Comer. Necessidade, desejo, obsessão

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PAOLO ROSSI

Necessidade Desejo Obsessão

editora

unesp

/ '" 'N t e m a a m p lo d a a lim e n ta ç ã o e v _ > / d o a lim e n to p e rm e ia o n o sso d ia a d ia : a b u s c a p o r d ie ta s s a u d á ­ v e is , a lu ta c o n tr a a s u b n u tr iç ã o , o s p ro g ra m a s ta m

de

c u lin á ria

a te le v is ã o . M e n o s

que

in fe s ­

fre q ü e n te ,

p o r é m , s ã o a in v e s tig a ç ã o e a re fle ­ x ã o s o b re to d o o s u b s tr a to c u ltu ra l q u e re s id e s o b o triv ia l a to d e c o m e r. B a s ta p re s ta r u m

p o u c o d e a te n ç ã o

à m u ltip lic id a d e d a s m e tá fo ra s a lim e n ta re s

que

usam os

p a ra p e rc e b e r o a n tro p o ló g ic o te

nesse

a to

p rim á rio s

e

d ia ria m e n te

fo rte e

c o m p o n e n te

c u ltu ra l

p e rm e a d o em o çõ es

de

p re se n ­ d e s e jo s

p ro fu n d a s.

P a o lo R o ssi p e rc o rre o te rritó rio d a h is tó ria

d a s id e ia s , r a s tr e a n d o

m e n to s

de

e le ­

c o n tin u id a d e , e m o s tra

q u ã o p ro f u n d a s sã o as im b ric a ç õ e s d o

co m er com

a c o n d iç ã o

h u m a ­

n a , e s ta b e le c e n d o -s e , p a ra a lé m s a tis fa ç õ e s d e

o rd e m

fro n te ira n ão

fis io ló g ic a s ,

p s íq u ic a do

p la n o

le m b ra r-s e

de

q u e

de

lia m e s

ch eg am

à

m ític o . C o m o C ro n o s,

que

d e v o r a o s p r ó p r io s filh o s , d o je ju m d a

S e x ta -fe ira

s a n ta , d a s

g ra n d e s

Comer

FUN D AÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho Curador Mário Sérgio Vasconcelos Diretor-Presidente José Castilho Marques Neto Editor-Executivo Jézio Hernani Bomfim Gutierre Superintendente Adm inistrativo e Financeiro W illiam de Souza Agostinho Assessores Editoriais João Luís Ceccantini M aria Candida Soares Del Masso Conselho Editorial Acadêmico Áureo Busetto C arlos Magno Castelo Branco Fortaleza Elisabete Maniglia Henrique Nunes de O liveira João Francisco G ale ra Monico José Leonardo do Nascimento Lourenço Chacon Jurado Filho M aria de Lourdes Ortiz G andini Baldan Paula da Cruz Landim Rogério Rosenfeld Ec//tores-Ass/stentes Anderson Nobara Jorge Pereira Filho Leandro Rodrigues

Paolo Rossi

Comer Necessidade, desejo, obsessão

Tradução Ivan Esperança Rocha

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unesp

© 2011 by Societò editrice il Mulino, Bologna © 2012 Editora Unesp Título original: M angiare: b/sogno, desiderio, ossessione Direitos de publicação reservados à: Fundação Editora da Unesp (FEU) Praça da Sé, 108 0100 1 -9 0 0 - São Paulo - SP Tel.: (O x x ll) 3242-7171 Fax: (O x x ll) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com .br feu@ editora.unesp.br

C I P - Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ R743c Rossi, Paolo, 1923C o m e r: n ecessidade, desejo, obsessão / Paolo Rossi; tradução Ivan Esperança Rocha. — 1 .ed. - São Paulo: Editora Unesp, 2014. Tradução de: M angiare: b/sogno, desiderio, ossessione ISBN 978-85-393-0534-6 1. Alimentos - História. 2. Hábitos alimentares - História. I. Título. 14-13044

C D D : 64 1 .3 C D U : 6 4 1 .5

Editora afiliada:

Asodación de Edttoriales Universitarias de América Latina y d Caribe

Associação Brasileira de Editoras Universitárias

Sumário

Evocações

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I. Sobre e ste livro II. Ideias

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III. N a tu re z a IV. C u ltu ra

19 23

V. O com er: e n tre n a tu re z a e c u ltu ra VI. O jeju m

35

VII. O jeju m e a sa n tid a d e VIII. A fom e

XI. V am piros

45

53

IX. Greves de fom e X. C anibais

29

69

75 91

XII. A o b sessão p ela com ida

101

XIII. A pocalípticos da globalização XIV. P rim itivism o

107

115

XV. A com ida foi g e n u ín a alg u m dia?

123

XVI. O céreb ro g uloso e a o b esid ad e

131

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XVII. A s d o en ças ao longo d o s te m p o s XVIII. O cu lto de A n a

143

XIX. A m o d a e a m ag reza

153

R eferências bibliográficas

163

ín d ice o n o m á stic o

171

139

Evocações

N o início d a década de 1930, q u an d o freq ü en­ tava a escola prim ária, eu presenciava diariam en te (enquanto esperava m in h a irm ã) a saída de vários g ru p o s de c o leg as. L e m b ro -m e de q u e e m cada grupo havia dois o u trê s m e n in o s de b o a a p a rê n ­ cia. O s o u tro s eram , com o se esperava, esp erto s, baru lh en to s e vivazes, m as (para dizer a verdade) feinhos: baixinhos, u m pouco d esn u trid o s, com jo e ­ lhos avantajados q u e se destacavam nas pern as finas. N estes prim eiro s anos d o novo m ilênio, a se te n ta anos de d istân cia (em finais de prim avera e já no verão, q u an d o m e en co n tro n a U m bria), deparo com grupos de crianças do jardim da infância que gentis professoras levam para passear pelas ruas de Trestina. Esses m om entos m e fazem pen sar que no curso da m inha vida, e de tantas outras, essa situação m udou com pletam ente. Hoje, esses grupos são com postos geralm ente p o r apenas duas ou três crianças q u e não poderíam os definir com o “b o n ita s”. Todas as o u tras

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parecem triu n fa n te s vencedoras de u m con curso de beleza infantil. E sse q u ad ro se deve ao fato de viver­ m os n u m lugar do m u n d o e n u m país no qual existe, p ara a m aio ria das pesso as, u m a a b u n d a n te d isponi­ bilidade de alim entos. A palavra comer, a p a re n te m en te n eu tra, inofen­ siva e p razero sa (qu an d o tu d o vai bem ), enco ntra-se n o c e n tro d o p e n s a m e n to c o tid ia n o e d a vida de to d o s a q u e le s q u e n ã o c o n se g u e m c o m e r o su fi­ ciente. A dificuldade de co n seg u ir o q u e com er e de alim en tar os p ró p rio s filhos tra n sfo rm o u e c o n tin u a a tra n sfo rm a r n u m in fern o a vida de m u ita gente. M as m e sm o o n d e to d o s tê m o q u e co m er en c o n ­ tro pesso as que, p ara co m er algum a coisa, precisam re m e x e r sa c o s d e lix o , e ta m b é m e n c o n tra m o s jovens p ara q u em o co m er to rn o u -se u m inim igo e u m a o b sessão d iu tu rn a , algo q u e se to rn a u m o b stá ­ culo e não u m apoio à vida, fazendo crescer d e n tro de si u m a cega obstin ação e u m infatigável e d e stru ­ tivo desejo de contro le to tal. E n co n tram o s tam b ém p esso as m ais velhas e d esesp erad as q u e n ão conse­ guem p erceb er q u e u m filho o p to u p o r m o rre r e não p o r u s u fru ir da vida. M uitos e u ro p e u s q u e fazem p arte da m in h a gera­ ção m o rre ra m de fom e, o u viveram perío d o s m ais ou m e n o s p ro lo n g a d o s de fom e em lu g a re s o n d e se com ia p raticam en te apenas cascas de batatas. Tam­ b ém aqueles q u e (com o eu) n ão p assaram p o r essas experiências se lem b ram de coisas q u e (raram ente) p erm an ecem n a m em ó ria d os q u e n asceram após os anos 1950. Tenho, p o r exem plo, u m a viva lem brança d e m eu pai, que, d u ra n te a guerra, se levantava às q u a tro d a m an h ã p ara evitar as longas filas que se form avam d ia n te d o aço ugue p a ra co n seg uir levar % 8

Comer

para casa m eio quilo de fígado bovino ou de u b re de vaca. L em bro-m e tam b ém dos selos d os cupons do pão e lem bro-m e tam b ém de q u e eu e m in h as irm ãs assistíam os com to tal inconsciência à transform ação de m in h a m ãe (que abria m ão da sua ração de pão para dá-las aos filhos), u m ta n to acim a d o peso, em u m a p esso a m u ito m agra. L em bro-m e especial­ m ente de q u e to d a a m in h a fam ília viveu o fim de um pesadelo ao deslocar-se p ara a Ú m bria, o nde não era difícil e n co n trar frangos, ovos, queijo e o u tros tipos de alim ento. Sei que existe u m a retórica da m em ória. Li “Funes, o M em orioso” de Jorge Luis Borges e sei que é u m a sorte não pod er lem brar-se de tudo. Sei tam b ém que lem brança e esq u ecim en to estão in tim am en te liga­ dos e que n a m em ó ria perm an ecem aqueles traços in quietan tes que, há m il e q u in h e n to s anos atrás, faziam A g o stin h o exclam ar: “E grande e pavorosa esta força da m em ória, ó m eu D eus, um a p ro fu n d a e quase infinita m ultiplicid ad e”.1 Eu m esm o dediquei dois livros às artes da m em ó ria e ao vínculo en tre m em ória e esquecim ento. M as reconheço o risco de em bren h ar-m e n a estrad a, sem p re m u ito esc o rre­ gadia, da autobiografia, e p o r isso quero justificar o m eu interesse pelo tem a que aqui tratarei. No início da década de 1970, m inha m ulher, eu e m e u s filh o s fre q ü e n tá v a m o s a e n tã o c h a m a d a villa D ragoni, nas im ediações da C ittà di C astello, assim co m o o g ru p o ru m o ro s o (e p o litic a m e n te insuportável) de m inhas cinco adoráveis sobrinhas, com posto pelas irm ãs Flam inia, Sandra, Paola, Giovanna e C arla Bizzarri. D o g ru p o tam b ém faziam 1 Agostinho, Confissões, X, 17.

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p arte m in h a filha A nna e L aura D alla Ragione, filha d e Livio (1922-2007), q u e a tu o u com o partigiano na Ú m bria e d epois com o v o lu n tá rio n a divisão Crem ona, u m d os fundad o res d a arqueologia arbórea,2 e que foi, d esd e os anos d a g uerra, u m dos m eus am igos m ais q u e rid o s. L aura lia m u ito m ais que suas colegas de idade, e tin h a decidido desd e aquele m o m e n to e stu d a r m edicina e especializar-se em p si­ q u ia tria . T rabalhou p o r m u ito s an o s n o s serviços psiq u átrico s da Ú m bria e criou, em 2004, n o palácio Francisci di Todi, a p rim e ira e s tru tu ra pública resi­ dencial e ex tra-h o sp italar dedicada ao tra ta m e n to de tra n sto rn o s d o c o m p o rta m e n to alim entar. Tornou-se u m a das m ais resp eitad as e ouvidas especialistas so b re ta is tra n s to r n o s e crio u o u tro s c e n tro s de a te n d im e n to tam b ém n a B asilicata e n a Lom bardia. Ela m e p ed iu p ara ler o m an u sc rito de seu prim eiro livro, in titu la d o La casa delle bambine che non mangiano: identità e nuovi disturbi dei comportamento alimentare [A casa das m en in as q u e n ão com em : iden tidade e novos tra n sto rn o s d o co m p o rta m e n to a lim e n tar],3 e solicitou q u e eu escrevesse o prefácio. Escrevi em u m as vin te páginas a h istó ria das ideias sob re o tem a "co m er”. Inseri-as n o te x to q u e segue e n ão atenuei os to n s polêm icos ali p resen tes. Isso eu havia te n ­ tado fazer, p articu larm en te, em relação à teóloga e p o etisa A driana Z arri, m as recuei q u an d o soube de sua m o rte, em nov em b ro de 2010. N essa ocasião, eu li seus versos to can tes q u e excluíram essa tentação:

2 Dalla Ragione, L.; Dalla Ragione, I., Arboreal Archaeology. A

diary of twofruit explorers. 3 Dalla Ragione, L., La casa delle bambine che non mangiano: iden­

tità e nuovi disturbi dei comportamento alimentare.

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Comer

Sobre o túmulo, não coloquem o frio mármore/ coberto com as mentiras de sempre/para consolo dos vivos./ Deixem ape­ nas a terra/ que escreva na primavera uma epígrafe de erva. D esde os tem p o s em q u e convivi com Enzo Paci e Franco Fornari, em Milão, sem pre li m u ito s livros sobre psiquiatria, m as u m a coisa é ler livros, e outra, a p ro x im a r-se d as p e sso a s. E n tre as p e sso a s q u e conheci, ou q u e vi crescer, en contrei tam b ém quem se deixou vencer pela tentação do dom ínio total de seu corpo e que não conseguiu se livrar da trágica expe­ riência da anorexia. Talvez fosse p o r isso, p o r ter sido roçado pela asa de u m a m o rte atraída p o r criaturas jovens e inconscientes, que concordei em desenvol­ ver o te m a d este livro e a escrever aquele prefácio. Talvez fosse p o r isso tam b ém q u e estive duas vezes no C e n tro P siq u iá tric o d e Todi. D eparei ali com um a m b ie n te cap az de a c o lh e r u m a p e ss o a q u e reconhece e sta r p ro fu n d a m e n te deb ilitad a m esm o sem te r consciência disso. M uitos desses pacientes interpretam as preocupações dos o u tro s com o um a ingerência in d ev id a em relação a u m a opção q u e consid eram válida, c o n scien te e inegociável: com freq u ê n c ia re a g e m d u ra m e n te , tra n s fo rm a n d o o sofrim ento em agressividade, e escondem p o r trás de um a a titu d e arro g an te u m a p ro fu n d a in certeza sobre a sua identidade. N o en tan to , m u itas vezes, se dão con ta da existência de u m p roblem a e que precisam de ajuda. As vezes, chegam a solicitar essa ajuda, e pedem para não serem deixados sozinhos. O projeto terapêutico, q u e req u er o com prom isso de m uitos e u m a colaboração c o n tín u a e efetiva en tre diversas com petências, se em b asa na existência de um tipo de pacto e n tre a in stitu ição e a (ou o) pa­ ciente. É um m u n d o o nde tu d o é delicado e difícil,

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o nde h á m u ita d o r o cu lta e onde é necessário, para aqueles que se envolvem nisso, apren d er a lidar, no dia a dia, com a an g ú stia q u e em erge do contato com o so frim en to de p esso as g eralm en te m u ito - e eu diria excessivam ente - jovens. D edico este livro à m em ó ria de Livio e a Laura e seus colaboradores da C ittà di C astello e de Todi.

I Sobre este livro

Com o já m encionei, h á vários significados p ara a palavra, ou m elhor, p ara a ideia de comer. O s m elh o ­ res dicionários (aqui faço referência ao Dizionario italiano editado p o r Tullio De M auro) elencam dife­ rentes e variados sentidos. Ingerir elem entos sólidos ou sem issó lid o s m a stig a n d o -o s ou en g o lin d o -o s, fazer u m a refeição, u tilizar com o alim ento, com er um prato p reparado de certa m aneira, m astigar ou roer (as traças com eram u m a blusa), corroer (a fer­ rugem com eu a grade), con su m ir um com bustível (o carro “com e” p o uca gasolina), dissipar (com eu a h e ra n ç a d a tia ), re c e b e r ilic ita m e n te (co m er o dinheiro p ú b lico ). A palavra comer tam bém é usada em jogos com o d am as o u x adrez e ta m b é m p a ra indicar conhecim ento de algo.1

1 Algumas frases foram suprimidas, por não terem sentido em português. (N. T.)

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Se n ão p odem os ingerir líquidos ou alim entos, estam o s condenados a m orrer. O u so co n tín u o e per­ siste n te das m etáforas alim en tares foi considerado p o r m u ito s com o u m sinal de q u e elas, seja quando se referem a objetos q u e am am os ou a objetos que odiam o s, alu d em a desejos arraig ad o s e em oções p rofundas. É im p o rta n te perceber a m ultiplicidade e variedade de se n tim en to s q u e estão p o r trás das expressões relacionadas com o ato de com er: com er com b e ijo s,2 c o m e r com o s o lh o s, m as tam b ém : não consigo tragá-lo, engoliu u m sapo, m astiga um pouco de latim , com eu veneno, tem sede de co nhe­ cim ento, tem fom e de cultura, o alim en to espiritual, o alim en to da alm a, devorar u m livro, conceitos bem digeridos, o livro contém relatos picantes, este o u tro p o r su a vez é m u ito insípido, faz com en tários áci­ dos, u sa m etáforas deliciosas, os am an tes sussu rram doces palavras, o a u to r faz am argas considerações, aquele cara bebe todas, gostaria de saber qual é o caldo da h istória, o seu artigo é u m p ra to re q u en ­ tado, isto eu n ão engulo, ele levava em banho-m aria, saiu d o e sp e to e caiu n as b rasas, e sse cara é u m m aria-m ole, é u m a p e sso a desg o sto sa, ele vom ita insultos, ele cospe n o p ra to que com e, o texto é um a sopa de letrin h as, m u ita fum aça e p o u ca carne, ele é um pão, essa m en in a é um doce, isto ficou entalado n a m in h a garganta, era u m a pílula am arga, bebeu um cálice am argo, ficou apenas com a cereja do bolo, ele vai co m er poeira. M u ita s d e ssa s m e tá fo ra s e e x p re ssõ es pouco têm a v er com o p razer de u m bom prato, m as sim com ju lg am en to s, às vezes, m u ito ríspidos. A ideia 2 No sentido de cobrir de beijos. (N. T.)

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Comer

de com er oscila e n tre a agradável obviedade coti­ diana (que pode tam b ém ser en ten d id a com o um gozo refinado ou refinadíssim o) e a trágica obsessão que a escassez ou a falta de alim entos causou e causa em m u ito s seres h u m an o s. E h á alguns q u e deci­ diram,, conscientem ente, m o rrer de fom e. A nossa civilização p ossui u m a tradição cultural e artística que não inclui apenas Dioniso devorado pelos Titãs ou o quadro de Francisco de Goya Saturno devorando seu filho. N osso passado é repleto de fábulas povoadas por ogros canibais que am ed ro n taram e encantaram m uitas crianças. N este p eq u en o livro tam b ém m e m ovo no te rre ­ no da h istó ria d as ideias - m in h a gran d e seara d e s­ de m eados do século XX. A h istória, ou m elhor, as m uitas h istó rias que p ro cu ro n a rra r aqui são reple­ tas de coisas agradáveis, m as tam b ém de h o rrores, às vezes, inim agináveis. R esu ltam de u m e m a ra ­ nhado de coisas que não deviam e sta r ju n ta s, que não querem os ver relacionadas, m as que d esgraça­ dam ente se m istu ram . N ão d ep aram o s apen as com os rostos de crianças fam in tas que se assem elh am aos de e stra n h o s e trágicos velhinhos, m as tam b ém com os serial killers que se n u tre m dos corpos de suas vítim as; com os jejuns das san tas que chegam ao paroxism o, e hoje, com o e x tra o rd in á rio ê x i­ to, entre os jovens, das h istó rias de vam piros; com os corpos dos obesos inchados de gordura e com os corpos m irrad o s e esqueléticos das m en in as (e das modelos) anoréxicas. Ju n to com a filosofia h e d o ­ nista do slowfood, que d ita as regras de u m a a lim e n ­ tação ideal, se ap resen ta o o b scu ran tism o do culto de Ana, u m a divindade m o n stru o sa que ap resen ta a anorexia com o sinal de u m a escolha heróica e com o

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u m a form a su p erio r de vida, aju d an d o a se d im e n ta r o m ito de u m a alim en tação saudável ab so lutam ente co rreta que d istin g u e (de form a exagerada e o b ses­ siva) os alim en to s certos, saudáveis e positivos dos alim en to s perigosos. A propósito d esta m ald ita relação, lem bro-m e de que em 1998 fiquei m u ito im pressionado com um a observação que encontrei n o livro sobre a árvore da cocanha de E leonora D e Conciliis:3 q u an d o com e­ m os, a palavra “m a ta r” parece com pletam ente fora de lugar, in o p o rtu n a e to ta lm e n te “e rra d a ”, com o se n ão tivesse absolu tam en te n ad a a ver com o que estam o s tra n q u ila m e n te fazendo to d a vez que com e­ m os carne. N esses m om entos - com o corretam ente escreveu M arguerite Y ourcenar - digerim os serena e p acatam en te "as agonias” dos seres viventes. A gradeço m in h a esp o sa A ndreina, M ario M onti Rossi, Stefania N icasi, M irella Brini, Giorgio Bartolozzi e M arco Segala pelas sugestões. U m agradeci­ m e n to especial a A lessia G raziano e R oberto Bondi (antigos colegas q u e se form aram com igo, cum laude) p o r suas valiosas contribuições p ara m eu texto.

3 De Conciliis, Nutrirsi delTaltro. Viaggio antropologico nell’inconscio alimentare. In: Coppola; D ’Alconzo; De Conciliis, L’albero delia cuccagna. II cibo e la mente, p.93-166.

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Ideias

As ideias b ro tam da vida, m as são capazes de distanciarem -se dela. A dquirem um a existência p ró ­ pria e autô n o m a. Elas se desenvolvem a p a rtir de si m esm as, se difundem às vezes com grande velo­ cidade (com o nas epidem ias), o u tras vezes m u ito lentam ente, altern and o períodos de dorm ência e de súbitas acelerações. D ificilm ente se extinguem sem deixar vestígios. E stão sujeitas a m utações e se inse­ rem nos processos evolutivos da cultura. As ideias têm sua força: to rn am -se form as de p en sam en to e geram com portam entos. Por m eio de processos às vezes m u ito lineares, o u tra s vezes e x tre m a m e n te com plicados, afetam a vida e o d e stin o d os in d i­ víduos e os m odificam . N u m p rim e iro m o m e n to novas e até m esm o subversivas, m uitas ideias com o tem po se to rn am corriqueiras. Elas se transform am tam bém em lugares-comuns, com u m a aceitação pací­ fica, e são repetidas à exaustão, com u m a grande e quase inacreditável m onotonia.

Paolo Rossi

O c o n fo rm ism o d a s id e ia s - q u a n d o se to r ­ nam lugares-com uns - ganha u m a viscosidade que se com para àquela p re se n te nas in stitu içõ es (e na burocracia, q u e é a m ais viscosa das in stituições). As argum entações co n trap o stas às ideias n a m oda n ão são levadas em consideração. São rechaçadas com u m gesto de aborrecim ento. H á u m desprezo p o r q u e m se d is ta n c ia d o s lu g a re s -c o m u n s q u e prevalecem em u m a sociedade o u em u m grupo so­ cial. O p e rten cim en to das ideias ao se to r das ideias "p ro g ressistas” ou ao se to r dos cham ados “lugares-co m u n s” n ã o é definido apriori nem pela form a das ideias, e n em m esm o p o r seu conteúdo. P ortanto, não se exclui o fato de que, an tes de se torn arem lugares-com uns ou m esm o an tes de serem elim ina­ das com o su perstições, d eterm in ad as ideias tenham exercido u m a função h isto ricam en te im p o rta n te e até m esm o , em m ais de u m caso, h isto ric am en te progressista.

III Natureza

O term o natureza (para quem gosta de jogos de palavras) não perten ce ao gênero natural, m as ao gê­ nero cultural. Isto q u e r dizer q u e d en o ta u m objeto que não pode ser facilm ente determ inado. Falam os de um estudo da natureza e en ten d em o s um con ju n­ to de fenôm enos ordenados, u m a realidade p au tada por leis; de defesa da natureza e en ten d em o s o a m ­ biente m odificado pelos seres hum anos; de natureza criadora e en ten d em o s u m a espécie de personificação como se n os referíssem os a um a deu sa benéfica (ou maléfica). M as falam os tam b ém da n atu reza feroz dos tigres, da n atu reza afetuosa dos cães sam oiedos, de hom ens generosos p o r n atu reza ou de u m a p e s­ soa de n atu reza contem plativa. Aqui nos referim os a algo de inato, de instintivo, não cultural ou pré-cultural. Aqui natureza parece contrapor-se fo rtem en te a cultura. As oscilações lingüísticas são pavorosam ente amplas: o term o natureza foi usado com o eufem is­ mo para órgãos g en itais (so b retu d o fem ininos) e

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fala-se em natureza-morta p ara referir-se a u m gênero de p in tu ra . N o dicionário Riguti Fanfani, natural tem o significado de “h a b ita n te originário de u m p aís”, com o n a expressão, q u e hoje nin g u ém m ais usaria, “os n a tu ra is do E gito”. Se p assarm o s do dicionário de Tullio D e M auro p ara u m de filosofia, as coisas acabam se com plicando ainda m ais. N icola Abbagnano d istin g u e e n tre q u atro conceitos. A n atu reza com o p rincípio de vida e de m ovim ento (A ristóte­ les define a n atu re z a com o a substância das coisas que possuem o princípio de movimento em si mesmas); a n a ­ tu reza com o o rd em e n ecessidade vinculada à ideia de u m a lei natu ral; a n atu re z a com o esp írito dim i­ nu íd o ou im perfeito, com o espaço exterior, acidental e m ecânico; a n atu re z a com o cam po das técnicas da percepção e da observação à disposição d o saber. O Oxford Companion to Philosophy diz coisas bem dife­ rentes. “N a tu re z a ” p o ssu i três significados: refere-se ao u niverso e o q u e ele contém ; refere-se ao m u n d o do vivente (passado e p resen te) em oposição ao não vivente; e refere-se ao q u e é in d ep en d en te da ativi­ dade dos seres h u m an o s. O Cambridge Dictionary o f Philosophy traz os term o s “n a tu ra lism o ”, “lei n a tu ­ ral”, “ep istem ologia n a tu ra lista ”, “filosofia n a tu ral” e “religião n a tu ra l”, m as (não en te n d o p o r quê) con­ siderou in ú til e filosoficam ente supérfluo o term o “n atu re z a ”. N a Filosofia da ed ito ra G arzanti o te m a é desenvolvido em trê s parágrafos: n atu reza e ordem do m un d o ; n a tu re z a com o m áquina; e as relações en tre natu reza, esp írito e história. N ão h á sentido algum em percorrer este cam i­ nho. Por trás dos term o s escolhidos pelos autores dos dicionários, h á u m a am pla literatu ra que rem o n ta à Grécia arcaica e q u e continua, com um p erm anente

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fervor, até a atualidade. A queles term os (com o m u i­ to s o u tro s ) q u a se se m p re e stã o im p re g n a d o s de significados em otivos. Rigor e precisão (m as tam bém sobre isso h á discordâncias) pertencem ao m u n d o da m atem ática e da lógica sim bólica. A respeito de coi­ sas m uito im po rtan tes para todos e para cada um de nós (vida, amor, m orte, progresso, decadência, valo­ res) tem os ideias m uito confusas e (e para desagrado de quem vive no m u n d o acadêm ico e político) dis­ pom os de definições aproxim adas ou, n a m elhor das hipóteses, discutíveis. As visões gerais do m u n d o em que se situam os conceitos e as ideias são perm eadas por um páthos m etafísico, de verve religiosa, som ado a m otivações psicológicas inconscientes. Sobre estas últim as, p o r definição, tem os pouco conhecim ento. U m a grande parte da noção com um ou corrente de natureza é ainda hoje, com o era nas origens, resultado de projeções antropom órficas, entrem eadas por m itos e ligadas a instintos e im pulsos irracionais. A n a tu ­ reza continua a apresentar-se, por vezes, com o um a força criadora benéfica, com o u m a contínua e maravi­ lhosa invenção de form as, e ao mesmo tempo com o u m a energia perigosa, capaz de gerar o mal, im piedosa, na iminência de nos aniquilar e de evocar os dem ônios da destruição. É m uito provável que n enhum a filosofia consiga erradicar das m entes essa antiga e profunda ambivalência expressa n o grande poem a de Lucrécio intitulado De rerum natura, que se inicia com um hino a Vênus, com a visão da prim avera e da luz do céu claro, com a m ultiplicação da vida, e que se con­ clui com o alento m ortal da peste que exterm ina os rebanhos, cobre de pragas os m em bros dos hom ens, contagia m ultidões, torn a desertas suas casas e im pele os sobreviventes a lutarem selvagem ente entre si.

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IV Cultura

Parece-nos, com certa razão, q u e os seres h u ­ m anos fazem sem p re as m esm as coisas: do rm em , constroem abrigos c o n tra o calor e o frio, p ro cu ram alim entos, com em , se acasalam , riem e choram , criam seus filhos, estab elecem regras com reco m p en sas e punições p ara q u em n ão as resp eitam , agridem e são agredidos, fazem guerras e e n te rra m seus m o rto s, curvam -se de várias m an eiras a seres divinos e in ­ visíveis. N a realidade, cada u m a d essas coisas é fei­ ta de form as tão diversas que, às vezes, vão além de qualquer im aginação. No âm ago do livro Good to Eat [Bom de com er], do grande an tro p ó lo g o M arvin H arris, surg e u m a pergunta fu n d am en tal, q u e se situ a n o c e n tro da reflexão dos antropólogos: d ado que to d o s os que pertencem à espécie hum ana são onívoros e d otados de um aparelho digestivo ab so lu tam en te idêntico, como é possível q u e em alguns lugares do m u n d o sejam consideradas iguarias coisas com o form igas,

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g afan h o to s o u rato s, q u e em o u tro s lugares pare­ cem ser im undícies repulsivas? E m bora a tu alm en te se p o ssa c o m p ra r p ela in te r n e t1 e m b alag en s com e sc o rp iõ e s frito s, fo rm ig as, se rp e n te s e carne de c ro c o d ilo , o s p r o c e s s o s d e s s a g lo b a liz a ç ão n ã o parecem (n e sta área) m u ito velozes. N o C am boja co m em -se co leó p tero s, b a ra ta s d ’água, lagartixas, m orcegos. Em H anói com em -se serp en tes e existem sete receitas p ara cozinhar u m cão. N a N ova G uiné apreciam -se os verm es do saguzeiro, grandes e carn o so s, q u e p o ssu e m u m a p ele d u ra re c o b e rta de pelos e p o r d e n tro u m a m assa crem osa am arelada. N a C h in a e n o C am boja, com o é sabido, se com e m iolo de m acaco (inclusive d ire ta m e n te no anim al re c é m -ab a tid o ). N as ilhas do arq u ip élago in d o n é ­ sio se bebe u m tip o de café p ro d u zid o com grãos p arcialm en te digeridos e defecados pelo civeta-das-palm eiras.2 A ta râ n tu la é com ida n o C am boja. N as Filipinas - inclusive nas ru as - se com em ovos fecun­ dados de p a to ou de galinha q u e co n têm em briões q u ase c o m p letam en te form ados. N a C oreia põem -se filhotes de ra to s vivos n u m a garrafa de licor de arroz, q u e é bebido após ferm entar. N o México, os escamoles são p ra to s feitos com ovos de form iga. E p o d eríam o s en u m e ra r ta n to s o u tro s casos.3 As d iferenças são g rita n te s e, p o r vezes, in su ­ peráveis. Por q u e o boi sim e o cão não? Por que u m a m en in a nascida e crescida nos E stados U nidos n os o lh a estarrecid a e h o rro rizad a se lhe disserm os

1 www.edible.com/stockists. 2 Considerado o café mais caro do mundo. (N. T.) 3 h ttp ://v ia g g i.lib ero .it/n ew s/a -ca ccia -d i-cib i-d isg u sto si-nel470.phtm l.

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que já com em os u m coelho? Por que a trip a fascina os flo re n tin o s e o s m ilan eses (que a ch am am de busecca) e é considerada com desdém e h o rro r pela m aioria dos am ericanos? Isso não deve ser m otivo de espanto. C om o o aparelho digestivo, tam b ém o genital é co m u m a to d o s os m em b ro s da espécie hum ana e, n o en ta n to , m u ito s sabem q u e a d e n o ­ m inada posição do missionário é considerada e stra n h a para q u alq u er m em b ro de u m a com unidade do Pací­ fico sul-ocidental. D esde os tem pos m ais rem otos, existe um m odo m uito sim ples e m u ito ad o tad o para resolver este tipo de problem a: negar a qualificação de seres h u m a ­ nos e qualificar com o anim ais ou com o não hum an o s aqueles que se com portam de form a m u ito diversa da nossa ou q u e p o ssu e m co stu m es q u e co n sid e­ ramos estran h o s ou inaceitáveis. A distinção en tre sociedades civis e sociedades prim itivas baseou-se durante certo tem p o n a an títe se en tre a civilização ocidental e a “b a rb á rie ” d o s n ã o e u ro p e u s. E sse posicionam ento foi abandonado, pela antropologia contem p o rân ea, p o r n ã o p o s s u ir se n tid o . C om o term o cultura, a antropologia designa as técnicas de adaptação ao am b ien te e o m odo de vida de q u al­ quer grupo social. Para a antropologia, com o afirm a Ruth Benedict em seu conhecido livro de 1934,4 “as norm as q u e o u tra socied ad e d efin iu p a ra o casa­ mento são tão significativas q u a n to as n o ssas”; p ara um antropólogo, “os n o sso s co stu m es e os da Nova Guiné co n stitu em dois esq u em as sociais possíveis para resolver um p roblem a co m u m ”.

4 Benedict, Modelli di cultura, p.7.

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I

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O re la tiv ism o c u ltu ra l, d u ra n te o sécu lo XX, co in cid e com u m a te s e m u ito d is c u tid a e m u ito controversa: seg u n d o e sta tese, d ado q u e to d a cul­ tu ra a ssu m e su a s p ró p ria s fo rm as e se a p re se n ta com o su p e rio r às o u tras, n ão existem form as m ais ou m e n o s a u tê n tic a s de h u m a n id a d e e, p o rta n to , n ão é possível d istin g u ir e n tre form as de h u m a n i­ dade e form as de d esu m an id ad e e estabelecer, sobre esta basè, q u a lq u e r tip o de h ierarquia. A esses p ro ­ b lem as, E rn e sto de M artin o , gran d e e stu d io so do m u n d o d a m agia, n ascid o em N ápoles em 1908 e m o rto em R om a em 1965, forneceu resp o stas ainda hoje atu ais. Será q u e o en c o n tro com a diversidade deve se d a r n u m p lan o de to tal au sên cia de valores? U m a vez ab an d o n ad a a convicção de q u e a n atureza h u m a n a coincide com os m odelos assu m idos com o válidos pela p ró p ria cu ltu ra, é p reciso defender um ato de abdicação? E v erd ad e q u e to d a e q u a lq u er in terv en ção n o s assu n to s d os o u tro s c o n stitu i um a form a de repressão? É verdade q u e a p u ra e sim ples ren ú n cia a q u a lq u e r m odelo c o n stitu i em si m esm a o prin cíp io necessário e suficiente p ara a solução dos pro b lem as da h istó ria hum an a? O q u e q u e r dizer, ex atam en te, o co n fro n to intercultu ral com q u e m co n sid era óbvio e certo q u e as m u lh e re s são p o r n a tu re z a in fe rio re s e p o rta n to su b m issas aos h o m en s, e consid era ju s to q u e um a a d ú lte ra seja e n te rra d a a té a cabeça e ap ed rejada até a m o rte com p ed ras p eq u en as p ara a u m e n ta r o te m p o de seu suplício? E possível p e n sa r n u m a rela­ ção in tercu ltu ral com q u e m consid era os negros e os h e b reu s m ais sem elh an tes aos anim ais que aos h o m en s, com q u e m defende a g u erra tribal, o dom í­ nio de u m a e tn ia e o d ireito ao ex term ín io do inim igo %• %

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racial? U m a coisa é o esfo rço de c o m p re e n sã o e o u tra o co n fro n to in tercu ltu ral. Pluralism o, to lerân ­ cia, resp eito pelas m inorias, defesa de seus direitos não podem ser objeto de negociações. Só se pode exercer p ressão (as m ais fortes e decididas e m esm o as m ais chantagistas possíveis) na ausência de re s­ peito a tais valores. N ão é ab so lu tam en te verdade q u e isso coincide (como parece crer Francesco R em otti n a su a Prima lezione di antropologia) com a convicção “de te r d e s­ coberto , p o r revelação d iv in a e /o u p o r revelação natural, a fo rm a m ais a u tê n tic a de h u m a n id a d e ”. E n tre as c u ltu ra s , se g u n d o o m e sm o a u to r, n ão haveria diferenças qualitativas e seria ilícito e im p o ssí­ vel estabelecer escalo n am en to s.5 E n tre 1993 e 2007, 45 países ren u n ciaram à prática da p en a de m o rte. A que se deve e sta renúncia? O u, em deferência aos professores de antropologia, será que ela não deveria ser avaliada de algum a form a? Em Bamako, capital de Mali, foi realizad a u m a C onference o n Fem ale Genital M utilation, q u e concluiu seus trab alh o s com a adoção da Bamako Declaration for the Abandonment o f FGM, ou seja, d a female genital mutilation [m u ti­ lação g e n ita l fe m in in a ]. D esd e 20 0 7 , a E ritré ia, um país n o qual a m utilação genital abrangia 90% das m ulheres, passo u a consid erar essa prática um delito. Será q u e tam b ém e ste s seriam exem plos de p reten sõ es o c id e n ta is indevidas? Será q u e E m m a Bonino fez m al em preocupar-se com esse assu n to ou deveria te r garantido o p len o resp eito às diferen ­ ças culturais?

5 Remotti, Prima lezione di antropologia, p. 153-5.

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D e n tro d a c u ltu ra ocidental, n u m e ro so s intelec­ tu ais p o d em rechaçar, contestar, criticar e condenar su a p ró p ria c u ltu ra e ta m b é m en v erg o n har-se das in stitu içõ es e ideias em m eio às q u ais vivem e p u bli­ cam artig o s e livros. P odem te r sim p atia p o r outras e d iferen tes cu ltu ras, m as isso n ão pode ser conside­ rado u m pro b lem a. Tais críticas p o d em ser tam bém con sid erad as com o estím u lo p ara u m crescim ento e u m a p e rfe iço a m e n to da so cied ad e e ao m esm o tem p o com o u m a pro v a indiscutível da plen a p er­ te n ç a de ta is in te le c tu a is ao O cid en te. D e fato, é ú n ica e ex clu siv am en te n e ssa criticad a civilização ocidental q u e tais a titu d e s são n ão apenas toleradas, m as valorizadas e c o n se q u e n te m e n te aceitas com o sinais positivos.

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V O comer: entre natureza e cultura

C om er n ão envolve apenas a n atu re z a e a cul- • tura. Situa-se e n tre a n atu re z a e a cultura. Participa de am bas. Tem m u ito a ver com a prim eira e tam b ém com a seg u n d a.1 Q uando foi publicado, em 1964,2 O cru e o cozido de Claude Lévi-Strauss, os estudiosos da m in h a ge­ ração (hoje octogenários) se deram conta não apenas do fato de q u e as cham adas qualidades sensíveis - p o r exemplo, cru e cozido, ou fresco e podre - possuem um a lógica e u m a h istó ria, m as tam b ém d o fato de que a com ida (e su a preparação) não é u m elem en to m arginal e irrelevante; perceb eram q u e estas alter­ nativas tê m a ver com o ato de com er em g ru p o ou sozinho, com a p assag em da n a tu re z a à c u ltu ra e

1 Um site dedicado ao tema "alimentação”: http://www.trec cani.it/enciclopedia/alimentazione/. 2 Lévi-Strauss, Le Cru et le cuit. Ver também Müller, Piccola etno­ logia dei mangiare e dei bere.

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com o m u n d o dos sistem as sim bólicos. A s form as d e alim e n ta ç ã o p o d e m d iz e r algo im p o rta n te não apen as so b re as form as de vida, m as tam b ém sobre a e s tru tu ra de u m a sociedade e sob re as regras que lhe p e rm ite m p e rsistir e d esafiar o tem po. O livro Cannibals and Kings. The Origin o f Cultures [C anibais e reis. A origem das cu ltu ras] de M arvin H arris foi pub licad o em N ova York, em 1977, e foi trad u zid o p ara o italian o pela Feltrinelli, dois anos m ais ta rd e .3 V ariáveis se m e lh a n te s, em condições s e m e lh a n te s , p ro d u z e m re s u lta d o s se m e lh a n te s: c o n sid e ra n d o e s te p re ss u p o s to , foi p o ssível com ­ p a ra r é p o c a s d ife re n te s e d ife re n te s c o s tu m e s e estilo s de vida, e se p ôde tam b ém defender a exis­ tência de certo tip o de d e te rm in ism o (sem elh an te àqu ele q u e age n a evolução) q u e caracteriza os fenô­ m en o s sociais. N a década de 1980 e 1990 surgiram os livros, b rilh a n te s e in telig en tes, de Piero C am poresi, p ro fesso r de lite ra tu ra italian a n a U niversidade d e B olonha, q u e foi o m ais im p o rta n te estu d io so das relações e n tre m ito s po p u lares, lite ra tu ra e ali­ m entação: II paese delia fam e [O país d a fom e], II pane selvaggio [O pão selvagem ], officine dei sensi [A oficina dos sentidos], La terra e la luna [A terra e a lua]. Em cada u m d e ste s livros, a h istó ria da alim entação e a c o rre sp o n d e n te h istó ria da fom e se en trelaçam com a alta lite ra tu ra e a popular, com o folclore e a cu ltu ra cam ponesa, e com eçam a fazer p a rte de u m a h istó ria das ideias q u e u tiliza m ito s e n arrações tran sm itid o s o ralm en te, fazem referência à cocanha e ao C arna­ val, às com ilanças q u e n o rm a lm e n te se seguiam aos p e río d o s de u m a fom e d esesp erad a, e x te n u a n te e 3 Na edição brasileira, A natureza das coisas culturais. (N. T.) %

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crônica. V agabundos, m endigos, cam poneses pobres em ergiam d o m u n d o d o esq u ecim en to e tornavam -se pro tag o n istas de u m a h istó ria que utilizava sem escrúp u lo s (com o d efen d ia G ia m b a ttista Vico) os m ais variados m ateriais. A h istó ria das ideias e da m e n ta lid a d e ap ro x im av a-se fo rte m e n te da a n tr o ­ pologia c u ltu ra l. U m a c o n trib u iç ã o im p o rta n te é oferecida ta m b é m p elos vários livros de M assim o M ontan ari,4 q u e tra to u dos tip o s e o b jeto s de ali­ m en tação n a Id ad e M édia, d os p ra z e res d a m e sa na idade m o d ern a e co n tem p o rân ea e q u e escreveu um a h istó ria da alim en tação n a E u ro p a tra d u z id a em m u ito s países. A filosofia aproxim a-se da a n tro ­ pologia ta m b é m n o livro de Leon R. K ass5 dedicado à alim entação com o ap erfeiçoam ento da n o ssa n a tu ­ reza. O cen tro d estes trab alh o s é co n stitu íd o pelos p o sic io n a m e n to s em relação ao a lim e n to e, p o r­ tanto, à relação e n tre alim en to e cultura. C om o m u ito s - h á m u ito te m p o - tê m e n fa ­ tizado, as ações p a ra se livrar d a fom e e d a sede em p reen d id as pelos m em b ro s d a espécie h u m a n a são “n a tu r a is ” a p e n a s n a a p a rê n c ia. N a v e rd a d e estão e stre ita m e n te ligadas à artificialidade das téc­ nicas cu lin árias, aos in s tru m e n to s u tiliz a d o s p a ra cozinhar e p ara com er, às cerim ônias e aos rito s nos quais h o m en s e m u lh eres (m as às vezes apenas os

4 Montanari, Nuovo convivio. Storia e cultura dei piacere delia tavola nelVetà moderna-, Montanari, Convivio oggi. Storia e cultura dei piaceri delia tavola neWetà contemporanea; Montanari, La fame e l'abbondanza. Storia deWalimentazione in Europa; Montanari; Capatti, La cucina italiana. Storia de uma cultura. 5 Kass, The Hungry Soul. Eating and the perfection of our nature. Ver também Livi Bacci, Popolazione e alimentazione. Saggio sulla sto­ ria demograjica europea.

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h o m e n s, com u m a fo rte exclusão das m u lh eres que co zin h am e p õ em a m esa) se re ú n e m em to rn o de u m lugar on d e são servidos os alim entos. O alim ento n ão é apenas ingerido. A n tes de chegar à boca, ele é p rep arad o e pen sad o d etalh ad am en te. A dquire o que g eralm en te se cham a de valor sim bólico. O preparo d o alim en to m arca u m m o m e n to central da passagem d a n a tu re z a à cultura. O prep aro d o alim ento, com o m o stro u C laude Fischler,6 to rn a-se u m a m aneira de exorcizar o perigo sem p re p resen te n o q ue estam os in tro d u zin d o , pela boca, n o n o sso corpo. A relação e n tre n u trição e con tam in ação p ode parecer, nesse sentido, m u ito am bígua e com plicada. A e x p re s s ã o maccheroni (s o b re tu d o n a França e n o s E sta d o s U n id o s) foi, d u ra n te c e rto tem po, u m a fo rm a d ep reciativa de referir-se aos italianos. A ideia de q u e “os o u tro s ” com em coisas estran h as o u re p u g n a n te s era (e co n tin u a sen d o em algum as p artes d o m u n d o ) m u ito d ifundida. A acusação de canibalism o, e n tre o s séculos XVI e XVIII, foi feita a m u ita s p o p u la ç õ e s q u e n a d a tin h a m a v er com esta p rá tic a tã o polêm ica. A lguns in sistiram (Pierre B ourdieu,7 P eter S cholliers,8 C arole M. C o u n ih a n 9) n a d e fe sa d a a lim e n ta ç ã o co m o m eio de destacar as d iferen ças e n tre c u ltu ra s e classes sociais para refo rçar u m a d e te rm in a d a id en tid ad e cu ltural. M as é certo ta m b é m q u e d e n tro da n o ssa civilização a ali­ m en tação e a cu rio sid ad e em to rn o de form as de se 6 Fischler, Lonnivoro. II piacere di mangiare nella storia e nella scienza. 7 Bourdieu, Ladistinzione. Critica sociale dei gusto. 8 Scholliers (org.), Food, Drink and Identity. 9 Counihan, The Anthropology of Food and Body. Gender, meaning and power.

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alim en tar diferen tes das nossas co n stitu e m u m dos m eios m u ito u tiliz a d o s p a ra e sta b e le c er c o n ta to s entre diferen tes cu ltu ras, e p ara m esclar costum es, m odos de vida e civilizações. N a Itália, são m u ito s os que altern am o m acarrão com p rato s da cozinha chinesa, japonesa, indiana, paq u istan esa. N o livro Antropologia e simbolismo, M ary D ouglas fez um a análise d etalh ad a d os m odos de cozinhar, dispor e a p re se n ta r os p rato s n u m ja n ta r p rep arad o por donas de casa inglesas. Procurou id entificar um m apa que co ntivesse o co n ju n to das com binações e a lógica aí p resen tes. Jack Goody,10 p o r su a vez, se in te re sso u p rin c ip a lm e n te p elo s m o d o s d e tra n s ­ m issão da cu ltu ra culinária e pela distinção de gostos como m eio de se definir u m a d eterm in ad a identidade étnica. De q ualquer forma, não se nega - e sobre isso quase todos estão de acordo - que a preparação da com ida é u m a m ediação e n tre n a tu re z a e cu ltu ra. No en ta n to , a artificialidade é sem pre p ressio n ad a pela natureza. E sta se evidencia e m o stra su a força quando h á falta de alim en to s e q u an d o h á u m a d ra­ m ática n ecessidade de se evitar a fom e q u e leva a deixar de lado os rito s e os co stu m es p a ra lançar-se sobre a com ida, sem q u a lq u e r cautela (com o a a p ro ­ xim ação le n ta , o c h e ira r p rim e iro ), o q u e p arece v in c u la r-se a m u ita s fo rm a s d e v id a e q u e e s tá p re s e n te ta m b é m n o m u n d o a n im a l. N o n o s s o m u n d o m o d e rn o - to d o s sab em o s, m as fin g im o s que não - existem am pla zonas da Terra nas q u ais a fome co n stitu i u m a doença crônica, q u e tira a esp e­ rança de vida e leva, m u ito rapid am en te, à inanição e à m orte. 10 Goody, Food and Love. A cultural history ofEast and West.

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VI O jejum

Religião e jeju m são term o s dificilm ente separáveis. O je ju m é u m a fo rm a de a u to d isc ip lin a e faz p arte da form ação esp iritu al dos b u d istas. Buda alcança a ilum in ação e as q u a tro n o b re s verdades após te r ab an d o n ad o o jejum . O desejo c o n stitu i a origem do m al e o desejo da com ida é u m dos m ais enraizados e p ro fu n d o s. D istanciar-se d os desejos faz p a rte do cam in h o da salvação. N o Lankavatara Sutra1 lê-se: Para m anter sua pureza, um a alm a ilum inada deve abster-se de comer carne, que deriva do esperma e do sangue. Quem segue a disciplina para atingir a compaixão deve abster-se de comer carne para não causar terror nos outros seres viventes.

1 Lankavatara Sutra: a Mahayana text. Translated for the first time from the original sanskrit by Daisetz Teityaro Suzuki, http://lirs.ru/do/Ianka_eng/Lankavatara_Suzuki,Mahayana, Routledge_l 956,161 pp.pdf.

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M uitos h in d u s jeju am n a n o ite de fevereiro, na qual Shiva ex ecu ta a dança cósm ica d a criação e da d estruição. Upvas, q u e em sân scrito significa jejum , indica estar sen tad o ao lado de D eus. D urante o mês de Ram adã, os m u çulm anos se ab stêm de comida, de água e d a relação sexual to d o s os dias do m ês: do a m an h ecer ao p ô r do sol. N o D ia d a Expiação (ou Yom K ippur), os h e b re u s jeju am da tard e de u m dia até a ta rd e d o d ia seguinte: n ão p o d em com er, beber, lavar-se, calçar sap ato s de cou ro de anim ais e m a n ­ te r relações sexuais. M as jeju am ta m b é m em m uitas o u tra s o casiões. O s m ó rm o n s je ju a m n o p rim eiro d om ingo de cada m ês, a b ste n d o -se de com ida e de líquidos p o r v in te e q u a tro horas. J e s u s p ra tic o u o je ju m ap ó s seu b a tism o (M t 4,1-2; Lc 4,1-2). Em M t 6,16-18, e n co n tram o s um a passagem n a qual Jesu s co n d en a a hipocrisia e con­ vida a u m a relação d ire ta com D eus an u n cian d o a reco m p en sa q u e ele p ro m e te aos q u e jejuam : Quando jejuardes não fiqueis tristes como os hi­ pócritas; pois eles desfiguram o rosto para m ostrar aos homens que estão jejuando. E m verdade, vos digo: já receberam sua recompensa. Tu, porém, quando jejuar­ des, unge tua cabeça e lava teu rosto, para que os ho­ mens não percebam que jejuas, mas apenas teu Pai que está oculto, e o teu Pai que vê no segredo te recom­ pensará.

A reflexão de A g o stin h o de H ip o n a sobre a u ti­ lid ad e d o je ju m in icia com a c o n tra p o siç ão e n tre os anjos e as c riatu ras h u m an as. O pão dos anjos é D eus; n o céu n ad a falta, ali h á ab u n d ân cia e sacied ad e etern as. A qui, os esp írito s racionais en ch em de v %

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Deus suas m en tes. N a Terra, as alm as vestidas com um corpo te rre n o enchem seus v en tres com os fru ­ tos da terra. O n o sso alim en to n os falta n o m esm o instante em q u e nos restau ra, dim inui à m ed id a que nos sacia. O alim en to celeste, ao contrário, m an tém -se íntegro m esm o q u an d o nos sacia. Q u em se curva sobre a terra, em b u sca de alim en to e de u m prazer ligado apenas à carne, p ode ser com parado aos an i­ mais. O s cristãos levam u m a vida d istin ta dos que não têm fé e alm ejam unir-se aos anjos. A inda não som os ju sto s, m as estam o s a cam inho. Q ual é a van­ tagem de n ão nos ab an d o n arm o s ao alim en to e aos prazeres da carne? A carne nos inclina para a terra, a mente se volta para o alto, é arrebatada pelo amor, mas é retardada por seu peso... Assim , se a carne inclinada para a terra é um peso para a alma, uma bagagem que impede seu voo, quanto mais colocamos nossas alegrias na vida superior, tanto mais se alivia seu peso terreno. E is o que fazemos quando jejuamos.2

Em m aio de 1994, a C onferência Episcopal Ita­ liana resolveu solicitar aos cristãos uma retomada convicta e vigo­ rosa das práticas penitenciais. Este apelo busca, antes de tudo [continuava o texto], a fidelidade às exigên­ cias evangélicas da penitência, mas também dar uma resposta coerente ao desafio do consum ism o e do hedonismo tão difundidos em nossa sociedade.

2 Agostinho, A utilidade do jejum, II.

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N este tex to o cardeal Ruini evocava as palavras p ro ferid as p o r P aulo VI n a co n clu são do Concilio V aticano II, n a C o n stitu ição A postólica Paenitemini: E n tre os graves e urgentes problem as que se impõem à nossa solicitude pastoral, está o apelo aos nossos filhos - e a todos os homens de fé do nosso tempo - para o significado e a importância do manda­ mento divino da penitência.3

Em d ezem b ro de 2001, João Paulo II p ropôs um a jo rn a d a de oração e de jeju m q u e u n isse os fiéis de to d as as religiões e os d efensores d a paz c o n tra todas as g u erras p a ra q u e “o am o r prevaleça sobre o ódio, a p az so b re a g u erra, a v erd ad e so b re a m en tira, o p e rd ã o so b re a v in g a n ç a ” .4 E ste te x to su sc ito u aprovações, m as ta m b é m algum as críticas explícitas, e n tr e o s c a tó lic o s .5 N a s u a m e n s a g e m d e Q u a ­ resm a, B ento XVI afirm ou q u e o jeju m “nos ajuda a vencer o egoísm o, a ab rir o coração ao am o r a D eus e ao p ró x im o ”.6 A tu alm en te os católicos jejuam (ou m elhor, deveriam jeju ar) apenas dois dias p o r ano: n a Q u arta-feira de C inzas e n a Sexta-feira Santa. N ão sei se é verd ad e - com o te m sido d ito 7 - que a tu a lm e n te , n as igrejas p ro te s ta n te s e evangélicas, 3 w w w .vatican.va/holy_father/paul_vi/apost_constitutions/ documents/hf_p-vi_apc_19660217_paenitemini_it.html. 4 w w w .vatican.va/holy_father/john_paul_ii/angelus/2001/ docum ents/hfjp-ii_ang_20011209_it.html. 5 http://grandinotizie.eom /daz/l 129.htm. 6 w w w .vatican.va/holy_father/benedict_xvi/m essages/lent/ docum ents/hf_ben-xvi_m es_2008121 l_lent-2009_it.htm l. Ver Gori, II digiuno e le religioni, L'Osservatore Romano, 6 mar. 2009. 7 Russell, Fame. Una storia innaturale, p.42.

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assiste-se a um verdadeiro renascim en to d o jejum . No en tan to , acredito q u e n o m u n d o católico te n h a ocorrido o contrário. E sta avaliação é co m partilhada pelo teólogo Enzo Bianchi, que, n u m artigo n o jornal Avvenire de 8 de m arço de 2009, escreveu o seguinte: No Ocidente - diversamente do que ainda acon­ tece nas igrejas do O riente - pode-se dizer que a prática eclesial do jejum praticamente desapareceu: a abstinência de carne às sextas-feiras é livremente substituída por outros gestos sem qualquer relação com o alimento, o jejum ascético limita-se a apenas dois dias ao ano - a Quarta-feira de Cinzas e a Sexta-feira Santa; na preparação para a primeira comunhão, foi reduzido a um a hora... Assim , uma prática que vem desde Israel, retomada por Cristo, presente na. grande tradição eclesial do Oriente e do Ocidente, torna-se cada vez menos presente e exigida.

Só um cristian ism o insípido, co n tin u a Bianchi, pode acabar com o jejum, considerando-o algo irrele­ vante, e pensar que uma privação de coisas supérfluas (portanto, não vitais com o o alim ento) possa ser substituída: esta é um a tendência que desdenha a importância do corpo e sua condição de templo do Espírito Santo. N a verdade, o jejum é a maneira com que o crente testemunha sua fé no Senhor com seu próprio corpo, e constitui um antídoto à redução intelectualista da vida espiritual ou à sua confusão com o psicológico.8

8 Bianchi, Ha ancora senso il digiuno?, Avvenire, 8 mar. 2009.

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Penso q u e u m a grande p arte da cu ltu ra laica está tã o envolvida n a polêm ica com as crenças e su p ers­ tições d os católicos, q u e acabam não percebendo as rachaduras, as diferenças e as verdadeiras gretas que existem n o s m u ro s seculares d a Igreja Católica. N o en tan to , a re so lu ta redução da prática do jejum (que p ara alg u n s parece um v erdadeiro d esaparecim ento) é c o n s id e ra d a p o r a lg u n s s e g m e n to s d o m u n d o católico ain d a m u ito parcial e insuficiente. Em um n ú m e ro d a rev ista MicroMega dedicado ao alim ento, a teóloga A driana Z arri (que p ublicou m u ito s livros e c o la b o r o u e m m u ito s jo r n a is , d o Osservatore Romano ao II Manifesto) expressou su a perplexidade d ian te d a clara p redom inância, nos tex to s e nos di­ cionários, de d iscu rso s sobre o jeju m e de u m a quase in e x is te n te lite r a tu r a re lig io sa so b re o a lim e n to . Z arri co n sid era u m g an h o o fato de o Concilio de T ren to n ã o te r se p ro n u n c ia d o so b re o a lim en to , pois se o tivesse feito “te ria talvez feito prevalecer o jeju m sobre o convívio e n tre as p esso a s”. Zarri d es­ taca a p red o m in ân cia e im p o rtân cia d esse convívio, e afirm a q u e o parco êxito d o alim en to e do sexo na tradição cristã vincula-se à “theologia crucis tan to ressaltad a” e q u e foi in siste n te m e n te pregada pela Igreja C ató lica a té g e ra r u m “e x asp erad o dorismo9 q u e te m n o jeju m d o alim en to e d a cam a seu m ais significativo cap ítu lo ”.10 C o n fesso te r ficado e starrecid o com o fato de Adriana Zarri ter falado, nesse contexto, de “um nosso som brio e obsessivo p u d o r”. G ostaria de perguntar:

9 Sentimento de dor acentuado. (N. T.) 10 Zarri, Cibo e cristianesimo, I quaderni di MicroMega, suple­ mento do n.5, 2004, p.38-40.

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nosso de quem ? D as freiras de clausura? D os n ossos contem porâneos? D os italianos? A psicossexóloga Valeria R andone escreve: Durante muitos anos, após uma mudança radical do quadro cultural, a sexualidade também assumiu novos significados: deixou de ser vinculada à procriação, franqueou-se ao universo feminino o acesso à dim ensão do prazer, tornaram -se conhecidas e lícitas algumas perversões soft, e a m ídia e a inter­ net transmitiram uma sexualidade ginástica escassa de conotações emocionais. A luz destas mudanças de paradigmas com portamentais, a virgindade perdeu totalmente sua razão de ser e seu significado ances­ tral originário. Estudos recentes (Congresso Nacional de Sexologia C línica - Taormina, maio de 2009) de­ monstraram que a idade da primeira relação sexual dim inuiu muito e situa-se num raio que vai dos 13 aos 17 anos, com uma correspondente elevação do nível de desinformação sexual quanto à contracepção e às doenças sexualmente transm issíveis.11

Poderíam os pergu n tar: será que A driana Zarri, preocupada com n o b res q u estõ es teológicas, n u n ­ ca ligou a televisão? Q ue n u n ca se deu con ta da total m ercantilização do corpo das m u lh e re s e d os h o ­ mens im p o sta a m ilhões de espectadores? Q u e não se deu con ta de q u e tam b ém jornalistas com form a­ ção declaradam ente laica, que gostam de e u sam um a linguagem sóbria e com edida, utilizaram -se da p o u ­ co científica e pouco sociológica noção de “orgia de bundas e te ta s ” com u m a clara referência à atual e 11 www.clicmedicina.it/pagine-n-38/02115-verginita.htm.

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esp a n to sa invasão d o sexo n a televisão italiana? Os teólogos tam bém , com o h á m u ito os filósofos, são capazes hoje de tudo: nos dias atuais, pod em os falar q u e se tra ta de u m fenôm eno com um , de u m “som ­ b rio e obsessivo p u d o r”? Será q u e ain d a podem os falar de u m jejum da cama com parável ao jejum do ali­ mento e falar tam b ém de u m d ifundido e exasperado dorismo? N ão sou capaz de julgar se oprazeirismo ou o deleitismo de A driana Zarri (com o poderíam os denom inar o co ntrário de dorismo?) te n h a ou não u m a relação com a tradição cristã. C onsidero n o e n ta n to m uito in teressan te que, em 2004, em u m tex to intitulado “A lim e n to e c ris tia n is m o ”, e s ta in q u ie ta teó lo g a te n h a escrito (logo abaixo do títu lo ) o seguinte: O s evangelhos ensinam: Cristo quis estar entre nós por meio da comida e do ato de comer, m ultipli­ cou pães e peixes preocupado com a fome do povo. Todavia, textos e tratados de teologia m ística trazem m uitos discursos sobre o jejum e pouco se preocupam com a dimensão festiva da comida. Por quê?

A p resen ça de C risto p o r m eio da com ida estaria relacionada com fartos b an q u e te s e com locais para com er? O u o alim en tar-se e o com er co n stitu em um p o n to central e decisivo n a teologia cristã? Pessoal­ m en te, co n sid ero -m e cristão apenas n o sen tid o dado ao term o p o r B enedetto Croce, q u e dizia q ue nós oci­ dentais n ão p odem os dizer que não som os cristãos. N ão o b sta n te , li q u a se com alívio, n o te x to Notas sobre algumas publicações do Prof. Dr. Reinhard Messner, p ublicado em 30 de nov em b ro de 2 0 0 0 pela C on­ gregação p ara a D o u trin a d a Fé e assin ad a pelo seu

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então prefeito (e atual pontífice) Joseph Ratzinger, as seguintes linhas: A Igreja está persuadida na fé de que o próprio C risto - como narram os Evangelhos (ver M t 26, 26-29; Mc 14, 22-25; Lc 22, 15-20) e, por tradição apostólica, São Paulo (ver IC o r 11, 23-25) - entre­ gou aos discípulos na ceia antes da sua Paixão sob as espécies do pão e do vinho o seu corpo e o seu sangue, instituindo desta forma a Eucaristia, que é genuinamente o seu próprio dom à Igreja de todos os tem pos. Por conseguin te, não se deve supor que, no cenáculo, C risto - como continuação da sua comunhão à mesa - realizou uma análoga ação convival sim bólica, com perspectiva [da doutrina] escatológica. Segundo a fé da Igreja, na últim a ceia, Cristo ofereceu o seu corpo e o seu sangue - entregou-se a Si mesmo - ao seu Pai e deu-se a Si próprio como alimento aos seus discípulos, sob as espécies do pão e do vinho.12

Entregar-se com o alim en to aos seus discípulos sob os sinais do pão e do vinho. E ntre n atu re z a e cul­ tura, na civilização da qual som os filhos, a com ida e o comer ocupam certam en te u m lugar m u ito especial.

12 www.vatican.va/rom an_curia/congregations/cfaith/docu m e n ts/r cc o n c fa i th_doc_20001130_messner_it.html.

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VII O jejum e a santidade

Sobre a vida dos san to s, sobre seu jejum , sobre sua re c u sa a lim e n ta r, so b re se u a s c e tism o e x is­ te um a a b u n d a n te e prolífica lite ra tu ra . A lgum as obras disponíveis em italiano: La santa anoressia. Digiuno e misticismo dal Medioevo a oggi de R udolph M. Bell; Sacro convivio, sacro digiuno: il significato religioso dei cibo per le dom e dei Medioevo de C arolina W alker Bynum; Dalle sante ascetiche alie ragazze anoressiche: il rifiuto dei cibo nella storia de W alter V andereycken Ron van D eth. D ois d e ste s livros com param as for­ mas de jeju m da prim eira Idade M oderna com o que atualm ente se define com o anorexia. A resp eito d e s­ te tipo de lite ra tu ra deve-se levar em consideração a advertência expressa com m u ita clareza pelo p si­ quiatra Paolo S an to n astaso : jejum , em agrecim ento exagerado, te n d ê n c ia ao sacrifício, fo rm as de auto p u n ição , is o la m e n to c a ra c te riz a m fe n ô m e n o s m uito d ista n te s u m do o u tro , e tam b ém são d e s­ critos com linguagens m u ito d istin tas. O p erigo de

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se m p re são as sim plificações grosseiras e as id en ti­ ficações errô n eas. O s significados n ão são facilm ente separáveis d os co n tex to s. A m agia do século XVI perten ce à alta cu ltu ra da E uropa. Ela é co nsiderada u m a rea­ lidade positiva p o r C ornelius A grippa, G iam battista delia Porta, G iordano Bruno, Tom m aso Cam panella, Paracelso. E xistiria algum a relação en tre estes per­ sonagens e o divino m ago O telm a, Prim eiro Teurgo d a Ig reja d o s V iv en tes, alé m d e g rã o -m e s tre da O rd em Teúrgica de H elios (que é u m dos m u ito s m agos q u e aparecem hoje na televisão)? A m agia existia n o s séculos XVI e XVII, e existe tam b ém no século XX. Por e sta razão, será q u e ninguém teria a ideia de escrever u m livro in titu lad o De Giordano Bruno ao mago Otelma? N o livro de B ynum , o c o n te x to da A lta Idade M édia - o nde os significados de palavras com o "ali­ m e n to ” e "je ju m ” são d istin to s d o s n o sso s - fica claro: n esse m undo, cada devoto cristão jejuava an­ te s da co m u n h ão e recebia seu D eus com o alim ento. U m alim en to q u e se to rn a D eus. M ísticos e prega­ dores “de A go stin h o a João C risó sto m o e tam bém B ernardo de Claraval, Tauler e G erson fizeram do a lim e n to u m a m e tá fo ra da in sp ira ç ã o relig io sa e do jeju m u m sím bolo de p en itên cia e p reparação”.1 C ultivar o sofrim ento, no m u n d o a q u e pertencem C atarin a de Siena e V erônica G iuliani, faz sentido. O so frim en to não perten ce, com o em n o sso m u n ­ do, ao patológico ou ao te rre n o da doença. N esse m u n d o , u m a g aro ta q u e jejua com o bstinação é um

1 Bynum, Sacro convivio, sacro digiuno: il significato religioso dei cibo per le donne dei Medioevo, p. 131.

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fenôm eno e x tra o rd in á rio e, em m u ito s casos, le­ vanta suspeita de u m a ajuda dem oníaca, e, quan do ela é excluída, vêm à to n a o esp an to e a adm iração. Uma m enina que recusa alim ento e reiterad am en te em cada refeição o vom ita, reduzindo-se a um es­ queleto , p arece se r u m p ro c e sso p ato ló g ico ou a m anifestação de um triste fato que se rep ete com frequência, q u e já foi m u ito estudado e d escrito de­ talhadam ente em m u ito s m anuais. D iante de u m a pessoa jovem g rav em en te enferm a, não sen tim o s nenhum esp an to e certam en te não d em o n stram o s adm iração ou veneração. M anifestam os apenas com ­ paixão e só gostaríam os de ser capazes de oferecer algum a ajuda. A h istó ria da gula foi descrita m uitas vezes com o um pecado capital detestável, que, com o a luxúria, está enraizado na corporeidade hum ana. Esse en rai­ zam ento, n o caso da gula, parece indelével. Pode-se renunciar à sexualidade e levar um a vida casta, m as não se pode viver sem comer: Insistir na sobriedade, impor um regime de priva­ ções, significa evocar o ideal impossível de uma total negação do corpo: a nostalgia de um mundo sem ali­ mentos transparece continuamente na ênfase que os monges dão ao jejum.

A c u ltu ra escolástica traz u m a definição dife­ rente do pecado da gula e distingue en tre o prazer natural e o prazer libidinoso, que em basa to d o ex­ cesso. E apenas um desejo desordenado, e não um desejo natural p o r alim entos, que Tomás de A quino considera com o o pecado da gula. Em De maio, Tomás indica q u e a gula provoca u m d esco n tro le

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da m en te, gera im pureza, u m a alegria e u m discur­ so vazios, e a licenciosidade.2 E xistem , certam ente, d istin çõ es im p o rta n te s, m as é suficiente a descri­ ção da punição p ara o pecado da gula n o sexto canto do Inferno de D ante p ara perceberm os a abism ai dis­ tân cia q u e existe e n tre o olhar de D an te e de seus co n tem p o rân eo s e o n o sso ju lg a m e n to indulgente dos glutões e com ilões. E stes ú ltim os, não os con­ sideram os, com o Paulo (F1 3,18-19), pessoas que se co m p o rtam com o inim igos da cruz de C risto, que têm o v en tre com o seu deus, e que se gloriam do q ue eles deveriam se envergonhar, m as, na pior das h ip ó teses, com o vítim as d o en tes ou com o vítim as to ta lm e n te in o cen tes da sociedade de consum o. To­ davia, n a atm o sfera som bria do terceiro círculo do inferno, cai sem p a ra r u m a m aldita e fria chuva fei­ ta de u m a m istu ra de granizo, água escura e neve. A te rra e stá encharcada e se tran sfo rm a em u m m al­ cheiroso e gélido lam açal no qual os pecadores estão im ersos. Sobre eles late C érbero com suas três cabe­ ças, a barriga estu fad a e as garras com que dilacera e esq u arteja o corpo d os condenados. Para C a ta rin a de Siena (nascida em Siena em 1347 e m o rta em R om a em 1380), que, com o São Francisco, é p ad ro eira da Itália, e, com o Tom ás de A quino, é d o u to ra da Igreja, ouvida p o r soberanos e pon tífices e co n sid erad a p ereg rin a da paz, o com er e o beber, o am am entar, o pão e o sangue, a fom e e o vôm ito c o n stitu em im agens centrais e decisivas do en co n tro com D eus. O jejum , levado às últim as con­ seqüências, o com er a sujeira dos d o en tes socorridos

2 Ver Casagrande; Vecchio, 1 sette vizi capitali. Storia dei peccati nel Medioevo, p. 129, 133, 135.

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conduzem à fusão com a agonia de C risto e co n tri­ buem para a salvação do m u n d o .3 Enquanto rezava apareceu-lhe o Salvador e Senhor Jesus Cristo com suas cinco chagas... Pondo a mão direita sobre a sua cabeça virginal e aproximando-a da chaga de seu flanco, sussurrou-lhe: “Beba, minha filha, a bebida do meu flanco com a qual tua alma ficará repleta de uma doçura tal que a sentirás tam­ bém no corpo que desprezaste por m im ”. E ela, vendo assim tão próxima à santíssima chaga os lábios do corpo, mas muito mais aqueles da alma, bebeu longa­ mente com avidez e abundância.4

E ainda: “A vós”, escreve a trê s m ulheres n a p o ­ litanas, convém fazer como o menino que, querendo mamar, pega o seio da mãe e o leva à boca, e por meio da carne traz a si o leite; do mesmo modo devemos buscar o peito de Cristo crucificado no qual se encontra a mãe da caridade, e por meio de sua carne traremos a nós o leite que nutre a nossa alma.5

C om o o b se rv o u Bynum , C a ta rin a e n te n d ia a união com C risto com o um vestir-se, com o um tornar-se a p rópria carne de C risto, e este é apresentado

3 Ver Bynum, op. cit., p. 184-5. 4 da Capua, Vita Catharinae Senensis, Acta Sanctorum, §163, p.903; ver Bynum, op. cit, p. 191. 5 de Siena, Lettere [Cartas], v.VI, 5-6. Ver Bynum, op. cit., p.195-6.

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várias vezes, em seus escritos, com o u m a m ãe am am e n ta n d o .6 U rsula G iuliani nasceu em M ercatello, p e rto de U rbino, em 1660, e com 17 anos en tro u n o convento das C larissas C apuchinhas de C ittà di C astello, assu ­ m in d o o n o m e de Verônica. Foi p roclam ada santa em 1839. E screveu su a biografia em obediência a u m a o rdem de seus confessores. Escreveu u m diário de 22 m il páginas d u ra n te trin ta e três anos. Em sua terceira autobiografia, refere-se a um p eq ueno q u a­ d ro com a p in tu ra de M aria a m a m e n ta n d o Jesus. R etirando-o da parede, abraça o p eq u en o quadro: Comecei a despir-me. Tirei para fora meu pequeno peito e disse: “Meu Jesus, deixe este peito. Venha sugar o leite em mim". E estendi-lhe o peito. E le dei­ xou os da Virgem e agarrou-se ao meu. Oh! Deus! Eu não posso descrever nada do que senti naquele m om ento, e nem me lem bro dos efeitos que me causou. Naquele gesto não parecia a pintura de um menino, mas um em carne e osso... Agora me lembro que por vários dias, aqui neste peito, senti tão grande calor, que era como um fogo.7

Às o rd en s q u e lhe foram dadas repetidas vezes p ara q u eb rar os seus longos jejuns, n u n ca foi capaz de obedecê-las. Já m e referi ao m u n d o em q u e vive C atarina, em q u e os sofrim entos não são considerados u m mal, o n d e existe u m verd ad eiro cultivo do sofrim ento. Sobre isso, Verônica G iuliani é m u ito clara:

6 Ver Bynum, op. cit., p. 198. 7 Bell, La santa anoressia. Digiuno e misticismo dal Medioevo a oggi, p.72. %

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Parece-me lem brar que, às vezes, percebia a preciosidade do sofrimento. Quando recebia tais ilu ­ minações, eu nem pensava, pois não o considerava um peso para m im. E u me ajudava com as penitências, vocês imaginam! Tudo me causava dor por não encon­ trar dor em nada. Fustigar-me com espinhos e flagelos acendia em m im um desejo cada vez maior pela dor. Vestir cilícios e carregar correntes e outros instrumen­ tos de penitência eram para mim um tormento, pois não sentia dor algum a... Não sinto dor com os açoites, mas sofro por não sentir dor. Portanto, ó meu Jesus, onde está o sofrimento? Envia-o para m im, porque em meio a ele talvez eu encontre o seu amor.8

8 Giuliani, II mio calvario. Autobiografia, p. 174-5; Giuliani, Il Diá­ rio. Ver Salvatori, Vita di Santa Verônica Giuliani, abbadessa delle cappuccine in Santa Chiara di Città di Castello.

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VIII A fome

Penso q u e a p rim eira e m ais o p o rtu n a coisa a fazer seja dar a palavra a q u em soube ouvir a voz de quem teve u m a experiência direta: O que podemos dizer da fome crônica? Pode-se dizer que existe uma fome que faz adoecer de fome. Uma fome cada vez mais faminta que se soma àquela que já existe. Um a fome sempre nova que aumenta de forma insaciável e se soma à antiga debelada com esforço. Caminha-se pelo mundo não sabendo dizer outra coisa de si exceto ter fome. Não se consegue pensar noutra coisa. O palato é maior do que a cabeça, uma cúpula alta que penetra até o crânio. Quando a fome torna-se insuportável, o palato estica, com se uma pele fresca de lebre estivesse estendida atrás do rosto para secar. A s bochechas secam e recobrem-se de uma penugem pálida.1

1 Müller, Laltalena dei respiro, p.21.

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A lin h a divisória e n tre o q u e se im agina e o que é q u e se e x p e rim e n ta te n d e a d e sa p a re c e r e n tre os g randes escritores. C om o n e sta m eia página de Vasily G rossm an, q u e se refere à terrível fom e que ocorreu n a U crânia n o início da década de 1930: A neve já havia derretido, quando os homens começaram a inchar; havia chegado o edema da fome: rostos inchados, pernas como almofadas, água nas tri­ pas, urinando nas pernas o tempo todo, não se podia nem ir ao quintal. E os seus filhos!... Cabeças pesadas como balas de canhão, pescoços finos como os das cegonhas, e nas mãos e pés podia-se enxergar o mo­ vimento de cada ossinho... Crianças com aparência de velhinhos, aborrecidos, como se já tivessem vivido setenta anos; e na primavera já não havia um rosto: agora se assemelhavam a cabeças de pássaros, com o seu pequeno bico, e com os olhinhos de uma rã; outros tinham grandes lábios e finos; outros pareciam ainda pequenos góbios, com a boca escancarada. Eles não tinham mais um rosto humano.2

Todos n ó s ficam os e starrecid o s q u a n d o vim os pela p rim e ira vez as fotografias d os ro sto s e so u ­ bem os o n ú m e ro de crianças q u e m o rrem de fom e atu a lm e n te (ou seja, devido a u m a q u an tid ad e in ­ suficiente de alim ento) em cada u m dos dias (com o se dizia n o p assad o ) q u e D eus n o s dá. N a África S ubsaariana e n o Sul da Ásia, especialm ente, m o r­ rem to d o dia, an tes de chegar aos 5 anos, m ais de vinte m il crianças. M ais q u e os nú m ero s, o que nos estarrece são as im agens daqueles ro sto s e daqueles 2 Grossman, Tuttoscorre..., p.145. *-

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olhares. D epois, e s ta im p re ssã o vai d im in u in d o . D estes horríveis e inaceitáveis m assacres, em geral, perm anece ap en as u m a lem b ran ça q u e n o s in c o ­ moda, e co n tin u am o s a viver (com u m a espécie de rem orso oculto, m as tolerável) e a olhar p ara nossos filhos, que, em geral, com em m uito, e nos p reo cu ­ pam os p o rq u e ten d em a ficar obesos e todos lem os que isso rep resen ta u m a séria am eaça ao seu futuro. Sobre a fom e existe, é claro, u m a am pla biblio­ grafia e h á im agens tam b ém em blem áticas, com o a de C harlie C haplin em Em busca do ouro (1925), quando com e com gosto suas botinas fervidas, sab o ­ reando os cadarços com o se fossem fios de m acarrão. Nessa bibliografia enco n tra-se um livro ex trao rd i­ nário escrito não p o r um especialista da fom e, m as por um a grande especialista de com unicação (que escreveu sob re a vida n o Paleolítico, sob re a vida das flores, sobre as borboletas e m u itas o u tra s coi­ sas) cham ada Sharm an A pt Russell, que publicou, em 2005, Hunger. A n Unnatural History, tra d u z id o para o ita lia n o em 2006 com o títu lo Fome. Uma história não natural, p ela C odice Edizoni de Turim . Neste livro en contrei expresso, com particu lar d es­ taque (e tam b ém com u m a lucidez ex trao rd in ária e, especialm ente, sem q u alq u er autoindulgência), o sentim ento q u e provoca em cada um de n ós a p re ­ sença dessas crianças. O p rim eiro co n tato com essas fotografias tin h a ab erto , n a alm a de R ussell, um porta para a dor. D epois de gerar dois filhos e tê-los am am entado, os olhos dela, um dia, recaíram sobre a fotografia de u m a criança m o rren d o de fome, e de repente a p o rta abre-se n ovam ente e se escancara:

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E u queria arrancar a m enina daquela página, abraçá-la, criá-la, mandá-la para a escola. M inha visão ficou anuviada. De quem era aquela dor? A menina da

fotografia não era minha filha. Não explodi em lágrimas, e virei a página do jornal. Eu me sentia cansada, mas só no meu íntim o, profundo e difícil de perceber. A m aioria de nós conhece esse sentim ento de esgo­ tamento. Tememos que a dor dos outros subtraia a alegria de nossas vidas, que seja quase impossível ter alegria diante de sua dor. U m a menina que está mor­ rendo porque não tem o que comer é um absurdo. Aquela criatura obscurece a visão que temos da janela da nossa cozinha. A rruina o primeiro dia de aula de seu filho. Por fim, parei de recortar artigos sobre a fome. Fechei a porta, mas não tranquei com a chave.3

N ão tran car a chave aq uela p orta: já é algum a coisa. M as n ã o d ev em o s n o s e sq u e c e r de q u e há m u lh e re s e h o m e n s q u e n u n c a a fech aram e que dedicam su as vidas a e ste problem a. C o m p re e n d e r as ex p eriên cias d o s o u tro s, e s­ p ecia lm e n te q u a n d o são dram áticas, é u m a tarefa n ad a fácil, e p ara m u ito s im possível. E ntão vale a p en a ouvir a palavra de alguém (com o H erta M üller, p rêm io N obel de lite ra tu ra em 2009) capaz de contá-las. Mesmo após sessenta anos do Lager [campo de concentração], comer ainda me emociona. Eu como com todos os poros. Quando como junto com outros me torno desagradável. E u como com arrogância. O s outros não conhecem a felicidade da boca, são

3 Russell, Fame. Una storia innaturale, p. 12.

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sociáveis e educados à mesa. Quando como passa pela minha cabeça uma gota de grande felicidade... Como com tanto gosto que não quero morrer para não deixar de comer. Há sessenta anos sei que m inha volta para casa não pode domesticar a felicidade do Lager. Ainda hoje, com a sua fome, arranca a mordidas o centro de todo sentimento. No meu centro há um vazio.4

Para n o s se n tirm o s bem , p recisam o s de cerca de du as m il calorias p o r dia. N os p aíses do O ci­ d ente, c o n su m im o s cerca de 2.9 0 0 . P or v o lta de um terço da população m un d ial chega às duas m il calorias e 30% d esse terço de população (ou seja, quinh en to s m ilhões de pessoas) d ispõem de m enos de 1.500 calorias p o r dia, o q u e significa q u e p a s­ sam fom e e q u e seu corpo acabará n u m a autofagia. Elas tê m d e e n fre n ta r m ag reza, b arrig a in ch ad a, apatia, d e s id ra ta ç ã o d a pele, fra q u e z a m u sc u la r, depressão d o sistem a nervoso, falta de resistência a doenças, en velhecim ento p re m a tu ro e, finalm ente, m orte p o r inanição. Q uase m eio século após a d en o ­ m inada R evo lu ção V erde, le m o s n o re la tó rio de janeiro de 2011 do Worldwatch Institute q u e “u m a grande p arte da fam ília h u m a n a sofre de fom e crô­ nica”, e a p e sa r d o s in v e s tim e n to s n a a g ric u ltu ra feitos p o r governos, organizações in tern acio n ais e por várias fundações, ainda não se sabe com clareza o que precisa ser feito p ara ajudar os 925 m ilhões de subalim entados.5 A fom e a c o m p a n h a to d a a h is tó ria h u m a n a , desde a m ais re m o ta antig u id ad e até o p resente.

4 Müller, op. cit., p.208. 5 www.worldwatch.org/node/6567.

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M uitos fizeram pão com sementes de uva ou com flores de avelãs; outros com raízes de samambaias prensadas, secadas e m oídas, m isturadas com um pouco de farinha. M uitos utilizavam ervas do campo.

A fom e am eaçava com a m o rte to d a a raça h u ­ m ana. U m a grande fom e devastou a Grécia, chegou à Itália, atingindo a Gália e todas as regiões da Inglaterra; os ricos tornavam-se pálidos como os pobres, e a furia da fome levou os homens a comer carne humana.

D e p assag en s d esesp erad as com o e stas (a p ri­ m eira é de G regório de Tours6 e d ata do século VI, a se g u n d a é de R odolfo G laber,7 escrita no século XI), a h istó ria e stá repleta. U m a q u an tid ad e quase in fin ita de h istó rias faz referência a p eríodos h istó ri­ cos e p aíses d ista n te s, m u ito d ista n te s um do outro. E m geral, te m o s poucas e confusas ideias sobre o n o sso p assad o e sob re a vida cotidiana desse pe­ ríodo. D ois exem plos são suficientes. O prim eiro: o títu lo oficial d o G rão -D u cad o da T oscana era o seguinte: “O s felicíssim os E stad o s d o S ereníssim o G rã o -D u q u e ”. D evem os, c o n tu d o , te r em m en te, com o deixa claro C ario M aria Cipolla, q u e “an tes da Revolução In d u strial n ão havia n e m so m b ra de E sta­ dos Felicíssim os; o q u e havia eram re strito s grupos de felicíssim os, cuja felicidade era conseguida com

6 de Tours, Historia Francorum, VII, 45. 7 Glaber, Historiae.

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a infelicidade dos o u tro s”.8 N o final do século XVI chegou à Toscana o inglês R obert D allington, que publicou em L ondres, em 1605, u m livro de m e ­ m órias de viagem . Ali e stá escrito q u e em Prato o consum o de carne era, em m édia, de vinte libras p or ano. V inte libras eqüivalem a cerca de sete quilos. Sete quilos de carne p o r ano: um a q u an tid ad e tão irrisória - escreveu D allin g to n - q u e em L ondres ninguém acreditaria. São os viajantes q u e “olh am apenas p a ra a beleza da cidade e p a ra as fachadas dos edifícios, q u e p e n sa m q u e e ste seja o p araíso da E uro p a”. C ipolla aproveita a o p o rtu n id ad e p ara nos in fo rm ar que, em 1860, o co n su m o per capita de carne bovina e su ín a na Itália era de aproxim ada­ m ente 4,5 quilos p o r ano. C om base n a inform ação co ntid a n o site w w w .veganitalia.com ,9 p e n so q u e vale a p en a com parar tais dados com os atu ais. O consum o de carne per capita, n a África, é de 11,3 q u i­ los; nos países do sul e do leste da Ásia é de 41 quilos; nos países industrializad o s é de 81 quilos p o r ano. Hoje são m u ito s os q u e d efendem a p ossibilidade (para os m ais catastróficos, a necessidade) de u m a redução de 40% n o co n su m o de carn e n os países industrializados. O se g u n d o ex em p lo te m a v er com a ligação e s tr u tu r a l e n tr e e p id e m ia s e a m o rte p o r fom e. N esse se n tid o , é e m b le m á tic a a h is tó ria de M archionne di C oppo Stefani, cro n ista florentino, que

8 Cipola, Contro un nemico invisibile. Epidemie e strutture sanitarie neWltalia dei Rinasámento, p.34-6. 9 w w w .veganitalia.com /m odules/new s/article.phpPstoryid = 1241.

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escreve sob re a p e ste e n tre os anos de 1347 e 1348, dizendo: M uitos m orreram sem serem vistos, e m uitos m orreram de fome, dado que quando alguém se acamava, os de casa, assustados, diziam -lhe: “Vou chamar o médico” e, após fecharem a porta, nunca mais voltavam.10

E m Storia economica delVEuropa pre-industriale, C ipolla descreve os efeitos d a ch am ad a “p e q u e n a era glacial”, q u e vai de m ead o s do século XVI até o final do século XVIII. Invernos rigorosos e verões frescos, au m e n to da q u ed a de neve e das chuvas, avanço das geleiras alpinas. O a u m e n to das chuvas dificulta a m atu ração e não p e rm ite o en raizam en to das p la n ­ tas. N a d écada de 1590, h o u v e u m a d errocada da ag ricu ltu ra em to d a a E u ro p a O cidental. A nossa península também viu suas colheitas serem atingidas, inclusive a Sicília, o celeiro da Itália, que, em 1592, deixou de exportar trigo e se viu tam ­ bém em situação de fome. A situação tornou-se tão grave que, segundo os testemunhos da época, a popu­ lação de toda a Itália passou a comer cães, gatos e até mesmo serpentes.11

C o m o e s tá claro p ara to d o s, o d ram ático p ro ­ b lem a d a fom e ain d a é u m a ferida aberta. S egundo a O rganização das N ações U nidas p ara a A lim entação

10 www.7doc.it/storia/35-la-peste.htm l. 11 Cipolla, Storia economica delVEuropa pre-industriale, p.256; ver também Cipolla, Saggi di storia economica e sociale.

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e a A gricultura, “e n tre 1999 e 2005, 850 m ilhões de pessoas em to d o o m u n d o eram d e sn u trid a s”. M as havia p ouco co n h ecim en to sobre a fom e até 1950, quando foram publicadas as m ais de mil páginas dos dois volum es in titu lad o s Biology ofH um an Starvation (com o relato da d en o m in ad a “E xperiência de M in­ neso ta ” so b re os efeitos de u m jeju m p ro lo n g ad o e de u m a q u ase inanição envolvendo trin ta e seis voluntários) a resp eito da fom e com o u m a doença que leva à m o rte, em b o ra m u ito s casos de falta de alim en to te n h a m sid o lem b ra d o s, d e sc rito s e até m esm o e s tu d a d o s co m m u ito afinco. E n tre eles destaca-se o q u e aconteceu em Varsóvia, em 1940, quando os ju d e u s q u e ali viviam foram e n c la u su ­ rados n u m a área de catorze q u ilô m etro s quadrados. A história d o q u e ali aconteceu é n arrad a no livro de Charles R oland in titu la d o Courage Under Siege [C ora­ gem sob o cerco] e n o diário (disponível em italiano) escrito p o r A braham Lew in in titu lad o Una coppa di lacrime: diario delghetto di Varsavia. N o tex to de 13 de setem bro de 1941, lem os: Fomos rebaixados ao nível de animais errantes. Quando vemos os corpos inchados e sem inus de judeus que jazem nas ruas, sentimos como se estivés­ semos num estágio subum ano... Para todos aqueles que morrem de fome, uma morte rápida e violenta constituiria certam ente um alívio diante do sofri­ mento terrível e prolongado de sua agonia mortal.

M as os m éd ico s ju d e u s co n fin a d o s n o g u e to estudaram e descreveram , com precisão e riq u eza de detalhes, os efeitos da fom e sob re o organism o. Em 6 de julh o de 1942, o dr. Josep h S tein proferiu u m a

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co n ferên cia, e m u m a re u n iã o se c re ta de m édicos (na verd ad e, u m im p o rta n te co n g resso científico), so b re a d o en ça d a fom e em su a form a extrem a. Em abril de 1943, depois da revolta arm ad a de hom en s e m u lh e re s ju d e u s q u e decidiram resistir, o gueto de V arsóvia foi q u eim ad o e to ta lm e n te d estru íd o . H oje a fom e e n q u a n to p ro b lem a coletivo afeta u m a p a rte d o m u n d o , q u e n ão é aq uela em qu e fom os esco lh id o s p a ra viver. M as b a sta v o ltar u m pouco no te m p o ... E m 2009, foi p u blicada n a Nature a se­ qü ên cia do g en o m a d a ch am ad a “praga da b a ta ta ”, o ag en te p a tó g en o (d en o m in ad o Phytophtorainfestans), q u e a tu a lm e n te c u sta a cada an o aos ag ricu lto res m ais de q u a tro bilhões e m eio de euros. Ele possui u m a g ran d e capacidade de adaptação, se rep ro d u z p o r m eio de m ilh õ es de esp o ro s q u e p en e tram no so lo e a ta c a m o tu b é rc u lo . A s p la n ta s, u m a vez infectadas, m o rre m n o p razo de u m a sem ana. O Phytophtora infestans, an te s co n sid erad o u m fungo, agora é reco n h ecid o com o u m “m ofo aq u á tic o ” e, com o tal, “se ap ro x im a m ais d o p arasita da m alária do que dos co g u m elo s”.12 Em 1845, n a Irla n d a ,'e sta praga in festo u u m terço das b atatas, q u e tin h a m se to rn ad o o e le m e n to básico da alim en tação d os cam poneses. N o an o seg u in te, to d a a pro d u ção foi p erdida. A pós a safra no rm al de 1847, a praga atin g iu as colheitas de 1848, 1849 e 1850. O q u a d ro da falta de alim ento, a m iséria, o so frim en to atro z de h o m en s, m u lh eres e crianças, to rn a ra m -se conhecidos em to d o o m undo. C om o escreveu S harm an A pt R ussell, a Grande Fome n ão foi inevitável:

12 http://cordis.europa.eu/fetch?caller=new slink it_c&rcn= 31230& action=d.

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M uitas pessoas teriam sido salvas se o governo britânico e a elite irlandesa tivessem intervindo de forma eficaz. De 1845 a 1850, o M inistério do Tesouro inglês aplicou pouco mais de 7 milhões de libras em ajudas, em comparação com os 20 m ilhões que ele havia dado àqueles que, nas índias Ocidentais, pos­ suíam escravos, para que pudessem emancipá-los, ou com os 70 m ilhões de libras que em breve gastariam na guerra da C rim eia.13

Sobre a Grande Fome n a Irlanda, sobre as re sp o n ­ sabilidades, as irre g u la rid a d es e as falhas, m u itas discussões ocorreram e co n tin u am a ocorrer. A escas­ sez de alim e n to q u e atin g iu a U crânia em 1932 e 1933, d en o m in ad a Holodomor ou fome em massa, foi definida - em u m a lei a esse resp eito aprovada em 2006 pelo P arlam ento U craniano - com o u m g en o ­ cídio o u com o u m aco n tecim en to in ten cio n alm en te provocado e, d e p o is, a d m in istra d o com b ase em escolhas b em precisas. A m aio ria d os h isto riad o res defende, com o verdad e evidente, q u e e ssa grande fome foi ocasionada pelas decisões políticas do stalinism o. E ssa trag éd ia foi apagada da h istó ria pelo regime de Stálin e recordada apenas p elos em ig ran­ tes. N o en tan to , pouco s são os h isto riad o res fora da Ucrânia q u e ad eriram à tese de que a grande fom e deva ser definida com o genocídio ou q u e te n h a sido provocada deliberadamente e q u e as escolhas políticas desastrosas de Stálin sobre a coletivização forçada, sobre a exploração excessiva das colheitas e do gado

13 Russell, Fame. Una storia innaturale, p. 196; vèr Woodham-Smith, The Great Hunger: lreland 1845-49; Gray, The Irish Famine; Vernon, Hunger: a modern history.

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tiv e sse m co m o finalidade co n sc ie n te e desejad a o e x te rm ín io d o povo u c ra n ia n o . A s co n clu sõ es de vários en co n tro s m u n d iais sob re e sta q u e stã o tam ­ b ém foram influenciadas p o r razões ou co n ju n tu ras políticas. M esm o o n ú m e ro de vítim as é m u ito dis­ cutido, varian d o de m eio m ilh ão a dez m ilhões de m o rto s. E m m aio de 2000, D ick G. V anderpyl reevocou o p erío d o de n o v em b ro de 1944 a m aio de 1945, e que p e rm an ecera n a su a m em ó ria e n a dos holandeses co m o “o inv ern o d a fo m e”. O s aliados m archavam p ara Berlim, m as a p a rte o cidental d a H olanda ainda estav a o cu p ad a p o r tro p as alem ãs. M ilhões de h o la n ­ d e s e s e n fre n ta ra m u m p e río d o te rrív e l. D u ra n te aqu ele invern o n ã o havia n em a q u ecim en to nem ele­ tricidade, as rações in cluíam u m pedaço de pão e um quilo de b atatas p o r sem ana. Batatas estragadas pela geada, b u lb o s d e tu lip a e b eterrab as to rn aram -se o ú n ico a lim e n to d isp o n ív el.14 M óveis e casas foram d e s m o n ta d a s p a ra g a ra n tir o a q u e c im en to . T rinta m il p esso as m o rreram de fom e. O exam e das fichas dos h o sp ita is a re sp e ito d as crianças concebidas e nascidas d u ra n te aq uele in v ern o e, p o sterio rm en te, o exam e dos te ste s exigidos p elo exército holandês de to d o s os rapazes com 18 anos, p e rm itira m levan­ ta r e to rn a r públicas im p o rta n te s co nclusões sobre os efeitos a longo p razo de u m a n u triç ã o deficiente d u ra n te a infância.15

14 ww w.rcnzonline.com /fhf/al22.htm . 15 Russell, Fame. Una storia innaturale, p. 149.

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Em 1996, J a s p e r B eck er16 p u b lic o u u m liv ro sobre a fom e n a C h in a de M ao, relatan d o u m dos piores p erío d o s de fom e d a h istó ria. Ela com eçou com a c o le tiv iz a ç ã o n o c am p o , com o e s tím u lo dado a u m a industrialização forçada, com as decla­ rações forjadas a re sp e ito d as co lh eitas p o r p a rte dos p r o d u to r e s , com u m in ju s tific a d o a u m e n to das exportações de alim entos, com u m a cam p an ha contra os q u e se aproveitavam dessa situação p ara enriquecer. Fala-se de n ú m e ro s q u e v ariam e n tre cato rze e tr in ta m ilh õ e s d e m o rto s . C in co a n o s antes, em 1991, foi publicado n a Inglaterra o livro Cisnes selvagens, de se isc e n ta s p áginas, e sc rito p o r Jung C hang, nascida em 1952 e que tin h a feito p arte da G u ard a V erm elha, tra b a lh a n d o co m o “m éd ica descalça” an te s de deix ar a C hina, em 1978, e tra n s- • ferir-se p ara a Inglaterra. Traduzida p ara 26 línguas, com m ilhões de cópias vendidas, a o b ra reco n stró i a vida de trê s gerações de m u lh eres. D edica u m capí­ tulo aos anos da fom e, o nde lem os: Em Chengdu a ração mensal de alimentos para cada adulto foi reduzida para oito quilos e meio de arroz, cem gramas de óleo e cem gramas de carne, quando possível. Não havia quase nada, nem mesmo repolhos. Muitos sofriam de edemas, um estado no qual os líquidos acumulam-se sob a pele devido à des­ nutrição; esses doentes assumem uma cor amarelada e ficam inchados... Eu tinha de ir muitas vezes ao hos­ pital para tratar os dentes. Todas as vezes que ia, sofria de náuseas diante do horrível espetáculo de dezenas

16 Becker, La rivoluzione delia fame. Cina 1958-1962: la carestia segreta.

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de pessoas com membros inchados e luzidios, quase transparentes, do tamanho de um b arril.17

C o m o escreveu A m artya Sen, n o início dos anos 1980, a to tal su p ressão na C h in a de to d a e q u alquer fo rm a de inform ação livre c o n trib u iu p ara o agra­ v a m e n to d a trag éd ia. M u ito s an o s m ais tard e, os n u m e ro so s ad m irad o res ocid en tais d o m aoísm o não se se n tia m à v o n tad e em tocar n o a ssu n to do Livro V erm elho e n a d e n o m in a d a revolução cultural. N o século XX, a fom e e a falta de alim en to s fo­ ram m u ita s vezes provocadas p o r escolhas políticas erra d a s o u eq u iv o cad as. M as, c e rta m e n te , e stiv e ­ ram e s tru tu ra lm e n te relacionadas com o m u n d o dos cam p o s d e co n cen tração . O s d e p o rta d o s n o s lager n azistas foram alim en tad o s com n ão m ais de 1.300 calorias p o r dia e hoje estão disponíveis para todos as inúm eras fotografias de crianças e adultos, literal­ m e n te reduzidos a esqueletos, q u e foram tiradas no m o m en to em que as tropas aliadas en traram nos la­ ger.18 N ão faltam provas tam b ém em relação aos gulag. A fome, um a fome tremenda [escreveu Variam Salomov em Relatos de Kolyma], é um a ameaça cons­ tante para o fugitivo. A fuga de quem tem fome é normal e, portanto, o fugitivo não tem medo da fome. Mas quem pode fugir diante de outro inquietante perigo: ser comido pelos próprios companheiros? É claro que os casos de canibalismo nas fugas são raros.

17 ]ung, Cigni selvatici, p.293-5. 18 Ver Applebaum, Gulag. Storia dei campi di concentramento sovietici; http://coalova.itism ajo.it/ebook/m ostra/tl02.htin. Ver também Solzenicyn, Arcipelago Gulag.

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Porém existem e entre os velhos de Kolyma, que vive­ ram no Extrem o Norte por uma década, parece não ter havido um deles que não tenha encontrado canibais condenados exatamente por terem matado um com­ panheiro durante a fuga, e por terem se alimentado com carne hum ana.19

19 Salomov, I racconti delia Kolyma, p.444-5.

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IX Greves de fome

A abstenção de alim en to s e a fom e são aqui con­ sideradas com o p o rtad o ras de m ensagens dirigidas aos d eten to res do p o d er e à opinião pública com o um in stru m e n to político, com o u m a form a de p ro ­ testo, com o m eio p ara exigir to m ad as de m edida. Na antiga ín d ia e na Irlanda m edieval já e n c o n tra­ mos e sta fo rm a de p ro te sto . N a E uropa, e n tre os prim eiros a p raticar a greve de fom e, destacam -se as suffragette britânicas q u e lutavam pela em ancipa­ ção fem inina e pelo d ireito de sufrágio o u de voto. M arion W allace D unlop foi p resa em ju lh o de 1909, com a idade de 45 anos, e lib ertad a após u m a greve de n o v e n ta h o ra s. Em s e te m b ro do m e sm o ano, o governo b ritân ico in tro d u z iu a alim en tação for­ çada nas prisões. Em 1931, Sylvia P ankhurst, que era líder das sufragette m ilitan tes, publicou u m livro in titu lad o The Suffrage Movement, q u e ev o ca com horror a violência a q u e tin h a sido su b m etid a por aqueles q u e c o n seg u iram v en cer su a d e se sp erad a

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resistên cia, sep aran d o seus d e n te s e alim en tan d o -a através de u m c a n u d o .1 Parece incrível, m as foi so m en te e m 2006 q u e a A ssociação M édica M undial definiu a alim en tação forçada com o “u m a form a de tra ta m e n to d e su m a n a e d e g rad an te”. O p o e ta in d ian o R ab in d ran ath Tagore uso u , referin d o -se a G andhi, n ascid o em 1869 e m o rto em 1948, o te rm o Mahatma (em sânscrito, grande alma). A os 17 anos, G andhi foi e stu d a r D ireito n a U niversity C ollege de L ondres. C om 25 anos vai viver na Á frica do Sul, o n d e p erm an ece até 1914, e se engaja no m o v im en to pelos d ireito s civis de seu s 150 m il c o m p a trio ta s . Ele se re c u s a a o b e d e c e r a o rd e m do p re sid e n te de u m trib u n al de tira r seu tu rb a n te e, com u m a p assag em de p rim e ira classe n a m ão, rejeita a o rd em de u m c o n tro lad o r p ara dirigir-se à terceira classe. Ele viu n esses e em o u tro s in ciden­ tes sem e lh a n te s a origem d o co m p ro m isso de to d a a su a vida: resistên cia n ão v io len ta à o p ressão e a lu ta pela igualdade de d ireitos. N o d eco rrer de su a vida, envolveu-se em ap ro ­ x im a d a m e n te v in te g re v e s d e fo m e q u e n u n c a s u p e ra ra m 21 d ias. M as e ra d e b a ix a e s ta tu r a e pesava m u ito pouco. A su a ú ltim a e m ais dram ática greve de fom e foi aos 70 anos, n a esp erança (que se revelaria in fru tífera) d e u m a co ex istência pací­ fica e n tre h in d u s, siq u es e m u çu lm an o s para evitar a separação e n tre a ín d ia e o Paquistão. N o terceiro dia d a greve, G andhi estava p esan d o apenas 48 qui­ los. N o sexto dia, após o co m p ro m isso d o governo de D élhi de re sp e ita r as p ro p ried ad es e a vida dos

1 Pankhurst, The Suffrage Movement: an intimate account of persons and ideais, p.442-4.

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m u ç u lm a n o s e d e re s titu ir-lh e s su a s m e s q u ita s, Gandhi b ebeu um copo de suco de laranja. D oze dias depois, ele foi assassin ad o p o r u m h in d u q u e não acreditava n a convivência pacífica e resp eito sa en tre as diferentes crenças religiosas.2 As greves de fom e n a Irlanda têm u m a tradição antiga. D esde o perío d o pré-cristão da Irlanda, servi­ ram p ara cham ar a atenção sobre injustiças sofridas. Os m ilita n te s d o E x ército R ep u b lican o Irla n d ês, como todos os q u e se envolvem na lu ta arm ad a com m otivações políticas, q u eriam ser tratad o s com o p ri­ sioneiros políticos e não com o crim inosos com uns. Greves de fom e, assu m id as em vários casos até a m orte, foram desencadeadas em 1917 e no com eço da década de 1920, d u ra n te a g u erra anglo-irlandesa; mais tard e houve trê s m o rtes n a década de 1940, e ainda o u tro caso em 1976. N a prim avera e n o verão de 1981, dez p risio n eiro s iniciaram u m a greve de fome n a p en iten ciária de M aze. Para ch am ar m ais atenção so b re o seu p ro te sto , eles d ecid iram não en trar em greve de fom e ju n to s , m as u m após o outro. O livro de Russell co n tém u m a vivida descri­ ção do q u e acontece n esses jejuns: N o começo se tem uma visão dupla. Balbucia-se. Piora a audição. Surge a icterícia. Depois vem o escorbuto por falta de vitam in a C . A s gengivas começam a sangrar. Pode surgir uma hemorragia no estômago e nos intestinos. Pode haver deficiência de tiamina, o que enfraquece os músculos do coração e provoca lesões no sistema nervoso central e perifé­ rico. Enquanto se processa a degeneração das fibras

2 Ver Russell, lame. Una storia innaturale, p.78-9.

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nervosas, sente-se uma forte dor nos braços. Depois não se consegue mais mover as pernas. A falta de niacina (denominada PP, sigla de Pellagra-Preventing) pode ser a razão das feridas na boca. Este é o pro­ cesso que leva à inanição... O corpo cai aos pedaços, de m uitas maneiras e em muitos lugares; não se pode distinguir um ponto de decomposição quando ela é generalizada.3

E sta d escrição d ram ática, co m o fica evidente, não envolve todas as greves de fom e, m as so m en te aquelas q u e foram levadas ao extrem o. Bobby Sands tin h a 27 anos e foi o p rim eiro a m o rre r após 59 dias sem se alim entar. Todos b eb eram apenas água com u m p o u co de sal. Sobreviveram e n tre 47 e 73 dias. O rol d essas m o rtes, causadas em vista de um obje­ tivo com u m , provocou grande com oção. E provocou tam b ém cerca de trin ta m o rtes e n tre os soldados e policiais b ritânicos, bem com o cinco m o rto s e trin ta grav em en te feridos em u m a ten tativ a de assassin ato co n tra M argaret T hatcher. O s g rev istas irla n d e se s fo ram evocados pelos prisio n eiro s q u e realizaram , n a Turquia, u m a série de greves de fom e p a ra p ro te sta r c o n tra as condições d e su m a n a s d e alg u m as p risõ e s. A p rim e ira delas causou q u a tro m o rte s em 1984. Em 1996, u m a nova greve provocou d ezesseis m o rtes. Em 2000, foram iniciadas greves c o n tra a criação de p risõ es e sp e­ ciais. V inte e o ito p reso s e dois soldados m orreram em co n fro n to s q u e o correram após a decisão do go­ vern o de u sa r a força c o n tra a greve. E m C uba, em ju n h o de 2010, o d issid e n te G uillerm o F arinas, após 3 Russell, Fame. Una storia innaturale, p. 80.

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o anúncio da libertação de 52 p resos políticos, encer­ rou sua greve de fome. Para desvincular a noção de greve de fome de seu caráter d ram ático e atroz, b asta recordam o-nos das greves de fom e q u e aconteceram n a Itália. Em ju n h o de 2010, m e ocorreu te r lido que 120 m em b ro s do Partido D e m o c ra ta a lte rn a v a m -s e em u m a greve de fom e p ara exigir q u e o governo in terv iesse em favor de u m a fábrica em crise.4 C ento e v in te d e p u ­ tados que se revezavam ? Q u a n to tem p o estiveram em greve? E q u an to s dias, horas ou m in u to s d u rou o envolvim ento de cada um deles (lem brando que entre eles estavam im p o rtan tes personalidades)?

4 ww w.partitodem ocratico.it/dettaglio/103198/noi_il_caso eutelia_e_gli_appetiti_mediaset.

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X Canibais

O term o canibais foi intro d u zid o na E uropa por C ristóvão C olom bo, m as já n a A ntiguidade, H eródoto, E strabão, Plínio, o Velho, P tolom eu falam de p o pulações q u e se a lim e n ta m de carn e h u m a n a . Na m ito lo g ia grega, C ro n o s dev o ra seu s filhos e D ioniso é devorado pelos Titãs; Tântalo, p ara com ­ provar se o s d e u se s são re a lm e n te o n isc ie n te s e conseguem d istin g u ir e n tre a carne h u m an a e a ani­ mal, m a ta seu filho Pélope, o corta em pedaços e dá-lhes p ara com er; M edeia, em vingança pela tra i­ ção de Jasão, serve-lhe à m esa seus dois filhinhos. Tereu, esposo de Progne, violenta Filomela, irm ã de Progne, e corta-lhe a língua. Em vingança, Progne e Filomela m atam o p eq u en o Iti, filho de Tereu, cor­ tam seus m em b ro s em pedaços, põem p arte deles para ferver e p arte p ara assar e os servem ao pai. Na narrativa de H om ero, os Ciclopes, os gigantes que têm apenas u m olho, não tem em os d euses e vivem sem leis, golpeiam co n tra o solo o corpo dos

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com p an h eiro s de U lisses, esp arram am seu cérebro e sangue e os com em . A pós a fuga de U lisses e de seus co m p an h eiro s - n a rra O vídio n as Metamorfo­ ses (XIV, 192-196) - , Polifem o esp e ra q u e alguns deles p o ssam re to rn a r p ara esquartejá-los vivos com as m ãos, co m er suas vísceras, b eb er seu sangue e ouvir o ru íd o de seus m em b ro s tritu ra d o s com os d en tes. Fazem p a rte da m e m ó ria coletiva do O ci­ d en te o conde U golino, citado n o Inferno de D ante (e re tra ta d o em u m a p in tu ra de W illiam Blake); o terrível q u ad ro Saturno devorando seu filho, de Fran­ cisco de Goya (1819); a bruxa, p re se n te no início do século XIX n o co n to dos Irm ãos G rim m , que p ren d e o p eq u en o João n a gaiola p ara engordá-lo e depois com ê-lo, m as q u e com u m em p u rrão de M aria (irm ã de João) acaba assad a n o forno (para grande satisfa­ ção do leitor). Em O milhão, M arco Polo fala d o canibalism o p raticad o p o r p o p u laçõ es d o Japão e de S um atra. M as o te m a g a n h a u m a v erd ad eira explosão com as d esco b ertas das A m éricas. “En las ín d ia s”, escreveu o je s u íta Jo sé A costa n a su a Historia natural y moral de las índias (1590), “to d o es p o rte n to so , to d o es sorp re n d e n te , to d o es d is tin to y en escala m ayor que lo q u e ex iste en el V iejo M u n d o ”.1 Tam bém C ristó ­ vão C olom bo, F ern an d o de M agalhães e in ú m ero s o u tro s v iajantes e n avegadores d o início d a Idade M oderna, ao d esem b arcar n o N ovo M undo, viram com seu s p ró p rio s o lh o s coisas n u n c a v istas antes. A sim p le s v isão d a s n o v as te rra s c o n trib u i p ara

1 “Nas índias tudo é grandioso, tudo é surpreendente, tudo é diferente e numa escala maior do que existe no Velho Mundo." (N. T.)

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m inar a ideia d a su p erio rid ad e dos antigos. Simples m arinheiros - afirm a-se em vários lugares - são capa­ zes de ver o co n trário do q u e os filósofos gregos e os padres da Igreja haviam d ito sobre a possib ilid ad e de h ab itação n as zon as tó rrid a s, sob re a e x istê n ­ cia dos A n típ o d as, sob re a navegação n os oceanos, sobre a im p o ssib ilid a d e de c ru z a r as co lu n a s de H ércules. Paracelso, o grande m édico do início do século XVI, não viu n os indígenas am ericanos traços h um anos. C om o os gigantes, os gnom os, as ninfas, “eles são se m elh an tes aos h o m en s em tu d o , exceto na alm a”. São como as abelhas, que têm o seu próprio rei, como os patos selvagens, que têm um chefe; e não vivem de acordo com a ordem das leis humanas, mas de acordo com leis inatas da natureza.

M esm o o h u m a n ista Ju an G inés de Sepúlveda, dentre m u ito s o u tro s escritores e filósofos e viajan­ tes, apresen to u os indígenas am ericanos com o um a subespécie de hom ens, capazes de qualq u er tip o de “perversidade abom inável”. O ex term ín io era ju s ­ tificado p ela cren ça de q u e os e x te rm in a d o s não pertenciam à espécie hum ana. T o talm en te d iv ersas são as afirm ações c o n ti­ das em u m a fam osa página dos Ensaios (1580), de Michel de M ontaigne, e que faz referência a tribos do Brasil: p ara ju lg ar os povos não eu ro p eu s não é possível nem lícito adotar o p o n to de vista e u ro ­ peu e cristão. A h u m an id ad e se expressa em u m a variedade infinita de form as e “cada qual den o m in a barbárie a q u ilo q u e n ão faz p a rte de seu s c o s tu ­ m es”. A defesa paradoxal do canibalism o, p resen te

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nos Ensaios, p arte deste princípio. E spelhando-se na to rtu ra infligida pelos p o rtu g u e se s aos indígenas, M ontaigne diz que há m ais barbárie em comer um homem vivo do que em com ê-lo m orto, em dilacerar com su p lícios e tormentos um corpo ainda sensível, assando-o len­ tamente, e jogando-o aos cães e porcos (o que não apenas lemos, mas vim os recentemente, não entre antigos inimigos, mas entre vizinhos e concidadãos e, o que é pior, a pretexto de um a crença religiosa), que em assá-lo e comê-lo depois de morto.2

Esse ensaio de M ontaigne n os lem bra as pala­ vras de G onzalo em A tempestade, de Shakespeare, n a q u al o n o m e d o d isfo rm e e selvagem C aliban é u m an ag ram a aproxim ado de canibal. N as pági­ nas ferozes de Modesta proposta (1729) do irlandês Jo n a th a n Swift, an te a terrível situação das crianças pobres, reaparece a referência à carne h u m an a com o alim ento. A coisa m ais horrível q u e p ode ser im a­ ginada - e é ex atam en te isso q u e Swift q u e r passar a seus leito res - n ão é m ais horrível q u e a situação atual em que, em m eio à indiferença geralizada, um a m u ltid ã o de m u lh e re s m iseráv eis p e d e m esm o la “a c o m p a n h a d a s de trê s, q u a tro o u seis crian ças m altrap ilh as”.3 U m a h o rd a prim itiva, dom inada p o r u m patriarca on ip o ten te que tem o p o d er absoluto e exclusivo e a posse de to d as as m ulheres do grupo, e stá no centro do grande relato histórico de Sigm und Freud sobre a

2 Montaigne, Saggi, p.272, 278. 3 Swift, Una modesta proposta e altre satire, p. 103.

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origem da civilização e da religião contido em Totem e tabu (1912-1913). O s filhos se reúnem e se rebelam contra seu pai, que os havia proibido de m a n te r rela­ ções sexuais com m ulheres da horda, o m atam , o cortam em pedaços e devoram seu corpo. O caniba­ lismo encontra-se nas origens da civilização porque o rem orso e um forte sen tim en to de culpa transfor­ m am o pai m o rto em um to tem ou espírito pro tetor do gru p o e dão lugar ao tab u do incesto, ou seja, a renúncia às m ulheres da horda e a instituição da exogamia, que exige o casam ento com u m a m ulher estranha ao próprio grupo social. Freud não criou ape­ nas um a nova im agem da criança, não afirm ou apenas que existem tendências infantis no adulto. Ele ta m ­ bém apoiou explicitam ente a ideia de que na criança reem ergem tendências características do m u n d o p ri­ mitivo e das form as m ais prim itivas de civilizações. A criança reto m a o cam in h o que foi seguido n a evo­ lução das espécies: h á u m m om ento de sua vida em que tende a colocar na boca tu d o o que lhe interessa. Existe u m a fase o ral ou ca n ib a lista do desenvol­ vim ento psíquico do indivíduo. Q u an d o escreve a Introdução à psicanálise (1915-1917), Freud reto m a e enfatiza conceitos relacionados ao lam arckism o e ao legado de Haeckel: ta n to o desenvolvim ento do ego quanto da libido “no fundo co nstituem u m a herança, repetições abreviadas do desenvolvim ento ocorrido na hum anidade desde sua origem d u ran te um longo espaço de te m p o ”.4 N o Vocabulário de psicanálise de

4 Freud, Opere, v.VI, p.406; v.VII, p.569; v.VIII, p.510, 256; ver Sulloway, Freud biologo delia psiche: al di là delia legenda psicoanalitica, p.218-25; 285-93; 419-34.

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Jean Laplanche e Jean-B aptiste Pontalis encontram os o verbete Incorporação, no qual está escrito: N a incorporação estão presentes, na verdade, três significados: obter prazer fazendo penetrar um objeto em si; destruir este objeto; assim ilar as qualidades desse objeto conservando-o dentro de si.5

Eu n ão sei se ítalo C alvino co nhecia tais te x ­ tos o u com quais o u tro s ele tin h a fam iliaridade. Ele disse em u m a conferência, em N ova York, que estava escrevendo u m livro p ara d e m o n stra r q u e o hom em co n te m p o râ n e o p e rd eu o u so d o s cinco sen tid o s. Mas tam b ém é im p o rta n te lem brar aqui seu conto “Sapore sap ere”, de 1982, e republicado em Sob o sol-jaguar, de 1986: Sob a pérgula de palha de um restaurante às mar­ gens de um rio, onde O livia tinha me esperado, nossos dentes começaram a mover-se lentamente com ritmo similar, e nossos olhares fixam-se um no outro com intensidade de serpentes. Serpentes mimetizadas na aflição de engolir-se reciprocamente, conscientes de sermos também devorados pela serpente que a todos nos digere e assim ila sem cessar no processo de in­ gestão do canibalismo universal que põe sua marca em cada relação amorosa e anula os limites entre os nossos corpos e a sopa defrijoles, o huacinango a la vera-

cruzana, as enchilades.6

5 Laplanche; Pontalis, Enciclopédia delia psicoanalisi, p.233. 6 Calvino, Sotto il solegiaguaro, p.48.

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A literatu ra sobre o canibalism o é m u ito vasta. M erecem u m lugar à p arte alguns textos da década de 1920 caracterizados p o r u m a forte e, m u itas vezes, violenta veia polêm ica, e pelo que se denom inava “recusa ex isten cial”. N e ste co n tex to (com o acon­ teceu na Itália com o fu tu rism o ), o positivism o, a erudição, a arte realista, o m éto d o histórico, a m e n ta­ lidade b u rg u esa e a dem ocracia se configuram com o infam es inim igos a serem d estruídos. O m ais fam o­ so desses tex to s é o Manifesto antropófago publicado, em 1928, pelo p o eta e p o lem ista brasileiro O sw ald de A ndrade, n o q ual o canibalism o é ap resen tad o como o m odo de o Brasil afirm ar su a grandeza con­ tra a dom inação política e cu ltu ral dos eu ro p eu s. Ali se fala de u m a Revolução C araíba m aior q u e a Re­ volução Francesa, ali se afirm a que os eu ro p eu s que chegaram ao Brasil “não eram cruzados, m as fugi­ tivos de u m a civilização q u e estam o s c o m en d o ”.7 A civilização eu ro p eia - afirm avam os m o d ern istas brasileiros - não devia ser rejeitada, m as absorvida, incorporada. O can ib alism o to rn a -se a ex p ressão desta tese: o europeu deve ser devorado. E scândalo e provocação parecem ser a m e lh o r form a de divulgar ideias. O e n s a io / m an ifesto de O sw ald de A n d ra­ de, publicado no p rim eiro n ú m ero (m aio de 1928) da Revista de Antropofagia, ap resen ta a seguinte d ata­ ção: “A no 374 da D eglutição do Bispo Sardinha”. Em 1554, este bispo fora realm ente com ido.

7 Ver Pincherle; Finazzi-Agrò (ed s.), La cultura cannibale. Oswald de Andrade: da “Pau-Brasil” al “Manifesto antropofago". Ver também Monfredini, 11cannibalismo.

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E ssa refeição teve u m notável sucesso. Tornou-se um sím bolo. Foi d iscutida m u itas e m u itas vezes em diferen tes países. U m exem plo: em 2 de m aio de 1996, em um cen tro de p esq u isa sobre teatro, em M ilão, foi a p re s e n ta d o “u m e sp e tá c u lo to tê m ico, prelógico ligado ao p en sam en to selvagem ” de M auricio Paroni de C astro (brasileiro de São Paulo, então com 35 anos), q u e cita, em apoio ao seu menu, o p rim eiro p o n to d o Manifesto de 1928: “Só a a n tro ­ p o fag ia n o s u n e . S o cialm en te. E c o n o m ic am e n te. Filosoficam ente”. E sse m an ifesto term inava, com o já se disse, com a deglutição de um bispo. N o artigo de apresen tação do espetáculo de 1996, publicado no Corriere delia Sera em 19 de abril d aq u ele ano, se diz: “Q u em tiver estôm ago siga em frente”, por­ que a p artir de 2 de m aio o q u e vai ser oferecido aos m ilaneses “é a experiência g astronôm ica m ais c h o ­ cante: com er e saborear os próprios se m elh an tes”.8 P odem os ain d a dizer: esta exaltação da an tropofa­ gia tem u m valor apenas sim bólico, pois refere-se à assim ilação de o u tras civilizações e a u m a “digestão” m etafórica de parte da civilização a qu e pertencem os. M as, dado seu valor publicitário, parece realm ente difícil não se lem brar, n e ste po n to , da definição freu­ diana de tabu: u m a proibição m u ito antiga im posta p o r u m a au to rid ad e e dirigida co n tra os desejos m ais in ten so s d os seres h u m an o s. O te m a do canibalism o sem pre foi rico em co n tro ­ vérsias, e h á m u itas opiniões divergentes a respeito das cu ltu ras prim itivas. Tam bém não h á dúvida de q u e as ferram en tas p ara conhecer o co m p o rtam en to

8 Manin, Tra macumbe e cannibaiismo, ecco l’appetito di Rabelais, Corriere delia Sera, 19 abr. 1996.

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das cultu ras m ais antigas se am pliaram m u ito . C om o escreveu Karl J. R einhard,9 o e stu d o dos coprólitos, ou seja, dos excrem entos antigos preservados devido à desidratação ou à m ineralização, p erm ite aos e stu ­ diosos identificar o tip o de nutrição e as espécies de p arasitas p re se n te s em u m a cu ltu ra pré-h istórica. U tilizando e sta s técnicas, R ein h ard co n sid era te r isentado os antigos anasazi que viveram n o planalto do C olorado após 1.200 d.C. (são tam bém cham ados povos antigos pelos seus atuais d escendentes diretos) da acusação (tam bém m u ito antiga) de te r sido um a civilização violenta e canibalesca. Eu acredito q u e ten h am razão os h istoriadores que, com o M ary Josep h in e M uzzarelli,10 defendem que o tem a do canibalism o talvez deva ser reavaliado, superando a dificuldade de ad m itir a existência de co m portam entos m u ito questio n ad o s pelos nossos antepassados. Em 1185, em C o nstantinopla, A ndrônico C o m neno foi dado em alim ento às m ulheres, “que o cortaram em pedaços e quem podia te r um deles d o ta m a n h o de u m g rã o -d e -b ic o o com ia, não restan d o qualq u er o ssin h o ou articulação sem ser co m id o s”; em 1343, em Florença, G uglielm o d’A scesi e seu filho G abriele foram en treg u es pelo duque de A ten as à m u ltid ã o en fu recid a e alguns “com eram su a carne crua e cozida”; em 1476, em Milão, os m ilaneses com eram o coração de A ndrea Lam pugnani, q u e tin h a a te n ta d o con tra a vida do

9 Reinhard, La leggenda dei pueblo cannibali, Darwin, 17, jan.-fev. 2007, p.44-54, originalmente publicado em American Scientist, v.94, 2006, p.254-261. 10 Muzzarelli; Tarozzi, Donne e cibo. Una relazione nella storia, p. 62-3.

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d u q u e G aleazzo M aria Sforza; em 1488, em Forli, o s c o rp o s d o s c o n ju ra d o s co m G iro la m o R iario foram com id o s pela m u ltid ã o .11 O n o n o co n to da q u a rta jo rn a d a do Decamerão de G iovanni Boccaccio in titu la-se: “Messer Guglielm o Roussillon dá a comer à sua esposa o coração de messer Guiglielmo Guardastagno, morto por ele e amado por ela, e ela, ao inteirar-se disso, se joga de uma alta janela e morre, e é sepultada com seu amante."

O prim eiro conto da m esm a jornada é assim apre­ sentado: “Tancredo, príncipe de Salerno, mata o amante de sua filha e envia-lhe o coração em um cálice de ouro; jogando sobre ele água envenenada, ela bebe e assim m orre.”

M ais d o q u e pelas te o ria s d os an tro p ó lo g o s e pelas análises d etalhadas dos h isto ria d o re s,12 o in te­ resse d os leitores e de u m vasto público foi atraído pelos episódios da crônica. N ela tiveram u m a grande re s s o n â n c ia o s e p isó d io s q u e, em u m sem in á rio realizad o n o C ollège de France em 1974, C laude Lévi-Strauss cham ou de “canibalism o por fom e”, e q u e deve ser colocado, com o u m terceiro tipo, ao lad o d o ex o can ib alism o (com e-se o in im ig o para

11 Ver Cantarella, Principi e corti. L’Europa dei XII secolo, p.31-2; e Cantarella, Cosa bolle in pentola, Medioevo, fev. 2002, p.62-6. 12 Ver, por exemplo, Di Maio, Il cuore mangiato: storia di un tema letterario dal Medioevo aWOttocento.

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incorporar suas qualidades) e do endocanibalism o, no qual, pela m esm a razão, se com e o corpo dos p ró ­ prios m o rto s.13 E ste terceiro tipo teve, ao longo da história, u m a grande difusão. Para nos lim itarm os aos tem p o s m ais recentes, ta n to na U crânia, d u ran te a escassez de alim entos dos anos 1932-1933, com o na China, d u ra n te a escassez de 1958 (referida an ­ te rio rm e n te a q u i n o c a p ítu lo “A fo m e ”), h o u v e num eroso s e d o cu m en tad o s casos de canibalism o. No já citado livro Cisnes selvagens narra-se a h istó ria de u m casal que vendia carne seca: tinham seqüestrado e assassinado uma grande número de crianças e depois vendiam sua carne, como carne de coelho, a preços exorbitantes; o casal foi executado e o caso abafado, mas se sabia que o assassinato de crianças era corriqueiro.14

D uran te o cerco de Leningrado, em 1941, se re­ talhavam bifes das nádegas o u pern as dos cadáveres congelados e a b a n d o n ad o s pelas ruas. D u ra n te o cerco, cerca de duas m il pessoas foram presas p o r terem com ido carne h u m a n a .15 Tratava-se de com ­ portam entos que se to rn aram , naquelas dram áticas e alucinantes situações, verdadeiras práticas ocultas, terríveis e provisórias. A resp eito dos casos de cani­ balismo ocorridos em 1933 no gulag da ilha de N azino (junto ao rio O b, n a Sibéria), existe u m livro bem docum entado de N icolas W erth ,16 ex-adido cultural 13 Ver Clément, Lévi-Strauss, p.89. 14 Jung, Cigni selvatici, p.297. 15 Salisbury, / novecento giorni: assedio di Leningrado, p.128. 16 Werth, L’isola dei cannibali. Sibéria, 1933: una storia di orrore airinterno deli' arcipelago gulag.

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da em b aix ad a fran cesa em M oscou e a tu a lm e n te p ro fesso r de h istó ria no C en tre N ational de la Recherche Scientifique (CNRS), em Paris. Em geral procura-se m inim izar ou apagar d a m e­ m ória esses episódios assu stad o res e essas tragédias coletivas q u e envolveram m ilhares de pessoas. Fala-se pouco sobre isso. São os h isto riad o res que se re­ ferem ao ho lo cau sto e aos exterm ínios, d iversam ente do q u e acontece d ian te de situações dram áticas que, rep en tin a e in esp erad am en te, atingem u m d ete rm i­ nado grupo de pessoas. E n tre os m u ito s exem plos de canibalism o cau­ sado p ela so brevivência o u p ela fom e, recorda-se com frequência do caso d o naufrágio do Medusa, u m navio francês (com andado p o r u m indivíduo incom ­ p e te n te e arro g an te) q u e tra n sp o rta v a soldados e civis p a ra o Senegal. N aufragou em ju lh o de 1816, a sessen ta m ilh as d a costa africana. Em u m a jangada p recária su b iram 147 pessoas. A pós tre ze dias fo­ ram resgatadas q uinze delas. O s náufragos m ata ra m com panheiros e os com eram . O fam oso e gigantesco qu ad ro (nove m e tro s p o r sete) de T h éo d o re Géricault (pintado e n tre 1818 e 1819, e conservado no Louvre) deu u m g ran d e im pacto à trag éd ia.17 Mas o caso m ais fam oso é o da aviação urug uaia, acon­ tecido n a ta rd e de 13 de o u tu b ro de 1972, em um a geleira n os A ndes, a q u a tro m il m e tro s de a ltitu ­ de, com u m a te m p e ra tu ra e n tre tr in ta e q u aren ta graus abaixo de zero. D as 45 pessoas que estavam a bordo, dezoito m o rre ra m im ed iatam ente; outras onze, p o r causa de lesões, poucos dias m ais tarde. As re sta n te s ouviram pelo rádio (que p o dia receber 17 Miles, La zattera delia Medusa.

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sinais, m as não tra n sm itir) q u e as b uscas tin h am sido in terro m p id as. A pós vários dias d o acidente, com eçaram a alim en tar-se com p eq u en o s pedaços de carne retirad o s dos cadáveres congelados de seus com panheiros de viagem . Eles foram resgatados, em 22 de dezem bro, m ais de dois m eses após a queda, depois q u e dois m em b ro s do tim e de rúgbi que via­ java n o avião conseg u iram chegar à planície, com um a m archa forçada de duas sem anas. Em 1974, foi escrito um livro, q u e insp iro u o film e Vivos, de 1993. N ando Parrado, um dos p rotagonistas, publicou em m aio de 2006 u m livro de m em órias in titu lad o Mila­ gre nos Andes. Em 2002, p erg u n taram -lh e se já tin h a pensado nov am en te em su a decisão. Ele respondeu: “Voltei a p en sar um m ilhão de vezes naqueles dias. Não faço o u tra coisa” (La Repubblica, 11 de o u tu b ro de 2002). N ão é possível deixar de destacar q u e d u ran te o século XX e o início do novo m ilênio houve um forte crescim en to de u m a m ó rb id a fascinação por episódios de canibalism o. E sta en co n tro u expressão principalm ente no extrao rd in ário sucesso dos livros e filmes focados na figura do p siq u iatra antropófago H annibal Lecter, in te rp re ta d o p elo a to r A n th o n y Hopkins n o film e dirigido p o r Ridley Scott. M as o serial killer q u e m a ta e com e p artes de suas vítim as não é u m a invenção literária o u cinem atográfica. Jeffrey D ahm er, d en o m in ad o “o canibal de M ilw aukee”, nascido em 1960, além de m atar e desm em b rar suas vítimas, com e p arte delas. E n tre 1978 e 1991, m atou dezessete pessoas. C o ndenado à p risão p e rp é tu a por quinze vezes (em W isconsin não há pena de m o rte), foi m orto, em 1994, por u m com panheiro de prisão. Armin M eiwes, 42 anos (d enom inado “o canibal de

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R o ten b u rg ”), é u m especialista em com putação. Em u m an ú n cio on-line p e rg u n ta se h á um jovem , en tre 18 e 30 e anos, d isp o sto a ser m o rto e com ido. E ntre as q u ase d u z e n ta s resp o stas recebidas encontra-se a de B arnd B randes, u m en g e n h e iro e létric o que se oferece n ã o p a ra ser boi de piran h a, m as p ara to rn ar-se u m jantar. Ele se e n c o n tra com M eiwes, p o r iniciativa d este, em m arço de 2001. Pede a M ei­ w es p ara co rtar seu pênis, q u e foi cozido e com ido p o r am bos. Passadas m ais de dez h oras após a in ­ gestão, com forte hem orragia, é m orto, e nos m eses s e g u in te s é c o rta d o e p a rc ia lm e n te c o m id o . E m u m a série de ja n ta re s à luz de velas, em um a m esa posta, o canibal com e cerca de v in te q u ilos d essa carne, aco m p an h ad o s de v inho sul-africano. M eiw es estava convencido de q u e tin h a adq u irid o algum as qualidades de B randes, incluindo a m elh o ria no co­ n h ecim en to de inglês. O s resto s m o rtais da vítim a foram e n te rra d o s n o jardim . O código penal alem ão não incluía o a to de canibalism o com o crim e. Um crim e ac o rd a d o e n tre d u a s p esso as, p e rg u n to u o juiz, p ode ser con sid erad o crim e? Em 30 de janeiro 2004, M eiw es foi co n d enado a o ito anos e m eio de prisão, m as depois, com o recu rso d a acusação, foi condenado, em 2006, à p risão perp étu a. M uito além d a im aginação e stá o caso do ja p o ­ nês Issei Sagawa, e stu d a n te da S orbonne que, em 1981, conv id o u à su a casa, em Paris, u m a jovem ho landesa, su a colega de classe. M atou-a, cozinhou-a e com eu várias p artes de seu corpo. C olocou os resto s do cadáver em duas m alas e te n to u descartá-las em um p arq u e parisiense. A polícia conseguiu ch eg ar ao a u to r e e n c o n tro u p a rte s d a v ítim a na geladeira. E m 1984, foi in tern ad o em u m hospital

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japonês e, p o r m ais incrível q u e pareça, foi liber­ tado em 1986. C oncedeu en trev istas, e seu crim e tornou-se tem a de um livro escrito p o r Ju ro Kara, conhecido escrito r jap o n ês, in titu la d o Ladorazione. Esse livro gan h o u o m ais im p o rtan te p rêm io literá­ rio do Japão, com venda de m ais de u m m ilhão de cópias. A revista m ensal parisiense Photo, q u e tin h a publicado a a s s u sta d o ra foto do corpo da v ítim a, “foi cen su rad a pela ju stiça e retirad a de circulação, m as tard e dem ais: 160.000 cópias já haviam sido vendidas”.18 Sobre os casos de canibalism o na U nião Sovié­ tica e n a R ússia, h á u m a ab u n d a n te literatu ra, cuja figura central é A ndrei C hikatilo (1936-1994), que com eçou a m atar em 1978, foi julgado e condenado por 52 assassinatos, em 1992, e executado, com um tiro n a nuca, em 1994. A este caso foram dedicados vários p ro g ra m a s telev isiv o s da R adio A ud izio n e Italia (RA1), conduzidos p o r M assim o Picozzi sob o título geral de A linha de sombra.

18 Martinotti, La Francia rimanda a casa il giapponese canibal, La Repubblica, 22 mai. 1984.

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N o livro escrito p o r Paul Lom bardi e in titu lad o Streghe, spettri e lupi mannari [B ruxas, e s p e c tro s e lobisom ens] n a rra -se q u e n as florestas d a França, d u ra n te o sé c u lo XVI, c o rria m c ria tu ra s m e ta d e hom em e m etad e lobo. Elas m atavam e m u ita s vezes d ev o ram su a s v ítim a s. Q u a n d o c a p tu ra d a s eram im ed iatam en te processadas e m u ita s vezes executa­ das. U m d esses p erso n ag en s confessou a um ju iz ter sido m otivado p elo desejo de com er carne h u m a n a crua. U m caso com o este, diz Lom bardi, n o s p erm ite ad en trar n u m m u n d o q u e aceitava a ideia de que a linha divisória e n tre o h u m a n o e o anim al p o d ia ser u ltrap assad a e n a qual “as alm as dos m o rto s vaga­ vam e n tre os vivos, as espécies se tra n sm u ta v a m en tre si e a v ic issitu d e d as fo rm as eram ta is q u e não havia separações definitivas en tre as co isas”.1

1 Lombardi, Streghe, spettri e lupi mannari. 'Tarte maledetta" in Europa tra Cinquecento e Seicento, p. 128.

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H avia q u e m d e fe n d e sse q u e os m o n s tro s m eta d e h o m em e m etad e anim al d escendiam dos sodom itas e dos ateu s, os quais, co n trarian d o a natureza, a casalav am -se com an im a is. N o in ício d o século XVII, a lic a n tro p ia já n ã o e ra m a is a c e ita p elo s e u ro p e u s cultos. O n d e se apoiavam os núcleos de ideias e crenças difundidas? A creditar n a bruxaria, p o r exem plo, significava acreditar, em p arte ou na to talidade, n as seg u in tes coisas: seres h u m a n o s que voam , q u e se acasalam d u ra n te a n o ite com o diabo, q u e se tran sfo rm am em anim ais (geralm ente gatos ou lobos), q u e causam doenças, tem p estad es, fome. A crença n a b ru x aria n ão é u m fen ô m en o re strito às sociedades prim itiv as e bárbaras: d eram -lhe crédito p erso n ag en s com o Jaim e I da In g laterra e o grande a u to r d e ciências ju ríd ic a s e p o líticas Jean Bodin. M uitos e lem en to s d o m u n d o das b ru x as e dos lobi­ so m e n s a in d a p e rm a n e c e m e n tre n ó s. O caso do p ro g ra m a d o r d e c o m p u ta d o r de 4 0 a n o s d e San D iego, Califórnia, q u e em 2001 an u n cio u ao m u n d o q u e estav a em vias de co m p letar seu so n h o de to r­ n a r-se u m tig re , n ã o tra z g ra n d e s p re o cu p açõ es. A pesar de te r g asto cem m il dólares, o p o bre coitado conseguiu m a n d a r afiar to d o s os d en tes, fazer um a tatu ag em com listras p retas e am arelas em to d o o corpo e im p lan tar sob o nariz longos pelos de látex. O m u n d o d os lo b iso m en s e das b ru x as sobrevive, na verdade, em algo m u ito m ais d ram ático e perigoso. À s v ezes eles v o lta m . O r e to rn o d o s m o rto s e n tre os vivos é u m a ideia m u ito antiga, m as (so­ b re tu d o nos dias de hoje) é im p o rtan te lem brar que com o e stá escrito em u m livro fu n d am en tal sobre o a ssu n to - “os q u e re to rn a m ex istem apenas n a im a­ ginação d os vivos”. S egundo a tradição, os m ortos

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reaparecem , e n tre seus am igos, d u ra n te o lu to por sua m o rte. Isso acontece p rin cip alm en te q u a n d o o rito funerário de passagem da vida p ara a m o rte não é realizado ou q u an d o é m alfeito. N a A lta Idade M é­ dia, a ideia d o re to rn o dos m o rto s e n tre os vivos é considerada u m a crença pagã pela Igreja e p o r San­ to A gostinho. A penas os san to s podem reaparecer. A pós o século X, e em p articu lar e n tre os séculos XII e XIII, o m u ro erg u id o p o r A gostinho com eça a ruir até d esaparecer com pletam en te. O s m o rto s fa­ lam com os vivos e m seus so n h o s e se preocupam com eles, q u e re m aju d á-lo s e p ro c u ra m co m u n icar-se com eles. A contecem tam b ém aparições co­ letivas, com o a do M esnie H ellequin, u m g ru po de cavaleiros negros b a ru lh e n to s e aterro rizad o res que chegam do além .2 N o cen tro d o m ito do vam piro e stá o sangue, que não é apenas u m líquido averm elhado q u e flui d e n tro d o co rp o . D esd e o s te m p o s a n tig o s, n o s m itos e ritu ais q u e envolvem o sangue e stá p re sen te tan to a ideia de q u e ex istem pessoas q u e se a lim e n ­ tam de sa n g u e h u m a n o , co m o a ideia de q u e u m a o fe rta d e s a n g u e p o d e p u rific a r u m a p e s s o a ou um a co m u n id a d e e c o n trib u ir p ara a su a salvação. Em a m b ie n te s c ris tã o s d a e ra m ed iev al su rg e o d en o m in ad o libelo de sangue, v o ltad o p a ra os ju d e u s, vistos co m o seres e s tra n h o s e inim igos, e acu sados de a lim e n ta r-se com san g u e cristão . Em Perúgia, em 1471, frei F o rtu n a to C oppola afirm a que

2 Schmitt, Les Revenants. Les Vivant et les morts dans la société medievale, p.65.

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os judeus desta cidade e diocese, como cães vorazes, escancaram suas goelas famintas e insaciáveis não só para devorar a riqueza dos pobres, mas sobretudo para beber seu sangue, sugado de suas veias.3

Sobre e ste a ssu n to foi reeditado, em 2007, u m livro de F u rio Jesi in titu la d o Ripensare l’accusa dei sangue. La machina mitologica antisemita [R econsidera­ ções sob re o libelo de sangue. A m áq u in a m itológica an tisse m ita ], T in h a sid o publicad o , em 1973, sob um títu lo d iferente: Uaccusa dei sangue: il processo agli ebrei di Damasco; metamorfosi dei vampiro in Germania [O libelo de san g u e: o ju lg a m e n to d o s ju d e u s de D am asco; m etam o rfo se d o vam piro n a A le m a n h a]. E n tre os m u ito s exem plos d e oferen d a purificatória de sangue, p o d e-se reco rd ar q u e n o d ia de Sábado S anto em N ocera T erinese, n a C alábria, a procissão de N o ssa S en h o ra das D ores te m a participação dos ch am ados v a ttie n ti.4 Eles trazem u m a coroa de e sp i­ n h o s n a cabeça e se autoflagelam com o cardo, um in stru m e n to especial feito com u m pedaço de cortiça com tre z e pedaços de v idro o u pregos. Eles se flage­ lam p u b licam en te com m o v im en to s sincronizados e d erram am seu san g u e aos p és da V irgem .5 O sangue q u e sai d as feridas é asp irad o com u m p edaço de 3 ToafF, Il vino e la carne. Una comunità ebraica nel Medioevo, p. 152; ver também Taradei, Uaccusa dei sangue: storia politica di un mito antisemita. Ver também ToafF, Mangiare allagiudia. Cucine ebraiche dal Rinascimento all'età moderna; ToafF, Pasque di sangue. Ebrei d ’Europa e omicidi rituali. 4 Flageladores. (N. T.) 5 Faeta, La rappresentazione dei sangue in un rito di flagellazione a Nocera Terinese. Scrittura, teatro, imagine. In: Schiavoni (ed.), Il piacere delia paura. Dracula e il crepuscolo delia dignità umana, p.57-67.

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cortiça cham ad o “ro sa ”, u sad o p ara deixar m arcas nas casas dos q u e ajudam os vattienti a lim p ar suas feridas com vin h o e vinagre d u ra n te a flagelação. O s vam piros alim en tam -se de sangue h u m a n o e não têm n ad a a ver com u m ato de purificação. C om o o corpo dos santos, tam b ém o dos vam piros n ão se decom põe n o tú m u lo , n ão p o r von tad e divina, m as do diabo. O s vam piros vêm do m u n d o dos m ortos: à noite, saem d os tú m u lo s e atacam os vivos p ara alim entar-se de seu sangue. N o caso do canibalism o, o nosso corpo p ode ser o bjeto d o ap etite de o u tras pessoas (no se n tid o original e n ão m etafórico). Os vam piros, n o e n ta n to , têm um desejo insaciável ape­ nas pelo sangue. Por sorte, ao co n trário d os canibais, q u e foram e são p erso n ag en s reais, os v am piros são p erso n ag ens fictícias. A figura d o vam piro, de origem incerta, e que está p re se n te em q u ase to d as as cu ltu ras, tem características q u e são freq u e n te m en te salientadas: não é u m vivo n e m u m m o rto , m as u m ser m o rto -vivo e co n d en ad o a essa p erm an en te am bigüidade. Há apen as u m a m an eira de livrar-se de vam piros: fincá-los ao chão com u m pedaço de p au atravessado no coração, o u co rtan d o suas cabeças e arran can d o o coração d o peito . E sta é a ún ica coisa que p ode acon­ tecer a u m vam piro, e d ia n te d esse fato, q u e m arca o final de su a im ortalid ad e, os vam piros (de m u ito s rom ances e m u ito s film es) situ am -se, n o rm alm en te, entre o m ed o e a inconfessa esp eran ça de se verem livres do p esadelo da vida eterna. A im ag em d o v am p iro nasce a p a rtir de u m a crença popular, m u ito d ifu n d id a n a E uropa C en tro-O riental, p rovavelm ente ligada a m itos tib etan o s e indianos e q u e d e u origem , especialm ente d u ra n te

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o século XIX, a u m a rica p ro d u ção literária e, p o s­ te rio rm e n te , cin em ato g ráfica. U m ex c e le n te livro sob re ap ariçõ es de e sp írito s e v am p iro s foi p u b li­ cado n a França, em 1746, com u m a edição corrigida d e 17 5 1 . Q u a n d o A g o s tin h o C a lm e t, seu a u to r, p u b lico u seu livro, V oltaire estav a em p len a ativi­ dade, e 1751 é ta m b é m o an o d o la n ç a m e n to do p rim e iro v o lu m e da g ran d e E nciclopédia de D idero t e D ’A lem b ert, u n a n im e m e n te co n sid erad a u m m o n u m e n to da filosofia ilu m in is ta e d a Idade da Razão. E preciso ab an d o n ar os esq u em as de Bignami e perceber q u e n o s séculos p assados (com o tam bém hoje) coexistem p ersonagens e ideias em cuja relação é difícil de se acreditar. Em 1897, foi p u b licad o Dràcula de Bram Stoker (u m m a te m á tic o fo rm ad o n o T rinity C ollege, D ublin), ro m an ce q u e e stá na origem de u m a q u a n ­ tid a d e in te rm in á v e l d e liv ro s e film e s e q u e foi d efin id o p o r M assim o In tro v ig n e (um d o s p rin c i­ pais especialistas e m o cu ltism o m o d ern o ) com o “o livro p o ssiv elm en te m ais lido n a h istó ria d a cu ltu ra o c id e n ta l” . O livro ta m b é m d e u o rig em ao film e (m udo) Nosferatu (1922), a o b ra-p rim a de Friedrich W ilhelm M urnau. C om b ase n o su cesso ex trao rd in ário o b tid o p o r m u ito s livros e m u ito s film es, o v am p irism o to rn o u -se m oda. D ia n te d e u m v am p irism o n a m oda, as receitas trad icio n ais p a ra livrar-se dele n ão se to rn a m eficazes n e m fáceis de serem p o sta s em prática. N a tese de d o u to ra d o d efen d id a em 2005 n a U niversida­ de de Palerm o, M ichele C o m eta expôs claram en te as fontes e a ideologia d o v am p irism o co n tem porâneo, ilu stro u as d istin çõ es e n tre o v am p irism o histórico, o m o d ern o e o p ó s-m o d ern o , d eix an d o claro q u e a

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ú ltim a e m ais difu n d id a e b em -sucedida im agem do vam piro o ap re se n ta com o u m ser frágil e psicologi­ cam ente frag m en tad o q u e n ão precisa m a ta r p a ra se alim entar, e q u e a n ecessidade de sangue h u m an o pode ser su p rid a com bolsas de sangue co m u m en te usadas em tran sfu sõ es o u “p o r d oadores q u e livre­ m en te cedem p a rte do fluido vital em tro ca do prazer obtido p ela m o rd id a do v am p iro ”. C aso se to rn e di­ fícil o u im possível o b te r o sangue, é sem p re possível “com prar u m a serp en te, dom esticá-la, e depois, fin­ gindo co m p rar cobaias p ara alim entá-la, usá-las para a p ró p ria alim en tação ”. U m a única colher de sa n ­ gue p o r d ia p ode aju d ar u m pálido jo v en zin h o ou um a p álid a m o c in h a a se s e n tire m d iferen tes, inconform istas, n ão alinhados, livres de rep ressões e proibições im p o sta s p o r u m a sociedade a ser d e s­ prezada, q u e não m erece ser respeitada, e n a qual é im possível se inserir. A conclusão é clara: o vampiro moderno, o H LV , o bebedor de sangue, não habita um castelo remoto e ruínas situadas nas m on­ tanhas, não caçam suas vítim as entre os camponeses, m as freqüenta discotecas e clubes noturnos. Seu rosto, empalidecido, é ilum inado por luzes artificiais e interm itentes. Ser um vampiro hoje é a dem ons­ tração de quebra dos tabus, um distanciam ento das massas, um a liberdade de comportamentos sem inib i­ ções, sem regras e sem consciência... O sangue pode tornar-se um a espécie de toxicodependência da qual o H L V não pode escapar, mas o vampiro moderno não mata suas vítim as. A quantidade de sangue de que um H L V “necessita” cabe numa colher; de resto, alim enta-se norm alm ente... O que im pulsiona e o que sente um H L V ao beber o sangue do doador?

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Para m uitos deles é um a experiência m uito m ais pro­ funda que a sexual, m ais íntim a, m ais envolvente, m ais com pleta.6

A sigla HLV é a ab rev iatu ra de Human Living Vampire, o u seja, “v am piro h u m a n o v iv en te”. N ão se fala m ais de seres h u m a n o s im o rtais o u de criatu ras que n ão m o rre ra m , m as de seres h u m a n o s “se m elh an tes em to d o s os asp ecto s às p esso as co m u n s q u e en co n ­ tra m o s to d o s os d ia s”. A en erg ia vital q u e os anim a p recisa ser co m pletada: “U m HLV pode, p o rta n to , ser co n sid erad o u m ‘p re d a d o r’ de energ ia q ue sen te necessidade, p a ra seu p ró p rio bem , de canalizar para si a ‘força v ital’ de o u tro s ”.7 A pós te rm o s traçad o este re tra to u m ta n to ca­ seiro de u m v am p iro “d o m esticad o ”, que atinge u m su p ero rg asm o com u m a colher de san g u e d iária de u m p o r q u in h o -d a -ín d ia , q u e m p o d e ria im a g in a r que, n a p rim e ira d écada do século XXI, d e sp o n ta ria u m a v erd ad eira p aix ão p elas h istó ria s e aven tu ras dos vam p iro s capazes de se tra n sfo rm a r em lobos ferozes? Crepúsculo, o p rim eiro volum e de u m a saga escrita p o r S tep h en ie Meyer, foi lançado n os E sta­ dos U nidos em 2005. Foi trad u zid o em v in te línguas e foram v endidas cinco m ilh õ es e m eio de cópias. U m g ran d e n ú m e ro de fãs esp e ra a n sio sa m e n te o la n ç a m e n to de cad a novo livro. O q u a rto livro da série, após 34 h o ras do lançam en to , tin h a vendido u m m ilh ão e tre z e n to s m il exem plares. O p rim eiro film e, q u e teve u m e stro n d o so sucesso, foi lançado em 200 8 . A tu alm en te, e sta m o s n o q u a rto film e. N a

6 www.cesnur.org/2006/tesi_cosenza/vampiro.htm. 7 http://vampiria.forumcommunity.net/?t=8375673.

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escola da p eq u en a cidade o nde passou a viver, Isabella Sw an enco n tra-se com o pálido e en can tad o r E dw ard C ullen, u m vam piro de 108 anos, m as que aparen ta te r apen as dezessete. E dw ard é atraíd o pelo sangue da m en in a, m as se abstém de m ordê-la. De início assem elha-se a u m vam piro vegetariano, d e­ pois se a p re se n ta com o u m v am piro incom odado, com u m incôm odo que vira sofrim ento, e é apenas no q u a rto film e que se decide finalm ente pela fatí­ dica, d ram ática e fatal m o rd id a.8 N ão p o d eríam o s concluir e ste capítulo sem fa­ zer u m a m enção à p resen ça do v am piro n a “a lta ” cultura, e n te n d id a com o d iv ersa d a c u ltu ra d e n o ­ m inada "p o p u la r”. Em O castelo dos destinos cruzados, de ítalo C alvino, u m rei e u m bufao veem u m a m u ­ lher b e b e n d o u m cálice de san g u e ju n to com u m cadáver q u e tin h a acabado de sair de u m tú m u lo . Com u m a alusão im plícita ao Capital de M arx, Pasolini, em 1968, identifica o vam piro com a b u rg u esia m ordendo o pescoço da v ítim a “p o r u m puro, sim ­ ples e n atu ral g osto de vê-la to rn ar-se pálida, triste, feia, d eb ilitad a, co n to rcid a, co rro m p id a, in q u ie ta, cheio de se n tim e n to s de culpa, calculista, agressiva e te rro rista com o ele”.9 O s livros de In tro v ig n e,10 de G iovannini11 e, principalm ente, o já citado e m u ito

8 Ver www.twiljghtitalia.com. 9 Marx, II capitale, v.I, p.253; Pasolini, II perchê di questa rubrica, ora in "II caos", p.39; ver Giovannini, II libro dei vampiri: dal mito di Dracula allapresenza quotidiana.

10 Introvigne, La stirpe di Dracula. Indagine sul vampirismo daWantichità ai nostri giorni; Introvigne, Cattolici, antisemitismo e sangue. II mito dell’omicidio ritual.

11 Giovannini, II libro dei vampiri.

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im p o rta n te de F u rio J e s i12 serv em p a ra m o s tra r a c o m p le x id a d e e a d ific u ld a d e q u e en v o lv em e ste te m a q u e g an h a d esta q u e agora n a Itália.

12 Jesi, Laccusa dei sangue: il processo agli ebrei di Damasco; metamorfosi dei vampiro in Germania; reeditado com o título Ripensare l’accusa dei sangue. La macchina mitologica antisemita.

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XII A obsessão pela comida

N as ú ltim as décadas - p o r razões q u e n ad a têm a ver com os e stu d o s de h istó ria, de antropologia ou de teologia - , o p ro b lem a da com ida, da alim en ­ tação, d o s c o s tu m e s a lim e n ta re s g a n h o u g ran d e notoriedade. E stim u lo u o su rg im en to de m o n tan h as de páginas, artigos, estu d os, entrevistas, encontros, congressos, p rogram as de rádio e televisão, reflexões de am adores e especialistas. O te m a foi d iscu tid o por tuttologos,1 filósofos (os dois grupos te n d e m a se unir), jo rn alistas, sindicalistas, asp iran tes a polí­ ticos, políticos, cro n istas e p u b licitários, teólogos, m édicos, d e fen so res d a m ed icin a a ltern ativ a e da antiglobalização, rom an cistas e am adores. Se alguém pesquisar sobre/oocZ diet no Google irá en co n trar 16,3 m ilhões de páginas (em inglês, alem ão, francês, ita ­ liano) dedicadas à dieta. Se alguém p esq u isar sobre

1 Pessoas que se pronunciam sobre temas de todos os campos do saber. (N. T.)

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o a ssu n to apen as em italiano (indicando as palavras “co m id a”, “alim en tação ”, “d ie ta s”), irá se d ep arar com 3 7.600 páginas. E xiste n a televisão italian a um canal via sa té lite d edicado esp ecificam en te à cu li­ nária, cham ad o G am bero Rosso. Em to d o o m u n d o e x iste m p ro g ra m a s d e te le v isã o q u e a p re s e n ta m e ilu stra m re c e ita s d e com ida. E x istem in ú m e ra s revistas q u e tê m u m a seção dedicada à culinária. A linguagem d os especialistas, q u e p o d e ser com pa­ rada, com o n o caso dos vinhos, à d a crítica literária, atingiu, com o n o caso d o azeite de oliva, níveis real­ m e n te in co m u n s de refin am en to e sofisticação. E o que p ode ser visto n o seg u in te exem plo escolhido aleatoriam ente: A vista apresenta-se com um a forte e lím pida cor amarelo-dourado, com reflexos verdes. Ao olfato oferece-se com plexo e delicado, dotado de amplas notas vegetais de ervas cortadas, alcachofra e elegan­ tes aromas de menta e alecrim ao final. Ao paladar é intenso e pleno, complexo e envolvente, caracterizado por notas ricas de tomate verde e amêndoa doce. O amargo e o picante bem definidos e dosados. Para saber mais sobre a técnica de degustação de azeite, clique aqui.

C onfesso q u e n ão tive a coragem de clicar. É cada vez m ais co m u m ligar a TV e n o s depa­ ra rm o s co m u m c o z in h e iro o u u m a c o z in h e ira , cercados p o r p erso n ag en s de vários tipos, falando, explicando, o rie n ta n d o e e n sin an d o com u m a a rro ­ g a n te se g u ra n ç a c e rta m e n te co m p aráv el à q u e é, g e ra lm e n te (e in ju s ta m e n te ) , a trib u íd a ao s p rê ­ m io s N o b el. O n ú m e ro de outdoors e c o m erciais

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que sugerem o q u e com er e o q u e b eb er é extraor­ d in a ria m e n te alto, com parável apenas ao n ú m e ro de outdoors e de com erciais q u e ensinam com o nos m an te r lim pos e cheirosos. E cada vez m ais difícil com er em u m re sta u ra n te sem te r que ouvir antes de cada p ra to (depois de u m pedido p erem p tó rio de silêncio aos com en sais) u m a p e q u e n a lição sobre com o os p rato s foram prep arad o s e sobre o q u e eles realm en te são - p a ra além das aparências. A d istin ­ ção kan tian a e n tre fen ô m en o e noumeno to rn o u -se parte c o n stitu tiv a d o rio de d iscu rso s sofisticados e lev e m e n te p o m p o so s q u e su b s titu íra m a p ro sa sábia, clara e m o d esta q u e encontrávam os em o u tro s tem pos (em u m esplêndido e elegante italiano) n o livro de A rtu s i.2 Por vezes, com o p o d e aco n tecer nestes casos, perd e-se to d o o sen so das proporções e se passa a afirm ar q u e um discurso p ro n u n ciad o em A bano Terme, n u m congresso da Arcigola Slow Food, “é u m a espécie de m an ifesto do P artido do Paladar, q u e provavelm ente será lem brado n o fu tu ro da m esm a form a q u e se lem b ra hoje de O manifesto comunista de Karl M arx”.3 A lessan d ra G uigoni, q u e d eu im p o rtan tes con­ trib u içõ es à an tro p o lo g ia , d efin iu com clareza as diferentes a titu d e s q u e caracterizam a situação nas últim as décadas. Iden tifico u q u a tro v e rte n te s d is­ tin ta s, com d iv e rsa s ligações o u o p o siçõ es e n tre si: 1) a v erten te da autenticidade, “valorizada pelos que oferecem p ro d u to s regionais au tênticos, p rato s 2 Pellegrino Artusi (1820-1911), autor de La scienza in cucina e 1’arte de mangiare bene, best-seller da culinária italiana lançado em 1891. (N.E.) 3 h ttp ://w eb w in efo o d .co rriere.it/2 0 1 0 /0 5 /1 7 /slo w _ fo o d nasce_il_partito_del/.

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tra d ic io n a is e reg io n ais, u m m o v im e n to q u e têm ad ep to s ta n to n as grandes cidades, e n tre pessoas de classe m éd ia e alta, cansados de se alim en tar com p até e canapés d a nouvelle cuisine, com o nos pequ en o s cen tro s agrícolas, o nde se tem o rg u lh o das m assas e queijos locais”; 2) a v e rte n te étnica, o u dos a m a n ­ tes das cozinhas étnicas concen trad as nas cidades, pro cu rad as esp ecialm en te p o r jovens e in telectuais, “sem p re p ro n to s a m is tu ra r m acarrão com m o lh o de ‘chiles, b u rrito s ’ com parmigiana delia mamma"; 3) os am an tes do M cD onald e sim ilares, a cham ada v e rte n te fa st food “q u e p e rm e ia to d a s as id a d es e estra to s sociais, u m a vez q u e o M cD onald aten d e e stu d a n te s d o e n sin o m édio, trab alh ad o res, p e q u e ­ nos em p resário s e ad m in istrad o res, o m b ro a om bro; 4) a v e rte n te d os “defen so res d a m acrobiótica, da a g ric u ltu ra b iológica e b io d in âm ica, com os seu s ferozes adversários, políticos inclusos, q u e pode ser ch am ada de v erten te biológica versus biotecnológica”,4 G uigoni p ro v av elm en te e stá certa ao d efender que, n o terceiro m ilênio, a alim entação será u m dos grandes cenários da antropologia. Para os h o m en s com uns, os h o m en s d a rua, e talvez até m e sm o para os h isto riad o res d a “longa d u ração ” e p ara os his­ to ria d o re s d as ideias (q u e g o stam de d e sta c a r os “m o v im e n to s p e n d u la re s ” p re s e n te s n a h istó ria ), fica u m a im pressão : a de q u e em n o sso m u n d o o nde h á ab u n d ân cia de alim en to s - a co m ida tenha

4 Guigoni, Food, drink and identity, Europaea, VII, 1-2, 2001, p.209-11; Guigoni, Per una etnografia dei quotidiano. Dis­ ponível em: www.fortepiano.it/PagineDelTempo/Materiali/ pdtmat027.htm.

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se to rn a d o - p arad o x alm en te - algo m u ito sem e­ lh an te a u m a obsessão. A lgum as das coisas possíveis tom am -se, às vezes, coisas reais. A pós ter traçado essas linhas, aprendi que nos ú ltim o s dez anos gan h o u d estaque u m a nova obsessão relacionada à com ida. N o Observer de 16 de agosto de 2009, A m elia Hill refere-se a u m a grande difusão de u m a form a de tra n sto rn o a lim e n ta r p re ­ sente em pesso as de am b o s os sexos, com boa cul­ tura, com m ais de 30 anos, que ad o tam u m a form a exasperada de salutismo, que possu em u m a necessi­ dade obsessiva de d istin g u ir os alim entos certos ou corretos (daí o nom e ortorexia) dos alim entos p erigo­ sos e, p o rtan to , a serem excluídos. Steven B ratm an, que c u n h o u o te rm o em 1997, in titu lo u seu livro de 2 0 0 0 de Health Food Junkies. Overcoming the Obsession with Healthful Eating, o u seja, Viciados em alimen­ tos saudáveis. Vencendo a obsessão pela comida saudável. Em nom e d a saúde e de convicções sensatas se pode acabar c o n stru in d o d ietas perigosas p ara a saúde: o peixe contém m ercúrio; n ão se p ode com er carn e de vaca louca; a gripe aviária fez o m esm o com o frango; o salam e causa espinhas que a rru in a m a pele; p o d e ­ mos nos engasgar e nos sufocar com a g o rdura das fatias de presunto; o açúcar causa diabetes; a m a n ­ teiga au m e n ta o colesterol; saladas e legum es estão cheios de pesticidas. O s ortoréxicos estão absoluta e fanaticam ente convencidos de terem razão, olham com p resunçãd (e às vezes com desprezo) p a ra os nor­ mais e ignorantes “com edores”, seres inferiores que não são capazes de te r autocontrole: levam suas cren ­ ças ao extrem o. Pensam em com ida com frequência e gastam m u ito tem p o nisso. D e fato, é verdade que o extrem ism o é u m a doença.

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XIII Apocalípticos da globalização

Eu co m p artilh o com m u ito s o u tro s italianos a im pressão de viver d e n tro de u m a sociedade q u e refiro-m e à cozinha e à g astro n o m ia - valoriza cada vez m ais o reg io n alism o . D ep aram o -n o s com u m volum e - q u e m u ito s julgam excessivo - de páginas de revistas e jo rn ais e de p rogram as de televisão que explicam, co m en tam e exaltam tradições culinárias específicas, b em com o as m assas, assados, queijos, doces, frutas, vinhos característicos de u m a região, de u m a localidade já conhecida, m as com d estaque cada vez m ais freq ü en te de cidades pequenas e até então d esco n h ecid as q u e b u scam ab rir espaço no m undo da gastronom ia. Já u ltrap assei os 85 anos de idade e p o sso a te sta r q u e n u n ca vi tan tas p ro postas com ta n to s d etalh es sobre a cozinha e a gastro nom ia à disposição de cada cidadão q u e tem acesso ao rádio e à televisão. Por o u tro lado, en co n tram o s au to res q u e pensam que estam o s sen d o levados, “sem q u e n o s dem os

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conta, a u m a espécie de p erd a de percepção, princi­ p alm en te n o q u e se refere ao em p o b recim en to dos sabores e à padronização do p a la d a r”. Som os todos vítim as in o c e n te s e in co n scien tes, com exceção, é claro, dos p oucos e corajosos c o m b aten tes q u e p er­ ceberam q u e som os v ítim as e q u e p resu m em saber com clareza e lucidez de quem som os vítim as. É p re ­ ciso d izer? S om os escravos in c o n sc ie n tes (isto é, sem n os aperceb er disso) p o rq u e n ão e n ten d em o s ain d a qu e e stam o s vivendo “n u m a época de dom ínio cap italista sobre to d o o pro cesso da vida n a tu ra l”.1 E q u e seria, ap ro x im ad am en te, a m esm a en tid ad e que, h á poucas décadas atrás, era conhecida com o o estad o im p erialista das m ultin acio n ais. Ao co ntrário do q u e acontecia n a época de Freud, o m al-estar so ­ cial (segundo a p ró p ria au to ra) deveria ser atrib u íd o não m ais à ren ú n cia à satisfação dos in stin to s, m as ao “im perativo de gozo q u e caracteriza o superego social d o capitalism o tard io e pó s-m o d ern o e à p erso ­ nalidade n arcisista co n te m p o râ n e a ”. O p redom ínio do capital sobre a n a tu re z a te m co nseqüências d ra­ m áticas: a p rim eira, n e ste te rre n o , é “a contaminação de to d a a cadeia a lim e n ta r”.2 D istan cia-se de afirm ações “filosóficas”, g en é­ ricas e n ão controláveis o livro de Rajeev C harles Patel, in titu la d o Stuffed and Starved, o u seja, Obesos e famintos, publicado em 2007. O livro foi im ed ia­ ta m e n te tra d u z id o p a ra o ita lia n o p ela F eltrinelli com o títu lo (na m in h a opinião, in ap ro p riad am en te 1 Platania, Labirinti dei gusto: dalla cucina degli dèi alihamburger di McDonald, p.10-1. À página 137 se descobre que a expressão é de Pietro Barcellona. 2 Platania, op. cit., p.129, 143; ver também Pollan, II dilemma dell’onnivoro; Biasin, / sapori delia modernità. Cibo e romanzo.

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m odificado) I padrotii dei cibo [O s d onos da co m id a]. A tese central do livro é a seguinte: vivem os em u m a época em q u e a Terra p ro d u z m ais alim en to s do que nunca; n o en ta n to , nos en co n tram o s d ian te de u m a situação paradoxal: u m bilhão de pesso as têm peso acim a d o n o rm al (com risco de sofrer de d iabetes ou de doenças co ronárias), en q u a n to cerca de oitocentos m ilhões de p esso as não têm o suficiente p ara com er e estão p assan d o fom e. O sistem a m un dial de a lim e n to s “é in flu e n c ia d o p elas c o m u n id a d e s cam ponesas, pelas m ultinacionais, pelos governos, pelos ativistas e pelos m o v im en to s sociais”. A som a de decisões leva à saciedade de alguns e à fom e de o utro s, a pesso as o besas e em pobrecidas em am bos os extrem os, e “a u m p u n h a d o de arq u iteto s d o sis­ tem a q u e n ad am em u m m ar de d in h eiro ”. A causa da fome, do im pressionante crescim ento do núm ero de suicídios en tre agricultores, da destrui­ ção de m uitas com unidades rurais se deve, segundo Patel, principalm ente, ao fato de que vivem os em um sistem a a lim e n ta r global “co n tro lad o pelas m u lti­ nacionais q u e criam o efeito chicote3 n a cadeia de d istrib u iç ã o ”. Patel n ão p e rte n c e à v a sta gam a de la m e n ta d o re s a p o c a líp tic o s. E le sab e q u e e n te n ­ der e realizar d iag n ó stico s exige tem p o , paciência e c o n h e c im e n to s d e ta lh a d o s; sab e q u e n ã o b a sta indignar-se, m as q u e é n ecessário ap resen tar esco­ lhas p recisas e difíceis. Seu livro é m u ito d en so , cheio de dados, descrições de situações e indicações de problem as. Patel é tam b ém m u ito o tim ista em relação à p o ssibilidade de g aran tir a soberan ia dos

3 Na economia, o chamado “efeito chicote" caracteriza a difi­ culdade de se alinhar a demanda à oferta. (N. T.)

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indivíduos e de to m á-los m u ito m ais q u e apenas con­ sum idores. A credita ainda q u e é possível “re e stru tu rar o sistem a alim en tar” e redim ensionar as relações de pod er que, segundo ele, “exploram as pessoas tan to n o cultiv ar q u a n to n o c o m e r”. Sabe q u e “viver de form a diferente” é u m a tarefa difícil e afirm a tam bém q ue “se não tentarm o s, o fracasso é garantido”.4 Filho de um pai das Ilhas Fiji e de u m a m ãe queniana, Patel e stu d o u em O xford, tra b a lh o u n o Banco M undial e, aos 38 anos, em 2010, to rn o u -se u m cidadão dos E stados U nidos. O d e n so livro de Patel é u m a exceção. N este tipo de lite ra tu ra , as análises são m u ito raras, p red o m i­ n a n d o as críticas e, p rin c ip a lm e n te , a indignação. N a v a sta lite r a tu r a d e p ro te s to a n ti-M c D o n a ld ’s, u m dos exem plos típicos d e ste tip o de lite ra tu ra é o livro de Philippe A riès, pro fesso r de a d m in istra ­ ção h o te le ira q u e teria escrito, seg u n d o seu e d ito r italiano, “u m en saio incisivo e p olêm ico com divere n te s e n fo q u e s (p rin c ip a lm e n te sociológico, m as tam b ém econôm ico, etnológico, psicanalítico e gas­ tro n ô m ic o )”. O s g eren tes d o M cD onald’s - afirm a A riès - baseiam su a ação em "u m a lógica eco n ô m i­ ca cen tra d a u n ic a m e n te n a m axim ização do lu cro ”. O objetivo da e m p resa - explica A riès - “não é ser am ada ou n o s am ar, n ão se coloca a serviço do cres­ c im e n to p e s s o a l d e s e u s m e m b ro s , m a s a lm e ja p ro d u z ir b en s e serviços em b u sca de lu cro ”. E con­ v en ien te e im p o rta n te reco n h ecer isso “p a ra evitar q u e esse princício c o n tam in e to d a a vida social ou

4 Patel, Stuffed and Starved: markets, power and the hidden battle for the world food system, p.20-1, 79.

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psíquica”.5 O M cD onald’s é o em b lem a da globali­ zação com ercial: n ão q u e r q u e as crianças se to rn em adultos, m as q u e os ad u lto s p erm an eçam crianças; cria u m cosm o p o litism o universal e um p ro d u to ali­ m en tar subcu ltu ral; inv en ta u m a nova m an eira de definir o papel d o h o m em n a sociedade; m anifesta um a form a o b scena de padronização, q u e aos olhos da C hina deveria ser co n sid erad a m ais tem ível que a b o m b a atôm ica; é e n g a n o sa m e n te sim p les, a rti­ ficia lm e n te óbvia, ilu s o ria m e n te a m e ric a n a.6 Isto não basta. Porque o sistem a M cD onald’s “d esq u ali­ fica e an u la o pessoal. E ste é d o m inado pela relação in cestu o sa com a so ciedade-m ãe”. O sistem a “está vinculado à v itó ria da racionalidade econôm ica, te­ m ida e in co n scien tem en te identificada com o p o d er do Pai (a razão) sobre a M ãe (n atu reza)”. Q ual é o problema fundamental lev an tad o p o r essa ideologia? E o seguinte: a técnica p ode ser o n ip o ten te apenas q u ando o h o m em é co nsiderado im p o ten te, e esse dualism o im põe-se tam b ém n o nível p esso al.7 Livros com o este, n a França e n a Itália, são consi­ derados “de e sq u e rd a ”: co n têm d enúncias “desapiedadas” e p erm item , p rin cip alm en te, u m a expressão de se n tim e n to s de pro fu n d a e n o b re indignação. E sta últim a, na cu ltu ra da esq u e rd a qu e precedeu a q u ed a do Im pério Soviético, foi in serid a em u m a (suposta) ciência da histó ria. M arx havia escrito o elogio d a b u r­ guesia e m o stra d o o cam inho: era preciso p erceb er o sentido dos fetos, identificar as tendências, agir com

5 Ariès, I figli di McDonald’s: Ia globalizzazione deWhamburger, p.130. 6 Ibid., p.8, 9-11, 15,24. 7 Ibid., p. 196-7.

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base n o co n h ecim en to , p erceb er o m o m e n to certo. C h eguei a escrever que, a n te s da q u ed a do im pério, ind ig n ar-se em vez de e n te n d e r era p o u co elegante, era coisa de so cialistas h u m a n itá rio s, de m o ra lis­ tas a b stra to s ou de alm as belas. M as agora o im p é­ rio caiu, a teo ria p e rd e u su a su ste n ta ç ã o em to d o s os lugares, alguns b ilh õ es de p esso as vivem em u m regim e p o liticam en te c o m u n ista e eco n o m icam ente cap italista e a g ran d e m aio ria dos h a b ita n te s da Terra (exceto p a ra os n ostálgicos da foice e do cadáver de L enin) fin a lm e n te p e rc e b e u q u e n ã o p o d e tr a n s ­ fo rm ar a h istó ria em u m a ciência. N este contexto, a única coisa q u e re sta aos in telectu ais é d e m o n s­ tra r su a indignação d ia n te dos fatos. Q u an d o não se envolvem n e s ta p e q u e n a e infértil atividade, cu lti­ vam a a rte d a pregação apocalíptica. N o s m o m e n to s de d esalen to , é possível afirm ar q u e M arshall McLuh a n n ão estav a to ta lm e n te equivocado q u an d o escre­ veu q u e a indignação m oral é a estratég ia adequada p ara dignificar u m im becil. A s antigas indústrias nacionais foram e conti­ nuam sendo diariamente aniquiladas. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizad as... Em lugar do antigo isolam ento local e nacio nal, que garantia a um país a autossuficência interna, emerge um comércio universal, com um a dependência recí­ proca entre as outras. E o que acontece na produção m aterial reflete-se também na produção intelectual. A produção intelectual de cada nação se torna proprie­ dade comum de todas. A unilateralidade e a estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais im possíveis, e das

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inúm eras literaturas nacionais e locais surge uma universal.8

E sta p assag em n ão foi extraída de u m a m a n i­ festo neoliberal recente. Ela p erten ce ao Manifesto do partido comunista de M arx e Engels, q u e foi lançado em fevereiro de 1848. Logo acim a d essas linhas cita­ das tem os: A o explorar o m ercado m undial, a burguesia im prim iu um caráter cosm opolita à produção e ao consum o de todos os países. Para grande d eses­ pero dos reacionários, elim inou a base nacional das indústrias.9

A p a r tir d e s ta s p a ssa g e n s, p o d e m o s d e sta c a r coisas co n h ecid as h á alg u m tem p o : q u e os re d a ­ to res do Manifesto elogiavam a b e rta m e n te o papel rev o lu c io n á rio d a “b u rg u e s ia ”; q u e o d e b a te em torno da “exploração do m ercado m u n d ia l” é m u ito m ais a n tig o d o q u e d efen d e a c u rta m e m ó ria dos d ebated o res atuais; e terceiro (à qual se dá pouca relevância), q u e M arx e Engels claram en te co n side­ ravam reacionária a rejeição do q u e hoje é d esignado com o te rm o “globalização”. E ste ú ltim o ap a re c e co m o u m p ro c e sso irre ­ versível. Só p ode ser co n tro lad o em parte, e d e n tro de lim ites m u ito re s trito s . C om ecei e ste c ap ítu lo falando so b re a m o d a e so b re o e n tu s ia s m o pela gastronom ia local. A Itália vangloria-se de te r atu a l­ m en te 129 p ro d u to s de o rig em c o n tro la d a , e 77

8 Marx; Engels, Opere scelte, p.295-6. 9 Ibid., p.295.

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p ro d u to s co m d e n o m in a ç ã o de o rig em p ro teg id a . Mas, n a realidade, parece q u e - u tilizan d o u m a p rá ­ tica legalizada - dois e n tre trê s p re su n to s vendidos com o italiano s são feitos com su ín o s criados no ex­ te rio r e q u e u m terço da n o ssa m a ssa é p ro d u zid o com trig o im p o rtad o . Fora da Itália as coisas se agra­ vam: parece q u e três e n tre q u a tro p ro d u to s italianos são falsificados, com o o p arm esão v en d ido em vá­ rias p artes do m u n d o , inclusive nos E stados U nidos e na A u strália.10 E n tre os m em b ro s d o aguerrido e diversificado g ru p o q u e apo ia a existência d e u m a v e rd a d e ira g u e rra e n tr e te c n o a lim e n to s e b ioalim en to s, h á q u e m diga q u e em relação à b oa com ida italian a h á m u ita lenda, com a ap resen tação d e u m a “im agem en g an o sa de n a tu ra lid a d e ”.11

10 Ver Berizzi, Pasta, sugo e mozzarella, 60 miliardi mangiati dal finto made in Italy, La Repubblica, 3 set. 2010. 11 Ver Conti, La leggenda dei buon cibo italiano e altri miti alimentari

contemporanei.

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XIV Primitivismo

N o in íc io d a h is tó r ia h u m a n a , e sc re v e u em m eados d o sécu lo XVII o filósofo inglês T h o m as H obbes, “prevalece u m m ed o co n tín u o e o perigo de u m a m o rte violenta, e o h o m em leva u m a vida soli­ tária, p o b re, só rd id a, b ru ta l e c u rta ”.1 São n e sta s condições, d escritas com ta n ta eficácia, q u e ain d a hoje vivem (ou m elhor, sobrevivem ) m u ito s seres hum anos. N o en ta n to , atu a lm e n te existem regiões do m u n d o em q u e a vida to rn o u -se m ais longa, com raros casos de m o rte violenta e em que se pro cu ra consum ir m en o s e deixar de lado u m grande n ú m ero de objetos desnecessário s. N essas regiões existem pessoas q u e buscam seu b em -estar en sin an d o seus concidadãos a c o m e r p o u co . Pode p a re c e r m u ito estranho, m as é n estas áreas d a Terra q u e ressu rg e com u m a fo rç a e x tra o rd in á ria o a n tig o te m a d a co n d en ação d a ativ id a d e h u m a n a v o lta d a p a ra o 1 Hobbes, Leviatano, p. 110.

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co n tro le da n atu reza. É com o se n o m u n d o do bem -e sta r ex istisse u m a fo rm a v elada de n o stalg ia do m u n d o d o m al-estar. E xalta-se o “n a tu ra l”, e surge em d iferen tes lugares u m a espécie de nostalgia da h ip o té tic a e invejável v id a in o c e n te e s e re n a do s “p rim itiv o s”, q u e na realidade tê m u m a vida difícil, sofrem m u ito , m o rre m m u ito jov en s e a ssistem à m o rte de m u ito s de seus filhos. A n o sta lg ia d o s te m p o s felizes q u e n ã o re to r­ nam , o elogio de u m p assad o m elh o r q u e o p re se n te se esco n d em em cada can to d a c u ltu ra e n a alm a de cada u m de nós. Eles tê m a ver com a nostalgia d a infância com o u m lu g ar de inocência e de salva­ ção, com a ideia d e q u e houve u m te m p o em q u e os h o m e n s viviam m ais se re n a m e n te q u e nós, com poucos p ro b lem as (m enos graves e d ram áticos que os a tu a is), em u m a “sociedade orgânica” feliz. Pier Paolo Pasolini p en sav a q u e a abolição d a escolari­ dade o b rig ató ria e da televisão ajudaria a população do b airro ro m a n o de Q uarticcio lo a en c o n trar seu p ró p rio m o d e lo d e vida. N a c u ltu ra “v irg e m ” do su b p ro letariad o ro m an o , o trab alh o receberia “o u tro significado, crian d o a p o ssib ilid a d e ... de sin to n iz ar o pad rão de vida com a p ró p ria v ida”. A concepção de Pasolini, com o a de to d o p rim itiv ista q u e se preze, baseava-se em u m a rejeição in d iscrim in ad a do p re ­ sente, m as envolvia ta n to o fu tu ro com o o passado. O s italian o s - escrevia - to rn a ra m -se “um povo d e­ generado, ridículo, m o n stru o so e crim in o so ”.2 Para além d o p re se n te , o fu tu ro se configura com o u m re­ to rn o à inocência a n te rio r ao pecado. A civilização

2 Pasolini, II vuoto di potere in Italia, Corriere delia Sera, Io fev. 1975.

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m o d e rn a e stá to ta lm e n te d o m in ad a p o r u m a falsa ideia (a do b em -estar) e é u m to d o desarticulado. A p re se n ta -se co m o u m a c u lp a d a q u a l é p reciso ser perdoada, e da qual só nos libertarem os recon­ q u ista n d o - através da m iséria e do so frim en to - a inocência p erd id a de u m a infância que estava livre do m al e isen ta de culpas. O fu tu ro p ó s-in d u strial de Ivan Illich, d o m in ad o pela ideia da verdadeira felici­ dade e d o convívio, é co nsiderado p o r Pasolini com o “a única altern ativ a possível p ara o fim d o m u n d o ”.3 Ele escreveu em 1974: Se quisermos seguir adiante é preciso lamentar o tempo que não volta m ais... Não basta rejeitar o modelo do desenvolvimento [defendido pelo capita­ lism o], é preciso rejeitar o desenvolvimento... Graças a Deus, é possível voltar atrás.

Sobre as ru ín as da sociedade de m assa e d o consum ism o, quando “as pequenas fábricas, de repente... se d esin teg rarem u m pouco cada n o ite ”, q u an d o “o casco d o cavalo to car a terra, leve com o u m a plum a, lem bran d o -n o s silenciosam ente o q u e era o m u n d o ”, ressurg irá u m m u n d o bom , lím pido e inocente. Vere­ m os n ovam ente calças com remendos, entardeceres em aldeias sem rumores de motores e cheios de jovens maltrapilhos voltando de Turim e da A lem anha... A noite se ouvirá

3 Pasolini, Predicano in un deserto i profeti dell’Apocalisse, 11 Tempo, 6 dez. 1974.

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apenas os grilos e talvez, talvez um jo vem ... com um bandolim.4

Pasolini é um autor que se considerava de esquerda. E n tre ta n to , seu trab alh o deixa en trev er a presença de in ú m ero s ex p o en tes da d ireita. U m a das análises dos freq ü en tes in tercâm b io s recíprocos e n tre cren ­ ças p ro g ressistas e as an g ú stias apocalípticas (que c o n stitu e m g eralm en te a base d o p rim itivism o) foi feita p elo filósofo ale m ã o O d o M a rq u a rd em u m ensaio de 1984. A s “isen çõ es”, o u seja, os benefícios q u e a cu ltu ra p ro p o rcio n a ao h o m e m - escreve M ar­ q u ard evocando algum as páginas de A. G ehlen5 - de início são recebidas com benevolência, em seguida to rn a m -s e ó b v ias, e fin a lm e n te são v is ta s co m o inim igas. A fase do trab alh o e n tu sia sm a d o é su b s­ titu íd a p ela fase d o c o n su m o in d iferen te, seguido de a n g ú stia e da rejeição sistem ática d o que an tes tin h a sido co n sid erad a u m a im p o rta n te conquista. N esta fase term in al, “q u a n to m ais d o enças são v en ­ cidas p ela m edicina, m ais forte se to rn a a tendência de co n sid erar a p ró p ria m ed icin a com o u m a doença; q u a n to m ais v an tag en s a quím ica oferece à vida do ho m em , m ais se su sp e ita de q u e ela b u sca apenas e n v e n e n a r a h u m a n id a d e ” . A p ró p ria “lib ertaç ão das am eaças tran sfo rm a em am eaça o q u e lib e rta ”. Talvez n ão ex ista - com o defende M arq u ard - “um a lei de conservação da necessidade da negatividade”; n o e n ta n to , é difícil (m esm o em relação à h istó ria

4 Pasolini, Poesie e appunti per un dibattito delPUnità, Paese Sera, 5 jan. 1974. 5 Gehlen, L'uomo, Ia sua natura e il suo posto nel mondo.

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recente) não aceitar com o b astan te realista a parte central de su a descrição: Quanto mais a democracia parlamentar livra os homens da violência e da repressão, tanto m ais ela é definida, levianam ente, como repressiva; quanto mais o direito toma o lugar da violência, tanto mais o direito passa a ser considerado como violência, tal­ vez de caráter estrutural; em resumo, quanto mais a cultura nos liberta da hostilidade da realidade, tanto mais a própria cultura passa a ser considerada como um inimigo.6

Em 1865 m o rriam n a Itália, n o prim eiro an o de vida, 2 30 crianças de cada m il q u e nasciam vivos. N o início d o século XX, 168 crianças em cada mil. Em m eados da década de 1930, m orriam cem. Em 1975, há um a q u eda de 25% na m ortalidade. Em 2000, se p assa p ara 4,3 em cada m il. A Itália é u m país com um a forte e inaceitável diferença en tre o N o rte e o Sul, m as se é verdade q u e a m o rtalidade infantil é o único critério aceitável p ara m e n su ra r o grau de civilização de u m p aís, so m o s u m país civilizado. M as as diferenças em to d o o m u n d o são enorm es. Em S erra Leoa, u m a crian ça em cada q u a tro n ão chega aos 5 anos. A cada ano, de mil crianças n as­ cidas vivas n o país, 2 84 m orrem . O auto eq u ilíb rio da n a tu re z a - h o je m u ito elogiado - im p lica em prim eiro lugar a elim inação dos indivíduos m en os adaptados p ara sobreviver em u m d eterm in ad o a m ­ b ien te. C o m o já dizia D arw in , a n a tu re z a é u m a m ãe m u ito g enerosa n a o ferta da vida, m as m u ito 6 Marquard, Apologia dei caso, p. 131-4.

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m e sq u in h a n o fo rnecim ento de condições de so bre­ vivência. A espécie h u m a n a n ão deixa q u e a seleção n a tu ra l atu e em cada caso, com o u m a peneira, e não aceita o seu “crivo d esap ied ad o ”. Tenta p ô r lim ites à e sp o n tan eid ad e d a seleção n atu ral e cria-lhe u m a série de obstáculos: vacinações, aparelh o s de rean i­ m ação, antibióticos, cortisona, m edicina preventiva. Os h o m e n s se m a ta m com m u ita frequência en tre si (e n isto se d estacam e n tre as diferen tes espécies de anim ais), m as m u ita s vezes tam b ém in sistem em salvar indivíduos fracos (que seriam condenados à m o rte “p ela n a tu re z a ”) o u com dificuldades p a ra se ad ap tar ao m eio am b ien te. Isto acontece, em m u i­ tos casos, com a criação de am b ien tes artificiais, tais com o u m a in cu b a d o ra p a ra beb ês q u e su b stitu i o am b ien te natu ral. O s m ito s d o prim itiv ism o n ão levam em conta o so frim en to envolvido n a grande lu ta pela so b re­ vivência em u m a m b ien te h ostil. N u n ca levam em c o n ta o fa to d e a n a tu re z a (se m p re a p re s e n ta d a co m o u m a realidade a ser defendida) n ã o se r n e m virgem n e m in ta c ta , m as sim o re su lta d o da p re ­ sença h u m a n a n a Terra. H oje a N a tu reza parece ter se tra n s fo rm a d o em u m a d iv in d ad e, e a im agem do h o m e m co m o in trin s e c a m e n te p e c a d o r parece te r re to m a d o u m a n o v a força. M as os valores da d em o cracia, h o je m u ito re s s a lta d o s n o O c id e n te p o r m u ito s p rim itiv ista s, n ã o são a b s o lu ta m e n te naturais. A m aio ria d os h o m en s, n a m aio r p a rte da histó ria, conviveu e convive com o m edo, o terror, a to rtu ra e a violência. L iberdade de expressão, igual­ dade, au sên cia de h ierarq u ias rígidas, aceitação de re g ra s d e conv iv ên cia, re sp e ito p e la s m in o ria s e por cada indivíduo, afirm ação dos d ireito s dos m ais

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fracos e dos p o rtad o res de deficiência não p ertencem ao m u n d o da natureza, m as única e exclusivam ente àquele da cultura. E realm en te difícil p en sar que o direito de d ar bicadas em vigor en tre as galinhas, a territorialidade dos javalis ou a rígida h ierarq u ia de um grupo de m acacos sejam tam bém expressão da harm onia, inocência e p u reza de u m a M ãe N atu reza boa e g e n e ro sa q u e d ev eríam o s a d o ta r co m o u m m odelo p ara a n o ssa vida h u m ana.

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XV A comida foi genuína algum dia?

P o stu ra s p rim itiv is ta s fo ram a ssu m id a s ta m ­ bém em relação à com ida e à alim entação. O uve-se com frequência q u e an tes a com ida era m ais natural, que nossos avós e bisavós tin h am u m a com ida “ge­ n u ín a” e “sabo ro sa”. O s lugares-com uns deveriam ser su b stitu íd o s pelos dados das p esq u isas sérias sobre o tem a. Todavia, eles se m an têm im passíveis. Por força da re p e tiç ã o to rn a m -s e v erd ad e. Se ao lado dos livros de C am poresi forem lidos tam bém os m u ito bem d o cu m en tad o s de Paolo S orcinelli,1 tais clichês se desfazem com o neve ao sol. A inda em finais do século XIX - com o Sorcinelli m o stro u no livro in titu la d o G/i italiani e il cibo. Dalla polenta ai cracker [O s italian o s e a com ida. D a p o le n ta às 1 Sorcinelli, Regimi alimentari, condizioni igieniche, epidemie nelle Marche dell'Ottocento; Sorcinelli, Miséria e malattie nel XIX secolo. I ceti popolari nelVltalia centrale fra tifo petecchiale e pellagra; Sorcinelli, Nuove epidemie antiche paure. Uomini e colera nelVOttocento.

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bolachas] - há na Itália u m a e stre ita ligação en tre d o e n ç a e d e sn u triç ã o . N o n o s so p assad o , a falta de alim en to s era com um e a fom e estava sem pre à espreita. U m a geada excepcional, u m a forte chuva de granizo, u m a seca prolo n g ad a eram suficientes p ara tran sfo rm ar aquela insuficiência em um a ver­ dadeira e crônica crise de alim entos: “Todos os anos podiam ser definidos, infelizm ente, com o o ano da fome. N esse co n tex to , era n a tu ra l com er de tu d o , m esm o o q u e não era aprop riad o p ara se c o m e r”. O escorbuto, a disenteria, o tifo petequial, a cólera eram as patologias m ais difundidas q u e atacavam os indivíduos q u e viviam em condições de d esnutrição crônica e com grande carência de vitam inas. O q u e h o je c h am am o s de “falsificação de ali­ m e n to s”, e q u e a m aio ria dos co n su m id o res vincula ao p re s e n te , foi u m a p rá tic a c o m u m q u a n d o se com ia alim en to s m alconservados o u em d ecom posi­ ção. N as prim eiras décadas do século XX, ainda era m u ito co m u m a pelagra,2 ocasionada p o r u m a dieta que d ep en d ia quase q u e exclusivam ente da p o len ta de m ilho, p o b re em p ro teín as e vitam inas. C arne, peixe, la tic ín io s eram a lim e n to s ra ro s p a ra m u i­ to s italian o s. A descrição d o q u e e ra com ido pelos n ap o litan o s d u ra n te a ep id em ia de cólera de 1836 rev o ltaria c e rta m e n te o estô m ag o da m a io ria dos leito res. N o final do século XIX, com o Sorcinelli cui­ d a d o sam en te d o cu m en to u , a fraude em alim entos era m u ito difusa: ia do vinho p ro d u zid o sem uvas ao queijo q u e n ão c o n tin h a u m a gota de leite. Ao café adicionava-se a chicória, à p im e n ta im undícies, ao

2 A pelagra é o estágio final de deficiência da vitamina B3. (N. T.)

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açúcar pó de m árm ore, à farinha o gesso, ao açafrão a ocra carm esim , ao pão o sulfato de cálcio e ossos m oídos (que davam m aio r brancura). A té as batatas m ais velhas “eram um edecidas, lim pas, escovadas com cu id a d o e colo cad as n o m ercad o com novo visual”.3 Em o u tra história, m ais curta, da alim entação, Sorcinelli ap o n ta dados essenciais: Em 1817, quando o tifo petequial afetou grande parte da Itália Central, a epidemia inseriu-se em uma situação alimentar insustentável: em Perúgia falava-se de “mortos de fome pelos caminhos internos e externos à cidade”; em Roma havia notícias de que "o povo simples se alimenta com pão imundo e sem fermentação adequada, com tremoço, com raízes de solano e com ervas cruas e duras”; nas regiões mon­ tanhosas de Marche faltavam até mesmo as bolotas para a fabricação da farinha. É neste contexto que se manifestaram as “febres catarral e gástrica” e logo o tifo petequial, mas, em muitos casos, os relatos que chegavam da periferia não perm itiam nem sequer distinguir entre estados patológicos reais e as conse­ qüências da desnutrição... O panorama sanitário, já precário devido à falta “de proteínas e outros elemen­ tos específicos”, que se traduzia “em níveis extremos de desnutrição” e que ocasionava uma longa série de doenças infecciosas, piorou durante o século X IX com o grande número de pelagrasos (os números oficiais apontam para 83.600 mortes ocorridas entre 1887 e 1910, e cerca de 20.000 entre 1910 e 1940) que, devido à polenta sem tempero, no final do inverno

3 Sorcinelli, Gli italiani e il cibo. Dalla polenta ai cracker, p. 184.

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(período com pior qualidade de alimentação), engros­ savam as filas diante dos manicôm ios por doenças nervosas e psicoses, devidas, principalmente, à defi­ ciência de vitamina B12.4

As crianças de hoje, até m esm o aquelas nascidas em fam ílias de cam poneses, n ão têm a m e n o r ideia de quais eram as condições de vida do passado: Quarenta por cento dos jovens avaliados para o serviço militar, nos anos entre 1862 e 1865, foram excluídos, porque não atingiam 1,56 metro de altura; essa medida dim inuiu 20% no período de 1866-1871, mas também depois o maior número dos não recru­ tados recaía na categoria das imperfeições físicas e constitutivas que, na opinião dos médicos militares, eram ocasionadas principalmente pela lactação ina­ dequada recebida nos p rim eiros m eses de vida e ao precário nível nutricional durante a infância e a adolescência.5

Em 2004, u m a revista de política e cultura, de grande circulação e q u e vende m u ito tam b ém nas ban cas d e jo rn a l, d ed ico u d o is de seu s cad ern o s, em um to tal de 464 páginas, ao te m a “A lim ento e c o m p ro m isso ”.6 N u m a espécie de dup lo salto m o r­ tal, ap resen to u o m aterial coletado com o u m a form a d e “d iscu tir a q u estão d os alim en to s” q u e co n stitu i

4 Sorcinelli, Breve storia sociale dell'alimentazione. Disponível em: www.tumangiabene.it/approfondirea.htm. 5 Sorcinelli, G/i italiani e il ríbo. Dalla polenta ai cracker, p.31-2. 6 W . AA. II cibo e 1’impegno, partes 1 e 2. Respectivamente em: I quaderni di MicroMega, suplementos do n. 4 e do n. 5 de 2004.

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n ão u m a rev erên cia d ia n te das m o d as em to rn o do alim ento, m as sim u m a transform ação do tem a “c o m e r” em um in s tru m e n to n ã o só d a c u ltu ra, m as tam b ém de “libertação e resgate social”. A trelar as lutas cam ponesas do Terceiro M undo à criativi­ dade da cozinha de luxo (se perg u n tam os editores) não é u m a façanha im possível e esnobe? Q ualquer p e sso a sen sata, q u a n d o c o n su ltad a sobre o tem a, diria q u e sim . Mas, com o era de se prever, os ed ito ­ res resp o n d eram q u e não. A sseguram aos leitores e colab o rad o res da rev ista q u e essas 4 64 páginas n ão p re te n d e m q u a lq u e r r e to rn o aos in te re s s e s privados, m as sim co n trib u ir p ara “criar um m ovi­ m e n to ”. E stão firm e e alegrem ente convencidos de que é possível fazer política tam b ém “cultivando o p razer”. E isto se encaixa perfeitam ente no m u n d o dos m ovim entos ou das m anifestações p ara os quais C láudio M agris, n u m a página inesquecível, criou a definição de “esq u erd a festiva”. C om o co stu m a acontecer q u an d o o n ú m ero de co lab o rad o res é m u ito alto, n ão faltam , ta m b é m n este caso, contribuições in teressan tes. M as não se pode deixar de lado duas coisas: 1) a ausência, n estas quase qu in h e n ta s páginas, de u m a análise dos aspec­ tos econônicos tam bém envolvidos n a “alim entação biológica”, dos gigantescos in teresses p o r trá s não só das em presas m ultinacionais, m as tam bém dos inúm ero s discursos de exaltação do “n atu ral” e da “biodiversidade”; 2) a atuação do questionável p res­ su po sto q u e em basa o prim itivism o e que identifica o natural com o bem e o artificial com o m al. Aqui, essa identificação é expressa de form a tran sp aren te na seg u in te frase: “Q u an d o o arado sulca a terra, a p e n e tra e a revolve, provoca u m golpe violento,

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m exe n o equilíbrio e provoca reações que o hom em não conhece e n em se p reocupa em con h ecer”. O m u n d o seria m ais b onito, m ais n atural, m ais rico e com m aior biodiversidade - é este e n ão o u tro o significado de tais m en sag en s - se os equilíbrios n ã o tiv e sse m sid o a lte ra d o s, se a n a tu re z a ain d a estivesse in tacta e se o h o m em tivesse se m antido, com o n o início, apenas com o u m a espécie de sím io, ou m e lh o r (n a sá b ia d efin ição de Vico, q u e n ã o era prim itiv ista), “com o u m a b e sta to d a esp an to e ferocidade”. O c a m in h o re p re s e n ta d o p e la c u ltu ra p a ra a saída do m u n d o do anim al, p ara a escolha de a rti­ ficialidade é, p o r definição, arriscado. Talvez m ais arriscado do q u e p en sam alguns tecnocratas. Talvez m ais arriscado do que p ossam im aginar alguns tec­ nocratas. Talvez m en o s arriscado do que acreditam alguns jovens firm em en te convictos (e tam b ém volú­ veis) de se dedicarem à lu ta c o n tra o m al ab soluto e a favor da salvação do m u n d o . O risco zero, defendido re c e n te m e n te p o r Francesco Sala n o tra n sp a re n te livro q u e escreveu p ara se co n trap o r aos adversários da m odificação genética de plantas, não existe em n e n h u m a atividade h u m a n a .7 Por isso, n ão faz sen­ tid o p e rg u n ta r se existe u m a certeza absoluta de que não h á qu alq u er risco em q u alq u er em p reen d im en to p rojetado p o r h o m en s ou m ulheres. Em tu d o o que o h o m em p e n sa e constrói não h á - após a expulsão do Paraíso - certezas absolutas. F inalm ente, é preciso dizer que tu d o o que in­ cluím os n os conceitos de civilização e cu ltu ra se deve ao fato de os n o sso s an tep assad o s terem decidido 7 Ver Sala, Gli OGM sono davvero pericolosi?, p. 54.

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não ad o tar o assim cham ado e hoje co n stan tem en te invocado princípio de precaução. Se o tiv e sse m a d o ­ tado, c o n tin u a ría m o s sen d o ain d a hoje sem elhantes aos “m acacos” das p rim eiras cenas de 2001, uma odis­ séia no espaço.

XVI O cérebro guloso e a obesidade

N os ú ltim o s cin q ü en ta ou sessen ta anos, os neurofisiólogos e esp ecialistas so b re o céreb ro d isse ­ ram m u ita s coisas q u e n ã o sab íam o s so b re te m as com o: com er, cheirar, saborear, o p razer d a com ida, a saciedade, p referên cias e av ersões a a lim e n to s e m em ó ria olfativa. Sobre isso foram feitas m u ita s desco b ertas im p o rta n te s. H á re sp o sta s n a verdade m u ito com p licad as, m e sm o so b re q u e stõ e s c o ti­ dianas, tais com o: p o r q u e a p im e n ta faz su ar e a h o rte lã é refrescan te? Por q u e as crianças p referem b a ta ta s fritas à verd u ra? O q u e to rn a o ch ocolate tão irresistível? N este cap ítu lo (com eçando com o cérebro guloso, q u e é o títu lo de um livro escrito pelo n e u ro c ie n tista A ndré Holley, publicado em Paris em 2006 e em italian o em 2009) não há, n a tu ra lm e n te , nada de original. H á ap en as u m a te n ta tiv a de sín ­ tese q u e b u sca, s o b re tu d o , in d ic a r q u e se foi o tem p o em q u e a co m id a era u m a p reo cupação ap e­ nas de a n tro p ó lo g o s e de p sicólogos nas faculdades

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de L etras. Em 2004, o p rê m io N obel de fisiologia e m e d ic in a foi a trib u íd o a L inda Buck (e a Richard Axel) pelas p esquisas q u e identificaram a n atu rez a d os re c e p to re s m o le c u la re s q u e , lo calizad o s nas células olfativas do nariz, re co n h ecem as s u b s tâ n ­ cias o d o ríferas e p e rm ite m as re sp o sta s q u e id e n ti­ ficam o s o d o re s ag radáveis e desag rad áv eis. Sobre o m u n d o d o olfato, q u e m u ito s acred itav am m is­ te rio so e p o u c o e stu d a d o , fo ram d e sc o b e rta s, ao longo d o s ú ltim o s trin ta o u q u a re n ta an o s, m u ita s coisas q u e te rã o m u ita in flu ên cia so b re a noção de gosto, e q u e têm m u ito a v er com os a to s de co m er e de beber. O s n e u rô n io s o lfativos da m u c o sa nasal p assam p o r u m p ro c e sso de ren ovação ta m b é m na vida a d u lta. N a vida d o o lfato há, p o rta n to , um a aprendizagem. A capacidade de reco n h ecer dez mil o d o res d ife re n te s é a trib u íd a p o r Buck à p resença, nos rato s, de u m a fam ília de gen es (c o m p o sta por cerca de m il g en es d ife re n te s) q u e d ão o rigem a um igual n ú m e ro de tip o s de re cep to res. E stes se situ a m n a p a rte su p e rio r d a m u c o sa d o n a riz e ser­ vem p a ra id e n tific a r as m o lécu las inaladas. N o te rre n o da n eu ro b io lo g ia, das ciências do co m p o rtam en to , da psicopatologia, h á avanços no con h ecim en to das capacidades olfativas. O sentido m ais n eg lig en ciad o d o h o m e m - co m o te m sido divulgado passa por uma fase de grande reavaliação, tanto a res­ peito do papel que desempenha (nas relações sociais, no sexo, na relação mãe-filho, na escolha de alimen­ tos, no reconhecimento espacial e assim por diante), quanto por sua função nas nuanças emocionais da

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experiência e na criação de atitudes positivas, tanto no sexo como nas compras de superm ercado...1

E sp era-se q u e as c o n q u ista s científicas acim a referidas possam , em prim eiro lugar, ser ú teis p ara a pesq u isa sobre a doença de A lzheim er; em segundo lugar, agir com o u m freio n a excessiva criatividade poética e literária dos sommeliers que falam de óleo aéreo, côncavo, convexo, curto, extrativo, fem inino, denso, fugaz, espesso, im preciso, tênue, longo, fino, m aciço, m astigável, m acio, suave, m udo, olivoso, passado, pertu rb ad o , salgado, grave, apagado, esvaecido, ten so , louco, vibrante, volátil, envolvente...; e em terceiro e últim o lugar, pod er atingir o nível dos inúm eros cu rsos q u e são dados n a Itália p o r degustadores de azeite, vinho, vinagre, água m ineral. O q u e nós com em os, diz A ndré Holley, é selecio­ nado a p artir de u m a grande variedade de alim entos possíveis, depois é ingerido, e em seguida digerido e assim ilado pelo organism o. E xistem m ecanism os biológicos q u e garan tem cada u m a d estas ações e processos, e cada um d estes m ecanism os foi d esen ­ volvido d u ra n te um longo processo de adaptação do indivíduo ao m eio am biente, iniciado há m ilhões de anos antes do ap arecim ento dos hom inídeos. Os peixes também possuem genes que, na espécie humana, constituem a base da produção de receptores «

olfativos, e a maior parte dos circuitos cérebrais que controlam a fome e o prazer foram formados antes do aparecimento dos primatas.

1 www.teatronaturale.it/articolo/1416.html (Carlotta Baltini Roversi).

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O q u e d e n o m in a m o s gosto é u m a fo rm a de sensibilidade elaborada p o r um sistem a sensorial es­ pecífico que está n a origem de sabores, ta is com o o doce, o salgado, o azedo e o am argo (e o u tros inom in a d o s). M as, in siste o a u to r do livro, e x iste m sensações provenientes da boca e do n ariz que não p odem ser definidas, assim com o certo s arom as e sabores. A lim entos e bebidas geram sensações nas term in açõ es do nerv o trig êm eo q u e “tra n sm ite as sensações agudas de picante, acre, irrita n te e ad s­ trin g e n te cau sad as pela m o stard a, p elo am oníaco, pela p im e n ta e p o r o u tra s su b stân cias claram en te intoleráveis ou d eliciosam ente irrita n te s”. T am bém sensações relacionadas com o tato , q u e p e rm item perceber o crocante, o fragm entável, o crem oso tor­ n am -se p a rte da noção com um de gosto. A im agem olfativa é a representação do o dor específico em sua singularidade; o olfato é capaz de d etectar com postos voláteis p resen tes n o a r respirado, com u m a concen­ tração que su p era u m a p a rte p o r bilhão, m as é vã e ilusória, na opinião de A n d ré Holley, a tentativa de estabelecer a e s tru tu ra do m ecanism o receptivo através de u m a classificação n atu ral das qualidades olfativas. A espécie h u m a n a (levando em conside­ ração seus genes) a p re se n ta claro s sin ais de u m a dim inuição de suas funções olfativas, em com para­ ção com m u itas o u tra s espécies de m am íferos. N os ú ltim o s anos, o co n hecim ento do sabor tam b é m foi enriquecido pela d esco b erta de novos receptores que reativou a discussão em to rn o d a tese dos q u atro gos­ tos básicos (doce, salgado, am argo, azedo). Segundo p esquisadores japoneses, os sabores p assaram a ser cinco, com a inclusão do umami, que corresponde ao sab o r d o g lu tam ato . A s relações e n tre m otivação,

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p razer dos sentidos e ingestão alim en tar dão lugar a u m a in trin cad a teia: necessidade, desejo e prazer surgem em redes n eu rais que se sobrepõem . O li­ vro de Holley aborda u m a m ultiplicidade de tem as e conclui com u m a p erg u n ta com teor dram ático: o que não funciona? A condição atual (em algum as re­ giões do m undo) da superabundância de alim ento é, para a espécie h u m ana, algo radicalm ente novo. N o s­ sa bagagem genética é m ais adequada p ara com bater a escassez do que p ara lidar com a abundância. Há estim ativas segundo as quais, só nos E stados U ni­ dos, a obesidade é responsável por u m n ú m ero de m o rtes que varia en tre 280 m il e 350 m il p o r ano. O hom em não se to rn o u m ais guloso, nem pela Terra se espalhou, em poucas décadas, u m a perigosa m utação genética. As novas condições de vida atin g iram g ran ­ de p a rte do p lan eta de form a rep en tin a e radical. A espécie h u m a n a é capaz de u m a grande variedade de dietas: p assan d o da q u ase exclusivam ente carnívora dos esq u im ó s in u ítes p a ra a quase apen as vegeta­ rian a hindu. U m a necessidade energética reduzida e condições alim en tares ab u n d an tes con stitu em con­ dições novas, d is ta n te s d aq u e la s p a ra as q u ais a evolução p re p a ro u a esp écie h u m a n a . O s p rin c i­ pais fatores que influenciam o desenvolvim ento da obesidade identificam -se p rincipalm ente com o sur­ gim ento de u m a alim entação rica em calorias e com a redução do esforço físico.2

2 Ver Holley, II cervello goloso, p.13-4, 20-1, 37, 45, 48, 64, 73, 96, 105, 185, 187, 190-1, 194. Ver também Rigotti, Gola. La passione deU'ingordigia; Zucco, Anomalies in cognition: olfactory memory, European Psychologist, v.8, jun. 2003, p.78-86.

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C om o diziam os latinos, Gulaplures occiditquamgladius, ou a gula m ata m ais q u e a espada. C om o m o stram com clareza O ttavio Borsello e Vinçenzo di Francesco em seu p eq u en o livro in titu la d o Lalimentazione3 (que tam b ém traz indicações p ráticas), hoje tem o s u m co­ n h ecim en to m aio r e m ais b em d o cu m en tad o sobre isso. Todos sabem q u e o álcool e stá se esp alhando p erig o sam en te e n tre os adolescentes; a m aio ria deles n ão e stá a b so lu ta m e n te cien te dos perigos q u e corre, e, em especial, de q u e se o ab u so do álcool é crônico, o dano gástrico e hepático reduz progressivamente a capacidade de metabolizar o álcool, de tal forma que mesmo pequenas quantidades dele causam elevados níveis de circulação, com conseqüências funestas, sobretudo na função do cérebro e do fígado. Pessoas que se gabavam de suportar grandes quantidades de álcool passam a se embebedar com apenas dois copos de vinho, ou pelo menos a reter níveis de álcool no sangue bem acima dos lim ites permitidos pela lei.

C om o destaco u E m an u ele D jalm a V itali,4 n a Itá­ lia o n ú m e ro de indivíduos acim a d o peso seria de cerca de dezoito m ilhões. Em o u tro s países, o fenô­ m en o é m u ito m ais difuso (em term o s ab so lu to s e p ercen tu ais). O p razer de com er ten d e a d im in u ir a consciência de q u e o excesso de p eso o u de g ordura é, sem dúvida, u m a das causas da arteriosclerose, das doenças cardiovasculares e do diab etes q u e su r­ gem em idade avançada. Em 2001, a O rganização

3 Borsello; di Francesco, Lalimentazione. 4 w w w .treccani.it/site/Scuola/Zoom /alim entazione/djalm avitali. pdf.

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Comer

M undial de Saúde (OMS) u so u o term o "globesity” para indicar a existência de u m a verdadeira epide­ m ia m undial. A lguns índices ligados ao excesso de co n su m o de a lim e n to s q u e caracterizam as áreas ricas do m u n d o são alarm antes: nos E stados U n i­ dos, 15% da população estão com excesso de p eso e 30% a 35% são obesos. A C hina, em rápida m o d er­ nização, acabou de vencer a fom e e já e stá en tra n d o no cam inho da o b esidade.5 N os países em desenvol­ vim ento, q u a n to m elh o res as condições econôm icas, m aior a obesidade. Todavia, nos países desenvolvi­ dos, o nível econôm ico e a obesidade apresen tam -se n u m a relação in v ersam en te proporcional: os níveis sociais m ais baixos d etêm u m a obesidade m ais fre­ qüente. Em um artigo de 1997 sobre a obesidade e a m ortalidade, Solom on e M anson6 d em o n straram que, nos E stados U nidos, a obesidade é m ais difusa e n tre os “n ão b ra n c o s”. N a Itália - a p o n to u Giacin to M ig g ian o ,7 u m p ro fe sso r de b io q u ím ic a d a nutrição da U niversidade C atólica de R om a - a o be­ sidade infantil é a m ais alta da E uropa, e q u a tro em cada dez m ães n ão p erceb em q u e o filho te m u m peso anorm al. A Itália p o ssu i cinco m ilhões de o be­ sos. E stam o s d ia n te de u m a espécie de ep id em ia silenciosa. Eu p en so q u e seja im p o rtan te reto m ar a conclu­ são de u m trab alh o de Holley: u m artigo publicado na Science em 2001 afirm ava que, após m eio século 5 VerBorsello; di Francesco, Valimentazione, p.82, 100, 101. 6 Solomon; Manson, Obesity and mortality: a review o f the epidemiologic data, The American Journal of Clinicai Nutrition, 66, 1997 (suplemento). 7 Miggiano, Obesità: una silenziosa epidemia. Entrevista de E. Micucci. Disponível em: www.romasette.it. Io dez. 2010.

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de p esq u isas e após in v estir cen ten as de m ilhares de dólares p ara d em o n izar a g o rd u ra n a alim entação, a ciência da n u trição "não conseguiu provar que um a d ieta com p o u ca g o rd u ra p o ssa aju d ar a viver m ais te m p o ”.8 Isto n ão deve, logicam ente, n o s levar a com er m ais gordura, m as a to m a rm o s consciência de um dad o im p o rta n te : “D ia n te de fatos tã o com plexos com o os q u e caracterizam a nutrição, não podem os confiar e m p e sq u isa s c o n d u zid as ap en as em u m a área d o co n h ecim en to ”.9

8 Taubes, The soft Science o f dietary fat, Science, 291, 2001, p.2536. 9 Holley, ll cervello goloso, p.200.

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XVII As doenças ao longo dos tempos

O s h isto ria d o re s (não só d a m edicina) sabem m u ito bem q u e d eterm in ad as doenças estão ligadas, e quase soldadas, a certo s períodos históricos; elas to rn aram -se o sím bolo de u m século ou de u m pe­ ríodo da histó ria. A m alária com o a principal doença da A ntig u id ad e grega e do Im pério R om ano. A lepra e o tifo, da Idade M édia. A peste, do século XVII. A tu bercu lo se e a sífilis q u e d o m in am a cu ltu ra do sé­ culo XIX. O câncer e a aids com o os grandes m edos do século XX. D e certa form a, cada u m a d essas ép o ­ cas to rn o u -se im pensável sem tais doenças. E xistem tam bém doenças aco m panhadas p o r u m a espécie de auréola q u e - n a au sência de algo m elh o r - podem os cham ar de positiva. A gota causou m u ito sofrim ento, e há u m re tra to de C arlos V, a cavalo, n o qual a p erna do im p e ra d o r e s tá a m arrad a à b arrig u eira d a sela para evitar q u e o pé p o ssa sofrer solavancos d o lo ro ­ sos. Porém , algum as gravuras do século XVIII que rep resen tam o rei libertin o a to rm en tad o p ela gota,

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com u m a p e rn a le v a n ta d a e u m p é d e sc a n sa n d o sobre u m a alm ofada, n ão se d e stin a m a re p re se n ­ ta r a d o r e o so frim ento. A face d o lib ertino indica satisfação. A g ota é a doença típica e específica dos senhores, dos p oucos q u e com iam m u ito bem n u m m u n d o em q u e a grande m aio ria com ia m u ito pouco e m u ito m al. Ter gota ta m b é m significava (in sisto no também) p e rte n c e r a u m a elite privilegiada. A tu b e r­ culose era u m a doen ça so b re tu d o dos po b res. M as os locais o n d e se curava d e sta d o en ça a d q u iriram u m a esp écie de fascínio, q u a n d o , n o s sa n ató rio s, se re u n ia m p e s s o a s q u e p e rte n c ia m às cam a d as m ais altas d a população. N esses lugares conviviam h o m en s e m u lh eres, forçadas de certa m an eira a p as­ sar m u ito tem p o lendo, escrevendo o u conversando. A c u ltu r a p e s s o a l se e x p a n d e , a in te lig ê n c ia se aguça, se d esp e rta m sensações, se n tim e n to s e e m o ­ ções particu lares, são estabelecidas relações que não seriam possíveis (ou q u e p o d eriam parecer “falsas”) n o m u n d o m o v im e n ta d o d a s p e s s o a s sa u d á v e is. Tam bém se d ifu n d e a tese de q u e u m a dose elevada de to x em ia tu b ercu lo sa serve p a ra e stim u la r as h a b i­ lidades e o d e se m p e n h o sexual. A designação de mal sutil n ão é apen as u m a m etáfora, e N ovalis achava que esse m al su til tin h a a p ro p ried ad e de sub lim ar as experiências da vida, p e rm itin d o “co m p reendê-la em su a to ta lid a d e ”. C oncluindo: n in g u ém gostaria de qualificar u m lep ro sário com o u m lugar en ca n ta­ dor, m as a m o n ta n h a n o to p o da qual se situava um grande sa n a tó rio p o d ia ser co m p reen d id a e vivida com o u m a “m o n ta n h a m ágica”. A sífilis, em seu início, ap re se n to u -se de form a aguda e m ortal. M ais tarde, assu m iu u m a form a sub ag u d a e su b c rô n ic a . T e rm in o u in c o rp o ra n d o a

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Comer

im agem , n ão ise n ta de asp ecto s in q u ie ta n te s e ao m e s m o te m p o f a s c in a n te s , d o fa m o so b in ô m io “gênio e lo u cu ra”. Basta citar alguns n o m es de p es­ soas reais e do perso n ag em de u m dram a: B envenuto C ellini, S chubert, M aupassant, Baudelaire, N ietzsche, O svaldo (que d o m in a a cena em Os espectros de Ib sen ). N ão falta q u e m te n h a v isto n e ssa d o en ça algum tip o de traço d istin tiv o do h o m em genial ou d o h o m em poético o u do h o m em “fora do co m u m ”. A e p ile p s ia , q u e p a re c e p e r m itir u m a sa íd a c la m o ro sa d o m u n d o p a ra em se g u id a v o lta r de r e p e n te , foi c o n s id e r a d a d u r a n te m u ito te m p o u m a espécie de viagem ao além ,1 ligada à p o ssibi­ lidade de alg u m a revelação. Platão, n o Fedro, fala de u m a m an ia divina ou de u m delírio divino com o u m a dádiva divina d os deu ses, e q u e caracterizou a exaltação da Sibila, da p ro fetisa de D elfos e das sacerdotisas de D odona. A ilusão não é, sem p re ou n ecessariam en te, u m a coisa ru im . E xiste u m a in ­ v estigação do fu tu ro feita p o r p esso as em esta d o norm al, m as a mântica é su p e rio r a ela (oionística) p o rq u e o esta d o de delírio in sp irad o p elo s d eu ses é m aio r do q u e a razão h u m an a. Ao lado d o d elí­ rio profético h á o u tra form a de exaltação ligada às M usas. Q u an d o “se d efro n ta com u m a alm a te rn a e p u ra ”, e sta exaltação a incita e atrai com cantos e com qualquer outra forma de poesia-... mas quem chega ao lim iar da poesia sem o delírio das Musas, acreditando só na habilidade do poeta, será um poeta inacabado, e a poesia do sábio será suplantada pela dos poetas em delírio.

1 Grmek, Le malattie all‘alba delia civiltà occidentale.

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G io rd a n o B runo ch am av a d e “to lo s e lo u c o s” os q u e tê m percep çõ es d iferen tes d o re sta n te dos h o m en s. M as e n te n d ia q u e a “extravagância” p a s­ sava p o r dois cam inhos: ou conduz p ara baixo, para a “loucura, in sen satez e cegueira”, o n d e se encontram os q u e se d istanciam do sen so e d a razão do hom em com um , o u conduz p ara u m nível acim a d o que possa e saiba a m aio ria d os h o m en s. Q u an d o caem p o r te rra as e stru tu ra s que su ste n ­ tam o eu e q u e garan tem a d istinção e n tre o eu e o m u n d o , estam o s falando de u m eu dividido ou de es­ quizofrenia. N a instabilidade an g u stian te que em erge da “crise d a presen ça” e da q u ed a dessas estru tu ras, cria-se, n o te a tro de Pirandello, a p o ssibilidade de u m a revelação. Pelo m en o s alguns conseguem se dis­ tinguir “daqueles que se enganam ”, “descobrir o jogo”, pôr-se acim a do plano das “sim ples aparências”, vis­ lu m b ran d o - m esm o q u e "aos poucos” - a inefável e chocante verdade da vida. Segundo alguns, que se to rn ariam m ais tard e os teóricos da excepcional di­ m en são d a loucura, n esses m o m en to s - tam b ém para P irandello - era possível ver "a vida em si m esm a”. No m u n d o da p siq u iatria (ou m elhor, n o m u n d o da cha­ m ad a antipsiquiatria) houve avanços, n e ste terreno, m u ito além de Pirandello. R onald Laing2 apresentou o xam an ism o ou a viagem “ao tem p o m ítico e eterno da lo u cu ra” com o u m an tíd o to à insustentabilidade d o p resen te e com o u m a via p ara o ser, p ara a au te n ­ ticidade e p ara a verdade.

2 Laing, La política deWesperienza; Laing, Nodi.

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XVIII O culto de Ana

N o cap ítu lo a n te rio r foram ap resen tad o s vários, exem plos de “exaltações” de doenças. A pesar d esses exem plos, acredito q u e co n tin u a verdadeira a afirm a­ ção de q u e n inguém , p elo m en o s até agora, parece te r feito p ro p ag an d a em favor de u m a doença. N o caso d a anorexia, h á evidência de que tê m ocorrido e de q u e co n tin u a m a o co rrer casos de u m a v erda­ d eira “e x altação ”, de u m a v erd a d e ira p ro p a g a n d a em seu favor. E n tre o final do segundo e o início do terceiro m ilênio, p asso u a fazer p arte d os m an u ais e trata d o s sob re m edicina u m a doença m en tal q ue se to rn o u p ara m u ita s pesso as u m p ro b lem a m u ito sério. N a ed ição de 1993 d o Manual Diagnóstico e Estatístico çle Transtornos Mentais [DSM, em inglês], a anorexia nervosa não é m ais listad a e n tre as doenças da infância, m as tra ta d a em u m capítulo específico. Os critério s p ara o diagnóstico ap resen tad o s são os seguintes: recusa em m a n te r a m assa corp ó rea acim a do peso m ín im o p a ra a idade e a altura; grande m edo

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d e engordar, m e sm o q u a n d o se e stá abaixo do peso; alteração d a form a de en carar o p ró p rio peso corpóreo; au sência de pelo m en o s trê s ciclos m e n stru ais consecutivos. Se u m a p e sso a anoréxica cede ao ap e­ tite e com e, reco rre ao v ô m ito p a ra expelir o q u e ingeriu, o u se dedica a u m exercício físico in ten so e esp asm ódico p a ra elim in ar as calorias ad quiridas. Pode-se falar de u m a renúncia aos alim en to s apenas q u an d o se te m acesso aos alim en to s; a doença e a exaltação d a m ag reza a ela asso ciad a só aparecem em so ciedades ricas o u desenvolvidas. A an o rex ia (c o n sid e ra d a p o r m u ito s co m o o m ais d ra m á tic o dos in ú m e ro s tra n sto rn o s alim en tares) n ão aparece nos lugares em q u e h á falta de alim en to s generali­ zada, m as o n d e h á u m a q u ase ilim itad a d isposição de alim en to s. O jornal La Repubblica de I o de ju n h o de 2005 p u b lic o u u m a r tig o e s c r ito p o r A lb e rto F lo re s d ’A rcais com o se g u in te títu lo : “A na, a m u sa d a a n o ­ rexia, q u e sed u z os ad o lescen tes n o rte -a m e rican o s”. A li se inform ava q u e 40% d os ad o lescen tes q u e têm p ro b lem as com alim en tação v isitaram pelo m en o s u m a vez os sites dedicados a A na. “A n a” é u m dim in u tiv o de “an o rex ia” e to rn o u -se m oda. O sím bolo d istin tiv o d o s seg u id o res de A n a é u m a p u lse ira de couro v erm elh o com u m a p e q u e n a b o rb o leta a ta d a a u m fio, v en d id a a u m p reço q u e v aria de três a vinte dólares. N a in te rn e t e x iste m v ários sites q u e dão conselh o s sobre com o p e rd e r peso, com o in d u zir o vôm ito, in d ican d o com o re su lta d o a p erd a de peso; eles p e rm ite m q u e os ad o lescen tes in te re ssa d o s em A na se co m u n iq u e m e n tre si, inclusive em sites que reú n em d iferen tes g ru p o s étnicos: negros, latinos, etc. D iante de fen ô m en o s com o estes, p o d em o s nos

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perguntar: tra ta -se de u m a p ro p ag an d a em favor de um a form a de p atologia ou, em vez disso, de u m a an tig a exaltação d o jeju m e da m agreza, q u e seria sin ô n im o d e sa b e d o ria e sa n tid a d e n as filosofias o rien tais e, em particular, na filosofia indiana? O u tam b ém d o ideal cristão de u m a frugalidade levada ao extrem o? O u de u m a san tid ad e baseada n a rejei­ ção do corpo, com o lug ar da ten tação e in stru m e n to do pecado? O u de u m a im agem (m u ito antiga) do jeju m c o n sid erad o com o purificação? C reio q u e a resp o sta a to d as essas p e rg u n ta s deva ser decidida­ m e n te negativa. U m a d o en ça q u e se co n ecta com a e sc o lh a d e c o m p o rta m e n to s v in c u la d o s in d ire ­ ta m e n te a filosofias e opções de vida, a crenças e co stu m es, n ão d eixa p o r isso de m a n te r seu cará­ te r especificam en te patológico e de se to rn a r algo irreconhecível. U m a p e sq u isa n a w eb, m esm o rápida, traz dados im p re ssio n a n te s : p ela q u a n tid a d e de site s, p elo s títu lo s adotados, pelas avaliações co n trad itó rias do fe n ô m e n o (em asc e n sã o ) p re s e n te s n e s s e s site s, enfim , p elo fato de q u e ex istem sites com títu lo s a p are n te m en te favoráveis a A na, m as q u e n a reali­ dade são co n trário s a ela e q u e pro cu ram co m b ater ou red im e n sio n a r o fenôm eno. E n tre os n o m es p re ­ sen tes em u m a lista de Pro-Ana Supportive Sites (m as levando-se em consideração a “d issim u lação ” já in ­ dicada), tem o s: Fat Like Me, Fragile Innocence, House o f Sins: Bathroom, N othing Gonna Stop Me, Pursuit o f Perfection, Salvation Through Starvation, Starving fo r Perfection, Food is Evil e assim p o r diante. E stes sites

(m uitos dos q u ais p o ssu e m apenas u m títu lo ) rece­ bem o n o m e de Anorexia Pride Websites, ou seja, sites do orgulh o anoréxico.

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Este site não se destina a incentivá-lo a desen­ volver um distúrbio alimentar. Este é um site para aqueles que já têm um distúrbio alimentar e que não têm nenhum a intenção de se curar. Já se conhece a diferença entre rexie e anoréxico. Se quiseres ter sim patia pela tua doença, és um anoréxico, mas se estiveres buscando respeito e adm iração pela tua escolha de um modo de vida, então és um rexie. Os anoréxicos morrem, rexies não.1

U m a p assag em com o e sta é u m exem plo d a te n ­ tativa, a m p la m e n te divulgada n o s sites pró-A na, de a p re se n ta r-s e com u m significado p o lítico. C om o d isse E lean o r Taylor, os sites pró-A na a p resen ta m p esso a s d o e n te s co m o u m a m in o ria o p rim id a e a a n o re x ia c o m o u m a fo rm a d e v id a o u u m e stilo a lte rn a tiv o de vida, co m o u m a fo rm a de rev o lta e reb eld ia.2 A re sp e ito de A na, ta m b é m se disse q u e m uitas pessoas que sofrem de um transtorno a li­ mentar, que pode ter um desfecho fatal, tornaram-se parte de um m ovim ento underground que promove a decisão de morrer de fome. Isto, em alguns casos, tem a força de um apelo m uito semelhante a um culto (has

an almost cult-like appeal).

A n a to rn o u -s e u m m o d e lo p a ra a lg u n s, u m a d e u sa p a ra o u tro s: é a s s u n to de oração, de re p re ­ sentaçõ es pictóricas, d e u m a v erd ad eira crença. A na su g e re o q u e c o m e r ao s se u s se g u id o res. Z o m b a deles q u a n d o n ão p erd em peso. N a vida de m uitas

1 www.ana-by-choice.com. 2 www.sirc.org/articles/totally_in_control.shtml.

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de su as seg u id o ras, A na se to rn a u m a verdad eira presença, em bora, é claro, ela exista apenas em suas m en tes. O m o v im en to e stá em pleno crescim en to n a rede: O s especialistas em distúrbios alimentares dizem que, apesar das tentativas de lim itar a presença online de A na, ela tem crescido e atraído seguidores - a maioria dos quais são m uito jovens - em muitas par­ tes do mundo. Ninguém sabe quantos - entre oito e onze milhões de americanos sofrem de distúrbios ali­ mentares - têm sido influenciados pelo movimento pró-Ana. Mas os especialistas temem que o número seja m uito grande.

M u ito s tex to s são im pressio n an tes: terça-feira, 5 o u tu b ro de 2010, em u m site deno m in ad o proanapersempre [pró-A na p ara sem pre], h á u m a garota que escreve: E u perdi o controle... durante três dias, eu perdi o controle... não acredito!!., senti vergonha e, por isso su m i... traí vocês e também a traí... e ela nunca deveria ser traída... mas eu fiz isso ... Tenho vergonha disso! Ana, perdoe-me... Eu não deveria ter... você me am a... você quer nos ajudar... a ficar bem! A nos fazer perder toda essa gordura... eu não quero m a is... E u comi, me empanturrei como nunca... só porque a balança não dim inuía... mas não farei mais isso ... o controle será m inha única preocupação... porque com ele eu vou comandar tudo e ser capaz de vencer!... todas vocês conseguirão... A na é controle.

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A an orexia é controle, é co n tro le to tal incom ensurável, p o rq u e n e n h u m co n tro le n o m u n d o é com o este, u m a vez q u e se tra ta de u m co n tro le que con­ trasta radicalmente com a natureza e a biologia. N e n h u m o u tro co n tro le consegue rechaçar (ou te n ta r rech a­ çar d esesp erad am en te) de form a sistem ática e cabal não o q u e é im p o rta n te e significativo p ara a vida, m as o q u e é n ecessário e indispensável p ara todos, h o m en s e m u lh eres, jovens e velhos. N o en tan to , h o ­ m en s e m u lh eres, jovens e velhos se to rn am - sem d istinção - os outros: u m a espécie de vulgo ou plebe d ian te da obrigação de to m a r u m a decisão radical e definitiva, q u e se m anifesta, na realidade, com o u m a convicção de p e rte n c e r a u m a elite de sem ideuses. E stes são seus dez m an d am en to s: 1) Não ser magro significa não ser atraente; 2) Ser magro é m uito mais importante do que ser saudável; 3) Deve-se com prar roupas, cortar o cabelo, tomar laxantes, morrer de fome, fazer qualquer coisa para se parecer mais magra; 4) Não deves comer sem se sen­ tir culpada; 5) Não deves comer o que engorda sem se punir depois; 6) Deves calcular as calorias e, em seguida, controlar sua ingestão; 7) O que diz a balança é a cõisa m ais im portante; 8) Perder peso é bom, ganhar peso é ruim ; 9) Não se arrependa de ser muito magro; 10) Ser magro e não comer são símbolos da verdadeira força de vontade e do sucesso.

O s o u tro s, to d o s aqueles q u e são tã o vulgares a p o n to de ced er à o b scen a v o n tad e de com er, p odem ser en g an ad o s, m erecem se r e n g a n a d o s e devem , p o rta n to , s e r e n g a n a d o s. V ive-se n o m u n d o dos o u tro s seres h u m a n o s com o estran g eiro s, m ove-se

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en tre os o u tro s seres h u m an o s com cautela. N ão se deve levantar su sp eitas nos outros: 1) N unca fale do seu peso com ninguém. A ja como se não soubesses absolutamente nada sobre dietas e peso; 2) Não deixe que as pessoas percebam que usas roupas folgadas; 3) Procure comer apenas quando teus familiares ou amigos estiverem com você (e uti­ lize o tempo em que estiver só para não fazê-lo); 4) Entre e saia da cozinha com frequência. Isto simulará a ideia de que comes; 5) Deixe restos de comida ou pratos sujos ao redor (prepare algo e jogue fora, os outros vão pensar que você comeu); 6) Leve sempre consigo alguns petiscos (fazendo os outros verem) e, em seguida, jogue-os fora; 7) Em casa diga que comerás com um amigo, ao amigo diga que comeste em casa; 8) Diga que tens alergia a certos alimentos; 9) Finja uma dor de estômago ou algo assim; 10) Diga que foste convidado para jan tar fora; em seguida, faça uma caminhada; 11) Diga que irás comer no teu quarto, depois jogue tudo no lixo (lembre-se de tirar o lixo quando sair); 12) Nunca fale de comida ou sobre o quanto estás insatisfeito com o teu corpo na frente dos outros; 13) No restaurante, finja que não tens dinheiro suficiente para comer.3

U m dos livros de H ilde Brunch, um dos au to res “clássicos” sob re a anorexia, in titu la-se The Golden Cage, a gaiolâ dourada. As anoréxicas p arecem pardais tran cad o s em u m a gaiola dourada: só com em as m igalhas, vivem em u m a gaiola da qual não podem

3 w w w .an oressia-b ulim ia.it/w p .content/up load s/2008/03/ ricerca_sul_fenorneno_proana_ausI_reggio_emilia.pdf.

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sair, m as a gaiola é de o u ro p o rq u e se n te m orgulho de su a condição. M agro é b o n ito , m ais m agro é m ais b o n ito ainda, e a p erd a de peso te m valor. A an o re­ xia é co n sid erad a p o r B runch com o u m a espécie de trágica preo cu p ação pessoal q u e algum as m en in as têm p ara afirm ar su a au to n o m ia. Elas parecem estar dizendo: eu cedo d ia n te de tu d o , sou com placente com tu d o , p ro c u ro viver co m o m in h a m ãe quer, m as sou in tra n sig e n te com a com ida; aqui se ap o sta tu d o , aqui se vai à luta, e s ta é u m a q u e stã o de honra. É daqui q u e e m an a a b u sca d o em ag recim ento e da “tiran ia a lim e n ta r”, é d aq u i q u e surg e a rejeição de q u a lq u e r co m p ro m isso e a escolha d o terrível cam i­ nh o de u m "suicídio le n to ”. A tu a lm e n te , e ssa esco lh a p arece afe ta r m ilh a ­ res de jovens. A com ida to rn o u -se u m inim igo para m ilh ares delas. C om o isso p ô d e acontecer? C om o se d e u a vinculação e n tre p ad rõ es c u ltu ra is e for­ m as patológicas? E xiste u m a relação e n tre a n o ssa atual m a n e ira de co n sid erar a com ida e de tra ta r a nu trição e o cam in h o q u e tais jovens com eçaram a p ercorrer? Por q u e h á ta n ta g en te n esse cam inho? Por qu e e s ta escolha é d ram ática e irreversível? M assim o Recalcati escreveu: A experiência clínica nos ensina como o prolonga­ mento anoréxico da abstinência e das suas m últiplas estratégias de controle tende inevitavelmente a gerar fatalmente fenômenos incontroláveis do corpo, como, por exemplo, o da produção de endorfinas que dão ao indivíduo um a corrente de excitação tão poderosa como a gerada pelo im pulso da fome. U m a excitação que é produzida pelo esgotamento, pelo desapareci­ mento do instinto e que mostra finalmente que no

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jejum anoréxico não se anula simplesmente o corpo, que desfruta da ausência do objeto, como se fosse a dimensão mais importante do m esm o... H á um prazer

do vazio que parece mais forte, ou, mais precisamente, para usar uma expressão de Freud, "mais instintivo" que o da saciedade.4

A s pacientes, m uitas vezes bem-dotadas cultural e intelectualm ente, com primem suas vidas em um corpo idealizado e irreal, só pensam e falam sobre ele e não há espaço para mais nada: afetos, estudo, inte­ resses, pensamentos. O pensamento é dominado pelo corpo, despercebido, alucinado, subjugado pelo trans­ torno. Não há um excesso, mas um desaparecimento da espiritualidade. No auge da doença, as pacientes são puro corpo, e não, como se poderia imaginar, pura mente: seu corpo dilacerado representa um a iden­ tidade fragmentada e incerta, é um invólucro a ser modificado, ferido e odiado para sentirem-se vivas.5

As ideias se espalham com o as doenças, e não é casual q u e o n o m e de u m a doença te n h a p e n e­ trad o até m esm o n o m u n d o do rock. Em 1995, um grupo da v e rte n te dark death metal que existia desde 1991 m u d o u seu n o m e p ara A norexia N ervosa. Seu estilo de música, diz a banda n o site, nasceu das cinzas de um a fase an terio r n ecrom ântica. D iante da p er­ g u n ta sob re a escolha do nom e, foi dada a seguinte resposta:

,

4 Recalcati, Fame, sazietà e angoscia, Kainos, n.7, 2007, “Fame/sazietà"; www.kainos.it/numero7/ricerche/recalcati. html. Ver também, do autor, L’ultima cena: anoressia a bulimia. 5 Bianchini; Dalla Ragione, Il cuscino di Viola. Dal corpo nemico al corpo consapevole, p.67.

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O nome, que é o mesmo da doença m ental, de certa forma incorpora perfeitamente nossa m aneira de perceber o mundo: a rejeição de uma vida perdida nas trevas de um a tirania aceita pela mídia, uma nega­ ção da matéria, e uma busca do absoluto.6

6 www.ranska.net/musiques-francophones.

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XIX A moda e a magreza

M u ita s a b o rd a g e n s g e n é tic o -m o le c u la re s d a m edicina - escreveu G ilberto C orbellini - im aginam q ue u m risco individual de doença fu tu ra depende sim p lesm en te da inform ação genética individual. N a realidade, acrescenta, m en o s de 5% das pacien tes com tu m o re s n o seio o u de cólon tê m resu ltad os p o sitiv o s n o s te s te s g e n é tic o s p a ra ta is tip o s de tu m o res. D estaca em suas conclusões que: A s causas de uma doença e a forma como evo­ lu i nunca são determ inadas por um único gene e não dependem exclusivamente do seu genótipo, mas dependem também de certas experiências ocorridas durante o período de desenvolvimento, crescimento ou na vida adulta e que modulam ou interferem na expressão da informação genética para provocar esse transtorno em particular.1

1 Corbellini, Breve storia dele idee di salute e malattia, p. 118-9.

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Podem os concluir q u e u m a in sistên cia exclusiva em fatores am b ien tais (em certo m o m ento, to d o o discurso sobre a anorexia parecia e sta r cen trad o n a relação e n tre m ãe e filha), assim com o u m a in sis­ tên cia exclusiva em fa to re s g en ético s, p o d em ser consid erad as in su ficien tes e parciais. O q u e serve ta m b é m p a ra explicar o fato d e q u e a an o rex ia é u m a doença d esconhecida nas regiões atrasadas ou pobres do m u n d o , e p ara ju stificar (pelo m enos um a vez ou pelo m enos em p arte) a sabedoria cam ponesa ex p ressa n a frase d e u m velho h a b ita n te de Todi. R eferindo-se a u m c en tro re c e n te m en te inaugurado p ara recuperação de m en in as anoréxicas, co m u n i­ cou seu p e n sa m e n to aos p resen tes: “Se e sto u ra u m a nova guerra, curam -se to d a s”. O s problemas alimentares [afirma M assimo Cuzzolaro] dependem da combinação de vários fatores: predisposição biológica (genética), causas psicológi­ cas (falta de autoestima, perfeccionismo, problemas familiares) e também pressão social; basta pensar em quantas meninas seguem o m ito da magreza.2

N u m m u n d o q u e consid era a beleza e o p o rte físico com o valores p reem in en tes, q u e p ropõe e faz p ropaganda d isso com u m a fo rte insistência, e até m esm o com agressividade, q u e elim inou dos m eios de com unicação de m assa to d a e q u a lq u e r form a de pudor, d eterm in ad o s tip o s de beleza e de físico a ssu ­ m em u m valor q u ase exclusivo.

2 Cuzzolaro; Piccolo; Speranza, Anoressia, bulimia, obesità: disturbi dell'alimentazione e dei peso corporeo da 0 a 14anni, p.28.

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A s jovens, levadas pela construção de sua pró­ pria fem inilidade, rejeitam as formas de um corpo lânguido e confortável, impondo-se a im itação de belezas desencarnadas de capas de revistas; os jovens se deparam com modelos ambíguos, que exigem físi­ cos vigorosos e musculosos, mas com uma excessiva preocupação com a aparência.3

U m artig o p u b licad o em 2002 n o British Jour­ nal o f Psychiatry p o r A nna E. Becker e o u tro s q u atro au to res foi dedicado a este tem a: co m p o rtam entos alim en tares de m en in as adolescentes das Ilhas Fiji após u m a prolongada exposição à televisão.4 A s m u lh e re s d as Ilh as Fiji (q u e fo rm am u m arquipélago da O ceania a su d o este do Pacífico, com a m aio ria de su a população de origem m elanésia) eram avantajadas. C erca de três anos após a chegada d a televisão, em 1995, m u ito s jovens p assaram a ad otar e d ifundir u m a dieta, antes inexistente, que incluía o vôm ito induzido, envolvendo 11% deles.5 Toda a q u e stã o é e x p o sta com clareza p elo já citado M assim o C uzzolaro: Anorexia e bulim ia estão ligadas a valores e con­ flitos específicos da cultura ocidental... A difusão destas patologias nos países do Leste Europeu, do Terceiro Mundo e entre os que imigram das nações pobres para as nações ricas parece estar relacionada à

3 Riva (org.), Lautostima alio specchio: la prevenzione dei disturbi dei comportamento alimentare in adolescenza, p. 121. 4 Ver Becker et al., Eating behaviors and attitudes following prolonged exposure to television among ethnic Fijian adolescent girls, British Journal of Psychiatry, 2002, 180, p.509-14. 5 www.trendystyle.it/notizie/60457/articolo.htm.

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m elhoria das condições econômicas e, mais ainda, aos processos de ocidentalização cultural. E preciso desta­ car que nos países m ais pobres, junto com o aumento dos transtornos do comportamento alimentar, surgem casos de obesidade cada vez mais numerosos.6

O W o m en ’s U nit, u m cen tro governam ental para m u lh eres criado na Inglaterra de Tony Blair, nesse m o m e n to aliado à celebérrim a e m agérrim a m odelo Twiggy, pediu, em 2000, à in d ú stria da m oda, e par­ ticu larm en te aos estilistas, p ara colocar n a passarela m od elo s m en o s m ag ras, am eaçan d o , caso c o n trá ­ rio, criar u m a lei com e sta finalidade. Twiggy (então com 50 anos) p ro p ô s im pedir o acesso às passarelas de m odelos m en o res de 16 anos. R eferindo-se aos perigos q u e am eaçam tais g arotas, Twiggy, com a sinceridade franqueada às grandes estrelas, afirm ou que a m o d a “tin h a se tran sfo rm ad o n u m a in d ú stria co rru p ta e até re p u g n a n te ”.7 O

jo rn al La Repubblica de 9 de m arço de 2007

d edico u u m a p ág in a in te ira ao d iscu rso p ro n u n ciad o p elo p re sid e n te G iorgio N ap o litan o , p o r ocasião da o u to rg a d o títu lo de “C avaliere dei Lavoro” a Elena M iro g lio (d a maison E len a M irò ), p e lo s e g u in te m otivo: “Por te r v alorizado e d ifu n d id o os cortes m ais confortáveis, favorecendo a p o ssib ilid ad e de as m u lh e re s se em an cip arem dos m odelos e sté ti­ cos coercitiv o s”. O títu lo da p ág in a era o seguinte: “N ap o lita n o : N Ã O à m ag reza a q u a lq u e r c u s to ”. A quele d isc u rso su sc ito u u n â n im e s e e n tu siásticas

6 Cuzzolaro, Anoressie e bulimie, p.39. 7 http://qn.quotidiano.net/2000/04/16/803920-A ddio-baby-top.shtml.

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aprovações. À cerim ô n ia estava p re se n te tam b ém a en tão m in istra d a C u ltu ra, G iovanna M elandri. P ou­ cos dias após aq uela cerim ônia, saiu o seu livro (em c o a u to ria com B en ed etta Silj) in titu la d o Come un chiodo: le ragazze, la moda, 1’alimentazione [C om o um palito: as jovens, a m o d a e a alim entação]. Fazia-se ali referência ao M anifesto N acional de A utorregulam en tação da M oda Italian a C o n tra a A norexia, que tin h a sido assin ad o em 22 de dezem b ro de 2006: “U m esforço co n ju n to e n tre o governo e o m u n d o da m o d a p ara u m a parcial m as significativa ação de com b ate a d o enças com o a anorexia e a bulim ia, cada vez m ais difusas e n tre as jovens g erações”. Em La Reppublica de 14 de ju n h o de 2009, n o ti­ ciava-se q u e A lexandra Shulm an, d ireto ra da edição britânica da Vogue, havia enviado u m a carta de p ro ­ te s to aos m ais fam o so s fashion designers p a ra q ue deixassem de pro d u zir vestidos a serem usados ape­ nas p o r m u lh e re s às p o rta s d a anorexia. N aq u ela carta se revelava tam b ém , p ela p rim e ira vez, q ue algum as revistas de m o d a usavam u m p rogram a de reto q u e de im agens p ara fazer m odelos m agras p are­ cerem m ais gordas. R enata M olho escreveu u m texto m u ito in te re s­ sante sobre este tem a: Vestidas ou não, é sempre o mesmo: são delgadas, frágeis, altas e transparentes e parecem vir de um pla­ neta sem gravidade, onde tudo é leve e belo, abstrato e inconsciente como uma brisa m arinha... U m vestido é perfeito se não apresenta curvas, adquire vida com o movimento, mas não deve transpor obstáculos ao esvoaçar sobre o seio imaturo, sobre nádegas quase

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imperceptíveis. U m a obsessão visível, uma magreza que leva ao aniquilamento total da corporalidade.8

N aquele m om ento era possível ser otim ista: em M ilão, a prefeita Letizia M oratti tam b ém tin h a se posicionado ab ertam en te sobre o tem a. Havia boas razões para Renata M olho pensar que estivesse diante de u m "m o v im en to de co nscientização em ascen ­ dência". Parecia (pensava ela) q u e "em m eio às luzes d o e s to n te a n te m u n d o d a m o d a ” tivesse surgido, finalm ente, “o fantasm a de um p ro b lem a ético”. M esm o q u em não concorda com a severa e trá ­ gica opinião de Twiggy deve se d ar co n ta de que se tra ta de u m verdadeiro fantasm a. Em 21 de se tem ­ bro de 2010, foi publicado que, apesar de se fazer um grande alarde em to rn o do com bate à anorexia e de se voltar a valorizar os corpos m ais avantajados, “as m u lh eres o ssu d as q u e cabem p erfeitam en te d e n tro de u m m odelo n ú m ero 40 voltaram d efinitivam ente à m o d a ”.9 Definitivo é u m te rm o q u e os h is to ria ­ d ores p recisaram u sa r com m u ita cautela. Porém , b asta visitar o site w w w .pinko.it p ara p erceber im e­ d ia ta m e n te q u e a im agem (que povoou os jo rn ais em agosto de 2010) da cham ada m enina-palito, ou m odelo anoréxica, dificilm ente desaparece. M u ito s filósofos, a n tro p ó lo g o s e p sican alistas insistiram , n as últim as décadas, em ap o n tar os efei­ to s d eletério s provocados pela im agem de u m corpo em agrecido q u e é divinizado com o u m a en tidade a

8 II Sole 24 Ore delia Domenica, 31 dez. 2006. 9 w w w .o n ew o m a n .it/2 1 /0 9 /2 0 1 0/il-m arch io-elena-m iro-escluso-dalle-sfilate-m ilanesi-stop-alle-m odelle-dalla-44-in-su/.

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ser alcançada, m as que se situ a a um a distância infi­ nita, to rn an d o a façanha im possível. Em novem bro de 2010 (m as a notícia chegou à im prensa apenas no dia 17 de dezem bro) m orreu, com 28 anos de idade, a m o d e lo e a triz Isa b e lle C aro, p ro ta g o n is ta de um a cam panha contra a anorexia, em 2007, focada n u m a d rá m a tic a fo to g ra fia de O liv iero T oscani. T inha ad q u irid o a doença há treze anos. A época d a fotografia tin h a 1,64 m e tro de a ltu ra e pesava 31 quilos. Em u m a entrevista, que pode ser encon­ trada na internet, tin h a m anifestado seu desprezo por quem considerava um a doença m ental trágica com o um “estilo de vida”. N a verdade se trata, disse, de um inferno vivido d iu tu rn am en te. A credito q u e seja im portante, antes de concluir, passar a palavra rap id am en te àqueles que vivem esta experiência em p rim eira pessoa. O s textos seguintes foram ex traíd o s de cartas escritas p o r jo v en s p a­ cientes a Laura Dalla Ragione: 1. Já esperava. E aqui está. Este mês voltou meu ciclo. Odiei. Detestei. Primeira pessoa que encontro no dia: puxa, você engordou! Deixa pra lá, nem tinha per­ cebido!! Isto é demais. Não consigo. Já pro quarto. Primeiro o armário, depois a parede e o piso, mais silenciosos. Você sofre, mas não percebe, ninguém percebe. Depois a lâm ina mais penetrante e m ais silenciosa. Tenho vontade de gritar. De quebrar tudo em dois, em cem pedaços, é assim que me sinto. Não quero me ver, não quero me ouvir; nem a voz, nem a respiração.

2. Há cinco anos me tornei obsessiva por comida, mas agora não aguento mais, não sei explicar o motivo,

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a maioria das pessoas pensa que eu tenho uma vida perfeita, que não me falta nada, mas nem eu sei o que me falta, só sei que não tenho mais vontade de viver... há apenas um mês tinha 33 quilos e 1,53 de altura e com todos os esforços deste mundo engordei muito e cheguei novamente a 38-39 quilos. Não quero mais me pesar, tenho horror pela balança. “Com o” cinco-seis ricotas ao dia com 400 gramas de bolachas, duas garrafas de 1,5 litros de iogurte branco com uma caixa de cereais todos os dias. Pus “como” entre aspas por­ que na verdade mastigo e cuspo durante toda a tarde, trabalho só de manhã, tenho m uita vergonha, mas é como uma droga, procurei parar, mas não consigo, é m ais forte do que e u ... já faz duas semanas que

minhas glândulas do pescoço e de detrás das orelhas estão inflamadas e doloridas e talvez por causa disso. Será que vocês podem me ajudar? Como? Há algum tempo meu terror era a recuperação, agora penso que seja m inha salvação, lhes peço: por favor, não me dei­ xem sozinha.

3. Comecei a vomitar o que comia. Não para perder peso ou qualquer outra coisa. Pelo simples gosto de cuspir fora aquele alimento que tanto odiava, que tinha tornado impossível a m inha vida e que ainda detestava m ais que qualquer outra coisa. E ra uma bela sensação. U m a sensação de vitória, de força, de liberdade, de leveza... Achava que tinha me tor­ nado invencível e insuperável. Conseguia controlar a comida, o meu corpo e “aparentemente” tudo ao meu redor; não era feliz, não me sentia bem: me sentia capaz. Mas em poucos dias a m inha vida se transformou num pesadelo. O meu mundo, o meu amigo secreto, o meu refúgio se transform ou em

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uma arm adilha: chegou assim , sem convite e sem aviso, a bulimia multi-impulsiva. Passava os dias me empanturrando, sem limites e sem controle. Tomava laxantes todos os dias (chegavam a 40 por dia), remedios anorexígenos e diuréticos (15/30 por dia - ao todo entre 50 e 80 comprimidos por dia). Agia sem consciência. Não controlava m ais nem meu corpo nem minhas ações. Era como me observar atrás de um vidro. Queria parar, queria me ajudar, mas me sentia bloqueada. Tinha perdido o domínio de m inha vida.

4. U m a garotinha de 15 anos escreveu em 2009: Eu não quero o mundo nem dinheiro, não quero nem que os outros se lembrem ou se esqueçam de mim, quero o meu presente, dado que o meu passado é como um espelho estilhaçado. Olho minhas feridas e digo: hoje isto não poderia ter acontecido; não devia vomitar, não devia me bater, nem me cortar e não devia transformar a minha tristeza em raiva.

N ão h á dúvidas sobre os d esastrosos efeitos p ro ­ vocados e n tre adolescen tes pelo ideal da m agreza extrem a tão propalado pela m oda atual. Em o utras palavras: não h á q u em afirm e e quem negue a exis­ tência do problem a. E xistem apenas os que falam dele e os q u e n ã o falam dele. E stes n ã o só não falam, m as tam b ém gostariam que ninguém falasse e in siste m em c o n tin u a r a p ro p o r a im ag em da m ulh er-aran h â e da m u lher-palito. M uitos se p e r­ guntaram : é possível p ensar que n o m u n d o da m oda haja espaço p ara tra ta r de q u estõ es éticas ou vin­ culadas à consciência ou à responsabilidade que se deve assu m ir d ian te dos outros? D iante do q u e vi e do que li, acredito q u e não. E p o r isso que n u tro um

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se n tim e n to m u ito parecido à inveja de tod os aque­ les que, d iversam ente de m im e de ta n to s outros, creem na existência de um Tribunal S uprem o diante d o qual, após essa vida terren a, seriam cham ados a resp o n d er e a pagar um alto preço p o r seus pecados tod o s os q u e o fenderam seres in ocentes e provoca­ ram dores injustas.

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Paolo Rossi

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166

Comer

l a n k a _ e n g / L a n k a v a ta r a _ S u z u k i,M a h a y a n a ,R o u t l e d g e _ 1 9 5 6 .1 6 1 p p .p d f . A c e s s o e m : 3 ju n . 2 0 1 4 .

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C o s a c N a ify , 2 0 0 4 .] L E W IN , A .

Una coppa di lacrime:

d ia r io d e i g h e t t o d i V a rsa -

v ia . M ilã o : II S a g g ia to r e , 1 9 9 3 .

Popolazione e alimentazione.

L IV I B A C C I, M .

S a g g io s u l la

s t o r i a d e m o g r a f i c a e u r o p e a . B o lo n h a : II M u lin o , 1 9 8 7 .

Streghe, spettri e lupi mannari.

L O M B A R D I, R

“ L’a r t e m a le -

d e t t a ” i n E u r o p a t r a C i n q u e c e n t o e S e ic e n to . T u rim : U t e t L ib r e r ia , 2 0 0 8 . M A N IN , G . T ra m a c u m b e e c a n n i b a li s m o , e c c o 1’a p p e t i t o d i R a b e la is .

Corriere delia Sera, 19 Apologia dei caso.

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M A R X , K.

G r u p p i. R o m a : E d ito r i R iu n i t i, 1 9 7 1 . M E L A N D R I , G .; S IL J, B.

Come un chiodo:

le r a g a z z e , la

m o d a , 1’a l i m e n t a z i o n e . R o m a : D o n z e lli, 2 0 0 7 . M IG G IA N O , G .

Obesità:

u n a s i l e n z io s a e p id e m ia . E n t r e ­

v i s t a d e E . M ic u c c i. I o d e z . 2 0 1 0 . D is p o n ív e l e m : w w w . r o m a s e tte .it.

La zattera delia Medusa. R o m a : N u t r i m e n t i , 2 0 1 0 . Il cannibalismo. M ilã o : X e n ia , 2 0 0 2 . M O N T A I G N E , M . Saggi. E d ita d o s p o r E . G a r a v in i. M ilã o : M IL E S , J .

M O N F R E D I N I , L.

M o n d a d o ri, 1 9 7 0 . M O N T A N A R I, M .

Convivio oggi.

S t o r i a e c u l t u r a d e i p ia -

c e r i d e l i a ta v o l a n e l l ’e t à c o n t e m p o r a n e a . R o m a /B a r i: L a te r z a , 1 9 9 2 .

______ La fame e iabbondanza.

S to r ia deU ’a lim e n ta z io n e in

E u ro p a . R o m a /B a ri: L a te rz a , 1 9 9 3

______ Nuovo convivio.

S t o r i a e c u l t u r a d e i p ia c e r e d e lia

t a v o la n e l l ’e t à m o d e r n a . R o m a /B a r i: L a te rz a , 1 9 9 1 . M O N T A N A R I , M .; C A P A T T I, A .

La cucina italiana.

d e u m a c u l t u r a . R o m a /B a r i: L a te rz a , 2 0 0 5 .

167

S to ria

Paolo Rossi

Laltalenadel respiro. M ilã o : F e ltr in e lli, 2 0 1 0 . Piccola etnologia dei mangiare e dei bere. B o lo ­

M ÜLLER, H.

M Ü L L E R , K. E .

n h a : II M u lin o , 2 0 0 5 . M U Z Z A R E L L I, M . G .; T A R O Z Z I , F.

Donneecibo.

U n a r e la -

z i o n e n e l l a s t o r ia . M ilã o : B r u n o M o n d a d o r i, 2 0 0 3 .

The Suffrage Movement:

P A N K H U R S T , S.

an in tim a te

a c c o u n t o f p e r s o n s a n d id e a is . L o n d r e s : V ir a g o , 1 9 9 1 . P A R R A D O , N .; R A U S E , V.

Milagre nos Andes.

R io d e

J a n e i r o : O b je tiv a , 2 0 0 6 . [E d . b r a s .]

Il perché di questa rubrica, ora in "Il caos”.

P A S O L IN I, P. P.

R o m a : E d it o r i R i u n i ti , 1 9 7 9 .

Corriere delia Sera,

________ II v u o t o d i p o t e r e i n I ta lia .

Io

fev. 1 9 7 5 . _________ P o e s ie e a p p u n t i p e r u n d i b a t t i t o d e ll ’U n ità .

Sera,

Paese

5 ja n . 1 9 7 4 .

________ P r e d i c a n o i n u n d e s e r t o i p r o f e t i d e l l ’A p o c a lis s e .

Il Tempo,

6 dez. 1974.

PATEL, R. C .

Stuffed and Starved:

m a r k e ts , p o w e r a n d t h e

h i d d e n b a t t le f o r t h e w o r ld f o o d s y s te m . L o n d re s : P o rto b e llo , 2 0 0 8 . P IN C H E R L E , M . C .; F IN A Z Z I- A G R Ò , E . ( E d s .) .

tura cannibale.

La cul­

O s w a ld d e A n d r a d e : d a " P a u - B r a s il" al

“ M a n i f e s t o a n t r o p o f a g o " . T ra d . e n o t a s M a r i a C a te r i n a P in c h e r l e , p o s f á c io d e E tt o r e F in a z z i- A g r ò . R o m a : M e lte m i, 1 9 9 9 . PLA TA N LA , C .

Labirinti dei gusto:

d a lla c u c in a d e g li d e i

a l l ’h a m b u r g e r d i M c D o n a ld . B a ri: D e d a lo , 2 0 0 8 . POLLAN, M .

Ildilemma dell'onnivoro.

M ilã o : A d e lp h i, 2 0 0 8 .

R E C A L C A T I, M . F a m e , s a z ie tà e a n g o s c ia .

Kainos,

n .7 ,

2 0 0 7 . “ F a m e / s a z i e t à ” . D is p o n ív e l e m : w w w .k a in o s .i t/ n u m e r o 7 /r ic e r c h e /r e c a lc a ti.h tm l. A c e s s o e m : 3 ju n . 2 0 1 4 .

______ Lultima cena: anoressia a bulimia.

M ilã o : B r u n o M o n ­

d a d o ri, 2 0 0 7 . R E IN H A R D , K. J. L a le g g e n d a d e i p u e b lo c a n n ib a li.

Darwin,

1 7 , p .4 4 - 5 4 , ja n .- fe v . 2 0 0 7 . ( P u b li c a d o o r i g i ­

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n a l m e n t e e m A m erican R E M O T T I, R .

L a te r z a , 2 0 0 0 . R IG O T T I, F.

Gola.

L a p a s s i o n e d e l f i n g o r d i g i a . B o lo n h a : II

M u lin o , 2 0 0 8 . R IV A , E . ( O r g .) .

Lautosdma alio specchio:

la p r e v e n z io n e

d e i d i s t u r b i d e i c o m p o r t a m e n t o a l i m e n t a r e in a d o le s c e n z a . M ilã o : F r a n c o A n g e li, 2 0 0 7 .

168

Comer

RO LA N D , C.

Courage Under Siege.

O x f o rd : O x f o r d U n iv e r -

s ity P r e s s , 1 9 9 2 .

Fame. Una storia innaturale.

R U S S E L L , S. A .

T u rim : C o d ic e ,

2006. S A L A , F.

Gli OGM sono davvero pericolosi?

R o m a /B a ri:

L a te r z a , 2 0 0 5 . SA L IS B U R Y , H . E . /

novecento giorni: a s s e d i o

d i L e n in g r a d o .

M ilã o : B o m p ia n i, 1 9 6 9 .

racconti delia Kolyma. M ilã o : A d e lp h i, 1 9 9 5 . Vita di Santa Verônica Giuliani, abbadessa delle cappuccine in Santa Chiara di Città di Castello. R o m a :

S A L O M O V , V. /

S A L V A T O R I, F. M .

T ip o g r a f ia S a lv a te c i, 1 8 3 9 . S C H M IT T , J .- C .

Les Revenants. L e s

V iv a n t e t le s m o r t s d a n s

la s o c i é t é m e d ie v a le . P a r is : G a llim a r d , 1 9 9 4 . S C H O L L IE R S , R ( O r g .) .

Food, Drink and Identity.

O x f o rd :

B e rg , 2 0 0 1 . S O L Z E N IC Y N , A .

Arcipelago Gulag.

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6 6 ,1 9 9 7 (s u p le m e n to ).

S O R C IN E L L I, R B re v e s t o r i a s o c ia le d e l l ’a l i m e n t a z i o n e . D i s p o n í v e l e m : w w w .t u m a n g i a b e n e .it / a p p r o f o n d i r e a . h tm .

----------Gli italiani e il cibo.

D a l l a p o l e n t a a i c ra c k e r. M ilã o :

B ru n o M o n d a d o ri, 1 9 9 9 ( l.e d . 1 9 9 2 ).

----------Miséria e malattie nel XIX secolo.

I c e ti p o p o la ri

n e i r i t a l i a c e n t r a l e f r a tif o p e t e c c h i a le e p e lla g r a . M ilã o : A n g e li, 1 9 7 9 .

----------Nuove epidemie antiche paure.

U o m in i e c o le ra

n e i r O t t o c e n t o . M ilã o : A n g e li, 1 9 8 6 .

----------Regimi alimentari, condizioni igieniche, epidemie nelle Marche deli’Ottocento. U r b in o : A r g a lia , 1 9 7 7 . S U L L O W A Y , F. J . Freud biologo delia psiche: al d i là d e l i a l e g e n d a p s i c o a n a l i ti c a . M ilã o : F e ltr in e lli, 1 9 8 2 . S W IF T , J .

Una modesta proposta e altre satire. M ilã o : R iz z o li, Modesta proposta e outros textos satíricos.

1 9 9 7 . [E d . b r a s

S ã o P a u lo : E d it o r a U n e s p , 2 0 0 5 .] TA RA D EL, R.

Laccusa dei sangue: s t o r i a

p o li t ic a d i u n m i t o

a n t i s e m i t a . R o m a : E d ito r i R i u n it i , 2 0 0 2 . T A U B E S , G . T h e s o f t S c ie n c e o f d ie t a r y fat. p .2 5 3 6 , 2 0 0 1 .

169

Science,

291,

Paolo Rossi

Il vino e la carne.

TO A FF, A.

U n a c o m u n ità e b ra ic a n el

M e d io e v o . B o lo n h a : II M u lin o , 1 9 8 9 .

______ Pasque di sangue.

E b r e i d ’E u r o p a e o m ic id i r itu a li .

B o lo n h a : II M u lin o , 2 0 0 8 .

______ Mangiare alia giudia.

C u c i n e e b r a i c h e d a l R in a s -

c i m e n t o a l F e t à m o d e r n a . 1 1 .e d . B o lo n h a : II M u lin o ,

2011 . V A N D E T H , W . V. R .

ressiche:

Dalle sante ascetiche alie ragazze ano-

il r i f i u t o d e i c ib o n e ll a s to r i a . M ilã o : C o r ti n a ,

1995. V E R N O N , J.

Hunger: a

m o d e m h is to r y . C a m b r id g e ( M a s s .) :

B e lk n a p , 2 0 0 7 . W . A A . II c ib o e 1’i m p e g n o , p a r t e s 1 e 2 . /

Mega,

quaderni di Micro­

S u p l e m e n t o s d o n .4 e d o n .5 d e 2 0 0 4 .

W ERTH, N.

L’isola dei cannibali. Sibéria, 1933:

u n a sto ria di

o r r o r e aU ’i n t e r n o d e l i ’ a r c ip e l a g o g u l a g . M ilã o : C o r b a c c io , 2 0 0 7 . W O O D H A M -S M IT H , C .

The Creat Hunger: I r e la n d

1 8 4 5 -4 9 .

L o n d r e s : P e n g u in , 1 9 6 2 . Z A R R I, A . C ib o e c r is tia n e s im o .

I quaderni di MicroMega,

s u p l e m e n t o d o n . 5 , p .3 8 - 4 0 , 2 0 0 4 . Z U C C O , G . M . A n o m a l i e s i n c o g n i ti o n : o lf a c to r y m e m o r y .

European Psychologist, v .8 ,

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índice onomástico

A b b a g n a n o , N ., 2 0

B ia sin , G. R, 10 8 B iz z a rri, C ., 9 Blair, T„ 156

A c o s ta , J ., 7 6 A g o s tin h o d e H ip o n a , 9, 3 6 A g rip p a , E . C ., 4 6

B lake, W , 7 6

A n d r a d e , O . d e , 81 A n d r ô n ic o I C o m n e n o , im p e ­ r a d o r, 83 A p p le b a u m , A ., 6 6

B o ccaccio , G ., 84 B o d in , J., 9 2 B o n d i, R ., 16 B o n in o , E ., 2 7

A r iè s , E , 1 1 0 , 111

B o rg e s, J. L., 9

A r is tó te le s , 2 0 A x e l, R ., 132

B o rse llo , O ., 1 3 6 , 13 7 B o u rd ie u , P., 3 2

B a rc e llo n a , R, 1 08

B r a tm a n , 105

B a rto lo z z i, G ., 16

B rin i, M ., 16 B ru n c h , H ., 149 B ru n o , G ., 4 6 , 142

B ra n d e s , B., 88

B a u d e la ire , C ., 141 B ecker, A . E ., 155 B ecker, J., 6 5

B u c k , L „ 132

B ell, R . M „ 4 5 , 5 0 B e n e d ic t, R ., 2 5 B e n to X V I 0 . A . R a tz in g e r) ,

B y n u m , C . W, 4 5 , 4 6 , 4 9 , 5 0 C a lm e t, A ., 9 6

3 8, 43 B e rizzi, R, 1 1 4

C a lv in o , I., 8 0 , 99 C a m p a n e lla , T., 4 6 C a m p o r e s i, R , 3 0 , 123 C a n ta re lla , G ., 8 4 C a p a tti, A ., 31

B e rn a rd o d e C la ra v a l, 4 6 B ia n c h i, E, 3 9 B ia n c h in i, P., 151

171

Paolo Rossi

C ap u a, R. da, 49 C a rlo s V d e H a b s b u rg o , im p e r a d o r d o S a c ro I m p é ­ rio R o m a n o , 139 C a ro , I., 159

F lo re s d ’A rc a is , A ., 1 4 4

C a s a g r a n d e , C ., 4 8 C a ta r in a d e S ie n a , 4 6 , 4 8 C e llin i, B „ 141

G a n d h i, M . K „ 7 0 , 71 G e h le n , A ., 11 8

C h ik a tilo , A ., 8 9 C ip o lla , C . M ., 5 8 , 5 9 , 6 0 C lé m e n t, C ., 8 5 C o lo m b o , C ., 7 5 , 7 6 C o m e ta , M ., 9 6 C o n ti, R C ., 1 1 4 C o p p o la , B., 16 C o p p o la , F, 9 3 C o r b e llin i, G ., 153 C o u n ih a n , C . M ., 32 C ro c e , B., 4 2 C u z z o la ro , M ., 1 5 4 , 1 5 5 ,1 5 6

G e r s o n , M ., 4 6

D a h m e r, J ., 8 7 D ’A lc o n z o , R, 16 D a lla R a g io n e , L., 1 5 1 , 159 D a llin g to n , R ., 59 D a n te A lig h ie r i, 4 8 , 7 6 D a r w in , C ., 1 1 9 D 'A s c e s i, G a b r ie le , 83 D ’A s c e s i, G u g lie m o , 83 D e C o n c iliis , E, 16 D e M a rtin o , E, 2 6 D e M a u ro , T., 1 3, 2 0 D e lia P o rta , G ., 4 6 D i F ra n c e sc o , V., 1 3 6 , 1 3 7 D i M a io , M ., 8 4 D id e r o t, D ., 9 6 D ja lm a V ita li, E ., 136 D o u g la s , M ., 3 3

F o rn a ri, F., 11 F ra n c is c o d e A s s is , 4 8 F re u d , S., 7 8 , 7 9 , 1 0 8 , 151

G é r ic a u lt, T., 8 6 G io v a n n in i, F., 99 G lab er, R ., 58 G oody, 33 G o y a, F. )., 15, 7 6 G ray, P., 63 G r a z ia n o , A ., 16 G r e g ó rio d e T o u rs , 5 8 G r im m , J. L. K ., 7 6 G r m e k , M . D ., 141 G r o s s m a n , V., 5 4 G u ig o n i, A ., 1 0 3 , 1 0 4 H a e c k e l, E ., 79 H a r ris , M ., 2 3 , 3 0 H e r ó d o to , 75 H ill, A ., 1 0 5 H o b b e s , T., 11 5 H o lle y , A ., 1 3 1 , 1 3 3 , 1 3 4 , 1 3 5 , 1 3 7 , 138 H o m e r o , 75 H o p k in s , A ., 8 7 Ib s e n , H ., 141 I n tro v ig n e , M ., 9 6 , 99 J a im e I S tu a r t, re i d a I n g la ­ te r r a , 92 J e s i, F., 9 4 , 1 0 0 J o ã o C r is ó s to m o , 4 6

E n g e ls, F., 113 E s tr a b ã o , 7 5

Jo ã o d e A rag ão , d u q u e de A te n a s , 83 Jo ã o P a u lo II (K .J. W o jty la), 38

F a e ta , E , 9 4 F a rin a s , G ., 7 2 F in a z z i-A g rò , E ., 81 F isc h le r, C ., 3 2

J u n g , C h a n g , 6 5 , 6 6 , 85 K ara, J ., 89 K a ss, L. R ., 31

172

Com er

L ain g , R ., 1 42

O v íd io N a s o n e , P ú b lio , 76

L a m p u g n a n i, A ., 83 L a p la n c h e , J., 7 9 , 8 0 L e n in (V. U lja n o v ), 1 12

P aci, E., 11 P a n k h u r s t, S., 6 9 , 7 0

L é v i-S tra u s s , C ., 2 9 , 8 4 L e w in , A ., 61 Livi B acci, M ., 31 Illic h , I., 1 1 7

P a r a c e ls o (T. B. v o n H o h e n h e im ) , 4 6 , 7 7 P a ro n i d e C a s tr o , M ., 8 2 P a rra d o , N ., 8 7

L o m b a rd i, R, 91 L u c ré c io C a ro , T., 21

P a so lin i, P. P., 9 9 , 1 1 6 , 117, 118 P a te l, R. C ., 1 0 8 , 1 0 9 , 1 1 0 P a u lo d e T a rs o , 4 8 P a u lo VI (G . B. M o n tin i) , 38 P icco lo , F., 1 5 4 P ic o z z i, M ., 89

M a g ris , C ., 1 2 7 M a n in , C ., 8 2 M a n s o n , J. E ., 1 37 M a o T s é -tu n g , 6 5 M a r c h i o n n e d i C o p p o S te fa n i, 5 9

P in c h e rle , M . C ., 81 P ira n d e llo , L., 142 P la ta n ia , G ., 108 P la tã o , 141 P lín io , o V elh o , 75 P o lla n , M ., 108 P o lo , M „ 76

M a rq u a r d , O ., 1 1 8 , 119 M a r tin o tti, G ., 8 9 M a rx , K „ 9 9 , 0 1 3 , 1 1 1 , 113 M a u p a s s a n t, G . d e , 141 M c L u h a n , M ., 1 1 2 M e iw e s , A ., 8 7 , 88 M e la n d ri, G ., 1 5 7 M ey er, S., 9 8 M ig g ia n o , G ., 1 3 7 M ile s , J., 8 6

P o n ta lis , J.-B ., 8 0 P ro u , H ., 58 P to lo m e u , C lá u d io , 75 R a n d o n e , V., 41 R e c a lc a ti, M ., 1 5 0 ,1 5 1 R e in h a rd , K . )., 83 R e m o tti, E ., 2 7 R ia rio , G ., 8 4 R ig o tti, F., 135 R iv a, E ., 155

M iro g lio , E ., 1 5 6 M o lh o , R ., 1 5 7 , 1 58 M o n f r e d in i, L., 81 M o n ta ig n e , M . d e , 7 7 , 78 M o n ta n a r i, M ., 31 M o n ti R o s s i, M ., 16 M o r a tti, L., 158 M ü lle r, H „ 5 3 , 5 6 M ü lle r, K. E ., 2 9 M u r n a u , E W ., 9 6 M u z z a r e lli, M . G ., 8 3

• N a p o lita n o , G ., 1 5 6 N ic a s i, S., 16 N ie tz s c h e , F., 141

R o la n d , C ., 61 R u in i, C a rd e a l, 3 8 R u s s e ll, S. A ., 3 8 , 5 5 , 5 6 , 6 2, 63, 64, 71, 72 S a g a w a , I., 88 S ala, F., 128

N o v a lis (F. v o n H a r d e n b e r g ) , 140

S a lisb u ry , H . E ., 85 S alo m o v , V., 6 6 , 6 7 S a lv a to ri, F. M ., 51 S a n d s , R . G ., 72

O te lm a (M . A . B e le lli), 4 6

S a n to n a s ta s o , R, 4 5 S c h ia v o n i, G ., 9 4

173

Paolo Rossi

S c h m itt, J. C ., 9 3 S c h o llie rs , R ., 3 2 S c h u b e r t, F., 141 S eg ala, M ., 16 S e n , A ., 6 6 S e p ú lv e d a , J. G . d e , 7 7 S fo rz a , G . M ., 8 4 S h a k e s p e a r e , W ., 78 S h u lm a n , A ., 1 5 7 Silj, B., 1 5 7 S o lo m o n , C . G ., 1 3 7 S o lz e n itc y n , A ., 6 6 S o rc in e lli, E , 1 2 6 , 1 2 4 , 1 2 5 , 126 S p e ra n z a , A . M ., 15 4 S tá lin (I. V. D z u g a s v ili), 63 S te in , J., 61 S to k e r, B., 9 6 S u llo w a y , E ., 7 9 S w ift, J., 7 8 T a g o re , R ., 7 0 T a ra d e i, R ., 9 4 T a ro z z i, F., 8 3 T a u b e s , G ., 1 3 8 T au ler, J., 4 6

T aylor, E ., 146 T h a tc h e r, M ., 72 Toaff, A ., 9 4 T o m á s d e A q u in o , 4 7 , 4 8 T o sc a n i, O ., 15 9 T w ig g y L a w s o n (L. H o r n b y ), 156, 158 V an D e th , R ., 4 5 V a n d e re y c k e n , W ., 4 5 V a n d e rp y l, D . G ., 6 4 V ecc h io , S., 4 8 V e rn o n , J ., 63 V erônica G iuliani, sa n ta , 5 0 ,5 1 V ico, G ., 128 V o lta ire (F.-M . A r o u e t ) , 9 6 W a lla c e D u n lo p , M ., 69 W e r th , N ., 8 5 W o o d h a m - S m ith , C ., 63 Y o u rcen ar, M ., 16 Z a rr i, A ., 10, 4 0 , 4 1 , 4 2 Z u c c o , G . M ., 135

174

SOBRE O LIVRO Formato: 1 2 x 2 1 cm M ancha: 18,5 x 4 4 ,5 paicas Tipologia: lowan Old Style 10/14 Papel: Off-white 80 g/m2(miolo) Cartão Supremo 250 g/m 2(capa) I 9 edição: 2014

EQUIPE DE REALIZAÇÃO Capa Estúdio Bogari Edição de texto Fabio Bonillo (Copidesque) Nair Hitomi Kayo (Revisão) Editoração eletrônica Sergio Gzeschnik (Diagramação) Assistência editorial Jennifer Rangel de França

1. C o p p o di M arcovaldo. Juízofinal (Inferno), 1 2 70-1290. F lorença, B a tistério d e San G iovanni.

2. Ambrósio Lorenzetti. Nossa Senhora ornamentando, 1320-30. Siena, Palácio do Arcebispado.

3. Leonhard Kern. Mulher canibal, ca. 1650. Stuttgart, Museu do Estado de Württemberg.

4. Honorio Philopono (Caspar Plautius). Cem de adoração do diabo (Nova typis transacta navigado, 1621).

5. Pieter Paul Rubens. Saturno devorando seu filho, 1636. Madri, Museu do Prado.

6. Hansel, Gretel e a bruxa (selo alemão de 1961).

8. Os sobreviventes do desastre aéreo dos Andes, 1972.

1

10. Duane Hanson. Mulher comendo, 1971, escultura em resina poliéster.

11. Campanha “Every One” da Save the Children contra a des­ nutrição, 2009.

II l

I

I

I

12. Anoréxica.

13. Armin Meiwes, o canibal de Rotenburg.

14. Um lobisomen americano em Londres, de John Landis, 1981.

15. Sushi: a comida entre a moda e a estética.

16. Preparação do macarrão. Tacuinum Sanitatis Casanatense, séc. XIV.

17. Abundância e otimismo na culinária com o maçante casal anos 1950.

I

c rises d e a lim e n to e d e seriaI killers q u e tr a n s g r id e m o ta b u d o s ta b u s d e v o ra n d o su as v ítim a s? N e c e s s id a d e b á sic a , d e se jo p rim a i, o b s e s s ã o p a to ló g ic a : u m a in e x tr ic áv el m is tu r a q u e R o s s i in v e s tig a e d e sc re v e d e m o d o m a g is tra l, e x ­ p lo r a n d o as in ú m e ra s n u a n c e s q u e o v e rb o comer a ssu m iu n a h is tó r ia d a h u m a n id a d e .

18. Arcimboldo. Priapo (Ortolano), ca. 1590. Cremona, Museu Cívico Ala Ponzone (no detalhe, a obra de ponta-cabeça).

P a o lo R ossi (1923-2013), historiador e filósofo italiano, é autor de mais de duas dezenas de livros, havendo recebido o Prêmio Viareggio em 1992 por O pas­ sado, a memória, o esquecimento (Editora Unesp, 2007). Grande especialista na História das ideias dos séculos XVI e XVII - especialmente em Francis Ba­ con - , recebeu prêmios como a Medalha Sarton (American Històry o f Science Society, 1985), a Medalha Pictet, (Société de Physique et d’Histoire Naturelle de Genève, 1985), o Prêmio Musatti (Società Psicoanalitica Italiana, 2008) e o Prêmio Balzan (Fondazione Internazionale Premio Balzan, 2009).

Comer, necessidade básica, desejo primai, obsessão patológica: uma inextrincável mis­ tura que Rossi investiga e descreve de modo magistral, explorando as inúmeras nuances que esse verbo assumiu na história da humanidade.

editora

unesp