [em inglês], ou uma contradição em termos, como “quadrado redondo”. Um quadrado redondo é simplesmente inconcebível ou impensável. Em assim sendo, não pode haver qualquer idéia sua, e nenhum objeto de pensamento que possamos apreender. Logo, a expressão nada designa, não se refere a nada.

“Se um homem viesse me falar de substâncias imateriais, ou de sujeito livre, vontade livre”, escreve Hobbes, “eu não diria que ele está em erro, mas que suas palavras são sem significado; quer dizer, absurdas”. Ele prossegue dizendo que afirmações sobre coisas que nunca foram, “e que não podem incidir sobre os sentidos”, são absurdas, “tomadas a crédito, sem qualquer significação”. O ponto focal do erro de Hobbes é a eliminação de todas as referências designativas que não são também existencialmente denotativas (isto é, referências ao realmente existente). Como observamos anteriormente, exceto em relação aos nomes próprios e aos nomes comuns de objetos realmente percebidos — não para alucinações —, todos os outros nomes comuns têm também referências designativas que não são existencialmente denotativas. Em relação a quase todos os objetos da memória e da imaginação que podemos nomear, e certamente também em relação a todos os objetos do pensamento conceituai que podemos nomear, devemos colocar a questão sobre se o que está sendo nomeado tem efetivamente existência real. Se tais objetos, sobre os quais esta deve ser colocada, não puderem ser nomeados por signos que tenham significado referencial, então as questões que deveriam ser colocadas simplesmente não o poderão ser. A eliminação do significado referencial que não seja também existencialmente denotativo tornaria impossível colocar tais questões. Os seguidores de Hobbes do século xx, mesmo aqueles que sabem estar elaborando extensamente um ponto da obra daquele, mencionado apenas de passagem e então descartado como indigno de maiores comentários, tentam evitar a impossibilidade que acabou de ser apontada distinguindo entre o que eles chamam por um lado “sentido” e, por outro, “referência”. Para eles, o único significado referencial que substantivos podem ter envolve denotação existencial — referência ao realmente existente. Um número relativamente pequeno de nomes próprios especiais, ou seus equivalentes em frases que

são descrições definidas, tal como em “o primeiro presidente dos Estados Unidos”, tem tal significado referencial. Todo o restante das palavras em nosso vocabulário tem apenas sentido, mas não referência. Estes sentidos consistem em suas conotações, que podem ser expressas por um conjunto de outras palavras. Mas a rigor eles não se referem a nada. Como é possível que estes modernos filósofos da linguagem tenham chegado a tal absurda conclusão? Qual a raiz ou origem desta absurdidade? A única explicação, a meu ver, é que ela reside na sua ignorância acerca da distinção entre signos formais e signos instrumentais, e em sua consequente falha em entender que palavras que se tornam nomes por meio do contato direto com os objetos nomeados se referem a quaisquer objetos significados por idéias que, em nossa mente, funcionam como signos formais daqueles mesmos objetos. Assim, todas as palavras que nomeiam os objetos de pensamento, sobre cuja existência poderiamos nos perguntar, têm significado referencial. Seu significado designativo consiste em sua referência a tais objetos, independentemente de qualquer instância deles poder ou não ser percebida, porque realmente existem na realidade. Tais palavras têm mais que sentido ou mero significado conotativo. Elas têm tanto significado referencial quanto qualquer nome próprio ou descrição definida corretamente utilizados. Este erro reducionista, que consiste em reduzir o significado referencial ao único modo de significação envolvendo uma referência a algo realmente existente, se encontra no coração da famosa teoria das descrições de Bertrand Russell. E o que se encontra no coração deste erro é o engano de supor que nomear é afirmar — o engano de supor que não podemos nomear algo sem também afirmar que a coisa nomeada realmente existe. Nomear não é afirmar, não mais do que apreender um objeto de pensamento é idêntico a emitir o juízo acerca da existência do objeto na realidade. Apreender um objeto e emitir o juízo acerca da existência real deste mesmo objeto são atos

inseparáveis somente no caso de percepções verdadeiras. Em todos os outros casos, os atos de apreensão e julgamento não são apenas distintos, mas inclusive bem separados. Um ato pode ocorrer sem a ocorrência do outro. Do mesmo modo, podemos usar palavras para nos referir a objetos apreendidos sobre cujas existências suspendemos o juízo ou as colocamos em questão. Como resultado desses erros, originados em Hobbes, a filosofia da linguagem no século XX abandonou o esforço por explicar o significado referencial da maioria das palavras que usamos em nosso vocabulário cotidiano — palavras todas estas que não têm o único modo de significado referencial que denota algo realmente existente (de acordo com o que quer que a doutrina metafísica possa ter sustentado acerca dos componentes da realidade). Isto conduziu à tola injunção “não olhe para o significado; olhe para o uso”, como se fosse possível descobrir o uso de uma palavra sem primeiro averiguar seu significado tal como usado, um significado que ela deve ter tido antes de ser usada, de modo a que pudesse ser usada antes de certa maneira que de outra. A linguagem não controla o pensamento, como os filósofos da linguagem contemporâneos parecem crer. A verdade é o exato oposto. Outra possível explicação para o abandono de toda tentativa de dar conta dos significados lexicais da maioria das palavras que utilizamos em nosso vocabulário cotidiano por parte dos filósofos da linguagem contemporâneos é a consciência que estes têm das dificuldades que não puderam ser evitadas quando da tentativa de Locke de fazê-lo. Incapazes de evitar os erros cometidos por Locke e incapazes de dar uma correta resolução ao problema por ignorarem os insights e as distinções necessárias para tanto, eles consideraram a coisa toda como um mau negócio.

CAPÍTULO IV Conhecimento e opinião  

1  

Segundo Aristóteles, todo homem tem por natureza o desejo de conhecer. Pode não ser verdade que, nascidas com essa propensão inata, todas as pessoas de fato continuem a nutri-la. Mas certamente há poucos que não consideram o conhecimento como algo desejável, um bem a ser valorizado, e um bem sem limites — que quanto mais se tem, melhor. Entende-se geralmente que aqueles que têm conhecimento de algo estão na posse da verdade sobre isso. As pessoas podem equivocar-se às vezes quanto à alegação de estarem na posse do conhecimento, mas se elas o estiverem, elas se apegam à verdade. A expressão “conhecimento falso” é uma contradição de termo; e “conhecimento verdadeiro” é manifestamente redundante. Entendido isto, a linha divisória entre o conhecimento e a opinião também deveria estar clara. Não há nada autocontraditório na expressão “opinião verdadeira”, ou redundante na expressão “opinião falsa”. Opiniões podem ser verdadeiras ou falsas, o conhecimento não o pode. Quando as pessoas alegam ter um conhecimento que se revela não ser conhecimento algum por ser falso, o que elas tomaram por conhecimento era apenas opinião. Intimamente conectadas a esta distinção entre conhecimento e opinião estão outras duas distinções. Uma é a distinção entre as coisas sobre as quais podemos ter certeza — para além de qualquer sombra de dúvida — e coisas sobre as quais ainda paira alguma dúvida. Podemos estar persuadidos delas para além de uma dúvida razoável, mas isso ainda não as retira inteiramente do reino da dúvida. Algumas dúvidas persistem. A outra distinção é aquela entre o corrigível e mutável e o incorrigível e imutável. Quando temos certeza de algo, nos

apegamos à verdade que é tanto incorrigível quanto imutável. Quando alguma dúvida permanece, mesmo no mais ínfimo grau, ela é tanto mutável quanto corrigível. Deveríamos reconhecer que podemos mudar nossas mentes em relação a ela e corrigir o que quer que esteja errado. De acordo com tais critérios para distinguir entre conhecimento e opinião, quanto conhecimento cada um de nós tem? A maioria de nós admitiria que tem muito poucos conhecimentos. A maioria de nós está consciente de que na história da ciência mesmo as formulações mais reverenciadas estiveram sujeitas à mudança e correção. E, ao mesmo tempo, a maioria de nós relutaria em dizer que as grandes generalizações ou conclusões da ciência, ora reinantes, não são senão meras opiniões. A palavra “opinião”, especialmente quando qualificada pela palavra “mera”, carrega uma tal conotação derrogatória que sentimos, bem propriamente, que chamar a ciência antes de opinião que de conhecimento é inadmissível. A única saída para essa dificuldade que eu conheço é aquela proposta por mim em um livro anterior contendo uma série de capítulos sobre a idéia de verdade.4 Eu a repito aqui em vista de pavimentar o terreno para discutir dois erros filosóficos modernos sobre o caráter e limites do conhecimento humano. A solução, assim me parece, consiste em reconhecer o sentido em que a palavra “conhecimento” quer dizer algo bem distinto de qualquer coisa que possa ser chamada uma opinião, e o sentido em que certo tipo de opinião pode também ser chamado, bem propriamente, de conhecimento. Isso a distinguiria de um outro tipo de opinião, bem distinta do conhecimento, que poderia ser propriamente chamada mera opinião. Quando os critérios para chamar algo de conhecimento são tão exatos quanto a certeza, a incorrigibilidade e a imutabilidade da verdade que é conhecida, então as poucas coisas que são conhecimentos ficam bem separadas de tudo quanto possa ser chamado opinião.

Exemplos de conhecimento nesse sentido extremo do termo são um pequeno número de verdades auto-evidentes. Uma verdade auto-evidente é aquela que estatui algo cujo oposto é impossível de ser pensado. Pode também ser chamada uma verdade necessária porque o seu oposto é impossível. Que um todo finito seja maior que qualquer de suas partes componentes e que cada parte de um todo finito seja menor que o todo são verdades auto-evidentes, necessárias. Não podemos pensar-lhes o oposto. Os termos parte e todo são indefiníveis. Não podemos dizer o que uma parte é sem recorrer à noção de todo, nem o que um todo é sem recorrer à noção de parte, e assim não podemos definir o que sejam parte ou todo por si mesmos. Ainda assim, tanto compreendemos o que parte e todo são em relação um ao outro, que não podemos compreender uma parte como sendo maior que um todo ou um todo como menor que uma parte. Às vezes, as definições entram em nossa compreensão de verdades auto-evidentes. Definimos um triângulo como uma figura plana de três lados. Definimos uma diagonal como uma linha desenhada entre ângulos não-adjacentes em um polígono plano regular. Sabemos que, possuindo três lados, um triângulo não tem nenhum ângulo não-adjacente. Logo, sabemos com certeza que é necessariamente verdadeiro que não pode haver diagonais em triângulos, como o pode em quadrados, pentágonos e em outros polígonos como estes. Quer eles saibam ou não, aqueles que dizem que temos muito pouco conhecimento, e que têm tanta certeza disso, talvez não percebam que o pouco conhecimento que temos desse tipo consiste em um punhado de verdades autoevidentes ou necessárias, como as que acabamos de mencionar. Tudo o mais é opinião, então? Sim e não; sim, se insistirmos sobre os critérios de certeza, incorrigibilidade e imutabilidade da verdade conhecida; não, se relaxarmos tais critérios e reconhecermos haver opiniões que podem ser afirmadas com base em evidências e razões com força probante suficiente

para justificar nossa alegação no momento em que a opinião afirmada é tida como verdadeira. Enfatizo “no momento” porque, desde que desistimos dos critérios de incorrigibilidade e imutabilidade, devemos estar preparados para que a opinião que ora desposamos como verdadeira com base em evidências e razões disponíveis neste momento torne-se falsa no futuro, ou necessite de correção ou alteração quando novas evidências e novas razões vierem à tona. Deveríamos estar preparados para dizer que tais opiniões corrigíveis e mutáveis são conhecimento — conhecimento de verdades dotadas de um futuro em que podem ser corrigidas, alteradas ou mesmo rejeitadas. Contra as opiniões que merecem os status de conhecimento neste sentido do termo, permanecem aquelas que devem ser chamadas meras opiniões por serem afirmadas sem nenhuma base na evidência ou na razão. Nossos preconceitos pessoais são tais meras opiniões. Nós os afirmamos firme e às vezes teimosamente, embora não consigamos apontar um único traço de evidência a seu favor nem oferecer uma única razão para alegar-lhes a veracidade. Isto também é verdadeiro em relação a algumas das crenças que acolhemos e acalentamos. Às vezes, usamos a palavra “crença” para significar que temos algum grau de dúvida sobre a opinião que alegamos ser verdadeira com base em evidências e razões. Neste caso, não é incorreto dizer acerca de algo que o conhecemos (porque temos bases suficientes para afirmá-lo como verdadeiro) e que também cremos nisso (porque as bases que temos ainda nos deixam com algum traço de dúvida em relação à sua veracidade). Entretanto, em outros tempos, utilizamos a palavra “crença” para significar total falta de evidência ou razões para afirmar uma opinião. Aquilo em que acreditamos ultrapassa todas as evidências e razões disponíveis naquele momento. Então, não deveríamos nunca dizer que sabemos, mas apenas que cremos na mera opinião sustentada por nós.

A única circunstância em que é totalmente inapropriado utilizar a palavra “crença” é no caso de estar em presença de verdades necessárias ou auto-evidentes. Sabemos que o todo é maior que qualquer de suas partes. Dizer que nós acreditamos [que o todo é maior que a parte], é uma notória incompreensão da verdade que está sendo afirmada. O mesmo se aplica a muitas, mas não a todas, verdades matemáticas. Sabemos, não cremos, que dois mais dois somam quatro. Não apenas preconceitos pessoais, mas tudo quanto diz respeito ao gosto pessoal — gostar disto ou desgostar daquilo —, recai no terreno da mera opinião. Em tais matérias de gosto ou preferência pessoal, podemos ter nossas próprias razões para gostar disto ou desgostar daquilo, mas estas razões não terão peso para outros cujos gostos e desgostos, ou preferências, forem contrários aos nossos. A extensão do vocábulo “conhecimento” para cobrir todas as opiniões corrigíveis e mutáveis que possam ser afirmadas com base em razões e evidências disponíveis num dado momento abrange mais do que opiniões que possam ser afirmadas para além de uma dúvida razoável ou mesmo para além de qualquer sombra de dúvida. Ela inclui também opiniões cujas evidências ou razões preponderam a seu favor contra outras cujas evidências ou razões são mais fracas. Em geral, pode-se dizer que conhecer não é como comer. Quando comemos algo, colocamos essa coisa dentro de nossos corpos, digerimo-la, assimilamo-la. Ela se torna parte de nós. Não mais permanece o que era antes de ser comida. Mas com impressionante diferença, o nosso ato de conhecer de maneira alguma afeta ou altera aquilo que conhecemos. De algum modo, podemos colocar a coisa conhecida dentro de nossas mentes, mas fazê-lo a deixa exatamente como se encontrava antes de a havermos conhecido. A única exceção ocorre no caso da mecânica quântica, onde os instrumentos utilizados para investigar os fenômenos que serão observados e medidos afetam estes mesmos fenômenos quando os observamos e medimos.

O que acabei de dizer sobre a diferença entre conhecer e comer me obriga a chamar a atenção para um outro uso especial, ou indevido, da palavra “conhecer”. Tal uso diz respeito à distinção entre dois atos mentais para os quais chamei atenção no capítulo anterior. O primeiro ato mental é a simples apreensão. Algum objeto é apreendido, seja um objeto perceptual, um objeto da memória ou imaginação, ou um objeto do pensamento conceituai. Estritamente falando, com uma única exceção, não deveríamos usar o termo “conhecimento” para nos referir a tais apreensões. À exceção das apreensões perceptuais, que não podem ser separadas dos juízos perceptuais, todas as outras apreensões estão totalmente privadas de qualquer juízo sobre o objeto apreendido — exista este objeto ou não, sejam suas características idênticas ou não às características de como ele se encontrava quando apreendido. Privada de tais juízos, uma apreensão não é conhecimento, pois não há nada que se possa dizer de verdadeiro ou falso a respeito dela. Verdade ou falsidade entram em cena apenas com o ato judicativo, e só então transcendemos a apreensão, para alcançar aquilo que, estritamente falando, podemos chamar conhecimento. Há um sentido em que conhecer é como comer. O comestível, antes de ser comido, existe de maneira bem independente daquele que o come e é o que é independente de como será transformado ao ser comido. Assim, também, o cognoscível existe de maneira bem independente daquele que o conhece e é o que é seja ele conhecido ou não, e, no entanto, é conhecido. A palavra que a maioria de nós usa para designar o caráter independente do cognoscível é “realidade”. Se não houvesse realidade, nem nada cuja existência e caráter fosse independente da mente cognoscente, não haveria nada cognoscível. Realidade é aquilo que existe quer pensemos nela quer não, e cujas características são tais e quais não importando o que delas pensemos.

A realidade que é cognoscível pode ser ou não física. Ela pode consistir ou não apenas de coisas perceptíveis aos nossos sentidos. Mas como quer que a caracterizemos, sua existência deve ser pública, não privada. Ela deve ser cognoscível para duas ou mais pessoas. Nada quanto seja cognoscível a apenas uma única pessoa pode ter o status de conhecimento. O que quer que possa genuinamente ser conhecido por alguém deve ser capaz de ser conhecido por outras pessoas. Que isto fique assentado como pano de fundo para a discussão a seguir. Utilizarei o termo “conhecimento” para cobrir tanto aquelas verdades necessárias e auto-evidentes que conhecemos com certeza quanto aquelas opiniões que somos capazes de afirmar com base em razões e evidências suficientes para sobrepujar qualquer opinião contrária. Utilizarei esse termo para me referir a coisas sobre as quais podemos dizer tanto que conhecemos quanto que cremos, porque algum grau de dúvida ainda paira sobre elas. Utilizarei sempre este termo para me referir a juízos que podem ser verdadeiros ou falsos, mas nunca para apreensões que não são nem verdadeiras nem falsas. E utilizarei a expressão “mera opinião” para o que quer que não possa ser considerado conhecimento em nenhum dos sentidos anteriores.  

2  

Os autores dos dois erros filosóficos de que ora nos ocupamos são David Hume e Immanuel Kant. A influência que, historicamente, Hume exerceu sobre Kant, admitida por este como tendo sido a responsável por levar seu edifício filosófico a evitar as conclusões alcançadas por Hume (as quais considerava insustentáveis, até mesmo desastrosas), lança alguma luz sobre a relação entre os dois erros. Vistos por um lado, os dois erros representam extremos opostos. Vistos por outro, representam faces opostas de um mesmo erro. Em ambos os casos, o erro tem a ver com o papel que a experiência sensível desempenha com respeito à origem e limites do conhecimento. Os dois erros são opostos um ao outro por assumirem posições opostas em relação à certeza,

imutabilidade e incorrigibilidade pertencentes ou não ao conhecimento. O erro de Hume tem suas raízes ou origem em erros anteriores, já discutidos nos capítulos i e n, e especialmente nos erros cometidos por John Locke com respeito aos sentidos e ao intelecto, e às idéias enquanto objetos diretamente apreendidos por nós. Por outro lado, o erro de Kant teve sua origem no erro cometido por Hume. Ele poderia ter evitado seu próprio erro assinalando que as conclusões alcançadas por Hume, as quais repugnou, baseavam-se em falsas premissas. Tivesse ele rejeitado tais premissas, isto por si teria sido suficiente para evitar as conclusões de Hume. Mas ele não o fez. Em vez disso, ele inventou e erigiu uma sutil e intrincada estrutura filosófica em um esforço por alcançar e sustentar conclusões as mais opostas às de Hume, e do mesmo modo incorretas.  

3  

Comecemos com Hume e então partamos para Kant. O ponto de partida é com a conclusão alcançada por Hume bem nas páginas finais de sua Investigação sobre o entendimento humano. É aqui que Hume propõe adotar o que ele chama “um ceticismo mais mitigado”, em oposição à forma mais extrema de ceticismo que nega a nossa possibilidade de obter qualquer conhecimento — segundo a qual não há nada verdadeiro ou falso. Assim, ele admite que possamos ter conhecimento de dois tipos. O primeiro é o tipo de conhecimento que se encontra nas matemáticas. Ele se refere a esse tipo como “ciência abstrata”, por não implicar nenhuma afirmação ou juízo sobre questões de fato ou existência real, mas lidar apenas com a relação entre nossas próprias idéias — nossas idéias de quantidade e número. Aqui, é possível haver demonstração e certo grau de certeza, mas ele acrescenta: “Todas as tentativas de estender

esta espécie mais perfeita de conhecimento para além destes domínios são mero sofismo e ilusão”. Nossas definições de certos termos nos dão algumas proposições ou juízos que também têm certo grau de certeza. Assim, se definirmos injustiça como uma violação da propriedade, então podemos ter certeza de que onde não houver propriedade, não poderá haver injustiça. Mas isto é só uma questão de definição. Injustiça pode ser definida de outra maneira, de modo que não é intrinsecamente impossível pensar que possa haver injustiça mesmo onde não haja propriedade. Hume então nos diz que, aparte às matemáticas, “todas as outras inquirições dos homens dizem respeito apenas a questões de fato e existência; e estas são, evidentemente, incapazes de demonstração”. O oposto de qualquer juízo segundo o qual algo existe ou é isto ou aquilo é sempre possível. Juízos sobre questões de fato e existência real podem ser sustentados por evidências e razões. Quando o são, constituem conhecimento, não mera opinião; mas sempre são conhecimento ao qual falta certeza e que recaem na esfera do duvidoso — a esfera do corrigível e do mutável. Tal conhecimento depende de nossa experiência sensível. “É apenas a experiência”, escreve Hume, “quem nos ensina a natureza e os limites da causa e do efeito, e nos permite inferir a existência de um objeto a partir de outro”. De acordo com estes critérios, Hume admite à esfera do conhecimento empírico (enquanto contrastado com a ciência abstrata) tais coisas como a história, a geografia e a astronomia, e também as ciências “que tratam de fatos gerais [...], política, filosofia natural, física, química, etc.”. Isto o conduz à sua estrondosa conclusão no último parágrafo da Investigação: Quando percorremos nossas bibliotecas, persuadidos destes princípios, que estragos devemos fazer? Se tomarmos em nossas mãos qualquer volume, de teologia ou metafísica escolástica, por exemplo, indaguemos: este volume contém algum raciocínio abstrato concernente à quantidade ou ao

número? Não. Contém algum raciocínio experimental concernente a matérias de fato e existência? Não. Lance-os então ao fogo: pois não podem conter nada senão sofismas e ilusões. A linha divisória entre o que merece ser honrado e respeitado como genuíno conhecimento e o que deve ser descartado como mera opinião (ou pior, como sofismas e ilusões) é determinada por dois critérios. (1) Trata-se de conhecimento e pode ser chamada ciência se lidar apenas com abstrações e não envolver nenhum juízo sobre questões de fato ou existência real. Aqui temos as matemáticas e, junto com elas, a ciência da lógica. (2) Trata-se de conhecimento se lidar com fatos particulares, como o fazem a história e a geografia, ou com fatos gerais, como a física e a química. Em ambos os casos, trata-se de conhecimento apenas na medida em que se baseia em raciocínios experimentais, envolvendo investigações empíricas do tipo das que ocorrem em laboratórios e observatórios, ou investigações metódicas do tipo das que são conduzidas por historiadores e geógrafos. O que Hume excluiu do reino do conhecimento? Embora ele se refira ao que denomina “filosofia natural”, que em seu século era idêntica ao que viríamos chamar de ciência física, sua intenção era rejeitar enquanto sofisma e ilusão, ou ao menos enquanto mera opinião, o que na Antiguidade e na Idade Média era a filosofia tradicional, que incluía tanto uma filosofia da natureza — ou uma física que não era experimental nem se baseava em investigações empíricas — quanto uma metafísica e uma teologia filosófica. Esta visão do conhecimento e da opinião nos chegou, nos séculos XIX e XX, na forma de uma doutrina que foi chamada ou positivismo ou cientificismo. O termo “positivismo” extrai seu significado do fato de que as ciências experimentais ou investigativas, e outros corpos de conhecimento, tais como a história, que se baseiam em investigação e pesquisa, vieram a ser chamadas ciências positivas. O positivismo, então, é a visão segundo a qual o único genuíno conhecimento da realidade ou do mundo dos

fenômenos observáveis (isto é, matérias de fato ou existência) deve ser encontrado nas ciências positivas. Matemática e lógica são também conhecimento genuíno, mas não são conhecimento do mundo dos fenômenos observáveis, ou de matérias de fato e existência real. A forma específica do positivismo ou cientificismo no século xx veio então a ser chamada “positivismo lógico”. Aqui temos uma faceta do erro sobre conhecimento e opinião, a outra faceta devendo ser encontrada na Crítica da razão pura de Immanuel Kant. Esta última é de longe a mais séria e aquela cujas conseqüências tiveram um alcance mais extenso.  

4  

Kant nos diz que David Hume o fez despertar de seus sonhos dogmáticos. Seu dogmatismo de base, assim como o ceticismo de Hume, que Kant também considerou repugnante, foram substituídos pela filosofia crítica que ele desenvolveu, a qual, às vezes, também é chamada filosofia transcendental, por causa de sua transcendência com relação à experiência. Para compreender isso, é necessário, primeiro, prestar atenção a duas distinções que são operativas no pensamento de Kant. Uma é a distinção entre o a priorieoa posteriori; outra é a distinção entre o analítico e o sintético. O a priori, de acordo com Kant, inclui o que quer que esteja na mente anteriormente a qualquer experiência sensível e também quaisquer juízos que esta possa fazer que não se baseiem na experiência sensível. O a posteriori é, obviamente, o oposto do a priori em ambos os aspectos. O analítico consiste de juízos cujas verdades dependem inteiramente de definições. Então, se o chumbo é definido como um metal não-condutor, então o juízo segundo o qual o chumbo não conduz eletricidade é um juízo analiticamente verdadeiro. Assim, também, se o homem for definido como animal racional, o juízo segundo o qual o homem é dotado de razão é analiticamente verdadeiro. Em cada um desses exemplos, o termo que é predicado do sujeito em questão

(“não conduz eletricidade” e “é dotado de razão”) já está contido na definição do próprio e respectivo sujeito (“chumbo” e “homem”). Claramente, tais juízos analíticos podem ser — a rigor, devem ser — a priori. A verdade deles depende unicamente da definição dos termos, não da experiência sensível. Hume teria considerado tais juízos analíticos como verdades que lidam com a relação entre nossas próprias idéias, não com questões de fato e existência. John Locke, antes dele, as considerou como meras tautologias verbais; em suas palavras, juízos que são “insignificantes e não-instrutivos”. Locke, a meu ver, está correto em dispensá-los como indignos de séria consideração. Anteriormente neste capítulo, expliquei o caráter das verdades auto-evidentes, verdades a que se podem atribuir os atributos da certeza e da incorrigibilidade por nos ser impossível pensar em seus opostos. Uma tal verdade como “um todo finito é maior que qualquer de suas partes” não é analítica no sentido de Kant: seus termos focais — “todo” e “parte” — são indefiníveis. Nem o será a priori no sentido de Kant: sua verdade depende de nossa compreensão dos termos “todo” e “parte”, uma compreensão que é derivada de uma única experiência, como rasgar uma folha de papel em pedacinhos, assim dividindo um todo em suas respectivas partes. Desde Kant, muitos filósofos vêm concebendo erroneamente aquilo que uma tradição filosófica mais antiga já havia entendido como sendo verdades ou axiomas auto-evidentes. Eles aceitaram erroneamente a redução kantiana de tais verdades a meras tautologias verbais, a meras sentenças insignificantes e não-instrutivas. Mas este não é o pior dos erros kantianos. Muito pior é a sua visão dos juízos sintéticos a priori. Um juízo sintético não é insignificante ou não-instrutivo. Ele não depende de uma definição arbitrária dos termos. É o tipo de juízo que Hume considerou como uma verdade sobre questões de fato ou existência real. Em todos os casos, o oposto do que é afirmado é possível — pensável, concebível. Mas para Hume, o próprio

fato de que um juízo seja sintético implica a dependência deste em relação à experiência de um ou de outro tipo. Ele não pode, portanto, ser um a priori — um juízo independente da experiência sensível. Sustentar que haja juízos sintéticos a priori, como o faz Kant, é, talvez, o único passo mais revolucionário dado por ele para superar as conclusões alcançadas por David Hume que ele considerou repugnantes. Qual era seu propósito fundamental ao fazer isso? Era estabelecer a geometria euclidiana e a aritmética tradicional como ciências que não apenas carregam certeza, mas que também contêm verdades que são aplicáveis ao mundo da nossa experiência. E também atribuir o mesmo status à física newtoniana. Para fazê-lo, Kant preencheu a mente humana com formas transcendentais da apreensão sensível ou intuição (as formas do espaço e do tempo), e também com categorias transcendentais do entendimento. Não se deve confundi-las com as “idéias inatas” de Descartes. A mente traz essas formas e categorias transcendentais à experiência, para assim constituir a forma e o caráter da experiência que temos. Segundo Kant, a mente não é (como John Locke corretamente insistiu em sua refutação das idéias inatas cartesianas) uma tabula rasa — um vazio total — até que adquira idéias inicialmente a partir da experiência sensível. Locke acertadamente subscreveu a máxima medieval segundo a qual nada está na mente sem que de algum modo tenha derivado da experiência sensível. Foi esta máxima que Kant rejeitou. As formas transcendentais da apreensão sensível e as categorias transcendentais do entendimento são inerentes à mente e constituem sua estrutura anterior a qualquer experiência sensível. A experiência comum que todos nós compartilhamos tem o caráter que tem porque este caráter lhe foi dado pela estrutura transcendental da mente humana. Ela foi formada e constituída por essa estrutura transcendental. Este elaborado mecanismo inventado por Kant lhe permitiu pensar que havia sido bem-sucedido em estabelecer e explicar

a certeza e incorrigibilidade da geometria euclidiana, da aritmética pura e da física newtoniana. Três eventos históricos são suficientes para mostrar quão ilusória era a visão segundo a qual ele havia sido bem-sucedido em realizá-lo. A descoberta e desenvolvimento das geometrias não- euclidianas e da moderna teoria dos números deveriam bastar para mostrar quão totalmente artificial fora a invenção kantiana das formas transcendentais do espaço e do tempo enquanto controladoras das nossas apreensões sensíveis e doadoras de certeza e realidade à geometria euclidiana e à aritmética pura. Similarmente, a substituição da física newtoniana pela moderna física relativista, a adição de leis probabilísticas ou estatísticas às leis causais, o desenvolvimento da física de partículas e da mecânica quântica, deveriam também bastar para mostrar quão totalmente artificial fora a invenção kantiana das categorias transcendentais do entendimento para atribuir certeza e incorrigibilidade à física newtoniana. Que ninguém no século XX consiga levar a sério a filosofia transcendental de Kant é algo desconcertante, embora ela possa sempre permanecer admirável sob certos aspectos como uma invenção intelectual extraordinariamente elaborada e engenhosa. E isto muito devido ao caráter ilusório daquilo que Kant reclamou para sua filosofia transcendental como uma tentativa de dar às matemáticas e à ciência natural um grau de certeza e incorrigibilidade que elas não possuem. O que dizer do caráter crítico alegado por Kant para sua filosofia — crítico no sentido de que ela nos salvaria do dogmatismo da metafísica tradicional, especialmente de sua cosmologia e teologia natural? Kant advoga pela exclusão da metafísica tradicional do reino do conhecimento genuíno alegando que este deve empregar conceitos derivados da experiência para fazer afirmações que vão além da experiência — a experiência que é constituída por uma estrutura a priori da mente humana. Onde Hume

descartou a metafísica tradicional como sofisma e ilusão, Kant a descartou como trans-empírica. Entretanto, nenhuma idéia usada na metafísica é um conceito empírico. A idéia de Deus, por exemplo, e a idéia do cosmos como um todo não são conceitos derivados da experiência sensível. São, ao contrário, construções teoréticas. Não há, portanto, nada de inválido em empregar tais idéias, mesmo que ultrapassem toda experiência sensível a que podemos ter acesso. Deixe-me acrescentar aqui que, diferente de um conceito empírico, uma construção teorética não tem e não pode ter quaisquer exemplos particulares percebidos. O que acabei de dizer sobre tais conceitos metafísicos como Deus e o cosmos se aplicam igualmente a algumas das mais importantes idéias da física teorética do século xx, como a idéia de quark, de algumas partículas elementares, tais como mésons, ou de buracos negros. Todas estas são construções teoréticas, não conceitos empíricos. Kant não tem consciência da distinção entre conceitos empíricos e constructos teoréticos. Suas razões para descartar a metafísica tradicional como desprovida da validade apropriada ao genuíno conhecimento se aplicaria igualmente a muito da física do século XX. Aqui, uma vez mais, temos motivos para não levar muito em consideração as reivindicações de Kant quanto ao caráter crítico de sua filosofia. Finalmente, chegamos àquele que é, talvez, o erro mais grave que a filosofia moderna herdou de Kant — o erro de substituir o realismo pelo idealismo. Embora Locke e seu sucessor Hume tenham cometido o erro de pensar que as idéias em nossas mentes são os únicos objetos que diretamente apreendemos, eles de algum modo (embora não sem se contradizerem) consideravam que nós temos conhecimento de uma realidade que é independente de nossas mentes. Isto já não se dá em Kant. O conhecimento válido que nós temos é sempre e apenas conhecimento de um mundo que experimentamos. Mas precisamente porque este é um mundo experimentado por nós,

ele não é, segundo Kant, um mundo independente das nossas mentes. Ele não é independente, como já tivemos ocasião de ver, porque a experiência é constituída pela estrutura transcendental ou a priori de nossas mentes — suas formas da intuição ou apreensão e suas categorias do entendimento. Não sendo independente de nossas mentes, ele dificilmente poderá ser considerado como realidade, pois a principal característica do real é a sua independência com relação à mente humana. Para Kant, as únicas coisas que são independentes da mente humana são, em suas palavras, “Dinge an sich” — as coisas em si mesmas que são intrinsecamente incognoscíveis. Isto equivale a dizer que o real é incognoscível, e que o cognoscível é ideal no sentido de que está investido das idéias que nossas mentes lhe trazem para torná-lo o que é. O positivismo ou cientificismo que tem suas raízes nos erros filosóficos de Hume, e o idealismo e criticismo que têm as suas nos de Kant, geraram muitas consequências embaraçosas que têm atormentado o pensamento moderno desde seus dias. Em quase todos os casos, o problema consistiu em que pensadores posteriores tentaram evitar estas consequências sem corrigir os erros ou enganos que as geraram. Neste curto capítulo, é impossível abordar todas as deficiências, confusões e erros adicionais no pensamento dos séculos xix e xx. Restringir-me-ei a um breve tratamento do tema do conhecimento e da opinião que corrija e evite os erros filosóficos cometidos por Hume e Kant.  

5  

Retomemos ao ponto focal desta discussão — a distinção entre conhecimento e mera opinião. Por um lado, temos verdades auto-evidentes que carregam certeza e incorrigibilidade; e também temos verdades que estão ainda sujeitas à dúvida, mas que são embasadas por evidência e razões em um grau que as coloca para além da dúvida razoável ou ao menos lhe dá predominância sobre visões contrárias. Tudo o mais é mera opinião — sem nenhuma

pretensão de ser conhecimento ou ter alguma influência sobre a verdade. Não se discute que as descobertas e conclusões da pesquisa histórica sejam conhecimento neste sentido; nem que as descobertas e conclusões das ciências experimentais ou empíricas, tanto natural quanto social, também o sejam. Contrastadas a tal conhecimento, que é conhecimento da realidade ou, como diria Hume, conhecimento de matérias de fato e existência real, as matemáticas e a lógica também são conhecimento, mas não da realidade. Elas não são conhecimento experimental ou empírico. Elas não dependem da pesquisa investigativa para alcançar suas descobertas e conclusões. A questão que resta por ser respondida é aquela a que, a meu ver, Hume e Kant responderam erroneamente. Uma resposta que persistiu de várias formas até os nossos dias. Onde a filosofia teorética ou especulativa (pela qual me refiro à física filosófica, à metafísica e à teologia filosófica) se situa neste quadro? Será ela mera opinião ou genuíno conhecimento — conhecimento que, como as ciências empíricas, é conhecimento da realidade? Conforme Sir Karl Popper, um dos mais eminentes filósofos da ciência de nossos tempos, a linha demarcatória entre conhecimento e opinião é determinada por um único critério: falseabilidade pela evidência empírica, pelos fenômenos observados. Uma opinião, uma concepção, uma teoria que não possa então ser falseada não é conhecimento, mas mera opinião, nem verdadeira nem falsa em qualquer sentido objetivo destes termos. Desenhando esta linha demarcatória, Popper coloca as ciências experimentais e empíricas de um lado da linha, e a filosofia teorética (abarcando o que eu indiquei acima) do outro. Embora o expresse em termos de certo modo diferentes, Popper repete a conclusão alcançada por Hume em sua Investigação. As razões para alcançar a conclusão oposta são as seguintes.

Em primeiro lugar, o que foi esquecido foi a distinção entre experiência comum e especial. A evidência empírica à qual a ciência e a história apelam é a evidência que consiste em dados observados produzidos por investigação metódica, utilizando todos os dispositivos e instrumentos do laboratório e do observatório. Tais dados observados não fazem parte da experiência das pessoas comuns que não estão engajadas na investigação científica ou histórica. Em nítido contraste a tal experiência especial, disponível apenas aos que se engajam na investigação, há a experiência cotidiana e comum de todos nós durante as horas em que estamos despertos ao longo da vida. Esta experiência nos chega simplesmente por estarmos acordados, em estado de vigília, e nossos sentidos operando. Não fazemos esforços para alcançá-la; não estamos buscando responder determinadas questões por meio dela; não empregamos nenhum método para refiná-la; não utilizamos nenhum instrumento de observação para obtê-la. Subjacente ao espectro deste tipo geral de experiência, encontramos um núcleo que constitui a experiência comum da humanidade experiência que é a mesma para todos os seres humanos de todos os tempos e lugares. Com esta distinção em mente, entre experiência comum e especial, entre experiência resultante de esforços investigativos e experiência alcançada sem tais esforços, podemos distinguir entre corpos de conhecimento que, na medida em que dependem tanto da experiência quanto do pensamento reflexivo, recaem em diferentes tipos de experiência. As matemáticas representam um caso notável. A pesquisa matemática é conduzida principalmente por pensamento reflexivo e analítico, mas também recai sobre algum tipo de experiência — a experiência comum que todos os seres humanos têm. Os matemáticos não se engajam em investigações empíricas. Eles não precisam de nenhum dado observacional especial. As matemáticas podem ser chamadas uma “ciência-poltrona”, mas mesmo assim alguma experiência

— a experiência comum da humanidade — subjaz ao pensamento reflexivo e analítico em que os matemáticos se engajam. A filosofia especulativa ou teorética, como as matemáticas, é um corpo de conhecimento que pode ser produzido em uma poltrona ou em uma escrivaninha. A única experiência de que os filósofos precisam para o desenvolvimento de suas teorias ou para o suporte de suas conclusões é a experiência comum da humanidade. Refletindo sobre tal experiência e procedendo por meio de análise racional e argumentação, o filósofo alcança conclusões de um modo que parece o proceder de um matemático, não de um cientista empírico. Contudo, não devemos falhar em notar uma diferença importante, uma diferença que aproxima o filósofo teorético mais ao cientista empírico do que ao matemático. Diferente das matemáticas, mas semelhante às ciências empíricas, a filosofia teorética alega ser conhecimento da realidade. À luz do que já foi dito, podemos dividir a esfera do conhecimento em (1) corpos de conhecimento que são metodicamente investiga ti vos e (2) corpos de conhecimento que são não-investigativos e que empregam apenas experiência comum, não especial. Ao primeiro grupo pertencem a história, a geografia e todas as ciências empíricas, tanto naturais quanto sociais. Ao segundo pertencem as matemáticas, a lógica e a filosofia teorética. Se a divisão for feita nos seguintes termos: se o corpo de conhecimento alega ter um domínio sobre a verdade da realidade, então a filosofia teorética, conquanto seja metodicamente não-investigativa, pertencerá, junto com a história, a geografia e as demais ciências empíricas, ao primeiro grupo. Cada uma dessas disciplinas, conforme seu caráter distintivo, tem um método peculiarmente próprio e, conforme as limitações desse método, pode responder apenas a algumas questões, não outras. O tipo de questões que os filósofos ou os matemáticos podem responder sem quaisquer investigações empíricas não pode ser respondido por cientistas empíricos,

assim, em sentido inverso, o tipo de questões que os cientistas podem responder por seus métodos investigativos não pode ser respondido por filósofos ou matemáticos. A linha demarcatória entre todos esses corpos de conhecimento e a mera opinião implica em critérios outros que aquele proposto por Popper. Falseabilidade por experiência — trate-se de dados observados pela investigação científica ou da substância da experiência comum — é certamente um critério pelo qual separamos o conhecimento genuíno da mera opinião. Mas não é o único. Um outro critério é a refutabilidade pela argumentação racional. As únicas verdades irrefutáveis que possuímos são as muito poucas proposições auto-evidentes dotadas de certeza, finalidade e incorrigibilidade. Desde que nosso conhecimento da realidade, seja científico ou filosófico, não consiste exclusivamente de verdades auto-evidentes nem de conclusões demonstradas verdadeiras por meio da dedução a partir de premissas estas sim auto-evidentes, teorias ou conclusões científicas e filosóficas devem ser refutáveis de, ao menos, três maneiras. Uma é o falseamento pela experiência, que produz evidência contrária à evidência empregada para suportar a opinião alegadamente verdadeira e com status de conhecimento. Outra é pela argumentação racional, que apresenta razões que corrigem e substituem as razões apresentadas para sustentar a opinião alegadamente verdadeira e com status de conhecimento. A terceira é pela combinação da primeira com a segunda — evidência nova e melhor, e razões novas e melhores, que juntas sustentem uma visão contrária àquela refutada. Opiniões que não podem ser refutadas de uma ou outra dessas três maneiras não são conhecimento, apenas mera opinião. Não fosse isto assim, este livro seria fraudulento em sua alegação de apontar os erros filosóficos e corrigi-los oferecendo evidências e razões para expô-los como tais. Nem poderíamos

substituí-los pelas visões que consideramos verdadeiras ou mais próximas da verdade. Se a filosofia fosse questão de mera opinião, não haveria erros filosóficos, concepções errôneas, falsas doutrinas. Não haveria meios de substituí-los por visões ou doutrinas mais próximos da verdade, pois, por um motivo ou outro, aqueles que cometeram tais erros empregaram insights e apelaram a distinções em cuja posse não se encontravam. 6  

A análise anterior não foi exaustiva. Não incluiu corpos de conhecimento que resultam da pesquisa acadêmica em campos tais como a filologia, a religião comparada, ou as belas artes. Se estes corpos de conhecimento recaem sob a categoria da investigação metódica, eles pertencem ao grupo das ciências empíricas, não ao da filosofia. A outra questão a ser decidida é se eles são ou não conhecimento da realidade. Referências à fé ou crença religiosa também foram omitidas. Alega-se que seja efetivo conhecimento, e perderia toda sua eficácia se fosse reduzida à mera opinião. Mas os motivos pelos quais isto é alegado são tão diferentes dos critérios que empregamos até agora para distinguir o genuíno conhecimento da mera opinião que é impossível, no breve escopo desta discussão, situar a crença ou fé religiosa dentro do quadro ora em tela. Com base na experiência comum que todos nós possuímos, temos conhecimento de senso comum sobre matérias de fato e existência real, conhecimento que não é nem científico nem filosófico. Há, contudo, uma relação entre tal conhecimento de senso comum e a filosofia teorética que não existe entre ele e a ciência empírica. A filosofia teorética é um refinamento reflexivo e analítico do que sabemos por senso comum à luz da experiência comum. O nosso conhecimento de senso comum é aprofundado, iluminado e elaborado pelo pensamento filosófico. Praticamente não há filosofia sólida que entre em conflito com nosso conhecimento de senso comum, pois ambos se baseiam na experiência humana comum, da qual emergem.

Foi por isso que reiterei de novo e de novo que a filosofia, diferentemente das ciências investigativas, da pesquisa histórica, ou das matemáticas, é um negócio para todos. Todos esses são campos que tendem cada vez mais para uma maior especialização e se tornam a província de uma ampla variedade de especialistas. Só a filosofia, por causa de sua íntima conexão com o conhecimento de senso comum das pessoas comuns, permanece não-especializada — a província do generalista, um negócio para todos. A importância de refutar os erros cometidos por Hume e Kant, erros que são amplamente prevalentes no século XX, é que, em uma época tão dominada pela crescente especialização em todas as outras áreas do saber, relegar a filosofia teorética ao reino da mera opinião conduz a um desastre cultural. Se as especulações filosóficas não forem respeitadas em suas reivindicações de ter domínio sobre a verdade da realidade, nossa cultura deixará de ter generalistas. O conhecimento não é o mais elevado dos bens intelectuais. De maior valor é o entendimento e, além dele, a sabedoria. Estes são bens que, não importa em que medida sejam obtidos, se tornam nossos sempre através do pensamento filosófico, nunca do conhecimento científico. A filosofia nos dá suas contribuições não apenas como corpo de conhecimento, mas também porque é através do pensamento filosófico que nos tornamos aptos a entender tudo o mais quanto conheçamos. Estamos justificados em esperar que de tal entendimento, com maturidade de juízo e ampla experiência, algum grau de sabedoria será finalmente alcançado.  

CAPÍTULO V Valores morais  

1  

No capítulo precedente, lidamos com o conhecimento da realidade — com matérias de fato e existência real. Levamos em consideração, ali, o status da filosofia teorética ou especulativa, que reivindica ser genuíno conhecimento da realidade. A questão que enfrentamos aqui é se há outro tipo de conhecimento, tal como a filosofia moral, que não reivindica ser conhecimento da realidade, mas que está preocupado com os valores morais — com o bem e o mal, o certo e o errado, com o que devemos buscar em nossas vidas, e com o que devemos ou não devemos fazer. Há claramente um abismo entre juízos sobre o que existe ou não, ou sobre quais são ou quais não são as características de alguma coisa existente, e juízos sobre o que deve ou não ser buscado ou o que deve ou não ser feito. Ao primeiro tipo de juízo, envolvendo asserções que são existenciais ou caracterizadoras, chamemo-lo descritivo. Ao segundo tipo, envolvendo deveres e não-deveres, chamemo-lo prescritivo. Às vezes, este último é também chamado normativo, porque estabelece padrões ou normas de conduta a serem seguidos. O abismo acima referido se dá entre matérias de fato por um lado, e questões de valor por outro, especialmente valores tais como bem e mal, certo e errado. Juízos sobre estas matérias estão intimamente relacionados ao tipo de juízo que acabei de denominar prescritivo ou normativo. Se pensarmos que algo é realmente bom, isto equivale a dizer que este algo deve ser buscado. Assim, também, se pensarmos que algo é realmente o certo a se fazer, isto equivale a dizer que este algo deve ser feito. Em geral, se as pessoas fossem perguntadas sobre que posição tomariam em relação à questão de se a filosofia moral é um conhecimento genuíno atrelado à verdade dos valores

morais, descobriríamos, penso eu, que elas se dividem em dois grupos. Eu não arriscaria um palpite sobre qual grupo representa uma clara maioria, mas o meu palpite é de que nenhum supera muito o outro. Um grupo consiste daqueles que pensam que quando lidamos com a realidade, com questões de fato e existência real, realmente temos conhecimento genuíno e algum apego à verdade, embora esta verdade possa estar sujeita à dúvida e correção. Mas na visão deles, nossos juízos de valor sobre o bem e o mal, o certo e o errado, ou nossos juízos prescritivos sobre o que deve ou não ser feito, não são nem verdadeiros nem falsos. Eles não expressam nada mais que nossas preferências pessoais, nossos gostos e desgostos. Para este grupo, a filosofia moral não é um corpo de genuíno conhecimento. Juízos morais são apenas mera opinião, sobre o qual não faz sentido argumentar, assim como não faz sentido argumentar sobre questões de gosto ou predileção pessoal. Ao enfrentar disputas sobre valores morais, este grupo os descarta como desprovidos de sentido, repetindo aquela frequente observação segundo a qual “o que para uns é comida, para outros é veneno”. Eles podem até citar Montaigne ou Shakespeare no sentido de que não há nada de bom ou mau que não seja produzido pelo pensamento. O outro grupo assume a visão diametralmente oposta. Para eles, há padrões absolutos e universais de certo e errado, do que deve e do que não deve ser feito. Eles não se empenham em argumentações sobre tais matérias, pois se sentem seguros em sua afirmação dogmática de que a existência objetiva dos valores e padrões morais é incontroversa. Eles às vezes se acham a maioria, mas o sejam ou não, constituem uma considerável parcela da população. Há muito pouca, para não dizer nenhuma, disputa ou debate genuíno entre esses dois grupos. Cada um, por suas próprias razões, consideraria qualquer tentativa de resolver o problema entre eles como completamente fútil. Nesse sentido, ambos são igualmente dogmáticos. O primeiro grupo seria incapaz de defender sua atitude subjetivista e relativista em relação aos

valores morais, se esta fosse criticamente desafiada. O segundo grupo seria incapaz de sustentar a visão oposta por meio de argumentos racionais: ele provavelmente apelaria a artigos de fé religiosa, mas isto seria o mais longe que conseguiria chegar. Antes de continuar, deixe-me assegurar que todos nós entendamos tão claramente quanto possível o significado de tais termos como subjetivo e relativo, de um lado, e objetivo e absoluto, do outro. Subjetivo é aquilo que difere para você, para mim e para todos os demais. Em contraste, objetivo é aquilo que é o mesmo para você, para mim e para todos os demais. Relativo é aquilo que varia de um tempo para outro e se altera conforme as modificações circunstanciais. Em contraste, absoluto é aquilo que não varia de um tempo para outro e não se altera conforme as modificações circunstanciais. De um lado deste problema relativo aos valores morais e juízos prescritivos estão os que sustentam que tais valores e juízos são subjetivos e relativos. Do outro estão os que sustentam que tais valores e juízos são objetivos e absolutos. Não apenas as pessoas em geral, mas também os filósofos se dividiram quanto ao posicionamento em face deste problema. Os erros filosóficos de que este capítulo se ocupará afirmam, por diferentes razões, que os valores morais e os juízos prescritivos são subjetivos e relativos. Um destes erros, o erro hedonista de identificar o bem ao prazer, é tanto antigo quanto moderno. Os demais são distintivamente modernos em sua origem. Aqueles dentre os quais, em geral, sustentam a visão de que os valores morais e os juízos prescritivos são subjetivos e relativos não estão familiarizados com os erros filosóficos subjacentes a esta visão. Até que lhes chegassem, estes erros foram aos poucos sendo filtrados, e lhes penetraram as mentes sem que deles estivessem explicitamente conscientes. Aqueles dentre os quais, em geral, tão dogmaticamente sustentam a visão oposta estão igualmente inconscientes dos insights, distinções e argumentos pelos quais a concepção a

que aderem pode ser racionalmente defendida e sustentada. Eles não sabem como, racional e argumentativamente, poderiam corrigir os erros cometidos por seus oponentes. Com tudo isso em mente, proponho proceder da seguinte maneira: tentarei, primeiramente, abordar o erro hedonista, que é tanto antigo quanto moderno; e então me voltarei para o erro mais fundamental que o pensamento moderno herdou de David Hume, um erro que Immanuel Kant tentou corrigir, mas em que falhou miseravelmente, por haver ido muito longe na direção oposta. Tendo feito isso, tentarei, em uma sessão seguinte, expor o que subjaz na raiz destes erros, particularmente daqueles de origem moderna. Finalmente, de modo breve e resumido, direi o que penso no tocante às sérias conseqüências do subjetivismo e do relativismo com respeito aos valores morais, e falarei da importância de corrigir os erros filosóficos que as engendram.  

2  

A versão popular e vulgar do hedonismo leva seus expoentes a serem subjetivistas e relativistas quanto aos valores morais. Identificando o bem ao prazer, é fácil concluir que aquilo que determinada pessoa considera bom, porque lhe dá prazer, talvez não seja do mesmo modo considerado por outra pessoa. Os prazeres que os seres humanos experimentam variam de indivíduo para indivíduo, de época para época, e conforme mudem as circunstâncias. Mas a partir do momento em que se fazem questionamentos e distinções, a posição hedonista, tal como popularmente sustentada, deixa de ser defensável. Dizer que somente o prazer é bom é dizer que a riqueza, a saúde, a amizade, o conhecimento e a sabedoria não são bons. Isto, por sua vez, quer dizer que eles não são nem desejáveis nem desejados de fato por ninguém, pois o que quer que seja desejável ou desejado será, decerto, bom (ou um bem) em algum sentido. Os fatos da vida cotidiana, então, tornam

impossível sustentar que a única coisa que de fato todos desejam ou prezam como desejável seja o prazer. Foi nesse sentido que Platão, em seu diálogo Filebo, argumentou contra a visão sofistica segundo a qual o prazer e o bem são a mesma coisa. Se uma vida que inclua tanto prazer quanto sabedoria é mais desejável do que outra que inclua apenas prazer, então o prazer não é o único bem. De maneira similar, Aristóteles, no livro décimo de sua Ética a Nicômaco, argumentou contra Eudoxo. O prazer acompanha nossas atividades, escreveu ele, mas “o prazer próprio de uma atividade digna é bom e o prazer próprio de uma atividade indigna é mau”. Na Antiguidade, Epicuro e seus seguidores, por corajosamente afirmar que o prazer e o bem são idênticos, começaram sendo simples hedonistas, mas tão logo se puseram a investigar quais os caracteres delineadores de uma boa vida, logo se lhes tornou evidente que há nela outras coisas desejáveis — e até mais desejáveis — que o simples prazer. Eles distinguiram entre prazeres inferiores e superiores, sendo os prazeres do intelecto, em sua visão, mais desejáveis que os prazeres dos sentidos. Mas, para sustentar tal distinção, os epicuristas devem ter tido algum outro critério de bondade distinto do mero prazer em si e por si. No mundo moderno, o principal hedonista confesso é John Stuart Mill, que, em seu Utilitarismo, reconhece Epicuro e a escola epicurista como seus precursores. Mas, como Epicuro, Mill não consegue sustentar por muito tempo a visão simplista segundo a qual o único bem é o prazer. Também ele distingue entre prazeres que são mais ou menos desejáveis. “Não se conhece nenhuma teoria epicurista da vida”, escreve Mill, “que não atribua aos prazeres do intelecto, dos sentimentos, da imaginação e dos sentimentos morais, um valor mais elevado que àqueles da mera sensação”. E acrescenta, em uma passagem muito famosa:  

É melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito que um tolo satisfeito. E se o tolo, ou o porco, forem de uma opinião

diferente, é porque eles apenas conhecem seu próprio lado da questão. O outro pólo da comparação conhece os dois lados.  

Esta passagem contém duas palavras, “satisfeito” e “insatisfeito”, que carregam a chave para a insustentabilidade do hedonismo simplista. As pessoas que em geral são hedonistas, e também filósofos que alegam sê-lo, como Epicuro e Mill, ignoram uma distinção que muda o cenário radicalmente. Trata-se da distinção entre os prazeres sensíveis enquanto objetos de desejo e o prazer a que chamamos satisfação quando qualquer um dos nossos desejos é realizado. Prazeres sensíveis (ou sensuais) não podem ser identificados ao bem, pois certamente não são as únicas coisas que desejamos, nem os consideramos sempre mais desejáveis que outras coisas, para cuja aquisição estamos dispostos até a sofrer. Por outro lado, o prazer que experimentamos quando algum dos nossos desejos é satisfeito — o prazer que é idêntico à satisfação do desejo — é um acompanhante do bem, mas não idêntico a ele. Seja o bem tanto riqueza, saúde, amizade, conhecimento ou sabedoria, quanto prazer sensível. Quando este ou aquele bem é desejado por nós e somos bem-sucedidos em obter o objeto de nosso desejo, experimentamos o prazer que consiste em ter nosso desejo satisfeito. Quando Epicuro ou Mill falam sobre prazeres inferiores e superiores, eles estão, na verdade, falando de bens inferiores e superiores — sobre a sabedoria como um bem superior ao prazer sensível, por exemplo. O prazer ou satisfação que experimentamos ao obter um bem antes superior do que inferior é, então, ele mesmo um prazer superior ou uma satisfação maior. A distinção entre os dois sentidos da palavra “prazer” — ao referir-se, por um lado, aos prazeres sensíveis e, por outro, à satisfação de qualquer desejo — torna o hedonismo simplista indefensável. Mas isso não resolve o problema dos valores morais: se eles são objetivos e absolutos ou subjetivos e relativos.

Em primeiro lugar, não podemos encontrar em Epicuro ou Mill as bases para ordenar os bens em superiores e inferiores, ou para mostrar que aquilo que alguns indivíduos consideram como bens superiores deveria ser assim considerado por todos os demais em todos os tempos e lugares e sob todas as circunstâncias. Mill condena aqueles “que perseguem indulgências sensuais em detrimento da saúde, embora perfeitamente conscientes de que a saúde é o bem maior”. Mas isto inclui todas as pessoas, ou só algumas? E quanto àqueles que buscam prazeres sensíveis à revelia de sua saúde, considerando não esta última como bem maior? Como proporemos argumentos racionais para persuadi-los de que estão errados — de que todos deveríam preferir a saúde aos prazeres sensíveis porque aquela é o bem maior? E esta deve ser — a proposição prescritiva — objetiva e absolutamente verdadeira? Estas são questões para as quais não podemos encontrar respostas satisfatórias em Epicuro ou Mill. Embora talvez eles tenham sido forçados por seu próprio senso comum a abandonar seu hedonismo simplista inicial, não estão totalmente resguardados de erros. Em quaisquer dos dois sentidos, identificar o bem com o desejável, em vez de com o prazer, ainda os deixa vulneráveis ante o subjetivismo e o relativismo. Por quê? Porque as pessoas diferem nos seus desejos, e, portanto, o que é desejado por uma pode não o ser por outra, e o que é desejado em certo tempo e sob certas circunstâncias pode não o ser em outro e sob outras circunstâncias. O que é bom ou mau muda, então, de pessoa para pessoa, de um tempo para outro, de um conjunto de circunstâncias para outra. Foi Spinoza quem, no princípio dos tempos modernos, avançou a visão segundo a qual o que quer que alguém deseje parecerá bom a essa pessoa como consequência do seu ato de desejá-lo. O que quer que realmente desejemos, denominamos bem. Bem, sustentou Spinoza, não é nada mais que o nome associado a quaisquer objetos que nos ocorra desejar. Nós os

consideramos bens (ou bons) porque os desejamos, não o contrário — desejá-los porque eles são de fato bens. A menos que se possa provar que Spinoza está errado, não há meios de escapar do subjetivismo e do relativismo que se segue inexoravelmente à identificação do bem com aquilo que é conscientemente desejado por alguém ou explicitamente pensado como desejável pelas pessoas. Como desejos efetivos ou opiniões sobre o desejável mudam de pessoa para pessoa e de tempo para tempo, o juízo de que algo é bom ou mau permanece sendo subjetivo, uma predileção pessoal, e relativo ao tempo e às circunstâncias. Embora seja verdadeiro que Spinoza, assim como Epicuro antes dele e Mill depois, propôs teorias éticas nas quais certos bens são enfaticamente afirmados como superiores ou melhores que outros — não apenas para este ou aquele indivíduo, mas para todas as pessoas e sob todas as circunstâncias —, tais autores não têm em suas éticas ou filosofias morais bases adequadas para estabelecer a verdade de suas concepções, nem para se contrapor ao subjetivismo e relativismo que não conseguem superar por causa de outras coisas que dizem ou falham em dizer. Bases adequadas podem ser encontradas, mas eu as postergarei até que tenhamos enfrentado um ataque ainda mais sério à validade da filosofia moral e de sua legitimação como genuíno conhecimento em vez de mera opinião.  

3  

A origem daquele ataque mais sério pode ser encontrada no Tratado sobre a natureza humana de David Hume, no século xviii. Em uma famosa passagem, Hume pontua que, em suas leituras de obras que lidam com questões de moralidade, ele frequentemente se surpreende ao descobrir que seus autores alternam entre dizer qual é ou não é a questão na realidade e fazer asserções sobre o que deve ou não ser feito na condução da vida humana. Ele então prossegue dizendo:  

Como este deve ou não deve expressa alguma nova relação de afirmação, é necessário que seja observado e explicado; e, ao mesmo tempo em que uma razão deva ser dada para o que parece totalmente inconcebível, do mesmo modo esta nova relação pode ser uma dedução a partir de outras, que são inteiramente diferentes dela. Devo me atrever a recomendá-la aos leitores; e estou persuadido de que esta pequena atenção subverteria todos os sistemas de moralidade vulgares.  

Deixe-me explicar o importante ponto que Hume está aqui assinalando, sobre o qual não está de todo incorreto. Chamando a atenção para a distinção entre sentenças descritivas (envolvendo asserções sobre o que é ou não é) e sentenças prescritivas (envolvendo asserções sobre o que deve ou não ser feito), Hume corretamente declara que o primeiro tipo de sentença não pode nos fornecer bases adequadas para, de modo válido e convincente, alcançar uma conclusão que consiste no segundo tipo de sentença. Mesmo se as premissas que fôssemos empregar consistissem em conhecimento completo de matérias de fato e existência real (todo o conjunto de sentenças sobre o que a realidade é), não poderíamos, partindo delas, argumentar validamente a favor de uma única conclusão prescritiva ou normativa. Ao assinalar esse ponto, Hume estava inteiramente correto. Não se pode validamente extrair uma conclusão prescritiva partindo de premissas inteiramente descritivas. Há alguma saída para este problema? Podemos encontrar bases para afirmar a verdade das conclusões prescritivas? A resposta será sim, se pudermos encontrar uma maneira de combinar uma premissa prescritiva com uma descritiva e tomálas como base para o nosso raciocínio até que cheguemos à conclusão. Hume não encontrou, nem o poderia, o caminho para solucionar este problema, e, por causa desta falha, tornou-se o grande responsável pelo ceticismo em relação à verdade objetiva da filosofia moral que veio a ser prevalente no século XX.

O ceticismo que tenho em mente atende pelo nome de “ética não-cognitiva”. Trata-se de uma maneira elegante de dizer que a ética ou filosofia moral não tem estatuto de conhecimento genuíno. Ela consistiria apenas de opiniões que expressam nossos gostos e desgostos, nossas preferências ou predileções, nossos desejos ou aversões, e mesmo os comandos que damos a outros. Como Bertrand Russel disse certa vez de maneira espirituosa: “A ética é a arte de recomendar aos outros o que fazer para se dar bem conosco”. O conteúdo da ética não-cognitiva, consistente de meras opiniões deste tipo, não é nem verdadeiro nem falso. O que vale para as meras opiniões de qualquer tipo vale para as meras opiniões sobre valores morais e deveres. Elas são inteiramente subjetivas e relativas ao tempo e à mudança das circunstâncias. Um argumento a favor da ética não-cognitiva deriva do apontamento crítico de Hume segundo o qual nosso conhecimento da realidade, não importa quanto dele tenhamos nem com que sabor se nos apresente, não pode por si estabelecer a verdade de um único juízo prescritivo. Contudo, este não é o único argumento. Há um outro apontamento crítico que tende a remover os juízos prescritivos da esfera da verdade e a realocá-los no reino das meras opiniões que não são nem verdadeiras nem falsas. Esse apontamento foi feito por um filósofo inglês do século xx, A. J. Ayer, bem como por outros em seu círculo. Ele apela à teoria da verdade como correspondência. Estamos em posse mental da verdade quando o que pensamos concorda com o modo como as coisas são. A antiga formulação dessa teoria declarava que nós dominamos a verdade quando afirmamos que o que é, é, e o que não é, não é; e que a falsificamos quando afirmamos que o que é, não é, ou que o que não é, é. Essa teoria da verdade como correspondência, como concordância da mente com a realidade, obviamente se aplica apenas a sentenças descritivas — sentenças que envolvem asserções sobre o que é ou não. Do mesmo modo, essa teoria obviamente não se aplica às sentenças prescritivas. Quando

dizemos que algo deve ou não ser feito, a que isto pode corresponder na realidade? Claramente a nada; e assim, se o único tipo de verdade existente é aquele definido pela teoria da verdade como correspondência, então sentenças prescritivas não podem nem ser verdadeiras nem falsas. É com isso em mente que A. J. Ayer escreve: Se uma sentença não afirma nada, não faz obviamente nenhum sentido perguntar se o que ela diz é verdadeiro ou falso. E, como vimos, sentenças que simplesmente expressam juízos morais não dizem nada. Elas são puramente expressão de sentimentos e, como tal, não recaem sob as categorias da verdade ou falsidade. Elas são inverificáveis pelas mesmas razões que um grito de dor ou uma palavra de comando é inverificável — porque elas não expressam proposições genuínas. Ayer vai além do que precisa para sustentar a sua tese de que a ética é não-cognitiva. Não há fundamento para dizer que a sentença “os seres humanos devem buscar o conhecimento” não afirma nada. O fato de que a sentença seja prescritiva (uma sentença contendo um “deve”) em vez de descritiva (uma sentença contendo um “é”) não justifica que Ayer despreze a sentença como não-assertiva ou não-afirmativa. Entretanto, se o único tipo de verdade possível e existente consiste na concordância da mente com a realidade, Ayer está justificado em desprezar as sentenças prescritivas como nem verdadeiras nem falsas, pois não há matérias de fato ou existência real com que um juízo prescritivo possa concordar. Apontamos agora os três principais argumentos para a visão amplamente prevalente, tanto entre os filósofos quanto entre as pessoas em geral, de que os valores morais e os juízos prescritivos são inteiramente subjetivos e relativos. Um é a identificação operada por Spinoza do bem com aquilo que parece bom ao indivíduo ou que este considere bom ou chame de bem apenas porque o objeto considerado bom ou chamado de bem é conscientemente desejado pelo indivíduo. Outro é a crítica de Hume a quem quer que tente argumentar a favor de uma conclusão prescritiva alcançada

tomando por base apenas conhecimentos referentes a questões de fato ou existência real. Isso não pode ser feito, como Hume corretamente apontou. O último é o apontamento feito pelos expoentes do século xx no campo da ética não-cognitiva. Se a verdade só puder ser encontrada em sentenças descritivas que se conformam ao modo como as coisas realmente são, então eles estão corretos em excluir sentenças prescritivas do reino do que é verdadeiro ou falso. Com respeito ao primeiro ponto, devemos observar que o erro aí envolvido pode ser removido chamando a atenção para uma outra relação entre o bem e o desejo que não aquela considerada por Spinoza. Esta envolve uma distinção entre dois tipos de desejo, com a qual os filósofos modernos, desde Spinoza até Mill e outros, não parecem estar familiarizados. Com respeito ao segundo ponto, devemos observar que é possível combinar uma premissa prescritiva com uma descritiva, de modo a argumentar convincentemente a favor da verdade de uma conclusão prescritiva. Esta premissa prescritiva deve, certamente, ser uma verdade auto-evidente; pois, de outro modo, teríamos de argumentar a seu favor e seríamos incapazes de fazê-lo. Com respeito ao terceiro ponto, devemos observar que há outro tipo de verdade sem ser aquela do tipo que se aplica unicamente a sentenças descritivas — um tipo de verdade que não envolve a concordância da mente com a realidade. Foi apenas na Antiguidade e na Idade Média que essa distinção entre dois tipos de verdade — uma, descritiva; outra, prescritiva — foi reconhecida e entendida. Quase todos os filósofos modernos estão totalmente inconscientes disso. Na próxima seção, explicarei como os problemas levantados pelos três pontos anteriores podem ser resolvidos, assim corrigindo os erros filosóficos que conduzem ao subjetivismo e ao relativismo com respeito aos valores morais e aos juízos prescritivos. Mas antes de fazê-lo, gostaria de gastar um tempo analisando a tentativa de Kant de evitar tal subjetivismo e

relativismo — uma tentativa que, segundo meu juízo, falha justamente por ir longe demais na direção oposta. Reconhecidamente, um erro com respeito à relação entre o bem e o desejável é, em parte, responsável pelo subjetivismo e relativismo. Reconhecemos ainda que um erro sobre a relação entre juízos de valor e juízos de realidade é também em parte responsável por isso. Por fim, outra coisa, que é também em parte responsável, é a falha em responder à questão sobre como juízos prescritivos podem ser verdadeiros. A solução de Kant para estes problemas vai longe demais na direção oposta porque Kant tenta tornar os deveres ou obrigações morais, expressos em juízos prescritivos, totalmente independentes dos nossos desejos e totalmente desprovidos de qualquer referência a matérias de fato, especialmente dos fatos sobre a natureza humana. Seu imperativo categórico é uma sentença prescritiva que ele considera como uma lei moral à qual nossa razão deve estar vinculada, por tratar-se de uma verdade auto-evidente. Em primeiro lugar, não se trata de uma verdade autoevidente. Em segundo, tudo se resume à regra de ouro que, por reverenciada que seja, não passa de uma recomendação vazia. Dizer que devemos fazer aos outros o que desejaríamos que eles nos fizessem deixa totalmente sem resposta a questão fundamental: o que devemos corretamente desejar que os outros nos façam? Esta questão não pode ser respondida sem referência aos nossos desejos e aos fatos da natureza humana, que Kant exclui inteiramente de consideração. Finalmente, a asserção de Kant de que a única coisa realmente boa é uma boa vontade, uma vontade que obedece ao imperativo categórico e que cumpre as obrigações morais que ele lhe impõe, voa diante dos fatos. Identificar o bem com uma boa vontade, tanto quanto com o prazer sensível, viola fatos com o quais estamos todos familiarizados.  

4  

Debruçar-me-ei agora sobre os três apontamentos críticos que colocam problemas a serem resolvidos. Mas não procederei na mesma ordem em que aqueles pontos foram apresentados na seção anterior. Em vez disso, lidarei primeiro com o tipo especial de verdade adequada aos juízos prescritivos. Introduzirei então uma distinção entre dois tipos de desejo que se relaciona com uma distinção entre o bem real e o bem aparente. Tal distinção lançará as bases para a formulação do único tipo de juízo prescritivo detentor de verdade auto-evidente, funcionará como o primeiro princípio necessário da filosofia moral, e nos permitirá extrair conclusões prescritivas a partir de premissas que combinam verdades prescritivas e descritivas. No livro vi de sua Ética a Nicômaco, Aristóteles, claramente ciente do que ele mesmo disse sobre o caráter da verdade descritiva, declarou que o que ele chamou de juízos práticos (juízos prescritivos ou normativos com respeito à ação) possui verdade de um tipo diferente. Os últimos filósofos, a não ser pelos discípulos medievais de Aristóteles, não mostraram qualquer conhecimento que fosse desta passagem breve, porém crucialmente importante, em seus escritos. No caso dos juízos práticos ou prescritivos, o requisito de conformidade que os torna verdadeiros é conformidade com o reto desejo, não com o modo como as coisas são, como no caso da verdade descritiva. Mas o que é reto desejo? Obviamente, a resposta deve ser que reto desejo consiste em buscar o que devemos desejar ou buscar. O que devemos então desejar? A resposta não pode simplesmente ser o bem, pois o que quer que desejemos tem aparência de bem, quer nossos desejos sejam retos, quer não. Isto nos traz à distinção entre dois tipos de desejo — natural, por um lado, e adquirido, por outro. Nossos desejos naturais são aqueles inerentes à nossa natureza e, por conseguinte, os mesmos em todos os membros da espécie humana, todos os quais partilham da mesma natureza. Em contraste, nossos desejos adquiridos diferem de indivíduo para indivíduo conforme suas diferenças individuais de

temperamento e conforme as diferentes circunstâncias em que vieram à tona e diferentes condições capazes de afetar o seu desenvolvimento. Duas palavras portuguesas expressam adequadamente esta distinção entre desejos naturais e desejos adquiridos. Uma é “necessidade”; a outra é “vontade”. A introdução dessas duas palavras carrega conotações que todos logo reconhecerão no uso que fazemos delas. O que quer de que precisemos ou necessitemos será realmente bom para nós. Não há necessidades erradas. Nunca precisamos de algo em excesso que seja realmente mau para nós. As necessidades inerentes à nossa natureza são todas retos desejos. Podemos dizer, então, que um juízo prescritivo contém verdade prática se expressa o desejo por um bem de que necessitamos. Em contraste às nossas necessidades naturais, nossas vontades individuais nos levam às vezes a buscar o que pode nos parecer bom no momento, mas que pode realmente acabar se revelando mau para nós. Sabemos todos que algumas de nossas vontades adquiridas podem ser desejos errados e que frequentemente queremos em excesso algo que é realmente bom para nós. O bem correspondente às nossas vontades é, enquanto querido, apenas um bem aparente que pode vir a se revelar ou como realmente bom para nós ou como realmente mau, a depender de se nos ocorre querer o de que precisamos ou se nos ocorre querer algo que frustre ou interfira na obtenção daquilo de que precisamos. Spinoza, recordemos, disse que o “bem” é o nome que damos às coisas que conscientemente desejamos. Aqueles objetos parecem bens para nós simplesmente porque realmente os desejamos. Desde que os desejos adquiridos ou vontades de um indivíduo tendem a diferir das vontades de um outro, o que parece bom para diferentes indivíduos diferirá. Em contraste a tais bens aparentes, bens reais são as coisas de que todos nós precisamos por natureza, desejemo-las ou não conscientemente como objetos dos nossos desejos adquiridos. Às vezes, como no caso das nossas necessidades

biológicas, tais como fome e sede, a privação dos bens necessários que lhes correspondam carrega consigo um sofrimento que nos move a querer buscar a comida e a bebida necessárias à sua satisfação. Mas no caso de outras necessidades naturais, tal como a necessidade de conhecimento, a privação do bem necessário correspondente não carrega em si um sofrimento que gere uma vontade consciente de obter o objeto de nossa necessidade. A necessidade existe estejamos ou não conscientes dela e queiramos realmente ou não aquilo de que precisamos. Algumas coisas nos parecem boas porque as queremos, e elas têm aparência de bem apenas no momento em que as queremos e na medida em que as queremos. Em acentuado contraste, devemos desejar algumas coisas porque delas precisamos, queiramo-las ou não; e, porque delas precisamos, elas são realmente boas para nós. As duas distinções com que ora nos defrontamos, geralmente negligenciadas no pensamento moderno — a distinção entre desejos naturais e desejos adquiridos, ou necessidades e vontades, e a distinção entre bens reais e bens meramente aparentes —, nos permitem postular a existência de uma verdade auto-evidente que funcione como primeiro princípio da filosofia moral. Devemos desejar o que quer que seja realmente bom para nós e nada mais. O critério da auto-evidência, recordemos, é a impossibilidade de pensar o oposto. E impossível para nós pensar que devemos desejar aquilo que nos faz realmente mal, ou que devemos não desejar aquilo que nos faz realmente bem. A própria compreensão da expressão “realmente bom” [ou “nos faz realmente bem”] carrega em si a nota prescritiva de que “devemos desejar” esse bem. Não podemos entender os termos “devemos” e “realmente bom” [ou “nos faz realmente bem”] como relacionados de alguma outra maneira. Com esta verdade auto-evidente como primeiro princípio, podemos resolver o problema colocado por David Hume. Empregando este primeiro princípio como premissa maior e acrescentando-lhe uma ou mais verdades descritivas sobre

matérias de fato (neste caso, verdades descritivas sobre a natureza humana), podemos validamente alcançar uma conclusão que é outra verdade descritiva. Um exemplo de tal raciocínio deve bastar. Começando com a verdade auto-evidente de que devemos desejar o que quer que seja realmente bom para nós, e acrescentando a verdade descritiva de que todo ser humano naturalmente deseja ou precisa conhecer (o que equivale a dizer que o conhecimento é realmente bom para nós), chegamos à conclusão de que devemos buscar ou desejar conhecimento. Esta conclusão contém uma verdade prescritiva, baseada no critério de que o que ela prescreve está em conformidade ao nosso reto desejo, pois deseja algo de que realmente precisamos. O raciocínio acima exemplificado pode ser aplicado a todos os nossos desejos naturais ou necessidades e produz toda uma série de juízos prescritivos verdadeiros. Para a elaboração de uma filosofia moral em cujo coração resida tal raciocínio, é, certamente, necessário produzir evidências ou razões que sustentem uma enumeração de todas as necessidades humanas, e também lidar com as várias complicações emergentes de um exame mais pormenorizado das necessidades e vontades. Mas o que foi dito até então é suficiente para resolver todos os problemas colocados pelo pensamento moderno. Ao falhar em resolvê-los, o pensamento moderno negou à filosofia moral o estatuto de genuíno conhecimento.  

5  

Nem todos os bens reais são igualmente bons. Alguns são superiores a outros na escala dos desejáveis. Os bens inferiores são bens limitados, tais como o prazer sensível e a riqueza, coisas que são boas apenas moderadamente, não ilimitadamente. Os bens superiores são ilimitados, tal como o conhecimento, o qual nunca é excessivo. Mas, inferiores ou superiores, todos os bens reais são coisas às quais temos direito natural. Nossas necessidades naturais são base para os nossos direitos naturais — direitos às coisas

de que precisamos para cumprir nossas obrigações morais, para que então possamos buscar tudo quanto nos seja realmente bom e isto nos possa conduzir à realização de boas vidas humanas. Se as necessidades naturais não fossem as mesmas para todos os seres humanos em toda parte, em todos os tempos e sob todas as circunstâncias, não teríamos base alguma para postular uma doutrina global que clama pela proteção dos direitos humanos por parte de todas as nações do planeta. Se todos os bens fossem meramente aparentes, assim parecendo apenas por ocorrer a este ou àquele indivíduo querê-los, não poderiamos evitar o relativismo e o subjetivismo que reduzem os juízos morais a meras opiniões. Se não pudéssemos apreender nenhuma verdade a respeito do que é certo ou errado, ficaríamos à mercê da impiedosa doutrina segundo a qual a correção advém do poder. Nada mais é preciso dizer para sublinhar a importância prática de corrigir os erros que reduzem os juízos morais à mera opinião, assim estabelecendo a objetividade e universalidade dos valores morais e dando à filosofia moral o estatuto de genuíno conhecimento

PARTE I

CAPÍTULO VI Felicidade e contentamento  

1 As pessoas em geral esposam o erro cometido pela maioria dos filósofos modernos segundo o qual a felicidade é antes de tudo um estado psicológico em vez de ético — isto é, que diga respeito à qualidade de uma vida moralmente boa. Ninguém pode legislar sobre como o termo “felicidade” deveria ser usado. A menos que seja usado em seu sentido ético em vez de em seu sentido psicológico, seu significado não será, de modo algum, o de fim último que estamos moralmente obrigados a perseguir. Todo mundo, cometa o erro supracitado ou não, concorda em reconhecer que a felicidade é sempre um fim, nunca um mero meio. Mais do que isso, é um fim último, buscado por si, em função de nada mais. Para qualquer outro bem, ou objeto de desejo, podemos sempre dizer que o desejamos em função de alguma outra coisa. Queremos riqueza, saúde, liberdade e conhecimento porque estes bens são meios para algum outro bem que os transcenda. Mas é impossível completar a sentença começando com as palavras: “Queremos ser felizes ou queremos felicidade porque... ”. Qualquer outro bem que possamos nomear é algo que, uma vez obtido, ainda deixa outros bens por serem buscados. Cada um é um bem entre outros, mas a felicidade não é um bem entre outros. Ela é o bem completo, a soma de todos os bens, nada mais restando por ser desejado. Assim concebida, a felicidade não é o bem superior — o bem mais elevado entre muitos na escala axiológica —, mas o bem total. O que acabou de ser dito sobre a felicidade vale, se bem que de diferentes maneiras, para a felicidade entendida tanto como estado psicológico quanto como estado ético. Mas ela é muito mais bem compreendida quando se lhe atribui o sentido ético em vez do psicológico. Felizmente, há outro termo que

adequadamente designa o estado psicológico, tornando desnecessário o uso do vocábulo “felicidade” com dois sentidos distintos. Este outro termo é “contentamento”. Ele não pode significar outra coisa senão o estado psicológico emergente no momento em que nossos desejos são satisfeitos. Quanto mais satisfeitos estes desejos estiverem num determinado momento, mais consideraremos este momento como próximo do contentamento supremo.  

2  

As distinções apresentadas no capítulo anterior (entre desejos naturais e adquiridos, ou necessidades e vontades, e entre bens reais e bens meramente aparentes) nos permitem lidar brevemente aqui com o erro filosófico de identificar a felicidade com o estado psicológico de contentamento. Se todos os nossos desejos fossem vontades, que diferem de indivíduo para indivíduo, e se todos os bens que os seres humanos desejassem simplesmente parecessem bons para este indivíduo ou aquele apenas por haver-lhes ocorrido querêlos, seria impossível evitar a conclusão segundo a qual, para toda pessoa, a felicidade consiste apenas em conseguir o que se quer e, ao consegui-lo, aproveitar-lhe o contentamento decorrente naquele momento. Neste caso, a felicidade seria então uma coisa mutável e impermanente. O indivíduo estaria contente um dia por haver sido bem-sucedido em conseguir os bens aparentes que queria, mas no dia seguinte poderia não sê-lo devido à frustração de suas vontades — frustração que traria consigo um doloroso descontentamento. A felicidade individual mudaria dia após dia, raramente firmando-se por um período relativamente longo de tempo. Ela também diferiria em caráter de pessoa para pessoa, conforme as diferenças em suas vontades individuais. O que traria felicidade para um poderia não trazer para outro. Há ainda outras razões para argumentar contra a identificação da felicidade ao contentamento. Ninguém, penso

eu, questionaria a depravação moral de um avaro, o indivíduo psiquicamente enfermo cujo único propósito na vida é estar na presença de sua pilha de ouro acumulado e que não hesitaria em sacrificar sua saúde, amizades, e outros bens reais para consegui-lo. Se a felicidade não é nada mais que o contentamento resultante da satisfação das vontades, então o avaro que conseguiu o que queria deve ser considerado feliz, embora devesse, por critérios morais, ser considerado uma criatura miserável, à qual falta a maioria dos bens reais de que um ser humano precisa. Identificada ao contentamento, a felicidade seria igualmente alcançável por indivíduos moralmente bons ou moralmente maus. Pessoas entram em conflito umas com as outras na tentativa de obter o que querem. Alguém que queira muito obter riquezas pode frustrar a vontade de outro que também a queira para satisfazer suas necessidades. Alguém que queira muito o poder sobre os demais para dominá-los e controlá-los pode acabar interferindo indevidamente na tão necessária liberdade alheia. Se um governo justo deve fazer tudo quanto seja necessário para garantir e encorajar a busca da felicidade por parte de seu povo, este mandato não pode ser levado a cabo quando a felicidade é identificada ao contentamento resultante da satisfação das vontades individuais. Confrontado com vontades conflitantes, ou com as vontades de uns que, satisfeitas, frustram a satisfação das vontades de outros, nenhum governo pode assegurar para todos os cidadãos as condições necessárias para uma bem-sucedida busca da felicidade. Concebida como contentamento, com seu caráter transitório e mutável, mudando dia após dia com as mudanças por que passam as vontades individuais, e mudando de vontades satisfeitas para vontades frustradas, a felicidade torna-se um objetivo tão variável e impermanente que nenhum governante poderia sequer tentar pensar em garantir ou encorajar a busca da felicidade para todo o seu povo. Nem poderia ele prometer promover a busca da felicidade para todos nestes termos,

porquanto as vontades conflitantes dos diferentes indivíduos tornariam impossível que todos tivessem a oportunidade de satisfazer suas vontades. Ora, tudo quanto foi dito clama pela separação da felicidade em relação ao contentamento. Tal separação é bem possível e fácil de explicar uma vez que tenhamos empregado as distinções entre necessidades e vontades e entre bens reais e bens aparentes. A felicidade pode então ser definida como uma vida inteira enriquecida pela posse cumulativa de todos os bens reais de que todo ser humano precisa e pela satisfação daquelas vontades individuais que resultam na obtenção de bens aparentes inócuos. A busca da felicidade, assim concebida, consiste no esforço para cumprir nossa obrigação moral no sentido de buscar tudo quanto nos seja realmente bom e nada mais, a não ser que se trate de algo, tal como um bem aparente inócuo, que não interfira negativamente no nosso processo de obtenção de todos os bens reais de que precisamos. Um governo justo pode então garantir e encorajar a busca da felicidade ao seu povo assegurando-lhe o direito natural aos bens reais de que necessita para alcançar a felicidade — vida, liberdade, e tudo o mais de quanto uma pessoa precisa, tal como a proteção à saúde, uma quantidade suficiente de riqueza, e outros bens reais que ela mesma, apenas por seus esforços, é incapaz de obter.  

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Apesar de tudo quanto se disse, o erro amplamente prevalente de confundir a felicidade com um estado psicológico momentâneo de contentamento pode ainda permanecer a menos que outras dificuldades sejam superadas. Por um lado, não apenas filósofos, mas também pessoas em geral, acham difícil aceitar uma noção de felicidade que a torna intrinsecamente desagradável. Concebida como a qualidade moral de toda uma vida humana, a felicidade é estritamente desagradável. O gozo ou a agradabilidade da vida ocorre de

momento a momento. O contentamento, quando e no exato momento em que ocorre, é agradável. Mas em nenhum momento específico da vida é possível desfrutar de uma qualidade que pertence não a um momento, mas à vida como um todo. Apenas quando uma vida se completa é possível dizer se foi uma vida moralmente boa ou má — se a felicidade foi ou não alcançada. Outra dificuldade reside na compreensão da felicidade como um fim último ou meta final. Tal dificuldade carrega consigo, tanto para filósofos quanto para pessoas em geral, a noção de que um fim último ou meta final é algo que, buscado com afinco, pode ser alcançado e no qual se pode repousar. Quando a felicidade é concebida como contentamento, ela não é apenas algo de que possamos desfrutar, mas também algo que em algum momento podemos parar de perseguir e no qual repousar — ao menos por um tempo. Mas não é assim quando a felicidade é concebida como a totalidade de uma vida bem vivida. Ela pode ser o fim último ou meta final de todos os nossos esforços, mas não é algo que possamos cessar de buscar enquanto estivermos vivos, ou algo em que possamos vir a repousar quando alcançado, pois então não estaremos mais vivos. Podem-se remover estas dificuldades, penso eu, ainda por outra distinção que é, em geral, negligenciada. Trata- -se da distinção entre meta ou objetivo terminal e meta ou objetivo normativo. A inconsciência desta distinção levou John Dewey, em seu Natureza humana e conduta, a negar que houvesse qualquer fim último para esta vida. Tudo quanto buscamos, segundo Dewey, é um meio para algum outro bem que o transcenda. Nada é, portanto, um fim último ou meta final, nem mesmo a felicidade concebida como contentamento. Desfrutá-la por um dia ou por um período curto de tempo deixa ainda outras coisas por perseguir no tempo restante de uma vida. Para esclarecer a distinção entre metas ou objetivos terminais e normativos, alguns exemplos deverão bastar.

Você planeja uma viagem para Viena. Você toma decisões sobre como realizar este objetivo, e você cumpre as etapas necessárias para colocar aquelas decisões em ação. Você finalmente chega a Viena — o fim ou término da sua viagem — e, por algum período de tempo, repousa no que diz respeito a viagens. Neste simples exemplo de traçar uma meta e adotar os meios necessários para realizá-la, Viena é uma meta ou objetivo terminal. Alcançá-lo e nele repousar é uma experiência agradável. O maestro de uma orquestra sinfônica se prepara para executar certa composição musical em um concerto que acontecerá dali a algum tempo. Ele estuda a peça musical. Ele ensaia com a orquestra várias vezes. Finalmente, chega o dia do concerto e o maestro leva a efeito tudo por quanto se empenhou anteriormente, fazendo todo o possível para conduzir a orquestra a uma execução da peça que alcance alto nível de excelência musical. Suponhamos que o maestro tenha sido bem-sucedido em seus propósitos. A excelência musical a que ele visou e alcançou é uma meta ou objetivo normativo em vez de terminal. A excelência musical não existe em nenhum momento durante a execução da composição. O maestro e a orquestra nunca o alcançam, no sentido de nele poderem repousar, porque a excelência almejada vem à existência temporalmente. Ela existe apenas durante o período de tempo da sua execução. Metas normativas são metas que existem apenas em totalidades temporais, não de momento a momento ou a qualquer momento. O que é verdadeiro para a meta normativa almejada na boa execução de uma peça musical também o é para a excelência almejada na encenação de uma obra dramática no palco, para uma apresentação de balé, para qualquer tipo de performance artística, e, do mesmo modo, para a realização de partidas esportivas que ocorram durante um determinado período de tempo. Muito diferente é a excelência almejada pelos arquitetos e construtores que, quando terminam seu trabalho, podem

apontar para a existência de um belo edifício como resultado. A construção terminada é uma meta terminal que pode ser alcançada, na qual se pode repousar, e da qual se pode desfrutar num dado momento. Não se pode dizer que a construção em que o arquiteto está trabalhando é uma boa construção até que esteja terminada e de pé para ser contemplada. Assim, também, não se pode dizer de uma partida de futebol ou de beisebol que foi uma boa partida até que a última jogada tenha sido feita e o apito soe. Quando, em uma partida de beisebol, torcedores se levantam no sétimo turno para se alongar, talvez um diga ao outro: “Tem sido um bom jogo, não acha?”; o outro deveria responder: “Não, ainda não acabou; está se tornando um bom jogo; se continuar sendo jogado nos próximos turnos tão bem quanto veio sendo até então, terá sido um bom jogo quando estiver terminado”. Por trivial que seja dizê-lo, levar uma vida moralmente boa ou viver bem lembra bastante a execução de qualquer arte performática ou a prática de jogos desportivos. A felicidade que é idêntica a uma vida moralmente boa é um objetivo normativo. A excelência aí almejada é inerente a uma totalidade temporal — uma vida inteira, do nascimento à morte. Se a uma pessoa, em algum ponto no meio da vida, é perguntado se ela alcançou ou não a felicidade, a resposta deveria ser como aquela do torcedor no jogo de beisebol: “Não, ainda não, minha vida ainda não acabou; mas se os meus anos finais continuarem a ter a mesma qualidade dos anos passados, atrevo-me a dizer que terei levado uma vida feliz quando ela tiver chegado ao seu fim”. O que é verdadeiro para as metas terminais é igualmente verdadeiro para as normativas. A meta almejada controla a decisão da pessoa sobre que meios devem ser empregados para alcançá-la. O fato de que uma meta terminal possa ser alcançada e nela se possa repousar, enquanto uma meta normativa não o possa, não faz nenhuma diferença neste caso.

Uma meta normativa almejada determina, não menos que uma meta terminal, o que devemos fazer para alcançá-la. Assim, não deveria haver dificuldade para compreender como a felicidade, entendida como a excelência de toda uma vida bem vivida, uma vida moralmente boa, funciona como um fim último que é uma meta normativa, não terminal. Cada passo que damos em sua direção nos aproxima de sua plena realização, embora nunca desfrutemos desta plena realização em nenhum momento da vida. Cada meio escolhido é bom ou mau na medida em que tende para a direção certa ou errada — se para perto do fim último a que almejamos ou se para longe dele. Um grande insight pode ser encontrado na afirmação segundo a qual os meios retamente dirigidos são o fim almejado em processo de vir a ser alcançado ou realizado. Outro ponto deve ser observado. Quando, segundo John Dewey, não há nenhum fim último e todo fim é um meio para outro fim que o transcenda, não temos nenhuma obrigação moral inexorável de almejar estes fins. Podemos reconhecer um imperativo hipotético do seguinte tipo: se desejamos alcançar este fim particular, então devemos escolher tais e quais meios para alcançá-lo. A compreensão do “se” e do “então” indica o caráter hipotético do imperativo — o juízo prescritivo. Apenas quando o fim almejado é verdadeiramente um fim último (e assim o poderá ser nesta vida apenas se também for um fim normativo em vez de terminal) devemos reconhecer estar na presença antes de um imperativo categórico que de um hipotético. O princípio auto-evidente segundo o qual devemos buscar tudo quanto nos seja realmente bom coloca-nos sob o jugo de uma obrigação moral que é categórica. Não há nenhum “se” nem nenhum “então” neste caso. Não podemos dizer “se desejamos levar uma vida moralmente boa, então devemos agir desta ou daquela maneira”. Se tentarmos realizá-lo, teremos de recorrer necessariamente a uma obrigação moral categórica. Acabei de dizer que a felicidade pode ser um fim último nesta vida apenas se for uma meta normativa em vez de uma

meta terminal. Reitero esta verdade apenas para chamar a atenção para o fato de que, na teologia moral cristã, o que vale para a felicidade terrestre e temporal não vale para a felicidade celeste e eterna — a felicidade daqueles que, na presença de Deus, desfrutam da Visão Beatífica. Esta última é uma meta terminal, ao passo que a outra não é.  

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Há ainda outro erro sobre a felicidade que pode ser encontrado na obra Utilitarismo, de John Stuart Mill. Ele vacila entre identificar, em certas passagens, a felicidade com o contentamento momentâneo, e, em outras, concebê-la como verdadeiramente um fim último, a excelência a ser desejada ao longo de toda uma vida humana. A sua falha em distinguir entre bens reais e bens aparentes como objetos dos desejos naturais e adquiridos (necessidades e vontades) aumenta a confusão. Mas não é para este erro que pretendo chamar a atenção agora. Em vez disso, o erro de Mill para o qual pretendo apontar consiste em nos colocar ante dois fins, cada qual sendo supostamente um fim ou objetivo último, em que um deles, contudo, deve estar subordinado ao outro. Por um lado, Mill propõe como verdade auto-evidente que o objetivo último que um indivíduo deve almejar é a sua própria felicidade. Por outro, ele também propõe que cada um de nós deveria trabalhar pelo que ele chama “a felicidade geral”, às vezes também mencionada como o bem maior do maior número de pessoas. Quando há algum conflito entre esses dois objetivos, o último deve prevalecer sobre o primeiro. Deveríamos almejar a felicidade geral mesmo que isto não tenha serventia para o propósito de buscar por nós mesmos nossa própria felicidade. E impossível que haja dois fins últimos em que um não esteja ordenado ao outro; e se eles estão assim ordenados pela subordinação de um ao outro, então não podem ambos ser fins últimos. O erro cometido por Mill poderia ter sido evitado se ele tivesse conhecido e entendido a distinção entre o bonum

commune hominis (a felicidade ou bem último que é comum ou o mesmo para todos os seres humanos) e o bonum commune communitatis (o bem comum da comunidade organizada na qual participam seus membros). Porque cada ser humano é, enquanto pessoa, um fim a ser servido, e não um meio a ser usado. A comunidade organizada, em relação aos seus membros, é um meio, não um fim. Apenas e unicamente a felicidade da pessoa individual é o fim último desta vida. Ela é um bem comum no sentido de que é a mesma para todos os seres humanos. O bem que é comum e compartilhado por todos os seres humanos como membros da sociedade (o bonum commune communitatis) é. um fim a ser servido pela comunidade organizada como um todo. Referimo-nos às vezes a este bem comum como ao bem-estar geral. Participar no bem comum ou no bem-estar geral provê aos membros da sociedade meios que servem à busca da felicidade individual. Almejando diretamente o bem comum ou o bem-estar geral, uma sociedade boa e um governo justo também almejam indiretamente a felicidade de todas as pessoas que constituem a sociedade e estão sob o seu governo. O bem comum ou bem-estar geral é apenas o objetivo aproximado que uma boa sociedade e um governo justo deveríam almejar. O objetivo alcançado serve como meio para a realização do fim último da sociedade — a felicidade individual de cada um dos membros da sociedade ou a felicidade geral de todos. O ponto crucial aqui é que os indivíduos não conseguem, por eles mesmos, trabalhar diretamente para a felicidade geral — a felicidade de todas as outras pessoas na sociedade em que vivem. Eles só o conseguem indiretamente, cooperando com outros para o bem comum ou bem-estar geral da comunidade política, que é, em si mesma, um meio para a felicidade de cada um e de todos os indivíduos.  

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Finalmente, chegamos a um erro sobre a felicidade que pode ser encontrado na filosofia moral de Kant. O que tenho em mente aqui não é o erro que se mostrou prevalente ao longo de praticamente todo o pensamento moderno — o erro de identificar a felicidade com o contentamento experimentado quando nossos desejos, quaisquer que sejam, são satisfeitos. Kant comete este erro e, como resultado, rejeita, considerando-a meramente utilitária e pragmática, toda filosofia moral que afirme tratar-se a felicidade de um fim último, para cuja realização é preciso escolher os meios. Ao fazer esta associação, ele se refere desdenhosamente à “sinuosidade serpentina do utilitarismo”. Ele repudia toda ética utilitária ou pragmática, que se ocupa de meios e fins, como desprovida daquilo que é essencial a uma verdadeira filosofia moral, a saber, deveres morais, obrigações que são categóricas, não hipotéticas. Como já tivemos ocasião de ver, é sem fundamento sua acusação contra a filosofia moral que faça da felicidade, propriamente concebida, um objetivo final. E possível lançá-la contra a felicidade quando esta é identificada ao contentamento, mas não o é quando a felicidade é concebida como uma vida moralmente boa — um objetivo normativo, não terminal. Encontramo-nos sob a égide do imperativo categórico segundo o qual devemos almejar a excelência de uma vida moralmente boa quando reconhecemos a verdade autoevidente de que devemos buscar tudo quanto nos seja realmente bom. Se abandonarmos a palavra “felicidade” e lidarmos, em vez disso, simplesmente com a noção de uma vida moralmente boa, poderemos identificar o erro tão dominante na filosofia moral de Kant. Trata-se de um erro que pode também ser encontrado na Antiguidade (no pensamento platônico e nos ensinamentos dos estóicos), bem como nos escritos de outros filósofos modernos. O erro consiste em dizer, como Kant tão explicitamente o diz, que, para o propósito de levar uma vida moralmente boa, basta ter uma boa vontade ou uma vontade retamente

ordenada, que cumpra suas obrigações morais. A maneira de Platão de dizer a mesma coisa pode ser encontrada no fim de sua Apologia de Sócrates, onde o próprio Sócrates afirma que “nenhum mal pode sobrevir a um homem bom nesta vida ou na próxima”. Do mesmo modo, Epiteto e outros estóicos romanos repetem reiteradamente que uma boa vontade é suficiente para alcançar a felicidade. O erro aqui se encontra na palavra “suficiente”. Não se pode de maneira alguma duvidar de que ter virtudes morais (o que equivale a ter uma vontade retamente ordenada à felicidade como ao seu fim último e habitualmente disposta a escolher os meios corretos e adequados para alcançá-la) é absolutamente necessário para a condução de uma vida moralmente boa. Necessário, sim, mas não por si suficiente. O outro ingrediente — igualmente necessário, mas também não suficiente — é ser abençoado por uma boa sorte. Há muitos bens reais — a maioria deles bens externos, tais como a riqueza material, um ambiente saudável, a liberdade política, e assim por diante — que não podem ser usufruídos pela maioria dos indivíduos virtuosos apenas por seus próprios esforços, pois não está em seu poder consegui-lo. Obter estes bens durante o processo de busca da felicidade depende de circunstâncias afortunadas tais que estão para além da capacidade de controle individual. Privada destes bens advindos da boa fortuna, mesmo a vida do mais moralmente virtuoso dos indivíduos pode arruinar-se. Este pode ser uma pessoa moralmente boa e ainda assim ser privado da felicidade de uma vida bem vivida por infortúnios tais como a escravidão, a pobreza extrema, a doença incapacitante, ou a perda dos amigos e das pessoas amadas. Ser um ser humano moralmente bom não resulta automaticamente na realização de uma vida moralmente boa. Aristóteles resume este ponto crítico em sua simples definição de felicidade como “toda uma vida, vivida de acordo com a virtude moral, e acompanhada por uma moderada posse de riquezas [e de todos os outros bens externos que se tornam nossos pelas bênçãos da boa sorte]”. Coloquei entre colchetes

o que penso servir para explicar um ponto expresso de maneira tão breve. Não fossem as coisas assim, haveria pouca ou nenhuma razão para todos os esforços históricos que foram feitos para reformar nossas instituições políticas e econômicas por meio da remoção de injustiças e melhoria das condições sob as quais os seres humanos vivem. Se a felicidade pudesse ser alcançada apenas pela virtude moral, então por que abolir a escravidão, por que tentar aliviar a situação de pobreza extrema em que muitos vivem, por que preocupar-se em prover saúde pública, por que instituir o sufrágio universal para que todo ser humano possa exercer a liberdade política tendo uma voz em face de seu próprio governo? Para estas questões, só pode haver uma resposta. As reformas políticas e econômicas que ocorreram no curso da História não fariam sentido se a virtude moral, por si mesma, bastasse para a obtenção da felicidade e para levar uma boa vida. Nada mais precisa ser dito, a meu ver, para persuadir qualquer um da seriedade do erro cometido por Platão, pelos estóicos, por Immanuel Kant, e por outros filósofos modernos.

CAPÍTULO VII Liberdade de escolha  

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Quando as pessoas pensam em liberdade, o que elas tendem a ter em mente é uma liberdade cuja existência não pode ser nem nunca foi negada. Trata-se também de uma liberdade que todos possuem e da qual ninguém pode ser completamente privado. E a liberdade que possuímos quando somos capazes de agir conforme nos apraz ou desejamos. Possuímo-la em um alto grau sob as mais variadas circunstâncias: na ausência de coerção e restrição e na presença de meios facilitadores. Tais obstáculos como a coerção limitam a extensão do quanto podemos agir em conformidade com nossos desejos; e também a limita a falta de meios facilitadores. Como disse R. H. Tawney, o homem pobre não é livre para jantar no Ritz. Entretanto, ninguém, nem mesmo um escravo acorrentado ou um prisioneiro confinado em uma solitária, está totalmente desprovido da liberdade para agir como deseje. Há sempre alguma esfera de ação, conquanto mínima, em que pode agir conforme lhe agrade. Outra liberdade circunstancial é a liberdade política. Trata-se de uma liberdade possuída por aqueles que são suficientemente afortunados para viver em uma república, sob um governo constitucional, e legitimamente eleito pelos cidadãos através de um sufrágio que lhes permite ter uma voz perante esse governo. Não se pode negar que tal liberdade exista, se não para todos, ao menos para alguns seres humanos, embora alguns tenham considerado indesejável ou imerecida a concessão desta liberdade a todas as pessoas. Os dois tipos remanescentes de liberdade não dependem das circunstâncias externas, e ambos foram objetos de controvérsias em que suas existências foram negadas.

Uma delas é a liberdade adquirida de ser capaz de querer como se deve. Apenas através da virtude moral adquirida e da sabedoria prática alguém chega a possuir essa liberdade. Tratase de uma liberdade em relação às paixões e aos desejos sensíveis que nos levam a fazer o que não devemos, ou a não fazer o que devemos. Quando, no conflito entre a razão e as paixões, a razão domina, então somos capazes de querer como devemos em conformidade à lei moral ou às regras normativas de conduta. Obviamente, aqueles que negam a existência de quaisquer valores morais objetivos, deveres válidos ou prescrições normativas, não podem senão negar, por conseguinte, a existência da liberdade moral assim descrita. E mesmo aqueles que afirmam a sua existência não a consideram universal. Enquanto a liberdade circunstancial para agir conforme se deseja é, em alguma medida, apanágio universal, inclusive daqueles que se encontram sob as mais desfavoráveis circunstâncias, as pessoas ou possuem a liberdade moral ou esta lhes falta inteiramente; ou bem elas adquiriram ou bem não adquiriram a virtude moral e a sabedoria prática necessárias ao exercício desta liberdade. Somos deixados, por fim, com um quarto tipo de liberdade que foi objeto da mais extensa e intrincada controvérsia ao longo dos séculos. Sua existência foi afirmada por um grande número de filósofos e igualmente negada por muitos outros, a maioria deles modernos, e também por uma série de cientistas modernos. Para aqueles que afirmam a sua existência, todos a possuem, pois se considera que seja inerente à natureza humana: trata-se de uma liberdade natural, nem afetada pelas circunstâncias nem dependente de habilidades ou virtudes adquiridas. Esta liberdade natural é a liberdade da vontade em seus atos de escolha. A liberdade de escolha consiste em ser sempre capaz de escolher de outra maneira, não importa o que já tenha sido escolhido em alguma circunstância concreta. Contrastada com a liberdade de agir conforme os desejos, ela

pode ser descrita como a liberdade de querer conforme os desejos. Quando declaramos que a liberdade é um direito humano natural, devemos ter em mente as duas liberdades circunstanciais — a liberdade de agir como se deseja (dentro da circunscrição de leis justas) e a liberdade política que vem com a cidadania e o sufrágio. Não faz nenhum sentido afirmar que a liberdade moral, que só pode ser possuída por meio da aquisição de virtudes morais e sabedoria prática, seja um direito; bem como não faz o menor sentido afirmar a existência de um direito à liberdade de escolha, pois, se esta existe, é um dom natural possuído por todos. Contudo, a menos que a liberdade de escolha de fato exista, é difícil compreender o fundamento do nosso direito a essas outras liberdades. Se não temos liberdade de escolha, como justificar nosso direito de agir conforme desejamos ou de exercer nossa voz em face do governo? Estas considerações, e há outras sobre as quais nos debruçaremos em seguida, tornam a controvérsia relativa à existência da liberdade de escolha uma das que mais consequências a longo prazo tiveram.  

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Este capítulo difere de todos os anteriores. Nos outros capítulos, lidamos com concepções filosóficas errôneas cujos erros ou inadequações podiam ser apontados e corrigidos. Isto não pode ser feito aqui. Com conhecimento de todos os aspectos interiores e exteriores da controvérsia, não posso mostrar que os defensores do livre-arbítrio estão certos e que os deterministas que a eles se opõem estão errados. A questão aqui não é tanto um erro filosófico demonstrável quanto uma incompreensão do próprio problema. Esta incompreensão se encontra principalmente do lado dos filósofos e cientistas modernos que são deterministas. O que estou dizendo aqui não é que a negação que eles fazem do livre-arbítrio seja um erro demonstrável, mas que, em vez

disso, eles não compreendem corretamente o que negaram — isto é, as premissas sobre as quais uma afirmação do livrearbítrio repousa. Antes do fim do século xix, os deterministas sustentaram que todos os fenômenos da natureza são governados por leis causais cujos efeitos são necessariamente engendrados a partir de suas causas. Nada acontece por acaso, no sentido em que se diz que um “evento casual”, que se deu por força do acaso, é algo incausado. Na visão destes deterministas, uma livre escolha intrinsecamente imprevisível é exatamente como um evento casual e, portanto, não pode ocorrer dentro de um domínio natural. Embora seja verdadeiro que uma escolha livre e um evento casual sejam ambos imprevisíveis com certeza e precisão, não é verdadeiro que ambos sejam incausados. Começando no início do século XIX e tornando-se mais significante em nosso próprio tempo, a ciência acrescentou leis estatísticas ou formulações probabilísticas às leis causais, e, assim procedendo, introduziu aspectos de indeterminação no reino dos fenômenos naturais. Tal indeterminação, contudo, não se reduz à ausência de causalidade própria do acaso. Um punhado de filósofos e de cientistas ganhadores do Prêmio Nobel avançaram a suposição segundo a qual tal indeterminação poderia ser uma ante-sala para o livre-arbítrio nos domínios da natureza; mas mentes mais sóbrias corretamente descartaram a suposição. A indeterminação causal associada a certas formulações científicas, especialmente aquelas da mecânica quântica, não tem simplesmente nenhuma semelhança com a indeterminação causai própria ao livre-arbítrio. O que os deterministas que negam a liberdade de escolha com base nos argumentos acima colocados falham em compreender é que os defensores do livre-arbítrio situam a ação da vontade fora do domínio dos fenômenos físicos estudados pela ciência. Se a teoria destes defensores concebesse o livre-arbítrio como um evento físico no mesmo sentido em que a ação dos nossos sentidos e a moção das nossas paixões são eventos físicos, então eles teriam de

aceitar os argumentos dos deterministas como bases adequadas à negação desta faculdade. Mas não é esse o caso. A vontade, como a concebem, é um apetite — uma faculdade do desejo e da decisão — intelectivo, não sensitivo. Em sua visão, a mente humana, consistindo tanto do intelecto quanto da vontade, deve ser formalmente distinta dos sentidos, da memória, da imaginação e das paixões. Estas últimas potências podem operar conforme os mesmos princípios e leis que governam todos os outros fenômenos do mundo físico, mas o intelecto e a vontade sendo imateriais, não o podem. Eles são regidos por leis próprias. Os atos do intelecto são ou necessários ou arbitrários. Eles são necessários quando são atos de genuíno conhecimento, pois o intelecto não pode negar uma verdade auto-evidente, nem pode negar qualquer proposição que seja sustentada por evidências e razões que a coloquem para além de uma dúvida razoável ou lhe dêem predomínio sobre todas as opiniões contrárias. Nos casos acima, todos os juízos são necessários. Apenas quando confrontado com meras opiniões, não sustentadas por evidências e razões, seu juízo é arbitrário — um ato do intelecto movido antes por uma escolha livre da parte da vontade do que por uma verdade que se lhe apresente. Em nenhum dos casos, porém, a ação do intelecto é incausada ou um evento casual. Como os atos do intelecto, alguns atos da vontade são necessários e alguns envolvem a liberdade de escolha. O único objeto que torna necessário o ato de vontade é o bem completo ou total. Na presença do bem completo ou total, a vontade não pode desviar-se dele para querer qualquer outra coisa. Então, quando a felicidade é compreendida como o totum bonum — a soma de todos os bens reais —, ela atrai a vontade necessariamente. Não podemos querer não buscar a felicidade. O nosso querer a felicidade como nosso fim último não é um ato incausado. Todos os outros bens são bens parciais. Cada um é um bem entre outros. Na presença de tais bens como objetos de desejo,

o ato da vontade não é necessário, o que equivale a dizer que a escolha de um bem parcial em detrimento de outro é, por parte da vontade, uma escolha livre. Tal indeterminação da vontade é totalmente diferente da indeterminação causal encontrada na mecânica quântica. Mas, em ambos os casos, a indeterminação causai não se reduz ao acaso — a completa negação da causalidade. As teorias da liberdade da vontade e da liberdade de escolha são muitas e complicadas. Não fingirei que os pontos brevemente colocados anteriormente fazem justiça à variedade e complexidade de tais teorias. Entretanto, alego que, em todos eles, a afirmação da liberdade de escolha repousa nos apontamentos feitos — a imaterialidade da vontade; a diferença entre o modo como seus atos são causados e a operação das causas no reino dos fenômenos físicos; e, acima de tudo, a insistência em que a indeterminação da vontade não reduz uma livre escolha a um evento casual.5 O que acontece por acaso, segundo os deterministas, é totalmente imprevisível; e porquanto nada, segundo eles, é totalmente imprevisível, nada acontece por acaso. Embora os eventos causalmente indeterminados no reino dos fenômenos quânticos e os atos causalmente indeterminados da escolha livre sejam ambos intrinsecamente imprevisíveis (no sentido de não ser previsível com certeza apropriada à necessidade dos efeitos decorrentes de suas causas), eles não são totalmente imprevisíveis. A previsibilidade é possível em ambos os casos com variados graus de probabilidade. A possibilidade de previsões prováveis descarta a identificação de tal indeterminação causal com o acaso. A incompreensão dos deterministas quanto ao que está envolvido na liberdade de escolha torna ilusória a controvérsia histórica sobre esta matéria. São problemas diferentes. Os deterministas não argumentam contra a verdade das premissas sobre as quais repousa a afirmação do livre- arbítrio, mas rejeitam a escolha livre como algo que ela não é (um evento casual) e como algo que, se não por acaso, não

pode ocorrer dentro do domínio dos fenômenos físicos, considerado por eles a totalidade exaustiva do mundo real. Os defensores do livre-arbítrio não argumentam a favor das premissas sobre as quais repousa sua afirmação da liberdade de escolha. Eles não tentam mostrar exitosamente que o domínio dos fenômenos físicos não corresponde à totalidade do real ou como a causalidade operante no domínio imaterial difere da causalidade operante no mundo físico. A única coisa sobre a qual eles estão suficientemente certos, e na qual corretamente insistem, é que o livre-arbítrio, tal como o concebem, não deve ser identificado com o acaso. E este é o único ponto que os deterministas teimosamente ignoram. Embora ambos os lados falhem em lidar um com o outro, a falha de compreensão principal pertence aos deterministas. 3  

A controvérsia entre os deterministas e os defensores do livre-arbítrio vai além da mera negação ou afirmação da liberdade. Ela se preocupa com questões tais como se a responsabilidade moral, o louvor e a culpa, a justiça das premiações e punições, dependem ou não da liberdade de escolha. David Hume estava certamente correto quando, tendo primeiramente identificado livre-arbítrio com mero acaso, concluiu que a responsabilidade moral era incompatível com a liberdade de escolha. O que alguém faz por acaso não lhe pode ser imputado como de sua responsabilidade, não lhe pode ser louvado ou atribuído como culpa, nem premiado ou punido. O erro de Hume, é claro, estava na identificação do livre-arbítrio com o acaso. Nos tempos recentes, os deterministas se dividiram em dois grupos — o dos mitigados e o dos radicais. Os deterministas mitigados sustentam a visão segundo a qual a liberdade circunstancial de ser capaz de agir conforme se deseja fornece bases suficientes para atribuir responsabilidade moral àqueles que agem com tal liberdade. Eles podem ser louvados e culpabilizados, premiados e punidos pelo que fazem, embora

este agir não tenha sido livremente escolhido de sua parte, porquanto não tenham podido escolher de outra maneira. Eles foram determinados por todo o seu passado, por tudo quanto veio a entrar na constituição deles mesmos, para agir como agiram. Contudo, sua ação, procedendo deles mesmos, tal como então eles se encontravam constituídos, era a ação deles e, por isso, poderiam ser responsabilizados por ela. Os deterministas radicais discordam. Embora neguem a liberdade de escolha, concedem que, sem ela, ninguém poderia ser moralmente responsabilizado pelo que faz; ninguém poderia ser louvado ou culpabilizado, premiado ou punido. Contra os deterministas mitigados, os defensores do livrearbítrio sustentam que tal liberdade é indispensável a todo aspecto da vida moral. Como se poderia responsabilizar uma pessoa por um ato que ela não poderia ter escolhido realizar — um ato que foi o produto de fatores em sua atual condição derivados de todo o seu passado? Por que se deveria louvar ou culpabilizar uma pessoa, ou premiá-la ou puni-la, por atos que não foram livremente escolhidos, atos que poderiam ter sido diferentes se ela tivesse podido ter a chance de escolher? A punição para atos criminosos talvez tenha alguma justificativa pragmática ou utilitária. Pode servir ao propósito de reabilitar socialmente o criminoso e de demover outros tantos de cometer o mesmo crime, assim protegendo a sociedade no futuro de tais eventuais depredações. Mas como pode uma punição ser retributivamente justa se o criminoso não é moralmente responsável pelo crime que praticou, supondo-se que a prática deste crime não foi uma escolha livre de sua parte? Por estas razões, segundo meu juízo, a posição assumida pelos defensores do livre-arbítrio é muito mais poderosa do que a assumida pelos deterministas mitigados. Há ainda outras considerações a seu favor. Uma delas é a resolução da polêmica entre aqueles que consideram os valores morais e os juízos prescritivos como questões de mera opinião e aqueles que consideram a filosofia

moral como conhecimento genuíno. Se esta última visão prevalecer, a virtude moral — a direção habitual da vontade para o reto fim e a disposição habitual da vontade para escolher os meios corretos para alcançar este fim — será um ingrediente indispensável (necessário, mas não suficiente) na busca da felicidade. Que mérito se poderia atribuir à virtude moral se os atos que formam tais tendências e disposições habituais não fossem atos de livre escolha da parte do indivíduo que esteve engajado no processo de adquirir virtude moral? Nesta concepção, pessoas de caráter moral vicioso teriam seus caracteres formados de uma maneira não muito diferente daquela pela qual o caráter de pessoas normalmente virtuosas foi formado — por meio de atos inteiramente determinados, e de outro modo não poderia ter sido se fosse pela liberdade de escolha. A outra consideração diz respeito a controvérsias envolvendo ciência e filosofia — controvérsias que versam sobre sérios problemas em relação ao que é verdadeiro e o que é falso, ou ao que é mais ou menos verdadeiro. O que tais controvérsias acrescentam se não podem ser resolvidas apelando às melhores evidências e melhores razões? Certamente, elas não podem ser resolvidas se as melhores evidências e as melhores razões não constrangem os intelectos das partes envolvidas na questão. A necessidade gerada por tal constrangimento é diferente da determinação causai de um juízo científico ou filosófico operada por fatores alheios ao passado do cientista ou filósofo.

CAPÍTULO VIII Natureza humana  

1 É geralmente aceito nos dias de hoje que a espécie Homo sapiens é mais antiga do que já se pensou, tendo emergido dentro da família dos hominídeos há aproximadamente alguma data entre 35 mil e 50 mil anos. Também é geralmente aceito que todos os seres humanos vivos hoje, e todos que viveram desde que o Homo sapiens pela primeira vez apareceu sobre a terra, são membros de uma única e mesma espécie. Mesmo assim, no século XIX, a unidade essencial de todos os seres humanos, em virtude de sua participação na mesma natureza específica, foi amplamente posta em questão. O questionamento partiu de antropólogos culturais, de sociólogos, de outros cientistas comportamentais, e mesmo de historiadores. O questionamento, equivalente à negação da natureza humana, radica-se em um erro profundo, mas não um erro filosófico — ao menos em sua origem. Contudo, deve-se acrescentar que os filósofos não se esforçaram por corrigir este erro e que, para alguns deles — os existencialistas —, acabou se tornando o erro fundamental em seu pensamento. MerleauPonty, por exemplo, declarou que “a natureza do homem é não possuir uma natureza”. Acabei de dizer que a negação da natureza humana é um erro profundo — um erro com consequências extremamente sérias para a filosofia, especialmente a filosofia moral. Para que isso faça maior sentido, basta darmos uma olhada novamente no capítulo V, sobre os valores morais. Ali, vimos que a distinção entre desejos adquiridos e desejos naturais — as necessidades inerentes à natureza humana — nos levou à distinção entre bens aparentes e bens reais, o que, por sua vez, nos ajudou a estabelecer a verdade dos juízos prescritivos e lançou as bases para o nosso entendimento dos direitos naturais — os assim chamados direitos humanos.

Se a filosofia moral deve ter uma poderosa base factual, esta deve ser encontrada nos fatos sobre a natureza humana e em nenhuma outra parte. Se esta base nos for negada por meio de uma negação da natureza humana, a única alternativa restante é a do racionalismo extremado de Immanuel Kant, que procede sem qualquer consideração dos fatos atinentes à vida humana e sem nenhuma preocupação com a variedade de casos aos quais as prescrições morais devem ser aplicadas de um modo flexível em vez de rigoroso. Neste ponto, os leitores podem pedir por uma pausa e uma explicação. O que pode significar a negação da natureza humana? Somos todos seres humanos, não somos? Deve ser extremamente raro, se é que já aconteceu alguma vez, que alguém tenha alguma dúvida sobre se um determinado espécime em exame seja humano ou não. Em assim sendo, os critérios que empregamos para determinar se estamos lidando com um ser humano ou não implicam alguma compreensão de nossa parte quanto aos traços comuns pertencentes a todos os membros da espécie humana? Esses traços comuns constituem a natureza que é a mesma em todos os membros da espécie. E isto que queremos dizer com o termo “natureza humana”, não é?  

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Deixe-me tentar explicar agora o que é que leva à negação da natureza humana. Primeiramente, consideremos outras espécies animais. Se investigássemos cada uma delas tão cuidadosamente quanto possível, descobriríamos que os membros da mesma espécie, vivendo em seus habitats naturais, manifestam um notável grau de similaridade. Talvez descobríssemos diferenças de tamanho, peso, forma, ou coloração entre os indivíduos examinados. E talvez até mesmo desvios aqui e ali em relação ao que se teria tornado evidente como o comportamento normal daquela espécie. Mas, de um modo geral, ficaríamos impressionados com as semelhanças reinantes nas espécies examinadas.

A semelhança dominante de todos os membros da espécie nos levaria a descartar como relativamente insignificantes as diferenças encontradas, a maioria das quais poderia ser explicada como o resultado de condições ambientais levemente diferentes. Esta semelhança dominante constituiria a natureza da espécie em questão. Consideremos agora a espécie humana. Ela habita todo o globo. Seus membros vivem em todos os hemisférios e regiões, sob as condições ambientais mais amplamente variadas. Suponhamos que tivéssemos tempo de visitar as diversas populações humanas, onde quer que tenham existido — todas elas. E que estas visitas não fossem meramente casuais, passageiras, mas do tipo em que pudéssemos conviver com cada uma dessas populações por um tempo e estudá-las desde perto. Retornaríamos de nossa viagem com impressões exatamente opostas àquelas obtidas em nossa investigação das populações pertencentes a uma ou outra espécie animal. Na investigação das espécies animais, ficaríamos impressionados com a esmagadora semelhança reinante entre os membros de cada espécie. Já na investigação das diversas populações humanas, descobriríamos que, entre umas e outras, as diferenças prevalecem sobre as semelhanças. É claro que os seres humanos, como os outros animais, têm de comer, beber e dormir. Todos têm certos traços biológicos em comum. Não pode haver dúvidas de que eles têm a natureza de animais. Mas quando chegamos aos traços propriamente humanos, quão profundamente uma população humana diferirá da outra! Elas diferirão no idioma em que falam, e teremos alguma dificuldade em dar conta de modo preciso do vasto número de idiomas que teremos descoberto. Elas diferirão no seu vestuário, nos seus adornos, na sua culinária, nos seus usos e costumes, na organização de suas famílias, nas instituições de suas sociedades, em suas crenças, em seus padrões de conduta, em suas mentalidades, em quase tudo quanto integre os estilos de vida que elas levam. Estas

diferenças serão tantas e tão variadas que talvez tendamos — a não ser que tenhamos sido prevenidos contra esse tipo de conduta — a achar que elas não são todas pertencentes a membros da mesma espécie. De todo modo, não podemos evitar estar persuadidos de que, no caso humano, a pertença à mesma espécie não carrega consigo a semelhança dominante descoberta no caso das outras espécies animais. Bem ao contrário, as diferenças entre uma raça humana e outra, entre uma variedade racial e outra, entre um grupo étnico e outro, pareceriam ser dominantes. É isso que talvez nos faça chegar à conclusão de que não há nenhuma natureza humana no mesmo sentido em que se diz que certa natureza constante pode ser atribuída às demais espécies animais. E mesmo que não tenhamos nós mesmos alcançado tal conclusão, entendemos sua plausibilidade. Diferente da maior parte dos membros das outras espécies animais, os da espécie humana parecem ter formado subgrupos que se diferenciam uns dos outros. Cada subgrupo tem seu caráter distintivo. As diferenças que separam um subgrupo do outro são tão numerosas e profundas que nos desafiam a afirmar o que neles há de permanente — se é que, de fato, há algo — que possa ser considerado uma natureza humana comum a todos. Que fique claro que a negação da natureza humana repousa, em última análise, no impressionante contraste entre a semelhança dominante, prevalente entre os membros de outras espécies animais, e a diferenciação aparentemente dominante, prevalente entre os subgrupos da espécie humana. Se uma natureza específica é uma natureza comum aos membros da espécie, então, obviamente, outras espécies animais teriam, cada uma, a sua própria natureza específica. Mas a espécie humana não parece ter, como o têm as espécies animais, uma natureza específica própria. Mesmo se admitíssemos, como é de nossa obrigação, que todos os membros da espécie humana têm efetivamente certos traços em comum, principalmente atributos biológicos ou

características compartilhadas com outras espécies de animais superiores, estes traços parecem estar subordinados a todas as diferenças comportamentais que separam um subgrupo humano do outro. Longe de compartilhar os mesmos atributos ou características comportamentais, tais grupos se diferenciam uns dos outros por estes aspectos.  

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Vista de certa maneira, a negação da natureza humana está correta. Os membros da espécie humana não têm uma natureza comum ou específica no mesmo sentido em que os membros de outras espécies animais a têm. Esta é, a propósito, uma das mais notáveis diferenças entre o homem e os outros animais — uma diferença que tende a corroborar a conclusão segundo a qual aquele difere destes em tipo, não em grau. Mas admitir que os membros da espécie humana não tenham uma natureza comum ou específica no mesmo sentido em que a têm os membros das outras espécies animais não é de modo algum admitir que eles não tenham nenhuma natureza específica. Uma alternativa permanece aberta: a saber, a de que os membros da espécie humana têm a mesma natureza em um sentido bem diferente. Em que sentido, então, se pode dizer que há uma natureza humana, uma natureza específica que seja comum a todos os membros da espécie? A resposta pode ser dada em uma única palavra: potências. A natureza humana é constituída por potências, que são as propriedades específicas comuns a todos os membros da espécie. E da essência de uma potência ser capaz de uma ampla variedade de diferentes modos de atualização. Assim, por exemplo, a potência humana para articular sintaticamente o discurso é atualizada de mil maneiras diferentes nos diversos idiomas humanos. Tendo esta potência, para uma criança humana que tenha nascido neste ou naquele outro subgrupo, cada um dos quais falando um idioma próprio, quando chegar o momento de ela aprender a falar, aprenderá o idioma próprio

do seu subgrupo e não outro. As diferenças entre todos os idiomas humanos são superficiais se comparadas com a potência para aprender e falar qualquer idioma que já está presente na criança desde o momento do seu nascimento. O que acabou de ser dito de apenas uma potência humana aplica-se do mesmo modo a todas as demais, que não são senão os traços comuns e específicos que caracterizam o ser humano. Cada uma delas subjaz a todas as diferenças que, entre os diversos subgrupos humanos, surgem como o resultado dos muitos modos diferentes pelos quais a mesma potência pode ser atualizada. Reconhecer isto equivale a reconhecer a superficialidade das diferenças que separam um subgrupo humano do outro, se comparadas estas com aquilo que reúne todos os seres humanos como membros da mesma espécie e como portadores da mesma natureza específica. Em outras espécies animais, aquilo que une os seus membros e constitui sua natureza comum não são potências, mas antes características bem determinadas, tanto comportamentais quanto anatômicas e fisiológicas. Isso explica a impressão decorrente do estudo dessas outras espécies animais — a impressão de que há uma semelhança dominante entre seus membros. Voltando nossa atenção à espécie humana, a impressão oposta de que são as diferenças que predominam entre os diversos subgrupos humanos também pode ser explicada. A explicação para isso reside em que, no concernente às características comportamentais, a natureza comum compartilhada por todos os subgrupos é inteiramente composta por potências próprias da espécie, as quais são atualizadas pelos subgrupos de todas as maneiras diferentes que possamos descobrir em um estudo global da humanidade. Um recém-chegado às ciências comportamentais, à sociobiologia, tentou mostrar que tanto o comportamento animal quanto o humano é, em larga medida, geneticamente determinado. No que concerne à espécie humana, a pequena verdade contida na sociobiologia se aplica apenas à

determinação genética das potências humanas, não ao seu desenvolvimento comportamental. O erro que os antropólogos culturais, os sociólogos, e outros cientistas comportamentais cometem quando negam a existência da natureza humana tem sua raiz na falha deles em compreender que a natureza específica no caso da espécie humana é radicalmente diferente da natureza específica no caso das outras espécies animais. Deixem-me repetir uma vez mais que diferença é essa. No caso das outras espécies animais, a natureza específica comum a todos os membros da espécie é constituída principalmente por características ou atributos bem determinados. No caso da espécie humana, ela é constituída por características ou atributos determináveis, e não totalmente determinados. Uma potência inata é precisamente isso — algo determinável, portanto não totalmente determinado, e determinável em uma ampla variedade de modos. O homem é, em grande medida, uma criatura que se faz a si mesma. Dada uma gama de potências no momento de seu nascimento, o homem se torna o que se torna por meio do modo como livremente escolhe desenvolver essas potências através dos hábitos que elas formam. Foi isso, então, que diferenciou entre si os diversos subgrupos humanos que vieram a existir. Uma vez existentes, eles passaram a influenciar o modo como aqueles que nascem nesses subgrupos vieram a desenvolver as características adquiridas que diferenciam um subgrupo do outro. Estas características adquiridas, especialmente as comportamentais, são o resultado da aculturação; ou, ainda mais em geral, o resultado do modo pelo qual aqueles que nascem num ou noutro grupo são educados. Nenhum outro animal é uma criatura que se faz a si mesma no sentido acima indicado. Ao contrário, outros animais têm naturezas determinadas, naturezas geneticamente determinadas de tal maneira que não admitem, enquanto

amadurecem, uma ampla variedade de modos distintos de se desenvolver. A natureza humana também é geneticamente determinada; mas, porque a determinação genética consiste, em termos comportamentais, em uma doação inata de potências que são determináveis de diversos modos, os seres humanos diferem notavelmente um do outro à medida que amadurecem. Embora tenham se originado primeiro, a maioria daquelas diferenças é devida a diferenças de aculturação, a diferenças de educação. Confundir a natureza com o ambiente (cultural ou físico), o meio ou os modos que ela assume é um erro filosófico de primeira ordem. Este erro filosófico subjaz à negação da natureza humana. Os filósofos contemporâneos deveríam tê-lo apontado aos seus colegas acadêmicos da área das ciências comportamentais. A persistência nesta negação parece indicar que eles falharam neste propósito.  

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A correção do erro filosófico que acabou de ser mencionado é da maior importância, por causa das consequências decorrentes desta correção. O mais importante de tudo é superar o persistente preconceito — racista, sexista, elitista e até étnico — de que uma porção ou subgrupo da humanidade é distintamente inferior em natureza a outro. A inferioridade pode existir, mas não devida à natureza, e sim à organização social. Quando, durante a maioria dos séculos da História registrada, a metade feminina da população foi criada — ensinada e tratada — como inferior à metade masculina, esta concepção a fez aparentemente inferior quando ela amadureceu. Se essa aparente inferioridade tivesse sido corretamente atribuída à sua cultura, isto teria indicado instantaneamente como ela poderia ser eliminada. Mas ao ser incorretamente atribuído à natureza no momento do nascimento, ela é aceita como algo irremediável. O que foi dito em relação ao preconceito sexista concernente à desigualdade entre homens e mulheres aplica-

se igualmente a todos os demais preconceitos racistas e étnicos sobre a desigualdade humanas ainda existentes. Todas essas aparentes desigualdades são acidentais. Nenhuma é uma desigualdade natural entre um subgrupo humano e outro. Nos séculos anteriores a este, a visão elitista assumida pelas classes mais abastadas sobre a inferioridade da classe trabalhadora fundava-se, similarmente, em graves deficiências na educação dos trabalhadores, os quais, por necessidade e sem escolarização, começavam a trabalhar desde muito cedo na vida, frequentemente adotando uma jornada de trabalho de quatorze horas por dia, durante sete dias por semana. Thomas Jefferson estava certo em declarar que todos os seres humanos foram criados (ou, se você quiser, constituídos pela natureza) iguais. Eles também são, em termos de suas diferenças individuais, desiguais nos variados graus em que possuem as potências específicas comuns a todos. Estas desigualdades individuais, quando reconhecidas como subordinadas à igualdade básica de todos os seres humanos em sua humanidade comum ou natureza específica, não geram dificuldades que devam ser superadas ou erradicadas para garantir a justiça social. Mas, quando as desigualdades entre os subgrupos humanos, inteiramente devidas à aculturações, são tidas como desigualdades naturais, este erro deve ser superado e erradicado em nome da justiça social. A correção do erro que confunde natureza com seus modos conduz a certas conclusões que muitos leitores podem achar desconcertantes. Todas as diferenças culturais e psicofísicas que separam um subgrupo humano do outro são superficiais se comparadas com a natureza humana comum subjacente que unifica os membros da humanidade. Embora aquilo que em todos nós é idêntico seja mais importante do que aquilo que é diferente, temos uma tendência inveterada a enfatizar este último em detrimento do primeiro. Achamos difícil acreditar que a mente humana seja a mesma em toda parte porque falhamos em perceber que todas as diferenças, por abissais que nos pareçam, entre a mente do homem ocidental e a daqueles nascidos e criados nas diversas

culturas orientais são, em última análise, superficiais — inteiramente o resultado de diferentes processos de educação. Se uma comunidade cultural mundial em algum momento vier a existir, ela será baseada no pluralismo ou diversidade cultural com respeito a tudo quanto seja acidental na vida humana — coisas tais como culinária, vestuário, modos, costumes, etc. Estas são as coisas que variam de um subgrupo humano para o outro em conformidade ao modo como cada um deles educa os seus membros. Em contraste, os elementos comuns que unirão todos os seres humanos em uma única comunidade cultural estarão relacionados a coisas essenciais como a verdade científica e filosófica, os valores morais e os direitos humanos, a compreensão que os homens têm de si mesmos, e a sabedoria, que é o bem maior da mente humana. Quando isto acontecer, teremos enfim superado a ilusão cultural de que há uma mente ocidental e uma mente oriental, uma mente européia e uma mente africana, ou uma mente civilizada e uma mente primitiva. Há apenas uma única mente humana, que é sempre a mesma em todos os seres humanos.

CAPÍTULO IX Sociedade humana  

1 Uma das potências inerentes ao homem — logo, uma de suas propensões inatas — é associar-se com seus confrades. O homem é, por natureza, um animal social e que precisa viver em sociedade. Outra potência inerente é a capacidade de engajar-se no governo, e isso também dá origem a uma tendência inata e a uma necessidade natural. Outros animais são gregários, formam elaboradas sociedades, como os insetos sociais (abelhas, vespas, formigas e cupins), ou pastoreiam juntos de uma ou outra maneira, como os lobos em alcatéias e os peixes em cardumes. O homem difere deles em dois aspectos. Um é a maneira pela qual os membros da espécie humana formam sociedades. O outro reside no fato de que o homem, de todos os animais sociais, é o único que se organiza politicamente: ele é o único que cria leis, que forma uma sociedade civil, um estado ou uma comunidade política, e que estabelece instituições políticas. Há ainda uma última diferença fundamental entre a vida social da espécie humana e a dos outros animais gregários. Os seres humanos vivem juntos e se associam uns aos outros de variadas formas: em famílias; em tribos ou vilas; em estados ou sociedades civis; e, além de todas essas formas, eles se associam em numerosos subgrupos organizados para servir a um propósito ou outro. Nenhum desses modos de associação existe em quaisquer outras espécies de animais gregários. Dizer que o comportamento gregário do homem é exatamente igual ao dos outros animais, controlado pelos mesmos fatores e com o mesmo modo de funcionamento, seria delirante em face dos mais óbvios fatos. Mesmo assim, não podemos evitar encarar o problema que se impõe a partir do reconhecimento do fato de que apenas alguns animais são gregários ou sociais por natureza.

O que é comum ao homem e aos demais animais sociais é que eles são naturalmente gregários — a propensão para se associar já está arraigada neles desde o nascimento. Mas seriam eles naturalmente gregários exatamente no mesmo sentido da palavra “naturalmente”? Se voltarmos nossa atenção por um momento para as colméias elaboradamente organizadas, as colônias ou os monturos de terra onde habitam os insetos sociais descobriremos que o modo ou plano de organização de sua vida social será exatamente o mesmo para os insetos de uma determinada espécie, geração após geração, por tanto tempo quanto dure a espécie. O modo pelo qual os membros de uma espécie em particular de insetos se associam uns com os outros, a estrutura de sua organização social, o padrão do seu comportamento social, é geneticamente determinado por instintos dos quais aquela espécie em particular está dotada. O que é tão obviamente verdadeiro em relação aos insetos sociais é igualmente verdadeiro, embora talvez não tão obviamente, em relação aos grupamentos sociais e comportamento dos animais gregários superiores. A sua gregariedade é natural no sentido de ser geneticamente determinada para todas as gerações de uma determinada espécie enquanto ela durar. Já tivemos ocasião de observar no capítulo anterior que, em acentuado contraste com todas as outras espécies animais, os membros da espécie humana se dividem em uma miríade de subgrupos caracterizados pela mais ampla variedade de atributos ou traços distintivos. Foi este fato que levou a dúvidas e negações em relação à existência de uma natureza humana comum a todos. O mesmo tipo de fato levanta uma questão sobre a naturalidade das sociedades humanas. Onde quer que, neste planeta, se encontrem seres humanos vivendo em famílias, organizações tribais, e sociedades civis ou estados, tais sociedades domésticas, tais tribos ou vilas, e tais sociedades civis ou estados estarão estruturados, organizados e operados das mais variadas maneiras possíveis.

Dificilmente elas podem, portanto, ser geneticamente determinadas por dados instintivos. Fosse este o caso, elas deveriam todas ser a mesma, porquanto, o que quer que seja um dado instintivo, está presente exatamente do mesmo modo em todos os membros de uma determinada espécie. Se as sociedades humanas não são naturais em sua origem, como então elas vieram a existir? A resposta usualmente dada é: por convenção; ou, em outras palavras, pela concordância voluntária dos indivíduos em formar uma associação em vistas deste ou daquele propósito. Este é, certamente, o modo pelo qual muitas associações são formadas — clubes, hospitais, universidades, empresas, associações profissionais, companhias, corporações, e assim por diante. Elas são todas voluntariamente instituídas, formadas e organizadas por convenções acordadas pelas partes associadas. Ainda assim, tanto na Antiguidade quanto na Idade Média as três principais formas de associações humanas — a família, a tribo ou vila, e a sociedade civil ou o estado — eram todas consideradas naturais. Apenas nos tempos modernos, começando com O Leviatã de Thomas Hobbes e culminando n’O Contrato social de Jean-Jacques Rousseau, a sociedade civil ou estado foi considerada totalmente convencional, não mais em qualquer sentido natural, como pode ser a família humana e como são as associações formadas pelos outros animais gregários.  

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O mais importante dos erros filosóficos modernos sobre a sociedade pode ser encontrado na teoria do contrato social como sendo a origem convencional do estado ou da sociedade civil. Este erro repousa sobre dois mitos. Um é o mito que atende pelo nome de “estado de natureza”. Esta expressão, quando usada por Hobbes, Locke, ou Rousseau em suas versões levemente variadas da origem da sociedade civil, significa uma condição da vida humana sobre a terra em que os indivíduos vivem isolados uns dos outros e anarquicamente, com completa autonomia.

O que é chamado de “estado de natureza” é algo totalmente mítico e que nunca existiu na terra. Isto deveria ser óbvio a todos, à luz do fato incontroverso de que a espécie humana não poderia ter sobrevivido sem a existência de famílias que protegessem as crianças dos perigos do mundo, incapazes que são de cuidar de si mesmas. O segundo mito, inseparável do primeiro, é a ficção segundo a qual os seres humanos, insatisfeitos com a precariedade e brutalidade da vida no estado de natureza, decidiram não mais aceitar essa situação e concordar com certas regras e convenções para conviver sob alguma forma de governo que substituísse a anarquia e eliminasse o seu isolamento e autonomia. Dos três expoentes modernos desta teoria contratual, Rousseau ao menos admite que o contrato social e o estado de natureza não possuem realidade histórica, mas constituem apenas uma hipótese explicativa de como a sociedade civil veio a existir, o que poderia vir a abonar a teoria, mas apenas se a hipótese fosse necessária para fins explanatórios. Ocorre que ela não é. A origem do estado pode ser satisfatoriamente explicada sem recorrer a nenhuma destas ficções como o contrato social e o estado de natureza. Eis aí o erro filosófico que exige correção. 3  

A correção do erro passa pelo reconhecimento de que a distinção entre uma origem natural e uma convencional para o estado ou para a sociedade civil não é uma disjunção simples — uma do tipo “ou-isto-ou-aquilo”. Se uma forma de associação é natural apenas no sentido em que sociedades de insetos são geneticamente determinadas por dados instintivos que são peculiares a uma espécie em particular, e se uma forma de associação é convencional apenas no sentido em que corporações ou empresas privadas e associações profissionais se originam a partir do resultado da concordância voluntária das partes envolvidas, segue-se daí então, forçosamente, que nenhuma forma de associação pode ser simultaneamente natural e

convencional. Neste caso, as associações deverão ser, necessariamente, ou exclusivamente naturais ou exclusivamente convencionais. Os expoentes modernos da teoria contratualista sabiam que, historicamente, os homens nem sempre viveram em sociedade civis ou estados. Eles também sabiam que, quando as sociedades civis ou estados passaram a existir, não se encontravam todos estruturados ou organizados da mesma maneira. Assim, eles não poderiam considerar o estado como natural no sentido em que “natural” significa o resultado da operação de dados instintivos. Como eles bem viram, a única alternativa era considerar o estado como puramente convencional, não natural em qualquer sentido do termo. A raiz do erro reside em não reconhecer dois diferentes sentidos da palavra “natural”: um em que uma associação não pode ser simultaneamente natural e convencional, e outro em que pode. Este outro sentido da palavra “natural” era bastante comum na Antiguidade. Um filósofo político como Aristóteles não encontrou dificuldades para descrever o estado ou a comunidade política como sendo simultaneamente natural e convencional. Entre os três maiores expoentes da teoria contratualista nos tempos modernos, apenas Rousseau revela que ele também levou em consideração o sentido da palavra “natural” em que o estado pode ser simultaneamente natural e convencional. Infelizmente, este reconhecimento deu-se apenas de maneira implícita e jamais foi trazido à superfície explicitamente. Rousseau nunca abandonou as ficções de um estado de natureza e de um contrato social para explicar a origem da sociedade civil. O reconhecimento tácito acima referido pode ser encontrado, como se segue, no Livro I, Capítulo 2, de seu O contrato social:  

A mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a família. Mesmo assim, os filhos só estão ligados ao pai

enquanto precisam dele para sobreviver. Tão logo cessa tal necessidade, esse vínculo natural se dissolve [grifos nossos]. A família é vista, então, como natural porque há uma necessidade natural para a sua constituição, não porque os seres humanos estejam geneticamente determinados pelos instintos a se organizar de modo relativamente permanente em grupos domésticos. Que estas sociedades domésticas sejam naturais por necessidade, não por instinto, patenteia-se também a partir do fato de que as famílias humanas estão organizadas em uma miríade de modos diferentes. E elas não estariam assim organizadas se fossem instintivamente determinadas em vez de voluntariamente formadas pela livre escolha. A família humana é, então, tanto natural quanto convencional — simultaneamente. No Livro I, Capítulo 6, intitulado “Do pacto social”, podemos ler no parágrafo de abertura de Rousseau o seguinte: Suponho os homens chegados a um ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza vencem, por sua resistência, as forças que cada indivíduo pode empregar para manter-se nesse estado. Esse estado primitivo, então, não pode mais subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser. Por que, então, os seres humanos abandonam o estado de natureza mítico ou hipotético (em que nunca viveram, pois sempre viveram, no mínimo, associados em famílias)? Eles não foram levados a agir assim por instintos inatos, mas por uma necessidade natural, exatamente como foram levados a viver em famílias por uma necessidade natural. A sociedade civil é tão natural quanto a família, e natural no mesmo sentido do termo. Mas a necessidade natural é a mesma? Não, pois a pequena sociedade doméstica, a família isolada, e a sociedade expandida, que consiste em famílias consanguíneas associadas em tribos e vilas, bastam para a mera preservação da vida humana. O trabalho dos membros de uma família, ou da população de uma tribo, provê os meios diários de

subsistência, ou um pouco mais do que isso, que pode ser estocado para tempos de privação. O estado ou a sociedade civil não passa a existir por tais motivos, nem para satisfazer a necessidade de preservação da espécie. Rousseau tacitamente o admite quando, no capítulo final de seu primeiro livro, chama a atenção para a diferença entre a vida primitiva e a vida civilizada (“civilizada” no sentido de ser vivida em uma sociedade civil ou em uma comunidade política). O estado ou a sociedade civil passou a existir para satisfazer a necessidade natural humana por condições que propiciassem a realização de uma vida moralmente boa — com o fim de não apenas viver, mas de viver bem. Se o assim chamado “estado de natureza” não existe e a naturalidade da sociedade civil é fundada sobre uma necessidade natural, não sobre instintos inatos, por que se insiste ainda no mito de que os homens saíram de um estado de natureza para entrar em um contrato social uns com os outros e assim instituir a sociedade civil e o estado? Não há outra explicação possível para a origem do Estado? Sim, há uma explicação que apela para os fatos historicamente conhecidos. As primeiras comunidades políticas surgiram de grandes organizações tribais que, por uma razão ou outra, se associaram umas com as outras para formar uma sociedade ainda maior — uma sociedade composta por tribos ou vilas associadas. O tipo de regra ou governo que prevaleceu nas tribos, uma regra absoluta ditada pelos mais velhos, penetrou nas grandes sociedades que elas formaram quando se associaram. Em vez de chefes tribais, elas agora tinham reis, regendo absolutamente ou despoticamente, como fizeram os grandes reis da Pérsia ou os faraós do Egito. Um pouco depois, o governo despótico ou absoluto dos reis foi substituído pela adoção de constituições nas cidades-estado da Grécia. Sólon deu aos atenienses uma constituição que, adotada por eles voluntariamente, estabeleceu a República Ateniense. Assim, também, Licurgo deu aos espartanos uma constituição por meio da qual, uma vez mais voluntariamente, a República de Esparta passou a existir.

Cônscio desta história, Aristóteles, após enfatizar a naturalidade do estado em função da necessidade natural que a sua constituição satisfaz, escreveu que “aqueles que primeiro fundaram o estado foram os maiores dos benfeitores”. Ele tinha Sólon e Licurgo em mente como fundadores do estado, porque, em sua visão, o governo absoluto ou despótico, trazido das culturas tribais, era incompatível com um estado — uma sociedade civil ou comunidade política. Se os seres humanos são, por natureza, não apenas animais sociais, mas também políticos, então eles têm uma inclinação natural para se organizar politicamente e uma necessidade de participar do governo. Isto é possível apenas quando eles se tornam cidadãos de uma república e vivem sob um governo constitucional. Eles então passam a gozar e dispor de liberdade política, o que significa ser governado a partir do próprio consentimento e tendo voz perante o próprio governo. A adoção voluntária de uma constituição que cria uma república, com os cidadãos como a classe dominante e os administradores do governo sempre ocupando cargos públicos com autoridade e poder constitucionalmente limitados, é uma versão muito melhor, historicamente mais precisa, da origem do estado do que a teoria do contrato social de Rousseau. Rousseau, não menos que Aristóteles, considerava a república, ou a sociedade civil submetida a um governo constitucional, a única forma legítima de governo civil. Sem ela, não poderia haver uma verdadeira comunidade política. As demais formas de governo, como o absolutismo e o despotismo, seriam anômalas: nem organizações de tipo estritamente tribal nem verdadeiras comunidades políticas. Dois outros erros devem ser mencionados brevemente. Um é cometido por Rousseau quando ele diz que, após os indivíduos terem concordado em formar uma sociedade civil nos termos de um contrato social, cada pessoa, “apesar de unir-se a todas as demais, pode ainda obedecer apenas a si mesma e permanecer tão livre quanto antes”. Viver sob um governo, mesmo sob o regime constitucional mais perfeitamente concebido de todos, torna impossível ao

indivíduo obedecer apenas a si mesmo. Ele não “permanece tão livre quanto antes”, pelo que Rousseau quer dizer tão livre quanto ele era em um estado de natureza antes de haver ingressado em um contrato social. Esta liberdade do estado de natureza mítico seria completamente autônoma. O homem, neste estado hipotético, seria o legislador de si mesmo — sua própria lei. Ele teve de abandonar sua completa autonomia, segundo Rousseau, quando, pelo contrato social ou quaisquer outros meios, tornou-se um membro da sociedade civil. O que então substituiu a liberdade ilimitada da completa autonomia foi a liberdade limitada da civilização, a liberdade civil — isto é, a liberdade sob um governo, não a liberdade contra ou apesar de um governo. A menção à completa autonomia como sendo algo incompatível com a vida sob um governo civil nos coloca diante de outro erro caracteristicamente moderno sobre a sociedade humana. Trata-se de um erro que não pode ser encontrado na Antiguidade ou na Idade Média. Ele surge no século xix com filósofos anarquistas como Kropotkin, Bakunin, Marx e Lênin. O erro consiste em pensar que é possível aos homens viver juntos pacífica e harmoniosamente em sociedade sem qualquer tipo de governo e de leis que são tornadas eficazes justamente pelo exercício coercitivo da força. Mais do que meramente possível, este é o ideal sustentado por Kropotkin e Bakunin — a eliminação do estado e do governo como instituições irremediavelmente más. Diferente de Bakunin, que advogou a derrubada do estado pela ação direta, Marx e Lênin podem ser descritos como anarquistas fabianos. Em sua visão, o ideal último do comunismo só será alcançado após a instauração de uma ditadura do proletariado — penúltimo estágio antes da realização daquele ideal — que dará cabo de si mesma. Então o estado opressivo, com a força coercitiva de seu governo e de suas leis, irá aos poucos se dissolver. Nesse sentido, a utopia almejada seria uma pacífica anarquia, o que não poderia ser senão impossível, dada a

natureza humana tal como ela é. A visão marxista é aquela segundo a qual as condições externas, especialmente as condições sob as quais a riqueza é produzida e distribuída, quando radicalmente alteradas, alteram também a natureza humana.. Deste cenário emergiria um novo homem — um homem capaz de viver pacífica e harmoniosamente com seus confrades em uma sociedade sem regulações governamentais ou restrições e constrangimentos legais de qualquer espécie. A noção de “novo homem” é tão mitológica quanto a noção de “estado de natureza” e de “contrato social”. A fantasia utópica de uma pacífica anarquia é tão impraticável e irrealizável quanto qualquer outra utopia já sonhada.6

CAPÍTULO X Existência humana  

1 O que as pessoas têm em mente quando perguntam sobre a existência de algo? Antes de tudo, elas estão perguntando se a coisa em questão tem realidade. Existirá esta coisa no mundo real de maneira bem independente de nossas mentes e do que quer que pensemos ou saibamos a seu respeito, ou será apenas um objeto que existe para nós quando exercemos nossas potências perceptivas e de pensamento? Uma segunda questão que elas podem ter em mente diz respeito ao modo de existência. Existirá esta coisa em e por si mesma, não como uma parte ou aspecto de outra coisa, ou será justamente isso, uma parte ou aspecto de outra coisa? Se ela existir junto com outras coisas que, tomadas todas juntas como um agregado organizado, constituem o todo da realidade, então, certamente, existirá como parte, e não inteiramente nem por si mesma. Mas se, quando uma destas outras coisas cessar de existir, ela ainda permanecer na existência, então não será uma parte daquela outra coisa no mesmo sentido em que se diz que uma perna de mesa é uma parte da mesa inteira, e que esta perna cessaria de existir caso a própria mesa também cessasse. O que acabei de dizer da perna da mesa pode também ser dito da sua cor, do seu formato, do seu peso e assim por diante. Estes são os atributos ou as características da mesa. Como tais, eles não existem em e por si mesmos; eles existem na mesa, e continuam a existir apenas enquanto a própria mesa existir. Na filosofia antiga, as palavras “substância” e “acidente” foram usadas para demarcar esta distinção entre o que existe em si mesmo e o que existe em outro. Esses termos não são mais correntes e podem ser enganosos. Em seu lugar, usarei, portanto, os termos mais familiares “coisa” e “atributo” para

designar aquilo que já foi um dia considerado como tendo existência substancial e acidental, respectivamente. Há ainda outra questão que diz respeito à duração ou durabilidade da existência. Comparados com uma coisa, ou mesmo com os atributos desta, eventos são existências de curta duração. Um flash de luz, por exemplo, é considerado um evento instantâneo; já um longo estrondo de trovão é um evento de curta duração, tendo início, meio e fim dentro de um breve período de tempo. Não nos referiríamos a ele, portanto, como uma coisa. Em contraste, uma casa que permanecesse de pé por um século ou mais, mudando muito pouco neste período de tempo, não é um evento, mas uma coisa. No mundo dos fenômenos físicos, materiais, as coisas são as únicas existências que estão sujeitas à mudança. Eventos não mudam. Os atributos de uma coisa não mudam. O verde de uma maçã que ainda não amadureceu não se torna vermelho quando ela amadurece. Ao contrário, foi a própria maçã quem mudou qualitativamente, mudando de verde para vermelha. É a maçã que muda de lugar quando é movida daqui para ali. E é o bebê humano que muda de tamanho e peso, e em muitos outros aspectos, quando cresce, não os atributos ou características que foram substituídas por outros atributos e características quando essas mudanças ocorreram com o crescimento. A existência mutável das coisas envolve outro ponto de grande importância. Para que uma coisa mude em qualquer aspecto, ela mesma deve permanecer a mesma ao longo de todo o processo. Se ela não permanecesse a mesma, como poderiamos sequer falar a seu respeito como de algo que muda? Resumidamente, aquilo que é o sujeito da mudança deve ter uma identidade clara e durável. Deve também ter uma unidade persistente. Se a coisa é um todo com partes componentes, ela é, certamente, divisível; mas enquanto ela for um único sujeito de mudança, deve permanecer indivisa. Quando então é dividida, cessa de ser aquela única coisa individual.

Como, então, o ser humano existe? O nosso senso comum quanto a isso, baseado em nossa experiência comum, nos diz que os seres humanos existem como coisas individuais, tendo muitos atributos em relação aos quais podem mudar enquanto permanecem sendo a mesma coisa durável que está sujeita a todas essas mudanças. O que acabou de ser dito pode parecer simples e óbvio, talvez até desnecessário de ser dito, mas é algo de não pouca importância. Sem o tipo de identidade clara que pertence à coisa individual como a um sujeito de mudança, os seres humanos, tendo uma existência obviamente mutável, não poderiam ser moralmente responsabilizados por seus atos. O nosso próprio senso de identidade pessoal é o de que, momento a momento, dormindo ou acordados, somos o mesmo indivíduo, a mesma totalidade composta por suas partes, o mesmo portador de muitos atributos. Não cessaríamos de ser esta coisa individual única mesmo se, por uma cirurgia de amputação, viéssemos a perder uma parte de nosso corpo; ou se, no curso do envelhecimento, sofrêssemos mudanças radicais em nossas características físicas, nossos atributos pessoais e nossos traços temperamentais. Enxergamos outros seres humanos à mesma luz com que nos enxergamos. Eles também têm uma identidade clara e uma unidade que permanece a mesma enquanto está sob mudança. Não experimentamos as suas identidades como experimentamos a nossa, mas não temos dúvidas de que eles a possuem no mesmo sentido em que nós, e que através dela eles são capazes de assumir a mesma responsabilidade moral por seus atos que nós pelos nossos. Mas nosso senso comum em relação a essa questão ainda vai mais além. Todos os objetos físicos no mundo da nossa experiência perceptual diária — as mesas e cadeiras, as casas e automóveis, os animais de estimação, as árvores e plantas no jardim, as rochas e estátuas — são todos coisas individuais, identidades permanentes que estão sujeitas à mudança. E pensamos nelas como portadoras de várias qualidades

sensíveis — as cores, texturas, odores, e assim por diante — que podemos experimentar como suas.  

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Esta imagem que o senso comum faz do mundo em que vivemos talvez fosse contestada pelo que nos é dito pelos cientistas (físicos) de nossos dias. Nunca esquecerei meu choque quando, mais de cinquenta anos atrás, li as Gifford Lectures de Sir Arthur Eddington, que foram reunidas sob um volume intitulado A natureza do mundo físico. Em suas observações iniciais, Sir Arthur diz à sua audiência que a mesa defronte à qual está sentado, a mesa que lhes parecia tão sólida a ponto de lhes machucar os punhos se tentassem socá-la, era, na realidade, uma área de amplo espaço vazio em que corpúsculos invisíveis estavam se movendo em alta velocidade, interagindo uns com os outros de variados modos, fazendo a mesa parecer ser sólida, ter certo tamanho, formato e peso, e ter certas outras qualidades sensíveis, tais como sua cor, suavidade e assim por diante. Aparência e realidade! Como Sir Arthur falou, não parecia haver dúvida em sua mente sobre qual era qual. A mesa que o palestrante e sua audiência percebiam através de seus olhos e podiam tocar com suas mãos talvez lhes parecesse ser uma coisa individual que tem uma identidade perdurável clara e que pode sofrer mudanças enquanto permanece a mesma. Esta seria a aparência, uma aparência que talvez pudesse ser considerada ilusória se comparada com a realidade invisível e intocável das partículas atômicas em movimento que preenchem o espaço ocupado pela mesa visível, um espaço amplamente vazio, embora impenetrável por nós. Meu choque inicial aumentou quando deixei de pensar na mesa e passei a pensar em mim mesmo e nos outros seres humanos. Não éramos diferentes da mesa. Nós também éramos coisas físicas individuais. Talvez parecêssemos ser a nós mesmos e aos outros tão sólidos quanto a mesa, embora um pouco mais suaves ao toque, mas, assim como ela, do

mesmo modo impenetráveis a um dedo. Mas, na realidade, o espaço ocupado pelos nossos corpos aparentemente sólidos era tão vazio quanto o da mesa. Quaisquer que fossem os atributos ou características que nossos corpos parecessem ter, tal como os percebemos por nossos sentidos, não seriam senão o resultado de movimentos e interações de partículas as quais não teriam, elas mesmas, nenhuma dessas características sensíveis. De acordo com esta visão, as partículas imperceptíveis que compõem todos os objetos da nossa experiência perceptual ordinária possuem apenas propriedades quantitativas, não qualidades sensíveis de quaisquer tipos. Estas últimas existem apenas em nossa consciência dos objetos percebidos, sustentam os adeptos desta concepção, não nos objetos mesmos. Elas não têm qualquer estatuto na realidade. Então vem à tona o enigma relativo ao que se convencionou chamar “qualidades secundárias”, um quebra-cabeça que sempre acompanha a falácia reducionista a que os atomistas são tão propensos. O que será da minha identidade pessoal, ou da sua, e da responsabilidade moral por nossas ações, se cada um de nós deixar de ser uma coisa individual e vier a se tornar, em vez disso, uma congérie de partículas físicas que não permanecem as mesmas durante o período de tempo de nossas vidas? Para enfrentar o problema aqui levantado, eliminemos de uma vez uma maneira fácil, porém errônea, de tentar saná-lo. Esta maneira fácil de tentar resolver o problema é considerar as duas representações — a que temos como objeto do senso e da experiência comuns, e a que nos é dada pelos físicos — como ficções úteis e convenientes. A primeira delas serviria para todas as exigências práticas de nossa vida diária. A segunda, aplicada em inovações tecnológicas, nos daria uma maestria e controle extraordinários sobre o mundo físico em que vivemos. Colocadas desta maneira, não há conflito entre as duas visões do mundo em que vivemos e de nós mesmos enquanto

organismos vivos existentes nele. Não precisamos perguntar o que é realidade e o que é mera aparência ou ilusão. Antes da metade do último século, considerava-se que a teoria dos atomistas postulava uma ficção científica útil, de modo a não desafiar a realidade da cosmovisão de senso comum endossada por uma potente filosofia. Até então, começando com Demócrito no mundo antigo e chegando a Newton e Dalton no mundo moderno, o átomo foi concebido como a unidade absolutamente indivisível da matéria. Nas palavras de Lucrécio, o átomo seria uma unidade de “sólida singularidade”, sem nenhum vazio dentro de si, como deve haver um vazio em qualquer corpo composto — tendo átomos como suas partes componentes — e, portanto, divisível. Sabemos que no século XIX, e em nossos próprios dias, tudo isso mudou radicalmente. Não há mais qualquer dúvida sobre a existência real dos átomos, que agora se sabem serem divisíveis e preenchidos microscopicamente de vazio como o sistema solar o é macroscopicamente. Neste espaço vazio se movem as partículas elementares que foram agora descobertas pelos mais engenhosos dispositivos detectores — partículas cuja existência real é verificada por inferência a partir de fenômenos observados, os quais não podem ser explicados senão pela postulação da existência real dessas partículas inobserváveis. Deixe-me ter certeza de que este último ponto esteja perfeitamente claro. As partículas elementares, que são os componentes móveis do átomo divisível, são intrinsecamente imperceptíveis aos nossos sentidos. Como um escritor contemporâneo coloca, as partículas elementares são essencialmente irrepresentáveis — “irrepresentáveis em princípio”. Elas e o átomo que constituem não têm quaisquer das qualidades sensíveis possuídas pelas coisas físicas perceptíveis da experiência comum. Nem mesmo as propriedades quantitativas possuídas pelos átomos e moléculas, tais como tamanho, peso, formato, ou configuração, essas partículas elementares têm.

A afirmação de Werner Heisenberg sobre a matéria confirma quão radical, de fato, é a irrepresentabilidade das partículas elementares. Eis o que ele diz: As partículas elementares indivisíveis da física moderna possuem a qualidade de ocupar espaço em medida não superior a quaisquer outras propriedades, por exemplo, a cor e a força do material. [Elas] não são mais corpos no sentido próprio do termo.7 Heisenberg prossegue dizendo que as partículas elementares são unidades de matéria apenas no sentido em que massa e energia são intercambiáveis. Este substrato fundamental, segundo ele, “é capaz de existir em diferentes formas”, mas “sempre aparece em definidos quanta”.8 Estes quanta de massa e energia não podem sequer ser descritos exclusivamente em termos de partículas, pois eles também são ondas ou pacotes de ondas. Falando de átomos e moléculas, não devemos dizer a respeito deles o mesmo que dizemos de nós mesmos e das outras coisas perceptíveis da experiência comum? Eles, também, são totalidades divisíveis feitas de componentes mutáveis e móveis. O que dizer da realidade dos átomos e moléculas quando comparada com aquela das partículas elementares que os compõem? Se pudéssemos ver a olho nu átomos e moléculas, não seríamos obrigados a dizer que eles apenas parecem ser daquele modo como foram por nós percebidos — um corpo sólido, indivisível —, mas que, na realidade, o que percebemos era apenas ilusão? Somos aqui confrontados com a falácia do reducionismo, um erro que se tornou muito comum em nossos dias, não apenas entre cientistas, mas também entre filósofos contemporâneos. Este erro consiste em considerar os constituintes últimos do mundo físico, as partículas elementares, como mais reais do que os corpos compostos que nos são acessíveis aos cinco sentidos e que são constituídos por elas. O reducionismo pode avançar e declarar esses constituintes últimos — as partículas elementares — como a única realidade, relegando tudo o mais ao estatuto de mera aparência ou ilusão.

 

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Como podemos corrigir este erro filosófico da falácia do reducionismo — o qual deve ser corrigido para que validemos tanto nossa cosmovisão de senso comum quanto uma filosofia da natureza que concorde com ela? Antes de eu tentar sugerir uma solução, permitam-me ter certeza de que o conflito entre as cosmovisões científica e de senso comum esteja claro. A cadeira na qual estou agora sentado ocupa uma determinada área no espaço. Dizer, por um lado, que o espaço está preenchido com um corpo sólido e único que experimentamos como sendo a cadeira percebida é contraditório a dizer, por outro lado, que o espaço é, em grande medida, um vazio preenchido por partículas imperceptíveis que estão se movendo e interagindo umas com as outras. O conflito ou a contradição aqui não é simplesmente entre o espaço vazio e o espaço cheio. Trata-se de uma contradição entre o uno e o múltiplo. A cadeira da nossa experiência comum, cuja realidade é defendida por uma filosofia baseada no senso comum, não é apenas um corpo sólido, senão que, de modo ainda mais fundamental, é um ente único, singular. A cadeira da teoria física consiste de uma multiplicidade irredutível de unidades discretas, cada uma tendo sua própria existência individual. Se o ente unitário que é a cadeira sólida, com todas as suas qualidades sensíveis, é desprezada como uma ilusão que nos é imposta pela experiência sensível, então nenhum conflito subsiste. Ou se o átomo dos físicos, as partículas elementares, os pacotes de ondas ou os quanta de massa forem entidades meramente teoréticas às quais não se pode atribuir nenhuma existência real (isto é, se elas forem formas meramente matemáticas sem nenhuma realidade física), então a sua postulação para fins teoréticos como ficções úteis não desafia a cosmovisão segundo a qual o que realmente existe lá fora é a cadeira sólida da nossa experiência.

Se, contudo, uma existência real do mesmo tipo for igualmente atribuída às entidades descritas pelas cosmovisões científica e de senso comum, então não poderemos evitar um conflito que reclamará resolução. Uma pista ou dica que pode ajudar a nos levar à solução está contida nas palavras grifadas em itálico na sentença anterior: “do mesmo tipo”. Tanto a cadeira sólida quanto as partículas imperceptíveis têm existência real, mas a realidade de cada uma delas não é do mesmo tipo, nem da mesma ordem ou grau. Em virtude disso, o conflito pode ser resolvido. A contradição é vista, então, como meramente aparente. O problema seria insolúvel se as duas asserções a serem reconciliadas estivessem em relação uma com a outra do mesmo modo em que a afirmação de que Jonas está sentado em uma determinada cadeira em um determinado momento se relaciona com a afirmação de que Smith está, neste mesmo momento, sentado na mesma cadeira, e não sentado em cima de Jonas ou no braço da cadeira, mas exatamente onde Jonas está sentado. As sentenças sobre Jonas e Smith não podem ser ambas verdadeiras — não podem ser reconciliadas. A asserção sobre as partículas nucleares serem os constituintes imperceptíveis da cadeira e a asserção sobre a cadeira sólida perceptível ser uma coisa individual, ambas ocupando o mesmo espaço, podem ser reconciliadas sob a condição de que reconheçamos os diferentes graus da realidade. Werner Heisenberg utilizou o termo potência — possibilidade de ser — para descrever o grau extremamente baixo de realidade — talvez o mais baixo de todos — que as partículas elementares podem ter. Escreveu ele: Para fazer experimentos sobre eventos atômicos, temos de partir de coisas e fatos, fenômenos que são tão reais quanto qualquer outro fenômeno da vida cotidiana. Mas os átomos ou as partículas elementares não são reais do mesmo modo; eles formam antes um mundo de potencialidades ou possibilidades do que um mundo de coisas ou fatos.

Heisenberg, ao dizer que as partículas elementares não são reais do mesmo modo que as coisas individuais perceptíveis da vida cotidiana, não nega que elas ainda tenham alguma realidade. O meramente possível, aquilo que não tem qualquer existência atual, não tem nenhuma realidade. Aquilo que tem alguma potência para existir, e tende a esta existência, tem algum grau de realidade, conquanto ínfimo: é algo um pouco mais do que meramente possível. Deixe-me resumir a solução do problema que corrige o erro filosófico emergente a partir da falácia do reducionismo, solução esta que compreende duas etapas. A realidade das partículas elementares da física nuclear não pode ser reconciliada com a realidade da cadeira como uma substância individual sensível se é asseverado que ambas, partículas e cadeira, têm o mesmo modo de existência ou grau de ser. O mesmo pode ser dito das partículas nucleares e dos átomos dos quais elas são as partes componentes. As partículas são menos reais que os átomos; quer dizer, elas têm menos atualidade. Este é o significado da afirmação de Heisenberg de que as partículas estão em um estado de potência — “possibilidades ou tendências para ser”. O modo de ser dos constituintes materiais de um corpo físico não pode ser o mesmo quando estes constituintes existem isoladamente e quando entram na constituição material de um corpo atualizado. Assim, quando a cadeira existe atualmente como um corpo único, singular, a multidão de átomos e de partículas elementares que a constituem existe apenas virtualmente. Uma vez que a existência destes é apenas virtual, assim também é sua multiplicidade; e sua multiplicidade virtual não é incompatível com a unidade atual da cadeira. Novamente, pode-se dizer a mesma coisa de um átomo singular e das partículas nucleares que o constituem; ou de uma única molécula e dos vários átomos que a constituem. Quando um átomo ou uma molécula existem atualmente como uma unidade de matéria, seus constituintes materiais têm

existência meramente virtual e, por conseguinte, também a multiplicidade destes é meramente virtual. O que existe virtualmente tem mais realidade que o meramente potencial e menos que o totalmente atual. Os componentes virtualmente existentes de qualquer totalidade composta só se atualizam plenamente quando o composto se decompõe em suas partes constituintes. A existência virtual e a multiplicidade dos constituintes materiais não ab-rogam a capacidades destes para a existência e a multiplicidade atuais. Se a cadeira unitária — ou um único átomo — fosse explodida e assim decomposta em suas partes constituintes materiais últimas, as partículas elementares assumiriam o modo de existência atual que as partículas isoladas têm em um cíclotron; a multiplicidade virtual delas seria transformada em multidão atual. O ponto crítico aqui é que o modo de existência em que as partículas são unidades discretas e têm multiplicidade atual não pode ser o mesmo que o modo em que elas são constituintes materiais de uma cadeira em estado de existência atual. Se dissermos que as partículas em um cíclotron e as partículas que integram a constituição atual de uma cadeira têm o mesmo modo de existência, o conflito entre a física nuclear e a doutrina filosófica que afirma a realidade dos objetos materiais da experiência comum deixa de ser meramente aparente e passa a ser um conflito real — e do tipo que é insolúvel, pois as teorias conflitantes são irreconciliáveis. Mas se as reconhecermos como tendo modos de existência distintos, as teorias que parecem estar em conflito podem ser reconciliadas. Não apenas reconciliamos o conflito entre a visão do mundo físico avançada pela ciência moderna e aquela sustentada pelo senso comum, como chegamos também à conclusão de que as coisas individuais perceptíveis da experiência comum têm um alto grau de realidade atual, o que se aplica também às qualidades sensíveis — as assim chamadas “qualidades secundárias” — que experimentamos nas coisas e que não são

meros fragmentos da nossa consciência sem qualquer estatuto no mundo real, que é independente de nossos sentidos e de nossa mente. Alcançada essa conclusão, o desafio à realidade da existência humana e à clara identidade da pessoa individual é superado. Não pode haver dúvidas sobre a responsabilidade moral que cada um de nós carrega por seus próprios atos.  

EPÍLOGO Ciência moderna e sabedoria antiga  

1 A mais notável conquista e a glória intelectual dos tempos modernos foi a ciência empírica e a matemática a que ela deu um bom uso. O progresso que se fez nos últimos três séculos, junto com os avanços tecnológicos daí resultantes, é de tirar o fôlego. Do mesmo modo, a mais notável conquista e a glória intelectual da Grécia antiga e da Idade Média foi a filosofia. Herdamos dessas épocas um fundo de sabedoria acumulada, o que também é de tirar o fôlego, especialmente quando se considera quão pouco progresso filosófico foi feito na Modernidade. Isto não equivale a dizer que não foram feitos avanços no pensamento filosófico nos últimos três séculos. Eles se deram principalmente na lógica, na filosofia da ciência, e na teoria política, não na metafísica, na filosofia da natureza ou na filosofia da mente, e menos ainda na filosofia moral. Nem é verdadeiro dizer que, na Grécia antiga e na última Idade Média, do século XIV em diante, a ciência não prosperou de maneira alguma. Ao contrário, os fundamentos foram postos na matemática, na física matemática, na biologia e na medicina. Foi na metafísica, na filosofia da natureza, na filosofia da mente e na filosofia moral que os antigos e seus sucessores medievais fizeram mais do que simplesmente lançar as bases para o nosso reto entendimento das coisas, apesar de nossa módica sabedoria. Eles não cometeram os erros filosóficos que têm sido a ruína do pensamento moderno. Ao contrário, eles tiveram insights e operaram as indispensáveis distinções que nos fornecem os meios para corrigir esses erros. Na melhor das hipóteses, a ciência investigativa nos fornece conhecimento da realidade. Como argumentei anteriormente neste livro, a filosofia também é, em última análise, conhecimento da realidade, não mera opinião. Melhor: é conhecimento iluminado pela compreensão. E ainda muito

melhor: é uma aproximação à sabedoria, tanto especulativa quanto prática. Precisamente porque a ciência é investigativa e a filosofia não o é, não deveria nos surpreender o notável progresso científico a que assistimos nos últimos três séculos nem a igualmente notável falta deste progresso em nível filosófico. Precisamente porque a filosofia se baseia na experiência comum da humanidade e é um refinamento e elaboração do conhecimento de senso comum e da compreensão derivada da reflexão sobre aquela experiência, a filosofia alcançou sua maturidade precocemente, e só se desenvolveu para além deste ponto muito lenta e suavemente. O conhecimento científico muda, cresce, melhora, se expande, como resultado de refinamentos e acréscimos de dados observacionais ao tipo especial de experiência em que a ciência, enquanto modalidade investigativa de perquirir a realidade, deve se basear. Já o conhecimento filosófico não está sujeito às mesmas condições de mudança e crescimento. A experiência comum ou, mais precisamente, os delineamentos gerais ou núcleo comum dessa experiência, que basta para o filósofo, permanece relativamente constante ao longo das eras. Descartes e Hobbes no século xvn, Locke, Hume e Kant no século XVII, e Alfred North Whitehead e Bertrand Russell no século xx não desfrutam de maiores vantagens com relação a Platão e Aristóteles na Antigüidade ou Santo Tomás de Aquino, Duns Scott e Roger Bacon na Idade Média.  

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Como os pensadores modernos poderiam ter evitado os erros filosóficos que foram tão desastrosos em suas consequências? Sugeri a resposta em capítulos anteriores. Achando insustentáveis as conclusões de um filósofo, deve-se voltar ao ponto inicial e ver se ele cometeu algum pequeno erro no princípio. Um exemplo impressionante de falha em seguir esta regra pode ser encontrado na resposta de Kant a Hume. As conclusões céticas de Hume e o seu fenomenalismo eram

inaceitáveis para Kant, embora elas o tenham despertado de seu sono dogmático. Mas, apesar de olhar para os pequenos erros cometidos por Hume no princípio e então desprezá-los como sendo a causa das conclusões que ele descobriu serem inaceitáveis, Kant pensou ser necessário construir um intrincado maquinário filosófico cujo propósito fosse produzir conclusões de um teor oposto às de Hume. A complexidade desse maquinário filosófico e a ingenuidade do seu projeto em nada ajudam a corrigir os erros de Hume, embora causem admiração inclusive naqueles que suspeitam da sanidade de todo este empreendimento e julgam necessário rejeitar tanto as conclusões de Kant quanto as de Hume. Embora opostas em teor, elas não nos ajudam a chegar à verdade, que só poderá ser encontrada se os pequenos erros principiológicos de Hume forem corrigidos - e também os de Locke e Descartes antes daqueles. Para fazer isso, é preciso estar na posse de insights e distinções com as quais estes pensadores modernos não estavam familiarizados. E por que não estavam é justamente o que tentarei explicar a seguir. O que acabei de dizer sobre Kant em relação a Hume se aplica também a toda a tradição do empirismo inglês que passa por Hobbes, Locke, Hume e assim prossegue. Todas as aporias, paradoxos e falsos problemas que a filosofia analítica, a filosofia da linguagem e a terapia positivista em nosso próprio século tentaram eliminar nunca teriam sequer existido se os pequenos erros principiológicos cometidos por Locke e Hume tivessem sido explicitamente rejeitados em vez de serem deixados passar despercebidos. Como surgiram pela primeira vez estes pequenos erros principiológicos? Uma resposta é que algo que precisava ser conhecido ou entendido para evitar esses pequenos erros ainda não havia sido descoberto ou aprendido. Tais erros são desculpáveis, por lamentáveis que sejam. A segunda resposta é que os erros são cometidos como um resultado da ignorância culpável — ignorância de um ponto essencial, um insight ou uma distinção indispensável, que já

havia sido descoberta e explicada, e que não poderia ser ignorada. E principalmente neste segundo sentido que os filósofos modernos cometeram seus pequenos erros no princípio. Eles são feias homenagens às falhas educacionais — falhas devidas, por um lado, a corrupções na tradição de aprendizado e, por outro, a uma atitude que antagoniza ou mesmo despreza o passado e as conquistas daqueles que a precederam.  

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Dez anos atrás, em 1974-1975, escrevi minha autobiografia, uma biografia intelectual intitulada Filósofo em geral. Enquanto releio seu capítulo final, posso ver a substância deste livro emergir do que ali escrevi. Confessei francamente o meu compromisso para com a sabedoria filosófica de Aristóteles, tanto especulativa quanto prática, e com a de seu grande discípulo, Santo Tomás de Aquino. Os insights essenciais e as distinções indispensáveis necessárias à correção dos erros filosóficos cometidas nos tempos modernos podem todas ser encontradas nestes dois autores. Algumas coisas ditas no capítulo final daquele livro são repetidas aqui, no capítulo final deste livro. Uma vez que não posso melhorar o que escrevi há dez anos, trarei um excerto e farei uma paráfrase do que disse naquela ocasião. Aos olhos dos meus contemporâneos, o rótulo “aristotélico” tem conotações pejorativas, as quais foram assumidas pela maioria dos filósofos desde o início da Modernidade. O adjetivo “aristotélico”, atribuído a alguém, tem implicações altamente derrogatórias. Ele sugere que essa pessoa tem mente fechada, e em tal grau de sujeição escravizante ao pensamento de um único filósofo que a torna impermeável aos certeiros insights ou argumentos de outros filósofos. Entretanto, é certamente possível ser um aristotélico — ou o devoto discípulo de algum outro filósofo — sem também aderir cegamente e de modo escravizante a suas visões, jurando piamente que ele nunca erra, que sempre está certo em tudo

quanto diz, ou que ele monopolizou o mercado da verdade e não tem, em hipótese alguma, nenhum defeito ou deficiência. Tal declaração seria tão absurda que apenas um tolo ousaria afirmá-la. Tolos aristotélicos deviam haver entre os escolásticos decadentes que ensinaram filosofia nas universidades nos séculos XVI e XVII. Eles são, provavelmente, os responsáveis tanto pela veemência da reação contra Aristóteles, quanto pela flagrante incompreensão ou ignorância relativa ao seu pensamento que pode ser encontrada em Thomas Hobbes, Francis Bacon, Descartes, Spinoza e Leibniz. A loucura não é a aflição própria dos aristotélicos. Casos assim podem ser certamente encontrados, no último século, entre aqueles que de bom grado chamaram a si mesmos kantianos ou hegelianos; e em nossos próprios dias, entre aqueles que se orgulharam de ser discípulos de John Dewey ou de Ludwig Wittgenstein. Mas se é possível ser seguidor de um desses filósofos modernos sem chegar ao extremo da tolice, não é menos possível ser um aristotélico que rejeite os erros e deficiências de Aristóteles ao mesmo tempo em que abrace as verdades que ele é capaz de nos ensinar. Mesmo garantindo que é possível ser aristotélico sem ser dogmático quanto ao pensamento de Aristóteles, permanece a pecha de que ser um aristotélico é, de algum modo, menos respeitável, nos últimos séculos e em nosso tempo, que ser um kantiano ou um hegeliano, um existencialista, um utilitarista, um pragmatista, ou qualquer outro “-ista” ou “-iano” que possamos pensar. Sei, por exemplo, que a maioria dos meus contemporâneos se sentiu ultrajada com a minha afirmação de que a Ética de Aristóteles é um livro único na tradição ocidental de filosofia moral, a única ética que é sólida, prática e nãodogmática. Se uma afirmação similar fosse feita por um discípulo de Kant ou de John Stuart Mill em um livro que expusesse ou defendesse as concepções kantiana ou utilitarista da filosofia moral, ela seria recebida sem o franzir de cenhos ou o balançar de cabeças em tom de reprovação. Por exemplo, foi dito repetidas vezes neste século, e assim a coisa permaneceu

inquestionável, que a teoria das descrições de Bertrand Russell foi fundamental para o desenvolvimento da filosofia da linguagem; mas isto simplesmente não aconteceria se eu dissesse o mesmo da teoria aristotélico- -tomista dos sinais (acrescentando que ela coloca a teoria das descrições de Russell em perspectiva melhor que a concepção corrente que se tem dela). Por que isso é assim? A minha única resposta para isso é que há, da parte dos modernos contemporâneos, muita dificuldade em razoavelmente crer que Aristóteles e Santo Tomás, dada a antiguidade de seus pensamentos, pudessem estar certos em relação a questões nas quais filósofos posteriores estavam errados. Certamente muita água deve ter rolado debaixo da ponte da filosofia ao longo dos últimos três ou quatro séculos para que se prefira optar por uma postura mental mais aberta e que abandone ensinamentos tradicionais em favor de outros mais recentes e, portanto, supostamente melhores. Minha resposta a essa visão é negativa. Encontrei falhas nos escritos de Aristóteles e Santo Tomás, mas não foi a minha leitura das obras filosóficas modernas que me chamou a atenção para tais falhas, nem o que me ajudou a corrigi-las. Ao contrário, foi minha compreensão dos princípios subjacentes e dos insights formativos que governam o pensamento desses dois autores que me forneceu a base para apurar e amplificar seus pontos de vista naquilo em que são deficientes ou falaciosos. Devo dizer uma vez mais que em filosofia, tanto especulativa quanto prática, poucos avanços, para não dizer nenhum, foram feitos nos tempos modernos. Ao contrário, muito se perdeu como resultado de erros que poderiam ter sido evitados se antigas verdades tivessem sido preservadas na Modernidade em vez de ignoradas. A filosofia moderna, como eu a vejo, teve um começo muito ruim — com Hobbes e Locke na Inglaterra, e com Descartes, Spinoza e Leibniz no continente. Cada um destes pensadores agiu como se não tivesse predecessores a quem consultar,

como se estivesse começando a construir pela primeira vez, do zero, todo um sistema de filosofia. Não conseguimos encontrar em seus escritos nenhuma evidência de que partilhassem da idéia aristotélica de que homem algum é capaz, por si mesmo, de alcançar e esgotar a verdade total, embora, coletivamente, seja possível dela aproximar-se consideravelmente; nem nunca manifestaram o menor traço de vontade de opor dialeticamente as visões de seus predecessores para tentar reconciliá-las no que fosse possível e, com isso, se beneficiarem de tudo quanto fosse positivo em seus pensamentos e evitarem seus erros. Bem ao contrário, carentes de algo como um exame crítico e cuidadoso das visões dos seus predecessores, em vão estes pensadores modernos repudiam o passado como se fosse um repositório de erros. A descoberta da verdade filosófica começa neles mesmos. Procedendo, portanto, com ignorância ou incompreensão das verdades que poderiam ter sido encontradas na tradição do pensamento ocidental fundada há quase dois milênios, estes filósofos modernos cometeram erros cruciais em seus pontos de partida e em seus postulados iniciais. A comissão destes erros pode ser explicada em parte pelo antagonismo com relação ao passado, e mesmo pelo desprezo com relação a ele. A explicação do antagonismo reside no caráter dos professores sob cuja disciplina estes filósofos modernos estudaram em sua juventude. Estes professores não lhes transmitiram a tradição filosófica como uma coisa viva recorrendo aos escritos dos grandes filósofos do passado. Eles não leram nem comentaram as obras de Aristóteles, por exemplo, como fizeram os grandes mestres do século XIII. Apesar disso, os escolásticos decadentes que ocuparam postos de ensino nas universidades dos séculos XVI e XVII fossilizaram a tradição apresentando-a em um formato mofado e dogmático, usando um jargão que antes ocultava, ao invés de revelar, as verdades nela contidas. Suas palestras devem ter sido tão grosseiras e desestimulantes quanto são a maioria

dos livros didáticos e manuais escolares; seus exames e investigações das doutrinas antigas devem ter enfatizado antes a sua letra do que o seu espírito. Não é de admirar que os primeiros pensadores modernos, assim enganados por seus professores, rejeitassem o pensamento antigo. Sua repugnância, embora certamente explicável, não pode ser de todo perdoável, pois eles poderiam ter reparado os danos voltando-se aos textos de Aristóteles ou de Santo Tomás nos seus anos de maturidade e lendo-os atenta e criticamente. Que eles não o tenham feito se pode depreender de um exame de suas principais obras e de suas biografias intelectuais. Ao rejeitar certos pontos da doutrina herdada do passado, fica perfeitamente claro que eles não os entendem propriamente; ademais, cometem erros que derivam da ignorância de distinções e insights altamente relevantes para a resolução dos problemas que pretendem resolver. Com muitas poucas exceções, tal incompreensão e ignorância das conquistas filosóficas obtidas anteriormente ao século XVI foi o pecado original do pensamento moderno. Seus efeitos não estão restritos aos filósofos dos séculos XVII e XVIII, mas são evidentes nas obras dos filósofos do século XIX e nos escritos de nossos dias. Podemos encontrá-los, por exemplo, nas obras de Ludwig Wittgenstein, o qual, apesar de todo seu brilhantismo e fervor filosófico, tropeça no escuro ao lidar com problemas sobre os quais seus predecessores pré-modernos, desconhecidos dele, lançaram grande luz. A filosofia moderna nunca se recuperou de seu falso começo. Como homens que, debatendo-se na areia movediça, agravam suas dificuldades ao lutar para se libertar, Kant e seus sucessores multiplicaram as dificuldades e perplexidades da filosofia moderna por meio de seus extenuantes — e até ingênuos — esforços para se libertar da confusão deixada em seu passado por Descartes, Locke e Hume. Para recomeçar com o pé direito, é necessário apenas abrir os grandes livros filosóficos do passado (especialmente aqueles escritos por Aristóteles e pela tradição que se lhe seguiu) e lê-

los com o esforço de compreensão que eles merecem. Recuperar verdades fundamentais há muito perdidas de vista eliminaria os erros que tiveram consequências tão desastrosas nos tempos modernos.  

FIM

                             

Nos tempos modernos, poucos avanços foram feitos (para não dizer nenhum) em filosofia. Ao contrário, muito se perdeu como resultado de erros que teriam sido evitados se a modernidade tivesse preservado, e não ignorado, algumas verdades antigas. A filosofia moderna começou muito mal — com Hobbes e Locke na Inglaterra, e com Descartes, Spinoza e Leibniz no continente. Cada um desses pensadores agiu como se não tivesse predecessores a quem consultar, como se estivesse começando a construir pela primeira vez, do zero, todo um sistema de filosofia. Carentes de algo como um exame crítico e cuidadoso das visões dos filósofos antigos e medievais, em vão os pensadores modernos repudiaram o passado como se fosse um repositório de erros. Mas ao rejeitar certos pontos da doutrina herdada do passado, fica perfeitamente claro que eles não a entenderam propriamente, porque os erros que cometem provêm da ignorância de distinções e insights já consagrados, essenciais para a resolução dos problemas que os modernos se propõem a resolver.            

 

NOTAS   1 O autor tem o tempo todo utilizado o termo meaning para se referir ao significado das palavras, ao seu aspecto inteligível, em oposição ao significante, seu aspecto material ou sensível — ao qual o autor se refere como meaningless nottation [notação não-significativa, em nossa tradução] —, os quais ambos, tomados juntos, unitivamente, como um sínolo hilemórfico (substância composta de matéria e forma) no sentido aristotélico, perfazem aquilo que os lingüistas lograram chamar “signo”, dos quais as palavras são um perfeito exemplo, como aliás bem explica o autor. Por esse motivo, optamos nesta tradução por verter meaning por “significado” em vez de “sentido”, embora esta última opção — se por ela tivéssemos optado — não fosse também de todo ruim e apontasse para outras nuances semânticas do termo, com implicações inclusive de ordem filosófica, como a explicitação para o leitor da identificação do significado ou forma inteligível dos entes com o seu sentido, isto é, com o fim ou propósito ou causa final a que se ordenam — tese esta fundamental para a reta compreensão da metafísica tradicional de base aristotélico-tomista. — NT 2 Esta questão foi respondida detalhadamente no primeiro capítulo e a resposta não precisa ser repetida aqui. Cf. supra. 3 Cf. a seção 4 do capítulo n, acima. 4 Six Great Ideas (1981) [Seis grandes idéias, ainda inédito no Brasil — NT]. 5 O Institute for Philosophical Research publicou, após oito anos de trabalho, dois volumes de A idéia de liberdade, em 1958 e 1961. No segundo destes volumes, mais de trezentas páginas (223-525) foram dedicadas a delinear e esclarecer a controvérsia entre os deterministas e os defensores da vontade livre e do livrearbítrio. Leitores que desejem ir além do breve e inadequado resumo dado aqui neste livro poderão dirigir-se àquelas páginas. 6 Em um livro anterior meu, Ao anjos é nós (1982), o capítulo 11, intitulado “Política angelista”, fornece brevemente todas as razões pelas quais uma pacífica anarquia pode ser considerada tanto uma fantasia utópica quanto uma falácia angelista. 7 Philosophical Problems of Nuclear Physics, pp. 55-56. 8 Ibid., p. 103.