Clube Empresa: Abordagens Críticas Globais às Sociedades Anônimas No Futebol 9786599083426

Clube Empresa: Abordagens Críticas Globais às Sociedades Anônimas No Futebol O Brasil voltou a discutir uma nova legisla

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Clube Empresa: Abordagens Críticas Globais às Sociedades Anônimas No Futebol
 9786599083426

Table of contents :
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Apresentação
Introdução: Clube-empresa, uma abordagem alternativa: elementos introdutórios, histórico e impactos reais
PARTE I
Análises
A “Ley de Deporte” na Espanha e o modelo de “sociedad anónima deportiva”: um balanço dos últimos 30 anos
Acabou o amor: o processo de divórcio entre clube e SAD em Portugal
Sociedades anónimas deportivas no Chile: o declínio do futebol social
As associações civis desportivas no futebol argentino: privatizações e resistências
PARTE II
Torcedores
Sevilla Fútbol Club: a luta pelo patrimônio dos seus torcedores
Clube de Futebol “Os Belenenses”: síntese histórica de um Clube grande e histórico em Portugal
Club Universidad de Chile: recuperar o clube para os seus torcedores, superando o fracasso das S.A.
Racing Club de Avellaneda: os torcedores e a mercantilização do futebol
PARTE III
Outras Questões
A raíz do problema: o declínio do futebol brasileiro após o período das parcerias dos anos 1990
O modelo societário do futebol alemão: uma referência de sucesso em questão
Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento de “soft power” chinês
“Soft power” e futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita
“Multi-club ownership”: um novo estágio da globalização dentro do futebol

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clube empresa Abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol

Organização Irlan Simões Tradução Guilherme Jungstedt, Gustavo Mehl e João Ricardo Pisani Design Éric Chinaglia Ebook ISCS ISBN 978-65-990834-2-6 ©Editora Corner, Brasil, 2020

Sumário

Apresentação Introdução Clube-empresa: histórico, impactos reais e abordagens alternativas Irlan Simões

Parte I - Análises Capítulo 1

A “Ley de Deporte” na Espanha e o modelo de “sociedad anónima deportiva”: um balanço dos últimos 30 anos Daniel Ferreira & Victor de Leonardo Figols

Capítulo 2

Acabou o amor: o processo de divórcioentre clube e SAD em Portugal Fernando Borges

Capítulo 3

“Sociedades anónimas deportivas” no Chile: o declínio do futebol social Sebástian Campos Muñoz

Capítulo 4

As associações civis desportivas no futebol argentino: privatizações e resistências Verónica Moreira & Rodrigo Daskal

Parte II - Torcedores Capítulo 5

Sevilla Fútbol Club: a luta pelo patrimônio dos seus torcedores Accionistas Unidos del Sevilla Fútbol Club (Moisés Sampedro Contreras)

Capítulo 6

Clube de Futebol “Os Belenenses”: síntese histórica de um Clube grande e histórico em Portugal Assembleia de Sócios de “Os Belenenses” (Edgar Macedo & Rui Silva)

Capítulo 7

Club Universidad de Chile: recuperar o clube para os seus torcedores, superando o fracasso das S.A. Asociación de Hinchas Azules (Gabriel Ruete, Daniela Tapia, Sebástian Diaz, Santiago Rosselot & Daniel Albornoz)

Capítulo 8

Racing Club de Avellaneda: os torcedores e a mercantilização do futebol Movimiento “Racing es de su Gente” (Lucía Ravecca)

Parte III - Outras questões Capítulo 9

A raíz do problema: o declínio do futebol brasileiro após o período das parcerias dos anos 1990

Marco Sirangelo

Capítulo 10

O modelo societário do futebol alemão: uma referência de sucesso em questão Carles Viñas

Capítulo 11

Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento de “soft power” chinês Emanuel Leite Junior & Carlos Rodrigues

Capítulo 12

“Soft power” e futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita Emanuel Leite Junior & Carlos Rodrigues

Capítulo 13

“Multi-club ownership”: um novo estágio da globalização dentro do futebol

João Ricardo Pisani

Sobre os autores  

Apresentação

Irlan Simões

Dentre os esportes coletivos, o futebol é o esporte dos coletivos. Sua dimensão sociocultural, sua capacidade de mobilizar afetos, de formar identidades, de gerar pertencimento e de constituir comunidades não encontra comparação cabível entre outras práticas esportivas. O futebol de hoje é o resultado de um jogo que se moldou por causa – e pelas mãos – desse aglomerado que no Brasil chamamos de “torcida”. De tempos em tempos os públicos do futebol voltam a ganhar novas significações. Sua rica diversidade convive em conflito nesse universo de consumo intenso e quase ilimitado de futebol. A oferta de jogos 24h por dia, 7 dias por semana, 12 meses por ano, ganhou, na última quadra histórica, o reforço da elaboração ininterrupta de produtos consequentes à indústria do futebol, como os mercados de videogames, de produção audiovisual, editorial e de bens supérfluos portadores das suas “marcas”. Afinal, jogadores e emblemas de clubes constituem-se como marcas indissociáveis do “produto futebol”. Estrelas mobilizam audiência para os clubes, que valorizam as imagens a serem vendidas: o espetáculo enquanto produto

central mobiliza olhos, mentes e corações a serem oferecidas para o bombardeio publicitário em uma indústria esportiva cada vez mais midiatizada e desgarrada do esporte em si. O consumo do “evento jogo de futebol” deixou há tempos de ser a sua única linha de atuação. Há o torcedor e há o consumidor de espetáculo. No eco das reflexões que o compõem, esse livro oferece inúmeras provas de tal assertiva, contribuindo para expor como esse choque é real e presente, embora brutalmente desleal. Apartar essas duas categorias não faz desse exercício teórico-metodológico uma escolha arbitrária. Pelo contrário, oferece à discussão dessa obra coletiva as ferramentas necessárias para colocar cada coisa em seu lugar. Há pelo menos quatro décadas, mercantilização do futebol e culturas torcedoras estão em confronto franco em campo aberto. Não estivessem lá na fronte os torcedores, mas apenas os consumidores de espetáculos, a motivação deste livro sequer existiria. O preâmbulo da apresentação de Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol assim se justifica. A intenção do livro não é criticar, avaliar ou opinar sobre os projetos favoráveis aos clubes-empresa colocados em discussão no Brasil ao longo do ano de 2019.1 Apesar de reconhecidas aqui as consideráveis diferenças entre as proposições que rivalizaram dentro da política institucional, no meio dos debates conceituais, no ambiente dos businessmen do futebol, entre dirigentes de clubes, etc., esta obra não oferece contribuições a nenhuma delas. “Clube Empresa” intenciona reunir abordagens, como o título deixa explícito, sobre a transformação dos clubes em empresas, aglutinando diferentes perspectivas, recortes espaciais e atores que compõem um amplo campo questionador a tal processo. É realizado por autores e agrupamentos com pouco ou nenhum contato entre si, que,

ainda assim, estabeleceram uma série de conexões entre suas abordagens. Leituras de diferentes origens que se baseiam em casos concretos e ajudam a compreender melhor os impactos reais – materiais, não idealistas, evidenciadores e descritivos – da transformação dos clubes esportivos em sociedades empresárias. O que está xeque, portanto, é a própria ideia de constituir e conceber clubes como empresas. Os textos desta obra desconfiam e contestam, a partir de casos concretos, os mantras da profissionalização, da eficiência gerencial, da atração de investimentos, da transparência nas contas, da boa governança corporativa e do ganho de competitividade em campo, estabelecendo um quadro real e pouco animador sobre a atual situação dos clubesempresa no mundo. Ao bom gosto das ciências humanas, o livro contribui para uma arqueologia dos traços ideológicos fundadores dessa concepção de um futebol “de empresas”, que, no ataque ao seu preponderante caráter associativo fundacional, apostou no discurso condenador da sua suposta falência e inviabilidade. Afinal, é preciso chamar as coisas pelo o que elas são. A longa história das narrativas contrárias ao caráter associativo e sem fins lucrativos dos clubes de futebol tem relações profundas com doutrinas políticas que coadunavam com o espírito do seu tempo. É nos anos de 1970 que essa noção mais avançada, agressiva e implacável de atuação política de futebol-negócio encontra, no desajuste financeiro circunstancial dos clubes associativos, um roteiro narrativo para despossuí-los de sua riqueza e de seu poder produtivo. A partir da década seguinte, após sua primeira vitória triunfal na Itália, essa ideia se espalha como epidemia pela Europa. O artigo introdutório de “Clube Empresa” foi devidamente elaborado para explicar esse processo com maiores detalhes.

A analogia entre disseminação de ideias e propagação de vírus foi proposital. Caso este livro esteja sendo lido alguns anos após o seu lançamento, talvez o leitor seja de uma geração que não viveu o ano de 2020 e a pandemia da Covid-19, que, na altura do fechamento deste texto, havia vitimado milhares brasileiros e centenas de milhares em todo o mundo. Poucas eram as ideias concretas sobre os impactos da pandemia da Covid-19 sobre o futebol-negócio. Basicamente, o mundo todo parou, e eventos esportivos que inicialmente aconteceram sem público foram sequencialmente interrompidos. À medida que se tornavam alvos de críticas e eram vistos como focos de transmissão da doença, os agentes políticos e econômicos do futebol precisaram ceder à realidade. Coisa rara para uma indústria imune a crises e ao rigor da justiça...2 A Eredivisie, a liga holandesa de futebol, se encerrou sem campeão, nem rebaixamento/promoção ao final do mês de abril, sendo negociadas apenas as classificações para as competições europeias – que sequer tinham definição sobre retorno ou continuação. Cidades importantes do continente, como Milão e Madri, noticiavam cerca de 500 mortes diárias mesmo após a fase mais aguda da contaminação. Em seguida, em carta enviada às ligas europeias no dia 28 de abril, a UEFA estabeleceu um prazo de 28 dias para que as entidades comunicassem suas decisões sobre a temporada 2019/20. Até aquele momento, dentre as grandes ligas, apenas o governo francês havia se pronunciado de forma mais consistente, em uma coletiva do primeiro-ministro Édouard Philippe: no cenário mais otimista, grandes eventos só voltariam acontecer após o mês de setembro.3 No Brasil, de forma ainda mais dramática, a pandemia atingiu o andamento dos campeonatos estaduais e suas

pequenas economias de salários módicos, clubes de pequena estrutura, receitas diminutas e carentes de liquidez. O campeonato brasileiro ainda torcia contra o relógio e a favor de uma solução para uma doença viral altamente contagiosa, letal e desconhecida, que não deixava margem para boas expectativas. A única coisa que se sentia até ali era a absoluta certeza de que a indústria do futebol não seria a mesma após a pandemia. Para o bem e para o mal. Importante anotar a surpreendente notícia (e posterior polêmica) da compra do clube inglês Newcastle United por Mohammed bin Salman, príncipe da Arábia Saudita. Por meio da mobilização de recursos do Fundo de Investimento Público do reino saudita, um novo país do Golfo Pérsico, em plena crise pandêmica – cotejada por uma grave crise do petróleo –, adquiria um clube europeu. A Arábia Saudita entrava no universo já ocupado pelos emirados de Abu Dhabi (Manchester City) e do Qatar (Paris Saint-Germain). Tema de um dos artigos desse livro. Sim, o futebol-negócio é obsceno. Este livro é motivado, basicamente, por esses e outros casos que fazem dessa indústria um universo insólito, grotesco, esdrúxulo, que se forma sobre a propriedade de instituições centenárias, socialmente produzidas ao longo da história. Era impossível arriscar qualquer prognóstico convicto do que viria pela frente no momento do fechamento do livro. Alto endividamento, ausência de recursos para pagamento de salários, rompimentos de contratos e cancelamentos de competições estavam convivendo nas mesmas páginas que noticiavam a aquisição de clubes por valores que superavam o PIB de uma dezena de pequenos países. Mais seguro voltar ao mundo pré-pandemia.

*** Estávamos em 7 de setembro de 2019, em um sábado reservado para uma sessão do Cinefoot – Festival de Cinema de Futebol, no Rio de Janeiro –, convidados por intermédio de Diogo Leal, coordenador do evento, e Leda Maria Costa, minha colega de Leme/UERJ. Na ocasião, discutiríamos o documentário A Última Final (2019), que retratava a final da Copa Libertadores de 2018 entre os rivais argentinos Boca Juniors e River Plate. Foi quando conheci pessoalmente Fernando Martinho, diretor do documentário e responsável pela editora Corner, já conhecida pela revista homônima e pela iniciativa de publicação do livro Futebol versus Poder. Naquela oportunidade, trocamos as primeiras ideias sobre a nova fase da editora, sobre a minha produção acadêmica e jornalística e sobre o meu antigo interesse em organizar um livro com o tema “clube-empresa”. Semanas depois, em outra oportunidade, oficializávamos a ideia de lançar o livro, do qual eu ficaria responsável por convidar os autores e movimentos que compõem a obra, coordenando os temas e o cronograma. Aquele setembro de 2019 foi marcado pelo período mais intenso das investidas midiáticas do deputado federal Pedro Paulo (DEM-RJ), relator do Projeto de Lei n. 5082/2016. O PL, que já era conhecido como “Projeto Clube-Empresa”, ganhava notoriedade e surfava no prestígio e interesse do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, que participava abertamente do diálogo com os segmentos interessados no tema. Na semana seguinte às primeiras ideias sobre o livro, publiquei, no site do Trivela, um artigo de título “Clubesempresa no Brasil: por um contraponto nessa conversa”4,

oportunidade que ampliou o alcance da discussão pretendida neste livro e acabou por destacar, por meio de conversas e reações de leitores, os pontos-chaves carentes de conhecimento por parte do torcedor brasileiro. Mesmo as informações e dados mais elementares sobre a transformação de clubes em empresas seguiam fora do alcance dos muitos interessados no tema. A bem da verdade, o debate ainda se encontrava no mesmo campo das promessas dos anos de 1990. Enquanto o mundo apresentava exemplos concretos - falências e atividades ilícitas na Itália, abandono de clubes e alto endividamento na Espanha, fracasso esportivo e financeiro no Chile, corrupção e gestão temerária na Inglaterra e desequilíbrio e concentração financeira na Áustria –, o Brasil ainda atravessava todo o ano de 2019 repetindo os mesmos mantras de 30 anos atrás, e as mesmas percepções inocentes (ou nem tão inocentes) do momento da aprovação da Lei n. 9.615/1998, também conhecida como Lei Pelé. Afinal, nada de novo estava sendo criado no Brasil. O “projeto clube empresa” apenas buscava atualizar e reformular o que já se existia em termos de legislação esportiva quanto aos modelos disponíveis para que os clubes deixassem o formato de associações civis sem fins lucrativos para se converterem em sociedades empresárias. De realmente novo, discutiam-se elementos relacionados a um novo refinanciamento de dívidas, benefícios fiscais, relações trabalhistas e um perigoso atalho para adoção de um programa de recuperação judicial para clubes endividados. A aprovação do texto na Câmara aconteceu no dia 28 de novembro de 2019, às vésperas do encerramento do Campeonato Brasileiro daquele ano, vencido com sobras pelo Clube de Regatas Flamengo. O texto aprovado foi o do

substitutivo de Pedro Paulo (DEM-RJ), relator do texto, ao PL n. 5.082/2016, do ex-deputado Otavio Leite (RJ) e do então deputado federal Domingos Sávio (PSDB-MG), que havia herdado a autoria do projeto. Outros projetos também foram inseridos no substitutivo, que acabou por eliminar quase que inteiramente o teor do PL original, apresentando uma proposta consideravelmente distinta. O projeto original de Otávio Leite já buscava ganhar evidência desde o longo processo de discussão do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol do Brasil, o Profut, em 2015. O então deputado tentou inserir na discussão do programa a proposta de criação das “sociedades anônimas do futebol” (SAF), modelo jurídico mais complexo que tinha a intenção de criar uma série de condições mais sedutoras e controladas para que os clubes deixassem o formato de associações civis sem fins lucrativos. A proposta original de Leite e de seus apoiadores era que a criação de uma SAF fosse pré-requisito para os clubes que quisessem aderir ao refinanciamento de dívidas com a União, previsto no Profut. O ponto foi vetado pelo então Ministro da Fazenda Joaquim Levy sem grandes explicações. A proposta então perde força e o tema “clube-empresa” só é retomado quando Botafogo de Futebol e Regatas anuncia a sua pretensão de colocar em prática o projeto elaborado pela Ernst & Young Global Limited, na altura de março de 2019. A empresa é uma transnacional que opera consultorias financeiras, e havia sido contratada por dois renomados sócios da instituição: os irmãos João e Walter Moreira Salles, sócios do Itaú Unibanco, maior banco privado da América Latina. O estudo da Ernst & Young detectou uma dívida de mais de 700 milhões de reais, praticamente impossível de ser saneada pelo clube, senão por meio de “capital externo”. Dentre as muitas possibilidades, como era de se esperar, o projeto sugeriu ao

Botafogo que se transformasse em empresa e passasse a ter acionistas. Esse é o principal fato motivador de toda movimentação explicada anteriormente. 5 Após aprovação na Câmara, o PL de Pedro Paulo (DEM-RJ) estava previsto para ser votado no Senado, quando uma das inúmeras crises do governo federal atrapalha o seu andamento. Em paralelo, um novo projeto, o PL n. 5.516/2019, é apresentado sobre o tema na casa, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG). O parlamentar não apenas apresentou um projeto que rivalizava frontalmente com o do seu correligionário, como também resgatou em seu texto praticamente todos os preceitos contidos no PL n. 5.082/2016. Dentre os pontos principais, a ideia de “sociedade anônima do futebol”, removida pelo substitutivo de Pedro Paulo. Na altura do fechamento deste livro, tal era a curiosa situação: o PL aprovado na Câmara, resgatado por razões burocráticas, ganhou um texto completamente distinto, e, ao seguir para o Senado, confrontou-se com um novo PL, cujo teor era fiel àquele substituído inteiramente pelo PL da Câmara. Positivamente falando, de todo esse imbróglio ao menos não se retomaram ideias de uma lei de caráter compulsório, muito frequentes nos anos de 1990. Resguardava-se uma velha jurisprudência do meio do futebol, que preserva a autonomia das associações civis. Apesar disso, no projeto com maior tendência de aprovação, os benefícios criados estariam apenas disponíveis “se e somente se” o clube promovesse sua conversão em empresa. Ao mesmo tempo em que criava uma situação de injustiça financeira para com as associações com estruturas sociais mais sólidas, ofertando ajuda estatal apenas àqueles clubes que possuíssem donos, o projeto também criava dentro dessas associações um tipo de constrangimento político que já era notado na altura do

fechamento desse livro. Tradicionais grupos de poder – conselheiros e sócios com “nome forte” e conta bancária polpuda – viram na iniciativa legislativa um aliado de grande valia para colocar em prática antigos projetos de controle total das agremiações. A narrativa de inevitabilidade da transformação de clubes em empresas e de associados em acionistas jogava totalmente a favor das velhas oligarquias, ávidas por eliminar oposições e concorrências. As mesmas velhas oligarquias que criaram as mesmas situações “amadoras” que os defensores do clubeempresa sempre questionaram. A roupagem mudaria, mas as práticas e os atores não. Como dito anteriormente, esta obra não pretende esmiuçar ou debater tais projetos de lei. É a própria concepção de clubes como empresa que está em questionamento aqui. O breve contexto feito serve apenas como momento de localização do leitor quanto à dinâmica desses debates, nem tanto consensuais em seus pormenores. Os inúmeros exemplos globais predecessores servem como parâmetros para o Brasil, portanto, é compreensível a existência de diferentes perspectivas que emergem dentro do campo defensor da conversão de clubes em empresas. Essas distinções poderão ser melhor compreendidas na leitura sobre cada modelo escolhido pelos países aqui trabalhados. *** “Clube Empresa” é resultado da existência e colaboração de cinco coletividades bem distintas. Uma delas é o Na Bancada, projeto criado em abril de 2018 para atuar como plataforma múltipla de conteúdo, da qual o livro em questão é uma das produções. O Na Bancada é

originalmente pensado como um “podcast”, na ocasião em que lançava o livro Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno6 em São Paulo. Na sua mesa de lançamento, Matias Pinto, membro do estúdio Central 3, e também realizador do podcast O Som das Torcidas, estava entre os convidados. Esses projetos são parceiros no podcast “SDT Na Bancada”,7 compondo dois conteúdos distintos dentro do mesmo canal. O Som das Torcidas tem como enfoque a apresentação e discussão das músicas cantadas nos estádios de todo o mundo, tratando de clubes específicos, rivalidades ou norteando-se por um gancho temático. Complementarmente, no mesmo território de concreto, o Na Bancada faz um trabalho menos “musical” e mais sociopolítico, abordando temáticas que competem ao dia-adia dos torcedores de futebol do Brasil e do mundo, guiando-se pela proposta de um conteúdo em defesa das culturas torcedoras, de clubes democráticos e de estádios populares. Nesse processo produtivo conjunto e de mútuo aprendizado, ao qual se somara uma dezena de companheiros,8 os horizontes das abordagens, os contatos e o conhecimento sobre a realidade de torcedores de inúmeros países foram se expandindo. Sem o desenvolvimento do trabalho jornalístico exigido pelo podcast, o livro Clube Empresa não existiria: autores, personagens, casos e realidades aqui registrados foram abordados no “SDT Na Bancada”. Outra parte indispensável para a realização dessa obra é a bagagem acumulada em ambiente acadêmico. O supracitado Clientes versus Rebeldes é também fruto de uma pesquisa realizada em estágio de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sob a orientação

do Prof. Dr. Ronaldo George Helal, a pesquisa é vinculada ao Laboratório de Estudos de Mídia e Esportes (LEME/UERJ), de sua coordenação. A produção desse livro ocorreu também em meio ao processo de pesquisa de doutorado na mesma instituição, sob financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (Capes). Para além dos vínculos formais, também fica a nota de agradecimento aos colegas pelo apoio: Alvaro do Cabo, Carol Fontenelle, Camila Augusta, Clara Quintanera, Fausto Amaro, Felipe Mostaro, Juan Silveira, Leda Costa, Marina Perdigão, e tantos outros que passaram pelo LEME. Falando em ambiente acadêmico, Clube Empresa também contou com a generosa contribuição e divulgação do portal Ludopédio. Sempre muito atentos aos movimentos da produção acadêmica sobre futebol em seus inúmeros meandros, o portal não apenas ajuda a aglutinar e a congregar pesquisadores brasileiros e estrangeiros, como também aparece no livro como colaborador nas letras de Victor Figols de Leonardo, autor do artigo que abre esta obra, ao lado de Daniel Ferreira. Por fim, completa o corpo de responsáveis pela publicação de Clube Empresa a editora Corner, cuja participação já mereceu uma contextualização à parte. Sem mais delongas, vamos ao conteúdo o livro. *** Clube Empresa foi estruturado para garantir, em duas frentes de investidas, a compreensão mais profunda das particularidades do processo de transformação de clubes em empresa em quatro localidades: Espanha, Portugal, Chile e Argentina. Os países em questão foram escolhidos por representarem, ao mesmo tempo, diversidade e

proximidade com a realidade brasileira, qual modo possuem características históricas, políticas e socioculturais mais aproximadas, também se encontram em níveis bem distintos de potencial financeiro na pirâmide da indústria do futebol. Da parte que se aproxima do Brasil, esses países também tiveram a difusão da prática do futebol promovida por associações, clubes e sociedades fundadas em um período histórico semelhante. Em todos esses casos, essas entidades básicas da prática, ensino e competição esportiva se guiaram pelos mesmos ideais associativos, ainda que tenham constituído, por óbvio, características particularmente locais (classistas, étnicas, regionais, etc.). Atravessaram, portanto, as diferentes etapas de desenvolvimento da indústria do futebol – popularização, profissionalização, massificação e midiatização – de uma maneira que nos permite conexões facilmente assimiladas nas etapas mais recentes de empresarização. A diversidade geográfica e econômica, por outro lado, contribui para enxergar a complexidade do tema abordado e a necessidade de um olhar mais apurado a cada elemento do objeto. Enquanto tomamos como exemplo dois países europeus – logo, circunscritos em ambientes mercadológicos próprios, como as competições da UEFA –, também notamos suas diferentes escalas: a Espanha é uma das “Big Five Leagues”, o grupo das ligas mais ricas do planeta. Já a liga de Portugal disputa relevância contra forças secundárias do continente, sem deixar de se estabelecer como destino importante de atletas sulamericanos. A mesma relação existe entre Argentina, Chile e Brasil, países que compartilham o mesmo espaço geográfico e complexo mercadológico do futebol da América do Sul, sob o comando da Conmebol. Em termos de escalas de

relevância econômica, o país andino é o mais frágil e precário, de modo que seu pioneirismo na transformação dos seus clubes em empresas não contribuiu nem minimamente para elevar o seu status financeiro, tampouco esportivo, na esfera continental. Aproximações e diferenças recebem influências transversais das particularidades formadas nos arcabouços legais de cada país. Associações civis podem ou não conviver com as sociedades anônimas. A depender do país escolhido, associações podem participar como acionista dessa empresa, ou mesmo deixarem de existir por força da lei. Nesse processo, o torcedor mais ativo pode se posicionar, ser percebido e se perceber de formas muito distintas, principalmente aquele que já estabelecia relações associativas mais sólidas. Para conseguir dar conta desse desafio, o livro conta com três partes, sendo as duas primeiras diretamente conectadas. Seguindo o método que utilizamos no podcast “SDT Na Bancada”, no qual produzimos conteúdos sobre todos os temas tratados neste livro, a análise políticoeconômica e sócio-histórica da indústria do futebol de um país deve ser acompanhada e contemplada pela experiência de torcedores organizados em coletivos, agrupamentos, movimentos, associações, etc. Partimos do princípio de que esses grupos são produtores de conhecimento e, de igual modo, representantes de um segmento que também produz o futebol. Mesmo que alijados e invisibilizados dentro desse processo, torcedores compõem uma força produtiva dos clubes, em uma relação que merece ser entendida para muito além da produção do espetáculo esportivo. Assim, Parte I - Análises e Parte II - Torcedores são complementares e podem ser lidas em ordem alternada, pois ambas possuem capítulos referentes às realidades de Espanha, Portugal, Chile e Argentina, respectivamente.

Já a Parte III – Outras questões traz temas correlatos e complementares que compõem o cenário do processo de transformação dos clubes em empresas – ou do seu aprofundamento – no século XXI. São cinco artigos ao todo. Um deles é focado especificamente no Brasil dos anos de 1990, em um contexto muito importante para entender o “atraso” do nosso futebol com relação ao processo de empresarização. Um segundo artigo também foca especificamente na Alemanha. Os três artigos que fecham o livro, como veremos adiante, são mais aproximados quanto ao interesse nos atores políticos e econômicos que hoje dominam o futebol global. Essa trinca possui relação intrínseca com o capítulo introdutório. Dessa forma, os 14 artigos do livro estão organizados para que não seja necessária uma leitura em ordem de apresentação. Estão elencados sem dependência cronológica ou temática entre eles. Caberá ao leitor escolher o roteiro da sua leitura, definindo o recorte espacial/temporal/temático que convier à sua pesquisa. Por exemplo: para entender como o Girona FC se torna um dos clubes da holding City Football Group, mais de 25 anos após se tornar empresa graças à Ley de Deportes espanhola, destrinchada no capítulo 1, será possível estudar o processo histórico da constituição do conceito de multiclub ownership por intermédio da leitura do capítulo 13. Complementarmente, o capítulo 12 aprofunda a discussão sobre o capital do emirado de Abu Dhabi no futebol, e como isso se explica por meio da análise da geopolítica do Golfo Pérsico. De igual modo, o leitor poderá fazer o estudo do caso do Racing Club, descrito no capítulo 8, por meio de uma contextualização mais aprofundada sobre o futebol argentino nos anos de 1990/2000, exemplarmente construída no capítulo 4. Uma empreitada que se

complementa com uma análise da crise que atingiu as economias da América do Sul, e consequentemente o seu futebol, abordada no capítulo 9. Conectados pela temática central do livro, cada artigo possui a sua particularidade e contribui com a composição de um quadro teórico e analítico amplo. O livro atinge seu objetivo em estabelecer leituras profundas, que trazem os pontos indispensáveis para a compreensão de cada realidade parcial da indústria do futebol e como elas se relacionam entre si. Em que pese o alto nível de globalização do futebol-negócio, é de se perceber a relativa autonomia de cada país/liga, cujas leis internas ainda são soberanas frente às determinações das entidades gestoras como FIFA, UEFA ou Conmebol. Isso implica que não é possível abordar um país em específico usando os mesmos óculos que ajudaram a entender outro país. Seria preciso dar atenção redobrada a três pilares, todos devidamente contemplados pelos autores convidados: 1) os aspectos político-econômicos e a posição daquele país dentro da indústria global do futebol – centro/periferia, exportador/comprador, potência geopolítica/país dependente, etc. – bem como as características particulares da regulamentação adotada para o tema; 2) as características políticas dos clubes do país – quando e como deixaram de ser ou persistiram em se manter associações civis, o grau de participação dos associados nos órgãos decisórios das agremiações, as narrativas que impulsionaram as ideias de empresarização na opinião pública, etc.; 3) as culturas torcedoras e suas reações aos projetos de empresarização dos clubes, suas consequências na relação clube/torcida em suas novas estruturas, o surgimento de novas práticas do torcer e a renovação na percepção identitária, pertenciva e participativa do torcedores.

Enquanto organizador do livro, fiquei responsável pela produção do artigo introdutório, que serviria de pontapé inicial para as investigações seguintes. Em “Clube-empresa: histórico, impactos reais e abordagens alternativas”, estabeleço conceitos, sistematizações e categorizações importantes para guiar o estudo do tema em um quadro, por assim dizer, mais panorâmico. No artigo são tratados casos de clubes de distintos países que, juntos, corroboram a tese de que a propriedade de clubes de futebol não se estabelece enquanto um negócio lucrativo do ponto de vista financeiro. Contudo, como esses muitos casos ajudam a perceber, nota-se a alta eficiência da propriedade de clubes em render “dividendos políticos” para seus envolvidos. Em distintas esferas – política eleitoral, geopolítica ou mercado de capitais –, a tônica da propriedade de clubes é cada vez menos produção de lucro e mais produção de imagem, relações públicas e propaganda. A Parte I – Análises é inaugurada pelo trabalho conjunto de Daniel Ferreira e Victor Figols de Leonardo em “A Ley de Deporte na Espanha e o modelo de sociedad anónima deportiva: um balanço dos últimos 30 anos”. Os dois pesquisadores brasileiros, com experiência de pesquisa em Barcelona, trazem dados e casos concretos que desenham a complicada situação do futebol na Espanha, mesmo 30 anos após a lei que obrigou os clubes a se tornarem empresas. Observaram, dentre outros aspectos, como, em 2010, os clubes acumulavam uma dívida 40 vezes maior que em 1991, em um país em que o equilíbrio financeiro e o saneamento de dívidas foram os principais motivadores da Ley de Deporte. Na segunda parte, um artigo traz em detalhes o caso do Sevilla FC de modo complementar. Em seguida, em “Acabou o amor: o processo de divórcio entre clube e SAD em Portugal”, Fernando Borges faz um apanhado geral dos efeitos da lei que, em 1996, obrigou os

clubes de Portugal a estabelecerem o formato de S.A.D., em suas posteriores revisões e adequações. A partir de casos de clubes que vivem conflitos entre associação e empresa investidora na S.A.D da agremiação, Borges estabelece um quadro geral problemático sobre o futebol no país. A espinha dorsal do artigo é o clube Belenenses, caso também tratado na Parte II, mas o artigo também aborda outros casos importantes para se conhecer a empresarização à portuguesa. Atravessando o Oceano Atlântico, é Sebástian Campos Muñoz quem ensina sobre o processo chileno de empresarização dos clubes, no artigo “Sociedades anónimas deportivas no Chile: o declínio do futebol social”. Autor de uma pesquisa sobre o tema, Muñoz lança mão de seu trabalho de jornalista para traçar um histórico dotado de depoimentos, com apurado encadeamento de fatos. O artigo permite compreender as inúmeras manobras e interesses políticos que aceleraram a votação do projeto que impôs a conversão das associações civis em “sociedades anónimas deportivas profesionales” (SADP), dando nomes aos envolvidos. No capítulo 7, com foco no Club Universidad de Chile, temos outro artigo que destrincha esse contexto histórico. Por fim, na Argentina, Verónica Moreira e Rodrigo Daskal escrevem “As associações civis desportivas no futebol argentino: privatizações e resistências”. A dupla também é autora do livro Clubes argentinos: Debates sobre un modelo, do qual extrai muitas informações, atualizandoas para o contexto pós-2018: a atuação política de Mauricio Macri, presidente do país, para emplacar a aprovação do formato de empresa no futebol argentino. O ex-presidente do Boca Juniors voltou a ser derrotado, em processo anterior também explicado nesse artigo. Já no capítulo 8, a realidade argentina é discutida a partir do Racing Club de Avellaneda.

A Parte II – Torcedores segue a sequência utilizada anteriormente, com relatos de organizações e de movimentos de torcedores, respectivamente, de Espanha, Portugal, Chile e Argentina. Iniciamos o relato dos torcedores com a experiência dos Accionistas Unidos del Sevilla Fútbol Club, agrupamento representado por seu presidente Moisés Sampedro Contreras, que escreve “Sevilla Fútbol Club: a luta pelo patrimônio dos seus torcedores”. O caso do Sevilla é muito bem-vindo por se tratar da mobilização dos chamados “pequeños accionistas”. Esses antigos “socios” adquiriram e mantiveram a posse de cotas minoritárias de ações naquelas SAD’s que, após a Ley de Deportes de 1990, herdaram os ativos e patrimônios das antigas associações civis. Tal categoria de torcedores-acionistas (ou acionistas de base, como se intitulam) é extremamente peculiar do futebol espanhol, uma vez que as associações foram extintas, ao contrário do que ocorreu nos três outros países abordados. Em seguida, já em Portugal, é a vez de Edgar Macedo e Rui Vasco Silva, representando os sócios do Belenenses, relatarem a longa contenda jurídica estabelecida entre a associação e a empresa Codecity, pela propriedade dos ativos do futebol profissional do clube do Restelo. No artigo “Clube de Futebol ‘Os Belenenses’: síntese histórica de um Clube grande e histórico em Portugal”, os dois sócios dos Azuis relatam de forma mais íntima a batalha dos torcedores pela retomada da agremiação e as estratégias adotadas para esvaziar de valor simbólico e sentido o time controlado pela Codecity. Dentre elas, a corajosa decisão de criar um outro time de futebol com jogadores das divisões de base do CF Os Belenenses, para recomeçar a partir da 6ª divisão de Portugal em pleno ano de centenário.

Novamente mudando de continente, o agrupamento Asociación de Hinchas Azules escreve, a dez mãos, o artigo “Club Universidad de Chile: recuperar o clube para os seus torcedores, superando o fracasso das S.A.”. Histórico alvo de manipulações e interferências políticas, La “U” passou a ser controlada pela empresa Azul Azul S.A em 2007, após concessão imposta pela lei das SADP. Mais do que o relato das ações e das percepções dessa associação contra as sociedades anônimas, o artigo é uma verdadeira autópsia da falência do futebol chileno empresarizado. Inúmeras denúncias, fundamentadas em dados e contextualizações, nos entregam um conteúdo inspirador. Por fim, fechando a Parte II, Lucía Ravecca resgata o histórico da luta dos torcedores e sócios do Racing Club, da Argentina. Em seu artigo “Racing Club de Avellaneda: os torcedores do Racing e a mercantilização do futebol – 19982008”, um interessante e amplo processo de pesquisa que restabelece o cenário conflituoso que atingiu o futebol argentino na virada do século. O mote “Racing es de su Gente” encampado por diversas diferentes organizações de torcedores racinguistas muito explica os movimentos mais recentes de combate a uma nova investida pela sociedade anônima em 2018, como relatado no capítulo 4. Conhecer a história do Racing Club e da sua transformação em Blanquiceleste S.A, bem como sua posterior crise, é uma obrigatoriedade para se entender o rechaço dos torcedores argentinos à ideia de empresarização e a consequente defesa das associações civis sem fins lucrativos. Os cinco artigos que encerram o livro, na Parte III – Outras questões, trazem elementos diversos que compõem a atualidade da indústria do futebol. O capítulo que abre a parte final, “A raiz do problema: o declínio do futebol brasileiro após o período das parcerias”, de Marco Sirangelo, trata-se de um raro exercício analítico sobre a virada do século XX no futebol brasileiro. O autor capta

questões conjunturais pouco abordadas de um período que apresentou o que há de mais moderno e o que há de mais desastroso no futebol brasileiro após a Lei Pelé: o desembarque de capitais estrangeiros em diversos e distintos modelos de negócio, bem como os primeiros formatos de clube-empresa dentre as agremiações mais populares do país; ladeado por uma intensa crise provocada por fatores exógenos ao futebol, com destaque para o desastroso efeito da desvalorização do real frente ao dólar. Uma leitura que vai muito além da repetitiva e limitadora díade “moderno/arcaico”, tão exaustivamente replicada das ciências sociais para análises (por vezes desonestas) da política do futebol no Brasil. Em seguida, o livro viaja para a Alemanha, país onde o futebol-negócio adotou características bem peculiares. De Carles Viñas, recebemos o artigo “O modelo societário do futebol alemão: uma referência de sucesso em questão”, responsável por desfazer uma série de lugares comuns sobre o país europeu. O autor debate as origens, limites e desafios do modelo 50%+1, discorre sobre os casos de exceção e as formas de combate organizadas por torcedores, além de traçar um panorama futuro sobre a excepcionalidade alemã. Uma leitura que estabelece uma ponte perfeita entre os objetivos das duas primeiras partes do livro. O 10º e o 11º artigos do livro são de autoria de Emanuel Leite Junior e Carlos Rodrigues. Originalmente planejado para tratar do “soft power” no mundo do futebol, a densidade e o volume dos dados de pesquisa apresentados nos fizeram optar por dois distintos artigos, “Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento de soft power chinês” e “Soft power e futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita”. Esses capítulos são gêmeos bivitelinos da mesma temática: o desembarque de interesses geopolíticos no futebol europeu, com grandes

investimentos estatais, ancorados por demandas por encaixe em mercados privilegiados, cadeias produtivas estratégicas, redes de infraestrutura e investimento financeiro, dentre outras possibilidades. Dadas as imensas diferenças entre os interesses e modos de operação da China e de países do Golfo Pérsico, o tema ganha dois artigos distintos para melhor dissecar cada realidade. Por fim, João Ricardo Pisani promove o fechamento da obra levantando um tema já conhecido, mas que merece novos contornos e, como aponta o autor, sugere a tendência dessa nova década: a propriedade múltipla de clubes. Em “Multi-club ownership: um novo estágio da globalização dentro do futebol” veremos o histórico dessa modalidade de negócio, as experiências mais recentes e as inúmeras contradições da formação de redes de clubes de futebol sob uma mesma propriedade em diferentes países. O artigo discute burlas nas legislações internas, contestações de justiça esportiva, conflitos de interesses e submissão de agremiações a uma pirâmide de prioridades, dentre outros pontos. O livro Clube empresa busca cumprir o desafiador papel de dotar o debate sobre a transformação de clubes em empresas de mais densidade e maturidade. São inúmeros os interesses que se cruzam nesse tema, em que nos encontramos no lado menos prestigiado e audível. Trata-se de um cenário de profunda hegemonia narrativa, em que profissionais e especialistas de gestão do futebol advogam pelo fim da dimensão associativa dos clubes como verdadeira panaceia. Guiados pela incômoda necessidade de oferecer respostas e saídas ao persistente caráter periférico do futebol brasileiro – como se fosse possível não sê-lo –, esses atores são cotejados, em boa medida, pela generosa e pouco questionadora companhia de importantes canais de imprensa.

Também enxergamos na fronteira oposta grupos empresariais cujas finalidades e os indubitáveis interesses estão profundamente atrelados e dependentes do processo de transformação de clubes em sociedades empresárias. Uma vez inadiáveis tais interesses, a forma de garantir a instauração rápida e eficiente desse processo será por meio do esvaziamento de uma sincera – e inconveniente – abordagem crítica sobre os impactos reais da entrega dos clubes, essas centenárias instituições sociais, para grupos privados. Desejo que o leitor tenha uma ótima experiência nessa viagem sobre a história do futebol contemporâneo, preparada de forma cuidadosa, com o esforço de dezenas de colaboradores voluntários compromissados com o objetivo geral da obra, aos quais deixo meu imenso agradecimento e admiração. Espero também que o Clube Empresa seja um livro de grande utilidade no processo sempre imprescindível de participação dos torcedores nos seus clubes.

Referências CENTRAL 3. Som das Torcidas. [s.d]. Disponível em: http://www.central3.com.br/category/podcasts/som-dastorcidas/ ESCUDERO,

Leo.

“Primeiro-ministro

da

França



por

encerrada a temporada 2019/20 da Ligue 1; reunião definirá classificação”.

28

abr

2020.

Disponível

em:

https://trivela.com.br/primeiro-ministro-da-franca-da-porencerrada-a-temporada-2019-20-da-ligue-1-reuniaodefinira-classificacao/. Acesso em: 4 mai 2020. FERNANDEZ, Martin e CAPELO, Rodrigo. “Saem os clubes, entram empresas: entenda o que pode mudar no futebol brasileiro ainda em 2019”. 9 set 2019. Disponível em: https://globoesporte.globo.com/futebol/noticia/saem-clubesentram-empresas-entenda-o-que-pode-mudar-no-futebolbrasileiro-ainda-em-2019.ghtml. Acesso em: 4 mai 2020. SÁMANO, José. “Coronavírus provoca apagão mundial no esporte”.

13

mar

2020.

Disponível

em:

https://brasil.elpais.com/esportes/2020-03-13/coronavirusprovoca-apagao-mundial-no-esporte.html . Acesso em: 4 mai 2020. SIMÕES, Irlan. Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2017. SIMÕES,

Irlan.

contraponto Disponível

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https://trivela.com.br/clubes-empresa-no-

brasil-por-um-contraponto-nessa-conversa/. Acesso em: 4 mai 2020.

Notas

[1] FERNANDEZ, Martin e CAPELO, Rodrigo. “Saem os clubes, entram empresas: entenda o que pode mudar no futebol brasileiro ainda em 2019”. 9 set 2019 [2] SÁMANO, José. “Coronavírus provoca apagão mundial no esporte”. 13 mar 2020. [3] ESCUDEIRO, Leo. “Primeiro-ministro da França dá por encerrada a temporada 2019/20 da Ligue 1; reunião definirá classificação”. 28 abr 2020. [4] SIMÕES, Irlan. Clubes-empresa no Brasil: por um contraponto nessa conversa. TRIVELA. 16 set 2019. [5] MELLO, Bernardo. “Plano dos irmãos Moreira Salles de investir

no

Botafogo

pode

ser

inspirado

em

clubes-

empresa”. 11 mar 2019. [6] SIMÕES, Irlan. Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2017. [7]

Disponível

em:

http://www.central3.com.br/category/podcasts/som-dastorcidas/ [8] Compõem a equipe do Na Bancada: Anderson David Santos, Emanuel Leite Jr., Fred Elesbão, Gabriel Brito, Gustavo Mehl, Nicolas Cabreira, Rodrigo Barneschi e Thiago Cassis.

Clube-empresa, uma abordagem alternativa: elementos introdutórios, histórico e impactos reais

Irlan Simões

Este artigo de abertura tem a intenção de levantar os principais elementos introdutórios sobre o processo de transformação dos clubes em empresas, tema central desta obra. Pretende servir prioritariamente ao leitor menos habituado com o assunto, para garantir que o restante do livro seja compreendido com mais facilidade. Alguns pontos elencados podem soar óbvios ou repetitivos para quem já tem familiaridade com esse objeto, mas também consta aqui uma série de elementos que são pouco colocados lado a lado em análise. O artigo está dividido em três tópicos principais. No primeiro momento, serão levantados os conceitos primários, por meio dos quais serão explicados termos comuns ao tema, como “associação civil sem fins lucrativos” e “sociedades anônimas”. Comumente geradores de confusão, a ideia é explicá-los de forma didática e

simplificada para entender como se dá esse processo de “conversão” de modelo. Em seguida, serão elencados os elementos que compõem o “escopo ideológico” desse campo promotor da empresarização dos clubes, cruciais instrumentos das peças das narrativas favoráveis ao modelo em questão. No segundo momento, será feito um apanhado dos principais fatos históricos de importância vital para a compreensão da temática. Começará com um resgate do contexto de virada entre anos de 1960/70, a chegada da televisão como fator de redimensionamento da indústria e as suas consequências. Em seguida, será feita uma explicação cronológica abreviada do avanço da empresarização dos clubes país a país, destacando alguns pontos singulares em cada realidade. No terceiro momento, será feita uma discussão sobre inserção desse movimento político-ideológico na indústria do futebol. Originários de uma perspectiva que vai muito além da elaboração de métodos, práticas e modelos de gestão, esses pressupostos possuem finalidades políticas sólidas. Após isso, lançaremos mão de uma análise mais concreta sobre os proprietários de clubes no futebol atual, suas origens, seus interesses e suas expectativas ao adquirir um clube. Mais do que descrever esses atores, partiremos do pressuposto de que a indústria do futebol contemporânea não está assentada em uma lógica de mercado convencional. Ao menos no que tange à propriedade de clubes, não se apresenta uma atividade financeira rentável e sustentável. Este artigo introdutório fará constantes menções aos demais capítulos do livro nas notas, dentro do espírito explicado na apresentação: a obra não demanda leitura em sequência, por ordem cronológica ou por localidade abordada. Desse modo, as próximas páginas podem servir

para montar o roteiro de leitura mais adequado ao interesse do leitor. Conceitos primários Quase todo o futebol do mundo foi produzido por associações civis filiadas a ligas ou a federações. Mesmo que alguns países tenham adotado formatos empresariais, a consolidação do futebol como cultura urbana está diretamente ligada a um passado comum. O futebol de associações sempre foi parceiro dos costumes e divertimentos populares na difusão dessa prática lúdica, ao mesmo tempo jogável e assistível. A tradição associativa precede em muito o surgimento do futebol, mas está extremamente vinculada à sua existência. Em suas formas urbanas modernas, o associacionismo está presente na organização e articulação de inúmeros segmentos sociais, nos quais a prática de esportes e divertimentos era uma das tantas possibilidades objetivas. Os “clubes” em si, como observa o argentino Julio Frydenberg (2001), foram “experiências que foram mais além do que a mera utilização do tempo livre”. Desse modo, era comum que as associações seguissem estruturas estatutárias semelhantes, nas quais seus integrantes – os sócios –, por meio de contribuições financeiras e critérios de admissão previamente definidos, gozariam de igualdade em direitos e deveres. Não foi diferente com os clubes esportivos e de futebol na virada do século XX. Esses princípios seguiam claros preceitos democráticos liberais comuns à Inglaterra, país onde a prática do futebol adotou suas normas primordiais, mas também potência econômica e política global difusora de práticas culturais e modos de vida. Nas palavras de Gilmar Mascarenhas (2002), os ingleses eram “portadores dos nexos globais, os agentes ‘demonstradores’ desta novidade

esportiva, e a presença maior ou menor destes agentes implica no grau de exposição do lugar” à prática do futebol. O mesmo se pode dizer sobre a prática associativa. Associações civis também foram fortemente influenciadas por ideais republicanos muito presentes em seu tempo. Isso se reflete diretamente nas formas como essas organizações foram estabelecidas ao longo de muitas décadas. A assembleia de sócios, soberana, é o órgão responsável por eleger representantes em três distintos órgãos, que, por sua vez, dinamizavam a estrutura de uma república: um conselho diretor (ou administrativo) correspondente às funções de um Poder Executivo; um conselho fiscal com atribuições dignas de um Poder Judiciário; e (em alguns países) um conselho deliberativo cuja composição e atribuição se assemelhariam a um Poder Legislativo.

Imagem 1: Modelo generalista da estrutura de uma associação civil sem fins lucrativos, como são os principais clubes de futebol no Brasil e na Argentina.

As características dessa associação – a sua composição social, suas normas internas e a sua finalidade –, por óbvio,

dependem diretamente do interesse e da correlação de forças do seu corpo de associados. Mas o ponto mais importante a ser destacado aqui, dentro do espírito do associacionismo em geral, é o seu caráter “sem fins lucrativos”. Esse termo costuma gerar confusões no observador menos atento à discussão da transformação dos clubes de associações para empresas. Clubes associativos, principalmente nos tempos atuais, são promotores de atividades econômicas e, ao menos até onde a lógica sugere, são guiados pelo lucro – isto é, pela geração de mais receitas do que de gastos. O significado de “não lucrativo” aqui, portanto, se refere à previsão legal de impossibilidade de reversão desse “lucro” (os ganhos financeiros da atividade econômica) para benefício privado dos seus associados. Em outras palavras: toda receita gerada por um clube de futebol em formato de associação civil sem fins lucrativos deve permanecer na associação, e nenhum associado está autorizado a retirar parte desse lucro para si. Caso o faça, estará agindo de forma ilegal nas normas internas e externas à associação. Caso a associação deseje permitir o repasse de dividendos aos seus envolvidos de forma lícita, ela deverá adotar um novo modelo jurídico previsto em lei: uma sociedade empresária.1 Aqui está o grande cerne da questão: a ideia da conversão do modelo jurídico de associação sem fins lucrativos para sociedade empresária está baseada fundamentalmente na possibilidade de que os envolvidos na sua gestão possam auferir dividendos condizentes com os lucros obtidos nessa sociedade. Como veremos adiante, isso não está apenas relacionado a uma proposição meramente gerencial e técnica.

Em quase todo o mundo essas atividades estão regulamentadas sob marcos muito semelhantes, por meio dos quais incidem taxações sobre as sociedades empresárias, não equivalentes para as associações civis. Isso gerou um enorme debate no mundo do futebol, pois se discriminou o que seria uma “atividade econômica” daquilo que seria uma “atividade empresária”, mesmo dentro de uma indústria geradora de altíssimos valores de remuneração aos seus “funcionários”, volumosas trocas comerciais de seus “ativos” e portentosos contratos de cessão de sua “imagem”. O modelo associativo passa a ser visto como anacrônico. Ao mesmo tempo, também é vitimado por movimentações ilícitas. À medida que crescem os valores do futebol, também crescem os casos de corrupção dentro e por intermédio dos clubes. Deixemos para mais adiante uma discussão mais elaborada sobre isso. A partir de esquemas hipotéticos, faremos um exercício para tornar mais compreensível a transformação de uma associação civil sem fins lucrativos em uma sociedade empresária. Partiremos do pressuposto de que estamos em um país onde a regulamentação legal não impôs obrigatoriedade de conversão aos clubes. Usaremos o modelo de sociedade anônima, que, por sua vez, é apenas um dos possíveis modelos de sociedades empresárias no futebol. É o modelo mais comentado porque, de fato, foi utilizado como base na legislação da maioria dos países que trataram do tema. Vamos considerar o Clube Náutico Capibaribe como a nossa instituição modelo: uma associação na qual uma Assembleia Geral de Sócios decidiu, com a maioria dos votos, pela sua conversão em sociedade anônima, com previsão de venda das suas ações para investidores externos.

A “Imagem 2” ilustra como se daria esse processo: o Clube Náutico Capibaribe deverá criar uma empresa – nesse caso, a hipotética Vermelho&Branco S.A. –, e transferir todo seu patrimônio, ativos, marca e dívidas para essa nova pessoa jurídica, que deverá ser devidamente registrada e regularizada junto aos órgãos competentes, como uma sociedade anônima convencional deve fazer.

Imagem 2: Esquema hipotético em que o Clube Náutico Capibaribe aprova a transferência de seu patrimônio, ativos, marca e dívidas para a empresa Vermelho&Branco S.A.

“Patrimônio” deve ser visto como o conjunto das posses do clube, como o estádio, o centro de treinamento, os prédios administrativos, as sedes sociais, etc.2 Os “Contratos”, no caso de um clube de futebol, são os contratos vigentes de direitos econômicos e federativos dos atletas, como também os contratos de cessão de direitos de imagem para transmissão televisiva/on-line dos eventos jogos de futebol. A “Marca”, para além do registro formal

dos direitos de uso e comercialização, também compõe toda uma carga simbólica que confere legitimidade frente aos torcedores.3 Por fim, teríamos a transferência do passivo financeiro da instituição, afinal, as dívidas sempre são o principal argumento para esse tipo de empreitada. Uma observação fundamental: um clube não tem a obrigação (exceto se previsto em lei, como foi o caso da Espanha),4 de transferir absolutamente todo seu patrimônio e ativos para a sociedade empresária. Em boa parte das vezes, essa relação só envolve os direitos sobre o futebol profissional e de formação. Suponhamos que, com essa operação, todo o capital social da Vermelho&Branco S.A fosse avaliado em R$ 10 milhões. No caso de uma sociedade, esse capital é repartido em ações de igual valor, que podem ser negociadas individualmente ou em bloco. Para criar um esquema hipotético mais simplificado, repartiremos o capital social dessa nova empresa que herdou as propriedades do Clube Náutico Capibaribe em dez partes (ações) de R$1 milhão de valor.5

Imagem 3: Esquema hipotético no qual o Investidor A adquire 40% do capital da Vermelho&Branco S.A, por R$ 4 milhões; e o Investidor B adquire 30% do capital por R$ 3 milhões.

Observe que o Clube Náutico Capibaribe permaneceu sob o controle de 30% das ações da V&B S.A., remanescentes do processo de venda pública das ações. Desse modo, embora minoritária, ainda detém participação acionária nessa empresa. O modelo utilizado é bem comum em diversos países e inclusive já foi praticado no Brasil, quando o clube não encontra interessados em adquirir essa participação (ou ele próprio não deseja perdê-la). Seguindo o que esse esquema hipotético extremamente simplificado permite ilustrar, do total do capital investido pelo Investidor A (R$ 4 milhões) e pelo Investidor B (R$ 3 milhões), tem-se um montante de R$ 7 milhões. Para onde iria esse recurso? Uma parte será destinada ao pagamento dos passivos financeiros da associação. A outra, uma vez que a associação não pode ter seus dividendos distribuídos entre seus associados, será revertida em forma de investimento em melhorias do patrimônio (como melhorias no estádio) ou novos ativos (compra de jogadores). Por isso é importante ter em mente que quando se fala de “sanar dívidas” no ato da compra de um clube, estamos falando de um processo absolutamente natural e corriqueiro nesse tipo de estrutura de negócio. O eventual “investidor” de um clube de futebol não deve ser visto como um filantropo: ele está adquirindo o patrimônio de uma instituição centenária em condições muito favoráveis, basicamente pelo valor das dívidas que ela detém. E ninguém adquire uma empresa para conviver com dívidas. À medida que esse investidor está negociando com uma associação civil sem fins lucrativos, ele basicamente transforma todo aquele valor desembolsado para adquirir a propriedade do clube em investimentos que favorecem a ele próprio. No fim das contas, o que foi comprado de fato

foi uma dívida. O patrimônio e praticamente como compensação.

os

ativos

serviram

O que aconteceria a partir daí? Por um lado, o Clube Náutico Capibaribe, por meio da decisão de seus associados, poderia ainda se valer desses 30% de ações para negociá-las em um momento mais estratégico, com o intuito de voltar a capitalizar o clube. Nesse caso, os outros acionistas voltariam a ser beneficiados, uma vez que esse valor seria integralmente utilizado em novos investimentos ou no pagamento de eventuais novas dívidas adquiridas pela V&B S.A.. Mas caso o Investidor B decidisse fazer a mesma coisa com as suas ações, esse valor seria integralmente revertido para seu proveito próprio, e não do clube/empresa. Afinal, essas ações são de sua inalienável propriedade. No momento em que a associação civil sem fins lucrativos do Clube Náutico Capibaribe vendesse todas as suas ações para um hipotético Investidor C, e já não dispusesse de participação na Vermelho&Branco S.A, estariam, enfim, esgotados todos os recursos de capitalização “fácil” dessa empresa. Um novo processo de capitalização só poderia se dar com uma rodada de investimento em comum acordo da parte dos então acionistas, ou por meio da decisão de aumento do capital social dessa empresa. Como o futebol é uma indústria instável e a propriedade de clubes é um negócio comumente deficitário, esse tipo de decisão é arriscada e pouco comum. É nessa altura que o clube-empresa fica estagnado, e onde se inicia a aposta na venda intensa de ativos (jogadores) para gerar dividendos. O desempenho financeiro então se torna prioridade frente ao desempenho esportivo. Há ainda a dimensão gerencial que precisa ser contemplada nessa explicação preliminar: uma sociedade

anônima também lida com divergências e crises políticas, uma vez que seu conselho administrativo é formado pelos acionistas em formato assemblear. Toda empresa nesse formato tem a obrigação de prestar contas aos seus acionistas, afinal, é uma sociedade – e, sim, há inúmeros casos de fraudes financeiras em clubes de futebol, que lesam tanto a instituição como também os seus investidores. Esse momento se dá em uma Assembleia Geral de Acionistas,6 que, diferente das associações, não dá direitos iguais aos seus participantes. O peso do voto é o peso da propriedade de ações. No nosso esquema anterior, o Investidor A (40%) possui maior poder de decisão que o Investidor B (30%) e que a diretoria eleita do Clube Náutico Capibaribe (30%). Em suma, quem tem mais, manda mais.7 Apesar de extremamente simplificado, esse esquema não comete distorções sobre o mundo real da propriedade de clubes. É o que nos leva a questionar como foi possível que tantas dessas instituições fossem vitimadas, algumas inclusive com suas atividades encerradas, dentro de um modelo tão destoante do funcionamento real tanto do futebol, quanto do próprio mercado. Há uma resposta: promessas. Todo processo histórico de formatação de uma lei que obrigue ou incentive a transformação de clubes em empresas passa invariavelmente pelos oito pontos que compõem aquilo que chamo de “escopo ideológico da empresarização do clube de futebol”. São as peças utilizadas para formar um discurso sedutor e eivado de promessas, criado para convencer torcedores, associados, jornalistas e demais dirigentes a admitirem a inevitabilidade um modelo voltado basicamente para beneficiar os futuros proprietários, e não necessariamente as agremiações ou “o futebol”8. São eles:

Eficiência corporativa: dentro de um modelo de empresa, o clube tende a ser gerido a partir de práticas de gestão mais modernas e adequadas; Racionalidade de mercado: livre das atitudes intempestivas dos dirigentes amadores (que assim agem por serem torcedores), o clube será conduzido para ações mais planejadas, previsíveis e responsáveis; Atração de investimentos: com um modelo empresarial, principalmente em sociedade, as estruturas favorecem a chegada dos investidores que as associações afugentavam; Liberdade da política: o modelo associativo é político e, diferente da empresa, torna o clube vítima de corrupção, de fisiologismo e de eleitoralismo; Transparência e governança: dois resultados diretos das sólidas leis que regulam a atividade das sociedades anônimas e punem os maus gestores; Ganho de competitividade: o país, ou o clube, que adotar modelo de empresa vai se tornar mais competitivo frente aos seus concorrentes; Reversão do papel de exportador: com a chegada de investimentos, os bons jogadores não serão vendidos precocemente; Respeito aos clientes: melhores serviços, gestão eficiente e resultado em campo deixarão os torcedores satisfeitos.

Para compreender melhor como a defesa desses pontos se vale de um arcabouço de valores e ideais, é fundamental resgatar o contexto de sua gestação e de seu desembarque no universo do futebol. Não se trata de meras crenças bem intencionadas para o bom desenvolvimento dessa indústria. Tampouco se trata apenas da união tática de interesses privados suspeitos. Por trás dessa ideia de futebol, há um conjunto de dogmas produzidos por concepções ideológicas de natureza políticas muito sólidas e coesas. Futebol-negócio: uma história É comum à bibliografia sociológica e historiográfica sobre o futebol encontrar na figura do brasileiro João Havelange um marco histórico, uma “virada de chave” para a indústria do futebol. O nome do ex-presidente da FIFA, eleito em 1974, se firmou como ponto de acordo dentro do campo, apesar de serem raros os trabalhos realmente dedicados à sua história à frente da gestão do futebol global. Meses antes do fechamento do livro Clube Empresa, era publicada uma valiosa tese sobre esse personagem tão importante. Em A dança das cadeiras: a eleição de João Havelange à presidência da FIFA (1950-1974), Luiz Guilherme Burlamaqui (2019) traz uma nova versão dessa história. Observa o historiador que boa parte dessa percepção de ruptura está baseada na própria narrativa construída em oposição a Havelange quando da sua chegada à presidência. Primeiro não-europeu a dirigir a maior entidade esportiva profissional do mundo, o então presidente da CBF era desenhado como o fundador de um futebol “corrompido pelo excesso de dinheiro que circulava na FIFA e pela adoção da corrupção como modus operandi da própria política”. Evidente que a história não é feita de eventos isolados. O britânico Charles Critcher (1979) já anotava, ainda em 1973,

as novas dinâmicas adotadas em um esporte dominado por uma nova geração de diretores orientados para uma perspectiva corporativa.9 O final dos anos de 1960 testemunhou a chegada da televisão ao universo do futebol, o que, para o autor, significaria uma quebra de paradigmas sem precedentes, que já se anunciava nas novas práticas de gestão e de produção do espetáculo nos estádios. Como observa Luiz Guilherme Burlamaqui (2019, p. 21), foi o britânico Stanley Rous, antecessor de Havelange, quem inaugurou esse período. Ao negociar os direitos de transmissão da Copa do Mundo de 1966 e 1970, Rous alinhava a FIFA às transformações de uma década que já havia testemunhado a Inglaterra derrubar suas regras de tetos salariais e, três anos depois, a Alemanha finalmente regulamentar a profissão de futebolista. Esses são fatos históricos tão ou mais relevantes do que a celebração do contrato entre FIFA e Coca-Cola, estabelecido por João Havelange apenas em 1976, considerado ainda hoje como “o grande símbolo” de mercantilização do futebol. De toda sorte, dada a longevidade da gestão Havelange frente à FIFA – só encerrada em 1998 –, é de se considerar a preponderância e a solidez que suas ideias e ações tiveram. A estabilidade de um projeto que, sim, se baseava nas concepções de venda de “um produto chamado futebol” (frase a ele muito atribuída, mas sem registro histórico concreto), contribuíram para o avanço de novas mentalidades operacionais para o futebol. Serviam também para romper, sem maiores cerimônias, alguns tabus que porventura persistissem em negar as novas transformações do futebol-negócio. Em detrimento do público dos estádios, diversos desses tabus foram rompidos com a entrega total do espetáculo futebolístico aos interesses desse pujante complexo esportivo midiático que se formava. A renda dos jogos,

tradicional fonte de receita, se mostrava pouco impactante diante do total redimensionamento provocado pela televisão. A caixa transmissora de imagens, cada vez mais presentes nos lares da classe média, mobilizava olhos e corações para o novo espetáculo esportivo consumível do sofá. O futebol se transformava em uma potente indústria de “mercadoria audiência”, conceito cunhado por César Bolaño (2000, p. 215) para designar o caráter duplo dessa nova produção cultural, ao mesmo tempo geradoras de produtos consumíveis pela via direta e também responsável por moldar a “audiência” como um ativo a ser comercializado com redes de telecomunicações, que capitalizariam seus contratos com a sua revenda aos anunciantes pela via da publicidade. Uma grande corporação era aquela vista pela televisão, uma corporação ainda maior era aquela vista pela televisão em um espetáculo de futebol. Apesar de o interesse da produção audiovisual no futebol já ser longevo, datado ainda da década de 1930, como bem cataloga Anderson Santos (2019, p. 34), as limitações tecnológicas adiaram esse processo até a década de 1970. O espetáculo de futebol televisivo em tempo real, em cores e dotado de recursos técnicos visuais em múltiplos ângulos, adquire um novo patamar de atratividade de público e de possibilidades de negócio. A chegada de João Havelange à FIFA, portanto, coincide e se beneficia – e contribui – com esse movimento histórico. Não necessariamente o produz. Esse ponto de virada modifica o futebol em distintas dimensões e, voltando ao nosso tema central, é do conjunto dessas causas e efeitos que se faz o revestimento que pavimenta a chegada dessa nova ideia da transformação dos clubes em empresas. Podemos compreender a virada do futebol pós-televisão em quatro ciclos.

Primeiro, tem-se uma multiplicação sem precedentes do público consumidor do espetáculo futebolístico, agora não mais hegemônico em seu segmento frequentador de estádios; a mobilização de anunciantes, guiados por contratos cada vez mais sofisticados, que transformam essa audiência em valor de troca extremamente desejado e concorrido; além da abertura de novas fontes de receitas para os clubes e federações, principalmente nas novas plataformas publicitárias, a exemplo da liberação da exibição da marca dos patrocinadores nos uniformes dos clubes. Esse redimensionamento alicerça o segundo ciclo característico do futebol pós-televisão: o aumento vertiginoso das remunerações dos atletas, agora ainda mais disputados por clubes com maior poder de fogo, que aumentam as suas investidas financeiras para atraí-los; o que leva a investimentos mais arriscados em jogadoresativos, em especial aqueles que, em tese, tenderiam a se valorizar com o tempo. Os valores gastos no futebol cresciam de forma proporcional (ou até superior) ao que essa indústria desenvolvia e ampliava em termos de receitas graças à televisão. Disso, se estabelece um terceiro ciclo: a chegada de novos atores econômicos interessados em compartilhar o “bolo da riqueza” do futebol, até então controlada pelos clubes. O mais relevante desses atores são os agentes de jogadores de futebol, figuras que se notabilizaram ao arrancar os melhores termos possíveis dos contratos com os clubes, que se apresentavam como um sócio indispensável aos atletas, e conseguiram, com o passar dos anos, submeter agremiações e federações aos seus caprichos.10 O quarto e último ciclo é a consequência direta do anterior: o endividamento sem precedentes de associações carentes de métodos e técnicas gerenciais adequadas para

esse novo momento, comumente comandadas por dirigentes “abnegados” que as viam como uma fonte inestimável de capital social, em que o rígido controle financeiro era descompensável diante dos resultados em campo; e o aumento de episódios flagrantes da aproximação despudorada entre clubes e o crime organizado – a exemplo do narcotráfico, máfia, jogo do bicho, etc. Uma vez forjados pela tradição democrática liberal que fundamentou a existência de associações civis, regidas por um código que lhes confere autonomia e liberdade de organização, os clubes esportivos não estavam passíveis de intervenções estatais verticalizadas. Por isso passaram a ser alvos de um intenso debate sobre a revisão do seu “papel social”. Era preciso enquadrá-los sob novos marcos, um formato com o qual o ordenamento jurídico estabelecido já possuísse familiaridade e estivesse preparado para estabelecer os necessários dispositivos de controle e de fiscalização. Como as sociedades empresariais já possuíam. Dos sócios aos acionistas A empresarização do futebol pelo mundo não tem uma forma única de ser lida. Apesar do alto grau de globalização dessa indústria, seu desenvolvimento é dependente das circunstâncias e das condições materiais e objetivas que cada país oferece em sua realidade específica. Para tornar a leitura desta obra mais fácil, vale a pena fazer um resgate histórico do paulatino avanço das regulamentações legais nos principais centros do futebol global. O primeiro e indispensável destaque é na própria Inglaterra, país que hoje detém a liga de futebol com os maiores contratos televisivos do planeta. Os promotores da transformação dos clubes em empresas, principalmente os brasileiros, sempre tiram de lá os seus primeiros exemplos.

Contudo, o futebol inglês praticamente não contou com associações civis sem fins lucrativos em sua formação, portanto, não se pode falar que os clubes locais “adotaram o modelo de empresa”, quanto menos apontar que essa seria a causa da sua hegemonia atual. O futebol na Inglaterra é absolutamente peculiar exatamente por ser o país pioneiro nas etapas de desenvolvimento. Formou ligas, popularizou e profissionalizou seu futebol ainda antes do fim do século XIX. Como aponta Marcelo Proni (2000), desde a década de 1980 se registra a remuneração para jogadores de origem operária, principalmente pelos times fundados por donos de fábricas e usinas – portanto, desde aí alheios ao padrão associativo ao qual nos referimos. Nas décadas seguintes, os maiores clubes em termos de massas torcedoras serão exatamente aqueles times que já nasceram interessados na entrada de jogadores pagos em seus escretes, e por isso são também aqueles que estabeleceram conexões históricas com comunidades e bairros operários. Também se constituíram enquanto companhias vários outros clubes de origem popular não oriundos de fábricas. O próprio Marcelo Proni (2000) observa que não se podia dizer que os clubes estavam se constituindo enquanto sociedades empresárias orientadas pelo lucro. Essas organizações eram concebidas para dar publicidade às empresas de uma nova classe industrial do norte do país (das quais os donos dos clubes também eram proprietários), ao passo que serviam para projetar a imagem pessoal do seu patrono. Isso fica bastante evidente quando, no ano de 1900, os clubes estabelecem um acordo de imposição de um teto salarial aos jogadores, que vigoraria por 60 anos. O pretexto era controlar os gastos excessivos com a atividade. Os estudos de Charles Critcher (1979) e Marcelo Proni (2000) são reveladores de como esse tipo de gerenciamento

patronal dos clubes ingleses perdura, em grande medida, até meados dos anos de 1980, quando, em uma destoante decisão, o Tottenham Hotspurs abre parte do seu capital para lançar ações na bolsa de valores. É exatamente o período em que se detectam os primeiros casos de regulamentações legais voltadas para a transformação dos clubes em empresas em outros países. Na Itália, em 1981, se estabelece a “Legge 23 marzo 1981, n. 91”, que institui o modelo de “Società per Azione” (SpA), estabelecendo critérios mais rígidos para os clubes de futebol profissional das duas principais divisões. Apesar de, até então, contar com associações civis sem fins lucrativos em sua maioria, o futebol italiano já convivia com clubes estabelecidos enquanto propriedades de uma família ou de uma grande corporação mantenedora. Apesar de provocar a transformação dos clubes em empresas, a lei de 1981 estabelecia que todo lucro obtido com os clubes fosse reinvestido na atividade futebolística.11 Criada muito mais para garantir a “limpeza” da atividade no país, então mergulhado em escândalos de corrupção e dívidas, essa regra só caiu em 1996. Muito relevante no futebol global, a Itália acabava de inaugurar um período de transformação legal com base em um modelo que, a partir de então, se tornaria hegemônico: as sociedades por ações, ou sociedades anônimas. Em 1984, é a vez de a França estabelecer a sua própria legislação (ou uma atualização, dado que renovava certos preceitos estabelecidos em outra lei, de 1975). O movimento foi visto como adequação de uma antiga questão do futebol local, historicamente formado por associações sem fins lucrativos que, no entanto, contavam com uma relação íntima com suas respectivas municipalidades. O futebol na França tem um desenvolvimento tardio, de caráter regionalizado, e por isso demanda esses tipos de observação. Seguindo o modelo

italiano, a lei francesa criou a figura da “société anonyme à objet sportif” (SAOS). Novamente, assim como na Itália, os clubes franceses não eram autorizados a remunerar seus dirigentes e a distribuir dividendos entre seus sócios, até nova lei aprovada em 1999. Outro ponto derrubado era o que obrigava aos clubes preservar 33% do seu capital sob o controle da associação. 12 Como se percebe, até essa altura, a extinção de modelos de associações civis e a adoção de um modelo de sociedade empresária não comprometia a eliminação do caráter “não lucrativo” dos clubes. A perspectiva até aqui era a de viabilizar um modelo empresarial digno de responder ao novo futebol pós-televisivo, capacitado a promover a gestão mais eficiente dos recursos, a partir de uma lei dotada de instrumentos mais robustos de punição aos clubes devedores e aos dirigentes maus gestores. Era uma espécie de limbo do futebol: a associação e suas dinâmicas democráticas eram descartadas, mas essa nova empresa, cujas regras eram determinadas por um conselho de administração, não podiam desviar as receitas obtidas para outras finalidades, senão usá-las para o reinvestimento na própria atividade futebolística. Quando Itália e França decidem abrir seus clubes para essa possibilidade lucrativa, a Ley de Deportes, que instituía as “sociedades anónimas deportivas”, já vigorava na Espanha desde 1990, para dar uma resposta aos problemas financeiros dos clubes – agora, já sem limites quanto ao caráter lucrativo. O modelo adotado no país ibérico foi radical: calculou a dívida dos clubes, seu patrimônio e seu quadro associativo, e estabeleceu rodadas nas quais os sócios tinham prioridade na compra das ações. A bem da verdade, nesse momento, os novos clubes-empresa espanhóis acabaram, em sua maioria, caindo nas mãos dos mesmos dirigentes que dominavam a política das

associações. A diferença agora eram as leis que incidiam sobre o clube, espelhadas nos mesmos critérios de transparência e governança que outras empresas deveriam adotar. Os clubes espanhóis tiveram duas temporadas para se adequar à nova realidade, ou provar que possuíam condições necessárias para resolver suas pendências financeiras com o Estado.13 Em 1997, é a vez de Portugal se ingressar no movimento generalizado de adequação de sua legislação esportiva. Apesar da tendência de influência exercida pelos países vizinhos, os portugueses não seguiram o mesmo modelo espanhol. Com uma espécie de aprendizado dos cinco anos turbulentos de adaptação dos clubes espanhóis, em um primeiro momento os clubes portugueses não foram obrigados a adotar o modelo empresarial. Após algumas tentativas que não resultaram em transformações facultativas por parte dos clubes, criaram-se modelos distintos, capazes de dar às associações o direito de serem as únicas acionistas da empresa que gere o seu futebol profissional. E com isso, sim, a medida se tornou obrigatória em 2013: só poderiam jogar a Primeira e Segunda Liga os clubes sob os formatos legais de SAD ou SDUQ.14 Benfica, Sporting e Porto, principais clubes locais, são SAD’s, cujo controle acionário ainda é majoritariamente da associação. Entre 1996 e 1998, a Alemanha protagoniza intensos debates públicos sobre essa transformação do futebol. Ao observar todas as mudanças ocorridas nas ligas com as quais historicamente disputou protagonismo, o futebol alemão passou a cogitar adotar o mesmo caminho. Com forte tradição associativa, clubes alemães – mobilizados por dentro, pelos seus torcedores associados – questionavam a iniciativa. De modo negociado, estabeleceu-se um modelo até então inédito, que previa a autorização para que clubes empresarizassem o seu departamento profissional de futebol desde que, e de forma irrevogável, a associação civil

fosse a sua sócia majoritária. O modelo, conhecido como 50+1, vigora até os dias de hoje, mas já conta com algumas exceções.15 O modelo alemão acabou inspirando a legislação da Suécia. Seguindo a sequência cronológica, em 1998 o Brasil finalmente efetiva o antigo esforço de aprovação de uma lei dessa ordem: a Lei Pelé (Lei nº 9.615/1998). Inicialmente concebida como obrigatória, tem seu texto revisado, sem efetivas mudanças. Caso tivesse sido obrigatória, ou contado minimamente com a aderência dos clubes, talvez o futebol brasileiro tivesse atravessado com dificuldades aquele período, marcado por uma grave crise cambial, que afetou o país entre 1999 e 2001. No fim das contas, dentre os clubes mais populares do país, apenas o Esporte Clube Bahia e o Esporte Clube Vitória adotaram o modelo de sociedade anônima. Ambos deixaram o formato ainda na década de 2000, retomando o modelo de associação – que, em 2020, estavam entre as mais democráticas do país, conferindo direito de voto direto aos seus sócios. No mesmo ano de 1998, a Argentina rechaça, por meio dos clubes, em votação na Asociación Argentina de Fútbol (AFA), uma proposta de criação das SAD’s no futebol local. Exatos 20 anos depois, agora já em contexto político totalmente distinto, uma nova iniciativa volta a ser derrotada. Foram numerosos os casos de presidentes de clubes que atenderam à decisão de suas assembleias de sócios para que fosse declarado publicamente a posição contrária do clube. O projeto era endossado pelo então presidente Mauricio Macri, também partícipe da tentativa de 1998, altura em que dirigia o Club Atlético Boca Juniors.16 O Uruguai, sem muito efeito ou polêmica, também regulamentou as sociedades anônimas no futebol em 2001, mas não viu seus clubes mais tradicionais se moverem para tal.

Por fim, outros dois países sul-americanos são dignos de nota nesse sintético levantamento histórico. Com um grande atraso nesse debate, em 2005, o Chile coloca em prática um projeto de “sociedades anónimas deportivas profesionales” (SADP). É um caso extremamente emblemático pela série de estranhas coincidências que revela, mas, principalmente, por adotar a obrigatoriedade da conversão, mesmo com os numerosos ensinamentos dos países anteriormente listados.17 Vale anotar a Lei nº 1.445 de 2011, aprovada na Colômbia, que não impõe a conversão obrigatória dos clubes, mas, curiosamente, se baseou em outros vieses discursivos: a defesa da democratização do controle do clube por meio da possibilidade de aquisição de ações.18 Dentre os clubes mais tradicionais do país, apenas o Deportivo Cali não aderiu ao modelo de SAD. Muita coisa acontece entre a concepção de uma ideia e a aprovação de uma lei. Modelos jurídicos tendem a ser moldados pela correlação de forças conjuntural do parlamento que legisla sobre ela. Os modelos dos países elencados não apenas são consideravelmente distintos, como também possuem suas realidades particulares como ponto de partida, as suas características sociopolíticas como meio e a decisão particular de cada clube como a camada mais superficial e visível desse processo. Como dito anteriormente, a ideia de clubes como empresas está alicerçada em concepções ideológicas de natureza políticas muito sólidas e coesas. O próximo item busca revelar essa relação. Dimensão política-ideológica Utilizado de forma exaustiva, repetitiva e, muitas vezes, meramente protocolar por seus críticos, o termo

“neoliberalismo”, ou “pensamento neoliberal”, é comumente considerado equivocado e inexato por aqueles que nele seriam enquadrados. Pouco importa aqui a terminologia consensual que vai evitar que o leitor feche este livro logo nas suas páginas iniciais. Conceitos tomam a forma de termos para resumir longas cadeias de raciocínio. Importa menos a terminologia que mais agrade a uma ou outra linha intelectual do que a concordância inevitável da gravidade da ruptura provocada pela “renovação” do pensamento liberal. Esse novo liberalismo submeteu seus seguidores a um profundo reenquadramento conceitual, mesmo que não se percebesse. Muitas ideias atravessam os tempos de forma silenciosa, expressadas e encampadas por interlocutores que podem ignorar suas raízes. No caso em questão, da defesa de que clubes de futebol se transformem em empresas, aparenta muito mais terem sido objeto de assimilação osmótica de um discurso que arroga tecnicidade apolítica, do que necessariamente uma reivindicação consciente de um modo de enxergar a realidade. O que friso é que essas são crenças oriundas de um fundo ideológico muito mais profundo e que existem conexões muito sólidas entre essas concepções. Perry Anderson (2012, p. 29-30) definia uma das características desse movimento como uma aversão à “política”, dentro de um conceito filosófico muito específico que, na verdade, significava a denúncia da própria ideia clássica de democracia. Uma linha político-filosófica contrária à ampliação do poder decisório ao que se entendia por “massas”, cuja fonte de poder residiria no número, no volume, e não no saber. A rejeição não era necessariamente às formas institucionais em si, mas aos modos como estavam sendo aceitos os processos decisórios de sua constituição. Daí a defesa de uma individualidade radical contra a “servidão”.

Desse modo, “democracia” é um conceito relativo, enquanto que a “liberdade” não. Para combater tal servidão da imposição coletiva, seria admissível a instauração de um regime de caráter autoritário e centralizado, por ser mais suscetível à eficiência pretendida pelos modelos econômicos desejados. Anderson (2012, p. 35) revela como influenciadores intelectuais importantes dessa linha eram totalmente francos quando afirmavam que a instituição democrática, como estava concebida, conduzia a sociedade a uma ordem totalitária. Neles, totalitarismo se opõe à liberdade, autoritarismo se opõe à democracia. Era perfeitamente cabível aceitar um “autoritarismo garantidor das liberdades”. Um conceito muito específico de liberdade, calcado em uma crença absoluta da concorrência de mercado como motor de progresso. Essa renovação do pensamento liberal, cujos debates inaugurados nos anos de 1930 e de 1940 foram decisivos, não pode ser perdida de vista em sua importância histórica. É comum remeter como ato fundacional desse movimento político e econômico de renovação do pensamento liberal a partir da Sociedade Mont-Pèlerin, fundada em 1947 por Friedrich Von Hayek, seu mestre Ludwig Von Mises, Karl Popper, Milton Friedman, dentre outros. Mas Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 71) defendem que se leve em consideração o papel importante do Colóquio Walter Lippmann, ocorrido em Paris, com vários desses nomes, no ano de 1938. Lá, pela primeira vez, o termo “neoliberalismo” é utilizado, já dentro do espírito fundacional de um movimento, que apenas se consolidou em Mont-Pèlerin, após o fim da guerra. Ainda que tenha caído em desuso, o fato é que seus primeiros agitadores almejavam redefinir o liberalismo em sua renovação neoliberal. A sua formação é oriunda de um período de grave crise no campo que acreditava estar “ao centro” do espectro político, se opondo em ambos os

flancos pelos “totalitarismos” de esquerda e de direita – a ameaça socialista internacional e o trauma recente do horror nazifascista. Mas a grave crise também estava no próprio entendimento da raiz fundamental do pensamento liberal: ao longo de muito tempo dominado por uma tendência conservadora que dava ao mercado uma acepção “natural” e, portanto, não passível de ser provida de uma intervenção estatal – que seria até ali invariavelmente negativa, independente de sua finalidade –; esse campo buscava se reformular sob novos marcos. Depois da grande guerra, novamente Perry Anderson (2012, p. 44), “o antigo mundo político de governantes proprietários fundiários, eleitorados limitados, orçamentos modestos e moedas estáveis desabou”. O domínio do direito se torna um elemento central para a eliminação dessas crenças naturalistas sobre a lógica de mercado. Entender a economia como um domínio isolado da política era um equívoco, pois o mercado era, em suma, um produto do direito. Um equívoco que acreditavam estar no cerne da permissividade que gerou o crescimento do socialismo e de outras práticas “niveladoras”. Contratos estabelecem mercados e protegem a propriedade, o direito dá validade e estabilidade aos contratos. Não haveria nada de natural na constituição deles. Seu desafio era colocar isso em prática, a partir do Estado, sem extrapolar suas competências, sob o risco de contaminar-se de um sedutor desejo de intervenção. O laissez faire não simplesmente existiria, ele precisaria ser constituído. Esse liberalismo renovado precisava então formular uma ideia de Estado que nunca esteve no cerne das discussões intelectuais desse campo político e teórico. Era preciso deixar de lado o espontaneísmo, para elaborar um programa político, uma agenda concisa e disposta a formalizar os dispositivos capazes de fazer da ordem de mercado uma ordem estabelecida. Um liberalismo disposto

a elaborar, anotam Dardot e Laval (2016 p. 85), um ‘“intervencionismo liberal, um ‘liberalismo construtor’, um dirigismo do Estado que convém distinguir de um intervencionismo coletivista e planista”. Caberia a esse intervencionismo liberal garantir o equilíbrio do jogo da concorrência em regras claras, proporcionando à sociedade a chance de colher os “benefícios da competição”. Pierre Dardot e Christian Laval são precisos ao observar que esse movimento opera a construção de uma nova “racionalidade governamental”, ou uma “governamentalidade”. Não apenas uma doutrina, mas o “desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade” (2016, p. 34), uma racionalidade que tem como característica principal a “generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (2016, p. 17). O liberalismo renovado olha de longe seus adversários ideológicos, disseca-os e percebe que a produção de um “novo homem” também era objeto de sua ambição. Suas ideias não atravessam o tempo apenas por aderência natural e consciente, mas constroem um mundo onde não parece ser possível viver sem aderi-las. Cada sujeito é um empreendimento que determina seus concorrentes e parceiros, não mais em relações sociais. O princípio da concorrência atravessa verticalmente todas as escalas da vida e da sociedade: nas políticas públicas, nas relações econômicas mundiais, na subjetividade dos indivíduos. E também do futebol. Não é preciso ir muito longe para perceber que essas são as bases ideológicas que, transferidas para o campo do futebol, atacaram as associações civis sem fins lucrativos, com suas estruturas “políticas” eleitorais inadequadas ao futebol-negócio que florescia nessa conjuntura de

crescimento econômico sem precedentes. Em sua contraposição, nada menos seria possível do que a constituição de uma ordem na qual imperasse o anseio individual pelas conquistas e riquezas, única via politicamente saudável e eficiente para o desenvolvimento: a lógica de mercado. E daí, novamente, se fosse o caso para a aceitação de uma ordem autoritária e centralizada, capaz de controlar a “política” e atuar a favor do equilíbrio, da estabilidade e do crescimento, que assim fosse. A associação civil democrática então deveria ser expurgada da instituição esportiva produtora de riquezas. Cortada a raiz da “serfdom”, ao público dos estádios seria oferecido o produto de excelência, guiado pelos preceitos adequados de administração: uma norma técnica, apolítica e gananciosa de procedimento gerencial. É importante relembrar que as associações, em geral, sempre foram regidas por princípios muito próximos de uma república liberal moderna, a constituição anteriormente explicada de três órgãos que dinamizavam funções semelhantes aos poderes executivo, legislativo e judiciário é o retrato mais cristalino disso. Maiores ou menores distorções desse organismo, por outra perspectiva política próxima, seriam parte do caro processo político demandado pela democracia. Mas, para essa abordagem mais radical do liberalismo renovado, a opinião até importaria, desde que a vontade popular não pudesse se tornar autoridade. Aqui, ser um fã de uma empresa produtora de espetáculo futebolístico é ter a “liberdade” de manifestar sua posição por meio do consumo ou do não consumo – essa forma de “protesto” autorizada aos cidadãos-clientes –, jamais do voto ou da voz. Dentro desses pressupostos, a ausência de finalidade lucrativa não apenas impedia o clube de alcançar padrões

superiores de eficiência administrativa, como também era responsável pela coexistência de valores e interesses conflitantes, muitas vezes espúrios, constantemente inconciliáveis, portanto, nefastos. No seu lugar, uma sociedade dirigida por finalidades lucrativas seria capaz de suplantar as diferenças e congregar os anseios, oferecendo óbvios benefícios aos seus proprietários, e gerando vantagens aos seus consumidores. Definitivamente, mais do que uma questão operacional, a transformação de clubes em empresas também foi um debate profundamente político e ideológico. Falta, entretanto, uma abordagem escalar. Esses pressupostos consideravam que a concorrência “generalizada e sem tréguas”, mas em situações leais, resultaria na vitória dos mais aptos. A grande questão aqui é que o mérito esportivo é absolutamente transplantado pelo mérito econômico. Os menos aptos, portanto, teriam o fatal e inevitável destino da sua extinção. Já compreendíamos a total ausência de equivalência entre os resultados esportivos e os resultados financeiros no futebol, sob essa racionalidade, então, se produz uma razão ainda mais inadequada. Quando esse liberalismo renovado ganhou a forte marca de distinção da “Escola de Chicago”, seus atores políticosideológicos já estavam articulados de forma muito concisa. Dos primeiros anos do regime ditatorial de Augusto Pinochet no Chile, Milton Friedman, prócere dessa instituição, discípulo de Hayek e um dos nomes fundadores da Sociedade Mont-Pèlerin, é um nome muito recorrente dos círculos intelectuais político-econômicos. O país sulamericano sempre é destacado como “laboratório” das ideias neoliberais, mas também é de onde tiramos os melhores exemplos de como as novas propostas para um futebol de empresas tem fundamentos políticos-ideológicos profundos.

A participação de Friedman na formação de uma nova elite intelectual e política daquele país foi diretamente realizada pela Fundación de Estudios Económicos BHC, ligada ao Banco Hipotecário de Chile (BHC). Essa instituição, então quase centenária, foi extremamente relevante dentro desse período histórico, publicando “Milton Friedman em Chile: Bases para un desarrollo económico” em 1975, uma obra-símbolo das ideias que norteavam os grupos de apoio ao regime de Pinochet (quando ainda era possível considerá-lo como uma “salvação” à ameaça socialista de Salvador Allende). Essa obra conta com a íntegra de uma carta enviada por Milton Friedman a Augusto Pinochet. Foi do BHC que saiu o grupo apelidado de “Los Pirañas”, uma fração da versão chilena da marca de distinção intelectual e gerencial mundialmente conhecida como “Chicago Boys”. Daniel Matamala (2015, p. 84) observa o imenso peso intervencionista do regime: “O processo que girou o país em 180 graus em seu desenvolvimento político, econômico e social, praticamente não deixou área da vida nacional intocada”. O regime manobra politicamente para “eleger” um novo presidente da Asociación Central de Fútbol, e empossa o general Eduardo Gordon Cañas. Mas são “Los Pirañas” as peças-chave do episódio em que o ditador Augusto Pinochet se sentiu ameaçado pela eleição no Club Social de Deportivo Colo-Colo em 1976, clube mais popular do país. A chapa favorita era formada por Antonio Labán, que contava com apoio público de Tucapel Jiménez, sindicalista, opositor e figura incômoda ao regime.19 A solução encontrada por Pinochet foi criativa: suspendeu as eleições no Colo-Colo, alegou que as altas dívidas do clube exigiam uma intervenção, e designou o Grupo BHC para a função. “Nessa época o predomínio dos Chicago Boys na equipe econômica já estava dado, e os novos grupos financeiros

adquiriram cotas importantes de poder. Foi quando o governo decidiu levar suas receitas econômicas ao futebol”, contextualiza Daniel Matamala (2015, p. 176). Alberto Simián, então gerente da Financiera Nacional, (propriedade do Grupo Vial, como o BHC) foi o nome colocado pelo banco no Colo-Colo em 2 de abril de 1976. As páginas da Revista Estádio exaltavam a iniciativa, estampando o novo gestor como alguém formado nos Estados Unidos, “um vencedor”, trajando terno e gravata. Simián declara que “Los Pirañas” estavam preparados para o desafio: “Sabendo como somos na área empresarial, sabemos que faremos bem. Se houvesse alguma dúvida, a menor dúvida, não teríamos aceitado”.20 A manchete da matéria era “Empresas com camiseta”, uma clara alusão a essa nova ideia em formação. Matamala completa: “A decisão tinha uma lógica impecável: o que poderia ser melhor para legitimar a nova ortodoxia econômica, senão usando-a para tirar de seus problemas crônicos a instituição mais popular do país?” (2015, p. 176). A experiência de gerenciamento privado imposta por Pinochet ao clube Colo-Colo foi desastrosa, para não dizer “altamente suspeita”. Para além da falta de tino para o futebol, Simián se complicou com promessas de títulos não cumpridas e jogadores em greve por conta de salários atrasados. Ao final de 1978, o Colo-Colo não tinha títulos e quase não tinha jogadores: apenas 10 atletas tinham contratos com o clube comandado pelos Chicago Boys. Em dezembro daquele mesmo ano, toda a cúpula do BHC renuncia. Exceto Alberto Simián, que teria a missão de recuperar o dinheiro investido pelo grupo. O Colo-Colo saiu ainda mais endividado do que se encontrava antes da intervenção, com débitos milionários dos quais cerca de 60% eram devidos exatamente ao BHC, a instituição que assumiu a sua gestão para resolver tais

pendências. É certo que regimes ditatoriais, clássicos falseadores históricos, tendem a não deixar registros dos seus feitos, mas estão devidamente marcadas as referências que os jovens Chicago Boys traziam na bagagem ainda em 1976, na defesa de que os clubes se transformassem em sociedades anônimas.21 Maior coincidência que isso, só o fato de terem fracassado redondamente quanto à missão à qual serviam: sob os desígnios de uma ditadura, a favor da liberdade de mercado e contra um clube de caráter democrático com uma diretoria eleita pelos membros de sua associação civil formadora. A conclusão deste artigo, e da obra que o hospeda, é de que tais pressupostos sequer se sustentam frente aos fatos. É na observação honesta dos atores políticos e econômicos que compuseram as castas proprietárias dos clubes de futebol que poderemos observar de uma forma mais concreta o fracasso dessas perspectivas. Principalmente, e acima de tudo, no que a propriedade de clubes de futebol ao redor do mundo revela da quase ausência de uma lógica de mercado nesse segmento. Os donos no futebol Os clubes do século XXI foram controlados por perfis facilmente classificáveis de “investidores”. Todos absolutamente cientes de uma verdade inconveniente da qual essa indústria jamais conseguiu se desprender e admitir: clube de futebol não dá dinheiro. Não há qualquer exagero nessa afirmação. Desde a irreverente literatura da dupla Simon Kuper & Stefan Szymanski (2009)22 até a radical crítica de David Kennedy e Peter Kennedy (2016) 23 , são notórios os indícios de que a propriedade de clubes de futebol não se configura como

“um grande negócio”, e pior, mal pode ser considerada “um negócio”. A propriedade de clubes de futebol não opera em uma ordem guiada pelo lucro, não costuma ter suas ações negociadas em ritmos convencionais, não estabelece faturamentos comparáveis a segmentos periféricos do terceiro setor, não repassa dividendos para os seus envolvidos... por que, então, alguém teria tanta vontade de ter um clube? Porque futebol movimenta as multidões. E as multidões alteram o rumo dos ventos. Os donos de clubes de futebol hoje podem ser divididos em quatro grandes grupos. Três deles são diretamente relacionados à utilização do clube como ferramenta de propaganda e/ou publicidade; o último é mais diverso: 1) geopolítica: Estados interessados em fazer dos clubes suas ferramentas de “soft power”; 2) política eleitoral: personalidades ou grupos políticos dispostos a investir em um clube de massas para reverter seu sucesso esportivo em capital político; 3) mercado de capitais: grupos financeiros, e seus respectivos representantes públicos, em busca de projeção de suas imagens e marcas para a atração de investidores para seus projetos; e 4) os alheios: ora desinformados, ora aventureiros, ora mal intencionados, muitas vezes notórios lumpenburgueses. 1) Geopolítica - O uso do clube de futebol como instrumento de “soft power”, isto é, o exercício do poder sem uso da violência, pode apresentar diversas finalidades, mas, em geral, se define pela intenção de facilitar o trânsito dessas lideranças/Estados dentro de países centrais da economia global. O esporte tem sido utilizado com esse princípio há muitos anos, mas esse tipo de “comprador de clube de futebol” está basicamente relacionado a quatro países. O primeiro seria o emirado de Abu Dhabi, o mais importante e rico dos Emirados Árabes Unidos, que adquiriu

o Manchester City em 2008 e posteriormente criou o City Football Group, maior holding global do segmento.24 O segundo seria o emirado do Qatar, atual proprietário do Paris Saint-Germain, da França, que adquiriu o clube em 2011. O terceiro, em processo que até maio de 2020 não estava concluído, seria a Arábia Saudita, prestes a adquirir o tradicional Newcastle United, da Inglaterra. Nesses três casos, se tratam de Estados teocráticos que mobilizam seus fundos públicos de investimento para adquirir grandes marcas do futebol global e se dispõem a realizar gigantescos investimentos. O quarto deles é o Estado chinês, responsável por financiar investimentos em dezenas de clubes localizados em territórios que representam pontos estratégicos dos interesses desse Estado.25 2) Política eleitoral - em países democráticos, a busca pelo voto é um dos poucos verdadeiros desafios da vida de homens ricos. Uma vez que é difícil, custoso, ilegal e arriscado comprar o número necessários de votos para se eleger a um cargo público, empresários milionários de diferentes países tiveram uma grande ideia: tornar legal a compra do instrumento de mobilização apaixonada de milhares de cidadãos. Dessa forma, era preciso tornar os clubes compráveis. Três exemplos ilustram isso tipo de fenômeno. Silvio Berlusconi, na Itália, adquiriu o Milan em 1986, na esteira da nova lei das sociedades por ações. Tornou o Milan uma máquina de comprar jogadores com imensos aportes financeiros sustentados pelo seu império de telecomunicações. Oito anos depois, conquistados quatro campeonatos nacionais e três taças continentais, Berlusconi era eleito primeiro-ministro do país pelo partido Forza Italia, criado por ele mesmo naquele exato ano de 1994. Ocupou o cargo em outras duas oportunidades.

Em um perfil mais modesto, também está a figura pitoresca do espanhol Jesus Gil, eleito em 1987 com margem apertada para a presidência do Atlético de Madrid em uma eleição com 22 mil votos. No cargo, torna-se um dos principais entusiastas da Ley de Deportes. Com a sua aprovação, se torna imediatamente sócio majoritário do clube que até então presidia. No ano seguinte, funda o partido Grupo Independiente Liberal (GIL) e se elege prefeito da cidade de Marbella, onde é reeleito três vezes antes de ser obrigado a abandonar a vida pública por envolvimento em um caso de corrupção realizado com o nome do Club Atlético de Madrid. O caso mais emblemático talvez seja o de Sebástian Piñera, do Chile. Um empresário bilionário, cuja família teve relações firmes com os primeiros anos da ditadura Pinochet, já havia sido senador apesar das imensas dificuldades de emplacar eleitoralmente o Partido Renovación Nacional, do qual era presidente. No começo dos anos de 2000, começa a advogar pela conversão dos clubes chilenos em empresas, logo após impulsionar a revisão de uma lei em um processo que gerou uma dívida “retroativa” para os clubes. Logo depois, torna-se sócio majoritário da Blanco y Negro S.A., empresa que assumiria a gestão do Colo-Colo, clube mais popular do Chile (e rival da Universidad Católica, clube do qual declarou anteriormente ser torcedor). Em 2010, após quatro títulos nacionais sustentados por apoiadores/acionistas, Sebástian Piñera se torna presidente do Chile. 26 3) Mercado de capitais – Mais do que necessariamente o uso do clube como forma de unir seu sucesso esportivo à imagem do seu proprietário, como mencionado anteriormente, esse quesito também envolve a limpeza da imagem de empresários com pregressos envolvimentos em atividades ilícitas. A força popular de um clube é capaz de blindar seus donos da lei.

Esses casos geralmente dependem das taças para lograr, e motivam grandes investimentos. É o caso do bilionário israelense-russo Roman Abramovich, que fez fortuna com a privatização das empresas estatais da antiga URSS, mais notadamente nos setores de mineração e petróleo. Em 2003, comprou o Chelsea, modesto clube de Londres, por meio do qual protagonizou o primeiro caso de megainvestimento do século XXI, rendendo diversos títulos, incluindo uma Champions League em 2012. Os resultados esportivos do Chelsea lhe renderam prestígio suficiente para se instalar com conforto no país. O final da década de 2010, no entanto, representou um gradual abandono dos investimentos, levando o clube a já não contratar como antes, a perder protagonismo e a suspender o projeto de um novo estádio. Roman Abramovich havia sido identificado como peça-chave de uma trama excepcionalmente complexa, que envolvia espionagem, guerra diplomática e lavagem de dinheiro, e, por isso, teve seu visto de residência no Reino Unido negado. Em 2010, foi a vez do sheik Abdallah Ben Nasser Al-Thani comprar o Málaga CF, da Espanha, levando clube até a uma inédita Champions League em 2013. Esse caso não pode ser confundido como um exemplo de soft power, uma vez que Al Thani intencionava projetar sua própria ambição no mercado imobiliário espanhol. Alguns indícios apontam que o drástico desinvestimento do sheik no clube andaluz ocorreu por causa de uma série de frustrações aos seus planos empresariais, em especial pelo impacto das movimentações políticas contrárias aos seus projetos de arranha-céus na zona portuária da cidade. Em 2018, o Málaga CF é rebaixado para a segunda divisão espanhola. Em fevereiro de 2020, Al Thani foi afastado do conselho administrativo do clube por decisão da justiça espanhola, sob denúncia de apropriação indébita dos fundos da SAD.

Há também o caso de Peter Lim, bilionário financista de Singapura que adquiriu o Valencia Club de Fútbol em 2014, no rastro de uma crise causada pelo desastroso projeto de um novo estádio. Peter Lim somou fracassos dentro de campo, mas acabou por conquistar uma improvável Copa del Rey em maio de 2019, tirando o clube de 11 anos de jejum. Ainda assim, nunca gozou de prestígio junto aos torcedores e pequenos acionistas, que realizaram inúmeros protestos massivos desde a sua chegada. Com uma política austera nas contratações, Peter Lim ainda nomeou como presidente da SAD o seu conterrâneo Anil Murthy, um exdiplomata, cuja experiência com o futebol era absolutamente zero. Sob sua gestão, o Valencia fracassou na tentativa de finalizar o antigo sonho do Nou Mestala, novo estádio que estava previsto para ficar pronto em 2010. 4) Os Alheios: aqui está um tipo de investidor que não dispõe de grandes fundos como os listados anteriormente. Ao se apresentarem como homens de negócios bemsucedidos, conquistam a confiança de clubes que pretendiam adquirir. Como resultado, é comum vê-los levando-os à bancarrota junto com seus próprios fracassos financeiros. O empresário iraniano Majid Pishyar desembarcou em Portugal, promovido por sua experiência bem-sucedida de promoção à primeira divisão com o Servette FC, clube da Suíça. Por meio do 32Group, um grupo de investimentos criado em 2008, Pishyar assume a SAD do Beira-Mar e promete torná-lo o “quarto grande” do país. No ano seguinte, é forçado a admitir que estava abrindo pedido de falência no clube suíço e, em 2014, já repassava a sua participação no clube português para outro interessado. O Beira-Mar saiu dessa experiência falido e Majid Pishyar, apesar disso, continua desenvolvendo outras atividades financeiras com o 32Group. Hoje, os torcedores do Beira-

Mar tentam refundar o clube nas divisões inferiores de Portugal. No Brasil, esse foi o tipo de investidor que chegou ao Esporte Clube Vitória no ano de 1998, quando o clube baiano adotou o modelo de sociedade anônima no rastro do movimento gerado pela Lei Pelé. O Exxel Group, conglomerado financeiro argentino em franca ascensão, controlado pelo uruguaio Juan Navarro, adquire 50,1% das ações da Vitória S.A, por cerca de 6 milhões de dólares, faturando as dívidas que o clube possuía à época e planejando entrar no mercado de jogadores de futebol. Por ser esse um dos seus movimentos de expansão dentro do mercado sul-americano, o Exxel prometeu investimentos de 12 milhões de dólares ao longo de 5 anos. Antes de decolar, o grupo que também havia comprado o clube argentino Quilmes, é impactado pela crise cambial argentina e por uma grave denúncia de fraude financeira. O Exxel Group abandona o Vitória, não faz o aporte financeiro prometido, vai à falência e aceita negociar a recompra das suas ações pelo EC Vitória em 2006, quando o clube jogava uma inédita Série C em sua história. O clube associativo restabeleceu o controle do seu futebol, extinguiu a Vitoria S.A. e voltou aos trilhos.27 Outro caso digno de nota é a aventura de Marcos Ulloa à frente do Deportes Concepción, clube chileno que sempre foi um dos mais tradicionais emblemas fora da capital. Tal empresário chegou ao clube em 2006 com a proposta de investir recursos de um grupo alemão representado por Mario Munzemayer. Recursos em tese suficientes para cobrir as dívidas da agremiação, para construir um novo centro de treinamentos e um estádio semelhante ao do alemão Schalke 04. O clube aceita a entrada de Ulloa na SAD, mas o dinheiro não existe. O Concepción foi rebaixado antes de conseguir desfazer o acordo com os falsos investidores e, em uma segunda tentativa de restabelecimento com novos

investidores em uma nova SADP, mergulha em dívidas que levam à sua desfiliação da liga. Marcos Ulloa foi preso. Hoje os torcedores tentam restabelecer a associação. Com a exceção do grupo 4 desse exercício ilustrativo, no fim das contas, do ponto de vista dos proprietários e de suas finalidades, o futebol de empresas do século XXI acabou adotando uma configuração semelhante à do futebol inglês no final do século XIX: clubes deficitários voltados para agregar à imagem do seu proprietário. A diferença agora é a proporção: em um futebol super consumido, televisionado para os quatro cantos do mundo, clubes provocam impactos reais no cenário eleitoral de uma nação, reposicionam geopoliticamente líderes globais, viabilizam projetos financeiros fraudulentos e limpam a imagem de empresários de origem e práticas duvidosas. Nessa escala, o futebol-negócio de clubes-empresa serve basicamente a interesses potencialmente perigosos. É justo destacar que o futebol espanhol até meados dos anos 2010 ainda resguardava uma característica que lhe conferia certa diferenciação. Uma vez que seus antigos sócios tiveram prioridade na aquisição das ações da nova SAD, em muitos clubes os sócios mais ricos e influentes ocuparam os postos majoritários dessas sociedades. Até ali, por mais que também imperassem interesses como os já listados, se tratavam ao menos de proprietários de origem comum ao clube, muitas vezes até descendentes dos fundadores das associações. Mas esse tempo já passou. Desfazendo mantras: algumas conclusões No primeiro item deste artigo, elenquei os oito pontos que compõem o “escopo ideológico da empresarização dos clubes”. A conclusão do capítulo introdutório de Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol se resumirá basicamente a responder

àquelas afirmações. Em outras palavras, serão desfeitos os mantras, um por um. 1) Eficiência corporativa: apenas neste século, nada menos que 43 clubes ingleses de declararam insolvência. Número próximo do que ocorreu na Espanha, e também do número de falências decretadas no futebol italiano, onde alguns clubes definitivamente deixaram de existir.28 O formato legal é incapaz de garantir, por conta própria, melhores práticas de gestão, e os clubes brasileiros já experimentaram isso várias vezes.29 2) Racionalidade de mercado: o futebol-negócio no século XXI, como já dito, sequer se apresenta como um negócio comum. Clubes continuam não sendo guiados pelos resultados financeiros, mesmo sob o formato de empresa. A gastança desenfreada e sem lastro nas suas receitas reais é sempre compensadora para garantir superioridade esportiva frente aos seus adversários. E muitas vezes nem é recompensada.30 3) Atração de investimentos: como explicado no início do artigo, esse momento de capitalização existe, porém, é absolutamente efêmero e limitado. Salvo aqueles clubes bancados por mecenas, a palavra “investimento” pouco existe no futebol atual. Onde ele existe, os pontos anteriores explicam a motivação.31 4) Liberdade da política: sociedades anônimas convencionais são guiadas pelo lucro, mas estão sempre convivendo com divergências entre seus acionistas, que, muitas vezes, redundam em disputas judiciais. Nesse quesito, sim, as empresas do futebol são bem fiéis ao modelo. De toda sorte, quando se fala em “política” para se demonizar o formato legal associativo, não se cogitam outras dimensões da política: os interesses políticoeleitorais dos proprietários; ou, em outro sentido, até que ponto um clube proporciona discussões democráticas sobre

suas escolhas (ninguém em sã consciência defende o modelo de clube oligárquico brasileiro, tampouco ele não é o único existente ou possível). 5) Transparência e governança: a falta de transparência dos clubes espanhóis é um tema que nunca sai do noticiário, 30 anos depois da Ley de Deportes, em decorrência da qual os clubes devem quase 1 bilhão de euros ao Estado. O mesmo ocorre no Chile, onde 14 empresas, das 32 equipes que disputam primeira e segunda divisão, foram notificadas por órgãos de controle pela não divulgação de seus balanços financeiros reais. Na Itália, o governo ativamente abre mão de sua arrecadação para beneficiar os clubes em um cenário de franca decadência do futebol local. 6) Ganho de competitividade: o futebol chileno sempre foi secundário no subcontinente sul-americano, muito inferior a Brasil e Argentina. Transformou-se em um futebol de empresas e conseguiu se tornar ainda mais insignificante do ponto de vista esportivo, com resultados inferiores ao do Paraguai, país de economia bem mais frágil e clubes sem fins lucrativos. O mesmo exercício pode ser feito com outros inúmeros países. Recomenda-se a leitura da nota 10 deste artigo. 7) Reversão do papel de exportador: ao não se apresentar suficientemente estruturado para se colocar em papel de competitividade dentro da realidade em que está circunscrita, uma “indústria nacional” de futebol se molda à sua condição de dependência: Chile e Portugal foram países que basicamente adotaram para si a função de entreposto comercial de atletas para o centro do futebol global. E seus proprietários já não têm o menor pudor de admitir isso. O mesmo ocorreria para clubes brasileiros. 8) Respeito aos clientes: torcedores não desejam e não admitem serem tratados dessa forma. Deixo a explicação

mais adequada para essa afirmação para os capítulos que compõem a Parte II - Torcedores. Há outras questões. Em uma empresa convencional, a ampliação do capital se guia por investimentos em segmentos que capacitam o aumento da produção e a redução dos custos. Uma fábrica de cerveja, por exemplo, amplia o seu capital para obter recursos para abrir uma nova planta ao adquirir novo maquinário e ampliar a sua força de trabalho; ou para adquirir uma frota de caminhões para deixar de depender de um serviço de terceiros e reduzir custos logísticos. Há uma lógica de previsibilidade nesse tipo de investimento convencional. No futebol, não: não há garantias de retorno em investimentos em instalações para formação de jogadores e/ou na aquisição de novos ativos (jogadores) que possam se valorizar para uma negociação futura. A economia política de um clube de futebol, se pode ser chamada de “negócio”, é de caráter altamente especulativo – e por isso instável. Apenas na década de 2010, foram oito clubes portugueses vítimas desse tipo de situação. Abriram as suas portas para “investidores” que prometiam mundo e fundos, mas que abandonaram a SAD deixando-as com o fardo de dívidas ainda maiores, rebaixamentos consecutivos e uma desmoralização sem precedentes.32 A mesma coisa ocorreu a clubes chilenos e espanhóis nos anos recentes O endividamento dos clubes não se resolve, pois o problema é mais grave, generalizado, sistêmico. O clube é uma empresa deficitária mesmo em economias desenvolvidas, quadro que durante décadas se imputou apenas à forma legal de associação civil sem fins lucrativos. O debate sobre governança e transparência no futebol é inestimável. Clubes e dirigentes não podem estar acima da lei, que, por sua vez, precisa encontrar dispositivos de controle e punição a gestões temerárias ou criminosas. De

preferência, dispositivos que não inviabilizem ou paralisem financeiramente uma instituição por conta de condutas individuais. Se as associações civis não deram conta do negócio e precisaram se transformar em empresas, o que se pode exigir agora das empresas de futebol que deixaram explícito que também não dão conta do negócio? Muitas ideias estão sendo elaboradas. Faço menção ao importante esforço de Fernando Monfardini (2017), com quem compartilho muitas impressões e perspectivas. Em seu livro “Compliance no Futebol: a tática da democratização, transparência e controles internos”, Monfardini aponta uma saída muito diferente daquela que dominou os círculos de “especialistas” do futebol nas últimas décadas: a “tática da democratização”, junto a outros dispositivos de controle internos e externos aos clubes, como uma proposição alternativa real, inovadora e muito mais segura para o futebol brasileiro e seus clubes históricos. São leituras que coadunam com o que produziram em termos de ideias as inúmeras experiências de torcedores mencionadas neste livro. Quatro delas tiveram à sua disposição a Parte II para relatar o seu processo de defesa de clubes em caráter de associação civil. Nenhuma delas adota uma postura conservadora ou meramente romântica. Tampouco sugerem que o modelo de associação é impecável e infalível, mas afirmam que se trata da única alternativa disponível capaz de impedir que interesses privados estejam acima dos interesses de toda coletividade que compõe um clube de futebol. Caso devidamente conduzidas, as associações dispõem das condições mínimas necessárias para a adoção de métodos de gestão e instrumentos de controle e fiscalização realmente eficazes. Contrariando o que uma vez apostaram conhecidos pesquisadores como Richard Giulianotti (2002) e Fréderic

Bolotny (2006), o futebol global não se homogeneizou em suas formas legais de clubes como empresas. E isso não se deu apenas pela sua total incapacidade de entregar o que prometeu, mas por realmente apresentarem uma ameaça real à história dessas instituições. Por isso não se pode dizer que o Brasil é um país “arcaico” ou “anacrônico” dentro da indústria do futebol, ele apenas não se dispôs a ser mais uma vítima dos inúmeros problemas que atingiram outros países. A história escrita até aqui precisa ser revista por completo. De preferência, a partir do que os torcedores têm a dizer. A obra à qual este artigo serviu de introdução é um exemplo claro de que esse modelo está em questionamento há muitos anos, e começa a ser objeto de revisão legislativa em diversos países, protagonizado especialmente por movimentos de torcedores. E ainda que não ocorra um regresso decisivo e se restabeleçam as associações originárias dessas agremiações, outras novas e consistentes técnicas de intervenção dos torcedores – sem finalidades lucrativas – seguirão sendo colocadas em prática. Mesmo em circunstâncias desfavoráveis, a noção de propriedade dos torcedores nunca se resumiu às concessões oferecidas pelas vias institucionais. Trata-se de outra “racionalidade”. Renovada, oriunda do seu tempo, carregada pelos movimentos de torcedores por meio da noção mais profunda e genuína do que deve ser o seu clube e a quem ele serve. As experiências dos torcedores aqui narradas emanam, nas palavras de Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 9), os princípios do comum.

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Notas [1] Recentemente, muitos clubes passaram a remunerar seus dirigentes eleitos – presidente e vice-presidente do conselho diretor – com salários definidos em critérios pré-es‐ tabelecidos em estatuto. Isso não configura repasse de divi‐ dendos, apenas a formalização de uma atividade profissio‐ nal remunerada. [2] É de se colocar em questão que “a torcida” é um tipo ca‐ pital real pertencente a uma associação que nunca é conta‐ bilizada nesse processo. Um proprietário de um clube herda uma verdadeira comunidade de pessoas que não possuem a menor possibilidade de abandonar a sua relação com o clu‐ be, tamanha a vinculação afetiva, identitária e pertenciva que elas possuem. O dono de um clube não “perde” um tor‐ cedor para o seu concorrente se o seu “produto” for pior. A disputa desse público, se muito, é dentre os consumidores de espetáculo – mais numerosos, mas igualmente mais flui‐ dos e inconstantes – que não podem ser confundidos com os torcedores. [3] A disputa sobre a marca está no cerne do caso do Clube de Futebol “Os Belenenses”, abordado tanto no Capítulo 2, “Acabou o amor: o processo de divórcio entre clube e SAD em Portugal”, de Fernando Borges; quanto no Capítulo 6, “Clube de Futebol “Os Belenenses”: síntese histórica de um Clube grande e histórico em Portugal”, escrito pelos própri‐ os associados do clube.

[4] O Capítulo 1, “A Ley de Deporte na Espanha e o modelo de sociedad anónima deportiva: um balanço dos últimos 30”, de Daniel Ferreira e Victor Figols aborda a lei espanho‐ la. Complementarmente, o Capítulo 5, “Sevilla Fútbol Club: a luta pelo patrimônio dos seus torcedores”, de Moisés Sam‐ pedro Contretas (presidente do grupo Accionistas Unidos del Sevilla FC) relata em detalhes como se deu o complexo pro‐ cesso de transformação obrigatória do Sevilla em empresa, e como foi oferecido aos antigos sócios o direito de se torna‐ rem acionistas. [5] É basicamente impossível que uma sociedade anônima tenha esse tipo configuração do seu capital social. Friso no‐ vamente que esse modelo é fictício, uma escolha feita para traçar um quadro simplificado e tornar essa explicação in‐ trodutória mais efetiva. [6] Outro ponto que causa confusão: “empresa com capital aberto na bolsa”. Uma sociedade anônima pode ter seu ca‐ pital aberto (com ações lançadas na bolsa de valores), ou ter seu capital fechado. No caso do futebol, não é tão co‐ mum o primeiro caso. Os donos dessas “ações preferenci‐ ais” lançadas na bolsa, não possuem direito de voto na as‐ sembleia de acionistas. [7] É novamente recomendável que se observe o caso do Sevilla Fútbol Club, que ilustra de modo muito preciso o que ocorre quando torcedores possuem uma parcela minoritária

das ações (pequenos acionistas ou “acionistas de base”) em disputa contra os grandes acionistas do clube. [8] Importante, inclusive, anotar aqui: não existe isso de “faz bem para o futebol brasileiro”. Caso algo fizesse bem para todos, então não faria bem para quem já está em posi‐ ção de liderança financeira e esportiva. Os supostos benefí‐ cios da transformação de um clube em empresa seriam dele, e apenas dele. Ninguém se beneficia indiretamente pelo sucesso de seu adversário. Como discutido na Apresen‐ tação, esse tipo de abordagem só funciona dentro da chave da “panaceia”: todos os problemas serão resolvidos com a transformação dos clubes em empresas. Um argumento fa‐ lacioso. [9] Gostaria de reforçar a importância desta referência. Em Football Since The War (1979), Charles Critcher elabora uma série de conceitos que serão muito influentes nos estudos britânicos do futebol já nos anos de 2000, isto é, bem de‐ pois de seu lançamento. Não se trata de uma obra impecá‐ vel, mas, por possuir relações com o canônico Center for Cultural Studies da Universidade de Birmigham, influente escola das ciências humanas e sociais em todo o mundo, merece uma atenção especial. [10] Ainda que tenhamos uma bela história como a de Afon‐ sinho ilustrando a luta de jogadores pelo fim da lei do passe, não se pode perder de vista que o lobby político efetivo, a nível global, para dar liberdade contratual aos jogadores, foi

protagonizado por essa nova “classe” de agentes. As trans‐ formações protagonizadas ao longo dos anos de 1990, a exemplo do que provocou a Lei Bosman, praticamente sa‐ cramentaram a relação dos jogadores com os clubes em uma espécie de prestação de serviços multimilionária, com contrato não passível de rompimento unilateral. [11] Ver: BARONCELLI, A. & CARUSO, R. The organization and economics of italian Serie A: a brief overall view. Rivista di Diritto ed Economia dello Sport. Vol VII, Fasc.2, 2011. [12] Ver BOLOTNY, Frédéric. “Football in France”. In: AN‐ DREFF, W. & SZYMANSKI, S. (ed.), Handbook on the Econo‐ mics of Sport. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2006. p. 467-513. [13] Como já mencionado, o Capítulo 1, de Daniel Ferreira e Victor Figols, traz mais detalhes sobre a história da Ley de Deporte na Espanha, e explica como Barcelona, Real Ma‐ drid, Athletic Bilbao e Osasuna foram poupados do rigor da lei. [14] Fernando Borges explica com mais detalhes a trajetória das normas de “sociedade desportiva (SD)”, “sociedade anônima desportiva (SAD)”, “sociedade por quotas (SDUQ)” no Capítulo 2 “Acabou o amor: o processo de divórcio entre clube e SAD em Portugal”. [15] Carles Viñas colaborou com o Capítulo 9, “O modelo so‐ cietário do futebol na Alemanha: uma referência de êxito

questionável”, no qual explica essas questões com mais de‐ talhes. [16]Ambos artigos sobre a Argentina são qualificados para entender essas duas investidas e seus respectivos contex‐ tos. “As associações civis desportivas no futebol argentino: privatizações e resistências” de Veronica Moreira e Rodrigo Daskal; e Capítulo 8 “Racing Club de Avellaneda: os torcedo‐ res do Racing e a mercantilização do futebol” de Lucía Ra‐ vecca. [17] Ver: Capítulo 3 “Sociedades anónimas deportivas no Chile: o declínio do futebol social”, de Sebástian Campos Muñoz; e o Capítulo 7 “Club Universidad de Chile: recuperar o clube para os seus torcedores, superando o fracasso das S.A.” da Asociación de Hinchas Azules. [18] Uma rápida pesquisa nos permite encontrar diversos artigos jornalísticos e matérias que reforçam as narrativas de “democratização”. Apesar de ainda ser cedo para medir o impacto do modelo adotado pela Colômbia, um estudo re‐ cente indicou que os clubes já acumulam prejuízos. Ver: BARRERA, Brian. Análisis económico y finaciero del fútbol profesonal colombiano (2016-2018). Facultad de Ciencias Administrativas y Económicas. Universidad ICESI. 2019. [19] Tucapel Jímenez era presidente da Asociación Nacional de Empleados Fiscales e militante do Partido Radical. Foi as‐ sassinado pela inteligência do exército em 1982.

[20] Ver: JARA, Carlos; GONZÁLEZ, Juan Pablo. “Desde Pino‐ chet a las S.A.: como el fútbol pasó de ser un deporte social a una empresa comercial”. El Desconcierto, 2 ago. 2019. [21] Vários outros clubes se encantaram com a ideia de um gerenciamento privado. O período se encerrou com um gra‐ ve quadro de endividamento dos clubes locais. [22] “Se a Deloitte classificasse os clubes segundo o lucro, os resultados seriam constrangedores. Não apenas a maio‐ ria dos clubes tem prejuízo e não paga dividendos a seus acionistas, como muitos dos “maiores” clubes estariam no final da lista [...]. Qualquer que seja o parâmetro, nenhum clube de futebol é um grande negócio”. (KUPER; SZY‐ MANSKI, 2009, p. 88). [23] “Um exame forense do estado da elite do futebol euro‐ peu confirma isso, revelando uma realidade totalmente dife‐ rente do dito sucesso comercial: é a realidade do débito, da falência, da perda do balanço competitivo e um contido res‐ sentimento dos torcedores pela exploração financeira en‐ quanto ‘consumidores’ e pela sua falta de poder de deci‐ são”. (KENNEDY; KENNEDY, 2016, p. 25). [24] Ver Capítulo 13 “Multi-club ownership: um novo estágio da globalização dentro do futebol”, de João Ricardo Pisani. [25] Ver Capítulo 11 “Faixa, rota e bola: o futebol como ins‐ trumento de soft power chinês” e Capítulo 12 “Soft power e

futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita”, ambos de Emanuel Leite Junior e Carlos Rodrigues. [26]Ver Capítulo 3 “Sociedades anónimas deportivas no Chi‐ le: o declínio do futebol social”, de Sebástian Campos Muñoz. [27] A bem da verdade, o Exxel Group não “investia” no Vi‐ tória. Apesar de ter se tornado proprietário da maior parte da Vitoria S.A. a partir do ano 2000, o aporte de 12 milhões de dólares estava disponível como crédito a juros de 8% a.a.. Cerca de 60% desse montante foi utilizado, em um contexto de crise generalizada no futebol brasileiro, mas o resto desse valor foi bloqueado pelo credor unilateralmente, impactado pela crise cambial argentina que originou a sua falência. Ver: CARNEIRO, Paulo. “A vantajosa recompra das ações do Vitória S.A feita em 2004”, Blog de Paulo Carneiro. 30 mar 2010. [28]Parma, Napoli, Palermo, Fiorentina e muitos outros que hoje desfilam no futebol italiano, na realidade, são os cha‐ mados “phoenix clubs”, novas empresas de futebol às quais foram concedidos os símbolos e os resultados esportivos da‐ quela empresa que foi liquidada. [29] Bahia, Vitória e Figueirense são casos concretos de clu‐ bes brasileiros com grande quadro associativo que explici‐ tam essa questão. Os três resgataram suas associações ci‐ vis após resultado desastroso da experiência de S.A..

[30] Portugal, Espanha, Itália e Chile são países onde os clu‐ bes já possuem mais dívidas enquanto empresa do que nos tempos de associação civil. [31] Como uma vez me contou Edgar Macedo, autor do Ca‐ pítulo 6: “Nós no Belenenses rimos quando se diz ‘investi‐ dor’. ‘Investidor’ é algo que supostamente ‘investe dinhei‐ ro’. O que se passa é que entre 2012 e agora terão passado, estima-se, um total de 100 jogadores, sendo que quase ne‐ nhum foi comprado. Ou eram jogadores de custo zero, ou eram jogadores emprestados”. [32] Além do Belenenses, tratado nos capítulos sobre Portu‐ gal, também contam histórias parecidas os seguintes clubes históricos: Atlético Clube de Portugal, Estrela da Amadora, Beira-Mar, União de Leiria, Leixões, Cova da Piedade e Olha‐ nense. Ver: DELGADO, Evandro. “Clube vs SAD: o ‘vírus’ que está a levar emblemas históricos do futebol português ao abismo”. SAPO Desporto. 19 out 2018.

PARTE I

Análises

A “Ley de Deporte” na Espanha e o modelo de “sociedad anónima deportiva”: um balanço dos últimos 30 anos

Daniel Ferreira & Victor de Leonardo Figols

Introdução Em 1990, o governo da Espanha aprovou uma lei que modificava o formato organizativo dos clubes, a chamada Ley de Deporte. Essa lei promoveu a transformação dos clubes espanhóis: de associações sem fins lucrativos para sociedades anônimas. A partir de então, os clubes passaram a ter o formato de propriedade fatiada em ações, e passavam a ser regulados por uma nova legislação (própria), que equivalia o tratamento deles semelhante àquele dado às empresas. Essa lei justificava-se, em grande medida, como uma estratégia do governo para que os clubes se tornassem economicamente sustentáveis e menos endividados. Isso sob a ideia de que, como empresas, seriam mais profissionais e, consequentemente, administrados de forma mais competente.

A Ley de Deporte não foi a primeira tentativa do governo espanhol em intervir no campo esportivo, uma vez que, desde a década de 1970, os clubes já apresentavam problemas financeiros. O controle das dívidas dos clubes foi motivo de ampla discussão entre as entidades esportivas responsáveis, entretanto, foi só em 1990 que uma legislação obrigou, efetivamente, os clubes a se organizarem. Vale lembrar que, nas décadas de 1980 e 1990, a Europa, de modo geral, vivia o contexto da crise do chamado Welfare State e a ascensão de políticas neoliberais. Muito embora na Espanha o Welfare State tenha acontecido de forma tardia (na década de 1980), as iniciativas neoliberais foram promovidas pelo governo de esquerda, do Partido Socialista Obrero Español (PSOE). Desde a aprovação da lei, são quase 30 anos das SADs na Espanha, situação que se revela a nós como um momento oportuno para fazer um balanço. Desse modo, é possível fazer algumas considerações, como por exemplo: 1) Após a adoção de um modelo empresarial, os clubes conseguiram atrair mais investimentos, se tornaram menos endividados ou mais sustentáveis economicamente?; 2) A Ley de Deporte permitiu as instituições a se tornarem mais competitivas esportiva e economicamente?; 3) As entidades conseguiram manter mais seus atletas, e evitar vendas, ou perdas de jogadores? A partir dessas questões, o presente trabalho pretende trazer uma leitura crítica da adoção das SADs na Espanha. Nessa perspectiva, o texto busca recuperar, em um primeiro momento, o contexto de adoção da Ley de Deporte, mostrando o debate público em torno do endividamento paulatino dos clubes. Já em um segundo momento, busca-se explorar os impactos da constituição das SADs tanto para os clubes quanto para o futebol espanhol de modo geral.

O contexto de adoção das SADs na Espanha (19701990) A década de 1970 foi marcada por um período de abertura política, econômica e cultural para a Espanha. Após a morte do ditador Francisco Franco – que ocupou o cargo de presidente de 1936 a 1975 –, o governo espanhol passou pelo chamado Período de Transição Democrática, no qual resultou na Constituição de 1978 e na adoção da monarquia parlamentar como forma de governo. No campo da economia, a Espanha só viveria uma fase de crescimento na década seguinte, quando o Partido Socialista Obrero Español (PSOE) subiu ao poder. Foi durante o governo do PSOE (1982-1996) que a Espanha passou a fazer parte do cenário europeu e mundial: aderiu à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 1982; e passou a ser membro da Comunidade Europeia em 1986. O período foi marcado por uma: [...] reconversión industrial, la reforma militar, la modernización de las infraestructuras del país, la terminación del Estado autonómico, la recuperación del papel internacional de España y varios años (1985-1991, 1993-1996) de fuerte crecimiento económico. 1

A abertura política e o crescimento econômico pósFranco colocaram a Espanha dentro do contexto da globalização, e seus efeitos podem ser observados no campo futebolístico. Durante duas décadas (de 1953 a 1973), o governo franquista, a partir da Delegación Nacional de Deportes, da Federación Española de Fútbol e do Ministerio del Deporte, controlou o esporte – e, principalmente, o futebol –, interferindo diretamente na política de contratações de jogadores estrangeiros. Em 1953, a contratação do jogador argentino Alfredo Di Stéfano foi marcada por uma disputa entre Real Madrid CF e FC Barcelona, que acabou sendo resolvida pelos órgãos

responsáveis pelo esporte na Espanha. A querela aberta pela contratação do jogador foi motivo suficiente para os órgãos limitarem a contratação de jogadores estrangeiros por duas décadas, com base em uma política de austeridade, mas também baseado no discurso nacionalista típico do período franquista. Assim, os clubes foram proibidos de contar com jogadores que não tivessem uma origem espanhola comprovada. Em linhas gerais, só eram aceitos jogadores de origem hispânica, de preferência filhos ou netos de espanhóis, falantes da língua espanhola, sem passagem por sua seleção nacional. Os oriundos, como ficaram conhecidos esses jogadores, foram figuras presentes nos gramados espanhóis. Todavia, mesmo com a proibição, alguns clubes, como Real Madrid e Barcelona, buscaram formas de flexibilizar a restrição para contar com mais jogadores estrangeiros, para além dos oriundos, que eram em sua maioria sul-americanos. Em 1969, os maiores clubes espanhóis passaram a discutir um novo modelo de restrição mais flexível, para contar com mais jogadores estrangeiros, para além dos oriundos. Pressionada pelos clubes – FC Barcelona, Valencia CF, Club Atlético de Madrid e Real Madrid –, a Federación Española de Fútbol (FEF) organizou um fórum de discussão no qual participaram o presidente da federação nacional, os presidentes das federações regionais, além dos presidentes dos clubes da primeira e da segunda divisão. 2 Em meio às discussões do fórum, o FC Barcelona anunciou a contratação do jogador paraguaio Irala. Todavia, a FEF vetou a transação, alegando que o jogador havia servido a sua seleção nacional. Em resposta, o clube catalão entrou com um recurso alegando trato desigual, pois a FEF havia permitido que o Real Madrid efetivasse a contratação de outro jogador paraguaio – Fleitas – que estava nas

mesmas condições que Irala. A ação do FC Barcelona forçou a FEF a promover uma investigação para verificar se jogadores oriundos haviam servido às suas seleções. As investigações chegaram à Fédération Internationale de Football Association (FIFA). O órgão máximo do futebol constatou que uma grande quantidade de jogadores estrangeiros apresentou documentação falsa para atuar na Espanha. Além de falsificaram os comprovantes de que não haviam jogado pela seleção de seu país, também possuíam documentação falsa que demonstrava sua origem como espanhola. Era comum jogadores alegarem que possuíam antepassados espanhóis, mesmo tendo origem guarani, como era o caso de alguns jogadores paraguaios. 3. Diante das denúncias de falsificação, a FEF decidiu verificar a documentação de todos os oriundos. Após um mês, finalmente, a FEF, em conjunto com a Delegación Nacional de Deportes (DND), decidiu autorizar a contratação de um jogador de origem espanhola, mesmo este tendo servido ou não a sua seleção nacional. A resolução favoreceu o Real Madrid, que poderia continuar contando com Fleitas, enquanto que o Barcelona não pôde efetivar a contratação de Irala. A discussão sobre a contratação de jogadores estrangeiros voltou a ser pauta em 1972, quando o FC Barcelona tentou contratar o jogador argentino Juan Carlos Heredia, que não tinha origem espanhola comprovada. Antes de ter a contratação vetada pela FEF, o clube catalão denunciou inúmeros casos semelhantes em outros clubes. Segundo o historiador Carles Santacana, mais de vinte casos de jogadores foram analisados e a conclusão foi de que nenhum deles poderia comprovar a sua origem espanhola, e que, portanto, os documentos haviam sido adulterados, sobretudo, pelos consulados. Desta vez, o caso chamou a atenção dos ministérios de Asuntos Exteriores, de

Gobernación e de Justicia.4 O caso dos oriundos começava a sair da esfera esportiva e se tornava um problema para o governo Espanhol. Para evitar mais constrangimentos, como fora em 1969, a FEF decidiu flexibilizar de vez as restrições de 1953: passou a permitir a contratação de qualquer jogador estrangeiro (não necessariamente com origem espanhola) com ou sem passagem por sua seleção, entretanto, o número de jogadores com essas características se limitava a no máximo dois estrangeiros por clube. Tanto o Real Madrid quanto o FC Barcelona foram os clubes que mais se beneficiaram com as novas regras de restrição de jogadores estrangeiros. A abertura para jogadores estrangeiros lançou os principais clubes5 no mercado global da bola. Esse processo de globalização do futebol espanhol seria intensificado nos anos de 1980, quando a mídia televisiva começou a dar maior destaque para eventos esportivos, sobretudo o futebol. Outro elemento da globalização que também marcou o futebol espanhol foi o interesse de empresas privadas em patrocinar os clubes de futebol. Nos anos de 1980, e na primeira metade da década de 1990, mesmo com a participação de patrocinadores e das cotas televisivas, o que mais movimentava a economia dos clubes era a transação de jogadores. Essa movimentação financeira dos clubes chamou a atenção do governo espanhol, que buscou criar mecanismos para controlar, e, sobretudo estabelecer taxas específicas para os clubes. A primeira iniciativa visível do governo espanhol data de 1986, quando o Ministerio de Economía y Hacienda publicou, no Boletín Oficial del Estado, o Plan General de Contabilidad a los Clubes de Fútbo. O documento entende que naquela época existiam empresas e entidades

esportivas com características específicas, precisavam ter suas contas planificadas.

mas

que

A demanda para planificar as contas dos clubes de futebol surgiu ainda em 1985, quando o Consejo Superior de Deportes criou um grupo de trabalho para analisar a situação econômica dos clubes de futebol. Os jornais da época dão conta de que os clubes estavam com dívidas acumuladas em torno de “21.000 millones de pesetas”6, e que a Liga de Fútbol Profesional (LFP) 7 estudava uma forma de reduzir essa dívida a zero. A proposta da LFP era de que a administração dos clubes passassem de “la carpa de circo a la empresa” 8, em outras palavras, de uma administração amadora para uma empresarial, a partir do “control presupuestario, la adaptación de la contabilidad al plan general contable y a informatización de los clubs, conectado sus operaciones a un terminal en la sede de la Liga” 9 . Para além de propor uma gestão empresarial, a LFP também propunha uma administração mais profissionalizada. A dívida dos clubes, segundo a LFP, estava dividida da seguinte forma: Hacienda, 4.276 millones; a la Banca Oficial, 3.861; a la Banca Privada, 2.787; a sus directivos, 2.737; al personal, 2.374; a otros acreedores, 2.046; a organismos oficiales, 1.010; a la Seguridad Social, 850; a proveedores, 650; y a varios, 133.10

Não é de se estranhar que o Ministerio de Economía y Hacienda tenha elaborado um plano de contabilidade para os clubes, haja vista que a Hacienda era a maior credora dos clubes. Apesar de a proposta do Plan General de Contabilidad abarcar diversas entidades esportivas, nela fica claro o interesse pelos clubes de futebol, pois nasceu com o objetivo de facilitar e de normalizar a forma como os clubes prestavam suas contas para o governo11, e, consequentemente, identificar os principais agentes econômicos envolvidos no mundo futebolístico, e,

finalmente, implantar uma taxação de impostos específica para os clubes de futebol. Neste documento, é curioso notar a forma como o governo entendia a razão social dos clubes de futebol: [...] se entiende por clubes deportivos las asociaciones privadas con personalidad jurídica y capacidad de obrar, cuyo exclusivo objeto sea el fomento y la práctica de la actividad física y deportiva, sin ánimo de lucro, tal como se establece en la ley 13/1980, general de la cultura física y el deporte. 12

O Plan General de Contabilidad é um documento extenso, pois detalha cada item da vida econômica de um clube de futebol: de transação de jogadores às categorias de base; gastos com estádio, a arrecadação de bilheteria; de direitos de transmissão a imóveis no nome do clube. A ideia era que os clubes detalhassem tudo, de forma transparente, assim como uma empresa. A proposta de levar uma gestão empresarial para os clubes espanhóis seria aperfeiçoada quatro anos depois, em 1990, com a Ley del Deporte. É bem verdade que, ainda 1987, o governo espanhol já vislumbrava a possibilidade de trocar a forma administrativa dos clubes. O Secretario de Estado de Deportes, Javier Gómez-Navarro, estudava modificar a Ley de Cultura Física y del Deporte de 1980. A proposta de Gómez-Navarro se dividia em quatro pontos: [...] potenciación de la práctica deportiva de base, del deporte de competición, reestructuración y mejora de la administración deportiva y aportación del CSD (Consejo Superior de Deportes) a los Juegos Olímpicos de Barcelona’92. 13

O que chama a atenção é o ponto destinado a melhorar a administração esportiva dos clubes. Na época, ainda não estava muito claro como seriam essas mudanças, mas fato é que o governo já estava estudando outras possibilidades na gestão dos clubes esportivos, principalmente na questão dos impostos. Na mesma matéria do jornal, Gómez-Navarro

afirmava que era impossível que as mais de 60 mil “asociaciones deportivas” continuassem com isenção de impostos.14 Aqui, cabe uma ressalva. Os estudos para a Ley del Deporte de 1990 surgiram dentro do contexto da organização dos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992), mas, aos poucos, o governo identificou problemas fiscais nos clubes, sobretudo de futebol, e, para isso, a mudança da razão social dos clubes era uma prioridade do Estado espanhol. Em maio daquele ano, a ideia de transformar os clubes em sociedades anônimas ainda não estava madura, mas já estava no horizonte, uma vez que Gómez-Navarro estava buscando “una fórmula jurídica para que los clubes se configuren en el futuro como sociedades anónimas” 15 . Em julho daquele mesmo ano, Gómez-Navarro admitiu a mudança da razão social dos clubes: El gran debate político de la nueva Ley, que modificará todos los decretos que desarrollan la actual, será el régimen jurídico de las federaciones, que mantendrán sus status como entidades de derecho privado, anuquen, en circunstancias limites, no se descarta la intervención de poder público.16

E completa afirmando que essas mudanças em sociedades anónimas eran “las únicas salidas validas al deporte profesional, como en Italia.”17. A experiência italiana será utilizada como exemplo para a transformação dos clubes em Sociedades Anónimas Deportivas (SAD), ou seja, a adoção de um modelo empresarial na estrutura administrativa dos clubes18. Em dezembro de 1987, Gómez-Navarro deixou ainda mais clara as suas intenções com a nova Ley del Deporte. Em uma coletiva de imprensa, na qual anunciou os novos acordos com patrocinadores para os Jogos Olímpicos, o

Secretario de Estado de Deportes falou mais sobre a proposta da Ley del Deporte, segundo o jornal La Vanguardia, [...] la nueva ley establecerá un marco jurídico diferente. La ley determinará cuáles son las competencias que en el ámbito deportivo corresponden a los municipios, al Estado y a las autonomías y cómo se canalizan los fondos correspondientes a cada institución. Asimismo, dicha ley establecerá un mecanismo de fiscalización de cada federación que garantizará un mayor control de los gastos. La nueva ley redefinirá el modelo de los clubs, de la profesionalización de su gestión y el papel del deportista profesional. 19

Ainda segundo o jornal, Gómez-Navarro também chamava a atenção para as suspeitas de que os clubes tinham “cajas ‘B’ y doble contabilidad” 20. Já no periódico ABC, em uma nota muito breve, é possível encontrar uma fala do Secretario de Estado de Deportes na qual teria dito que “la nueva ley del Deporte debe profesionalizar a los dirigentes para que éstos puedan percibir un dinero per su labor.” 21. Ao final de 1987, estavam claras as intenções do governo espanhol em criar uma nova Ley del Deporte, a proposta se sustentava em pelo menos três pilares: 1) solucionar o problema crônico do endividamento dos clubes; 2) implantar um sistema mais eficaz de taxação de impostos; 3) combater possíveis atos de corrupção, que eram entendidos como falta de profissionalismo dos dirigentes. Nesse sentido, para o governo, era necessária a implantação de uma gestão empresarial a partir da mudança da razão social dos clubes. Na virada daquele ano, o debate sobre as SADs perdeu força, ao menos nas páginas dos jornais. Nos bastidores, Gómez-Navarro seguia afinando o seu plano e buscando aliados para a implantação da nova lei, dentre eles estava o presidente da La Liga, Antonio Baró. Como demonstra

Carlos García-Martí, Maite Gómez-López e Javier Durán González, o presidente da Liga era um personagem do futebol espanhol que já estava interessado em controlar os gastos dos clubes desde 198522, em um convênio firmado entre clubes, La Liga e governo, esperava-se que as dívidas fossem pagas em dez anos a partir da loteria esportiva: El Plan Baró pretendía devolver los 20.000 millones en diez años – que con intereses se iban hasta los 36.000 – a partir de un crecimiento lineal de los ingresos por quinielas hasta los 4.200 millones al año gracias a un mayor número de jornadas y un aumento neto de la recaudación por jornada, lo que ya la prensa consideró cuando menos arriesgado.23

O plano de Baró fracassou, pois o governo havia criado, no mesmo período, uma loteria muito mais atrativa para os apostadores, além do já citado Plan General de Contabilidad de 1986, que também previa repasses da loteria esportiva para os clubes. Anos depois, Baró acreditava que a saída seria as sociedades anónimas, entretanto, o presidente tinha a (falsa) expectativa de que, caso os clubes virassem empresa, “los socios mantendrán algún tipo de control” 24. Entretanto, antes mesmo de a lei ser implantada, já se discutia quem eram os verdadeiros donos dos clubes: sócios ou dirigentes. E como veremos mais adiante, os sócios perderam protagonismo na vida política dos clubes após a Ley del Deporte. Em meados de 1988, os clubes começaram uma ampla discussão sobre os impactos da lei na estrutura administrativa dos clubes. Em meio ao debate, um terço dos clubes se mostravam favoráveis em se tornarem sociedades anónimas, outra parcela não havia se pronunciado, enquanto FC Barcelona e Real Madrid eram completamente opostos à mudança. O debate se arrastaria até o final daquele ano, e a resolução seria favorável para os grandes clubes25 . A

pressão (política e econômica) dos dois maiores clubes da Espanha forçou Gómez-Navarro a [...] hace balance de las aportaciones del periodo de discusión pública [...] y por primera vez afirma que están estudiando que aquellos clubes que hayan demostrado una buena gestión financiera podrán evitar la conversión, con lo que los periodistas señalan a F.C. Barcelona, Athletic de Bilbao, Real Madrid y quizás Osasuna.26

Em outras palavras, o Secretario de Estado de Deportes estava estudando um plano em que os clubes com receitas positivas nas últimas temporadas não seriam obrigados a ser tornarem SADs. O fato de os clubes terem receitas positivas não significava que honravam todas as suas dívidas, e sim que apenas possuíam receita superior ao montante devido. Na realidade, eram poucos os clubes que se enquadravam nesse critério. Como demonstra GarcíaMartí, Gómez-López e González: Siguiendo criterios estrictamente económicos, permitiría que algunos clubes se mantuviesen como sociedades deportivas siempre y cuando hubiesen tenido un patrimonio neto positivo los últimos cinco años. Curiosamente, una norma tan objetiva solo era cumplida por cuatro clubes: Athletic de Bilbao, FC Barcelona, Real Madrid y Osasuna, que ya se había salvado del primer plan de saneamiento por su gestión primorosa. 27

A lei ainda seria debatida e tramitaria ao longo de um ano. Mesmo que as expectativas de Gómez-Navarro fosse implantar ainda em 1989, a lei só foi aprovada em março de 1990, mesmo não sendo aceita por boa parte dos clubes e da opinião pública. 28 E apesar de ser uma lei voltada para todos os clubes esportivos espanhóis, seu texto era claramente voltado para o futebol. Em seu preâmbulo, a lei faz uma diferenciação entre a “práctica deportiva del ciudadano como actividad espontánea, desinteresada y lúdica o con fines educativos y sanitarios” do “espectáculo deportivo, fenómeno de masas,

cada vez más profesionalizado y mercantilizado” desse modo, a lei tem três objetivos manifestos:

29,

e,

Fomentar la práctica deportiva y ordenar su funcionamiento, cuando ésta trasciende del ámbito autonómico. Reconocer y facilitar la actividad deportiva organizada a través de estructuras asociativas. Regular el espectáculo deportivo, considerándolo como una actividad progresivamente mercantilizada. 30

Apesar de falar do esporte de forma geral, as determinações da lei são diretamente voltadas para o futebol profissional, e isso fica mais expresso em outra passagem: En un primer nivel, la Ley propone un nuevo modelo de asociacionismo deportivo que persigue, por un lado el favorecer el asociacionismo deportivo de base, y por otro, establecer un modelo de responsabilidad jurídica y económica para los Clubes que desarrollan actividades de carácter profesional. Lo primero se pretende logar mediante la creación de Clubes deportivos elementales, de constitución simplificada. Lo segundo, mediante la conversión de los clubes profesionales en Sociedades Anónimas Deportivas, o la creación de tales Sociedades para los equipos profesionales de la modalidad deportiva que corresponda, nueva forma jurídica que, inspirada en el régimen general de las Sociedades Anónimas, incorpora determinadas especificidades para adaptarse al mundo del deporte. 31

Apesar de a lei obrigar os clubes a se tornaram Sociedades Anónimas, quatro clubes foram excluídos dessa obrigatoriedade (FC Barcelona, Real Madrid CF, Athletic Club, Club Atlético Osasuna). A lei usou como base a: [...] buena gestión con el régimen asociativo, manteniendo un patrimonio neto positivo durante los cuatro últimos ejercicios. A estos clubes se les impone, en el caso de que opten por su transformación en Sociedad Anónima Deportiva, un régimen específico y personal de responsabilidad de los directivos que garantice la estabilidad económica de los clubes. 32

A expectativa era a de que os clubes se tornassem SADs voluntariamente, entretanto, só o CA Osasuna se transformou em uma sociedad anónima, anos depois, por não cumprir a exigência de ter as receitas positivas. Sobre a lei, o que nos interessa aqui, é como estava previsto a divisão do clube entre os seus sócios investidores, deixando bem claro que até mesmos cidadãos espanhóis ou estrangeiros, ou mesmo empresas, tinham direitos de adquirir ações dos clubes: Sólo podrán ser accionistas de las Sociedades Anónimas Deportivas las personas físicas de nacionalidad española, las personas jurídicas públicas [...], y las personas jurídicas privadas de nacionalidad española, o sociedades en cuyo capital la participación extranjera no sobrepase el veinticinco por ciento [...].33

Por fim, com relação à taxação de impostos e ao controle das dívidas, a Ley del Deporte previa que a Liga de Fútbol Profesional assumiria parte das dívidas dos clubes, assim: “El plan supone que la Liga recibirá el 7,5% de los ingresos de las quinielas, con un mínimo de 1800 millones al año, con lo que pagarán esa deuda pública en 12 años, hasta 2002.” Por outro lado, a Liga assumiria os direitos econômicos das “retransmisiones por televisión de las competiciones organizadas por la propia”, de patrocinadores de competições organizadas por ela, e 1% na arrecadação em apostas esportivas. Ademais, os clubes ainda estavam sujeitos ao Plan General de Contabilidad de 1985, com uma pequena alteração no Impuesto sobre el Valor Añadido (IVA), para equiparar o regime fiscal das entidades espanholas com clubes de semelhante caráter da Comunidade Europeia. Os impactos da Ley del Deporte: alguns casos Em 1991, a “lei das SADs” seria efetivamente aprovada e os clubes, para inscreverem-se nas competições da

temporada 1991-1992, teriam de estar organizados sob o novo formato. A nova lei ofertava um saneamento de € 172 milhões, montante que os clubes espanhóis estavam devendo (naquele momento) em conjunto. Promovia, também, a mudança do regime jurídico das Federações Espanholas em cada uma das suas modalidades, entre outras modificações34. A lei de 1990 incorporou, também, um instrumento legal de luta contra a violência na Espanha, com uma organização mais desenvolvida e com formas de punição para os clubes e para os indivíduos que praticassem distúrbios no contexto do futebol.35 A transição para o novo formato dos clubes, “carrochefe” da lei, se deu em um ambiente de dificuldades e de dúvidas em que, por exemplo, um clube destacado como o Real Betis Balompié teve de buscar suporte público para sua transformação, enquanto clubes menores (e mais vulneráveis) como Club Atlético Malagueño e Real Murcia Club de Fútbol sofreriam de forma mais contundente as mudanças impostas na nova lei, o primeiro sendo extinto (e dando origem a outro clube36) e o segundo rebaixado à segunda divisão por não atender às novas obrigações normativas.37 Ao fim do processo de transformação do formato das entidades, cerca de 49% das ações dos clubes de 1ª divisão seriam adquiridos por antigos sócios (e 22% delas foram adquiridas pelos antigos sócios nos clubes de 2ª divisão). García-Martí, Gómez-López e González trazem um panorama mais claro de como se deu essa reconfiguração nos clubes: [...] en Primera División, únicamente Español (78%), Tenerife (100%), Valencia (85%), Albacete (93%), Real Sociedad (100%) y Deportivo de La Coruña (86%) tienen fuertes mayorías de antiguos socios, y en el caso de la Segunda División solo se aprecia una posición similar en el Lleida (65%). Nueve clubes están dominados por empresarios o grupos de empresarios en Primera División:

Atlético de Madrid (95%), Burgos (59,3%), Sevilla (52%), Sporting de Gijón (55,2%), Logroñés (81%), Zaragoza (73%), Oviedo (45,1%), Celta (56%) y Rayo Vallecano (98%); y lo mismo ocurre con 10 equipos de Segunda: Castellón (85%), Figueres (65%), Sestao (76%), Palamós (90%), Éibar (74%), Betis (74,46%), Sabadell (84%), Mérida (70,88%), Mallorca (80%) y Valladolid (88,25%). Además, los gobiernos autonómicos y locales han tenido que salir al rescate del Cádiz (76,8%), el Racing de Santander (90,3%) y Compostela (48,73%) y ayudar al Burgos (20,7%), Sporting de Gijón (7,8%), Oviedo (14,8%), Mérida (1,12%) y Valladolid (3,75%). En total, de 29 clubes de fútbol inmersos en el proceso, solo siete parecen controlados por los antiguos socios, y de los restantes, 19 pasan a ser propiedad de individuos o grupos empresariales y tres de las administraciones públicas.38

Segundo Llopis-Goig, a lei de 1990 efetivamente possibilitaria a incorporação de investidores ou de acionistas no futebol em geral, elevando a capacidade dos clubes em captar recursos, e uma associação estreita com grupos financeiros. Esses aportes aconteciam, portanto, paralelamente à mudança no perfil proprietário e de controle em grande parte dos clubes. Assim, houve, de forma geral, a perda do caráter associativo (uma tradição antiga e popular na Espanha) e do caráter participativo/decisório que essas organizações anteriormente dispunham (algumas desde suas origens). Embora, como se viu, muitos dos antigos sócios dos clubes tenham se tornados acionistas, outra boa parte se converteria apenas em “abonados”: aqueles que passaram a “assinar” para ver os jogos do clube durante a temporada, sem maiores direitos representativos. Llopis-Goig afirma, ainda, que a Ley de Deporte também possibilitou a transparência dos clubes e a crescente organização deles com bases mais otimizadas de gerência.39 García-Martí, Gómez-López e González, por outro lado, trazem uma visão mais crítica sobre os efeitos da lei. Segundo eles, a promessa de que a mudança jurídica dos clubes serviria para torná-los mais sustentáveis nunca se concretizou na prática. As “novas SADs” seguiram em um

ciclo de endividamento, alimentadas pelo boom crescente do dinheiro das televisões, dos patrocínios públicos encobertos, e, ao que parece, também da escalada inflacionária dos salários dos atletas e as demandas de desempenho esportivo, elementos não contemplados pela lei. 40 Com a crise econômica do século XXI, muitos clubes entrariam em uma situação de falência. Em 2001, eles haviam chegado a um passivo de € 1,5 bilhões em conjunto. Em 2002, deviam mais de € 1,6 bilhões. E em 2003, a dívida já estava na casa dos € 2 bilhões, mesmo com o aumento das receitas anuais, que chegaram à € 1,2 bilhões. Em 2010, a dívida girava em torno dos € 4 bilhões, embora houvesse um declínio a partir de 2011, diminuindo a dívida para € 3,5 bilhões em 201541. Lembrando que, em 1984, a dívida era de 16.000 milhões de pesetas (cerca € 84 milhões) e, em 1989 (dois anos de promulgar a lei), era de 26.000 milhões de pesetas (cerca € 156 milhões) 42. Nesse cenário, clubes como Sporting Gijón, Celta de Vigo, Racing Santander, Levante e RCD Mallorca tiveram sérios problemas financeiros, este último sendo excluído da Liga Europeia, pela UEFA, na temporada 2010-2011 em decorrência de sua situação econômica. Ao longo dessa época, também houve atraso de salários em clubes como Atlético de Madrid, Valencia43, Real Sociedad e Valladolid, e, em 2004, o Athletic Bilbao reduziu salários do seu plantel. Ainda em 2004, o FC Barcelona devia cerca de € 200 milhões; o Real Deportivo La Coruña, € 178 milhões (o clube pediria concordata em 2013); e o Atlético de Madrid, € 101 milhões. 44. Nesse contexto, o RCD Espanyol teve de vender seu estádio (em 1997) por dívidas acumuladas, mesmo com a torcida (entre os quais muitos acionistas minoritários) muito contrariada. Em 2009, inauguraria um novo estádio, mas, em 2015, novamente endividados (deviam o

equivalente a três vezes mais do que 1997), o clube foi vendido a um empresário chinês. Entre 2004 e 2012, 21 clubes espanhóis haviam recorrido ao mecanismo de “concurso de credores” para evitar o castigo desportivo (a ley concursal, foi estabelecida em 2004). No início da temporada 2011-2012, seis dos clubes da Liga (entre eles três recém-ascendidos) estavam buscando proteção frente seus credores. Nesse quadro de endividamento, os efeitos da lei, entretanto, parecem que seguiram a “letra fria” mais para as equipes médias e pequenas, que detinham menos capital político. Alguns destes, ao longo dos anos, acabariam liquidados, inativos ou mesmo abandonados devido às próprias dívidas cada vez mais impagáveis que adquiriram nessa época, como, por exemplo: Sestao Sport Club SAD, Real Burgos C.F. SAD, Club Atlético de Madrid de Marbella SAD, C.P. Mérida SAD, SD Compostela SAD, Granada 74 SAD (anteriormente conhecido como C.F. Ciudad de Murcia SAD), C.D. Logroñés SAD, Terrassa F.C. SAD, U.E. Miapuesta SAD (anteriormente conhecido como U.E. Figueres SAD), C.F. Extremadura SAD ou o Lorca Deportiva C.F. SAD. 45 Vale destacar que até mesmo o Real Madrid estava inserido nesse contexto. Em 2002, o clube da capital seria beneficiado por uma manobra junto ao governo para requalificar seus terrenos e obter um alto aporte, resolvendo, assim, sua também grave crise econômica. Essa engenharia, que ficaria conhecido como pelotazo, ajudou o clube a sustentar, inclusive, a equipe conhecida na época como galácticos.46 Também, os capitais políticos mais proeminentes de Celta de Vigo e Sevilla FC foram decisivos na forma como a lei seria “aplicada” a eles: estes clubes tinham, inicialmente, sido rebaixados à segunda divisão, em 19951996, por não apresentarem avais financeiros, um dos

requisitos previstos na Ley de Deporte, mas foram “repromovidos” à primeira divisão após fortes manifestações populares nas cidades-sede dos clubes, com a ameaça de recurso à justiça comum, além da articulação nos bastidores políticos (ambos os clubes vinham de cidades governadas pelo Partido Popular, partido protagonista na Espanha naquele momento). Assim, os dois clubes permaneceram na 1ª divisão, juntos com Albacete Balompié e Real Valladolid Club de Fútbol, que já haviam sido convidados para ocupar o lugar deles. Essa reviravolta serviu ainda mais para deslegitimar o papel de regulação que teria a figura da LFP, e o próprio compromisso de gestão sustentável dos clubes. Assim, na temporada 19961997 a Liga teve excepcionalmente 22 clubes, restabelecendo-se 20 clubes no ano seguinte. Másia, nessa linha, termina por concluir: En el año 2010 se estimaba la deuda total del los clubs españoles en cerca de cuatro mil millones de euros, una cantidad casi cuarenta veces superior a la que en 1991 trajo consigo la transformación de los clubs en SAD e inimaginable sin duda para aquellos visionarios que hace veinte años hablaban de una Liga cerrada, de unos clubs cotizando en Bolsa y de unos beneficios netos de muchos millones de euros. Nada más lejos de la realidad. Ninguno de todos, ni los más proclives a ello, ha osado en poner sus acciones en Bolsa y sociedades como el Real Madrid C.F. y el Valencia C.F. SAD adeudan más de quinientos millones, otra como el F.C. Barcelona se aproxima a estas cifras, el Club Atlético de Madrid de Madrid SAD debe trescientos y más rezagados se encuentran Villarreal C.F. SAD, Real C.D. Espanyol de Barcelona SAD y Real C.D. de La Coruña SAD con algo más de ciento cincuenta. 47

No que diz respeito à corrupção, a nova lei não parece ter sido também um marco efetivamente inibidor de práticas corruptas. Sobre o balanço esportivo, por sua vez, a nova legislação não foi um marco de uma configuração esportiva mais equilibrada e competitiva, que já era historicamente mais restritiva e de “poucos vencedores” na Espanha (pelo

menos desde a década de 1950). Pelo contrário, o desequilíbrio parece ter se agravado48. Assim, de 1990 a 2019, em 29 edições, apenas Atlético de Madrid (2), Valência (2) e Deportivo La Coruña (1) venceram excepcionalmente a Liga: nas outras 24 edições a vitória foi ou do FC Barcelona (16) ou do Real Madrid (8). Essa hegemonia não se repetiu na Copa del Rey, e talvez aqui é possível argumentar que houve algum benefício em termos de balanço esportivo (embora essa competição, historicamente, também não tenha um histórico de hegemonia do Real Madrid e FC Barcelona 49 , como a Liga). Vale lembrar que o período após aprovação da lei foi, igualmente, um momento de reconfiguração da mídia, dos torneios, além da própria globalização, que, por seu turno, traria novos elementos não contemplados pela nova legislação e que impactaram no campo esportivo. Nessa perspectiva, destacam-se: a reformatação (e maior atratividade) da antiga Copa da Europa para Champions League (1992), a ascensão dos canais privados e a resolução do Caso Bosman. Esse movimento acompanhou um grande aporte financeiro para dentro do campo esportivo europeu, a partir de conglomerados midiáticos, paralelo à derrubada das barreiras em termos de circulação de jogadores no interior da União Europeia, com uma grande chegada de jogadores estrangeiros ao continente. Nesse movimento, ascenderam também os chamados clubes transnacionais europeus50 e, diante da livre circulação de atletas, clubes protagonistas dentro da Espanha passaram a enfrentar também a concorrência de clubes de fora do país em termos de contratação de jogadores. Isso tornaria a maioria dos clubes da Liga vulneráveis a perda de atletas não mais apenas dentro do território espanhol (como já era para os gigantes Real Madrid e FC Barcelona).

Em termos de balanço financeiro, a Liga acompanhou um processo de cartelização que a lei não pôde prever. Nessa trajetória, a Liga de las Estrellas – como ficou conhecida a Liga nos últimos anos, devido à presença dos melhores jogadores – cresceu muito ao longo dos anos, ultrapassando o Campeonato Italiano, e, em 2010, tinha receitas muito próximas à da Liga Alemã. Nessa trajetória, a partir de 2006, Real Madrid e FC Barcelona entraram para o restrito grupo dos clubes com as maiores receitas do planeta51 . Entretanto, esse seria um dos maiores problemas criados após a aprovação da Ley: o protagonismo de apenas dois clubes contrastava com a falta de competitividade esportiva e o desequilíbrio das receitas comparado com demais clubes do país. Uma das grandes causas do abismo entre os clubes foi a forma individualizada de negociação dos direitos de transmissão com as redes televisivas, acirrando uma desigualdade econômica e esportiva que já vinha desde meados dos anos de 1980. O formato individualizado de divisão dos direitos televisivos se arrastaria até 2015, quando um novo modelo, um pouco mais igualitário, foi implantado. Mas, para se ter uma ideia, na temporada 2009-2010, por exemplo, chegou-se ao valor de € 600 milhões em receitas de TVs, de cujo montante mais da metade iria para o FC Barcelona e para o Real Madrid. Vale lembrar aqui que Real Madrid e FC Barcelona – assim como o Athletic Club – não se tornaram SADs, mas, ainda assim, assumiram uma postura empresarial em seus negócios diante da globalização do futebol. Conclusão Como se viu, a Ley de Deporte não resolveu o problema do endividamento dos clubes na Espanha, pelo contrário, o que se viu foi um crescimento vertiginoso das dívidas dos

clubes. Como agravante, ao longo dos anos, as ações dos clubes ficaram concentradas em pequenos grupos ou em proprietários específicos, ameaçando os laços comunitários e a tradição associativa dos clubes. Além disso, os sócios passavam a ser tratados pelos diretivos como “clientes” 52 . Segundo David Kennedy e Peter Kennedy, um dos problemas do endividamento dos clubes estavam em outros fatores não vislumbrados pela lei e sua ética “empresarial”: a configuração esportiva (desregulada), com a entrada do dinheiro das TVs e com a globalização, provocou um boom inflacionário nos salários dos atletas. Os clubes, por imposições também financeiras (afinal, desempenho esportivo era fundamental para obter melhores receitas), sustentaram esse boom colocando em risco de quebra, impactando em castigos normativos, ou mesmo falindo algumas equipes.53 Por outro lado, o capital político disponível foi um fator diferenciador entre equipes que sofreriam efetivamente os castigos normativos. Enfim, após o balanço de três décadas da adoção das SADs no futebol espanhol é possível afirmar que a Ley de Deporte não conseguiu controlar as dívidas dos clubes, e o que se viu – na verdade – foi um aumento considerável do endividamento dos clubes, levando agremiações à falência ou até mesmo à extinção. A Ley também previa uma maior concorrência – em termos econômicos e esportivos – entre os clubes, entretanto, abriu-se um abismo entre os clubes gigantes e os de médio e pequeno porte, e, como consequência da concorrência desigual entre eles, tanto Real Madrid quanto Barcelona concentraram poderes econômicos e políticos, se destacando esportiva e economicamente no cenário do futebol espanhol, e, de certa forma, europeu. Curiosamente, os dois clubes citados não aderiram ao modelo das SADs, mantiveram suas estruturas associativas, e, consequentemente, usufruíram

dessa condição excepcional, sobretudo no que diz respeito à taxação de impostos.

Fontes ABC El País La Vanguardia Española Orden de 29 de mayo de 1986 por la que se aprueban las normas de adaptación del Plan General de Contabilidad a los Clubes de Fútbol. Boletín Oficial del Estado. núm. 136, de 7 de junio de 1986, p. 20625-20639. Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. Boletín Oficial del Estado. núm. 249, de 17 de octubre de 1990, p. 30397-3041.

Referências ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2015 – Revolution. Deloitte, Sports Business Group, 2015.

ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2016 – Reboot. Deloitte. Sports Business Group, 2016. ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2017 – Ahead of the curve. Deloitte, Sports Business Group, 2017. ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2018 – Roar power. Deloitte, Sports Business Group, 2018. ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2019 – World in motion. Deloitte, Sports Business Group, 2019. GARCÍA-MARTÍ, Carlos; GÓMEZ-LÓPEZ, Maite; GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión de los clubes de futbol profesionales en Sociedades Anónimas Deportivas

(1982-1992)”.

Materiales

para

Historia

del

Deporte, n. 14, Sevilla: 2016. GIULIANOTTI, Richard & ROBERTSON, Roland. Globalization & Football. London: Sage publications Ltd., 2009. KENNEDY, David; KENNEDY, Peter. Football supporters and the commercialisation of football: comparative responses across Europe. Abington: Routledge, 2013. LLOPIS-GOIG, Ramón. Spanish Football and Social Change. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015. MÁSIA, Vicent. “Sociedades Anónimas Deportivas: Luces y Sombras”.

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fútbolteca,

abr.

2011.

Disponível

em:

http://lafutbolteca.com/sociedades-anonimas-deportivasluces-y-sombras/. Último acesso em: 20 jun. 2017. MAZO, Estela S. “La deuda total del fútbol español suma ya 3.440 millones, el 50% más que hace una década”. Expansion,

out.

2016.

Disponível

em:

http://www.expansion.com/directivos/deportenegocio/2016/10/30/5810c219ca4741b01f8b467f.html. Último acesso em: 20 jun. 2019. OLIVA, Hector. RCD Espanyol: Historia de un Sentimiento. Barcelona: Editorial Base, 2017. PALOMARES, Juan. Cien años de historia del RCD Espanyol de

Barcelona

de

Juan

Segura

Palomares.

Barcelona:

Fundació Privada RCD Espanyol de Barcelona, 2001. SANTACANA, Carles. El Barça y el Franquismo – Crónica de unos

años

decisivos

para

a

Cataluña

(1968-1978)

.

Barcelona: Ediciones Apóstrofe, 2006. SORIANO, Ferran. A bola não entra por acaso: estratégias inovadoras de gestão inspiradas pelo mundo do futebol. São Paulo: La-rousse do Brasil, 2010.

Notas [1] DELGADO, José Luis García; FUSI, Juan Pablo & RON, José Manuel Sánchez. Historia de España: España y Europa. Vol. 11. Barcelona: Crítica-Marcial Pons, 2008. p. 143. [2] Ver: FIGOLS, V. L. FC Barcelona: entre o global e o regional (1988-1999). 2016. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) - Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2016. [3]Ver: SANTACANA, Carles. El Barça y el Franquismo – Crónica de unos años decisivos para a Cataluña (19681978) . Barcelona: Ediciones Apóstrofe, 2006. [4] SANTACANA, Carles. El Barça y el Franquismo – Crónica de unos años decisivos para a Cataluña (1968-1978) . Barcelona: Ediciones Apóstrofe, 2006. p.140. [5] Com exceção do Athletic Club, que, desde a sua fundação, só aceita jogadores de origem basca. [6] La Vanguardia Española, 15 noviembre de 1985, p. 32. [7] É uma organização esportiva que conta com os clubes profissionais que gere a Primera División e a Segunda División. Foi criada em 1984, e, apesar de fazer parte da

Real Federación Española de Fútbol (RFEF), tem certa autonomia. [8] La Vanguardia Española, 14 noviembre de 1985, p. 32. [9] La Vanguardia Española, 14 noviembre de 1985, p. 32. [10] El País, 15 noviembre de 1985, s/p. O periódico El País não possui uma hemeroteca digitalizada, todavia, o site do jornal disponibiliza as notícias transcritas, e em alguns casos, não informam a paginação. Assim, optamos por informar a paginação quando houver. [11] Ver: Boletín Oficial del Estado. núm. 136, de 7 de junio de 1986, p. 20625-20639. [12] Boletín Oficial del Estado. núm. 136, de 7 de junio de 1986, p. 20626. [13] La Vanguardia Española, 10 de abril de 1987, p. 30. Grifo nosso. [14] La Vanguardia Española, 10 de abril de 1987, p. 30. [15] El País, 21 de mayo de 1987. s/p. [16] La Vanguardia Española, 16 de julio 1987, p. 41. [17] La Vanguardia Española, 16 de julio 1987, p. 41. [18] A Ley del Deporte usou como referência as leis da Itália e da França, onde, nas décadas anteriores, transformaram a

estrutura

administrativa

dos

clubes

destes

países.

Entretanto, mesmo a lei espanhola tendo um caráter mais liberal, refletia uma preocupação parcial do Estado na regulação, na organização e no fomento do esporte. [19] La Vanguardia Española, 04 de diciembre 1987, p. 53. [20] Aqui, o termo “cajas ‘b’” pode ser traduzido como “Caixa 2”. La Vanguardia Española, 04 de diciembre 1987, p. 53. [21] ABC, 06 de diciembre 1987, p. 101. [22] Desde sua fundação, em 1984, a Liga de Fútbol Profesional (LFP) se preocupava em manter a disciplina financeira dos clubes. [23]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión de los clubes de futbol profesionales en Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 8. [24] Mundo Deportivo, 17 de junio de 1988. Apud: GARCÍAMARTÍ, Carlos; GÓMEZ-LÓPEZ, Maite; GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión de los clubes de futbol profesionales en Sociedades Anónimas Deportivas

(1982-1992)”.

Materiales

Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 12.

para

Historia

del

[25] Sobretudo os três grandes clubes que nunca haviam caído para a segunda divisão: Real Madrid CF, FC Barcelona e Athletic Club. [26] Ver: La Vanguardia, 29 de noviembre de 1988; La Vanguardia,v 2 de diciembre de 1988; e El País, 2 diciembre de 1988. In: GARCÍA-MARTÍ, Carlos; GÓMEZ-LÓPEZ, Maite; GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión

de

los

clubes

de

futbol

profesionales

en

Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 14. [27]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión

de

los

clubes

de

futbol

profesionales

en

Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 14. [28]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión

de

los

clubes

de

futbol

profesionales

en

Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 15. [29] Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. Boletín Oficial del Estado. núm. 249, de 17 de octubre de 1990, p. 30397. [30] Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. Boletín Oficial del Estado. núm. 249, de 17 de octubre de 1990, p.

30397. Grifo nosso. [31] Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. Boletín Oficial del Estado. núm. 249, de 17 de octubre de 1990, p. 30397. Grifo nosso. [32] Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. Boletín Oficial del Estado. núm. 249, de 17 de octubre de 1990, p. 30398. [33] Ley 10/1990, de 15 de octubre, del Deporte. Boletín Oficial del Estado. núm. 249, de 17 de octubre de 1990, p. 30400. [34] Ver: MÁSIA, Vicent. “Sociedades Anónimas Deportivas: Luces y Sombras”. La fútbolteca, abr. 2011. Disponível em: http://lafutbolteca.com/sociedades-anonimas-deportivasluces-y-sombras/. Último acesso em: 20 jun. 2017. Com alguns erros técnicos na sua formatação, outra lei, em 1998, reformaria a lei de 1990, introduzindo medidas (ainda) mais liberalizantes e promovendo um regime de clubes mais parecido

com

as

chamadas

Common

public

limited

companies. A lei de 1998 também eliminaria a limitação de apenas acionistas espanhóis nos clubes, mesmo porque isso conflitava com os direitos estabelecidos nos acordos da União Europeia (1992), que passou a normatizar a livre circulação de capital dentro do bloco, para isso ver: LLOPISGOIG,

Ramón.

Spanish

Football

and

Social

Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015. p. 94.

Change.

[35] Dessa forma, a lei também representava um reforço ao lado da criação da Comisión Nacional contra la Violencia en los Espectáculos Deportivos.

Essa

comissão

contra

a

violência era fruto de um relatório do Senado Espanhol de 1990, chamado de Dictamen de la Comisión Especial de Investigación de la violencia en los espectáculos deportivos, con especial referencia al fútbol. Esse relatório do Senado era fruto da aceitação, por parte da Espanha, do “European Convention on Spectator Violence and Misbehavior at Sports Events and in particular at Football matches” , documento aprovado

no

Conselho

Europeu

em

19/08/1985

(em

resposta à tragédia de Heysel) que previa um conjunto de medidas pra combater a violência no esporte. Em 1987, o governo espanhol ratificou aquele documento e, ao mesmo tempo, o Senado criou uma comissão para estudar a situação da violência na Espanha que deu origem ao relatório de 1990. Além da criação dessa comissão, outras medidas

estavam

sendo

tomadas

para

combater

a

violência: busca de uma melhor organização de campeonatos; a regulação da venda de ingressos; medidas judiciais e policiais efetivas; e melhor gestão das arenas esportivas. A Comissão contra violência nos eventos do esporte foi oficialmente estabelecida por um decreto real em 31 de janeiro de 1992, dispondo de ampla gama de sanções e de funções. Houve uma modificação da lei em 1993, estabelecendo a figura de um coordenador de segurança, o sistema de ingresso computadorizado para controlar as vendas, estabelecer a responsabilidade dos

organizadores e uma integração das forças de segurança do estado por meio da UCO (Unidad de Control Organizado). Os clubes teriam cinco anos para se adequar às mudanças e, a partir daí, teriam mais cinco anos para adequar seus estádios em relação aos assentos. Ver: LLOPIS-GOIG, Ramón. Spanish Football and Social Change. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015, p. 149. Em 2004, por iniciativa do CSD, instituiu-se o chamado Observatorio de la Violencia, el Racismo y la Intolerancia en el Deporte (ligada a comissão contra a violência). Após uma série de episódios de racismo e de xenofobia no futebol profissional da Europa, e em particular, na Espanha. Em 2007, aprovou-se na Espanha a chamada Ley 19/2007, ou Ley contra la Violencia, el Racismo, la Xenofobia y la Intolerancia en el Deporte, assim, a Comisión Nacional contra la Violencia en los Espectáculos Deportivos passou a ser denominada de Comisión Estatal contra la violencia, el racismo, la xenofobia y la intolerancia en el deporte, dentro das prerrogativas já traçadas pela Ley de Deporte (1990) de combate a violência. [36] O Club Atlético Malagueño se converteu em Sociedad Anónima Deportiva em 1994, sendo rebatizado de Málaga Club de Fútbol. [37]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión de los clubes de futbol profesionales en Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 16.

[38] O Club Atlético Malagueño se converteu em Sociedad Anónima Deportiva em 1994, sendo rebatizado de Málaga Club de Fútbol. [39]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión

de

los

clubes

de

futbol

profesionales

en

Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 16. [40]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión

de

los

clubes

de

futbol

profesionales

en

Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 16. [41] LLOPIS-GOIG, Ramón. Spanish Football and Social Change. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2015, p. 93. [42]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión

de

los

clubes

de

futbol

profesionales

en

Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 16. [43] Com dívidas de € 400 milhões (US$ 540 milhões), depois de abandonar a construção do seu novo estádio (Nou Mestalla), foi obrigado a vender seus principais jogadores em entre 2010 e 2011.

[44]

GIULIANOTTI,

Richard

&

ROBERTSON,

Roland.

Globalization & Football. London: Sage publications Ltd., 2009, p. 73. [45] Após a adoção da Ley de Deporte, todos os clubes adoram a sigla SAD em seu nome, com e com exceção do Real Madrid CF, FC Barcelona e Athletic Club. [46] SORIANO, Ferran. A bola não entra por acaso: estratégias inovadoras de gestão inspiradas pelo mundo do futebol. São Paulo: La-rousse do Brasil, 2010, p. 28. [47] MÁSIA, Vicent. “Sociedades Anónimas Deportivas: Luces y Sombras”. La fútbolteca, abr. 2011. Disponível em: http://lafutbolteca.com/sociedades-anonimas-deportivasluces-y-sombras/. Último acesso em: 20 jun. 2017, s/p. [48] Vale lembrar o papel da mídia televisiva na Espanha, que ajudou a agravar o desequilíbrio entre os clubes graças a uma divisão desigual dos direitos de transmissão, sobretudo após a Ley reguladora de las Emisiones y Retransmisiones

de

Competiciones

y

Acontecimientos

Deportivos de 1997, que passou a ser conhecida como Ley del Fútbol. [49] Mesmo o FC Barcelona sendo o maior campeão da Copa del Rey, com 29 títulos, seguido pelo Athletic Club, com 23 títulos. Ambos conquistaram a maioria dessas taças durante a ditadura de Francisco Franco.

[50]

GIULIANOTTI,

Richard

&

ROBERTSON,

Roland.

Globalization & Football. London: Sage publications Ltd., 2009, p. 83. [51] Ver: ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2015 – Revolution. Deloitte, Sports Business Group, 2015; ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2016 – Reboot. Deloitte. Sports Business Group, 2016; ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2017 – Ahead of the curve. Deloitte, Sports

Business

Group,

2017;

ANNUAL

REVIEW

OF

FOOTBALL FINANCE 2018 – Roar power. Deloitte, Sports Business Group, 2018 & ANNUAL REVIEW OF FOOTBALL FINANCE 2019 – World in motion. Deloitte, Sports Business Group, 2019. [52]

GARCÍA-MARTÍ,

Carlos;

GÓMEZ-LÓPEZ,

Maite;

GONZÁLEZ, Javier Durán. “Los Planes de Saneamiento y la conversión de los clubes de futbol profesionales en Sociedades Anónimas Deportivas (1982-1992)”. Materiales para Historia del Deporte, Sevilla, n. 14, 2016, p. 17. [53] KENNEDY, David; KENNEDY, Peter. Football supporters and

the

commercialisation

of

football:

comparative

responses across Europe. Abington: Routledge, 2013. p. 3860.

Acabou o amor: o processo de divórcio entre clube e SAD em Portugal

Fernando Borges

Fundado em 1919, o Clube de Futebol Os Belenenses é uma instituição centenária. Ao lado do Boavista, é um dos intrusos no grupo de clubes em Portugal que conseguiu vencer o campeonato nacional com Benfica, Porto e Sporting. Como a maioria dos times portugueses de futebol profissional, o Belenenses é uma sociedade anônima desportiva (SAD), enquanto o futebol é profissional e controlado pelo conselho da SAD, o restante do clube (outros esportes, atividades sociais, estádio) é gerido pelo clube. No caso da SAD do Belenenses, o proprietário majoritário não é o clube, mas um fundo privado. Após anos de desacordos, a direção do clube, com apoio dos sócios, decidiu interromper o relacionamento com a SAD, criar um novo time de futebol masculino para começar nas divisões inferiores e vender suas ações da SAD, abraçando o estatuto de amador. O descontentamento com a comercialização do futebol (MILLWARD, 2011) e o renascimento de clubes tradicionais

com dificuldades financeiras não é uma novidade (BROWN, 2008), como pode ser visto nos exemplos do FC United de Manchester, da Fiorentina e dos Rangers. No entanto, o caso do Belenenses oferece a chance de olhar a paisagem do futebol moderno sob outro ângulo: não foi um clube falido que precisava se reconstruir, mas um clube no qual seus sócios que decidiram se divorciar de sua estrutura profissional. Neste trabalho, analisaremos a divisão entre clube e SAD a partir de uma perspectiva simbólica. Defendemos a importância do capital imaterial na indústria moderna do futebol (TUCKER, 2016; DESBORDES; RICHELIEU, 2011), e quão importante é para o clube Belenenses manter a propriedade sobre sua história e seus emblemas. Uma exploração das atividades do seu centenário fornecerá elementos materiais para mostrar como o clube administrou a situação e a importância dos elementos simbólicos. Com base nas comemorações do centésimo aniversário, podemos identificar cinco ações chave: investimento no capital de marca, reforço do ethos, aposta em merchandising específico, definição de estratégicas de relações públicas, o uso da nostalgia. A legalização do casamento A partir dos anos de 1980, a abertura dos mercados de televisão e a transmissão via satélite veio impulsionar o crescimento econômico do esporte (HORNE, 2006; BOYLE; HAYNES, 2009). Em especial, o futebol passou por um processo de comercialização que alterou a sua organização e muitas das suas relações sociais (GIULIANOTTI, 2002; SANDVOSS, 2003). Juridicamente, foi preciso criar novas regulamentações capazes de acompanhar as mudanças no campo esportivo com a necessidade de se profissionalizar a gestão dos clubes que participavam em ligas profissionais.

Em Portugal, as primeiras tentativas de ajustes legislativos criaram a figura das Sociedades Desportivas (SD), isto é, novas estruturas criadas para conciliar o esporte e tudo o que o envolve, com uma gestão verdadeiramente empresarial. As SD passaram a dotar os clubes com um conjunto de características necessárias à gestão da sua participação numa determinada competição esportiva de caráter profissional e de mecanismo adequados às atividades por estes desenvolvidas e aos fluxos econômicos gerados por elas. Com estas alterações, pretendia-se implementar, no campo esportivo profissional, uma gestão qualificada, transparente, atenta às variáveis econômico-financeiras, bem como diminuir o problema das dívidas dos clubes (CAPELO, 2014). Contudo, a formalização das sociedades esportivas não foi simples. A primeira proposta legislativa (DL n. 146/95) não obteve o sucesso esperado, resultando que nenhuma instituição decidisse em favor de uma transformação. Para tentar retificar a situação, surge o DL n. 67/97, conhecido como o Regime Jurídico das Sociedades Anónimas Desportivas (RJSAD). Ao mesmo tempo em que visava a atualizar o regime jurídico das sociedades desportivas, criar estruturas de funcionamento e responsabilidade na gestão das instituições, como uma clara preocupação com o endividamento dos clubes, principalmente perante os credores públicos (RODRIGUES, 2018). Na prática, não houve muita mudança. Após dezesseis anos da publicação do RJSAD, cerca de trinta clubes haviam optado pela constituição como sociedades anônimas esportivas, número reduzido comparado aos que preferiram continuar como associação sem fins lucrativos, sujeitandose ao regime especial de gestão, penalizando os clubes que decidiram pelo regime societário (RODRIGUES, 2018). Para corrigir essa situação, nasce o DL n.º 10/2013, em vigor até hoje, que aprova a Lei das Sociedades Desportivas (LSD). A

nova legislação impõe a sociedade ao esporte profissional. É extinto o regime especial de gestão, permitindo às organizações esportivas existentes, ou aqueles que se pretendam constituir, escolher entre a constituição de Sociedade Anónima Desportiva (SAD) ou de Sociedade Anónima por Quotas (SDUQ). Uma das grandes novidades do novo regime foi a criação da SDUQ. É um novo tipo de sociedade esportiva que permite que a titularidade da estrutura esportiva não seja partilhada, bem como os custos associados à sua constituição são reduzidos, embora a igualdade de tratamento entre todas as instituições que participam de competições profissionais não tenha sido alcançada. O que se nota em todo o processo de implementação das regulamentações das sociedades esportivas foi o seu caráter político. Por um lado, a preocupação em dotar as organizações de ferramentas e estruturas que permitissem alguma flexibilidade e autonomia comercial, ao mesmo tempo em que mantinham um estatuto especial ligado à sua atividade esportiva. Por outro lado, era preciso conter o que se considerava uma gestão emocional, enraizada no caráter amador da atividade e pela paixão dos dirigentes pelo clube, com objetivo de controlar o endividamento, sobretudo com impostos e setor público (CAPELO, 2014; RODRIGUES, 2018). Aqui, importa analisar a relação entre clube e sociedade desportiva. Segundo o DL n.º 10/2013, e posteriormente atualizado pelo DL n.º 49/2013, os clubes são definidos como “pessoas colectivas de direito privado, constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos, que tenham como escopo o fomento e a prática directa de modalidades desportivas”, e as sociedades desportivas como “a pessoa colectiva de direito privado, constituída sob a forma de sociedade anónima ou unipessoal por quotas, cujo objecto

consista na participação, numa ou mais modalidades, em competições desportivas, na promoção e organização de espectáculos desportivos e no fomento ou desenvolvimento de actividades relacionadas com a prática desportiva da modalidade ou modalidades”. Há uma clara distinção entre ambos, em que se permite que as SD retirem lucro para dividir entre os seus acionistas e quotistas e uma clara delimitação do campo de ação das SD. A distinção jurídica entre os dois tipos de organização não significa a sua separação. A formação das sociedades esportivas pressupõe a manutenção do clube como parte da sociedade. Nos casos das SAD, o clube formador precisa manter, no mínimo, 10% da propriedade. Outra questão é relativa ao patrimônio do imobiliário do clube e a sua possibilidade de transmissão para a sociedade esportiva. Nas SDUQ, o clube fundador será o único sócio, de modo que não há necessidade de limitar a transmissibilidade do patrimônio imobiliário. Noutros casos, é preciso celebrar um contrato entre o clube esportivo e a sociedade esportiva por ele participada para a utilização das instalações do clube. Essas duas questões estão no centro da disputa entre o clube e a SAD do Belenenses, que será tratada a seguir. O casamento e a crise Como uma boa parte dos clubes de primeira divisão do futebol português, o Clube de Futebol Os Belenenses tinha optado pela criação de uma SAD. Ao longo dos anos, o clube foi acumulando muitas dívidas e viu na venda das suas ações o caminho para resolver esse problema. O clube esperava vender a sua posição de acionista majoritário para conseguir resolver o problema do endividamento e atrair investimento para a sua equipe de futebol. Essa medida não era original, uma vez que dois clubes em Portugal já haviam feito semelhante: o Estoril Praia e o Beira-Mar.

Assim, em 2012, a Assembleia Geral do clube decidiu pela venda a um grupo de investimento, Codecity Players Investment, que depois passaria a ser Codecity Sports Management.1 Como visto anteriormente, o clube mantevese com 10% das ações e continuou a ser o proprietário do patrimônio imobiliário do clube, nomeadamente do estádio do Restelo, onde joga a equipe principal de futebol, enquanto a SAD passou a deter os direitos de disputar as competições profissionais de futebol e gerir os recursos provenientes desses espetáculos esportivos e da venda dos direitos de televisão. Na altura da venda, fazia parte do negócio um acordo parassocial que determinava a possibilidade de recompra do capital por parte do clube. A última janela para isso aconteceria entre outubro de 2017 e janeiro de 2018, mas este contrato veio a ser denunciado pela SAD do Belenenses e a justiça considerou o acordo inválido, travando a possibilidade de recompra do clube.2 Esse desentendimento com a direção do clube, liderada pelo presidente Patrick de Morais, acabaria por levar ainda mais ao afastamento entre ambas. A relação entre investidor e clube nunca foi positiva. Dentre as várias queixas do clube em relação ao comportamento da SAD estão: a falta de investimento (a grande maioria dos jogadores que foram contratados veio a custo zero ou foram emprestados); os custos de manutenção do estádio eram suportados integralmente pelo clube, entidade sem fins lucrativos, sem compensação pela SAD; a não utilização de jogadores que vinham das escolas de formação do clube (pois implicava o pagamento da SAD ao clube que detém o futebol de formação); e o desagrado pelo envolvimento do nome do clube, por intermédio do presidente da SAD, Rui Pedro Soares, em investigações de corrupção.

Depois que o tribunal de justiça deu ganho de causa à SAD na questão da recompra das ações, o clube, aproveitando a altura de renovação do contrato de utilização do estádio do Restelo e de outros patrimônios do clube, apresentou uma proposta que incluía a criação de uma equipe de futebol d’Os Belenenses, a ser gerida pelo clube, a disputar os escalões amadores do futebol português e que a SAD passasse a pagar um aluguel pelo uso do estádio do Restelo. Porém, a SAD manteve a sua postura de incompatibilidade com a direção do clube e negou o acordo. Desse modo, na preparação para a temporada 2018/19, confirmou-se a cisão entre ambos: o Clube de Futebol Os Belenenses criou uma equipe para jogar a 2ª divisão dos distritais de Lisboa, que joga no Estádio do Restelo, enquanto a Belenenses SAD disputa a 1ª divisão do futebol profissional e aluga o Estádio do Jamor. Essa separação, definida pelo presidente do clube como um divórcio, ainda tem uma série de implicações legais. Em causa está o desejo do clube de vender o restante 10% das ações da SAD, a obrigatoriedade das equipes de primeira divisão em ter camadas de formação, a utilização do estádio e o patrimônio simbólico e imaterial do clube. Algumas das disputas jurídicas que vinham se arrastando desde meados de 2018 foram suspensas em janeiro de 2020, após um acordo entre clube e SAD com a mediação da Federação Portuguesa de Futebol.3 Entretanto, em março de 2019, um dos processos em curso tinha sido favorável ao clube, no qual a justiça já tinha proibido a SAD de usar os símbolos do clube, e talvez nesta questão simbólica estejam algumas pistas para entender o caso. O divórcio e a separação dos bens A analogia do divórcio evocada anteriormente reflete uma situação particular do caso Belenenses. A maior parte

dos clubes tradicionais que precisaram passar por uma refundação e recomeçar a sua caminhada esportiva nas divisões inferiores fizeram isso por razões financeiras. Após o grande endividamento e a consequente falência, foi preciso achar uma nova forma jurídica que permitisse a sua continuidade. Alguns clubes como a Fiorentina, da Itália, e o Rangers, da Escócia, tiveram sucesso em voltar à primeira divisão e mantiveram a sua base de apoio dos torcedores, em outros casos, como se viu em 2019, com o Bury, da Inglaterra, nem sempre há volta. O caso do Belenenses apresenta-se mais como uma dissidência. Uma decisão de tomar caminhos diferentes, como os torcedores do Manchester United que decidiram criar o seu próprio clube por divergências com a nova direção do clube, após a sua aquisição pela família Glazer (BROWN, 2008). A particularidade no caso do Clube de Futebol Os Belenenses vem dos agentes dessa separação, neste caso, a direção do clube e da SAD. Embora a decisão tenha sido tomada com o apoio dos sócios por meio de assembleia geral, o resto da torcida que não faz parte dos quadros associativos do clube ficou no meio, tendo de decidir de que lado ficar,4 assim como o patrimônio imaterial do clube passou a ser disputado. A separação aconteceu próxima a um importante marco da história do clube: o seu centenário. Fundado em 23 de setembro de 1919, a temporada de 2018/19 foi um importante espaço para preparar as festas de aniversário que decorreriam no início da temporada seguinte. Apesar da SAD ter feito menções pontuais ao longo da temporada, na qual disputavam uma vaga nas competições europeias, foi o clube quem mais investiu na celebração do aniversário. O clube elencou algumas atividades estratégicas para a comemoração do aniversário a serem implementadas ao longo do ano e que culminariam em 23 de setembro de

2019. A primeira ação foi uma exposição itinerante que contava a história do clube, que passou por vários espaços de Lisboa. A segunda atividade foi a produção de um documentário sobre a história do Belenenses. A terceira foi a criação de uma música que celebrava os 100 anos do clube, com nomes importantes da música nacional. A exposição esteve presente no Fórum em Alfragide, no Cinema São Jorge (como parte do CineFoot 2019), no Mercado da Ajuda, no Fórum Almada, no Cascais Shopping e no Estádio 1º de Maio (final das Olisipíadas).5 A exposição celebrou as glórias do clube, exibindo troféus e recontando os grandes momentos da instituição, que serviram como forma de reinterpretar a sua história e enquadrar as celebrações. Além de sua tradição em outras modalidades, o clube é um dos cinco campeões em Portugal, tendo vencido o campeonato nacional em 1945/46, contando ainda com três Campeonatos de Portugal e três Taças de Portugal. Até 1933, era o clube com mais títulos do futebol português, quando da realização do extinto Campeonato de Portugal, com três troféus, os mesmos que o Futebol Clube do Porto. Era ainda o clube que contava com mais jogadores presentes na Seleção Nacional.

Figura 1. Disponível em: https://www.osbelenenses.com/2019/04/exposicao-docentenario-chega-ao-centro-comercial-almada-forum/.

Um dos seus orgulhos é o Campo das Salésias. Inaugurado em janeiro de 1928, foi considerado por muitos anos como o melhor estádio de Portugal. Tinha capacidade para 20 mil pessoas, tendo sido o primeiro local a ter arquibancada coberta e um campo com grama. Por esses motivos, o Campo das Salésias era o local dos jogos da seleção nacional até ser inaugurado o Estádio Nacional em 1944. Por questões políticas, o clube teve de abrir mão do espaço e construir um novo estádio numa pedreira do Restelo, onde até hoje é a sua casa. A mudança e os custos da construção afetaram profundamente o clube. Entre as estrelas que vestiram a camisa azul da cruz de cristo estão Matateu, Vicente Lucas e Pepe. Considerado o melhor jogador da história do clube e ídolo de Eusébio, Matateu nasceu em Moçambique e foi um dos jogadores pioneiros a fazer a viagem das colônias para Portugal. Vicente Lucas, irmão de Matateu, jogou 13 anos pelo

Belenenses e disputou a Copa do Mundo de 1966, mantendo uma próxima ligação com o clube até hoje. José Manuel Soares Louro “Pepe” representa o mito, entre a magia e a tragédia do Belenenses.6 Devido à sua precoce morte, aos 23 anos, depois de ser o artilheiro nas 5 temporadas que disputou, Pepe foi o primeiro ídolo do futebol português, tendo sido duas vezes campeão de Portugal e 3 vezes Campeão de Lisboa. Outro ponto marcante da história de glórias do Clube de Futebol Os Belenenses foi o convite para a inauguração do Estádio Chamartin, em 1947, hoje conhecido como Santiago Bernabéu. Também fez parte das comemorações um jogo de retorno da equipe principal de futebol ao Campo das Salésias. Com saída do Estádio do Restelo, cerca de mil pessoas caminharam até o antigo estádio do clube para ver um jogo válido pela 25ª rodada da Série 2 da I Divisão da AFL, contra o Amavita Foot. Mesmo sem ser parte das comemorações oficiais, também foram marcantes os jogos entre o Belenenses e o CD Estrela (antigo Estrela da Amadora). Duas equipes que já estiveram presentes na primeira divisão e que, mesmo na divisão mais inferior do futebol de Lisboa, foram capazes de encher os estádios onde jogaram. Esse clima de nostalgia também esteve presente em um jogo comemorativo em que as equipes de lendas do Real Madrid e do Belenenses se enfrentaram. O jogo, disputado no dia 7 de setembro, abriu o mês de celebração do centenário, que contou ainda com uma série de cerimônias entre os dias 23 e 27 de setembro de 2019. Além das ações promovidas pelo próprio clube, o centenário também foi reconhecido pela mídia e pelo poder público. Mais do que as notícias do dia a dia, os canais de televisão dedicaram programas inteiros ao clube ao longo do ano,7 enquanto o presidente da Câmara Municipal de Lisboa8 esteve presente

nas comemorações, o cardeal de Lisboa celebrou uma missa em honra ao clube e alguns monumentos da cidade foram iluminados de azul na ocasião do aniversário. Todas essas iniciativas deram ao clube a oportunidade de construir a sua própria narrativa e a sua interpretação sobre o futebol. O clube se apresentou com uma identidade em que “ser do Belenenses é ser diferente”, em oposição à posição hegemônica dos 3 grandes clubes nacionais, em especial à de dois de seus vizinhos lisboetas, o Benfica e o Sporting. O clube, outrora reconhecido como o 4º grande, evocou a sua dimensão no ecletismo esportivo de diferentes modalidades praticadas no clube, na aposta em formar atletas e, sobretudo, na sua história, evocando a nostalgia de um futebol de outros tempos. Sem dúvida, essa narrativa pesou em favor do clube no processo de divórcio da SAD. Num primeiro momento, a justiça proíbe a SAD de usar os emblemas do clube, obrigando o time profissional a criar um novo escudo e que, na sequência, levou ao acordo de suspensão das disputas jurídicas para buscar um entendimento em prol do futebol nacional. A comemoração do centenário e o seu impacto simbólico no futebol nacional reforçaram a posição do Belenenses no campo esportivo. Arenas Simbólicas Se, por um lado, o termo arena remete aos modernos estádios construídos para o futebol mais comercial, o esporte em si também é uma arena de batalha simbólica, como refere Bourdieu (2014, 1983). Para Tucker (2016), o futebol tem o poder simbólico para servir como resistência contra mecanismos de opressão social. Nessa disputa do Clube de Futebol Os Belenenses, as celebrações do seu centenário evidenciaram alguns pontos estratégicos: a

exposição, o(s) estádio(s), os símbolos do clube e a retomada do time. A ênfase na exposição do centenário vai ao encontro da crescente onda de museus esportivos. Os museus articulam e interpretam as suas coleções enquanto comunicam e negociam com o seu público a projeção da sua identidade. Se, por um lado, o esporte é emocional e corporal, os museus são materiais, intelectuais e racionais. A partir dessa relação, os museus oferecem uma autoridade institucional ao mesmo tempo em que atendem ao gosto popular, resultando em uma identidade com múltiplas facetas (YANG, 2017). Mais do que dispor troféus e objetos históricos dentro de caixas de vidro, exposições, como a feita pelo Belenenses, fazem circular significado através do poder simbólico. Ao apresentar os objetos e recontar a história, os marcos do passado são trazidos ao presente para parar o tempo e frear o esquecimento, protegendo a memória coletiva. Por fazer parte do grupo, a participação dos fãs é essencial. A preservação de memória, regeneradas por meio das visitas aos museus dos clubes, funciona como um arquivo de sentimentos. Presentes no museu, os torcedores e sócios passam a funcionar como uma exposição viva ao fornecer informação sobre seus heróis, seus momentos marcantes e o impacto da cultura do futebol em suas vidas. Mais do que fonte de espólio histórico, atletas do clube, torcedores e sócios são parte integrante dessa dinâmica em que o museu e o clube dão peso institucional à história do futebol daquelas pessoas (YANG, 2017). Montada em espaços públicos e contando com a presença de elementos da direção do clube, a exposição do centenário do Belenenses teve uma grande interação com o público, com quem foram partilhadas histórias e experiências que marcaram a vida das pessoas.

A ligação sentimental a um recinto esportivo acontece quando o espaço funciona como uma instituição cultural e um espaço público dotado de significado social. Essa ligação se consolida na medida em que o estádio passa a se tornar um espaço familiar, onde milhares de pessoas se reúnem regularmente e partilham coletivamente experiências, sentimentos e memórias. Cada estádio está ligado à sua comunidade de maneira variada, de acordo com as suas funções e significados, uma vez que é um espaço físico e simbólico (LEVENTAL; GALILY, 2018). A acumulação de experiências pessoais define a percepção do indivíduo sobre a sua personalidade. A repetição de experiências no mesmo lugar marca a importância do local e da vivência na formação da identidade. Enquanto um elemento arquitetônico da cidade moderna, o estádio de futebol é um espaço onde um elevado número de pessoas partilha experiências emocionalmente intensas (LEVENTAL; GALILY, 2018). No caso do Belenenses, o clube apresenta uma forte ligação com duas casas: o Estádio do Restelo e o Campo das Salésias. No primeiro caso, há uma ligação direta com a disputa entre SAD e clube. Sendo o Restelo a casa do Belenenses, foi importante para o clube manter a sua residência oficial como forma de manter a sua história, defender a sua identidade e manter a ligação com os sócios e com o público. Ao decidir jogar no Jamor, a SAD perde uma importante parte da identidade do clube, uma vez que a torcida perde a ligação espacial com o clube e a fonte de muitas memórias prévias. Por sua vez, o Campo das Salésias oferece uma ligação ao passado de glórias e serve como metáfora à trajetória do clube. Retomar a história das Salésias como primeiro campo gramado em Portugal e casa da seleção até a construção do Jamor mostra a grandeza e pioneirismo do clube no cenário

nacional. Ao mesmo tempo, a sua deslocação para o Restelo e as dificuldades financeiras após a construção de um estádio numa pedreira explicam, em parte, a sua decadência. Ao mesmo tempo, o sucesso na construção do Estádio do Restelo é uma história de resiliência e orgulho estético, por ter um estádio com uma vista linda. Por sua vez, o retorno às Salésias, por meio da sua reabilitação e expressado na caminhada dos sócios e torcedores, é também uma história de reconstrução e retomada do próprio clube, fortalecendo a ligação com a sua comunidade e com sua história. Um clube de futebol é um espaço de interação onde pode ser feito uma interpretação com base na Teoria de Bourdieu. A complexidade é definida pelos habitus dos indivíduos envolvidos no campo. O habitus é, ao mesmo tempo, próprio a cada um e resultado de construções sociais, com a possibilidade de transformação ao longo do tempo. Assim, o futebol é um contexto em que sócios, torcedores e outros participantes do campo podem expressar as componentes individuais e coletivas do habitus (TUCKER, 2016). Bourdieu (1986) também fala na acumulação de capital econômico, social e cultural por parte dos indivíduos nos diferentes campos. No caso do futebol, podemos nos ater mais ao capital cultural, entendendo como ele é transmitido e reproduzido, valorizando certas virtudes e comportamentos em face de outros. A identidade de um clube, os seus valores e tradições são manifestações desse capital cultural. Consequentemente, existe uma classificação hierárquica na posição dos elementos do campo esportivo de acordo com o seu capital. A legitimação desse processo é feita por meio do capital simbólico, que é construído através de influências externas a uma atividade, como outras formas de capital ou validação externa. É comum que o sucesso esportivo se transforme em um capital simbólico de

eficiência e sucesso, podendo gerar capital político em novas carreiras de ex-atletas. É preciso ter em mente que esse processo de distribuição de poder é continuamente alvo de negociação em relação ao capital acumulado (TUCKER, 2016). Dentro do campo esportivo, a capacidade de certos atores em negociar relações de poder também vem da manutenção dos meios de produção. Assim, foi fundamental para o clube continuar a deter os símbolos do clube, permitindo continuar a ligação ao clube e a definição do ethos institucional. Ao ser obrigado a criar um novo emblema, a SAD se distancia do capital acumulado ao longo da história centenária do clube. Atualmente, a página oficial do Belenenses SAD não apresenta uma descrição sobre o clube. Embora a SAD possa ter a possibilidade de criar algo novo, neste divórcio foi o clube que manteve essa parte do capital. A forma de jogar de uma equipe, ou o seu estilo de jogo, é resultado de uma combinação entre condições materiais da prática esportiva e elementos simbólicos que dão forma ao que se vê em campo. Essas construções sociais resultam de interações entre os profissionais do futebol, os fãs e a mídia, que codificam formas e padrão de jogo fixadas em treinamentos, posteriormente classificadas e rotuladas como uma maneira de jogo próprio. O estilo de jogo pode ser individual ou coletivo, percebido em um nível local ou global e se estabelece a partir da identificação entre time e torcida, cunhando termos como um “um jogador com a cara do clube” (TOLEDO, 2014). No caso do Belenenses, a separação da SAD deu a oportunidade de forjar um comportamento, validado pela prática e comportamento em campo que combinam com a identidade do clube em ser diferente. Ser do Belenenses não é a mesma coisa que ser do Benfica, onde uma massa

sem forma está preocupada apenas com vitórias no campeonato, ser do Belenenses é ver um futebol que vai mais além do que se vê no futebol moderno. Nesse ponto, a ligação com a exposição e a presença nas divisões inferiores reforça na prática essa identidade. A luta pela alma do clube tem alguma semelhança com as reivindicações do movimento “against modern football” (AMF). Manifestando-se contra o preço dos ingressos, a comercialização do futebol e o afastamento dos torcedores, o movimento tem se espalhado pela Europa, mobilizando-se contra o que consideram o “futebol moderno” e restaurando o valor cultural do futebol. Esse movimento evoca maneiras mais autênticas de torcer, combatendo a transformação dos grandes clubes em marcas e não mais instituições locais (WEBBER, 2017). Na essência, o clube defende a sua autenticidade perante a SAD. Por meio das atividades do centenário, notou-se que o clube estava buscando com afinco a aproximação com sócios, torcedores e comunidade, assim como estava valorizando os elementos culturais em torno do clube – em especial na organização da exposição, da música e do documentário. Paralelamente, a ida para escalões inferiores do futebol de Lisboa permite que o clube tenha bilhetes mais baratos, ou mesmo gratuitos, em alguns casos, o que possibilita consolidar a sua posição como pilar da comunidade em oposição a um grupo de investimento, representante máximo de um capitalismo explorador que não deveria ter espaço no futebol autêntico. Por fim, o clube ainda aproveita para se diferenciar de outros clubes de Lisboa, em especial o Benfica, pela sua excessiva preocupação com resultados e com o marketing, reafirmando a sua posição de proximidade com a comunidade e público.

Diferentemente do AMF, no caso do Belenenses, a iniciativa foi tomada pelo clube, e não pelos torcedores. Contudo, não foi uma decisão unilateral de um proprietário ou conselho de administração, uma vez que contou com o aval dos sócios por meio de votação em assembleia geral. Essas características tornam o estudo deste caso ainda mais particular, porque podemos interpretar que a situação de amadorismo da direção aproxima o quadro diretivo e os sócios do clube dos sentimentos partilhados com o AMF, mas, ao mesmo tempo, também é preciso entender as atividades de comemoração do centenário como ações instrumentais para a instituição. Vida após o divórcio Considerando os objetivos do clube, com base nas comemorações do centenário do Clube de Futebol Os Belenenses, podemos identificar cinco ações com forte pendor instrumental e simbólico. 1) O investimento no capital de marca para aumentar sua visibilidade e credibilidade; 2) reforço do ethos do clube para renovar os seus valores; 3) aposta no tema do centenário para aumentar suas vendas de merchandising e criar um ambiente memorável no estádio; 4) definição de estratégicas sociais como reforço de relações públicas; 5) o uso da nostalgia para combater reclamações de comercialização. No marketing, o conceito de brand equity ou a noção de capital de marca significa o valor que uma marca possui. A ideia central é que os produtos com uma marca mais conhecida podem gerar mais receitas do que produtos com marcas menos conhecidas. No futebol, o modelo de brand equity está no centro de um triângulo que inclui clientes (ou torcedores), patrocinadores e mídia. Nesse cenário, o sucesso de uma equipe contribui positivamente para os três

vértices do triângulo, pois os fãs ficam mais satisfeitos, a mídia mostra mais vezes o clube e os patrocinadores lucram graças ao aumento da visibilidade. Além disso, uma boa marca é capaz de recrutar os melhores jogadores e treinadores (GUENZI, 2007). Assim, a construção de uma marca é um aspecto muito importante no universo do marketing, em geral, e também dentro do mundo esportivo. O capital de marca representa a promessa que uma organização faz a seus clientes, isto é, satisfazer as suas expectativas e oferecer um produto ou serviço de qualidade de forma contínua. Nas indústrias de serviço, o capital de marca é igualmente importante porque é mais difícil cumprir essa promessa por conta da intangibilidade e falta de estabilidade dos serviços. Durante os últimos anos, as equipes esportivas passaram a considerar que a gestão de marca é um elemento importante para reforçar a conexão emocional com os torcedores, transformando essa ligação numa vantagem competitiva (DESBORDES; RICHELIEU, 2011). A construção da marca é importante num mercado muito competitivo, sendo o ativo mais importante dos clubes. Analisando os clubes de futebol profissional, podemos notar que existem características de verdadeiros produtos, compostos de benefícios tangíveis – resultados dos jogos ou produtos de merchandising – e intangíveis – emoções vividas no estádio, sentimento de pertença e orgulho dos torcedores. Nesse sentido, os clubes têm o potencial de construir e de alimentar seu capital de marca ampliando a sua ligação emocional com os torcedores, tendo como objetivo reforçar a fidelidade dos fãs e estimular a compra de produtos do clube (DESBORDES; RICHELIEU, 2011). Ao apostar em seu capital cultural, o Belenenses reforçou, mesmo que indiretamente, a sua identidade de marca. As ações de comemoração do centenário garantiram

um espaço nos meios de comunicação incompatível com os clubes que disputam o mesmo campeonato. A visibilidade gerada é resultado da combinação entre a sua história, o centenário e a disputa com a SAD. Com o espaço conquistado, o clube pode expor a sua visão de clube, reforçando a ligação com sócios, torcedores, jornalistas e patrocinadores, enquanto também construíam uma imagem de credibilidade em oposição à direção da SAD. O ethos de uma marca são os seus valores. É um elemento indispensável para construir a credibilidade de uma marca – vital para serviços intangíveis – e para criar a conexão com os fãs, porque eles precisam ter certeza de que a organização merece a sua confiança. Nós podemos considerar o ethos como o julgamento que o público faz em relação à reputação da mensagem do clube, e, no caso de falta de credibilidade, as promessas são jogadas fora. Portanto, há uma troca entre a organização e o público: os primeiros interpretam as expectativas, as necessidades e os valores de uma comunidade e, em troca, recebe a atenção e a confiança dos primeiros. O ethos também obriga os clubes a ter uma atenção especial na relação com a imprensa. O crescimento da produção de mensagens diretas por parte das organizações, por intermédio dos seus departamentos de comunicação e relações públicas, sem passar pela imprensa tradicional pode criar um problema de ethos, porque, sem o filtro do jornalismo, a credibilidade das organizações pode ser desestabilizada (REIN; KOTLER; SHIELDS, 2008). Por meio da exposição itinerante e da reinterpretação da história do Belenenses foi possível definir, de maneira mais clara, o ethos da instituição. A aposta do clube foi valorizar a formação de atletas jovens, reforçar a ligação com a cidade de Lisboa e a comunidade do seu entorno, destacar os ídolos e os momentos de glória do clube e afirmar-se como uma opção autêntica de futebol. Assim, os valores do

clube foram renovados e reafirmados sem que haja uma ligação com os resultados. Dessa maneira, mesmo em caso de insucesso esportivo, os valores do clube permanecem intactos, assim como a promessa feita a quem acompanha o clube. As experiências estão no centro da indústria do entretenimento, mas, atualmente, outros setores também utilizam as suas técnicas. Além de vender refeições e organizar lojas, existem cadeias de restaurantes e centros comerciais que tematizam o seu serviço, oferecendo o que se pode chamar de “eatertainment”, como é o caso de restaurantes como o Hard Rock Café e o Planet Hollywood. O objetivo é proporcionar uma experiência memorável com a criação de ambientes temáticos e imersivos para o público. A oferta de memorabilia é fundamental para manter o público ligado ao tema estabelecido e contribui para a venda de produtos de merchandising (PINE; GILMORE, 1998). O estádio de futebol é por si só uma experiência imersiva e temática. No mais, um centenário é uma data única e bastante rara para as pessoas, de modo que o clube decidiu investir nesse tema criando uma linha de produtos especiais a serem vendidos na sua loja azul. A aquisição desses produtos contribui para o prolongamento da experiência, pois são objetos duráveis carregados de memória de um determinado acontecimento. Estrategicamente, o Clube de Futebol Os Belenenses decidiu se posicionar próximo à cidade de Lisboa e como clube formador de talentos. Isso representou um reforço dos seus valores e conseguiu atrair aliados na sua disputa com a SAD. A presença do presidente da Câmara Municipal de Lisboa nas cerimônias do centenário, bem como de outras autoridades municipais, mostrou uma importante força de relações públicas do clube.

Uma estratégia para manter os fãs que se afastam por causa da mercantilização é o apelo ao sentimento de nostalgia. A ligação nostálgica é utópica e funciona bem porque, sob o olhar temporal, o esporte parece menos comercial e mais pessoal, criando um bom argumento para se defender das críticas. Além disso, a nostalgia pode ser um fator de atração também para os mais jovens, que se interessam por estatísticas, histórias e consideram ter a perspectiva do passado como uma forma de enriquecimento simbólico. Mais do que uma estratégia para alcançar certos setores do mercado, a nostalgia é também uma fonte de renda por intermédio dos museus, leilões de artefatos e a organizações de atividades turísticas (REIN; KOTLER; SHIELDS, 2008). Os clubes podem recontar e reinterpretar as suas histórias, valorizando os aspectos mais convenientes aos seus objetivos. A reconstrução de narrativas históricas permite o uso da nostalgia para minimizar as críticas sobre a mercantilização do futebol. Conclusão A análise do cenário do futebol português mostra que a criação de ferramentas legais não é um procedimento simples. A implementação de novos regulamentos jurídicos para a gestão de clubes de futebol e sociedades esportivas não altera o panorama instantaneamente e deve ser entendido como um processo e uma negociação entre as partes. Além disso, a existência de regulamentação não significa o seu bom funcionamento, uma vez que envolve diferentes interpretações da lei e disputas econômicas, políticas e esportivas. O caso do Belenenses é representativo de situações que podem surgir com a regulamentação em vigor. Resultado da venda do capital do clube, a separação da SAD salientou a diferença entre os objetivos do clube e do fundo de

investimento que geria o futebol profissional. As divergências foram se acumulando e, mesmo na justiça, não houve um lado que tenha saído completamente vencedor. Considerando o divórcio a única solução, o clube ficou com o patrimônio histórico e cultural do clube, enquanto a SAD ficou com o futebol profissional e suas receitas. Em meio à disputa, o Belenenses celebrou o seu centenário em 2019. Reforçando a posição de proprietário da história, a direção do clube colocou em ação um plano para comemorar o seu aniversário. Ao longo do ano, essas atividades geraram visibilidade e movimentaram a vida do clube. A confirmação das aspirações do clube veio por meio da decisão da justiça que proibiu a SAD de usar os emblemas do clube, distinguindo o Belenenses clube e a Belenenses SAD. Enquanto a SAD continua a sua atividade na primeira divisão, o clube, privado da sua modalidade mais popular e principal fonte de renda, decidiu se reestruturar a partir de uma nova equipe de futebol na base da pirâmide do futebol português. A ida para divisões inferiores ajudou a criar um ambiente positivo e alimentado por vitórias do time, criou um sentimento de que a equipe era dos sócios e dos torcedores, ajudando a criar uma maior comunhão e adesão às celebrações do centenário. Embora as receitas com a venda dos direitos de transmissão para a TV seja a principal fonte de renda para a maior parte dos clubes de futebol, o caso de Belenenses mostra que o patrimônio imaterial pode ser usado de outras maneiras, incluindo por razões de estratégia institucional ou de marketing. A cobertura da mídia pode ser uma importante forma de gerar visibilidade e de atrair público para seus eventos e patrocinadores, mas os clubes devem olhar também para sua história e símbolos como importantes bens na indústria do futebol moderno.

Alimentado pelos valores e ethos do clube, o capital cultural e o capital simbólico das instituições são uma importante fonte de poder no campo esportivo.9

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Notas [1] EXPRESSO. “Sócios do Belenenses aprovam venda da SAD a Rui Pedro Soares”. 6 nov 2012. [2] RECORD. “Tribunal arbitral dá razão à Codecity e trava recompra da SAD do Belenenses”. 8 nov 2017. [3] DIÁRIO DE NOTÍCIAS. “Belenenses e SAD chegam a acordo para suspender todas as ações judiciais”. 24 JAN 2020. [4] A Fúria Azul, torcida organizada do clube, decidiu apoiar a decisão do clube e acompanha os jogos nas divisões amadoras. [5] As Olisipíadas são um evento esportivo de Lisboa. Jovens atletas

de

várias

modalidades

realizam

competições

individuais ou coletivas organizados pela Câmara Municipal. [6] OS BELENENSES. “24 de Outubro de 1931 – Morte de Pepe, aos 23 anos”. 23 out 2014. [7] Reporttv-SportTV “De Cruz ao Peito”; Amor à Camisola (Canal 11) sobre José Feijão; Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio - Belenenses um velho Fidalgo do Desporto Português. [8] Equivalente ao Prefeito na política municipal do Brasil.

[9] Nota do Organizador: Outros clubes de Portugal que viveram uma situação semelhante: Atlético Clube de Portugal, Beira-Mar, União Leiria, Leixões, Cova da Piedade e Olhanenses. Ver: DELGADO, Evandro. “Clube vs SAD: o ‘vírus’ que está a levar emblemas históricos do futebol português ao abismo”. SAPODESPORTO. 19 out 2018. Disponível

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Sociedades anónimas deportivas no Chile: o declínio do futebol social

Sebástian Campos Muñoz

O surgimento do futebol no Chile remete ao século XIX, com o início dos clubes sociais e com a primeira associação desportiva de futebol, a Football Association of Chile em 1885. Com essa nova instituição começam a ser disputados os primeiros torneios de futebol em nosso país, que reuniram equipes com uma organização baseada nos clubes sociais, os quais dispunham de diretorias eleitas democraticamente por uma massa societária que pagava suas mensalidades e adquiria benefícios nas instituições. Como uma forma de regularizar a atividade, nasceram as corporações sem fins lucrativos, entes privados que se transformaram no modelo de organização escolhido pela maioria dos clubes nacionais para direcionar os destinos das suas equipes. Durante a década de 1990, o futebol chileno teve sua época de maior bonança econômica e futebolística. A Copa Libertadores vencida pelo Colo-Colo em 1991, a final alcançada pela Universidad Católica em 1993 e a semifinal

da Universidad de Chile em 1996 abriram o apetite dos grandes empresários chilenos, que viram no futebol um negócio lucrativo. A chegada da televisão a cabo e a venda dos direitos de transmissão aumentaram o lucro dos clubes. Jogadores argentinos de nível de seleção, como Néstor Raúl Gorosito, Marcelo Espina, Alberto Acosta e Leonardo Rodríguez, foram protagonistas nos campeonatos desses anos, recebendo altos salários. As polêmicas administrações financeiras somadas a uma repentina dívida fiscal desembocaram em um espiral inflacionário que foi insustentável para as corporações sem fins lucrativos. As falências emblemáticas de Colo-Colo (2002) e Universidad de Chile (2004) obrigaram a uma “mudança nas regras do jogo”. A saída para o problema apontava para o fim dos clubes como corporações sem fins lucrativos. A ideia que surgiu com mais força para substituí-las foi copiar o modelo que se estava usando em muitas das grandes ligas de futebol do mundo e que contemplava a injeção de recursos de capitais privados a essa atividade que, por diversas razões, se encontrava em uma situação total de insolvência. Foi dessa forma que, no dia 7 de maio de 2005, se publicou no Diário Oficial a Lei n. 20.019 que salientava em seu título “Regula as sociedades anônimas desportivas profissionais”. Esse novo modelo de administração chegou ao futebol com o aparente objetivo de sanar a economia e ordenar as finanças dos clubes profissionais, mas, claramente, esse não era o seu único propósito. A Lei n. 20.019, que regulamenta as sociedades anônimas desportivas profissionais (SADP) no Chile, foi amplamente questionada por vários aspectos. Um deles foi

a discussão sobre o papel que deveriam adotar essas novas SADP. Historicamente, os clubes sociais de futebol cumpriram um papel fundamental na promoção do esporte no país por meio de suas escolas e de seus departamentos esportivos. Apesar de, na fundamentação da iniciativa, ter sido sinalizado que “resulta necessário estabelecer um marco regulatório e uma estrutura jurídica adequada que permita aos clubes desportivos constituírem-se em instituições modernas e sólidas, administradas de maneira eficiente, com mecanismos de controle interno e fiscalização externa que precisamente contribua para que cumpram de melhor forma a sua função social”, na lei não se menciona em nenhum momento deveres ou direitos em relação a tal função. O fato de a Lei n. 20.019 omitir a função social do esporte foi uma facilidade para os investidores das SADP, uma vez que investir dinheiro em escolas de futebol gratuitas ou serviços adicionais para os sócios, acionistas e “abonados”1 significava um gasto pouco rentável e que vai contra as lógicas de mercado, cujo propósito é obter a maior rentabilidade possível. E foram essas lógicas de mercado que também deixaram de fora da Lei n. 20.019 uma das figuras mais interessantes que havia sido incluída na apresentação do primeiro projeto de lei: o conselho desportivo. No conteúdo do projeto apresentado pelo Poder Executivo, um dos eixos era a figura do conselho desportivo: O projeto estabelece que toda sociedade anônima desportiva profissional deverá contar com um Conselho Desportivo. Corresponderá a este órgão assessorar à diretoria no desenvolvimento institucional. O conselho estará constituído por representantes dos diversos estamentos da sociedade tais como atletas, torcedores, treinadores, trabalhadores, ex-dirigentes e sócios.

Esse conselho deveria funcionar como um órgão assessor da SADP e teria representação de diversos atores. O projeto de lei sinalizava que o conselho desportivo contaria com um presidente próprio, que teria direito a voto na diretoria da sociedade. O Senado, em segundo trâmite constitucional, acabou eliminando a figura do conselho desportivo. Outro ponto controverso da Lei n. 20.019 teve relação com o controle acionário das sociedades. O artigo 9 do projeto de lei afirmava que “nenhum acionista de uma Sociedade como as que se refere esta lei poderá possuir, direta ou indiretamente e de maneira simultânea, participação na propriedade da mesma superior a 49% de seu capital social”. No mesmo artigo também era destacado que “todo acionista que possua uma porcentagem entre 5% e 49% das suas ações com direito a voto não poderá possuir uma participação na propriedade de outra sociedade regulada pela presente lei superior a 5% das suas ações com direito a voto”. A determinação de limitar o controle acionário a 49% de seu capital social parecia ser um obstáculo ao domínio de grupos econômicos, mas o Senado finalmente terminou eliminando este artigo. A partir dessa perspectiva, a abertura ao mercado financeiro, por parte dos clubes mais poderosos do nosso país, facilitou a chegada de empresários de índoles diversas. A falta de parâmetros rigorosos na lei permitiu que parlamentares, representantes de partidos políticos e investidores vinculados com fraudes fiscais adquirissem pacotes de ações em equipes com preponderância em nível nacional. José Yuraszeck, um dos primeiros diretores da Azul Azul S.A. (2008-2015), empresa que administra o Club Universidad de Chile, foi um dos personagens mais emblemáticos. Yuraszeck teve participação no “Caso

Chispas”, escândalo financeiro e político ocorrido no Chile em 1997. Em 2004, a Corte de Apelações de Santiago condenou Yuraszeck a pagar 650 mil UF2 por sua participação no caso. Em 2005, o site de uma reconhecida emissora nacional de rádio publicava a história do caso denominado “o negócio do século”: Quando em 1997 a Endesa España aterrisou no Chile para tomar o controle da Enersis3 , muitos acionistas minoritários foram prejudicados. [...] A negociação privada que fizeram os executivos da empresa – encabeçados pelo membro da UDI4 José Yuraszeck –, que conseguiram vender seus títulos a um preço supervalorizado, deixou muitos acionistas fora do ‘Negócio do Século.5

Carlos Heller, outro diretor da Azul Azul, outro membro da diretoria, tem participação também na diretoria do grupo Bethia, que, por meio de suas companhias, tem protagonismo nos setores de comércio varejista e redes de supermercados (Falabella, Sodimac e Tottus), comunicações (Mega, radio Candela e Etc. TV), hípico (Club Hípico de Santiago, Hipódromo de Chile e Haras Don Alberto), transportes (Lan Airlines, Aeroandina, Sotraser, Blue Express, Grupo de Empresas Navieras), agrícola (Agrícola Ancali), vitivinícola (Viñas Indómita e Santa Lucía), saúde (Clínica Las Condes), imobiliário (Torre Titanium), sanitário (Águas Andinas) e financeiro (Inversiones Financieras Sinergy). Na sua chegada à presidência do clube, o empresário anunciou ao som de bumbos e platinelas a construção de um estádio para a Universidad de Chile, porém, em março de 2019, deixou a presidência com a promessa inconclusa, logo após receber ameaças de morte por parte de torcedores.6 No Colo-Colo, arquirrival da Universidad de Chile, Sebastián Piñera, atual presidente do país, é lembrado como o acionista mais emblemático da concessionária Blanco y

Negro S.A.. Em menos de um ano após o começo da era Blanco y Negro, o empresário vinculado ao partido político Renovación Nacional (RN) adquiriu 8% das ações. Assim, no dia 21 de abril de 2006, o então parlamentar que impulsou a lei das SADP se converteu em parte da diretoria da concessionária. No entanto, as críticas geralmente apontaram para uma utilização da popularidade do Colo-Colo para fins políticos, tal como expressou Rodrigo Contreras, membro da ColoColo de Todos, organização de torcedores e sócios: Vejam o Sebastián Piñera, quando o Colo-Colo era campeão chegava com sua camiseta e levantava a taça, e é sabido que ele é torcedor da Universidad Católica... como ele colocava o hino do Colo-Colo nas campanhas eleitorais... no encerramento da sua campanha na Alameda,7 em determinado momento ele colocou o hino do ColoColo. Estes abusos asquerosos que sofremos foram pensados desde antes, não são coincidências.8

Cristian Varela foi mais um entre os diretores questionados da Blanco y Negro S.A. Varela teve grande protagonismo no contrato de concessão como representante do Club Social y Deportivo Colo-Colo e atuou como um dos principais defensores da concessionária. Revelou-se um ferrenho defensor de Piñera: “ele é um empresário de muito sucesso, que tem sido muito comprometido com o esporte, o fato de que se junte ao Colo-Colo me alegra porque significa que temos um novo torcedor. Acredito que vá significar uma grande contribuição para nós.”9 Cristian Varela, como um dos diretores da Blanco y Negro S.A., foi um dos principais negociadores dos direitos de televisão das partidas do futebol chileno. Varela se transformou em alvo de acusações por seu notável conflito de interesses: em 2015, também era presidente da

Chilefilms,10 empresa encarregada da transmissão dos jogos e principal sócia do Canal del Fútbol (CDF).11 O último dos ex-diretores da Blanco y Negro S.A. também tem vínculo com a corrupção. Gabriel Ruiz-Tagle, diretor da concessionária (2006-2010 e 2018-2019), esteve diretamente relacionado com o chamado “Escândalo do Papel Higiênico”:12 Na investigação da Procuradoria Nacional Econômica,13 o exministro de Sebastián Piñera foi acusado de ser o gestor de um dos maiores conluios da década. Nos detalhes entregues pela procuradoria constava que, em meados de 2000, o agora presidente da Blanco y Negro se reuniu no Club de Golf Las Brisas de Chicureo com Jorge Morel, que nesse momento era o gerente geral da empresa CMPC Tissue, para aumentar os preços dos produtos já mencionados por ocasião da entrada de novos concorrentes.14

A legislação que regulamenta as SADP não impôs restrições sobre a idoneidade dos indicados aos distintos cargos que são oferecidos pelas diretorias das sociedades anônimas desportivas no Chile. Dessa forma, a honradez dos integrantes das cúpulas de poder fica a livre juízo e semeia dúvidas diante de possíveis conflitos de interesses ou casos de corrupção vinculados ao futebol. Balanço econômico das SADP O principal objetivo das sociedades anônimas desportivas era sanar as contas dos diferentes clubes de futebol nacional. O ápice dos distintos contratos de concessão dos times chilenos foi estipular um prazo para o pagamento das dívidas fiscais e obrigar o seu cumprimento. O caso do Colo-Colo se vincula ao “Contrato de Outorga e Venda de Concessão de uso, desfrute e exploração”15 entre a Corporación Club Social e Deportivo (CSD) Colo-Colo Blanco y Negro (BN S.A.), firmado em 24 de junho de 2005.

O acordo estipulava que a concessionária deveria pagar 7,5 bilhões de pesos chilenos,16 além de assumir e pagar as dívidas do clube com a Receita Federal do Chile,17 um montante que alcançava um total de 14,5 bilhões de pesos chilenos.18 Atualmente, a dívida fiscal da concessionária BN S.A. alcança o valor de 9,6 bilhões de pesos chilenos19 (segundo informação entregue à Comissão para o Mercado Financeiro20 pela BN S.A. no seu Relatório Anual correspondente ao ano de 2019). No caso da Universidad de Chile, o contrato da concessão entre a Corporación Fútbol de la Universidad de Chile (Corfuch), representada pelo administrador de falências José Manuel Edwards, e a Azul Azul Sociedad Anónima (AA S.A.) foi firmado em 8 de junho de 2007. A concessionária pagou, referente à falência, a soma de 3,3 bilhões de pesos21 e assumiu como codevedor solidário da dívida tributária da Cofurch, seguindo acordo judicial celebrado com a Receita Federal chilena. A dívida transferida da Cofurch à Azul Azul S.A., segundo consta nos registros de 2014 da concessionária, equivale a 3,8 bilhões de pesos chilenos22 por tributações não pagas. Em 2019, os balanços financeiros da Azul Azul S.A. registraram grandes perdas. As sucessivas demissões dos últimos técnicos da equipe, somadas aos fracassos nos investimentos de novos jogadores para o elenco profissional, mantêm a concessionária com prejuízos ao redor de 3,6 bilhões de pesos chilenos23 (números do Relatório Anual de 2019). Resultados futebolísticos na era das SADP Os torcedores de futebol e o meio esportivo chileno têm sido particularmente críticos com as sociedades anônimas

devido aos paupérrimos resultados desportivos vinculados à chegada das SADP a nosso país. Apesar de a La U ter vencido a Copa Sul-Americana em 2011 sob administração da Azul Azul S.A. e de o Colo-Colo ter chegado à final da mesma competição em 2006, as participações dos times chilenos em nível internacional têm deixado muito a desejar. Nos últimos sete anos, os clubes chilenos só conseguiram se classificar duas vezes às oitavas-de-final da Copa Libertadores. Desde 1993 (Universidad Católica x São Paulo) que um time nacional não joga a decisão do certame continental – e são numerosos os fracassos. Com a seleção a coisa é diferente: neste período, o Chile colecionou os primeiros reconhecimentos em sua vitrine. Em 2015 e em 2016, ‘La Roja’ levantou a Copa América diante da seleção da Argentina. O sucesso, no entanto, não se refletiu nas seleções de base. As sociedades anônimas desportivas profissionais foram vilipendiadas devido ao escasso e praticamente nulo trabalho com as divisões inferiores. As seleções de base chilenas acumularam apenas quatro classificações a mundiais de suas categorias. A Sub-17, comandada pelo técnico Hernán Caputto, conseguiu o ingresso do futebol nacional à contenda planetária em 2017 e 2019. Antes, a equipe dirigida por José Sulantay alcançou notoriedade no Mundial Sub-20 do Canadá em 2007 e a esquadra liderada por Mario Salas fez o mesmo no Mundial Sub-20 da Turquia em 2013. Reflexões finais Passados 14 anos desde a implementação da Lei n. 20.019, que regulamenta as sociedades anônimas desportivas no Chile, é possível assegurar que as novas

administrações dos clubes objetivos parcialmente.

nacionais

cumpriram

seus

As equipes conseguiram solucionar seus problemas financeiros em um primeiro momento. No entanto, a falta de controle por parte do aparato estatal e o nulo poder de decisão da massa societária dos clubes facilitaram a entrada de investidores vinculados a escândalos de corrupção, além de evidenciar a carência de regulação sobre gastos e responsabilidades nos prejuízos refletidos nos balanços das instituições. Atualmente, distintos parlamentares estão levantando iniciativas para melhorar a estrutura que rege o futebol chileno. O caminho em direção ao modelo alemão, em que os sócios dos clubes são donos de 51% das sociedades anônimas e impedem que as decisões sejam tomadas pelos empresários, parece ser uma das saídas mais convincentes. Em 2018, a Câmara dos Deputados aprovou a ideia de modificar a Lei n. 20.019, mirando nos eixos relacionados à fiscalização, ao conflito de interesses e à participação:24 1- Estabelecer na legislação que todas as sociedades anônimas sejam fiscalizadas pela Superintendência de Valores e Seguros, sejam elas de capital aberto ou fechado. 2- Permitir que os clubes de futebol possam se constituir como pessoas jurídicas sem fins lucrativos, com devida fiscalização. 3- Eliminar os conflitos de interesses na propriedade das Sociedades Anônimas Desportivas. 4- Possibilitar, como alternativa, a participação real, decisiva e economicamente responsável dos sócios e

torcedores dos clubes, por intermédio da capitalização das sociedades anônimas por meio da emissão de novas ações que podem ser assumidas pelos torcedores que participem das corporações ou fundações anteriores à criação das Sociedades Anônimas Desportivas Profissionais ou pela transferência das ações já existentes.

Até a data desta publicação, o debate continua sem render resultados reais que signifiquem a modificação da Lei n. 20.019, que teve sua última alteração no ano de 2009. A falta de vontade política e os interesses criados afastam a possibilidade de uma verdadeira mudança em uma lei que pretende ser replicada em outros países da América do Sul e que parece ser mais íntima dos donos que dos torcedores.

Referências CAMPOS MUÑOZ, Sebastián; DURÁN GONZÁLEZ, Patricio. Sociedades anónimas deportivas: el ocaso del futbol social. Santiago,

Chile:

Universidad

de

Chile

-

Instituto

de

Comunicación e Imagen, 2015. COOPERATIVA. “El Caso Chispas. Martínez”, 12 jan. 2006. Disponível

em:

http://www.cooperativa.cl/noticias/pais/sebastian-pinera/el-

caso-chispas/2006-01-12/080740.html. Acesso em: 27 abr. 2020. EL PAÍS. “La ‘mafia’ del papel higiénico en Chile”. 30 out. 2015.

Disponível

em:

ttps://elpais.com/internacional/2015/10/29/america/1446157 370_071648.html. Acesso em: 27 abr. 2020. LA NACIÓN. “Sebastián Piñera integrará directorio de Blanco y

Negro”.

21

abr.

2006.

Disponível

em:

www.lanacion.cl/noticias/sebastian-pinera-integraradirectorio-de-blanco-ynegro/2006-04-21/181946.html. Acesso em: 27 abr. 2020. PUBLIMETRO. “Los 4 grandes puntos que busca instaurar la modificación a la ley que regula las Sociedades Anónimas Deportivas Profesionales”. 15 mar. 2018. Disponível em: https://www.publimetro.cl/cl/graficochile/2018/03/15/grandes-puntos-ley-sadp.html. Acesso em: 27 abr. 2020. PUBLIMETRO. “De los nexos con la Garra Blanca a la colusión del papel tissue: El manchado historial de Gabriel Ruiz-Tagle”. 18 abr. 2018. Disponível em: https://www.publimetro.cl/cl/graficochile/2018/04/18/manchado-historial-ruiz-tagle.html. Acesso em: 27 abr. 2020.

Notas [1] Nota de Tradução: a categoria de “abonados” nas SADP do futebol chileno é usada para torcedores que pagam periodicamente uma cota que lhes garante livre entrada às partidas. Algo similar a algumas categorias de “sócio torcedor” no Brasil, ou à figura do comprador de “seasonticket” na Europa. O ingresso aos jogos é o único vínculo dos abonados com o clube. Difere das categorias de “sócio”, que são os antigos integrantes do corpo social dos clubes sem fins lucrativos. Estes sócios hoje têm descontos para os ingressos das partidas, mas, com o advento das SADP, perderam o poder de voto e de participação política. [2] 650 mil UF correspondem a 18,6 bilhões de pesos chilenos ou 21,7 milhões de dólares em 20/04/2020. [3] N. de T.: Enersis é a empresa de energia elétrica do Chile, que tinha o Estado chileno como acionista majoritário até 1997, ano em que é definitivamente privatizada durante o governo do presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle, do Partido Democrata Cristão. Foi comprada pela multinacional espanhola Endesa. José Yuraszeck, então gerente-geral da

Enersis,

foi

nomeado

presidente

da

nova

companhia

privatizada. [4] N. de T.: União Democrática Independente, partido político chileno de direita, baseado na defesa da moral cristã, de tendência conservadora e neoliberal. Foi fundado pelo ex-senador Jaime Guzmán, político influente no regime do ditador Augusto Pinochet que foi assassinado em 1991. [5] COOPERATIVA. “El Caso Chispas. Martínez”, 12 jan. 2006. [6] N.T.: Na altura da produção desse artigo, o Club Universidad de Chile estava ameaçado de rebaixamento. A edição de 2019 do campeonato local foi encerrada com seis rodadas de antecedência por conta dos protestos contra o governo, sem definição de rebaixamento. [7] N. de T.: Avenida Libertador Bernardo O’Higgins, conhecida como La Alameda, principal avenida de Santiago do Chile. [8] Ver: CAMPO MUÑOZ; DURÁN GONZÁLEZ. Sociedades Anónimas Deportivas: El Ocaso del Fútbol Social, 2015. [9] LA NACIÓN. “Sebastián Piñera integrará directorio de Blanco y Negro”. 21 abr. 2006. [10] N. de T.: Empresa cinematográfica chilena privatizada em 1989 pelo regime do ditador Augusto Pinochet. Criada em 1942, durante o governo de Juan Antonio Ríos, a

Chilefilms é hoje prestadora de serviços para a transmissão dos jogos do futebol chileno pelo Canal del Fútbol. [11] N. de T.: Canal a cabo que é o principal transmissor de jogos

do

futebol

chileno.

Atualmente,

pertence

à

WarnerMedia, multinacional estadunidense do ramo de comunicações e entretenimento. [12] N. de T.: o “Escândalo do Papel Higiênico”, também chamado de “Escândalo do Papel Tissue”, foi um célebre caso de corrupção envolvendo as duas maiores empresas papeleiras do Chile, acusadas de combinar preços abusivos e de fatiar o mercado de papel higiênico e outros produtos de primeira necessidade entre 2000 e 2011. Dessa forma, as

empresas

obtiveram

faturamentos

milionários

e

conseguiram controlar 90% do mercado de papel higiênico, papel toalha e guardanapos. Uma dessas empresas era a SCA Chile, que, no ano 2000, tinha o nome de Pisa e era de propriedade de Gabriel Ruiz-Tagle, que, posteriormente, foi ministro de esportes, entre 2010 e 2014, durante governo do presidente Sebastián Piñera. Ver: EL PAÍS, 2015. [13] N. de T.: a “Fiscalía Nacional Econômica” é uma promotoria independente na estrutura do Estado no Chile, responsável por garantir o respeito à livre concorrência entre empresas, visando a defesa dos direitos do cidadão chileno enquanto consumidor. [14] PUBLIMETRO. “De los nexos con la Garra Blanca a la colusión del papel tissue: El manchado historial de Gabriel

Ruiz-Tagle”. 18 abr. 2018. [15] N. de T.: “Contrato de Otorgamiento y Venta de Concesión uso, goce y explotación”. [16] 8,8 milhões de dólares em 20/04/2020. [17] N. de T.: “Tesorería General de la República”, órgão responsável por arrecadar, custodiar e distribuir os valores fiscais na estrutura do Estado chileno. [18] 16,9 milhões de dólares em 20/04/2020 [19] 11.199.460 dólares em 20/04/2020. [20] A Comissão para o Mercado Financeiro (CMF) é uma instituição do Estado chileno, vinculada ao Ministério da Fazenda, responsável pela fiscalização de operações financeiras. Substituiu a Superintendência de Valores e Seguros

(SVS),

que

funcionou

até

2018.

Os

dados

apresentados na pesquisa pertencem à SVS e à CMF. [21] 3,8 milhões de dólares em 20/04/2020. [22] 4,4 milhões de dólares em 20/04/2020. [23] 4,2 milhões de dólares em 20/04/2020. [24] PUBLIMETRO. “Los 4 grandes puntos que busca instaurar la modificación a la ley que regula las Sociedades Anónimas Deportivas Profesionales”. 15 mar 2018.

As associações civis desportivas no futebol argentino: privatizações e resistências

Verónica Moreira & Rodrigo Daskal

Introdução Por que continuamos a debater sobre os clubes de futebol na Argentina? Porque clubes com futebol profissional mantiveram, há mais de um século, um modelo que penetrou fortemente na experiência e no imaginário dos torcedores e sócios (as) de instituições esportivas. Porque milhares de pessoas aprenderam e colocaram em prática, década após década, as ferramentas do sistema político, que é regulamentado no estatuto jurídico particular das entidades do futebol. Porque os sócios e os torcedores encontram um espaço para expressar seu carinho incondicional de várias maneiras: não apenas nos estádios, mas também em lugares alternativos, organizando celebrações, reuniões, atividades em nome de seu clube. Porque, para alguns setores sociais, existe a possibilidade

de, nos clubes, praticar atividade física e esportiva a um custo mais conveniente do que o preço das cadeias de academias comerciais. Clubes de futebol na Argentina são associações civis sem fins lucrativos e isso tem um significado que queremos descrever neste trabalho. Eles não são apenas clubes de futebol, mas instituições com uma ampla base de associados, muitos dos quais colaboram e participam da organização de esportes amadores e de atividades diversas. Frydenberg (1997) aponta um aspecto que caracteriza os clubes de futebol na Argentina. Desde suas origens, essas instituições funcionavam como locais de reunião onde os sócios discutiam em conjunto problemas práticos relacionados ao nome do clube, cor da camisa, campo de jogo, cobrança de taxa social ou formação de equipes. Esse caráter coletivo do funcionamento dos clubes foi adicionado à tendência associativa das primeiras décadas do século XX, que também incluía sociedades de desenvolvimento local, bibliotecas populares, sindicatos de trabalhadores e sociedades de ajuda mútua para imigrantes. Depois de várias décadas, o associativismo é um modelo que continua sendo valorizado hoje, seguindo Putman (1999), por seu potencial para a troca de ideias diferentes ou similares, a coexistência de cidadãos de diferentes origens ou opiniões, o desenvolvimento de virtudes cívicas, treinamento em vida social e democrática e implantação de regras que devem ser respeitadas pelos participantes na forma de um sistema político. Nos últimos anos, a relação entre o modelo jurídico dos clubes de futebol e o inexorável processo de mercantilização desse esporte tornou-se visível tanto na agenda pública quanto nos centros de estudos acadêmicos da Argentina. Saúde, educação, serviços públicos e as instituições da sociedade civil são afetados diariamente pelo desenvolvimento do capitalismo. Clubes de futebol não são

exceção. Nesse contexto, uma pergunta interessante e importante seria: qual é a margem de ação dos sócios e torcedores ligados às entidades esportivas em possíveis contextos de privatização lucrativa e avanço do neoliberalismo? O contexto latino-americano Os clubes latino-americanos tentaram imitar as transformações que ocorreram nas ligas mais importantes da Europa em meio ao avanço do neoliberalismo, não apenas em relação às mudanças legais, mas também com a modernização de suas administrações (MOREIRA, 2018). Em alguns países como Chile, Uruguai, Brasil e Peru, foram estabelecidas leis que favoreciam o desembarque de capital econômico para formar sociedades anônimas esportivas que, conforme o caso, coexistem com associações civis. Muitas vezes, tomando como paradigma o que aconteceu na Espanha com a lei do esporte em 1990, o que levou à transformação dos clubes de sociedades civis para sociedades comerciais com o pressuposto explícito de que, sob esse formato, a situação econômico-financeira de muitos deles seria resolvida. Para medir o tamanho das consequências que uma mudança de paradigma no futebol produziria, um caso emblemático a ser destacado é o do Chile, onde ocorreu a incorporação de capital econômico de fora dos clubes. A transformação de clubes em empresas foi legalizada em 5 de maio de 2005, quando o Congresso Nacional promulgou a Lei nº 20.019 para regulamentar o funcionamento das Sociedades Anónimas Deportivas Profesionales (SADP). A discussão e a apresentação do projeto, iniciadas em 23 de julho de 2002, contou com o apoio de diferentes personalidades do mundo dos negócios e de todo o setor de classes políticas, cuja figura de destaque era Sebastián

Piñera. Desde então, Muñoz e González (2015, p. 3) apontam: “Os clubes esportivos que funcionavam principalmente como corporações sem fins lucrativos foram pressionados por diferentes frentes para se transformarem em sociedades anônimas, com uma nova estrutura regulatória e novas condições que transformaram a maneira de entender e jogar futebol”. A proposta de transformar os clubes em empresas ganhou legitimidade no contexto da dívida milionária que vários clubes tinham em seus nomes. A falência do Club Social y Deportivo Colo-Colo em 2002, seguida, dois anos depois, pela do Club Universidad de Chile, serviu para questionar a viabilidade da lógica associativa. Os criadores das privatizações argumentaram que era uma prioridade “modernizar” a administração dos clubes para tornar suas administrações mais transparentes (MOREIRA, SOTO LAGOS e VERGARA COSTELA, 2013). O endividamento dos clubes era, como já dissemos, um argumento comum usado pelo setor de privatizações comerciais para assumir a administração das entidades e empresas que concentram o futebol profissional argentino. Diretamente relacionada a essa premissa, aparece outra, que associa o déficit econômico à administração fraudulenta dos dirigentes, reforçando a ideia da privatização como medida moralizante necessária para acabar com a dívida e a corrupção. No Chile, a institucionalização das sociedades anônimas esportivas produziu pelo menos dois resultados. Primeiro, o papel social e a promoção do esporte amador, aspectos que caracterizaram as instituições chilenas desde a sua origem, foram claramente afetados porque a nova lei não regulava as obrigações que as empresas tinham a seguir nesse sentido. “Diferentemente de hoje, as antigas empresas sem fins lucrativos não se concentravam apenas em um esporte (...) O Colo-Colo, além de ser o time de futebol mais popular do país, ao longo de sua história também teve modalidades

esportivas como xadrez, atletismo, automobilismo, boxe, bicicross, ciclismo, equitação, esgrima, hóquei em patins, natação, patinação artística, polo, rúgbi, squash, tênis de mesa e vôlei” (MUÑOZ e GONZÁLEZ, 2015, p. 12). As empresas sem fins lucrativos no Chile prestavam serviços à comunidade por meio de ações concretas, como a assistência médica e odontológica aos sócios e filhos dos sócios de forma totalmente gratuita (ibid.). Dentro da lógica dos negócios, fornecer ajuda à comunidade e investir no desenvolvimento de esportes não profissionais é uma perda comercial. Por outro lado, a segunda consequência da reforma chilena foi o fechamento do acesso dos sócios à tomada de decisões em seus respectivos clubes. Com o novo formato legal, os mecanismos de eleição, representação e participação resultantes de processos políticos internos foram anulados. É interessante notar que cada regulamento é único, de acordo com as negociações que ocorreram entre políticos, dirigentes, parceiros e empresários. A regulamentação chilena seguiu o modelo inglês que permitia a entrada de capital privado (empresas e indivíduos) nos negócios de futebol por meio da compra de ações sem limite de porcentagem (ibid.). A antítese desse modelo é a Bundesliga alemã, na qual os sócios mantêm o controle de “50 + 1” por cento das ações e votos nas tomadas de decisão do clube S.A. O advento da SADP significou que a maioria dos clubes não tinha um vínculo direto com seus sócios. Hoje, em quase todos os clubes de futebol profissional, o associado só tem direito a um desconto na compra de ingressos ou mercadorias. O sócio atual não tem o direito de votar nas reuniões do conselho ou de usar as instalações da instituição (exceto no caso da CSD Colo-Colo). Clubes argentinos

Os clubes de futebol – assim como os chamados clubes de bairro e de comunidade – operam na Argentina com um estatuto social detalhando as maneiras de realizar eventos formais, como a eleição de dirigentes (quem vota, como deve fazê-lo, quais são os requisitos para se apresentar como candidato ou eleitor), a constituição das assembleias dos membros ou as reuniões da comissão diretiva. Meses antes da eleição, a campanha eleitoral dos candidatos torna a política interna mais visível: políticos aparecem na mídia, usam cartazes promocionais em espaços públicos, organizam reuniões. Os associados participam de diferentes eventos políticos e/ou vão à sede de seus clubes a cada dois, três ou quatro anos – conforme indicado em cada estatuto – para eleger os dirigentes (presidente, vicepresidentes, secretários, membros). O associacionismo condiciona favoravelmente a implantação de práticas políticas em entidades com futebol profissional. Também é importante notar que, embora as eleições sejam eventos que reúnem parceiros que desejam intervir na vida institucional como eleitores e/ou dirigentes, nem todos acessam estritamente as altas e reconhecidas posições do poder político. Em geral, as pessoas em posições gerenciais desfrutam de tempo livre concedido pela profissão ou pelo trabalho que realizam. O papel econômico dos dirigentes inclui o de profissionais liberais, como advogados, administradores de empresas ou economistas, além de atividades comerciais e empresariais. A distribuição desigual do tempo livre introduz uma concentração de cargos administrativos em benefício daqueles que têm tempo para desempenhar suas funções gratuitamente (BOURDIEU, 2007). Alguns autores destacaram que, à medida que os dirigentes realizam seu trabalho sem receber remuneração, ocorre a coexistência de duas éticas opostas: um futebol profissional administrado por dirigentes amadores (CRUZ, 2005). Por outro lado, seria interessante analisar um aspecto que não foi investigado até o momento:

a variável tempo disponível como condicionante ao acesso às posições mais importantes, tanto nos chamados “grandes” clubes quanto nas demais instituições com futebol profissional e aqueles que desenvolvem futebol nas diferentes divisões de acesso. Também é necessário destacar que a presença de mulheres nos comitês executivos é escassa, apesar da constante solicitação de uma extensão da cota para sócias em instâncias de tomada de decisão. Como Hang (2019) revelou, as mulheres ocupam 6% dos cargos dos comitês executivos e, em geral, desempenham funções de menor relevância e visibilidade. Uma pesquisa realizada por mulheres militantes sócias do Club Atlético River Plate mostra que, no caso desse clube, 19% do quadro societário é composto por mulheres, que acessam, por sua vez, 12,5% dos cargos de gerência do clube em diferentes níveis. Mas, além do aspecto quantitativo, é essencial observar essa integração em detalhes: no Conselho de Administração eleito em 2017 não há nenhuma sócia regular, há apenas três suplentes, e a mesma coisa ocorre no nível da Comissão de Supervisão e do comitê diretor da Assembleia de Representantes. Por outro lado, 77,8% das diferentes comissões e subcomissões de esportes e atividades sociais de clubes são presididas por mulheres, o que mostra que elas têm participação ativa, mas são relegadas à liderança dos setores menos valiosos em termos de administração e poder. Os clubes argentinos permaneceram como associações civis sem fins lucrativos, e não há legislação que regule a transformação deles em sociedades anônimas. No entanto, a questão se torna visível de acordo com certas situações políticas e, portanto, está mais uma vez na agenda da mídia. A última investida do empresariado e de alguns atores políticos com a intenção de transformar os clubes em sociedades anônimas ficou a cargo do ex-presidente da

nação, Mauricio Macri, que, no início de seu governo, falou e atuou nesse sentido. Mas, durante os anos de 2015 a 2019, as tentativas não prosperaram, provavelmente devido à falta de consenso em grande parte do campo das lideranças no futebol: um avanço nessa direção exige, como vimos, a modificação do estatuto da AFA (Asociación del Fútbol Argentino) e/ou uma iniciativa legislativa nacional. A primeira tentativa de fazer essa mudança no futebol argentino ocorreu no final dos anos de 1990 do século XX, e a força motriz por trás da ideia foi precisamente o próprio Macri, quando ele atuava como presidente do Club Atlético Boca Juniors (1995-2007). A iniciativa foi amplamente rejeitada pelas lideranças do futebol, lideradas na época por Julio Grondona, presidente da AFA. A passagem dos anos mostra que é um debate que às vezes adquire proporções maiores, mas que em outros é apenas latente ou pouco visível. Além disso, existem vozes que, em determinados momentos históricos e do mesmo campo de liderança dos clubes, sugerem a possibilidade de mudar o paradigma. Darío Santilli, dirigente do River Plate, defendeu a profissionalização da administração de seu clube em 1996: Parece-me que o River deveria pensar seriamente sobre isso. Existem algumas posições que devem ser terceirizadas. A presidência do River não pode ser um cargo ad honorem. O presidente, o tesoureiro, o secretário, o presidente do departamento de futebol, independentemente de serem ou não ad honorem, precisam de oito a dez horas para isso. Em média, tenho mais ou menos quatro horas por dia e sinto que é muito pouco, e a verdade é que tenho sorte de ter um trabalho que me permita fazer isso.1

Hugo Masci, ex-presidente do Club Atlético Atlanta e mais tarde promotor de uma associação esportiva comercial, usa uma referência cinematográfica – “Luna de Avellaneda”2 – para destacar os problemas do modelo tradicional de clubes:

Os clubes tinham administrações [no final da década de 1970, quando ele assumiu o cargo no Atlanta], que não viam a mudança ocorrendo na sociedade: eles não tinham habilidades para oferecer serviços aos associados que valorizavam, as ferramentas para administrar eram muito primárias, não foi realizado um planejamento mais ou menos ordenado [...] Hoje, o Club de Amigos possui um sistema de gerenciamento igual ao das grandes e boas organizações, adequado ao seu tamanho e necessidades. Caso contrário, não teríamos ganho o Prêmio Nacional da Qualidade.3

Naqueles mesmos anos de 1990, existiam na Argentina vários projetos legislativos que propunham criar a figura jurídica das sociedades anônimas esportivas com a pretensão de tentar seguir o modelo de outros países. Entre algumas iniciativas, destacaram-se as dos deputados Fernando Galmarini e Daniel Scioli e do senador Augusto Alasino. A proposta que mais transcendeu foi a apresentada pelo Poder Executivo nacional, exercido na época por Carlos Menem, por intermédio do Ministro da Justiça, Raúl Granillo Ocampo (VICENTE, 2000). A rejeição majoritária dos envolvidos com o futebol e a volatilidade dos tempos políticos arruinaram todas as iniciativas. Nenhuma lei foi aprovada e a AFA não permitiu em seu estatuto nada além do formato de associação civil sem fins lucrativos. Mas sim, houve uma mudança importante que, na prática, significava oficializar situações que já estavam ocorrendo: a possibilidade de cada clube gerenciar o futebol, ou seja: estabelecer vínculo com uma pessoa ou grupo comercial para administrar o futebol profissional. Na assembleia de 7 de março de 2000, o Comitê Executivo da AFA aprovou o “Plano de Recuperação Através de Investimentos Privados no Futebol Profissional”, publicado dias depois em seu boletim oficial. Se considerarmos o gerenciamento do futebol nos clubes como uma medida no meio do caminho entre o associacionismo (ele permanece como modelo legal) e a sociedade anônima (uma vez que o futebol está nas mãos de terceiros), as consequências nos casos que ocorreram foram amplamente negativas. Os casos de

gerenciamento foram muitos e em várias categorias do futebol argentino: o Club Atlético Quilmes administrou seu futebol com o Grupo Exxel e se tornou o primeiro clube na Argentina (após a autorização da AFA) a aceitar a administração pelos parceiros por meio de votos em uma assembleia de sócios, embora a experiência tenha durado pouco e, ao fim, naufragou. Argentinos Juniors também fez a mesma coisa com a empresa Torneos y Competencias – que levou o time titular a jogar na província de Mendoza, a quase 1.000 km da capital, sede do clube. Essa experiência durou uma temporada. Houve tentativas no San Lorenzo e no River Plate, rejeitadas por diferentes setores da arena política dos clubes, e, mais recentemente, nos clubes Talleres e Belgrano, na província de Córdoba, bem como em outros clubes, principalmente aqueles que se encontravam nas divisões de acesso. Em meados do ano 2000 e como resultado da situação financeira terminal do Racing Club, foi aprovada a Lei n. 25.284, “Regime Especial de Administração de Entidades Esportivas com dificuldades econômicas”. A administração confia no controle judicial, o que impede a falência das instituições, mas as coloca no comando de um triunvirato especializado que deve conduzir o processo de normalização econômico-financeira do clube para depois devolvê-lo ao seu formato associativo a cargo de seus sócios. A lei foi uma iniciativa do senador Hugo Sager, como resultado da situação do Club Atlético Chaco For Ever, na província de Chaco, que o senador representava (DASKAL e MOREIRA, 2017). A experiência no Racing também não foi positiva depois que duas empresas administraram seu futebol profissional, enquanto sua economia foi canalizada e seus parceiros colaboraram para que a instituição se normalizasse para que fosse novamente liderada por suas escolhas. Na Argentina, onde finalmente não há legislação a favor da formação de sociedades anônimas esportivas, os

parceiros que defendem o modelo associativo argumentam que o resultado de uma futura privatização seria a eliminação das modalidades amadoras, que, em muitos casos – provavelmente a maioria –, não são governadas pela lógica que maximiza o lucro econômico, mas pela lógica social e integracionista dos clubes, onde os sócios são os únicos proprietários e decidem como e em quais atividades eles usam os recursos disponíveis. Em sentido inverso, aqueles que pensam a favor usam o argumento das realidades econômicas fracas ou ruins de muitos clubes e a falta de profissionalismo ou honestidade de seus dirigentes. No meio disso, e de uma maneira mais vaga, mas atual, há um debate sobre o papel social dos clubes e os diferentes status legais, ou seja: o profundo motivo e a razão de sua existência é o que finalmente está em jogo. Participação social e política de sócios e torcedores As respostas às medidas para modernizar os clubes e/ou transformá-los em empresas foram variadas. A construção ou reforma dos estádios é um projeto que geralmente gera dúvidas e discussões. Certas reformas podem entrar em conflito com a maneira de agir de sócios e torcedores, que veem os estádios como seus próprios lugares que abrigam múltiplos significados. São espaços que, década após década, estabeleceram experiências individuais e coletivas, tradições ao longo da vida, memórias familiares e experiências emocionais. Por tudo isso, o estádio não é apenas um patrimônio material, mas também um patrimônio intangível. Alguns projetos de construção e inovações contradizem as práticas e representações usuais de sócios e torcedores. Diante do anúncio do atual presidente do Club Atlético Boca Juniors de construir um novo estádio de futebol seguindo os padrões europeus, alguns torcedores

planejaram uma série de manifestações que chamaram de “banderazo”: é a reunião em um espaço público na qual torcedores e sócios usam bandeiras clássicas com as cores do clube para protestar com cânticos contra as decisões tomadas pelo poder. Os dirigentes anunciaram os detalhes do empreendimento: a construção de um local de dois anéis com capacidade para 75 ou 80 mil pessoas, com maioria ocupada por assentos e espaço limitado para arquibancadas populares (HIJÓS, 2017). O protesto dos detratores se originou não apenas pelo abandono – e possível demolição – da antiga Bombonera, mas também pela possível exclusão do espetáculo das classes média e popular. Na Argentina, dividir um estádio com outra equipe, como na Itália ou no Brasil, é um fato que gera resistência. Cada clube tem seu estádio, de acordo com o modelo de clube originado no início do século XX, e a organização histórica territorial do futebol. A partir da segunda década deste século, é possível observar uma maior participação de sócios e torcedores argentinos em seus clubes, um aumento das massas societárias em muitas instituições, uma maior participação nas votações e também a criação de novas áreas de ação em diferentes comissões e subcomissões que organizam atividades diferentes em torno do futebol ou de partidas em nome do clube (“o subcomitê de torcedores” que prepara o colorido nas arquibancadas, a “festa na arquibancada”). 4 Às vezes, as mobilizações, celebrações ou reivindicações dos torcedores e sócios organizados tornam-se enormes e exponencialmente visíveis no tecido urbano. Milhares de torcedores e sócios do Club San Lorenzo de Almagro se mobilizaram na Plaza de Mayo, no centro da cidade de Buenos Aires, exigindo uma lei de restituição histórica para “retornar a Boedo” (buscando mudar de volta ao bairro portuário seu estádio expropriado pela última ditadura militar na Argentina). Eles já haviam realizado marchas no

Legislativo da cidade de Buenos Aires (DASKAL e MOREIRA, 2017). Da mesma forma, os torcedores do Independiente, na ausência de uma comemoração programada pelas autoridades do clube, planejaram uma caravana a pé e em veículos em homenagem aos seus 100 anos de história. A celebração atraiu 100 mil pessoas que passavam pelas ruas da cidade vestindo camisetas e agitando bandeiras em homenagem ao centenário do Independiente. Em 2012, 120 mil torcedores do River Plate se mobilizaram na cidade de Buenos Aires, confeccionando “a maior bandeira do mundo” (DASKAL, 2018). Essa participação de associados e torcedores pode envolver o Estado na obtenção, defesa ou recuperação de terreno para os clubes. O mesmo vale para empreendimentos beneficentes: o Club Atlético Atlanta organizou um centro cultural e uma orquestra sinfônica para crianças de rua. Em todos os casos e em situações diferentes, embora semelhantes, há um interesse em expandir ou manter os espaços dos clubes e reivindicar sua identidade de bairro e seu papel como espaço de contenção social. A maior participação dos sócios também é observada no momento das eleições. Em 2009, mais de 14 mil sócios votaram no River Plate, quando, quatro anos antes, 4.486 haviam votado; 18.364 votaram em 2013 e 18.857 em 2017. No Boca Juniors, em 2011, uma eleição com pouco mais de 24.000 eleitores constituiu um recorde para a instituição e também aumentou o número em 2015. O mesmo aconteceu com o Club Atlético Independiente, no qual 11.685 membros votaram massivamente no mesmo ano. Ao mesmo tempo, no Argentinos Juniors, um clube menor, houve uma participação histórica de mais de 2.100 membros votantes – quase 50% dos que têm o poder de fazê-lo (DASKAL e MOREIRA, 2017). Nesse contexto, a declaração pública de um setor da política e dos dirigentes para transformar os clubes em

sociedades anônimas produziu um evento inédito na Argentina: a união de torcedores de diferentes equipes em uma única frente, fundada em novembro de 2016. Esse grupo, chamado Coordinadora de Hinchas [Coordenadoria dos Torcedores], estabelece entre seus objetivos “alcançar um maior envolvimento dos associados”, “lutar para preservar o caráter popular das instituições que não são apenas clubes profissionais de futebol” e “denunciar os abusos de corporações passando por cima dos torcedores”. Os torcedores incluíram outros pontos a serem discutidos: a defesa dos esportes amadores e de atividades sociais, chamando a atenção para questões de gênero e para o papel das mulheres nos esportes, a repressão policial nos estádios e os preços abusivos de ingressos. Um antecedente direto desse tipo de organização foi a formação, em 2001, do Foro Social del Deporte, formado não por simples torcedores, mas por dirigentes e sócios de diferentes clubes para defender associações esportivas civis, a fim de se opor aos avanços comerciais privatistas, mencionados anteriormente: foram impulsores do movimento os dirigentes Raúl Gámez do Vélez Sarsfield, Néstor Vicente do Huracán, Emilio Chebel do Lanús, José María Aguilar do River Plate e Carlos Heller do Boca Juniors, entre outros. Para os membros da Coordenadoria, “essa tendência de privatização e o lobby empresarial nunca deixaram de ser um perigo para nossos clubes. Gerenciamentos encobertos foram mantidos, assim como iniciativas do poder político que vão contra o fortalecimento das raízes do bairro e o aspecto social dos clubes, como a construção de estádios que são chamados de únicos, mas sem identidade, sem alma (...)”.5 A organização surgiu da troca de experiências entre diferentes grupos de quatro ou cinco clubes, que coincidiram na luta contra as sociedades anônimas esportivas.

Tanto sócios quanto torcedores pretendem seguir uma agenda de reuniões e trabalhar com diferentes líderes políticos e esportivos para que eles estabeleçam uma posição clara contra a possível apresentação de uma lei SAD. Entre seus objetivos está a busca de assinaturas de todos os setores dos clubes, além de palestras para conscientizar sobre a necessidade de manter o formato tradicional dos clubes como associações civis. As práticas descritas indicam um sentimento profundo e uma noção generalizada de que o clube é um patrimônio coletivo “que não se vende”. Essas práticas e representações foram aprendidas e desenvolvidas no âmbito de um formato jurídico único: a associação civil. Sócios e torcedores, a partir de suas ações futebolísticas, políticas, sociais e/ou culturais, incorporaram, dia após dia, o sentimento de pertencer a um coletivo comum. No mesmo sentido, Santos (2016) sugere que, no caso do Brasil, o fato de os clubes continuarem sendo associações civis sem fins lucrativos, legal e estatutariamente, permite uma maior intervenção de sócios e torcedores. Já vimos que pessoas ligadas a associações esportivas têm a possibilidade de participar como candidatos a dirigentes, eleitores e/ou militantes de qualquer um dos grupos políticos que disputam o poder. Também mencionamos que muitos fazem uso das instalações do clube porque participam de jogos, praticam esportes amadores ou participam de alguma atividade institucional. Por exemplo, o Club Gimnasia y Esgrima de La Plata oferece basquete, hóquei, skate, musculação, vôlei, tênis, artes marciais, atletismo, esgrima, ginástica e iniciação esportiva. Além disso, e isso se estende a outras entidades do futebol, 6 também possui níveis de educação formal (jardim de infância, ensino fundamental e médio). Em maior ou menor grau, é um modelo esportivo e social paradigmático para clubes da Argentina.

Na apropriação que fazem do espaço – sede, estádio, campo esportivo – (DE CERTEAU, 1996), associados e torcedores estão formando uma estreita relação com o ambiente que dá sentido à frase “o clube pertence aos sócios”. Um sentido que inclui, embora exceda a formalidade associativista. Tanto sócios quanto torcedores sentem que o clube é deles, e isso implica em suas dimensões simbólicas, mas também físicas: a quadra, o campo, suas instalações, as atividades que desenvolve, as opiniões que emite institucionalmente. Embora a Coordinadora de Hinchas tenha como ponto nevrálgico a oposição à possível aparição das SADs, mais tarde desenvolveu um processo no qual começou a fazer movimentos e se expressar em relação a outras questões que afetam os torcedores, como a violência no contexto do futebol. Foi assim que começaram a denunciar situações em que as forças de segurança reprimem os torcedores ou organizam mal as operações, bem como alguns oficiais encarregados das áreas caracterizadas por sua ineficiência e atitudes repressivas. Eles também levantaram suas vozes para outros tipos de questões, como o aumento dos preços dos ingressos e vincularam-se a outros grupos sociais e políticos relacionados à luta feminista, direitos humanos e debates legislativos no esporte, a favor da aplicação de leis que determinam cotas políticas para mulheres, jovens ou minorias políticas em associações esportivas. Conclusões Neste texto, exploramos brevemente o contexto relacionado ao formato jurídico e à finalidade social dos clubes na Argentina como modelo tradicional para nos concentrarmos nos últimos anos à luz das reivindicações políticas para modificá-lo, as arestas profundas em relação a seu sentido e um exemplo de resistência que surgiu entre

torcedores e sócios de clubes, como a Coordinadora de Hinchas. Acreditamos que é importante destacar alguns pontos, com a certeza de que essas são questões em pleno desenvolvimento, abertas ao debate e à compreensão: 1. O modelo de clube na Argentina é original não apenas em termos comparativos em relação a outras latitudes do planeta, mas devido ao potencial gerado desde o início do século XX com base em um movimento duplo: o do clube esportivo, social e cultural que, como sustento institucional, funciona como o capital social de uma comunidade, e o espetáculo esportivo que eles geram. As associações esportivas foram os principais promotores do esporte e do futebol que conseguiram se desenvolver com suas especificidades em relação à sua popularidade e crescimento comercial. 2. Esse modelo de clube foi mantido incólume por mais de um século, apesar do fato de que, em outros países e contextos diferentes, houve outras situações e movimentos em relação aos clubes como estabelecimentos esportivos. Particularmente na Europa, entidades com futebol profissional são organizadas como empresas comerciais privadas em maior ou menor grau. A continuidade do associacionismo na Argentina não ocorreu sem conflitos ou discussões. A partir dos anos de 1990, as vozes – geralmente minoritárias – começaram a circular com mais frequência, propondo uma mudança no status legal dos clubes como uma maneira de superar os conflitos no futebol. 3. Esses conflitos podem se concentrar em certos aspectos, como a situação financeira e econômica das

instituições, a (pouca) honestidade e capacidade de seus dirigentes, a violência no futebol, os diferentes modelos de gestão. Nesse ponto, a partir dos anos de 1990, na Argentina e em outros países da região, foi feita uma tentativa de imitar o processo de conversão de clubes em SADs que ocorreu na Espanha a partir da Lei do Esporte. Há uma disputa no campo do futebol que corremos o risco de caracterizar como uma vitória parcial em favor dos defensores do modelo tradicional. Embora os projetos legislativos a favor das SADs não avancem e a AFA não modifique seu estatuto, a administração profissional do futebol começa a existir em vários clubes, experiências fracassadas do ponto de vista econômico e do sucesso do futebol. 4. Durante os anos de 2015 a 2019, esse processo foi acentuado, embora não fosse possível impor uma iniciativa pró-SAD. Esse período também foi o de impulso da resistência encarregada de dirigentes, sócios e torcedores (a Coordenadoria dos Torcedores). No entanto, deve-se notar que, em vários clubes de diferentes categorias, também existe um uso gerenciado do futebol profissional nas mãos de empresários ou grupos privados e, em certos casos, em detrimento total dos demais aspectos que compõem o clube. 5. Trata-se de campo em permanente tensão, embora seja evidente que às vezes essa tensão aumenta ou diminui ou descansa por um tempo, até se tornar evidente novamente. A originalidade do modelo de clubes argentinos, o mesmo que possibilita os clubes como espaços de contenção social e sociabilidade, de formação cidadã e democrática, que permite a prática de esportes e atividades físicas de milhares de

pessoas em todo o país, é um modelo que por sua própria formação tem rachaduras, conflitos e inimigos latentes. Com efeito, as instituições abrigam tanto dirigentes incapazes ou desonestos (como em todos os campos), quanto muitos outros (em sua maioria) que dedicam seu tempo e esforço de maneira altruísta e de acordo com suas verdadeiras convicções. 6. Como dissemos no ponto anterior, os clubes neste formato têm inimigos latentes: aqueles que os procuram exclusivamente como uma plataforma para obter ganhos econômicos privados. Seja por causa do terreno ou das instalações de um clube de bairro, estádio ou futebol para fazer investimentos com a compra e venda de jogadores, existem atores que não param na tentativa – até agora falha – de mudar as raízes, sob argumentos que foram falaciosos em outras experiências locais e não locais. Até hoje, os clubes existem sob o modelo associacionista, no qual os proprietários únicos permanecem sendo seus sócios.

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Notas [1] Revista Siempre River, n. 22, año 5, agosto 2006, p. 8 (DASKAL, 2018). [2] “Luna de Avellaneda” é um filme lançado em 2004 que conta a crise de um clube de bairro nos anos 1990, anos de neoliberalismo na Argentina, e o debate dos seus sócios e sócias sobre a venda ou não do clube. Finalmente, no filme, votam pela venda dele. [3] Clarín, 6/5/2013, p. 30. O Clube de amigos é uma mescla particular de associação civil e emprendimento comercial que utiliza um espaço esportivo no norte da cidade de Buenos Aires (DASKAL, 2018). [4] A primeira subcomissão de torcidas institucionalizadas foi do River Plate (DASKAL, 2018).

[5] Extraído do texto “Plano de Luta #NoaLasSAD – Coordinadora de Hinchas”, lido por um representante da grupo em um ato público em 10 de abril de 2018, no hotel Bauen, Cidade de Buenos Aires, Argentina. [6] Clubes como Independiente de Avellaneda, River Plate, Vélez Sarsfield e Lanús.

PARTE II

Torcedores

Sevilla Fútbol Club: a luta pelo patrimônio dos seus torcedores

Accionistas Unidos del Sevilla Fútbol Club (Moisés Sampedro Contreras)

O Sevilla Fútbol Club foi registrado como entidade em 14 de outubro de 1905, por apaixonados por futebol que, sem nenhum interesse econômico pessoal, foram, pouco a pouco, fazendo o clube crescer até que conseguisse participar da Primera División Española em 1934. O clube, à época presidido por D. Ramón Sánchez-Pizjuán, já contava com um grande número de seguidores, e, em 1938, adquire os terrenos onde se construiria o atual estádio do Sevilla Fútbol Club. Após o início dos trabalhos de construção do estádio Ramón Sánchez-Pizjuán, o clube precisava de 50 milhões de pesetas para arcar com os custos da obra. Para que o clube pudesse quitar tal dívida, em 1957 os torcedores do Sevilla compraram 100 mil cotas, cada qual com o valor de 500 pesetas, isto é, arrecadaram entre si todo o dinheiro necessário para construir o estádio. Entregaram seu dinheiro com o único intuito de ver o clube crescer.

Em 7 de setembro de 1958, acontece o jogo de inauguração do estádio. Apesar de ele já se encontrar em funcionamento, a obra da construção não havia terminado por completo, uma vez que, para finalizá-la, faltava que os sócios do clube aportassem mais dinheiro. Para isso, os sócios interessados compravam ingressos fictícios, que valiam 50 ou 100 pesetas, na chamada “fila 0”. Diante dessa fórmula, os torcedores voltavam a colocar dinheiro para a construção do estádio, que não ficou pronto até 1975. Em 1978, o Sevilla Fútbol Club conseguiu contar com os serviços de um jogador que daria um salto de qualidade ao clube: Ricardo Daniel Bertoni. D. Eugenio Montes Cabeza, então presidente do clube, ordenou que o secretário técnico D. Santos Bedoya negociasse a compra do jogador junto ao presidente do Independiente de Avellaneda. Bertoni disputou a Copa do Mundo de 1978 pela Argentina, vencendo a competição como autor do gol que decretou o título. Terminado o mundial, Bertoni viaja a Sevilla e acerta o contrato que o ligaria ao clube. Uma vez que o esforço financeiro feito para contratá-lo foi muito grande, se decide que cada um dos sócios do clube ajude com uma contribuição de 1000 pesetas. Novamente, o sevillismo ajudava o seu clube a se tornar maior sem esperar nada em troca. Na Espanha, no fim dos anos de 1980, os clubes de futebol estavam, em sua maioria, dirigidos por péssimos gestores, o que fez com que, juntos, os clubes acumulassem uma dívida de mais de 172 milhões de euros com o Estado espanhol. Essa situação obrigou o governo a buscar uma solução que não forçasse os clubes a desaparecer por não conseguirem resolver suas dívidas, mas também garantisse que se devolveriam os 172 milhões de euros. Após algumas

tentativas anteriores que não deram resultados, finalmente se aprovou a Ley de Deporte de 1990, que estabeleceu as bases para que todos os clubes de futebol que jogavam na primeira e segunda divisão fossem obrigados a se converter em empresas em 1992, à exceção daqueles clubes que estavam financeiramente saneados, como o Real Madrid, o FC Barcelona, o Club Atlético Osasuna e o Athletic Club. A denominação que se deu a essas empresas foi a de “Sociedad Anónima Deportiva” [Sociedades Anônimas Desportivas], conhecida por sua sigla SAD. O objetivo de obrigar os clubes a se converterem em SAD’s não era outro senão o de sanear as contas das equipes de futebol. Para isso, todo clube que quisesse jogar na primeira ou na segunda divisão deveria se converter em SAD e demonstrar que não tinha dívidas financeiras. Para convencer os dirigentes dos clubes de futebol para que admitissem a fórmula para a conversão em SAD, se desenhou um sistema de conversão em que os atuais dirigentes poderiam obter uma quantidade importante de ações que lhes garantissem o controle sobre a entidade. Assim, foi proposto que se oferecesse a subscrição de ações aos sócios dos clubes, de modo que cada sócio pudesse comprar o mesmo número delas, e, se nessa primeira rodada não se subscrevessem todas as ações, estas voltariam a ser oferecidas aos acionistas que já tivessem comprado na primeira rodada, em condições de igualdade. A chave para convencer os dirigentes dos clubes estava na terceira rodada, posto que se não se subscrevessem 100% das ações na segunda fase, se dava a liberdade à diretoria de cada clube para que decidisse como repartir essas ações. Dessa forma, aqueles que dirigiam o clube esportivo naquele momento poderiam torná-lo uma propriedade privada uma vez que adquiriam grande parte do clube. Para poder continuar na primeira ou na segunda divisão, os clubes foram auditados e foi estabelecida uma

quantidade mínima de dinheiro que deviam possuir. Essa quantidade se calculava com base nos gastos e nas dívidas dos clubes. No momento de avaliar quanto valia um clube de futebol, e, portanto, quanto dinheiro deveria valer as ações da futura SAD, na maioria dos clubes de futebol se estabeleceu um valor em função do capital mínimo que lhes exigia a Lei, que nada tinha a ver com o valor real do clube. Estabeleceu-se um valor da ação em função da dívida do clube, ignorando os bens imóveis, os símbolos e o capital de marca que possuíam. Ao se adotar essa forma valorar o clube, se saqueava o patrimônio que os torcedores haviam construído, suas contribuições para o crescimento do clube, que, por sua vez, aumentaram seu patrimônio de forma desinteressada. O Sevilla teve seu próprio processo de conversão em SAD, e foi estabelecido pelo órgão misto do Conselho Superior de Deporte / Liga de Fútbol Profesional que o valor que o Sevilla FC tinha era de 631.420.000 pesetas, quase 4 milhões de euros, e, em função desse valor, se emitiram ações em valores suficientes para cobrir esse total, isto é, 700.000.000 pesetas. Como estabelecia a Lei, foram colocadas à venda as ações em primeira rodada, e, por não se haver comprado todas, abriu-se a segunda rodada. Ao final da segunda rodada apenas se havia comprado metade das ações. O resto delas se subscreveram em uma terceira rodada, à qual concorreram sevillistas que compunham a diretoria de então, e que compraram partes importantes para terminar de cobrir todas as ações. Finalmente, três quartos do capital do Sevilla terminaram nas mãos de 14 pessoas. Em 1 de agosto de 1995, quando o presidente do Sevilla era D. Luis Cuervas, a Liga publica um comunicado no qual anuncia que tanto o Real Club Celta de Vigo quanto o Sevilla Fútbol Club seriam rebaixados da primeira divisão para a

segunda por não terem apresentado certidões que garantiam o pagamento das dívidas. Ou seja, por não cumprir os acordos financeiros estabelecidos pela Ley del Deporte se rebaixavam os clubes independente do seu resultado esportivo. Suas vagas na primeira divisão seriam ocupadas pelo Albacete e o Valladolid, rebaixados nesse ano. No dia seguinte, em 2 de agosto de 1995, mais de 20 mil sevillistas saem às ruas para se manifestar contra o rebaixamento do Sevilla FC. Com um trajeto que foi do estádio Ramón Sánchez-Pizjuán até a Câmara Municipal local, se produziu uma das maiores manifestações da história da Andaluzia. O sevillismo se mobilizou em massa para mostrar sua revolta por sofrerem as consequências de uma má gestão de seus dirigentes e de uma lei que só atentava para os critérios econômicos. Finalmente, em 16 de agosto, diante da pressão social, La Liga retifica e decide que ambos os clubes manteriam a escalão e permaneceriam na primeira divisão. Claro que Albacete e Valladolid estavam em total desacordo, ao que finalmente se decide que, na temporada de 1995-96, a primeira divisão se disputaria com 22 equipes. Novamente, a torcida do Sevilla conseguia salvar a entidade com seu próprio esforço. Outro marco na história do sevillismo na Assembleia Geral de Acionistas de 15 de maio de 1997. Naquele período, os acionistas majoritários eram D. José Maria Gozález de Caldas e D. Francisco Escobar. A torcida do Sevilla FC havia demonstrado jogo após jogo que estavam contra ambos por considerá-los gestores nefastos. Os dois acionistas majoritários firmaram um acordo para atuar juntos na Assembleia Geral dos Acionistas e assim representar 52% das ações para eleger sem oposição a próxima diretoria do clube. A oposição de todo sevillismo

unido provocou que o ambiente da assembleia fosse muito tenso e, graças a essa tensão, D. José Maria del Nido, que posteriormente se tornaria presidente, conseguiu anular parte das ações defendidas pelo representante de D. Francisco Escobar, fato que foi central para que esses acionistas majoritários não pudessem escolher a nova direção da entidade. Na Assembleia Geral dos Acionistas de 18 de dezembro de 1997, sendo presidente D. Rafael Carrión Moreno, se acerta uma ampliação do capital sem direito à subscrição preferencial. Isso quer dizer que foram emitidas novas ações sem que os acionistas majoritários pudessem ter o direito de comprá-las em quantidade suficiente para manter suas porcentagens. Esse aumento de capital buscava dividir mais as ações do Sevilla FC entre os torcedores sevillistas. A ampliação foi de 332.927.616 pesetas, cerca de 2 milhões de euros. Essa ampliação de capital se mostrou um dos maiores marcos do futebol espanhol no que se refere à devolução do poder sobre o clube aos torcedores. Desde 1997, quando o Sevilla FC se encontrava na segunda divisão, até os dias atuais, em 2020, o clube tem alcançado feitos esportivos impensáveis. Aumentou sua sala de troféus de maneira extraordinária, chegando inclusive a se tornar na equipe do mundo que mais conquistou as taças da UEFA Europa League, possuindo um total de cinco. Esses êxitos esportivos vieram, inclusive, acompanhados do aumento da sua capacidade econômica e da transformação em clube financeiramente saudável. Essa solvência fez com que as ações do Sevilla FC se revalorizassem, aumentando seu preço de venda e atraindo investidores. Fruto da preocupação de muitos sevillistas com a gestão feita por parte do Conselho de Administração, no ano de 2017 surge uma associação de acionistas minoritários chamada Accionistas Unidos del Sevilla Fútbol Club S.A.D.

Esta associação pretendia que o Sevilla continuasse nas mãos dos sevillistas, além de colaborar para que os órgãos dirigentes do clubes fossem eleitos por critérios de capacidade e mérito e atuassem sob os princípios de lealdade e boa fé. Durante o ano de 2018, Accionistas Unidos del Sevilla FC (AUSFC) perceberam que muitos acionistas minoritários do Sevilla estavam sendo chamados por compradores que lhes faziam ofertas impensáveis por suas ações. Milhares acionistas receberam ofertas de até mil euros, sendo que lhes custaram 60 euros. Isso faz ligar o alerta da AUSFC, que suspeitam que alguém quer ter o Sevilla FC a todo custo. Frente a essa situação, a Accionistas Unidos lança o “Pacto por el Sevilla”, um documento que começam a difundir entre o sevillismo no qual o signatário se comprometia a: A) Manter o modelo de entidade com um capital repartido entre Sevillistas sem que existisse um dono majoritário; B) Conservar o modelo de gestão existente para que participassem preferencialmente Sevillistas que tivessem demonstrado sua lealdade ao SEVILLA F.C. S.A.D. na direção e administração da sociedade; C) Repartir as ações entre Sevillistas com igualdade de ofertas; D) Opor-se à entrada de capital estrangeiro ou estranho no SEVILLA FÚTBOL CLUB S.A.D., proporcionando que se mude o estatuto para que, assim como no modelo alemão, se exija um compromisso estável com a Entidade durante um mínimo de 20 anos para que um terceiro possa ser dono da Sociedade Anônima Desportiva e, propondo-

lhe, se necessário, iniciativas para que os acionistas sejam recompensados por seus investimentos. Entre eles, a repartição dos dividendos. Este documento foi assinado por um grande número de acionistas minoritários, mas não foi assinado por nenhum acionista majoritário. Não tardou para que os motivos fossem expostos: descobre-se que os compradores das ações são os atuais acionistas majoritários e uma empresa que se chama Sevillistas Unidos 2020 S.L. [sociedade limitada]. A jogada era clara: estavam comprando todas as ações possíveis a um preço desmedido para, então, possuir uma participação que permitisse deter o controle do clube e, em seguida, vendê-lo pelo dobro do preço. Possuindo uma participação superior a 50%, se multiplicaria o valor das ações para garantir o controle de uma Sociedade Anônima Desportiva com um patrimônio aproximado de 260 milhões de euros. A AUSFC tinha de demonstrar que os acionistas majoritários queriam vender a entidade, pois todos os majoritários defendiam que estavam comprando ações para que o Sevilla FC se mantivesse nas mãos dos sevillistas, mas não para vendê-lo. Por meio do trabalho de especialistas, descobre-se que, para que a compra do Sevilla fosse rentável, uma vez que as ações foram compradas, o mais prático seria vender o terreno onde se encontra o estádio Ramón Sánchez Pizjuán e fazer um estádio novo em um terreno com menor valor urbanístico. Para conseguir desmascarar a venda do clube planejada pelos acionistas majoritários, a AUSFC decide propor em uma Assembleia Geral de Acionistas do Sevilla FC que se “blinde el estadio”, isto é, que, para vender o estádio, seja necessário que se chegue a um acordo de ao menos 75% do

capital social. Para isso, seria necessário reunir os 5% de todas as ações da sociedade e, assim, poder introduzir essa proposta de modificação nos estatutos da sociedade. Para conseguir essa porcentagem, os AUSFC recorrem à Federação de Peñas San Fernando, associação à qual se integram as peñas [torcidas] sevillistas, que entendem a urgência da medida para evitar a venda. Após um duríssimo trabalho das duas associações, consegue-se agrupar quase 6% das ações do Sevilla, e, portanto, introduzem à ordem do dia da Assembleia Geral dos Acionistas o ponto que trata sobre a modificação dos estatutos para que fosse necessário o consenso de 75% das ações caso se quisesse vender o estádio Ramón Sánchez Pizjuán ou a cidade desportiva José Ramón Cisneros Palacios. A Assembleia Geral de Acionistas de 10 de dezembro de 2018 começou com um claro ambiente de tensão: o sevillismo suspeitava que os majoritários estariam preparando a venda do Sevilla, e nesse dia se descobriria a verdade. Chegado ao ponto da ordem do dia que tratava sobre a “blindagem ao estádio”, não se aprovou a medida porque alguns majoritários votaram contrários e outros se abstiveram, diante de minoritários que votaram a favor em massa. A questão estava clara: os majoritários queriam vender. Durante a Assembleia viveu-se momentos de muita tensão e outros muito emotivos, quando os acionistas minoritários apelaram ao sentimento sevillista dos majoritários para pedir-lhes que não vendessem. Ficou ainda mais clara a intenção dos majoritários quando entra no Conselho de Administração um conselheiro desconhecido pelo sevillismo, que representava uma empresa também desconhecida e que havia adquirido 6% das ações: Sevilistas Unidos 2020 S.L. Ficava claro que vendiam, e a quem.

Diante desse entrevero, Accionistas Unidos não pararam de trabalhar. Ainda que a venda não dependesse deles, tinham de lutar para salvar o patrimônio do Sevilla FC, construído graças ao esforço desinteressado dos seus torcedores. Para isso, junto com a Federação de Peñas, Sevillistas e outra associação, chamada Terceira Via Sevillista, recorreram à Câmara Municipal de Sevilla para pedir que se protegesse o estádio. Finalmente, a Câmara de Sevilla emite um acordo em que manifesta sua oposição a mudar o uso do solo do terreno onde se encontra o estádio Ramón Sánchez Pizjuán e que, portanto, se evitem possíveis operações imobiliárias especulativas. Não satisfeitos com isso, Accionistas Unidos seguiram trabalhando por mais proteção do patrimônio sevillista e, para isso, recorreu ao Parlamento de Andaluzia, por meio do qual conseguiu que todos os partidos políticos se pusessem de acordo para realizar uma declaração institucional que também estabeleceu que não seja alterado o uso do solo onde se encontra o estádio Ramón Sánchez Pizjuán ou a cidade esportiva. Essas duas declarações políticas dificultaram que, no caso da chegada de um investidor comprador do Sevilla FC, se pudesse vender o terreno do estádio. Talvez por conta disso ainda não se tenha vendido a entidade. Ao que consta, a operação de compra que os majoritários levaram a cabo durante o ano de 2018 se frustrou, mas a associação Accionistas Unidos del Sevilla FC seguem trabalhando para tratar de manter o Sevilla nas mãos de sevillistas, uma vez que nada garante que os majoritários não queiram vender suas ações a grupos de investimento que não sentem o sevillismo. Atualmente, Accionistas Unidos del Sevilla FC mantêm a sua luta incansável para devolver aos torcedores o que uma lei injusta lhes tirou ao obrigar que os clubes se

convertessem em empresas. A associação propôs diversas emendas à futura Ley del Deporte para que se permita às SAD’s voltarem a se converter em clubes e seja impedida a especulação no futebol, tratando assim de garantir que as decisões dos torcedores se imponham sobre as decisões das empresas e de investidores que se dizem donos dos clubes, isto é, que o sentimento volte a estar acima do dinheiro. Na luta para devolver às torcidas o poder dos clubes de futebol, Accionistas Unidos del Sevilla FC não estão sós. Outras associações de pequenos acionistas como a de Valencia CF, ou de Málaga CF que, neste momento, entraram com um processo contra o presidente do clube, o senhor Al-Thani, para denunciar ante a Justiça uma série de atos de apropriação indébita de recursos da entidade e má gestão. Também se destaca o trabalho da Federación de Accionistas y Socios del Fútbol Español (FASFE). A FASFE é uma associação composta por outras associações, que, por seu turno, desenvolve distintas ações com o objetivo de garantir que o controle dos clubes de futebol da Espanha volte aos seus torcedores. Atualmente, destaca-se pelo trabalho que está desenvolvendo para que a nova Ley del Deporte reconheça direitos dos torcedores e seja mais propensa a que estes tenham um papel mais importante nos órgãos diretivos dos distintos entes que interferem no futebol espanhol.

Clube de Futebol “Os Belenenses”: síntese histórica de um Clube grande e histórico em Portugal

Assembleia de Sócios de “Os Belenenses” (Edgar Macedo & Rui Silva)

O Clube de Futebol “Os Belenenses” (mais conhecido apenas como “Belenenses”) é um dos emblemas históricos do futebol e do cenário esportivo português. Fundado no dia 23 de setembro de 1919 como clube de futebol, o Belenenses cresceu primeiramente dentro da cidade e da região de Lisboa e, depois, em todo o território português como uma associação desportiva de natureza eclética e não sectária, dedicada à promoção do esporte – e do futebol em particular – com base nos mais elevados valores da ética esportiva, ficando célebre entre os seus associados aquela máxima de Mário Duarte (sócio-fundador do clube e primeiro goleiro azul) segundo a qual quem pratica o esporte honradamente ganha sempre, mesmo quando perde.

A gênese do Belenenses encontra-se na zona ribeirinha do ocidente lisboeta, nas atuais freguesias de Santa Maria de Belém e Ajuda, territórios pertencentes à cidade de Lisboa, mas dela separados pelas fronteiras naturais do Vale de Alcântara, Monsanto e Rio Tejo. Os fundadores do Belenenses, entre os quais se encontrava Artur José Pereira, ao tempo considerado o melhor futebolista português, criaram o Belenenses como uma expressão esportiva da identidade local, por meio da qual os rapazes da terra pudessem praticar esportes e disputar com os clubes mais poderosos da capital portuguesa e do país, em particular o Benfica e o Sporting. Assim, e apesar do ceticismo de muitos, o Belenenses não apenas sobreviveu às dificuldades dos primeiros tempos como rapidamente se afirmou como um emblema capaz de lutar pelos mais relevantes êxitos competitivos. Em 1927, apenas oito anos após a sua fundação, conquista o seu primeiro título de Campeão de Portugal de Futebol, que voltaria a vencer em 1929, 1937 e 1946. Paralelamente aos sucessos na sua modalidade mais importante emergem igualmente outras seções esportivas – natação, atletismo, polo aquático, basquete, vôlei, handebol e rúgbi, entre outras – que permitem aos rapazes e às raparigas belenenses não apenas representarem o seu clube como também vencer títulos regionais e nacionais. Em 2019, cem anos após a sua fundação, o Belenenses é um dos clubes mais titulados do panorama desportivo nacional, com títulos nacionais em várias modalidades e em escalões masculinos e femininos. Em algumas modalidades foi, aliás, precursor no sector feminino, desempenhando um papel ímpar na promoção da atividade desportiva em todo o território nacional.

Os sucessos desportivos do Belenenses, o imenso prestígio do clube e de vários dos seus atletas e dirigentes (de Artur José Pereira a Vicente e Matateu, passando por Acácio Rosa) bem como a sua identidade associada e genuinamente popular permitiram ao Belenenses afirmar-se ao longo da sua história como um dos quatro grandes clubes de dimensão nacional em Portugal, num contexto em que boa parte dos restantes emblemas são, independentemente da sua grandeza e palmarés, marcados ou por um bi-clubismo que os descaracteriza, ou por uma implantação local limitada. O Belenenses nasceu como o clube das gentes dos bairros de Belém e Ajuda – territórios onde, de resto, se localizam os espaços históricos da sua afirmação desportiva, como são o Campo das Terras do Desembargador, o Campo do Pau do Fio, o Estádio das Salésias e o Estádio do Restelo –, mas afirmou-se como emblema de dimensão nacional e até internacional, contando com sócios e torcedores, filiais e núcleos espalhados por todo o território português, Europa, África, Sudoeste Asiático e América do Norte. As SAD em Portugal: os negócios roubam o esporte dos torcedores Corria o mês de setembro de 2018 e, no Estádio do Restelo, em Lisboa, numa bonita tarde de sol, defrontavamse dois históricos e antigos rivais do futebol português. Os times do Clube de Futebol “Os Belenenses” e do Atlético Clube de Portugal subiam ao gramado diante de aproximadamente de 4 mil espectadores nas arquibancadas e eram recebidos com os cânticos das torcidas. Do lado dos mandantes, em uma coreografia preparada pela torcida organizada Fúria Azul, lia-se: “A nossa paixão não tem divisão”. No lado dos visitantes, uma faixa sublinhava:

“Juntos contra o futebol negócio”. Era o jogo de apresentação dos azuis do Restelo e assim ficou para trás os tempos difíceis dos dois históricos clubes de Lisboa às mãos de empresas que adquiriram a maior parte do capital do futebol. E, curiosamente, dois dos mais midiáticos exemplos do pesadelo que representam para os associados dos clubes, os designados “investidores”. Um empresário chinês e um ex-administrador da maior empresa de telecomunicações nacional entram em dois clubes. Podia ser o início de uma piada. Mas foi o início de um filme de terror para os sócios e para os torcedores dos dois escudos. E antes do tal jogo de apresentação, do lado fora, entre uma cerveja e outra, cada um deles lamentava a sua sorte. Uns recordando que a SAD não pagava luz, água ou gás e que era o clube quem estava sustentando a atividade deles, outros lembrando quando, no limite da paciência, a SAD encontrou um cadeado na porta para impedir o acesso ao estádio. Para se perceber a história de como os associados tiveram de se unir na defesa do que é seu, é preciso voltar alguns anos na linha do tempo. A chegada da empresa Codecity, de Rui Pedro Soares, ao controle do futebol profissional do Belenenses deu-se no final do ano de 2012, e não demorou muito para que a relação com os associados do clube se tornasse conflituosa. Logo em 2014, o chamado “caso Miguel Rosa/Deyverson” tornou evidente que o tempo em que os torcedores do clube do Restelo podiam questionar temas do seu futebol profissional já fazia parte do passado. Os dois jogadores, titulares indiscutíveis, ficaram de fora do jogo com o Benfica sem que para isso fosse dada qualquer explicação. A pressão dos associados virou-se para a direção do clube, que admitiu publicamente outro sinal dos “novos tempos”: o desconhecimento absoluto sobre os contratos dos jogadores ou em que condições e sob que cláusulas ingressaram no Belenenses.1

Aumentava, assim, a relação conflituosa com os torcedores do clube, ao ponto de chegar a agressões físicas, por parte de seguranças da SAD, a um sócio por este manifestar publicamente a sua oposição,2 e o passar do tempo tornava evidente que, cada vez mais, os torcedores abandonavam o apoio à equipe de futebol profissional por sentirem que ela tinha deixado de representar os valores e a identidade que reconheciam como seus.3 Enquanto isso, aqueles que permaneciam presentes nos jogos multiplicavam as ações de protesto fazendo frente a fortes medidas de repressão por parte da SAD.4 Foi nesse clima de relação insustentável que os sócios do clube, reunidos em Assembleia Geral em fevereiro de 2018, decidiram escolher a única solução possível para manter o orgulho e a identidade de um clube que festeja, em setembro de 2019, o seu centenário: virar as costas à empresa que competia na I Liga e, então, unirem-se no recomeço a partir da última divisão do futebol nacional: a 1ª Divisão Distrital da Associação de Futebol de Lisboa. Curiosamente, o caminho escolhido pelos sócios do Belenenses não andou muito longe do que aconteceu no seu vizinho de Alcântara. O Atlético foi o primeiro clube português a ser adquirido por uma empresa chinesa. Foi em 2013 que a Ainping Football Club Limited, do empresário Eric Mao, adquiriu 70% da SAD. Logo na primeira época passaram quatro treinadores pelo banco e chegavam relatos da ingerência dos administradores da SAD no seu trabalho. Na temporada seguinte, o relato de mais um treinador dispensado, Rui Nascimento, deixava evidente a natureza do problema: “Comecei a treinar com cinco jogadores e continuam a chegar jogadores novos. Por vezes nem sou eu quem os pede, o presidente da SAD coloca jogadores agenciados pela empresa aqui para os valorizar, mas, para isso, tem de haver consonância entre eu e ele, algo que é

muito complicado”, afirmou.5 O Atlético chegou a ter 14 nacionalidades diferentes no plantel. O caso ficaria ainda mais grave quando um relatório da UEFA, intitulado High Risk Warning, apontava o Atlético como um potencial de risco na manipulação de resultados esportivos e Eric Mao como pilar desse gênero de negócios.6 Como ponto de partida para os sinais de alerta estiveram o goleiro Igor Labuts, alegadamente envolvido em 17 jogos suspeitos ao longo da sua carreira, e o médio Ibrahim Kargbo, que foi suspenso por tempo indeterminado pela Federação de Futebol da Serra Leoa por alegadamente ter participado na viciação do jogo entre África do Sul e Serra Leoa, em 2008, válido pela qualificação do Mundial de 2010. Além desses casos, a relação entre a direção do clube e o conselho de administração foi ficando cada vez mais difícil até tornar-se completamente nula, quando este passou a ser composto apenas por chineses – com a particularidade de nenhum deles falar português. Enquanto isso, as dívidas da SAD para com o clube aumentavam, nomeadamente no que diz respeito aos pagamentos de aluguéis das instalações, luz, gás e água. Na temporada 2015/16 foi criada um time B para competir nos Distritais com o objetivo de dar apoio ao time principal, e foi este que acabou por ser adotado como o verdadeiro time do clube, uma vez que o da SAD, apesar da saída da Tapadinha, a casa do clube em Alcântara, e já sem torcedores ou sócios, acabou por cair igualmente para os Distritais. Inscreveu-se, mas, sem jogadores suficientes, acabou por perder por faltas de comparência. Ninguém voltou a ver os investidores chineses em território nacional. No final da temporada 2018/19, nove meses depois do referido jogo de apresentação entre os dois vizinhos, os torcedores do Belenenses e do Atlético voltaram a ter motivos para sorrir e festejar. Ambos os clubes sagraram-se campeões das suas divisões. O Belenenses reuniu 1.500

torcedores no Estádio do Inatel, em Lisboa, para a final na qual triunfou por 3-2 frente ao Bocal, levantando o troféu de Campeão da I Divisão Distrital. O Atlético, por seu turno, reuniu mil torcedores para festejarem, no Monte da Galega, nos arredores de Lisboa, o triunfo como Campeão da Divisão de Honra ao vencer o Negrais na final por 2-1. Rebobinando o filme de terror que representam as SAD para vários clubes do futebol português até a gênese da sua criação em 1997, quando elas foram previstas no projeto de lei, um nome se destaca no seu combate e na visão quase que premonitória que dali resultou. Em julho daquele ano, o jornalista Alfredo Farinha publicava o livro “Futebol Traído e Humilhado – Verdades amargas, palavras ácidas”, no qual, entre outros assuntos, compilava textos dando conta da sua indignação sobre o projeto de lei que criava as Sociedades Anônimas Desportivas no futebol português. Acusando que “isto é um assalto passem para cá os clubes”, Alfredo Farinha questionava a legitimidade da lei e citava a constituição portuguesa para lembrar que ela defende que o “associativismo é livre”. “A partir do momento em que, pela via legislativa, o governo vem impor determinadas regras ao modo como se deve organizar o associativismo desportivo é uma ingerência do executivo. Em democracia isso é inaceitável”, escrevia citando palavras do presidente da Associação de Futebol de Braga, Mesquita Machado. O histórico jornalista traçava, no epicentro do debate sobre as mudanças no futebol profissional em Portugal, na segunda metade da década de 1990, receios que, anos mais tarde, se revelariam absolutamente certeiros: Quando os senhores dos clubes desportivos agora travestidos de sociedades comerciais comuns, entrarem nas instalações desses mesmos clubes, ocuparem os seus gabinetes administrativos, chamarem a si os dossiers dos assuntos correntes, passarem os olhos gulosos pelos troféus conquistados ao longo de décadas, puserem de parte (como as coisas a partir daí sem préstimo) os

ficheiros dos velhos associados, fizerem as primeiras avaliações sobre o valor dos atletas e dos funcionários remanescentes, pensando já nos lucros que deles poderão tirar, ‘vendendo’ uns, despedindo outros, quando, enfim, os novos senhores aparecerem para tomar conta daquilo que o assalto lhes rendeu, Portugal já terá regredido, pachorrentemente, perante a indiferença de um povo já incapaz de tudo, até se indignar, à filosofia político-administrativa do PREC, agora assumida e posta em prática pela inversa: vivam os ricos, os fortes, os que têm o apoio de poder; ai dos pobres, ai dos fracos, dos que só têm por si a força da razão e da moral.

O Belenenses e o futebol-negócio O envolvimento do Belenenses na chamada “indústria do futebol” não se dá por vontade própria e nem tem apoio por parte de seus associados em algum momento da sua história. Tal como aconteceu com muitos outros clubes históricos do futebol e do esporte português, foi o futebolnegócio que se encarregou de ir forçando o envolvimento dos clubes de base associativa no processo de transformação da competição esportiva em negócio e das antigas associações em empresas com pouca ou nenhuma relação com as motivações e os ideais históricos que presidiram a criação dos principais clubes lusos durante as primeiras décadas do século XX. O advento do profissionalismo foi um dos primeiros embates entre um futuro “industrializado” e a primordial natureza associativa do Belenenses. Asfixiado por despesas demasiado elevadas e por um esporte que ia se centrando cada vez mais no dinheiro e cada vez menos no amor à camisa, o Belenenses viveu, durante a fase da institucionalização do profissionalismo no futebol português, acontecimentos que o impediu de acompanhar os seus maiores rivais lisboetas – Benfica e Sporting – durante um período-chave da fixação da massa torcedora e de

crescimento dos principais clubes para fora dos seus territórios naturais de estabelecimento. As dificuldades econômico-financeiras do Belenenses, aqui e ali compensadas com êxitos esportivos e times que honraram a grandeza do clube, nunca foram verdadeiramente extintas e nem compensadas por um crescimento associativo capaz de dar uma maior sustentabilidade à sua atividade esportiva e institucional. Assim, o clube tornou-se dependente das fontes de financiamento por meio das quais os negócios emergentes compraram progressivamente a ruptura entre sócios e gestão do futebol profissional, nomeadamente por intermédio dos contratos televisivos. Assim, quem, em meados dos anos de 1990, se estabeleceu em definitivo por meio da aprovação pela Assembleia da República da chamada “Lei das SAD” veio impor aos clubes a obrigação de constituírem sociedades anônimas desportivas (ou Sociedades Desportivas Unipessoais por Quotas, mais conhecidas por SDUQ) para poderem se inscrever e competir nas divisões profissionais. Sendo certo que nenhum clube foi formalmente obrigado a constituir a sua SAD (ou SDUQ), todos os clubes historicamente envolvidos nas principais divisões do futebol português fizeram-no sob pena de ficarem administrativamente impedidos de participarem nos campeonatos para os quais se encontravam habilitados por mérito esportivo. Foi o que o Belenenses fez no ano de 1999, salvaguardando, todavia, aspectos de enorme relevância: a permanência do seu patrimônio material (nomeadamente o seu estádio e complexo esportivo) e imaterial (nome, marca, símbolo, escudo, hino, lema e história institucional e esportiva) no clube bem como o controle majoritário da sociedade.

De 1999 até ao final do ano de 2012, a sociedade anônima desportiva viveu momentos de maior êxito esportivo (com destaque para a participação na final da Taça de Portugal em 2007) e outros de desastroso desempenho. A lógica própria das “sociedades anônimas desportivas” foi enfim afastando os belenenses do Belenenses, com uma progressiva e cada vez mais acelerada erosão associativa e queda acentuada do número de torcedores presentes no Estádio, o que veio acentuar e dramatizar a situação financeira da SAD e do clube. É precisamente essa dinâmica negativa, agravada pela incapacidade diretiva de trazer de volta os sócios e torcedores ao clube, que culmina na célebre Assembleia Geral de novembro de 2012, quando a direção em poder pede aos sócios uma autorização para negociar a venda da posição majoritária do clube na SAD, pedido que acaba por ser aprovado com 197 votos a favor, 20 votos contra e 27 abstenções. A venda da maioria do capital social da SAD faz-se num contexto eventualmente dramatizado e no qual o Belenenses fica em posição fragilizada diante do comprador. Ao contrato de venda são, todavia, associados dois documentos importantes: um acordo parassocial, que prevê duas janelas de recompra da SAD por parte do clube, e um protocolo de direitos e deveres entre as partes, que permite à SAD, apesar de privatizada, utilizar o nome e do escudo do clube, bem como o Estádio do Restelo. O renascimento de um clube consagrado e popular Entre 2013 e 2017, sucedem-se episódios de natureza e gravidade diversa, que geram, nos associados do Belenenses, uma crescente aversão aos novos proprietários da posição majoritária na sociedade anônima desportiva.

Pouco depois da entrada da Codecity na SAD, ainda em 2013, o presidente do clube demite-se da posição de presidente da SAD e, na circunstância, refere, em declarações públicas, que “em determinados momentos os interesses de clube e SAD não são iguais”. Cerca de um ano depois da compra da posição majoritária na SAD, a Codecity denuncia unilateralmente o acordo parassocial que prevê as duas janelas de recompra da SAD por parte do clube, tornando-se, assim, a entidade proprietária da sociedade pelo tempo que desejar. O seu responsável máximo, Rui Pedro Soares, dirá que planeja presidir os destinos do futebol profissional do Belenenses até os seus 80 anos. E os sócios do Belenenses compreendem, por fim, já sem margem para dúvidas, que todo o cenário que lhes havia sido apresentado em novembro de 2012 não tem correspondência com a guerra decretada pelos novos donos da SAD aos sócios. Entre a Assembleia decisiva e a denúncia do parassocial havia passado apenas um ano e meio. O ano de 2014 é também o da chegada de Patrick Morais de Carvalho à presidência do Belenenses, eleito por estreita margem em eleições disputadas contra o anterior presidente, António Soares. O novo presidente apresenta-se aos belenenses com um projeto apaziguador e declarando a intenção de se entender com os responsáveis da sociedade anônima desportiva, que havia anunciado anteriormente a sua indisponibilidade para dialogar com o último presidente. A ilusão dá lugar à desilusão e o presidente eleito percebe rapidamente que não existe, por parte dos responsáveis da sociedade, qualquer disponibilidade para uma solução que não passe pela submissão dos interesses e dos recursos do clube face aos interesses e ao projeto empresarial da SAD. Em 2017, diante de novas eleições, Patrick Morais de Carvalho apresenta-se aos sócios com a firme intenção de

recuperar a SAD para a soberania associativa, mas deparase, pouco depois, com uma decisão judicial que vem afirmar que a falta de contestação, durante vários anos, por parte do clube face à denúncia do parassocial por parte da SAD, resultou numa espécie de conformação das partes a essa nova realidade. O Belenenses vê-se, assim, impedido de exercer o direito de recompra prometido aos associados ainda em 2012, e novas formas de luta começam a ser equacionadas e debatidas pelos associados. No início de 2018, o Belenenses anuncia que pretende rever o protocolo de direitos e deveres que ainda regula as relações entre clube e SAD. Os sócios tomam a decisão de denunciar o documento e é mandatada uma comissão para negociar novos termos com os proprietários da maior parte do capital da sociedade, atendendo às novas circunstâncias impostas pela decisão do tribunal arbitral relativamente à denúncia do acordo parassocial. Os responsáveis da SAD mostram-se indisponíveis para a negociação e, em declarações públicas, referem-se às decisões dos sócios como absurdas. A bem da verdade, parecem descrentes face à real possibilidade de os sócios e os torcedores levarem realmente adiante a denúncia do protocolo e, sem sequer terem se sentado à mesa com o clube, no verão desse mesmo ano acabam por abandonar o Estádio do Restelo, levando consigo o time que nesse mesmo dia deixou de representar, formal e informalmente, o Clube de Futebol “Os Belenenses”, a sua história, os seus valores e a sua identidade. Virada a página da SAD, o Belenenses concentra-se na reconstrução do seu futebol profissional masculino. Forçado pela Federação Portuguesa de Futebol a reiniciar o seu percurso na mais baixa divisão possível, inscreve-se na 1ª Divisão da Associação de Futebol de Lisboa (a terceira em importância) e constrói um time com base em jogadores da sua formação. No comando do time, além do presidente do

clube que assegura a pasta do futebol, encontram-se Nuno Oliveira (treinador proveniente das categorias de base do clube) e José Taira, ex-jogador do Belenenses e da Seleção de Portugal que brilhou não apenas com a Cruz ao peito, mas também na antiga União Desportiva de Salamanca e no Sevilla. Levado “no colo” pelos sócios e torcedores que voltaram às arquibancadas do Restelo, o time sobe de divisão com 28 vitórias em 31 jogos, 146 gols marcados e apenas 19 sofridos. Na sua caminhada na 6ª divisão em hierarquia nacional, o Belenenses realiza jogos com arquibancada cheia, com destaque para a visita à Amadora e a recepção ao mesmo Estrela, com milhares de pessoas na bancada. No lado oposto da barricada, a sociedade anônima desportiva, separada em definitivo do clube, consegue a proeza de realizar três dos cinco jogos com menos público na edição 2018/2019 da Liga Portuguesa, incluindo o jogo com menos público na história da competição. A Luta Contra o Futebol Moderno: estética ou projeto? Um homem na casa dos 40 anos salta o muro de acesso a um campo de futebol de rua abandonado com uma bola debaixo do braço e uma camisa com os dizeres: “FIFA Máfia”. Uma dezena de torcedores posiciona-se e grita em coro um cântico: “este jogo pertence ao povo, para o inferno futebol moderno”. Surgem imagens de arquibancadas cheias pelo mundo fora, torcedores mais jovens, outros mais idosos, tochas, bandeiras, cachecóis, tambores. Enquanto isso, a música vai avançando: “dizem não à pirotecnia e ver o jogo sentados, não se vê futebol de dia querem que fiquemos calados”. É o videoclipe do tema “Pró Inferno Futebol Moderno” da banda portuguesa

Supporting, que, lançado em 2017, alcançou 20 mil visualizações no YouTube em uma semana. O grupo de músicos junta apoiadores do Sporting Clube de Portugal e alguns dos temas refletem as preocupações dos torcedores que vão assistindo, indignados, à descaracterização do futebol do ponto de vista do associado, como no tema “De Geração em Geração”, no qual voltam atrás no tempo para contar a história de uma criança que vai ao futebol com o seu “Tio Aníbal”: “É dia do clube, compras o bilhete, criança não paga, não há torniquete”. Efetivamente, até o final da década de 1990, era comum, nos estádios de futebol em Portugal, o associado não pagar por um bilhete para assistir aos jogos do seu clube no seu estádio. Quando isso acontecia, era chamado “dia do clube” e, para assistir, era necessário adquirir a “cota suplementar”, designada assim por ser uma contribuição extra ao valor que mensalmente o associado paga. As crianças de até 12 anos tinham entrada livre desde que acompanhadas por um adulto. Um dos rituais desses tempos era posicionarem-se no exterior do estádio a procurar um adulto que não se importasse de acompanhálas de modo a lhes dar acesso. Na mesma música, um pouco mais à frente, lembra-se que “antes de ir à bola vamos ver o Andebol, o Hóquei em Patins ou até o Voleibol”, trazendo a recordação dos jogos de domingo à tarde que levavam o apoio às modalidades de jogo de quadra antes do futebol. Essas letras trazem a nostalgia de tempos que fazem parte do passado e que, no caso português, conheceram a viragem definitiva no novo milênio, sobretudo após a Euro-2004. A construção de novos estádios com o “padrão FIFA”, a implementação definitiva do futebol em canal televisivo pago com a multiplicação de jogos em horário noturno, o advento dos bilhetes de temporada que vieram se juntar ao valor já pago pela condição de associado e a chamada “Lei das Claques”: 7

estas foram algumas das transformações que foram fortalecendo a chamada luta contra o futebol moderno em Portugal. Esta última, em particular, tem sido um dos mais fortes exemplos de repressão aos torcedores. E não necessariamente nas ligas profissionais. No final de janeiro de 2019, em jogo da 3ª Divisão Distrital de Lisboa, a 6ª Divisão numa contabilidade a nível nacional, um forte aparato policial esperava os torcedores do Belenenses, em particular a torcida “Fúria Azul”. A ordem dos “Spotters”, a polícia criada em função da Euro-2004 com o objetivo de vigiar os grupos organizados de torcedores, era a de não permitir a entrada de qualquer objeto, fosse uma faixa ou um simples cachecol, com os dizeres “Fúria Azul”. O argumento apoiava-se na Lei n. 16/2004, que obriga à chamada “legalização” desses torcedores, a qual estes contestam alegando a sua inconstitucionalidade, nomeadamente no que diz respeito à obrigatoriedade de construir um arquivo com os dados pessoais de cada elemento. A solução encontrada foi a de aproveitar uma elevação de terreno para assistir ao jogo no exterior do estádio garantindo dessa forma o apoio ao time. Essa solução foi a mesma que a torcida organizada do Vizela, em jogo disputado no dia 24 de março de 2019, válido pelo Campeonato de Portugal, a 3ª Divisão Nacional, encontrou para contornar o impedimento à entrada dos seus símbolos de apoio. A “Força Azul” assistiu ao jogo contra Maria da Fonte no exterior do seu próprio estádio, aproveitando uma elevação de terreno. A mesma situação se repetiria um mês depois, quando voltaram a se confrontar com a proibição da entrada dos símbolos no seu estádio. A luta contra a “legalização” desses grupos de apoio, apesar de muitas cedências com o passar do tempo,

permanece como um dos maiores bastiões de luta, sendo um dos casos midiaticamente mais visíveis o dos grupos organizados do Benfica que permanecem fieis aos seus princípios. A par dessa batalha, surgem os horários dos jogos e os preços dos bilhetes, ambas questões que conheceram pequenas vitórias por via de iniciativas de torcedores. No primeiro caso, a pressão associativa fez com que a jornada de futebol, que chegou a ser disputada entre quinta e segunda-feira, passasse a realizar-se entre sextafeira e domingo. No segundo caso, a luta pelo pedido de regulamentação dos preços dos bilhetes conduziu a que fossem instituídos tetos máximos e pisos mínimos para os ingressos. Recentemente, surgiu em Portugal a APDA (Associação Portuguesa de Defesa do Adepto), que tem feito a sua voz para vários temas ser ouvida, nomeadamente na utilização de pirotecnia nos estádios ou o preço dos bilhetes. Depois de ter sido escutada na Assembleia da República, quando se discutiu em plenário a “Violência no Desporto”, a APDA organizou, no início de julho de 2019, em Lisboa, a 10ª edição do Congresso Internacional de Torcedores [10th European Football Fans Congress / Football Supporters Europe], no qual, entre outros temas, esteve em foco o livre associativismo no futebol português, particularmente relevante tendo em conta os muitos casos de rupturas entre clubes e SADs. Foram convidados a marcar presença o Governo, a Liga de Clubes e a Federação Portuguesa de Futebol. Nenhum aceitou o convite.

Referências

SAPO DESPORTO. “Belenenses desconhece contratos de Deyverson e Miguel Rosa”. 7 dez 2014. Disponível em: https://desporto.sapo.pt/futebol/primeiraliga/artigos/belenenses-desconhece-contratos-dedeyverson-e-miguel-rosa. OS BELENENSES. “Informação aos Sócios: incidentes em Coimbra”.

4

jun

2015.

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http://www.osbelenenses.com/2015/06/informacao-aossocios-incidentes-de-coimbra/. O JOGO. “Fúria Azul boicota o Belenenses”. 6 out 2015. Disponível

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https://oitavacolina.escs.ipl.pt/as-

duas-faces-do-mesmo-atletico-2/. STUCAN, Costin; BIRD, Michael. “Eric Mao: the Asset Stripper of European Football”. 19 nov 2018. Disponível em: https://theblacksea.eu/stories/football-leaks-2018/eric-maoasset-stripper-european-football/.

Notas [1] SAPO DESPORTO. “Belenenses desconhece contratos de Deyverson e Miguel Rosa”. 7 dez 2014. [2] OS BELENENSES. “Informação aos Sócios: incidentes em Coimbra”. 4 jun 2015. [3] O JOGO. “Fúria Azul boicota o Belenenses”. 6 out 2015. [4] RECORD. “Claque Fúria Azul critica SAD e organiza ajuda para Tondela”. 20 out 2017. [5] OITAVA COLINA. “As duas faces do mesmo Atlético”. 29 jan 2015. [6] STUCAN, Costin; BIRD, Michael. “Eric Mao: the Asset Stripper of European Football”. 19 nov 2018. [7] Nota do revisor: equivalente a “Lei das Torcidas Organizadas”.

Club Universidad de Chile: recuperar o clube para os seus torcedores, superando o fracasso das S.A.

Asociación de Hinchas Azules (Gabriel Ruete, Daniela Tapia, Sebástian Diaz, Santiago Rosselot & Daniel Albornoz)

No Chile, o modelo neoliberal entrou em crise e, juntamente com ele, o mesmo modelo de futebol empresa. Em 18 de outubro de 2019, o povo do Chile foi às ruas para denunciar as décadas de abuso por parte de um sistema implantado em uma ditadura e aprofundado pelos governos democráticos subsequentes. O processo de instauração do neoliberalismo começa em 1980, por meio de uma mudança constitucional que assentou as bases do modelo de livre mercado, reduzindo o tamanho do Estado e iniciando o processo de privatização de serviços básicos que, até então, eram bens públicos. A partir de então, um frenesi começou a privatizar cada mínima parte da sociedade chilena; empresas estatais, água, saúde, aposentadorias, educação: tudo isso foi deixado nas mãos de empresas privadas que

dividiram o Chile entre si sob a promessa de uma administração mais eficiente. No âmbito dessa mesma promessa de privatização, os clubes esportivos profissionais foram a última etapa do processo. Seu ponto culminante encontra-se em 2005, com a transformação deles em sociedades anônimas. Isso aconteceu com a promulgação da Lei n. 20.019 de Sociedades Anônimas Desportivas Profissionais. No caso do Club Universidad de Chile,1 foi a Azul Azul S.A. que obteve a concessão em maio de 2007. Desde então – no curto período de quatorze anos –, essas concessionárias expuseram as falhas da administração privada no futebol. Junto com isso, o futebol e o seu componente social se uniram às diferentes demandas sociais após a revolta iniciada em outubro passado. Em um clima de alta turbulência política e social no Chile, os torcedores e torcedoras têm sido um dos principais protagonistas dos protestos populares em todo o território. Isso não é uma coincidência, uma vez que os eles experimentam em primeira mão as desigualdades do sistema, conhecem a dinâmica de poucas pessoas tomando decisões por todos, sabem como a repressão pode ser difícil quando mudanças estruturais são necessárias. Nesse sentido, a mesma classe política empresarial que foi denunciada por ser abusiva e corrupta é a que hoje administra clubes esportivos. Em La “U”, por exemplo, ocuparam a dianteira pessoas como Federico Valdés (20072012), José Yuraszeck (2012-2014), Carlos Heller (20142019) e José Luis Navarrete (2019-presente). Um argumento à parte é levantado no caso de José Yuraszeck, que foi condenado pela justiça civil no final dos anos de 1990 por dirigir fraudulentamente o processo de privatização da empresa de energia elétrica Enersis no chamado caso “Chispas”. Na mesma linha, outro precedente é o de Carlos Alberto Délano – diretor e acionista da Azul Azul S.A. até 2013 –, que foi condenado por crimes fiscais no midiático

caso “Penta”. Federico Valdés foi acusado de lucrar com o ensino superior à frente da Universidad del Desarrollo, uma instituição de ensino particular vinculada a um setor da direita chilena. A revolta social conseguiu abalar as bases do modelo, gerando uma oportunidade sem precedentes de transformação na história de nosso país. Hoje, o caminho do Chile está sendo redefinido e há vários sinais de que o futebol também fará parte desse processo. O modelo da SA começou a mostrar suas fraquezas, enquanto os processos de recuperação dos clubes, liderados por seus torcedores, começam a mostrar seus frutos. No caso de La “U”, o renascimento do clube em 2019 significa uma nova esperança e uma alternativa concreta para disputar a administração da SA. Sócios, não clientes: de um clube universitário a uma sociedade anônima A história do esporte universitário começa em 1911, com a criação do Internado Fútbol Club, do qual participaram alunos e ex-alunos do Instituto Nacional Barros Arana e do Instituto Nacional. Anos depois, em 1922, foi criado o Club Atlético Universitario e, em 1926, o Club Náutico Universitario, dedicados ao atletismo e à natação, respectivamente. Em 1927, o Club Universitario de Deportes nasceu como resultado da fusão entre o Club Atlético Universitario, o Club Náutico Universitario e o Internado FC2, cuja insígnia continua sendo a coruja usada pelo Club Náutico Universitario.3 A partir desse marco surge o Club de Fútbol Profesional de la Universidad de Chile, entendido como uma ramificação esportiva dentro da primeira universidade do país. Ao longo dos anos, o clube se tornaria um dos mais

populares do futebol chileno. Sua administração esteve diretamente ligada à universidade por 53 anos. Em 1978, tornou-se uma corporação esportiva sem fins lucrativos e adotou o nome de Corporación de Fútbol Profesional de la Universidad de Chile (CORFUCh). A separação do futebol profissional das demais modalidades do esporte universitário da Universidad de Chile ocorre no contexto da ditadura cívico-militar que ocorre no Chile desde 1973. Esse é um dos principais marcos da história da La “U” pois, embora tenha vivido tempos sombrios sob sua administração, ela chegou a ter cerca de trinta mil sócios. No geral, a CORFUCh se preocupava em desempenhar um papel social ativo na formação e no bem-estar de seus jogadores e torcedores, e faziam uso compartilhado de espaços, seja em treinamento para a equipe profissional ou em atividades na sede institucional. No entanto, em 25 de maio de 2007 e após um processo de falência duvidoso sofrido pela instituição nas mãos do Estado do Chile, a administração da La “U” é assumida pela Azul Azul S.A., fazendo com que os sócios e sócias perdessem o direito de participar das decisões do clube. A falência fraudulenta sofrida pelo Club Universidad de Chile faz parte de um processo global de instalação do modelo de futebol de mercado que permeia o futebol chileno por meio da privatização dos clubes. Em particular, o processo da La “U” foi um dos mais controversos. Após a reinterpretação da DFL 1 de 1970, 4 o Estado determina que sejam cobrados impostos pelos prêmios pagos aos jogadores pelas realizações obtidas, que até então não haviam sido pagas. Assim, em 26 de maio de 2006, a Quarta Câmara do Tribunal de Apelações de Santiago decretou a falência do clube por dívidas no valor de 5,7 bilhões de pesos com o Tesouro Geral da República (TGR). Com isso, uma decisão anterior, pronunciada em primeira instância em 2004 pela juíza Jenny Book, foi revertida.

Finalmente, a reunião de credores decide entregar a administração do Club Universidad de Chile a uma concessionária que se encarregará de pagar suas dívidas assim que as regras de licitação dos ativos da instituição forem aprovadas. A defesa da CORFUCh apresentou dois recursos que foram rejeitados pela Câmara Civil da Suprema Corte e, em 18 de dezembro de 2006, foi ratificada a falência final de La “U”. A entrada da Azul Azul S.A. ocorre em 25 de maio de 2007, quando o empresário Carlos Heller Solari – com o apoio da empresa de serviços financeiros LarraínVial, EuroAmerica e o mexicano Octavio Colmenares – recebeu a concessão da Corporación de Fútbol Profesional de la Universidad de Chile em um tribunal falência pelo preço mínimo de 3.333.333.334 de pesos. Em 8 de junho de 2007, o contrato tripartido foi assinado entre o TGR, Azul Azul S.A. e CORFUCh, que termina selando a concessão do clube por trinta anos – prorrogáveis automaticamente por mais quinze em caso de pagamento da dívida. O caso da falência de La “U” é diferente de todos os outros do país. O fato de sua falência ter sido articulada, além da maneira como procedeu, levou a CORFUCh a entrar em um estado de total inatividade, ou seja, seria incapaz de exercer qualquer tipo de ação. Nos demais processos de privatização, os clubes permaneceram ativos, inseridos de maneira minoritária no novo modelo de administração. Para La “U”, a falência deles significava ter perdido o clube, deixando-os sem alternativa concreta para enfrentar a AzulAzul S.A. no modelo de administração que estava começando a ser implementado. A criação da Azul Azul S.A. – uma empresa com fins lucrativos – significou que os aproximadamente 30 mil sócios foram substituídos por cerca de cinco mil acionistas, dos quais cinco atualmente detêm 94,3% da propriedade do pacote de ações (ver Gráfico 1), que concede o poder de tomada de decisão majoritário dentro da concessionária.

Carlos Heller, da Inversiones Alpes, e Daniel Schapira, da Inmobiliaria DSE, são os principais acionistas, controlando 63,1% e 21,4%, respectivamente. Por outro lado, vale ressaltar que a LarraínVial é, por sua vez, o acionista majoritário da Blanco y Negro S.A. – administradora do ColoColo –, enquanto a representação da Sangiovese Ltda. mantém relações familiares com Carlos Heller.

Gráfico 1: Percentual de propriedade correspondente aos cinco acionistas majoritários. Financiero. Fonte: Elaboração própria da AHA com dados obtidos da Comissão para o Mercado Financeiro.

Embora nos primeiros anos após a falência de La “U” não houvesse grandes movimentos, em 2014, José Manuel Edwards – o administrador responsável pela falência – realizou a conta final em que indicou que a CORFUCh não conta mais com qualquer ativo que possa ser usado para cobrir a dívida pendente com os credores. O sonho intacto de recuperar o clube motivou o trabalho de pesquisa de um grupo de torcedores. O resultado desses esforços refletiu-se no fato de, em 18 de outubro de 2016, a Superintendencia de Insolvencia y Reemprendimiento (Superir) apresentar a solicitação formal de demissão no processo de falência, ou

seja, a suspensão do processo judicial de falência da CORFUCh. Após quase dois anos de incertezas, em 14 de setembro de 2018, o Tribunal decretou a suspensão da falência, contra a qual o TGR tenta recorrer sem êxito. Assim, após mais de doze anos de falência, a suspensão definitiva é reafirmada por meio de um certificado emitido em 23 de agosto de 2019. Esse acontecimento representa um marco histórico no desejo de recuperação do clube para milhares de torcedores e, além disso, abre a possibilidade de todos fazerem parte da reconstrução de uma nova CORFUCh. Os torcedores e seu relacionamento com o clube Os torcedores do Club Universidad de Chile têm sido descritos na literatura como um reflexo social do futuro do povo chileno, devido à sua transversalidade e relacionamento íntimo com uma instituição de origem e impacto estatal como a Universidad de Chile. No início, na primeira metade do século XX, era essencialmente composta por membros da universidade, familiares e pessoas próximas de atletas. No entanto, com os clássicos universitários – disputados contra a Universidad Católica, uma equipe que representa a casa de estudos homônima ligada à elite econômica do país, com a qual persiste uma rivalidade institucional –, foram eles que propuseram espetáculos que iam muito além do jogo de noventa minutos, os quais acabaram por se tornar eventos muito transversais e convocadores. A aparição do muito bem sucedido Ballet Azul (apelido do time do Club Universidad de Chile entre 1959 e 1970 por sua maneira coordenada, leve e eficaz de jogar) foi a que colocou La “U” entre os clubes importantes do país e, com isso, a torcida Azul cresceu e encontrou raízes em todos os cantos do Chile e em todas as suas classes sociais.

A era de meados do século XX no Chile marcou um período de desenvolvimento social liderado pelo Estado, com notáveis reformas educacionais, de saúde, de exploração e propriedade de terras para uso agrícola. No esporte, o futebol foi imposto como o maior espetáculo, com La “U” como um de seus principais protagonistas. O golpe de Estado e a subsequente ditadura cívico-militar representou uma profunda intervenção na sociedade, o que também impactou o clube e seus torcedores. A Universidad de Chile foi despojada de todas as suas sedes fora de Santiago e algumas na capital; de muitos de seus terrenos, incluindo alguns de uso esportivo, e o clube viu sua ala de futebol se tornar uma entidade independente da universidade com a criação da CORFUCh. Os laços criados com a universidade deixaram de ser cultivados desde então. La “U” passou de um clube universitário a um time de futebol profissional. Nos anos de 1980, La “U” entrou em constante crise esportiva. Ainda assim, o clube viu como sua parcialidade abraçava a cultura da resistência: estar em toda parte, suportar más condições, maus resultados, com um romantismo exacerbado, com uma identidade que se opunha fortemente à do rival em popularidade: marca a diferença até hoje irreconciliável entre o colocolino imediatista e o torcedor de La “U” que professa amor incondicional. Entre esta década e a seguinte, é construída a história da barra-brava de La “U”: Los de Abajo. Ativa desde 1987, essa torcida organizada adotou a herança dos torcedores da universidade, misturando-a com a cultura argentina barra-brava, na qual inspirou-se em suas canções e práticas, incluindo a reivindicação da violência como meio e a rivalidade com outras torcidas como essência. A partir desse momento, a maior parte do relacionamento institucional dos torcedores com o clube era por meio de Los de Abajo, que estabeleceu-se como

intermediário entre a CORFUCh e qualquer um que dissesse ser de La “U”. Esse relacionamento foi aprofundado com a criação do “socio barra” no final dos anos de 1990, sob a administração de René Orozco. 5 Com essa medida, a associação não era mais à CORFUCh, mas também à torcida. Vale ressaltar que essa categoria de sócios não tinha direito a voto nas assembleias. Até hoje, a maioria dos torcedores de La “U” reconhece Los de Abajo como a principal entidade organizada em seu universo, acima da Azul Azul SA, obviamente, mas também acima da CORFUCh e qualquer outro grupo organizado de torcedores. A década de noventa no Chile também foi caracterizada pela transição para a democracia, na qual os cidadãos remeteram suas tarefas políticas aos partidos do governo e da oposição, distanciando-se amplamente dos espaços de articulação política e social. O futebol não foi deixado à margem disso. Nesse cenário, a CORFUCh tinha dezenas de milhares de sócias e sócios, mas suas assembleias reuniam apenas pouco mais de cem e, ocasionalmente, algumas centenas. O interesse em participar da administração, na concepção de um clube integral, no qual um sócio possa acessar uma série de benefícios e participar de atividades, não fazia parte da rotina diária e segue sem grande relevância entre aqueles que se identificam com La “U”. Isso mostra que a maioria dos torcedores que aderiram à La “U” entre o final dos anos de 1990 e a falência o fizeram por meio da torcida, sem se tornarem membros do próprio clube, e muito menos participar dele. Quatorze anos de falsas ilusões: o fracasso do modelo S.A. no futebol chileno Até o momento, catorze anos se passaram desde a promulgação da Lei das SADP. 6 Nesse período, uma espécie de miragem foi construída no futebol chileno. Ou seja, um

fenômeno que projeta uma imagem que não é real. Uma ilusão de ótica que coloca o nosso futebol nos mais altos padrões internacionais, quando a realidade está longe disso. Esse processo é sustentado por dois eventos particulares que nos permitiram construir essa ilusão. O primeiro deles está diretamente relacionado à La “U”; trata-se da conquista da Copa Sul-Americana de 2011. O único título internacional na história de La “U” veio apenas quatro anos após o início da administração da Azul Azul S.A. O segundo fato é a consagração da “geração de ouro” na equipe nacional, alcançando duas classificações para mundiais (África do Sul 2010 e Brasil 2014) e duas Copa América (Chile 2015 e Centenário 2016). Ambos os eventos permitiram a milhões de torcedores saborear a vitória, algo altamente atípico na longa história do futebol nacional. Da mesma forma, isso permitiu a criação de uma imagem bemsucedida do modelo de negócios no futebol chileno, que permitiu encobrir os escândalos de corrupção – como o movimentado “FIFA Gate” – ou as péssimas gestões em nível local na ANFP. 7 No entanto, nos últimos anos, a miragem começou a desvanecer, revelando o estado precário e preocupante do futebol nacional. A Asociación Hinchas Azules foi categórica ao afirmar que o modelo das empresas de futebol teria consequências fatais para o esporte e para a sociedade chilena em geral. Catorze anos depois da implementação do modelo, pode-se afirmar que existe um mal-estar geral em relação à administração do futebol chileno em termos esportivos, econômicos e sociais. Em primeiro lugar, não é apropriado atribuir o sucesso esportivo efêmero que ocorreu entre 2011 e 2016 ao modelo S.A. Tanto no caso de La “U” quanto da seleção chilena, houve méritos em termos de gestão esportiva, conseguindo formar órgãos técnicos de alto nível. Os técnicos, por suas vezes, tiveram a sorte de liderar grupos

de jogadores muito bons por curtos períodos de tempo,8 alcançando triunfos significativos. No entanto, os protagonistas dessa história, os jogadores de futebol, foram formados pelas antigas administrações dos clubes, e não pelas sociedades anônimas. As grandes referências da invicta equipe campeã da Copa Sul-Americana em 2011 – Johnny Herrera, José Rojas, Marcelo Díaz – eram jogadores que cresceram e se formaram com a mística da CORFUCh, moravam nos alojamentos que o clube possuía para suas categorias de base e cresceram sob o espírito e os valores que representam La “U”. O mesmo aconteceu em nível nacional. As grandes estrelas do futebol chileno – Alexis Sánchez, Charles Aránguiz ou Eduardo Vargas – foram formadas por clubes sociais, ou seja, por entidades sem fins lucrativos. Esse fato está longe de ser uma mera coincidência. A chegada das sociedades anônimas muda o paradigma na formação de jogadores; deixando de focar no processo para focar no produto final. Hoje, os clubes não vislumbram um processo de formação plena das pessoas que o compõem, não buscam impregnar a essência do que um dia foram os pilares do clube. Em vez disso, eles tentam produzir jovens jogadores de nível competitivo para serem negociados a um bom preço no mercado. Para as S.A., vender jogadores jovens tem sido uma de suas principais apostas para cobrir déficits anuais. No caso da Azul Azul S.A., sua política é clara. Eles raramente oferecem contratos profissionais a jogadores jovens. Portanto, antes do surgimento da primeira oferta, eles procuram sair de La “U”. Os mais proeminentes, aqueles que conseguem chegar aos profissionais e ter contrato, são vendidos mais cedo, quando começam a se destacar. Do total de receitas da concessionária, o negócio de venda de jogadores representou 6% em 2018 e 15% em 2017,9 números que não cobriam o déficit naqueles anos.

Dessa forma, La “U” ficou sem referências formadas em casa, portanto, com equipes sem mística e sem líderes identificados com o clube. Isso gerou uma profunda crise esportiva que se reflete em vários anos de campanhas ruins e que, mesmo no final de 2019, deixou La “U” à beira do rebaixamento. Foi o que aconteceu em nível geral. As equipes menores tentam vender seus jovens astros aos grandes clubes, e os grandes – depois de exibi-los em algum campeonato internacional – procuram vendê-los no exterior. Obviamente, isso não teve bons resultados, posto que os jogadores não conseguem consagrar suas carreiras no exterior. No nível de seleção, a mudança geracional esperada nunca ocorreu. Não à toa, o Chile ficou de fora da participação na Copa do Mundo de 2018 na Rússia. No nível local, os clubes nacionais não conseguiram ser competitivos em torneios continentais. Nos últimos sete anos, apenas duas equipes passaram da fase de grupos e se classificaram para as oitavas-de-final da Copa Libertadores,10 refletindo o baixíssimo nível em que o futebol chileno se encontra. Outro fato relevante é que as ex-filiais se tornaram escolas de futebol no estilo de franquias, nas quais qualquer pessoa que paga a licença pode criar uma escola de treinamento de futebol com o nome “Universidad de Chile” sem a necessidade de ter alguma conexão com as categorias de base oficiais do clube. Supostamente, o novo modelo garantiria administração eficiente, mais controle interno, fiscalização externa e responsabilidade legal e financeira para clubes esportivos. Além disso, ele precisava garantir mais recursos aos combalidos cofres dos clubes. Hoje, mais de quatorze anos após a promulgação da lei, estamos em posição de dizer que isso não aconteceu.

Se analisarmos a administração das concessionárias que assumiram os clubes esportivos, veremos que elas deixam muito a desejar. O último período com informações econômicas completas disponíveis para análise é 2018. Naquele ano, no entanto, houve uma anomalia: a venda do Canal de Futebol (CDF) – um canal de televisão com transmissão exclusiva de futebol profissional no Chile – para o conglomerado estadunidense Turner Broadcasting Latin America Latina. Esse marco significou uma renda única de aproximadamente três milhões de dólares11 para cada um dos clubes de futebol chilenos. Pelo exposto, a análise do desempenho econômico dos clubes naquele ano é fortemente enviesada, por isso foi decidido analisar os relatórios anuais apresentados para o ano de 2017. Foram analisadas as 32 equipes que jogaram as duas principais divisões do futebol chileno em 2019. Em 2017, 63% desses clubes apresentaram perdas econômicas. Essa taxa é dividida em 56% para os clubes da Primera A e 69% para os clubes da Primera B. Se os resultados econômicos das equipes analisadas forem somados, as perdas atingem 9,6 milhões de dólares.12 Até as concessionárias dos dois clubes mais populares do país, Azul Azul S.A. e Blanco y Negro S.A., acrescentaram perdas de mais de sete milhões de dólares13 durante o mesmo período.14 Quando se trata de fiscalização externa e mais controle interno, basta analisar o caso do Deportes Concepción, um histórico time de futebol chileno que foi desfiliado do futebol profissional em 2016 por má gestão financeira sob a administração de uma concessionária. Essa equipe não apresentava resultados financeiros auditados desde 2011. Em relação ao controle interno, é incompreensível que a Deportes Concepción, recebedora de empréstimos (irregulares) que somavam 2,170 bilhões de pesos15 durante a administração de Sergio Jadue na ANFP, tenha

sido desfiliada do futebol profissional por ter dívidas de 1,8 bilhões de pesos.16 Outro caso a ser analisado é o da Universidad de Chile e seu estágio de expansão esportiva e econômica entre os anos de 2011 e 2012. Além de conquistar um inédito tricampeonato nacional e vencer a Copa Sul-Americana de 2011, nesse período La “U” vendeu jogadores por mais de 25 milhões de dólares.17 No entanto, 2013 foi o último ano em que a Azul Azul S.A. teve lucros. A partir de 2014, sofreu perdas que totalizam, até o momento, mais de 12 milhões de dólares.18 Mesmo em 2018 – o ano da venda do Canal del Fútbol –, foi o único time da Primera A que apresentou prejuízos. Em 2019, Azul Azul S.A. monopolizou as primeiras páginas da imprensa nacional quando vazou que – como resultado de cortes econômicos – não forneceria xampu para seus jogadores, pois era um artigo de higiene pessoal. Vale perguntar, então, o que aconteceu com os milhões de dólares deixados pela venda dos craques do time titular entre 2011 e 2012. A verdade é que não havia mecanismo de controle interno para impedir que esse dinheiro desaparecesse. Talvez o modelo de gestão imperante queira dizer algo sobre, por exemplo, uma pessoa concentrar o poder de decisão do clube. O caso do Deportes Concepción nos leva ao próximo ponto: responsabilidade legal e financeira dos clubes esportivos. Obviamente, a desfiliação foi o resultado de má gestão por parte dos dirigentes. No entanto, a sanção não foi imposta à concessionária do clube ou a seus dirigentes, mas ao clube esportivo, punindo diretamente o torcedor e deixando os responsáveis sem sanção. É difícil entender a lógica usada pelas autoridades. Quando um clube, administrado por seu pessoal, é mal administrado, o mandato é retirado para ser entregue a uma concessionária. Quando novos administradores apresentam má gestão, o

clube esportivo é punido e os responsáveis são liberados de quaisquer sanções. Em dezembro de 2019, após quase quatro anos de luta e sob a administração de seus próprios torcedores, o Deportes Concepción conquistou o acesso para voltar a competir em nível profissional. Também não se pode dizer que o modelo de sociedades anônimas tenha garantido mais recursos. Grande parte da renda do clube não corresponde a uma boa gestão administrativa, mas provém da distribuição dos lucros do CDF. Segundo o Anuário Financeiro de Futebol Chileno, elaborado pela ANFP, 19 as receitas da televisão para 2018 representaram, em média, 41% da renda ordinária dos clubes. Se fizermos uma análise mais desagregada, podemos ver que esse número chega a 37% nos clubes da Primeira Divisão e 67% dos clubes da Segunda Divisão, sendo o principal item de receita nos dois casos. A estrutura de renda dos clubes de futebol chilenos é heterogênea, havendo aquelas que se concentram no comercial, venda de ingressos e vendas de jogadores. No entanto, um bastião transversal é a renda da televisão proveniente do CDF. Essas receitas não respondem a fatores típicos do modelo de gestão do clube, mas a elementos exógenos associados à indústria da televisão do futebol. O referido anuário omite outras fontes de financiamento às quais os clubes recorrem e sobre as quais há pouca ou nenhuma informação. Por um lado, o Diario Atacama, por exemplo, afirmou que, no final de 2015, nove clubes de futebol chilenos (incluindo dois da Segunda Divisão) deviam 3,7 bilhões de pesos a credores e factoring. Por outro lado, durante o tempo em que Sergio Jadue presidiu a ANFP, houve uma série de empréstimos irregulares associados a clubes de dirigentes próximos a ele.20 Factoring e outras formas irregulares de financiamento no futebol chileno são fenômenos que devem ser investigados e tornados transparentes.

Apesar do aumento dos recursos televisivos já mencionados, o investimento em infraestrutura esportiva realizado nos últimos catorze anos também deixa muito a desejar. Embora muitos dos estádios de futebol chilenos tenham sido reformados nesse período, a grande maioria foi possível graças a um investimento público significativo no contexto de realização de eventos esportivos, como a Copa do Mundo de Futebol Feminino Sub-20 de 2008 ou a Copa América 2015. Vale ressaltar que existem algumas exceções nas quais as mesmas concessionárias investiram em infraestrutura, como o Centro Deportivo Azul (CDA) construído pela Azul Azul SA, o Mosteiro Celeste construído pela concessionária encarregada pelo O'Higgins de Rancagua ou a reforma do estádio Santa Laura pela Universidade SEK, dona da concessionária que administra o clube. No entanto, esses investimentos não garantem patrimônio aos clubes após o término das concessões. No caso do CDA, a infraestrutura pertence ao município de La Cisterna, portanto, a concessionária paga anualmente pelo seu uso. Isso significa que, uma vez que o contrato de concessão da Azul Azul S.A. tenha terminado, o CDA poderá ser arrendado por qualquer outra empresa que colocar o dinheiro na mesa. O exposto oferece alguma luz sobre o desempenho econômico-administrativo do modelo de sociedades anônimas em torno dos eixos em que elas próprias prometeram melhorias. A conclusão é óbvia: as promessas não chegaram. Nessa situação, não demorou muito para que a agitação social se tornasse visível. Os torcedores e torcedoras começaram a se manifestar dentro e fora dos estádios. Eles denunciaram as mentiras do modelo e se opuseram a serem concebidos como clientes. Esse processo de transformação no tratamento de pessoas ocorre assim que o modelo S.A. é instaurado. Sócios, sócias e torcedores são tidos como

acionistas/consumidores. É um processo implementado por meio de uma série de medidas – a privatização de clubes sociais e esportivos e a desarticulação de seu componente social foi a primeira grande jogada. O resto viria novamente articulado pelo poder político. Em 2011, o Ministério do Interior implementa o “Plan Estadio Seguro” (PES).21 Em 2015, a Lei de Violência no Estádio foi alterada. 22 As principais implicações que isso trouxe foram: a regulamentação de implementos, itens de animação e expressões carnavalescas,23 a extensão da lei a eventos e contextos fora do estádio, o reforço de penalidades por ofensas e crimes, a proibição de comparecimento em estádios relacionado a ofensas e crimes (código 101) ou o direito de admissão que as concessionárias reservam arbitrariamente (código 102) e, por fim, no aumento do contingente policial e de segurança privada. Por meio dessas medidas, o modelo possui ferramentas suficientes para excluir qualquer pessoa ou organização que pretenda se opor à estrutura reguladora da lei. A construção das torcidas como inimigo público tornou possível excluir grupos organizados de torcedores de qualquer esfera que envolvesse tomada de decisões. Das administrações em exercício, existe uma posição sistemática para excluir, reprimir e não dialogar com os torcedores. Eles não são considerados como um interlocutor válido. Além disso, eles são tratados como associações ilícitas, ou seja, como organizações que se reúnem para cometer crimes. Na recente revolta popular, o governo Sebastián Piñera24 culpou as torcidas por organizar e financiar a violência nas ruas, sem apresentar evidências confiáveis para validar esses tipos de acusações. As consequências dessa perseguição resultaram apenas em mais conflitos dentro e fora do campo. A lista de proibições de entrada nos estádios está aumentando, as

sanções são mais extensas e a repressão é mais forte. O início de 2020 marcou níveis incomuns nesta área: para garantir o início do campeonato, a ANFP contratou um novo corpo de segurança privada, formado por quase cem pessoas e composto inteiramente por ex-militares ou expoliciais.25 A verdade é que há uma inquietação social em relação à gestão das concessionárias nessa questão e, mais ainda, no tratamento que os torcedores recebem. Esse conflito está longe de terminar, pois não há vontade de buscar soluções participativas. Pelo mesmo motivo, é evidente o apoio à ideia de que esse processo permanente de exclusão levou os torcedores a repensarem suas formas de organização e de ação diante desse contexto de criminalização e repressão. Voltaremos, voltaremos Com a falência e a privatização do clube, devemos fazer uma distinção clara entre a sensibilidade perante os fatos, a posição ética de quem a possuía e, finalmente, as ações tomadas diante da situação. No primeiro, a grande maioria dos torcedores ficou completamente à margem do processo. Tanto a falência quanto a concessão despertaram a preocupação de uma proporção reduzida deles, o que pode ser atribuído a uma cultura de dissociação com a diretoria do clube que precede a falência. No segundo, todas as manifestações de posições perante a falência e concessão eram abertamente contrárias. Podemos citar a de um integrante da torcida Los de Abajo, que dizia: “Lambertini, o que você ganha com a falência de La U?”, uma interpelação a Gianni Lambertini, diretor do TGR e principal demandante da falência da CORFUCh. Nos

fóruns e redes sociais, os comentários sobre esse julgamento foram acalorados, ao contrário do processo, denunciando os interesses da grande comunidade empresarial e dos grupos políticos que agiram a seu favor. A tese de uma conspiração logo se apresentou e se tornou o relato oficial das pessoas que prestaram alguma atenção aos fatos. No entanto, no que diz respeito ao terceiro item, em relação às ações, foram poucas e pouco contundentes. Manifestações foram realizadas, e nada mais. Isso envolve reuniões nos Tribunais de Justiça, cânticos nas 26 arquibancadas, exibição de bandeiras, apoio à candidatura à presidência da CORFUCh por Lino Díaz, com o apoio da ordem oficial, prometendo que a CORFUCh não se tornaria uma SA, tudo isso enquanto o próprio Díaz, como presidente interino após a renúncia de René Orozco, liderou a fraca resistência legal à falência e concessão do clube. As pessoas que decidiram apresentar uma resistência sistemática e organizada se reuniram por meio da Agrupación Socios CORFUCh (ASC), composta por algumas dezenas de sócios e sócias que se dedicaram a estudar legalmente o caso, realizar manifestações, divulgar o que estava acontecendo e manter vivo o fio da resistência. Em suma, os primeiros anos como concessionária foram relativamente calmos para a Azul Azul S.A. Embora estivesse implícito e tacitamente estabelecido que a maioria dos torcedores não se identificava com ela, nem com o modelo de futebol de negócios, não havia resistência orgânica que pudesse realmente ser uma referência antagônica à Azul Azul S.A. A CORFUCh, que nunca foi um espaço dos torcedores, também congelou, consagrando a total ausência de institucionalidade para quem não aceitava a imposição da privatização do futebol.

Após uma atividade de “funa” (protesto) convocada no final de 2013 pela ASC na parte externa do Hotel W em Las Condes, vários grupos de torcedores azuis se reúnem – aproximadamente sessenta pessoas. Desta vez, surge a confiança para elevar a organização da luta pela recuperação do clube a um nível mais integrador, incluindo os grupos que criticam o futebol moderno, mas que não tinham necessariamente uma conexão com a CORFUCh, que estava inativa há sete anos. Assim nasceu a iniciativa de convocar uma grande Asamblea General de Hinchas Azules. Em 4 de janeiro de 2014, essa assembleia foi realizada na sede da Federación de Estudiantes de (la Universidad de) Chile, FECh. A instância teve cerca de cento e noventa participantes. Seu programa foi criado com inspiração no método de trabalho e organização popular elaborado pelo Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil,27 e executado por uma equipe de uma dúzia de profissionais das ciências sociais. Nele, foi realizado um diagnóstico livre e aberto da situação dos torcedores em relação ao modelo vigente, que incluía, é claro, a sociedade anônima, sua administração e a marginalização da administração dos torcedores, o desaparecimento da figura dos sócios e sócias, a participação nula e a falta de um papel social do clube. Da mesma forma, foi tomada a decisão de iniciar um trabalho sistemático a partir desse momento. Essa assembleia foi a primeira da organização hoje conhecida como Asociación Hinchas Azules (AHA). No decorrer de 2014, a AHA formalizou sua organização, convertendo-se em pessoa jurídica sem fins lucrativos. Até hoje, a AHA realizou doze assembleias de discussão e deliberação, criou projetos e tornou-se a organização de referência antagônica à Azul Azul S.A. Suas fundações são baseadas em dois pilares principais: por um lado, a recuperação do clube em termos administrativos e, por

outro, a necessidade de se tornar um clube. Dessa forma, são alimentados aspectos político-jurídicos e aspectos sociais que dialogam constantemente. Seus objetivos gerais e posições oficiais sobre questões mais importantes são acordados ou votados nas assembleias gerais. Sua organização é baseada no trabalho horizontal e coordenado em reuniões semanais, estruturadas em comissões e projetos com alguma autonomia, dentro da estrutura definida em assembleias. Assim, a AHA teve atividades tão diversas quanto expor perante a Comissão de Esportes da Câmara dos Deputados (13 de abril de 201728 e 17 de abril de 2018) no contexto do processamento do projeto que modifica a Lei n. 20.019, ou Ley SADP e que está atualmente no Senado; e expor a história do Club Universidad de Chile em eventos sociais da torcida Los de Abajo. No entanto, a AHA não é a única organização ativa. Embora a ASC não esteja mais ativa, vários grupos organizados persistem. Além disso, eles se multiplicaram em número e se espalharam por todo o país. Assim, hoje existe uma articulação incipiente de quinze organizações opostas à sociedade anônima, entre as quais existem grupos dentro e fora de Santiago, como em Biobío – Gran Concepción, essencialmente – e na região de Valparaíso; escolas populares de torcedores de La “U” em quatro comunas de Santiago, a torcida Los de Abajo em sua facção antifascista, sua coordenação central e a Banda de la Chile – uma banda musical de animação para o time –; a organização feminista separatista Las Bulla, o meio digital El No Oficial, o grupo Estudiantes Azules, formado por estudantes da Universidad de Chile, entre outras. Em grande medida, essa articulação de organizações demonstra que os torcedores da Universidad de Chile reconhecem uma diversidade de espaços em seu seio e

estão percorrendo um caminho incipiente de construção de um clube social em coexistência e coordenação de esforços, realizando atividades conjuntas para diversos públicos. A aparição dessas organizações pode responder ao vazio deixado pela sociedade anônima no papel social do clube, o que ecoa a situação do país: nos últimos anos, a organização social tem sido um fenômeno transversal, poderoso e impulsionador na sociedade chilena, em oposição ao Estado e seu modelo neoliberal, o que reflete em espaços de torcedores de oposição à Azul Azul S.A. Isso supõe um forte protagonismo das gerações jovens: todas essas organizações são essencialmente constituídas por pessoas entre vinte e quarenta anos. Assim, na marginalidade do clube oficial, os torcedores realizam atividades e projetos culturais; o Festival de las Artes Bullangueras, La Historia Es Nuestra, a criação da editora Tucúquere Ediciones. Sócio-comerciais; La Gran Feria Bullanguera. Educacionais; escolas gratuitas e/ou populares: Escuela Comunitaria Los Leones de SN*BK (San Bernardo), Centro Cultural Educazul Pudahuel, Escuelita Libre Puente Alto, Escuelita Libre Calera de Tango. Esportivos; várias ligas de totó da torcida Los de Abajo, oficinas de fitness e autodefesa para mulheres, promovidas por Las Bulla, entre outras. De memória; visitas ao Estádio Nacional, um centro de tortura durante os primeiros meses da ditadura cívicomilitar de 1973, promovidas por Los de Abajo Antifascistas. De construção argumentativa; publicações regulares de colunas de opinião e artigos em várias mídias digitais, algumas publicadas em livros (ALBORNOZ, 2015; 2017), para citar alguns exemplos. No caminho da recuperação, essa força social também se manifestou nas ruas, realizando marchas massivas em 2014 e 2015 e, recentemente, durante a revolta social. Essas manifestações são talvez as que melhor representam graficamente a confluência do social e do político.

Essa força político-social recentemente se concentrou em um ponto-chave da recuperação do clube: o retorno da CORFUCh. Embora seja esse o cenário específico da disputa pela administração do clube, sua relevância não é imediata nem, no momento, massiva. Isso porque as gerações mobilizadas não têm um grande conhecimento de o que é a CORFUCh, o que é consistente com a escassa cobertura da mídia que esse processo possui. Assim, as organizações existentes têm feito esforços de autoeducação e disseminação consistentes sobre esse assunto, tentando permear as grandes massas de torcedores, que ainda vivem sua essência no carnaval da torcida, em atividades sociais espontâneas e sem correlação com o clube ou outros setores de torcedores. Não é a possibilidade concreta de contestar a administração do clube que inflama a fúria do torcedor, mas a péssima gestão esportiva da Azul Azul S.A. e os constantes abusos sofridos nos estádios do país. A construção de uma história consciente, baseada em fatos históricos e resolvida no ethos da torcida azul, é um trabalho de cultivo. Ainda falta muito a ser feito para que seus frutos possam ser percebidos. Entre as organizações articuladas, foi feito um processo de acompanhamento sobre o ressurgimento da CORFUCh. É um território de múltiplas tensões, onde antigas práticas de gestão não são validadas pelas novas gerações, mas ainda são utilizadas pelos grupos de interesse dos sócios da CORFUCh; há uma grande desconfiança em relação aos dirigentes encarregados pela corporação e pouca paciência diante de seus ritmos operacionais, típicos da burocracia estatal e interna (estatutos da CORFUCh), que não são conhecidos pelas novas gerações e, quando são, tornam-se alvo de críticas agudas. Esse cenário evidencia muitas das dificuldades que os torcedores azuis têm e terão refletidas na perspectiva de ter um papel ativo nos espaços deliberativos do clube, como a distância recíproca com a

própria Universidad e a falta de conexão com/ausência de uma cultura profissional de administração de clubes. Em suma, na conjuntura sociopolítica do país e do clube, a AHA propôs uma metodologia de trabalho que visa projetar o clube em uma nova era, criada a partir dos desejos da maioria, e não apenas das elites (sejam elas intelectuais ou econômicas). Essa proposta consiste em um cenário visual que permite que grupos de torcedores construam uma visão crítica do clube atual, classificando os aspectos que devem mudar e propondo as relações que devem existir entre os diferentes atores, próprios ou alheios, mas com influência sobre o clube. O objetivo principal é criar uma imagem coletiva do clube que possa ser projetada no novo cenário administrativo que, por enquanto, tenta se construir a partir da recuperação da CORFUCh e sua potenciação como elemento essencial do Club Universidad de Chile. Conclusões Em um curto período de catorze anos, podemos afirmar que o modelo de sociedades anônimas do futebol chileno entrou em uma profunda crise. Os resultados propostos não foram obtidos em nenhum de seus aspectos – esportivos, econômicos e sociais –, demonstrando que esse modelo não é mais eficiente ou menos transparente. Outros podem dizer que catorze anos não é tempo suficiente para determinar se o modelo falhou ou não. A verdade é que já são quarenta anos de neoliberalismo, tempo de sobra para entender que existem elementos da sociedade que não podem ser privatizados. Clubes esportivos são um deles. Eles não podem ser gerenciados como empresas, pois seu componente essencial é o social e o comunitário. O primeiro sinal foi dado pelo Deportes Concepción em 2016. Seus controladores deixaram a concessionária, e

foram seus torcedores que tiveram de levantar o clube novamente. Em 2019, Nicolás Ibáñez, acionista majoritário da Sport Entertainment International, que controla o Club Santiago Wanderers, prometeu devolver a administração à sua concessionária histórica, ou seja, aos seus sócios. Ao mesmo tempo, processos semelhantes estão ocorrendo em outros clubes. Parece que as concessionárias estariam em processo de retirada, uma vez que não teriam obtido os lucros que esperavam. Quanto à recuperação do Club Universidad de Chile para seus torcedores, a reativação da CORFUCh faz parte desse mesmo processo, o que reserva novidades na administração de La “U” nos próximos anos. O anseio por um clube social, com um projeto esportivo claro, um clube que interpreta a essência educacional e integradora da Universidade de Chile, não colide apenas com a sociedade anônima que hoje o controla. A tarefa de devolver o clube à sua base social coloca desafios também culturais: será necessário criar uma proposta real e solvente que responda aos sonhos dos torcedores, bem como às demandas de uma atividade que trabalhe sob pressão, como é o esporte profissional de alto desempenho. No entanto, o despertar do povo chileno e as múltiplas manifestações de insubordinação, autoconvocação e capacidade organizacional que surgiram desde as gerações nascidas após o fim da ditadura cívico-militar não apenas dão uma luz de esperança, mas também confirmam a convicção de que o caminho para o futebol social está em plena e contínua reconstrução. Voltaremos a ser livres. Voltaremos a ser um clube.

Referências

ALBORNOZ, Daniel; ARROYO, Paola; et al. Rugidos 2014, La Importancia de ser Club. Tucúquere Ediciones, ISBN 978956-9668-02-9, Santiago, 2015. ALBORNOZ, Daniel; BASSO, Yerko; et al. Rugidos 2015, Club o S.A., violencias encubiertas. Tucúquere Ediciones, ISBN 978-956-9668-04-3, Santiago, 2017. ANFP. Declaración pública de la ANFP sobre desafiliación del Club

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content/uploads/2017/03/Memoria-AA-2018_web.pdf. CHUNCHO TV. 18/04/2017. Intervención Asociación Hinchas Azules en Comisión de Deportes CD 13 abr 2017. Disponível em: https://youtu.be/h4PaDcE4eME. CNN. Karla Rubilar aseguró que narcotráfico y barras bravas estarían financiando la violencia. 22 nov 2019. Disponível em:

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del

fútbol

chileno.

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https://www.latercera.com/el-deportivo/noticia/yo-robocopla-nueva-tropa-que-resguarda-el-desarrollo-del-futbolchileno/3HC6OTECANDMDIN6VWV5BABAVU/. LEY

NUM.

deportivas

20.019.

Regula

profesionales.

las

sociedades Disponível

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http://bcn.cl/1uxw6. LEY 20.844. Ley de Derechos y Deberes de Asistentes y Organizadores de Espectáculos de Fútbol Profesional, ex Ley

de

Violencia

en

los

Estadios.

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Notas [1] Doravante, La “U” ou “o Clube”. [2] HERRERA, Eduardo. Historia y efemérides del Internado F.C. y de la "U": fundación del Club Deportivo de la Universidad de Chile, 20 de mayo de 1902, autoeditado, Santiago: 1986.

[3] RABI, Roberto; VILLAFRANCA, Gustavo. Toda la Historia de la “U”. Santiago: RIL Editores, 2017. [4] Decreto com força de lei, 1970. [5] Presidente da CORFUCh entre 1991 e 2004. [6] Lei n. 20.019. [7] Asociación Nacional de Fútbol Profesional. [8] Destacam as fases de Marcelo Bielsa na seleção (20072010) e Jorge Sampaoli, tanto em La “U” (2011-2012) quanto na equipe nacional (2012-2015). [9] Relatório anual da Azul-Azul SA. 2018. [10] Unión Española em 2014 e Colo-Colo em 2018. [11] A taxa de câmbio utilizada foi a média mensal de dezembro de 2018. [12] A taxa de câmbio utilizada foi a média mensal de dezembro de 2017. [13] A taxa de câmbio utilizada foi a média mensal de dezembro de 2018. [14] Isso não significa que, dos 9,6 milhões de prejuízo, 7 milhões são da Azul Azul S.A e Blanco y Negro S.A. Aquele exercício somou perdas adicionais daqueles clubes com

números no vermelho e lucros daqueles com números no azul, resultando em uma perda de 9,6 milhões de dólares. [15] JARA, Matías. “Las pruebas de que los dirigentes del fútbol fueron cómplices del hoyo financiero que dejó Jadue”, 13 mai 2016. [16]

ANFP.

Declaración

pública

de

la

ANFP

sobre

desafiliación del Club Deportes Concepción. 26 abr 2016 [17] A taxa de câmbio utilizada foi a média mensal de dezembro de 2012. [18] O resultado de cada ano foi ajustado pela inflação em fevereiro de 2020 e transformado em dólares usando a taxa de câmbio de 30 de março de 2020. [19] ANFP, 2020 - Anuario Financiero del Fútbol Chileno Temporada 2018. [20] JARA, Matías. Las pruebas de que los dirigentes del fútbol fueron cómplices del hoyo financiero que dejó Jadue. [21] Regulamento da Lei n. 19.327, que estabelece normas para prevenção e punição de atos de violência em instalações esportivas por ocasião de espetáculos de futebol profissional. [22]

Lei

dos

Direitos

e

Deveres

dos

Assistentes

e

Organizadores de Espetáculos de Futebol Profissional, antiga Lei da Violência em Estádios.

[23] Durante os primeiros anos, foram totalmente proibidos. Atualmente, depende de cada parte. Dos jogos disputados em 2020, em apenas um a entrada desses itens foi permitida. [24] Karla Rubilar, porta-voz do Governo, 22 de novembro de 2019 em entrevistas com diferentes mídias. Ver: CNN. Karla Rubilar aseguró que narcotráfico y barras bravas estarían financiando la violencia. 22 nov 2019 [25] LEAL, Ignacio. Yo, Robocop: la nueva tropa que resguarda el desarrollo del fútbol chileno, La Tercera, Disponível em: 15 mar 2020. [26] Por exemplo, “El viejo Edwards va a tener que correr, el viejo Edwards va a tener que arrancar, porque la gente prefiere la muerte a ser S.A.” [o velho Edwards vai ter que correr, o velho Edwards vai ter que vazar, porque as pessoas preferem a morte a ser S.A.], cântico contra o administrador da falência, José Manuel Edwards. [27] Método de trabalho e organização popular, Setor Nacional de Formação MST. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2009. [28] Vídeo da intervenção de Andy Zepeda e Juan Carlos Gimeno, então presidente e vice-presidente da AHA. Ver: CHUNCHO TV. “Intervención Asociación Hinchas Azules en Comisión de Deportes CD 13 abril 2017”, YouTube, 18 abr 2017.

Racing Club de Avellaneda: os torcedores e a mercantilização do futebol

Movimiento “Racing es de su Gente” (Lucía Ravecca)

O gerenciamento do Racing Club de Avellaneda1 teve como contexto um ideário neoliberal próprio da década de 1990, no qual a sua prática oriunda das ideias do Consenso de Washington incentivou uma onda de privatizações no país. Apesar de não ser correto falar de privatização no futebol, uma vez que os clubes nunca pertenceram ao Estado, sempre foram associações civis sem fins lucrativos que cumpriam um papel social de importância no bairro e no seu entorno, alguns políticos, empresários, dirigentes e membros da AFA (Asociación del Fútbol Argentino) tinham como objetivo convertê-los em sociedades anônimas, com a promessa de serem economicamente mais rentáveis. Este é o propósito deste trabalho: analisar as práticas sociais da participação dos torcedores que se definem como não-políticos2 no Racing Club durante os anos de 19982008, período no qual o clube esteve sob gestão “privada”, entendendo como tal a:

incorporação de capitais econômicos no controle da administração das instituições esportivas ou de determinadas áreas das mesmas (por exemplo: pode ser administrado somente o futebol profissional),... e que… em termos jurídicos não implica na dissolução das associações civis. No entanto, esta modalidade tende a suspender os direitos dos sócios que se convertem em direitos do usuário ou consumidor. (MOREIRA, 2006)

Pretendendo também indagar quais conotações uma entidade gerenciada tem em um país onde os clubes são sociedades civis. Sem esquecer que, para interpretar em sua totalidade o processo analisado, será fundamental levar em conta um objetivo central, isto é, quais foram as formas de participação e as práticas políticas dos agentes sociais inseridos na trama cotidiana de um clube social e esportivo com trajetória nacional e internacional. Considerando que o Racing Club é reconhecido como um dos “cinco grandes” do futebol argentino, junto com Boca Juniors, River Plate, Independiente e San Lorenzo. 3 Observar-se-á também que, neste processo, propicia-se uma conversão dos torcedores, vale dizer, de sócios para consumidores. O consumo é o conjunto de processos sócio-culturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a ver os atos através dos quais consumimos algo mais que exercícios de preferências e compras irreflexivas, segundo supõem os juízos moralistas, ou atitudes imorais, tal como se costumam explorar nas pesquisas de mercado. (CANCLINI, 1995, p. 41-45)

Sem esquecer que existiram grupos de resistência, ou seja, sócios que sempre tiveram uma atitude comprometida com a vida política do clube, não só no Racing, mas, como veremos mais adiante, também em outros clubes do futebol argentino. Certos setores do campo futebolístico na Argentina consideravam que, frente à profissionalização do esporte e sua transformação em objeto do mercado, era necessária

uma gestão empresarial que melhorasse as transações econômicas dos clubes, em substituição às administrações com dirigentes amadores. Tais concepções ganharam força no final dos anos de 1990 em um contexto mundial no qual a modernização e a mercantilização do futebol tenderam a impor uma nova forma e gestão, lógica econômica que começou a ser forte nos países centrais da Europa e em alguns esportes específicos nos EUA. Tal concepção sustenta que as instituições sociais e esportivas deveriam ser dirigidas por empresários e que, dessa maneira, alcançariam uma administração positiva, pois só eles eram capazes de realizar transações econômicas com sucesso, tais como publicidade, compra e venda de jogadores, etc., e, portanto, garantiria o rendimento financeiro delas. A gestão do Racing não foi aleatória, muito pelo contrário, foi uma paulatina derrocada de anos sucessivos de fracassos esportivos e econômicos, que chegou ao ponto mais profundo com o rebaixamento à segunda divisão (B Nacional) em 1983. Os dirigentes não só não conseguiam solucionar como aumentavam ainda mais a crise com decisões desacertadas e suspeitas de fraudes. Como consequência de todos esses anos de péssimas políticas, o último presidente eleito antes da “privatização”, Daniel Lalín, 4 por meio da advogada do clube Beatriz Fabre, apresentou formalmente, em 10 de julho de 1998, a quebra do Racing Club junto à justiça. “Não tem dinheiro nem para pagar a luz”, havia dito Lalín. 5 Havia um passivo de US$ 62 milhões, quase 200 processos e penhoras. Em 4 de março de 1999, a Câmara de Apelações de La Plata ordenou a imediata liquidação de todos os bens do Racing Club: jogadores, sedes e estádio. “O Racing deixou de existir”, anunciou a administradora assignada, Liliana Ripoll. Muitos torcedores ressentiram não terem reagido antes, no entanto, em 7 de março de 1999, lotaram o estádio Presidente Perón, apesar de não terem permitido o clube

começar aquele campeonato. Esse dia, o Racing deveria enfrentar o Talleres de Córdoba, pela primeira rodada do Torneo Clausura 1999. 6 O fato perturbador se traduziu em uma mobilização massiva de torcedores que, defendendo as relações subculturais e solidariedades acumuladas de sua participação ativa naquele marco para o clube, se autoconvocaram no estádio apesar de tudo aquilo. Muitos ex-jogadores e apaixonados pelos clubes pediam ajuda para salvar a entidade porque “o amor não quebra” [não vai à falência]. Depois de sucessivas mobilizações no Congresso Nacional, na AFA e nos lugares históricos onde os argentinos se reúnem para celebrar ou reclamar, como a Plaza de Mayo ou o Obelisco, sancionou-se, em setembro de 2000, a Lei n. 25.284, referida ao Regime Especial de Administração de Entidades Esportivas com dificuldades econômicas, a qual tem como principais objetivos: a) Proteger al deporte como derecho social. b) Continuar las actividades que desarrollan las entidades referidas en el artículo precedente, a los efectos de generar ingresos genuinos en beneficio de los acreedores y trabajadores de las mismas, mediante un accionar prudente y económicamente sustentable. c) Sanear el pasivo mediante una administración fiduciaria proba, idónea, profesional y controlada judicialmente. d) Garantizar los derechos de los acreedores a la percepción de sus créditos. e) Superar el estado de insolvencia. f) Recobrar el normal desempeño institucional de la entidad7

Além do mais, em seu artigo 15, assinala as responsabilidades do órgão fiduciário, o qual consiste em um comitê assessor honorário, constituído por associados das entidades, composto de não mais que cinco membros, a

quem poderão solicitar opiniões fundadas e por escrito quando aquele considere oportuno (artigo 9): As pessoas designadas terão as seguintes obrigações: a) Respetar en todas las gestiones los principios de prudencia, austeridad y racionalidad en los gastos conforme a los especiales intereses que les fueran delegados, sobre la base de la confianza y la buena fe. b) Adoptar durante la gestión todas las medidas pertinentes, a fin de no generar nuevos pasivos, procediendo con la prudencia y diligencia de un buen hombre de negocios. c) Prestar la dedicación necesaria y proceder, con conducta irreprochable en la representación de la entidad. d) Determinar las deudas que existan contra las entidades mencionadas en el artículo 1º, de conformidad con el procedimiento establecido en las disposiciones del Título II, Capítulo III, Sección III de la Ley 24.522. e) Dictaminar respecto de todas las solicitudes de verificación de los créditos y privilegios contra las entidades sobre las que haya recaído sentencia de quiebra posterior a la sanción de la presente ley y continuar las actuaciones incidentales y/o cualquier proceso en trámite. En todos los casos se aplicarán las disposiciones del Título II, Capítulo III, Sección III de la Ley 24.522. f) Individualizar cada uno de los bienes fideicomitidos y determinar el valor realizable de los mismos en oportunidad de cada distribución. g) Elaborar el presupuesto anual de ingresos y egresos, no pudiendo apartarse del mismo, salvo que por razones de fuerza mayor o caso fortuito, el Juez determinara hacerlo, a fin de no agravar la situación de los acreedores ni de la institución comprometida. h) Designar al personal técnico y administrativo necesario para el funcionamiento institucional. i) Realizar mediante licitación, toda contratación de servicio que supere el giro ordinario de la administración para el normal funcionamiento de la entidad. j) Presentar al Juez un informe trimestral sobre los avances de la gestión, bajo apercibimiento de ser considerado su incumplimiento, causal de mal desempeño del cargo. En el primer informe que se

presente, deberán expedirse con respecto a todos los contratos pendientes, debiendo opinar sobre su continuación, resolución o renegociación. k) Rendir cuenta al Juez sobre el estado del patrimonio fiduciario, con la periodicidad que aquél fije, la que podrá ser también solicitada judicialmente por los acreedores y socios de la entidad. l) Instruir sumarios administrativos, a las tres últimas administraciones de la entidad, siempre que existan presunciones de la comisión de actos u omisiones contrarios a las leyes, estatutos y reglamentos, de los cuales puedan derivarse un perjuicio contra la entidad involucrada, debiendo garantizarse en todos los casos, el derecho de defensa de los sumariados, conforme las leyes procesales vigentes en cada jurisdicción. Dentro del plazo de noventa días deberá: I. Dictar una resolución conteniendo los siguientes puntos: I.I Existencia o no de la irregularidad. I.II Carácter de la misma. I.III Identificación de los responsables. I. IV Apreciación del monto del perjuicio. II. Iniciar las acciones penales y civiles que correspondan. (ibid.)

No contexto enunciado, em 29 de dezembro de 2000, coberto de muitas irregularidades, foi outorgado à empresa Blanquiceleste S.A o controle do Racing por 10 anos, com opção de renovação por mais 10 anos. Entretanto, a tentativa falha de transparência e crescimento se fez evidente em um curto tempo. Após a conquista do Torneo Apertura 2001, no qual o clube consegue voltar a ser campeão depois de 35 anos, começa a ser percebido o descumprimento das promessas por parte da empresa que geria o destino do clube. Esse é o momento no qual novamente o torcedor reclama uma mudança profunda, pede por uma “democratização”, a revogação da gestão e exige uma transparência empresarial que a Blanquiceleste S.A. nunca teve.

A origem dos clubes como associações civis sem fins lucrativos As primeiras agremiações esportivas da Argentina se instituíram no final do século XIX (Gimnasia La Plata, em 1887; Banfield, 1896; Estudiantes de Buenos Aires, 1898; entre muitos outros). A grande onda de fundações se deu nas primeiras duas décadas do Séc. XX (River Plate, 1901; Atlético Tucumán 1902; Gimnasia y Tiro de Salta, 1902; Racing Club, 1903; Almagro, 1911; Aldosivi de Mar del Plata; 1913; Lanús, 1915; etc). O clima da época favorecia à criação de associações, como destaca Julio Frydenberg. O futebol, assim, costumava ser praticado em escolas ou dentro de alguns clubes que não se dedicavam somente ao esporte. Sobretudo em lugares com forte presença de cidadãos britânicos, como nas empresas ferroviárias. É nesse contexto que, em 1886, começa a prática do futebol nas oficinas dos trens em Junín (Província de Buenos Aires), com jogadores que pertenciam à numerosa comunidade britânica radicada na cidade. O antecedente, somado ao cada vez maior interesse dos jovens à prática, gerou a criação de um clube para formar um time e competir com outros semelhantes no espaço do futebol apaixonado. [...] A tradição associativa vem de uma prática muito antiga, que se cristalizou em nosso país no final do século XIX, como iniciativa de todos os grupos sociais: da colônia inglesa se promoveu a associação, as corporações empresariais o fizeram, os sindicatos dos trabalhadores, quase todas as correntes políticas promoveram o associacionismo, os agrupamentos imigrantes nas suas sociedades de socorros mútuos, as associações de moradores ou sociedades de fomento, as bibliotecas populares, os clubes de futebol, e mais tarde os clubes sociais e esportivos… Ou seja, todo o final do século até as primeiras décadas do século XX, se viveu a plenitude da vida social organizada nas associações... (FRYDENBERG, 2001)

Um grande movimento fundacional no âmbito de clubes se desenvolveu no marco de um projeto de país de notáveis e seu objetivo era cumprir as necessidades que o Estado não tinha interesse em realizar. Esses precários times com somente 11 participantes foram mudando e passaram a ser mais amplos, com um grupo mais ou menos estável de seguidores, dando lugar a instituições que promoviam outro tipo de atividade social além da prática estrita do futebol. Todos eles começaram a cobrar mensalidade, realizar reuniões ordinárias e assembleias de sócios a fim de que todos pudessem participar da tomada de decisões. A necessidade de ampliar a massa societária, seja pela própria paixão pelo futebol ou pela promoção de múltiplas práticas, começa a ser chave nesse processo de consolidação. Embora várias entidades tenham sido criadas, também foram inúmeras as que se extinguiram antes de poderem se consolidar. Com o passar do tempo, começou a se difundir em outros setores da sociedade. Assim, o futebol iniciou seu processo de popularização, sua prática começa a ser ressignificada por indivíduos das camadas médias e baixas, rompendo com o monopólio de jogadores ingleses, criandose instituições esportivas nativas. Nesse aspecto, Racing Club foi pioneiro, pois, em 12 de maio de 1901, um grupo de estudantes do Colégio Nacional Central fundaram o Football Club Barracas al Sud com a particularidade de ser o primeiro clube argentino fundado integralmente por cidadãos locais (criollos), diferentemente dos anteriores, fundados por britânicos. Barracas al Sud e Colorados Unidos se fundiram em 25 de março de 1903, conformando o nosso objeto de estudo. 8 O pertencimento a um lugar, as rivalidades, o espaço para compartilhar com os amigos e a valorização do jogo foram algumas das motivações que levaram muitos jovens

da época a criar numerosos clubes esportivos que, por sua vez, canalizaram esses sentimentos. Na década de 1930, sucedeu-se uma série de acontecimentos que derivou na profissionalização do futebol, apesar de que este não era o objetivo da greve iniciada pelos jogadores da Liga Oficial ao finalizar a temporada de 1930, em abril de 1931. Eles só exigiam a liberdade de passar de um clube a outro sem a necessidade da autorização de ambas as instituições, somente contando com a aprovação do espaço que os recebessem. Produto desses avanços modernizadores, os treinadores e dirigentes se converteram nas figuras centrais do espetáculo, impondo a ordem e a disciplina que consideravam necessária para “progredir”. O objetivo primordial era imitar os valores culturais que as leis do mercado exigiam para a prática esportiva com o fim de obter o máximo de rentabilidade econômica e a maximização de lucros em um avanço constante da mercantilização. Os jogadores se moldaram às modernas formas de exploração capitalista. Dessa maneira, durante a década de 1990 se produziram novas técnicas relacionadas com a medicina no esporte com o fim de dominar o corpo dos participantes em aspectos como acelerar o tempo do jogo para obter maior lucro e, assim, transformar os jogadores em atletas com movimentos automatizados. O impacto dos passes interclubes, fruto do novo posicionamento sobre o mercado esportivo, também começou a ser notado no desenraizamento, o qual se acentuava quando os jogadores emigravam de uma instituição a outra em períodos cada vez mais breves. Segundo Hector Palomino, o significado social dos clubes não está divorciado dos interesses, o que pode ser compreendido melhor por meio da noção de capital social.

Bourdieu define o capital em geral como “uma força dentro de um campo” ou “energia da física social”. Nessa noção, inclui-se todos os bens materiais e simbólicos. Embora existam tantas formas de capital como campos, Bordieu (1986) distingue quatro tipos principais de capital: econômico em um sentido estrito, cultural, social e simbólico, os quais podem se converter nos demais tipos de capital. A distribuição dos diferentes tipos de capital é o que configura a estrutura do espaço social e determina as oportunidades de vida dos agentes sociais. Em sua perspectiva, o capital (em todas as suas formas) é equivalente ao poder, e a sua distribuição configura a estrutura social. Embora os clubes sejam um espaço gerador de capital social, eles também são capital simbólico, pois são criadores de laços de identitários, sentimentos comuns e espaço para o estabelecimento de crenças e valores. No entanto, o aspecto que se destaca nos anos do final do século XX e do início do XXI é a parte negativa da administração, a falta de transparência dos líderes que manipularam o caráter de associação civil para seu próprio enriquecimento e todo tipo de arranjos fraudulentos. Isso facilitou para que muitos apontassem a privatização dos clubes como a única solução viável para a purificação institucional, ou seja, o modelo ideal proposto foi o da sociedade comercial transferindo os negócios do futebol para sociedades anônimas, sob a crença de que esse tipo de fórmula garantiria a transparência e possibilitaria o saneamento de suas finanças. No entanto, o que não foi questionado foi se as empresas na Argentina realmente cumpriam esse ideal de boa gestão. A chegada de Carlos Saúl Menem instaurou um novo modelo de país: neoliberal, privatista e com grandes empresas suspeitas de corrupção. No nível relacionado ao assunto abordado, como destaca Ariel Scher (2010, p. 535),

o primeiro mandato de Menem foi marcado pela Ley del Deporte, que foi definida como “a mais peronista” do menemismo. Em sua segunda etapa, a grande aposta foi no alto desempenho e na multiplicação de clubes privados. Os anos de 1990 também geraram um baque na imprensa especializada e, consequentemente, na maneira de transmitir as atividades. Em agosto de 1994, o Grupo Clarín e o Torneos y Competencias lançaram o TyC Sports, um canal a cabo com programação esportiva ininterrupta. O próprio Grupo Clarín revolucionou o mercado ao lançar, em 1996, o primeiro jornal com uma alta porcentagem de conteúdo futebolístico: o Olé. Um fato marcante da época é a espetacularização da prática, em que os jogadores se tornaram habitués dos novos programas de especialistas na condição de “participantes do painel”. Nas palavras do campeão mundial argentino na Copa de 1986, Jorge Valdano, o jornalista armava no esporte “um espetáculo dentro do espetáculo”. As privatizações na área estatal e a entrega total de futebol ao mercado privado são os dois lados da mesma moeda. O historiador da Universidade de Buenos Aires, Luis Alberto Romero, apontou em 1994: “Na Argentina houve, nestes últimos vinte anos, uma verdadeira destruição do Estado, operada pelo próprio Estado. Houve um esforço sistemático para afastar funcionários eficientes, desmontar escritórios, perverter normas e instalar a corrupção.” Por outro lado, Vicente (p. 54) sustenta que: Na época da privatização da YPF, um dos principais patrimônios nacionais, a população ofereceu uma débil resistência. No entanto, quando a Justiça determinou a liquidação dos ativos do Racing após sua falência, pontualmente a sede de Villa del Parque, a sociedade de torcedores [...] se mobilizou ferida em seu orgulho para evitar um desmanche institucional. E conseguiu. O sentimento por uma camisa desencadeou uma resistência que não foi expressa de maneira tão enfática no momento de ‘vender’ uma das empresas estatais mais emblemáticas.

Com o objetivo de seguir a experiência (nem sempre favorável) dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Itália, França, Espanha, Grécia, Holanda e Alemanha, no Brasil a chamada “Lei Pelé”9 forçou os clubes a se tornarem sociedades anônimas antes de abril de 2001, o que ajudou a facilitar a entrada de grandes grupos econômicos internacionais na América Latina, procurando transformar entidades em Sociedades Anônimas Desportivas (SAD). O projeto de inserção das SADs é um reflexo de dois interesses conflitantes: por um lado, o papel social e cultural que os clubes de futebol historicamente tiveram e, por outro, a preservação da importância dos lucros. Nem por isso negaremos que ambas as práticas possam coexistir no modelo de associação. De fato, é isso que está acontecendo hoje, quando os clubes ainda mantêm associações civis com departamentos de marketing, de publicidade e de treinamento para seus líderes no campo dos negócios. Na Europa, a grande maioria dos países adotou uma medida semelhante, dando liberdade aos clubes para se tornarem empresas comerciais pertencentes a empresas econômicas ou permanecerem como associações civis sem fins lucrativos. Na Itália, por exemplo, isso aconteceu em 1981, com a promessa, por parte do Estado, de exercer um forte controle. A crença de que a transferência para o formato de empresas limparia a economia fez com que todos escolhessem um novo modelo de negócios. Um dos casos mais emblemáticos é o do Parma. Nos anos de 1990, o clube da região de Emiglia-Romagna foi um dos melhores. Seu dono, o magnata da empresa de laticínios Parmalat, Calisto Tanzi, assumiu o clube, conseguindo o acesso à primeira divisão em 1990, de onde iniciou uma série de sucessos esportivos, incluindo a conquista de duas copas da UEFA. Em 2003, a Parmalat entra em falência e o destino de Parma não foi diferente. O clube começou a vender seus jogadores e entrou em um declínio esportivo que levou à

queda para a Série B na temporada 2007-2008. Após idas e vindas, um juiz de falências colocou o clube à venda, mas não foram encontrados compradores, então ele começa a jogar na quarta divisão da Itália sob o nome de Parma 1913. Na Espanha, por outro lado, um sistema optativo foi aplicado, como na Itália, mas as associações civis persistem, incluindo Real Madrid CF, FC Barcelona e Atlhetic Bilbao. A Associação Argentina de Futebol (AFA) assumiu uma posição clara sobre o assunto em 25 de agosto de 1998. O Comitê Executivo rejeitou por unanimidade a possibilidade de converter em SADs os clubes de futebol que participavam de torneios profissionais organizados pela essa entidade. No entanto, como descrito por Nestor Vicente, Mauricio Macri, então presidente do Boca Juniors, e Fernando Miele, líder do San Lorenzo de Almagro, defenderam a onda de privatizações. Ambos argumentaram que a inserção das SADs era a única alternativa para sair da crise em que estavam imersos. De outro lado, Raúl Gámez, ex-presidente do Vélez e o ex-presidente do Lanús, Emilio Chebel, defenderam a existência das associações civis, sendo esses dois clubes economicamente saudáveis e com excelente desempenho social e esportivo. Alejandro Wall relembra uma situação que ocorreu em uma reunião de executivos da AFA: [...] Na Argentina, (as SADs) não tinham muito lugar. Em 1999 aconteceu uma assembléia, uma reunião muito grande do comitê executivo na sede da AFA em Ezeiza, onde Macri (presidente da Boca na época), entre outros, queriam criar empresas esportivas. Havia até um projeto de lei de Daniel Scioli, que não estava naquela reunião. Macri perde a votação em uma manobra de Grondona10 que diz ‘eu vou apoiá-lo’, mas arranja o contrário com toda a assembléia. Finalmente, o macrismo perdeu e Grondona diz ‘perdemos’, fazendo-se de bobo, quando manipulou a assembléia,

mesmo dizendo que apoiava Macri. Grondona nunca parou de avançar sobre os privados, porque isso significava uma perda de poder, ou seja, ele não o fez por uma razão ideológica para defender os clubes – ele vai dizer que sim – mas é verdade que ele tinha sido fundador de clubes. Era um dirigente típico que fazia parte da corporação de dirigentes do futebol que viu o avanço de empresas privadas que vinham com dinheiro como uma forma de lhe tirar o poder e foi por isso que ele sempre freou esse pessoal. Freou para manter o controle do futebol. Mesmo naquele aperto, ele nunca permitiu empresas privadas...11

A ideia de modernizar uma instituição esportiva visava, acima de tudo, seu aspecto organizacional e o fortalecimento de sua imagem em relação a outros clubes, tanto nacional quanto internacionalmente, seduzindo grandes empresas de capital para patrocínios. Outra das novas estratégias foi posicionar os clubes como marcas registradas no mercado. Para isso, criaram departamentos de marketing com anunciantes capazes de aumentar o número de associados, a venda de camisas e todo o merchandising possível: desde guloseimas com o escudo da equipe, passando por utensílios do lar até as roupas do clube, todos com o logotipo oficial. Isso implicava não apenas uma modernização institucional, mas também gerencial, ou seja, o perfil dos novos dirigentes não respondia mais ao de uma pessoa com trabalho anterior e herança familiar no clube. Buscava-se um perfil de negócios com o objetivo de reduzir perdas e maximizar lucros. É importante ressaltar que “essa pretensa gestão não pode ser separada da apropriação que as indústrias culturais fizeram do futebol (...)” (GIL, 2000). Ele é tomado como uma mercadoria, como uma entidade econômica que gera mais-valia e se torna outra parte do monopólio capitalista que constantemente pretende criar novos mercados a fim de expandir o desempenho econômico, gerando, como em todas as áreas, exclusão no consumo do espetáculo esportivo.

Para fortalecer esse processo de concentração econômica no esporte argentino, era fundamental a privatização ou o gerenciamento (ou seja, uma privatização secreta). O exemplo mais midiático e notório é a falência e sua posterior aplicação no Racing, mas também há os casos do Boca Juniors e do Quilmes Athletic Club. O primeiro começou em junho de 2000 com um acordo com a empresa ISL, embora os dirigentes falassem sobre terceirização na exploração de marketing (empresas privadas contribuíram com dinheiro em troca de fazer seus próprios negócios). Por outro lado, no Quilmes, o Grupo Exxel assumiu uma administração mais “tradicional” ao assinar um contrato por 10 anos a fim de limpar o clube em troca de porcentagens nos passes dos jogadores e em todas as vendas que não tivessem a ver com o marketing dos jogadores. O San Lorenzo de Almagro, depois de uma crise muito profunda, em novembro de 2001 também estava prestes a ser privatizado, mas seus torcedores e parceiros se organizaram e evitaram que isso acontecesse. Por isso, comemoram, no dia 30 de novembro, o Dia do Torcedor do San Lorenzo. Marcelo Betbese, mais conhecido como Marcelo Stone, um membro e um dos fundadores do Racing Stones, que era um grupo de torcedores que ajudou a construir a sede Tita Mattiussi para treinar as divisões inferiores, diz: Os torcedores do San Lorenzo resistiram à privatização. Os do Independiente também. Os torcedores do Racing são os melhores nos dias de jogos, mas os piores fora deles. Ele não se importa com nada. Ele quer vencer, ele quer que a bola entre. Sempre fomos assim. Nós não defendemos o clube. É por isso que se aproveitaram de nós. Porque fizemos três por cento do que deveríamos fazer. E não foi suficiente.12

A sede Tita Mattiussi

No livro “Academia, Carajo!”, Marcelo relata que um dia leu no jornal Crónica que as categorias de base do Racing não tinham onde treinar e pensou que “algo tinha de ser feito”. Procurou lugares até conhecer um terreno que pertencia ao Ferrocarriles Argentinos, que o tinha em litígio judicial com o Club Argentino de Rugby. Posteriormente, em 8 de setembro de 1999, chegou-se a um acordo entre os clubes para distribuir o espaço físico. Os sócios trabalharam arduamente e formaram uma cooperativa para proteger o patrimônio, uma vez que os ativos de Ferrocarriles ainda estavam sob o risco de leilão. Foi uma espécie de resistência, que era o lugar social do Racing, diante da situação em que um clube era dominado por uma empresa, por uma sociedade anônima. Neste caso alviceleste, o lugar simbolizava o contrário: simbolizava os sócios colocando esse setor do clube para funcionar. 13

Marcelo se tornou o primeiro presidente da cooperativa por unanimidade. Antes ou depois dos jogos, eles começavam a trabalhar, faziam sorteios, rifas, doações, jantares. Gustavo Costas e Fernando Quiroz, dois exjogadores e ídolos do clube, ofereceram seus nomes para uma conta bancária. O progresso foi feito lentamente, mas eles puderam construir o primeiro campo e, gradualmente, a construção da sede foi iniciada. Os Stones, além disso, foram um dos grupos que organizaram os escrachos a Gorostegui14 no momento da falência, assim como o Movimento Democrático Racinguista (Modera) e Sócios autoconvocados da Associação Civil do Racing Club (SARCAC). Enquanto esse pequeno grupo de torcedores resistia e continuava seu trabalho, a chegada do gerenciamento estava se formando. Lá, Marcelo terminou sua luta: [...] foi um esvaziamento completo, eles nos fizeram acreditar que seríamos rebaixados. Mas eu preferia um clube na Primera C e

digno. Em vez disso, vendemos grandeza, dignidade, cantaram para nós que éramos uma empresa e eles estavam certos.

O exposto, juntamente com problemas pessoais, levou-o a se afastar e ir viver no Brasil. Uma das referências mais emblemáticas da resistência deixou a luta. Em seus oito anos de existência, a Blanquiceleste S.A. teve: dez pedidos de falência, outros tantos julgamentos sumários, ordinários ou executivos e a comprovação de que a sociedade anônima presidida por Fernando De Tomaso (último presidente, o anterior havia sido Fernando Marín) emitiu oitenta cheques sem fundos entre maio de 2007 e maio de 2008, por valores que, em vários casos, ultrapassaram 300 mil pesos. A última etapa foi dramática. Nem mesmo a ideia de continuidade harmoniosa permaneceu entre os parceiros que a criaram. Marín iniciou um processo judicial executivo contra De Tomaso em 22 de fevereiro de 2008. Enquanto isso, o Racing ainda era controlado por uma empresa insolvente com um projeto que há anos era falho e que não tinha mais credibilidade. “O Racing é o campeão da impunidade”, declarou ao Diario Perfil, em 13 de outubro de 2006, Oscar Cribari, principal referência da SARCAC, uma entidade que contava com alguns dos torcedores mais críticos do gerenciamento, sendo aqueles que acusavam a gestão econômica da empresa que dirigia o Racing. Cribari argumentou que “nem o judiciário nem o poder político deram respostas suficientes para resolver os problemas do clube”. 155 Entre outras questões, Marín foi acusado de privatizar todas as atividades extrafutebolísticas, que, geralmente, exigem o pagamento de uma quantia adicional sobre a cota. Um dos erros fundamentais é que Marín esquece o torcedor, esquece o sócio, usa-o como cliente, não como um parceiro. É preciso consultá-los, perguntar quais são as necessidades deles. Para um cliente você presta um serviço e pronto, e eles nunca consideram o sócio da mesma forma. Por isso, houve um abismo

entre Blanquiceleste e o sentimento do torcedor do Racing. Havia pessoas que não gostaram do campeonato de 2001. Os caras que trabalharam no prédio depois do gerenciamento nem queriam que a gerência entrasse na propriedade porque eles disseram que, se este for o nosso, vão roubar o prédio de nós. Eu vi a final do túnel e dizia que iríamos criar um clube em separado, vamos ficar fora da história. (Ex-dirigente)

Segundo o ex-dirigente entrevistado, a participação dos sócios é limitada até hoje. Ele acrescenta que isso não começou exclusivamente após o estabelecimento da Blanquiceleste S.A. É um processo que começou com Juan De Stéfano,16 presidente da Academia, durante dois períodos anteriores à sociedade anônima, especialmente com a incorporação da empresa New Argentine Clubs, à qual deu o controle absoluto das instalações recreativas da sede da Avenida Mitre, na cidade de Avellaneda. Ainda trabalhando com essa organização, hoje com outro nome, regula as instalações e os racinguistas não podem acessar nenhuma atividade a menos que sejam sócios da empresa que possui o controle e a administração. Nós nos recuperamos muito, mas hoje o sócio não tem muito espaço. Já existia antes do Marín o que se chamava New Argentine Clubs e, depois, Racing 2000. Houve uma dissolução do New Argentine Clubs, e os proprietários, não me lembro o nome do grupo, são os donos atuais de Meglaton e do Sport Club. O Racing ficou com o Megatlon. Me parece que foi Juan De Stéfano quem fez um contrato com esses New Argentine Clubs. Eles receberam a operação da academia em troca de melhorias na sede. Havia poucas atividades amadoras, um clube devastado econômica e socialmente desde antes do gerenciamento. (Ex-dirigente)

Com o gradual afastamento da experiência fracassada, iniciou-se um período de formação de agrupamentos e candidaturas para a presidência a fim de governar o Racing Club por três anos, de dezembro de 2008 ao mesmo mês do ano de 2011. Muitos dos que iniciaram um processo militância política foram os jovens que, no final de 1999, formaram uma cooperativa para que o clube tivesse uma propriedade, a fim de dar um espaço de treinamento às

divisões de base. É o caso de Pablo Podesta,17 que foi um dos presidentes da cooperativa, e Rodolfo Molina.18 Não obstante, houve muitos participantes diretos na resistência que escolheram continuar trabalhando para a instituição, mas não por intermédio da política, como Pablo Delpiero. Pablo colaborou na Tita Mattiussi e formou a comissão dos torcedores, encarregada pelo transporte quando jogavam como visitante. Em 2009, o plano do gerenciamento decidiu formalizá-los e atribuir-lhes o caráter de um departamento, no qual Pablo se tornou o coordenador dessa nova área. Rodolfo Molina e Pablo Podesta assumiram em 2009 e encomendaram uma investigação sobre a administração do clube pela Blanquiceleste S.A., chegando à imputação por administração fraudulenta (art. 173, inc. 7), especificamente, pela apropriação de fundos da retenção de jogadores. Em seu livro Irredeemable Principles (2014), uma autêntica fotografia do que aconteceu, Rodolfo Molina relata que, após o devido litígio, o promotor, o juiz e o Tribunal de Apelações consideraram que Fernando De Tomaso era o autor da fraude cometida em prejuízo do Racing. Finalmente, a Câmara de Cassação Criminal, Sala II, estabeleceu a responsabilidade criminal de De Tomaso e Blanquiceleste S.A. e impôs deveres comunitários e ressarcimento ao clube. Dessa forma, ele se tornou o primeiro dirigente considerado responsável pela administração infiel do dinheiro de um clube de futebol. Molina também destaca a representatividade da sede e sua importância em todo o processo iniciado na década de 1990, destacando: Uma maneira de apoiar esse projeto era melhorar a sede Tita Mattiussi, recuperada pelos torcedores para a formação de categorias de base. Terminados os trabalhos, as crianças puderam

contar com espaços ótimos para desenvolver o treinamento: quadras, academia, vestiários [...] Cuidei para que em tudo houvesse o melhor.

Com a chegada das eleições e a recuperação de diversos setores da instituição, foram privilegiados os que se relacionaram com a recuperação da função social das associações civis. As instalações da escola foram aprimoradas para deixá-la em ótimas condições, e o departamento Racing Solidario, presidido pelo padre Juan Gabriel Arias, desenvolveu uma atividade em conjunto com a Red Solidaria liderada por Juan Carr. O Racing se tornou uma das instituições mais ativas do país neste aspecto. Hoje, o clube cresce em funções sociais, tanto na sede da Capital Federal, localizada no bairro Villa del Parque, quanto no centro esportivo atrás do estádio, no distrito de Avellaneda. No entanto, na sede corporativa da Rua Mitre (Avellaneda), as atividades são terceirizadas pela rede de academias Megatlon. Desde 2008, quando a entidade retomou a administração por seus sócios até o momento, o crescimento do quadro societário estava aumentando e a vida social da instituição também, o que sugere a importância dos clubes na vida social dos bairros, onde não apenas crianças, mas também adultos podem praticar esportes e atividades intelectuais. Esses clubes são clubes com futebol, e não de futebol, nos quais, embora o esporte com maior audiência e apelo seja este, não é o único. A diversidade de atividades oferecidas para recreação e competição federada é ampla e variada, e o clube cumpre as obrigações que tem por ser uma associação civil sem fins lucrativos. A ideia de mercantilizar a prática, contudo, não morreu. Nos últimos quatro anos (2015-2019), o Presidente da Nação Argentina, Mauricio Macri, mais uma vez incentivou a inserção de sociedades anônimas esportivas, com o apoio de Daniel Angelici, presidente do Boca Juniors, e Fernando Marín, ex-

presidente da Blanquiceleste S.A. e que durante 2019 foi responsável pela secretaria de esportes do país, então degradada. Atualmente, Matías Lammens, ministro de Turismo e Esportes da Argentina, é um dos opositores mais fortes a essa medida: As sociedades anônimas esportivas clubes argentinos. Nossa posição primeiro clube a rejeitar a S.A. em estatuto, o clube será sempre proprietário.19

são uma péssima ideia para os é clara: o San Lorenzo foi o sua reunião de assembleia. Por dos sócios e nunca de um

Por outro lado, o estatuto da AFA, em seu artigo 10, menciona que apenas associações civis sem fins lucrativos com status de pessoa jurídica podem ingressar na instituição mãe de futebol argentina, ou seja, requer a aprovação de três quartos da assembleia para reformar o estatuto e permitir a entrada de SADs. A pressão exercida pelas bases aos dirigentes foi tão forte que eles tiveram que expressar sua oposição, para que Macri só pudesse realizar seu sonho através da promulgação de uma lei no congresso, que nunca foi promulgada. Víctor Blanco, presidente Racing Club desde 2011, é bastante ambíguo em sua opinião e sua posição não é muito tranquilizadora para os torcedores que ainda se lembram dos tempos do gerenciamento. Blanco, assim como vários presidentes de clubes da primeira divisão e do acesso, argumenta que não quer a inserção de empresas privadas no clube que administra, mas que acolhe a possibilidade de outras instituições optarem por isso se quiserem ou se necessitarem. Essa posição mostra a inquietação diante de uma questão tão controversa e de tal magnitude, uma vez que nunca levanta o que eles fariam se a instituição que

representam estivesse em crise e a conversão para uma corporação esportiva fosse apresentada como opção.

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Notas [1] Doravante, Racing Club. [2] É assim que se autoproclamam os torcedores e sócios que, apesar de participarem ativamente do clube, não participam

das

assembleias

ou

concorrem

a

cargos

políticos. [3] RABI, Roberto; VILLAFRANCA, Gustavo. Toda la Historia de la “U”. Santiago: RIL Editores, 2017. [4] Os nomes das pessoas foram modificados para preservar o anonimato daqueles que fizeram parte da pesquisa, com exceção de figuras públicas como o ex-presidente do Racing Club e outros dirigentes do futebol argentino. [5] CLARIN. “Racing: es la solucion para arreglar los problemas del club, dijo el presidente”, 11 jul 1998. [6] Hoje, esse momento ainda é lembrado pelos torcedores do clube como “O dia do torcedor do Racing”, uma vez que o estádio Presidente Perón estava lotado de seus torcedores e, tanto eles quanto os jogadores, estavam pedindo uma solução. Ver: CLARÍN. “Racing: es la solucion para arreglat los problemas del club, dijo el presidente”. 11 jul 1998. [7] Ver:

INFOLEG.

Ley

25.284:

Régimen

Especial

de

Administración de las Entidades Deportivas con Dificultades Económicas. Fideicomiso de Administración con Control Judicial.

[8] Durante o amadorismo, ele foi coroado campeão consecutivamente

entre

1913

e

1919,

permanecendo

invicto em quatro edições. Assim recebeu o apelido “a Academia”. A instituição marcou outro fato em sua história do futebol nacional: tornou-se o primeiro tricampeão, ao vencer os torneios de 1949, 1950 e 1951. Atualmente, a instituição tem entre suas conquistas: 17 campeonatos locais (9 amadores e 8 de profissionais). Entre os títulos internacionais

estão

a

Copa

Libertadores

e

a

Intercontinental Cup de 1967, a Supercopa Sul-Americana e a Supercopa Interamericana de 1988. Em 1983, o Racing foi rebaixado à Primeira Nacional B, sendo o segundo clube grande a cair: em 1981, o San Lorenzo de Almagro havia sido rebaixado. O Racing passou dois anos nessa categoria, retornando em 1985. Como todas as grandes equipes, o Racing tem um rival clássico, o Independiente, que foi fundado dois anos depois e também está localizado em Avellaneda, em Buenos Aires, com uma particularidade: a distância que separa os dois estádios é de apenas 200 metros, uma situação única no mundo. Em Avellaneda, o Racing possui o estádio Juan Domingo Perón, a sede, o prédio onde operam dois níveis de educação formal (primária e secundária) e o campus Tita Matiussi, onde as divisões de base treinam. O patrimônio também inclui a sede da Capital Federal no bairro Villa del Parque e a propriedade recentemente adquirida de Ezeiza, localizada no distrito de Esteban Echeverría.

[9] A chamada Lei Pelé obrigava os clubes esportivos a cumprir as leis comerciais. Isso implicava na obrigação de pagar impostos e de ter as suas contas revisadas pela Receita

Federal

brasileira.

Até

então,

as

vendas

de

jogadores eram totalmente opacas. Isso não implicava transformar automaticamente os clubes em empresas, como aconteceu na Espanha, posto que havia várias opções. A lei sofreu várias oscilações. Em 2000, institui-se que os clubes deveriam possuir pelo menos 51% do capital das empresas criadas para administrar os clubes, seguindo o exemplo das sociedades mistas portuguesas. Mas três anos depois, essa restrição foi removida. [10] Presidente da AFA de 6 de abril de 1979 a 30 de julho de 2014, ano em que falece. [11] Entrevista com Alejandro Wall. [12] ¡Academia carajo! (Wall, 2014). [13] Entrevista com Alejandro Wall. [14] Escrache [escracho] é o nome dado na Argentina e em outros

países

de

língua

espanhola

a

um

tipo

de

manifestação em que um grupo de ativistas se dirige à casa, ao local de trabalho ou a locais públicos onde se reconheça alguém que se quer denunciar. [15] “[...] o sócio também não pode tomar decisões. As decisões passavam pela empresa administradora, o órgão

fiduciário que deveria controlar a empresa, o juiz que tinha que controlar o órgão fiduciário e a empresa, e um interventor que também tinha que controlar, que nunca controlou nada porque ele também era amigo de Marín, ninguém controlava nada lá.” (Entrevista Alejandro Wall). [16] Presidente do Racing Club de 1987 a 1991 e reeleito em 1991 a 1995. [17] Vice-presidente do grupo Racing Vuelve entre 2008 e 2011 e candidato a presidente nas eleições de 2014. [18] Presidente do grupo Racing Vuelve entre 2008 e 2011 e reeleito como vice-presidente em 2010, juntamente com Gastón Cogorno, que renunciou abruptamente de suas posições em 2012 devido a diferenças entre eles e o segundo vice-presidente, Víctor Blanco, atual presidente da instituição. [19] VIOLA, Daniel. El falso debate sobre las sociedades anónimas deportivas, El Cronista. 29 out 2018.

PARTE III

Outras Questões

A raíz do problema: o declínio do futebol brasileiro após o período das parcerias dos anos 1990

Marco Sirangelo

“O futebol brasileiro passa por um momento de adaptação e insegurança. Não se tem certeza do futuro. Tudo indica, porém, que o futebol dos cifrões dará certo, considerando que os clubes eram pessimamente administrados até hoje”. A passagem acima foi escrita pelo brilhante tricampeão mundial Tostão em sua coluna na edição de fevereiro de 2000 da revista Placar. Naquele momento, a expectativa por mudanças significativas em todo o contexto gerencial do futebol brasileiro era muito alta, e tudo indicava que os tempos de amadorismo e contas bancárias vazias finalmente ficariam para trás. O “futebol dos cifrões” citado diz respeito ao breve período de histeria financeira provocado pelos movimentos de abertura dos clubes brasileiros para acordos de parcerias ocorridos no fim dos anos de 1990. E por mais que a

lembrança dessa época esteja carregada de romantismo e de craques históricos, ela não deu certo. De maneira a comprovar esta tese, o presente artigo propõe uma contextualização desse período, seguido pela apresentação das mudanças legislativas e de quais os impactos causados no futebol brasileiro graças a essa aproximação com o mercado. Por fim, os fatores externos que auxiliaram a criação de um estado de crise no esporte foram levantados, bem como as consequências geradas. Contextualização: o modelo a ser seguido Exemplo marcante da relação entre clubes de futebol e empresas, a parceria do Palmeiras com a Parmalat é um marco inicial nessa discussão. Após o sucesso de sua oferta pública inicial de ações (IPO) em 1990, a empresa de laticínios italiana implantou uma estratégia agressiva buscando a expansão global de sua marca: vincular-se ao esporte (FERRARINI & GIUDICI, 2006). Com base na experiência anterior na Europa, quando patrocinou o Real Madrid e adquiriu o controle do Parma, a Parmalat entrou na América do Sul estampando sua marca em importantes camisas, como as de Boca Juniors e Peñarol. Porém, focando no maior mercado do continente, firmou, em 1992, um contrato de oito anos cujo objetivo principal seria transformar o Palmeiras no time mais bem-sucedido do Brasil, no mesmo modo em que a empresa, responsável direta pelo sucesso esportivo, assumisse uma posição de destaque em seu mercado. O plano deu tão certo que, na metade do acordo, a Parmalat já era líder de mercado no Brasil, enquanto o Palmeiras enfileirava troféus (CABALLERO, 2014). No contexto do futebol, o sucesso dessa parceria pode ser atribuído ao processo de profissionalização de gestão

trazido pela multinacional ao departamento profissional do clube paulista. Esse processo contava, principalmente, com uma considerável injeção de recursos voltados para a contratação de jogadores. Como naquele período a oferta de talentos atuando no Brasil era muito alta, foi possível ao Palmeiras montar times memoráveis. Isso se deu muito por conta da relativa baixa concorrência no mercado de transferências enfrentada pelo clube do Palestra Itália. Por mais que a presença de grandes craques brasileiros nas ligas europeias não fosse algo necessariamente raro, foi graças à promulgação da Lei Bosman, em 1995, que este número aumentou significativamente (Poli et al., 2016). A partir desse momento, não somente os jogadores estariam livres ao final de seus contratos, como os nascidos na União Europeia não contariam nas cotas extracomunitárias de cada liga do continente. Ou seja, os clubes europeus puderam preencher seus elencos com todo o talento local disponível e mais um bom número de estrangeiros que, em sua grande maioria, vinham da América do Sul. A necessidade de modernização e o terreno aberto para as parcerias Em um primeiro momento, o impacto dessa ampla abertura do mercado de transferências causada pela Lei Bosman foi positivo para os clubes brasileiros. Negócios milionários passaram a ser realizados e a política de venda de talentos se tornou praxe no país. A Parmalat, por exemplo, lucrava com ao menos uma grande venda por ano a partir da ida de Roberto Carlos para a Internazionale em 1995, com valores recordes para o futebol nacional (MOREIRA, 1995). O mesmo aconteceu com o São Paulo, que negociou Juninho e Caio no mesmo ano. É importante ressaltar que esse retorno financeiro gerado para empresas e terceiros, como a Parmalat, por

intermédio da venda de jogadores, foi uma prática muito comum no futebol, principalmente no continente sulamericano, até ser banida pela FIFA em 2015 (MENDONÇA, 2018). Atualmente, apenas clubes, agentes e os próprios jogadores estão autorizados a receber dinheiro proveniente de transferências. O mercado de vendas de jogadores aquecido no período logo após a Lei Bosman e a experiência positiva envolvendo a cogestão entre um clube e uma empresa impulsionaram a discussão pela modernização das relações de trabalho no futebol brasileiro. Em vigor desde 1976, a Lei do Passe (Lei nº 6.354/76) limitava o fluxo de transferências e dava muito poder aos clubes sobre os atletas. Sua alteração já estava prevista pela Lei Zico (Lei nº 8.672/93), inicialmente discutida em 1991, mas foi somente em 1998, com a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98), que o futebol nacional passou por efetivas transformações. Além de excluir o passe e incluir o jogador nos preceitos estipulados pela legislação trabalhista, a Lei Pelé buscou profissionalizar a gestão do futebol por meio de uma maior abertura dos clubes ao mercado. Isso significou o início de um movimento que visava modificar a personalidade jurídica dos clubes que, anteriormente tratados como sociedades e associações sem fins lucrativos, passariam a ser empresas (VIDERO SANTOS, 2002). Dessa forma, seguindo o exemplo do Palmeiras, os clubes começaram a buscar parceiros com capacidade financeira para realizarem grandes investimentos no futebol. Com bastante talento ainda à disposição no Brasil e contando com um mercado europeu aquecido, a venda de jogadores garantiria lucro certo para a empresa parceira no futuro, da mesma forma com que a montagem de elencos fortes serviria para colocar o clube em uma posição de destaque. Estava criado, portanto, um cenário positivo para

que os clubes passassem a terceirizar suas gestões esportivas. Em 1997, pouco antes de a Lei Pelé entrar efetivamente em vigor, Corinthians e Vitória assinaram contratos de cogestão com o Banco Excel-Econômico. A empresa, que mais tarde também patrocinaria Botafogo e América-MG, utilizaria seus próprios recursos para adquirir atletas, que, por sua vez, seriam de sua propriedade, mas jogariam pelos clubes, casos de Túlio e de Bebeto, por exemplo. Além disso, receberia propriedades de marketing como contrapartida e teria ingerência na gestão do futebol (DAMATO, 1997). Apesar de vantajosos sob o ponto de vista esportivo, os acordos foram rompidos pouco depois como efeito da venda do Banco Excel-Econômico ao Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, em maio de 1998. Sem qualquer ligação direta com seu departamento de futebol, o Vasco divulgaria, em fevereiro de 1998, aquele que seria o maior contrato da história do esporte brasileiro, com o NationsBank (hoje Bank of America), ligado à exploração de suas propriedades comerciais. O projeto olímpico vascaíno de fato saiu do papel e o clube formou equipes fortíssimas em diversas modalidades, que variavam desde vôlei e basquete até vela, natação e handebol. Segundo o jornalista Demétrio Vecchioli, dos 205 atletas brasileiros nas olimpíadas de Sydney em 2000, 83 eram vinculados ao Vasco. Em abril de 1999, o Corinthians assinaria um novo contrato com o fundo de pensões norte-americano Hicks, Muse, Tate & Furst (HMTF), com moldes semelhantes ao acordo anterior com o Excel-Econômico, mas com duração prevista para 10 anos. Também parceira do Cruzeiro, a HMTF oferecia altas quantias como adiantamento e, além da injeção financeira para contratação de jogadores, projetava

a construção de estádios para ambos os clubes parceiros (ASSUMPÇÃO E DIAS, 1999). Algo similar foi visto no fim de 1999 nos acordos celebrados entre Flamengo e Grêmio com a International Sports Leisure (ISL), importante agência de marketing esportivo suíça e parceira de longa data da FIFA e do COI. De acordo com notícias da época, os contratos renderiam, além da construção de novos estádios, US$ 80 milhões ao clube carioca e US$ 50 milhões ao tricolor gaúcho (FOLHA ESPORTE, 1999). No entanto, os principais casos que seguiram à risca o que solicitava a Lei Pelé vieram de Salvador. Em fevereiro de 1998, o Bahia não somente modificou sua personalidade jurídica e passou a ser uma Sociedade Anônima como também negociou 51% de suas ações com a Ligafutebol, empresa do Banco Opportunity (SANTAMARINA E DAMATO, 1998). O Vitória seguiria os rumos de seu rival em junho de 2000, quando o fundo argentino Exxel adquiriu 50,1% de seus ativos (FOLHA ESPORTE, 2000). Diferentemente dos outros casos citados, os rivais baianos efetivamente entregaram o controle gerencial do clube para terceiros, e não somente dos seus departamentos de futebol. Entre outros exemplos que envolveram clubes menores, foi um momento em que o futebol brasileiro desfrutou de alto poder aquisitivo, algo que se refletiu principalmente no grande balcão de negócios que se tornou o mercado de transferências de jogadores. Naquele momento, não somente o mercado de vendas permanecia aquecido, como também o de compras. O século XX, como demonstrado pela opinião otimista de Tostão, terminaria com times estrelados e boas perspectivas futuras. De fora para dentro do campo: os impactos dos fatores externos

Um primeiro indício de que este cenário de intensas movimentações financeiras no futebol brasileiro seria insustentável ocorreu em janeiro de 1999. Adotado desde 1995, o regime de banda cambial fazia parte de uma série de medidas tomadas pelo Governo Federal voltadas, principalmente, para o combate à inflação. Em linhas gerais, o Banco Central mantinha o câmbio dentro de um intervalo preestabelecido, alinhado com uma taxa de juros elevada (MIRANDA, 2018). Dessa forma, o valor do real em relação ao dólar estaria sempre controlado com base nesta política de intervenção estatal. O início de 1999 foi marcado por uma série de instabilidades econômicas e políticas, tais como a declaração de moratória do Estado de Minas Gerais e o pedido de demissão do então presidente do Banco Central, Gustavo Franco. Embora a inflação houvesse sido controlada, o crescimento do PIB brasileiro era baixo e o elevado aumento na demanda por dólares dificultava a manutenção desta política cambial (ROCHA, 2013). Assim, o Banco Central alterou a estratégia e passou a adotar o regime de flutuação cambial, em que o mercado determina o valor da taxa de câmbio. Isso resultou em uma maxidesvalorização do real não planejada e ocorrida em um período muito curto de tempo (VALENTI et al., 2018). No futebol, a consequência foi a pior possível. A compra de jogadores, mesmo no mercado nacional, era, muitas vezes, realizada em dólar, assim como o pagamento de salários, principalmente no caso de grandes estrelas, jogadores repatriados ou estrangeiros. Era o caso, por exemplo, de Carlos Gamarra, personagem marcante de um Corinthians vencedor, mas que ameaçava greve em março de 1999 caso o clube não utilizasse as corretas taxas de câmbio para honrar com seus salários (SANTAMARINA, 1999). Neste caso específico, os

vencimentos mensais do zagueiro paraguaio, estipulados em US$ 80 mil, foram pagos naquele mês considerando a moeda americana avaliada em R$ 1,50, quando o correto seria R$ 1,85 – uma alteração superior a 23%. Embora inadequada e responsável por processos futuros, estipular uma própria taxa de câmbio foi a solução encontrada pelo Corinthians e por muitos outros clubes para resolverem suas pendências de curto prazo, uma vez que apenas entre dezembro de 1998 e março de 1999, os custos com Gamarra ou qualquer outro jogador que recebia em dólar subiram 54% graças à crise cambial. Isso não impediu, em um primeiro momento, com que diversos acordos de parceria fossem celebrados, como o do próprio Corinthians com a HMTF, citado acima. Se as operações em dólar realizadas em real, como era o caso do salário de Gamarra, estavam mais caras, o inverso também ocorria, com as operações em reais pagas em dólar mais baratas. Essa instabilidade cambial, embora preocupante devido ao aumento repentino nos custos, representaria uma oportunidade para investimentos estrangeiros, algo que foi visto na maioria dos negócios firmados pelos clubes brasileiros. No entanto, a relação gerencial entre os clubes e suas empresas parceiras nunca foi bem estabelecida. Era uma época em que figuras centralizadoras, como Eurico Miranda, Alberto Dualib e Zezé Perrella, para citar alguns, estavam à frente de “seus” clubes e mesmo com consideráveis aportes financeiros externos, continuavam exercendo o comando de forma quase unilateral. Foram comuns casos em que decisões sobre demissão de treinador, afastamento de atletas e até contratações foram tomadas sem que a parceira fosse consultada. Além disso, os retornos decorrentes da exploração comercial das marcas e, principalmente, da venda de

jogadores custavam a aparecer (ARRUDA E MELLO, 2001). Como resultado, atrasos nos pagamentos passaram a ser regra no Brasil. Os clubes conviviam com instabilidades financeiras dificilmente controláveis e que julgavam ser de responsabilidade da parceira, enquanto as empresas não encontravam soluções para os problemas de curto prazo e permaneciam distantes dos processos de tomada de decisão. Para piorar, fatores relacionados com a desorganização estrutural do futebol brasileiro como um todo, tais como calendários congestionados, jogos de bastidores frequentes e viradas de mesa, contribuíam para um cenário cada vez mais caótico. E para finalizar, entre os anos de 1999 e 2001, o futebol foi assunto recorrente em Brasília, resultado da instauração de uma CPI focada nas irregularidades fiscais envolvendo os acordos da CBF com a Nike. Consequências Diante do cenário conturbado, a Lei Pelé passou por modificações (Lei n° 9.981/00) e não havia mais a necessidade de alteração na personalidade jurídica dos clubes. Logo em seguida, já no primeiro semestre de 2001, pouco após o Vasco romper unilateralmente seu acordo com o NationsBank alegando falta de pagamento (GOMIDE; RANGEL, 2001), a ISL declarou falência em um escândalo de proporções inacreditáveis, deixando Flamengo e Grêmio responsáveis por dívidas praticamente impagáveis, boa parte delas com jogadores e outros clubes. Com débitos na ordem de US$ 300 milhões, o colapso da ISL resultaria na confirmação de que pagamentos destinados a esquemas de corrupção, tais como suborno, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, eram praxe no futebol. O caso foi o embrião para que os principais dirigentes da FIFA fossem processados pelo governo norte-

americano nos anos seguintes, em uma operação que ficou conhecida como o FIFA Gate (JENNINGS, 2016). Em crise e acumulando prejuízos, a HMTF buscava interessados em assumir o futebol de Corinthians e Cruzeiro, o que não ocorreu. A relação com os clubes definhou até o fim dos acordos em 2002. O prejuízo estimado do fundo, apenas com a gestão dos dois clubes durante três anos, foi de US$ 100 milhões, fora um rombo de US$ 700 milhões ocasionado com o fracasso da Panamerican Sports Network (PSN), canal a cabo com enfoque nas competições sul-americanas (MELLO; RUIZ, 2002). Apesar do início bem sucedido e de ter durado o período estipulado em seu início, a relação entre Palmeiras e Parmalat se encerrou ao fim de 2000. Três anos depois, a multinacional declararia falência em um dos maiores casos de fraude corporativa da história (OGUTU, 2016). Embora o Palmeiras não tenha sido diretamente afetado pelo colapso da empresa, os anos seguintes significaram uma perda de relevância esportiva considerável ao clube, sem condições de disputar os principais títulos. Na Itália, o Parma seria diretamente afetado pelo escândalo da Parmalat e também entraria em bancarrota. Após acumular seguidos prejuízos dentro e fora de campo, seria refundado para jogar a quarta divisão em 2015. Durante o breve período que patrocinou o São Paulo entre 1998 e 1999, a Cirio, outra multinacional alimentícia italiana, cogitou expandir o acordo e injetar fundos para a aquisição de jogadores, algo que não aconteceu principalmente por conta da crise cambial (GIMENEZ; MELLO, 1999). Seria uma estratégia focada na rivalidade local do clube com o Palmeiras e da empresa com a Parmalat, da mesma forma que isso ocorria na Itália com a Lazio, de propriedade da Cirio, e o Parma. Embora os clubes

italianos não fossem rivais locais, eram potências capazes de levarem o scudett e a Copa da UEFA, como de fato ocorreu. A Lazio, porém, não teve a mesma sorte que o São Paulo e acabou fortemente impactada pela insolvência da empresa em 2002 (SYLVERS, 2004). Por meio desses exemplos, é possível concluir, portanto, que as principais empresas que se associaram ao futebol brasileiro durante o final da década de 1990 estiveram envolvidas em problemas graves de gestão. Elas também demonstraram um evidente desconhecimento do mercado e cometeram erros nos cálculos de projeção de receita e de necessidade de caixa, além de terem sido pouco efetivas no trato com os dirigentes. O fim precoce das parcerias comprometeu a capacidade de investimento e de manutenção dos clubes e também foi acompanhado por um processo de perda de credibilidade das agremiações perante o mercado de anunciantes. O futebol brasileiro tornou-se, portanto, insustentável, além de se tornar uma presa fácil para os mercados europeus e asiáticos. Ao mesmo tempo em que os jogadores não pensavam duas vezes antes de desembarcarem em centros cujos meses tinham a duração prevista pelo calendário, os clubes observavam na venda de atletas a chance para aliviarem suas folhas de pagamento e conseguirem algum respiro até o recebimento de uma próxima ação trabalhista. No decorrer da primeira década do novo século, Palmeiras, Grêmio, Vasco, Corinthians, além de Bahia e Vitória, cujos associados enfrentariam longos processos até recuperarem o controle estatutário anos depois, foram rebaixados. Enquanto isso, seis dos oito títulos brasileiros disputados entre 2001 e 2008 foram vencidos por clubes que não formalizaram acordos longos de parceria ao fim da década anterior e somente em 2012 é que um desses clubes voltaria a vencer a Copa Libertadores.

Conclusão Se, no início dos anos 2000, o futuro do futebol brasileiro era promissor, pouquíssimo tempo depois tudo estaria de volta à estaca zero. Pior, o Brasil não acompanharia um extenso movimento de profissionalização que atingiu principalmente as ligas centrais europeias. A distância estrutural, comercial e, finalmente, técnica se tornaria praticamente inalcançável para o país do futebol. Resquícios dessa época ecoam até hoje, seja por meio de ações trabalhistas que ainda seguem em tramitação ou por lembranças muitas vezes descontextualizadas sobre como os times sempre eram melhores no passado. Neste novo momento, em que o futebol brasileiro flerta novamente com mudanças significativas de legislação, é importante lembrarmos como a aproximação frenética com o mercado custou caro. É claro que a situação atual exige mudanças, mas desde que pensadas buscando uma realidade que seja efetivamente sustentável e que leve em consideração as particularidades políticas, econômicas e sociais do Brasil. Enquanto isso, Tostão segue atual, mesmo vinte anos depois. Afinal, “o futebol brasileiro passa por um momento de adaptação e insegurança. Não se tem certeza do futuro”.

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O modelo societário do futebol alemão: uma referência de sucesso em questão

Carles Viñas

O futebol alemão se converteu, para muitos, em sinônimo de êxito. Com a média de ocupação de arquibancada mais alta do continente europeu, a Bundesliga se tornou uma das referências do futebol internacional, sendo elogiada “pelos preços razoáveis de seus ingressos, a preservação de uma apaixonada cultura de arquibancada e o alto nível dos seus estádios” (KENNEDY; KENNEDY, 2013, p. 34). O modelo de gestão, louvado em toda parte, se consolida em clubes cujos membros, com determinadas exceções, ostentam o controle, algo que não acontece na maioria dos clubes profissionais do resto da Europa. Apesar do estabelecimento tardio da mercantilização do futebol em comparação com outros países ao seu redor,1 é correto dizer que o êxito do modelo alemão se sustenta, principalmente, na regra denominada como 50+1 e no

envolvimento dos torcedores na administração do clube. A este respeito e a título de exemplo, o Bayern München conta com 290.000 sócios registrados, o Borussia Dortmund com 153.787, enquanto que o Schalke 04 soma 150.688. Dados que explicam por que os clubes mantêm uma relação estreita e habitualmente fluida com seus associados. As decisões, portanto, não estão sujeitas unicamente à vontade de um conselho de administração ou um único proprietário, mas também à opinião dos torcedores, fato que permite um modelo societário mais democrático. Essa particularidade foi combinada com o crescimento exponencial da vertente comercial do futebol alemão, que facilitou a conversão de clubes com vocação tradicionalmente local ou regional em equipes de referência continental e projeção mundial (como o Bayern München ou o Borussia Dortmund). Em outros países, esse desenvolvimento provocou a migração dos torcedores, que viram seu relacionamento com seus respectivos clubes diminuído, sendo reduzidos a meros clientes sem voz ou voto. Um processo de desempoderamento generalizado que, no entanto, na Alemanha se viu freado, em parte, pela normativa vigente no país (regra do 50+1). Na sequência, analisaremos quais características convertem o futebol alemão em um caso particular na Europa. A partir da análise da configuração social do FC Sankt Pauli, abordaremos a estrutura societária vigente na Bundesliga para conhecer que clubes contam com um regime especial, quais tratam de contornar a normativa vigente e como os torcedores – principalmente os afetados pela voracidade extrema da mercantilização – se tornaram responsáveis pela independência de suas equipes frente a investidores e holdings empresariais. FC Sankt Pauli. Uma referência excepcional

Se em todo o futebol alemão existe uma equipe que se situa, apesar das contradições envolvidas em jogar uma liga profissional, em lugar diametralmente oposto ao modelo de negócios que prevalece cada vez mais no futebol atual, essa equipe é o FC Sankt Pauli. O clube do bairro portuário de Hamburgo, que habitualmente transita pelas divisões inferiores do futebol alemão e que conta com uma sala de troféus sem muitos títulos, transformou-se, há algumas décadas, em alternativa ao denominado futebol moderno.2 Suas origens esportivas remontam a 1862, quando se constituiu o Hamburg St. Pauli Turn-verein, um clube criado por membros das classes ricas da cidade hanseática. Mas somente em 1910, com a emancipação da sua equipe de futebol, foi oficialmente instituído o ano de fundação do atual FC Sankt Pauli. Dessa forma, a entidade cumpriu os novos regulamentos que forçavam os clubes de futebol a se desconectar das sociedades ginásticas.3 Naquele tempo, o St. Pauli era uma equipe burguesa, ligada às elites militaristas locais e alinhada ao poder. É apenas em meados de 1980 que o clube se transforma radicalmente. O surgimento no bairro de uma comunidade de jovens, vinculados ao punk, ao movimento antinuclear e autônomo que ocupava diversos edifícios na região, levou à criação de um novo foco de animação no estádio Millerntor. Naqueles anos, as arquibancadas eram escassamente povoadas. O conjunto st. paulianer tinha uma massa social envelhecida que nunca enchia o estádio. A chegada desses jovens politizados que militavam em várias causas sociais mudou o perfil tradicional do torcedor do St. Pauli. A pressão exercida por esses torcedores quando eles entenderam que os valores que associavam de forma inerente à sua equipe foram violados (patrocinadores inadequados, tributos a líderes com passado nazista, cânticos racistas no estádio...) surtiu efeito. Suas demandas

foram assumidas pelo restante dos torcedores, cujo empoderamento forçou o conselho de administração a leválos em conta. Quando a direção do clube estabeleceu um curso divergente ou tentou realizar operações financeiras especulativas (como aconteceu em 1989 com o projeto Sport-Dome, que incluía a construção de um grande centro recreativo e comercial ao lado de um novo estádio), os torcedores se mobilizaram para mostrar sua rejeição e barrar essas iniciativas. Desde a década de 1980, os fãs do Sankt Pauli se transformaram em verdadeiros garantidores da independência do clube. Iniciativas como a idealizada pelo coletivo Sozial Romantiker em 2010 visavam preservar “os valores do clube e evitar sua crescente mercantilização” (VIÑAS; PARRA, 2017, p. 184) como resultado do que eles entendiam como uma tendência comercial e sexista (criação de 200 lugares e cabines VIP, instalação de telões de LED nas arquibancadas, publicidade antes do início dos jogos, patrocinadores com vínculos com a indústria da guerra, anúncios sexistas no estádio...). Esse empoderamento dos torcedores4 possibilitou que os líderes do clube acabassem assumindo os valores defendidos por seus seguidores. Dessa forma, por exemplo, o St. Pauli se tornou o único clube de futebol profissional do mundo a se definir estatutariamente como “antifascista, antirracista, antissexista e contrário a toda discriminação”. Por todas essas razões, a humilde equipe alemã tornou-se uma referência internacional para os movimentos sociais e para a esquerda alternativa, como evidenciado pelos mais de 600 grupos de torcedores que o clube possui espalhados em todo o mundo . Além dessa peculiaridade, o FC Sankt Pauli também se destacou por seu modelo de estrutura corporativa, baseado, principalmente, no AFM, Abteilung Förderne Mitglieder (Departamento de Sócios Ativos). O departamento tem sua origem nos anos de 1990, quando vários torcedores,

insatisfeitos com a forma como a entidade era administrada, tornaram-se membros do clube e foram agrupados no chamado Arbeitsgemeninschaft interessierter Mitglieder (AGiM). O objetivo desse grupo era poder participar mais ativamente das estruturas de administração e de organização do clube para tentar transformá-las de dentro para fora. Inicialmente, o AGiM foi criado para que o time B do clube, que jogava na Quarta Divisão, pudesse jogar no Millerntor Stadium, depois que o técnico Uli Maslo proibiu a equipe secundária do clube de jogar no campo principal para evitar danos excessivos no gramado. Os membros da AGiM tentaram transformar o modelo de gestão do clube e agir como uma contraparte crítica a direção. As mudanças no modelo societário ditadas pelo DFB favoreceram aos interesses desses seguidores. Dessa forma, a AGiM se tornou a voz mais relevante da massa social dentro do clube. Isso ficou claro quando, em 1998, a AGiM apresentou uma moção na Assembleia Geral de St. Pauli para mudar o nome do estádio, então chamado Wilhelm-Koch-Stadion (um ex-presidente que transcendeu sua militância no NSDAP5 durante o Terceiro Reich). Essa proposta prosperou e a retirada do nome do ex-líder foi acordada. Esse empoderamento dos torcedores do Sankt Pauli se desenvolveu paralelamente à concretização da chamada “cultura de arquibancada” no país, um fenômeno associado à concepção de formas de torcer criativas por grupos de torcedores radicais, que também levou a um maior envolvimento deles no futuro da administração dos clubes por meio de sua oposição frontal ao modelo de negócios predominante no futebol. A metamorfose sofrida pela massa social do clube de Hamburgo também foi possível com a chegada de seus postulados ao conselho. Compreender a importância

fundamental dos seguidores (a alma do clube), seu empoderamento como parte essencial do clube e a necessidade de o St. Pauli participar ativamente da vida e da defesa do bairro (para manter e garantir suas raízes tradicionais à comunidade) – que poderíamos definir como futebol de proximidade ou futebol de km zero – permitiu o surgimento de organizações como a AGiM aqui mencionada, que configuraram sua estrutura social e determinam sua singularidade. A AFM, por sua vez, também citada aqui, foi criada em 1999 com a ideia de oferecer aos torcedores a possibilidade de serem membros ativos do clube para poder ter um impacto maior em sua administração mediante seu voto na Assembleia Geral anual.6 Um passo a mais na consolidação do modelo Fan Ownership7 na entidade. A consolidação do AFM permitiu que os fãs se constituíssem em 50% da base social de St. Pauli, um fato relevante se considerarmos que reúne mais de 20.000 fãs. O projeto dedica seus recursos a todos os tipos de causas sociais (contra o sexismo, a homofobia, a favor dos refugiados...), a promoção e a formação do futebol de base do clube e, inclusive, participa do projeto de criação do museu do Sankt Pauli FC. Essa organização e esse controle da entidade por parte dos torcedores resultou em conquistas, tais como conseguir que a publicidade no estádio fosse menos invasiva, ou que se limitassem as propagandas feitas pelo sistema de som no inicio das partidas para favorecer uma atmosfera de simbiose entre jogadores e torcedores. Para o St. Pauli, “o futebol e a torcida são o motor da vida do clube, os patrocinadores precisam se adaptar” (VIÑAS; PARRA, 2017, p. 154). A materialização da vontade dos torcedores quando se trata de influenciar o dia a dia da entidade apareceu paralelamente à ampliação, no futebol alemão, de um

modelo organizacional que priorizava a participação dos sócios. De fato, até 1998, todas as equipes alemãs eram estruturadas de acordo com o modelo eingetragener Verein (e.V., Associações Registradas), que defendia que os conselhos de administração de clubes fossem democraticamente escolhidos pelos associados. Isso mudou quando o DFL permitiu a conversão em sociedades anônimas de responsabilidade limitada, uma medida com a qual alguns clubes pretendiam atrair investidores. Mas, para impedir que os fãs percam o controle de suas respectivas equipes, a DFB estabeleceu, em 1999, o já mencionado regulamento 50+1. 50+1: A defesa de um modelo de gestão Em outubro de 1998, o Deutscher Fußball-Bund (DFB, Associação Alemã de Futebol) permitiu que os clubes alemães se convertessem em sociedades anônimas. Mas, para impedir que eles acabassem nas mãos de outras pessoas, foi incluída a regra 50+1, que é obrigatória para obter uma licença de competição na Bundesliga, Bundesliga 2 e Liga 3. A medida, considerada como “a primeira incursão no modelo de controle dos torcedores” (KENNEDY; KENNEDY, 2018, p. 66), estipulava que pelo menos 51% das ações dessas sociedades anônimas de responsabilidade limitada deveria estar nas mãos de associações de sócios sem fins lucrativos, as já citadas eingetragener Verein (e.V). Dessa forma, os fãs continuariam a controlar a entidade, mantendo o poder de decisão em sua administração. Esse modelo híbrido permitiu legitimar e garantir a propriedade democrática dos torcedores e impedir que os clubes caíssem apenas nas mãos de grandes investidores ou multimilionários. Graças a esse método, a Bundesliga foi confirmada como um exemplo de balanços econômicos ativos e taxas de entrada sustentáveis. O objetivo

fundamental do sistema de licenciamento8 é salvaguardar as operações de todos os membros da liga durante a temporada e garantir a estabilidade, a integridade e a continuidade das competições. Ele também define as diretrizes para uma governança corporativa transparente e obriga os clubes, se quiserem renovar suas respectivas licenças, a serem responsáveis financeiramente. Esse modelo de gestão bem-sucedido também é explicado pelo estabelecimento de um teto salarial para os jogadores que, em parte, permitiu a sustentabilidade financeira do futebol alemão. A implementação da regra 50+1 não impede que as equipes recebam injeção de dinheiro externo, desde que não excedam a metade do capital do clube. Dessa forma, ela torna impossível para qualquer empresa ou indivíduo possuir mais de 49% do capital de uma equipe e tornar-se proprietário majoritário. Ao mesmo tempo, a norma garante que as sociedades permaneçam ligadas aos seus fãs. Desde 2011, a regra contém uma cláusula que permite que uma empresa, ou um indivíduo, seja isento dela se provar ter apoiado de forma contínua e substancial a entidade nos últimos 20 anos. Um período de fidelização que procurava impedir a chegada de capitalistas que se tornaram acionistas máximos da noite para o dia. Essa disposição acolheu alguns clubes que, desde sua fundação, estão vinculados a empresas e, portanto, mais do que cumprem o requisito de longevidade estipulado. Estamos nos referindo, por exemplo, ao Bayer Leverkusen, um clube fundado no verão de 1904 na cidade homônima da Renânia do Norte-Vestfália sob o nome de TuS Friedrich Bayer & Co. 1904 Leverkusen. A iniciativa veio de funcionários de uma fábrica de corantes, então conhecida como Friedrich Bayer & Co. – fundada em 1863 por Johan Friedrich Weskott e Friedrich Bayer – que pediram ao conselho de administração da empresa a criação de um clube de esportes e ginástica.

E três anos mais tarde, em agosto de 1907, quando se concretiza a montagem de uma equipe de futebol, o time estreara contra o Ballspielverein Manfort. O vínculo com a empresa era tamanho que eles pediram para usar o logotipo da empresa (a chamada “cruz da Bayer”) como escudo. Em 1935, inclusive, se incorporaria o nome da empresa ao da entidade. Portanto, os torcedores do Bayer Leverkusen não são seus proprietários; no caso, quem responde legal e oficialmente pela instituição é a sociedade químicofarmacêutica. O Leverkusen não é a única exceção. Na Alemanha, existem outros clubes que, devido ao fato de estarem ligados desde a sua fundação a uma empresa, cumpre com a obrigatoriedade de manter um vínculo que vá além de duas décadas. Outro exemplo é encontrado no VfL Wolfsburg, um clube criado em 1945 por trabalhadores da montadora Volkswagen (a marca alemã significa “Automóvel popular”), e, não em vão, a cidade homônima que abriga a sede da empresa fundada em 1938 pelo Terceiro Reich. De fato, seu nome inicial era Stadt des KdF-Wagens bei Fallersleben (cidade do carro KdF em Fallersleben) –, e apenas em 1945 o time adotaria sua denominação atual – já explicitava sua conexão com a sede da empresa dirigida naquela época pelo engenheiro austríaco Ferdinand Porsche. O próprio Hitler foi quem concebeu a ideia de construir uma grande fábrica de automóveis para produzir em série um veículo acessível para os cidadãos alemães e escolheu a cidade da Baixa Saxônia para realizar essa empreitada. Portanto, esse vínculo estreito desde a sua fundação com a marca permitiu que o VfL Wolfsburg se tornasse outra exceção à regra 50+1. De fato, em novembro de 2007, a Volkswagen tornou-se proprietária de 100% das ações do clube. Acontece que a empresa, por intermédio de uma de suas subsidiárias (Audi), também possui 8,33% das ações do Bayern de Munique. A gigante

automobilística alemã também patrocina outras equipes da Bundesliga, uma prática conhecida como “participação múltipla” e que, por razões óbvias, gerou algum desconforto entre seus rivais. Os organizadores máximos do futebol alemão entendem, portanto, que a ligação de duas empresas (Bayer e Volkswagen) a seus respectivos clubes é comprovada, constante e com comprometimento. Basicamente, o espírito da regra vai além de um simples veto a grandes investidores de fora das entidades. Seu objetivo é “impedir que indivíduos imprudentes de assumir equipes, e manter as tradições democráticas desse esporte”. 9 Sua sobrevivência permite que os fãs sejam levados em consideração e possam opinar sobre o preço dos ingressos, horários dos jogos ou patrocinadores do clube. Em resumo, garante que os seguidores não se tornem meros clientes e sejam considerados um ativo relevante com poder de decisão na gestão das entidades. RB Leipzig, a equipe mais odiada do país Além desses dois clubes ligados às indústrias farmacêutica e automobilística, o futebol alemão tem outra agremiação que conseguiu adaptar a regra 50+1 aos seus interesses. Estamos nos referindo ao RasenBallsport Leipzig, vinculado à empresa austríaca Red Bull GmbH, fundada em 1984 pelo empresário alemão de origem croata Dietrich Mateschitz, que dá nome a uma popular bebida energética homônima. O magnata decidiu expandir o negócio usando o esporte como meio de propaganda. Portanto, a empresa patrocina vários eventos esportivos, como o Red Bull Crashed Ice (campeonato de patinação em declive extremo organizado desde 2001) ou o Red Bull Air Race (competição aeronáutica que combina velocidade e acrobacias realizadas desde 2003). Além disso, a marca patrocina equipes de

modalidades diversas, como a Fórmula 1, com equipes como a Red Bull Racing (em 2004, a RB comprou a Jaguar Racing e começou a competir no ano seguinte) ou a Toro Rosso (surgiu em 2005 após a compra da Minardi); ou hóquei no gelo, com o EC Red Bull Salzburg (clube profissional falido e que Mateschitz, que já era o principal patrocinador desde o início do ano 2000, conseguiu recuperar depois de assumir o controle a partir de 2005). Não satisfeito com tudo isso, o bilionário continuou a explorar seu vínculo esportivo por meio do futebol. Sua empresa patrocina diversos clubes e assumiu o controle de grande parte das ações de equipes como o FC Red Bull Salzburg austríaco (surgido em 1993 como o SV Austria Salzburg, foi comprado em 2005 pela franquia local da Red Bull),10 o New York Red Bulls (criado em 1995 sob o nome New York MetroStars até ser adquirido pela RB em março de 2006) ou o Red Bull Brasil (fundado em 2007 na cidade de Campinas, no estado de São Paulo).11 Essa incursão futebolística da Red Bull não se esquivou de polêmicas. No caso da compra da equipe de Salzburgo, as decisões dos novos diretores do clube de mudar o escudo, o nome e as cores históricas (branco e violeta) da equipe pelas tonalidades da empresa geraram críticas de boa parte dos torcedores. A discordância foi tal que, em outubro de 2005, ocorreu o restabelecimento do SV Austria Salzburg por parte dos seguidores que queriam permanecer fiéis às origens do clube. Na Alemanha, a franquia de futebol de propriedade da marca de bebidas energéticas começou sua jornada em 2009, quando, seguindo a sugestão do presidente do FC Bayern de Munique, Franz Beckenbauer, a empresa adquiriu a licença do SVV Markranstädt, uma equipe do leste da Alemanha (área sub-representada e órfã de um grande clube de referência a nível nacional, e com um estádio

subutilizado, reconstruído por ocasião da Copa do Mundo da Alemanha em 2006). Anteriormente, a Red Bull já havia tentado comprar outros clubes. Em 2006, decidiu adquirir o FC Sachsen Leipzig, um clube centenário que é fruto da fusão entre o BSG Chemie Leipzig e o BSG Chemie Böhler, que estava na quarta divisão do futebol alemão. Apesar de prometerem um investimento de 100 milhões de euros, os torcedores se mobilizaram para impedir a venda do clube, fazendo com que o DFB não permitisse a transação alegando um excesso de poder por parte do patrocinador. A Red Bull chegou a mirar outras equipes, como o Fortuna Düsseldorf, que também não conseguiu adquirir devido à animosidade gerada pela operação entre sua massa social. Foi assim que, finalmente, a Red Bull decidiu se tornar proprietária do SVV Markranstädt, um pequeno clube nos arredores de Leipzig que disputava a Quinta Divisão, fato que lhe permitiu evitar regulamentos estritos de licenciamento da DFB. O fabricante austríaco, como fez com suas outras apostas esportivas, mudou o nome, o escudo e as cores da entidade.12 Em troca, a empresa prometeu um grande investimento financeiro e um plano esportivo para levar o clube à Bundesliga. Como os regulamentos de futebol alemães impedem que os clubes tenham o nome de seus patrocinadores, a entidade foi renomeada para 13 RasenBallsport Leipzig e.V. Em sete anos, o clube, conduzido principalmente pelo técnico Ralf Rangnick, subiu para a categoria mais alta do futebol alemão. Finalmente, foi aí que a equipe teve de enfrentar a regra 50+1. A DFL, em uma decisão controversa, interpretou que sem a Red Bull o clube não existiria e, portanto, concedeu a licença federativa para competir impondo três condições: obrigou-o a mudar de escudo (por se parecer muito com o proposto à

marca comercial), exigiu que facilitasse o acesso a novos associados (o clube impôs taxas anuais de 800 euros e resguardou o direito de admissão)14 e impediu que a administração da entidade fosse mantida apenas por funcionários da empresa. A Red Bull considerou as condições abusivas e recorreu da decisão da DFL ameaçando retirar seus investimentos no leste do país. Apesar das ameaças, a Red Bull atendeu às solicitações após vários recursos, o que facilitou a concessão da licença necessária. A boa trajetória do clube – na temporada 2017/18 disputou pela primeira vez a fase de grupos da Liga dos Campeões – e15 sua política de pagar caro para contratar jovens talentos, em paralelo à sedução causada por uma crescente e fiel massa social, aumentou a animosidade com os torcedores de outros clubes, que consideram o time de Leipzig uma ameaça séria ao modelo societário do futebol alemão. A partir do momento em que recebeu a licença do RB Leipzig e concordou com sua isenção da regra 50+1, o clube se transformou no mais odiado do país. Em seus deslocamentos, era comum os torcedores rivais organizarem protestos ou coreografias de denúncia nas arquibancadas. Nas partidas que disputa em seu estádio, a Red Bull Arena (até 2009 chamada de Zentralstadion Leipzig),16 o clube também sofre com atos de rejeição, como quando os torcedores do Borussia Dortmund boicotaram a viagem e se recusaram a viajar para Leipzig para assistir a partida. O próprio Borussia proibiu que o RB Leipzig usasse seu escudo para divulgar o jogo e também vetou que seu logo aparecesse nos chamados “cachecóis de amizade”, nos quais aparecem os nomes e emblemas das equipes que disputam a partida. Desde então os protestos se multiplicaram. Em 23 de novembro de 2013, cerca de 6.000 torcedores do Hansa

Rostock viajaram disfarçados para Leipzig para assistir à partida contra a RB. Uma vez localizados nas arquibancadas, exibiam lenços com o lema “Scheiss Bullen” (toro merda) e também exibiam em cartazes, um ao lado do outro, com o slogan “In Leipzig wird’s immer nur Lok und Chemie geben” (Em Leipzig só existem Lok[omotive] e Chemie). No ano seguinte, quando o RB visitou o campo do Union Berlin por conta da sexta rodada do campeonato, os torcedores locais se vestiram de preto e mantiveram 15 minutos de silêncio. Uma greve organizada para tornar visível a raiva da torcida e que se uniu, um ano depois, à destruição de uma réplica em larga escala de uma lata de Red Bull pelos fãs do Karlsruher SC.17 Em 2015, foram os torcedores do FC Heidenheim que receberam o ônibus que levava os jogadores do RB com um lançamento maciço de notas falsas de 100 dólares, que incluiu a legenda “Red Bull merda”, além de outros slogans anticapitalistas e a efígie de Dietrich Mateschitz. Um ano depois, os torcedores do Dínamo Dresden tornaram seu protesto visível ao atirar a cabeça de um touro quando seu time enfrentou o RB Leipzig na primeira etapa da Copa da Alemanha, enquanto exibiam faixas com os slogans “Tradition kann man nicht kaufen” (Tradição não pode ser comprada) ou “RB Não” nas arquibancadas. Uma ação pela qual a DFB puniu o clube saxão com uma multa de 60.000 euros.18 No encontro inaugural da temporada seguinte, os torcedores do Hoffenheim exibiram faixas sarcásticas com o slogan “Queremos nosso trono de volta: o clube mais odiado da Alemanha”. E não apenas as torcidas menosprezaram o clube de Leipzig, os clubes rivais se negam a usar o novo nome e o escudo do clube nos monitores de vídeo de seus estádios quando enfrentaram o RB Leipzig. Hoffenheim, uma exceção singular

A equipe de Sinsheim (Baden Württemberg) é outro caso único. Nascido em 1945 após a fusão da Turnverein Hoffenheim (um clube de ginástica criado em 1899) com a Fußballverein Hoffenheim (originada em 1921), o TSG 1899 Hoffenheim é, de fato, de propriedade do bilionário Dietmar Hopp19 , empresário e fundador em 1972, junto a outros exfuncionários da IBM, da multinacional de software SAP com sede em Walldorf e subsidiárias em 180 países. O empresário, que detém 96% das ações da entidade, que jogou nas categorias de base do clube, começou a apoiar financeiramente a equipe a partir do ano 2000. Naquela época, o Hoffenheim disputava a Quinta Divisão do futebol alemão. Hopp foi quem investiu 100 milhões de euros na construção da Rhein Neckar Arena, o novo estádio do clube com capacidade para 30.000 espectadores. Tudo isso facilitou que o Hoffenheim, pelas mãos de Hopp, se tornasse, em 2011, a outra das exceções à regra 50+1. A DFL levou em consideração o apoio significativo e prolongado do empresário, que contribuiu com 300 milhões por 20 anos para a equipe, para incluir o Hoffenheim no grupo de clubes liberados, juntamente com Bayer Leverkusen e Wolfsburg. Uma decisão que foi vista como um delito e transformou o Hoffenheim, paradoxalmente chamado popularmente de Hoffe (Esperança), em um clube detestado pela maioria das torcidas no país. Em seus deslocamentos, os protestos são uma constante, com a exibição de cartazes contra Dietmar Hopp ou faixas como as usadas pelos torcedores do Borussia Dortmund em setembro de 2018, nas quais eles reproduziam seu retrato no centro de um alvo e a frase “Hasta la vista Hopp”.20 A equipe se manteve no centro da ira dos torcedores até o RB Leipzig assumir o posto. No entanto, animosidade com Hopp, longe de diminuir, reapareceu com força nos meios de comunicação em fevereiro de 2020 quando, durante a partida entre

Hoffenheim e Bayern München, se exibiu uma faixa no setor de visitantes ocupado pelos ultras bávaros com o lema “Dietmar Hopp, filho da puta”. Sua exibição fez com que a arbitragem interrompesse a partida com placar de 6 a 0 a favor do Bayern, depois do próprio Hopp confrontar os torcedores, e os jogadores muniquense e o presidente do clube, Karl Heinz Rummenigge, repreenderem a atitude dos seus torcedores.21 Alguns minutos depois o jogo foi retomado com os jogadores de ambas equipes tocando a bola entre si no centro do campo em forma de protesto até o apito final. Um fato inédito na história da Bundesliga. Tudo isso não fez mais do que consolidar Hopp como um símbolo da mercantilização do futebol alemão. Desse acontecimento, longe de diminuir, os protestos prosseguiram nas rodadas seguintes do campeonato. As faixas insultantes dedicadas a Hopp (huresohn, filho da puta) proliferaram nos jogos como Union Berlin x Wolfsburg, em Borussia Dortmund x Freiburg, em Meppen x Duisburg ou em Carl Zeiss Jena x 1860 München. Outras torcidas optavam por expressar-se com maior sentido de humor, o que foi o caso dos torcedores do Schalke 04 (“Pedimos perdão às putas por tê-las relacionado ao senhor Hopp”), e os do Duisburg (“Ou ganhamos ou mostramos a faixa contra Hopp!”). Diante da magnitude dos acontecimentos, a DFB advertiu que seguiria com rigidez um protocolo (avisos por sistema de som, interrupção da partida ou, em caso de persistirem os insultos, suspendem a mesma). Entretanto, em uma reunião de urgência, os clubes alemães concordaram em uma via mais conciliadora, conscientes em sua maioria de que se ameaça a continuidade do modelo 50+1 e que, todavia, não se pode censurar a liberdade de expressão dos torcedores. O presidente do Union Berlin assim se expressou: “O exercício da livre expressão também inclui opiniões supostamente grosseiras”.22 Na verdade, os

protestos contra Hopp não são mais do que um sintoma do debate existente acerca do modelo societário do futebol alemão. Os casos de TSV 1860 München e Hannover 96 A implementação e a manutenção da regra 50+1 também gerou críticas. Vários investidores expressaram seu desconforto pelo que entendiam como um prejuízo em relação a clubes isentos e um impedimento para competir igualmente com outras equipes europeias. Entre os mais beligerantes estavam o bilionário jordaniano Hasan Abdullah Ismaik, presidente e acionista majoritário da TSV 1860 München, ou o empresário Martin Kind, presidente do conselho de administração do Hannover 96. Em 2017, o proprietário majoritário do time bávaro, depois de obter um novo rebaixamento do clube para a Segunda Divisão da Regionalliga, tornou pública a apresentação oficial de uma reclamação perante o Bundeskartellamt (a autoridade federal responsável pela regulamentação da concorrência e dos direitos dos consumidores) contra a regra 50+1. Ismaik, que havia salvado o 1860 München da falência em 2011, ao adquirir 60% das ações do clube (apesar de manter apenas 49% das ações com direito a voto, conforme estipulado no regulamento 50+1), disse que a regra era prejudicial para o futebol alemão e também para seus interesses. Ismaik considerou que, para o tamanho do seu desembolso, sua influência na equipe era escassa. Frente à falta de ação das autoridades federais, o magnata considerou vender suas ações em troca de 65 a 70 milhões de euros a Gerhard Mey, um empresário de Munique dono de 50% da fornecedora automotiva Webasto. Anteriormente, em novembro de 2009, o Hannover 96 já havia apresentado uma moção para liquidar a regra 50+1,

que, de acordo com os mandatários do clube da capital da Baixa Saxônia, havia se tornado obsoleta. No entanto, a iniciativa foi rejeitada de forma esmagadora por 32 dos 36 clubes presentes na votação. Entre as razões apresentadas pelos líderes do Die Roten para transformar ou suprimir a norma, estava o que eles entendiam como uma desvantagem competitiva sistemática. O principal acionista do Hannover 96, o já mencionado Martin Kind, proprietário e CEO do Kind Group, é outra das vozes que se levantaram contra a regra 50+1. Desde 1997, Kind presidiu o conselho de administração do clube, cargo que ele combinou com a administração geral da Hannover 96 Management GmbH.23 Entre os argumentos apresentados por Kind para abrir o debate sobre uma hipotética reforma ou supressão da regra estava a suposta estagnação do futebol alemão. No nível esportivo, clubes de outros países superaram as equipes alemãs nas competições mais importantes da Europa, segundo Kind – que usou a Premier League como exemplo –, devido à falta de recursos para impulsionar as categorias de base ou fazer contratações para jogadores de futebol badalados. Para contornar a regra, vários clubes da Bundesliga terceirizaram seus departamentos de futebol profissional como empresas de capital com o objetivo de atrair investidores. As demandas de Kind – que para uma parte da torcida não contavam com a maioria simples, o que vetava o pedido de isenção, do que Kind entendeu como uma simples recomendação – chegaram perante a assembleia geral que a DFL realizou em 22 de março de 2018. Na mesma ocasião, e de forma surpreendentemente para muitos dos participantes, foi aceita a moção apresentada pelo FC St. Pauli, que solicitava manter a regra 50+1 por 18 votos a favor, 9 abstenções e 4 votos contra (outros 3 clubes presentes não participaram na votação). Cabe pontuar que, apesar de a manutenção da regra vencer, os

clubes reunidos expressaram seu desejo de analisar e de discutir o futuro da norma, que eles entendiam estar sujeita a possíveis mudanças. Nesse sentido, Christian Seifert, diretor e CEO da DFL, e Reinhard Rauball, presidente da DFL, expressaram a possibilidade de que, se um clube decidisse tomar uma ação legal para tentar revogar a regra, essa pauta entraria novamente em questão. Assim, os clubes e os líderes da DFL e da Bundesliga concordaram em tentar garantir maior segurança jurídica à regra diante de uma queixa hipotética aos organismos nacionais, como o Escritório Federal de Concorrência alemão (Bundeskartellamt), ou internacionais. Pouco depois, em julho do mesmo ano, a Bundesliga rejeitou um pedido semelhante do Hannover 96. A instituição máxima do futebol na Alemanha considerou que Kind, apesar de ter apoiado o clube por duas décadas, não havia aportado capital suficiente para ser tratado como patrocinador principal e, portanto, não cumpriu o requisito de “promoção substancial” que rege as exceções à regra. Em parte, a decisão foi baseada em um relatório da associação Pro Verein 1896, 24 no qual foi argumentado que, apesar de estar vinculado ao clube por mais de vinte anos, Kind não havia apoiado financeiramente da forma necessária. Foi no ano de 2014 que se estabeleceu que a forma de compromisso econômico que permitiria a exceção ao cumprimento da regra 50+1 deveria ser uniforme em cada uma das vinte temporadas e, portanto, invalidava a quantia média de investimentos aportados por Kind durante o período estipulado. Por todas essas razões, foi negada a possibilidade de se tornar acionista majoritário do Hannover 96. A decisão foi tomada por unanimidade. Paralelamente, o Escritório Federal de Concorrência alemão, após a controvérsia gerada pelo caso de Hannover 96, avaliou se a regra 50+1 estava de acordo com a legislação do país.

As tentativas de Kind de transformar a regra 50+1 levaram uma parte dos torcedores do Hannover a se organizar para lidar com o que entendiam como um retrocesso. Desde 2017, foram comuns os protestos, incluindo greve (silêncio nos jogos) e um boicote no apoio ao time durante as partidas por parte de centenas de torcedores, que pediam a saída de Kind. A concentração de ações em suas mãos foi percebida como uma ameaça à sustentabilidade econômica da entidade e à sobrevivência do modelo com base na regra 50+1. Soma-se a isso a má situação econômica do Hannover 96, que, em 2018, acumulou 18 milhões de euros em perdas e foi rebaixado para a Segunda Divisão. O contexto adequado para a extensão do desconforto entre os torcedores resultou, pelo segundo ano consecutivo, em não ratificar a administração do Conselho de Administração do clube. A situação tornouse insustentável para Kind. Finalmente, depois de mais de vinte anos à frente da instituição, em uma assembleia muito movimentada e tensa, que contou com a presença de 2.100 torcedores, Kind foi destituído. Apesar de tudo isso, ele continua a controlar boa parte das empresas satélites vinculadas ao Hannover 96 por meio da empresa Profifußball von Hannover 96, com a qual apresentou um novo pedido de isenção da regra 50+1. Enquanto isso, a vontade do novo Conselho de Supervisão do clube era devolver a equipe aos torcedores. Nesse sentido, uma das primeiras propostas que o conselho propôs foi a de retirar o pedido de isenção da regra 50+1. Kind também foi instado a garantir mais transparência da entidade após algumas gestões pouco transparentes, como uma suposta transferência dos direitos da marca do clube para uma de suas empresas por um preço desproporcionalmente baixo. Finalmente, em julho de 2019, Kind e a empresa Profifußball von Hannover 96 retiraram o pedido de isenção

da regra 50+1. Dessa forma, encerrando o procedimento no Tribunal Permanente de Arbitragem para Clubes e Corporações das Ligas Licenciadas de Futebol Alemão. Ultras Gegen den moderne Fußball (Ultras Contra o futebol moderno) Outros atores que participaram do debate sobre a perpetuação da regra 50+1 foram os coletivos de torcedores radicais organizados. Na Alemanha, o fenômeno ultra tomou forma no final dos anos de 1980, com grupos pioneiros, tais como Fortuna Eagles Supporters do Köln (1986) ou os Soccer Boyz do Leverkusen (1989). No entanto, foi na década de 1990 que o fenômeno se espalhou por todo o país. O motivo foi a contratação de jogadores alemães pelas equipes italianas, fato que favoreceu as retransmissões na Alemanha das partidas da Série A. Foi assim que os jovens alemães conheceram formas até então inéditas de torcer e que logo trataram de reproduzir. O movimento ultra alemão viveu sua época de esplendor no inicio do século XXI, quando surgiram uma multidão de grupos em todas as categorias. Assim nasceu a denominada “cultura de arquibancada”, implicitamente associada a iniciativas como a campanha Gegen den moderne Fußball (contra o futebol moderno), mediante a qual se visibilizou o posicionamento dos ultras alemães contra a comercialização. Segundo o historiador Uli Hesse, isso se deve ao fato de que “os torcedores alemães nunca adquiriram a percepção de si mesmos como clientes, como fizeram os ingleses. Os torcedores se viam como parte do clube, e isso porque eles podiam se tornar membros da Verein, pessoas que tinham voz e voto no funcionamento do clube.” (KEOGAN, 2014, p. 200).

A implicação dos ultras nos grupos de pressão para os respectivos dirigentes de diversos clubes evidenciou essa rejeição do modelo de gestão econômica que se pretende impor no futebol alemão. Para evidenciar esse desconforto, é frequente a exibição de bandeiras e de cartazes com frases contra o futebol moderno e a mercantilização dos clubes e dos estádios. Eles também promoveram campanhas com o lema Erhalt der Fankultur (preservar a cultura das arquibancadas) para manter ingressos acessíveis,25 acabar com a fragmentação do horário das partidas, evitar o naming rights (venda do nome dos estádios para patrocinadores), proibir que se disputem partidas às segundas-feiras, manter as cores tradicionais dos clubes nas camisetas e escudos, ou rejeitar práticas abusivas e repressivas das forças da lei (KENNEDY; KENNEDY, 2013, p. 42). Os ultras germânicos foram autonomeados os principais garantidores do Fan Ownership, “eles são considerados uma espécie de vanguarda da luta pela manutenção de uma cultura tradicional dos torcedores; eles querem oferecer alternativas aos padrões estabelecidos de comportamento dos torcedores e do consumo de futebol” (KENNEDY; KENNEDY, 2013, p. 43). Segundo sua visão, os clubes são dos torcedores e, por esse motivo, foram decisivamente envolvidos no debate sobre a regra 50+1, que consideraram necessária e imprescindível para evitar a descaracterização das entidades ao seu redor. Um modelo em risco? A regra 50+1, estabelecida em 1998, tornou-se um símbolo do elogiado modelo de gestão de futebol alemão.26 Alguns clubes, apesar de estarem cientes de que a regra garantiu a preservação da identidade e da independência do futebol alemão, a consideram prejudicial, pois dizem que

impede a competição em igualdade de condições com clubes isentos ou seus rivais europeus. Entre as equipes que manifestaram interesse em mudar os regulamentos atuais está o Bayern de Munique. Na opinião deste clube, a abolição da regra incentivaria a competitividade da Bundesliga e, portanto, o nível de clubes melhoraria. Também ajudaria os clubes mais modestos, que poderiam comprar jogadores mais talentosos e mantê-los por mais tempo. Esse é o principal argumento dos críticos que têm como referência o modelo de negócios da Premier League inglesa. Segundo eles, a eliminação da regra levaria à chegada de novos investidores e patrocinadores que agora são dissuadidos por não conseguirem exercer um controle mais amplo. Ao mesmo tempo, isso implicaria em romper o isolamento que, na opinião deles, o futebol alemão sofre e o mantém afastado da dinâmica de desenvolvimento financeiro do futebol europeu atual. No entanto, o “modelo Premier” deve ser analisado com cautela, em primeiro lugar porque a chegada dos investidores está relacionada à projeção internacional da competição, algo que a Bundesliga não possui, e, em segundo lugar, é preciso ter em mente como as receitas de direitos televisivos são cada vez mais negociadas em baixa. Se seguirmos os modelos de outras competições nacionais que receberam injeções econômicas substanciais e contam com clubes de um único proprietário (Ligue 1, La Liga ou a Serie A), a verdade é que isso não foi sinônimo de um aumento na competitividade. Foi exatamente o oposto. Na Espanha, Barcelona e Real Madrid – clubes que certamente não são empresas de capital aberto – geralmente disputam a hegemonia, enquanto o PSG reina quase sozinho na França, assim como a Juventus faz o mesmo no cálcio italiano.

Um modelo de gestão diferente do alemão, portanto, não apenas não garante mais igualdade das ligas nacionais, uma disputa mais plural e um torneio mais aberto, mas sim pode reduzi-las a competições com domínios muito marcados ou, no melhor dos casos, com apenas duas forças. Isso também é consequência de uma distribuição desigual dos direitos televisivos e do aumento da receita proveniente de conceitos como o merchandising, que fizeram com que os clubes mais poderosos se distanciassem ainda mais daqueles com menos recursos. Além disso, é necessário levar em consideração a rejeição que a extinção da regra 50+1 gera na maioria dos torcedores alemães. Algo evidente nos vários protestos que foram organizados nos últimos anos e em ações judiciais movidas por torcedores ansiosos para impedir que seus clubes caíssem nas mãos de um proprietário majoritário. Um padrão de gerenciamento que também não garante sucesso, como evidenciado pelo caso da TSV 1860 München ou pela compra do Viktoria Berlin pela Advantage Sports Union (ASU) com sede em Hong Kong. O debate sobre a manutenção, modificação ou suspensão da regra 50+1 pode ser enquadrado em um contexto caracterizado pela extrema mercantilização do futebol profissional. Em seu relatório anual de 2018, a DLF publicou receitas totais de mais de 4 bilhões de euros. Foi a primeira vez que o futebol alemão alcançou esse número e o décimo terceiro ano consecutivo de receita recorde. Entre os dados oferecidos pelos líderes da liga alemã estavam os estádios, com mais de 19 milhões de espectadores e uma média de ocupação de 91%, que certificaram a Bundesliga como a competição mais popular do continente. Esse conjunto de êxitos, paradoxalmente, a coloca – apesar da regra 50+1 – como um campeonato atraente para qualquer investidor. Portanto, estamos diante de um dilema complexo, dado que o cumprimento da norma oferece, por

sua vez, um incentivo inegável como um torneio ávido por exploração, que pode oferecer enormes investimentos econômicos para aqueles que conseguem se estabelecer como proprietários majoritários. De qualquer forma, o que está claro é que qualquer decisão tomada a esse respeito, isto é, a revogação ou modificação da regra 50+1, deverá contar com a aprovação dos torcedores, que, por seu turno, são muito sensíveis a qualquer alteração do modelo atual. Essa é outra das singularidades do futebol alemão que apontamos: o empoderamento de seus torcedores, por meio do qual eles exercem uma influência significativa e decisiva. Portanto, não será possível entrar em uma negociação sobre a regra 50+1 sem levar em conta a opinião dos torcedores. Os seguidores, com sua persistência resistente, foram os que realmente impediram a transformação da estrutura legal em vigor no futebol alemão. Em resumo, o modelo corporativo alemão combina a estrutura legal estabelecida por seus órgãos de governo com a vocação participativa dos torcedores. As arquibancadas, longe de recriar apenas coreografias, atmosferas coloridas ou focos incansáveis de animação, também fazem parte da estrutura que compõe esse modelo. Na Bundesliga, longe de reprimir protestos e mobilizações de torcedores ou criminalizar grupos organizados, eles foram tratados como interlocutores, favorecendo o desenvolvimento de um modelo de gestão no qual todas as partes se sintam envolvidas. Um exemplo disso é encontrado no FC Sankt Pauli, um modelo de referência de gestão societária com a participação ativa dos torcedores. Seu caso, além de demonstrar a viabilidade e sustentabilidade econômica de uma gestão alternativa ao nível profissional habitual, exemplifica como o futebol do século XXI não deve relegar seus torcedores a meros

consumidores, pois esses torcedores dependem sobrevivência de um modelo societário democrático.

da

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Notas [1] Foi em 1963, quando a Bundesliga foi fundada, coincidindo com a mudança de critérios da DFB, que abandonou-se sua política tradicional de preservação do amadorismo para facilitar a progressiva comercialização do futebol

alemão.

Um

exemplo

dessa

transformação

é

encontrado em 1972, ano em que se elimina os limites de salários dos jogadores de futebol e os clubes passam a ficar mais intimamente ligados a vários patrocinadores. Os pioneiros foram o Eintracht Braunschweig e a marca de bebidas Jägermeister pela mão de seu gerente-geral Günter Mast (em 24 de março de 1973, o conjunto da Baixa Saxônia foi o primeiro clube a usar uma camisa patrocinada durante sua partida contra o Schalke 04). Seu exemplo foi

seguido por outros clubes. Na temporada 1974/75, 6 das 18 equipes da Bundesliga já tinham seu próprio patrocinador: HSV (Campari), Bayern de Munique (Adidas), Fortuna Düsseldorf

(Allkrauf),

Eintracht

Frankfurt

(Remington),

Duisburg (Brian Scott) e o citado Eintracht Braunschweig. Naquela temporada, os clubes receberam 1,5 milhão de marcos de seus patrocinadores, e, apenas quatro anos depois, as cifras chegam a 7,5 milhões. Na temporada 2004/05, o capital aportado pelos patrocinadores totalizou mais de 330 milhões de euros. Nesse processo, também foi decisiva a venda da exploração por um período de três anos dos direitos televisivos da liga em 1988 para a empresa UFA em troca de 135 milhões de marcos (KENNEDY; KENNEDY, 1993, p. 35-37). [2] Expressão utilizada por mais de duas décadas por fãs de todo o mundo para definir o processo de comercialização que

o

futebol

sofreu.

popularizaram

slogans

moderno”

“Against

ou

Seus como

detratores “ódio

Modern

cunharam

eterno

Football”

ao

e

futebol

(Gegen

den

modernen Fußball) para tornar suas críticas visíveis a um modelo que entendem como excludente, no qual apenas o lucro econômico prevalece. [3] Nota da tradução: particularidade alemã, as sociedades esportivas locais eram difusoras e praticantes do “Türnen”, aquilo que é conhecido como “ginástica artística” no Brasil. O autor utiliza, portanto, “sociedades gimnásticas”, termo

que preferimos manter, com devida tradução, para evitar a perda de significado. [4] Nele, destacam-se iniciativas como Fanladen (local de encontro dos torcedores do clube carrega o legado do pioneiro St. Pauli Fan Project, ]criado em novembro de 1989), o Fanräume (idealizado em 2007 como um espaço de reunião polivalente destinado aos torcedores e localizado na parte externa inferior do nível Gegengerade), a AGiM (grupo de

torcedores

(coordenador

de

organizados), torcidas)

ou

ou o

Fanclubspecherrat Abteilung

Förderne

Mitglieder (Departamento de Sócios Ativos). [5] Nota da tradução: NSDAP é a sigla para Partido NacionalSocialista dos Trabalhadores Alemães, também conhecido como Partido Nazista, que comandou a Alemanha no período. [6] Todos os membros da entidade têm o direito de participar dela. No entanto, aqueles que não estão em dia com pagamento de taxas trimestrais perdem o direito de voto. Para evitar qualquer tipo de fraude, somente o voto direto é permitido. Uma comissão eleitoral, criada em 2001, garante o bom funcionamento da votação. A decisão mais relevante adotada pela Assembleia Geral é a aprovação do equilíbrio econômico da entidade, condição essencial para que a DFB renove a licença de competição do St. Pauli, bem como a eleição do presidente do clube. O Conselho de Administração, composto por sete pessoas escolhidas pela

própria

assembleia

a

cada

quatro

anos,

é

o

órgão

responsável por propor cinco candidatos. Seus membros se reúnem a cada duas semanas. Entre suas funções, destacase representar o clube em atos oficiais (VIÑAS; PARRA, 2017, p. 153). [7] Um exemplo desse poder foi encontrado em novembro de 2007, quando a Assembleia Geral anual dos membros concordou em não vender o nome do estádio a nenhum patrocinador.

Duas

semanas

depois,

o

conselho

de

administração descartou a ideia de renomear o estádio para financiar a expansão e a modernização do clube (KENNEDY; KENNEDY, 1993. p. 41). [8] Para que a DFL conceda a eles a licença correspondente, os clubes devem fornecer uma série de documentações que comprove o bom estado de suas finanças. Além disso, a entidade analisa, em conjunto com cada clube, seu plano anual de negócios. Apesar disso, se durante a temporada uma entidade sofreu problemas econômicos, existe uma conta fiduciária que atuaria como seguradora. No entanto, desde a criação da Bundesliga nos anos de 1960, nenhum clube violou seu plano de viabilidade econômica. [9] “Thoughts on the 50+1 Rule”, Bavarian Football Works (07/04/2019). [10] A compra de um clube em Leipzig pela marca levou o Red Bull Salzburg a ficar em segundo plano. RB Leipzig se tornou o principal projeto esportivo da empresa, dada a

maior importância do futebol alemão, embora a empresa alegasse que a possibilidade de coexistirem no futebol de elite produziria uma disfunção competitiva que a companhia preferia evitar. Desde então, a equipe austríaca começou a atuar como uma subsidiária de treinamento do grupo alemão. Vários de seus melhores jogadores deixaram o clube para chegar a Leipzig (como o atacante internacional austríaco Marcel Sabitzer, o também zagueiro austríaco Georg Teigl, o atacante peruano Yordy Reyna ou o meia da seleção austríaca Stefan Ilsanker). A ação revoltou os torcedores de Salzburgo, que começaram a cantar músicas como “Merda de RB Leipzig”. Não era um caso único, uma vez que a marca possuía outro time, o FC Liefering, que jogou na segunda divisão austríaca, e que, desde 2012, tornou-se um time reserva do Red Bull Salszburg. [11] Nota da tradução: em 2019 a RedBull fecha um acordo com o Clube Atlético Bragantino, da cidade de Bragança Paulista, em São Paulo, formando o RedBull Bragantino. [12] Aconteceu que, durante algum tempo, enquanto as diferentes mudanças eram oficializadas, os jogadores de futebol do clube jogaram com camisas sem escudo. [13] A fim de cumprir todos os requisitos estipulados pelo DFB em termos de futebol de base e de formação, o RB precisou comprar quatro equipes subsidiárias do FC Sachsen que, na época, estavam em profunda crise financeira. Tudo isso depois de tentar uma operação semelhante com o

histórico FC Lokomotive Leipzig, criado em 1893, e que, até 1965, quando a reestruturação do futebol da RDA, ganhou seu nome atual. A operação não se concretizou devido aos protestos de seus torcedores, que conseguiram paralisar a venda durante uma assembleia de acionistas. De fato, o clube chegou a se dissolver em 2004 devido a seus problemas financeiros, fato que facilitou sua refundação naquele mesmo ano, agora com o nome de 1.FC Lokomotive Leipzig. [14] Produto dessa política que tentou limitar o acesso dos torcedores, no momento da promoção a Segunda Divisão do futebol alemão o clube tinha apenas 9 membros. A lista de membros acabou aumentando para vinte, a maioria dos quais trabalhadores da Red Bull. [15] A classificação do Red Bull Salzburg, como campeão austríaco, significou que a UEFA estudou as estruturas operacionais de ambos os clubes no verão de 2017 para determinar se eles poderiam entrar em conflito. Por fim, o principal órgão do futebol europeu sentiu que não havia impedimento para os dois clubes competirem na Europa, pois eram “suficientemente diferentes um do outro”. Na temporada seguinte, eles voltaram a se encontrar, dessa vez em uma eliminatória europeia. [16] A marca de bebidas energéticas comprou os direitos de exploração do antigo estádio até 2040.

[17] Em 30 de novembro de 2015, o Karlsruher Sport Club enfrentou o RB Leipzig no Wildparkstadion. Durante o encontro, os torcedores locais jogaram, de uma das arquibancadas, uma enorme réplica de uma lata de bebida energética que foi violentamente destruída ao chegar ao na parte baixa das arquibancadas entre aplausos e gritos contra o time rival. [18] THE GUARDIAN, "Dynamo Dresden fined £54,000 over severed bull’s head throw by fans”. 8 nov 2016. [19] Segundo a revista Forbes, Hopp ocupa o posto 15 no ranking dos alemães mais ricos, com uma fortuna que passa de 9,2 bilhões de euros. Além disso, os setores de torcedores mais militantes seguem resgatando o pasado familiar do mandatario do Hoffenheim, cujo pai – Emil Hopp – fazia parte das Sturmabteilung (SA), tropa de choque do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP – o partido nazista) e em novembro de 1938 participou do incêndio da sinagoga de Hoffenheim durante a Kristallnacht (Noite dos Cristais). Ver: LÓPEZ, M. P. El presidente del Hoffenheim, el mecenas que le llueven los insultos. 3 mar 2020.

[20] Também mostraram uma faixa com a legenda “filho da puta” dirigida a Hopp, cuja exibição gerou a proibição de todos os torcedores do Borussia Dortmund, sem exceção, de entrar

no

estádio

do

Hoffenheim,

pela

DFB.

Ver:

SPORTBUZZER,

“Nach

Anzeigen

gegen

BVB-Fans:

Dortmunder bepöhlen TSG-Mäzen Hopp erneut”, 22 set 2018; e TORRES, D. "La gran rebelión anticapitalista del fútbol alemán”, El País, 8 mar 2020. [21] O ex-jogador e atual presidente do Bayern chegou a xingar os ultras do clube bávaro de “idiotas e anarquistas”, definido-los como “a face feia do futbol”. Como resposta, um dos grupos ultras do clube, o Munich’s Red Pride, exibiu uma faixa com o lema: “A verdadeira face feia do FC Bayern exibem aqueles que aceitam dinheiro sangrento do Qatar”. No mesmo tom, The Unity, um dos grupos ultras do Borussia Dortmund, exibiu uma faixa com a legenda “as caras feias do

futebol”,

junto

a

outras

em

que

apareciam

“Rummenigge”, “Dietmanr Hopp” e “dirigentes da DFB”. Os ultas do Freiburg, o Immer Wieder Freiburg (IWF), também criticaram as declarações de Rummenigge exibindo uma faixa com o lema: “Insultar bilionários para você é um escândalo. A escravidão no Qatar? Não podía importar menos!”. [22] D. Torres, "La gran rebelión anticapitalista del fútbol alemán", El País (8/032020). [23] TORRES, D. op.cit., 2020 [24] Os objetivos dessa associação, criada em abril de 2015 após a eleição de um novo Conselho de Supervisão no clube, são o fortalecimento do esporte popular, a defesa da regra 50+1, a preservação dos direitos dos membros

(sócios) do clube e o fortalecimento do Conselho de Supervisão da entidade. [25] A Bundesliga tem os ingressos mais baratos no futebol europeu, o que explica por que as ligas alemãs têm a maior média de ocupação em seus estádios. Alguns clubes também incluem vantagens para os compradores. É o caso do Borussia Dortmund, que oferece aos espectadores o uso gratuito

do

espectadores,

sistema além

de de

transporte

público

descontos

para

aos

seus

pessoas

desempregadas ou portadoras de deficiência e entrada gratuita para crianças menores de seis anos e preços reduzidos para adolescentes entre 14 e 17 anos (KENNEDY; KENNEDY, 1993, p. 44). [26] Uma regra semelhante também governa o futebol na Suécia desde meados dos anos de 1990. Somente clubes sem fins lucrativos podem jogar a liga dos países nórdicos. E, como na Alemanha, se o clube está nas mãos de uma empresa que realiza atividades econômicas, esta não pode deter mais de 40% do clube. A regra, estabelecida pela Confederação Sueca de Esportes (Riksidrottsförbundet, RF), é válida e obrigatória para outras disciplinas e competições esportivas. Em 2013, a Confederação Sueca de Esportes permitiu que cada federação decidisse o tipo de estrutura de propriedade, o que abriu o debate para manter ou abolir a regra 50+1. A proposta encontrou a rejeição de grupos de torcedores cujas mobilizações levaram à continuidade da norma (KENNEDY; KENNEDY, 2018, p. 67- 68).

Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento de “soft power” chinês

Emanuel Leite Junior & Carlos Rodrigues

Introdução A partir de 2012, as relações entre a República Popular China e os Emirados Árabes Unidos atingiram um novo patamar, quando assinaram uma parceria estratégica. Na ocasião, dentre vários compromissos estabelecidos, havia um memorando de entendimento sobre energia, no qual a Companhia Nacional de Petróleo de Abu Dhabi (Abu Dhabi National Oil Company, ADNOC) e a Corporação Nacional de Petróleo da China (China National Petroleum Corporation, CNPC) constituíram uma parceria. Dois anos depois, CNPC e ADNOC criaram a joint venture Al Yasat (60% de capital emirático e 40% de capital chinês), com a função de explorar reservas de petróleo e de gás natural de Abu Dhabi. O estabelecimento da Al Yasat quebrou o domínio de empresas petrolíferas ocidentais na exploração de gás e de

petróleo daquela nação do Golfo Pérsico. Além da riqueza em combustíveis fósseis, os EAU interessam à China por conta de sua posição geográfica estratégica, uma vez que se encontra tanto no caminho marítimo quanto no caminho terrestre da Belt and Road Initiative (BRI), a chamada Nova Rota da Seda, um dos mais ambiciosos projetos geopolíticos e econômicos do mundo contemporâneo, lançado em 2013. Entre 2013 e 2017, por exemplo, os investimentos diretos chineses nos EAU aumentaram em 276%. Além disso, a China é o maior parceiro comercial de commodities que não sejam ligadas ao petróleo, respondendo por 9,7% de toda a comercialização global emirática nesse setor. As exportações chinesas, em sua maioria, passam pelos Emirados Árabes, de onde são reexportadas para África e Europa. Não é de admirar, portanto, que, em outubro de 2015, aproveitando sua passagem por Manchester no último dia de sua visita de Estado ao Reino Unido, o presidente chinês Xi Jinping tenha optado por visitar o Etihad Campus, o CT do Manchester City, ao invés do Manchester United, um dos clubes europeus mais populares na China e do qual, segundo sempre se especulou, Xi seria apreciador. Mas, por que o City e não o United? Ora, os Citizens pertencem ao City Football Group (CFG), que, por sua vez, é propriedade do Abu Dhabi United Group, um grupo de investimentos que pertence ao Sheik Mansour bin Zayed bin Sultan bin Zayed bin Khalifa Al Nahyan (Sheik Mansour), membro da família real de Abu Dhabi, ministro de Assuntos Presidenciais e vice-primeiro-ministro dos Emirados Árabes, além de irmão do presidente do país, o Emir Khalifa bin Zayed Al Nahyan. Na ocasião da visita ao CT que leva o nome da empresa aérea de Abu Dhabi, Etihad Airways, Xi Jinping tirou uma selfie com o atacante argentino Sergio Kun Agüero e o então primeiro-ministro britânico David Cameron. No dia 1º de dezembro de 2015, pouco menos de um mês e meio depois

da ida de Xi ao Etihad Campus, a China Media Capital (CMC) pagou US$ 400 milhões para adquirir 13% das ações do City Football Group. A CMC pertence a Li Ruigang, que é conhecido como o “Rupert Murdoch chinês” e é um alto membro do Partido Comunista Chinês. Duas semanas depois do estabelecimento da parceria sino-emirática no futebol, em 17 de dezembro de 2015, o príncipe herdeiro de Abu Dhabi, Sheik Mohammad Bin Zayed esteve na China em visita de Estado. Na ocasião, foi lançado um fundo de investimento estratégico conjunto no valor de US$ 10 bilhões. Em 2018, foi a vez de o presidente chinês retribuir a visita e ir aos EAU. Uma viagem histórica, não apenas por ter sido a primeira de Xi Jinping ao país, mas também o primeiro local visitado após sua reeleição. Na ocasião, foram assinados 13 acordos de cooperação e um novo Memorando de Entendimento visando ao estreitamento e ao fortalecimento das relações entre as duas nações. E o futebol seguiu sendo um elemento de conexão, uma vez que, em fevereiro de 2019, o CFG comprou o Sichuan Jiuniu Football Club, clube da cidade de Chengdu, na região de Sichuan, que disputa a China League Two, o terceiro escalão do futebol chinês. Poucos dias antes da compra do Sichuan Jiuniu FC pelo CFG, a Etihad Airways havia anunciado a renovação de toda a sua frota para quatro cidades chinesas: Pequim, Xangai, Hong Kong e Chengdu. Já em junho de 2019, a Etihad Rail, desenvolvedora e operadora do transporte ferroviário dos EAU, fechou um contrato no valor de US$ 1,2 bilhão com a estatal chinesa China Railway Construction Corporation (CRCC). O acordo prevê trabalhos conjuntos de engenharia civil e ferroviária entre a CRCC e a empresa de Abu Dhabi Ghantoot Transport & General Contracting, e diz respeito aos pacotes B e C do sistema ferroviário nacional dos Emirados Árabes. O pacote B tem extensão de 216 km e o C de 94 km, sendo parte de uma linha de 605 km que vai

desde Ghuweifatm, na fronteira com a Arábia Saudita, ao Porto de Fujairah, já na fronteira com Omã, e que é estratégico no caminho marítimo da Nova Rota da Seda. O futebol é a “cultura esportiva hegemônica global” (MARKOVITZ; RENSMANN, 2010). Giulianotti e Robertson afirmam que “o esporte, em particular o futebol, constitui um dos domínios mais dinâmicos e sociologicamente esclarecedores da globalização” e que, sendo “o jogo global”, o futebol nos ajuda a explorar teórica e empiricamente os processos multidimensionais e de longotermo da globalização (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2004). Segundo esses mesmos autores, o “futebol ao mesmo tempo reflete e contribui para o avanço dos processos de globalização das mais variadas formas”, uma vez que “a genealogia do jogo está intimamente ligada aos processos de globalização”, desde a expansão do futebol moderno, codificado na Inglaterra, que se confunde com a influência global do comércio inglês e, mais recentemente, a interpenetração cultural por instituições econômicas e ideologias no futebol (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2009). O exemplo das relações diplomáticas e comerciais entre China e Emirados Árabes Unidos nos ajuda a demonstrar não apenas como a globalização capitalista contemporânea afetou o futebol, transformando clubes em grandes corporações transnacionais (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2009, p. 82), como o City Football Group, mas também evidencia como, a partir do futebol, podemos analisar o fenômeno e as dinâmicas da globalização. Afinal, “o futebol é uma das grandes instituições culturais, como a educação e os meios de comunicação de massa, que forma e consolidam identidades nacionais no mundo inteiro” (GIULIANOTTI, 2010, p. 42), refletindo o contexto social, político e econômico no qual se encontra, e, na condição de esporte mais popular do mundo, possui uma grande capacidade de atração, sendo um mecanismo para a

construção da imagem de um país, como também pode auxiliar ao estabelecimento de diálogos e de confiança, de integração e em processos de persuasão (NYGÅRD; GATES, 2013, p. 237). Há muitas décadas, o esporte de alta competição tem sido usado como instrumento político a serviço das estratégias geopolíticas e ideológicas e, como coloca Gupta, também como uma ferramenta para expor o seu país ao mundo (GUPTA, 2009, p. 182). O esporte é, sem dúvida, um bom meio de promoção da imagem do país a nível internacional, servindo na busca de aceitação e de legitimação (ALLISON; MONNINGTON, 2002). O esporte de elite, portanto, pode servir como recurso de diplomacia pública (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018; DUBINSKY, 2019), a chamada diplomacia do esporte (ABDI et al., 2018; JARVIE; MURRAY; MACDONALD, 2017; NYGÅRD; GATES, 2013), sendo, assim, um instrumento que pode auxiliar um país a obter os resultados que deseja nas suas relações internacionais exercendo o poder da atração, ou como definiu Joseph Nye, um instrumento de ‘soft power’ (NYE, 2012). Entendemos que o futebol tem a capacidade de abrir portas, especialmente nos círculos do poder, por intermédio da “elite do poder” (MILLS, 1956), podendo influenciar decisões nas mais diversas esferas da sociedade. Neste capítulo, por meio da análise de alguns casos concretos, observaremos como o futebol tem servido de instrumento de poder político, econômico e geopolítico por parte da China. Globalização e futebol Globalização é um conceito complexo e controverso (HIRST; THOMPSON, 2003), um fenômeno que diz mais respeito a processos do que a um estado de coisas (IETTOGILLIES, 2003, 139). A produção acadêmica sobre o tema é ampla e heterogênea. Por essa razão, não é nossa intenção

discutir a globalização teórica e conceitualmente. O que pretendemos aqui é trazer algumas discussões que apresentem conceitos ou reflexões que nos parecem ser chaves para buscarmos compreender como esse complexo fenômeno se entrelaça com o futebol. Vários autores apontam para o entendimento de que a globalização pressupõe a ideia de interconectividade e de interdependência. Anthony Giddens (2009, p. 126), por exemplo, alude à concepção de “vivermos em um só mundo”, realçando a crescente interdependência entre indivíduos, grupos e nações, que, por conseguinte, faz com que a globalização seja decorrência de processos de mundialização e de internacionalização. No mesmo sentido, Nayan Chanda (2007) descreve que o “processo de globalização” se inicia a partir da crescente conscientização, em todo o mundo, desde tempos antigos, de “interconectividade e interdependência”. Quem também reitera esse prisma da interconectividade e da interdependência entre as pessoas é Grazia Ietto-Gillies (2003, p. 139), quando refere o aspecto geográfico/espacial do processo de globalização. Esses processos, contudo, não são novos. Têm ocorrido ao longo de toda a história humana, não se restringindo ao mundo contemporâneo (GIDDENS, 2009, p. 126). Por exemplo, em sua “teoria do sistema mundo”, Immanuel Wallerstein vai olhar para a globalização como um processo que encontra suas origens na expansão colonialista da Europa, principalmente a partir do século XVI. Esse processo permitiu aos países europeus o acúmulo de capital através da exploração dos recursos dos territórios por eles colonizados. Wallerstein define o sistema mundo como “mundo-economia”, integrado por meio do mercado, no qual duas ou mais regiões são interdependentes no que diz respeito a necessidades como comida, combustível e proteção. Essa divisão do trabalho refere às forças e às

relações na produção na economia mundial, o que leva à existência da interdependência. Como consequência da exploração colonial e da acumulação de capital, há uma divisão desigual de ganhos, permitindo aos países exploradores o controle das riquezas e dos avanços tecnológicos, gerando uma hierarquia de poder composta por “centro, semi-periferia e periferia” (WALLERSTEIN, 1974). Nessa continuidade, o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2000) afirma que “a globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial”. Essa lógica de um mundo globalizado centrado nas relações de poder estabelecidas nos tempos coloniais, a colonialidade do poder, até hoje se evidencia no futebol mundial: eurocêntrico, o futebol é uma manifestação inequívoca da reprodução do “sistema mundo” wallersteiniano. Por isso, a ascensão de países nãoocidentais representa, de alguma maneira, um abanão nas hierarquias de poder e na geopolítica do futebol (GUPTA, 2009b; LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2019a, 2019b). Richard Giulianotti e Roland Robertson também nos apresentam a globalização como um processo que encontra seu início na expansão colonialista europeia (embora não utilizem essa expressão wallersteiniana). Para esses autores, a globalização teria cinco fases. A primeira, a germinal, vai dos princípios do século XV a meados do século XVIII e se caracteriza pela conectividade transoceânica e a subjugação colonial e pela emergência das comunidades nacionais (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2009) – e aqui entendemos ser importante recordar Quijano (2000, p. 534), que nos explica, por exemplo, como termos tais como “espanhol”, “português” ou “europeu”, que antes significavam apenas uma origem geográfica ou nacional, passam, por meio da dominação do modelo colonial, a

representar uma relação de dominação, inclusive com a constituição de “hierarquias, lugares e papéis sociais”. A segunda fase seria a incipiente, mantendo-se, em grande medida, europeia (indo de meados do século XVIII aos anos de 1870). A terceira fase, de decolagem, é quando o processo de globalização passa, no entendimento de tais autores, a se inter-relacionar com o futebol, indo dos anos de 1870 aos anos de 1920, e é quando os “quatro pontos referenciais” da globalização se cristalizam: o ser individual, as sociedades (masculinas) nacionais (Estados nações), o sistema mundo de sociedades (relações internacionais) e a humanidade. A fase seguinte seria a da luta-pelahegemonia, ainda marcada pelos quatro pontos referenciais, mas com o acirramento de conflitos político-ideológicos, cada vez mais globais (dos anos de 1920 até os anos de 1960). Por fim, a quinta fase, a da incerteza, dos anos de 1960 até o ano 2000, em que o “sistema mundo de sociedade se torna ainda mais fluido e complexo (...), com um crescimento exponencial de novas instituições globais e sociais, como organizações governamentais internacionais e não governamentais, corporações transnacionais e novos movimentos sociais” (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2009). Foi a partir dos anos de 1990, já em um estágio avançado da fase de incerteza, que o termo globalização entrou na moda, passando a ser amplamente usado em muitos debates no mundo da política, dos negócios e dos meios de comunicação social (GIDDENS, 2009). Para Manuel Castells, uma nova economia emerge em escala mundial no último quarto do século XX. Castells vai olhar para as transformações na organização social da comunicação e da informação para explicar que a globalização é uma rede de produção, de cultura e de poder que é constantemente alterada pelos avanços tecnológicos, em especial das tecnologias da informação. Produtividade e competitividade são, em geral, uma função da geração de conhecimento e

do processamento de informações; empresas e territórios estão organizados em redes de produção, de gerenciamento e de distribuição; as atividades econômicas principais são globais – ou seja, elas têm a capacidade de trabalhar como uma unidade em tempo real, ou em um tempo escolhido, em escala planetária (CASTELLS, 2009, p. 77). Em The Condition of Postmodernity (1989), David Harvey é um dos primeiros teóricos a apontar para as mudanças em nossas experiências de “tempo e espaço” como efeito da “globalização”. Harvey cunha o termo “compressão do tempo-espaço” para explicar como o fluxo do capital, que se move cada vez mais rápido, impulsionado pelas atividades econômicas (produção, circulação e troca) cada vez mais aceleradas, principalmente devido aos avanços das tecnologias da comunicação e de transporte, leva à quebra de barreiras espaciais e das distâncias. Para Harvey (2011), “globalizar-se foi facilitado por uma reorganização radical dos sistemas de transporte, que reduziu os custos de circulação. (...) Os novos sistemas de comunicações permitiram a organização rigorosa da cadeia produtiva de mercadorias no espaço global”. O termo globalização, a partir dos anos de 1990, passa a ser associado à “expansão mundial do capitalismo”, representando uma “nova ordem mundial” (CHANDA, 2007; DUFFEY, 2009). Castells (2004, p. 2004) aponta a liberalização do mercado financeiro com o “Big Bang da City of London” em 1987 como fator determinante para a “globalização capitalista”. Harvey (2011) argumenta que essa “desregulamentação das finanças, que começou no fim dos anos 1970, acelerou-se depois de 1986, tornou-se irrefreável nos anos 1990”. Essa ascensão se caracterizou pela transformação de corporações de identidades nacionais em investimentos e propriedades transnacionais (DUFFEY, 2009, p. 331). Essas corporações transnacionais representaram um constante e enorme aumento dos investimentos diretos estrangeiros desde os anos de 1970, a maioria deles originados dos

países desenvolvidos e direcionados a beneficiar esse mesmo grupo de países (IETTO-GILLIES, 2003, p. 141). O fato é que essa globalização capitalista, com os mercados internacionais de capitais tendo rédeas curtas para avançarem em especulações desreguladas, as instituições internacionais impondo políticas pró-Ocidente e as corporações transnacionais tendo livre reinado, foi resultado direto de políticas elaboradas e aplicadas por governos ocidentais e por corporações financeiras e de outras esferas (MICHIE, 2003, p. 11) envolvidas nesse processo de hegemonização neoliberal. O futebol não ficou alheio a esses processos. Afinal, como já referimos, o “futebol ao mesmo tempo reflete e contribui para o avanço dos processos de globalização das mais variadas formas”, uma vez que “a genealogia do jogo está intimamente ligada aos processos de globalização” (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2009, p. 29). Para esses autores, o futebol não escapou à crescente interpenetração das ideologias e às instituições econômicas dominantes (p. 29), especialmente a partir dos anos de 1970, quando a esfera global do futebol passou por uma rápida transformação comercial (p. 63), sendo diretamente influenciada pela escalada mundial do “livre-mercado” e das diretrizes político-econômicas neoliberais (p. 64). A comercialização e a mercantilização do futebol, iniciadas entre os anos de 1960 e de 1970, ou seja, precisamente no período que Giulianotti e Robertson (2010, p. 137) definem como de incerteza na globalização, aprofundam-se nos anos de 1990, período que Giulianotti definirá como “futebol pósmoderno”. A ideologia neoliberal também levou para o futebol as privatizações, impondo a adoção, em diversos países, do modelo de clube-empresa (p. 81; p. 87-88). Até mesmo na União Soviética os efeitos da comercialização e empresarização foram sentidos. Com as reformas implementadas por Gorbachev na economia (perestroika) e

a abertura política (glasnost), os clubes tinham que se tornar autossustentáveis, adotando práticas capitalistas e estabelecendo relações de mercado. A questão não passava pela profissionalização dos clubes, pois sempre se soube que os jogadores eram pagos, tratava-se mais de um processo de comercialização. E em 1987, foi criado o Sovintersport, órgão para cuidar dos acordos entre clubes e empresas estrangeiras. Assim surgem as primeiras marcas de empresas ocidentais nas camisas dos times soviéticos, bem como os jogadores começaram a ser vendidos para clubes da Europa Ocidental, como as estrelas Oleh Blokhin, Oleksandr Zavarov e Rinat Dasaev (LEITE JUNIOR, 2018, p. 68-70). A globalização do capital, aliada ao fim da experiência socialista soviética (que, no início dos anos de 1990, representava o desaparecimento de um sistema alternativo ao capitalismo), fez com que ficasse “cada vez mais difícil resistir à ‘privatização’ dos clubes de futebol no mercado aberto” (GIULIANOTTI, 2010, p. 118). Em um mundo “sem barreiras”, a empresarizaçã dos clubes, em alguns casos até mesmo a “financeirização”, com ações em bolsas de valores, facilitou a metamorfose de muitas dessas associações em verdadeiras corporações transnacionais (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2009, p. 83-84). Outra mudança significativa, fruto da “quebra de barreiras”, por um lado pela ascensão dos novos sistemas de comunicações, por outro se beneficiando das desregulações dos mercados, foi a “revolução” dos direitos de transmissão televisiva, que facilitou na difusão cada vez mais global do futebol. A fase pós-moderna do futebol, caracterizada pelo crescimento financeiro pós-Copa do Mundo FIFA 1990 (GIULIANOTTI, 2010, p. 137), fez com que se aprofundasse o fosso que separa o centro da periferia em todas as escalas – global, continental e nacional (podemos acrescentar a escala estadual, no caso brasileiro). Isso porque a “distribuição

desigual dos pagamentos feitos pela televisão entre os clubes resulta em uma concentração ainda maior de riqueza financeira e do sucesso no futebol” (GIULIANOTTI, 2010, p. 127). Naturalmente, a concentração dos recursos se deu na Europa, ampliando o abismo do centro do futebol mundial em relação à periferia (resto do mundo). Porém, mesmo dentro do Velho Continente tal fenômeno também ocorreu entre seu centro e sua periferia. A Lei Bosman, que abriu as fronteiras para a livre transação e a livre circulação de jogadores “comunitários” no território da União Europeia e a possibilidade de uma equipe escalar qualquer atleta com cidadania comunitária, independente de nacionalidade, permitiu que gigantes ingleses, espanhóis, italianos e alemães, detentores de mais recursos financeiros, tornassem-se concorrentes inalcançáveis para os clubes até mesmo da “semiperiferia” europeia (GIULIANOTTI, 2010, p. 139). No Brasil, essa discrepância também se verifica na medida em que, como disse Giulianotti (2010), há uma tendência de concentração de riquezas entre os maiores clubes. Gerando, por exemplo, o fenômeno do “apartheid futebolístico” (LEITE JUNIOR, 2015, p. 60), reprodução no futebol do “apartheid social, o fosso intransponível que separa incluídos dos excluídos” (LEITE JUNIOR, 2015, p. 61), reflexo da relação centro-periferia que, no caso brasileiro, caracteriza-se pelas desigualdades sociais e regionais. Essa concentração de riquezas e a transformação dos meios de comunicação ajudaram a consolidar as marcas de alguns clubes, fortalecendo a difusão de seus símbolos e de seus produtos. No caso de clubes europeus, verificou-se o fenômeno das marcas globais. O City Football Group, referido na introdução, tem no Manchester City, da rica Premier League inglesa, um exemplo bem ilustrativo destes tempos de futebol globalizado. Porém, como veremos nas seções seguintes deste capítulo, o entrelaçamento da globalização com o futebol vai além.

Diplomacia pública e soft power Diplomacia é “a aplicação de inteligência e tato para a condução de relações entre governos de estados independentes” (SATOW, 1957). Como define Snow, diplomacia tradicional significa “relações governo-paragoverno (G2G)”, enquanto a diplomacia pública tradicional, por seu lado, representaria “governos falando com públicos globais (G2P)”. Ainda sobre a tradicional diplomacia pública, Dubinsky (2019) recorda que o termo “foi usado durante a Guerra Fria para se referir ao processo no qual organizações internacionais tentavam alcançar objetivos na política externa através do engajamento com o público estrangeiro”. Em contraposição, Snow (2009, p. 6) aponta que, mais recentemente, a diplomacia pública envolve a forma em que ambos, governos e indivíduos ou grupos privados, influenciam direta ou indiretamente as atitudes e as opiniões públicas que têm relação direta nas decisões de políticas externas de outros governos, ao que considera “P2P”. Ela explica que essa mudança se deve ao desenvolvimento das tecnologias da comunicação que facilitam a participação do público, que fala sobre assuntos de política externa e a subsequente influência da opinião pública na formulação de políticas externas. Opinião corroborada por Rawnsley (2012, p. 123), que alude ao fato de a diplomacia pública, cada vez mais, envolver atividades de agentes não estatais como protagonistas da comunicação de políticas externas. Assim como Snow e Rawnsley, Dubinsky (2019) também fala sobre a “nova diplomacia pública”, argumentando que esta se refere “também a agentes não-estatais”, explicando que a diplomacia pública compreende comunicações e interações de governos, decisores políticos, organizações e indivíduos que influenciam o público internacional a obter uma imagem mais favorável de uma nação que poderá, com

isso, alcançar seus objetivos na política externa. Essencialmente, a diplomacia pública procura exercer influência por meio da construção de engajamentos positivos e resilientes, aos quais outras partes considerem atrativos e válidos (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018). Em suma, a “nova diplomacia pública” é uma adaptação dos atores e dos agentes nas relações internacionais às transformações trazidas pela globalização. Uma vez que a diplomacia pública compreende ações que visam a produzir engajamentos positivos, o “ato consciente de comunicar com o público externo” (RAWNSLEY, 2012, p. 123), podemos dizer que a democracia pública é um facilitador do ‘soft power’. Afinal, se o ‘soft power’ pressupõe exercício do poder por intermédio de valores, de exemplos e de legados a serem emulados, é preciso que essas virtudes sejam conhecidas, pois não é possível exercer poder de atração quando ninguém sequer conhece as suas qualidades (MATTERN, 2008, p. 588). O que é, então, o ‘soft power’? Trata-se de um conceito introduzido por Joseph Nye (2012, p. 151), que, ao descrever as relações de poder, definiu que “poder é a habilidade de influenciar as outras pessoas para se conseguir os resultados que se deseja, o que pode ser feito através da coerção, do pagamento ou da atração”. Em contraponto ao “poder duro”, que se caracterizaria pela coerção (força militar) ou do pagamento (força econômica), haveria o ‘soft power’ (“poder brando”). “Um país pode obter os resultados que deseja na política internacional porque outros países – admirando seus valores, emulando seu exemplo e aspirando ao seu nível de prosperidade – vão querer segui-lo” (NYE, 2004, p. 5). Nye cunhou o termo ‘soft power’ ao procurar responder a duas mudanças nas relações entre Estados e a sociedade internacional, consequências, lá está, da globalização (HOCKING, 2016, p. 72). Primeiro, com os avanços da comunicação global,

vários atores passaram a ter a capacidade de formatar, de apresentar e de distribuir informações a diferentes audiências. Segundo, esses atores estavam transformando como os poderes políticos eram adquiridos e exercidos (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018, p. 1.140). Diante do “paradoxo da abundância”, Nye (2002, p. 68-69) considerou que tanta informação leva à pobreza da atenção e que, mais do que a informação, seria a atenção o produto mais escasso, e quem conseguisse fazer distinguir seus sinais de valores em meio aos ruídos adquiriria poder. Barnett & Duvall, citados por Xu et al. (2018, p. 2), afirmam que o poder está centrado na ideia de nações que usam recursos materiais para influenciar outras nações. Retomando a questão do “paradoxo da abundância” e seu ruído de comunicação, que implica na dificuldade em se destacar em meio a tanta informação e com tantos atores, os Estados passaram a ter a necessidade de promover sua legitimidade e sua atratividade. É nesse contexto, então, que Nye apresenta o conceito de ‘soft power’. Uma prática, aliás, que antecede à própria conceituação. Como diz Snow, “soft power é um conceito novo para um hábito antigo”, dando o exemplo de países que, bem antes do que os Estados Unidos, que é o foco da análise da autora, já usavam suas culturas como forma de obter vantagens para suas imagens nacionais, como França, Itália, Alemanha e o Reino Unido (SNOW, 2009, p. 4) – o que também se aplica à China. O conceito de ‘soft power’ foi introduzido no país em 1992, a partir daí gerando várias discussões até se tornar conceito central na formulação política no Partido Comunista (XU; WANG; SONG, 2018), passando a ser adotado na linguagem oficial do PCCh em 2007, por intermédio do discurso do então presidente Hu Jintao no 17º Congresso Nacional do partido. Apesar de ser um conceito relativamente tão recente no discurso oficial, Rawnsley (2009, p. 284) observa que desde os tempos dinásticos a

China recorre à sua dimensão cultural como forma de projetar sua imagem e de tentar exercer poder nas relações que estabelece com outros povos e outras nações. Prática adotada na República Popular da China desde os tempos de Mao Zedong, como no caso da “diplomacia dos pandas” (RAWNSLEY, 2009, p. 285) e a diplomacia do esporte, como veremos mais adiante. Diplomacia do esporte e soft power Para Freeman (2012), por seu turno, as nações utilizam o ‘soft power’ como uma forma de construir e de gerir as suas reputações, acrescentando, ainda, que este é um modo de ‘diplomacia pública suave’, que serve para os Estados não apenas se tornarem atraentes para os estrangeiros como também para os seus cidadãos. O esporte de alta competitividade há muito tempo tem sido usado como uma ferramenta ideológica. Como coloca Gupta (2009b, p. 1.782), um instrumento para mostrar o seu país ao mundo. Por essa razão, tem servido aos interesses políticos, tornando-se, assim, uma importante arena para políticas públicas (KORNEEVA; OGURTSOV, 2016). O esporte é empregado por muitos países para aumentar sua visibilidade e criar influência (JARVIE; MURRAY; MACDONALD, 2017, p. 1), mas não se limita a servir de instrumento de política externa, sendo também usado como ferramenta de política interna, isso porque serve como mecanismo de ‘soft power’ tanto na busca pela legitimidade e influência externas quanto internas (NYGÅRD; GATES, 2013, p. 236). No campo da política externa, o esporte é aplicado como parte de sua diplomacia, um processo no qual os Estados representam, comunicam e realizam sua cultura, seus valores e seus interesses (JARVIE; MURRAY; MACDONALD, 2017, p. 10). Quando governos empregam o esporte, propositadamente, como instrumento de

diplomacia, estamos diante da diplomacia do esporte em seu caráter tradicional (ABDI et al., 2018, p. 366), podendo acontecer dentro do esporte ou através do esporte (JARVIE; MURRAY; MACDONALD, 2017, p. 1). Entretanto, assim como na “nova diplomacia pública” ou “P2P” (SNOW, 2009), também há a “diplomacia do esporte não-tradicional”, que se caracteriza pela representação, comunicação e negociação não exclusivamente por Estados, mas também por agentes não-estatais, como, por exemplo, nos organismos internacionais das competições esportivas (ABDI et al., 2018, p. 366), algo, aliás, que muitas empresas chinesas têm feito nos últimos anos, como no caso da última Copa do Mundo FIFA, disputada em 2018, na qual companhias chinesas se destacaram entre os principais parceiros globais e regionais da entidade máxima do futebol (LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2019b). Legados e conquistas culturais, além do sucesso esportivo são formas de se conquistar a admiração dos outros. Afinal, a cultura é uma importante fonte de poder, e promover uma cultura convincente é um dos principais meios para construir uma imagem nacional externa (NYE, 2008, p. 95). No entendimento de Giulianotti (2015), os megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo, “podem ser considerados uma das mais poderosas manifestações contemporâneas da globalização”. Isto porque, segundo esse sociólogo, esses megaeventos têm reflexos nas esferas econômica, social e política. A propósito desse potencial de projeção do país e desse poder de atração, recordamos que todos os países dos BRICS1 sediaram megaeventos esportivos nos últimos anos. Pequim, a capital chinesa, recebeu os Jogos Olímpicos de Verão em 2008 e vai organizar os Jogos de Inverno em 2022. Em 2010, a África do Sul se tornou a primeira nação africana a sediar a Copa do Mundo de futebol, enquanto Déli, na Índia, promoveu os Jogos da Commonwealth. Entre 2014 e 2016, o Brasil esteve

no centro da atenção global com a organização do Mundial de futebol e dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A Rússia, por seu turno, recebeu os Jogos Olímpicos de Inverno em 2014 (Sochi) e a Copa do Mundo de futebol em 2018. Apesar de reconhecidos como forças emergentes no cenário econômico mundial, esses países viram no esporte, particularmente na organização de megaeventos, a oportunidade de demonstrar de forma mais evidente não apenas poder econômico, mas, também, de projetarem a nível mundial outro estatuto perante a comunidade global. Um novo contexto na estrutura hierárquica da geopolítica esportiva como possibilidade de se firmarem como potências na arena internacional (ALMEIDA; MARCHI JÚNIOR; PIKE, 2013; CORNELISSEN, 2010; GRIX; LEE, 2013). É por isso que o esporte, como instrumento de persuasão, sendo empregado intencionalmente como diplomacia do esporte, constitui-se um aspecto e uma ferramenta muito útil no exercício do ‘soft power’, sendo assim estudado por diversos investigadores (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2015, 2018; BRANNAGAN; ROOKWOOD, 2016; CHARI, 2015; CHEN; COLAPINTO; LUO, 2012; DELGADO, 2016; GRIX; LEE, 2013; KORNEEVA; OGURTSOV, 2016; KRZYZANIAK, 2016; LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2017; SAMUEL-AZRAN et al., 2016). O futebol como elo de integração chinês Em novembro de 2019, o presidente chinês Xi Jinping afirmou que “a globalização econômica é uma tendência histórica” tão irrefreável quanto o curso de um rio, que “está sempre indo para frente”, apesar de, “às vezes, algumas ondas andarem para trás”. A declaração não surpreende. Afinal, desde 2013, a China promove um dos mais ambiciosos projetos geopolíticos e econômicos do mundo, um plano de integração global, tendo o antigo

“Reino do Meio” (tradução literal do nome do país em chinês, Zhōngguó ) como o elo de união e de interconectividade, a Belt and Road Initiative (BRI), ou Nova Rota da Seda. A BRI é uma iniciativa que busca inspiração na antiga rota da seda como referência conceitual para políticas que busquem promover a aproximação e a integração da China com países asiáticos, europeus, africanos e, mais recentemente, também latino-americanos. Segundo van der Putten et. al (2016), o objetivo da China é contribuir para o desenvolvimento das relações internacionais e econômicas do país, fortalecendo a ‘conectividade’ – palavra que os referidos autores destacam como sendo chave para a diplomacia chinesa. Não por acaso, no discurso proferido em Astana (Cazaquistão), que marcou o lançamento da BRI, Xi pautou sua exposição enfatizando termos como “partilha”, “cooperação”, “paz e desenvolvimento”, “amizade” e “intercâmbio”, promovendo a BRI como instrumento de fortalecimento da “confiança, amizade, cooperação e da promoção do desenvolvimento e da prosperidade comuns” (XI, 2014, p. 316). É por isso que W. Liu & Dunford (2016) afirmam que a China não pretende apenas reestabelecer a antiga rota comercial, mas usar a mensagem cultural da Rota da Seda como uma base para a cooperação internacional. A Rota da Seda, segundo os mesmos autores, seria uma metáfora para a paz e cooperação, abertura e inclusão, aprendizagem mútua e benefício mútuo. O discurso em torno da BRI se coaduna com os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica,2 como se percebe quando Xi afirma o comprometimento da China em não interferir nos assuntos internos e nem nas políticas externas dos países (XI, 2014, p. 316). A BRI tem como objetivo estabelecer uma plataforma aberta com cooperação nas trocas econômicas, políticas e culturais. Ressalte-se que a dimensão cultural, representada principalmente por meio da promoção dos laços pessoais

(‘people-to-people ties’), está presente no discurso político, como quando Xi reafirma a necessidade do estreitar dos “laços pessoais” e o estabelecimento de “novos modos de cooperação” (XI, 2017, p. 549), acrescentando que é preciso fomentar esses laços levando adiante o “espírito da Rota da Seda”, promovendo “intercâmbios culturais e o aprendizado mútuo” (p. 551-552). Aliás, o Office of the Leading Group for Promoting the Belt and Road Initiative ( “ ” 3 ) reconhece que os laços pessoais são a “a fundação cultural para a construção da BRI”, bem como o ingrediente necessário para a materialização do “sonho comum de todos os povos de desfrutarem uma vida pacífica e próspera” (CHINA’S NATIONAL DEVELOPMENT AND REFORM COMMISSION, 2019, p. 26). Nos últimos anos, sob a liderança de Xi Jinping, a China tem exortado o “Sonho Chinês” ( ) (PETERS, 2017, p. 1.301) como parte da ambição do atual presidente de “rejuvenescimento”, que passa pela modernização do país e o sucesso econômico (PETERS, 2017, p. 1.302), que também é parte dos “objetivos do Duplo Centenário4 e realizar o Sonho Chinês de rejuvenescimento da nação” (XI, 2014, p. 178). Em outubro de 2017, o XIX Congresso do Partido Comunista Chinês incluiu a teoria da “Nova era do socialismo com características chinesas” ( ), de Xi Jinping, na Constituição do país (PETERS, 2017, p. 1.299). Essa ideia de “rejuvenescimento” passa, também, pela ascensão da China como protagonista e líder global. E a Nova Rota da Seda é o grandioso projeto chinês nesse sentido. Um desafio no qual a China busca aprofundar seu processo de abertura para o mundo ao mesmo tempo em que o país se coloca como promotor da globalização, propondo aos países ao longo da Rota – marítima e terrestre – um modelo econômico, político e cultural de cooperação e de intercâmbio. Não é, contudo, o único. A China também está atenta a outras esferas no cenário internacional. E é aí

que entram os esportes, com particular destaque para o futebol. O Plano de desenvolvimento do futebol chinês Tendo como objetivo o alavancar de toda a indústria esportiva, em 2014, o Conselho de Estado da China publicou as “Opiniões para a aceleração do desenvolvimento da indústria esportiva e promover o consumo do esporte” ( ), considerado um marco para a decolagem da indústria esportiva chinesa (LIU, 2017), estipulando que, em 2025, este setor fature US$ 813 bilhões (NIELSEN SPORTS, 2016). A título comparativo, de acordo com a Plunkett Research, a indústria esportiva mundial movimentou cerca de US$ 1,3 trilhão em 2017, US$ 519,9 bilhões apenas nos Estados Unidos (PLUNKETT RESEARCH, 2018). Esse documento encontra no “Plano de desenvolvimento do futebol a médio e longo prazo (20162050)” ( [2016—2050 ]), doravante o Plano, a principal estratégia para atingir os objetivos governamentais. Lançado em abril de 2016, o Plano apresenta uma estratégia de política pública formulada e implementada pelo Governo Chinês, sob a tutela do Gabinete do Conselho de Estado da Conferência Conjunta Interministerial sobre Reforma e Desenvolvimento do Futebol. Este órgão reúne, entre outros, 11 ministérios, quatro comissões de Conselho de Estado, cinco agências governamentais, além do Departamento de Propaganda do Partido Comunista Chinês e agências, comissões e órgãos dos governos locais e regionais. Além da ambição de ver as seleções masculina e feminina de futebol se consolidarem entre as maiores potências do cenário mundial (CHINA’S NATIONAL DEVELOPMENT AND REFORM COMMISSION, 2016), a abrangência do Plano passa também pelo sistema

educacional (CNDRC, 2016, 6), com o aumento da carga horária de educação física nas escolas, com ênfase no futebol, passando pelo estímulo à prática do futebol como questão de saúde pública (visando o bem-estar físico e mental dos jovens, bem como o fortalecimento do condicionamento físico das massas). E aqui notamos a importância da implementação de políticas públicas que integram um plano tão ambicioso com a promoção da educação como alicerce para o surgimento de novos talentos, promovendo um novo hábito cultural, que é a prática do futebol. O Plano, ciente desse desafio, prevê o fortalecimento do futebol nas comunidades (‘grassroots football’ em inglês) e nas camadas de formação, visando a promover o aumento da prática entre os mais jovens, desenvolvendo escolas que estimulem também o interesse e cultivem fãs. Nesse sentido, podemos considerar que o Plano é bastante inovador (LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2019a). Em linhas gerais, o Plano, originalmente, estabelecia-se em três etapas: até 2020, 20 mil escolas especializadas em futebol, 70 mil campos de futebol, entre 30 a 50 milhões de estudantes do ensino básico e secundário praticando o esporte; até 2030, 50 mil escolas especializadas em futebol, 5 a seleção chinesa masculina ser uma das melhores da Ásia, e a seleção feminina estabelecida como de “classe mundial”; até 2050, seleção de primeiro escalão no futebol mundial (masculino), no top20 do ranking da FIFA, tendo sediado uma Copa do Mundo e sendo uma potência mundial do futebol. O Plano se apresenta, também, como instrumento de promoção de intercâmbio cultural e diplomático com outras nações. O documento explicitamente demonstra a percepção das autoridades chinesas sobre a importância do futebol como instrumento de soft power. Por exemplo, discute a necessidade da intensificação do intercâmbio internacional, afirmando que as atividades futebolísticas são

“parte fundamental da diplomacia do esporte” (CNDRC, 2016, p. 2). Chama, ainda, atenção para a necessidade do fortalecimento da “cooperação internacional e trocas de talento na indústria futebolística” (p. 10), acrescentando que os canais de intercâmbio internacionais do futebol devem ser expandidos, encorajando a todos os órgãos a promoverem variadas formas de atividades internacionais e a ida de especialistas de futebol para o estrangeiro para estudos e capacitações, além de incentivar a participação de representantes nos organismos internacionais (p. 16). O Plano também refere a importância de elevar a abertura (‘opening up’) e a vantagem (‘win-win’) nas cooperações (p. 5). Como podemos observar, “cooperação” e “intercâmbio” são duas palavras-chave tanto no Plano quanto no discurso político da BRI. O que demonstra como as iniciativas no futebol podem exercer papel fundamental nas aspirações geopolíticas chinesas, além de mostrarem coerência com Os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica. Aliás, a questão da promoção da cultura chinesa foi expressa por Xi Jinping em discurso na 12ª sessão do grupo de estudos do Gabinete Político do 18º Comité Central: “o fortalecimento de nosso soft power cultural é decisivo para que a China alcance os objetivos do Duplo Centenário e realizar o Sonho Chinês de rejuvenescimento da nação” (XI, 2014, p. 178). O recémpublicado “Plano de Ação 2020 da Associação Chinesa de Futebol” reforça esse entendimento e renova os objetivos lançados no Plano de 2016. Uma de suas metas principais é a popularização do futebol e a promoção desse esporte como uma construção cultural, que conta com o intercâmbio internacional para expandir a influência chinesa e promover a imagem da China em todo o mundo (CHINESE FOOTBALL ASSOCIATION, 2020). O futebol e o seu Plano de desenvolvimento, evidentemente, não inovam no que tange aos seus propósitos como instrumento de diplomacia pública e soft

power. Como dissemos anteriormente, embora o debate sobre a teoria do soft power só tenha se iniciado no seio do Partido Comunista Chinês em 1992 e adotado na linguagem oficial partidária em 2007, esse recurso já é utilizado pela China há muito tempo. Inclusive no esporte. Desde a proclamação da República Popular da China, em 1949, aliás, o esporte tem sido utilizado como um instrumento político e diplomático. A começar pela chamada “sovietização do esporte”, ainda nos anos de 1950, processo que foi fundamental para o estabelecimento de contatos e de relações da China com a União Soviética e os países do campo socialista do Leste Europeu (HONG; ZHOUXIANG, 2012a); passando pelos Jogos das Novas Forças Emergentes (GANEFO) – por intermédio do qual a China procurou fortalecer sua liderança junto aos países do denominado “Terceiro Mundo” e os “não-alinhados”, como alternativa às potências soviética e estadunidense (HONG; ZHOUXIANG, 2012b), além de promover o esporte como instrumento da “diplomacia revolucionária” (QINGMIN, 2013), quando o país tentava exportar a revolução; também não podemos esquecer da emblemática e histórica “diplomacia do pinguepongue”, que permitiu a reaproximação com os EUA durante um período em que as relações sino-soviéticas eram tensas (HONG; ZHOUXIANG, 2012c); já no período de “abertura”, temos a estratégia Olímpica, implementada nos anos de 1980 (HONG; ZHOUXIANG, 2012d) e que foi intensificada após os maus resultados nos Jogos de Seul (1988), com a implementação do sistema ‘juguo tizhi’ ( ), que em português significa ‘todo o país apoia o sistema de esporte de elite’, uma estratégia política que pode ser resumida como a busca pela glória Olímpica (HONG; ZHOUXIANG, 2012e, 2012f). Glória que foi alcançada nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. Voltando ao Plano, como as suas diretrizes são implementadas a fim de que sejam cumpridos seus

objetivos tão complexos e ambiciosos? De acordo com esse documento, o governo chinês se coloca no papel de liderança do desenvolvimento inovador, responsabilizandose a garantir que o futebol tenha papel predominante no desenvolvimento e na reforma do esporte na China. O documento, entretanto, também chama a atenção para a função preponderante dos parceiros não governamentais, ressaltando a participação ativa do setor privado, respeitando, aliás, o que está previsto no “Opinions on Accelerating the Development of Sports Industry and Promoting Sports Consumption”. O Estado chinês se propõe a limitar suas ações à orientação e ao apoio ao desenvolvimento da indústria esportiva, fomentando uma estrutura que permita o fortalecimento de um mercado competitivo (ZHAN, 2013). Uma característica chinesa, frisese. Afinal, desde o fim dos anos de 1970, sob a liderança de Deng Xiaoping, a China vem passando por profundas transformações econômicas. Dentre as principais, podemos identificar a implementação do chamado “Socialismo com Características Chinesas”, a “economia socialista de mercado”, ou “socialismo de mercado” em 1992 (CHEN et al., 2017; GONG; CORTESE, 2017). O Estado e o mercado são as principais formas de alocação de recursos para as necessidades e os desejos das pessoas (LANE; ERSSON, 1986). A China, porém, possui um sistema peculiar. Como argumenta Ostrom, o caso chinês representa um complexo sistema econômico, que requer uma nova teoria que vá além da dicotomia Estado e mercado (OSTROM, 2010). Isso porque as relações entre Estado e mercado no contexto político-econômico da China são mais complexas, não sendo possível explicar pela clássica divisão dicotômica. Por essa razão, Elias Jabbour (2019, p. 95) afirma que “emerge na China uma nova Formação Econômico-Social”. Dentro “da natureza gradualista das reformas chinesas” (p. 77), com o “socialismo de mercado”, ao deixar de investir diretamente nas empresas estatais, o governo passou a alocar mais

verbas em infraestruturas, permitindo o desenvolvimento do ambiente competitivo privado, transformando-se num provedor de serviços para que a iniciativa privada prosperasse (CHEN et al., 2017). Mas, a partir de 2009, em resposta à crise, iniciada em 2008, do capitalismo globalizado, dá-se uma nova etapa nesse processo, havendo um “avanço do setor estatal na economia chinesa” (JABBOUR, 2019, p. 97). Embora governo e os conglomerados privados sejam interdependentes, o Estado ainda exerce grande poder sobre os recursos, afinal, o “Partido Comunista tem a força política que controla o Estado que, por sua vez, detém o controle dos fatores objetivamente estratégicos” (p. 107). A economia de mercado chinesa permite a convivência e competitividade da iniciativa privada em várias escalas, desde o pequeno negócio às grandes corporações transnacionais capitalistas (chinesas e estrangeiras). Não apenas isso. O Estado chinês exerce papel primordial na criação das condições para que a iniciativa privada prospere, inclusive por meio da criação de novos mercados. Ao mesmo tempo em que grandes conglomerados empresariais estatais (149) e o sistema financeiro estatal têm presença e influência central nesse mercado (p. 109). Além disso, “sob o socialismo, o comércio exterior é uma instituição pública, planificada e de Estado” (p. 109). Por isso, como observam Tan et al. (2016), os grupos e conglomerados privados terminam se tornando propagadores das políticas governamentais. O futebol como elemento de conexão A propagação das políticas do governo chinês para o futebol, na execução do Plano, tem sido conduzida, em larga medida, graças à iniciativa privada. Isso porque muitos dos investimentos chineses que têm sido realizados em todo o mundo desde o lançamento do Plano são por

intermédio de conglomerados privados: Alibaba Group, Dalian Wanda Group, Suning Commerce Group e Fosun, para citar apenas alguns exemplos. O Alibaba detém 50% do Guangzhou Evergrande (que venceu oito das últimas nove Super Liga Chinesas), além de ser o principal patrocinador da Copa do Mundo de Clubes da FIFA (e aqui nós podemos identificar como os chineses, através da influência financeira, têm começado a obter os resultados que desejam, ou seja, a exercerem poder, uma vez que o Mundial de Clubes alargado a 24 participantes, que será disputado em 2021, acontecerá na China) e ser um dos maiores patrocínios dos Jogos Olímpicos até 2028. O Dalian Wanda Group é proprietário da Infront Sports & Media AG (uma das maiores empresas de marketing esportivo do mundo e que tem como um de seus clientes nada menos do que a FIFA), é um dos “parceiros” da FIFA (este termo significa o topo da hierarquia entre os patrocinadores da entidade máxima do futebol) e detém 3% das ações do Atlético de Madrid, cujo estádio, a propósito, chama-se Wanda Metropolitano, além do clube chinês Dalian Yifang FC. Esse caso é particularmente interessante, pois o grupo Wanda detinha 17% das ações do Atlético de Madrid até fevereiro de 2018. Pouco depois de autoridades do esporte da China terem falado publicamente sobre a “queima de dinheiro” no futebol, uma referência a alguns investimentos tanto no mercado internacional como nas contratações de estrangeiros por clubes chineses, o grupo Wanda vendeu 14% de suas ações para a empresa israelense Quantum Pacific Group e, a seguir, assumiu o controle do Dalian Yifang FC. Uma movimentação que ilustra dois pontos que já levantamos aqui. Por um lado, a capacidade do Estado chinês em influenciar as decisões dos investidores privados. Por outro, a fluidez do mercado global do futebol, em que os clubes, transformados em empresas, inclusive com ações em bolsas de valores, passam a ser corporações

transnacionais, mas são apenas mais um negócio em meio a tantos outros dos seus “investidores”. A questão da participação da iniciativa privada traz à discussão a relevância do papel exercido pelos agentes nãoestatais na “nova diplomacia pública”, aqui, mais especificamente, a “diplomacia do esporte não-tradicional”, como já foi referido anteriormente neste texto. Há, também, a influência exercida pela “elite do poder”, que, segundo C. Wright Mills (1956, p. 4), não são mandatários desacompanhados, constituindo uma rede de conselheiros, consultores, porta-vozes e formadores de opinião que contribuem na formulação de pensamentos e nas tomadas de decisão. Segundo Mills, nessa elite se encontram políticos profissionais, gestores e mesmo celebridades. Os negócios no futebol, como já argumentamos, podem ser essa ferramenta política e econômica, um meio através do qual se exercita e se acumula o poder, adquirindo legitimidade e credibilidade, além de influência na governança do esporte. É o que acontece, por exemplo, na elite italiana do poder, que, de acordo com Doidge (2018, p. 118), envolve negócios, política, futebol e governança do futebol. A propósito dessa influência por intermédio dos negócios no futebol (como patrocínios e parcerias comerciais) e do posicionamento de representantes em setores estratégicos de organismos internacionais, a própria China tem feito isso, como se viu na última Copa do Mundo na Rússia e mesmo nos movimentos de bastidores da FIFA (LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2019b). Por essa razão, como já analisamos em publicações anteriores, não nos parece causal o enorme volume de investimentos chineses no futebol mundial, principalmente na Europa – como a aquisição de clubes (LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2017, 2019a). Intitulamos este artigo como “Faixa, Rota e Bola: o futebol como instrumento do soft power chinês” para

ilustrar como as estratégias geopolíticas e econômicas chinesas da Belt and Road Initiative, que, em tradução literal, seria “Iniciativa Faixa e Rota”, também se interrelacionam com as ambições chinesas na geopolítica e na economia do futebol globalizado. O exemplo das relações sino-emiráticas apresentado logo na introdução deste texto é apenas um caso em que é possível identificar como o futebol tem servido como meio de conexão e de integração da China com parceiros diplomáticos e comerciais, desempenhando, assim, papel importante na busca pela promoção da imagem e da expansão da influência do país no mundo. Aliás, a presença chinesa no capital do City Football Group, proprietário do Manchester City, não é o único negócio que envolve conglomerados chineses e interesses estratégicos com o futebol inglês, bem como o caso dos EAU não é o único em que ferrovias e ligações a portos interessam à China. Até bem pouco tempo, os quatro maiores clubes da West Midlands inglesa pertenciam a investidores ou a corporações chinesas: Aston Villa, Birmingham City (ambos de Birmingham), Wolverhampton Wanderers e West Bromwich Albion. Destes, só o Aston Villa já não pertence aos chineses. As empresas ou os empresários do país asiático estão presentes em três cidades da conurbação de West Midlands, que é a terceira mais populosa do Reino Unido, com cerca de 2,5 milhões de habitantes. E o que essa região em particular tem de tão interessante? Ela é estratégica no território inglês, pois liga o Sul ao Norte, no centro da qual se encontra a cidade de Birmingham, o segundo maior município britânico. Para além de precisar de reformas infraestruturais (fator que sempre atrai grupos de investimentos, com necessidade de “diversificar” seus negócios e fazer circular seus capitais), a região de West Midlands tem papel central em um dos principais projetos infraestruturais do governo britânico, a High Speed 2 (HS2):

uma ferrovia de alta velocidade, que será a segunda do gênero no país (a HS1 liga Londres ao Canal da Mancha) e que vai conectar a capital britânica a Manchester e Leeds, desenvolvendo-se numa forma de Y, com a bifurcação a acontecer em Birmingham. Apenas a primeira etapa da obra, que prevê a ligação Londres-Birmingham, representa um projeto orçado em algo como 27 bilhões de libras. E a quem pertence, por exemplo, o Wolverhampton Wanderers? Ao conglomerado Fosun International Ltd., que, em 2017, chegou a acordo com o governo chinês para construir a primeira ferrovia de alta velocidade privada da China (Hangzhou-Shaoxing-Ningbo High Speed Railway, em construção na província de Zhejiang). O interesse da China na construção da HS2 é público. Em 2019, funcionários do governo britânico viajaram para a China, onde se reuniram com representantes da China Railway Construction Corporation (sim, a mesma empresa envolvida no projeto ferroviário nos EAU, que mencionamos na introdução), que tem como uma de suas parceiras estratégicas mais próximas a Fosun. 6 A China, aliás, já investiu na West Midlands Transport Network, ajudando nas melhorias da ferrovia de cargas que liga o Porto de Southampton (um dos maiores portos britânicos de águas profundas) a um dos maiores centros de cargas do país, Birmingham. Convidamos o leitor a um exercício de adivinhação. A quem pertence o Southampton FC? Em 2017, o chinês Gao Jisheng usou parte de sua fortuna, adquirida por meio da empresa Lander Sports Development Co., para comprar 80% das ações dos Saints. Embora a propriedade do Southampton seja um investimento pessoal e familiar de Gao, não deixa de ser curioso que, em 2019, a Lander Sports Development Co. passou a ser controlada pela Chengdu Sports Investment Group, que faz parte da estatal Comissão de Supervisão e Administração de Ativos do Município de Chengdu (sim, a cidade do Sichuan Jiuniu FC, do City

Football Group). Gao, que é presidente do Southampton, ainda detém 23,95% das ações da Lander Sports, sendo, portanto, sócio da estatal. Portos, ferrovias e futebol parecem se entrelaçar ao longo do caminho dos interesses geopolíticos e econômicos da China. Para além dos Emirados Árabes Unidos e da Inglaterra, também é o caso do Paquistão. Em março de 2019, após uma reunião do Comitê para o Desenvolvimento do Futebol do Senado paquistanês, o presidente do Senado daquele país, Muhammad Sadiq Sanjrani, declarou que a promoção do futebol seria incentivada a nível nacional. O Senador afirmou, ainda, que, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento do futebol paquistanês, dois estádios de padrão internacional seriam construídos nas cidades de Quetta e Gwadar. Essas obras contarão com o apoio do governo chinês. É a chamada “diplomacia dos estádios”, termo usado para referenciar a prática chinesa de presentear países com estádio, como forma de diplomacia pública e de soft power, especialmente “entre os países em desenvolvimento” (WILL, 2012). Algo que remonta aos tempos de Mao Zedong, que via nessa ação um meio diplomático, uma maneira de demonstrar seu compromisso cultural, econômico e sociopolítico com os países menos desenvolvidos. De acordo com Xue (et al., 2019), a República Popular da China já construiu mais de 100 estádios em países em desenvolvimento. E no caso dos dois estádios paquistaneses, a escolha das cidades não nos parece ser fruto do acaso. Afinal, Quetta e Gwadar estão na rota do Corredor Econômico China-Paquistão e, mais do que isso, encontram-se no caminho do projeto de uma das duas ferrovias China-Paquistão, esta, em particular, vai ligar a cidade de Kashgar, na Região Autônoma Uigur de Xinjiang, a Gwadar, um local de enorme interesse para a China, por causa do seu porto de águas profundas, situado no Mar Arábico. Este porto é considerado estratégico para o

caminho marítimo da Nova Rota da Seda (LEITE JUNIOR; RODRIGUES, 2020). Conclusão A China é um poder global em ascensão. Desde o fim da Guerra Fria e do colapso da experiência do socialismo real soviético, a força hegemônica do capitalismo, agora em sua versão neoliberal, alicerçada pela globalização capitalista que se expandiu vertiginosamente no último quarto do século XX, não via sua supremacia ser questionada. O desenvolvimento do socialismo com características chinesas, o “Sonho Chinês” e os “objetivos do Duplo Centenário” colocam a China em processo de expansão global, em que o país busca se afirmar, definitivamente, como uma potência no cenário geopolítico. E o futebol tem sido um dos instrumentos usados pelo governo chinês. Por um lado, como ferramenta na penetração do mercado da indústria esportiva, por outro como um meio de persuasão, uma forma de obter os resultados desejados pela cooperação e pela cooptação, ou seja, o futebol como instrumento do exercício da diplomacia pública (do esporte) e do soft power. Como colocam Scutti e Wendt (2016), o futebol, ao lado da demografia, desenvolvimento tecnológico, econômico e poderio militar, é um critério de avaliação de poder internacional. Assim sendo, argumentam os autores, “geopolítica e futebol se tornaram universos inseparáveis” (p. 105). A geopolítica do futebol mundial está em transformação. Países emergentes, como os do BRICS, perceberam no esporte, e mais especificamente no futebol, um instrumento de soft power capaz de os reposicionar no contexto internacional. A China, como demonstramos neste capítulo, tem sido uma das forças motrizes dessa mudança. E o Brasil já se encontra na rota chinesa. Em outubro de 2019, na ocasião da visita de Estado do presidente do Brasil

Jair Bolsonaro à China, os dois países emitiram uma declaração conjunta com 12 pontos. O ponto de número 6 expressava a determinação de ambos os países no desenvolvimento de políticas como a Nova Rota da Seda, enquanto o oitavo destacava o compromisso de cooperação nos campos da cultura e do esporte, “em particular o futebol”. E já existe quem esteja explorando esse mercado há algum tempo, como o ex-jogador Ronaldo, que, em parceria com o empresário Carlos Wizard, já possui nove unidades da “Ronaldo Academy” em oito cidades chinesas. No Brasil, os chineses do Shandong Luneng compraram da Traffic o Desportivo Brasil, em Porto Feliz-SP, e o Shanghai SIPG, onde jogam Hulk e Oscar, tem um centro de treinos em Londrina-PR, em parceria com o Londrina EC, SM Sports (de Sergio Malucelli) e o Grupo Figer. Portanto, não se espante se um dia um clube tradicional brasileiro se tornar propriedade de chineses, principalmente se estiver sediado em uma cidade ou região de interesse estratégico chinês.

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Coexistence.

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The

Journal

of

Notas [1] Acrônimo, em inglês, do grupo criado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, países cujo crescimento econômico

permitiu

(re)posicionamento

no

a

consolidação

cenário

de

econômico

um global,

especialmente no que diz respeito à influência geopolítica. [2] Estes princípios aparecem primeiro como um tratado internacional entre a China e a Índia, assinado em Pequim em 1954 (ZHENGQING; XIAOQIN, 2015, p. 70). Mas foi o Premier Zhou Enlai quem primeiro estabeleceu a ideia de “coexistência pacífica” com a diplomacia chinesa. Em declaração em apoio a uma recomendação sobre a paz submetida pela União Soviética à Assembleia Geral da ONU, ele destacou os princípios da igualdade, benefício e respeito mútuos para a soberania territorial (p. 72). Os Cinco Princípios para a Coexistência Pacífica são: respeito mútuo pela

soberania

e

integridade

territorial;

igualdade

e

benefício recíproco; não-agressão mútua; não intervenção nos assuntos internos; coexistência pacífica. Os Cinco Princípios são considerados “o mais importante cartão de visitas

da

exercendo

China um

no

papel

cenário

global

importante

na

contemporâneo, promoção

do

desenvolvimento pacífico da China e moldando sua imagem como um poder responsável” (p. 67). [3] Este órgão opera sob a Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Reforma e tem como objetivo guiar e

coordenar a BRI. [4] Em 2021, o Partido Comunista Chinês completa 100 anos de existência e em 2049 será celebrado o centenário da República Popular da China. [5] Em 2017, o Diário do Povo (

) informou que as

autoridades esportivas chinesas anteciparam para 2025 a meta de haver 50 mil escolas de futebol (PEOPLE’S DAILY, 2017). [6] A Fosun é sócia do agente português Jorge Mendes. A empresa chinesa detém parte do capital da agência do empresário de Cristiano Ronaldo, a Gestifute. Jorge Mendes, a propósito, foi quem intermediou a já referida negociação das ações do Atlético de Madrid, vendidas pelos chineses da Wanda para os israelenses da Quantum Pacific Group. Os israelenses,

também

por

intermédio

de

Mendes,

posteriormente compraram a SAD do clube português Famalicão.

“Soft power” e futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita

Emanuel Leite Junior & Carlos Rodrigues

Introdução Desde 2008, nenhum outro clube no mundo gastou tanto em contratações de jogadores profissionais quanto o Manchester City. Ao longo dos últimos 12 anos, o clube inglês desembolsou €1,845 bilhão (R$ 8,67 bilhões) em reforços para o seu time de futebol masculino. Quase meio bilhão de euros a mais (ou R$ 2,33 bilhões) do que o rival Manchester United, o segundo clube que mais despendeu dinheiro em transferências no mesmo período – €1,349 bilhão (R$ 6,34 bilhões). Pouco abaixo do Manchester United surge o francês Paris Saint-Germain (PSG). Desde 2008, o clube parisiense deixou €1,324 bilhão (R$ 6,22 bilhões) no mercado de transações de atletas. Manchester City e PSG tinham os elencos mais caros do futebol mundial na temporada 2019/20. O plantel de 2019/20 dos Citizens

custou €922,4 milhões, enquanto o dos parisienses custou €845,24 milhões. Valores superiores aos dos elencos de Manchester United (€784,69 milhões), Barcelona (€762,14 milhões) e Chelsea (€622,06 milhões), que fecham o top 5 desta relação; e muito superior ao do Liverpool (€522,34 milhões), que, à altura em que escrevíamos este artigo, era o detentor dos títulos do Mundial de Clubes FIFA e da Liga dos Campeões da UEFA, e liderava a Premier League com 22 pontos de vantagem sobre o segundo classificado, o Manchester City. E o que Manchester City e PSG têm em comum para além do apetite por gastar dinheiro nas janelas de transferências? Os dois clubes são propriedade de grupos de investimentos do Golfo Pérsico. Em 2008, os Citizens foram adquiridos pelo Abu Dhabi United Group, um grupo de investimentos que pertence ao Sheik Mansour bin Zayed bin Sultan bin Zayed bin Khalifa Al Nahyan (Sheik Mansour), membro da família real de Abu Dhabi, ministro de Assuntos Presidenciais e vice-primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos, além de irmão do presidente do país, o Emir Khalifa bin Zayed Al Nahyan. Em 2014, o Abu Dhabi United Group criou o City Football Group (CFG), 1 transformando o Manchester City na principal bandeira de um conglomerado transnacional de futebol. Em 2011, o PSG, por seu turno, foi adquirido pela Qatar Sports Investment (QSI), o braço esportivo da Qatar Investment Authority (QIA), o fundo soberano do Catar. A QIA é controlada pelo membro da família real Catari, Sheik Tamim bin Hamad Al-Thani, que tem estreita colaboração com Nasser Al-Khelaifi, presidente do PSG e diretor do braço esportivo do canal de TV Al Jazeera, a beIN Sports. Esse influxo de dinheiro árabe inflacionou ainda mais o já inflacionado mercado do futebol europeu, elevando a então já elevada fasquia para integrar o centro – ou a “elite” – do mercado futebolístico do continente (THANI; HEENAN, 2017).

A incursão de alguns países do Golfo na arena internacional do esporte, entretanto, não tem se limitado à aquisição de clubes de futebol. Marcas como as das companhias aéreas estatais Qatar Airways, Emirates e, em menor escala, Etihad Airways, já se tornaram parte do cenário do esporte mundial. Criada em 1993, a Qatar Airways estampou sua marca na camisa do Barcelona entre 2013 (ano em que passou a ser 100% estatal) e 2017, tornando-se o primeiro patrocínio comercial da história na camisa do clube catalão (que antes havia exposto as marcas da UNICEF e também da Qatar Foundation), e, atualmente, é o patrocinador principal da Roma e do Boca Juniors, para além de ter seu logo nas mangas do Bayern de Munique (a demonstração de força simbólica nesta relação é significativa por parte do Catar, uma vez que a marca de sua companhia substitui a alemã Lufthansa na condição de “parceiros plantina” do clube bávaro, sendo também sua companhia aérea oficial). No início de fevereiro, o PSG anunciou a Qatar Airways como um dos seus patrocínios “premium”, ao lado de outras empresas do Catar, como o Qatar National Bank e a Ooredoo. A Emirates, por seu turno, patrocina alguns dos maiores clubes do mundo, como Real Madrid, Milan e Arsenal, além de clubes históricos como Hamburgo, Olympiakos e Benfica, além de dar nome (“naming right”) ao estádio do Arsenal, o Emirates Stadium (com contrato até 2028). Fundada em 1985 pelo sheik Ahmed bin Saeed Al Maktoum (que até hoje preside a empresa), um dos membros mais ricos da família real do Emirado de Dubai, a Emirates é subsidiária da Emirates Group, também liderada pelo sheik Ahmed, que, por sua vez, é subsidiária da Investment Corporation of Dubai. Mais nova dentre as três empresas, a Etihad surgiu em 2003 por meio de um decreto real do presidente dos Emirados Árabes e Emir de Abu Dhabi, o sheik Khalifa bin Zayed Al Nahyan, que queria que o emirado tivesse sua própria companhia aérea. A Etihad patrocina o Manchester City e outros clubes

da CFG, como New York FC e Melbourne FC, e também detém o naming right do estádio dos Citizens, o Etihad Stadium. Além do futebol, essas empresas também têm patrocinado clubes, franquias e competições dos mais variados esportes: automobilismo, rúgbi, tênis, golfe, ciclismo, críquete, dentre outros. Catar, Emirados Árabes Unidos e, mais recentemente, a Arábia Saudita também têm apostado em eventos e em megaeventos esportivos, seja patrocinando competições e federações, seja organizando torneios, como o Mundial de Clubes da FIFA (que aconteceu nos EAU em 2017 e em 2018 e no Catar em 2019) e, claro, a Copa do Mundo FIFA, que o Catar sediará em 2022. Ao longo dos anos de 1970, o aumento no preço do petróleo, principalmente depois do embargo petrolífero de 1973 (em outubro de 1973, quando o embargo se iniciou, o barril de petróleo custava US$3 e, em março de 1974, ao fim da crise, o barril passou para US$12), permitiu o enriquecimento dos países da região, o que contribuiu para o desenvolvimento daquelas nações. Porém, como colocam Thani e Heenan (2017), esses países seguiram economicamente dependentes de combustíveis fósseis em “escala alarmante”: o petróleo é responsável por 77% do orçamento estatal dos EAU e corresponde a 50% do PIB da Arábia Saudita, por exemplo. Para manter o crescimento econômico, tais países têm tentado reduzir a dependência em combustíveis fósseis, procurando diversificar os investimentos, ao mesmo tempo em que tentam se promover a nível internacional, vendendo ao mundo uma imagem de modernidade e de progresso, determinados a contribuir geopoliticamente e com a globalização econômica neoliberal. Em documento publicado recentemente, o Fundo Monetário Internacional (FMI) afirma que, sob a atual política orçamentária, a riqueza financeira dos países membros do Conselho de Cooperação do Golfo2 vai se esgotar em 15 anos (MIRZOEV et al., 2020). Essa busca pela

diversificação, como se vê, é vital para o futuro econômico dessas nações. E muito desse processo passa pela capacidade de atração, que, por sua vez, está dependente da credibilidade e da legitimidade na esfera global. O esporte é, sem dúvida, um bom meio de promoção da imagem do país a nível internacional, servindo na busca de aceitação e de legitimação (ALLISON; MONNINGTON, 2002). A aposta na indústria esportiva, em particular no futebol, esporte mais popular do planeta, serve como ferramenta diplomática e econômica. Diplomática, como discutimos na abordagem sobre a China, porque podem auxiliar um país a obter os resultados que deseja nas suas relações internacionais exercendo o poder da atração, ou, como definiu Joseph Nye (2012), um instrumento de ‘soft power’. Econômica porque, por um lado, ao se tornarem atraentes e credíveis, esses países do Golfo Pérsico conseguem criar novos mercados, como, por exemplo, a ambição turística e o desejo em se tornarem centros logísticos de transporte internacional e centros financeiros, para além de o futebol ter a capacidade de abrir portas, especialmente nos círculos do poder, por intermédio da “elite do poder” (MILLS, 1956), podendo influenciar decisões nas mais diversas esferas da sociedade, o que colabora decisivamente nos investimentos que são feitos difundidos por todo o mundo, uma vez que tais países dispõem de enorme acúmulo de capital em seus fundos soberanos. Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita têm plena consciência do potencial do soft power e da diplomacia do esporte, como se evidenciam em seus documentos estratégicos Qatar National Vision 2030, UAE Vision 2021 e Saudi Vision 2030. Aqui, vamos analisar como o futebol tem servido aos interesses geopolíticos e econômicos desses países árabes, buscando demonstrar que, embora possam adotar estratégias semelhantes em algumas ocasiões ou ações, cada um deles procura atuar de

maneira própria e aplica seus recursos em determinadas situações de acordo com suas necessidades. Globalização, soft power e futebol No artigo “Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento do soft power chinês”, abordamos as questões da globalização, da diplomacia pública e do soft power e como o futebol pode nos ajudar a compreender esses processos complexos e suas dinâmicas, seja por meio dos efeitos da globalização do capitalismo neoliberal no futebol “pósmoderno”, seja por meio da diplomacia do esporte e do futebol como um instrumento de soft power, um recurso de persuasão e de busca pelo reconhecimento e legitimidade como alicerce para o posicionamento nas relações internacionais, seja na geopolítica, seja nos negócios. Por essa razão, destacaremos, aqui, apenas alguns conceitos, isto é, aqueles que nos parecem mais preponderantes para a compreensão dos casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita. O primeiro aspecto que evidenciamos diz respeito à concepção de globalização como a crescente interdependência entre indivíduos, grupos e nações, ou seja, os processos de mundialização e de internacionalização (GIDDENS, 2009, 126), particularmente à fase de incerteza, como definem Giulianotti e Robertson (2009), em que o “sistema mundo de sociedade se torna ainda mais fluído e complexo (...), com um crescimento exponencial de novas instituições globais e sociais, como organizações governamentais internacionais e nãogovernamentais, corporações transnacionais e novos movimentos sociais”, mas, mais ainda, à globalização neoliberal, que fez emergir, principalmente a partir dos anos de 1990, uma nova economia em escala mundial. Essa “expansão mundial do capitalismo”, representando uma

“nova ordem mundial” (CHANDA, 2007; DUFFEY, 2009), tem dois alicerces fundamentais. Por um lado, a expansão do capitalismo neoliberal só foi possível graças aos avanços tecnológicos, em especial das tecnologias da informação, comunicação e transporte, que levaram à quebra de barreiras espaciais e das distâncias, que reduziram custos de circulação e permitiram o trabalho como uma unidade em tempo real, em escala global (CASTELLS, 2009; HARVEY, 1989). Por outro lado, tão importante quanto o avanço das novas tecnologias foi a desregulação dos mercados, que possibilitou um maior fluxo de capital e, assim, surgiram as grandes corporações transnacionais e vimos países ocidentais promovendo uma ideologia política e econômica que permitisse a liberdade dos “investimentos” internacionais (CASTELLS, 2004; DUFFEY, 2009; HARVEY, 2011). Essa primeira percepção da globalização nos ajuda a compreender dois processos. Um deles é o que dá origem à conceituação do ‘soft power’ por Joseph Nye. Com os avanços da comunicação global, vários atores passaram a ter a capacidade de formatar, de apresentar e de distribuir informações a diferentes audiências. Esses atores estavam transformando como os poderes políticos eram adquiridos e exercidos (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018, p. 1.140). A diplomacia pública, por sua vez, compreende comunicações e interações de governos, decisores políticos, organizações e indivíduos que influenciam o público internacional a obter uma imagem mais favorável de uma nação que poderá, com isso, alcançar seus objetivos na política externa (DUBINSKY, 2019). Uma vez que diplomacia pública compreende ações que visam a produzir engajamentos positivos, o “ato consciente de comunicar com o público externo” (RAWNSLEY, 2012, p. 123), podemos dizer que a democracia pública é um facilitador do ‘soft power’. Por isso, Nye (2002, p. 68-69) apontou que, mais do que a

informação, seria a atenção o produto mais escasso, e quem conseguisse fazer distinguir seus sinais de valores em meio aos ruídos adquiriria poder. Como dissemos anteriormente, embora o soft power seja, de fato, um conceito novo para um hábito antigo, também é verdade que é relativamente recente a busca consciente e planejada do uso do soft power como forma de se comunicar na arena global. E o futebol é um desses instrumentos. Mas, além desse processo que leva ao uso do futebol como ferramenta de soft power, esse aspecto da globalização neoliberal do capitalismo é primordial para o aprofundamento da comercialização, empresarização e até mesmo financeirização do futebol, não apenas por levar às privatizações, impondo a adoção, em diversos países, do modelo de clube-empresa (GIULIANOTTI, 2010), como por facilitar a circulação e o fluxo de capital, que, em muitos lados, é denominado “investimento”, na indústria do futebol. Esse processo de fortalecimento das grandes corporações transnacionais se evidencia quando olhamos para os clubes da Premier League inglesa, como o Manchester City, por exemplo, que pertence a um conglomerado de clubes, o City Football Group, de propriedade da Abu Dhabi United Group, do Sheik Mansour. Por fim, destacamos a questão do “sistema-mundo”, que percebe a globalização como um processo que encontra suas origens na expansão colonialista da Europa, principalmente a partir do século XVI. Para Wallerstein (1974), a exploração colonial dá origem a um sistema de interdependência mundial desigual, graças à acumulação de capital, fruto de uma divisão desequilibrada de ganhos, permitindo aos exploradores o controle das riquezas e dos avanços tecnológicos, gerando uma hierarquia de poder composta por “centro, semiperiferia e periferia”. Por isso, Quijano (2000) afrima que “a globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou

com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial”. Essa colonialidade do poder se expressa por meio de uma relação de dominação, inclusive com a constituição de “hierarquias, lugares e papéis sociais” (p. 534). E esse é um ponto crucial para compreendermos as dinâmicas de países não-ocidentais em meio a um contexto de globalização do capitalismo e como o futebol se insere nesse processo complexo em que nações periféricas buscam se (a)firmar no cenário global. Não é por acaso que países como Catar e Emirados Árabes Unidos busquem, por exemplo, aliar os mecanismos de ‘soft power’ com as técnicas de marketing para criar uma marca (branding) de uma nação e assim mudar a visão da opinião pública internacional – ‘nation branding’. Em meio a um cenário de “paradoxo da abundância”, em que os países competem entre si pela atenção da audiência global a fim de conseguirem se tornarem atrativos, o processo de ‘nation branding’ serve como forma de construir o conhecimento sobre um país para, assim, tentar gerar atração e preferência (KRZYZANIAK, 2016). Afinal, como já afirmamos anteriormente, se o soft power diz respeito à atração, é necessário se tornar conhecido antes mesmo de se comunicar com a audiência global. O conceito de “nation branding” também é encontrado em Peter van Ham (2001), mas com outra denominação. Em artigo na Foreign Affairs, van Ham escreveu sobre “A ascensão do estado marca” (‘brand state’) e diz que ‘brand state’ compreenderia a ideia de que o mundo exterior teria a respeito de um país em particular. Para van Ham, há marcas que, devido à sua imagem e reputação, terminam simbolizando seus países no mundo, e dá como exemplo a BMW e a Mercedes, que simbolizam a eficiência e a confiabilidade da Alemanha, ou a Nokia, que era a “embaixadora da Finlândia no mundo”. O autor acrescenta

que, em um mundo com excesso de informação, marcas fortes são necessárias para atrair investimentos, bem como para alcançar influência política. Por essa razão, os Estados deveriam estar atentos à necessidade de estabelecerem suas marcas, criando uma imagem e uma reputação a nível internacional. É nesse sentido que Gupta (2009, p. 1.786) afirma que um dos maiores benefícios de se investir em esportes a nível internacional é a possibilidade de se criar a marca de um Estado, ajudando a estabelecer esse nomemarca nacional. A tal da “diplomacia pública suave” (FREEMAN, 2012). Algo essencial para nações que buscam se posicionar internacionalmente, principalmente aquelas que foram exploradas pelo imperialismo desde os tempos coloniais. Reconhecimento e legitimidade Há quem argumente que a ciência social tem sido dominada pelo eurocentrismo3 uma vez que se trata de um produto do sistema moderno, reflexo do eurocentrismo como elemento geocultural constitutivo do mundo moderno (WALLERSTEIN, 1997). E, por isso, a ciência social estaria submetida à ideia colonial, etnocêntrica e paroquial de “centro metropolitano” (CONNELL, 2007). A consolidação do projeto político e identitário da Europa tem sido reproduzida por meio de várias formas e tem no etnocentrismo – superioridade versus inferioridade – o seu alicerce (ALMEIDA, 2012). No futebol, também é possível verificar essa concepção de mundo. Por essa razão, antes de passarmos à nossa análise ocidentalizada das relações internacionais e de uma geopolítica que é reflexo de um longo processo de dominação ocidental por meio de suas ferramentas coercitivas – dominação territorial, guerras, exploração de riquezas, imposições econômicas, etc. – e de hegemonia cultural, entendemos ser necessário chamar a

atenção que não podemos deixar de mencionar que qualquer discussão em torno do conceito de “modernidade”, como veremos mais a seguir, e aí incluído o “esporte moderno”, no mundo árabe só tem sentido quando é feita tendo em consideração o contexto histórico de dominação/dependência/interconectividade entre o Ocidente e o não-Ocidente (AMARA, 2012, p. 5). Isso porque, primeiramente, como nos lembra Amara (2012, p. 5), citando Edward Said, não se pode falar sobre o mundo não-ocidental sem o relacionar a como o desenvolvimento do Ocidente causou, dentre outras situações, guerras coloniais devastadoras, conflitos em protetorados entre nacionalismos insurgentes e o controle aberrante imperialista e a extensão do “sistema mundo” sobre os países em desenvolvimento. Em segundo lugar, porque a própria ideia de “moderno” reflete o poderoso discurso ocidental, que se assume e se afirma como único, de maior importância, o que Here Venn Couze conceitua como “Ocidentalismo” (AMARA, 2012, p. 6), ou seja, aquela visão eurocêntrica de que o “moderno” é um termo que se confunde com o conceito de civilização europeia (WALLERSTEIN, 1997, p. 97). Esses processos têm como consequência a deslegitimação das histórias e das geografias das sociedades pré-coloniais, incluindo a região árabe (AMARA, 2012, p. 5). Eric Hobsbawm (1991), um dos teóricos mais referenciados acerca do nacionalismo, escreveu que “a imaginária comunidade de milhões, parece mais real na forma de um time de onze pessoas com um nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, tornase o próprio símbolo de sua nação”. Como observa Duerr (2016), o historiador recorre ao termo de Benedict Anderson – “comunidade imaginária” – para fundamentar que a ideia de que as pessoas que vivem em um mesmo país estão ligadas umas às outras, mesmo sem nunca se conhecerem, se torna mais latente quando a seleção nacional de futebol entra em campo. Em outra obra, Hobsbawm (2007) volta a

ressaltar o que considera como o poder catalisador do futebol. “Praticamente desde que adquiriu um público de massa, esse esporte [futebol] tem sido o catalisador de duas formas de identificação grupal: a local (com o clube) e a nacional (com a seleção nacional, composta com os jogadores dos clubes)”. O esporte moderno potencializa os valores de identidades nacionais, tornando-se veículo para o sentimento nacional, por envolver competição, algo que está na base de qualquer sistema de Estado-nação (AMARA, 2012, p. 10). Essa identidade, aliás, tanto pode se refletir na promoção do separatismo entre comunidades, com base, por exemplo, em religião ou em nacionalismo, como Celtic e Rangers na Escócia ou Real Madrid e Barcelona, quanto pode promover valores culturais comuns ou a ideia de uma “comunidade imaginária”, como no caso da seleção francesa na Copa do Mundo de 1998 ou a reação dos holandeses em 1988, após a Holanda eliminar a Alemanha na semifinal da Eurocopa, em que milhões de jovens – a geração que sequer sofreu com a invasão alemã foi mais efusiva do que aquela que viveu o tenebroso período da guerra – gritassem nas vias públicas – “nós pegamos nossas bicicletas de volta” (as tropas alemãs confiscavam as bicicletas durante a ocupação à Holanda) (WARD, 2009). Por isso, é impossível dissociar a história do esporte moderno de elementos como orgulho nacional, prestígio internacional e diplomacia (CHA, 2016). Essas questões são de fundamental importância se quisermos compreender a relação de países como Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita com o esporte, em particular com o futebol globalizado em tempos de globalização capitalista. A começar pelo fato de que, na era pós-colonial, o esporte foi colocado a serviço da formação da identidade nacional e da própria construção dos Estadosnações no mundo Árabe (AMARA, 2012, p. 11). Em um contexto globalizado, como já referimos anteriormente, o

esporte e os eventos esportivos têm sido usados como forma de reforçar não apenas a identidade nacional, mas também de assegurar apoio doméstico, para além de, nas últimas décadas, o reconhecimento internacional ter se tornado de importância fulcral para os novatos na esfera internacional (ROJO-LABAIEN, 2018). E como uma das mais poderosas manifestações contemporâneas da globalização (GIULIANOTTI, 2015), permitem que os países-sede promovam seus estatutos globais, moldando a percepção que se tem sobre o país (ROJO-LABAIEN, 2018). Para além do fator da construção da ideia de Estadonação e de identidade nacional, reside a questão da busca pela legitimidade na esfera pública internacional, promovendo uma imagem de “modernidade” através da divulgação do rápido desenvolvimento das suas cidades e da região, por intermédio, por exemplo, de estádios e de equipamentos esportivos hipermodernos e de seus arranhacéus impressionantes, difundindo, assim, essa representação da região como “cosmopolita”, “moderna”, “globalizada” (KOCH, 2018). É nesse contexto que se percebe, também, o planejamento estratégico que compreende o crescimento econômico das cidades como uma consequência de um novo paradigma do planejamento urbano, o qual visa a inserir a cidade na perspectiva globalizada. Passa-se, então, a pensar em projetos urbanísticos que tenham como objetivos um revigoramento da cidade, transformando a reestruturação urbana em uma das políticas públicas prioritárias (OLIVEIRA, 2011). Mas como atrair os consumidores para esse novo produto urbano? Assim, compreende-se então a espetacularização da cidade por intermédio da organização de eventos que deem grande visibilidade para quem o promove. Os megaeventos esportivos seriam, portanto, uma forma de vender a cidade para o público consumidor, justificando os investimentos em infraestrutura necessários para a sua

realização (OLIVEIRA, 2011). Nas últimas décadas, no entanto, a realização desses megaeventos esportivos viu seus custos aumentarem de forma substancial (MATHESON, 2006; ZIMBALIST, 2015). Dinheiro, entretanto, não é problema para países como Catar, EAU e Arábia Saudita, que contribuem, assim, para que nações não-ocidentais assumam protagonismo na geopolítica do esporte, sendo cada vez mais capazes de exercer a condição de determinar onde e como o jogo vai ser jogado (GUPTA, 2009). O dinheiro que esses países trazem para o jogo influencia, também, no fomento do já referenciado “nation branding”. O objetivo, afirma Amara (2012, p. 29), é comercializar a “nova”, “aberta” e “liberal” Península Arábica como um local a ser frequentado, seja por turistas quanto por pessoas de negócios, e construir essa nova identidade como um modelo emergente de monarquia “liberal”. E as razões para isso são óbvias: buscam-se formas de diversificação das receitas estatais, desenvolvendo e promovendo outras indústrias, tais como o turismo e as indústrias relacionadas à hospitalidade, ao mercado imobiliário, ao setor varejista, à tecnologia, à comunicação e às finanças (p. 96). Essa criação ou promoção da marca de uma nação se dá tanto por meio da difusão da imagem de “modernidade” transmitida pela espetacularização urbana e dos equipamentos esportivos (como ocorrem nas organizações de megaeventos esportivos, por exemplo), mas também por meio de patrocínios a clubes e a eventos, além da aquisição de clubes, como veremos mais adiante. Catar: identidade nacional, projeção e reputação internacionais Persas, portugueses, otomanos e, entre 1916 e 1971, britânicos. Em larga parte de sua história, o Catar esteve

sob o domínio de diferentes impérios. Desde que se declarou independente do Reino Unido em 1971, o Emirado do Catar tem sido governado como uma monarquia absolutista, sob o comando da família Al-Thani. E desde a independência, o país tem recorrido ao esporte como um elemento de construção de sua identidade nacional. Ainda em 1971, Muhammad Ali participou de uma luta de exibição em Doha, capital do emirado, criando, de acordo com Rolim Silva, um ideal de identidade esportiva. Já em 1973, o Santos de Pelé disputou um amistoso com o Al-Ahli SC, clube mais antigo do país, contribuindo, assim, e segundo o mesmo autor, para a invenção de uma tradição esportiva. Mas foi por meio da criação do Comitê Olímpico do Catar, em 1979, e o seu reconhecimento pelo Comitê Olímpico Internacional, em 1980, que o país viu fortalecida sua imagem como uma nação independente. Para o Catar, o esporte, além de ter sido um elemento fundamental na construção nacional e da ideia de comunidade imaginária, também serviu como instrumento na busca pela obtenção de reconhecimento e representação internacionais, através da organização de eventos esportivos (ROLIM SILVA, 2014). Isso ficou ainda mais evidente em 2006, quando o emirado sediou seu maior megaevento esportivo até então, os Jogos Asiáticos. Segundo Amara, ao sediar a 15ª edição dos Jogos Asiáticos em Doha, o Catar reforçou duas ideias centrais. A primeira diz respeito à valorização da cultura nacional e da identidade árabe, relacionados principalmente à exaltação da tradição de hospitalidade e de generosidade. A segunda tem a ver com a busca pelo reconhecimento mundial, promovendo o país tanto como um novo centro regional e internacional do esporte, mas também sua cultura nacional como parte de algo maior, isto é, a identidade asiática, demonstrando a criatividade e a modernidade nacionais. Uma oportunidade, segundo Amara (2005), e aqui em referência a Edward Said, para quebrar preconceitos na forma como o Ocidente representa o “Oriente”, com

estereótipos como ‘lugar atrasado’, ‘irresponsabilidade’, ‘preguiça’. Nesse sentido, Brannagan e Giulianotti (2015) afirmam que, ao organizar os Jogos Asiáticos em 2006, o Catar demonstrou uma consciência Glocal.4 Foi a partir de 2010, contudo, que o Catar passou a estar no centro das atenções globais. Em dezembro daquele ano, o emirado venceu a disputa pelo direito de sediar a Copa do Mundo FIFA de 2022. A escolha do país chocou o mundo – eurocêntrico – do futebol, com questionamentos desde a dimensão do país (que é o segundo menor da Ásia), passando pela sua falta de tradição no esporte mais popular do planeta, até a aridez do clima desértico. E logo surgiram acusações de suborno dos membros do Comitê Executivo da FIFA para que tivessem votado no Catar (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2015; REICHE, 2014). Essas reações são consequências dos esforços do país que busca protagonismo na esfera internacional. A política esportiva catarina é apenas uma parte de uma ampla política externa do emirado. Em 2008, foi publicado o ‘Qatar National Vision 2030’, um plano estratégico para mudar a imagem do Catar no contexto internacional (bastante associada ao terrorismo, com suspeitas de financiamento de grupos terroristas como Estado Islâmico e a Irmandade Muçulmana). A partir da construção dessa nova imagem, a busca é por se estabelecer como uma referência de modernidade em sua região e de competitividade no mercado global. A abordagem da Visão Nacional 2030 inclui políticas de relações exteriores: mediação e resolução de conflitos; criação de uma rede de televisão de referência mundial – a Al Jazeera (e sua subsidiária beIN Sports); uma empresa aérea de classe mundial (Qatar Airways) e de um aeroporto que sirva de ponto de passagem entre continentes. É nessa estratégia mais ampla de soft power que se inserem as políticas esportivas do Catar (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2015, 2018; BRANNAGAN;

ROOKWOOD, 2016; REICHE, 2014). E o que move essa política externa? Ou, por que é que o Catar investe tanto em soft power? Segundo analistas, há duas grandes motivações. Primeiro, considera-se que o emirado vê, no aumento de sua presença na esfera internacional, uma forma de reconhecimento e legitimidade, servindo, assim, essencialmente como um mecanismo de defesa e de proteção perante vizinhos maiores (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018; REICHE, 2014). Segundo, o Catar pretende se tornar um centro turístico internacional de referência, como forma de diversificar a economia nacional, e por aí passa a importância da Qatar Airways e do Hamad International Airport (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018; DORSEY, 2015). Não é por acaso, portanto, que o Catar tem sido um dos países que mais tem investido em esportes e em eventos esportivos entre seus vizinhos do Golfo (GOLDBLATT, 2019). O emirado tem apostado na promoção de eventos como os torneios ATP e WTA de tênis, masters de golfe, Grande Prêmio do Qatar de Motovelocidade, Mundial de Handebol 2015, Campeonato Mundial de Atletismo 2019, entre outros, e, no futebol, a Copa da Ásia de 2011 e a Copa do Mundo de Clubes FIFA (2019 e 2020). A Qatar Airways espalha a sua marca promovendo a companhia aérea, o turismo e o país em si, em eventos esportivos e nas camisas de grandes clubes de futebol. Além disso, em 2004, foi inaugurada a Aspire Academy, um estabelecimento multiesportivo e educacional localizado em Doha que tem como objetivo a atração de jovens atletas estrangeiros, bem como o desenvolvimento do talento dos atletas nacionais. A Academia se encontra na Aspire Zone, que conta com a Aspire Tower, que, com seus 330m de altura, foi por muito tempo o prédio mais alto do país (GOLDBLATT, 2019), um estádio com capacidade para 50 mil pessoas, uma piscina olímpica, campos de futebol, quadras de tênis e de squash,

pistas de atletismo, laboratórios de ciência do esporte e o único centro médico FIFA de excelência no Oriente Médio (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2015). O programa “Aspire football dreams” promove uma peneira anual por meio da qual avalia cerca de 500 mil jogadores de 13 anos de idade em 16 países de quatro continentes diferentes – Ásia, África, América Central e América do Sul (REICHE, 2014). Do ponto de vista esportivo, a Aspire serve aos interesses catarinos para o desenvolvimento de seus atletas e de suas seleções nacionais, incluindo o convencimento de estrangeiros para que se naturalizem. Enquanto que, do ponto de vista do soft power, apresenta-se como um instrumento de promoção da imagem de um país moderno e capacitado, exercendo poder de atratividade seja pela admiração, seja pelo respeito aos trabalhos desenvolvidos e os resultados que já vão sendo obtidos (somente para ficarmos no futebol, a seleção catarina masculina foi campeã asiática sub-19 em 2014 com jogadores formados ou ainda em formação na Aspire; em 2019, com praticamente a mesma base, a seleção adulta conquistou a Copa da Ásia). Ao lado da conquista do direito de organização da Copa do Mundo FIFA 2022, o maior investimento do Catar no futebol mundial como instrumento de soft power se chama Paris Saint-Germain (PSG). Em junho de 2011, o Qatar Sports Investment (QSI), o braço esportivo da Qatar Investment Authority (QIA), o fundo soberano do país, adquiriu 70% das ações do clube parisiense. A QIA é controlada pelo membro da família real Catari, Sheik Tamim bin Hamad Al-Thani, que é o dono do PSG, embora o presidente do clube seja Nasser Al-Khelaifi, que também é diretor do braço esportivo do canal de TV Al Jazeera, a beIN Sports. Meses antes dessa transação, em novembro de 2010, o então presidente da UEFA, o francês Michel Platini, esteve presente em um almoço no Palácio do Eliseu, a residência oficial do presidente da República Francesa. À

mesa também estiveram o então presidente francês Nicolas Sarkozy, o Sheik Tamim bin Hamad Al-Thani e o primeiroministro catari. Semanas depois desse encontro, Platini votou a favor do Catar na escolha para a Copa do Mundo de 2022. Platini admite que Sarkozy queria que ele votasse favoravelmente aos árabes, o que aconteceu, mas nega que o então presidente francês tenha feito um pedido direto5 . Seja como for, o Catar foi escolhido como sede e, meses depois, Tamim bin Hamad Al-Thani comprou o clube parisiense, transformando definitivamente o futebol francês. Isso porque, turbinado com o dinheiro do Catar, o PSG se tornou uma bolha isolada dos demais concorrentes internos. Um estudo da Sports Intelligence mostrou que a folha salarial do clube parisiense corresponde a 34% de todos os salários da Ligue 1 francesa na temporada 2019/20; enquanto a folha do PSG era de cerca de € 8,59 milhões a do Monaco, clube com a segunda maior folha, era de € 2,73 milhões, uma diferença de € 5,86 milhões (INTELLIGENCE, 2019). A fonte de receitas do PSG sempre foi bastante questionada. A suspeita de que o Catar, por meio das mais diversas entidades ligadas ao fundo soberano do país, financiava o clube pagando valores de patrocínios muito acima do valor do mercado era bastante evidente. Um desses patrocínios era o da Qatar Tourism Authority (QTA). Em 2014, o clube fez um acordo com a UEFA no âmbito de um processo do fair play financeiro (FPF)6 em que se comprometeu, entre outras medidas, a baixar o valor do contrato que tinha com a referida autoridade catarina, uma vez que o acordo anterior estava claramente superestimado, além de ter pago multa de €60 milhões. A QTA pagava €215 milhões anuais, número considerado absurdo por cinco empresas de auditoria independentes consultadas no processo do FPF (um dos relatórios, da Octagon, estimou o valor justo de mercado em €2,78

milhões). Entretanto, documentos do Football Leaks, revelados pela revista alemã Der Spiegel, expuseram que autoridades da UEFA, incluindo o atual presidente da FIFA Gianni Infantino, à época secretário-geral da entidade europeia, ajudaram o PSG, e também o Manchester City, ao longo de todo o processo do fair play financeiro,7 como, por exemplo, a sugestão da redução do contrato de €215 milhões para €100 milhões (ou seja, 35 vezes maior que o valor justo estipulado pela Octagon). Com tanto dinheiro desregulado entrando em caixa, o PSG foi capaz de montar elencos caríssimos. Thiago Silva, Ibrahimović, Cavani, Neymar e Mbappé são as estrelas mais sonantes que os catarinos contrataram para o PSG ao longo dos últimos nove anos. Destes, apenas o sueco Ibrahimović não faz mais parte do elenco. Só Neymar8 e Mbappé custaram €222 milhões e €145 milhões respectivamente. Essas duas contratações, ambas realizadas no Verão de 2017, renderam ao clube mais uma investigação do fair play financeiro da UEFA. Em sua defesa, o clube alegou que patrocínios como os da QTA, Qatar National Bank, Ooredoo (todas entidades catarinas, frise-se) possibilitaram os reforços. O presidente do Órgão de Controle Financeiro de Clubes da UEFA, José Narciso da Cunha Rodrigues, não aceitou o argumento. O PSG deveria ter sido punido pelo FFP, porém, uma sequência de equívocos processuais por parte dos órgãos da UEFA permitiu uma brecha jurídica para que o clube se livrasse de qualquer sanção, após recorrer ao Tribunal Arbitral do Esporte9 . A QTA já não é mais patrocinadora do PSG. Em fevereiro de 2019, os parisienses anunciaram a ALL (Accor Live Limitless) como novo patrocinador principal da camisa do clube, em um acordo estimado em €50 milhões anuais. A Qatar Investment Authority detém 10,9% das ações da AccorHotels, dona da ALL. Em fevereiro de 2020, a Qatar Airways foi anunciada como parceira do PSG.

Não é de admirar, portanto, que o PSG tenha ganho seis dos oito campeonatos franceses que disputou desde que passou a ser propriedade do Catar (nos 41 anos de existência anteriores, o clube só havia conquistado o maior título nacional duas vezes). O insucesso na Liga dos Campeões da UEFA, bem como os problemas extracampo de sua maior estrela, Neymar, têm gerado certo desconforto entre as autoridades catarinas. Por isso, vez ou outra especula-se que o Catar vai abandonar o PSG ou diminuir os investimentos nos parisienses e comprar outro clube (Roma e Leeds United foram nomes apontados pela imprensa internacional em 2019). É o risco de o tiro sair pela culatra (soft disempowerment), como veremos mais adiante. Emirados Árabes Unidos: criando e projetando uma ‘marca nacional’ Assim como o Catar, os Emirados Árabes Unidos existem como uma nação independente há relativamente pouco tempo. Ao longo de séculos, seu território esteve ocupado por impérios como o Português, Otomano e, por fim, Britânico, do qual se tornou independente em 1971. Emirados Árabes Unidos e Catar, aliás, partilham o mesmo processo de independência, uma vez que a proposta inicial era a criação de uma Federação de Emirados Árabes, que incluiria o que hoje conhecemos como EAU, Catar e também o Bahrein, que, entretanto, declararam suas independências em setembro e agosto de 1971, respectivamente. Assim, os EAU surgem como um país único composto por sete emirados (os sete Sheikhdoms da Trégua): Abu Dhabi, Dubai, Xarja, Ajmã, Umm al-Quwain, Fujeira e Ras alKhaimah (este último tendo se juntado dois meses depois dos outros, em fevereiro de 1972). Os EAU são um país de pequena dimensão (83.600 km²), com uma população estimada de 9,6 milhões de habitantes e que faz fronteira

com o Sultanato de Omã e com a Arábia Saudita. Desde que se estabeleceram como nação soberana, têm aproveitado a riqueza de seus recursos naturais – de petróleo e gás – para se transformarem em uma das economias mais competitivas do mundo. E com esses recursos, as cidades na Península Arábica têm tentado moldar suas imagens como destinos para negócios e entretenimento, com elevados investimentos em infraestrutura (AMARA, 2012, p. 94-95). Amara, inclusive, ressalta outra característica, a seu ver única no “Mundo Árabe”, que é a do crescente modelo de “Estados-cidades” na política e na economia como alicerce no desenvolvimento estratégico da região. É nesse sentido que Bagaeen, citado por Saberi (2018), afirma que os emirados de Abu Dhabi e de Dubai são “cidades instantâneas”, criadas a partir de uma acelerada urbanização e um enorme desenvolvimento econômico. O sucesso como cidades-Estados, prosseguem Saberi (2018), permitiu-lhes ascender no cenário internacional como destinos turísticos e centros de negócios competitivos. Ao estabelecerem zonas econômicas de livre comércio, por exemplo, Abu Dhabi e Dubai foram capazes de atrair corporações multinacionais e turistas de todo o mundo. Após a Guerra do Golfo, o esporte se tornou um importante campo de atividades de negócios, ligado à mudança de marca (‘rebranding’) das cidades (AMARA, 2012, p. 94). Voltamos, então, à importância do conceito de ‘nation branding’ ou criação de uma ‘marca nacional’. Parece-nos claro, a esta altura, que a influência global de um país pode ser desenvolvida por meio de políticas que visem ao estabelecimento e ao aperfeiçoamento de marca nacional. Soft power, como temos repetido, assenta-se, fundamentalmente, no desenvolvimento da capacidade de atração, de cooptação, de admiração e de emulação. Para isso acontecer, a criação de uma imagem de progresso, prosperidade econômica, estabilidade, segurança e

modernidade pode ser extremamente útil. Por essa razão, países como os do Golfo, incluindo os emirados de Abu Dhabi e de Dubai, perceberam a importância do estabelecimento de uma marca, que nada mais é que o símbolo, nome e design identificadores ou a combinação de tudo isso que permite a uma companhia se diferenciar da outra (KOTLER; GERTNER, 2002). Analogamente, uma ‘marca nacional’ representa as características diferenciadoras de um país, fazendo a representação simbólica da nação. O marketing estratégico de locais diz respeito ao aprimoramento da posição de um país no mercado global (KOTLER; GERTNER, 2002). Uma ‘marca nacional’ forte é essencial para a competitividade global e para a manutenção de relações pacíficas, relevância geopolítica e estabilidade e crescimento econômicos, em suma, o ‘branding’ de uma nação significa identidade e influência (SABERI; PARIS; MAROCHI, 2018). Por isso, um ‘branding’ bem-sucedido possibilita ao Estado um poder maior de atração, o que lhe pode dar vantagem regional ou global. Assim como as autoridades do Catar, os responsáveis pelos Emirados Árabes Unidos compreenderam a importância do ‘nation branding’ como ferramenta estratégica de afirmação no cenário global, como um instrumento para seus planos de soft power, que está inserido em um contexto de plano nacional por intermédio de documentos como UAE Vision 2021, de 2010, e o mais recente, UAE Soft Power Strategy, de 2017. E o esporte, o futebol em particular, tem um papel fundamental nessa demanda por um reposicionamento internacional do país (THANI; HEENAN, 2017). Os Emirados Árabes, entretanto, são diferentes do Catar, o que, naturalmente, resulta em abordagens também distintas nesse mercado global (KRZYZANIAK, 2016). Aliás, também não podemos confundir Abu Dhabi com Dubai, que, como veremos a seguir, não

agem exatamente da mesma maneira e alimentam, inclusive, alguma rivalidade e competitividade em seus investimentos. Dubai: a influência através do charme Façam a seguinte reflexão. Quando lê ou ouve falar a respeito dos Emirados Árabes Unidos, qual é a primeira imagem ou ideia que vem à sua mente? Muito provavelmente, principalmente se considerarmos que o seu interesse neste artigo se dá por conta do futebol, o nome Emirates deve surgir de imediato ou um é uma das primeiras associações feitas. E isso nos leva a outra questão. A marca Emirates remete-nos a que lugar? Dubai. Certo? Sim, entretanto, é natural que haja quem confunda, ou já tenha confundido em algum momento, a Emirates com o próprio Emirados Árabes Unidos – uma pesquisa da própria companhia aérea constatou isso mesmo, isto é, a maioria dos clientes confundia a empresa com o país (KRZYZANIAK, 2016). A explicação para isso se encontra no que expusemos ao longo deste capítulo. O caso de Dubai é um dos exemplos mais evidentes do uso de uma companhia estatal – Emirates Airways – e do investimento no esporte como ferramenta para a criação e moldagem de uma ‘marca local’. Isso fica ainda mais evidente quando observamos que, embora seja a cidade mais populosa dos EAU, Dubai não é nem a cidade mais rica e nem a capital do país, pois Abu Dhabi que é o centro político, administrativo e econômico dos Emirados Árabes, respondendo por 85% da produção de petróleo nacional e 90% de suas reservas. Dubai colhe os frutos de ter iniciado esse processo de promoção de sua imagem internacional antes de Abu Dhabi. Ao contrário do Catar e de Abu Dhabi, que apostaram na aquisição direta de clubes de futebol, Dubai preferiu investir em patrocínios (KRZYZANIAK, 2016) e em infraestrutura

esportiva de alto padrão, a fim de atrair investimentos para outros setores da economia. Por essa razão, nas palavras do Sheik Mohammed bin Rashid al-Maktoum, os investimentos de Dubai no esporte, tendo o futebol papel central, são tidos como parte de uma ‘ofensiva de charme’ internacional multimilionária (THANI; HEENAN, 2017). Em suma, quando a Emirates começou a patrocinar clubes de futebol em 2001 (Chelsea) e até hoje estampa sua marca nas camisas de clubes como Real Madrid, Milan Arsenal, Hamburgo, Olympiakos e Benfica, para além de pagar para dar o nome ao estádio do Arsenal, não estamos diante de uma investida meramente comercial de uma empresa aérea. Trata-se de uma ação político-econômica e geopolítica planejada. Da mesma forma como as academias de futebol de clubes como Arsenal, Barcelona e Manchester United também fazem parte de uma operação de atratividade que usa os emblemas de grandes clubes internacionais e a capacidade do emirado de construir infraestrutura de excelência como instrumento persuasivo como fomento de outros negócios e da diversificação da economia. É a busca da influência através do charme – e que tem apresentado resultados positivos. O emirado conseguiu reduzir a 2% a participação do petróleo em seu Produto Interno Bruto (SABERI; PARIS; MAROCHI, 2018). Abu Dhabi: do charme à elite do poder A inserção do emirado de Dubai no mercado global do esporte por intermédio dos patrocínios da Emirates despertou a atenção do emirado de Abu Dhabi. Segundo Krzyzaniak (2016), iniciou-se uma espécie de rivalidade entre as famílias que comandam os dois emirados, AlNahyan (Abu Dhabi) e Al-Maktoum (Dubai), fazendo com que houvesse um crescimento dos patrocínios esportivos, desde clubes de futebol a torneios das mais variadas

modalidades, por parte das suas respectivas companhias aéreas – Etihad e Emirates. Os dois emirados, entretanto, utilizam seus recursos de forma diferente na busca pela promoção de suas ‘marcas locais’ e, consequentemente, na tentativa de exercício do soft power. Enquanto Dubai tem uma abordagem mais estrondosa e enfática na promoção do marketing da cidade, principalmente por meio de patrocínios, como os da Emirates, Abu Dhabi aposta menos em patrocínio, preferindo projetos e investimentos mais robustos e complexos (KOCH, 2019). A mais sonante dessas aplicações de capital no mundo esportivo foi, sem dúvida, a compra do Manchester City, em 2008, por parte do Abu Dhabi United Group, do Sheik Mansour bin Zayed bin Sultan bin Zayed bin Khalifa Al Nahyan. Em 2014, o investimento foi ampliado, com o surgimento do City Football Group (CFG), um conglomerado transnacional que reúne clubes de futebol em todos os continentes, com exceção da África. A aquisição do Manchester City serviu não apenas para que Abu Dhabi pudesse se tornar rapidamente conhecida em todo o mundo (KRZYZANIAK, 2016), mas, como o próprio Sheik Mansour afirmou, o clube representava ‘o mundo Árabe’ de uma forma positiva, contribuindo para a imagem dos investidores árabes, criando uma boa impressão sobre eles (KOCH, 2019; THANI; HEENAN, 2017). Por isso, Manchester City e CFG têm sido usados na promoção de Abu Dhabi e de seus interesses, principalmente como vetor de negócios, tanto a nível internacional como na atração de investimentos para o emirado. Aliás, como se evidencia no exemplo apresentado no artigo anterior, da parceria com a China Media Capital e a interseção entre os interesses de Abu Dhabi e da China. Mas não apenas neste caso. Desde 2008, Skeik Mansour investiu bilhões no Manchester City, entre sua fortuna pessoal e recursos do fundo soberano nacional Abu Dhabi Investment Authority. Entre 2009 e 2019, Sheik Mansour teria desembolsado

somente de sua fortuna pessoal £1,3 bilhão (R$ 7,29 bilhões) e aplicado no clube inglês (KOCH, 2019). Os gastos elevados do Manchester City colocaram o clube, assim como o PSG, na mira do fair play financeiro da UEFA. Mas, da mesma forma como aconteceu com o clube parisiense de propriedade do emirado do Catar, os ingleses de propriedade do emirado de Abu Dhabi também conseguiram um acordo com a entidade europeia, assumindo alguns compromissos e recebendo uma multa de €60 milhões. Porém, o vazamento de e-mails por parte do Football Leaks e publicados pela Der Spiegel10 fez com que a UEFA reabrisse a investigação contra o Manchester City. 11 Dentre as revelações entregues por Rui Pinto ao Der Spiegel estava a informação de que o patrocínio de €90,7 milhões da Etihad era pago 89% pelo Sheik Mansour pessoalmente (€81,1 milhões) e que só saíam dos cofres da companhia aérea €9,6 milhões. Além disso, o clube teria escondido de suas contas apresentadas à EUFA custos de €35 milhões. O Manchester City foi considerado culpado por ter inflacionado de forma falsa os valores de seus patrocínios, no período entre 2012 e 2016, sendo punido com o banimento por dois anos de qualquer competição europeia de clubes (sanção a ser cumprida em 2020/21 e 2021/22) e uma multa de €30 milhões. O clube vai recorrer da decisão junto ao Tribunal Arbitral do Esporte. Por essa razão, parece-nos pertinente retornamos ao conceito de “elite do poder” de C. Wright Mills. Para esse autor, a sociedade americana era controlada por uma minoria poderosa em detrimento de uma maioria desprovida de poder. Segundo Wright Mills (1956, p. 3-4), a “elite do poder” seria composta de pessoas cuja posição lhes permite transcender o ambiente comum dos homens e das mulheres comuns, e tomar decisões de grandes consequências. Se tomam ou não tais decisões, é menos importante do que o fato de ocuparem postos tão

fundamentais. A elite, portanto, corresponderia a quem ocupasse essas posições de poder, ou seja, aquelas capazes de comandar e de decidir, pertencentes às instituições mais importante da estrutura social do país: as grandes corporações, a máquina do Estado, o poderio militar, por exemplo. Wright Mills (1956, p. 4) diz, ainda, que estamos diante de mandatários desacompanhados. Ou seja, constitui-se uma rede de conselheiros, consultores, portavozes e formadores de opinião que contribuem na formulação de pensamentos e nas tomadas de decisão. O futebol, como vimos, é um instrumento útil ao exercício do poder. A aquisição de um clube de futebol, por exemplo, pode permitir, na linha do que argumenta Mills, a ocupação de posições estratégicas que permitiriam maior influência de decisão. É nesse sentido que compreendemos que o Manchester City ao mesmo tempo em que serve como promotor da imagem de Abu Dhabi, ou seja, do soft power, como também a chave que permite abrir as portas para vários negócios, a fim de contribuir para a diversificação da economia do emirado. A exploração do mercado imobiliário na Inglaterra, por exemplo, é um dos negócios empreendidos pelo fundo de investimento Abu Dhabi United Group, proprietário do Manchester City, e que conta com a colaboração direta da “elite do poder” britânica para a sua expansão. Em 2014, o Abu Dhabi United Group e o Manchester City Council (Conselho Autárquico da Cidade de Manchester) criaram a joint venture Manchester Life, um projeto que visa à construção de cerca de seis mil residências até 2024, implicando em um investimento de £1 bilhão (R$ 5,62 bilhões) por parte do fundo gerido pelo Sheik Mansour. Em junho de 2013, meses antes do lançamento da Manchester Life, Martyn Warr, diretor do departamento governamental UK Trade & Investment, esteve reunido com Howard Bernstein, chefe-executivo do Manchester City Council.

Segundo notícia do The Guardian, Warr teria afirmado a Bernstein que tinha uma “mensagem do primeiro-ministro” para vender uma ideia de investimento dos EAU em Manchester. De acordo com a mesma publicação, Warr fazia parte do denominado Project Falcon, que contava com 10 membros de alto escalão do governo britânico e servia de grupo de lobista a favor de investimentos dos EAU no Reino Unido. Até o nome de Tony Blair, ex-primeiro-ministro britânico, esteve envolvido, segundo o Guardian.12 Blair não comentou seu envolvimento nessas negociações, mas é pública a sua colaboração com as autoridades dos Emirados Árabes, tendo sido contratado em 2010, por exemplo, como consultor de Abu Dhabi13 e tendo já elogiado as autoridades dos EAU por sua abertura a uma economia liberal e uma sociedade de tolerância religiosa.14 Além da empresa Manchester Life em parceria com a autoridade autárquica de Manchester, Abu Dhabi também tem realizado outros investimentos na Inglaterra, não apenas por intermédio do Abu Dhabi United Group, como de outros fundos, negócios como Manchester student village (£175 milhões), 15% do aeroporto de Gatwick em Londres e 10% da Thames Water, empresa privada de monopólio responsável pelo abastecimento público de água e tratamento de águas residuais (£1,5 bilhão). E o Sheik Mansour, dono do Manchester City, é figura central nessas transações, uma vez que está intimamente ligado às mais importantes instituições para a alocação dos vastos recursos financeiros dos Emirados Árabes e há muito se encontra na posição de influenciar as decisões cruciais de investimentos (KOCH, 2019). Arábia Saudita: correndo atrás dos vizinhos Ao contrário de Catar e Emirados Árabes Unidos, dois países pequenos, a Arábia Saudita é um gigante. Em termos

territoriais, trata-se do segundo maior país árabe (atrás apenas da Argélia), o quinto maior da Ásia e o 12º do mundo. Sua economia é a maior do Oriente Médio e a 18ª do mundo. Trata-se do país com a segunda maior reserva de petróleo do mundo, sendo, de longe, o maior exportador deste produto, e ainda tem a quinta maior reserva de gásnatural do planeta. É também o único país árabe membro do G-20. Por isso, há até quem considere a Arábia Saudita como líder do “Mundo Islâmico” (ALKATHEERI; KHAN, 2019). Entretanto, no que tange ao soft power, o país ainda está muito atrás dos seus vizinhos. Mas nem sempre foi assim. Afinal, os sauditas foram pioneiros entre as nações do Golfo na aposta do esporte como forma de engajamento internacional. Isso porque podemos considerar a organização das duas edições da Copa Rei Fahd (1992 e 1995), que se tornou precursora da Copa das Confederações da FIFA, como uma estratégia clara de recurso a um evento esportivo como forma de comunicar sua imagem (positiva) ao mundo (ULRICHSEN, 2016, p. 57). 15

Agora, a Arábia Saudita corre atrás dos seus vizinhos. E o ponto de viragem coincide com a ascensão do Rei Salman bin Abdulaziz Al Saud ao poder em janeiro de 2015. Sob a liderança do Rei Salman, o país passou a adotar algumas reformas econômicas, políticas, sociais, culturais e diplomáticas, dirigidas pelo príncipe herdeiro Mohammad bin Salman bin Abdulaziz Al Saud. 16 É de Mohammad bin Salman a autoria de um dos planos transformadores do país, provavelmente o mais profundo e complexo de todos: o Saudi Vision 2030. Lançado em 2016, esse documento representa as intenções do príncipe herdeiro para que sejam implementadas políticas que modernizem a economia e a sociedade do país. A “Visão Saudita” de Bin Salman se sustenta em três pilares: o primeiro é a afirmação de que a Arábia Saudita é o coração dos mundos Árabe e Islâmico; o

segundo é a determinação em transformar o país em um centro de investimento global, buscando ter “uma forte capacidade de investimento, estimular nossa economia e diversificar nossas receitas”; e o terceiro é aproveitar a “singular e estratégica localização” geográfica saudita para tornar o país em um centro de conexões globais, ligando três continentes (Ásia, Europa e África), fazendo com que sejam o epicentro do comércio internacional e uma porta de entrada para o “Mundo Árabe”. Ou seja, assim como seus vizinhos do Golfo, a Arábia Saudita pretende diversificar sua economia, tornando-a menos dependente de combustíveis fósseis e sabe que, para atrair investidores internacionais, é necessário criar ou moldar uma ‘marca nacional’, transmitindo uma imagem positiva e moderna do país. Assim como Catar e Emirados Árabes, na busca pela construção desse novo ‘perfil global’, em que se amenize a imagem externa do país ao mesmo tempo em que se direcionam aos desafios domésticos, Bin Salman e sua “Visão Saudita” identificaram o esporte como um dos campos de disputa pelo protagonismo global. O documento é explícito no que diz respeito ao desenvolvimento do setor esportivo saudita e ao estabelecimento de relações sólidas com associações esportivas continentais e internacionais. Em novembro de 2016, por exemplo, o príncipe herdeiro determinou que a Autoridade Geral do Esporte criasse um Fundo de Desenvolvimento do Esporte para alavancar as atividades esportivas no país. Turki Al-Sheikh, presidente da Autoridade Geral do Esporte, afirmou que o esporte é parte importante do Saudi Vision 2030 pois promove a paz, o desenvolvimento e a cooperação internacional (ALKATHEERI; KHAN, 2019). A presença saudita no esporte já tem sido sentida. Em dezembro de 2019, a cidade de Diriyah recebeu o “Combate das Dunas”, no qual o britânico Anthony Joshua recuperou os títulos mundiais de pesospesados do boxe em revanche contra o estadunidense Andy

Ruiz Jr. No mês seguinte, em janeiro de 2020, foi realizada a primeira edição do Rally Dakar Arábia Saudita. Além disso, o país está próximo de entrar no circuito mundial da Fórmula 1, ao custo, segundo se especula, de cerca de €60 milhões. No futebol, uma das primeiras medidas tomadas foi a autorização para que as mulheres possam assistir a jogos de futebol nos estádios. A primeira vez que isso aconteceu foi em janeiro de 2018. E embora as mulheres estivessem segregadas em um único setor do estádio em Jidá, a notícia correu o mundo, repercutindo a imagem de “abertura” pretendida pelas autoridades do país. Os sauditas também têm apostado em eventos e em torneios futebolísticos. Em 2018 e 2019, por exemplo, Brasil e Argentina disputaram o “Superclássico das Américas” em Jidá e Riad, respectivamente. Também compraram os direitos de sediarem a Supercoppa Italiana em três edições em um período de cinco anos (já se realizaram duas delas: Juventus 1x0 Milan em 2018, em Jidá, e Juventus 1x3 Lazio em 2019, em Riad). A mais recente aquisição foi a Supercopa da Espanha. A troco de €120 milhões, a Federação Espanhola de Futebol negociou com a Autoridade Geral do Esporte saudita a realização de três edições de uma reformatada Supercopa, agora com quatro participantes, e não mais apenas dois. A primeira versão dessa competição aconteceu em janeiro de 2020 e foi vencida pelo Real Madrid. Muito se tem especulado que a Arábia Saudita poderá comprar um clube de futebol, repetindo as estratégias do Catar e de Abu Dhabi. O interesse seria em um clube inglês, aproveitando o prestígio da Premier League, o campeonato de futebol mais midiático do planeta. Essa medida seria, segundo se diz, um movimento oficial governamental saudita e, por isso, não pode ser confundida com a aquisição do espanhol UD Almería por parte do presidente da Autoridade Geral do Esporte, Turki Al-Sheikh, em agosto de 2019. Enquanto o Almería é apenas um investimento

pessoal de alguém que não possui qualquer autoridade sobre os destinos do país, o interesse na compra de um time na Inglaterra seria um objetivo do príncipe herdeiro, Mohammad bin Salman. Por enquanto, contudo, não há nada concretizado. Especulou-se por algumas semanas que a aquisição do Newcastle United estaria muito próxima. Porém, o interesse de Bin Salman pelo Manchester United é de conhecimento público já há algum tempo. Seja o Manchester United, Newcastle ou outro emblema qualquer, ao que tudo indica, parece que o Catar (Manchester City) poderá ter um concorrente de peso no mercado da liga mais badalada do mundo. Soft disempowerment: ou “o tiro pode sair pela culatra” Como demonstramos nas seções anteriores, Catar, Emirados Árabes e Arábia Saudita, ao construírem seus perfis globais em busca de legitimidade na esfera internacional, tal qual qualquer outra nação não-ocidental, emulam e promovem o conceito de “modernidade” ocidentalizado. Há uma razão para isso, afinal, a ideia de “moderno” reflete o discurso ocidental, que se assume e se afirma como único, de maior importância, ou seja, predomina a visão eurocêntrica de que o “moderno” é um termo que se confunde com o conceito de civilização europeia (WALLERSTEIN, 1997, p. 97). Portanto, como vivemos em um mundo onde predomina o discurso ocidental, quando um país não-ocidental recorre ao soft power como ferramenta para se comunicar na arena global é inevitável que sua iniciativa passe pelo que Brannagan e Giulianotti (2018) definem como “filtro de credibilidade de atração”. Isso porque, ao lançar mão de um recurso de soft power, um país está, essencialmente, colocando-se em uma disputa internacional por atenção, cujos resultados

pretendidos (o poder de atração e de cooptação) vão depender de um processo de avaliação por parte da audiência, na qual a credibilidade da mensagem é fundamental. O próprio Joseph Nye (2008), que cunhou o termo soft power, alerta para isso quando refere que se o conteúdo da cultura, valores e políticas de um país não for atrativo, a diplomacia pública que as promove não será capaz de produzir soft power, podendo resultar exatamente no oposto. A esse risco de o efeito ser o oposto do pretendido, alguns autores denominam de soft disempowerment (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2015; BRANNAGAN; ROOKWOOD, 2016), que é quando o tiro do soft power sai pela culatra: influência e prestígio são abalados ao invés de expandidos (GIULIANOTTI, 2015). Em tempos de “sociedade em rede”, com tecnologias de comunicação e informação extremamente avançadas e com a influência das redes sociais na forma como as pessoas se comunicam e as opiniões são formadas, o poder também é construído e representado pelos meios de comunicação. E como já vimos, no mundo globalizado contemporâneo, há vários interlocutores e comunicadores na esfera global. Como argumentam Brannagan e Giulianotti (2018), a “atração” é dependente de fatores intersubjetivos e culturais, forçando a que a mensagem seja atraente e credível à audiência. Essa mensagem, em um ambiente de competitividade internacional pela atenção, passa por filtros. A mídia é apenas um dos filtros, ao lado de Estados, organizações não governamentais, setores corporativos e a sociedade civil. Afinal, a tentativa de construir uma imagem internacional credível é, também, parte da disputa da hegemonia como negociação do consenso. É nesse sentido que as investidas de Catar, Emirados Árabes e Arábia Saudita no esporte internacional são acusadas de ‘sportswashing’ por parte da mídia ocidental e de organizações não governamentais. O fato de esses

países recorrerem aos altos investimentos em megaeventos esportivos, patrocínios a eventos esportivos e clubes de futebol, compra de clubes do centro do “sistema mundo” do futebol como PSG e Manchester City, etc., como recurso de soft power não implica que os resultados pretendidos vão ser obtidos da forma planejada. Afinal, quando se pretende conquistar credibilidade e legitimidade junto a uma audiência global na qual o discurso ocidentalizado predomina, é natural que o desrespeito a valores centrais do Ocidente, como a democracia liberal e os direitos humanos, sejam filtros preponderantes e as críticas a esses países sejam mais enfáticas, pois, ao se colocarem em evidência na arena internacional, a atenção recebida não será apenas positiva. O Catar é um caso em evidência porque o emirado conquistou o direito de sediar a Copa do Mundo FIFA de 2022. Obviamente que a exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão, o desrespeito aos direitos humanos e as suspeitas de financiamento de grupos terroristas impactam negativamente a imagem do país (BRANNAGAN; GIULIANOTTI, 2018; DORSEY, 2014, 2015; REICHE, 2014). O mesmo tem acontecido com a Arábia Saudita em suas investidas mais recentes, uma vez que também é um país com suspeita de ter ligações a grupos terroristas, para além dos problemas com os direitos humanos. Conclusão Vimos, em nosso outro artigo, como a China tem usado o futebol como um instrumento geopolítico. Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita também têm investido no futebol como recurso de soft power. Entretanto, ao contrário da China, que é um poder global em ascensão e, por meio da Nova Rota da Seda, a maior promotora da globalização na atualidade, os casos dos países do Golfo nos mostram

como o soft power não pode ser analisado sob uma ótica engessada. Cada país representa uma realidade própria e, por conseguinte, tem objetivos e planos próprios. O soft power chinês é diferente do catarino, que é diferente do emirático, que, por fim, é diferente do saudita. O Catar investe em diversas frentes, uma delas é o PSG, e apostou alto quando mirou a organização de uma Copa do Mundo FIFA, enquanto os Emirados Árabes, Dubai e Abu Dhabi adotam estratégias distintas, com o primeiro investindo mais em patrocínios como forma de construir sua marca e o segundo sendo mais arrojado, principalmente por meio do Manchester City. Por fim, a Arábia Saudita, que chega atrasada nessa competição e corre atrás dos vizinhos. Contudo, nem sempre os resultados pretendidos são obtidos: há o risco de o tiro sair pela culatra. E todos os três países sofrem com o “filtro de credibilidade de atração”. Pois, ao mesmo tempo em que buscam moldar um perfil global a fim de conquistarem credibilidade e respeito internacionais e, assim, atraírem investimentos e também diversificarem suas economias, colocam-se no centro da ribalta e se tornam, naturalmente, alvos de críticas. Enfim, estendemos que, aqui, ficou demonstrado que o futebol pós-moderno não apenas reflete a globalização capitalista contemporânea, como serve de objeto de estudos para compreendermos fenômenos complexos tais como a globalização, a política, a economia e a geopolítica.

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Notas [1] Fazem parte do conglomerado do CFG: Manchester City, Melbourne City FC, Montevideo City Torque, New York City FC (80%), Mumbai City FC (65%), Girona FC (44,3%), Sichuan Jiuniu (28%), Yokohama F. Marinos (20%).

[2] O Conselho de Cooperação do Golfo é a organização de integração econômica que reúne seis estados do Golfo Pérsico: Omã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein e Kuwait. [3] E aqui, quando usamos as expressões “eurocentrismo” ou “eurocêntrico”, seguimos o entendimento de Wallerstein, que

nos

explica

que,

nesse

contexto,

a

Europa

é

representada do ponto de vista cultural, e não meramente geográfica, cartorial. Eurocentrismo em Wallerstein (1997, p. 93) é sinônimo de Ocidentalismo, ou seja, Europa Ocidental e América do Norte. [4]

Como

discutimos

anteriormente,

o

processo

de

globalização não é homogêneo. E é para explicar essa “heterogeneidade” da globalização que alguns autores introduzem o conceito de “glocalização” (ROBERTSON, 2012). Glocalização criticamente transcende ao binarismo banal associado à globalização, ressaltando a mútua presença de semelhança e de diferença, e a intensificada interpenetração do local e do global, o universal e o particular, o homogêneo e o heterogêneo (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2007). No esporte é possível observar as interdependências entre local/particular e global/universal e como estas se refletem no processo de glocalização (GIULIANOTTI; ROBERTSON, 2004). [5] CONN, David. “PSG v Manchester City emblematic of how Gulf rivals are fuelling football”, The Guardian, 5 abr

2016. [6] Sob as regras do fair play financeiro, os clubes só podem ter um prejuízo máximo de 5 milhões de euros por no máximo três anos, podendo chegar a 30 milhões de euros se houver aporte de recursos por parte do acionista para cobrir a diferença. Além disso, dentre outras regras, acionistas ou empresas que façam parte do mesmo conglomerado podem injetar dinheiro desde que o aporte não seja maior do que 30% sobre a receita bruta; e o investimento na contratação de jogadores não pode ser maior do que 100 milhões de euros na diferença entre compras e vendas. [7] SPIEGEL. “How Oil Money Distorts Global Football”, 2 nov 2018. [8] Vale lembrar que a contratação de Neymar, em agosto de 2017, aconteceu em meio à crise do Catar com seus vizinhos do Golfo, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, além do Egito, que cortaram relações diplomáticas com o país em junho daquele ano. Em meio ao conflito diplomático, o Catar precisava trabalhar ainda mais a promoção de sua imagem, e foi nesse contexto que Neymar chegou ao PSG. O principal jogador da Seleção Brasileira chegava para reforçar o time parisiense e também o time de “garotos-propaganda” do emirado. [9] PANJA, Tariq. “In P.S.G. Case, Documents Show UEFA Surrendered Without a Fight”, NY Times, 24 jul 2019.

[10] SPIEGEL. “How Oil Money Distorts Global Football”, 2 nov 2018. [11] CONN, David. “How 'leaked' emails and invoices led to Manchester City's ban from Europe”, The Guardian, 14 fev 2020 [12] RAMESH, Randeep. “UK set up secret group of top officials to enable UAE investment”, The Guardian, 9 nov 2015. [13] READ, Carly. “Tony Blair to advise Abu Dhabi Crown Prince on project costing a staggering $31billion”, Express. 15 jan 2020. [14] BULLER, Alicia. “Tony Blair: the final act”, Arabia Business, 27 abr 2019. [15] A Arábia Saudita bancou todos os custos das duas edições da Copa Rei Fahd, levando os campeões de seis continentes à sua capital, Riad. [16] Além de herdeiro do trono Saudita, Mohammad bin Salman é vice-primeiro-ministro, ministro da Defesa, chefe da Corte Real da Casa de Saud e presidente do Conselho de Assuntos Econômicos e de Desenvolvimento.

“Multi-club ownership”: um novo estágio da globalização dentro do futebol

João Ricardo Pisani

O surgimento de verdadeiras organizações transnacionais dedicadas ao futebol, com franquias espalhadas em diferentes campeonatos pelo mundo afora, marca uma nova etapa da globalização no esporte mais popular do planeta. Thomas Friedman (2005) definiu o processo de globalização como um fenômeno que consiste de um espaço geográfico interligado por meio de uma rede de atividades econômicas, políticas, sociais e culturais em uma escala global. Esse processo ocorre em inúmeras escalas e tem consequências diferentes ao redor do mundo. E um dos principais agentes desse processo são as corporações transnacionais. Corporações transnacionais, ou multinacionais, são empresas que possuem ramificações espalhadas em mais de um país. No mundo de hoje, empresas transnacionais possuem uma função essencial, que é espalhar pelo globo características que anteriormente

ficavam restritas a uma única região, ou seja, o local se transforma em global (Huntington, 2011). Apesar de ser o esporte mais global que existe e um dos principais agentes da globalização, o futebol sempre teve uma relação muito forte com suas raízes locais (GIULIANOTTI & ROBERTSON, 2009). Enquanto a globalização teve um impacto tremendo nos aspectos financeiros e no fluxo de talentos entre países, o modelo de organização e de gestão dos clubes sempre foi pensado e executado de forma muito local ou regional. Contudo, essa realidade passou a ser algo do passado. O mundo do futebol assiste ao nascimento de organizações capazes de gozar dos mesmos privilégios que empresas transnacionais têm hoje em dia. Por meio do modelo de multi-club ownership (MCO), que pode ser adaptado para o português como multipropriedade de clubes (MPC), 1 verdadeiras multinacionais futebolísticas estão surgindo e espalhando suas operações em diversas ligas, diversificando seus mercados, expandindo suas marcas ao redor do mundo e criando um novo modelo de negócios para o futebol. Esse formato de organização irá permitir aos clubes aumentar sua capacidade de prospectar por talentos, ampliar seu alcance de marca, potencializar ainda mais a capacidade de gerar renda ao transcender as limitações demográficas e até mesmo ignorar leis locais, tais como taxas e impostos, restrições de transferências de jogadores e até mesmo o polemico Fair Play Financeiro local. Atualmente, apenas alguns grupos de clubes conseguem se enquadrar na categoria de multi-club ownership, seja por aglutinar embaixo do mesmo guarda-chuva de uma organização central clubes de um mesmo proprietário, ou até mesmo por ter investidores em comum. Todavia, é interessante notar como o número de equipes dentro desse tipo de organização vem aumentando a cada ano. Enquanto

clubes como o italiano Internazionale de Milão e o chinês Jiangsu Suning fazem parte do portfólio de empresas de um mesmo dono e, por ora, não possuem nenhum projeto de integração que beneficie ambos os clubes, nos últimos anos assistimos aos donos do Manchester City, o City Football Group, adquirir nada menos que oito clubes ao redor do mundo. City Football Group é hoje uma das poucas organizações de multi-club ownership que buscam estabelecer uma uniformidade entre suas franquias, e essa prática vai além das equipes vestirem as mesmas camisas azuis claras. Ao expandir sua presença para diferentes países, o City Football Group alcança novos mercados, aumenta o reconhecimento da marca City e cria uma estrutura que organiza e canaliza a prospecção de talentos dentro da sua rede de clubes, área vital para qualquer clube de futebol (AHMED, 2017). Como aponta Ferran Soriano (2012), um dos arquitetos por trás do City Football Group, “Esse é o ponto onde os grandes clubes de futebol deixam de parecer um circo local e se transformam em algo que lembra mais uma empresa global de entretenimento como uma Walt Disney ou uma Warner Bros”. Apesar de o City Football Group ainda não possuir o tamanho de mercado ou o valor de companhias como o McDonald’s ou a Disney, é essencial assinalar que o futebol tem a habilidade única de aliar paixão, entretenimento, talento e emoção, transformando o esporte em uma atividade incrivelmente rentável (TREMLETT, 2017). Além disso, o modelo de multi-club ownership parece ser o futuro dentro do mercado futebolístico. Um caminho sem volta no qual uma modalidade antes marcada por suas peculiaridades geográficas se transforma em uma indústria sem raiz e globalizada. É uma evolução dentro do modo como se gere o futebol e o jogo como um todo.

O que é multi-club ownership? De forma resumida, o termo multi-club ownership pode ser usado quando uma organização ou um indivíduo possui mais de um clube de futebol sob o seu controle (REID, 2017). Conforme apontado por Pastore (2018), “em tempos de internacionalização e comercialização avançada do esporte, clubes de futebol estão desenvolvendo novos modelos de negócios e adotando estratégias emprestadas de outras indústrias para expandir sua rede e maximizar sua renda”. Esse fenômeno recente, inclusive, forçou os organismos que gerenciam e regulam o futebol em todo o mundo a prestar mais atenção e fornecer um escopo mais formal do que pode ser definido como multi-club ownership. A FIFA, órgão máximo do futebol, lança luz sobre essa modalidade de propriedade já há algumas edições do seu estatuto, em uma tentativa de demarcar os limites do que possa ser enquadrado como multi-club ownership: 20 Status of clubs, leagues and other groups of clubs Clubs, leagues or any other groups affiliated to a member association shall be subordinate to and recognised by that member association. The member association’s statutes shall define the scope of authority and the rights and duties of these Every member association shall ensure that its affiliated clubs can take all decisions on any matters regarding membership independently of any external body. This obligation applies regardless of an affiliated club’s corporate structure. In any case, the member association shall ensure that neither a natural nor a legal person (including holding companies and subsidiaries) exercises control in any manner whatsoever (in particular through a majority shareholding, a majority of voting rights, a majority of seats on the board of directors or any other form of economic dependence or control, etc.) over more than one club whenever the integrity of any match or competition could be jeopardised.

Entretanto, um olhar atento para o artigo do estatuto FIFA destacado acima2 permite concluir que seu primeiro item dispõe que cabe a cada membro associado definir multi-club ownership. Embora não haja consenso sobre a porcentagem válida para que a organização ou o investidor de um clube não comprometa a integridade da disputa, é comum ver nas regras da FIFA e de seus membros a preocupação em descrever como evitar qualquer tipo de conflito de interesses quando isso ocorrer (LAVER, 2016). No entanto, é interessante notar que o fato de existirem diferentes regras para a multi-club ownership acaba por criar uma enorme área cinzenta no futebol em uma escala mais ampla. Uma regra ou veto à multi-club ownership de uma das inúmeras federações em seus próprios torneios não restringe que a mesma organização tenha clubes em países diferentes se eles competirem em ligas diferentes. Especialmente em um esporte globalizado como o futebol “Quando os objetivos da propriedade múltipla são complementares, uma rede ampla pode aparecer para alavancar sinergias tanto esportivas (por exemplo, melhorar das redes de prospecção de talento) quanto da perspectiva dos negócios (por exemplo, convergir os esforços de patrocínios, eficiência de custos, compartilhamento de conhecimentos e melhores práticas).” (FOOTBALL BENCHMARK, 2017). Contexto histórico Em meados dos anos de 1990, surge o que muitos autores consideram ser a primeira entidade no modelo de multi-club ownership dentro do futebol, que coloca em pauta a integridade do jogo: a English National Investment Company (ENIC). Com investimentos em equipes espalhadas por diferentes países na Europa, o Grupo ENIC

era dono de parcelas consideráveis no AEK Atenas da Grécia, FC Basel na Suíça, Rangers na Escócia, Slavia Praga na República Tcheca, Tottenham na Inglaterra e Vicenza na Itália, e geria o futebol de todos simultaneamente. Apesar de as equipes da ENIC disputarem ligas em diferentes países, sempre existiu a possibilidade de esses clubes se encontrarem em competições internacionais como a UEFA Champions League (BOCCHIERI, 2017). Essa possibilidade se transformou em realidade quando AEK Atenas, Slavia Praga e Vicenza se classificaram para a Recopa Europeia (atualmente conhecida como Liga Europa) para disputarem as quartas de final do torneiro na temporada de 1997/1998. O encontro entre os clubes do Grupo ENIC acabou não se realizando nas semifinais do torneio porque AEK Atenas e Slavia Praga perderam suas partidas. Contudo, devido ao potencial conflito de interesses, a UEFA decidiu proibir clubes com idênticos proprietários de participar do mesmo torneio (PASTORE, 2018). A principal organização de futebol da Europa previu que uma partida entre clubes do mesmo grupo de proprietários criaria discussões desnecessárias e geraria margem para um possível conflito de interesses que certamente prejudicaria a credibilidade do torneio (FOOTBALL BENCHMARK, 2017). O episódio com os clubes do Grupo ENIC foi o gatilho para um debate que resultaria em uma série de medidas destinadas a organizar e a regular clubes com acionistas em comum. Anos depois, uma das resoluções críticas desse processo seria a Regra de Integridade da UEFA. No entanto, esse debate ainda se restringe apenas ao nível de membros ou confederações da FIFA. Embora o órgão máximo de governo do futebol já tenha expressado alguma preocupação com os desdobramentos que o modelo de multi-club ownership pode gerar, os estatutos e os relatórios da FIFA são bastante vagos sobre o assunto. Eles estão criando uma “área cinzenta” que deixam uma margem

considerável para diferentes interpretações dentro de suas associações membros, criando indesejável ambiente de insegurança (LAVER, 2016). Os casos mais emblemáticos do modelo A Família Pozzo e os contornos modernos do modelo Giampaolo Pozzo já era um empresário de futebol bemsucedido quando a família Pozzo decidiu comprar o Granada Club de Futbol na Espanha. Sua decisão era apenas mais um investimento pequeno em outro clube de futebol. A aquisição do modesto clube na região da Andaluzia, e, logo na sequência, o inglês Watford FC, simboliza o primeiro exemplo de um modelo de negócios de multi-club ownership, em que os clubes não são meros ativos dentro de um portfólio de investimentos típico. Em 1986, o patriarca da família Pozzo assumiu o controle da Udinese Calcio e, nas décadas seguintes, transformou o clube em um importante produtor de talentos na Série A italiana: Como os Pozzos não eram particularmente ricos e não podiam competir financeiramente com a maioria dos clubes da Série A Italiana, ele percebeu que precisava fazer as coisas de maneira um pouco diferente. Sua ideia era criar uma enorme rede de olheiros em todo o mundo, para encontrar jovens jogadores talentosos antes de todos os outros clubes. (REID, 2017a, traduzido pelo autor) 3

Giampaolo, que, depois de algum tempo, começou a contar com a ajuda de seu filho Gino, desenvolveu em Udine um sistema lucrativo para prospectar jovens jogadores em mercados pouco explorados em todo o mundo. A receita da família Pozzo provou ser eficiente, e a expansão dessa fórmula para outros mercados acabou sendo natural. Com

cada clube jogando em uma liga diferente na Europa, os Pozzo criam um sistema de transferência de jogadores interconectando os clubes da família (RUMSBY, 2016). O fluxo de talentos entre os clubes variou de acordo com a importância da liga – a chance de se qualificar para uma competição significativa ou apenas de alocar um jogador em um mercado mais lucrativo –, o que gerou muita controvérsia e colocou a família sob escrutínio legal (MENSURATI & TONACCI, 2018). Um dos clubes mais beneficiados pela política de transferências internas do Pozzo foi o Watford FC. Apesar de ter sido comprado enquanto ainda lutava na Championship, a segunda divisão inglesa, o Watford FC se tornou uma figura constante na Premier League sob a administração da família (WOOED, 2016). Recentemente, a família Pozzo vendeu um de seus clubes, o Granada CF. No entanto, mesmo com a venda do clube espanhol, Udinese e Watford permanecem sob o controle de Pozzo, e os clubes ainda têm no modelo de multi-club ownership uma de suas principais vantagens competitivas. Mesmo que isso custe a ira dos torcedores da Udinese, que veem os talentos indo embora do time todo final de temporada e o clube estagnado no meio da tabela vítimas do sucesso do “irmão” inglês. City Football Group, a construção de marca global e seus defeitos City Football Group é a maior organização de privada do mundo com dedicação exclusiva ao futebol atualmente. O grupo já acumula oito clubes espalhados em quatro das seis confederações regionais do sistema de futebol da FIFA. Uma referência no modelo de multi-club ownership, o City Football Group se consolidou como uma holding totalmente integrada, gerenciando toda a operação de seus clubes

espalhados pelo mundo. O Abu Dhabi United Group for Development and Investment (ADUG), principal proprietário do grupo, detém 87% das ações do City Football Group. Os 13% restantes foram comprados no final de 2015 por um consórcio de empresas chinesas constituídas pelo CITIC Group e pela Chinese Media Company (CMC). Em 2008, como proprietário do ADUG, o xeique Mansour bin Zayed Al Nahyan dos Emirados Árabes comprou o clube inglês Manchester City. O xeique Mansour, que na época já ocupava o cargo de presidente da equipe de sua cidade natal, Al Jazira Club, viu no clube do noroeste da Inglaterra uma grande oportunidade de expandir seus investimentos em uma das ligas mais ricas do mundo (“City Football Group - Ownership”, n.d.). Eclipsado pelo sucesso de seu principal rival, o Manchester United, o inconstante Manchester City coletou décadas de fracassos e más administrações. Khaldoon Al Mubarak, que também ocupa o cargo de CEO do fundo soberano dos Emirados Árabes, Mubadala Development Company, foi apontado pelo xeique Mansour como o presidente e a peça central na administração do clube. Al Mubarak, homem de confiança do xeique Mansour, estabilizou o clube na Premier League e até ganhou o troféu na temporada 2011/2012. Mas a verdadeira transformação do clube começou com a chegada de dois ex-executivos do FC Barcelona: Ferran Soriano e Aitor “Txiki” Begiristain. Nomeado como CEO do Manchester City em 2012, Soriano anunciou o lançamento do New York City FC no mesmo ano. A franquia norte-americana, que só faria parte da expansão da Major League Soccer em 2015, também marcou o início do City Football Group como uma organização. Logo depois, o grupo anunciou a compra do australiano Melbourne Heart e a mudança do nome do clube para Melbourne City. Com três clubes em seu portfólio e anunciando mais expansões por vir, a propriedade de vários clubes se tornou a essência do City Football Group. O próximo passo do grupo pode

parecer mais discreto – comprando apenas 20% das ações do clube japonês Yokohama F. Marinos. Mas a iniciativa marcou a parceria do grupo com a montadora japonesa Nissan, que permaneceu com os outros 80% das ações de Yokohama, e, ao mesmo tempo, estabeleceu uma parceria da empresa patrocinadora com os demais clubes dentro do grupo. Com uma Premier League cada vez mais valorizada e competitiva, o CFG concentrou seus esforços na consolidação do Manchester City como uma das potências da liga inglesa. Soriano e Begiristain comemoraram a contratação do antigo companheiro de equipe do FC Barcelona Pep Guardiola em 2016. Tanto o CEO quanto o diretor de futebol viram em Guardiola não apenas o treinador que consolidaria o clube azul de Manchester como uma das principais referências do futebol moderno, mas também como o responsável por desenvolver um “padrãoCity” para todo o futebol praticado pelos clubes do CFG (ROBSON, 2018). Após alguns anos focando na consolidação do Manchester City e seu sucesso, em 2017 o City Football Club voltou a atuar no mercado. Dessa vez, o destino foi a América do Sul. O grupo comprou o Clube Atlético Torque. A compra de uma equipe modesta da segunda divisão do Uruguai representou a chegada formal do CFG em uma das principais regiões formadoras de talento para o futebol no globo (REID, 2017b). No agora rebatizado Montevideo City Torque, a meta é fazer do clube uruguaio um centro estratégico do grupo na região, próximo a mercados como Argentina e Brasil (BRENNAN, 2018). Curiosamente, a chegada de Pep Guardiola como treinador do Manchester City também abriu as portas do CFG para mais uma aquisição do clube. Em parceria com o irmão mais novo de Pep, o agente de jogadores e empresário Pere Guardiola, a empresa transnacional de futebol adquiriu 44,3% do time espanhol Girona CF (JACKSON, 2017). Pela primeira vez

desde o início de sua expansão global, o CFG adquiriu outro clube na Europa. Na sequência, o grupo voltou sua atenção para o maior mercado consumidor do planeta, a China. Com a compra do Sichuan Jiuniu FC formalizada em fevereiro de 2019, mais uma vez a CFG adicionou outro clube ao seu portfólio e também outro parceiro comercial como participante minoritário nesse empreendimento chinês: a empresa de robótica UBTECH. No momento, o Sichuan Jiuniu está na terceira divisão da liga local; no entanto, o investimento da CFG está focado em um projeto de longo prazo. As cifras do futebol na China têm crescido exponencialmente, e a liga chinesa, por seu turno, chegou até a competir por talentos com as principais ligas europeias, o que faz do Sichuan Jiuniu um grande investimento para a expansão da marca City como um todo. No final de 2019, o CFG voltou às compras e incorporou o Mumbai City FC. Dessa vez, o grupo atacou em um mercado onde o futebol ainda não é unanimidade, porém, com um enorme potencial consumidor, o da Índia. E quase que simultaneamente ao anúncio da sua oitava franquia, o City Football Grupo divulgou também a venda de 10% de suas ações para um fundo de investimentos norte-americano, injetando mais dinheiro na holding e se transformando no grupo esportivo mais valioso do mundo (OZANIAN, 2019), turbinando ainda mais seus planos de expansão global. Os limites da área cinzenta Uma das maiores preocupações trazidas pelo modelo de multi-club ownership é que um grupo que controla mais de um clube de uma liga pode usar sua rede de equipes para contornar políticas específicas de uma liga ou mesmo evitar leis mais severas. Um exemplo prático dessa situação aconteceu na transferência de jogadores entre clubes da

liga nacional de futebol masculina, organizada na Austrália e na Nova Zelândia, a A-League. Embora a transferência de jogadores de um clube para outro seja comum no futebol, a A-League veta a transferência do jogador por meio da compra dos seus direitos ou o pagamento de uma multa rescisória entre equipes que disputam o seu torneio. O objetivo da A-League (2018) é popularizar e espalhar o esporte por toda a Austrália e Nova Zelândia, e essa política tem como objetivo manter o equilíbrio e a competitividade entre os clubes participantes. No entanto, depois que o City Football Group assumiu o controle da franquia australiana Melbourne Heart e rebatizou a equipe como Melbourne City FC, o Grupo passou a desejar jogadores de clubes rivais locais. Para contornar a regra local, eles contrataram alguns dos mais talentosos jogadores via Manchester City. Transferências de clubes locais para equipes internacionais são permitidas dentro da Liga A, portanto, depois que a filial britânica do City Football Group adquiriu os direitos dos jogadores, ela transferiu o jogador de volta ao campeonato australiano, mas agora para defender as cores do Melbourne City FC (LEE, 2016). Essa brecha legal criou uma vantagem competitiva para os clubes do grupo City Football Group. Contudo, isso contraria todos os esforços da administração da A-League para estruturar um campeonato competitivo e uma disputa saudável entre seus clubes, nivelando a disparidade entre seus mercados internos (HUGUENIN, 2016). City Mix No meio dessa troca de jogadores, dois casos se destacam do ponto de vista financeiro. O primeiro é Yangel Herrera. Um venezuelano jovem e habilidoso que chamou a

atenção de vários clubes do mundo após uma boa atuação no torneio das seleções sul-americanas sub-20 em 2017. Muitos críticos relataram que, apesar de todo o potencial visto no jogador, ele ainda precisava se desenvolver mais para ter o calibre dos jogadores que normalmente fazem parte do elenco principal do Manchester City quando o clube o comprou do Atlético Venezuela. O valor de sua transferência não foi divulgado ao público (MCFC Editorial, 2017). No entanto, Herrera foi imediatamente emprestado ao NYCFC, onde jogou entre 2017 e 2018. Nos dois anos, o salário base de Herrera foi exatamente o piso MLS, também chamado pela liga americana de remuneração garantida, de acordo com o guia de salários da divulgado abertamente4 (MLS Players Salary Guide, n.d.). Isso mostra como o NYCFC ignorou qualquer bônus de inscrição ou qualquer custo extra relacionado ao empréstimo de Herrera, mesmo diante do fato de que o jogador viera para o NYCFC direto do Atlético Venezuela. O venezuelano teve muitas performances de destaque durante sua estadia em Nova York e, apesar de se consolidar como uma referência sólida para o Bronx Blues, Herrera foi chamado para retornar a Manchester. O segundo caso envolve a história recente, e um tanto desconfortável, de transferência do jogador Mix Diskerud. Embora ele não tenha preenchido uma das vagas designadas para estrelas na MLS, Diskerud tinha um dos salários mais altos do elenco. Superestimado e considerado um uma das piores contratações da MLS, o NYCFC optou por comprar Diskerud com apenas duas temporadas para finalizá-lo. O antigo meio-campista da seleção nacional dos EUA até conseguiu jogar uma temporada pelo IFK Goteborg (SCHNITZER, 2018). Isso foi um alívio para as finanças da NYCFC porque o clube conseguiu recuperar parte do dinheiro pago à liga devido à compra do jogador. No entanto, em uma das ações mais inesperadas, alguns meses antes de se tornar um agente livre, Diskerud assinou

um novo contrato de quatro anos, só que agora com outro clube do CFG, o Manchester City: Essa brecha é relativamente nova e o City não conseguiu explorá-la com frequência. Com o tempo, porém, seus clubes irmãos desenvolverão mais jogadores. O City pode assinar transferências gratuitas e depois transferir para outros clubes para manter seus livros limpos. (BERNUCCA, 2018, parágrafo 13, traduzido pelo autor) 5 Na sequência, o Diskerud foi novamente emprestado ao IFK Göteborg por mais uma temporada (CARLISLE, 2018). Os números desse novo contrato com um dos clubes do City Football Group mais uma vez não foram divulgados, mas especula-se que a organização MCO fez isso para evitar o pagamento das taxas da MLS que afetam a transferência de jogadores para ligas estrangeiras (SCHNITZER, 2018). O futebol no México De todos os casos citados aqui, o México apresenta a panorama mais sui generis quando se mapeia o cenário dos clubes-empresa e seus desdobramentos. Com uma legislação que permite aos clubes se organizarem tanto em forma de associações civis quanto de empresas privadas, o futebol mexicano nunca precisou de um movimento artificial que impusesse qualquer tipo de migração de formato para seus clubes. O país norte-americano viu, ao longo de sua história, os clubes migrarem para o formato de empresas privadas, conforme grandes investidores locais iam tomando o controle dos clubes e incorporando essas equipes ao seu portfólio de empresas ou dentro de seus fundos. Vale uma ressalva com relação aos clubes que nasceram dentro de universidades públicas mexicanas, fato muito comum entre as equipes do país. Esses times ainda se mantém sob a forma de associações civis, como é o caso dos Pumas UNAM (PEREZ, 2017), mas, em certos casos, a

universidade pode licenciar a gestão do time para empresas privadas, caso dos Tigres da UANL (TORRES, 2017). O país é um dos pioneiros a presenciar a prática da multi-club ownership em um dos seus formatos mais desencorajados: quando uma organização controla mais de um clube no mesmo campeonato. Apesar das inúmeras tentativas da Federação Mexicana de Futebol (Femexfut) de desestimular a prática, os investidores do país sempre ignoraram as críticas e qualquer alerta para os prováveis conflitos de interesse que o modelo de multi-club ownership pode gerar. Somente na temporada 2019/2020 da Liga MX, a primeira divisão mexicana, dos 18 clubes participantes, 6 se encontram nessa situação: Atlas e Santos Laguna, sob o comando do Grupo Orlegi; Querétaro e Tijuana, controlados pelo Grupo Caliente; Pachuca e Leon, dentro do guardachuvas de clubes do Grupo Pachuca, que ainda conta com uma equipe chilena, o Everton de Viña del Mar e que até recentemente era o principal investidor do Talleres de Córdoba da Argentina (NAVARRO, 2017). E se incluirmos a segunda divisão nessa conta, o número só aumenta. Ter mais de uma equipe dentro do portfólio foi a saída natural encontrado por alguns donos de clubes para blindar seus investimentos no futebol (CASTRO, 2018). Com seus clubes situados em cidades diferentes, o investidor garante exclusividade em uma região só sua e, assim, pode explorar o interesse local pelo esporte. Por isso é comum ver equipes trocando de lugar no caso de insucessos esportivos e de público, ou até mesmo pela falta de acordo com o poder executivo ou políticos locais. Uma das vítimas mais interessantes dessa prática foi o Club Necaxa. Se traçarmos um paralelo com a realidade brasileira, seria como se a Rede Globo de Televisão, além de ser a emissora exclusiva do Flamengo, se aventurasse no mundo do futebol também como a dona do rubro-negro carioca. E anos depois ela comprasse o rival Botafogo, o

transferisse para Vitória no Espírito Santo e, no pacote, ainda abandonasse o apelido de “glorioso” para chamar o clube de “vitorioso” com a intenção de criar mais conexão com sua nova sede. Como se isso não bastasse, imaginem que a emissora não se importasse com um rebaixamento do clube que um dia foi casa a Garrincha e Nilton Santos para a segunda divisão nacional e, de quebra, ainda justificasse publicamente como estratégica toda essa situação. O que, para muitos torcedores do Botafogo, pode soar como um dos piores filmes de terror já escritos foi realidade durante anos para os fanáticos do mexicano Club Necaxa. O clube que figura na lembrança de muitos brasileiros como o representante da CONCACAF no primeiro mundial de clubes organizado pela FIFA viu no torneio sediado no Brasil em 2000 um dos seus últimos momentos de glória antes da reviravolta que levaria os antigos rayos em uma espiral descendente nas décadas seguintes. Com um portfólio focado principalmente na indústria do entretenimento, a Televisa iniciou suas atividades como uma emissora de TV. Atualmente, é um dos maiores grupos de comunicação e de entretenimento de todo o continente americano e, dentre as empresas que fazem parte do grupo, estão o tradicional Club América e o lendário Estádio Azteca. Em 1959, em uma de suas primeiras aventuras fora do mundo da televisão, a família Azcárraga, dona da Televisa, decidiu comprar o tradicional clube da capital mexicana. Na época, a compra foi considerada estratégica para o patriarca da família, Emilio, posto que o clube era um dos que contava com mais torcedores em todo o território mexicano. Décadas depois, a mesma emissora investiria no rival Necaxa, outro time da Cidade do México, e que também tinha como casa o estádio Azteca. Mesmo depois de temporadas de muito sucesso e com toda a história do clube na capital mexicana, a Televisa decidiu mudar a equipe de sede em 2003. Transferido para Aguascalientes, a

exatos 508 km de distância do seu antigo campo e em um novo estado da federação, o clube adotou o apelido de hidrorayos e se viu envolvido em um projeto que contou, inclusive, com o apoio da prefeitura local, mas viu sua torcida e sua importância no cenário nacional minguar. Em 2014, já sem o interesse da Televisa e com a equipe encostada na segunda divisão pela emissora, o clube foi vendido para Ernesto Tinajero, reavivando a esperança de reencontrar seus dias de glórias. Controlados em sua imensa maioria por empresas e investidores locais – onde a única exceção é o Atlético San Luís (MANCERA, 2017), fruto de uma parceria entre a família Payán e o clube espanhol Atlético de Madrid – as equipes mexicanas raramente estão sozinhas no portfólio de empreendimentos desses conglomerados. No âmbito desportivo, essa estratégia serve para preservar o investimento feito em todas suas equipes, uma vez que, no caso de um rebaixamento, o investidor minimiza seus riscos porque pode mover os talentos de um clube para o outro, blindando clubes mais tradicionais ou em mercados melhores de um indesejado calvário em uma série inferior. Outro ponto importante é que deter os direitos federativos de um clube, ou, se pensarmos dentro do contexto país, “ser dono de uma vaga na primeira divisão”, é também muito rentável num mercado tão ativo e favorável à realocação de equipes como o mexicano. E mesmo com todas essas características já citadas, é importante ressaltar que a pirâmide do futebol de clubes no México é controlada de forma indireta pelas equipes que compõe a elite nacional. Depois de décadas sendo organizado pela Federação Mexicana de Futebol (Femexfut), que tentou em vão acabar com a prática da multi-club ownership, os clubes se uniram e formaram a Liga MX para a temporada 2012/2013. A Liga MX é o resultado de décadas de protecionismo aos investimentos dos

proprietários de clubes, e, a cada ano, se assemelha mais às grandes ligas fechadas norte-americanas, como a Major League Soccer (MLS), tanto pela constante troca das sedes e mudanças de nomes dos clubes, como pelas dificuldades impostas aos clubes de baixo de ascender até a primeira divisão (ESPN, 2019). Há, inclusive, um caderno de incumbências, no qual as exigências vão desde um estádio de 20.000 pessoas para clubes que passam temporadas disputando uma competição que atrai em média 5.000 espectadores por campeonato. 6 Equipes de base do Sub-13 até o Sub-20 também são obrigatórias e um campo exclusivo apenas para os treinamentos do time. Além de uma auditoria paga pelo próprio clube postulante, que funciona mais como uma taxa de admissão no topo da pirâmide mexicana, uma vez que obter o resultado apenas no campo não basta. Assim a Liga MX se reinventa a cada temporada. Ao cancelar rebaixamentos, criar itens para seu caderno de obrigações e minar com qualquer tentativa mais orgânica de se criar um clube no México, a liga contribui para travar todo um possível ecossistema de clubes menores e independentes no país. Panorama Atual Os tempos estão mudando. O modelo de multi-club ownership se revela como um movimento importante dentro do que muitos acreditam ser o futuro do futebol (MACINNES, 2017). Clubes em rede, posicionados em lugares estratégicos no mapa-múndi, serão o futuro das marcas globais de futebol (RONAY, 2019). Por isso é importante entender que, uma vez aberta a caixa de Pandora dos clubes-empresa, o futebol se afasta de sua origem popular e passa a incorporar de forma permanente o aspecto

corporativo presente em uma típica indústria globalizada (GIULIANOTTI &s ROBERTSON, 2009). O modelo de gestão da família Pozzo talvez seja a forma de mostrar que o futuro do futebol não contemplará os interesses de um clube que tenha ambições apenas locais, e sim priorizar os clubes situados em ligas mais atrativas. A organização em rede dos clubes do City Football Group pode ser o embrião para uma nova liga global. E o cenário visto no México poderá desidratar todo o ecossistema do futebol do país e acabar com seu caráter popular e espontâneo. Essas são apenas suposições, mas, de concreto, podemos ver que os exemplos citados até aqui só contribuem para colocar o modelo de multi-club ownership como o capítulo seguinte dentro do rol de discussões sobre a transformação dos clubes de associações civis em clube-empresa e as lacunas que ainda precisam ser preenchidas para evitar que o modelo afaste ainda mais o futebol de suas origens e suas comunidades.

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Notas

[1] O autor optou por usar o termo em inglês ao longo do texto, já que não existe consenso dentro da tradução do mesmo para o português. [2] Edição do Estatuto da FIFA de Junho de 2019, versão mais atual até o momento da publicação deste capítulo. [3] Texto original: “As the Pozzos were not particularly wealthy, and could not compete financially with most clubs in Serie A, he realized they needed to do things a bit differently. His idea was to set up a massive worldwide scouting network, to find young talented footballers before others beat them to it”. (REID, 2017a). [4] A Major League Soccer Players Association (MLSPA) é o sindicato de jogadores profissionais da liga de futebol dos Estados Unidos. Todos os anos a associação divulga os valores recebidos por todos os jogadores inscritos. [5] Texto original: “This loophole is relatively new, and City hasn't been able to exploit it frequently. In time, however, their sister clubs will develop more players City can sign on free transfers and then transfer to other clubs to keep their books clean (Bernucca, 2018, para. 13).” [6] Média arredondada dos 5 últimos, segundo dados do site Transfermarkt.

Sobre os Autores

Irlan Simões Pesquisador CAPES nível Doutorado vinculado ao Laboratório de Estudos de Mìdia e Esporte (Leme/UERJ) do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Jornalista (UFS) e mestre em Comunicação (PPGCom/UERJ). Criador do projeto “Na Bancada”. Também é autor de “Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno” Torcedor, sócio e ex-conselheiro do Esporte Clube Vitória.

Carles Viñas Doutor em história contemporânea pela Universidad de Barcelona (UB) e membro do Grup de Recerca en Estats, Nacions i Sobiranismes da Universidad Pompeu Fabra de Barcelona (GRENS-UPF). Ao longo dos anos as suas pesquisas, prática docente e trabalhos foram voltadas para o comportamento de jovens, com ênfase especial nos skinheads e nos grupos radicais no futebol. Publicou diversos artigos e livros, entre eles: Música i skinheads a Catalunya: el so de la política (2001), Skinheads a Catalunya (2004), El mundo ultra - Los radicales del fútbol español (2005), Tolerància zero: la violència en el futbol (2006), St. Pauli: otro fútbol es Posible (2014), e o mais recente, Futbol al país dels soviets (2019)

Carlos Rodrigues Professor assistente no DCSPT, Universidade de Aveiro, Portugal. é professor auxiliar do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro (UA) e membro integrado da unidade de investigação GOVCOPP. Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Inovação e Políticas de Desenvolvimento e Licenciado em Planeamento Regional e Urbano. Os sistemas territoriais de inovação, as políticas de ciência, tecnologia e inovação e as políticas de desenvolvimento regional/local são as suas principais áreas de interesse em termos de investigação. Mais recentemente, a este núcleo de interesses, juntou-se o esporte (o futebol em particular) e as suas implicações no desenvolvimento dos territórios, vertente que tem vindo a ser promovida no âmbito dos estudos chineses da UA, área de que é coordenador. No momento, integra as equipes de investigação de cinco projetos financiados pela FCT e de

um projeto Erasmus + (1) e é coordenador na UA dos seguintes projetos: RUNINthe role of universities in regional development and innovation (Horizon 2020), LIRALigados pela Ria (Governo de Portugal) e ATENA- Saber para Intervir (Fundação Belmiro de Azevedo, EDULOG). Ensina nas áreas de sistemas de inovação territorial, políticas de ciência e tecnologia, teoria do planejamento e estudos asiáticos (ciência, tecnologia e inovação). É o chefe do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território e coordenador do Centro de Estudos Asiáticos e do Mestrado em Estudos Chineses, da Universidade de Aveiro. [email protected]

Daniel Ferreira Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná, com período de doutorado sanduíche na Universitat Autònoma de Barcelona (2015-2019). Membro do NEFES (Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade - UFPR), e escreve periodicamente para o portal Ludopédio. É Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (2011- 2013), e possui Graduação em História, pela mesma instituição (2000-2005). Estuda o tema da Globalização, das Identidades Sociais, a Sociologia das Torcidas de Futebol e a Sociologia Organizacional dos Clubes. Tem estudos sobre a Globalização do Futebol na Espanha, na Catalunha e no Brasil, e suas implicações políticas.

Edgar Macedo Licenciou-se em Ciências da Comunicação - Jornalismo, na Universidade Independente. Como jornalista, colaborou no diário “Notícias da Manhã”, no semanário “Sol” e na revista “Euro Atlantic”. Na imprensa digital, foi colaborador no portal iGov e co-fundador do site ressalto.com, dedicado ao basquetebol. Desde 1990 é sócio do CF “Os Belenenses”, com o número 2247, onde sempre pugnou pelo associativismo activo e militante. Foi nessa condição que colaborou com a secção de basquetebol entre 2015 e 2017

Emanuel Leite Junior Doutorando em Políticas Públicas no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território (DCSPT), Universidade de Aveiro, Portugal. É investigador integrado na Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas (GOVCOPP), na Universidade de Aveiro. Bacharel em Direito e Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo. Autor dos livros “As cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização” e “A história do futebol na União Soviética”. Em co-autoria com Carlos Rodrigues, tem artigos publicados sobre o plano de desenvolvimento do futebol chinês em revistas como “Sports, Business and Management: an international jornal” (Emerald Insight, Reino Unido), “Revista Turismo & Desenvolvimento” (Portugal), “Revista HOLOS” (IFRN, Brasil), FuLiA UFMG

g (Brasil) e Mosaico (FGV, Brasil), além de capítulo no livro “The Belt and Road Initiative - International Perspectives on an Old Archetype of a New Development Model”.

Fernando Borges Atento à relação entre a Comunicação e o Esporte, seu trabalho se aprofundou nos elementos econômicos e simbólicos do espetáculo esportivo, nomeadamente através da criação de canais de mídia do próprio clube de futebol. Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade PanthéonAssas (Paris II), Mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra e graduado em Jornalismo pela UFRJ. Atualmente é pesquisador contratado da Universidade de Coimbra, no Instituto Jurídico, e professor na Universidade Lusófona.

João Ricardo Pisani Especialista em desenvolvimento de produtos com sólida experiência em empresas de bens de consumo, publicidade e TV. Fascinado pela tarefa de analisar riscos e modelar cenários, é Mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Georgetown nos EUA, possui um MBA pela FGV e é Bacharel em Relações Internacionais pela FAAP. Atualmente dedica-se à gestão esportiva e a estudar o recente fenômeno das Multi-Club Ownership no futebol. https://www.pisani.in/ @jrpisani

Lucía María Ravecca Licencianda em Ciências da Comunicação na Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de Buenos Aires. Membro do Seminario Permanente de Estudios Sociales del Deporte. Membro do Grupo de Estudos “Historia, política y opinión pública - Lettieri-Paoloni” da Universidad de Bue

Marco Sirangelo Mestre em Gestão Esportiva pela Universidade de Loughborough (Inglaterra) e Bacharel em Administração de Empresas pela FGV, foi Analista de Marketing do Palmeiras entre 2009 e 2010 e desde então sempre trabalhou com esporte. Assina a coluna Público e Renda no Ludopédio

@MarcoSirangelo

Moisés Sampedro Contreras Licenciado en Derecho por la Universidad Europea de Madrid, Postgrado de Especialización en la Práctica de la Abogacía por la Escuela Oficial Superior de Práctica Jurídica Forense del Ilustre Colegio de Abogados de Sevilla. Es Presidente de la Asociación de Accionistas Unidos del Sevilla Fútbol Club S.A.D. desde 2019 y fue miembro fundador de la Asociación Voz del Sevillismo en 2013, trabajando desde entonces en la defensa de los intereses de los accionistas minoritarios del Sevilla FC. Actualmente es Abogado en el despacho GKVC Abogados, con sede en Sevilla.

Rodrigo Daskal Licenciado en sociología por la Universidad de Buenos Aires y doctor en sociología por el Instituto de Altos Estudios Sociales (IDAES) e investigador del CED (Centro de Estudios del Deporte), ambos de la Universidad Nacional de San Martín. Docente de grado en la Universidad Nacional de La Plata, de grado y posgrado la Universidad Nacional de Avellaneda y en el instituto de periodismo DeporTea. En 2013 publicó el libro Los clubes en la Ciudad de Buenos Aires. Revista La Cancha: sociabilidad, política y Estado, Ediciones Biblioteca Nacional/Editorial Teseo, y en 2017 Clubes argentinos. Debates sobre un modelo, UNSAM edita (en coautoría con Verónica Moreira). Tiene a cargo el área de Museo, Trofeos e Historia del Club Atlético River Plate y es secretario general de Historia AFA.

Rui Vasco Silva Licenciado em Psicologia do Trabalho e das Organizações pela ULHT Lisboa. Sócio do CF “Os Belenenses” desde o início dos anos 80 já colaborou com o clube em várias dimensões da sua atividade: foi responsável pelo site oficial, integrou a equipa do Jornal do Belenenses, foi dirigente da secção de Rugby e é atualmente dirigente da secção de basquetebol. Integrou as equipas de alguns blogues dedicados ao Belenenses e participa no podcast “O Livre do Juanico”.

Verónica Moreira Doutora em Ciências Sociais (Universidad de Buenos Aires), Mestre em Antropología Social (IDES/IDAES-UNSAM), Licenciada em Ciências Antropológicas

(FFyL/UBA). Pesquisadora Adjunta do CONICET. Docente de Ciências da Comunicação (FSOC/UBA). Coautora dos livros “Deporte y Ciencias Sociales: claves para pensar las sociedades contemporáneas” (EPC, 2012), da compilação “Deporte, cultura y sociedad: estudios socio-antropológicos en Argentina” (Teseo, 2016) e “Clubes deportivos: debates sobre un modelo” (UNSAM Edita, 2017), com Rodrigo Daskal. Seus temas de pesquisa são os processos políticos nos clubes de futebol; futebol; violência no futebol; corpo e gênero no boxe.

Victor de Leonardo Figols Doutorando em História na Universidade Federal do Paraná (UFPR) na Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades. Estudas as identidades regionais dos clubes de futebol da Espanha e a globalização do futebol entre 1970 a 2000. Tem pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). É membro Grupo de Estudos sobre Futebol dos Estudantes da Unifesp - EFLCH (GEFE), e editor do site Ludopédio (www.ludopedio.com.br)

Sebastián Campos Muñoz Jornalista e licenciado em Comunicação Social pela Universidad de Chile. Colunista do site MePongoDePie.com e redator do Goal.com (2008-2009). Jornalista de Cruzados (2013) e encarregado de Comunicações da Fundação Posible Otro Chile (2018-2019). Co-autor da pesquisa “Sociedades Anónimas Deportivas: El Ocaso del Fútbol Social”, que indagou o processo de quebra das corporações sem fins lucrativos no Chile e sua transformação a SADP. http://milocl.wordpress.com @milo_cl

Asociación de Hinchas Azules (Club Universidad de Chile) O movimento foi representado na produção do artigo por Gabriel Ruete, antropólogo, delegado da barra; Daniela Tapia, ecologista, vice-presidente; Sebastián Díaz, estudante de história, secretário; Santiago Rosselot, economista, tesoureiro; Daniel Albornoz, físico, presidente