Cinema, globalização e interculturalidade
 9788578970048

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Cinema, globalização e interculturalidade

Cinema, globalização e interculturalidade Andréa França Denilson Lopes (Orgs.)

A^GoJE d i t o r a da U n o c h a p e c ó

Chapecó, 2010

UNOCHAPECÓ UNIVERSIDADE COMUNITARIA DA REGlAO DE CHAPECÓ

Reitor: Odilon Luiz Poli Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Luiza de Souza Lajús Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski Vice-Reitor de Administração: Sady Mazzioni Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Ricardo Rezer

© 2010 Argos Editora da Unochapecó Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. 791.4309 C574

Cinema, globalização e interculturalidade / Andréa França, Denilson Lopes (Orgs.); - Chapecó, SC: Argos, 2010. 401 p. (Grandes Temas ; 6) Contém artigos traduzidos do inglês para o português. Inclui bibliografia. 1. Cinema - História e crítica. I. França, Andréa. II. Lopes, Denilson. III. Título. CDD 791.4309

ISBN: 978-85-7897-004-8

Catalogação Daniele Lopes CRB 14/989 Biblioteca Central Unochapecó

A^GojEditora da U n o c h a p e c ó

Conselho Editorial: Carla Rosane Paz Arruda Teo, César da Silva Camargo, Érico Gonçalves de Assis, Maria Assunta Busato, Maria dos Anjos Lopes Viella, Maria Luiza de Souza Lajús, Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer, Rosana Maria Badalotti, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski Coordenadora: Maria Assunta Busato

Sumário

Apresentação

9

MÓDULO I Cinema mundial, cinema intercultural

Baraka: o cinema mundial e a indústria cultural global Martin Roberts

17

O cinema intercultural na era da globalização

43

Identificando o conceito de cinema transnacional

67

Paisagens transculturais

91

Hudson Moura

Vicente Rodríguez Ortega Denilson Lopes

MÓDULO II Cinema, periferia e hibridismo Para além do Terceiro Cinema: estéticas do hibridismo

111

Situando o cinema com sotaque

137

Outras margens, outros centros: algumas notas

163

Robert Stam

Hamid Nafícy

sobre o cinema periférico contemporâneo

Angela Prysthon

MÓDULO III Enunciados de nacionalidade e imaginários transnacionais Cinema chinês no novo século: perspectivas e problemas

179

Canibais viajantes

193

Yingjin Zhang

Anelise Reich CorseuiJ e Renata R. Mautner Wasserinan

Imagens de itinerância no cinema brasileiro 219

Andréa França

MÓDULO IV Recepção e audiência Dialeto e modernidade no cinema 245 sinófono do século XXI

Sheldon Lu

O cinema na África: dos contos ancestrais 267 às mistificações cinematográficas

Mahomed Bamba

História, tragédia e farsa:

The Presidents last

bang nos circuitos dos festivais de cinema Leo Goldsmith

281

MÓDULO V Nas fronteiras da memoria, do desejo e do afeto A memoria das coisas 309

Laura U Marks

A dialética da identidade transnacional e o desejo 345 feminino em quatro filmes de Claire Denis

Rosanna Maule

o que vi quando te vi? Os diários de 371 viagem sul-americanos na França

Andrea M olfetta

Sobre os autores 397

A presentação

Esta coletânea não é apenas um somatório de artigos dedi­ cados ao tema que a intitula. Ela pretende ser um registro de pen­ samentos e questões sobre as imagens contemporâneas, sobretu­ do o cinema, permeadas pelas experiências de estrangeiridade, ambivalência, estranhamento, nomadismo, desenraizamento. A diversidade de abordagens sobre o tema é esclarecedora: há uma compreensão do desafio político e estético que é colocar em cena hoje aquilo que desaparece cotidianamente diante de to­ dos nós, isto é, a memória coletiva, a possibilidade de um mundo comum que possa incluir aqueles que dele estavam excluídos por diferentes razões. Se o cenário contemporâneo - globalizado, midiático, digi­ tal - tem tematizado de forma ampla e contundente questões de identidade individual, cultural, nacional, este livro quer pensar esse quadro

de dentro do cinema feito na década de 1990 em diante.

Em outros países, já existem diversas publicações dedicadas ao tema da interculturalidade, da dinâmica da globalização e do cinema. No Brasil, ainda há uma insuficiência de bibliografias nesse campo,

com poucas exceções, como o livro Crítica da imagem eurocêntrica, de Ella Shohat e Robert Stam (2002). Nesse sentido, uma das preo­ cupações que nortearam a coletânea foi justamente a de suprir essa lacuna. Trazer essa discussão para o âmbito do cinema significou colocar em relevo as seguintes interrogações: de que modo os pro­ cessos de globalização das economias, o progresso e a expansão das tecnologias da comunicação, a intensificação do fenômeno da hibridação cultural, o questionamento dos centros hegemônicos (Europa, EUA), o enfraquecimento das fronteiras nacionais têm afe­ tado os produtos e as obras audiovisuais? A transnacionalização do capital, da produção audiovisual e dos espectadores auxilia na ela­ boração de novas propostas estéticas ou tende a consolidar produ­ tos homogeneizados e desvitalizados? Como as novas cinemato­ grafias (Ásia, Europa do Leste etc.) têm afetado e redefinido o pen­ samento e a prática do cinema e do audiovisual contemporâneo? Tais perguntas auxiliam na compreensão e no que está em jogo na proposta deste livro, composto pela reflexão de professo­ res e pesquisadores de diferentes campos teóricos e nacionalida­ des, que buscam pensar as representações, os valores e os sentidos que as imagens - de nomadismo, fronteira, hibridismo, diáspora trazem consigo e, ainda, a noção ampla, polêmica e instigante de cultura - tomada aqui não como essência fundadora e definitiva de um povo, mas como um composto híbrido e múltiplo de vozes, histórias e narrativas. Mais do que nunca, o cinema contem­ porâneo tem uma contribuição a dar a essa discussão quando cria narrativas dissonantes da TV globalizada e imagens que instauram tensões e imprevisibilidade, pois no centro dessas representações existem as relações intersubjetivas - ator/personagem/espectador

relações que só podem ser experimentadas e analisadas a partir de outros cânones não industriais-mercantis. Os artigos presentes neste livro, alguns já publicados fora do Brasil, mas inéditos por aqui, foram agrupados em cinco módulos distintos: Módulo I: Cinema mundial, cinema intercultural Ao abordar a emergência do imaginário global através do ci­ nema e sua relação com as dimensões culturais da globalização eco­ nômica, este módulo traz contribuições conceituais e metodológicas aos temas correlatos à inter e à transculturalidade no cinema. Além disso, reavalia conceitualmente as inúmeras e diferentes abordagens sobre o papel dessas imagens na produção de identidades e imagi­ nários culturais transnacionais. Interessa, nessa primeira parte, focar e discutir os momentos em que as diferenças culturais - explora­ das nos filmes mais diversos, como Felizes Juntos (Wong Kar Wai),

Encontros e desencontros (Sofia Coppola), Paradise Now (Hany Abu-Assad) - estão a serviço de uma política transnacional mais ampla e não simplesmente no espaço engajado e militante do terceiro-mundismo. Contamos com a colaboração de Martin Roberts

{New School for Social Research), com “Baraka: o cinema mundial e a indústria cultural global”; de Hudson Moura (PUC-SP), com uO cinema intercultural na era da globalização”; de Vicente Rodriguez Ortega (NYU), com “Identificando o conceito de cine­ ma transnacional”; e de Denilson Lopes (UFRJ), com “Paisagens transculturais”.

Módulo II: Cinema, periferia e hibridismo A partir de abordagens teóricas e conceituais distintas, dis­ cute-se a emergência de cinemas “menores” ao longo da década de 1990, evidenciando, porém, que, sob essa e outras nomenclaturas, não há nenhuma unidade estética, temática ou política. Há o pres­ suposto de que, para usufruir de fato das imagens do cinema con­ temporâneo, faz-se necessário relacionar os aspectos históricos e sociais que consolidaram a ideia de Terceiro Mundo e os fenôme­ nos culturais que fizeram parte desse contexto. Discutem-se filmes

Central do Brasil (Walter Salles), Amores Brutos (Alejandro González Iñarritú), Cronicamente inviável (Sergio Bianchi), entre outros. Contamos com os artigos de Robert Stam ( N ew York University)>“Para além do Terceiro Cinema: estéticas do hibridismo”; de Hamid Naficy (Northwestern University), “Situando o cinema como

com sotaque”; e de Angela Prysthon (UFPE), “Outras margens, outros centros: algumas notas sobre o cinema periférico contem­ porâneo”. Módulo III: Enunciados de nacionalidade e imaginários transnacionais Discute-se, neste módulo, a invenção dos enunciados de nacionalidade no cinema, suas continuidades, seus deslocamen­ tos e suas rupturas históricas e culturais. Trata-se de analisar, atra­ vés de diferentes abordagens teóricas, que formas de imaginário identitário e nacional estão em jogo na produção das imagens contemporâneas, tanto na China quanto no Brasil. Em comum, na leitura crítica e na experiência dos filmes, há o pensamento da nação como uma dimensão não totalizável, o propósito de

desleitura do passado na invenção do novo, a afirmação de um essencial inacabamento presente em tais enunciados que nos inter­ pela. Contamos com Yingjin Zhang

(University o f California -

San

Diego), “Cinema chinés no novo século: perspectivas e problemas”; Anelise Reich Corseuil (UFSC) e Renata R. Mautner Wasserman

(Wayne State University ), “Canibais viajantes”; e Andréa França

(PUC-Rio), “Imagens de itinerância no cinema brasileiro”. Módulo IV: Recepção e audiência Neste módulo, os autores exploram as relações profícuas, ainda pouco estudadas dentro das universidades brasileiras, entre a projeção do filme e suas formas de recepção, isto é, a projeção cinematográfica de imaginário nacional e os modos de circulação social dessas imagens, seja em função dos festivais de cinema inter­ nacionais, das formas de coprodução transnacionais ou dos diver­ sos dialetos que porventura integram e fazem parte do mesmo país. Trata-se de pensar de que modo a projeção do filme se duplica, cir­ culando entre a tela da sala e a tela mental do espectador. Duplo sentido da palavra “tela”, em que o movimento do filme em direção ao outro, à audiência, colabora de forma errática, porém decisiva, na construção de imaginários de pertencimento. Contamos com os artigos de Sheldon Lu

{University o f California -

Davis), “ Dialeto

e modernidade no cinema sinófono do século XXI”; Mahomed Bamba (UFBA), “O cinema na África: dos contos ancestrais às mis­

{New York University), The Presidents last bang nos circuitos

tificações cinematográficas”; e Leo Goldsmith “Historia, tragédia e farsa: dos festivais de cinema”.

Módulo V: Nas fronteiras da memória, do desejo e do afeto A proposta dos três artigos deste módulo é explorar e com­ preender o lugar da memória e dos afetos nas imagens do cinema transcultural. Entende-se que a questão da memória é definida num jogo constante de posicionamentos no espaço e no tempo, de des­ locamentos e de contato/ação entre sujeitos, sendo esse universo de reposicionamentos contínuos o próprio terreno da experiência. Algumas imagens do cinema transcultural trazem consigo, tornam visível e constroem efetivamente memórias perdidas, afetivas, subterrâneas, históricas. Essas imagens dizem respeito à subjetivida­ de daqueles que nelas estão envolvidos e, nesse sentido, abrem uma janela sobre o interior complexo dos seres (personagens e especta­

(Simon Fraser University), “A memória das coisas”; Rosanna Maule (Concordia University), “A dores). Contamos com Laura U. Marks

dialética da identidade transnacional e o desejo feminino em qua­ tro filmes de Claire Denis”; Andrea Molfetta (UBA), “O que vi quan­ do te vi? Os diários de viagem sul-americanos na França”.

MODULO I Cinema mundial, cinema intercultural

Baraka: o cinema mundial e a indústria cultural global*1 M artin Roberts

Encolhendo o planeta Após três mil anos da crescente valorização da especialização e alienação nas extensões tecnológicas dos nossos corpos, nosso mundo comprimiu-se de forma dramática. Eletricamente reduzido, o globo não é mais que uma aldeia. Marshall McLuhan2 Desde o m om en to em que M arshall M cLuhan proclam ou que as com unicações tecnológicas tinham “ reduzido” o m u n do eletricam ente à d im en são de u m a aldeia global, parece que o planeta Terra tem encolhido: a TV via satélite, os program as de milhagem das com panhias aéreas e, é claro, a internet estão “ tran s­

*

Tradução de Raquel Maysa Keller, f N.T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação). 1. Este texto é uma versão traduzida e reduzida do artigo “ Baraka: World Cinema and the Global Culture Industry”. Cinem a Journal, v. 37, n. 3, p. 62-82, primavera 1998. 2. McLuhan, M arshall. U nderstanding M edia. New York: McGraw Hill, 1964.

formando o mundo num lugar menor”. Trinta anos depois do li­ vro

Meios de comunicação como extensões do homem , a aldeia

global se tornou um lugar-comum, e McLuhan foi canonizado, pela revista

Wired\ como um profeta visionário de um mundo no

qual a distância já não importa mais. Os comerciais de TV mos­ tram famílias conversando ao celular com parentes do outro lado do planeta, ou membros de uma tribo africana, felizes, usando

notebooks.

Este texto considera os impactos dessas evoluções no âmbi­ to cinematográfico. Por um lado, a história do cinema se confun­ de, desde o início, com processos globais do colonialismo até suas consequências pós-coloniais. Atualmente, o cinema se tornou uma forma de cultura global, porém diferente em suas manifestações locais. Ao mesmo tempo, o discurso de McLuhan da aldeia global tanto reflete quanto empresta um ímpeto adicional ao apareci­ mento de uma ideia imaginária do “mundo”, e este imaginário global, como veremos adiante, tem assumido grande importância no cinema contemporâneo. O cinema atual tem um papel signifi­ cativo na articulação e na perpetuação do que poderia ser chama­ do de mitologias globais: discursos ideológicos sobre o mundo e a sua relação com a humanidade. Ultimamente a crescente atenção em relação ao que ora é chamado de “cinema mundial” ora de “cinema global” parece curi­ osa, já que a produção cinematográfica, a distribuição e o consu­ mo têm sido um assunto global. Há inúmeros estudos sobre a indústria do cinema não ocidental, e o “Cinema Mundial” é abor­ dado atualmente como a “Literatura Mundial” foi estudada, na língua inglesa, em departamentos, antes do advento dos estudos

pós-coloniais/ Ainda que as indústrias cinematográficas, em mui­ tas partes do mundo, permaneçam com intenso caráter nacional, a atividade comercial de produção e de consumo cinematográficos é, também, de natureza transnacional, como bem sabe todo o afri­ cano que cresceu vendo filmes de faroeste, musicais indianos, filmes de arte marcial. Os estudos feitos até agora, como artigos sobre a colonização mundial das telas de cinema por Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger, deixam claro que o comércio transnacional de norte a sul, do oriente ao ocidente é uma questão extremamente unilateral, mas tal ponto de vista (se é que algum dia foi verdadeiro) está se tornando ultrapassado, já que se mostra cada vez mais evidente que o comércio cultural é agora bilateral. Em muitos casos, na verdade, decidir realmente de “onde” um fil­ me é e para “quem” ele é direcionado está ficando cada vez mais com plicado: um film e de um diretor do Senegal p ode ser coproduzido com dinheiro alemão e suíço, editado em Zurique e, mais provavelmente, ser exibido para grandes públicos em Nova Iorque e não em Dakar.4O cinema transnacional, os filmes de co­ munidades diaspóricas que vivem em cidades cosmopolitas do Primeiro Mundo, se tornou um gênero em proliferação, que com­ pete com cinemas nacionais mais antigos.5

3. Ver, por exemplo: Armes, Roy. Third World Film Ahiking und the West. Berkeley: University of California Press, 1987. 4. Aqui estou pensando no filme Hyènes(1992) de Djibril-Diop Mambety. 5. Ver, por exemplo: Naficy, Hamid. Phobic Spaces and Liminal Panics: Independent Transnational Film Genre. In: Wilson, Rob; Dissanayake, Wimal (Eds.). Global/ Local: cultural production and the transnational imaginary. Durham, NC: Duke University Press, 1996. p. 119-144. IQ

Enquanto m uita atenção foi dedicada ultim am ente ao surgimento de cinemas transnacionais e de diaspora, deu-se me­ nos atenção ao impacto da globalização sobre o filme europeu e estadunidense. Tenho em mente aqui o número crescente de filmes desde 1960 que são, de formas diferentes, sobre algo chamado o

M ondo Cane, de Gualtiero Jacopetti e Franco Prosperi (1963); Sans Soleii\ de Chris Marker (1982); Powaqaatsiy de Godfrey Reggio (1988); A té o Fim do M undo , de Wim Wenders (1991); Uma N oite sobre a Terra, de Jim Jarmusch (1991); Planeta Azul, da IMAX (1991). Ao mesmo “próprio mundo”. Entre eles se destacam

tempo em que os filmes em questão pertencem a cinemas nacio­ nais diferentes, a gêneros de filmes diferentes e dirigem-se a pú­ blicos diferentes, eles compartilham um a preocupação temática com a globalização, com as novas formações culturais da ordem mundial pós-colonial, e se esforçam para enquadrá-las em um a visão totalizante do “mundo”. Concentro-me aqui em filmes des­ se tipo. O filme específico que discutirei detalhadamente é

Baraka

(EUA, 1992), filme de longa duração, documentário sem palavras dirigido e film ad o p o r R on Fricke e p ro d u z id o p o r M ark M agidson.6 Explicitamente inspirado pelos trabalhos do mitólogo Joseph Campbell e filmado em 24 países, o filme apresenta um retrato global do mundo e seus povos.

Baraka é o último filme de

6. “ Uma palavra sufista antiga com form as em m uitas línguas”, o anúncio promocional do filme explica, o termo baraka “pode ser simplesmente traduzido como uma bênção, ou como a respiração, ou essência da vida a partir da qual o processo de evolução é revelado.”

uma série de projetos relacionados com os quais Fricke esteve envolvido desde o início da década de 1980, incluindo os filmes

Koyaanisqatsi (1983) e Powaqaafc/ (1988) de Godfrey Reggio, dos quais ele foi o produtor e, mais recentemente, Chronos (1985), filmado em oito países, que ele dirigiu e que foi, de alguma forma, um protótipo para

Baraka.

Embora tenha sido distribuído em mais de 20 países e tenha recebido muitas resenhas na mídia popular,

Baraka foi virtual­

mente ignorado pelos estudiosos acadêmicos de cinema.7 Pode­ ríamos atribuir isso à novidade de seu lançamento, ao número absoluto de filmes competindo pela atenção do estudioso hoje ou a sua relativa marginalidade comparada a filmes mais rentá­ veis (um critério em si mesmo questionável). Uma das razões pelas quais o filme parece ter escorregado pelas fendas dos estu­ dos de cinema pode ser a dificuldade para localizá-lo dentro das categorias usuais de gênero existentes na análise fílmica. Os pro­ blemas começam simplesmente ao tentar definir exatamente que tipo de filme

Baraka é. Ainda que orgulhosamente pertença a uma

categoria geral de documentário ou filme não narrativo, dife­ rentemente da maioria dos documentários, ele foi distribuído com ercialm ente, e seu tem po de film agem (96 m in.) mal corresponde à duração padrão do drama. Uma vez aceito como documentário, pergunta-se: que tipo de documentário? Bill Nichols distingue entre dois tipos de documentário: o historiográfico e o

7. O único artigo acadêmico que encontrei sobre Baraka até hoje foi a resenha de: Staples, Amy. Mondo Meditations. American Anthropologist, n. 96, p. 662-668,1994.

etnográfico.8O primeiro é exemplificado pelo documentário po­ lítico (incluindo filmes de propaganda), desde o trabalho de Dziga Vertov até o Terceiro Cinem a, e concebe o filme com o um catalisador para a m udança social/política. O docum entário etnográfico tem historicamente se preocupado com a docum en­ tação das cham adas sociedades ern risco de desaparecim ento ameaçadas pela modernidade global. Enquanto

Baraka apresen­

ta semelhanças com essas categorias, sugiro aqui que não per­ tence a nenhuma e é, de muitas maneiras, oposto a cada uma delas. A fascinação de

Baraka com

as características geográficas

espetaculares da paisagem natural (quedas d ’água, vulcões, des­ filadeiros profundos, arcos naturais etc.) se alinha a um gênero de documentário que Nichols não considera, o docum entário sobre a natureza, que tem sido básico na televisão estadunidense desde os filmes do Maravilhoso M undo de Disney, da década de 1950, até o

D iscovery Channel. Além

das telas de televisão, os

docum entários sobre a natureza têm sido m uito distribuídos através dos cinemas IMAX e Omnimax. Ainda, em bora o tema faça com que

Baraka tenha algo em com um com tais filmes -

ele

foi distribuído em cópias de 70 mm. - , não foi distribuído para os cinemas IMAX. Pode-se até sugerir que

Baraka ultrapasse

as

fronteiras do próprio cinema, tendo, de algum a form a, mais em comum com outras mídias, como música, pintura de paisagens ou fotografia.

8. Ver: Nichols, Bill. At the Limits of Reality (TV). In: Blurred Boundaries’, questions of Meaning in Contemporary Culture. Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 43-63.

Sugiro aqui que, para compreender a significância cultural de um filme como

Baraka>precisamos ir além dos gêneros cine­

matográficos, e, até mesmo, além do próprio cinema. Isso en­ volve tratá-lo menos como um documentário, e mais como uma modalidade - cinematográfica, neste caso - de um discurso que se estende além de um espectro mais amplo de mídia e reflete processos históricos e globais culturais maiores. Embora

Baraka

seja um caso especial, ele é sintomático de processos que aconte­ cem na produção cultural hoje e, por essa razão, pode servir como um modelo útil para repensar velhos paradigmas e para elaborar direções futuras para os estudos de mídia.

Notas de campo da aldeia global Embora nos apresente, conforme seus materiais prom o­ cionais, “Um mundo sem palavras”, i t e r a i certamente é um mun­ do

com

música: o filme inteiro é acompanhado por uma trilha

sonora contínua e não inclui som sincronizado.9A própria trilha sonora (disponível em CD) abrange gravações de campo feitas

World M usic e com sonorida­ anglo-australiana Dead Can Dance

durante a filmagem; gravações de des semelhantes, pela dupla

(Brendan Perry e Lisa Gerrard); e música eletrônica do compositor

9. Mesmo nas sequências de dança em que a música que acompanha a dança pode­ ria ter sido gravada ao mesmo tempo, a trilha sonora não ¿ “natural”; foi dublada depois. Agradeço a David Tamés por ter me mostrado isso.

N ew Age Michael

Stearns.10Logo após o lançamento de

Baraka>

seu produtor, Mark Magidson, lançou o documentário de um

concerto da dupla Dead Can Dance chamado

Toward The W ithin

(1993) - Em direção ao interior - , que inclui um videoclipe com

Baraka. Poderíamos, então, perguntar se Baraka é mais bem visto como um filme com uma trilha sonora de World M usic ou uma extensão de um vídeo de World Music. Se certas sequências de Baraka poderiam tranquilamente passar como vídeos de músi­ trechos de

ca na MTV, o contrário seria igualmente verdadeiro: um videoclipe

de Deep Forest>um projeto de dois produtores franceses que com ­ bina amostras de canções de “pigm eus” da África Central com batidas de dança urbana, parece admiravelmente uma versão de cinco minutos de

Baraka.

Essa intersecção entre

World M usic t

cinema não é exclusiva

Baraka. Nos últimos anos, um número crescente de filmes com trilhas sonoras de World M usic começaram a aparecer.11A meta­ morfose da World M usic nos filmes mundiais de certa forma sur­ de

preende. Um aspecto da integração horizontal das indústrias

10. Sobre World M usic, ver meu artigo ‘“World Music’ and the Global Cultural Economy”. In: D iaspora:A Journal o f Transnational Studies, 2.2> p. 229-242,1992. Tratando a WorldM usic não como uma categoria etnomusicológica, mas comer­ cial, como a música vendida na seção “ WorldM usic7das principais lojas de discos do Primeiro Mundo. O artigo busca identificar algumas das condições subjacentes à emergência da World M usic como um novo tipo de mercadoria no mercado global. 1 1 .0 filme sobre música cigana de Tony Gatlif, Latcho Drom (1993), poderia ser descrito como um filme de World Music, que tem afinidades com Baraka. Até o Fim do Mundo (1993), de Wim Wenders, exibe uma trilha sonora mundial gené­ rica, incluindo canções de “pigmeus” do tipo Deep Forest.

f

midiáticas da década de 1990 tem sido a relação cada vez mais simbiótica entre o cinema e a música popular, e o lugar central da

World M usic em Baraka pode ser visto como típico nesse sentido. A inter-relação entre a World M usic e o cinema no caso de Baraka > entretanto, levanta algumas questões interessantes. Se a emergência da

World M usic como

uma categoria de

m arketing maior dentro

da música popular pode ser atribuída aos processos globais, tais como, a descolonização, a imigração ou a globalização do capitalis­ mo, como esses processos têm afetado o cinema? O “cinema m un­ dial” hoje emerge como uma nova categoria de cinema comercial comparável à emergência da

World M usic7.

Na ordem mundial imperial, os encontros ocidentais com seus outros colonizados foram mediados por, e grandemente confinados a, administradores (sobretudo homens) coloniais, missionários, comerciantes, cientistas naturais, antropólogos e exploradores di­ versos. O que Mary Louise Pratt chama de “zona de contato” - o espaço transcultural da troca simbólica criada pelo encontro entre os poderes coloniais do Ocidente e as pessoas originárias de suas colônias - permaneceu muito restrito aos postos do próprio colonialismo.12Tudo isso - não deveria ser enfatizado - agora m u­ dou. No mundo pós-independência de corporações transnacionais, mercados globais de trabalho, viagens aéreas de longa distância e televisão global, nas sociedades antes separadas pelas vastas dis­ tâncias espaciais, encontram-se e convivem, de forma rotineira,

12. Pratt, Mary Louise. Os olhos Jo Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

migrantes econômicos, refugiados, exilados, diplomatas, executi­ vos, turistas. A zona de contato, antes o privilégio de relativamente poucos, passou por um processo de democratização e é hoje uma condição cultural global. Uma consequência dessas mudanças dentro do ex-colonial, mas ainda capitalista, Primeiro Mundo tem sido a etnografização do con­ sumo de massa. Enquanto, por algum tempo, a etnografia esteve engajada num reexame crítico de seus objetivos e metodologias e na sua

razão de ser>13seus objetos tradicionais de estudo têm

sido

cada vez mais absorvidos pelas indústrias culturais contemporâ­ neas: a escrita etn ográfica se torn a escrita de viagem ; a etnomusicologia,

World M usic; os artefatos etnográficos, bijuteri­

as ou mobílias étnicas; os museus etnográficos, lojas étnicas; um documentário etnográfico se torna

Baraka. Mesmo

a viagem de

campo etnográfica vem sendo cooptada pela indústria cultural

etnoturismo> no qual os turistas de Primeiro com notebooks e film adoras, encenam fanta­

global na forma de Mundo, arm ados

sias do Primeiro Contato com quem Dean MacCannell chama de ex-primitivos, em aldeias “tribais” cuidadosamente preservadas da Amazônia até a Indonésia.14 No século XVIII, de acordo com Mary Louise Pratt, a con­ junção histórica entre a expansão colonial europeia e os sistemas

13. Ver: Marcus, George E.; Fischer, Michael (Eds.). Anthropology'as Cultural Critique: an Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago Press, 1986. 14. Sobre os ex-primitivos, ver: MacCannell, Dean. Cannibalism Today. In: Empty Meeting Grounds: The Tourist Papers. New York: Routledge, 1992. p. 17-73. Para urn relato prazeroso do etnoturismo, ver: O’Rourke, P. J. Up the Amazon. Rolling Stone, p. 60-72,25 nov. 1993.

de classificação iluministas, com a possibilidade dos sistemas de im­ por um modelo unificador e padrão de significado sobre o mun­ do, levou à emergência do que ela chama de uma “consciência planetária” europeia15. No mundo da zona de contato global do final do século XX, essa mitologia eurocêntrica do mundo, fiel­ mente passada adiante pela

National Geographie, pela The Family

o f Man e pelos documentários de David Attenborough, tornou-se onipresente na cultura de massa contemporânea, desde os slogans de “We Are The World” até as United Colors o f Benetton. Como o mundo tornou-se a aldeia global, parece que a cultura de massa euro-americana procurou não somente capturar, mas também comercializar a aldeia global. Os publicitários foram rápidos em reco­ nhecer que não somente os mercados globais, mas o próprio con­ ceito do global pode ser uma ferramenta de

marketing poderosa.

No campo do cinema, os processos que descrevi talvez se­ jam mais evidentes na dissolução da dominação dos filmes do Primeiro Mundo por Hollywood e pelos cinemas europeus. Mais do que em qualquer outro período na história do cinema, os fil­ mes disponíveis nas cidades cosmopolitas como Nova Iorque, To­ ronto, Londres, Paris ou Sidney possuem uma variedade global, em vez de somente euro-americana. Os festivais de cinema da Amé­ rica do Sul, da África e da Ásia complementam o número crescente de filmes transnacionais e da diáspora. O documentário etnográfico, antes um subcampo especializado de antropologia acadêmica, atualmente atrai grande público para eventos como o Festival Anual

Margaret Mead em Nova Iorque. Para consumidores em cidades como essas, ir ao cinema e comer fora se tornaram mais ou menos ações intercambiáveis, escolhe-se um filme como se escolhe um restaurante. É uma questão de escolha a partir de um cardápio de opções étnicas.16Embora o público desses cinemas seja, sem dú­ vida, branco e de classe média em sua maioria, seria errôneo presumir que ele se abasteça (por assim dizer) exclusivamente de exotismo euro-americano. De fato, em cidades como aquelas que mencionei, seus públicos podem ser transnacionais como os pró­ prios filmes, e assisti-los pode ser uma maneira tanto de se reconectar com a própria cultura, quanto de satisfazer uma curio­ sidade turística sobre alguém. Outra consequência dos processos globais que descrevo tem sido a emergência do que pode ser chamado de imaginário global dentro do filme euro-americano.

Baraka é, de fato, somente um

filme de uma série de filmes que coletivamente atestam a emergên­ cia desse imaginário global no cinema euro-americano desde a dé­ cada de 1950. Três principais categorias podem ser distinguidas: o filme de exploração global, mais bem exemplificado pelo notório

M ondo Ckr?e( 1963); a vanguarda internacional (Wenders, Herzog,

16. Vale a pena observar nessa conexão quão frequentemente a comida é o foco central dos filmes não ocidentais ou, até mesmo, dos filmes anglo-americanos (A Festa de Babette, Tampop o, Dim Sum , Como Água para Chocolate; entre inúmeros outros): é possível assistir a O Banquete de Casamento, de Ang Lee, ou a Comer Beber Viver e comer fora em um restaurante chinês depois. Em tais casos, a diferença entre comer e assistir, consumir comida exótica e consumir filme exótico se torna virtualmente imperceptível; o consumo do exótico está presente no próprio filme.

Ottinger, Jarmusch, os irmãos Kaurismaki); e o globalism o de mesa de café de

Powaqaatsion Baraka. Cada uma dessas categorias

pode ser vista como definida por um modo particular de com ­ prometimento com o mundo que retratam: o carnavalesco (fil­

M ondo ), o cosmopolita (a vanguarda internacional) e o liberal-humanista (Baraka e filmes semelhantes). mes

Embora suas origens possam ser rastreadas até os filmes de aventura colonial da década de 1930,

M ondo Caneo, a série cada

vez mais abominável de filmes que inspirou estão entre os primei­ ros exemplos do surgimento de um imaginário global no cinema comercial euro-americano.17 O mundo que retratam é reconheci­ damente o voyeurismo de P. T. Barnum, anomalias, espetáculos de carnaval, um mundo exótico e grotesco de rituais “bizarros” e prá­ ticas culturais, sejam práticas de sociedades “civilizadas”, sejam de sociedades “primitivas.” De form a significativa, entretanto, dado que os filmes

M ondo

originais datam da década imediatamente

após a independência das antigas colônias europeias,

a

m undo

que retratam é tam bém um m undo em caos, no qual a frágil infraestrutura da “civilização” erguida pelos poderes europeus é varrida pela selvageria primitiva

(Africa Addio); sua visão do m un­

do, portanto, permanece reconhecidamente neocolonial. O cinema cosmopolita da vanguarda internacional consti­ tui um segundo modo do imaginário global cinematográfico. Nos filmes de Marker, Wenders, Herzog ou Jarmusch, toma a forma de

17. Sobre os filmes Mondo, ver: Staples, Amy. An interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, 97.1, 1995.

um a observação m undana, um tanto cansada, um a ordem m un­ dial cada vez m ais transnacional e da m udança cultural associada com essa ordem. Paris, Berlim, Nova Iorque, Rom a, Helsinki, São Paulo, Ulan Bator: autoconscientem ente nôm ades, essas cidades e seus protagonistas despreocupados são os descendentes pós-m odernos de

fíâneur de Baudelaire, cosm opolitas sem

raiz procuran­

do seus cam inhos ao redor do globo em busca do sem pre novo e diferente.18 O turism o, os p on tos turísticos e os p róprios turis­ tas são tipicam ente m otivos de desdém e sátira, em bora diretores e protagonistas não sejam m enos turistas que outras pessoas. O que talvez seja in teressan te so b re os film es desse tip o é seu cosm opolitism o evidente, com seu inerente desdém em relação ao paroquialism o do nacional. O apelo a tal ideologia torna-se m ais com preensível quando lem bram os que um a das form as mais prestigiadas de consum o burguês evidente, neste século, tem sido

18. Sobre flâneur, ver: Baudelaire, Charles. O Pintor da Vida M oderna. In: C uriosida­ des E stéticas: a arte rom ântica e outras obras críticas. Paris: Classiques Garnier, 1962; e Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo, trad. Harry Zohn. Londres: Verso, 1983. A literatura sobre o fíânerieé extensa; para um a introdução, ver: Tester, Keith (Ed.). The Flâneur. Nova Iorque: Routledge, 1994. O flâneur nunca foi (e não é) exclusivamente masculino, é claro; e ñánerie como um a atividade especificamente feminina no século XIX também foi bem do­ cumentada, ver: Wolff, Janet. The Invisible Flâneuse: Women and the Literature of Modernity. Theory, C ulture an d Society, edição especial sobre “ The Fate of Modernity’’, 2.3,1985; Bowlby, Rachel. Ju st Looking: Consumer Culture in Dreiser, Gissing, and Zola. London: Methuen, 1985; Wilson, Elizabeth. The Sphinx in the City. Urban Life, the Control o f Disorder, and Women. Berkeley: University of California Press, 1991. A última encarnação do flâneur é o flâneur eletrônico, vague­ ando pela rede global de computadores da World Wide Web como sua contraparte baudeleriana vagueou na cidade do século XIX; ver: Mitchell, William J. City o f Bits: Space, Place, and the Infobahn. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1995. p. 7.

a viagem . No cinem a de Wenders ou Jarm usch, Herzog ou Kaurismaki, o publico euro-americano de classe média pode ex­ perimentar o

glam our do cosmopolitismo sem sair de casa, mes­

mo que o orçamento o impeça de viajar pelo mundo tão facil­ mente quanto os diretores e protagonistas parecem fazer.

Baraka tem uma história mais longa tanto em relação aos filmes M ondo quan­ O que chamei de globalismo de mesa de café de

to ao cinema cosmopolita da vanguarda, estendendo-se desde a fun­

dação da National Geographie Society em 1888, passando pela m os­ tra fotográfica e pelo livro da década de 1950,

The Family o f Man,

de Edward Steichen, e chegando nas mitologias globais contem ­ porâneas do

Discovery Channel}9Ideologicamente,

o globalismo

assume a forma de um humanism o liberal, cuja metáfora quase obsessiva é aquela da

família. Apesar de

diferenças culturais, ele

afirma, a raça hum ana é, no fim das contas, parte da m esm a fam í­ lia global, compartilhando um conjunto com um de experiências de vida: nascimento, morte, sexualidade, filhos, comida, amor, cren­ ça no sobrenatural, guerra. Essa ideologia, cultuada por muito tem­ po, neste século, nas mesas de café (e, desde a década de 1950, nas telas de TV) das famílias estadunidenses de classe média, de m o­ derada intelectualidade, permanece onipresente hoje, desde livros de fotos recentes à mitologia

N ew Age de Joseph Campbell.

19. Para uma visão histórica geral do N ational Geographic, ver: Bryan, C. D. B. The National Geographic Society. 100 Years of Adventure and Discovery. New York: H. N. Abrams, 1987. Para uma história crítica, ver: Lutz, Catherine; Collins, Jane. Reading N ational Geographie. Chicago: Chicago University Press, 1993. Ver tam­ bém: Steichen, Edward. The Family o f Man. New York: Simon and Schuster, 1955.

A visão panorâmica de Baraka sobre o natural global e a diver­ sidade cultural, sua mensagem de Mundo-Ünico, sua

esteticização de

paisagens e sociedades exóticas o situam exatamente dentro da tradi­ ção liberal-humanista da

National Geographie e da The Family o f

Man. Enquanto documenta a diversidade cultural global, o filme está,

ao mesmo tempo, preocupado com o molde da diversidade dentro de um humanismo demasiadamente amplo, afirmando um senti­ mento de comunidade que transcende a diferença cultural. Como a

National Geographic, o filme de Fricke não tem medo de encarar as

realidades cruéis da ordem mundial do século XX, como mostra sua passagem por Dachau, pelos campos de matança do Camboja, pelos poços com queima de petróleo no Kuwait, pela Praça Tiananmen, pelas operárias nas fábricas de cigarro na Indonésia ou pelas prostitu­ tas de Patpong e, ao mesmo tempo, evita assumir posições políticas e críticas que poderiam causar impacto sobre seu sucesso comercial,

adotando o ponto de vista da “testemunha” universal. Como a National

Geographic, o filme parece mais preocupado com o impacto estético

ou emocional de seus sujeitos do que com as histórias geopolíticas ou desigualdades econômicas relacionadas a eles. O sentimento dominante em suas sequências de desabrigo, pobreza, prostituição ou trabalho alienado é de lamento: “Se pelo menos pudéssemos perceber que somos todos parte da mesma família!”, parece dizer o filme. Em seus artigos sobre

Baraka e filmes Mondo, Amy Staples

descreveu ambos como sendo “a antítese do filme etnográfico”, le­ vantando a questão da relação entre

Baraka e filmes como Mondo

Cane. Quanto ao tema e à estrutura formal, os filmes aparentemen­ te têm muito em comum: como Mondo Cane, Baraka constrói seu

retrato do m undo através de uma estrutura não linear de colagem com cortes desconcertantes, que passam abruptamente de uma cultura a outra e com uma descontextualização radical de seus sujeitos. M esm o assim , essas estratégias são em pregadas nos dois filmes com propósitos ideologicamente opostos (se igualmente unlversalizantes): se o ponto de vista de

M ondo Cane era essencial­

mente niilista, preocupado com a desconstrução da oposição civili­ zado/selvagem de hoje e em afirmar a barbaridade fundamental da

humanidade, a visão humanista de Baraka da espiritualidade global o

M ondo Cane. Se Baraka é um descendente tardio da exibição colonial e da National Geographic, o filme M ondo (“o filho feio e bastardo do documentário e do cinemi-

torna, de muitas formas, a antítese de

nha” ) é seu gêmeo demoníaco.20 As três categorias de cinema global que identifiquei deveriam ser vistas não como desenvolvimentos sequenciais, mas como ten­ dências paralelas dentro'da cultura de mídia euro-americana con­ temporânea. Longe de ser um regresso ao neocolonialism o da década de 1960, por exemplo, os filmes

M ondo têm passado

por

uma renovação nos últimos anos como parte da loucura atual pelo

kitsch exótico, de “ Filmes Incrivelmente Estranhos” até com pila­ ções da música lounge “ Exótica” das trilhas sonoras de filmes am ­ bientados na década de 1950. Com o o exotismo autoconsciente do recente livro de cabeceira “alternativo” Strange Ritual, de David

20. Charles Kilgore (também conhecido como D r. Mondo), citado em: Staples, Amy. An Interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, p. 111.

Byrne, deixa claro, os rótulos “bizarro”, “sobrenatural” e “estranho” de

M ondo hoje estão

bem vivos, ainda que de forma deslocada e

irónica.210 voyeurismo exótico das décadas de 1950 e 1960 reapare­ ce na década pós-moderna de 1990 como

camp global.

Nostalgia imperialista Em um artigo inspirado pelos recentes filmes euro-am eri­ canos que lidam com o período colonial

to India), Renato

( O ut o f Africa, A Passage

Rosaldo sugere que tais filmes exemplificam o

que ele chama de nostalgia imperialista. O objeto da nostalgia não é a antiga ordem imperial ou colonial com o tal, m as um a ordem

anteriora ela, em que o colonialismo era responsável por erradicar

a cultura tradicional e os m odos de vida das sociedades nativas. A nostalgia imperialista, de acordo com Rosaldo, consiste em compadecer-se pela passagem do que foi destruido.22 Tal nostalgia, ele sugere, no final das contas, serve para atenuar a culpa que brota do

21. Byrne, David. Strange Ritual'. Pictures and Words. San Francisco: Chronicle Books, 1995. 22. “A nostalgia imperialista gira em torno de um paradoxo: uma pessoa mata alguém e então fica de luto pela vitima. De uma maneira mais atenuada, alguém deliberadamente altera uma forma de vida e então se arrepende porque as coisas não permaneceram como eram antes da intervenção. Em mais uma eliminação, as pessoas destroem seu meio ambiente e então adoram a natureza. Em qualquer de suas versões, a nostalgia imperialista usa uma pose de ‘anseio inocente’ não só para captar a imagi­ nação das pessoas como também para esconder sua cumplicidade com a dom ina­ ção brutal.” Rosaldo, Renato. Nostalgia Imperialista. In: Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis. Boston: Beacon Press, 1989. p. 69-70.

comprometimento do sujeito colonial - até mesmo por responsa­ bilidade - com o estado das coisas pelas quais ele está lamentando. De

Tristes Trópicos de Lévi-Strauss até o contemporâneo turismo

étnico, a cultura euro-americana é permeada por essa nostalgia, e, como os recentes documentários sobre a criação de Herzog ou

Apocalypse N ow de

Fitzcarraldo de

Coppola (e os próprios filmes)

mostram, é igualmente difundida no cinema contemporâneo.23 A melancolia de

Baraka em

sua viagem mundial por lojas

que exploram empregados, favelas, desabrigados, pobreza, casas de prostituição e cenários de guerra civil e internacional oferece um exemplo impressionante do que Rosaldo chama de nostalgia imperialista. Um filme como

Baraka, Rosaldo

poderia argumen­

tar, brota precisamente da culpa do Primeiro Mundo capitalista em relação à desordem social, econômica e cultural que ele gerou no mundo como um todo, acompanhada de uma nostalgia por um mundo puro e imaginário anterior à modernidade capitalista. Esse mundo imaginário, o objeto da nostalgia, é aparente na reve­ rência do filme ao meio ambiente, às sociedades aborígines e aos sistem as religiosos pré-m odernos do budism o, hinduísm o, islamismo e cristianismo. Assistir a filmes como

Baraka, poderia

se dizer, capacita o público do Primeiro Mundo a se comover com

23. Estou me referindo ao documentário Burden o f Dreams (1982), de Les Blank, e também ao livro que o acompanha: Blank, Les; Bogan, James. Burden o f Dreams'. Screenplay, Journals, Reviews, Photographs. Berkeley, California: North Atlantic Books, 1984; e O Apocalipse de um Cineasta (1991), de Fax Bahr e George Hickenlooper, Esses documentários de making o f podem ser vistos como um subgénero emergente do cinema global contemporáneo.

o que o capitalismo destruiu, ao mesmo tempo que o absolve de qualquer responsabilidade sobre isso. O fato de ser precisamente a censura pública da ordem económica mundial o que faz de

Baraka

um filme possível em primeira instância não é o menor de seus tantos paradoxos. Confrontados com as realidades desconfortáveis da ordem mundial pós-colonial, os filmes da

N ational Geographic , do

Discovery Channele Baraka servem, em última instância, como uma fonte de reafirmação: mais do que o abismo económico

que separa “nós” de “eles”, tais filmes mostram o que suposta­ mente temos em comum. Enquanto documentam realidades desconfortáveis, eles também sugerem que essas realidades não nos dizem respeito diretamente, eles amenizam quaisquer ansie­ dades que “nós” possamos ter e qualquer responsabilidade so­ bre isso. Em um mundo feito supostamente menor a cada dia pela mídia, negligenciamos o quão efetivas são essas mídias para manter o mundo em seu lugar, assegurando - como os limites que separavam espectadores dos povos nativos exibidos nas fei­ ras mundiais - que estes não se aproximem tanto para não causar desconforto.

O livro do film e: rep e n san d o o “ C in em a M u n d ia l” Em 1994, o Instituto Britânico de Cinema publicou um livro intitulado World Cinema: Diary o f a Day, um dos vários projetos semelhantes produzidos naquela época para comemorar o cente-

nário do nascimento do cinem a.24 O livro foi o resultado de um projeto por meio do qual se solicitou a cerca de mil trabalhadores de todos os setores da indústria cinematográfica m undial que m an­ tivessem um diário de suas atividades em um dia escolhido aleato­ riamente (10 de junho) durante o verão de 1993. Os apontam entos do diário produzido foram então editados e reorganizados em um a série de capítulos correspondentes aos estágios da produção de um filme, da concepção inicial até a exibição ao público, oferecendo por meio disso um olhar instantâneo global de “um dia na vida da indústria cinem atográfica”25. O livro é talvez m ais interessante pelo que revela sobre a di­ m ensão transnacional da produção de filmes m undiais da atualida­ de e sobre a econom ia cultural global dentro da qual essa produção acontece.26 N o geral, ele oferece um retrato fascinante de um dia

24. Cowie, Peter (Ed.). World Cinem a: D iary o f a Day. Woodstock, NY: Overlook Press, 1994. Ver também: Nowell-Smith, Geoffrey (Ed.). The O xford D ictionary o f World Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996; e Stone, Judy. Eye on the World: Conversations With International Filmmakers. Los Angeles: Silman-James Press, 1997. No próprio cinema, o filme francês Lum ière et Com pagnie{ 1995), uma com ­ pilação de quarenta curtas feitos com a câmera original dos irm ãos Lumière por diretores de filme de todo o mundo, tem, de torma semelhante, pretensões globais. 25. Nos últimos anos, estes livros “ um dia na vida” apareceram com o um a variante interessante do que eu chamei anteriormente d e “globalismo de cabeceira.” Tendo começado suas vidas como uma série de relatos de culturas nacionais {Um D ia na Vida da América, Um Dia na Vida do Japão etc.), eles recentemente foram além do nacional, com o o recente Um Dia na Vida do CyberEspaço, de Rick Smolan, atesta. As am bições panorâm icas e globais de tais livros fazem com que eles te­ nham uma forte afinidade com filmes com o Baraka-, ficamos imaginando quanto tem po vai levar para a publicação de Um D ia na Vida do M undo. 26. Sobre a econom ia cultural global, ver: Appadurai, Arjun. Disjuntura e Diferença na Economia Cultural Global. In: D im ensões C ulturais da Globalização. Lisboa: Teorema, 2004.

típico da produção de filmes e a frustração normalmente associa­ da a essa atividade. Ao mesmo tempo, o livro tem vários proble­ mas. Um dos mais obvios é que, enquanto nos diz muito sobre o

fazerum filme, não nos diz nada sobre o não menos importante ato de assistirm filme. E dessa forma, concentrando-se na produção em vez da recepção, o livro, de forma questionável, nos apresenta somente metade do quadro do cinema mundial contemporáneo, ig­ norando completamente sua outra metade: o público de cinema.27 Um segundo problema reside nas suposições totalizantes subjacentes à categoria do próprio “cinema mundial”. Quaisquer que sejam as condições geopolíticas e econômicas para sua emer­ gência histórica, e quão variadas sejam suas inúmeras manifesta­ ções locais, presume-se que a criação de um filme é hoje uma for­ ma cultural global. Poderíamos dizer que essa suposição parece incontestável, uma simples observação de fato; mas não pretendo contestá-la aqui. Ao mesmo tempo, é interessante que a categoria de “cinema mundial”, como exemplificada por livros como este em questão aqui, foi usada exclusivamente pelos estudiosos e crí­ ticos de cinema do Primeiro Mundo, e não por aqueles das maio­ res nações pós-coloniais produtoras de filmes. Além disso, a ob­ servação ostensivamente neutra de “cinema mundial” como um fato do mundo contemporâneo precisa ser situada dentro do con­ texto histórico mais amplo do imperialismo europeu e de tentati-

27. Em algum outro lugar, nos estudos contemporâneos sobre cinema, uma atenção considerável foi dedicada ao estudo dos públicos globais, por exemplo: Ang, Ien. Desperately Seeking the Audience. New York; London: Routledge, 1991; e Living Room Wars-. Rethinking Media Audiences for a Postmodern World. New York; London: Routledge, 1996.

vas semelhantes dos poderes coloniais para supostamente impor categorias “universais” ao mundo como um todo. Por fim, vale a pena lembrar que, precisamente devido à dificuldade histórica do cinema com o colonialismo, muitos diretores pós-coloniais - refi­ ro-me a diretores do Terceiro Cinema em particular - se preocupa­ ram exclusivamente com a definição de suas práticas cinematográ­ ficas em oposição aos cinemas estadunidense e europeu. Embora tais diretores hoje tenham de operar dentro da economia cultural global como qualquer outro, provavelmente estarão mais apreen­ sivos com a assimilação dos seus trabalhos dentro da categoria “cinema mundial” do que, digamos, um diretor francês ou inglês. Resumindo, a categoria de “cinema mundial” prova, em uma aná­ lise mais detalhada, ser menos “natural” e menos problemática como pareceria em princípio e pode, até mesmo, ser vista como um construto totalizante que, de alguma forma, torna a categoria de “cinema mundial” a contrapartida dos estudos cinematográfi­ cos para

Baraka.

Outro problema do

Cinema Mundial\ e mais relevante para

a presente discussão, como sugeri, é o fato de que, enquanto o livro revela muito sobre os processos globais que afetam a forma como a produção cinematográfica acontece hoje, pouco nos diz sobre a emergência de um discurso a respeito da globalização den­ tro do próprio cinema global contemporâneo. Está claro, pelo menos, que a globalização teve, e continua tendo, um impacto significativo sobre o conteúdo fílmico no mundo todo, seja a obra feita por um diretor etnográfico estadunidense, um diretor euro­ peu de vanguarda, um diretor africano morando em Paris ou um iraniano em Los Angeles.

A comparação entre o

Cinema M undial e Baraka leva, en­

tão, à conclusão de que a categoria de “cinema mundial” precisa ser repensada. Enquanto o “cinema mundial” e o “cinema global” têm sido, nos últimos anos, matéria de atenção crítica crescente, um corpo substancial de filmes que se engajam em um discurso

sobre a globalização -

do qual

Baraka é somente

um exemplo -

foi, até o momento, deixado de fora da discussão. Se for correto, vale a pena refletir por que isso acontece. Talvez se deva a uma confusão conceituai sobre os usos do próprio termo “cinema mun­ dial” que, embora cada vez mais presente na atualidade, é usado em um sentido muito diferente de “música mundial”. Como vi­ mos há pouco, o termo é mais frequentemente utilizado para sig­ nificar “a indústria de cinema global”, em vez do sentido mais res­ trito, que uso neste texto, de filmes que explicitamente se inserem em um discurso sobre algo chamado “mundo”. À parte das impli­ cações ideológicas de um termo tão globalizante, poderíamos que­ rer nos informar sobre a utilidade analítica de um a categoria conceituai que - na esfera da produção cinematográfica, pelo me­ nos - inclui potencialmente tudo. Outra razão pela qual as discussões sobre o “cinema mundial” e o “cinema global” envolveram os tipos de filmes que venho dis­ cutindo aqui pode ser simplesmente uma suspeita sobre o global em si. Acostumamo-nos a valorizar a particularidade do local e a rejeitar discursos globalizantes, com suas pretensões de falar por to­ dos, como monolíticos e hegemônicos. Isso pode ser algo bom; mas, enquanto tivermos uma boa razão para suspeitar do global, não significa que, se o ignorarmos, ele simplesmente desaparece­ rá. De fato, o oposto parece mais verdadeiro: quanto mais o igno-

ramos mais difundido ele se torna. Estudos do cinema “global” ou “mundial”, entretanto, têm a tendência de se concentrar primeira­ mente nas práticas cinematográficas transnacionais ou locais, de­ finidas por

resistência ao global (frequentemente tratado hoje em

dia como sinônimo de capitalismo), em vez de se concentrar no global como tal.28 Sem negar a importância de práticas de resis­ tência, precisamos também perguntar o que está em jogo no con­ tínuo desejo euro-americano de enquadrar a diversidade cultural global dentro de seu olhar que inclui tudo, e se filmes como

Baraka

não são, de muitas formas, uma resposta contra-hegemônica aos cinemas atuais transnacionais de resistência. Em uma ordem m un­ dial pós-colonial na qual as sociedades do Primeiro Mundo se encontram cada vez mais fragmentadas pela imigração do Tercei­ ro Mundo, com sua homogeneidade cultural desestabilizada e con­ testada pelas culturas de suas antigas colônias, a visão global de

Baraka pode ser vista como uma reação à ameaça que tal mundo

apresenta à autoridade cultural euro-americana, que, ao reinscrever o mundo dentro do campo reafirmativo de um olhar euro-america­ no, procura uma estrutura discursiva neocolonial sobre um m un­ do escorregadio cada vez mais além de seu controle. Repensar o “cinema mundial” hoje, em primeira instância, envolve diferenciá-lo das indústrias de filmes globais, uma catego­

28. Ver: Jameson, Fredric. The Geaf>oliticãiAesthetic". Cinema and Space in the World System. Bloomington, Indiana: Indiana University Press; London: British Film Institute, 1992; Ver: MacDonald, Scott. Premonitions of a Global Cinema. In: Avant-Garde Film: Motion Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 123-125.

ria que potencialmente inclui tudo, e dos cinemas transnacionais, definidos por sua política de diferença multicultural. Envolve tam­ bém realocar o próprio cinema como um meio dentro do contex­ to maior das indústrias culturais globais. Isso significa tratar o cinema, como historicamente tem sido o caso, não isolado de outras mídias, mas como parte de um

continuum

maior, desde

diário de viagem, de moda até música popular, que articulam respostas euro-americanas para as novas realidades multiculturais da ordem mundial pós-colonial. O cinema euro-americano tem tido, e conti­ nuará a ter, um papel significativo na articulação dessas respostas, mas esse papel, até o momento, praticamente não foi analisado. Concentrar-se nele mais diretamente pode levar a um entendi­ mento certamente menos globalizante, mas, no final das contas, mais claro, do lugar do “cinema mundial” dentro da economia cultural global contemporânea.

O cinema intercultural na era da globalização Hudson Moura

Nunca se viram tantos deslocamentos humanos quanto no século XX. A Segunda Guerra Mundial provocou uma nova expe­ riência no movimento de populações, experiência que se tornou uma das mais significativas e traumáticas dos últimos tempos. O mapa mundial foi retraçado, e muitas culturas foram dispersas ou transferidas de uma região a outra. Nosso tempo, segundo Said (2000), é, sem dúvida, a era dos refugiados, das pessoas em movi­ mento, da imigração em massa. Tem-se a impressão de que cada vez mais as pessoas cruzam fronteiras e transformam suas experiências em uma poderosa he­ rança de resistência. E as mídias são testemunhas desse fenômeno. Muitos artistas transformam os traumas do deslocamento numa importante renovação do pensamento e em reflexão sobre a socie­ dade contemporânea. Novos pontos de vista e novas impressões são criados com o descer e subir de barreiras, muros e alfândegas. Novas geografias e linguagens são impostas a um conjunto inteiro de culturas e anti­ gas nações. Como aproximar o cinema às novas realidades e subje­ tividades dessas novas fronteiras?

Há um número sem igual de artistas e intelectuais que ex­ ploram o tema do deslocamento e da interculturalidade em suas manifestações criativas por meio de filmes, exposições de arte e obras literárias, tanto quanto cientistas e estudiosos consagram seus estudos. Uma série de publicações em inglês que abordam o tema o nomeiam de transnacionalismo, diáspora e pós-colonialismo. Nos estudos cinematográficos, quando esses pesquisadores anali­ sam casos como o cinema intercultural, eles sempre mapeiam a questão dentro de uma perspectiva sociopolítico-econômica de um Estado-nação. Assim sendo, é preciso sempre estar atento a termos e conceitos como nacionalismo, identidade, multiculturalismo e a temas como etnia, raça, numa aproximação sociológica e antropo­ lógica em detrimento de outras áreas, como a estética e a filosofia, pontos de vista mais abordados pelas publicações em francês. A teoria de língua francesa, mais baseada nos estudos filosóficos, semiológicos, literários e estéticos, concentra-se na questão da alteridade do indivíduo e suas subjetividades, tomando uma outra perspectiva na análise da experiência do deslocamento no cinema, por exemplo, quando o nomeiam cinema de exílio, minoritário, marginal. Essa diferença de caminhos, muitas vezes, interfere no resultado final de análise dos filmes. Em todo caso, em ambas as teorias, o cinema intercultural ques­ tiona o pertencimento a uma cultura, a uma comunidade, ao cinema contemporâneo, e, através da intermidialidade, o pertencimento a uma só mídia e ao sujeito da modernidade.

Cinemas emergentes: hibridismo, interculturalismo e multiculturalismo Nos Estudos Culturais, o termo “intercultural” é distinto de ou­ tros termos e teorias como o multiculturalismo, o transnacionalismo, o pós-colonialismo, entre outros, apesar de esses compartilharem a mesma experiência de envolver dois ou mais regimes culturais. O conceito de intercultural foi sempre associado a uma marca da imi­ gração e da descolonização, o que não é mais o caso. O intercultural se desenvolveu em outras áreas, como o comércio, o direito, a edu­ cação, entre outras. Essa indissociabilidade do termo em relação à imigração contribui para enrijecer e limitar o conceito (Coly, 2005). Todas as boas e, principalmente, as más características que podiam ser associadas à imigração acabam se transferindo diretamente para o intercultural. A interculturalidade no cinema tenta traduzir em imagens a experiência de viver entre duas ou mais culturas e sociedades di­ ferentes, que concebem novas formas de pensar e de conhecimen­ to (Marks, 2000). É um cinema compartilhado por pessoas que sofreram o deslocamento e que viveram m odos híbridos e para quem a representação do cinema convencional - o cinema clássi­ co - não é suficiente. Cinema multicultural,

m estizo , pós-colonial, transnacional,

híbrido, minoritário... muitas denominações para um gênero que se torna cada vez mais importante. Sua principal característica é a de explorar, de uma maneira original, as técnicas cinematográfi­ cas sobre temas e narrativas (roteiros) já bem conhecidos. Qual é a particularidade do cinema intercultural perante essas outras de­ nominações?

Principalmente, porque o ponto de vista mudou, nós deve­ mos rever a prática: não é mais um olhar “forasteiro” que observa uma realidade exótica, mas sim um olhar estrangeiro, vindo do interior mesmo dos cinemas nacionais. Parafraseando Deleuze e Guattari (1975) sobre a literatura menor, não é somente a possibi­

m enor de uma lin­ guagem m aior que permite definir o cinema emergente. Assim, esses cinemas emergentes se originam do olhar de lidade de instaurar do interior um exercício

novos cineastas provindos de uma nova realidade, criada princi­ palmente nos países que acolheram os imigrantes de ex-colônias, como a França e a Inglaterra, ou de novos imigrantes, como o Canadá, os Estados Unidos e o Brasil. A necessidade desses cineas­ tas de sustentarem uma imagem, rara em outros tempos, assume uma importância mais profunda e uma amplitude maior nos rotei­ ros habituados aos clichês e às imagens convencionais eurocêntricas do Outro, do estrangeiro, da cultura e das novas práticas sociais dos imigrantes. Esses cineastas estão longe de repetir as imagens de marginalidade ou a violência habitualmente ligadas aos imigrantes da classe po­ pular ou de mostrar o estrangeiro como exótico. Eles se voltam para o assunto da língua, da classe social, do trabalho e sua inser­ ção na sociedade. O cinema se torna, assim, uma mídia portadora de significação para essa comunidade e um meio privilegiado de comunicação e experimentação artística. É sobretudo através de um olhar integrador, de transferência, de adaptação e de aceitação do “Outro” (sua cultura, sua língua) que eles mostram que fazem parte da sociedade e que devem reivindicar seus

lugares.

A sociedade

não é mais a mesma, assim como as imagens que ela produz.

Os cinemas

emergentes geram

práticas cinematográficas

singulares tal como o fato de conceber o quadro fílmico como um espaço de escritura - títulos, subtítulos, textos em línguas estran­ geiras ou de traduções - e a utilização de várias línguas, vozes, músicas e sotaques diferentes, e o cotejamento de culturas distin­ tas e a preferência pelos temas do deslocamento, do exilio, da diáspora, da viagem (Naficy, 2001, p. 25). Cineastas exilados, emigrados e refugiados fazem “textos de autor” (Naficy, 2001), intertextuais, transculturais, traduções de sen­ tidos e de identidades. Os cineastas podem pertencer a mais de urna cultura (Marks, 2000, p. 7). Nesse momento, não é mais urna simples transcrição ou tradução de urna cultura para outra, mas sim o fato de habitar um espaço múltiplo, composto por diversas culturas, e, muitas vezes, esse espaço não é muito claro, ou seja, bem definido. Se bem que esse multiculturalismo é formado por vários grupos étnicos e culturais, e isso implica sempre a presença de uma cultura dominante - branca, ocidental, europeia. Uma cultu­ ra híbrida é variável e impossível de categorizar. A hibridação, segundo Homi Bhabha (apud Marks, 2000, p. 7), revela o proces­ so de exclusão pelo qual as nações e certas identidades culturais são formadas, forçando a cultura dominante a se explicar. O cine­ ma híbrido se coloca numa relação de poder no qual ele se reflete (Bhabha apud Marks, 2000, p. 8). Isso quer dizer que, na sua carac­ terística híbrida, o cinema intercultural é sempre colocado numa relação de força na sua forma contestatória em relação a uma esté­ tica dominante.

A tensão do prefixo “inter” de intercultural Nos filmes A

esquiva ( VEsquive, 2004), de Abdellatif Kechiche, Em direção ao sul( 2005), de Laurent Cantet, e Portas do paraíso (2006), de Swel e Imael Noury, as diferenças e as tensões sociais geram um mosaico multicultural e excludente. Essas tensões entre classes, subalternos e colonizadores, e os vários conjuntos de uma mesma sociedade vivendo lado a lado, se fazem sentir na própria materialidade cinematográfica. Kechiche, em

A esquiva J, oferece à

linguagem , tanto cinem atográfica quanto falada, um a nova performance, distante dos clichês, e acentua as particularidades de duas línguas (o erudito e o popular) entre dois m undos. Esta pon­ te entre essas duas realidades distintas (o imigrante e a terra de inserção) constrói um novo imaginário na tela. Mas até que pon­ to esses cineastas querem documentar, mistificar ou vangloriar a realidade-situação dos imigrantes? Até onde podem os afirmar que esta nova “periferia” cinematográfica deslancha um novo concei­ to de “adaptação” no discurso midiático? O cinema intercultural não pode ser entendido simplesmente como multicultural ou como pluralista (cultura, religião, políti­ ca), pois ele atribui uma tensão que se deixa perceber pela im po­ sição do prefixo “inter”. Isso significa que o intercultural determi­ na sempre uma fronteira e uma tensão do “entre” duas ou mais

1. Eu faço uma análise sobre a questão da comunicação num artigo precedente: “Le cinéma émergent et ses pratiques interculturelles”, publicado pela revista Les Enjeux de Tinformation et de ¡a communication (Mou ra, 2007).

culturas (ou, em termos cinematográficos, “entre” planos). Essas culturas não são amalgamadas ou juntadas num discurso unifor­ me e homogêneo, como poderíamos caracterizar o hibridismo e o multiculturalismo. Num discurso heterogêneo e único no seu gênero, interculturalidade é colocar em relação duas ou várias culturas e identidades. Ela pode ser também aquela que não com ­ partilha. Isto é, um processo que marca uma tensão dos diferen­ tes, o que pode ser mesmo da ordem do intransponível e gerar a incompreensão. A interculturalidade no cinema pressupõe uma emergência de formas e de discursos, o que o torna difícil de ser classificado. Sua prática desvenda sua característica única, tanto do ponto de vista técnico quanto do tema tratado. O intercultural não é um dado fixo que pede uma análise, mas um processo, uma comunicação, uma correlação: a análise ela mesma. “Assim, se o multicultural pára no nível da constatação, o intercultural opera uma démarche, ele não corresponde a uma realidade objetiva.” (Abdallah-Pretceille, 2002). Aproximando o caráter marginal e o alternativo do cinema intercultural à concepção deleuziana de literatura menor, sua carac­ terística de agente coletivo da enunciação é inegável. O privado se torna de uma certa maneira um assunto público e sociopolítico que vai buscar uma reação do espectador. O intercultural pertence à questão cultural, entre indivíduos, identidades e grupos, entre o singular e o universal. Apesar de estes dois termos - cultural e intercultural - não se fundirem em si mesmos, eles podem ser primordiais para compreendermos as diferenças, como tão bem caracterizou Abdallah-Pretceille, pois um indivíduo vindo de um a

cultura não pode ser considerado seu representante. Entretanto, o cinema intercultural é com certeza um agente coletivo, pois o intercultural é sempre e fundamentalmente concebido a partir do relacional, colocando a cultura do Outro à prova e como pas­ sível de troca. É como se o cinema intercultural contribuísse através de sua representação/correlação “ à invenção do povo”2 (Deleuze, 1985, p. 283). O povo assim como a história não são dados pelo filme ou eles ainda não estão lá, eles serão esboçados ou nascerão no filme pelo intermédio de uma análise/leitura do espectador. Dessa ma­ neira, o cinema intercultural se caracteriza como uma possibili­ dade de utornar-se filme”, na qual o espectador é convidado a fazer a síntese. Filmes como

Calendário, de Atom

Egoyan, ou

Viagem na

Armênia , de Robert Guédiguian, não ensinam e não informam nada além sobre a história do genocídio ou da diáspora armênia, mas

servem como pontos de reflexão e de questionamento. Enfim, é dentro desse formato “alternativo” e não “classificatório” que o ci­ nema intercultural quer ser inserido pela simples razão de não querer cair nas armadilhas do clichê e do convencional. A experi­ mentação na forma e no conteúdo e o inesperado de sua proposta fazem parte de sua característica emergente de pensar fora dos padrões dominantes e estabelecidos -

outside the box.

2. “No cinema Americano [... ] o povo já está lá, real antes de ser atual, ideal sem ser abstrato.” (Deleuze, 1985, p. 282).

A intermidialidade e a crise do sujeito Cada vez mais, a interculturalidade no cinema pressupõe uma certa inovação do discurso cinematográfico. Na busca de novos caminhos para urna nova identificação e interação do espectador com a imagem que vê na tela, muitos diretores optam pela interação do cinema com outras mídias e discursos. Eles inovam no tratamento narrativo e conceituai da imagem e acabam reno­ vando a prática cinematográfica. No filme Notebook on

cities and clothes, de Wim Wenders, a

intermidialidade se situa precisamente nos movimentos entre duas cidades e duas mídias. O espectador perde a noção se a imagem na tela é uma imagem cinematográfica ou videográfica, se ela se refere a Tóquio ou Paris, ou ainda, se ela é uma imagem do passado ou do futuro, segundo a cronologia do filme. É neste discurso fragmenta­ do que se descobre o filme e seus personagens. O estilista Yamamoto, por exemplo, personagem central do documentário, se sente como um cidadão do mundo, estando em casa em qualquer grande ci­ dade, seja Paris, Nova Iorque ou Tóquio. As imagens adquirem um sentido todo especial na montagem, na superposição de planos e nos movimentos de câmera, justamente na passagem entre uma imagem e outra. É no caminho do “entre” uma coisa e outra que se conhece a “identidade”3 procurada, tanto a dos personagens quanto a do discurso fílmico.

3. No filme, um documentário sobre a moda e o estilista japonês Yoshi Yamamoto, o diretor Wim Wenders questiona a identidade tanto do estilista, dele próprio e de suas profissões, quanto da natureza das imagens (cinematográficas, videográficas e fotográficas).

A imagem de

N otebook se constrói no

meio, no intervalo

de imagens; ela não existe nem de um lado e nem do outro. Será essa a intermidialidade por excelência, onde não há nem referên­ cia e nem referente absoluto, único? Seguindo a ideia deleuziana da crise da representação no cine­ ma clássico na década de 1940 e, ao meu ver, do cinema moderno na década de 1970, com o aparecimento do cinema intercultural4, a interm idialidade com prova um a outra crise: a do sujeito da enunciação. Uma crise do sujeito provindo da modernidade de que uma mídia não é mais considerada apta a conservar ou a mostrar. A intermidialidade fragmenta e apaga este sujeito “clássico” da modernidade, o sujeito que representava o mundo. Ela produz de uma certa forma um novo sujeito da enunciação. Nesse quadro, o que importa, como mostra Mariniello (2000, p. 8), não é mais o co­ nhecimento do mundo, o qual um sujeito veria através de um meio (mídia), mas um outro tipo de conhecimento que não pode mais ser o mesmo. O desafio é a possibilidade de abrir caminhos em direção a esse outro conhecimento. A criação desse outro conhecimento se­ ria, assim, o privilégio desses sujeitos “contemporâneos” produzidos pela interação de mídias, como o cinema e o vídeo.

4. A geração de cineastas-produtores, como Steven Spielberg e George Lucas, foi responsável pelo renascimento do cinema de gênero (ou de entretenimento), co­ locando-o novamente em alta no mercado mundial. Este “contra-ataque” do cinema americano com os megaorçamentos nas décadas de 1970 e 1980 não foi por acaso. Isso foi uma reação direta e pesada da indústria cinematográfica de Hollywood contra os cinemas nacionais e locais provindos do mundo inteiro, desde os grandes movimentos cinematográficos pós-guerra, como o neorrealismo, a Nouvelle Vague, o jovem cinema alemão, o Cinema Novo, o cinema indepen­ dente estadunidense, entre tantos outros.

A interação das mídias, a intermidialidade, desloca o núcleo de atenção e de pertinência: a narração e a discursividade não são mais centrais. O sujeito, como um ponto de vista único e especial, torna-se mais complexo. Inserido neste espaço do entremídias, esse novo sujeito é um questionamento sobre o sujeito moderno, encaminhando-o em direção a uma nova configuração do saber ou, ao menos, revelando a sua necessidade. A causa desse questionamento é a mudança no nível do co­ nhecimento e da subjetividade que passa pela crise da relação en­ tre linguagem e mundo: [...] o fluxo de sons e imagens adquiriu uma rapidez tal que esta não se deixa mais ser submetida/entendida pela linguagem e reduzida a uma série de agenciamentos lógicos. Qual conhecimento então? E qual sujeito do conhecimento? E o cinema, qual papel ele atua no aparecimento deste novo conhecimento? (Mariniello, 2000, p. 10). A intermidialidade permite aos cineastas uma gama enor­ me de novos procedimentos de experimentação e de participação de dispositivos no filme, possibilitando ao público testemunhar os impulsos e as decisões tomadas tanto pelo personagem quanto por aqueles engajados em um processo em que o diretor também está envolvido. Em

Notebook não é mais a diferença entre espaço e tempo,

entre duas cidades ou dois personagens, mas o encontro e a dis­ tância de um ponto qualquer a outro, do grão de prata da película ao

pixel eletrônico da fita magnética, por exemplo. Essas mídias e

práticas significantes se contaminam e acabam gerando novos dis­ cursos. Discursos esses que vão além da capacidade expressiva de um só meio, o que chamamos assim, esse processo e conjunção, de intermidialidade.

A intermidialidade é a conjunção entre duas ou mais mídias, ou, ainda, pode se situar entre duas ou várias práticas significantes: música, literatura e pintura, suponhamos, no interior de uma mídia, como o cinema. Mas se nós, afirma Mariniello (2000), analisarmos o movimento de uma prática a outra, nós o paramos, nós o de­ com pom os, e assim nós perdemos sua natureza dinâmica. A intermidialidade está mais para o movimento e o devir, lugar de um pensamento não mais entendido como continuidade e unida­ de, mas como intervalo e diferença. A interculturalidade cinemato­ gráfica guarda esse mesmo desafio na compreensão da confluência de culturas e mesmo de gêneros e histórias que a compõem. Não conseguimos de fato apreendê-la em toda sua força e dinâmica nar­ rativa se tentamos considerar seus elementos em separado ou se tentamos encarcerá-la dentro de um gênero ou cultura, principal­ mente considerando a quebra de padrões, a heterogeneidade e as inovações técnicas que lhe são características. No cinema intercultural, alguns diretores tentam transfor­ mar o discurso para ir além da representação, da experiência e do conhecimento do mundo. Entretanto, um dos pressupostos da arte moderna é justamente o de opor-se à representação e fazer do meio (mídia) o sujeito. “O que a arte moderna visa, parecido com a am­ bição fenomenológica, é o retorno à essência mesma das coisas, a esta essência sem representação, onde a mediação não seria ocultação, mas revelação.” (Nouss, 1995, p. 118). Assim, alguns cineastas ten­ tam permitir ao espectador uma experiência e um contato com a coisa em si, sem recurso de diálogos ou de roteiro. O termo conhecimento ou “experiência” permite também compreender que a arte moderna tenta mostrar a vida na sua crueza ou na sua dureza, fora de uma estética que seria normativa (Nouss,

1995, p. 121). Entretanto, nas passagens midiáticas, e sempre em relação à questão da não representação, que Lyotard classifica como nova linguagem estética, “o belo se apaga diante do verdadeiro, e esta relação de verdade no real pede não mais para imitá-lo ou para expressá-lo no que há de representável, mas também no que há de irrepresentavel" (Nouss, 1995, p. 121). O exílio e a interculturalidade são algumas dessas experiências, difíceis tanto de representar quan­ to de espacializar.

Nas passagens cinema/vídeo em N otebook de Wim Wenders,

ou em

Calendário, de Atom Egoyan, ou, ainda, em Caché (2005),

de Michael Haneke, a conjunção e a justaposição de duas mídias não objetivam somente colocar o espectador em contato com as mídias elas mesmas, mas, sobretudo, objetivam romper o contra­ to espectador-filme para levar o sujeito a incorporar e a personifi­ car o meio (mídia). O sujeito seria assim o ponto de vista do não olhar, uma tentativa de m ostrar o que não se consegue distinguir, ou de mediatizar com apenas um a mídia. É essa nova im agem que se forma entre duas mídias. Em

Caché\ a imagem-vídeo surge

como uma consciência do passado do personagem, como espe­ lho e como imprecisão da imagem. Ao tentar colocar o persona­ gem em contato com o sofrimento e com a condição alheia, o vídeo cria uma transparência opaca da realidade e força o perso­ nagem de Daniel Auteil, aquele que é fonte do preconceito e do racismo contra os exilados, a tomar contato com o “ verdadeiro” reflexo de sua imagem. Mas isso somente torna-se possível quan­ do a imagem-vídeo está inserida dentro do filme, ou seja, é o movi­ mento entre uma imagem e outra que nos permite compreender e nos inserir na dinâmica entre realidades, virtualidades, tempos e culturas na qual o personagem de Auteil imerge.

Tradução, comm odities e gêneros A cultura exílica situa-se na interseção e nos interstícios de outras culturas (Naficy, 1993, p. 2). O discurso exílico tem de lidar com a problemática de lugares múltiplos. A desterritorialização que o exílio produz tem criado “outros mundos e conhecimen­ tos” de pessoas

desafetadas, que voluntária ou involuntariamente

não estão ou não querem fixar-se a uma só identidade. Os exilados, segundo Naficy, têm a possibilidade de criar identidades híbridas e culturas sincréticas que simbólica e materialmente tomam empres­ tadas de ambas as culturas, a do passado e a do presente, o que para Salman Rushdie faz parte do processo de tradução pessoal. Em seu artigo autobiográfico “Pátrias imaginárias” (“Imaginary homelands” ), Rushdie enfatiza que escritores como ele, exilados, emigrados ou expatriados, podem ser perseguidos por um sentimento de perda, uma necessidade de recuperação do passado, de reencontro consigo mesmos, correndo o risco de se tornarem estátuas de sal (Rushdie, 1992, p. 10). Mas como eles não são mais capazes de re­ conquistar o que se perdeu, tenderão a criar ficções, não cidades ou

vilas reais, mas aquelas invisíveis, pátrias imaginárias, criações “ima­ ginativamente” verdadeiras. No entanto, como o escritor adverte, verdade imaginária é, simultaneamente, louvável e duvidosa. A natureza parcial dessas memórias, sua fragmentação, sua imprecisão, seu caráter hesitante e desproporcionado, é o que as fazem, para Rushdie, ser tão evocativas quanto valiosas: “Os cacos de memória adquirem um

status maior, uma ressonância maior,

porque são restos; a fragmentação faz coisas triviais parecerem sím bolos, e m undanidades adquirirem qualidades m ísticas.” (Rushdie, 1992, p. 12). O exílio exige uma auto tradução por parte

do autor. Tradução, para Rushdie, quer dizer na sua maneira exílica de se expressar uma dualidade de línguas e de espaços memoriais. Isso, a princípio, é um ganho adquirido pela proficiência de vá­ rias línguas e culturas literárias daquele que escapa de uma só identidade estática e fixa. O exílio torna-se assim uma experiên­ cia positiva do conhecimento e da alteridade que ultrapassa a negatividade estéril e improdutiva, dando vazão a uma riqueza de narrações e histórias. Segundo Rushdie, o exílio é gerador de uma errância positiva, enraizada, de cruzamentos literários, um encon­ tro com o Outro, e uma rejeição ao espaço recluso. A palavra ‘tradução’ vem, etimológicamente, do latim: carregar através. Depois de termos sido carregados pelo mundo afora, nós somos homens traduzidos. Supõe-se normalmente que algo sempre se perde na tradução; eu me atenho, obstinadamente, à noção de que algo também pode ser ganho. (Rushdie, 1992, p. 17, grifo nosso). A perda ou o ganho dessa tradução de sensibilidades e sen­ tidos se verifica na impossibilidade ou incapacidade de não po­ der se comunicar através de uma imbricação e multiplicidade de línguas, culturas ou mídias. O cinema intercultural e o de exílio permitem a exploração de fronteiras imaginárias, principalmente através da intermidialidade e de uma percepção consciente dos clichês e da mídia. No filme filipino

Todo Todo Teros (2006), de

John Torres, o digital é usado como recurso narrativo e como materialidade midiática. A manipulação e a presença da imagem são constantes e tratadas como uma ameaça terrorista. A imagem se torna complô e ameaça de um mundo cada vez mais inserido den­ tro de uma problemática globalizada. O terrorismo se torna assim

não uma ameaça real para a pobreza, miséria e subserviência filipina, mas uma figura de estilo e tratamento estético sobre a banalização da globalização.

Já no filme palestino Paradise now (2005), de Hany Abu-Assad,

o terrorism o não é uma alegoria da globalização, e sim uma legitimação da resistência identitária e de luta contra a opressão. O terrorismo é algo imanente na cultura palestina e mundial de hoje, por razões distintas. No filme, a realidade tom a proporções maiores que a própria ficção, e o questionamento de o que é real ou fictício se torna sem sentido, pois a real devastação do espaço torna impossível qualquer tipo de

ficção. A presença material da

atualidade dos escombros torna-se materialidade fílmica. É como se o ilogismo da situação palestina num m undo globalizado e m o­ derno fosse inumano, incompreensível, inaceitável e “não narrati­ vo”. O discurso pessoal e político confunde-se com as noções de Estado-nação, povo e cultura, como no longo m onólogo do per­ sonagem central, Said (Kais Nashif), antes de embarcar para Israel com uma bom ba atada a seu corpo: Uma vida sem dignidade não vale nada. Sobretudo, quando ela nos lembra, dia após dia, nossa humilhação e nossa fraqueza. E o mundo observa tudo isto, covardemente, indiferente. Se a gente se encontra sozinho em face dessa opressão, a gente deve encon­ trar um meio de pôr fim a essa injustiça. Eles devem entender que se não há segurança para nós, não haverá tampouco para eles. Eles convenceram o mundo todo, e a eles mesmos, de que eles são vítimas. Como pode o ocupante ser vítima? Se eles endossam o papel de opressor e de vítima, eu não tenho outra escolha que a de ser, ao mesmo tempo, vítima e assassino.

A ameaça iminente de sua integridade física e da cultura de seu povo é incorporada literalmente pelo personagem através de um ato incompreensível de resistência e alteridade. Ele se afirma integralmente, corpo e mente. A cultura do Outro, ou seja, a israe­ lense, está presente-ausente na tela de uma maneira sutil, subjacente e onisciente. Essa tensão e opressão entre culturas legitima o dis­ curso pessoal do personagem e o torna imediatamente político e identitário, como um rompimento de barreiras e auto afirmação. O ato extremo de se imolar junto com o Outro revela também, no filme, a impossibilidade de continuar a sustentar uma imagem ou história que não o corresponde. Os filmes emergentes tentam quebrar as amarras do cinema de gênero, que por décadas vem aprisionando e impedindo temas como a migração e a colonização, e estabelecer uma real e complexa noção do tema da interculturalidade nas telas. A estereotipagem do migrante pelo cinema clássico influencia na maneira, por exemplo, de como pensamos os conceitos de interculturalidade ou de exílio. Se fizermos uma analogia entre gênero cinematográfico, com suas estruturas, tipos e normas, e uma caixa, essa imagem nos dá uma ótima possibilidade de pensarmos as estratégias dos cinemas emergentes e interculturais nas suas tentativas de romper com es­ tas embalagens e se conceberem “fora da caixa” ( outside the box). Os filmes In this world (2002), de Michael W interbottom, e Zulu 9 ( 2001), de Alan Gilsenan, mesclam os gêneros cinemato­ gráficos, documentário e drama, e colocam a “caixa” não como uma simples metáfora, mas como uma prática concreta do contra­ bando de imigrantes. Os filmes mostram alternativas desesperadas dos migrantes para cruzar as fronteiras, submetendo-se à exploração

dos atravessadores que os contrabandeiam de forma ilegal através de contéineres pela Europa. No filme de Winterbottom, dois jovens escapam da miséria e da guerra do Afeganistão pagando atravessadores, a fim de po­ derem cruzar as fronteiras de vários países ocupados e em guerra e conseguirem chegar a Londres. Eles tomam os caminhos mais difíceis e inusitados, como cruzar desertos, atravessar montanhas durante a noite ou viajar dentro de um contêiner sem luz e com pouco ar. Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mostra o contrabando de imigrantes africanos para a Irlanda em caminhões-baús de car­ ga tóxica. O neoliberalismo econômico abriu as portas para a globalização de produtos e serviços, inclusive a importação e a exportação ilegal de mão de obra barata. Os migrantes tornam-se commodities eco­ nômicas, objetos transnacionais (Marks, 2000; Herr, 2007). Esse movimento do mundo conhecido (lugar de origem) ao mundo ainda não conhecido (exílio) representa movimentos através de um apparatus do estado em que uma pessoa é transportada e radi­ calmente deslocada de seu espaço. A caixa é a transição, o transpor­ te, uma jornada impossível de ser representada. Enquanto o cinema de gênero age como fornecedor de fantasia e desencadeador da diferença, a representação de pessoas imigrantes repousa numa tensão entre fantasia e experiência da realidade (Herr, 2007). Com essa realidade difícil de apreender é que os filmes emergentes ten­ tam estabelecer uma ponte. Assim, a busca é por uma estrutura narrativa aberta, como uma ferramenta para opor ou deslocar um olhar profundamente alienado.

A globalização da imagem A miséria humana e o movimento migratório são dois te­ mas recorrentes no cinema intercultural. Um derivado do outro e vice-versa. Esses temas se tornaram uma preocupação essencial no final do século XX. A degradação da condição humana, em países devastados pela fome e pela guerra, parece caminhar lado a lado com a gradativa especulação de um termo contemporâneo que caiu facilmente na alienação, na banalização, e que perde cada vez mais seu sentido: globalização ou, como preferem os franceses, mundialização. Entre discussões intermináveis e muitas vezes infecundas de teóricos e suas opiniões, prós e contras, sobre a globalização, às vezes, essas concepções tomam proporções enor­ mes e incompreensíveis, que o cinema intercultural (assim como o cinema político da década de 1970) busca denunciar, e têm trágicas consequências, que ele busca combater. Por outro lado, é preciso entender a questão da globalização cultural e seus produtos comunicacionais. Devemos concebê-la como tradução de uma compreensão da obra artística ou como acesso a essas obras? A globalização cultural é uma transformação ou criação de sentidos? Tornou-se senso comum dizer que globalização cria a massificação e a homogeneização cultural e social. Entretanto, se­ gundo Pieterse, globalização é um processo multidimensional, que encampa uma larga e variada gama de práticas sociais, políticas e culturais humanas. O autor coloca a globalização como um “pro­ blema descentralizado” (Pieterse, 2006), mas que vem sendo visto como uma ocidentalização do mundo. Em verdade, a globalização ocorre por meio de hibridações culturais e estruturais que geram novas formas de organização social e cultural.

Appadurai vê a globalização como um fenômeno fluido e di­ nâmico atrelado ao movimento migratório mundial (ambos vo­ luntários e involuntários) e a disseminação de imagens e textos via mídia eletrônica. Num ambiente pós-colonial e de saturação midiática, novas formas de desejo e subjetividades são desencadeadas. Desenhado sob concepções pós-estruturalistas, Appadurai prevê o globo como entrecruzado por fluxos que ele denomina “dutos” (Appadurai, 2006), os quais enquadram os mundos constante­ mente modificados da nova paisagem global. Como seria esta pai­ sagem no cinema? Como fica o cinema intercultural numa era globalizada? Em sua diversidade de pontos de vista, o cinema oferece uma variada gama de conceitualizações sobre o mundo globalizado. Os filmes vêm mostrando nessa evolução mundial que a complexida­ de do tema merece uma complexidade de comportamentos e nar­ rativas. Alguns predizem numa imposição de uma “cultura mundi­ al virtual”, sobrepondo as culturas e as identidades, resultado da desmaterialização da cultura e sua globalização. Em Encontros e desencontros (Lostin translation, 2003), de Sofia Coppola, os personagens não parecem perdidos na tradu­ ção, como sugere o título em inglês, ou traduzidos infielmente, como sugere o título em francês. O ato ou a necessidade de se autotraduzir dos personagens estadunidenses na paisagem japo­ nesa simplesmente não se impõe, afinal esta é a vantagem de um mundo globalizado: a ausência do estranhamento e da distância. Os dois personagens, estadunidenses, estão completamente ancorados no mundo moderno. Charlotte é uma recém-graduada em filosofia em uma das mais prestigiadas universidades nova-iorquinas,

e Bob é um ex-astro de Hollywood, em plena crise de meia-idade. Eles se encontram por acaso, hospedados num grande hotel interna­ cional em Tóquio por alguns dias. E está lá por um anúncio publici­ tário, e ela, acompanhando seu marido, que é fotógrafo. Ambos estão deslocados e sofrem de uma profunda depressão, o que os impede de dormir, estão literalmente fora de uma ordem habitual das coisas, em pleno esgotamento da defasagem/diferença de fuso horário. Se Tóquio não os inspira com sua modernidade sem igual e seus mosteiros milenares, em suas casas, nos Estados Unidos, a situação se repete. Enquanto ela não consegue se fazer entender por sua melhor amiga, que evita escutar o seu choro, ele se sente constantemente importunado por sua mulher sobre a escolha do carpete ou sobre a atenção que não dá aos filhos. As centenas de japoneses que vemos circularem na tela ser­ vem apenas como elementos de decoração de um grande cenário pós-moderno de uma sociedade cosmopolita, representada por seu grande hotel internacional - habitado por outros hóspedes estadunidenses: o fotógrafo de celebridades, a atriz de filmes de ação e a cantora do bar do hotel - e suas ruas impregnadas de néon. Os personagens não tecem nenhum comentário sobre a cidade ou a cultura japonesa que expresse algum interesse ou curiosidade, algo, no mínimo, inesperado para uma graduada em filosofia de Yale. Todos são completamente indiferentes às origens, costumes e sen­ sibilidades japonesas. Os nativos de Tóquio estão presentes e, ao mesmo tempo, invisíveis numa paisagem que não consegue ir além dos clichês. Seria isto uma comunidade globalizada em que o dis­ tante se torna tão próximo quanto indiferente?

Em contraponto às contradições e aos sentimentos de perda referencial dos personagens de Encontros e desencontros está um outro documentário de Wim Wenders, Tokyo-Ga. Esse filme ex­ plora o universo do diretor japonês Yasujiro Ozu, um ídolo do ci­ neasta alemão, e como ele mesmo define: “um tesouro sagrado do cinema”. Tokyo-Ga envereda na busca de uma tradução e identifica­ ção. Enquadrar ou temporalizar a imagem como fez Ozu são tare­ fas que o cineasta alemão leva a sério. Wenders explora em detalhes certos costumes banais dos japoneses à maneira de Ozu. A presença da história, da língua e da escrita se acumula aos temas ozunianos sobre o cotidiano e a degradação da família. Temas universais e com­ preensíveis, mesmo que através de uma sensibilidade e ponto de vista particulares a uma cultura ancestral como a de Ozu. Nunca o cinema foi tão minimalista e original quanto nas imagens da bana­ lidade de um Japão cada vez mais ocidentalizado e aberto aos qua­ tro ventos do mundo. A questão no cinema não reside em saber como se articula uma cultura globalizada ou como se representa um mundo globalizado, mas sim o que faz uma imagem ser considerada globalizada entre tantas interculturalidades.

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Identificando o conceito de cinema transnacional* Vicente Rodríguez Ortega

Em 2001, a BMW desenvolveu uma campanha de marketing audiovisual para suas diferentes linhas de produtos baseada em uma série de curtas-metragens, que poderiam ser acessadas pela internet e nos quais estrelava Clive Owen. Os filmes seriam vistos primeiramente na internet.1Com base no conceito original de David Fincher, a empresa alemã incumbiu cinco diretores que estavam em evidência para dirigir cada curta. O projeto foi deno­ minado The Hire (Os contratados). Antes da atualização ocorrida no final de outubro de 2005, o

site oficial dos filmes da BMW (www.bmwfilms.com) levava os usuários a selecionar o local de onde estavam acessando o site: “Para uma melhor experiência digital disponível em sua região do mun-

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação]. 1. Alguns dos filmes foram apresentados em cinemas antes das apresentações na internet. Hoje é possível adquirir o DVD da série inteira (temporadas I e II). Na estreia da segunda temporada no Teatro Apollo, em Nova Iorque, os filmes foram apresenta­ dos digitalmente, utilizando-se o programa Microsoft Windows Media Player.

do, por favor, selecione seu país”.2 Embora o mapa-múndi, à es­ querda na tela, tenha nuances de branco que separam os diferen­ tes territórios geopolíticos em nosso atlas mundial atual, os países estão agrupados em grupos regionais, com poucas exceções (os Estados Unidos e o Canadá estão sozinhos). Quando os usuários dão dois cliques em seu país de origem (se for possível, já que as dimensões do mapa são mínimas e alguns países são parcialmen­ te invisíveis), eles são agrupados com outros usuários de países que a BMW considera pertencerem ao mesmo público-alvo (ou seja, toda a África é um só território em termos de acesso com o clique; o México fica agrupado com a América Central e o Caribe). Obviamente a opção que o usuário tem ao escolher seu país - e, portanto, seu status geral, cultural e econômico - faz lembrar o jogo de tabuleiro War>já que a estrutura do mapa não somente estabiliza hierarquias de tamanho (o Brasil é m aior que os Esta­ dos Unidos em termos de extensão, mas está agrupado dentro do

2. Em 21 de outubro de 2005, a BMW retirou a série The H ire da web e redesenhou o site. Agora, quando os usuários digitam bmwfilms.com, eles são redirecionados para www.bmwusa.com/bmwexperience/films.htm. A empresa alemã continua a exibir The H ire como uma façanha artística inédita na história do entretenimento digital ao mesmo tempo que promove o caráter distinto do seu produto. Pode-se ler no texto on-line: “a inédita série de filmes The H ireàz BM W ignorou conven­ ções e criou o fenômeno conhecido com o filmes on-line. A web nunca mais foi a mesma. Esses oito curtas de diretores aclamados de Hollywood revolucionaram de forma efetiva o mundo do entretenimento interativo, enquanto exibiram os limites absolutos de máxima performance automotiva exclusiva da BMW. Com mais de 100 milhões de espectadores e vários prêmios, a série de filmes The Hire serviu como mais uma prova de que, quando se trata de inovação e tecnologia, a BMW tem estado à frente de seu tempo”.

quadro latino-americano, não podendo ser clicado isoladamente, por exemplo), mas também reflete os interesses de mercado da BMW, que privilegia a América do Norte como marco territorial chave.3Essa estrutura de grupo é planejada para permitir que a BMW monitore o grau de interesse na série The H ire em cada área de mercado e, portanto, oriente as estratégias de marketing futuras da empresa com relação aos produtos que o filme anun­ cia. Manuel Castells reconhece que frequentemente pessoas e na­ ções são excluídas do panorama global, da conectividade mundial possibilitada pela tecnologia digital não somente por falta de co­ nexão, mas também porque elas “se tornam dependentes de eco­ nomias e culturas em que têm pouca chance de encontrar seu pró­ prio caminho de bem-estar material e identidade cultural”.4 Em outras palavras, o mapeamento modificado de regiões do mundo em The Hire aponta para os centros a partir dos quais essas práticas de tomadas de decisão provêm. Entretanto, o usuário de internet, ao clicar duas vezes em qualquer lugar no mapa, é levado de volta à mesma tela principal de apresentação: e a figura de Clive Owen

3.

Wari denominado“o jogo da dominação global”, exibe um mapa mundial dividido em territórios imaginários. Os jogadores possuem um exército e, depois de recebe­ rem aleatoriamente certos territórios, devem cumprir uma missão (conquistar a Ásia e a América Latina, por exemplo) ou destruir todos os exércitos. Cada conti­ nente tem um valor para o seu exército. De forma indicativa, a América Latina e a Atrica não somente estão divididas cm um número menor de territórios que a Europa e a América do Norte, mas também possuem um valor menor em termos de pontos.

4. Castells, Manuel. The Internet Galaxy: Reflections on the Internet, Business and Society. London; New York: Oxford University Press, 2001. p. 247.

saúda os usuários a partir do centro da tela. Acima, na tela, pode­ mos ver o título de cada filme da série. À esquerda, há urna breve explicação sobre a figura de Owen, juntamente com uma descri­ ção da série como sendo feita pelos “melhores talentos de Hollywood” A página da web está, invariavelmente, em inglés. Consequentemente, o acesso a The Hire, apesar de prometer especificidade cultural através de agrupamento regional, devido ao seu caráter digital, recorre ao inglês, a língua de trocas culturais e econômicas sempre em expansão, para anular o movimento em direção à diferenciação que a primeira página de acesso prometia. Em outras palavras, a BMW faz uma operação paradoxal de reco­ nhecimento multicultural e homogeneização global que coloca todos os usuários - de onde quer que eles sejam - no mesmo saco de língua-inglesa-como-língua-franca. Uma vez que os usuários clicam em uma das áreas selecionadas e registram-se, a fim de ver o filme (um requisito), não é mais possível voltar à tela inicial, “De onde você está acessando esta página?”. O usuário foi identi­ ficado como, digamos, africano, e a navegação/safári da internet é automaticamente redirecionada à página da web para sua apresen­ tação regional. Sob o álibi da escolha, executa-se uma prática de controle. Além disso, um olhar mais atento aos diretores da primeira temporada de The Hire problematiza a caracterização simplista da série como sendo feita pelo “melhor de Hollywood”. Por outro lado, aponta para a tentativa da BMW de apelar a uma variedade de gru­ pos demográficos de usuários com gostos diferentes para filmes os quais a empresa alemã estrategicamente associa com o mode­ lo particular de carro que cada filme exibe. A lista de diretores

inclui Ang Lee, um diretor formado pela Universidade de Nova Iorque, que conquistou o mercado global de filmes com O Ti­

gre e o Dragão; Alejandro Gonzalez Iñárritu, cujo único filme anterior a 2001 foi Amores Brutos, também um sucesso interna­ cional, que oferece uma experiência cinética pelos meandros da cidade do México, ao mesmo tempo que mobiliza a condição de hip-hop como a linguagem dominante da música popular nos anos 1990 e que tem sido comparado aos quebra-cabeças eletrizantes de Quentin Tarantino; John Frankheimer, um vete­ rano de Hollywood, cuja carreira abrange mais de 40 anos com filmes que vão desde Sob o Domínio do Mal até Jogo Dura, Guy Ritchie, uma figura-chave contemporânea do cinema britânico moderninho, que tinha dirigido dois filmes cult de sucesso co­ mercial, Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch ( Por­

cos e Diamantes) e se tornou uma celebridade bem estabelecida em razão de sua associação artística e sentimental com Madonna; finalmente, Wong Kar-Wai, um diretor autoral de Hong Kong que, até aquele ponto da sua carreira, tinha repetidamente evita­ do Hollywood desde que ganhou reconhecimento mundial na metade da década de 1990 e continuou a produzir devaneios fílmicos altamente idiossincráticos à margem do cinema comer­ cial de Hong Kong. Ao passo que Frankheimer e Lee tinham trabalhado em Hollywood por volta de 2001, os outros não tinham. De fato, am­ bos, Gonzalez Iñárritu e Ritchie, foram para Hollywood depois de fazer The Hire, e Lee mudou-se, gradativamente, do mundo independente que lançou sua carreira, em associação com o estúdio Good Machine de James Schamus, para o universo

hollyw oodiano.5 Wong, ao contrário, continua a trabalhar em Hong Kong, financiando seus filmes através da sua própria empre­ sa de produção, a Jet Tone Films, e de uma variedade de investido­ res europeus e chineses.6 Seus filmes não chegaram até as salas de cinema multiplex, permanecendo, entretanto, como pontos de re­ ferência no cinema de arte. O produtor executivo da primeira temporada de The Hire, David Fincher, afirma que o objetivo foi produzir cinco filmes in­ dependentes que poderiam ser babeados da internet ( downloadable

independent films) e mostrariam cinco modelos diferentes de car­ ros, feitos por cinco diretores diferentes para basicamente “dar às pessoas uma razão para assistir aos filmes”7. A justaposição das palavras downloadable e independent que Fincher faz situa a preo­ cupação do cinema independente dentro do alcance global de todos os acessos à internet e sinaliza o estado dos acontecimen­ tos na indústria do cinema estadunidense após a passagem de

Tempo de Violência e Sexo, m entiras e videotapes do cinema independente para o cinema comercial. Assim, em um cenário cinematográfico em que os canais de televisão IFC e Sundance

5. O estúdio Good Machine foi comprado pela Universal. Schamus e Lee, entretanto, continuaram sua parceria criativa na Universal produzindo filmes como Hulk (2003) e O Segredo de Brokeback Mountain (2005) através do estúdio Focus Features, sua subsidiária mais “artística”. 6. 2046, por exemplo, foi coproduzido por Fortissimo Film, France 3 Cinema, Shanghai Film Studies, ZDF e Arte France Cinema, entre outros. Wong depois fez seu primeiro filme em língua inglesa, Um Beijo Roubadoycujos direitos foram comprados pela companhia de produção e distribuição de filmes The Weinstein Company. 7. No making o f do DVD “The Hire. Primeira Temporada”.

se tornaram grandes franquias e as filiais independentes dos es­ túdios de Hollywood se multiplicaram, o título de filme inde­ pendente não mais se refere ao mundo experimental do centro de Nova Iorque de Jonas Mekas ou aos filmes baratos de John Cassavetes da metade da década de 1950. Como vários estudiosos observaram, a distinção entre filmes independentes e filmes hollywoodianos se tornou cada vez mais obscura, a ponto de se tornar um rótulo de marketing funcionando da mesma forma que as marcas Versace ou Channel.8A ênfase da BM W ao mostrar os melhores talentos de Hollywood como estratégia de marketing e a definição, por Fincher, dos filmes como independentes apontam, de fato, para a eterna luta entre as empresas de produção - almejan­ do produzir receita - e o talento criativo - tentando a todo custo manter intacta a liberdade criativa. Ao mesmo tempo, entretanto, marcam a confusão existente no cenário cinematográfico atual quan­ do se discute se um filme é uma produção independente ou de estúdio.9A permutabilidade desses dois termos no contexto de toda a série The Hire, portanto, não somente indica a insignificância parcial (quase total, ousa-se dizer) em se distinguir os dois termos hoje, mas, de forma mais importante, os caminhos convergentes que esses dois modos de produção tomaram nos últimos quinze anos.

8. Biskind, Peter. Down and dirty pictures. Miramax, Sundance, and the Rise of Independent Film. New York: Simon & Schuster, 2004; e Holmlund, Chris; Wyatt, Justin. Contemporary American Independent Film : from the margins to the mainstream. London; New York: Routledge, 2005. 9. Holmlund, Chris; Wyatt, Justin, idem.

Além disso, a acessibilidade de The Hire, utilizando a quase total disponibilidade por meio da internet como ferramenta-chave de marketing.; indica que essa série foi concebida como uma expe­ riência de observação on-line potencialmente onipresente em cada canto do mundo. Enquanto esse grupo de diretores multiculturais e multinacionais, com abordagens altamente diferenciadas às potencialidades expressivas e narrativas do meio cinematográfi­ co, produziu, de fato, filmes bastante distintos, a presença recor­ rente dos carros da BMW os liga como iniciativa fundamental­ mente comercial que distribui produtos finais semelhantes: o engajamento dinâmico dos espectadores na apreciação de uma variedade de viagens audiovisuais fluidas nas quais o logotipo e a estrutura da BMW prevalecem. Em outras palavras, The Hire uti­ liza a prática ubíqua no cinema contemporâneo da colocação do produto à frente de sua estrutura textual: o que mais importa, no final das contas, são os diferentes modelos de carro exibidos. Ao mesmo tempo, o estilo cinematográfico distintivo desses direto­ res e a “assinatura” conferida a cada um dos filmes resumem o trabalho que vai envolver o encontro do espectador com cada mo­ delo de carro e os estilos de vida que eles devem catalisar. Para a segunda temporada de The Hire\a BMW contratou três novos diretores para produzir filmes. Tony Scott, um queridinho da indústria com uma reputação íntegra; John Carnahan, jovem diretor, e a sensação do momento, que tinha acabado de fazer

NarCj aclamado pela crítica; e John Woo, o derradeiro diretor autoral de filme de ação de Hong Kong, com excelente reputa­ ção no mercado asiático na década de 1980 e na primeira meta­ de da década de 1990, e que se tornou um diretor de primeira

linha de Hollywood depois do sucesso global de A Outra Face e de Missão Impossível II. Cada um se saiu como o esperado. O filme de Woo, The Hostage\por exemplo, parece ser uma compi­ lação de todos os seus excessos pirotécnicos emocionantes de ve­ locidade múltipla. Após os oito episódios da série The H ire estarem comple­ tos, os carros da BMW foram reimaginados áudio, visual e narra­ tivamente por oito diretores com conhecimentos artísticos e cul­ turais extremamente diversos. O comprador potencial da BMW tinha oito mundos diferentes para fazer sua escolha, oito tipos diferentes de carros para comprar. De forma ideal para a empresa alemã, todos os tipos de usuários podiam passar os olhos por suas coleções e encontrar seu nicho ideal - cada carro embrulhado nos valores de alta produção e nos códigos cinematográficos e cultu­ rais do filme que o exibia. Conseguimos identificar cada filme destes da BMW como estadunidense, alemão, taiwanês ou mexicano? Talvez taiwanês-americano ou chinês-argentino? Todos eles são de fato filmes multiculturais e transnacionais em termos de produção, estética, talento e temas. O conhecimento sociocultural distinto de cada diretor mobiliza um dominante cultural específico - quer dizer, o uso de música argen­ tina na peça de Wong sinalizando seu gosto por música latina - , mas seu projeto total está, sem dúvida, imbuído de uma série de processos transculturais que não podem ser identificados com precisão ao associar qualquer de seus filmes às tradições cinema­ tográficas particulares e aos discursos culturais gerados dentro dos limites de uma única fronteira geopolítica. O que nos diz essa circulação migratória de talento no cenário cinematográfico con-

temporáneo, que a série da BMW tão salientemente resume, sobre as formas pelas quais a estética cinematográfica e os diretores cir­ culam hoje em torno das diversas indústrias de filme no mundo? Como podemos entender suas práticas respectivas de direção como tendo um apelo global além de sua especificidade cultural e nacional? As discussões contemporâneas sobre o conceito de cinema nacional estão invariavelmente ligadas ao conflito entre a promo­ ção e a proteção de práticas locais que personificam a especificidade cultural de uma nação e a realidade ostensiva de um mercado con­ sumidor que favorece a gigantesca Hollywood no mundo todo. A defesa feroz dos países europeus ocidentais (liderados pela Fran­ ça) para excluir setores audiovisuais do tratado de GATT ( General

Agreement on Tariffs and Trade, Acordo Geral sobre Tarifas e Co­ mércio), em 1993, e a briga dos Estados Unidos por sua inclusão revelam não somente o entendimento diferenciado de cinema como cultura ou comércio respectivamente, mas também o papel central dos Estados-nações na era atual e sua mudança de posicionamento estratégico como estruturas operantes que são, ao mesmo tempo, inclusivas e exclusivas.10Se admitirmos a queda do bloco soviéti­ co, a liberalização do mercado na China, a compreensão madura da União Europeia como um estado supranacional efetivamente operante, a posse multinacional cada vez maior das empresas cine­ matográficas e a expansão das redes eletrônicas com a consequente

10. Miller, Toby et al. Global Hollywood. London: BFI, 2001. p. 36.

multiplicação dos canais através dos quais produtos de mídia são distribuídos, exibidos e consumidos, devemos reconhecer uma expansão desterritorializada do mercado cinematográfico em di­ reções múltiplas que favorecem aqueles com mais recursos eco­ nômicos e tecnológicos para divulgar seus produtos. Além disso, se aceitarmos que as “zonas de contato” entre culturas diferentes têm aumentado dramaticamente nas últimas duas décadas e que, como consequência, culturas diferentes foram expostas a uma gama maior de práticas estéticas e ideológicas, fixar uma teorização do cine­ ma através de paradigmas territoriais - tais como, o conceito de ci­ nema nacional - parece ultrapassado, senão, enganoso. Como, então, o cinema engaja essas práticas neste contexto multitecnológico, multicultural, ímpar e polimático da atualidade que foi rotulada de era global? Como pode o microcosmo distinto que um conjunto diverso de filmes oferece ao espectador permitir ao pensador social e cultural distanciar-se das especificidades dos diferentes ambientes que elas abordam diretamente e da macropolítica do global? Pri­ meiramente, parece que, em um mundo de entrelaçamentos inten­ sificados entre discursos de mídia que atravessam fronteiras nacio­ nais, a compreensão do modo cinemático como operante de modo transnacional nos daria, de fato, um modus operandi frutífero para atacar esse empreendimento. Entretanto, o que significa exatamen­ te adotar uma abordagem transnacional para o cinema contempo­ râneo? O cinema nao é, desde seu início, uma prática transnacional na qual artistas, artesaos, modelos econômicos, redes de distribuição e exibição e agentes culturais têm costumeiramente cruzado frontei­ ras e interagido uns com os outros e, dessa forma, moldado então a história do cinema como um processo contínuo de transfertilização

transterritorial? Mesmo se admitirmos que agora o grau dessas tro­ cas tem feito sucesso repentino a partir de ambos os pontos de vista econômico e estético nas últimas duas décadas, não deveríamos tam­ bém realçar que o funcionamento dessas novas “comunidades imaginadas” é, ao mesmo tempo, codependente das configurações específicas de formas locais de produção cultural entre os parti­ cipantes de cada uma dessas comunidades? Não há tendências es­ pecíficas que configuram a interação entre o cinemático e o social em um estilo transnacional que mantém um status privilegiado? O primeiro passo para propriamente teorizar sobre a utilidade de uma abordagem “transnacional” para o cinema é identificar a lógica dominante que hoje estrutura a produção, a circulação, a exibição e a recepção do filme. Para realizar esse objetivo, necessitamos iden­ tificar as diferentes faces dessa estrutura transnacional.

Uma abordagem transnacional para o cinema: a economia, a estética e o social Sem negligenciar a especificidade cultural, um entendimento transnacional de criação de filmes explora os mecanismos através dos quais os fluxos culturais e ideológicos interagem uns com os outros além das fronteiras territoriais e analisa textos cinemáticos diferen­ tes de forma dialógica e desterritoríalizada. Embora enfatize a troca e a diversidade em vez da unidade e da homogeneidade, essa es­ trutura reconhece o papel dos diferentes Estados-nações em fi­ nanciar ou capacitar práticas de criação cinematográfica. Como Elizabeth Ezra e Tom Rowden declaram,

[...] o cinema apresenta fronteiras em graus variados, sujeitas à mesma mobilidade das pessoas... Em termos gerais, a mobilida­ de do cinema, assim como a mobilidade humana, é determinada por fatores geopolíticos e pela estirpe financeira.11

Além disso, certas estéticas e certas abordagens transitam mais facilmente que outros através das fronteiras. Uma das principais per­ guntas que os estudiosos deveriam tentar responder é que estilos de cinema, desde a narrativa, a pontos de vista audiovisuais e gerais, possuem apreciação global e quais não, e qual é a relação entre as redes de circulação que possibilitam essa distribuição (ou falta) de bens cinemáticos no mundo inteiro, os pontos de vista críticos con­ trários que esse conjunto diverso de filmes oferece na era geopolítica atual e as idiossincrasias de suas estruturas estéticas rivais. O conhecimento sobre cinema tem promovido, tradicional­ mente, o estabelecimento de critérios distintos, a fim de organizar seu campo heterogêneo de estudo em estruturas de cinema nacionais facilmente distinguíveis. A maior parte dos livros e artigos sobre o cinema ainda privilegia uma série de textos e autores canônicos, con­ figurações gerais ou movimentos artísticos gerais, criando uma his­ tória e uma teoria teleológica de criação cinematográfica que negli­ gencia o caráter polifónico, não coesivo e indeterminado da criação artística - por exemplo, estabelecendo uma série de critérios para de-

11.Ezra, Elizabeth; Rowden,Terry. General Introduction: what is transnational cinema. .... TransnationalCincmx the film reader. London; New York: Routledge, In: 2006. p. 5.

terminar as características de um movimento de cinema nacional, por exemplo, “Cinema Novo Alemão” - , e fazendo leituras sintomá­ ticas de um texto cinemático para fixar seus múltiplos significados em urna taxonomía de filmes aceita que pertence ao movimento do filme em questão. O projeto do cinema transnacional rejeita total­ mente essas zonas de conforto e procura desemaranhar as maneiras não programáticas através das quais a criação cinematográfica con­ temporânea opera. Primeiramente, ele está aberto para identificar no­ vos modos nos quais diretores de diferentes regiões do mundo po­ dem estabelecer vetores de interação entre eles quando se trata de estética e como estas escolhas estilísticas são informadas pelo amplo cenário sociocultural e econômico no qual os filmes são produzidos e consumidos. Em segundo lugar, avalia os canais que possibilitam a interação transterritorial entre filmes. Em outras palavras, avalia que filmes fazem sucesso e quais não fazem nas redes globais de circula­ ção e a razão disso - por exemplo, qual é a relação entre Cães de Alu­

guel e os filmes de ação de Hong Kong em termos estéticos e qual é o papel da influência de Tarantino/Miramax na distribuição dos filmes asiáticos estrangeiros no mercado dos Estados Unidos após o sucesso econômico e de crítica de Tempo de Violência? Terceiro, trata da relação entre a presença crescente dos filmes de Hollywood no mun­ do todo e a expansão das redes de comunicação e informação na era global. Ainda, ao mesmo tempo, ele se recusa a reduzir as inúmeras decisões que são feitas diariamente nos estúdios de Hollywood a um todo monolítico. Deve-se, então, evitar avaliações generalizantes quan­ do nos referimos a esse tipo de intervenção cultural, estética e econô­ mica no cenário mundial cinematográfico. O que se pode fazer, por outro lado, é identificar a lógica dominante que está em jogo no cine­

ma hollywoodiano contemporâneo e analisá-la em relação a outras formas de produção, abordagens estéticas aos modelos cinemáticos e econômicos que coabitam o espaço entre o social e o cinemático na era contemporânea. A circulação diversificada de talento cinematográfico atra­ vés de territórios nacionais define um dos processos através dos quais os estúdios de Hollywood incorporam diretores bem-sucedidos de algum lugar ao seu mecanismo ideológico, econômico e estético dominante, na tentativa de ampliar o escopo de seus pro­ dutos e, simultaneamente, enfraquecer a possibilidade de uma in­ dústria nacional adversária feita de filmes produzidos no exterior. Essa “lavagem cerebral” não é necessariamente um produto do de­ senvolvimento das tecnologias de informação e de entretenimento nas últimas duas décadas. De fato, inúmeros diretores estrangeiros migraram para Hollywood desde o cinema mudo, passando por todo o século XX e durante o início do século XXI. Nesse sentido, as con­ junturas de história têm, de fato, um papel-chave nos processos migratórios - ou seja, a ascensão do partido nazista na Alema­ nha está diretamente relacionada à emigração de vários diretores para Hollywood no final da década de 1920 e durante a de 1930 - , mas seria errôneo simplesmente afirmar que a história social e política determina completamente as operações artísticas e eco­ nômicas em funcionamento em um período particular do cine­ ma. Há uma série de variáveis - o próprio desejo do diretor em explorar diferentes projetos de cinema, as mudanças na legislação cultural de um determinado território geopolítico, o funciona­ mento de redes independentes de distribuição de film es, a especificidade de mídia através da qual objetos fílmicos circulam

etc. - que definem as coordenadas exatas dessas práticas migra­ tórias. Além disso, estaríamos errados se não reconhecêssemos que, desde os estágios iniciais de expansão do cinema como forma de entretenimento de massa, o talento e a estética cinematográficos atravessaram fronteiras como resultado de fatores tanto artísticos quanto econômicos - ou seja, no período do cinema mudo, os estúdios de Hollywood e a UFA (Universum-Film AF) tentaram se expandir mundo afora e competiram entre si, a fim de obter o controle de outros mercados estrangeiros e de redes de distribui­ ção e exibição do concorrente. Portanto, não há necessariamente uma relação de causa/efeito direta entre as redes de expansão glo­ bal de comunicação e informação e o entendimento de criação cinematográfica como uma prática transnacional. Contudo, é cer­ to que recentemente testemunhamos uma internacionalização crescente de produção, distribuição, exibição e consumo de fil­ mes, uma situação que requer um construto teórico mais amplo para abordar a criação do cinema contemporâneo, que esteja em sintonia com as formas radicalmente novas de produção - por exemplo, o estabelecimento do vídeo digital como alternativa de baixo custo em relação aos filmes de 35 mm - e recepção por exemplo, a possibilidade de ver filmes na internet - facilita­ das pela expansão das redes de comunicação e informação no mundo todo. Além disso, o domínio global de Hollywood so­ bre o mercado aumentou dramaticamente, favorecido pela li­ beração de capital, pelo desenvolvimento tecnológico das in­ dústrias de mídia - VCRs, DVDs, televisão a cabo - , pela privatização das estações de televisão, antes operadas pelo esta­ do, e pelo colapso histórico dos modelos econômicos e sociais

concorrentes.12Ainda, os filmes são somente um dos muitos pas­ sos da cadeia de mercadorias na qual a mídia audiovisual atua no campo cultural. Os lançamentos comerciais são fundamentalmente um trampolim para outras “janelas de mercado” que se abrem tão logo uma casa de cinema fecha. Como Charles Acland observa: A centralidade crescente da migração intermidiática de textos [... ] indica que a significância cultural e financeira total de qual­ quer trabalho pode som ente ser medida através de suas encarnações midiáticas. Os assim chamados desastres de bilhete­ ria podem bem ganhar força posteriormente, quando aparecem no DVD, em vídeo e na televisão, ou quando se movem para outros mercados.13

Portanto, se desejarmos compreender totalmente como os pro­ cessos de troca funcionam dentro do campo cinemático, temos de enfatizar tanto a dinâmica transterritorial quanto a transmidiática que o impulsionam, enquanto detectamos que formas de narrati­ va audiovisual conseguiram solidificar seu status dom inante fun­ cionando dentro desses entrecruzamentos contínuos, e frequente­ mente imprevisíveis, de cinema e discursos socioculturais.

12. Balio, Tino. ‘A Major Presence in AU the W orld’s Im portant M arkets’: The Globalization ot Hollywood in the 1990’s. In: Turner, Graeme (E d .). The Film

Cultures Render. London: Routledge, 2002; Miller, Toby et al. Global Hollywood. London: BFI, 2001; Rosen, Staley. Hollywood, Globalization and Film Markets in Asia: Lessons For China? Não publicado. 13. Acland, Charles R. Screen Traffic. Movies, Multiplexes, and Global Culture. Durham: Duke University Press, 2003. p. 24-25.

Além disso, chamar Hollywood de estadunidense é enganoso, já que a década de 1990 marcou a era de fusões corporativas e o estabelecimento de conglomerados multinacionais. Como Janet Staiger declara: “Quem tentasse imaginar a que ‘nação’ ‘pertence’ um grande conglomerado de cinema, estaria tentando o impossí­ vel - e o desnecessário?14Hollywood, então, está constantemente negociando a dinâmica do mercado e readaptando seus produtos às demandas dos consumidores. Por exemplo, após o estúdio Vertigo Entertainement ter entrado em acordo para refazer o fil­ me de terror japonês Ringu ( O Chamado) com a empresa de pro­ dução original e o estúdio DreamWorks, com base nos Estados Unidos, com incrível sucesso em 2003, Hollywood se interessou na refilmagem tanto dos bem-aclamados filmes de terror asiáticos (Água

Negra, O Grito, Pulse, O Hospedeiro) quanto dos clássicos de ter­ ror estadunidenses ( Despertar dos Mortos, O Massacre da Serra

Elétrica, The Hitchhiker - O Caroneiro, O Sacrifício) e a produção de prequels (histórias anteriores) há muito esquecidas (OExorcista:

O Início O Massacre da Serra Elétrica: O Início). 15 Embora esse ,

ciclo de refilmagem de filmes de terror da Ásia Oriental dentro de Hollywood esteja fadado a desaparecer mais cedo ou mais tarde e a ser substituído por outra tendência “quente”, ele claramente sinaliza

14. Staiger, Janet. A Neo-Marxist Approach: World Film Trade and Global Culture Flows. In: Williams, Alan (Ed.). Film and Nationalism. New Brunswick; New Jersey: Rutgers University Press, 2002. p. 234. 15. Roy Lee, cofundador do estúdio Vertigo Entertainment, é talvez a figura-chave na refilmagem de filmes asiáticos em Hollywood. É notável que seu trabalho não está limitado a filmes de terror, já que, recentemente, foi produtor executivo do ganha­ dor do Oscar Os Infiltrados, uma refilmagem de Confiitos Internos, de Andrew Lau.

as maneiras pelas quais a transfertilização estética e econômica entre filmes, oriundos de diferentes nações, funciona de um modo transnacional. Hollywood não somente atrai talentos de todo o mundo como estratégia para enfraquecer outros “cinemas nacio­ nais”, mas tam bém incorpora a estética de outras tradições cinemáticas - incluindo aquelas do cinema de arte, de filmes expe­ rimentais e de outras indústrias comerciais nacionais - na conti­ nuidade orientada para seu objetivo e em narrativas baseadas em ação/espetáculo/romance em uma tentativa de capturar a maior fatia de mercado possível. Em outras palavras, Hollywood funcio­ na com um processo de “diferenciação planejada”, atingindo com cada filme não somente o mercado doméstico, mas também o global, e determinados grupos étnicos, etários ou nacionais. Con­ forme Richard Maltby reconhece, na era contemporânea [...] as maiores companhias, agindo principalmente como pro­ dutoras e distribuidoras, gradualmente chegaram a um acordo sobre a fragmentação da audiência, uma preocupação com ideias demográficas e públicos-alvo derivados de pesquisa de mercado, mercados globalizados e novos sistemas de distribuição16. Isso significa, como Jonathan Rosenbaum declarou, que o ci­ nema estadunidense não mais existe, é, na atualidade, um produto multinacional que preserva seu nome estadunidense original como um rótulo comercial para vender “o pacote”; ou que, como Sydney

16. Maltby, Richard.‘Nobody knows everything’: Post-classical historiographies and consolidated entertainment. In: Neale, Stephen; Smith, Murray ( Eds.). Contemporary Hollywood Cinema. London; New York: Routledge, 1998. p. 23.

Pollack objetivamente declara, Hollywood está simplesmente “fazendo um tipo de filme europeu homogeneizado, produzido novamente para algum tipo de público que não precisa ter cultura para entendê-lo”17. O caráter multinacional de Hollywood, no que se refere a talento, local de produção, posse e investimento, é inegá­ vel; entretanto, negar que, dentro de suas formações narrativas, uma série de valores é privilegiada - por exemplo, a capacidade do herói individual para resolver conflitos, heteronomia tividade etc. - e que esses valores estão frequentemente relacionados à reafirmação pa­ triótica da identidade nacional da América seria totalmente equivo­ cado. Ao unir estes princípios fundamentais com os mitos e tropos de base da identidade construída nos Estados Unidos como uma nação, Hollywood parece, aos nossos olhos, incorporar uma série de padrões nacionais-transformados-em-universais que devem de­ finir aquela categoria escorregadia frequentemente designada como “condição humana”.18 Assim estruturado, o conceito de cinema nacional contra o domínio de Hollywood corre o risco de “reduzir a ideia de um cinema nacional à economia de escala e, portanto, a um conceito de valor, a saber, bem-estar econômico”19. Ele também ignora a rica troca cinemática, transnacional, que está ocorrendo hoje em paralelo com a dominação de Hollywood sobre o mercado cine­ matográfico global. Pois aqueles indivíduos que são privilegiados

17. Allen, Michael. Contemporary US Cinema. London: Pearson Education, 2003. p. 71. 18. Jameson, Fredric. Notes on Globalization as a Philosophical Issue. In: Jameson, Fredric; Miyoshi, Masao (Eds.). The Cultures o f Globalization. Durham; London: Duke University Press, 1998. 19. Hayward, Susan. French National Cinema. London: Routledge, 1993. p. 91.

suficientemente para serem fisgados em direção ao ámbito transnacional de fluxos globais podem, de fato, ter acesso a uma quantidade de quase infinita de produtos audiovisuais que mol­ dam suas práticas sociais e imaginações em um modo multicultural e modelam suas intervenções cinemáticas para contrarrepresentar os modelos dominantes em funcionamento nos mercados globais de filmes. Além disso, os diretores não são mais necessariamente o produto da instrumentalização, nem de talentos dos estúdios, nem do circuito de filmes artísticos; eles são os viciados em loja de vídeo, em televisão a cabo, ou os diretores de comerciais de televisão e de vídeo musical, ou um grupo de adolescentes que tem uma câmera e fazem sucesso com uma brilhante ideia que, repentinamente, se torna um evento midiático badalado na web. Em outras palavras, a troca estética e a influência não são mais moldadas notadamente nos cantos escuros de um cinema, mas no cenário transmidiático da expansão comunicativa e do desenvolvimento tecnológico. Além disso, esses processos de troca não ocorrem somente como uma prática de cooptação, fortificando o monstro Hollywood e enfraquecendo as indústrias de cinema nacionais menos poderosas. O padrão reverso tem definido de forma significativa as formas pelas quais os direto­ res trabalham fora das fronteiras econômicas, de distribuição e de exibição hollywoodianas têm planejado competir com Hollywood recentemente. Ou seja, esses produtores frequentemente tentam se apropriar das configurações gerais e narrativas dos sucessos de Hollywood pelo mundo afora, a fim de conquistar uma fatia de seu mercado doméstico e, ocasionalmente, um pedaço do bolo inter­ nacional. Enquanto refletem sobre as especificidades nacionais das formações sociopolíticas e culturais de seus próprios países - , por

exemplo, Shirina. Coreia do Sul; Tesis na Espanha; Am elien a Fran­ ça - eles também “hollywoodizam” seus filmes de várias maneiras, apelando para o status privilegiado do gênero de filme estadunidense nas telas do cinema e da televisão de suas respectivas nações. Consequentemente, embora Ezra e Rowden possam estar um pouco certos ao afirmar que Hollywood, como condutor padrão do cinema popular no siste­ ma mundial, até agora se mostrou capaz de cooptar as forças de hibridismo e diferença de forma efetiva o suficiente para evitar o desarranjo ou a perda significativa de hegemonia global20.

Devemos sempre lembrar que a trajetória oposta de cooptação é também completamente operante nos mercados de cinema glo­ bais. Mais ainda, a apropriação dos filmes de Hollywood por outras indústrias nacionais é realmente uma das maneiras básicas através das quais as indústrias de filme nacionais têm conseguido se man­ ter em circulação historicamente e, com frequência, expandir o al­ cance de seus produtos. As refilmagens de Bollywood dos filmes de Hollywood ( Clube da Luta, Ghajani\Sarkaretc.), por exemplo, neu­ tralizam a americanidade cultural da obra que refilmam e adap­ tam-na às idiossincrasias culturais, aos lugares-comuns genéricos e à narrativa característica do cinema indiano comercial, para apelar ao gosto e ao conhecimento de seu público-alvo principal, o qual não está limitado ao mercado nacional, mas também ao do Oriente

20. Ezra, Elizabeth; Rowden, Terry. General Introduction: what is transnational cinema. In:______ . Transnational Cinema: the film reader. London; New York: Routledge, 2 0 0 6 . p.

11.

Médio, da Ásia Oriental e às comunidades da diáspora do Sul da Ásia espalhadas pelo mundo. Uma abordagem transnacional ao cinema deve, então, deixar claros os vários modos ideológicos através dos quais Hollywood e outras tradições cinemáticas e modos de pro­ dução interagem uns com os outros e reconhecem suas implicações na recepção, relacionadas a um conjunto maior ou menor de esco­ lhas que os espectadores têm em espaços geopolíticos diferentes. Por essa razão, esse projeto rejeita estruturas antagonistas infrutífe­ ras - tais como, “Hollywood versus outros cinemas nacionais” - e objetiva analisar os múltiplos caminhos em que ocorrem as trocas cinemáticas, mediadas ou sob o radar de Hollywood. Uma abordagem transnacional para o cinema não necessaria­ mente segue um modelo crítico que tenta simplesmente identificar o transnacional dentro de um campo nacional específico delimitado por fronteiras territoriais. Mesmo que estudiosos tenham realmente produzido esforços notáveis acompanhando essa abordagem, ao se­ guir a dimensão transnacional intrínseca do conceito de cinema na­ cional em termos tanto econômicos quanto estéticos, a estrutura que proponho enfatiza, em vez disso, o caráter relacional do cinemático e sua capacidade de criar pontes representacionais, ideológicas e sociais entre diferentes formações socioculturais, entre nações. Este

modus operandi crítico toma como seu ponto de partida o reconhe­ cimento de que o cinemático nacional é uma categoria flutuante que continuamente circula em uma variedade de campos transterritoriais culturais, sujeitos a redefinições à medida que forças sociais, ideoló­ gicas e econômicas concorrentes tentam reconfigurá-lo, seguindo pautas distintas. Esse caminho, no meu ponto de vista, dita a ma­ neira mais abrangente de abordar o entrelaçamento intensificado do cinemático no cenário geopolítico contemporâneo.

Paisagens transculturais Denilson Lopes

O debate sobre globalização e multiculturalismo tem aberto diversas possibilidades a partir de termos como pós-colonialismo, subalternidade, fronteiras, hibridismo, império etc. Nossa proposta se insere na busca de alternativas à nação como categoria de análise da cultura sem aderir à celebração puramente mercadológica e tecnocrática de uma globalização anódina. Ao criticar a nação como um sistema ou unidade, várias posições tentaram complexificá-la, considerando-a uma narrativa (Bhabha, 1998) que suscita con­ tranarrativas para melhor compreender seus processos de inclusão e exclusão, ou totalidade contraditória e fragmentada (Cornejo Polar, 2000) a partir do conceito de heterogeneidade. Essas posições, entre outras, sem dúvida, avançaram a discussão de forma sensata, mas, por vezes, é mais frutífero ser insensato, se quisermos ir mais longe. Em vez de resgatar ou reler a nação, argumentarei em favor do termo “paisagem transcultural”. Para a delimitação do que seriam paisagens transculturais, além do diálogo preferencial que faremos com Arjun Appadurai e Nestor Garcia Canclini, seria importante lembrar que o campo

semântico desse termo tem uma genealogia latino-americana que remonta a temas recorrentes como os da mestiçagem e do sincretismo. Nossa proposta pode ser compreendida como um adensamento, mas também uma descontinuidade em relação a esses debates com larga tradição, respectivamente e sobretudo nas questões raciais e religiosas. O termo transculturação em si também não é novo, remete a Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar; trabalho clássico de Fernando Ortiz (1940), retomado para uma análise li­ terária, embora seu alcance não se restrinja a ela, por Angel Rama em Transculturación narrativa em América Latina (1982), mas, so­ bretudo, se articula com a noção de entrelugar desenvolvida por Silviano Santiago e recuperada por Mary Louise Pratt na expres­ são zona de contato. Se desde a década de 1960 a categoría do entrelugar tem sido explorada por Silviano, tanto em seus ensaios quanto em sua ficção, como uma forma de redefinir a nação para além da exclusividade ou centralidade da classe social, incluindo as experiências negra, índia e gay, para o nosso objetivo, o entrelugar é fundamental para pensarmos um projeto transnacional a partir do Brasil. O silenciamento sobre o negro e o índio no plano nacional encontra equivalentes internacionais em um voltar as costas eurocêntrico em relação à América Hispânica e à África. Esta perspectiva nos abre a porta para pensar a relação mais ainda silenciada entre América La­ tina e Extremo Oriente, sem desconhecer uma triangulação com as culturas europeias e norte-americanas, mas posicionando-as num diálogo de trânsitos múltiplos e multidirecional. O entrelugar, portanto, não é apenas “rompimento conceituai com o primado da origem”, sem levar em consideração “relações

de subordinação efetiva”, dentro de uma “crítica de caráter filosó­ fico abstrato”, para usar as palavras de Roberto Schwarz em “Nacio­ nal por subtração”, publicado em Que horas são (1987). O que está em pauta, como afirma Eneida Leal Cunha em “Leituras da dependência cultural” (1997, p. 132), é a diferença entre a matriz marxista da crítica de Schwarz e a matriz nietzschiana e o pensa­ mento da diferença que marca o olhar de Silviano Santiago. O entrelugar não é uma abstração, um não lugar, mas uma outra cons­ trução de territórios e formas de pertencimento, não simplesmente “uma inversão de posições” no quadro internacional, mas um questionamento desta hierarquia a partir da antropofagia cultu­ ral, da traição da memória e da noção de corte radical (Santiago, 1982, p. 19-20), embasadas teoricamente no simulacro e na dife­ rença, a fim de propor uma outra forma de pensar o social e o histórico, diferente das críticas marcadas por uma filosofia da re­ presentação. O

entrelugar é uma estratégia de resistência que incorpora o

global e o local, que busca solidariedades transnacionais por meio do comparativismo para apreender nosso hibridismo (Santiago, 1982, p. 19), fruto de quebras de fronteiras culturais. A aposta de Silviano acontece no sentido de um multiculturalismo crítico e não apenas de inclusão numa sociedade de consumo. Nesse senti­ do, o entrelugar não encena apenas o privilégio social de ricos e intelectuais, mas as migrações e as diásporas de massas de traba­ lhadores, enfatizadas em O cosmopolitismo do pobre (2004) e As

raízes e os labirintos da América Latina (2006b). Ao pensarmos, portanto, em paisagens transculturais, não mais nos colocamos no espaço engajado do terceiro-mundismo,

mas procuramos transversalidades que atravessem diferentes paí­ ses e culturas, sem ignorar as desigualdades nas relações de poder. Buscamos responder ao contexto desenvolvido a partir da década de 1970, e com mais força a partir da década de 1990, quando cida­ des globais são construídas e podemos ver o Primeiro Mundo no Terceiro, assim como o Terceiro Mundo no Primeiro, compondo um quadro não em continuação ao imperialismo europeu do sé­ culo XIX, mas, sobretudo, nos moldes do império, como descrito por Toni Negri e Michael Hardt. Nosso desafio está em ir além não só de marcas nacionais, mas das configurações continentais. Apesar do interesse e da ren­ tabilidade que o conceito de diáspora tem trazido a este debate, fundamentado pelo trânsito massivo de trabalhadores, normal­ mente o encenado é um drama intercultural. O risco seria uma constante referência a uma origem cada vez mais remota, na me­ dida em que as gerações se sucedem e são relocalizadas (como no caso da cultura “latina” nos EUA). É importante resgatar que mesmo a interculturalidade se produz mais através dos meios de comunicação de massa do que por movimentos migratórios, para retomarmos uma provocação feita por Canclini (2000, p. 79), mas à qual não se deu a atenção devida, sem esquecer que as diásporas e as interculturalidades midiáticas são complementares (Appadurai, 1996, p. 4). No entanto, são as migrações midiáticas que explicitam mais a perda de uma origem, na delimitação das paisagens transculturais, multiplicando as mediações e leituras, numa história, às vezes, difícil de perceber, e criando frutos, por vezes, inesperados. A paisagem se transformou em rica categoria, como defen­ de Arjun Appadurai, para compreendermos as disjunções entre economia, cultura e política na contemporaneidade a partir de paisa-

gens étnicas ( ethnoscapes), midiáticas ( inediascapes), tecnológicas ( technoscapes), financeiras ( financescapes) e ideológicas ( ideoscapes). Essas paisagens não são [...] relações objetivamente dadas que têm a mesma aparência a partir de cada ângulo de visão, mas, antes, são interpretações profundamente perspectivas, modeladas pelo posicionamento histórico, lingüístico e político das diferentes espécies de agentes. (Appadurai, 1999, p. 312). Essas paisagens são “formas fluidas e irregulares” (Appadurai, 1999, p. 313), ao contrário de comunidades idealizadas, são luga­ res onde se vive (Appadurai, 1999), ainda que não sejam lugares necessariamente geográficos. Não se trata de negar as relações tra­ dicionais de proximidade, vizinhança e localidade, mas pensar a nossa sociabilidade como também constituída por “comunida­ des de sentimento transnacional” (Appadurai, 1996, p. 8). A esta perspectiva culturalista pretendemos somar a tradição da história da arte, para conceber a paisagem não só como espaço de relações sociais, mas como imagem, “artifício”, até “construção retórica” (Cauquelin, 1989, p. 2 0 ,2 2 , 2 7 ,3 0 ). Unindo essas duas perspectivas originárias da história da arte e dos Estudos Culturais, retomo o desafio que Appadurai lança no início de M odernity at large (1996), sem que ele mesmo consi­ ga, contudo, desenvolvê-lo a contento. Nosso objetivo aqui seria procurar tornar mais rentável sua proposta, não só para etnografias, mas na análise de produtos culturais e obras artísticas. Atrás da pro­ posta de uma paisagem transcultural está uma compreensão, cada vez mais recorrente, tanto de que “a globalização não é só a histó­ ria da homogeneização cultural” (Cauquelin, 1989, p. 11) reduzida

a uma hegemonia estadunidense, quanto de que não se trata de aderir a uma fuga em localismos isolacionistas. Ao evitar dualismos, o culturalismo aqui defendido é a mobilização consciente de diferenças culturais a serviço de uma política transnacional mais ampla. Essas paisagens transculturais que estamos procurando delinear são entrelugares. Seu mapeamento radicaliza as propostas sobre o hibridismo - processos socioculturais de intersecção e transação constituidoras de interculturalidades - , evitando que o multiculturalismo se torne um processo de segre­ gação (Canclini, 2001, p. 14, 20), ou, como prefiro, afirma uma cultura pop transnacional para além das oposições entre tradi­ cional e moderno, quebrando as distinções e hierarquias entre o culto, o popular e o massivo (Canclini, 1997, p. 283), e que constitui “translocalidades” (Appadurai, 1996, p. 192) pelos fluxos midiáticos. Ao redimensionar o próximo e o distante, criamos uma moldura para diferenças não necessariamente decorrentes de especificidades nacionais1, opondo-se “a qualquer discurso essencialista de iden­ tidade, autenticidade e pureza culturais” (Canclini, 2001, p. 16). Não se trata de mitificar o mercado, mas de compreendê-lo como parte indissociável não só das condições de produção e circulação de bens culturais, mas como parte de nossa vida cotidiana, de nos­ sos afetos e memórias, também como dado estético fundamental e com importantes consequências teórico-metodológicas.

1. Alberto Moreiras (2001) questiona se os Estudos Culturais podem desenvolver um estilo de pensamento que não esteja mais associado com postulados estético-historicistas destinados à construção e ao fortalecimento do estado nacional-popular. Aposto nessa possibilidade neste artigo.

É importante frisar que esta proposta se insere num quadro mais amplo de uma estética da comunicação que temos desenvol­ vido nos últimos anos. Não se trata aqui de resumir esse debate, mas apenas de lembrar que, apesar de considerarmos os filmes como materialidades e não como linguagens específicas, apontamos um diálogo importante a ser desenvolvido com a área de estudos do cinema. Embora haja grande quantidade de análises fílmicas que exploram temas correlatos à inter e à transculturalidade, tive dificul­ dades em encontrar trabalhos que fossem contribuições conceituais. Destaco quatro livros que discutem essa questão a partir do cinema e que têm sido estímulos im portantes para o meu trabalho:

Unthinking eurocen trism, de Robert Stam e Ella Shohat (1994), The skin o f the film , de Laura Marks (2000), An accented cinema>de Hamid Naficy (2001), e Terras e fronteiras, de Andréa França (2003). Antes de dialogar com esses autores, há um ponto de partida neste recorte que gostaria de compartilhar. Trata-se de uma impres­ são de que a crítica cinematográfica brasileira, na universidade, tem se concentrado, majoritariamente, em estudar o cinema brasileiro, ainda que não lhe falte conhecimento atualizado da produção in­ ternacional. Nos poucos estudos feitos entre nós sobre filmes não brasileiros, como também nos estudos feitos sobre o cinema bra­ sileiro, o crítico não problematiza seu lugar de fala, sua condição periférica, colocando-se no espaço puro da teoria mesclado com uma cinefilia voraz. Num país ainda muito carente de boas bibliotecas, cinematecas e arquivos públicos atualizados para realizar pesquisas de grande i

envergadura para além dos horizontes nacionais, o crítico brasileiro,

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quando faz pesquisas de maior fôlego fora de um foco no cinema

brasileiro, ainda centra-se na produção estadunidense e na da Europa Ocidental, não levando em consideração as cinematografias africana, asiática2e até mesmo de outros países latino-americanos. O nacional pode ser aquilo que nos fala mais, mas também pode ser uma armadilha, uma forma de silenciamento, sobretudo ao sermos convidados, quando somos convidados, para eventos fora do Brasil para falar sobre um cinema menor no cenário interna­ cional e em grande parte desconhecido, forma de não questio­ nar nem teórica nem analiticam ente os debates dos centros hegemônicos do saber, colocando-nos como servis comentadores, divulgadores e epígonos. Enquanto aos críticos dos países cen­ trais é franqueado o mundo, nosso trabalho interessaria só à medida que representássemos e falássemos sobre nossa cultura nacional, como espaço concedido de fala para poucos ouvirem, migalhas a que alguns se atiram avidamente. Como nos provoca Mitsushiro Yoshimoto, em “The difficult of being radical: the dis­ cipline of film studies and the postcolonial world order”, publicado em Boundary 2, [...] nós precisamos cuidadosamente reexaminar se, por nos engajarmos nos estudos de cinemas nacionais, não estamos me­ canicamente reproduzindo em vez de analisando o quadro ideo­ lógico pós-colonial construído pelas nações pós-industrias oci­ dentais. (Yoshimoto, 1991, p. 257).

2. Neste caso, para uma perspectiva dialógica relativa ao cinema contemporâneo, interessei-me em particular por Caminhos de K iarostam ide Jean-Claude Bernardet (2004), e pelo artigo “Towards a positive definition of world cinema”, de Lúcia Nagib (2006).

Por outro lado, para constituirmos consistentemente uma crí­ tica transcultural, em vez de querermos ser reconhecidos no campo da teoría ou como especialistas em pé de igualdade com os estudi­ osos nativos de outras cinematografias, a estratégia comparatista pode ser mais rica e eficiente, sempre levando em consideração a afirmação de George Yudice, em “We are not the world”, publicado na Social Text>de que [...] ao selecionarmos qualquer texto para representações cultu­ rais deve-se estar atento às redes de disseminação que tornaram aquele texto disponível. Depois de tudo que foi dito, não deve­ mos tratar os textos como se eles estivessem inocentemente lá, prontos para serem apanhados. (Yudice, 1992, p. 212).

Nesse sentido, a leitura de Unthinking eurocentrism >de Robert Stam e Ella Shohat (1994), traduzido para o português como

Crítica da imagem eurocêntrica (2006), é uma importante referên­ cia, primeiro por assumir o hibridismo como traço epistemológico e analítico, desarticulando hierarquias entre cinema de autor e ci­ nema comercial, analisando tanto produtos culturais massivos quanto obras experimentais em um contínuo; também por uma busca de categorias de trânsito entre culturas. Os autores não ata­ cam as culturas europeias, mas criticam o eurocentrismo como “um discurso que coloca como única fonte de saber a Europa” e que apresenta seus valores e padrões como universais (Stam; Shohat, 1994, p. 2-3). O eurocentrismo se constitui mais como um posicionamento implícito do que como um posicionamento político consciente (Stam; Shohat, 1994, p. 4), com consequências que vão além do ponto de vista historiográfico, que considera a arte e a teoria dos países centrais como as únicas matrizes possí-

veis, cabendo aos outros países uma posição marginal, meros apêndices na história mundial, suas culturas reduzidas a fatos sociais sem validade estética ou lembradas por alguns momen­ tos de fulguração, quando não simplesmente exotizados. O multiculturalismo, preconizado por Stam e Shohat, descoloniza a representação não só em termos de artefatos culturais (como seria no caso de políticas de representações a partir de identidades estrei­ tas), mas também nas relações de poder entre comunidades (Stam; Shohat, 1994). Posição atenta à identificação de quem produz e dis­ tribui os produtos audiovisuais (Stam; Shohat, 1994, p. 47, 103). Contudo, nosso foco se localizará, sobretudo, não em en­ tender as estratégias de comunidades nacionais, étnicas e locais de criar e distribuir suas próprias imagens, mas na leitura de conste­ lações de filmes que encenem, a partir da década de 1990, diferentes facetas da relação interdependente entre o global e o local. Filmes que seriam lidos por se posicionarem menos numa tradição experimental3e mais entre o cinema clássico e o cinema moder­ no, como obras artísticas e produtos culturais, incluindo alguns elementos do que Hamid Naficy chamou de accented cinema', fil­ mes produzidos num modo capitalista mesmo que alternativo, não sendo necessariamente oposicionais, no sentido de se defini­ rem primordialmente contra um cinema dominante unaccented\ nem são necessariamente radicais, porque eles atuam como agentes de assimilação e legitimação de cineastas e suas audiências, não ape­

3. Nesse sentido, diferente do projeto de Laura Marks, que privilegia uma tradição experimental, ou mesmo de Hamid Naficy, que privilegia uma espécie de cinema transnacional independente através de sua rubrica de um accented cinema.

nas como agentes de expressão e desafio (Naficy, 2001, p. 26). Di­ ferentemente do cinema do Terceiro Mundo, em que o mais im­ portante era a defesa da luta armada ou da luta de classe em uma perspectiva marxista, trata-se de um cinema feito por pessoas deslocadas ou comunidades diaspóricas, menos engajado com o povo ou com as massas do que marcado por experiências de desterritorialização (Naficy, 2001, p. 30-31). Por fim, ainda que partindo de referenciais e objetos distin­ tos, nossa proposta se encontra com a de Andréa França quanto ao desejo de pensar para além das cinematografias nacionais (Fran­ ça, 2003, p. 24). O que desenvolvi a partir do entrelugar até as paisa­ gens transculturais dialoga e ganha uma espessura cinematográfica na noção de fronteira que não só separa e demarca, mas gera outros espaços: O cinema inventa espaços de solidariedade transnacionais, espa­ ços que ensejam uma espécie de adesão silenciosa. O cinema tem a potência de acentuar a singularidade de uma comunidade de diferentes. (França, 2003, p. 25).

Para exemplificarmos essa perspectiva transcultural, podería­ mos mencionar os filmes de Wong Kar-Wai, onde ocorre um cons­ tante trânsito da música erudita ao pop estadunidense, da ópera chinesa à música latino-americana; de qualquer forma, fazendo da música uma chave para os seus filmes (ver Yeh, 1999, p. 1). A repetição com que certas músicas, temas ou motivos aparecem no decorrer de um mesmo filme faz pensar no uso que a publicidade massiva utiliza para fixar slogans, vender produtos, e, mais além, na valorização da redundância em detrimento da densidade como elemento estético no cenário pós-moderno. É o próprio diretor

que afirma que gostaria que as pessoas lembrassem do filme quan­ do ouvissem a música, ao inverso do clipyem que a imagem ven­ de a música (apud Bordwell, 2000, p. 278-279). Para pensar esse trânsito transcultural, fundindo som e ima­ gem, é que a ideia de “audiotopia” vem nos ajudar. Se a utopia não está em nenhum lugar, o termo foucaultiano de uma heterotopia representa “um tipo de utopia efetivamente encarnada, caracteri­ zada pela justaposição em um único lugar de vários espaços que são incompatíveis entre si” (Kun, 1997, p. 289). As “audiotopias” seriam instantes específicos das heterotopias, “espaços sônicos de desejos utópicos efetivos onde vários lugares normalmente incom­ patíveis são reunidos não somente no espaço de uma peça particu­ lar de música, mas na produção de espaço social e mapeamento de espaço geográfico que a música faz possível” (Kun, 1997, p. 289). A função de ouvir “audiotopias” é focar no próprio espaço da mú­ sica “espaços sociais, geografias e paisagens que a música possibi­ lita, reflete e profetiza” (Kun, 1997, p. 289-290). Em última instân­ cia, as “audiotopias” são “zonas de contato entre espaços sônicos e sociais” (Kun, 1997, p. 289-290). Como no início de Felizesjuntos (1987), de Wong Kar-Wai, onde podemos ver na tomada aérea das cataratas do Iguaçu, na fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, imagem do desencontro entre os amantes, mas que traduz todo um encantamento, apesar de toda dor, ao som de Caetano Veloso, cantando em espanhol “Cucurrucucú Paloma”, um clássico da música popular mexicana, composto por Tomás Méndez. Mais uma vez temos um interessan­ te encontro entre Ásia e América Latina através da circulação da música latino-americana, desde a primeira metade do século passa­

do, seja via filmes hollywoodianos, seja pela presença de cantores filipinos em Xangai, o mais importante centro cultural na China ñas décadas de 1930 e 1940, como também podemos ver na obra de Stanley Kwan. Ou, para dar um outro exemplo, “Perfídia”, um outro clássico da música popular latino-americana que pode aparecer tanto nos filmes de Wong Kar-Wai quanto reciclada pelo grupo de rock Café Tacuba, ou ainda em Alexandria, why,; filme de Youssef Chahine que se passa na década de 1940. Os filmes de Wong Kar-Wai teriam uma visão muito limitada, se os compreendêssemos apenas situa­ dos na história de Hong Kong ou da China, como depreendemos de uma recorrência quase obsessiva das canções cantadas por Nat King Cole, cantor favorito de sua mãe, entre outras canções clássicas hispano-americanas, com frequência interpretadas por cantores estadunidenses, que fizeram a circulação da música latino-ameri­ cana passar pelos EUA. Também seria interessante lembrar das mú­ sicas pop inglesas que aparecem cantadas em chinês. Por fim, as constantes referências a Manuel Puig não são gratuitas, já que encarna, como nenhum outro, uma erudição calcada na cultura de massa. Esses trânsitos, especialmente entre América Latina e Ásia, representam a gênese de um interessante caso de interculturalidade, desconstrutor de purismos nacionais, definido mais pelos proces­ sos midiáticos do que por grandes fluxos migratórios, diásporas (cf. Canclini, 2000, p. 79), que exigem, certamente, melhor estudo. Voltando ao filme Felizes juntos, a tomada das cataratas do Iguaçu, no início do filme, abre uma outra possibilidade de leitu­ ra, talvez mais do que pela música, pela constituição de uma pai­ sagem transcultural. Os jovens amantes de Hong Kong, que vivem em condições precárias em Buenos Aires, com vidas marcadas

inicialmente pela solidão e pelo isolamento, veem na viagem às cataratas uma possibilidade de renovação do seu vínculo. O que acontece é exatamente o contrário: a separação sem que nenhum dos dois vá às cataratas, restando delas apenas a imagem num

souvenir que fica no apartamento onde moram. No entanto, a imagem grandiosa aparece no filme interrompendo a estrutura narrativa, marcada pelas idas e vindas da relação. A suspensão narrativa, diferente da discrição que as trilhas sonoras têm comumente no cinema clássico hollywoodiano (Gorbman, 1987, p. 71-73), leva-nos a ouvir as imagens e a ver o som. Esse espaço de fronteira cultural, de desencontro amoroso, traduz tudo o que não pode ser falado em palavras; como o abis­ mo sugando a água do rio, assim também os amantes são traga­ dos cada vez mais na complexidade de seus afetos. No fim do filme, só Fai (Tony Leung) vai às cataratas, que aparecem, então, ao som de um tango de Astor Piazolla. Em Fai, molhado pela água do rio, tem-se a mágoa e a dor que a água parece levar num ato de renascimento; é nesse lugar estrangeiro que Fai se encontra, antes da volta para Hong Kong. Na segunda parte do filme, aparece Chang, colega de traba­ lho de Fai, no restaurante chinês em que ambos trabalham. Por possuir um ouvido extremamente aguçado, a questão da impor­ tância dos sons mais banais na composição do filme é realçada. É pelo som da voz de Fai ao telefone que Chang se aproxima dele. E é também Chang que leva a gravação dos soluços e lágrimas de Fai, cena equivalente ao renascimento sob as cataratas do Iguaçu, até o “fim do mundo” Ushuaia, na Terra do Fogo, uma outra re­ gião marcada pela magnitude, na fronteira entre Argentina e Chi­ le, no extremo-sul da América.

Por fim, quando Fai passa por Taipei, onde a família de Chang mora, ouvimos “Happy together”, música dos Turtles, mais uma leitura do amor romântico heterossexual para uma chave gay, como no caso do uso do tango, mas também contemporânea, marcada pela fragilidade e pela rapidez também dos afetos, que aponta para uma possibilidade de encontro e felicidade, mesmo diante da distância geográfica. É na transitividade da música entre cultu­ ras que encontramos uma das paisagens mais ricas para pensar o pertencimento de forma pós-identitária e translocal.

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MÓDULO II Cinema, periferia e hibridismo

Para além do Terceiro Cinema estéticas do hibridismo*' Robert Stam

No final da década de 1960 e início da de 1970, no despertar da vitória vietnamita sobre os franceses, da revolução cubana e da independência argelina, os intelectuais do Terceiro Mundo exigi­ ram uma “revolução tricontinental” (com Ho Chi Minh, Che Guevara e Frantz Fanón como figuras talismânicas). No cinema, essa ideologia terceiro-mundista foi cristalizada em uma onda de ensaios-manifestos militantes - Estética da Fome, de Glauber Ro­ cha (1965); Em direção ao Terceiro Cinema, de Fernando Solanas e Otávio Getino (1969) e Por um Cinema Imperfeito, de Julio Garda Espinosa (1969) - e em declarações e manifestos dos Festivais de Cinema do Terceiro Mundo, exigindo uma revolução tricontinental na política e outra no cinema, na estética e na forma narrativa. Ro­ cha exigia um cinema “faminto” de “filmes tristes, feios”; Solanas

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação]. 1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de “Beyond Third Cinema: The Aesthetics of Hybridity”, publicado em: Guneratne, Anthony; Dissanayake, Winmal (Eds.). Rethinking Third Cinema. New York; Londres: Routledge, 2003.

e Getino exigiam docum entários m ilitantes de guerrilha; e Espinosa, um cinema “imperfeito”, fortalecido pelas formas “bai­ xas” de cultura popular, em que o processo de comunicação era mais importante que o produto, em que os valores políticos eram mais importantes que os “valores de produção”. O trabalho de Frantz Fanón exerceu forte influência nessas teorias e nos filmes influenciados por elas. O filme La Hora de Los

Homos, de Solanas e Getino (H our o f the Furnaces, 1968), não somente cita o adágio de Fanón de que “Cada espectador é um covarde ou um traidor”, mas também orquestra uma constelação de temas fanonianos - os estigmas psíquicos do colonialismo, o valor terapêutico da violência anticolonial e a necessidade urgen­ te de urna nova cultura e de um novo ser humano. Os manifestos de filmes terceiro-mundistas também enfatizam militância e vio­ lência anticolonial, literária/política, no caso de Solanas-Getino, e metafórica/estética, no caso de Rocha. “Somente através da dialética da violência”, escreveu Rocha, “alcançaremos lirismo.” O “Terceiro Cinema” ofereceu uma versão modulada fanoniana da estética de Brecht, tensionada pela “cultura nacional”. Ao mesmo tempo, ofereceu uma estratégia prática de produção que trans­ formou a escassez, como disse Ismail Xavier, em “um significante”2. Apesar de o “Terceiro Cinema” representar uma alternativa váli­ da para o modelo hollywoodiano dominante em um primeiro momento, é importante lembrar que ele representa somente um

2. Ver: Xavier, Ismail. Allegories o f Underdevelopment Aesthetics and Politics in Modern Brazilian Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.

modelo alternativo de fazer filme. Em vez de comparar todos os mo­ delos alternativos com o “Terceiro Cinema” como um tipo ideal, é mais útil, penso eu, imaginar um amplo espectro de práticas alternativas. De fato, o discurso cultural no Terceiro Mundo, e especial­ mente na América Latina e no Caribe, foi fecundo em neologismos nas estéticas literárias e cinemáticas: “lo real maravilloso america-

no” (Carpentier), a “estética da fome” (Glauber Rocha), o cinema “megotage” ou “toco de cigarro” (Ousmane Sem bene), “ cine

im perfecto5 (Julio Garda Espinosa), a “estética do lixo” (Rogerio Sganzerla), a estética da “salamandra” (Leduc) em oposição à esté­ tica do dinossauro de Hollywood, “ terrorismo cupini” (Guilhermo del Toro), “antropofagia” (os modernistas brasileiros), “Tropicália” (Gilberto Gil e Caetano Veloso), “rasquachismo” (Tomas-Ibarra Frausto), “estética do macaco significante” (Henry Louis Gates), “estética nómade” (Teshome G abriel), “estética da diáspora” (Kobena Mercer), “estética neo-hoodoo ’ (Ishmael Reed) e esté­ tica “santería’ (Arturo Lindsay). A maior parte dessas estéticas alternativas revalorizam, por inversão, o que previamente fora visto como negativo, especialm ente dentro de um discurso colonialista. Portanto, o ritual do canibalismo, por séculos o pró­ prio nome do selvagem, o outro desprezível, se torna, com os modernistas brasileiros, um tropo anticolonialista e um termo de valor. (Lembrem que até o triunfante movimento literário “realismo mágico” inverte a visão colonial de mágica como su­ perstição irracional.) Ao mesmo tempo, essas estéticas com par­ tilham o traço jiu-jítsu de transformar fraqueza estratégica em força tática. Ao se apropriar de um discurso existente para seus

próprios fins, elas organizam e preparam a força do dominante contra a dominação. Neste ponto, gostaria de me concentrar em três aspectos re­ lacionados com essas estéticas: (1) seu hibridismo constitutivo; (2) sua multiplicidade cronotópica; (3) seu tema comum da re­ denção do detrito. Depois de discutir as qualificações especiais do cinema para compreender tal estética híbrida e multitemporal, concluirei com o caso brasileiro da “estética do lixo” como o pon­ to de convergência de todos os nossos temas, especificamente exa­ minando literal e figurativamente três filmes “sobre” o lixo.

Hibridismo Embora o hibridismo seja uma característica permanente da arte e do discurso cultural na América Latina - realçada em termos como mestizaje, indianismo, diversalité, creolité, raza cós­

mica - , foi recentemente recodificado como um sintoma do mo­ mento pós-moderno, pós-colonial e pós-nacionalista3. A valori­ zação do hibridismo, é importante observar, deveria ser vista como urna forma de jiu-jitsu, já que no discurso colonial a questão do hibridismo foi relacionada ao preconceito relacionado à mistura de raças, à “degeneração do sangue” e à suposta indolência de

3. Àqueles de nós que trabalham na área da cultura latino-americana, área em que “hibridismo” e “mestizaje” têm sido lugares-comuns críticos há décadas, é sempre uma surpresa ver que Homi Bhabha, embora não seja falha dele mesmo, tem sido repetidamente “creditado” com o conceito de “hibridismo”.

mulatos. Porém, se o discurso nacionalista da década de 1960 traçou linhas distintas entre Primeiro Mundo e Terceiro Mundo, opressor e oprimido, o discurso pós-nacionalista substituiu tais binarismos por um espectro mais matizado de diferenciações sutis, em um novo regime global, em que o Primeiro e o Terceiro Mundo estão mutuamente imbricados. As noções de identidade ontologicamente referenciais se metamorfoseiam em um jogo conjuntural de identificações. A pureza abre caminho para a “con­ taminação” Paradigmas rígidos se dissolvem em metonimias es­ corregadias. Posturas militantes, eretas, abrem caminho para uma série de “posicionamentos”. Uma vez que as fronteiras sólidas se tornam mais frágeis, uma iconografia de fronteiras de arame far­ pado se transforma em imagens de fluidez e cruzamento. Uma retórica de integridade imaculada abre caminho para gramáticas miscigenadas e para metáforas misturadas. Um discurso de “im­ perialismo da mídia” abre espaço para a reciprocidade e o “nati­ vo”. Tropos coloniais de dualismo irreconciliável abrem caminho para tropos pós-coloniais, atraindo diversas modalidades de mis­ tura: religiosa (sincretismo); botânica (hibridismo); linguística (crioulização); e genética (mestizaje). Embora o hibridismo exista onde quer que as civilizações entrem em conflito, combinem-se e se sintetizem, ele alcançou um tipo de paroxismo violento com a colonização europeia nas Américas. A conquista moldou um novo mundo de praticas e ideo­ logias de mistura, fazendo das Américas a cena de combinações sem precedentes entre povos indígenas, africanos, europeus e, mais tarde, de diásporas imigrantes de todo o mundo. Porém, o hibridismo nunca foi um encontro pacífico, um parque temático

livre de tensão; sempre esteve profundamente emaranhado com a violência colonial. Enquanto para alguns o hibridismo é vivido como qualquer outra metáfora dentro do livre jogo derrideano, para outros ele está vivo como memória visceral cheia de dor. De fato, como termo receptáculo descritivo, o “hibridismo” falha ao não diferenciar as diversas modalidades do híbrido, tais como, a imposição colonial (por exemplo, a Igreja Católica edificou uma cons­ trução em cima de um templo inca destruído) ou outras interações como a assimilação obrigatória, a cooptação política, a paródia cul­ tural, a exploração comercial, a apropriação ou a subversão. O hibridismo, em outras palavras, é carregado de poder e assimetria. O hibridismo também coopta. Na América Latina, frequentemente a identidade nacional tem sido oficialmente articulada como híbrida, por meio de ideologias dissimuladamente integradoras que mencionam algo por alto, mas escondem hegemonias raciais sutis. O cantor e compositor brasileiro Gilberto Gil chama aten­ ção para a natureza carregada de poder do sincretismo em sua canção de 1989, De Bob Dylan a Bob Mariey: um samba provoca­

ção. A letra nos informa que Bob Dylan, depois de se converter ao cristianismo, fez um álbum de reggae, retornando assim à casa de Israel pelo caminho do Caribe. A letra colocou em operação um número amplo de paralelos culturais, entre a simbologia judaica e o “rastafarianismo” jamaicano, entre a perseguição dos judeus (e muçulmanos) e a supressão europeia das religiões africanas (“Quan­ do os africanos chegaram nestes litorais/ não havia liberdade de religião”), por fim, contrastando o sincretismo progressivo de um Bob Marley (que morreu “porque além de ser preto era também

judeu”) com a alienação de um Michael Jackson, que “além de ficar branco... se torna triste”. Gil celebra, dessa forma, o hibridismo e o sincretismo, mas os articula em relação às relações de poder assimétricas produzidas pelo colonialismo. Para as pessoas opri­ midas, o sincretismo artístico não é um jogo, mas uma negocia­ ção árdua, um exercício, como nos diz a letra da canção, de “resis.

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tencia e rendição .

Multiplicidade cronotópica A literatura teórica atual revela involuntariamente um fascínio com a noção de temporalidades espaciais simultâneas, sobrepostas. O tropo do palimpsesto amplamente disseminado, o pergaminho sobre o qual estão inscritos os vestígios de diversos momentos da escrita do passado, contém essa ideia de temporalidades múltiplas. O momento pós-moderno também é visto como caoticamente plural e contraditório; enquanto sua estética é vista com o um agre­ gado de estilos datados historicamente, aleatoriamente rem onta­ dos no presente. Mas esse espaço-tempo oxímoro só é encontrado na literatura teórica recente. Estava previsto na “nostalgia revolu­ cionária” de Benjamin; na conjugação do agora e do “ainda não” de Ernst Bloch; na visão de velocidade múltipla de história de Braudel; na “sobredcterminação” e no “desenvolvimento desigual” de Althusser; nos discursos “residuais e emergentes” de Raymond Williams; na “nostalgia do presente” de Jameson; na “com pressão tempo-espaço” de David Harvey. O dialogismo de Bakhtin, na mes­ ma linha, faz alusão à matriz temporal de declarações comunicativas

sobrepostas que “alcançam ” o texto não som ente através de cita­ ções reconhecíveis, mas tam bém por um processo sutil de disse­ m inação. Em um a form ulação m uito sugestiva, Bakhtin evoca as épocas múltiplas intertextualm ente “enterradas” no trabalho de Shakespeare. A respeito dos tesouros “sem ânticos” que Shakespeare “incrustava em seus trabalhos”, Bakhtin escreve: [...] foram criados e coletados através dos séculos e até mesmo de milênios: eles ficaram escondidos na linguagem, e não somente na linguagem literária, mas também naquelas camadas da lingua­ gem popular que antes da época de Shakespeare não tinham en­ trado para a literatura, nas formas e gêneros diversos do discurso da comunicação, nas formas de uma cultura nacional poderosa (fundamentalmente formas carnavalescas) que foram moldadas através dos milênios, nos gêneros de espetáculo teatral (peças de mistério, farsas e assim por diante), em enredos cujas raízes vol­ tam à antiguidade pré-histórica.4 (Bakhtin, 1986, p. 5). Bakhtin, portanto, aponta para a natureza tem poralm ente palim pséstica de todos os textos artísticos, vistos dentro de uma m ilenar longue duree5. Essa estética não é terreno exclusivo de es­ critores canônicos, já que o dialogismo opera dentro de toda a pro­ dução cultural, seja letrada ou não, erudita ou ignorante.

4.

Bakhtin, M . M . R esponse to a question fro m the Novy M ir editorial staff. In: M cG ee, Vern (E d .). Speech Genres and Other Late Essays. Austin: U niversity o f Texas Press, 1986. p. 5.

5.

Ibidem , p. 3.

A redenção do detrito A terceira característica dessa estética híbrida de bricolagem é sua motivação pela redenção estratégica do inferior, do despre­ zado, do imperfeito e do “sem valor”, como parte de uma virada social. Essa redenção estratégica do marginal também aparece nas esferas da alta teoria e dos Estudos Culturais. É possível pensar, por exemplo, na recuperação de Derrida do marginal no texto filosófi­ co clássico; na exaltação de Bakhtin do “grotesco redentor” e dos gêneros inferiores “ridicularizados”; no “lixo da história” de Ben­ jamin e sua visão do trabalho da arte, com o constituinte de si mesma, a partir de fragmentos aparentemente insignificantes; na recuperação de Deleuze e Guattari dos estados psíquicos estigma­ tizados, tal como, a esquizofrenia; na irônica reapropriação do

kitsch por Camp; na recuperação pelos Estudos Culturais das for­ mas subliterárias e “estilos subculturais”; e nas “armas dos fracos” de James Scott. No cinema, uma “estética do lixo” desempenha um tipo de jiu-jítsu ao recuperar materiais cinematográficos usados. Para os diretores sem muitos recursos, o m inim alism o do raw footage (material sem corte) reflete a necessidade prática e também uma estratégia artística. Em um filme com o H our o f the Furnaces, o

raw footage pouco promissor é transformado em arte, assim com o a alquimia da montagem som-imagem transforma os metais de base dos títulos, as pausas e o som bruto em virtuosidade rítmica. Diretores de compilação como Bruce Conner, Mark Rappaport, Sherry Millner e Ernest Larsen reorganizam e reeditam materiais fílmicos existentes, enquanto tentam voar abaixo do radar das le-

galidades burguesas. Craig Baldwin, um programador de cinema de São Francisco, dá nova forma a out-takes (segmento de filme ou vídeo editado na versão final, em geral por falha técnica) e a materiais de dominio público, transformando-os em filmes de com­ pilação bem humorados. Em Sonic Outlaws, ele e seus colabora­ dores discutem um detournement midiático que emprega o po­ der carismático da mídia dominante contra ela mesma, expondo, a todo momento, o menosprezo real em relação ao zelo dos di­ reitos autorais. O filme anticolombo de Baldwin, No Coronado! (1992), ambientado no século XV, por exemplo, desmitifica o con­ quistador cuja busca desesperada pelas sete cidades míticas de Cibola o levou a urna jornada infrutífera, criminosa, por onde é hoje o sudoeste estadunidense. Para relatar seu épico calamitoso, Baldwin posiciona não somente suas próprias dramatizações en­ cenadas, mas também restos de arquivos filmicos: cenas de mate­ rial de arquivo, filmes pedagógicos, documentários industriais, filmes de capa e espada, épicos históricos bregas. No contexto afrodiaspórico, a redenção do detrito evoca uma outra estratégia historicamente tensa, especificamente as for­ mas que os negros desalojados do novo mundo encontraram para metamorfosear artigos desperdiçados em arte. A diáspora africa­ na, vinda das culturas artisticamente desenvolvidas, mas agora ca­ rentes de liberdade, educação e possibilidades materiais, conse­ guiu extrair a beleza a partir das próprias entranhas de privação, seja através do uso musical dos barris de óleo descartados (os tam­ bores de aço de Trinidad), da utilização das partes de animais que seriam jogadas fora na culinária (comida souiyfeijoada), ou do uso em tecelagem de sobras de tecido (patchwork). Essa “negação da

negação” também tem a ver com uma relação especial com a his­ tória oficial. Como aqueles cuja história foi destruída e mal repre­ sentada, como aqueles cuja história foi dispersa e diasporizada em vez de celebrada e incorporada no grand récit como as gran­ des histórias dominantes e como aqueles cuja história foi fre­ quentemente contada, dançada e cantada em vez de escrita, os povos oprimidos foram obrigados a recriar seu passado a partir de pedacinhos e restos e de destroços de história. Essas estéticas artesanais e que fazem h istó ria p erson ificam uma arte de descontinuidade - pedacinhos heterogêneos formando uma col­ cha de retalhos, por exemplo, que incorporam diversos estilos, períodos de tempo e materiais - , alinham-se com o modernismo artístico como uma arte de “quebra” e “descontinuidade” jazzística e pertencem a um pós-modernismo antecipatório como uma arte de reciclagem e pastiche. As estéticas alternativas são multitemporais ainda em outro sentido. Elas estão constantemente enraizadas em tradições não realistas, frequentemente tradições culturais não ocidentais, apre­ sentando outros ritmos históricos, outras estruturas narrativas e outras atitudes com relação ao corpo e à espiritualidade. Ao in­ corporar tradições paramodernas em estéticas m odernizantes ou pós-modernizantes, elas problematizam dicotomias simples, tais como, tradicional e moderno, realista e modernista, modernista e pós-modernista. De fato, a projeção das práticas culturais do Ter­ ceiro Mundo, intocadas pelo modernismo vanguardista ou m e­ diadas pela massa pós-m odernista, com frequência codifica subliminarmente uma visão do Terceiro Mundo como “subdesen­ volvido”, ou “em desenvolvimento”, como se pertencesse a outra

zona temporal à parte do sistema global do mundo capitalista re­ cente. Um olhar menos neodarwiniano veria todos os “mundos” em um mesmo momento histórico, combinados com subordina­ ção ou dominação. O tempo, em todos os mundos, não em estágios diferentes, é embaralhado e palimpséstico, com o pré-moderno, o moderno e o pos-moderno coexistindo globalmente, embora o “dominante” possa variar de região para região. As vanguardas do mundo são também caracterizadas por urna temporalidade aguçadamente paradoxal. Assim como a vanguarda europeia se tornou “avançada” por se apoiar no “primitivo”, artistas não europeus, numa versão estética da “nostalgia revolucionária”, tam­ bém se apoiaram nos elementos mais tradicionais de suas culturas, elementos menos “pré-modernos” (um termo reconhecidamente dú­ bio que estabelece a modernidade como fim) que “paramodernos”. Nas artes, a distinção arcaico/modernista muitas vezes não é perti­ nente no sentido de que ambos os termos compartilham uma recusa das convenções do realismo mimético. Trata-se então menos de jus­ tapor o arcaico e o moderno e mais de ordenar o arcaico paradoxal­ mente; se modernizar, em uma temporalidade dissonante que com­ bina uma communitas passada imaginária com uma utopia futura igualmente imaginária. Na tentativa de forjar uma linguagem libertadora, por exemplo, as tradições de filmes alternativos se apoiam em fenômenos paramodernos, tais como, religião popular e rituais mágicos. Nos filmes africanos e afrodiaspóricos Tee/en (Senegal),

Jitt (Zimbábue), QuartierMozart (Camarões), OAmuleto de Ogum (Brasil), Patakin (Cuba), A Deusa Negra (Nigéria) e O Talentoso (Es­ tados Unidos), os espíritos mágicos se tornam um recurso estético, um meio de libertação do linear, das convenções de causa e efeito da

poética narrativa de Aristóteles, uma forma de voar acima da força gravitacionaJ do verismo, de desafiar a “gravidade” do tempo crono­ lógico e do espaço literal. O cinema, eu argumentaria, é idealmente equipado para expressar hibridismo cultural e temporal. O cinema é temporal­ mente híbrido, antes de tudo, em um sentido intertextual, no qual ele “herda” todas as formas de arte e tradições milenares associa­ das com seus diversos temas. (A música ou a arte pictórica de qualquer período histórico pode ser citada, ou imitada, dentro do cinema.) Mas o cinema é também temporalmente híbrido em ou­ tro sentido mais técnico. Como uma tecnologia de representação, mistura variados tempos e espaços. É produzido em uma conste­ lação de tempos e espaços, mas representa outra constelação (nar­ rativa) de tempos e lugares e é recebido, além disso, em outro tempo e espaço (teatro, casa, sala de aula). A conjunção de som e imagem significa que cada um não somente representa dois tipos de tempo, mas também que se influenciam mutuamente de for­ ma sincrética. Tomadas estáticas atemporais podem ser inscritas com temporalidade por meio do som. A panóplia de técnicas cinemáticas disponíveis multiplica mais ainda esses tempos e es­ paços já múltiplos. A superimposição redobra o tempo e o espa­ ço, assim como a montagem e os quadros múltiplos fazem com a imagem. A capacidade de sobreposições palimpsésticas de im a­ gens e sons facilitadas pelas novas tecnologias computacionais e de vídeo amplificam ainda mais as possibilidades de fratura, rup­ tura e polifonia. Um “patchwork eletrônico pode entrelaçar sons e imagens a fim de quebrar uma narrativa linear, abrindo espaço para utopias (e distopias) de m anipulação infin ita. O fluxo sequencial “normal” pode ser interrompido e desviado para levar

em consideração a simultaneidade e o paralelismo. Mais do que uma sequência aristotélica de exposição, identificação, suspense,

pathos (sofrimento) e catarse, o texto audiovisual se torna uma tapeçaria. Essas mídias são capazes de misturas cam aleónicas à la

Zeligy inserções digitais à la Forrest Guinpe imagens/sons m últi­ plos à la Numero Deux. Essas novas mídias podem com binar imagens sintetizadas com capturadas. Elas podem prom over um “encontro inicial” entre Elton John e Louis Arm strong, com o no comercial da Diet Coke de 1991, ou perm itir que Natalie Cole cante com seu pai, falecido há algum tempo. Potencialm ente, a m ídia audiovisual é m enos ligada p o r trad içõ es can ô n icas, institucionais e estéticas; ela possibilita o que Arlindo M achado chama de “hibridização de alternativas”. O cinema em particular e a m ídia audiovisual em geral são, em termos balditinianos “mxAticvoriotópicos”. Em bora Bakhtin de­ senvolva seu conceito do “cronotopo” (de khrónos, tempo, e tópos, lugar) para sugerir a relação indissociável entre tempo e espaço no romance, ele também parece idealmente apropriado ao cinema onde “indicadores espaciais e temporais se fundem em um todo co n ­ creto cuidadosamente considerado”6. (Esse conceito tam bém nos poupa do absurdo de “escolher” entre tempo e espaço como foco teórico.) A descrição de Bakhtin (1981, p. 84) do romance com o o lugar onde o tempo “torna-se denso, assume um corpo, torna-se

6.

Ver Bakhtin, The DialogicImagination, editado por Michael Holquist e Caryl Em er­ son. Austin: University o f Texas Press, 1981. p. 84. Os term os na discussão que segue podem ser encontrados nas páginas 8 4 -8 5 do “Essay C h ro n o to p e ” (p. 8 4 -2 5 8 ).

artisticamente visível” e “o espaço torna-se responsável e recep­ tivo aos movimentos de tempo, enredo e história” parece, de al­ guma forma, até mais adequada ao filme que à literatura. Ao passo que a literatura acontece dentro de um espaço virtual e léxico, o “cronotopo” cinemático é bastante literal, disposto concretamente em uma tela com dimensões específicas e desenvolvido em tempo literal (geralmente 24 quadros por segundo), um tanto diferente do que determinados filmes de tempo-espaço fictícios poderiam construir. Portanto, o cinem a personifica a relação inerente de tempo (khrónos) e espaço (tópos); trata-se espaço temporalizado e tempo espacializado, o local onde o tempo acontece e o lugar tem seu tempo. A natureza multipistas da mídia audiovisual a capacita a o r­ questrar histórias múltiplas, até contraditórias, temporalidades e perspectivas. Ela não oferece um “canal de história”, mas múltiplos canais para representações históricas m ultifocais e de múltiplas perspectivas. Aqui me interessa especialmente um tipo de com bi­ nação entre representações do estado palimpséstico, multinacional, e o cinema como um meio palimpséstico e polivalente que pode entrar em cena e rep resen tar um h ib rid ism o tran sg ressor. Constitutivamente múltiplo, o cinema é idealmente apropriado para encenar o que Nestor García Canclini, em um contexto m ui­ to diferente, chama de “heterogeneidade m ultitemporal”7. 0 fato de que o cinema dominante, em grande parte, optou por urna

7. Ver: Canclini, Néstor García. Culturas Híbridas: Estrategias para entrar y salir de la modernidad. M exico City: Grijalbo, 1989; ou: Canclini, N éstor García. Culturas

híbridas: estratégias para entrar e sair da m odernidade. São Paulo: Edusp, 1990.

estética linear e homogeneizante na qual caminhos reforçam cami­ nhos dentro de uma totalidade wagneriana, de forma alguma, oblitera a verdade igualmente saliente de que o cinema (e as novas mídias) é infinitamente rico em potencialidades polifónicas. O cinema possibilita que sejam postas em cena contradições culturais temporalizadas não somente dentro da tomada, por meio do

mise-en-scène, do cenário, do figurino etc., mas também via interação e contradições entre os diversos caminhos, que podem mutuamente seguir, empurrar, rebater, assombrar e relativizar um ao outro. Cada caminho pode desenvolver sua própria velocidade; a imagem pode ser acelerada enquanto a música é desacelerada, ou a trilha sonora pode ser temporariamente multiplicada por referên­ cias a variados períodos históricos. Um cinema culturalmente polirrítmico, multitemporal, contrapontístico e de múltiplas ve­ locidades se torna uma possibilidade real. Por meio do lixo, a cultura brasileira é apresentada como um local misto. O lixo, nesse sentido, fica no ponto de convergên­ cia de nossos três temas: hibridismo, multiplicidade “cronotópica” e redenção do detrito. O lixo é híbrido, em primeiro lugar, como espaço diasporizado, heterotópico da mistura promíscua do rico e do pobre, do centro e da periferia, do industrial e do artesanal, do doméstico e do público, do durável e do transitório, do orgâ­ nico e do inorgânico, do nacional e do internacional, do local e do global. Metáfora pós-moderna e pós-colonial ideal, o lixo é mis­ turado, sincrético, um texto social radicalmente descentrado. Ele pode também ser interpretado, segundo Charles Jencks, como “heterópolis”; e conforme Edward Soja, seguindo Foucault, como “heterotopia,” ou seja, a justaposição em um lugar real de “vários

locais que são eles mesmos incompatíveis”8. Como um lugar de memórias e vestígios enterrados, o lixo é um exemplo do que David Harvey chama de “compressão do tempo-espaço” típica da acelera­ ção produzida pelas tecnologias contemporâneas de transporte, co­ municação e inform ação. Em term os foucaultianosy o lixo é “heterocrônico”, ele concentra o tempo em um espaço circunscri­ to. (Já foi sugerido que a arqueologia é simplesmente uma forma sofisticada de estudo do lixo.) O monte de lixo pode ser visto como um tesouro arqueológico achado precisamente por causa de seu caráter concentrado, sinedóquico e comprimido. Como história congelada, o lixo revela um passado analisado. Como tempo mate­ rializado no espaço, ele se torna coagulado socialmente, uma desti­ lação pegajosa das contradições da sociedade. Como a quintessência do negativo - evidenciada em expres­ sões como “lixo ambulante”, “im undície!” e “fonte de contam ina­ ção”

o lixo pode tam bém ser um objeto de jiu -jítsu artístico e

de resgate irônico. Um sistema de reciclagem ecologicamente cons­ ciente na Austrália se nomeia “lixo reverso”. (Isto não é para dizer que a apreciação do lixo é sempre marginal: o potencial subversi­ vo do lixo com o m etáfora é sugerido no rom ance O Leilão do

Lote 49\de Thom as Pynchon, no qual a heroína coleta indícios e vestígios que revelam a rede alternativa de L.I.X.O. com o um tipo de contracultura fora dos canais de com unicação dom inantes.)

8.

Ver: Jencks, Charles. Heteropolis. Los Angeles, the Riots and the Strange Beauty of HeteroArehiteeture. London: Academy Editions, 1993; Soja, Edward W. Thirdspaee. Journeys to Los Angeles and O ther Real-and- Imagined Places. O xford: Blackwells, 1996.

Em termos estéticos, o lixo pode ser visto como uma colagem aleatoria ou uma enumeração surrealista, um caso de definição ao acaso, uma pilha randómica de objets trouvése papiers col/és, um lugar de justaposições violentas e surpreendentes. O lixo, como a morte e o excremento, é um grande nivelador social, o local de encontro do mal-cheiroso e do bacana. É o final da linha para o que Mary Douglas chama de “assunto fora de lugar”. Em termos sociais, é um contador de verdades. Como um estrato mais baixo do soa us, o “fundo” simbólico ou cloaca maxima do corpo político, o lixo sinaliza o retorno do reprimido; é o lugar onde camisinhas usadas, absorventes ensanguentados, agulhas infectadas e bebês rejeitados são deixados; o lugar de descanso final de tudo o que a sociedade produz e reprime, que esconde e faz segredo. Podemos lembrar da tomada final de Os Esquecidos, de Buñuel, que mostra o cadáver do protagonista despedaçado no filme sen­ do naturalmente largado em uma pilha de lixo na cidade do Mé­ xico; a cena reaparece em O Beijo da Mulher Aranhayde Babenco, no qual o cadáver de Molina é jogado em um monte de lixo, en­ quanto a voz do narrador comunica oficialmente sua morte. Ma­ terial excessivo, o lixo é o id da sociedade; fumega e tem cheiro abaixo da soleira da racionalização e da sublimação ideológicas. Ao mesmo tempo, o lixo é reflexo de prestígio social; riqueza e

status estão correlacionados com a capacidade de uma pessoa (ou uma sociedade) em descartar mercadorias, ou seja, gerar lixo. Como híbrido, o lixo também está carregado de poder. A elite pode trans­ formar uma favela em um bairro nobre, aterrar um terreno para construir prédios luxuosos ou despejar lixo tóxico em uma vizi­ nhança pobre.

Três documentários brasileiros recentes tratam diretamente o tema do lixo. O Fio da Memória, de Eduardo Coutinho ( The

Thread ofMemory> 1991), um filme realizado como parte da co­ memoração do centenário da abolição, reflete sobre as consequências da escravidão no presente. Em vez de se estruturar em uma narrati­ va coerente e linear, o filme oferece uma história baseada em peda­ ços e fragmentos disjuntivos. Aqui os fios entrelaçados, ou pedaços agrupados, tornam-se emblemáticos do tecido fragmentário da vida negra no Brasil. O fio condutor consiste do diário de Gabriel Joaquim dos Santos, um homem velho e negro que criou a casa de seus sonhos como um trabalho de arte, feito completamente de lixo e detritos: azulejos rachados, pratos quebrados, latas vazi­ as. Para Gabriel, a cidade do Rio representa o “poder da riqueza”, enquanto sua casa, construída dos “restos da cidade”, representa o “poder da pobreza”. O lixo então se torna um meio ideal para aqueles que foram marginalizados, que se sentem “deprimidos”, que, como no verso da canção de bluesyse sentem “com o uma lata

sobre aquele depósito de lixo velho”9. Um impulso transform a­ dor toma um objeto considerado sem valor e o transform a em algo de valor. Aqui a restauração do valor de um objeto jogado fora explica, por analogia, o processo de revelar o valor escondido do artista desprezado, desvalorizado. Ao mesmo tempo, testemu­ nhamos um exemplo de estratégia e de engenhosidade em situação

9.

Minha form ulação obviam ente reflete e africaniza a linguagem do con h ecid o e n ­ saio de Frederic Jameson “A Literatura do Terceiro M undo na Era do C apitalism o M ultinacional”, Texto Social, n. 15, ou ton o 1986.

de escassez. O lixo dos que têm se transforma no tesouro dos que nada têm; o frio úmido e insalubre é metamorfoseado no sublime e no belo; o que fora uma monstruosidade é transformado em ali­ vio para olhos machucados. A lâmpada queimada, ícone gasto da inventividade moderna, torna-se um emblema de beleza. Com gran­ de facilidade de improvisação, Gabriel, pobre, precariamente alfa­ betizado, apropria-se de produtos descartados da sociedade indus­ trial para seus próprios propósitos recreativos, em procedimentos que inadvertidamente evocam aqueles do modernismo e da van­ guarda: o “estranhamento” dos formalistas, os “objetos encontra­ dos” dos cubistas, a “refuncionalização” de Brecht, o “détournement” dos situacionistas. Essa recuperação de fragmentos também tem uma dimensão espiritual na cultura africana. Em toda a África cen­ tral e ocidental, ao monte de lixo é uma metáfora para o nefasto, um ponto de contato com o mundo dos m ortos”. As vasilhas que­ bradas exibidas nos túmulos do Congo, Robert Farris Thompson nos informa, servem como lembretes de que objetos quebrados se tornam novamente um todo no outro m undo.10 O título de outro vídeo sobre lixo, o documentário Boca de

Lixo, de Coutinho, diretamente o conecta à “estética do lixo”, já que seu título se refere ao bairro da luz vermelha de São Paulo, onde eram produzidos, no início, os filmes de “lixo”. O filme gira em torno dos brasileiros empobrecidos que sobrevivem graças a um depósito de lixo fora do Rio, onde trabalham arduamente e

10. Ver: Thom pson, Robert F.; C om et, Joseph. The Four Moments o f the S u it. Congo Art in Two Worlds. W ashington: Galeria Nacional, 1981. p. 179.

têm como pano de fundo os braços estendidos do sempre miseri­ cordioso Cristo no Corcovado. Nesse ponto, a câmera é testemu­ nha da miséria social. Esmiuçando o lixo, os participantes execu­ tam uma triagem do que é “vomitado” pela loteria diária de excremento, separando o plástico do metal e da matéria comestí­ vel. Já que muitas das faces são femininas e negras, o filme tam­ bém revela a feminilização e a racialização da miséria social. Aqui vemos o ponto final de toda uma lógica mercantil permeável, o

télos lógico da sociedade de consumo e seu éthos de obsolescência planejada. O lixo se torna a manhã seguinte do romance do novo (o romance Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, trata de uma cidade tão enamorada do novo que descarta todos os seus objetos diaria­ mente). Na fantasmagoria miserável do depósito, as mesmas mer­ cadorias que foram transformadas em fetiche pela propaganda, valorizadas pela montagem e evidenciadas com luz de fundo estão agora despidas de sua aura de poder carismático. Somos confronta­ dos com a parte inferior fissurada da globalização e com seu discur­ so simples de um mundo sob a rotina consumista. O mundo do capitalismo transnacional é mais do que um eterno mundo de cons­ tante e diário movimento para a miséria. Finalmente, testemunha­ mos a face escondida do sistema global, todas as agonias sublima­ das mascaradas pela panaceia eufórica do “neoliberalismo”. Se Fio de memória vê o lixo como recurso artístico, Boca de

Lixo revela sua dimensão existencial humana. Aqui, os habitantes do lixo têm nomes (Jurema, Enoch), apelidos (“Costeleta”), fam í­ lia, memórias e esperanças. Em vez de assumir uma abordagem miserabilista, Coutinho nos mostra pessoas que são criativas, irô­ nicas e críticas, que dizem ao diretor o que olhar e como interpre-

tar o que ele vê. Enquanto para Coutinho o roubo das imagens dos outros com propósitos sensacionalistas é o “pecado original” da reportagem televisiva,11 os habitantes do lixo repetidamente in­ sistem que “Aqui ninguém rouba”, como se respondendo às acusa­ ções imaginárias dos interlocutores de classe média. Em vez dos prazeres suspeitos de uma “simpatia” condescendente, o especta­ dor da classe média é obrigado a se confrontar com pessoas vi­ brantes que ousam sonhar, responder e até mesmo criticar os di­ retores de cinema. Os “nativos”, nessa etnografía do lixo, não são o objeto, mas os agentes do conhecim ento. Ao fínal do filme, os participantes se assistem em um videocassete, num gesto reflexi­ vo que remete aos filmes africanos de Jean Rouch que é agora familiar com a “mídia nacional”. Em vez de banidos patéticos, os sujeitos do filme existem em um continuum com os trabalhado­ res brasileiros em geral; eles incorporam o país com o um todo; já tiveram outros empregos, já trabalharam em outras cidades, já la­ butaram nas casas da elite. E criticamente absorveram e processa­ ram as mesmas representações de mídia que todos os outros e, por­ tanto, têm “respostas prontas” para o centro; eles desaprovam o que Janice Perlman chama de “mito da marginalidade”. No filme, um pensador popular diz aos diretores que o lixo é o começo e o fim de um princípio cíclico de nascimento e renascimento

o que

vai, vem. O lixo é mostrado como energia armazenada, contendo nela mesma as sementes de sua própria transformação. O lixo se

11. Citado na Revista IJSP\ n. 19, p. 148, set./out./nov. 1993.

torna uma forma de karma social, o encontro adiado entre aque­ les que têm condições de desperdiçar e aqueles que não podem deixar de guardar o que já foi jogado fora. Aqueles que vivem à base do lixo também decoram suas casas com ele. Enquanto a elite desperdiça comida quase como uma questão de princípio, o po­ bre é obrigado a limpar seu próprio prato, e os dos outros.

Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989), traz a “estética do lixo” para a era pós-moderna, enquanto também demonstra a ca­ pacidade do cinema de ser veículo para reflexão estética e política. Em vez da estetização do lixo, aqui o lixo é tanto o tema quanto a estratégia formal. Descrito por seu autor como uma “carta a um marciano que não sabe nada sobre a Terra e seus sistemas sociais”, o curta de Furtado usa animação ao estilo Monty Python, cenas de arquivo e técnicas do documentário reflexivos para denunciar a distribuição de riqueza e comida no mundo. A Ilha das Flores do título é um depósito de lixo brasileiro onde mulheres e crian­ ças famintas, em grupos de dez, têm cinco minutos para procurar comida. Mas antes de chegarmos ao depósito de lixo, ficamos sa­ bendo do itinerário de um tomate que sai da fazenda e vai para o supermercado, daí para uma cozinha burguesa, para a lata de lixo até chegar na “Ilha das Flores”. A colagem editada de Furtado está estruturada como um léxico ou um glossário social, ou melhor, uma enumeração surrealista de palavras-chave como “porcos”, “di­ nheiro” e “seres humanos”. As definições são interconectadas e multicronotópicas; elas levam a múltiplas situações e enquadramentos históricos. Para seguir a trajetória do tomate, precisamos conhecer a origem do dinheiro: “O dinheiro foi criado no século VII a.C. Cristo era judeu, e judeus são seres humanos.” Enquanto o público

ainda está rindo dessa transição brusca, o filme vai diretamente para o resíduo fotográfico do holocausto, no qual os judeus, feito lixo, são jogados nas pilhas do campo de concentração. (Os nazistas, somos lembrados, tinham suas próprias formas mórbidas de reciclagem.) O tempo todo o filme transita entre definições minimalistas do humano e o ideal grandioso de liberdade evoca­ do pela citação final do filme: “Liberdade, essa palavra / que o sonho humano alimenta / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda.”12 Mas esse resumo explica pouco a experiência do filme, de seu jogo com a forma e as expectativas documentárias. Em pri­ meiro lugar, o próprio visual do filme - comerciais de TV antigos, anúncios em jornais, manuais de cuidado com a saúde - constitui um tipo de lixo visual. (Somos lembrados de que, na época do cine­ ma mudo, os filmes eram vistos como diversão descartável em vez de produtos artísticos duráveis e, portanto, não valia a pena guardálos; durante a Primeira Guerra Mundial, eram até reciclados devido a seu conteúdo de prata e chumbo.) Muitas das tomadas - dos porcos, dos tomates - são repetidas, desafiando a linguagem con­ vencional do cinema clássico, a qual sugere que as tomadas de­ veriam ser tanto bonitas quanto únicas. Em segundo lugar, o filme, cujo preâmbulo declara que “este não é um filme de ficção”, satiriza o entusiasmo positivista pelo detalhe factual ao oferecer precisão inútil e gratuita: “Estamos em Belém Novo, cidade de Porto Alegre,

12. N. de T.: Meirelles, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

estado do Rio Grande do Sul. Mais precisamente a trinta graus, doze minutos e trinta segundos de latitude sul, e cinquenta e um graus, onze minutos e vinte e três segundos de longitude oeste.” Em terceiro lugar, o filme debocha dos aparelhos e protocolos da ciência racionalista, por meio de esquemas classificatórios absur­ dos, “Dona Anete é mamífera, bípede, fêmea, católica romana”, e silogismos tautológicos, “O Sr. Suzuki é japonês e, portanto, um ser humano.” Enfim , o filme parodia as convenções do filme educativo, com sua voz de narrador que denota autoridade e com perguntas do tipo quiz, tais como, “O que é um jogo de perguntas e respostas de história?” A música de abertura é uma versão sinteti­ zada da canção tema de Voz do Brasil\ o programa oficial de rádio amplamente detestado que incomoda os brasileiros desde a era Vargas. O humor se torna um tipo de armadilha; o espectador, que começa rindo, acaba, se não chorando, pelo menos refletin­ do seriamente. Ouvimos que polegares opositores e um telencéfalo altamente desenvolvido deram aos “seres humanos a possibilida­ de de fazer muitas melhorias no planeta”; a tomada de uma explo­ são nuclear serve como ilustração. Ouvimos também que graças à universalidade do dinheiro nós agora somos “livres!”; um trecho isolado do “Coro de Aleluia” pontua o pensamento. Furtado evo­ ca o velho tema do carnaval de porcos e salsichas, mas com uma guinada política; aqui os porcos, dada a distribuição injusta da cadeia alimentar, comem melhor que as pessoas. Nessa reciclagem culinária, recebemos uma análise social do lixo; a verdade de uma sociedade está em seus detritos. O socialmente periférico aponta para o simbolicamente central. Em vez de as margens invadirem o centro como no carnaval, aqui o centro cria as margens, ou me­

lhor, não há margens; o tomate liga a família urbana burguesa ao pobre rural, através da linguiça e do tomate, dentro de uma teia de relações globais. Nesses filmes, o depósito de lixo se torna uma posição crítica estratégica da qual se vê a sociedade como um todo. Ele revela a for­ mação social vista “de baixo”. Como o depósito sobredeterminado de significados sociais, como uma concentração de significantes empilhados, o lixo é o lugar onde relações híbridas e multicronotópicas são refaturadas e reinscritas. O lixo define e ilumina o mundo; a lata de lixo, para reciclar o aforismo de Trotsky, é história. O lixo oferece uma base de dados de cultura material a partir da qual se pode ler costumes ou valores sociais. Polissêmico e polifónico, o lixo pode ser visto literalmente - lixo como fonte de comida para pessoas pobres, lixo como local de desastre ecológico - , mas pode também ser lido sintomaticamente como uma metáfora para denún­ cia social - pessoas pobres tratadas como lixo, lixo como o “depósi­ to” de produtos farmacêuticos ou de programas de TV “enlatados”, favelas (e prisões) como depósitos de lixo humano. Esses filmes revelam os “subtextos escondidos” do lixo, um texto alegórico a ser decifrado, uma forma de colonialismo social em que a verdade de uma sociedade pode ser “lida” em seus produtos descartados.

Situando o cinema com sotaque * 1 Hamid Naficy

Diretores com sotaque Os diretores da diáspora e do exílio discutidos neste artigo são personagens “locais, porém universais”, que trabalham no interstício das formações sociais e das práticas cinematográficas. A maioria deles é oriunda de países de Terceiro Mundo e pós-coloniais (ou do hemisfério sul) e, desde a década de 1960, tem migra­ do para centros cosmopolitas onde vivem sob tensão e dissenso com seu país de origem e com o país onde atualmente vivem. De um modo geral, eles trabalham de forma independente, fora do sis­ tema de estúdio ou das indústrias cinematográficas dom inantes, utilizando-se de modos de produção intersticiais e coletivos que criticam tais empresas. C onsequentem ente, presum e-se que eles

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [N .T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já teita e utilizada na p u b licação].

1. Este artigo é um a versão traduzida e reduzida de “Situating A ccented C in em a”, publicado em : Naficy, Hamid. An Accented Cinema. Princeton: Princeton University Press, 2001.

sejam mais propensos às tensões da marginalidade e da diferença. Pelo fato de compartilharem dessas características, a própria exis­ tência de tensões e diferenças ajuda a impedir que os diretores com sotaque se tornem um grupo homogêneo ou um movimento cinematográfico. As tensões e diferenças que os filmes codifi­ cam não são facilmente resolvidas por narrativas conhecidas e esquemas genéricos, daí seu agrupamento em um estilo com sotaque. As variações entre os filmes são geradas por muitos fa­ tores, enquanto suas similaridades se originam principalmente do que os diretores têm em comum: a subjetividade liminar e a posição intersticial na sociedade e na indústria cinematográfica. O que constitui o estilo com sotaque é a combinação e o cruza­ mento dessas variações e similaridades. Os diretores com sotaque vieram morar e fazer filmes no Oci­ dente em dois agrupamentos gerais. O primeiro foi deslocado ou atraído para o Ocidente, desde o fim da década de 1950 até a metade da de 1970, devido à descolonização do Terceiro Mundo, às guerras para a libertação nacional, à invasão da Polônia e da Tchecoslováquia pela União Soviética, à ocidentalização e a um tipo de “descolonização interna” no próprio Ocidente, envolvendo os diversos movimentos pelos direitos civis, de contracultura e antiguerra. Na verdade, como Frederic Jameson observa, o início do período chamado “anos 60” deve ser situado na descolonização do Terceiro Mundo, que influen­ ciou de forma significativa os movimentos sociopolíticos do Pri­ meiro Mundo (1984, p. 180 apud Hollanda, 1992). O segundo grupo surgiu nas décadas de 1980 e 1990 como um resultado da decadência do nacionalismo, do socialismo e do comunismo; das rupturas causadas pelo surgimento de economias

mundiais pós-industriais; da ascensão de formas militantes do Islã; do retorno de guerras religiosas e étnicas; da fragmentação de Estados-nações; das mudanças na política de imigração europeia, australiana e americana, incentivando a imigração não Ocidental; e do desenvolvimento tecnológico e consolidação dos computa­ dores e da mídia. Os diretores com sotaque são o resultado desse desloca­ mento binário pós-colonial e dessa difusão pós-m oderna ou modernidade tardia. Devido ao deslocamento das margens para o centro, eles se tomaram sujeitos na história mundial. Conquistaram o direito de expressão e ousaram conquistar os meios de representa­ ção. Embora marginalizados, estão no centro, e suas habilidades em acessar os meios de reprodução podem se mostrar tão poderosas aos que também vivem à margem na era pós-industrial quanto teria sido a tomada dos meios de produção pelos operários da era industrial. Ao se mapear o cinema estrangeiro, é importante diferenci­ ar três tipos de filme que o constituem: étnico, do exílio e da diáspora. Essas distinções não são fixas. Alguns filmes pertencem naturalmente a uma dessas classificações, enquanto a maioria apre­ senta as características dos três tipos em níveis diferentes. Há tam ­ bém subdivisões dentro de cada tipo. Além disso, no decorrer de suas carreiras, muitos diretores se mudam não apenas de um país para outro, mas também de um tipo de filme para outro, de acor­ do com a trajetória de suas viagens identitárias e de suas com uni­ dades de origem.

Tradicionalmente, o exílio é entendido com o a expulsão devido a alguma quebra de norma ou crime, com proibição de retorno. O exílio pode ser interno ou externo, dependendo do local para onde alguém é enviado. As extraordinárias limitações que os cineastas exilados internamente sofreram, as restrições, as privações e a censura em países totalitários são bem conhecidas. O que tem sido menos analisado é a forma como tais restrições, ao desafiarem os diretores, os forçam a desenvolver um estilo au­ toral. Muitos diretores que conseguiram escapar do exílio interno se recusam a seguir esse estilo, a fim de entrar numa batalha justa em casa - uma luta que frequentemente define não apenas o estilo de seus film es, mas tam bém sua id en tid ad e co m o figuras opositoras de valor. Por trabalharem sob um regime de exílio in­ terno, eles escolhem seu “local de luta” e seu potencial de transfor­ mação social (Harlow, 1991, p. 150). Quando se manifestam desse lugar - em casa - , eles têm um impacto, mesmo quando punidos, o que acontece frequentemente. Na verdade, o interrogatório, a censura e a prisão são provas de que suas vozes são ouvidas. Mas se saírem para o exílio externo do Ocidente, onde têm liberdade política para falar, pode ser que ninguém os ouça entre a cacofonia de tantas vozes competindo por atenção no mercado. Nesse caso, a famosa pergunta de Gayatri Spivak “Os subalternos podem fa­ lar?” terá de ser substituída por “Os subalternos podem ser ouvi­ dos?”. Devido à globalização, os exílios internos e externos entre os países não são isolados. Na verdade, há muito movimento e troca entre eles.

Neste estudo, o termo “exílio” refere-se, especialmente, a exílios externos: indivíduos ou grupos que voluntária ou involuntariamente partiram de seus países e que mantêm uma relação ambivalente com seus países e suas culturas de origem. Embora não retornem a seu país, nutrem um desejo intenso de voltar - um desejo que é representado nas narrativas de seus fil­ mes. Nesse ínterim, eles rememoram a terra natal, tornando-a fe­ tiche na forma de sons emotivos, imagens e cronotopos que cir­ culam intertextualmente na cultura popular do exílio, inclusive em filmes e vídeos musicais. Em síntese, a primeira relação dos exilados é com seus países e suas culturas de origem; com a visão, o som, o gosto e a sensação de uma experiência original de um outro lugar em outros tempos. Os exilados, especialmente os ci­ neastas que foram forçados a partir, tendem a querer definir, ao menos durante o período liminar de deslocamento, todas suas vi­ das não somente em relação com o país de origem, mas também em termos políticos. Como resultado disso, seus primeiros filmes tendem a representar seus países de origem e seu povo mais do que a si mesmos. A autoridade dos exilados como diretores autores deriva de sua posição de sujeitos que habitam em espaços intersticiais e locais de luta. Na verdade, toda autoria artística implica o distanciamento banimento e algum tipo de exílio - da sociedade maior. As ten­ sões e ambivalências resultantes produzem a complexidade e a intensidade que são tão características às grandes obras artísticas e literárias. Da mesma forma que o tabu sexual permite a procria­ ção, o exílio por banimento incentiva a criatividade. É claro que nem todo sujeito exilado produz uma arte significativa ou dura­

doura, mas muitas das grandes ou mais duradouras obras literári­ as e cinematográficas foram criadas por escritores e diretores exi­ lados. Mas o exílio pode resultar em uma forma conflituosa de liminaridade caracterizada pela oscilação entre os extremos. É uma zona de ansiedade e imperfeição em que a vida oscila entre o êxta­ se da confiança e o desalento da dúvida. Para os exilados externos, as relações de origem com a terra natal e as relações de aceitação com a sociedade que os acolhe es­ tão continuamente sendo testadas. Libertados do velho e do novo, eles estão “desterritorializados”, em bora perm aneçam entre o ve­ lho e o novo, o antes e o depois. Por estarem localizados numa zona tão escorregadia, podem ficar impregnados de um excesso híbrido, ou podem se sentir profundam ente destituídos e divi­ didos, até mesmo, fragmentados. O diretor e poeta lituano Jonas Mekas, que passou quatro anos na Europa em ambientes de pes­ soas deslocadas, antes de desembarcar nos Estados Unidos, expli­ cou seu sentimento de fragmentação da seguinte maneira: Mexeu com tudo o que eu acreditava - todo o meu idealismo, minha fé na bondade e no progresso da humanidade, tudo foi abalado. De alguma forma, tentei manter-me inteiro. Sincera­ mente, eu não era mais um todo; eu era mil pedaços dolorosos. E não me surpreendi quando, ao chegar em Nova Iorque, encontrei outras pessoas que se sentiam da mesma forma. Havia poetas, cineastas, pintores - pessoas que também estavam fragmentadas em mil pedaços dolorosos, (apud O’Grady, 1973, p. 229). Nem a fusão híbrida e nem a fragmentação são totais, per­ manentes ou indolores. De um lado, como os “indecidíveis” de Derrida, os novos exilados podem ser “ambos ou nenhum ”: o

fármaco, que é tanto o remédio quanto o veneno; o hímen, que representa tanto a membrana quanto sua violação; e o todo, sen­ do tanto a incorporação quanto a substituição (apud Bauman, 1994, p. 145-146). Por outro lado, eles podem ser conveniente­ mente chamados, nas palavras de Salman Rushdie, de “plurais e parciais” (Rushdie, 1994, p. 15). Como sujeitos parciais, fragmen­ tados e m ú ltip los, esses d iretores são capazes de produzir ambiguidade e dúvida sobre os valores tidos como garantidos em seus países de origem e do país em que se encontram. Eles tam ­ bém podem transcender e transformar a si mesmos para produzi­ rem identidades híbridas, sincréticas, reais ou virtuais. Porém, ne­ nhuma dessas identidades construídas e impuras é totalmente se­ gura, como demonstra a ameaça de morte de Aiatolá Khomeini para Salman Rushdie. É claro que nem todos os exilados transnacionais sentem uma dúvida fundam ental, lutam por uma au tocon stitu ição performática ou buscam imagens virtuais ou utópicas. Entretan­ to, os que permanecem nas longas e afetuosas crises e tensões da migração por exílio, da liminaridade e da intersticialidade, po­ dem se tornar fontes veementes da criatividade e do dinamismo que produz na literatura e no cinema obras como as de Joyce e Marguerite Duras, Joseph Conrad e Fernando Solanas, Ezra Pound e Trinh T. Minh-ha, Samuel Beckett e Sohrab Shahid, Saless, Salman Rushdie e Andrei Tarkovsky, Garcia Marquez e Atom Egoyan, Vladimir Nabokov e Raul Ruiz, Gertrude Stein e Michel Khleifi, Assia Djebar e lonas Mekas.

Originalmente, o termo diáspora faz referência à dispersão do povo grego após a destruição da cidade de Aegina, aos judeus após seu exílio na Babilônia e ao povo armênio após as invasões persas e turcas e a consequente expulsão em meados do século XVI. O paradigma clássico da diáspora envolveu os judeus, po­ rém muitos autores defendem que esse termo não define apenas a dispersão do povo judeu, mas tam bém a m ilhares de pessoas que historicamente são submetidas a dispersões - um processo que ainda continua em grande escala. O termo foi apropriado por outros povos que também sofreram dispersão, com o os afro-americanos nos Estados Unidos e os afro-caribenhos na Inglaterra, para definir o processo pelo qual foram sequestrados de seus lares afri­ canos e forçados a se dispersar no mundo novo. Nesta e em outras recodificações, o conceito de diáspora se aproxima muito do sen­ tido de exílio. Consequentemente, como destaca Khachig Toloyan, a palavra “diáspora” perdeu sua especificidade e precisão originais e tornou-se uma “categoria promiscuamente ampla, utilizada para incluir todos os fenômenos adjacentes aos quais está relacionada, mas dos quais, na verdade, difere nas suas maneiras de constitui­ ção” (Toloyan, 1996, p. 8). Neste texto serão apontadas, de forma concisa, as diferen­ ças e semelhanças entre exílio e diáspora. A diáspora, como o exí­ lio, frequentemente começa com trauma, ruptura e coerção e en­ volve a dispersão de povos para lugares fora de sua terra natal. Algumas vezes, porém, a dispersão é causada por um desejo de expandir o comércio, por trabalho ou por questões coloniais e

imperiais. Assim, os movimentos diaspóricos podem ser classifi­ cados de acordo com os fatores que os motivam. Robin Cohen (1997) sugeriu os seguintes exemplos e classificações: diásporas de vítimas/refugiados (como os judeus, africanos e armênios); diásporas de trabalho/serviço (indianos); diásporas de comércio/ negócios (chineses e libaneses); diásporas imperiais/colonialistas (ingleses e russos); diásporas culturais/híbridas (caribenhos). Como os exilados, as pessoas na diáspora têm uma identidade em seu país de origem antes de partirem, e sua identidade diaspórica é construída de acordo com sua identidade prévia. Entretanto, di­ ferentemente do exílio, que pode tornar-se individual ou coleti­ vo, a diáspora é necessariamente coletiva, tanto em sua origem quanto em seu destino. Consequentem ente, a identidade da diáspora é constituída de memórias coletivas de um país de ori­ gem normalmente idealizado. Essa idealização pode ser baseada na ideia de Estado, envolvendo o amor por uma terra natal real, ou pode ser menos estatal, baseada em um desejo por uma terra natal que ainda está por vir. A diáspora armena antes e depois da era Soviética foi baseada num Estado, ao passo que a diáspora palestina, desde a criação de Israel em 1948, é sem Estado, gerada pelo desejo palestino de criar um Estado soberano. Além disso, as pessoas na diáspora mantêm um senso de consciência e distinção étnica de longo prazo, que é consolidado pela hostilidade intermitente, tanto de seu país de origem quanto da sociedade em que agora se encontram . Entretanto, ao con trá­ rio dos exilados, que mantêm uma relação vertical e prim ária com seu país de origem , a consciência diaspórica é horizontal e multilocalizada, envolvendo não apenas seu país de origem , mas também com unidades com patriotas em outros lugares.

Consequentemente, pluralidade, multiplicidade, hibridismo são proeminentes entre as pessoas da diáspora, enquanto entre os exi­ lados políticos a dualidade e o binarismo são dominantes. Essas diferenças tendem a moldar os filmes da diáspora e do exílio de forma diferente. Os cineastas diaspóricos tendem a se concentrar menos que os do exílio nas relações emotivas com um único país de origem ou na asserção de que eles representam seu país e seu povo. Assim, seus trabalhos não se detêm em retrospecção, perda e falta ou em termos estritamente político-partidários. Seus filmes são marcados mais que os filmes de exílio pela pluralidade e pela representação da identidade. Em síntese, enquanto o binarismo e a subtração marcam os filmes de exílio, a adição e a multiplicidade caracterizam o cinema diaspórico. Muitos cineastas da diáspora são discutidos aqui individualmente, como os armênios. Os cineastas negros e asiáticos britânicos são discutidos coletivamente.

Cineastas pós-coloniais étnicos e de identidade Embora as comunidades exiladas, diaspóricas e étnicas prote­ jam suas fronteiras reais e simbólicas, a fim de preservar um pouco da identidade coletiva que as distingue da camada social e da ideo­ logia predominantes, elas se distinguem pela força relativa de sua conexão com comunidades compatriotas. Os cineastas pós-coloni­ ais étnicos e de identidade são étnicos e diaspóricos, mas eles dife­ rem da etnia pós-estúdio estadunidense, como Woody Allen, Francis Ford Copolla e Martin Scorsese, pelo fato de que alguns deles ou são imigrantes ou nasceram no Ocidente após 1960. Eles também

diferem dos cineastas da diáspora pela ênfase em sua identidade racial e étnica dentro do país em que se encontram. A ênfase diferente sobre a relação com o lugar gera filmes estrangeiros diferentes. Assim, o cinema de exílio é marcado pelo seu foco no aqui e agora em seu país de origem; o cinema diaspórico, pela relação vertical com seu país de origem e pela relação late­ ral com as comunidades e experiências da diáspora; e o cinema pós-colonial étnico e de identidade, pelas exigências do aqui e agora no país onde os cineastas residem. Como resultado desse foco no aqui e agora, filmes de identidade étnica tendem a lidar com o que Werner Sollors classificou como “o drama central da cultura americana”, que emerge dos conflitos entre relações de des­ cendência, enfatizando laços de sangue e etnicidade; e relações de aceitação, enfatizando afiliações construídas e contratuais (1986, p. 6). Em outras palavras, o cinema de exílio e diaspórico se preo­ cupa em ser; o cinema de identidade, em se tornar; enquanto o primeiro é conciliador, o segundo é contestador. Em bora tal dra­ ma esteja presente também, até certo ponto, em filmes diaspóricos e de exílio, o drama do local do país em que agora residem os diretores faz com que filmes étnicos e de identidade sejam dife­ rentes das duas outras categorias, nas quais as narrativas são fre­ quentemente centradas em algum outro lugar. Alguns dos problemas-chave do cinema étnico e de identida­ de estão codificados na “política dos hifenizados”. Reconhecidos como um marcador crucial de etnia e autenticidade em uma Améri­ ca multicultural, nomes de grupos como negro, chicano/a, oriental e pessoas de cor têm sido gradualmente substituídos por ter­ mos hifenizados, como afro-americano, latino-am ericano e asiá-

tico-americano. A adoção do hífen no cinema de identidade é vista como um marcador de resistência ao poder homogeneizador e hegemonizador da ideologia da miscigenação. Entretanto, usar e manter o hífen também apresenta várias conotações negativas. O hífen pode conter uma falta ou a ideia de que pessoas hifenizadas são, de alguma forma, subordinadas às pessoas não hifenizadas, ou que elas são “iguais, mas não exatamente iguais”, ou que nunca se­ rão totalmente aceitas ou confiáveis como são os verdadeiros cida­ dãos. Além disso, o termo pode sugerir uma lealdade dividida, o que é um lembrete doloroso para certos grupos de cidadãos ameri­ canos. O hífen pode também sugerir uma mente dividida, uma iden­ tidade irrevogavelmente partida ou um tipo de paralisia entre duas culturas ou nações. Finalmente, o hífen pode alimentar discursos nacionalistas que assumem essências autênticas que se encontram fora de qualquer ideologia e precedem ou se afastam da nação. Em termos nacionalistas, o hífen expressa relações verticais que enfatizam relações de descendência, raízes, profundidade, he­ rança, continuidade, homogeneidade e estabilidade. São relações alegorizadas em sagas de famílias e em narrativas de conflito entre mãe e filha e entre gerações nos filmes chineses-americanos, tais como, Um Amor em Chinatown (1989) e O Clube da Felicidade e

da Sorte (1993) de Wayne Wang. A tarefa do diretor nessa modali­ dade, nas palavras de Stuart Hall, é “descobrir, escavar, trazer à luz e expressar através da representação cinemática” aquela identida­ de cultural coletiva herdada, aquele “eu verdadeiro” (1994, p. 393). Com função contestadora, o hífen pode operar horizontalmente, realçando relações de consentimento, rupturas, heterogeneidade, deslizamentos e mediação como em Surname Viet Given Name

Nam fl985), de Trinh T. Minh-ha, e Masala (1990), de Srinivas Krishna. Nessa modalidade, os diretores não recuperam um passa­ do existente nem impõem uma coerência imaginária e frequente­ mente transformada em fetiche sobre suas experiências e históri­ as fragmentadas. Em vez disso, ao enfatizar a descontinuidade e a singularidade, eles demonstram estar no processo de tornar-se “sujeitos no ‘jogo’ contínuo de história, cultura e poder” (Hall, 1994, p. 394). O filme premiado Who Killed Vincent Chin? (1988), de Christine Choy e Rene Tajima, é realmente um tratado sobre a pro­ blemática do hífen no contexto asiático-americano; o filme tem como mote o assassinato de um sino-americano por desempre­ gados brancos de uma empresa de carros de Detroit que, ressenti­ dos com a importação de carros japoneses, confundiram-no com um japonês. Considerado um signo de identidade hibridizada, múltipla, ou identidade construída, o hífen pode se tornar libertário, porque pode ser representado e significado. Cada hífen é, na realidade, um conjunto de hífens, que consiste em vários outros hífens que fazem interseção e se sobrepõem e que, por sua vez, explicitam conexões inter e intraétnicas e nacionais. Essa fragmentação e m ul­ tiplicação podem operar contra o essencialismo, o nacionalismo e o dualismo. Face a face com demasiadas opções e significados, entretanto, alguns sugeriram remover o hífen, enquanto outros propuseram substituí-lo pelo sinal de adição (+). O documentário

Italianamerican (1974), de Martin Scorsese, inteligentemente re­ move o hífen e o espaço e liga o “ítalo” com o “americano” para sugerir um terceiro termo composto. O título do filme, do mais étnico dos diretores de cinema da Nova Hollywood, postula que

não há italianidade que preceda ou que se afaste da americanidade. Neste texto, mantive o hífen, já que esta é a forma de escrita mais popular dessas designações étnicas compostas. Os termos compostos que apresentam o hífen também apre­ sentam problemas, pois, ao mesmo tempo que cada termo pro­ duz aliança simbólica entre membros díspares de um grupo, ele tende a encobrir suas diversidades e especificidades. O termo “asi­ ático-americano”, por exemplo, inclui pessoas de raízes nacionais e culturais tão diversas como Filipinas, Vietnã, Camboja, Coreia, Ja­ pão, Tailândia, China, Laos, Taiwan, Indonésia, Malásia, índia, Bangladesh e Paquistão. A fim de refinar a expressão, são criados termos pouco usados como “diásporas do sudeste asiático”. Pro­ cessos e políticas semelhantes de nomeação foram criados pelos cineastas britânicos “negros”. As distribuidoras de filmes independentes, como Third World Newsreel, Icarus-First Run Films e Women Make Movies, exploram o hífen e a política do cinema de identidade, ao classificar esses filmes temáticamente ou por sua designação hifenizada. Tais classificações de destacam para aqueles interessados nesse tipo de filme, mas tam­ bém limitam o marketing e os discursos críticos sobre esses filmes, ao encorajar o público a interpretá-los mais com base no seu con­ teúdo étnico e na política de identidade e menos com base na visão autoral e nas inovações estilísticas. Vários diretores pós-coloniais de etnia e de identidade são discutidos individual e coletivamente. Diáspora, exílio e etnicidade não são estados fixos; antes dis­ so, são processos fluidos que, sob certas circunstâncias, podem se transformar um no outro e ir além. Também não há progressão direta e pré-determinada do exílio para a etnia, embora os apara-

tos ideológicos e económicos dominantes tendam a favorecer urna trajetória assimilativa - do exilio para a diáspora, para a etnicidade, para o cidadão, para o consumidor. [...]

A abordagem estilística A forma como os filmes são interpretados e recebidos tem mui­ to a ver com a maneira como estão enquadrados discursivamente. Às vezes, os filmes de grandes diretores imigrantes, tais com o, Alfred Hitchcock, Luis Buñuel e Jean-Luc Godard, estão enqua­ drados na categoria “internacional” de cinema. Mais frequente­ mente, eles são classificados tanto dentro de cinemas nacionais dos países que os acolheram quanto de gêneros e estilos de filme con­ solidados. Portanto, os filmes de F. W. Murnau, Douglas Sirk, George Cukor, Vincent Minnelli e Fritz Lang são geralmente considera­ dos exemplares do cinema estadunidense, do estilo hollywoodiano clássico, ou do melodrama e do cinema noir; Obviamente, os tra­ balhos desses e de outros diretores consolidados são também dis­ cutidos sob a rubrica de “cinema autoral”. Por outro lado, muitos diretores independentes exilados que fazem filmes sobre o exílio e culturas e políticas de suas terras natais (como Abid Med Hondo, Michel Khleifi, Mira Nair e Ghasem Ebrahimian) ou aqueles dire­ tores das minorias que fazem filmes sobre suas comunidades ét­ nicas (Rea Tajiri, Charles Burnett, Christine Choy, Gregory Nava, Haile Gerima e Julie Dash) normalmente são marginalizados como meramente nacionais, Terceiro Mundo, Terceiro Cinema, cinema

de identidade, cineastas que são incapazes de atingir totalmente públicos mais convencionais. Através de financiamento, progra­ mação de festivais e estratégias de marketing, esses diretores são frequentemente encorajados a se engajar em “direção ao salvamen­ to”, ou seja, fazer filmes que sirvam para preservar e recuperar he­ ranças culturais e étnicas. Outros diretores do exílio, como Jonas Mekas, Mona Hatoum, Chantal Akerman, Trinh T. Minh-ha, Isaac Julien e Shirin Neshat, são classificados como de vanguarda, en­ quanto outros, como Agnès Varda e Chris Marker, são considera­ dos inclassificáveis. Embora essas abordagens classificatórias sejam importantes para enquadrar filmes, a fim de melhor entendê-los, ou melhor vendê-los, elas também servem para determinar excessivamente e limitar os significados potenciais dos filmes. Suas consequências indesejáveis são particularmente graves para os filmes estrangeiros, porque as abordagens classificativas não são estruturas neutras. Elas são “construtos ideológicos” mascarados como categorias neutras (Altman, 1989, p. 5). Ao forçar a classificação dos filmes estrangei­ ros em uma das categorias estabelecidas, as próprias bases culturais e políticas que os constituem são agrupadas, mal-interpretadas ou obliteradas ao mesmo tempo. Tais esquemas tradicionais também tendem a confinar os diretores em guetos discursivos que pecam por não refletir ou responder por sua evolução pessoal e transfor­ mações estilísticas ao longo do tempo. Uma vez rotulados como “étnicos”, “etnográficos” ou “hifenizados”, os diretores com sota­ que assim permanecem, discursivamente, mesmo que já tenham mudado. Por outro lado, há aqueles como Gregory Nava, Spike Lee, Euzhan Paley e Mira Nair que já trocaram, com variados graus

de sucesso, o cinema étnico, do Terceiro Mundo pelo cinema co­ mercial, ao contar suas historias étnicas e nacionais de formas mais reconhecidamente narrativas. [».]

Estilo com sotaque Se o cinema clássico tem, de forma geral, esperado que com ­ ponentes de estilo, com o mise-en-scène, filmagem e edição pro­ duzam uma versão realista do mundo, o sotaque do exílio deve ser representado com o realmente é, se não subvertido, pelo m e­ nos modulado diferentemente. Henry Louis Gates Jr. caracterizou textos negros com o “m ulatos” ou “m ulatas”, que contêm dupla voz e uma herança de dois tons: Esses textos falam as línguas românicas e germânicas padrão com estruturas literárias, mas quase sempre falam com um sotaque distinto e ressonante, um acento que significa (principalmente) as várias tradições literárias vernáculas negras, que ainda estão sendo escritas. (1988). Filmes estrangeiros tam bém são textos “m ulatos” Eles são criados com a c o n sc iê n c ia das vastas h istó ria s dos m o d os cinemáticos predominantes. São tam bém criados de uma nova forma, constituída tanto pelas estruturas de sentim ento dos pró­ prios cineastas com o sujeitos deslocados, quanto pelas tradições de produções culturais diaspóricas e de exílio que os precede­ ram. Das tradições cinem áticas, eles adquirem um conjunto de vozes; e, das tradições diaspóricas e de exílio, adquirem outras

vozes. Essa dupla consciência constitui o estilo com sotaque que não somente significa para além do exílio e outros cinemas, mas também significa a condição do próprio exílio. Significa mais que as tradições cinemáticas, em função dos seus modos de produção artesanais e coletivos, os quais enfraquecem o modo de produção dominante, e das estratégias narrativas, que subvertem o tratamento realista do tempo, do espaço e da causalidade. Também significa, e para além do exílio, ao expressar, alegorizar, comentar e criticar as condições de sua própria produção e desterritorialização. Am­ bos os atos de significar e significação são constitutivos do estilo com sotaque, cujas características-chave são discutidas a seguir. O que transforma essas características em atributos de estilo é a sua inscrição repetida em um único filme, na obra inteira de cada dire­ tor ou nos trabalhos de vários diretores deslocados independen­ temente de seu local de origem ou residência. Por fim, o estilo demonstra seus deslocamentos e, ao mesmo tempo, serve para localizá-los como autores.

Língua, voz, tratamento Na linguística, sotaque se refere somente à pronúncia, en­ quanto dialeto faz referência também à gramática e ao vocabulá­ rio. Mais especificamente, o sotaque tem duas definições-chave: “O efeito sonoro cumulativo daquelas características de pronún­ cia que identificam o lugar, social ou regional, de uma pessoa” e “A ênfase que faz com que uma determinada palavra ou sílaba se sobressaia no fluxo de fala.” (Crystal, 1991, p. 2). Ao passo que os sotaques podem ser padronizados (por exemplo, como sotaques

ingleses, esco ceses, in d ian o s, canadenses, australianos ou estadunidenses), é impossível falar sem um sotaque. Há várias ra­ zões para as diferenças de sotaque. No inglês, a maior parte dos sotaques é regional. Os falantes de inglês como segunda língua também têm sotaques decorrentes de suas características regio­ nais e de sua língua nativa. As diferenças de sotaque frequente­ mente se correlacionam com outros fatores: origem social e de classe, religião, nível educacional e posição política (Asher, 1994, p. 9). Mesmo que, do ponto de vista linguístico, todos os sotaques sejam igualmente importantes, nem todos os sotaques possuem igual valor social e político. As pessoas utilizam os sotaques para julgar não somente o posicionamento social dos falantes, mas tam­ bém suas personalidades. Dependendo do sotaque, alguns falantes podem ser considerados regionais, caipiras, vulgares, feios ou cô­ micos, ao passo que outros podem ser tidos como educados, de classe alta, sofisticados, bonitos e distintos. O sotaque, portanto, é uma das marcas mais pessoais e poderosas de identidade de grupo e de solidariedade, assim como de diferença individual e de perso­ nalidade. As principais notícias das redes internacionais de televi­ são e de rádio nacionais são norm alm ente proferidas com o sota­ que “oficial”, ou seja, o sotaque que é considerado padrão, neutro e isento de valores. No cinema, o sotaque padrão, neutro, isento de valor, repre­ senta o cinem a dom inante produzido pelo modo de produção predominante na sociedade. Isso exemplifica o cinema clássico e o novo hollyw oodiano, cujos film es são realistas e pretendem ser somente um entretenim ento, portanto, livres de ideologia ou sotaque. Por essa definição, todos os cinemas alternativos têm sota­ que, mas cada um aparece de certa forma específica, o que o faz dis­

tinto. O cinema discutido aqui obtém seu sotaque de seus modos de produção artesanal e coletivo e das localizações desterritorializadas dos cineastas e dos públicos. Consequentemente, nem todos os fil­ mes estrangeiros são exilados e diaspóricos, mas todos os filmes exilados e diaspóricos têm sotaque. Se na linguística o sotaque per­ tence somente à pronúncia, não envolve a gramática e o vocabulá­ rio, o sotaque diaspórico e de exílio permeia a estrutura profunda do filme: sua narrativa, estilo visual, personagens, assunto, tema e enredo. Assim, o estilo com sotaque no filme funciona tanto como acento (sotaque) quanto dialeto na linguística. As discussões so­ bre sotaques e dialetos são geralmente confinadas à literatura oral e às apresentações faladas. Pouco foi escrito - além da acentuação tipográfica das palavras - sobre o que Taghi Modarressi chamou de “escrita com sotaque” (1992, p. 9). Em seu nível mais rudimentar, a produção de filmes com so­ taque envolve personagens dublados e atores que falem com um sotaque literal. No cinema hollywoodiano clássico, os sotaques dos personagens não são um indicador confiável da etnia dos atores. No cinema estrangeiro, entretanto, os sotaques dos personagens são, com frequência, étnicamente codificados, pois, neste cinema, mais frequentemente do que nunca, a etnia do ator, a etnia do personagem e a etnia da persona da estrela coincidem. Entretanto, em alguns desses filmes, a coincidência é problematizada, como nos filmes epistolares de Chantal Akerman (Notícias de Casa, 1976) e Mona Hatoum (Measures o f Distance, 1988). Em cada um desses trabalhos, uma filha diretora lê, com sotaque inglês, as cartas que recebeu da mãe. O público pode supor que são as vozes das mães (completa coincidência entre os três sotaques), mas já que nenhum

dos filmes declara qual voz estamos ouvindo, a coincidência é sub­ vertida e os espectadores devem especular sobre o verdadeiro re­ lacionamento do sotaque com a identidade, a etnia e a autentici­ dade do falante ou confiar na informação extratextual. Uma das grandes privações do exílio é a deterioração gradu­ al e a perda potencial da língua materna, pois a língua serve para moldar não somente a identidade individual, mas também as iden­ tidades regionais e nacionais anteriores ao deslocamento. Amea­ çados por essa perda catastrófica, muitos diretores com sotaque obstinadamente insistem em escrever os diálogos em suas línguas originais - em detrimento da distribuição maior dos filmes. To­ davia, a maioria dos filmes com sotaque é bilíngue, até mesmo multilíngue, multivocal e multiacentuada, como Calendar, de Egoyan (1993), que contém uma série de monólogos no telefone em uma dúzia de línguas não traduzidas, ou On Top o f the Whale, de Raul Ruiz (1981), cujo diálogo é falado em mais de uma dúzia de línguas, uma delas inventada pelo próprio Ruiz. Se o cinema dominante é movido pela hegemonia do som sincrónico e por um alinhamento rigoroso de falante e voz, os filmes com sotaque são contra-hegemônicos, pois, como muitos, deixam de enfatizar som sincrónico, insistem em narrações em primeira pessoa e, em outras narrações dubladas proferidas com um forte sotaque do país de imigração, criam lapso entre voz e falante e inscrevem no dia a dia pausas não dramáticas e longos silêncios. Os filmes com sotaque enfatizam fetiches visuais da terra na­ tal e do passado (paisagem, monumentos, fotografias, lembranças, cartas) e também marcadores visuais de diferença e de pertencimento (postura, olhar, estilo de roupa e comportamento). Eles acentuam,

de form a equivalente, o oral, o vocal e o musical - ou seja, sota­ ques, entonações, vozes, música e canções, que também demar­ cam identidades coletivas e individuais. Essas vozes podem per­ tencer a pessoas reais e fictícias, como a voz narrativa de Mekas em seus filmes de reminiscencias; ou podem ser vozes fictícias com o em Letter from Siberia, de Marker (1958), e em Sunless (1982); ou podem ser vozes com sotaque, cuja identidade não está firm em en te estabelecida, com o nos film es m encionados de Akerman e Hatoum. Os quatro filmes de Sergei Paradjanov não são som ente intensam ente visuais em sua encenação teatral e marcada por tableaux vivants (quadros vivos), mas também pro­ fundamente orais da forma que são estruturados: como narrati­ vas orais que são contadas à câmera. A ênfase em sotaques musicais e orais redireciona nossa aten­ ção da hegemonia do visual e da modernidade para a questão acús­ tica do exílio e a mistura de pré-modernidade e pós-modernidade nos filmes. Tanto a polifonia quanto a heteroglossia localizam e si­ tuam os filmes como textos diferentes cultural e temporalmente. Cada vez mais, os filmes com sotaque estão usando a tela como uma placa para a escrita, na qual aparecem múltiplos textos nas línguas originais e na tradução na forma de títulos, legendas, intertítulos ou blocos de texto. A manifestação caligráfica desses textos deixa de enfatizar a questão visual, ao mesmo tempo em que enfatiza a textualidade e as questões de tradução e de arte intercultural. Por serem multilíngues, os filmes com sotaque requerem legendas extensas somente para traduzir os diálogos. Entretanto, muitos de­ les vão além disso, ao experimentar a tipografia na tela como um modo suplementar de narração e expressão. Os filmes Lost, Lost,

Lost, de Mekas, Nome Vet, Sobrenome Nam, de Trinh, e History and Memory, de Tajiri (1992), possuem múltiplas apresentações de textos em inglês na tela ligados, de forma complicada, com o diálogo e com as vozes narrativas, as quais possuem também pro­ núncia com sotaque. Nos casos em que o texto na tela é escrito em línguas “estrangeiras”, como em Homage by Assassination, de Suleiman (1991), e em Measures o f Distance, de Hatoum, que apre­ sentam palavras em árabe, o sotaque oral é complementado por um acento caligráfico. A inscrição desses acentos visuais e orais transforma o ato de assistir ao filme, de somente assistir, em assis­ tir e literalmente ler a tela. Ao incorporar voz narrativa, tratamento direto, multilínguas e multivozes, os filmes com sotaque, particularmente a variedade epistolar, desestabilizam o narrador onisciente e o sistema narra­ tivo do cinema e do jornalismo dominantes. As cartas dos filmes frequentemente contêm o tratamento direto dos personagens (ge­ ralmente na primeira pessoa do singular), o discurso indireto do diretor (como o contador da história) e o discurso indireto livre do filme no qual a voz direta contamina a indireta. Calendar; de Egoyan, combina todos esses três discursos para criar confusão com relação a que está acontecendo, quem está falando, quem está se dirigindo a quem, quando o fotógrafo diegético e sua esposa na tela (representada pela esposa real de Egoyan) se retiram e onde as pessoas históricas de Atom Egoyan e Arsinee Khanjian com e­ çam. O estilo com sotaque em si é um exemplo de discurso indire­ to livre para forçar o cinema dominante a falar em um dialeto minoritário.

O estilo com sotaque não é um gênero de filme totalmente reconhecido e aprovado, e os diretores do exílio e da diáspora nem sempre fazem filmes com sotaque. De fato, a maior parte deles gostaria de estar no lugar de Egoyan, mover-se dos nichos do cinema marginal para o mundo do cinema de arte ou, até mes­ mo, para o cinema popular. O estilo permite aos críticos rastrearem a evolução do trabalho não só de um diretor, mas também de um grupo. A produção de filmes asiático-americanos tem gradualmen­ te evoluído de um foco étnico para uma sensibilidade diaspórica e de exílio, enquanto os cineastas iranianos exilados evoluíram em direção a uma sensibilidade diaspórica. Essas evoluções sinali­ zam a transformação tanto dos diretores quanto de seus públicos. Elas também sinalizam a apropriação dos cineastas, de seus pú­ blicos e de certas características do estilo com acento pelo cinema dominante e por seus produtos independentes. Uma vez que o estilo vai além do conhecimento para situar os cineastas dentro de suas formações, locações culturais e práticas cinemáticas, o estilo com sotaque não é nem hermético, nem homogêneo ou autônomo. Ele corre em linhas sinuosas e evolui. É um elemento inalienável do processo social material e do modo de produção diaspórico e de exílio.

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Outras m argens, outros centros: algumas notas sobre o cinema periférico con tem porân eo Angela Prysthon

O sucesso recente de algumas cinematografias nacionais ou regionais (caso, por exemplo, do cinema iraniano e do asiático na década de 1990, ou do cinema latino-americano nos últimos cin­ co anos) faz com que lembremos muito vividamente da década de 1960 e dos movimentos culturais que refletiam as profundas transformações pelas quais o mundo estava passando na época. Das novas ondas aos novos cinemas, passando pelos neorrealismos e cinemas livres, especialmente a partir do final da década de 1950, o cinema (e o estudo do cinema também pode ser incluído numa percepção mais abrangente do fenômeno) passou a ser fortemen­ te marcado pela política, pelo engajamento, pela dissidência, pela opção pelas “margens”. Desde uma personagem como a adoles­ cente da classe operária inglesa Jo (Rita Tushingham), de Um gos­

to de mel (Tony Richardson, 1961, Inglaterra), que engravida de um marinheiro negro e emula um “casamento” com um jovem estudante gay, até o judeu Ariel (Daniel Hendler), de O abraço

partido (Daniel Burman, 2004, Argentina), com a sua vontade de se tornar “polaco”, passando pela denúncia dos filmes mais

explicitamente políticos e chegando à representação da política das minorias contemporâneas. Nessa, em certo sentido, ao longo de todas essas décadas, o conceito de Terceiro Mundo e o radicalismo a ele associado foram sendo transpostos ao cinema (alguns cine­ astas e teóricos ainda usam o termo “Terceiro Cinema” para se referir ao cinema dos países não desenvolvidos ou ao cinema fei­ to às margens da estética hollywoodiana). Entretanto, é evidente que o atual interesse pelas cinemato­ grafias periféricas não pode ser completamente equacionado ao espírito da contracultura e do cinema da década de 1960. É im­ portante sublinhar o que há de distinto na inclinação corrente pelos discursos identitários no cinema contemporâneo. Para en­ tender o cinema contemporâneo, faz-se necessário relacionar as­ pectos históricos que consolidaram a ideia de Terceiro Mundo e os fenômenos culturais que fizeram parte desse contexto. Tam­ bém se faz relevante delinear os movimentos que refletiam as pro­ fundas transformações pelas quais o mundo estava passando e que, por sua vez, tam bém definiam o espírito da época de modo paradigmático. Destacamos a influência que o conceito de Tercei­ ro Mundo teve para a construção dos imaginários cinematográfi­ cos (não apenas os cinematográficos, é evidente). O termo “Terceiro Mundo” começou a ser utilizado por demógrafos e geógrafos franceses na década de 1950 como a outra peça no quebra-cabeças do mundo pós Segunda Guerra Mundial, em relação a um primeiro mundo capitalista e ocidental e um se­ gundo mundo socialista. Nessa época, talvez com o valor de eufe­ mismo, ele substitui a ideia mais difusa, menos organizada e mais traumática de “países pobres”. A partir das lutas de independência

das colônias europeias na África e na Ásia, o termo adquire um certo prestígio. A unidade pretendida por ele traz, pois, em seu bojo, uma dimensão revolucionária. A dimensão de relevar as di­ ferenças em prol de um ideal libertário legitimaria então a noção de Terceiro Mundo. Na conferência de Bandung, em 1955, o ter­ mo teve a sua primeira expressão política oficial, quando se reu­ niram todas as nações “não alinhadas” - ou seja, nem ao primeiro mundo, nem ao segundo (Harlow, 1987). A concepção libertária de Terceiro Mundo foi favorecida por paradigmas apresentados nos séculos e, principalmente, nas déca­ das anteriores: pelo existencialismo, pelas leituras que o terceiro mundo fez de Sartre, pelo próprio declínio do humanismo (Jameson, 1984). Um modelo estabelecido por Frantz Fanón, em Les damnés

dela terre>de 1963, obra precursora, em certa medida, da unidade, do “chamamento” ao Terceiro Mundo. Um chamamento de luta, de violência, de uma relativa rejeição dos cânones “ocidentais”: uma tentativa de se livrar de certas concepções de cultura, sociedade, his­ tória, política. O impacto da visão de Fanon é notável por sua disse­ minação em todo(s) o(s) mundo(s) (especialmente no “terceiro”, obviamente). A sua influência se deve tanto à sua teorização sobre descolonização e violência, à sua apreensão do espírito da época e à denúncia anti-imperialista que ele inspira, quanto à sua capaci­ dade de pensar essa descolonização como construção violenta, sim, mas com fins utópicos. Uma provável unidade terceiro-m undista possibilitaria a atuação destacada do Terceiro Mundo no “mundo”, na ordem in­ ternacional. A voz coletiva desse legado de pobreza e exploração se fez ouvir mais forte durante a década de 1960 e com as revolu-

ções vencedoras e com as fracassadas, que assustam e maravilham este “mundo”. Desde o pós-guerra, a Nouvelle Vague francesa re­ voluciona esteticamente o cinema e o neorrealismo italiano e, al­ gum tempo depois, o Free Cinema britânico mostra uma Europa quase terceiro-mundista: os estudantes em maio de 1968, o movi­ mento estadunidense contra a Guerra do Vietnã, os hippies estadunidenses “instituindo” uma contracultura. O “mundo” viu Cuba, as guerrilhas, Che, a revolução cultural chinesa: a cultura mundial acabou sendo influenciada e acabou influenciando os mo­ vimentos políticos simultaneamente. O conceito de Terceiro Mundo serve, a partir da década de 1960 - para além das delimitações eufemísticas e conservadoras da geografia contemporânea - , para estabelecer uma unidade de cunho libertário e idealista. Os processos de descolonização, de conscientização social e de luta política, desencadeados no globo ao longo deste período, não se esgotam em si mesmos: eles fazem parte da grande crise da modernidade que implica também uma reorga­ nização (ou desorganização) cultural em todos os cantos do globo. Uma das mais diretas e evidentes influências da consciência tercei­ ro-mundista (e todas as suas implicações) foi a própria constituição da ideia de Terceiro Cinema. De acordo com a ideia de transformação da sociedade pela conscientização trazida à tona pelos ideais terceiro-mundistas, os principais temas dos filmes do Terceiro Cinema serão a pobreza, a opressão social, a violência urbana das metrópoles inchadas e m i­ seráveis, a recuperação da história dos povos colonizados e oprimi­ dos e a constituição das nações. Os praticantes do Terceiro Cinema se recusam a adotar um modelo único de estratégias formais ou a se

transformarem em um “estilo” embora isso não tenha significado que eles estivessem alheios ao cinema mundial e à ideia de um modelo, se aberto, ao menos em linhas gerais, unificador. Além de buscar os temas nas esferas marginalizadas da socieda­ de, estes cineastas demonstram laços estilísticos estreitos com o neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Tais influências serão sentidas em dois níveis principais: o neorrealismo italiano serve como proposta similar de abordagem formal, que pode ser aproveitada por sua simplicidade, baixo custo e linguagem direta; e a Nouvelle Vague como afirmação do “cinema de autor”, o que possibilita a consolidação das linguagens individuais dos princi­ pais expoentes do movimento. A partir desses elementos, emerge um conjunto de procedimentos mais ou menos comuns à maio­ ria dos diretores engajados na denúncia social. Por um lado, técnicas abertas e simples (em contraste com a sofisticação tecnológica do modelo de estúdios hollywoodianos); por outro, a veiculação de ideias complexas e revolucionárias, como a liberação terceiro-mundista, as teorias do subdesenvol­ vimento etc. O Terceiro Cinem a pode ser visto, assim, como um statement sobre o cosm opolitism o de duas vias: primeiro, como interpretação latino-am ericana das últimas tendências es­ téticas europeias (cosm opolitism o “à moda antiga”) com o o neorrealismo e a Nouvelle Vague; segundo, como negação desse cosmopolitismo tradicional, no qual existe um centro metropoli­ tano definindo o que os povos subalternos devem fazer. No Ter­ ceiro Cinema, os destituídos são colocados no centro. A atitude é de rebeldia, e não apenas a rebeldia estética, mas a rebeldia políti­ ca e de ação social.

É irrefutável que o Terceiro Cinema, que teve na América Latina seus primeiros e talvez mais eminentes cineastas e teóricos (Fernando Solanas e Octavio Getino na Argentina, Glauber Rocha no Brasil, Jorge Sanjinés na Bolívia) (Dissanayake; Guneratne, 2003, p. 3), teve seu período áureo exatamente na mesma época em que o chamamento terceiro-mundista ecoava com mais força, ou seja, durante a década de 1960, ápice da contracultura e momento crucial de formação, prática e teorização de uma “estética geopolítica” (Jameson, 1995). Assim como as utopias terceiro-mundistas fo­ ram definhando ao longo da década de 1980, também a noção de Terceiro Cinema foi gradualmente perdendo lugar (tanto nas sa­ las de exibição quanto na própria pesquisa na área de cinema e audiovisual). A década de 1980 foi quase definitiva para o terceiro-mundismo (para o conceito de Terceiro Mundo, para a estética terceiro-mundista, para a prática revolucionária terceiro-mundista que restou dela). Primeiro porque foi a partir dessa década que se questionou teori­ camente com mais ênfase a validade do termo, justamente a partir dos Estudos Culturais e do pós-colonialismo. Também na década de 1980, começamos a assistir ao caos do segundo mundo, culmi­ nando na sua “dissolução” como segundo mundo, simbolizada pela queda do Muro de Berlim em 1989. O não alinhamento às grandes potências se esgotou como estratégia de resistência e opo­ sição ideológica. Por isso, também, a estética terceiro-mundista radical pereceu e outras “terceiras margens” foram buscadas, já que não parecia funcionar mais a apologia do oprimido. Talvez tenha acontecido a desilusão final do Terceiro Mundo como categoria unificada e indivisível:

The term Third World\ post-colonial critics insist, was quite vague in encompassing within one uniform category vastly heterogeneous historical circumstances and in locking in fixed positions, structurally if not geographically, societies and populations that shifted with changing global relationships. (Dirlik, 1994, p. 3 3 2 )1.

Diálogos contemporâneos Se a década de 1980 representa uma espécie de vácuo para o Terceiro Cinema (e para a estética terceiro-mundista) como um todo, a segunda metade da década de 1990 significou a reemergência de muitas das questões ligadas ao imaginário político-social das décadas de 1960 e 1970. Entretanto, o que podemos chamar de “reinsurgência da periferia” ou “reencenação da subalternidade” se deu de maneira muito distinta do discurso engajado precedente. Poderíamos dizer que, de maneira geral, a década de 1980 foi um período que não parecia fazer parte do dominante cultural dos principais países “terceiro-mundistas” produtores de cinema (em especial a América Latina). A representação de aspectos polí­ ticos, a tematização das identidades nacionais e das realidades mais desoladoras foram quase que totalmente abandonadas, e, quando ainda se insistia numa temática mais próxima àquela do Terceiro

1. “O term o Terceiro Mundo, os críticos pós-coloniais insistem , era um tan to vago ao abarcar num a categoria unitorm e circunstâncias históricas am plam ente hete­ rogêneas e ao colocar em posições estrutu ralm ente fixas sociedades e populações que se deslocaram com as relações globais cam biantes.”

Cinema original, o resultado refletia uma espécie de esvaziamento. Contudo, a retomada evidenciada na década de 1990 representa menos uma drástica mudança e mais um gradual amadurecimento dos preceitos culturais (e até teóricos) anteriores. As próprias ten­ dências acadêmicas mundiais rumo a uma valorização do ex­ cêntrico, do periférico, do marginal (Bhabha, 1998) tiveram um efeito revigorante sobre os cinemas nacionais. Até mesmo os reno­ vados paradigmas filosóficos e sociológicos trazidos à tona pelos Estudos Culturais e teorias pós-coloniais, embora de forma m ui­ to lateral e específica, contribuíram não apenas para o redespertar do interesse no agora chamado World Cinema^ mas para revitalizar os instrumentos de leitura e recepção dos filmes. Pois, se do ponto de vista teórico parece evidente que um dos elementos mais essenciais no campo cultural nas últimas décadas do século XX é o descentramento - em vários sentidos e não apenas no territorial (descentramento do sujeito e das identidades provo­ cado pela fragmentação social, descentramento geográfico facilita­ do pelo desenvolvimento tecnológico, e descentramento cultural favorecido pelas tendências multiculturalistas e pelos diálogos interculturais que se intensificam a partir da década de 1980) - , o impacto da gama de processos que redimensiona o papel da peri­ feria, das margens e do Terceiro Mundo na história e na teoria vai ser igualmente indiscutível no estabelecimento e na consolidação de estéticas cinematográficas alternativas. Os descentramentos (teóricos, estéticos e materiais) supõem também a dissolução de fronteiras, de heterogeneidade cultural, de interpenetração de discursos, de diálogo entre “mundos”. Mun­ do tecnológico e mundo natural. “Primeiro” e “terceiro” mundos.

Global e local. Universal e regional. Metrópoles e aldeias. Ociden­ te e Oriente. Discursos “originais” e hibridismos. Cânones e mar­ gens. Territórios que se sobrepõem uns aos outros, interstícios constantemente ampliados. Um encontro, um diálogo tenso entre mundos que às vezes se opõem e às vezes se complementam. Uma política de diferenças vai sendo engendrada por meio de comple­ xas negociações, sobreposições e deslocamentos culturais. Os descentramentos da sociedade contemporânea vão tendo, natu­ ralmente, um forte impacto na maneira como se vive, se pensa e se constrói a noção de diálogo intercultural. São complexos proces­ sos de “realinhamento de fronteiras” que afetam profundamente não apenas a produção cultural contemporânea, mas a forma de pensá-la, de analisá-la e de catalogá-la. O cinema periférico tem emergido nos últimos anos como uma espécie de moda cultural dos grandes centros. Está quase que automaticamente preservado o “direito de exibição” por essas “de­ nominações de origem”. Esse lugar de destaque - conquistado so­ bretudo a partir do final da década de 1990 e início da de 2000 com filmes como O balão branco (Jafar Panahi, 1995, Irã); Cen­

traldo Brasil(Walter Salles, 1998, Brasil), Amores Brutos (Alejandro González Iñarritú, 1999, México), Nove rainhas (Fabián Bielinsky, 1999, Argentina), Amor à flor da pele (Wong Kar-Wai, 2000, Hong Kong) - não é definido por uma unidade estética ou temática (em­ bora possamos agrupar algumas recorrências, evidentemente, ao longo das duas últimas décadas), mas sim pela vaguíssima possi­ bilidade de redelineamento da noção de Terceiro Cinema através do termo World Cinema e do conceito de multiculturalismo.

Entretanto, é possível enumerar e comentar (de modo talvez excessivamente panorâmico e superficial) algumas características do antes chamado Terceiro Cinema a partir da década de 1990. Começamos notando que há urna busca explícita pela inserção no mercado de cultura mundial; tal inserção está, de certo modo, garantida pelo espirito do tempo, um momento bem propicio no qual a cultura periférica não apenas passa a ser percebida pela cul­ tura central, como passa a ser consumida na metrópole, o ponto em que a diferença cultural passa a ser encarada quase como estra­ tégia de marketing. Caso, por exemplo, do cinema latino-am eri­ cano, que, ao final da década de 1990, passa a ser rotulado de “Ci­ nema Buena Onda” por certa imprensa internacional2. Em alguns filmes e cineastas, fica evidente a forte inclinação para o passado, numa tentativa explícita de rearticulação da tradição, o que, m ui­ tas vezes, parece ser o sinal de urna nostalgia, o sintoma de urna saudade cultural, como também pode ser a explicitação de um diá­ logo dessa tradição com a modernidade. Pode ser a subversão da ideia de identidade nacional, tendo em vista um cosmopolitismo ex-cêntrico. No cinema brasileiro, por exemplo, esta tendência vai ser bem marcada, considerando especialmente a herança da estéti­ ca do Cinema Novo e as tentativas revisionistas da história recente

2.

Várias revistas e veículos do m ercado cultural europeu reúnem diretores de o ri­ gem diversa, com o Fernando Meirelles, Pablo Trapero, Fabián Bielinsky, W alter Salles etc., sob a égide de Cinema Buena Onda. Buena Ondaé tam bém o nom e de uma das produtoras associadas do filme Família rodante(2 0 0 4 , A rgentina), de Pablo Trapero, entre outros.

do país. Esse cinema apresenta, num direto contraponto à cultura

yuppie'yconsumista e frívola de um primeiro pós-modernismo da década de 1980, uma tentativa de rearticulação com a tradição e afirma constantemente as narrativas da nação, mas frequente­ mente procurando subverter noções fechadas sobre identidade. O passado, a tradição, a história passam a ser material fundamen­ tal dessa produção cinematográfica. Tais opções revelam uma espécie de segundo pós-modernismo cinematográfico ligado ao Terceiro Cinema, em oposição ao preexistente na década de 1980 (marcado pela superficialidade, pelo artifício, pela influência estadunidense). Um pós-modernismo re­ gido pelos princípios de “recuperação”, de “reciclagem”, de “reto­ mada” da tradição, da história, e de um certo autoexotismo em oposição ao gosto pelo estrangeiro, pelo cosmopolitismo tradi­ cional, pelo discurso intemacionalista do pós-modernismo da dé­ cada anterior. Nesse sentido, vão sendo definidas modernidades periféricas. O caso do cinema asiático é especialmente notável pela sofisticação visual com que essas versões alternativas da m odernidade são apresentadas. Pensem os em film es com o

Oldboy (Chanwook Park, 2005) ou O gosto da melancia (Tsai Ming-Liam, 2004) que, sem a urgência de rejeitar os cânones narrativos hegemônicos e populares, pelo contrário, dialogando muito diretamente com eles (no caso de Park, os filmes de aven­ tura e ação, o imaginário pós-moderno ocidental; no caso de Ming-Liam, os musicais), vão estabelecendo novos paradigmas estéticos - simultaneamente globais e locais - e redefinindo de modo muito peculiar a ideia de pós-moderno.

Talvez a característica mais relevante do cinema periférico contemporâneo seja justam ente a maneira com o ele se volta para a documentação do pequeno, do marginal, do periférico, mes­ mo que para isso se utilize de técnicas e formas de expressão (às vezes, até equipe de produção) de origem central, metropolitana, hegemônica, marcando assim uma distância enorme da tradição cinematográfica terceiro-mundista da década de 1960. A diferen­ ça, a história e a identidade periféricas, tal com o representadas pelo cinema contem porâneo, se tornam peças constitutivas da tentativa de integração ao modelo capitalista global. A ideia de articulação periférica e da identidade nacional com uma roupa­ gem “globalizada” nesses filmes não só faz parte do establishment> como mostra, de forma muito clara, o funcionam ento do merca­ do cultural globalizado. Também a cidade desenhada pelo “novo” Terceiro Cinema pouco tem a ver com os clichês recorrentes (um exemplo muito interessante está na forma como Buenos Aires é representada no filme Felizes juntos, do chinês Wong Kar-Wai, que mostra um ca­ sal gay, originário de Hong Kong, em férias em Buenos Aires; de­ pois de gastar todo o dinheiro que tinham, passam por uma série de contratempos que os impede de voltar para a Ásia; a ideia parece ter sido subverter o olhar, mostrar uma tradução asiática da Améri­ ca Latina, assim, tornando-se um dos exemplos mais bem acabados de diálogo intercultural do cinema recente). E é precisamente atra­ vés de imagens urbanas pouco usuais e da opção estética pelo pe­ queno, pelo detalhe, pelo periférico que os filmes constroem uma representação alternativa, mais plena de nuances e mais complexa, do mundo contem porâneo. Rem ontando, em certa medida, à temática do Terceiro Cinema original (desvalidos, subalternos,

excluídos), porém sem deixar de privilegiar os aspectos técnicos do cinema (a maior parte da produção contemporânea periférica tem imagem e som comparáveis às grandes produções do cinema

mainstream), o cinema periférico contemporâneo atualizaria o dis­ curso do terceiro-mundismo (ou seja, uma maneira pós-moderna de falar da subalternidade, do periférico), retirando dele o tom politicamente engajado explícito, a “estética da fome” e a técnica propositadamente limitada. Enfim, a partir dessas notas mais gerais sobre o Terceiro Ci­ nema - ou cinema periférico contemporâneo - , vislumbramos não somente a vaga delimitação de uma estética cinematográfica contemporânea - uma estética da identidade e da diferença - , mas uma espécie de dominante cultural que poderia ser diretamente associado a outras esferas da cultura. O cinema tem sido, aliás, o cerne de uma significativa parcela das publicações recentes na área de Estudos Culturais (como Shiel; Fitzmaurice, 2006; Barber, 2002; Vitali; Willemen, 2006; Grant; Kuhn, 2006; Badley; Palmer; Schneider, 2006; entre muitos outros). Há, portanto, um notável interesse das teorias da cultura em dar conta dessa produção cinematográfica, reconhecendo nela simultaneamente um corpus relevante de obje­ tos materiais do contemporâneo (passíveis de análise formal) e um campo de representações (e muitas vezes também de práticas) de subversão e resistência subculturais.

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M Ó D U L O III Enunciados de nacionalidade e imaginários transnacionais

Cinema chinês no novo século: perspectivas e problemas*' Yingjin Zhang

Introdução: um sentimento de euforia O ano 2005 foi celebrado com o o ano do centenário do ci­ nema chinês, e ninguém duvidaria do crescimento extraordiná­ rio do cinema da China continental no novo século (para não tornar extensa a discussão, os cinemas de Hong Kong e de Taiwan não são discutidos neste texto). Os números de produção e de bi­ lheteria corroboram um sentimento geral de euforia. Excluindo os títulos feitos para a televisão, as produções anuais de filmes aumen­ taram quatro vezes, de 83, em 2000, para 330, em 2006. As receitas totais de bilheterias também subiram de 960 milhões de renminbis em 2000, para 2.620 milhões, em 2006,2enquanto a bilheteria de

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].

1. Este artigo é uma versão traduzida d e“Chinese cinema in the New Century: Prospects and Problems”, publicado em World Literature Today,; v. 81, n. 4, jul./ago. 2 0 0 7 . 2. Qianlong.com lançam ento em: 20 de janeiro de 2007. Disponível em : < h ttp :// new s.qianlong.com /28874/2007/01/20/2502@ 3626854.htm >. Outras estatísticas ci­ tadas neste artigo são tiradas de várias fontes, tais com o Zhongguo dianyingnianjian (o livro do ano dos filmes chineses), 2000-2004 - Beijing: Zhongguo dianying nianjian

filmes domésticos subiu de 280 milhões de renminbis, em 2000, para 1.200 milhões, em 2005. Além disso, os novos registros de bilheteria para os filmes domésticos foram estabelecidos um após o outro. No fim de janeiro de 2002, O Funeral do Chefão (2001), de Feng Xiaogang, obteve lucros de 11 milhões de renminbis em apenas 40 dias,3 e continuou fazendo sucesso até atingir o recorde de 42 milhões. Um ano mais tarde, H erói (2002), de Zhang Yimou, tomaria conta do país e reivindicaria o maior recorde de todos os tempos - 250 milhões de renminbis em exibição doméstica. O

Clã das Adagas Voadoras (2004), de Zhang Yimou, The Promise (2005), de Chen Kaige, e The Banquet (2006), de Feng Xiaogang, reconfirmaram a expansão aparentemente infinita do cinema chi­ nês, cada filme obtendo entre 140 e 170 milhões de renminbis somente na China. Apesar da euforia sobre as perspectivas de bilheteria, proble­ mas fundamentais continuam a constranger o cinema chinês, que cresceu dentro de uma indústria assimétrica, forte em produção, porém fraca em exibição. Se investigarmos os sucessos da bilhete­ ria doméstica anual, torna-se óbvio que muitos filmes de sucesso são coproduções financiadas em sua maioria por capital estran­ geiro, e alguns dos dez de maior sucesso poderiam até mesmo ser um fracasso quando os custos de produção e promoção são contabilizados. Além disso, a definição de “filme nacional” se tor­ na questionável quando a coprodução estrangeira está envolvida. De

chubanshe, 2001-2005), assim como artigos em revistas acadêmicas Dangdaidianying (Cinema contemporâneo) e Dianyingyishu {Filme arte) poucos anos atrás. 3. Ver: Zhang, Yingjin. Chinese National Cinema. London: Routledge, 2004. p. 292.

fato, a Columbia Ásia esteve por trás de vários sucessos “nacionais”, como O Funeral do Chefão, de Feng Xiaogang (estrelando Donald Sutherland), e Cell Phone (2003), Guerreiros do Céu e da

Terra (2003), de He Ping, e Kung-fusão (2004), de Stephen Chiau, investindo de um a quatro milhões de dólares em cada título, exceto em Kung-fusão.^ Realmente, em 2003, sem considerar as duas coproduções da Columbia Ásia, o capital de Hong Kong estava por trás de seis das dez produções, embora as produções de Hong Kong, tais como, Kung-fusão, não possam legitimamente contar como pro­ duções continentais. O envolvimento em grande escala de Hong Kong e de Hollywood na produção de filmes continentais nos faz lembrar que o cinema chinês tem sido completamente fortalecido por fluxos de capital transnacional, que facilitam o recrutamento do elenco típico de estrelas multinacionais da China continental, de Hong Kong, Taiwan, Japão, Coreia do Sul e, até mesmo, de Hollywood. Por outro lado, os sentimentos nacionalistas estão em alta, pois autoridades chinesas e estudiosos seletivamente usam a bilheteria das coproduções para fortalecer a explosão econômica do país. Neste breve levantamento, começo com a coprodução de alto orçamento como o desenvolvimento mais espetacular no novo século. Volto também minha atenção para outras novas ten­ dências interessantes, tais como, o trânsito de duas vias dos filmes alternativos e comerciais em uma tentativa de mapear perspecti­ vas e problemas no campo dinâmico do cinema chinês.

4. Hong, Yin; Qingsheng, Zhan. “2005 Zhongguo dianying chanye beiwang” (Memo­ rando sobre a indústria de tilines chineses em 2005), Dianyingyishu, n. 2, p. 11,2006.

Produção e exibição transnacional Em meu mapeamento anterior do cinema chinês pré-2000, aponto quatro tipos principais de produção de filmes: cinema al­ ternativo (pouco conhecido e independente), cinema de arte (ci­ nema autoral), cinema comercial (entretenimento) e cinema com propósito político (propaganda com patrocínio do Estado).5No novo século, o governo reduziu seu investimento monetário na propaganda via filmes, e o cinema com propósito político gradu­ almente perdeu seu espaço no mercado, embora alguns títulos ain­ da conseguissem chegar à lista dos dez filmes mais bem-sucedidos com forte apoio governamental, tais como, Decisão Fatal {2000) e

D eng Xiaoping (2003).6Em vez de investir dinheiro, o governo agora regula o mercado de filmes, ao estimular empresas privadas a participar da produção e a competir com os sucessos de Hollywood. O resultado imediato é a eufórica “era dos campeões de bilhete­ ria” ( dapian shidai), quando os investimentos não governamen­ tais sobre as produções alcançaram 75% em 2005. Sem dúvida, Hollywood é a primeira fonte de inspiração para os filmes de sucesso chineses. Há uma década, quando a China começou a importar os sucessos de Hollywood já com

5. Zhang, Yingjin. Industry and Ideology: a Centennial Review of Chinese Cinema. WorldLiterature Today, n. 3-4, p. 8-13, Oct./Dec. 2003. 6. Desde 1995, Dianyingyishu tern publicado a classificação anual dos dez filmes chineses de maior sucesso, mais frequentemente na terceira edição de cada ano, às vezes com receitas de bilheteria aproximadas.

compartilhamento de receitas, os cineastas chineses foram rápidos na resposta, ao assegurar financiamento privado (incluindo Hong Kong) para alguns filmes de arte de alto orçamento, como The

Emperors Shadow (1996), de Zhou Xiaowen, que custou 40 mi­ lhões de renminbis na produção. Ainda assim, em 2005, The Promise ostentava uma produção recorde de 310 milhões de renminbis, ultrapassando os custos de Herói em 70 milhões de renminbis. Certamente, investimentos extravagantes como esses trouxeram resultados espetaculares: em 2004, quando a China im­ portou 21 filmes hollywoodianos (comparados com dez ou me­ nos antes de 2000), os filmes nacionais ultrapassaram os filmes es­ trangeiros em exibição e asseguraram 55% da fatia de mercado (que subiria para 60% em 2005). A bilheteria nacional de O Clã das Ada­

gas Voadoras (150 milhões de renminbis) bateu a do O Senhor dos Anéis III(87 milhões de renminbis) em 2004 e, dessa forma, sinali­ zou uma virada no destino do cinema feito na China.7 A corrida para produzir filmes de sucesso chineses é moti­ vada pela convicção dos produtores dominantes de que os filmes de alto orçamento são a única forma de assegurar retorno finan­ ceiro em um ambiente de negócios arriscado. A coprodução, por­ tanto, constitui uma estratégia de compartilhamento de riscos, e, devido a isso, seus números cresceram continuamente de 16, em 2002, para 38, em 2004. São dois os objetivos principais: atrair capital de Hong Kong e de outros lugares e entrar nos

7. Hong,Yin; Xiaoteng,Wang.“Zhongguo dianying chanye beiwang” (Memorando sobre a indústria de filmes chinesa), Dangdaidianying, n. 2, p. 24,2005.

mercados estrangeiros em parceria com distribuidores internacio­ nais credenciados. Após o sucesso inesperado de O Tigre e o Dragão (1999), de Ang Lee, que arrecadou 128,1 milhões de dólares somen­ te nos Estados Unidos, os diretores chineses perceberam que os mer­ cados estrangeiros continuam sendo um território novo a ser con­ quistado na era da globalização. Na carona das artes marciais, Herói facilmente recuperou seus custos de produção de 240 milhões de renminbis, quando recebeu 53,71 milhões de dólares nos Estados Unidos e 132,53 milhões de dólares pelo mundo (taxa de câmbio de 1 dólar = RMB 8.3).8A atração pelos grandes lucros foi tanta que Feng Xiaogang abandonou sua marca de estilo comédia, que fez dele a bilheteria chinesa mais consistente desde o final da década de 1990, para dirigir um filme de época deslumbrante, The Banqueta que se parece mais com H erói e The Promise e menos com as comédias anteriores meio amargas centradas em moradores comuns da cidade. O problema com os recentes filmes de sucesso chineses é seu conteúdo altam ente superficial in crem en tad o com efeitos audiovisuais fascinantes, incluindo a atuação de estrelas do cinema e efeitos especiais digitais de última geração. Invariavelmente fil­ mados na China antiga, esses filmes épicos tentam atingir muitas coisas ao mesmo tempo: arquitetura e paisagens espetaculares,

8.

Rosen, Stanley. Chinese Cinema in the Era of Globalization: Prospects for Chinese Films on the International Market, with Special Reference to the United States. In: Retrospective and Outlook. International Forum for the Centennial Anniversary of Chinese Cinema,ed. China Film Archive, uma conferência, Pequim, Dec. 2005. p. 570.

figurino e cenário coloridos, habilidades sobre-humanas de ar­ tes marciais, música e danças sensuais, assim como rostos e cor­ pos femininos bonitos. Um triângulo romântico banal é inseri­ do na narrativa, com pouca ou nenhuma lógica e com diálogos desinteressantes, até mesmo embaraçosos. Sexo e violência domi­ nam a tela, mas mitos antigos não conseguem disfarçar a cumplici­ dade ideológica dos sucessos recentes com o poder dominante, sua ambição imperial e decadência. Ironicamente, igualmente espetacular como os recordes de bilheteria dos sucessos chineses é sua condenação difundida entre o público chinês. Espectadores desapontados desabafam sua raiva na internet, e os críticos expressam sua insatisfação na mídia. Cer­ tamente, os filmes de sucesso se tornaram eventos midiáticos na­ cionais no novo século: oferecem não somente entretenimento, mas também um convite para o público participar dos debates públi­ cos. De qualquer forma, os filmes bem-sucedidos recebem muita atenção, enquanto seus produtores e exibidores alegremente con­ seguem a publicidade de que precisam.

Entre o alternativo e o sucesso comercial Outro tipo de exibição transnacional é buscado no âmbito alternativo, pela produção independente de filmes de arte alterna­ tivos com o apoio moral e financeiro dos festivais de cinema inter­ nacionais e das empresas estrangeiras sem fins lucrativos. Assim como os filmes de sucesso almejam capital transnacional, os direto­ res chineses independentes procuram fama internacional por meio

da exibição transnacional de seus filmes desafiadores, às vezes sub­ versivos. Na pista do sucesso dos primeiros cineastas da sexta geração, na década de 1990, novos talentos chineses surgem qua­ se todo ano em festivais de cinema internacionais, em filmes de ficção (por exemplo, Enter the Clowns [200 \], de Cui Zi’en, Blind

Shañ [2001 ], de Li Yang, e Red Snow [2006], de Peng Tao), assim como em documentários (por exemplo, Along the Railroad\2000\, de Du Haibin, West o f the Track [2001 ], de Wang Bing, e The Box [2001] de Ying Weiwei). Entretanto, a mudança recente mais importante na produ­ ção de filmes alternativos é a via de mão dupla entre o alternativo e o sucesso comercial. Depois de lançar dois filmes aprovados pelo estado em 1999, Zhang Yuan se tornou comercial e dirigiu I Love

You (2002) e Chá Verde (2003), este último trazendo as grandes estrelas Jiang Wen e Zhao Wei e o fotógrafo de fama internacional Christopher Doyle. Wang Xiaoshuai, por outro lado, prefere se mo­ vimentar entre o alternativo e o comercial. Depois de seu sucesso com uma coprodução transnacional, Bicicletas de Pequim (2001), Wang dirigiu um filme alternativo, À Deriva (2003), e retornou para um projeto aprovado pelo estado, Sonhos com Shangai (2005). Seguindo seus passos, Jia Zhangke completou sua trilogia alternativa de Shanxi com Plataforma (2000) e Prazeres Desco­

nhecidos (2002) e, então, inesperadamente, lançou O Mundo (2004), aprovado pelo estado, e Em Busca da Vida (2006). Ambos os filmes, entretanto, conseguiram manter sua solidariedade ca­ racterística pelas pessoas necessitadas. Todavia, a reputação desses diretores ainda tem mais peso no exterior que na China, embora

Zhang Yuan tenha gradualmente perdido sua posição vanguardista no exterior. O novo século é testemunha de uma produção esporádica daqueles diretores da sexta geração que ficaram no sistema estatal e dirigiram filmes de arte de baixo orçamento. Antes de Feng Xiaogang se interessar por coproduções de sucesso, ele se apresentava como um diretor informal e foi o produtor executivo de Cala, My Dog (2003), de Lu Xuechang, que foi elogiado pelos críticos como urna alternativa para os sucessos comerciais de Zhang Yimou, ao enfocar a vida cotidiana, ordinária, de um anti-herói. Os companheiros de Lu da sexta geração, diretores, tais como, Guan Hu e Li Xin, também dirigiram filmes com visões autorais persistentes, mas seu impacto sobre o mercado é mínimo. Outro novo desenvolvimento é a tentativa de direção pelos famosos cineastas da quinta geração: o début da direção de Gu Changwei, Peacock (2004), oferece um olhar idiossincrático so­ bre uma cidade provinciana e pequena na década de 1970, en­ quanto Mulheres de Jasmim (2004), de Hou Yong, registra as mu­ danças culturais em Shangai desde a década de 1930 até a de 1980, através de quatro gerações de relacionamentos entre mães e filhas. O tema “memória” é igualmente forte em uma nova diretora, Xu Jinglei, cujos Meu pai e eu (2003) e Carta a uma mulher desco­

nhecida (2004) estabelecem-na como uma diretora versátil que escreveu seus próprios roteiros e atuou como atriz principal. Uma outra diretora jovem é Li Yu, que segue a trajetória recente de di­ retores independentes ao dirigir O peixe e o elefante (2001), um filme alternativo sobre um casal de lésbicas, e Dam Street (2005), um filme comercial filmado em uma cidade provinciana e rico

em cores locais. Duas diretoras veteranas continuaram suas car­ reiras: Li Shaohong passou de sua interpretação realista em The

RedSuit{2000) para um filme de fantasia, Baober in Love(2004), enquanto Ning Ying expandiu suas aventuras urbanas em Eu amo Pequim (2000) e em Movimento Perpétuo (2005). Entre outros diretores famosos, Huo Jianqi impressionou críticos com seus filmes de alta qualidade: Amor azul (2000), Life

Show(2002) e Nuan (2003). Os dois primeiros tratam da mudan­ ça do éthos urbano, e o último atinge uma bilheteria impressio­ nante no Japão. Consciente ao experimentar a mistura de gêneros e a fertilização intermidiática, Lu Chuan brinca com histórias de detetive e suspense em A armaperdida (2002) e, subsequentemente, com aventura e meio ambiente em Kekexili (2004), um filme de tirar o fôlego, parcialmente patrocinado pela National Geographic; Li Xin brinca com a fantasia urbana no multissegmentado Dazzling (2002); Meng Jinghui integra o teatro do absurdo, humor negro e sequências animadas em Chicken Poets (2002); e Ning Hao mes­ cla ação, comédia e história de detetive em Pedra Louca (2006), um filme surpreendentemente popular coproduzido pela Focus Film, de Andy Lau (Hong Kong) e pela Warner China Film HG Corporation, o primeiro empreendimento comercial de produ­ ção conjunta da China envolvendo diretamente um investimento de Hollywood. Enquanto a quarta geração gradualmente desapareceu da li­ nha de frente da produção de filmes no novo século, nem todos os diretores da quinta geração foram atrás do gênero “sucesso comer­ cial”. Huang Jianxin, por exemplo, continua sua exploração urbana em A Certidão de Casamento (2001), embora tenha abandonado a

sátira amarga característica de seus filmes do início da década de 1990 e optado pelo humor suave e sentimental, o que provavel­ mente ajudou o filme a chegar ao sexto lugar entre os dez maiores sucessos do ano. A carreira de Tian Zhuangzhuang é mais com­ plicada, mas, como vários dos protegidos da sexta geração, ele pre­ feriu ficar dentro do sistema estatal após ter sido banido da dire­ ção devido a The Blue Kite (1993). Ele só voltou a dirigir filmes em Springtime in a Small Town (2002), uma refilmagem do clás­ sico homônimo de Fei Mu. Depois disso, dirigiu um documentário financiado pelo Japão, Delamu (2004), que rastreia uma rota de co­ mércio feita a cavalo através das montanhas no sudoeste da China.

Conclusão: uma indústria assimétrica O breve levantamento mencionado sobre as produções de filme no novo século indica que não há falta de talentos no cine­ ma chinês. Um problema fundamental, todavia, é o fato de a maio­ ria das produções cinematográficas não ser exibida em cinemas e, portanto, ficar sujeita a perdas financeiras a cada ano. Em 2004, as receitas com exibição dos três filmes nacionais de maior suces­ so foram praticamente as mesmas dos outros 209 filmes nacio­ nais. Isso significa que a média de receita de bilheteria para 209 filmes foi de aproximadamente 2 milhões, ou 0,7 milhões depois do acerto trilateral de participação na receita envolvendo distri­ buidores e exibidores. O custo dos filmes de mais baixo orçamento oscila entre 1,5 e 3 milhões, e a marca de 5 milhões é frequentemen­ te considerada segura, abaixo seria difícil recuperar o investimen-

to da produção. Tendo em vista essa situação, 85% das produções de baixo orçamento nunca foram exibidas e, portanto, nunca recu­ peraram os investimentos feitos. Obviamente, os investidores po­ dem pagar parte de seus custos de produção com direitos de vídeo, solenidades de premiação e contratos com o canal de filmes CCTV. O canal de filmes de propriedade do Estado, por outro lado, aventu­ rou-se em coproduções, e três de seus títulos coproduzidos ficaram entre os dez mais em 2002. Ainda assim, com mais de dois terços dos filmes perdendo dinheiro a cada ano, o cinema chinês é, pensando positivamente, uma indústria assimétrica que, por sua vez, possui uma base instável. Estudiosos e pessoas da indústria cinematográfica listaram outros problemas que restringem o cinema chinês, tais como, uma difundida pirataria de vídeos, entradas de cinema com preços exorbitantes (RMB 40-80), venda de bilhete no mercado informal e ausência de um sistema de classificação que faz com que a cen­ sura seja uma questão imprevisível. O governo tratou de alguns desses problemas instalando bilheterias computadorizadas e en­ corajando as casas de cinema a oferecer bilhetes pela metade do preço às terças-feiras. Além disso, ouvem-se regularmente, na im­ prensa e em conferências acadêmicas, chamadas para estabelecer cadas de cinema de arte. Entretanto, a indústria de filme permane­ ce insignificante em termos de contribuição financeira para o de­ senvolvimento econômico atual na China, e é fantasioso esperar soluções rápidas para problemas que existem há décadas. Por en­ quanto, o governo está satisfeito em ver o capital transnacional entrando e saindo do país, desde que poucas coproduções mante­ nham o cinema chinês no mapa global a cada ano e nenhuma pro-

dução maior desafie a legitimidade do regime comunista. Em graus diferentes, os diretores de filme estão contentes, desde que investido­ res menores se disponham a apoiar seus projetos independente­ mente de retorno financeiro. Já os investidores menores - de em­ presas privadas a unidades governamentais - estão satisfeitos, desde que seus sonhos de fazer filmes sejam realizados. Com grupos tão diversos de investidores, muitos dos quais se juntam para fazer um filme, a indústria cinematográfica chinesa não promete regula­ ridade nem estabilidade. Enfim, o poder do cinema chinês reside menos em sua habilidade para gerar lucros além fronteiras, e mais em sua produção e circulação de imagens que atraem um espec­ tro grande de públicos no país e no exterior.

2000*

2001*

2002*

2003*

2004*

2005*

2006*

83

80

100

140

212

260

330

-

(3,61% )

25%

40%

51,43%

22,64%

26,92%

960

840

900

1.000

1.570

2.000

2.620

-

(12,5% )

7,14%

11,11%

57%

27,39%

31%

Bilheteria de filmes nacionais em milhões de renminbis

280

294

-

-

863,5

1.200

-

Total de bilheteria de filmes nacionais

29,17%

35%

-

-

55%

60%

-

Ano Filmes nacionais Taxa de crescimento Total de bilheteria em milhões de renminbis Taxa de crescimento

Quadro 1 - Produções e exibição anual de filmes (2000-2004) * As fontes das informações estatísticas do quadro constam nas notas de rodapé deste artigo.

Ano / classificação

Titulo

Diretor

Produtora 2002) utiliza um dialeto da província de Yunnan. O sotaque “engraçado” da província, juntamente com o desempenho estelar de Jiang Wen, incrementa o senso cômico do filme. Kekexili (Patrulha da Montanha, 2004) mistura a língua tibetana e o dialeto chinês falado em Qinghai, no Tibete. O jeito de falar dos personagens impregna o filme com um sentimento autêntico, documental, cru, corajoso. Peacock, o vencedor do Urso de Prata (Grande Prêmio do Júri) no Festival de Cinema de Berlim, em 2005, foi dirigido por Gu Changwei, diretor de fotografia que se tornou diretor. Durante todo o filme, ouve-se o dialeto de Anyang, da província de Henan. Aqui, a fala local dessa região ajuda a transmitir o estilo de vida em confinamento de uma famí­ lia comum chinesa em uma pequena cidade do interior no final da década de 1970, período de transição da história chinesa entre a economia socialista de Mao e a economia de mercado de Deng, um tempo que despertou esperança e desespero. Quando os ofi­ ciais paraquedistas do Exército de Libertação do Povo chegaram à

cidade, Sister encantou-se com o elegante sotaque de Pequim de um oficial jovem e bonito. Aqui, a conotação é a de que o dialeto de Pequim, como “fala padrão nacional”, representa os sonhos e as esperanças dos falantes do dialeto local.

O mundo dos dançarinos heróis das artes marciais Passo agora a examinar como a língua funciona em outro tipo de filme chinês, ou seja, nos blockbusters comerciais de Zhang Yimou: Herói (Yingxiong, 2002) e O Clã das Adagas Voadoras (Shimian maifu, 2004). Nesses filmes, somente o mandarim pa­ drão é utilizado. “Sob o céu” (tianxia), esses heróis falam o

putonghua universal. Seus combates e embates parecem-se mais com sequências de dança coreografada do que com uma luta. São utilizados efeitos especiais para melhorar a qualidade de impro­ váveis combates de artes marciais. Na verdade, no início de O Clã

das Adagas Voadoras, o personagem de Zhang Ziyi, Xiaomei, um membro de uma sociedade secreta, finge ser um bailarino cego, representando uma dança extraordinária ao estilo da dinastia Tang durante prazerosos quinze minutos. Os personagens dos filmes são originários do norte da Chi­ na - especialmente da terra natal de Zhang, a província de Shanxi.

Herói está ambientado em Qin (atual província de Shanxi), O Clã das Adagas Voadoras se passa durante a Dinastia Tang e está ambi­ entado no Condado de Feng Tian, perto da capital Chang’an, ou atual Xi'an, na Província de Shanxi. Mas o mandarim falado por

alguns dos antigos heróis de Zhang e especialistas em artes marci­ ais é um mandarim com um leve sotaque. Embora levemente marcadas, as falas de Tony Leung, Maggie Cheung e Andy Lau não soam como o elegante mandarim dos atores e atrizes do conti­ nente chinés em filmes tradicionais e dramas históricos. O cine­ ma dramático chinés e as academias de cinema têm treinado seus atores para falar e agir de urna forma apropriadamente “dramática”. Talvez a situação assemelhe-se à diferença existente entre atores bri­ tánicos formados na Companhia Real de Shakespeare e universitá­ rios estadunidenses ao encenar uma obra de Shakespeare. Trata-se do mesmo jogo, mas muito diferente quanto à expressão, à apre­ sentação e à convenção da fala.4 Parece que o mandarim falado por estes megastars mais bem pagos de Hong Kong não tem o lirismo e a eloquência que esperam os espectadores do interior da China e de Taiwan. Mas o diretor Zhang Yimou tem toda a Ásia e o mer­ cado mundial em mente, e ele usa o estrelato para apelar a um público global. Ele está espelhando-se no exemplo do sucesso de bilheteria mundial de O Tigre e o Dragão, famoso pelo sotaque cantonês dos atores principais (Chow Yun-fat e Michelle Yeoh). A falta de plausibilidade dialetal não afeta a calorosa recepção inter­ nacional do cinema de Ang Lee. Os espectadores não entendem nenhum dialeto chinês e dependem da tradução legendada em inglês, que em si é plena de um clássico lirismo. Portanto, não importa se o elenco de superstars de Zhang Yimou se expressa em

4. Observação feita por Chuck Kleinhans em com unicaçao pessoal.

um mandarim marcado pelo sotaque de origem em seus filmes de artes marciais. O que importa é que a presença dessas estrelas da Grande China garante o sucesso de bilheteria. Maggie Cheung e Tony Leung, em Herói\ e Andy Lau (Captam Liu), em O Clã das Adagas Voadoras, falam um cantonês com so­ taque de mandarim; e Jin Chengwu (Takeshi Kaneshiro, Captam Jin), em O Clã das Adagas Voadoras, fala com sotaque do mandarim de Taiwan (guoyu Taiwan). Não é verdade afirmar-se que só havia falantes de um mandarim puro na China antiga. A questão é que as expectativas linguísticas do público têm sido con­ dicionadas por aquilo que é visto na tela e na TV. As séries de televisão e os dramas históricos produzidos na China continental e em Taiwan são vistos por pessoas de Hong Kong, Taiwan e da diáspora chinesa. Elas estabelecem o padrão do que seriam os even­ tos e os personagens históricos plausíveis. Os atores do interior da China, como Chen Daoming, em Herói\ e Zhang Ziyi, em O

Clã das Adagas Voadoras, portanto, parecem ser personagens mais reais e roubam a cena. O ator Chen Daoming, que estudou em Pequim, empresta voz ao Primeiro Imperador e expõe as virtudes da criação de um grande império chinês, um mundo chinês globalizado - tianxia.

Herói é também uma história sobre o idioma, a escrita e a caligrafia da China. Quando o assassino Wuming (literalmente “Sem Nome”, Jet Li) diz ao Imperador que há dezenove maneiras de es­ crever a palavra jian (espada), o imperador retruca dizendo que, em seu futuro mundo unificado, não haverá essa confusão causada por tantas formas de escrever-se uma palavra, que haverá apenas uma forma para escrevê-la. Na verdade, o histórico Primeiro Imperador

foi quem unificou o idioma chinês. Ele ordenou que todos os antigos estados feudais adotassem o sistema Qin Zhuan {zhuanti) como escrita chinesa padrão. A ideologia nacionalista do filme pode passar despercebida para o público mundial, para pessoas que não sejam especialistas e não estejam familiarizadas com as políticas interna e externa da China, à medida que se deixam en­ volver pela bela cinematografia, pela fantástica coreografia de ação e pelos espetáculos neo-orientais. O filme de Zhang faz uma leve referência à história real da tentativa de assassinato do Primeiro Imperador por Jing Ke, conforme está nos registros históricos, mas os detalhes são bastante ficcionais. Jing Ke realmente tenta matar o Primeiro Imperador no Tribunal de Qin, mas Wuming desiste de seu plano original, torna-se um seguidor da ideologia do Imperador da Grande China e voluntariamente sacrifica sua vida em prol da unidade nacional.5 Objetivando angariar a bilheteria mundial, Zhang Yimou não se preocupa se o mandarim soa impuro ou pouco autêntico aos ouvidos de falantes do idioma chinês. Aquilo que tem importân­ cia para Feng Xiaogang, não o tem para Zhang. A autenticidade dialetal é importante para o efeito do realismo ficcional nos fil­ mes de Feng. Como sabemos, os filmes de Feng são extremamen­ te populares na China, mas não circulam nas salas de cinema do

5. Yingjin Zhang salienta que“aos olhos de muitos críticos chineses, a arte é coniven­ te com a política na submissão simbólica de Zhang ao poder tirânico em uma nova alegoria da China unificada como tianxia (literalmente ‘debaixo do céu’).” In: Zhang, Yingjin. CA/tfíw National Cinema. New York; London: Routledge, 2004. p. 293.

exterior. Mas Zhang Yimou visa à criação de um mundo pan-chinês, pan-mandarim na área da Grande China para seus filmes cir­ cularem livremente. A autenticidade linguística não é um proble­ ma no mercado-alvo internacional. Além disso, o efeito desejado é a criação de uma linhagem de filmes chineses supranacionais para serem vistos e apreciados pelo público mundial. O Zhang Yimou das artes marciais pan-chinesas já se distanciou um tanto de um Zhang iniciante que cuidadosamente explora os problemas sociais contemporâneos da China continen­ tal. Por exemplo, em A História de Qiu Ju (1993), a autenticidade dialetal é crucial para a estética do filme. Gong Li e outros atores tiveram de aprender a falar o dialeto de Shanxi corretamente, para retratar seus personagens com fidelidade. Mais especificamente o dialeto Shanxi utilizado no filme não é um dialeto Shanxi comum, mas o dialeto de Baoji, “o resultado do encontro de imigrantes de Sichuan, Gansu e Ningxia.” Como nos lembra Edward Gunn, “como Zhongjiang e Wanxian na comédia sobre Chengdu e Chongqing, ou Subei, na comédia sobre Xangai, os moradores de Baoji foram ridicularizados em X ifnaycomo o estereotipo de bár­ baros, excéntricos de raciocinio lento.”6 O dialeto Baoji soa de forma ainda mais caipira e local que alguns outros dialetos de Shanxi. Mas esse tipo de realismo linguístico e atmosférico não é mais levado em consideração nos novos filmes de Zhang, cujo sucesso deve-se à fabricação de cenas e

6. Gunn, Edward M. Rendering the Regional: Local Language in Contem porary Chinese Media. Honolulu: University of Hawaii Press, 2006. p. 197.

ações irreais, porém esteticamente agradáveis. A História de Qiu Ju,

Heróie O Clã das Adagas Voadoras são ambientados na atual pro­ víncia de Shanxi, a terra natal e orgulho de Zhang, e seu local favo­ rito de ação. Mas sua estratégia de representação filmica mudou.

Cinema sinófono? Evidentemente, estamos tratando de exemplos de filmes fa­ lados em chinês em que os dialetos desempenham diferentes fun­ ções. Eles podem cruzar as fronteiras nacionais e visar ao público e ao mercado global (filmes de Zhang Yimou). Os dialetos locais e provincianos em O Mundo e em Cell Phone não tratam das pro­ víncias em si, mas são emblemáticos de impasses nacionais mais complexos dos esforços de modernização da China. O mandarim

(putonghua) ubíquo e onipresente nos filmes de artes marciais de Zhang Yimou não favorece a representação de características regio­ nais confiáveis e um ambiente de verossimilhança cinematográfica. Esses filmes são vendidos para outros públicos, além do público pan-chinês na Grande China, bem como para espectadores que não são chineses no mundo todo, onde a questão do idioma chinês é irrelevante.7 Em uma nação poliglota, os dialetos, nesses diversos

7. Na história do cinema chinês falado, tato de nem todos os atores falantes de chinês serem capazes de falar o mandarim padrão tem sido um problema. No caso de o sotaque dos atores locais ser muito torte a ponto de violar um grau aceitável de realismo de um filme em mandarim, suas falas seriam dubladas. Este é o caso de muitos clássicos em mandarim entre os anos de 1950e 1970 em Hong

filmes, constituem subjetividades não somente em nível nacional, mas também do ponto de vista sub e supranacional. Na análise das estéticas dialetais, o modelo do cinema nacional consegue abranger apenas parte do problema. O “transnacional” é mais adequado para controlar os fluxos e as circulações da cultura cinematográfica para além dos limites do Estado-nação. Podemos explorar esse fenômeno multi-dialetal sob uma outra perspectiva, analisando a problemática do que se pode cha­ mar de “cinema sinófono ”. 8 Naturalmente, o cinema de língua chinesa aponta para um estudo comparativo das tradições parale­ las cinematográficas em que o idiom a transcende os limites

Kong. Atualmente, a seleção internacional de filmes em língua chinesa tem com­ plicado a questão do sotaque do filme e a recepção do público. O filme O Tigre e o Dragão, de Ang Lee, foi um excelente sucesso de bilheteria em todo o mundo, bem como o filme Herói.\ de Zhang Yimou, apesar de sua liberação internacional tardia, alguns anos após seu lançamento nacional. No entanto, embora ambos os filmes tenham “sotaque” envolvendo falantes cantoneses de um mandarim não tão elegante, O Tigre e o Dragão fracassou em sua primeira exibição na República Popular da China, enquanto que Herói foi um sucesso. Algo além do sotaque parece estar funcionando aqui. O Herói foi considerado uma grande produção nacional de um autêntico diretor da china, que visa reaquecer o mercado de cinema chinês em declínio. Houve esforços para evitar a pirataria do filme, bem como uma intensa campanha publicitária na China. Apesar de O Tigre e o Dragão ser real­ mente uma coprodução internacional, ainda é considerado com o um filme estrangeiro - de Hollywood ou de Taiwan, um filme dirigido por um diretor chinês que vive na diáspora. Não houve esforços internos para anunciá-lo como um grande sucesso que regeneraria cinema nacional da China. 8.

Sheldon Lu e Emilie Yeh expuseram suas ideias de “cinem a de língua chinesa” e “Cinema sinófono” em sua introdução a

Chinese-Language Film, especialmente

nas páginas 4-9. Shu-mei Shih realiza o estudo de um a ampla gama de cultura visual que denomina “ Sinophone? Conferir seu livro m anuscrito: Visualityand

identity. Sinophone Articulations. Berkeley: University of California Press, 2007.

territoriais dos estados-nação, como o cinema alemão, os cine­ mas francófono e anglófono. Assim como nessas tradições, os fil­ mes sinófonos expressam as reivindicações e as convicções de di­ versas comunidades com diferentes contextos culturais, políticos e dialetais, embora sempre sob a vaga classificação de “falantes do •

1 •

1



A

) ) Q

idioma chines .

“Huayu Dianying\ “Cinema de língua chinesa” e “Cinema sinófono” parecem ser termos equivalentes denotando uma mes­ ma área de produção cultural e um mesmo modelo de análise. Mas as conotações desses termos podem divergir, bem como so­ breporem-se. Utilizar o cinema sinófono para descrever o nosso campo de conhecimento significa levantar uma nova gama de ques­ tões. Podemos falar sobre cinema sinófono da mesma maneira que falamos de cinema anglófono e francófono? Colonialismo, mimetismo, processo de descolonização, independência nacional, política de identidade e pós-colonialismo normalmente definem os contornos e os temas dessas tradições cinematográficas. Obvia­ mente, a China esteve sujeita historicamente à colonização e também

9.

Em estudos de cinem a de língua alem ã, podem os ler: “A história do cinem a que reconheça essas diferenças tem de ser levada em con ta, por exem plo, a influência fértil de culturas de língua alem ã da Eu ropa O riental, ou de áreas que sem pre tiveram um a identidade nacional distinta ou separada (co m o a Áustria e a Suíça), sem talar nas vastas conexões transnacionais e transculturais. É necessário co n ­ trap or o nacionalism o fanático dos anos 30 e 40 com o legado cosm opolita da diáspora e do exílio dos judeus e definir as divisões e as fronteiras ideológicas da G uerra Fria, bem co m o a reem ergência de um a concepção mais m ulticultural de identidades alemãs no anos mais recentes.” In: Bergfelder, Tim ; Carter, Erica; Gõktürk, Deniz ( Eds.). The German Cinema Book. London: British Film Institute, 2002. p. 1.

agiu como uma potência colonial-imperial com os territorios peri­ féricos. Hong Kong, Macau, Taiwan e partes da China continental tornaram-se colonias ou obtiveram o status de extraterritorialidade. As consequências do legado colonial são sentidas até hoje. Na pro­ dução cinematográfica, o uso de dialetos indica tais divisões his­ tóricas e presentes no corpo político e na mentalidade chinesa. Podemos divulgar a ideia de “cinema sinófono”, a firn de delinear algumas comparações e contrastes preliminares com si­ tuações correlatas no mundo do cinema. Na antologia World Cine­

ma: Critical Approaches, os cinemas da Grã-Bretanha, da Irlanda, da Austrália e do Canadá são elencados e estudados sob a catego­ ria de “cinema anglófono nacional.”10 O cinema de Hollywood, um cinema anglófono, porém global, é muito ampio e internacio­ nal para ser incluído na categoria de “cinema nacional.” O cinema francófono refere-se aos filmes da francofonia, ou seja, incluindo as ex-colônias francesas fora do territorio francês. Embora a Fran­ ça espere fazer valer sua influência sobre esses países, promoven­ do a noção de francofonia, a África francófona pós-independente está constantemente distanciando-se da hegemonia cultural e linguística da França, afirmando suas próprias tradições e expres­ sões locais. No entanto, os cineastas africanos, por vezes, estrategi­ camente se identificam com o mundo francófono visando a urna ampla distribuição de seus filmes.

10. Ver a seção “Anglophone National Cinemas”. In: Hili, John; Gibson, Pamela Church (Eds.). World Cinema: Critical Approaches. Oxford: Oxford University Press, 2000. p. 117-142. O cinema anglófono inclui o cinem a da Grã Bretanha e de suas colônias históricas - Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outras.

Apesar da crescente utilização da língua árabe e das línguas lo­ cais em todo o continente Africano, a referência ao cinema francófono africano continua sendo válida. Ela entende o cine­ ma Africano em seu contexto histórico e é uma forma mais forte de promover os filmes desses países individualmente. Também representa um contrapeso a uma crescente incursão do cinema anglófono.11

Quanto ao cinema francófono, existem os movimentos si­ multâneos de extensão da influência cultural neocolonialista por parte da França e do ressurgimento das culturas originais dos paí­ ses africanos pós-coloniais. A resistência e a autoafirmação do cine­ ma africano pós-colonial, no entanto, operam dentro e beneficia­ ram-se da ampla rede francófona de produção, de financiamento e de distribuição. No entanto, entre o francófono e o pós-colonialismo, há outras distinções importantes. Ao contrário da francofonia, as dimensões políticas do que é mascarado por um termo cuja superficialidade parece denotar um campo de referência puramente cultural, o pós-colonialismo destaca uma condição política, caracterizando determinadas for­ mas de produção cultural, ou seja, o legado da dominação colo­ nial fora de ou contra aquilo de onde as práticas culturais pare­ cem emergir.12

11. Live Spaas, The Francophone Film: A Struggle for Identity. M anchester; New York: M anchester University Press, 2 0 0 0 . p. 131. 12. H a rg re a v e s, A lec G .; M cK in n ey , M ark . I n tro d u c tio n : T h e p o s t-c o lo n ia l problem atic in co n tem p o rary Fran ce. In: H argreaves, Alec G .; M cKinney, M ark (E d s.). Post-Colonial Cultures in France. L on d on ; New York: R outledge, 1997. p. 4.

A Grande China não é necessariamente uma entidade monolítica, colonial e geopoliticamente opressora ou um concei­ to intrinsecamente conservador. Tampouco a produção cultural sinófona origina-se dos limites de um discurso contra-hegemônico inerentemente pós-colonial. O impacto político e cultural de um filme depende de determinadas conjunturas de forças e circuns­ tâncias. Pode ser útil para revisitar a velha problemática do colonial/pós-colonial no contexto de nosso estado atual de existência, a saber, uma nova onda de globalização que se intensificou na era pós guerra fria. Transnacional, que ultrapassa as fronteiras, o cine­ ma sinófono anda de mãos dadas com a globalização e é seu epifenómeno. Os filmes de língua chinesa dirigem-se a públicos além do Estado-nação chinês, envolvem os cidadãos de Taiwan, Hong Kong, Macau e os espalhados pela diáspora chinesa, bem como atingem espectadores interessados no mundo todo. O ci­ nema sinófono assume uma posição mais flexível em relação à identidade nacional e à afiliação cultural. Não há nenhuma voz dominante. As múltiplas línguas e di­ aletos usados nos vários tipos de cinema sinófono atestam a fragmentação da China e da identidade chinesa. Cada falante de um dialeto é a voz de uma classe especial, representa um estágio particular do desenvolvimento socioeconómico e representa um nível específico de modernidade dentro de um confuso conjunto de formações heterogêneas na China e na diáspora chinesa. Essa profusão de sotaques, de fato, abrange um mundo pan-chinês um coletivo de diversas identidades e posicionamentos que uma única entidade geopolítica e nacional é incapaz de conter.

Shzjie ou tianxia não é um mundo monológico falante de uma

linguagem universal. O mundo do cinema sinófono é um campo de articulações multilíngues e multidialetais que desafiam e redefinem constantemente os limites de grupos, etnias e afiliações nacionais.

O cin em a na Á frica: dos co n to s an cestrais às m istificaçõ es cin e m a to g rá fic a s M ahomed Bamba

A antropologia nos ensinou que são os grandes relatos que instituem as comunidades humanas e, em alguns casos, as nações. Inclusive para as culturas e civilizações mais avançadas, está mais do que comprovado que a cada tipo de comunidade correspondem um tipo de lenda e um tipo de narrador. É dessa premissa que se originam todas as inquietações que suscitam o binômio cinema e nação. O cinem a, com o os m itos fundadores, representa um povo e, num a fase mais avançada de organização social, define uma modalidade particular de figuração e advento da nação. Ao se debruçar sobre esse fenômeno nas sociedades onde a cinemato­ grafia está mais estruturada, Jean-M ichel Frodon (1998) consta­ ta que à nação capitalista “m oderna” nenhum tipo de narrador se m ostrou m elhor do que a lenda filmada, pois o cinema, por estar em consonância com o desenvolvimento das grandes na­ ções, contribui para refletir (no duplo sentido da palavra) esse movimento, ao mesmo tempo que se aproveita dele. O cinema não se contenta em refletir uma imagem positiva de uma nação aos povos que a compõem. De acordo com o autor,

podemos falar de projeção nacional como se fala de projeção fílmica, pois cada nação é obrigada, em um determinado momento da sua história, a se projetar no espaço e no tempo. Nesse movimento em direção ao outro, o cinema sempre foi convocado a desempenhar um papel decisivo. É nessas circunstâncias que o cinema revela toda a singularidade de seus mecanismos de figuração. O século X X foi o século do cinem a, que se afirm ou, ao mesmo tempo, com o divertimento de massa, com o novo m odo de cria­ ção artística e com o produtor das mitologias do seu tempo. Exis­ te, portanto, uma solidariedade entre a história das nações e a do cinema. Mas esta solidariedade não é som ente histórica, ela é ontológica. Existe um a comunidade de natureza entre a nação e o cinema: nação e cinema existem, e só podem existir pelo m eca­ nismo da projeção. (Frodon, 1998, p. 12).

Que tipo de esclarecimento e problematização o cinema feito na África traz ao debate sobre as implicações diretas e indiretas no processo de construção da nação? À primeira vista, a resposta pare­ ce difícil por várias razões. Embora tenha completado 50 anos, a atividade cinematográfica é ainda incipiente e quase inexistente em muitos países africanos. Por outro lado, se a África não é uma nação, os países que a compõem estão longe de se constituírem em entida­ des nacionais plenas. Conceber os filmes africanos1em termos de

1. A categoria “cinemas da África” se refere ao conjunto da produção cinematográfica dos 54 países africanos, ao trabalho de mais de 850 diretores (entre os quais mais de 430 realizadores egípcios) e a um total de mais de 8.800 filmes. Esse recém-censo é da mediateca de Ciné3M ondes (um a das m aiores fontes de docum entação sobre o cinema africano on-line), homepage: < http://www.cine3m ondes.fr/>.

cinematografias nacionais pode parecer algo abusivo tendo em vista que esse conceito pressupõe a existência de um projeto consensual de construção de valores comuns e em torno dos quais o mosaico de comunidades étnicas se reconheçam. Como sabemos, após a descolonização da África, à emergência de novos estados não suce­ deu automaticamente uma consciência nacional ou nacionalista a ponto de fragilizar as clivagens étnicas. Ao contrário, a conquista da soberania e do direito à autodeterminação, na África, deu lugar a movimentos de reivindicações identitárias de cunho étnico-tribal no interior de cada estado. Entretanto, se partimos da premissa de que o cinema, como as outras formas artísticas, e independente­ mente da quantidade de filmes produzidos por ano, tem um compromisso particular com o processo de construção da consciên­ cia nacional, há de se procurar nos filmes africanos indícios daquilo que Frodon chama de “projeção nacional”. A apropriação do cinema2pelos povos africanos nos faz vislumbrar uma outra forma de problematização da figuração da nação pelo cinema? Nos Estados-não-nações da África, começamos por assistir a uma espécie de imbricação do modo de representação cinemato­ gráfica com os modos de produção de imagens e ideais próprios que cada governo tenta forjar no plano local. O cinema africano surpreende o projeto de construção nacional na sua gênese e na sua fase mais política e ideológica do que cultural. Esse encontro co­ meçou na hora das independências, quando muitos novos estados

2. O filme Atrique-sur-Seine, correalizado em 1955 por Paulin Vieyra e Mamadou Sarr, é considerado o primeiro filme na história do cinema africano.

africanos veem no cinema uma forma de expressão artística e po­ lítica de sua soberania no plano simbólico. Os primeiros filmes produzidos por cineastas africanos, às vezes, com a ajuda de seus governos ou da França, têm como vocação destilar imagens posi­ tivas da África e acabar com a dominação colonial pela imagem. Com Soleil Ô (1970), o diretor Med Hondo, da Mauritânia, reali­ za não somente um filme poético em forma de ode às belezas da África, também se livra a uma crítica da colonização, o que dá a esse filme um caráter altamente político. Todos os jovens governos africanos vão inscrever a promo­ ção do cinema no primeiro plano de suas preocupações principais. Esse interesse político pelo cinema vai inclusive se traduzir em atos concretos. Assim, na Alta-Volta, hoje chamado Burkina Faso, o go­ verno cria a partir de 1961, um ano após a independência, um setor dedicado exclusivamente ao cinema dentro do ministério da co­ municação. Em agosto do ano de 1960, realizou-se um primeiro filme-reportagem do país, Na meia-noite da independência. Como o nome indica, esse filme registrava de forma documental as ceri­ mônias que precediam a proclamação da independência do país. Mais tarde, esse primeiro setor cinematográfico estatal no Burkina Faso seria responsável por toda a gestão do cinema no país, notadamente com a produção de filmes essencialmente educativos e de divulgação agrícola e sanitária junto à população rural3.

3. Conforme o artigo “Le cinéma et les cinéastes du Burkina”, de Sita Tarbagdo (2007), publicado no site do Rádio France Internacional no dia 23 de fevereiro de 2005; ver também Tarbagdo (2009).

A imbricação dos cinemas africanos com a construção de uma identidade política coincide com aquilo que podemos cha­ mar de era dos filmes de sensibilização socioeducativa. Não se tra­ tava de filmes propriamente políticos ou ideológicos que procura­ vam exaltar um nacionalismo ainda ignorado da classe política; ao contrário, eram filmes mais didáticos e feitos com uma grande cons­ ciência da utilidade social do cinema. Mas o advento das TVs nacio­ nais frearia esse ciclo. Depois das independências, as televisões públicas africanas reverteram o déficit da autorrepresentação no plano do audiovisual, mas, por outro lado, elas fizeram declinar os esforços dos governos africanos para sustentar de forma siste­ mática uma produção cinematográfica incipiente. Isso, de certa forma, permitiu que o cinema permanecesse na esfera do privado, evitando assim que sofresse o mesmo tipo de estatização e instrumentalização excessiva que predominam nas TVs públicas. No entanto, ao concentrar-se na produção audiovisual, nos seus formatos televisivo e radiofônico, muitos países abandonaram suas telas às produções estrangeiras.

Os cinemas africanos e o pan-africanismo O compromisso do cinema africano com a construção de uma identidade cultural deve ser procurado para além dos limi­ tes das fronteiras artificiais e fictícias herdadas da colonização e que definem os contornos dos estados modernos africanos. Di­ ante de uma realidade presente desoladora e desesperadora, a África vive ou sobrevive graças aos seus mitos fundadores. Esse passado

mirabolante e glorioso narrado pelos gríotsAfunciona como uma estratégia de superação e de revanche ao colonialismo. As grandes epopeias, transmitidas pela tradição oral e pela literatura, servem de refúgio e de matéria-prima para a construção de uma identi­ dade cultural local mas também continental. As raízes do sonho do pan-africanismo (sempre renovado e fracassado) devem ser bus­ cadas nesse elan coletivo e quase natural dos artistas de todos os países africanos de se apropriar dos mitos coletivos na sua criação artística. Os grandes impérios e personagens da era pré-colonial não têm mais fronteira. Na sua dimensão cultural, os cineastas rea­ lizam, no pan-africanismo, aquilo que os governantes não con­ seguem concretizar politicamente: a integração da África a partir de velhos mitos e novos valores em que se reconhecem todos os africanos, independentemente de sua nacionalidade. O que leva muitos autores a dizer que o lugar da cultura africana, nas suas diferentes manifestações e expressões (música, literatura oral ou escrita, artesanato e artes, estética de obras criativas), foi sempre o de contribuir com os ideais coletivos, porém sem negar uma fun­ ção de humor, de jogo e de divertimento. Enquanto, no ocidente e nas sociedades modernas pós-capitalistas, as grandes narrativas ficcionais mecânicas continuam re­ legando as lendas e a própria literatura a um segundo plano, nas sociedades tradicionais africanas são os substratos da tradição

4.

Espécie de trovador e narrador de epopeias; m em ória viva nas culturas orais da região do Sahel.

oral que alimentam os imaginários e a narrativa cinematográfi­ ca incipiente. O engajamento político e pan-africanista do cineas­ ta africano não se traduz apenas por uma volta incessante e esquizofrênica para o passado, mas o situa também no presente. Nos filmes africanos, os temas fortes de atualidade são aborda­ dos sem complacência; o espaço fílmico funciona de maneira genérica e simbólica. A representação de um fato e de uma reali­ dade sociopolítica em um determinado país não vale apenas para este país, ela concerne simbolicamente a todos os países africa­ nos. Os filmes Adanggaman (2000) e Guimba - um tirano, uma

época (1995) são ilustrativos dessa situação. Em Guimba, Cheick Oumar Sissoko se serve da lenda de um chefe tradicional tirano (Guimba) para problematizar uma das pragas da maioria dos estados africanos: a tirania hereditária instaurada de forma im­ placável pelos dirigentes africanos depois das independências. A história de dominação cega que Guimba e seu filho impõem aos seus próprios congêneres acontece numa cidade do Sahel, mas poderia ser transposta para qualquer país da África. Em

Adanggaman (2000), Roger Gnoan M ’Bala vai mais longe. Ao revisitar o tema da escravidão, o cineasta da Costa do Marfim não se contenta com uma representação lamuriante desse mo­ mento doloroso da história da África, ao contrário, ele põe em cena a controvertida participação dos chefes tribais no tráfico negreiro. Nessa reconstituição histórica, em forma de acusação, é toda a responsabilidade dos chefes de Estados africanos que está em questão.

O engajamento pan-africanista dos cineastas5se reflete, por­ tanto, na diversidade dos temas abordados e dos espaços geográ­ ficos que servem de paño de fundo às ações. Essa tendência é mais nítida, inclusive, nos trabalhos da nova geração de cineas­ tas africanos que não hesitam em situar a ação de seus filmes em vários países. Os dois docum entários realizados com câmera digital pelo senegalês Moussa Touré situam-se nessa veia. No fil­ me 5x5 (2005), é a poligamia o assunto principal. Toda a intriga ocorre num cortiço modesto onde a câmera explora, sem cair no denuncismo, as facetas dessa prática ainda vigente e comum a vários países africanos. No seu primeiro documentário, tam ­ bém rodado com câmera digital, Somos num erosas (2003), Touré abordava a realidade das mulheres congolesas estupradas duran­ te a guerra. Para ele, como para a maioria dos cineastas africanos da jovem geração, a câmera digital proporciona uma maior faci­ lidade para filmar, mas, sobretudo, uma maior facilidade de se deslocar e capturar a realidade africana em todas as suas nuanças e nos diversos lugares do continente. O caráter transnacional dos filmes africanos teve sua m ani­ festação mais simbólica na criação do Fespaco. Ao criar o Festival Pan-africano de Cinema e da Televisão de Ouagadougou, em 1970, o governo de Burkina Faso não visava apenas dar uma vitrine internacional à produção de seu país, pretendia transformar esse

5.

É bom lembrar que esse compromisso dos cineastas africanos com o pan-africanismo se afirmou bem cedo, em 1969, de forma programática, pela criação da Federação Pan-africana dos Cineastas (Fepaci).

evento cinematográfico no maior espaço de encontros e de in­ tercâmbio entre os cineastas de todos os países africanos. O festival de Ouagadougou é também uma ocasião de diálogo direto dos cine­ astas africanos com o seu público local. As ambições pan-africanistas do Fespaco estão no fato de criar uma rara oportunidade de exibi­ ção dos filmes africanos para um público africano.6Com o gover­ no revolucionário instaurado pelo presidente militar Thomas Sankara, o Fespaco passou a ter maior ressonância, pois correspondia aos anseios políticos, isto é, propor um modelo de integração cul­ tural dos povos africanos e de resistência àquilo que se considera­ va ainda como resquícios do colonialismo e do imperialismo oci­ dental francês na África. É no próprio prêmio do Fespaco que muitos reconhecem cla­ ramente as ambições pan-africanistas do maior festival dedicado ao cinema negro-africano sobre solo africano. Em 1972, os organizadores do Festival Pan-africano do Cinema de Ouagadougou instituíam o prêmio L’Étalon de Yennenga7. Esse prêmio recompensa o lon­ ga-metragem que, além das suas qualidades técnicas, melhor se esmerou na descrição das realidades da África. A cada edição do Fespaco, e por meio desse prêmio, espera-se dos cineastas africanos que tragam filmes que apresentem uma imagem justa do continen­ te negro, isto é, uma imagem que não deva ser necessariamente

6. A maioria dos filmes selecionados e premiados, com o se sabe, nem sequer conse­ guem ser distribuídos nas salas de cinema africanas. 7. Conforme a tese de doutorado que Stanislas Bemile Meda consagrou ao sentido e valor do prêmio do Fespaco: Le film Airicain face ala competition: analyse des PrixÉtalon de Yennenga de 1972 à 2005. IUT Michel de Montaigne-Université de Bordeaux 3.

angelical, mas tampouco estereotipada. Os objetivos do Fespaco per­ manecem como a expressão mais concreta do pan-afiricanismo que domina todas as produções artísticas africanas. Com o passar do tem­ po, em virtude desses objetivos federativos, o festival abriu suas por­ tas para produções cinematográficas provenientes da diáspora negra. Paradoxalmente, é o ocidental, através de sua crítica cinefílica, seus mecanismos de apoio aos cineastas africanos e seus festivais8, que vai reafirmar a natureza pan-africanista das produções cine­ matográficas provenientes do continente negro. No contexto de uma globalização que se parece cada vez mais com uma tendência à americanização das culturas, os esforços dos governos europeus em sustentar a produção e difusão de seus cinemas se estenderam às tentativas de sobrevivência das expressões artísticas dos países menos desenvolvidos. É por meio dessa disposição de muitos paí­ ses europeus, para tornar viável o conceito da diversidade cultural, que muitas cinematografias africanas vivem um novo momento da sua longa e sofrida trajetória. Ao arquitetar políticas culturais para sustentar e proteger as suas produções cinematográficas, a França busca também fomentar produções de filmes do sul.9

8.

Há cada vez mais festivais internacionais em que as produções africanas são selecionadas e apresentadas como um todo. Se esses festivais não são dedicados aos filmes de um determinado país africano, isso se deve, de um lado, à fraca quantidade de filmes produzidos por país, de outro, às características tem áticas e formais com uns aos filmes africanos. O exemplo do Festival des Cinémas d’Afrique du pays d’Apt í Vaucluse - França) é interessante, pois inclui, além da programação de alguns filmes do Fespaco, vários debates entre cineastas africanos e o público jovem das escolas. 9. Conforme o livro Au sud du cinéma: films d ’A frique, dAsie et dAm érique Latine, organizado por Jean-Michel Frodon e editado por Cahiers du Cinema e Arte Editions.

Nesse modelo de produção descentralizado, os cinemas afri­ canos vivem um outro paradoxo, comparável à emergência de uma literatura africana em língua do colonizador. No plano da produ­ ção e da distribuição, esses mecanismos de ajuda mantêm todos os cinemas africanos numa forma de dependência com o exterior. Salvo algumas exceções, podemos dizer também que o papel fun­ damental da cooperação na produção e circulação dos filmes afri­ canos afastou de vez qualquer esforço dos governos locais para esse setor. Isso faz com que as cinematografias africanas sejam uma das raras do mundo em que todos os filmes são produzidos na total inexistência de uma política cultural e cinematográfica dig­ na desse nome. No que diz respeito aos países de língua francesa, a cooperação histórica com a França está na base de quase todas as produções. A famosa exceção cultural francesa, que é uma estratégia para a própria França preservar o seu cinema contra a invasão hollywoodiana, foi transformando-se aos poucos num princípio de salvaguarda e de promoção de todas as cinematografias da África francófona. A atua­ ção e a intervenção do organismo francês10 de apoio em todos os diferentes níveis da produção cinematográfica dos países africanos resumem bem o ideal da exceção cultural francesa.

10. Fonds Sud: esse mecanismo, que faz parte da política de cooperação internacional da França com o resto do mundo, acabou de com pletar vinte anos de existência. Enquanto esse fundo gerencia iniciativas e projetos de coprodução com a maioria dos países latino-americanos e asiáticos, suas ações consistem num financiamen­ to integral dos projetos de filmes africanos.

Se esse modelo de produção descentralizado se apresenta como uma oportunidade imperdível para diretores africanos, por outro lado levanta a questão de saber até que ponto os filmes que são pro­ duzidos com o financiamento da cooperação se encaixam no con­ ceito mesmo de cinematografia nacional. Para a maioria do público africano que não tem muito acesso a esses filmes, não há dúvida: o cinema africano existe antes de tudo para o público de fora. Esse paradoxo do modelo de produção vigente é acompanha­ do de uma outra contradição vivenciada no polo da recepção; ao mesmo tempo que os filmes africanos são fartamente realizados com fundos vindos de fora, esses filmes permanecem longe das salas afri­ canas e de seus públicos locais. Às vezes, esses filmes permanecem em estado de pura realidade textual. Depois dos festivais e mostras em que são exibidos, são os escritos e as avaliações da crítica europeia que lhes asseguram uma longa vida e que perenizam seus traços.11

Conclusão Após mais de quarenta anos de soberania e de independência, muitos países africanos ainda estão tentando reunir o mosaico de

11. Essa situação se reverteu recentemente graças aos esforços de algumas entidades públicas e privadas para assegurar uma m aior circulação dos filmes africanos: disponibilização em suporte DVD; Médiathèque de Trois Mondes; TV5; criação de um site (www.diplomatie.gouv.fr) que apresenta mais de cem catálogos de filmes de Fond Sud Cinéma, e cujos trechos e sequências podem ser baixados e vistos pela internet.

grupos étnicos que compõem suas populações em torno de valores republicanos e culturais comuns. É, portanto, com relação a essa realidade de déficit do sentido da nação que os cinemas africanos, apesar de todas as dificuldades de produção e distribuição que en­ contram, ganham toda a sua legitimidade e seu direito de existir. Como a escola herdada da colonização, como a arte e a litera­ tura africana (oral e escrita), os cinemas africanos participam do processo de construção e consolidação da nação. Os filmes mobili­ zam imagens em torno das quais se forjam identidades comuns nesses países e, assim sendo, contribuem para uma homogeneização interna das consciências que é mais preferível à uniformização cul­ tural imposta de fora pela globalização e pela americanização da cultura. As diferentes respostas dos cinemas da África demonstram que pode existir um outro tipo de nacionalismo, um outro tipo de projeção nacional. Na falta de nações no sentido pleno da pala­ vra, o movimento cultural que os cineastas africanos ajudam a construir transcende os limites territoriais herdados da colonização. Os valores culturais defendidos ou recusados em cada filme estão ligados à ideia de que todas as sociedades africanas formam um todo, independentemente das clivagens políticas e étnicas. A noção de nação defendida pelos cinemas da África ecoa no pan-africanismo que permanece um sonho frustrado no plano político, mas uma realidade no plano simbólico e no imaginário. Esse valor assumido pelo cinema na África faz desmentir a ideia de que a luta contra a pobreza e o subdesenvolvimento não deveria incluir a adoção de políticas voltadas para o setor da produção cinematográfica.

R eferên cias BLANCHARD, Pascal. La Republique coloniale. Paris: Albin Michel, 2003. BOUGHEDIR, Ferid. Cinema africano de A a Z. Bruxelas: OCIC, 1992. FRODON, Jean-Michel. La projection nationale: cinéma et nation. Paris: Odile Jacob, 1998. ______ (Org.). Au sud du cinéma: films d’Afrique, d’Asie et d’Amérique latine. Paris: Cahiers du Cinéma, 2004. GARDIES, André. Cinema d’Afrique noire francophone: Fespace miroir. Paris: Editions l’Harmattan, 1989. HENNEBELLE, Guy. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. LEQUERET, Elisabeth. Le cinéma Africain: un continent à la recherche de son propre regard. Paris: Cahiers du Cinéma; Scérén-CNDP, 2003. TARBAGDO, Sita. Burkina: flash back sur un cinéma multiforme. Les Passeports RFI: cinémas africains d’aujourd’hui, Paris: Karthala, 2007. p. 34-37. ______ . Lé cinéma et les cinéastes du Burkina. Disponível em: . Acesso em: 16 nov. 2009.

História, tragédia e farsa: The President's last bang nos circuitos dos festivais de cinema* Leo Goldsmith

Um réquiem para aqueles que morreram no massacre que envol­ veu o assassinato do Presidente Park Chunghee, a sátira política The President s last bang, de Im Sang-soo, é o filme sul-coreano mais controverso de 2005 - um olhar violento, profundo e irônico sobre um fato real na historia recente da nação. Mostrado com força pelo olhar refinado e lancinante do diretor Im - e pintado com sangue impiedoso e coagulado - , o assassina­ to de Park na tela está destinado a tirar a consciência nacional de seu esquecimento e a engajar o público neste memorial total­ mente moderno em uma sociedade que virou seu poder militar contra simesma... Sem tentar ser uma reconstrução fiel do trágico incidente, The President s last bang oscila entre urna historia de detetive emoci­ onante e um humor mórbido picante. O entendimento do dire­ tor Im e a reprodução impecável de uma humanidade crua gi­ rando no centro da saga do poder cobiçado brilha com uma luz

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [ N. T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].

fosca. Essa luz lança longas sombras de violência que escurecem a tela na nova estética desse drama social intrigante.1 Explodindo com a alegria subversiva de Dr. Fantástico ou Sob o domínio do mal\ o humor mórbido escabroso de Im Sang-soo lança um olhar áspero pela recente história da Coreia do Sul... Im é um encrenqueiro natural que não se intimida por ser irreverente em relação a esse evento circunscrito à criação de uma Coreia do Sul democrática... Porém, ao tratar o assassinato como uma farsa grandiosa, Im captura uma verdade profunda frequentemente deixada de lado pelo livro-texto: a história não é limpa.2

Um pouco controverso e com os louros de muitos festivais de cinemas internacionais, The Presidents last bang ( Geuddae

Geusaramdeul) chegou ao 43° Festival de Cinema de Nova Iorque, em outubro de 2005, como um dos três filmes representativos do cinema da Coreia do Sul. Esse número não teve precedentes no festival: nos quarenta e dois anos anteriores ao festival, um total de seis filmes sul-coreanos tinha sido exibido, começando com O

Homem com três caixões (Nageuneneun kileseodo swiji anhneundà) de Lee Changho, em 1988. Junto com o estiloso filme de ação Mr. Vingança ( Chin-Jeol-Han Geum-Ja-Ssi), de Park Chanwook, e o inexpressivo filme de arte Conto de Cinema ( Geuk

jangjeon), de Hong Sangsoo, The Presidents last bangé represen-

1. Fulvi, Giovanna. 30° Festival de Filme Internacional de Toronto. Grupo do Festival de Filme Internacional de Toronto. Disponível em: < http://www.e.bell.ca/filmfest/ 2005/films_description.asp?id=214>. Acesso em: 12 dez. 2005. 2. Programa do 43° Festival de Filmes de Nova Iorque. A Sociedade do Filme do Lincoln Center. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2005.

tativo do que é geralmente considerado como novo cinema nacio­ nal “quente”, uma forma de produção cultural vibrante que está so­ mente começando a emergir no contexto internacional, amplamen­ te veiculada pelos canais do próprio circuito do festival internacio­ nal de cinema. O que distinguiu The President's last bang de seus primos cinéticos coreanos, entretanto, foi o fato de - graças, sem dúvida, aos muitos festivais que o exibiram desde o seu lançamento na Coreia do Sul em março - o filme ter chegado no festival de Nova Iorque com uma distribuidora estadunidense, Kino International, uma distribuidora internacional renomada e com tradição, basica­ mente de cinema autoral na América do Norte. Algumas semanas após a primeira exibição do filme em Nova Iorque, The Presidents

last bang teve um lançamento limitado em várias cidades dos Esta­ dos Unidos, anunciado por uma série de resenhas entusiastas, onde arrecadou um montante total nacional de 6,3 milhões de dólares antes de fechar sete semanas.3 Nas páginas (e nas conversas) da revista Variety antes de seu lançamento, Derek Elley arriscou que [...] embora um pouco de reconhecimento dos atores envolvi­ dos e um pouco de conhecimento da história recente da Coreia enriquecessem a experiência de assistir ao filme, poderia se en­ contrar um mercado especializado no Ocidente entre públicos simpatizantes elitizadosl

3.

BoxOfficeM ojo.com. Disponível em: < http://www.boxofficemojo.com/movies/

4.

?id=presidentslastbang.htm>. Acesso em: 11 dez. 2005. Elley,Derek. The Presidents last bang (Geuddae Geu Saramdeul). Variety n. 23-29, maio 2005, p. 38.

Poderíamos perguntar por que um filme como The Presidents

last bang, conduzido de Seul a Nova Iorque por meio de vários festivais de cinema de prestígio - incluindo os de Cannes, Telluride e Toronto - , normalmente aclamados pelos críticos e cinéfilos que frequentam o circuito dos festivais internacionais de cinema, de­ veria ser recebido com tanta indiferença pelos públicos de filmes urbanos de cinema de arte para os quais ele foi (presumivelmente) importado e exibido? Onde, de fato, estavam esses “públicos sim­ patizantes elitizados”, quando foi exibido esse tipo de cinema na­ cional emergente tão aclamado? Uma explicação sobre as exatas razões do fracasso de bilhe­ teria de The Presidents last bang provavelmente resida na interse­ ção confusa de fatores relacionados às práticas de marketings distri­ buição, aos lugares específicos e às condições de recepção do fil­ me e talvez, até mesmo, a uma tentativa de etnografia daquele pú­ blico elitizado para quem o lançamento do filme foi direcionado nos Estados Unidos. Todas essas razões estão além do escopo e do interesse deste ensaio, e algumas são facilmente explicados pela resenha de Elley (e de muitos outros), que recomenda “algum co­ nhecimento da história recente da Coreia”. Em vez de tratar dessas questões imediatas, eu gostaria de usar o caso de The Presidents

last bang nestas páginas para promover uma discussão mais geral sobre a função e a cultura de festivais internacionais de cinema, seu lugar em relação a uma concepção generalizada de “cinema mundial” e seu papel na formação de “cinemas nacionais”. O circui­ to do festival internacional de cinema (e a cultura que o cerca) se tornou um local crucial de interseção cultural no ambiente do cine­ ma, funcionando como uma porta e como um mercado através dos quais os filmes de todo o mundo podem entrar na economia global

de imagens. Alguns teóricos de festivais de cinema, tais como, Bill Nichols, conceituam essa arena como um espaço ideal de interação transcultural, em que o encontro do participante do festival com o filme estrangeiro pode criar novos significados e uma nova vida para o filme e seu realizador fora de seu contexto local-nacional. Por outro lado, outros, como Julian Stringer (em seu ensaio sobre Boat People, um filme cuja recepção corresponde, de forma importante, àquela de The President’s last bang), observam que o contexto dos festivais de cinema pode ter pouquíssima competên­ cia para sustentar certos textos “difíceis”, filmes que poderiam real­ mente problematizar os modos de “olhar cultural híbrido”5 pratica­ dos pelo frequentador do festival ou pelo receptor do “cinema mundial”. Neste ensaio, esboçarei primeiro essas teorizações distin­ tas da cultura do festival internacional de cinema e, depois, discuti­ rei o lugar que The Presidents last bang - como “cinema mundial”, como “Cinema Novo Coreano” e como trabalho historiografía) ocupa (ou se recusa a ocupar) nesse sistema.

O circuito do festival internacional de cinema: textos e contextos Os festivais internacionais de cinema formam uma rede de canais para o trânsito de filmes no mundo todo. Tipicamente, a linguagem dos catálogos e dos programas e a estrutura de suas

5. Stringer, Julian. Boat People-. Second Thoughts on Text and Context. In: Berry, Chris (Ed.). Chinese Films in Focus:2.S New Takes. London: BFI Publishing, 2003. p. 19.

festividades organizam uma retórica de autoria que coloca em primeiro plano o papel individual do artista-diretor e sua partici­ pação no “cinema mundial”. Em sua “passagem” pelo cinema coreano, Paul Willemen observa que essa retórica de “cinema mun­ dial” está frequentemente relacionada (contudo, de forma para­ doxal) àquela de “cinemas nacionais”: Desde [a década de 50], a noção de cinema mundial’ tornou-se geralmente aceita, infelizmente. Os locais de exibição de filme vin­ culados a arquivos audiovisuais agora noticiam de forma regu­ lar temporadas de cinemas nacionais recorrendo à linguagem de descoberta ‘familiar’ a partir de expedições coloniais tanto quanto de panfletos de turismo. Juntamente com essa noção de cinema mundial, como seu componente inevitável, recebemos histórias de cinemas nacionais elaboradas de acordo com as mes­ mas hipóteses nacionalistas que regem a formulação de histórias nacionalistas literárias românticas como forma de apelar a al­ gum misterioso ‘espírito’ unificador da nação, localizado princi­ palmente no ‘espírito’ de qualquer língua imposta como língua nacional por algum grupo dominante.6

Os “espíritos nacionais”, como aparentemente exemplificados pelos cinemas nacionais, falam aos frequentadores de festival de cinema na “língua universal” de um cinema mundial, por meio do preenchimento de lacunas entre culturas em um discurso fa­ miliar de global e local. Nesse modelo, o festival internacional de

6.

W illem en, Paul. D etouring through Korean cinem a. Inter-Asia Cultural Studies, 3.2, p. 1 6 7 -1 8 6 ,2 0 0 2 . É interessante observar, entretanto, que apesar do desagrado de W illemen pelo universalism o de “cinem a m undial,” seu ensaio procura, de m aneira parcial, reificar o universal no contexto de um a história internacional de capitalismo com o manifestada no cinem a - de form a que não podem ser inteira­ mente contraprodutivas.

cinema (como uma “janela para o mundo”) figura como o meio transparente através do qual o local é trazido à arena global de recepção de filme. Em alguns ensaios publicados em 1994, após uma retros­ pectiva de dezoito filmes iranianos pós-revolução no Festival In­ ternacional de Cinema de Toronto de 19927, Bill Nichols procu­ rou dissecar algumas das formas em que os festivais internacio­ nais de cinema funcionam (e se definem) como lugares de troca transcultural. Assim como os próprios festivais, Nichols sugere que os “festivais internacionais de cinema podem representar um globalismo nascente não mais tão centrado na estética ocidental dos poderes de curadoria dos grandes colecionadores do mundo ocidental”8. Na percepção de Nichols, os festivais de cinema são espaços de (sabe-se) contato idealizado, descoberta e discurso: [...] o gênio da lâmpada trazendo o novo e o extraordinário constantemente diante de n ó s ... sem necessariamente avançar na hegemonia estadunidense, japonesa ou europeia, nos padrões de Hollywood, ou num a cultura globalizada mais predominan­ temente norte-am ericana e pop9.

Mas, antes de recapitular toda a linguagem essencialista/ universalista dos programas dos festivais de cinema, Nichols se preocupa em

7.

Nichols, Bill. Global Image Consumption in the Age ot Late Capitalism. East-West

Journal, 8.1, p. 68-85, 1994; e Nichols, Bill. Discovering Form, Interring Meaning: New Cinemas and the Film Festival Circuit. Film Quarterly, 47.3, p. 1 6 -31,1994. 8. Nichols,“Global Image Consum ption”, p. 72. 9. Ibidem, p. 81.

[...] como [o festival de cinema] a experiência modula e constrói os significados que atribuímos aos mais novos em uma sucessão contínua de ‘novos cinemas’, enquanto, ao mesmo tempo, cons­ tituímos o público necessário para reconhecer e apreciar tais ci­ nemas como entidades únicas e de valor10.

Nichols salienta a experiência de recepção do frequentador do festival não como um encontro direto através do meio trans­ parente do festival, mas como um encontro mais alinhado com a experiência descrita nas teorias do encontro etnográfico. Nichols tira suas pistas de um quadro diverso de escritores sobre a inter­ seção transcultural, começando com E. Ann Kaplan, cuja discus­ são de teorias ocidentais de melodrama aplicadas ao cinema chi­ nês contemporâneo atrai teorias de etnografia. Kaplan sugere duas opções interpretativas para o espectador ocidental nesse contex­ to: “submersão”, que envolve um processo imaginado de imersão cultural (ou seja, uma receptividade e submissão aos aspectos “lo­ cais” do trabalho); e “leitura”, que retém a posição de sujeito dis­ tante do próprio espectador (quer dizer, uma interpretação “glo­ bal” da estética ou dos aspectos políticos do trabalho). Nichols observa que “Kaplan opta por ‘ler’ a respeito de ‘submersão’, argu­ mentando que, já que os textos escondem seus significados, críti­ cos de culturas diferentes podem revelar significados não encon­ trados por críticos da mesma cultura”11. Nichols, por outro lado, vê um modo de recepção mais inclusivo praticado entre os

10. Nichols, “Discovering Form, Inferring Meaning”, p. 16. 11. Nichols, “Global Image Consumption”, p. 70-71.

frequentadores de festivais internacionais de cinema, um mode­ lo interpretativo que recebe filmes não somente a partir da pró­ pria posição de sujeito do frequentador de festivais (como arte­ fatos de um gênero de filme de arte internacional, por exemplo), mas também funciona como um tipo de imersão cultural tem­ porária. “Leitura” e “submersão” não são, portanto, modos mutuamen­ te excludentes de recepção cultural para Nichols, mas lentes de interpretação que o espectador pode escolher conforme desejar. De fato, é a própria posição intersticial do frequentador de festi­ val - nem totalmente dependente de uma imersão experimentada nem de uma observação distante - que faz dela “a própria audiência necessária para reconhecer e apreciar” o valor dessas produções culturais. Mesmo se o frequentador de festivais é encorajado a fazer do estranho familiar, a recuperar diferença como semelhança (mais classicamente através da descoberta de uma humanidade comum, uma família de homens [sie] estendendo tempo e espaço, cultura e história), uma outra forma de prazer reside na experiência do próprio estranhamento. Enquanto esse aspecto da experiência do festival não reafirma ou cede prontamente aos códigos predomi­ nantes do cinema hollywoodiano hegemônico, ele coloca o festi­ val internacional de cinema em uma posição transnacional e qua­ se pós-moderna.12

12. Nichols,“ Discovering Form , Interring Meaning”, p. 1 8 .0 “sic” pertence a Nichols.

Então, a posição do frequentador de festivais abarca tanto um modo de assimilação de “leitura” quanto uma satisfatória “ex­ periência de estranhamento”, um reconhecimento daqueles elemen­ tos de um filme que resiste à familiarização e à tradução. Comparando a experiência do festival com o trabalho de campo etnográfico, entretanto, Nichols também observa a dife­ rença essencial entre os objetos de estudo dessas duas práticas. Citando o estudo etnográfico referencial de Clifford Geertz, Nichols aponta que [...] a briga de galos de Bali não foi projetada para viajar. O novo cinema iraniano sim. O que o crítico de outra cultura acrescenta, como suplemento, poderia também, sob essa luz, ser considera­ do como toque final que complementa uma fusão complexa e distinta do local e do global13.

Nichols coloca em primeiro plano, por um lado, a vontade e a participação ativa dos filmes e seus criadores na arena do festival de cinema como imagens a serem consumidas e trocadas e, por outro lado, o papel específico e importante do próprio frequentador do festival. Partindo da noção de Kaplan de que o crítico não nativo pode perceber aspectos de um trabalho que o crítico nativo não vê, Nichols argumenta antes que as “camadas adicionais de significado resultam da circulação de artefatos e trabalhos de arte em uma economia glo­ bal”14. Na concepção de Nichols sobre o festival de cinema, portan -

13. Ibidem, 28, n. 11. 14. Ibidem. A ênfase é de Nichols.

to, o frequentador do festival internacional tem uma relação comple­ mentar com o filme que ele vê. O festival é, por essa razão, “uma for­ ma e um contexto que simultaneamente alteram significados locais [de um filme] e conferem significados novos, globais. O contexto do festival acrescenta uma cobertura maior a significados locais”15. O que Nichols descreve aqui como “cobertura global” acresci­ da ao texto no ambiente do festival associa-se ao que Walter Benja­ min descreve como a alteração sofrida por um texto pelo ato da tra­ dução.16 Para Benjamin, o ato da tradução não é uma transmissão direta de informação de uma língua para outra - a “equação estéril de duas línguas mortas”17 - , é antes o legado do texto original de uma “vida após a morte... uma transformação e uma renovação de algo vivo [por meio da qual] o original passa por uma mudança”18. Como o modelo de Nichols do festival de cinema, a tradução acrescenta novo significado ao seu sujeito nesse processo de “transformação linguística e renovação”. A tradução em si se torna um local privilegi­ ado (se temporário) de interseção cultural, oferecendo tanto transpa­ rência cultural quanto o reconhecimento de sua impossibilidade. A tradução continua pondo à prova o crescimento sagrado de lín­ guas: quão deslocados da revelação estão seus significados escondi­ dos, quão próximos eles podem ser trazidos pelo conhecimento desse deslocamento? Isso, com certeza, é admitir que toda tradu­ ção é de alguma forma apenas uma maneira provisória de chegar a um acordo com o estrangeirismo de línguas.19

15. Nichols,“Global Image Consumption”, p. 68. 16. Benjamin, Walter. A Tarefa do Tradutor. Illuminations. New York: Schocken Books, 1969. p. 73. 17. Ibidem. 18. Ibidem.

Apesar de seu reconhecimento da impossibilidade de um olhar transcultural transparente, o festival de cinema, como local de tradução, todavia, gesticula em direção “ao domínio predesti­ nado, até agora inacessível da reconciliação e desempenho das lín­ guas”20. Portanto, no caso ideal de Nichols, o “global nascente” do circuito do festival de cinema é uma dialética complexa de interação transcultural, gerando novos significados e uma nova vida para os filmes e seus produtores. No centro desses cruzamentos de in­ tercâmbio cultural, o frequentador de festival ocupa o status privi­ legiado, não somente como curador, etnógrafo, turista ou porteiro, mas também como tradutor, cuja tarefa é negociar o dilema inso­ lúvel de distanciamento e reconciliação. Como o etnógrafo, sabemos muito bem que a busca de conheci­ mento profundo e autenticidade é ilusória. Sabemos bem que podemos somente produzir conhecimento que nos situará e clas­ sificará, que nos fornece discernimento sobre as “regiões obscu­ ras” de nossa própria construção do eu, concepção do estado, da cultura ou do valor estético. Sabemos bem e ainda assim... Essa dialética de saber e esquecer, experimentando estranhamento e recuperando o familiar, sabendo que eles sabem que nós sabe­ mos que eles regulam suas informações para nossas pressuposi­ ções, enquanto assistimos a esse processo de revelação mútua or­ questrada acontecer, é uma recompensa em si mesma.21

20. Ibidem, p. 75. 21. Nichols,“ Discovering Form , Inferring Meaning”, p. 20.

Exportando problemas políticos: Boat People e The President’s last bang Após esboçar o que poderia ser caracterizado como um modelo ideal para o consumo de filmes no contexto do festival internacional de cinema, gostaria agora de voltar minha atenção para o contraexemplo - ou contranarrativa - de The Presidents

last bang>um filme que passou por muitos desses canais interna­ cionais e foi recebido com indiferença somente no lançamento geral nos Estados Unidos. Eu deveria, talvez, deixar claro que meu interesse aqui não é equacionar receitas de bilheteria com psicolo­ gia de massa, nem exercitar reclamações sobre o abismo existente entre a comunidade cinem ática internacional de elite e sua contrapartida popular, ou sobre a população nacional ignorante ou indiferente à cultura e à história de uma nação estrangeira (mesmo havendo credibilidade por parte dessas alegações). Em vez disso, minha intenção é esclarecer a forma como o circuito do festival de cinema, ainda que de forma persuasiva posicionado como um canal ideal para o trânsito cinematográfico transcultural, pode fa­ lhar ao classificar certos textos que ocupam posições problemáti­ cas em relação ao discurso dos cinemas globais e nacionais. Meu modelo para esse projeto é o ensaio de Julian Stringer sobre Boat People, um ato de recuperação de um filme que Stringer acha que foi, injustamente, omitido e mal-interpretado durante seu circuito de festivais internacionais de cinema em 1983. Stringer está interessado em examinar

[...] o papel crucial desempenhado pelos festivais internacionais de cinema na circulação e recepção transnacional de BoatPeople. Ao adotar uma perspectiva que considera a significáncia das prá­ ticas de distribuição intercontinental, é possível levantar ques­ tões muito negligenciadas nos relatos antecedentes sobre a im­ portância do filme... para considerar Boat People tm termos de arte mundial do circuito do festival internacional.22 A ênfase de Nichols, por outro lado, está no ato do frequentador de festival de analisar textualmente o cinema iraniano. O que falta em sua teorização são as práticas de distribuição específicas pelas quais esses filmes iranianos chegam até ele. No cinema iraniano, Nichols tem o benefício de um exemplo privilegiado, um grupo de filmes que chegou a Toronto en masse, compartilhando uma estética neorrealista aparentemente uniforme e surgindo de uma indústria de filmes que tinha, até então, permanecido em grande parte isolada do cinema ocidental e do público. Filmes como Boat

People e The Presidents last bang são muito mais problemáticos em todos esses aspectos: são filmes individuais, procuram mais diretamente (e talvez mais sabiamente) se engajar a espectadores internacionais e toleram marcas menos estáveis, consistentemen­ te genéricas e estéticas. Em seu ensaio, Stringer argumenta que, enquanto “festivais ativam molduras históricas intertextuais variadas e históricos no momento em que projetam assuntos locais para consumo interna­ cional”,

[...] neste caso particular, Cannes, Nova Iorque e outros eventos semelhantes não quiseram, em 1983, manter em circulação um fil­ me problemático altamente autoconsciente de sua própria existên­ cia como um espetáculo político e público. (Nichols, 1994, p. 20).23

Stringer lista as dificuldades que os críticos e o público tive­ ram em 4classificar” o filme, citando tanto aas limitações percebi­ das de Boat People como um texto” quanto sua construção pro­ blemática de identificação com o público.24Na linguagem de Nichols e Kaplan, este era um filme que apresentava problemas tanto de “leitura” quanto de “submersão”, um filme que desafiava qualquer oportunidade de imersão cultural imaginada e apresenta­ va significantes difíceis ou enganosos para uma interpretação ade­ quada. Isso é tudo parte da mais geral e problemática “crítica inter­ na do filme a partir do olhar transcultural”25. Parte da dificuldade em situar Boat People no contexto do festival de cinema deve-se a sua preocupação integral, narrativizada com a mídia - uma das próprias formas de interpretação cultural que poderia procurar entendê-lo. O caso de The Presidents last bang apresenta muitos dos mes­ mos problemas para críticos e frequentadores de festivais de cinema. Um rápido olhar aos excertos do programa no início deste ensaio dará uma indicação da resistência do filme a uma categorização genérica: “réquiem”, “sátira política”, “uma história de detetive emocionante”, “hu-

23. Ibidem, p. 21. 24. Ibidem, p. 18-19. 25. Ibidem.

mor mórbido picante”, “saga”, “drama social perturbador”, “humor mór­ bido escabroso” e “farsa grandiosa”, são todos termos usados para clas­ sificar o filme de um modo genérico particular. Essa linguagem é parci­ almente representativa do jargão dos programas de festival, os quais frequentemente tentam situar filmes individuais como coisas para to­ das as pessoas. Mas também é em grande parte uma indicação da qua­ lidade do filme quanto ao tom e ao gênero enquanto retrata um evento histórico maior, alternando seriedade, violência sangrenta e comédia de pancadaria. Realmente, seria difícil classificar esse filme em qualquer gênero dominante ou amplamente reconhecido do cinema internaci­ onal (muito menos da Ásia Oriental ou Coreia). O filme, certamente, contém violência e sangue, mas somente em umas poucas cenas, e está longe de uma caracterização do que veio a se chamar “Ásia Extrema” nos mercados europeus. Por outro lado, embora o filme tenha sido consistentemente exibido no contexto do cinema de arte nos festivais internacionais (com toda a ênfase sobre as origens autorais e a relevân­ cia social e política que isso implica26), Im Sang-soo, o diretor, não é muito conhecido, e seu filme carrega os valores de produção e os marcadores estilísticos {mise-en-scènelxxsXxoszi, trabalho de câmera ágil) de um filme mais comercial. Essa mistura de tons e gêneros é mostrada na cena inicial do filme em que o Agente Chefe dá uma volta por uma série de salas de interrogatório da KCLA (Agência Central de Inteligên­ cia da Coreia), passa por várias cenas de tortura, com o quase cômico desinteresse de um homem fazendo o seu negócio.

26. Observe o primeiro plano do programa de Toronto do “olhar refinado e incisivo” do diretor e a caracterização do programa de Nova Iorque do diretor com o “um encrenqueiro natural.”

As linhas de identificação com o público, igualmente, são repletas de ambiguidade. O filme ostenta um elenco razoavelmente grande mostrando todas as principais figuras que envolvem o evento, mas não privilegia nenhuma delas. O presidente Park Chunghee é obviamente o principal foco do filme, porém é mor­ to no meio da historia e, de qualquer modo, correspondería mais propriamente à posição de vilão. O assassino do presidente, o di­ retor da KCIA Kim Jaegyu, também não é mostrado como herói. Sua motivação para o assassinato é um compromisso com a de­ mocracia, embora ele pareça mais um mercenário. De qualquer forma, suas exatas razões para matar Park permanecem obscuras no filme (como na vida real). O agente Ju talvez seja quem mais se aproxima da figura de protagonista na história, mas é retratado como alguém profundamente comprometido com questões mo­ rais (ele é forçado a matar um conhecido em um momento crucial) e tolamente leal ao seu superior. Obviamente, todas essas identifi­ cações potenciais são derrubadas ao final do filme, um relato dos julgamentos e execuções daqueles envolvidos no assassinato, lido em um tom condescendente pela narradora, que não aparece na tela. Esse epílogo e, especificamente, seu narrador feminino, em princípio, revelariam o verdadeiro tema do filme: a hipocrisia e o fervor masculino macho que sustentam as intenções pretensio­ samente nacionalistas dos políticos da época. “Glória à República da Coreia, uma ova”, bufa o narrador. “Que ingenuidade!” - uma exclamação que efetivamente ridiculariza qualquer sugestão de que o filme pretendia criar heróis a partir dos personagens do filme, ou mesmo servir como um “réquiem” para eles.

De fato, é o trabalho do filme como relato histórico e seu modo particular de historiografia que, como “crítica interna das relações de olhar transcultural de Boat Peoplê\ parece gerar a mai­ oria dos problemas à sua recepção em um contexto de festival internacional de cinema.

História e esquecimento: “repensando”

The P resident’s last bang Stringer começa a ressuscitar Boat People com um catálogo das principais interpretações feitas por vários críticos do filme. O filme foi basicamente enquadrado como uma alegoria da iminente entrega de Hong Kong à China Continental, mas também figurou em termos de sua relação com toda a obra da diretora Ann Hui e com seu status de “diretora mulher”. Todavia, como Stringer ad­ verte, “tais trabalhos somente realçam a necessidade de se estar consciente sobre a variedade de elementos que definem a situação do filme em um complexo meio discursivo e social”27. Como es­ sas principais interpretações do status de The Presidents last bang, como trabalho histórico, indicam, aqui está uma necessidade de cautela. Muito da confusão que envolve a recepção do filme nos Es­ tados Unidos - e muito da controvérsia em torno de seu lança­ mento na Coreia do Sul - se origina na questão relacionada à pre-

cisão histórica do filme. Para os críticos estadunidenses, a mudança radical de tom no filme e o foco confundem qualquer afirmação que ele possa fazer com autoridade factual. John Hayes, assistindo à pré-estreia do filme, no Festival de Cinema Three Rivers, para o Post-Gazette de Pittsburgh, sugere que [...] não está claro o quanto Im Sang-Soo sabe sobre a história de sua nação, quais partes de The President’s last bangsão verdadei­ ras, quais são razoavelmente ñccionalizadas, quais são feitas para se encaixar em uma pauta e quais são elaboradas para compor um bom filme28.

Para Hayes (que percebe que o filme é “algo entre uma farsa e um suspense”), a questão da veracidade histórica dos detalhes do filme é crucial no julgamento sobre o valor e a importância do filme: Se ThePresident’slastbang é de fato um filme baseado no coreano Todos os Homens do Presidente, torna-se fascinante conhecer os mínimos detalhes pessoais que contribuíram para a história: um mau hálito de um oficial, uma amizade inconveniente com um guarda presidencial, policiais sem balas, uma relação conjugal com o presidente, entre outros. Porém, se todos esses pormeno­ res são simplesmente uma série de recursos literários inventados e usados para costurar alguns fatos pesados em um filme longa metragem, então The President’s last bangé pouco mais do que um JFK coreano de entretenimento.29

28. Hayes, John. 3 Rivers, 3 Sneaks; Film Fest Offers First Look at Som e Great New Movies. Pittsburgh Post-Gazetted, Nov. 2005. p. 20. 29. Ibidem.

Interpretando o filme pelo viés dos thrillers políticos estadunidenses, Hayes tenta discernir se The Presidents last bang é uma reconstrução ou uma mera teoria da conspiração. Aqui, só uma verificação do status do filme como “fato” ou especulação legitimará uma leitura “correta”. Entretanto, um olhar para as controvérsias em torno da pro­ dução do filme e do lançamento na Coreia do Sul revela que o modo historiográfico do filme é um tanto mais complexo. Espe­ cificamente, o filme atraiu a ira da família do presidente Park, que prontamente acionou os tribunais para banir o filme sob a alega­ ção de que as descrições referentes às atenções amorosas do presi­ dente a mulheres jovens eram humilhantes e difamatórias. Os tri­ bunais então sancionaram o lançamento do filme com a condição de que fossem feitas algumas revisões, a fim de não ser “enganoso e [não] fazer as pessoas pensarem que o filme era fato, em vez de ficção”30. No lugar da narração zombadora do epílogo do filme, Im originalmente pretendia usar na íntegra o documentário do funeral estatal de Park. Os tribunais exigiram que a extensão do documentário fosse reduzida e também que o filme tivesse uma retratação introdutória, declarando-o uma obra de ficção. Nas entrevistas, entretanto, Im foi inflexível sobre a veraci­ dade de seu relato e de sua base em pesquisa detalhada: Até onde sei, esta é a verdade. Mesmo que ninguém conheça a verdade, exceto os deuses! Há somente três pessoas que sobrevi­ veram ao evento... e não podemos realmente comprovar se o que

30. Russell, Mark. The Presidents last bang. Hollywood Reporter, 1 fev. 2005.

dizem sobre aquela noite é verdade, mas o que é a verdade? Ver­ dade é quando você tem muitos detalhes e várias explicações so­ bre fatos e sobre quem estava lá contados por várias pessoas dife­ rentes. Aqui, em vez disso, temos somente três pessoas. Eu então diria que esta é a versão de Im Sang-soo do que aconteceu naque­ la noite. Não diria que isto é uma sátira, ou uma obra de ficção, ou uma versão grotesca de realidade. Só digo que, até onde sei, esta é a verdade e que esta é a minha versão dela.31 Os comentários de Im sobre The Presidents last bang e a mu­ dança persistente de tom e gênero do filme revelam sua ênfase na plasticidade, no absurdo inerente, na verdade em geral e nesta his­ tória em particular. O filme de Im retrata uma história ridícula al­ ternativa que desafia o registro oficial e resiste a qualquer descrição unilateral de seus personagens como “importantes” ou como figu­ ras históricas intocáveis. Não obstante suas invocações da “verda­ de” em sua versão, Im é cândido sobre seu método historiográfico de condensação, simbolismo e metonimia. Conforme explica, ele quis criar “uma apresentação cinemática muito efetiva, [...] eu que­ ria colocar em um filme de cem minutos não somente as poucas horas daquela noite, mas todos os dezoito anos do regime de Park Chunghee”32. De fato, o filme de Im interpreta literalmente a asserção famosa de Marx, repetindo história como tragédia e depois como farsa, ou simultaneamente. Dessa forma, The Presidents last bang se engaja em um modo historiográfico particularmente complexo, onde a própria farsa se torna uma metodologia de consciência his-

31. Bertolin, Paolo. An Inteniew with Im Sang-soo. maio 2005. Disponível em: < http:// koreanfilm.org/imss.html>. Acesso em: 11 dez. 2005. 32. Ibidem.

tórica e desconstrução.33Tal forma de redução e transformação metonímica é semelhante à noção de tradução de Benjamin e ao conceito de Nichols de “cobertura global” do festival de cinema: um processo altamente autoconsciente de ressurreição que atri­ bui a seu objeto um novo significado em sua vida após a morte.

The President s last bang não somente desafia deliberadamente uma leitura linear e inquestionável como fato histórico, mas tam­ bém revisita um momento na história que é particularmente pou­ co comentado no Ocidente. Quero dizer com isso que o assassinato de Park Chunghee não se encaixa claramente nas caracterizações mais amplas da história da Coreia e do “espírito nacional” no sentido em que é conceituado internacionalmente. O filme não aborda explici­ tamente a divisão da Coreia em norte e sul, tampouco retrata a história recente da Coreia do Sul como uma narrativa otimista e descomprometida de democracia. De fato, como Han Ju Kwak ob­ servou, a ditadura longa e opressiva de Park Chunghee, do início da década de 1960 até o assassinato em 1979, está indissociavelmente ligada ao surgimento da modernização na Coreia do Sul.34Ao reativar esse momento na memória popular, ao ressuscitar o presidente para revisitar sua última “transa”, o filme ameaça uma ruptura na história

33. Para uma discussão de melodrama com o forma análoga de consciência histórica, ver: Wang, Yuejin. M elodrama as historical understanding: the making and unmaking of communist history. In: Dissanayake, W imal (Ed.). Melodrama and Asian Cinema. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 73-100. 34. Kwak, Han Ju. Discourse on Modernization in 1990s Korean Cinema. In: Lau, Jenny Kwok (E d .). Multiple Modernities:. Cinem as and Popular Media in Transcultural East Asia. Philadelphia: Temple University Press, 2003. p. 91.

da democracia da Coreia do Sul. De fato, para Im, reativar memóri­ as ruins está na raiz da controvérsia que o filme causou em seu país: Meu produtor lançou Last Bangdurante quatro meses na Coreia. E os jornalistas e jornais mais poderosos de extrema direita es­ creveram críticas violentas e ruins sobre o filme. Fiquei chocado. Park morreu há 25 anos, mas há algo que ele deixou para trás, talvez uma mentalidade. Mas, mais concretamente, a Samsung, a Hyundai, que nasceram no regime do Sr. Park. Essas marcas agora controlam a Coreia, então elas não querem ver seus pró­ prios fatos, sua própria face no filme.35

C o n clu são Semelhantemente a Boat People, The Presidents last bang prevé os modos interpretativos do espectador e deliberadamente problematiza seu entendimento da verdade relativa da represen­ tação histórica em exibição pública. Apesar da caracterização de J. Hoberman (provavelmente brincando) do filme como um trabalho de “K-História (K de Kim, o assassino, de Korea e de KCIA)”36, o longa metragem emprega um método de historiografia particular­ mente desconfortável, anticomercial e impopular que questiona as próprias condições e origens da modernização da Coreia do Sul.

35. Crawford, James. Shoot to Kill: Im Sang-soo Gets Down and D irty W ith Politics in The President’s last bang. 12 out. 2005. Disponível em: < http://www.indiewire.com/ people/2005/ 10/shoot _to._kill_,i.html>. 36. H o b erm an , J. K -H isto ry : Slapstick Political T h riller Skim ps on C o n te x t,

Village Voice, 7 out. 2005. Disponível em : < http://w rww.villagevoice.com /film/ 0541 ,hoberm an2,6 8 7 0 7 ,20.htm l>.

No contexto de um festival internacional de cinema em que a retórica de um cinema mundial global coexiste com aqueles poucos cinemas locais, nacionais, os filmes que procuram desafi­ ar as narrativas dominantes de suas próprias localidades podem ter poucos atrativos. Isso é particularmente verdade para um ci­ nema nacional “novo” como o da Coreia, que ainda está em pro­ cesso de formação de sua imagem no panorama da mídia de festi­ vais internacionais de cinema. As lições de um filme como The

President's last bang, com sua crítica interna sobre a moderniza­ ção de seu país, serão recebidas com entusiasmo tanto pelos festi­ vais de cinema globais (e, de forma crescente, corporativos37) quan­ to pelos conglomerados no país natal. Porém se, na concepção de Bill Nichols, o festival internaci­ onal de cinema é, de fato, a primeira arena da “dialética de saber e esquecer”, então os filmes “difíceis” como Boat People e The

Presidents last bang - filmes que, acima de tudo, procuram nos lembrar da instabilidade de nossas posições subjetivas e de nossas próprias pré-histórias complexas - deveriam ser precisamente os tipos de textos que nos beneficiassem. E, se devemos “constituir o público exato necessário para reconhecer e apreciar tais cinemas como entidades únicas e de valor”, devemos ser receptivos à “es­ tranheza da experiência” em todas as suas formas.

37. O Festival de Cinem a de Nova Iorque, por exem plo, tem sido patrocinado nos últimos dois anos pela HSBC (C orporação de Hong Kong e Shanghai de Banco), a qual se descreve com o “o banco local mundial”.

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MÓDULO V Nas fronteiras da memória, do desejo e do afeto

A memória das coisas* 1 Laura U. Marks

O passado está “em algum lugar além do alcance do intelecto e inconfundivelmente presente em algum objeto material (ou na sensação que um objeto desperta em nós), embora não tenhamos ideia de qual seja. Já o objeto depende totalmente da chance de o encontrarmos antes de morrer ou de nunca o encontrarmos”. Marcel Proust (apud Benjamin, 1968a, p. 158).

Este texto analisa filmes e vídeos que desvendam memórias de objetos. Movimentos através do espaço e do tempo podem ser lidos na imagem; movimento entre culturas, como a passagem do tempo, cria imagens disjuntivas, ilegíveis. Essas imagens são todas de um tipo particular de imagem-recordação, que nomeio

objeto-recordação', um objeto irredutivelmente material que co-

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].

1.

Este artigo é uma versão reduzida do segundo capítulo, “The M em ory of Things”, do livro The skin o f the film. Intercultural cinem a, em bodim ent, and the senses. D urham ; Londres: Duke University Press, 2000. [N .O rgs.].

difica memória coletiva. Elas podem, além disso, ser variavelmen­ te consideradas fetiches, fósseis e objetos transnacionais. O im­ portante sobre todos esses objetos-imagens é o fato de condensarem o tempo e, ao desvendá-los, os expandimos externamente no tem­ po. Continuando com a terminologia deleuziana, quando uma ima­ gem emerge de outro lugar, de outra cultura, ela tumultua a coerên­ cia do plano da presente cultura. Quando Deleuze escreve “O pre­ sente existe como um passado infinitamente condensado que é cons­ tituído no ponto extremo do já-lá” (1987, p. 98), as palavras “pas­ sado infinitamente condensado” parecem descrever o objeto lem­ brança, aquele sobrevivente teimoso de outro lugar-tempo que traz seus conteúdos voláteis para o presente. Um objeto em um filme ou vídeo é um tipo particular de imagem-lembrança que traz de volta diferentes passados para pessoas diferentes. Onde o Cidadão Kane tinha Rosebud; Rea Taj ir i tem um pássaro de ma­ deira; Shuana Beharry, um sári de seda; Victor Masayesva, uma máscara roubada com o espírito dos ancestrais2: objetos cujos pas­ sados incomensuráveis são o produto não somente de uma história pessoal mas também de desterritorialização cultural. O objeto que fica na família como herança, lembrança, o objeto manufaturado contém histórias diferentes e incomensuráveis de autoria, fantasia, trabalho etc., dependendo de quem olha para esses objetos. O cine­ ma intercultural frequentemente toma as coisas por suas imagens, apresenta-as em toda a sua estranheza tipo-fóssil e, algumas vezes, ao reconectá-las com seu passado, neutraliza seu poder perturbador.

2. Os personagens citados referem-se a filmes e vídeos que a autora vem analisando ao longo do livro, a partir da categoria de “cinema intercultural” e de suas impli­ cações sensoriais. [N.Orgs.].

Os objetos que viajam ao longo dos caminhos da diáspora humana e do comércio internacional codificam uma desterritorialização cultural. Mesmo as mercadorias, embora estejam sujeitas ao fluxo desenraizado da economia transnacional e ao processo de censura da história oficial, retêm o poder de contar as histórias dos lugares onde estiveram. O cinema intercultural se move através do espaço, juntando histórias e memórias que estão perdidas ou co­ bertas no movimento de desterritorialização e produzindo no­ vos conhecimentos fora da condição de estar entre culturas. Para criar um outro termo, adaptando a teoria de D. W. Winnicott do objeto transicional, eles podem ser considerados objetos

transnaáonais. Objeto transicional é qualquer objeto externo que uma pessoa incorpora parcialmente no processo de reorganização da subjetividade (Winnicott, 1986). Então, parece útil sugerir que “objeto transnacional” possa descrever os objetos que são criados na tradução cultural e no movimento transcultural. Muitos filmes importantes focalizam o tráfico de pessoas. Algumas dessas pes­ soas podem ser classificadas como “objetos transnacionais”, uma vez que são comercializadas entre nações, como refugiados, tra­ balhadores estrangeiros, “acompanhantes de luxo” ou outros pro­ fissionais do sexo, ou a vasta força de trabalho sem documentação que corrobora o comércio internacional. Não é preciso dizer que filmes e vídeos sobre trabalhadores itinerantes são somente uma fração dos vastos números de trabalhos que reconstituem o mo­ vimento de imigrantes e exilados, resultando em transformações no mínimo tão fundamentais à nação para onde essas pessoas se deslocam, quanto às próprias pessoas. Ressalto neste capítulo um subgénero do que tem sido chamado de cinema transnacional independente (Naficy, 1994; Zimmermann; Hess, 1996). Se esse

gênero enfatiza primeiramente os movimentos de diáspora de imigrantes e exilados, esses trabalhos desvendam os vestígios dei­ xados por coisas que “emigram” devido a semelhantes fluxos glo­ bais de capital, poder e desejo. Se a torrente veloz de informação e capital é uma maré incessante, então a maioria dos movimentos aos quais este texto se dedica são correntes submarinas, carrega­ das pela maré, mas se movendo contra ela, ou redemoinhos cria­ dos em pontos idiossincráticos na onda. A maior parte dos exemplos neste texto é constituída de documentários e vídeos. Os documentários têm posição privilegia­ da de representação da realidade. Portanto, é especialmente premen­ te para eles explicar as transformações e desarticulações da realidade sob as pressões dos movimentos interculturais. Mas ainda mais im­ portante para os meus propósitos neste texto é a relação privilegiada do documentário com o real que se estende até a conexão material e até o próprio evento pró-fílmico - uma relação basicamente feti­ chista no sentido antropológico. O cinema pós-colonial responde ao fetichismo colonial, ou valendo-se dos aspectos da cultura colo­ nizada, a fim de manter uma distância para que possa controlá-lo, não somente no nível do conteúdo da narrativa. Esses trabalhos tam­ bém redimem objetos fetichizados, ao encontrar neles valores que não são reconhecidos no contexto colonial. Eles podem mostrar como o significado de um objeto se altera à medida que circula em novos contextos. Eles podem recuperar a “radioatividade” de um objeto que foi esterilizado ou ficou inerte através do comércio inter­ nacional. Podem retratar o objeto de tal forma que fique protegido do olhar fetichista ou mercadológico. Ou podem propor uma for­ ma não fetichista de olhar, que convide o “espectador” a experimen­ tar o objeto não tanto visualmente, mas através de contato corporal.

Além do objeto transnacional, uso modelos do fetiche e do fóssil para descrever como os objetos codificam as mudanças discursivas e as condições materiais de desterritorialização. O signifi­ cado, argumento, está codificado em objetos não metaforicamente, mas por meio do contato físico. Seguindo os historiadores e os teóricos de presentes e mercadorias, sugiro que os objetos não são inertes e mudos, mas que contam histórias e descrevem trajetóri­ as. O cinema é capaz não somente de seguir esse processo crono­ logicamente, mas também de descobrir o valor que é inerente aos objetos: as camadas discursivas que tomam forma material neles, os traumas mal-resolvidos que estão incrustados neles e a história de interações materiais que eles codificam. Sigo argumentando que o cinema pode ser considerado não um simulacro, mas um artefato material de migração transnacional. Esse argumento envolve uma reconsideração da noção de aura como forma de conversar a res­ peito de como os objetos codificam processos sociais. Das muitas teorias do fetiche que operam na antropologia, na análise marxista e na psicanálise, enfatizo aquelas que de forma explícita o abordam em termos de uma série de deslocamentos históricos e interculturais. Todos os fetiches são traduções para um objeto material de algum tipo de afeto; o fetiche descrito pela psicanálise é somente um deles. Alguns objetos corporificam a memória e também o trabalho: as teorias de fetichismo descre­ vem como um valor se agrega a objetos sem ser reduzido a comoditização. Defenderei o ponto de vista de que as relações interculturais são necessariamente fetichistas, embora os fetiches não sejam necessariamente interculturais. Ao usar ambos os termos “fetiche” e “fóssil”, desejo criar um local de encontro entre os objetos-recordação de Deleuze e Benja-

min, os quais atribuem parte de seu significado a Bergson. Neste texto, frequentemente usarei somente o termo fetiche. Mas, na rea­ lidade, desejo argumentar que os dois termos são funcionalmente semelhantes: ou, pelo menos, que o fetiche opera da mesma forma que o “fóssil radioativo”, no termo informal de Deleuze para um certo tipo de imagem cinematográfica (1989, p. 113). Para explicar isso, deixe-me definir aquele termo benjaminiano crucial, aura. Benjamin escreveu que aura é a qualidade em um objeto que faz com que nossa relação com ele se pareça com a relação que temos com outra pessoa. Ele parece nos olhar (1968a, p. 188). Marx e Benja­ min - este seguindo aquele relutantemente - tentaram desmitificar o caráter fetichista de objetos auráticos, ao mostrar que ganhavam poder a partir de presenças humanas e de práticas materiais que os construíam. Digo “relutantemente” porque Benjamin não que­ ria abandonar o poder do objeto aurático como um objeto. Ele não pode ser reduzido a uma narrativa, como vou insistir ao lon­ go deste texto. Aura é a sensação que um objeto nos dá de que pode falar conosco do passado, sem nos deixar decifrá-lo comple­ tamente. É uma escova com memória involuntária, memória que só pode ser acessada através de um choque. Voltamos novamente ao objeto aurático, ainda sedento (Benjamin, 1968a, p. 187), fa­ zendo referência a Paul Valéry, porque ele não pode nunca satisfazer completamente nosso desejo de recobrar aquela memória. Daí o sen­ tido de um objeto aurático manter sua distância, não importando quão próximo o trouxermos: está distante de nós no tempo mesmo estando presente no espaço. Benjamin permaneceu marxista em sua insistência de que o caráter aurático das coisas não era simplesmen­ te sua habilidade em fazer despertar memórias em um indivíduo; não uma “reconciliação prematura, meramente individual com um

mundo que já acabou” (Hansen, 1987, p. 190), mas a ressonância do mundo social reificado em um fragmento. Os objetos auráticos, então, são fragmentos do mundo social que não podem ser lidos em um estado de euforia, mas somente na presença do objeto. O fetiche de Benjamin e o fóssil de Deleuze têm em comum uma luz perturbadora, um aceno de luminosidade inquietante. No fetiche é chamada de aura, no fóssil é chamada de radioativi­ dade. Aura é o que faz o fetiche volátil porque nos incita à memó­ ria sem trazer a memória de volta completamente. De forma se­ melhante, quando um fóssil é “radioativo”, assim o é porque sina­ liza que o passado que representa não acabou, sugere que o espec­ tador desvende o passado, mesmo correndo perigo.

Os objetos-recordação Os objetos que considero neste texto constituem um exem­ plo especial de imagens-recordação discutidas em outro momen­ to. Para cunhar outro termo, eles seriam considerados objetos-re­ cordação. O cinema confronta tais objetos inicialmente inescrutáveis e faz tentativas de lê-los, ao ligá-los à memória. Os trabalhos que discuto neste texto documentam o processo de tradução, ao deci­ frar as desterritorializações e as relações sociais que os objetos carre­ gam com eles. Muitos filmes com narrativas mais ou menos interculturais usam objetos-recordação como parte do mise-en-scène\ onde aparecem como testemunhas mudas da história de um perso­ nagem. Em Dreaming Rivers, de Martine Attile (1988), por exem­ plo, os filhos britânicos de uma mulher caribenha ficam junto a seu leito de morte refletindo sobre suas memórias a respeito dela.

Uma fofoca sussurrada pela voz do narrador sugere que ela emi­ grou por amor para ser abandonada para a “Inglaterra - é tão fria”. Eles comentam sobre os objetos do quarto dela, porta-retratos, flores secas, colares, de concha e fita. O filho diz: “Eu tinha vergo­ nha das coisas nesta casa, esse lixo”. A filha moderna, de pele clara, diz depreciativamente: “Tornou-se moda: novo Negro” Sua irmã de pele escura, que obviamente era mais próxima da mãe, a defen­ de: “Ela valorizava estas coisas, ela tinha orgulho disso”. Em

fíashbacks, vemos essa mãe vagarosamente penteando e ajeitando o cabelo, banhando os pés com óleo e pétalas de rosa e, de forma emocionada, olhando as fotos. Mas a voz sussurrada do narrador em crioulo e em inglês não permite que ela fique em paz; em um vestido claro e floreado relembra o país quente de seu nascimen­ to, arrastanto desesperadamente uma mala. Assombrada pelas vo­ zes sussurradas, ela se contorce de dor, gritando, “Inglateeerra!” Aí, finalmente descansa, fazendo reverência para o chão, com as palmas da mão viradas para cima em um gesto de renúncia. O filme sugere que a forte presença de objetos ritualizados poderia suavizar o duplo sofrimento daquela mulher - de exílio e de aban­ dono - , mas eles também poderiam se tornar lembranças insu­ portáveis neste país frio. Outras vezes, um objeto-recordação é cortado da narrativa, a fim de enfatizar sua qualidade de testemunha. Isso ocorre em

History andMemory. ForAkiko and Takashige (1991), de Rea Tajiri. Feliz por encantar o alojamento em Poston onde sua família estava durante o internamento - na verdade, tendo sido guiado para lá por instinto - , Tajiri traz de volta um pedaço do alcatrão que revestia o teto do alojamento. O objeto gasto e cinzento é mostrado contra

um fundo preto, como uma joia, embora não haja muito o que olhar nele. Lê-se um título “Revestimento de alcatrão, campo de internamento de Poston”. O valor do papel de alcatrão é que ele aparece nas cenas do internamento que a mãe de Tajiri não conse­ gue lembrar.3Poderia ser dito que o pedaço de revestimento de al­ catrão, tendo sido exposto àqueles eventos, os “fotografou” e só pre­ cisa ser revelado: retangular e cinza, até se parece um pouco com uma foto antiga. A tarefa de Tajiri, com este e com outros objetos mudos no filme, é revelar imagens a partir deles. Um filme pode falhar ao conectar um objeto-recordação à memória, de modo que o objeto permaneça ilegível, um vestígio de fóssil de histórias esquecidas ou inexplicáveis. Essas falhas são tão informativas e bem-sucedidas quanto as ligações o são, pois, ao manter a “incompossibilidade” de diferentes discursos cultu­ rais, elas demonstram a luta infinita a respeito do significado que caracteriza a vida intercultural. Esse filme é Finagnon, de Gary Kibbins (1996), que começa sua busca histórica com um estranho artefato das relações pós-coloniais, um leitor de língua francesa para crianças na República de Benin. Kibbins aborda o livro-texto a partir de vários ângulos para tentar clarear sua história, mas o livro se mantém mudo. Ele indica as relações coloniais que o produzi­ ram, mas é incapaz de invocar a experiência das crianças africanas que o leram.

3. É claro que, por estar voltado para o céu, o pedaço de revestimento de alcatrao deve ter perdido um bocado de coisas também...

Os objetos-recordação não precisam ter uma relação prima­ riamente visual com o evento original que representam. Conside­ re Proust com as madeleines molhadas no chá: um fetiche-olfati­ vo cujo perfume destrancou volumes de memórias. Ao examinar as histórias contidas nessas imagens, descubro que os significa­ dos que se perdem e são encontrados no curso da viagem (espaci­ al ou temporal) são frequentemente expressos em termos de co­ nhecimentos de sentido não audiovisual.

Fósseis Os fósseis adquirem seu significado em razão de um contato original. Um fóssil é o vestígio indicador de um objeto que uma vez existiu, seu tecido animal ou vegetal que se tornou pedra. Con­ sidere a semelhança entre isso e o processo fotográfico. Os fósseis são criados quando um objeto faz contato com o material testemu­ nhal da terra. As fotografias são criadas quando a luz refletida por um objeto faz contato com o material observador do filme. Em ambos os casos, esse contato transforma a superfície do material de modo que ela se torna uma testemunha da vida do objeto, mesmo depois de o objeto ter se decomposto. Criada em uma camada da história, a testemunha do fóssil está gradualmente coberta com mais camadas sedimentares. Mas, em vez de se desintegrar, ela se solidifi­ ca e se transforma. Então, quando acontece um terremoto, anos mais tarde ou bem distante, esses objetos emergem, tornando-se teste­ munhas para histórias esquecidas, o que C. Nadia Seremetakis (1994) chama de “a testemunha estratigráfica do artefato”. Esses objetos

são aquele tipo especial de imagens-recordação, imagens fósseis, discutidas anteriormente. Para resumir brevemente, a metáfora do “fóssil radioativo” descreve a qualidade instável de certas inexplicáveis, mas poderosas, imagens cinéticas. É assim que Deleuze descreve uma imagem cinética que parece personificar um passa­ do que é incomensurável com o presente retratado pela imagem. Em razão de seu caráter indicador, o cinema permite que passa­ dos não resolvidos surjam no presente da imagem. Para Deleuze, os fósseis não são objetos de pedra fria, mas coisas perigosas, vi­ vas. As imagens são leitos fósseis, onde os fósseis são aquelas ima­ gens estranhas e teimosas que parecem surgir de uma realidade que está em conflito com seus arredores - “os fragmentos de me­ mória que emergem repetidamente na consciência, mas são miste­ riosos em seus significados” (Stemburg, 1994, p. 178). Essas imagens se referem ao poder das imagens-recordação para personificar pas­ sados diferentes. Quando uma imagem é tudo que resta de uma memória, quando não se pode lhe “atribuir um presente” por um ato de lembrança, mas simplesmente olha alguém onde foi desen­ terrada, então aquela imagem é um fóssil do que já foi esquecido. É possível, embora, como Deleuze tenha assinalado, perigoso, exami­ nar essas imagens e conhecer as histórias que elas testemunharam. Deleuze usa o termo fóssil muito casualmente nos livros de cinema, mas eu me valho dele porque indica a qualidade do mate­ rial da imagem relembrada. Para Benjamin, fóssil é muito mais complexo. Passagen-Werk, seu projeto inacabado, traz a história inteira da Europa pós-industrial nos objetos fragmentados e esquecidos dos arcos das lojas de Paris do século XIX, os quais são comparados a “cavernas contendo fósseis de um animal

presumivelmente extinto”, a saber, consumidores na era inicial do capitalismo (apud Buck-Morss, 1989, p. 64). Objetos pequenos, es­ quecidos ou aparentemente frívolos capturam a fascinação de Benjamin através de seus escritos, como quando ele vagueia por Moscou, ignorando seus monumentos comunistas heroicos em favor de lojas de brinquedos e de doces, no Diáno de Moscou. Ainda, além da idiossincrasia, a força da atenção de Benjamin para objetos deve-se ao fato de que ele vê neles um poder de testemu­ nhar a história que as narrativas não têm.4 Nos escombros da cultu­ ra industrial, ele lê a fragilidade da própria cultura (Buck-Morss, 1989, p. 170). Portanto, fósseis, no uso benjaminiano, amparam a ideia da história do capitalismo como história natural.

Fetiches Gostaria de construir uma noção restauradora de fetichismo para uma discussão do cinema intercultural. Certamente um tipo opressivo de fetichismo está funcionando nas relações pós-coloniais. O fetichismo habilmente descreve o impulso colonialista violento de congelar culturas vivas e suspendê-las fora de época. Críticos como Edward Said (1979), Johannes Fabian (1983), Trinh T. Minh-ha (1989, 1993) e Homi Bhabha (1990b) têm pinçado

4.

De fato, a distinção de Benjamin entre a historia material do objeto e a historia da narrativa é algo comparável à distinção de Foucault entre visível e explicável, embora aproximar-se desses termos faça com que a discussão fique interminável.

essa qualidade fetichista do colonialismo decisivamente. Sem es• quecer essas críticas, quero alegar outros significados de fetichismo, a fim de descrever as transformações que ocorrem nos movimen­ tos pós-coloniais e transnacionais. No fetichismo, o poder não é inerente aos seres, mas flui entre eles. Os objetos de fetiche podem codificar conhecimentos que são enterrados no processo de deslocamento temporal ou geo­ gráfico, mas são voláteis quando reativados pela memória. Os fe­ tiches conseguem seu poder não pela representação de que uma coisa é poderosa, mas através do contato com essa coisa, um con­ tato cuja materialidade foi reprimida. Dessa forma, os fetiches, as­ sim como os fósseis, têm uma relação indexadora com uma cena original como com uma fotografia. As fotografias, obviamente, são fetiches no sentido de que consideram como substância dis­ tinta um aspecto visual instantâneo de uma cena ante a câmera, esquecendo todos os seus outros aspectos. A genealogia de Benjamin do termo fetiche é compartilhada com outros usos neomarxistas do termo. Funciona de forma se­ melhante ao seu uso de fóssil\ mas traz outras conotações. No en­ saio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, ele continua o argumen­ to, desenvolvido em de Passagen-Werk, de que a vida pode ser manifesta em objetos. Além disso, seguindo Freud, ele enfatiza que os fragmentos de memoria mais poderosos são aqueles que codificam um incidente que se mantém inacessível à memoria consciente (1968a, p. 160); em outras palavras, fetiches. Aqui Ben­ jamin demonstra o encontro entre os entendimentos marxistas e psicanalíticos do fetiche: o objeto do fetiche codifica verdades de vida coletiva, e essas verdades podem ser descobertas somente atra-

vés de um choque que alcança o inconsciente. Embora esse encontro seja importante, os entendimentos psicanalíticos do feti­ che são menos úteis para os meus propósitos comparados às abor­ dagens neomarxistas e antropológicas. O fetiche é um produto específico de encontros interculturais, da forma que William Pietz (1987) argumenta em sua impressio­ nante arqueologia do termo. A etimologia da palavra fetiche des­ creve uma história longa e complexa de colonização, apropriação e tradução. Pietz demonstra a transformação da palavra de língua portuguesa “feitiço” a partir do seu uso na bruxaria cristã até a palavra Fetisso (também portuguesa, resultado da pidginização de feitiço), usada por exploradores na parte oeste da África que eles chamavam de Guinea. Mais do que transliterar um termo afri­ cano, os negociantes portugueses aplicaram uma palavra portu­ guesa a práticas culturais africanas. Nessa última construção, o “fetichismo” era um tipo de prática que investia poderes vitais nos próprios objetos, poderes alcançados via contato físico. Co­ meçou a ser distinguido de idolatria, porque os objetos envolvi­ dos não “representavam” divindades, mas em sua materialidade abraçavam poderes divinos. Por exemplo, a pena de uma galinha sacrifical é um fetiche sagrado, porque a galinha é sagrada; as relí­ quias de santos, dedos preservados ou pedaços de roupa ganha­ vam seu valor como fetiche através do contato com o santo. A relação fetichista se dá entre dois objetos sagrados, não uma di­ vindade e um objeto. Portanto, fetiches, para a maneira de pensar dos intelectuais europeus, eram teimosamente não transcendentais. A noção do fetiche foi mobilizada durante um período de expansão imperial. Pietz argumenta que esta noção teve um papel

significante no estabelecimento de conceitos europeus sobre a cons­ ciência humana e o mundo material, conceitos sobre os quais as ciências disciplinares humanas que surgiram no século XIX fo­ ram fundadas. Por exemplo, da forma como ele descreve, as con­ ferências de viagem dos negociantes holandeses, como Willem Bosman, retratavam a adoração africana do fetiche como perver­ são do tipo de autointeresse racional que eles viam como “o prin­ cípio de organização natural de boa ordem social” (Pietz, 1988, p. 107). As narrativas particulares desses escritores eram acessadas pelos intelectuais iluministas, incluindo Marx (Pietz, 1993). A es­ colha de Marx, de comparar o processo de abstração do capitalis­ mo com o que era visto como a prática irracional do fetichismo, constituiu-se em um caminho brilhantemente perverso de alinhar materialismo com racionalidade. Entretanto, esta tática eliminou as raízes interculturais da prática “primitiva” da qual ele se apro­ priou para fortalecer sua crítica ao capitalismo. O termo fetichismo foi primeiramente usado por uma cama­ da particular de europeus para descrever superstições camponesas, assim como rituais católicos (Pietz, 1987). Somente mais tarde a palavra veio a descrever as práticas dos africanos. Fetichismo, então, foi originado como um termo usado para separar os grupos pro­ testantes dominantes e protocapitalistas de outros, fora e dentro da cultura. O uso inicial de “fetichismo”, para descrever as práticas dos europeus camponeses e dos africanos do oeste, reafirmou a crença dos poderes europeus emergentes que, diferentemente deles, os grupos africanos eram irracionais, incapazes de abstração e presos ao corpo. Peter Stallybrass e Allon White (1986) discutem de uma for­ ma semelhante que o surgimento da burguesia europeia necessitou

de um processo de distanciamento inter e intraculturalmente. A fim de consolidar uma identidade que era capaz de “se sobrepor” ao meramente corporal, a burguesia projetou seus próprios ex­ cessos inaceitáveis em algum lugar, separando-se das práticas car­ navalescas dos camponeses. A expansão colonial exacerbou esse processo no momento em que surgiu um outro mais primitivo disponível para as projeções de rejeição/desejo da classe média europeia. Então, de muitas maneiras, o objeto proibido de desejo já é intercultural, pois o desejo que a burguesia tinha proibido a si mesma tomou a forma de fantasias primitivas. É importante observar que o fetichismo intercultural é ini­ ciado tanto pelos fetichistas quanto pelos fetichizados: nesse caso, entre os negociantes portugueses e os intermediários africanos que “explicaram” as práticas espirituais para eles. Pietz sugere que os próprios informantes do oeste da África usaram o termo Fetisso para descrever suas práticas para os portugueses, dessa forma tra­ duzindo (em vão) um aspecto de sua prática cultural aos euro­ peus. Esse fetichismo pré-esvaziado tinha o efeito de proteger as verdadeiras práticas cerimoniais de exame minucioso.5 Nesse sen­ tido, o discurso do fetiche “sempre foi um discurso crítico sobre os falsos valores objetivos de uma cultura a partir da qual o falante está pessoalmente distanciado” (Pietz, 1985, p. 14), sempre um discurso intercultural. Tal entendimento do processo de fetichismo evita pen­

5.

Eric Michaels descreve uma forma semelhante de produção cultural que é pré-traduzida para exportação, a saber, versões acrílicas de pinturas com areia tradicionais dos aborígines australianos, em Arte Aborígine Ruim (1993).

sar na pessoa, objeto ou cultura fetichizados como simplesmente a vítima de apropriação cultural. Em vez disso, faz reconhecer que o fetichismo é um ato mútuo que revela informação sobre ambos os participantes na troca. O processo arqueológico de descobrir o significado de tais objetos fetiches históricos reconhece que eles não podem ser de­ cifrados com finalidade, mas devem ser tratados como chaves para um momento histórico particular. Os fetiches são microcosmos materiais. Como Adorno escreveu, são “constelações objetivas nas quais o social se representa” (apud Mitchell, 1986, p. 204). Pietz, de forma semelhante, descreve o fetiche em termos neomarxistas como o nexo de um encontro intercultural específico. O fetiche não deve ser visto como algo próprio de nenhum cam­ po histórico, a não ser aquele da história da própria palavra, e de nenhuma sociedade ou cultura distinta, mas de uma situação transcultural formada pelo encontro dos códigos de valor de ordens sociais radicalmente diferentes. Em termos marxistas, po­ deria ser dito que o fetiche está situado no espaço da revolução cultural. (1987, p. 10).

Fetiches e fósseis de vida transnacional Fósseis, fetiches e objetos-recordação deveriam nos lembrar das imagens dialéticas que Benjamin encontrou nos arcos das lo­ jas do século XIX, as rachaduras na realidade material na qual era possível ler histórias reprimidas. Susan Buck-Morss sugere que “fetiche” e “fóssil” descrevem a mercadoria (1989, p. 211), em sua concretização da história e concentração de afeto. Tais objetos são

escombros na ruína da história recente. Eles não são somente as ima­ gens de desejo de histórias passadas, mas também o material do qual “uma nova ordem pode ser construída” (Buck-Morss, 1989, p. 212).

Bricoleurs - pessoas que pegam os escombros de outro tempo ou lugar, dão nova signifícância a eles e os utilizam com novos propósitos - criam as possibilidades de história nova. A pessoa desterritorializada é o ^r/co/eí/rpreeminente, afirma O Último Anjo

da História (1996), filme de John Akomfrah sobre ficção científica negra. O filme pesquisa artistas futuristas da diáspora africana des­ de o último (e taciturno) jazzista Sun Ra até a novelista Octavia Butler, disseminando-os como uma figura negra que vagueia em um tipo de terreno baldio industrial. Ele diz ao passar: “Os africa­ nos sempre fizeram ficção científica porque sempre fomos capazes de enxergar os buracos no presente.” O bricoleuré capaz de encon­ trar potencial criativo nas ruínas de outra cultura porque esses ob­ jetos, cercados por um campo de força de tradução imperfeita, ad­ quirem uma qualidade transformacional em suas viagens. Fetiches e fósseis, portanto, são dois tipos de objetos que condensam histórias enigmáticas e que juntam seu poder peculi­ ar em razão de um contato prévio com algum objeto originário. Os fetiches e os fósseis são protuberâncias ou embaraços nos quais forças históricas, culturais e espirituais se juntam com particular intensidade. Eles traduzem experiência através de espaço e tempo em um meio material, codificando as histórias produzidas no trân­ sito intercultural. Essa visão do fetiche como objeto produzido no encontro entre culturas grifa fortemente a caracterização de Homi Bhabha dos estereótipos coloniais no papel de fetiches: lugares onde a diferença cultural está estabelecida, mas a própria esta-

bilidade desmente a instabilidade do encontro ( 1994b, p. 70-75). O espaço intercultural no qual os fetiches e os fósseis são produ­ zidos está sempre carregado com poder. Não é um terreno neu­ tro onde os significados podem ser refeitos com impunidade. Se entendermos fetiches adequadamente como o produto não de uma única cultura, mas do encontro entre duas, então vemos como os fetiches são produzidos tanto no curso do tempo construído, quanto no movimento disjuntivo ao longo do espaço. As relações do poder colonial em particular, com sua propensão para significados locais, transculturais e importados, constituem locais perfeitos para a produção desses objetos. Onde dois ou mais discursos materiais se juntam, formam-se alguns artefatos peculia­ res: considere as cerâmicas dos camponeses coreanos que foram tomadas como objetos estéticos por seus colonizadores japoneses quinhentistas (e as cópias estetizantes que resultaram daí). A famo­ sa mania pelas tulipas na Holanda do século XVII foi o resultado de uma obsessão nacional por uma flor de origem persa, espécie que os importadores holandeses cruzaram diversas vezes para obter va­ riações raras e misteriosas - tulipas de cores estranhas, tulipas ex­ postas a vírus para produzir pétalas crespas e matizadas. Os pratos nacionais, como o ensopado hindu com caril (Bretanha) ou rijstaffel (Holanda), traduzem a culinária das colônias para os paladares lo­ cais. Esses são alguns exemplos de objetos fetichistas que são o pro­ duto de duas (ou mais) apropriações direcionais, moduladas com poder e retradução. A vida pós-colonial está produzindo fetiches em velocidade recorde, ao passo que as pessoas são desterritorializadas, especial­ mente quando emigram para as terras de seus antigos colonizado-

res. A transformação cultural na diáspora não é geralmente nem uma assimilação madura nem um “híbrido” totalmente aleatório, embora, obviamente, ambos os padrões possam ocorrer. Mais frequentemen­ te as práticas culturais passam por um processo de seleção que, como as balanças de bagagem em aeroportos internacionais, determinam o que é jogado fora e o que é mantido na passagem. Quem viaja melhor é usualmente a classe alta e os amigos do patriarcado. São as práticas camponesas, as práticas das mulheres e frequentemente as práticas sensoriais que são eliminadas primeiro; as embalagens de especiarias que saem da bagagem supercomprimida e vão para o chão da sala de espera. Os intelectuais da diáspora já conheceram as exigências para se encaixar nos estabelecimentos acadêmicos e culturais ocidentais, tais como, base econômica, educação ocidental, fluência em línguas romanas e direito de pertencer a sua elite local.6 O espaço intersticial do fetiche produz significado, muitos sig­ nificados, mas eles são construídos sobre a incompreensão e cons­ tantemente exigem explicação. Essa carga de explicação ocorre por­ que as pessoas que estão se movimentando entre culturas acham que sua bagagem fica mais e mais pesada. Seus objetos familiares estão se fossilizando. O que era dado como certo em uma cultura torna-se incompreensível em outra, e é responsabilidade do imigrante cons­ truir e desvendar aquelas camadas de tradução impossível.

6.

Com o Gayatri C. Spivak (1990) mostrou, quando a classe intelectual ocidental (que inclui o mundo da arte) inclui terceiro-mundistas selecionados, está dupla­ mente silenciando os outros; a saber, aqueles que não têm acesso à educação de elite e a instituições internacionais.

A história pós-colonial é necessariamente uma investigação de fósseis. Nós estamos constantemente descobrindo factoides inexplicáveis na superfície da história representada que nos con­ vida a passar pelas camadas e ligá-las à sua fonte, passando entre a recordação particular e o discurso oficial. Mais frequentemente, o investigador contrai sua qualidade infecciosa, descobrindo que sua própria história é baseada em verdades parciais. O “pedaço de rocha” que contém nossas próprias vidas, constituindo-as tanto em termos de quanto separadas da história dominante, desintegra-se em areias agitadas e instáveis. Não temos escolha, mas temos de examinar minuciosamente, procurando pistas. A lista alucinante de Deleuze das qualidades do fóssil, especi­ almente seu potencial destrutivo, ecoa deixar assim nas sugestões de Pietz (e de Benjamin; ver Buck-Morss, 1989) de que os fetiches são revoluções que estão somente esperando para eclodir. Tanto o fóssil quanto o fetiche, nos sentidos que descrevi, carregam com eles histórias que, uma vez esclarecidas, tornam o presente insus­ tentável. O aspecto “radioativo” desses objetos é o poder que têm de despertar outras memórias, causando presenças inertes na ca­ mada mais recente da história, a fim de desencadear cadeias de associações que tinham sido esquecidas. Eu gostaria ainda de reconsiderar as conotações contaminadoras e carcinogênicas da imagem da radioatividade. Certamente esses fósseis de imagem de outros tempos ou outros lugares são voláteis e se comportarão incontrolavelmente quando expostos a espectadores, assim como materiais radioativos se decompõem e emitem energia quando estão expostos. Porém, o perigo está em perceber que existem his­ tórias que são contraditórias àquelas conhecidas, conhecimentos

culturais que sacodem a segurança da própria posição cultural no mundo, como nos exemplos que serão apresentados. Essa é uma experiência que se decompõe, é perturbadora e é certamente destrutiva de visões firmemente etnocêntricas, por exemplo. Mas eu gostaria de pensá-la como uma forma benigna de “contamina­ ção”, como aquela que acontece quando um perfume demarca o caminho de alguém (ou para ficar com a metáfora do fóssil, quan­ do um unguento funerário preservado surpreende arqueólogos com a iminência de sua fragrância). Não se pode evitar o cheiro, ele im­ pregna o ambiente próximo a alguém e inevitavelmente redireciona o pensamento, é ao mesmo tempo urgente e ambiente. Os fósseis cinemáticos que examino aqui realmente têm um efeito perturbador, mas eles são tão destrutivos quanto é rígido o material que atacam.

Testem unha indexada: cinem a com o fetiche e fóssil Como afirmei anteriormente, objetos transnacionais não são somente produções discursivas: seu significado não pode ser se­ parado da materialidade.7Os fetiches resistem à abstração. Eles

7.

A esse respeito, estou sugerindo uma vida do objeto diferente daquela que Susan Stewart postula (1 9 8 4 ). Stewart argumenta que o fetiche, ou lembrança (pelo menos o “objeto hom om aterial”, um term o que Stewart adota de Umberto Eco para um objeto que existiu no local do evento para ser lembrado, tal com o a fita de um corpete), não mantém nenhuma relação material com um evento, mas é importante precisamente porque substitui um evento: ele desencadeia um curso de narrativa pessoal que delineia a trajetória do desejo. No relato de Stewart, qualquer relação material com uma cena original da memória é necessariamente apagada na

insistem na materialidade da presença original à qual eles fazem referência. Daí o banimento do fetichismo católico pelos protes­ tantes e do fetichismo mercadoria por Marx. Seu valor não é nego­ ciável. Eles (os fetiches) não podem ser negociados por dinheiro. Eles não representam poder simbolicamente; eles o incorporam fisicamente. Pensar na imagem que se move como fetiche ou fós­ sil implica entendê-la não como representação, que é volátil so­ mente por causa das projeções trazidas a ela, mas como emissária, que é volátil a ponto de fazer com que o espectador/receptor te­ nha acesso à materialidade de sua cena original. A implicação da noção do contato que sustenta tanto o fós­ sil quanto o fetiche reside no fato de que a representação e o co­ nhecimento não são explicados exclusivamente no nível da lin­ guagem, mas também participam do contato com o objeto repre­ sentado. Os objetos que discuto aqui codificam as condições ma­ teriais de desterritorialização assim como as rupturas discursivas. A representação e o conhecimento participam em contato com o objeto representado. Seu substrato não é somente um “referente”, mas também uma pedra de toque material. Claramente, então, em meu uso os tropos de fóssil e fetiche operam em um nível bastante concreto. Ambos podem ser usados simplesmente como dispositi­ vos heurísticos baseados em uma noção de contato com algum ob-

narrativa de uma suposta ligação com a cena lembrada: uma narrativa interna, para ela mesma. De tòrma contrastante, argumento que a lembrança mantém um fio de conexão material com a cena que ela lembra, e é precisamente nessa materialidade, não em seu esquecimento intencional, que a significancia da lembrança esta.

jeto original e poderoso. Quero usá-los como algo mais, entretanto. ^A noção do fetiche, em particular, considero epistemológicamente poderosa porque é constituida de um contato físico, mais do que mental, entre objetos; não é urna metáfora. André Bazin (1967), conhecidamente, descreveu a fotogra­ fía como uma impressão do mundo, um vestígio da presença ma­ terial como uma máscara da morte. Essa é a qualidade tipo fetiche, tipo fóssil, que funciona no cinema: é o vestígio que um outro objeto material deixa na superfície do filme (ou codifica na teste­ munha eletrônica em vídeo). Esse fato é o que dá ao filme seu poder representacional, assim como um fetiche (no sentido reli­ gioso) obtém seu poder ao carregar o vestígio de outro objeto material. O uso feito da indexação varia, certamente, de prova de evidência a mero vestígio fantasmagórico do real pró-fílmico. Como Maren Stange (1994) observa, as qualidades essenciais da indexação fotográfica devem ser entendidas no contexto do seu uso histórico, o valor colocado sobre a indexação em diferentes períodos. Atual­ mente, há muita suspeita concernente à evidência indexicadora, pelo menos entre os acadêmicos ocidentais.8Eu gostaria ainda

8.

Acadêmicos receberam as tecnologias de im agem digital co m o o rom pim ento final entre a imagem e seu referente m aterial, da form a co m o essas imagens po­ dem aparecer para indicar a realidade, sendo parcial ou totalm ente geradas por com putador (ver, por exemplo, Druckrey, 1989; Mitchell, 1992). Enquanto meu argum ento aqui não se aplicaria tão fortem ente a um a filmagem de trabalho em vídeo digital, por exem plo, eu sugeriria que a diferença entre a m ídia digital e a analógica não é tão radical quanto muitos afirmam. A fotografia, o filme e o vídeo analógicos têm sido usados para simular efeitos especiais desde o com eço de cada meio; e muitos artistas usam a mídia digital tanto por sua conveniência quanto

de sugerir que as capacidades indexicatórias de uma imagem ou objeto são muito importantes para aqueles que têm poucas fontes de evidência, poucas testemunhas para suas histórias. Então, a de­ finição ampla de documentário, como um cinema cuja relação indexicatória com o real é de central importância (Nichols, 1991, cap. 5), é ainda crucial para o cinema intercultural. Qualquer tipo de cinema tem essa relação com o evento pró-fílmico, mas so­ mente o documentário afirma que essa relação com o real é uma de suas qualidades definitivas. Ao entender a indexação do cine­ ma como uma qualidade do tipo fetiche ou fóssil, quero enfatizar que esse vestígio do real no cinema é conservado nas camadas do uso e da interpretação históricos, os quais obscurecem e, por fim, transformam qualquer sentido original que o objeto possa ter tido. Obviamente, essas questões não são exclusivas do cinema intercultural. Todo o cinema tem uma relação fetichista com seu ob­ jeto. Todo o cinema é transnacional no sentido de que seus públicos não serão capazes de perfeitamente decodificar suas imagens, já que se originam em outros lugares e tempos. O cinema intercultural, en­ tretanto, toma essas questões como seu tema explícito, e as apostas de se, como, e por quem suas imagens-fetiches e imagens-fósseis podem ser traduzidas são especialmente altas. A habilidade do filme de animar objetos, na verdade, em lhes promover antropomorfia, cativou os primeiros teóricos do

por sua capacidade de alteração eletrônica. Portanto, acredito que é mais apropri­ ado falar sobre práticas classificatórias e não classificatórias do que sobre mídia classificatória e não classificatória.

cinema. Béla Balász devotou um capítulo de sua Teoria do Filme (1972 [ 1923]) para o close-up. Ele considerou que close-upstrans­ mitiam uma qualidade fisionômica para objetos estáticos. Seu tom macio, quase piegas, grifa a habilidade de fetiche do close-up em ser testemunha do invisível. O primeiro novo mundo descoberto pela câmera do filme nos tempos do cinema mudo foi o mundo de coisas pequeníssimas, visíveis somente a curtas distâncias, a vida escondida de peque­ nas coisas [...]. Por meio do close-up, a câmera nos dias do cine­ ma mudo revelou também o motivo principal de uma vida que pensamos conhecer muito bem [...]. O close-up mostra sua sombra na parede com a qual você tem vivido a vida toda e que você mal conhecia; mostra o rosto sem fala e o destino dos objetos mudos que vivem com você em seu quarto e cujo destino está ligado com o seu. (Balász, 1948, p. 55). Mais adiante, Balász observa: “ Close-ups são frequentemen­ te dramáticas revelações do que está realmente acontecendo por trás das aparências.” (1948, p. 56). Balász atribuiu à imagem o po­ der de materializar fenômenos invisíveis, de dar um rosto a eles. Uma tomada em close-up de um objeto ou espaço inanimado, ele sugere, é capaz de capturar o domínio sutil de vida não orgânica. Isso não precisa soar místico, se considerarmos que os objetos personificam o social em suas condições como objetos, e não meramente como discurso rígido em coisas (cf. Pels, 1995). Tais teorias antropomórficas caíram em desgraça com o surgimento de análises semióticas de cinema: elas certamente pa­ recem apelar para as qualidades da imagem que “ultrapassam” o poder do signo (ver, por exemplo, Barthes, 1972, para uma análise crítica dessa qualidade fetichista do cinema). Mas, pela mesma ra­

zão, a teoria de Balász é útil para uma discussão renovada, não de como o filme fetichiza seus objetos, mas de como o filme pode ser um meio fetichista. A qualidade fisionômica que Balász atri­ bui a imagens tem ecos na discussão de Deleuze da rostidade

iyisagéitê) no cinema. Rostidade é a intensificação de afeto em uma imagem cuja extensão do mecanismo é limitada: É esta combinação de uma unidade refletora, móvel e de movi­ mentos expressivos intensos que constitui esse afeto... Cada vez que descobrimos esses dois poios em algo [...] podemos dizer que isso foi tratado como um rosto [ visage}: foi ‘imaginado’, ou me­ lhor, ‘rostificado’ [ visagéifiéeJ, e por sua vez nos olha fixamente. (Deleuze, 1986, p. 87-88). A imagem rostificada é adensada com afeto, que lhe foi de­ positado em algum lugar, e que resiste à análise. Como Patricia Pisters (1998, p. 93) observa, por causa da imagem-afetiva, da qual a imagem facial é uma parte, reduzem-se as coordenadas espaciais da terceira dimensão, abrem-se a quarta dimensão de tempo e a quinta dimensão do espírito. Uma imagem facial, Deleuze sugere, retorna o olhar: isto é, obviamente, uma característica de objetos auráticos. Ao longo deste texto, faço referências a objetos que viajam com aura. Com suas viagens e com sua posse e uso, os objetos se tornam únicos. O objeto transnacional é precisamente aurático, no sentido de que ele depõe “a essência de tudo que é transmissível desde o início, desde sua duração substantiva até seu testemunho da história que vivenciou” (Benjamin, 1968b, p. 221). Nas práticas religiosas das quais a palavra “aura” foi emprestada, ela significava a presença do sagrado. Dessa forma, um objeto aurático é um fetiche.

Ele carrega a presença do sagrado, concentrado no objeto através de algum contato ou uso inicial. Como observei, o caráter aurático das coisas consiste em sua habilidade não simplesmente de des­ pertar memórias em um indivíduo, mas em conter uma história social de forma fragmentada. Os objetos que discuti são todos auráticos, no sentido de que tiveram contato físico com histórias histórias excessivamente voláteis e desconcertantes para serem rela­ tadas como simples histórias. Os trabalhos que descrevi exploram essa presença aurática, ao seguir os objetos de volta à sua fonte de poder. Ainda assim, a aura não é meramente uma presença hum a­ na que a narrativa desenrola do objeto com o uma bola de bar­ bante. Os objetos têm vida independente das relações humanas codificadas, de sua significância discursiva e narrativa. Sua própria materialidade é significante. Como Peter Pels provocativamente sugere, As coisas podem, realmente, ser animadas por suas formas, usos e trajetórias sem recurso à materialidade, através da memória, da representação escrita ou de outras formas de ação simbólica. Mas isso é outra percepção da vida social de coisas, diferente daquela mediada pela própria materialidade, na qual suas formas, usos e trajetórias são apreendidas, como prática habitual, “sem recurso ao discurso” [...] ou representação, (apud Pierre Bourdieu, 1996, p. 9). r O significado reside pré-discursivamente nos objetos, as­ sim como o hábito armazena memória no corpo. Como podemos representar a forma como o significado é mediado materialmente? A maior parte da crítica marxista atual

se deteriorou em um positivismo árido, por um lado, e em um deslumbramento baudrillardiano no mundo de signos que se re­ plicam, por outro. Isso, eu argumentaria, resulta da própria cam­ panha de Marx para desmistificar a mercadoria. Paradoxalmente, ao tornar legíveis as relações sociais codificadas em um objeto, existe a tendência de se perder a materialidade do objeto. O apelo contínuo do trabalho de Benjamin se deve parcialmente a seu es­ forço provocativo de desmistificar e remistificar o objeto, a fim de incorporar suas propriedades inexpressíveis e intangíveis ao mesmo tempo que as lê politicamente. De forma muito controver­ sa, Benjamin fundiu entendimentos cabalísticos e marxistas de como o significado é imanente às coisas do mundo - imanente, mas vela­ do, de acordo com os cabalistas; imanente, porém reificado, se­ gundo os marxistas (Buck-Morss, 1989, p. 235-240). Benjamin foi severamente criticado por Adorno, Brecht e outros críticos como Rolf Tiedemann e Jürgen Habermas por essas tentativas de fundir misticismo com marxismo (p. 245-249). A maioria dessas ideias não foram publicadas, ou foram expressas somente de forma in­ direta nos ensaios publicados (Hansen, 1987; Buck-Morss, 1989). Entretanto, desde a época em que Benjamin foi reprimido, a fé dos intelectuais em nossa habilidade de ler o mundo plenamente em termos de signos diminuiu. Talvez agora seja possível contem­ plar como os objetos significam neles mesmos - contemplar sua aura - sem sermos acusados de ofuscá-los. Se isso é misticismo, é uma tentativa de representar um encantamento do mundo diferente da aura narcótica da mercadoria. É uma tentativa de entender como o significado é transmitido através da presença física e também através da significação intelectual. Os filmes e vídeos que analisei

demonstram que muitos objetos-recordação são irredutivelmente materiais e irredutivelmente auráticos. Compreender como os objetos significam em sua materialidade requer que assumamos uma epistemologia palpável.

A dissolução do fetiche Anteriormente observei que, quando um objeto-recordação, como outros tipos de imagem-recordação, de maneira bem-suce­ dida, se envolve com a memória, ele se engaja com a contação de uma história comunitária, e sua qualidade “radioativa” é neutrali­ zada. A forma como um objeto fetiche realiza isso, embora não sendo intrínsecamente sexual, tem a ver com a forma com que o fetiche é libidinosamente (autoeroticamente?) localizado sobre o corpo. A dissolução do fetiche é realizada por sua reincorporação. Quando o sentido da memória é reavivado no corpo - quando o corpo lembra - , o objeto-recordação deixa de existir como tal. A partir do belo ensaio de Michel Leiris sobre Giacometti, Pietz pondera a relação de fetiches - e obras de arte bem-sucedi­ das - com o corpo. O fetiche é [...] antes de tudo, algo extremamente pessoal, cuja verdade é experimentada como um movimento substancial de “dentro” do self (o se/Ztotalizado através de um corpo apaixonado, um “cor­ po sem órgãos”) para uma morfologia autolimitada de um obje­ to material situado no espaço “exterior”. Obras de arte são ver­ dadeiros fetiches somente se forem objetos materiais no mínimo tão intensamente pessoais quanto lágrimas (Pietz, 1985, p. 12).

Pietz sugere que o movimento de dentro para fora - o processo de concretização - é o que faz de um fetiche um fetiche. As lágrimas são um exemplo: elas são uma expressão material de um estado inter­ no. Só que as lágrimas, entretanto, não permanecem como um objeto concreto; elas são reabsorvidas pelo corpo. Pietz, provocativamente, se refere ligeira e circunstancialmente ao “corpo sem órgãos” como o corpo que produz fetiches, ou arte. Somente um corpo que não é libidinosamente fixado em termos de partes particulares pode inves­ tir com desejo em algo externo. Eu imagino o “corpo sem órgãos” de Deleuze e Guattari (1983) como algo parecido com um balão de água. Você pode deliberadamente torcer formas em sua superfície, brincar com elas até perderem seu fascínio e, então, desfazê-las e fazer outras. Esse tipo de investimento libidinoso, os analistas de esquizofrenia diriam, é o único construído mais em torno do desejo que da neces­ sidade. O apelo desse modelo é que, embora seja voluntário, permite maneiras estranhas e contingentes de os sujeitos formarem laços. O corpo sem órgãos produz fetiches em abundância, mas não se fixa sobre nenhum deles; eles se dissolvem de volta à sua superfície indiferenciada. Da mesma forma, os fetiches produzidos no movi­ mento entre culturas são somente marcadores transitórios de uma breve relação que provavelmente mudará. O fetiche que é produzido no movimento entre culturas é uma expressão concreta do estado de desejo produzido, quando o que estava dentro se move para fora, quando o que era tido como parte de uma cultura se torna um objeto de contemplação. Como um fetiche produzido por um “corpo apaixonado”, esses somente existem como fetiches se contiverem um significado cultural que não pode existir confortavelmente no novo contexto cultural.

Deixe-me retornar à teoria de Winnicott (1957) do objeto transicional para explorar como o fetiche é produzido no corpo sem órgãos. O objeto transicional - o cobertor que conforta; a TV que embala a criança até que pegue no sono; e, estendendo um pouco mais, o cheiro de uma comida familiar - é parte do corpo ou não? Certamente é parte do corpo sem órgãos, o corpo que se faz renovado ao se organizar com relação a um objeto externo. A identidade do sujeito vem a ser distribuída entre o self e o objeto. Ainda assim, é o self não o objeto, que está em transição. O objeto permanece o mesmo, embora assuma camadas de significado que mais tarde, à medida que o sujeito adquire algum tipo novo de subjetividade, se dissolverão. Lembre como os fetiches são produzidos no espaço entre culturas. O objeto transnacional é um objeto transicional não somente para pessoa em transição entre uma realidade cultural e outra, mas também para aquela cuja realidade cultural é penetra­ da e alterada. O objeto se torna um meio de suas projeções sobre a outra cultura. Enquanto ele se move, é provável que se torne muito mais pesado antes de ficar leve. Aqui está a diferença en­ tre fetiches e fósseis. Os fósseis retêm a forma do caos cultural, perpetuamente convidando à decifração de conflitos passados. Sua qualidade “radioativa” pode diminuir, à medida que ocorrem co­ nexões com o estrato histórico em que foram criados, mas os fós­ seis não desaparecem. Os fetiches, embora sejam similarmente densos em relação ao significado, tendem a se dissolver após ser dissipada a necessidade que havia deles. A função de objetos transicionais é decididamente impedir a assimilação da outra cultura. Pois eles não somente levam um as­

pecto de seu lugar de origem para um local novo, eles também tornam estranho o lugar no qual chegam. Esses fósseis culturais são radioativos, porque trazem de volta histórias perdidas que envolvem o destino e a origem. Eles revelam hibridismo radical já presente em ambos os locais. As imagens cinéticas, como objetos de transição, conservam algum vestígio indexador de um evento original. Elas não o refletem de forma transparente, mas o obscurecem. Essas imagens são objetos transicionais à medida que são densas, sedimentadas, cristalizadas. Uma vez dissolvidas, elas se tornam desnecessárias. Os trabalhos discutidos neste texto trazem o caráter fetichista e aurático do objeto viajante até o seu ápice - e então dissolvem o poder do objeto ao conectá-lo à memória, transformando imagens-fósseis em imagens-recordações.

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A dialética da identidade transnacional e o desejo feminino em quatro filmes de Claire Denis* 1 Rosanna Maule

É um pouco romântico. Eu me sinto um pouco estrangeira, mas sei que sou francesa. Quando eu era muito jovem não gostava disto, queria ser qualquer coisa menos francesa. Claire Denis2

Chocolat (1988), S’en foutla mort (1990), Noites sem dor­ mir (1994) e Beau travail (1999), dirigidos pela cineasta francesa Claire Denis, analisam a interseção conturbada de gênero, classe, etnia e identidade cultural na sociedade colonial e pós-colonial. Chocolat; o filme de estreia de Denis, investiga as relações inter-raciais e de classe na República dos Camarões. S ’en fout la m orte Noites sem

dormir continuam essa investigação na França atual, lidando com os problemas de integração multicultural em Paris. Beau travail\o

*

Tradução de Raquel Maysa Keller. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras

citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação]. 1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de “The Dialetics o f Transnational Identity and Female Desire in Four Films of Claire Denis”, publicado em: Dennison, S.; Lim, S. H. (O rgs.). Remapping World Cinema. Londres: Wallflowers, 2006. 2. Darke, 2000, p. 17.

filme que marca o retorno de Denis ao cenário africano, enfatiza questões de relação de poder e masculinidade na Legião Estran­ geira Francesa localizada em Djibuti, através de uma narrativa que lembra o conto Billy B u d d y Marinheiro de Herman Melville.3 Minha discussão sobre esses quatro filmes aceita como pre­ missa uma estrutura pós-colonial e feminista, particularmente ade­ quada a seus focos sobre as alienações das personagens ocidentais e não ocidentais na África e na França coloniais e pós-coloniais. Quando era criança, Denis viveu em vários países da África, inclu­ indo Somália, Djibuti e Burkina Faso, onde seu pai trabalhou para a administração colonial francesa. Sua representação de identidade cultural está fundada na crítica do conceito ocidental de alteridade, uma posição consolidada por sua experiência pessoal como uma “criança da África” que recebeu uma educação antirracista, assim como pela leitura do psiquiatra e teórico francês Frantz Fanón.4

3.

BillyBudd, M arinheiro é u m trab alh o in co m p leto , red esco b erto e publicado em 1924, trinta e três anos após a m orte de Melville. O co n to faz parte de u m grupo de histórias que Melville escreveu depois da publicação de MobyDick, sua obra-prim a. G radualm ente, Melville abandonou a escrita, d esen corajad o pela alienação dos leitores de sua prosa cada vez m ais difícil. N o fim , ele consegu iu u m em prego co m o oficial de polícia da alfândega de N ova Iorque. D esde 1857, escreveu exclu­ sivamente poesia, que publicou em pequenas edições. Alguns poem as de Melville são citados em Beau travail' “The N ight M arch ” e “G old in the M oun tain”. O prim eiro elogia a sincronia de um grupo de soldados m arch an d o , o segundo faz reterência àqueles hom ens gananciosos cujo desejo de en con trar “ou ro na m on ta­ nha” está ligado a um estado de insatisfação.

4.

Nascida em Paris em 1948, Denis foi para C am arões co m seus pais quando tinha apenas dois meses de idade e viveu lá p o r treze anos. R etorn ou à Fran ça quando ela e sua irmã contraíram poliomielite e precisaram de tratam en to m édico. Q uan­ do sua irmã ficou paralítica co m o consequência da d o en ça, a m ãe se recusou a voltar à África para junto de seu m arido e, no fim, a família voltou para a França.

Meu propósito aqui é demonstrar com o Chocolat> S en fout la

morty Noites sem dorm ir e Beau travail propõem uma crítica da dialética senhor-empregado existente sob as relações de cultura e gênero na sociedade ocidental contem porânea.5

A mulher ocidental, o local e a alteridade: Chocolat, S ’en fout la mort e a identidade (pós-)colonial Para sobreviver, o “Terceiro Mundo” deve necessariamente ter conotações negativas e positivas: negativas quando visualizadas em um sistema de classificação vertical - “subdesenvolvido” com­ parado a super industrializado, “subprivilegiado” dentro do já segundo sexo - e positivas quando entendidas sociopoliticamente como forças subversivas, “não alinhadas”. Se “Terceiro Mundo” soa negativo ou positivo, isso também depende de quem usa o termo. Dita por vocês, ocidentais, a palavra dificilmente signifi­ cará o mesmo que quando dita por nós, originários do Terceiro Mundo. De forma previsível, vocês/nós que condena(mos) o ter-

Denis sentiu íalta de sua vida na África e, aos dezessete anos, foi para o Senegal cursar o ensino médio e morou por algum tempo com amigos de seus pais (Reid, 1996, p. 68). Denis leu Fanón pela primeira vez em 1961, em seu retorno relutante à França e difícil integração na sociedade francesa. 5. Como Susan Hayward apropriadamente observou, os filmes de Denis propõem um modelo múltiplo de subjetividade pós-colonial que desafia a objetificação do corpo colonizado como “unidade e subjetividade singulares cujas multiplicidades foram deliberadamente dissimuladas sob domínio ocidental” (Hayward, 2001, p. 160). Tal multiplicidade, Hayward também afirma, encontra muitos problemas em se ex­ pressar como muitas personagens pós-coloniais demonstram nos filmes de Denis (Hayward, 2001, p. 160).

mo somos ambos: os que aceitam e os que negam qualquer par­ ticipação na mentalidade burguesa do Ocidente. Foi devido a essa mentalidade que o “Terceiro Mundo”se distinguiu como um novo achado semântico para designar o que ficou conhecido como “os selvagens”antes das Independências. (Minh-ha, 1989, p. 97-98). Denis considera Chocolat, S en tout Ia mort e Noites sem

dorm ir uma trilogia sobre questões pós-coloniais inspiradas nos escritos de Fanón (Reid, 1996, p. 69). De fato, esses filmes parecem quase uma ilustração do alerta de Fanón sobre a complexidade envolvida no processo de descolonização, na violência profunda­ mente enraizada nas relações sociais contidas no sistema colonial e na perspectiva colonizadora da moderna cultura ocidental. A rejei­ ção autoconsciente de Denis de qualquer representação conciliató­ ria dos problemas e contradições da sociedade colonial e pós-colonial deu a ela um lugar único dentro de um grupo de diretores in­ fluenciados pelo que Dina Sherzner rotulou de “síndrome coloni­ al” do cinema francês recente.6Catherine Portuges coloca Denis en­ tre um grupo de diretoras francesas que, nos últimos vinte anos, têm abordado o passado colonial francês como “um cinema de me­ mória, um tipo de colonial feminino’, no qual os cruzamentos de fronteira se traduzem em um mise-en-scène que desestabiliza idéias

6.

Entre os diretores que ao longo das décadas de 1980 e 1990 quebraram o longo silêncio sobre o período colonial francês (o qual previamente tinha visto somente intercalados trabalhos que denunciavam o sistema colonial e sua ideologia), aqueles que reexaminaram o colonialismo africano, incluem-se Bertrand Tavernier (A Lei de Quem Tem o Poder,; 1981) e Alain Corneau (Forte Saganne, 1984). Sobre esse assunto, ver Sherzner (1996, p. 6-7).

hegemônicas de nacionalidade, sexualidade e família.” (Sherzner, 1996, p. 81 )7. De acordo com Portuges, os filmes oferecem [... ] mais do que meros exercícios autopromocionais de nostalgia melancólica ou cumplicidade inocente, pois reinscrevem a histó­ ria francesa colonial dentro de um espaço visual que - implicita­ mente, se não explicitamente - critica a negação anterior da subje­ tividade feminina no horizonte de estórias coloniais. Em Chocolat; o esforço de Denis em retratar a África, m an­ tendo-se distante de tendências nostálgicas ou centradas no O ci­ dente, é feito com sucesso p or m eio de um a m u lher francesa emblemáticamente chamada France (Mireille Perrier) que retorna a Camarões, o país onde tinha vivido com seus pais quando criança.8A viagem reaviva suas m em órias em um longo flashback que ta m ­ bém constitui o centro da narrativa do film e. O flashback retrata a infância de France em Cam arões na década de 1950 e as relações de poder envolvidas no am biente colonial onde m orava. A narra-

7.

O grupo inclui, entre o u tras, M a rie -F ra n ce Pisier, que em 19 9 0 dirigiu L eb a ld u

Governeur; e Brigitte R ouän, cu jo O utrem er tam b ém foi lançad o no m e sm o ano. Assim co m o Denis, R ouän toi criad a na Á frica em u m a fam ília cató lica que a d o ­ tou um a visão altam en te crítica d o co lo n ialism o . Sobre esses três film es, ver “M ém oires d ’exil. Fém inin colon ial” de Strauss. 8.

Ao com en tar sobre a p rep aração do filme, Denis disse que usou Pele Negra, M ás­

caras Brancas, de Fan ón , para cria r um filtro su p lem en tar àqueles garan tid o s pelo recurso da ficção e à colaboração do dram atu rgo Jean-Pol Fargeau (Reid, 1996, p. 68). Esses filtros perm itiram “desvencilhar-se de um p recon ceito gigantesco que se cham a Á trica” (Gili, 1988, p. 15). D epois dessa p rim eira exp eriên cia n o cin em a, Fargeau assinou co n ju n tam en te tod os os filmes de Denis.

tiva está centrada na dialética do desejo estabelecido entre Aimée, a mãe de France, e seu “menino,” Protée, paralelamente ao relaci­ onamento próximo da jovem France com Protée, também pontu­ ado pelos jogos de poder perversos, porém sem sugestões sexu­ ais. A situação, complicada pela interação com alguns hóspedes que chegam na fazenda, é finalmente interrompida por dois inci­ dentes inter-relacionados, os quais tam bém põem um fim ao

fíashbackt às memórias de infância de France. O primeiro episó­ dio faz referência ao avanço sexual de Aimée em direção a Protée, que orgulhosamente a recusa e é então limitado a trabalhar fora de casa. Logo depois, Protée rompe sua lealdade com France, ao deixar a garota queimar sua mão no cano do gerador, após ter posto sua mão naquela superfície para convencê-la de que não estava quente. Para Portuges, Chocolatrepresenta o estabelecimento de um acordo de Denis com a história através da reconstrução de um trauma de infância e um índice da “posicionamento híbrido” da diretora (1996, p. 83). Como Alison Butler observa, citando Caren Kaplan, em Chocolat; Tanto o colonizado quanto as mulheres colonizadoras se tor­ nam subjetividades intermediárias, ambos irrevogavelmente al­ terados por sua interação no novo espaço dentro do qual vivem e trabalham por causa do imperialismo. (2002, p. 108).9

9.

O artigo de Kaplan aqui citado tem o título de “A política da posição com o prática feminista transnacional” e aparece em Scattered Hegemonies:Vost\r\oàexmXy and Transnational Feminism, de Grewal e Kaplan (1 9 9 4 ). Em seu livro, Butler faz uma análise comparativa entre Chocolat, de Denis, e O Piano, de Jane Campion

A partir dessa perspectiva, Protée lembra a figura do corpo negro colonizado de Fanón como uma identidade humilhada e objetificada pelo olhar ocidental, e France se torna um símbolo da reconciliação impossível das pessoas ocidentais com o seu passa­ do colonial. A impossibilidade de tal reconciliação é reafirmada num Camarões contemporâneo, onde a France adulta sente-se uma estrangeira, e William J. Park, o homem afro-americano que mi­ grou para a África para encontrar suas origens, passa a ser tratado como um estrangeiro, o cidadão de um poder dominante. O compromisso de Denis com um discurso transnacional e multicultural enfatiza um paradoxo importante na representação de culturas não ocidentais a partir de bases teóricas baseadas no oci­ dente que permanecem essencialmente eurocêntricas em suas tenta­ tivas de se desfranquearem de posições totalizadoras de sujeitos. Esse dilema é o objeto da crítica do eurocentrismo de Ella Shohat e de Robert Stam, descrito por eles como [...] a força procrustiana da heterogeneidade cultural em um paradigma único no qual a Europa é vista como a única fonte de significado, como o centro da gravidade do mundo, como ‘reali­ dade ontológica’ para o resto do mundo que está à sombra. (1994, P- 3).

(1 9 9 3 ), com o dois exem plos opostos de olhar de diretoras brancas sobre o pós-colonialismo. Na opinião de Butler, enquanto O Piano ainda apresenta o colonizado como um Outro radical (neste caso, a populado Maori da Nova Zelândia, o país natal de Campion ) e reduz as relações de poder nas diferenças sexual e cultural para metáforas, Chocolat “explora as relações coloniais em seu imediatismo bruto e náo encontra possibilidade fácil de reconciliação.” (2002, p. 108).

Shohat e Stam argumentam que o cinema contribuiu enor­ memente para a construção do imaginário imperial eurocêntrico devido à sua consolidação como aparato da sociedade burguesa, predicado sobre a produção das narrativas-mestre (1994, p. 101-103). Na opinião deles, o mandato imperialista do cinema continuou tam­ bém depois do fim do colonialismo, escondido em elementos submersos da narrativa ou manifesto no renascimento dos épicos e dos dramas imperialistas do cinema europeu das décadas de 1980 e 1990 (1994, p. 123). Nesse aspecto, Chocolaté para Shohat e Stam um exemplo dos filmes [...] pouco críticos de ‘nostalgia’ do período colonial, os quais mudam seu foco da agressividade masculina para a domesticidade feminina, e para as noções mínimas de consciência anticolonial provocadas pela transgressão do tabu sobre o desejo inter-racial. (1994, p. 123).10 Essa leitura parece um pouco reducionista. Como Butler demonstrou, o retrato de Chocolat da África colonial faz mais do que oferecer o desejo inter-racial como uma maneira fácil de re­ conciliar identidades coloniais e ocidentais (2002, p. 107). Chocolat rejeita visões essencialistas das subjetividades “europeias” versus “não europeias” e apresenta uma visão das relações sociais que caminha na direção de Shohat e Stam: “relações historicamente configuradas de poder” nas quais o “eurocentrismo é um posicionamento implí­ cito, em vez de uma postura consciente e política.” (Shohat; Stam, 1994, p. 4).

10. Além de Chocolat, Shohat e Stam mencionam Lebaldu Gouverneure Outremer.

Muitas discussões teóricas desenvolvidas no contexto do discurso pós-colonial reconhecem o perigo de permanecerem eurocêntricas, à medida que as teorias epistemológicas ocidentais estão relacionadas a categorias e agendas modernistas. Tal caos cul­ tural ocorre mais frequentemente na reificação das assim chama­ das Mulheres do Terceiro Mundo como significantes privilegia­ dos de diferença. Gayatri Chakravorty Spivak, um dos exemplos mais eminentes de estudiosa feminista, cuja identidade pós-colo­ nial lhe permite mobilidade analítica, reconhece o risco de abor­ dagens pós-coloniais assumirem pontos de vista “locais”, que pro­ vavelmente produzirão um etnocentrismo em que o estudioso ocidental favorece o outro e transforma o Terceiro Mundo em um “significante conveniente” (Young, 1990, p. 168)u. Inderpal Grewal e Caren Kaplan percebem algumas contradições nas abordagens feministas ao pós-colonialismo que “usa o discurso colonial para equiparar o ‘colonizado’ com a ‘m ulher’, criando categorias

11. Spivak a d o ta , c o n tin u a m e n te , e stra té g ia s q u e m u d a m , re in tle x ã o d iscu rsiv a de p o siçõ es de su jeito, in clu in d o a su a, p a rtic u la rm e n te n o q u e diz resp eito à f o r m u ­ lação d o d iscu rso fem in ista so b re as m u lh eres d o T e rce iro M u n d o . C o m o R o b e rt Y ou ng en fatiza “ Spivak te m m u ita c o n s c iê n c ia so b re a fo rm a n a q u al a c r ític a rad ical, tais c o m o , ce rta s fo rm a s de fe m in ism o , m e s m o aq u elas q u e se in teressam p o r m u lh eres d o T erceiro M u n d o e p o r literatu ra d o T erceiro M u n d o , in c o n s c ie n ­ tem en te rep ro d u z su p o siço es im perialistas —tais c o m o a p r o m o ç ã o inquestion ável d o in d iv id u alism o fem in ista c o m o o m e lh o r b e m ,‘o fe m in ism o p o r si s ó ’ fo ra d e q u alq u er d e te rm in a ç a o h is tó ric a ” ( 1 9 9 0 , p. 1 6 2 ). M e sm o a ssim , Y o u n g ta m b é m a r g u m e n ta , S p ivak cai e m p o s iç õ e s e s s e n c ia lis ta s q u a n d o t e n t a c o m b i n a r d e sco n stru ça o c o m teo ria m a rx ista e m a n te r d e s c o n tin u id ad e h e te ro g ê n e a e d ife­ ren ças d e n tro de u m “q u a d ro s in c ré tic o ” ( 1 9 9 0 , p. 1 7 3 ).

essencialistas e monolíticas que eliminam questões de diversidade, conflito e multiplicidade dentro dessas categorias.” (1994, p. 3). Quando baseado na epistemología moderna, o discurso pós-colonial sempre corre o risco de se tornar uma forma invertida de etnografía cultural12. Denis se mantém longe desse perigo ao assu­ mir uma posição pós-colonial contra o fechamento ocidental de subjetividade e identidade fixas, assim como coloca em primeiro plano sua própria identidade pós-colonial como mulher branca e ocidental criada em uma sociedade colonial. Como Butler nos faz lembrar, A discussão sobre o relacionamento de mulheres diretoras bran­ cas com o pós-colonialismo colide com um número de questões difíceis que dizem respeito à extensão e à natureza da cumplici­ dade e da culpabilidade das mulheres no colonialismo, ao modo como a feminilidade branca significa na ideologia racista e aos significados que as mulheres brancas projetaram sobre o cenário colonizado e os povos locais. (Butter, 2002, p. 105). Em Sen fout la mort; um filme que melhor desenvolve o dilema de Chocolatsobvz “o desejo impossível de reconciliação entre o colonizador e o colonizado” (Butter, 2002, p. 95), Denis abandona sua posição de sujeito para focalizar a condição das identidades não ocidentais na França pós-colonial. Em S ’en fout la mort; os prota-

12. Grewal e Kaplan propõem o pós-m odernism o com o uma posição analítica que “nos dá um a oportunidade para analisar a form a co m o um a cu ltu ra de modernidade é produzida em diversos locais e com o estas produções culturais circulam, são distribuídas e recebidas e, até mesmo, comercializadas” (1994, p. 5).

gonistas são Dah, um im igrante de Beni que vive em Paris comercializando galos de rinha para o jogo ilegal, e seu sócio Jocelyn, um treinador de galos vindo do Caribe.13 Contratados para organizar um salão ilegal de jogos, os dois homens são forçados a viver em um porão sujo sob uma das propriedades do seu empre­ gador. O chefe deles é Ardenne, dono de um restaurante e de um clube, que viveu por muito tempo nas Antilhas e foi amante da mãe de Jocelyn. Ambos são vítimas do racismo pós-colonial e da explora­ ção capitalista, porém as reações de Dah e Jocelyn são bastante diferentes. Jocelyn, um hom em quieto, introvertido, afeiçoado a suas tradições e princípios, é perturbado pelo ambiente em que se encontra14. Sofrendo por causa da atitude paternal cada vez mais intensa de Ardenne em relação a ele (que, às vezes, insinua a possi­ bilidade de ser seu pai) e de sua paixão secreta pela amante de Ardenne, Toni, Jocelyn começa a beber muito e, como consequência, é esfaqueado até a m orte pelo filho de Ardenne. Essa cena dramá-

13. Os títulos dos dois filmes apresentam um duplo significado. Chocolat faz referên­ cia ao jargão colonial para pessoas negras e tam bém significa “ser enganado”. S en

fout la m orté o nom e do galo cam peão de Jocelyn cuja m orte antecipa a do seu treinador e cuja trajetória suicida em blem áticam ente term ina na rinha. C o m o Kathleen M urphy observa, am bos os filmes lidam com a noção de traição. Em

Chocolat, Aimée pede a seu m arido para que Protée trabalhe fora de casa depois que ele recusou seu convite sexual, e Protée, por sua vez, dá um fim em sua relação com France ao deixá-la queim ar sua m ão propositalm ente. S en fout la m orté uma referência a um galo cam peão que íocelyn treina. A expressão “s’en fout la m ort” tam bém se refere a uma frase que na África ou nas Antilhas é “am uleto contra a separação, m orte” (Murphy, 1992, p. 63). 14. Jocelyn é interpretado por Alex Deseas, que também atua em dois outros filmes de Denis, Noites sem dorm iré o recente Trouble every day, 2001.

tica ocorre durante uma rinha de galo, em que Jocelyn chega com­ pletamente bêbado e começa a ofender os donos dos galos em crioulo. O processo de loucura gradual de Jocelyn é concomitante com a reinterpretação da relação de colonizador-colonizado que Fanón descreveu em páginas esclarecedoras como uma reação ao autorrebaixamento. Dah (personagem representado por Isaach de Bankolé, o ator que interpreta Protée em Chocolat), ao contrário, é orgulhoso e determinado, reage às tentativas de Ardenne de lhe tirar vantagem econômica e se mantém intocável por seu tratamento áspero. Du­ rante todo o filme, Denis dá a Dah urna perspectiva narrativa, in­ serindo a superposição de sua voz como justificativa de narrativa e comentário - e como ponto de vista resistente. Na cena de aber­ tura, Dah é filmado por trás, sentado em um furgão, à noite. Suas primeiras palavras repetem o título de abertura do filme, uma ci­ tação de Chester Himes: “Todo ser humano, independentemente de sua raça, nacionalidade, religião ou política, é capaz de tudo.”15Na cena final, após ter ido ao funeral de seu amigo, em que ele conta ao amigo, morto, sobre uma futura reconciliação com sua mãe nas Antilhas, Dah deixa Paris para trás, levando com ele o dinheiro ganho com a última luta organizada. Quando apresentou S ’en foutla mortem Nova Iorque, Denis lembra de ter sido criticada por um grupo de jovens afro-ameri­ canos por ter passado uma imagem negativa e trágica de Jocelyn.

15. A citação aparece no artigo de Audé sobre o filme (1990, p. 71) e em Cinema and the Second Sex:W om ens Filmmaking in France in the 1980s and 1990s deTarre Rollet (2001, p. 221).

Comentando a sua tentativa fracassada de explicar para esses jo­ vens, com base em Fanon, o significado político de fazer um ne­ gro m orrer no fim de seu filme, Denis diz: Talvez eu tenha envelhecido e meus pensamentos estejam fora do alcance da nova geração. Mas não acho que injustiças sociais graves possam ser resolvidas através de meios não violentos. Re­ almente acredito nisso. (Reid, 1996, p. 73).

O discurso pós-colonial não engajado de Denis em S ’en fout

la m ort recusa tanto o revisionismo essencialista quanto as visões politicamente corretas. Nas entrevistas, Denis frequentemente abor­ da os problemas e as controvérsias estabelecidos por sua perspec­ tiva particular sobre a representação racial, tanto do ponto de vis­ ta conservador quanto do progressista.16

16. Sobre as dificuldades que encontrou ao selecionar atores negros para os papéis principais, ela diz: “Os produtores de filme reagem negativamente a minha forma de dramatizar um tema em meus filmes. Eles não entendem como quero selecio­ nar negros; os produtores regularmente dizem que se eu selecionar atores negros, eles deveriam ser‘objetos’ eróticos. Em meus filmes, as pessoas negras nunca são objetos. Elas são sujeitos que conscientemente escolhem o que querem. Geralmente os produtores tem [sie] uma ideia muito exótica sobre o que os atores negros deveriam fazer c de onde deveriam ser vistos. Os roteiros dos produtores relaciona­ riam personagens negros a leões e elefantes. lá eu penso que os Negros retratados em meus filmes sao‘noir’ (negros)” (Reid, 1996, p. 69). Incidentalmente, as revistas de cinema também demonstram atitudes problemáticas em relação a atores ne­ gros, especialmente quando é o caso de identificá-los. Nos artigos sobre o filme Sen tout Li mort citado aqui, as legendas das lotos relativas aos dois atores principais, Alex Deseas e Isaach de Bankolé, trocam as identidades dos dois homens. Assim, em Positit, De Bankolé se torna Deseas (Audé 71) e, em Film Comment, Deseas é apresentado como “Isaach de Bankholé [ibid]” (Murphy, 1992, p. 62).

Para Denis, reinteirar-se de um passado colonial ou enfren­ tar a realidade dos preconceitos raciais de hoje envolve um cho­ que cultural e uma desilusão emocional. A esse respeito, Chocolat e S ’en fout la niort são fortes ilustrações do que Fanón afirma sobre descolonização: La décolonisation est la rencontre de deux forces congénitalement antagonists qui tirent précisement leur originalité de cette sorte de substantification que sécrète et qu’alimente la situation coloniale. Leur première confrontation s’est déroulée sous le signe de la violence et leur cohabitation - plus précisément Pexploitation du colonisé par le colon - s’est poursuivie à grand renfort de baionettes et de canons. Le colon et le colonisé sont de vieilles connaissances. Et, de fait, le colon a raison quand il dit: “les” connaitre. C’est le colon qui a faitzt qui continue à faire le colonisé. Le colon tire sa vérité, c’est-á-dire ses biens, du système colonial” (29-30). (“A descolonização é o encontro de duas forças inerentemente antagônicas que extraem sua originalidade exatamente desse tipo de substantificação que encobre e alimenta a situação colonial. Seu primeiro confronto desdobrou-se sob o signo de violência e sua coabitação - mais precisamente, a exploração do colonizado pelo colonizador - foi perseguida pelo reforço de baionetas e ca­ nhões. O colonizador e os colonizados são velhos conhecidos. E, de fato, o colonizador tem razão quando diz: ele “os” conhece. Foi o colonizador que fezt que continua a fazero colonizado. Do sistema colonial, o colonizador extrai sua verdade, ou seja, suas posses”).17

17. Os parágrafos, selecionados das páginas de ab ertu ra de Os condenados da terra, de Fanon , co m eçam co m o segue: La décolonisation g u is e propose de changer

Vordre du m onde, est, on le volt, un program m e de désordre absolu. Mais elle ne peut étre le résultat d ’une operation magique, d ’une secousse naturelle ou d ’une entente à ¡ ’amiable. La décolonisation, on lesait, est un processus historique: cést à dire q u 'elle ne peut être comprise, q u 1elle ne trou ve son intelligibilité, n e devient

Corpos que importam: Noites sem dormiry Beau travail e a recontextualização do corpo pós-colonial Na antologia Construction o f Race, Place and Nation de 1993, Peter Jackson e Jan Penrose salientam a necessidade de se ir além das suposições essencialistas de raça e gênero através do escru­ tínio diacrônico e dinâmico de como esses termos assumem uma posição transnacional e específica de classe, a partir da qual raça, lugar e nação são entidades construídas e multifacetadas, variavel­ mente manifestas em contextos geoculturais diferentes (1993, p. 19). A análise transcultural que os posiciona dentro de diásporas com­ partilha um problem a sem elhante. Presos entre críticas de modernidade e declarações de identidade autênticas, alguns teóri­ cos não conseguem ver as metodologias pós-modernas como uma prática feminista viável (Grewal; Kaplan, 1994, p. 21). Em um livro que aplica uma estratégia frequente no discurso feminista pós-colonial, aquela de situar subjetividade e ação política na conjunção de corpo e lugar, Radhika Mohanram propõe uma “cartografia de corpos” na qual “um entendimento pós-moderno de identidade baseia-se em uma compreensão de nação e raça como

translúcido à elle même que dans 1’exacte mesure oii lon discerne le mouvement historicisant qui lui donne forme et contenu. (“A descolonização que objetiva mudar a ordem mundial é, podemos ver, um programa de desordem absoluta. Porém, não pode ser o resultado de uma operação mágica, de uma mudança drástica natural ou de um acordo amigável. A descolonização, sabemos, é um processo histórico: ou seja, só pode ser entendida se puder encontrar sua inteligibilidade; ela se torna translúcida para si mesma somente na medida em que identificamos o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.”).

construto arbitrário ou político” (Mohanram, 1999, p. XII). Con­ forme argumento central, “Um sentido de lugar não somente par­ ticipa da construção de uma percepção de identidade física, é tam­ bém fundamental na formação de identidade racial.” O livro de Mohanram analisa as conexões entre noções pré-modernistas, m o­ dernistas e pós-modernistas de subjetividade em relação à raça. O argumento cie que as teorias ocidentais de subjetividade m anti­ veram o corpo e o “conceito submerso de lugar/cenário” em uma relação subalterna às noções de espírito, racionalidade e civiliza­ ção é também parte de sua discussão. O propósito historiográfíco e metodológico de Mohanram é [...] mostrar as conexões entre as várias correntes nos estudos pós-coloniais: a política de lugar/desterritorialização, o conceito de identidade diaspórica versus identidade local, a identidade da mulher na nação e na construção espacial de feminilidade, a identidade do corpo negro e sua relação nacional com o conhe­ cimento. (Mohanram, 1999, p. XV).

Como Mohanram deseja, a ontologia e a epistemología oci­ dental tradicionalmente identificam brancura com espiritualidade e negritude com corporalidade. Ela cita Fanón a respeito dessa oposição: Sim, nós somos negros - retrógrados, simples, livres em nosso comportamento. Isso é assim porque o nosso corpo não é algo oposto ao que vocês chamam de mente. Nós estamos no mun­ do. .. Sensibilidade emotiva. A emoção é completamente negra assim como a razão é grega. (Fanon, 1961, p. 27)18.

18. Citado de Pele Negra, Máscara Branca, p. 126-127.

Noites sem dorm iré Beau travail são filmes nos quais Denis expõe uma crítica politicamente viável das posições subjetivas ocidentais. Esses filmes não tentam resolver as contradições que focalizam; ao contrário, eles as mantêm inconclusas ou, mais que isso, as problematizam via representação de corpos físicos e soci­ ais que transgridem definições pré-determinadas de identidade cultural. Noites sem dormir é baseado em um crime que mono­ polizou a opinião pública da França na década de 1980 - o caso de Thierry Paulin, um homossexual negro que, com a cumplicidade de seu amante, matou e roubou dúzias de mulheres idosas em Paris. Quando começou a trabalhar no filme, Denis tinha bastante consciência de que estava tocando em um assunto altamente con­ troverso. Ao longo da pré-produção e da filmagem, ela se afastou cuidadosamente dos clichês sociais e culturais de ambas as comu­ nidades caribenha e gay a ponto de promover mudanças na re­ presentação das pessoas e de lugares reais, sobre os quais tinha pesquisado arduamente. Não somente ela mudou o nome do ma­ tador em série (que no filme se chama Camille) e omitiu os aspec­ tos sensacionalistas do crime, incluindo a personalidade extrava­ gante de Paulin e sua vida social, como também inseriu a narrati­ va relativa a Camille dentro da estrutura das histórias das outras personagens. Dessa forma, fornece uma imagem profunda de seu ambiente a partir de uma perspectiva que tenta entender suas ações, embora nunca as explicando ou as justificando. A esse respeito, uma característica do filme é a falta de comentário social. A repre­ sentação do círculo social e familiar de Camille nunca se torna mera reportagem sobre grupos multiculturais ou minorias étnicas.

Denis também se absteve de retratar Camille como um mons­ tro, ao inserir sua história em uma narrativa múltipla de pessoas que, como ela afirma, vivem uma condição de alteridade social, uma comunidade de pessoas cujos destinos acidentalmente se cruzam no bairro parisiense multicultural do décimo oitavo distrito. Nessa co­ média humana multicultural, dois grupos de imigrantes, um da Martinica, outro da ex-União Soviética, se cruzam em uma mon­ tagem paralela que entrelaça personagens e eventos de cada grupo sem nunca, realmente, fazê-los se encontrar, mesmo ocasionalmen­ te. A natureza plural do filme é prenunciada por uma sequência de abertura que mostra dois policiais sobrevoando Paris em um heli­ cóptero e que repentinamente caem na gargalhada. Essa cena apa­ rentemente solta funciona como uma estrutura para o quebra-ca­ beça da narrativa do filme e antecipa o desenvolvimento não linear do enredo. Noites sem dormir não propõe uma narrativa fechada; seu tom descritivo se prolonga nas ruas parisienses, interioriza, cap­ tura humores e atmosferas e apresenta cada personagem como in­ definido e ambíguo. O estilo cinético do filme também sugere um tipo coletivo de enunciação, usando sequências de cenas e direção de edição, a fim de desviar ou multiplicar os pontos de vista. Muitos críticos enfatizaram a habilidade de Denis em traba­ lhar com corpos e sua obsessão com a expressão corporal como uma metáfora para as relações de poder. A própria Denis reconhe­ ce a importância desse aspecto em seus filmes. Em 1994, quando dois críticos de Cahiers du Cinéma observaram que, com o então recém-lançado Noites sem dormir\ ela finalmente acertara ao fa­ zer o “mise-en-scène dos corpos”, sugerido em Sen fout la mort, ela respondeu:

Peut-être que ça a pris corps davantage... En tout cas, il y a davantage de corps dans ce film. Ce nest pas de l’humour, la prise de corps c’est vraiement la seule chose qui m’intéresse. C’est assez intimidant, surtout quand c’est le corps des hommes. (Jousse; Strauss, 1994, p. 25). (“Talvez isto tenha tomado corpo... De qualquer forma, há mais corpo neste filme. Isso não é humor, filmar corpos é realmente a única coisa que me interessa. É um tanto intimidador, especial­ mente quando são corpos de homens.”). Essa investigação do corpo masculino como ponto de con­ vergência progressiva no trabalho de Denis alcança seu clímax em Beau Travail. Com esse filme, Denis retorna à exploração do corpo como lugar e metáfora de relações de poder. Em bora não tão explicitamente como nos filmes anteriores aqui examinados,

Beau travail tem, sem dúvida, relaciona-se com temas coloniais ou pós-coloniais. O filme, localizado em uma colónia antiga da Áfri­ ca Ocidental, está centrado na situação neocolonial estabelecida entre a Legião Estrangeira e a população local e coloca em prim ei­ ro plano um uso autorreflexivo de referências literárias e cinéticas à França imperial.19Pela primeira vez, em Beau travail\Denis tra­ balha com um elenco quase exclusivamente masculino (com os papéis femininos destinadas aos papéis secundários), enquanto ela explora relações de classe e raça dentro do contexto homossocial do sistema militar. Sobre sua nova “fascinação ao observar homens lutando ou trabalhando”, Denis comenta o seguinte:

19. Beau tnwail c um título irônico que se traduz com o “bom trabalho”, o elogio dado à correta execução que o soldado faz de seu trabalho. O título do filme também é um a referência (com o Denis reconheceu) ao clássico hollywoodiano Beau Geste; em parti­ cular sua versão de 1939, dirigido por William Wellman e com Gary Cooper.

Eu gosto de escrever histórias sobre homens não porque quero dominá-los, mas porque gosto de observá-los e imaginá-los. Um homem é um mundo diferente, e esta masculinidade me interes­ sa. O cinema francês é tão cheio de diálogos - não poderia me importar menos com essas pessoas conversando sobre suas vi­ das. Godard disse que no cinema há mulheres e armas, e eu con­ cordo plenamente. Isso quer dizer que há sexo e violência. O cinema funciona assim, mesmo que o espectador seja altamente intelectual. (Darke, 2000, p. 17). Scott Heller mostra que a preocupação de Denis com “os mundos dos marginais, retratando imigrantes e m inorias étnicas” é acompanhada por um olhar distintivamente fem inino, frequen­ temente fixado sobre “a natureza conturbada da masculinidade” (2000, p. 42). De acordo com Heller, Beau travailé talvez o exem­ plo típico da concentração progressiva de Denis sobre o corpo como tema, seguindo uma galeria das personagens masculinas “conturbadas” que inclui Protée; Dah e Jocelyn; e Camille. Em sua análise do filme, Hayward aponta para a relação en­ tre identidade e lugar com o uma relação colonizado r/colonizado como elemento-chave de Beau travail\complicada por noções de desarticulação, desterritorialização, contexto e especificidade. No trabalho de Denis, Hayward declara, corpos pós-coloniais não po­ dem ser cercados ou contidos dentro do contexto do discurso ocidental. Ela também escreve: Em seus filmes Denis mostra, de formas diferentes, a luta, se não a impossibilidade de reinscrever o selfem um espaço deslocado e a impossibilidade de reinventar uma narrativa e mito (ou recla­ mar uma memória). (2001, p. 161).

Em Beau travail\ os campos de treinamento dos soldados na beleza do cenário natural são justapostos aos seus relacionamentos problemáticos com as mulheres vivendo na pequena cidade vizi­ nha e, em particular, com as mulheres que eles encontram na disco­ teca local, levando a questão das relações de poder de dentro do contexto militar homossocial para aquele pós-colonial e também heterossexual. Para um filme que contém longas sequências de sol­ dados em treinamento, Denis não contratou m ilitares experien­ tes, mas coreógrafos de dança. Com o Heller nota, os exercícios

légionnaires “começam como calistenia, transformam-se em artes marciais e se tornam uma forma vigorosa de dança moderna” (2000, p. 42)20. De forma semelhante, Stéphane Bouquet observou que: Chez Claire Denis, mettre en contacte danse et armée est un moyen d’interroger la notion de corps collectif. Danseur et soldat cherchent à rejoinder un corps idéal même si ce n’est pas exactement le même. Et jusqu’oü disparaitre dans un supra-corps? Jusqu oü se fonder dans le rhythme (la loi) d’un autre et quel plaisir y-a-t-il s’abolit comme sujet pour participer à la beauté du groupe, de la norme? (Tu n’es plus African, entend-on, tu es legionnaire). (2000, p. 49). (“Para Claire Denis, aproximar a dança e o exército é urna forma de interrogar a noção do corpo coletivo. Dançarino e soldado tentam alcançar um corpo ideal, mesmo que não seja exatamen­ te o mesmo corpo. E até que ponto alguém desaparece em um supercorpo? A ponto de se fundir com o ritmo (a lei) de um outro; e que prazer existe a ponto de abolir o sujeito em si a fim de participar da beleza do grupo, da norma?”).

20. Denis acom panhou as coreografias elaboradas dos soldados com BillyB u JJà e Benjamin Britten.

Para Bouquet, a coreografía participa da criação de “um ideal de beleza, ideologicamente desvalorizado (militar, exército) ou com conotação sexual (homossexual)”. A própria Denis calculou que o filme exprime um subtexto explicitamente homossexual, o qual ela encontra (corretamente) também no conto de Melville.21 Em Beau

travail\os olhares trocados entre o tenente Galloup, o capitão Forrestier e o soldado Sentain são abertam ente eróticos, assim com o a fascinação com o corpo masculino plasticam ente repre­ sentado pelo enquadramento e pelo m ise-en-scène. Ainda assim, ao longo do filme, Denis trabalhou com os atores para colocar uma distância entre a câmera e os corpos masculinos, a fim de não torná-los objetos (Lalanne; Larcher, 2000, 52-53). Bouquet observa que “a lógica dos corpos difere” entre o nervoso Galloup e os legio­ nários “vagarosos, hieráticos, fantasmáticos” comparados a anjos em uma citação de Elégie de Duino, de Rainer Marie Rilke: “Anjos (eles

2 1 . 0 filme difere substancialmente do conto de Melville. Além de ter m udado o tem po da narrativa e tam bém o cenário do século X V III da G rã-B retan ha p ara a Á frica contem porânea, os filmes de Denis tam bém alteram o desenvolvim ento do en re­ do, os nom es e o destino das personagens. E m B illy Budd, M arinheiro , o m estre de Claggart, o m estre das arm as (o tenente G alloup no film e) é aciden talm en te m o rto pelo belo m arinheiro Billy Budd enq uan to os três estão ju n to s na cabine do capitão. Ao ouvir que o m aldoso e invejoso m estre das arm as está injustam en­ te acusando-o de insubordinação na frente do capitão, Billy Budd tem um acesso de raiva e lhe dá um soco, fazendo-o bater a cabeça fatalm ente. E m b o ra ficando ao lado do m arinheiro e entendendo sua ação, o capitão é obrigado a sentenciá-lo à m orte para evitar qualquer possibilidade de m o tim . D epois de u m a conversa privada com o capitão, Billy Budd m o rre h eroicam en te, ab en çoan d o o capitão co m suas últim as palavras. O que fica in tacto em Beau travail é a atm osfera palpavelmente hom oerótica do co n to (especialm ente m anifesta na paixão do ca­ pitão e de toda a tripulação pelo belo m arin h eiro), assim co m o algum as caracte­ rísticas da psicologia pervertida de Claggart.

dizem) frequentemente não sabem se estão entre os vivos ou entre os mortos' (Lalanne; Larcher, 2000, p. 52-53). Para Bouquet, a fasci­ nação de Denis com o corpo masculino é basicamente uma ques­ tão de mostrar que “o corpo se reintegra, escapa do sonho de fusão, se liberta do grupo” (Lalanne; Larcher, 2000, p. 52-53). Mais uma vez, como em outros filmes de Denis, esse processo de assumir a subjetividade de alguém passa pela suposição de que o corpo se faz via dialética do desejo e da violência. Na entrevista com Darke, apropriadamente intitulada “Desejo é violência”, Denis formula seu trabalho em função dessa dialética: Deve haver violência pois há desejo, eu acho - e é isso que é tão bonito nos filmes de Oshima. Espero que, se analisada, eu fosse considerada anormal - penso que sexualidade não é delicadeza. Desejo é violência (2000, p. 17).

Conclusões Com as exceções de ChocolaU Nanette et Bonie Beau travail\a distribuição internacional dos filmes de Denis tem sido mínima. Essa omissão se deve em parte pelo assunto particular de seus filmes, em parte por seu estilo visualmente desafiador e narrativamente não tradicional, em parte por seu compromisso com um discurso transnacional e multicultural que recusa ajustes e posturas fáceis; ao contrário, faz perguntas a partir de uma perspectiva polêmica. Em uma entrevista de 1996, Chris Darke perguntou a Denis se sua “marginalidade tinha a ver com o fato de ser uma mulher fazendo filmes na França” (2000, p. 16-18). Denis respondeu de uma maneira que envolve sua concepção de alteridade como estratégia política:

Não. Não acho que faço o tipo de filmes que têm os traços do cinema francês, ou seja, com muito diálogo e pouco foco social. Alguns sugerem que minha marginalidade tem a ver com o fato de que meus filmes têm muitas personagens marginais. Mas eu acho que não. Penso que é mais pelo fato de eu não me expressar como os diretores franceses. Mas ser marginalizada é uma forma de ser levemente protegida - estou fazendo a minha própria histó­ ria sem que ninguém interfira, e isso é conveniente. (2000, p. 18).

Os filmes de Denis oferecem um modelo alternativo de desejo feminino como ponto de vista subjetivo, organizando as contradi­ ções sociais e culturais na sociedade colonial e pós-colonial. Com um olhar atento feminino, Denis insere a dialética da violência e do dese­ jo sexual no contexto de relações culturais, étnicas e de gênero e po­ der; um jogo que questiona sua própria identidade e posição autoral. Seus filmes representam um importante modelo alternativo de fe­ minilidade como ponto de vista subjetivo, que oferece novas possi­ bilidades de representar a alteridade por meio da articulação de gêne­ ro e especificidade cultural.

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O que vi quando te vi? Os diários de viagem sul-americanos na França Andrea Molfetta

1 Na tese “Experimental e documentário: os diários de via­ gem dos artistas sul-americanos na França: 1984-1995” (USP, 2002), analisei uma coleção de filmes produzida no Festival Franco-Latino-Americano de Videoarte. Em cada edição, um videoartista sul-americano e outro francês ganharam como prêmio uma bolsa para produzir um diário de viagem sobre o território do outro. Foram 21 diários que testemunham o olhar de duas culturas, e que estão listados no final do texto. A tese se concentrou nas 13 obras latino-americanas: parti da análise da construção espaço-temporal e enunciativa e realizei entrevistas com artistas e animadores cul­ turais para, já no campo da estética, ensaiar sobre os sentidos mais complexos desse sujeito latino-americano protagonista de uma experiência intercultural. A coleção trouxe para o documentário local uma retomada da autobiografia mais experimental em plena década de 1980. Es­ ses diários eletrônicos representaram um espaço, um tempo e um

narrador audiovisual fragmentado, sem o menor interesse em ser homogêneo e contínuo, construindo um desfile de imagens sob efeitos que adensam o plano icônico e sintático, cativos do fascínio pelas flamantes “novas tecnologias” digitais de edição que estavam sendo introduzidas na América Latina. Os diários latino-america­ nos são verdadeiras pinturas eletrônicas, mais preocupadas com a mancha do que com a profundidade de campo, o que significa um enfrentamento ao regime clássico do documentário. Quase todos os diários chilenos são sumários de registros que sofreram intervenção digital, sem preocupação narrativa. E a voz, que caracteriza classicamente qualquer diário pessoal, está calada. Menezes, Said, Vargas, Poch Pereira passeiam por uma Pa­ ris/cenário de ícones da cultura de massa e mostram isso sem uma fiação dramática, como mera coleção de retalhos produzidos pelo narrador sem mostrar a si próprio: o “Eu” do pacto autobiográfíco (Lejeunne, 1975) mostra a cidade a partir de si, sem mostrar a si próprio. Quase nenhum deles assume a própria voz, elemento carac­ terístico do narrador do diário. O sujeito desses diários é predo­ minantemente visual, o som ambiente quase não aparece; o som é uma partitura eletrônica que complementa o jogo associativo das imagens. En Français, de Sandra Kogut (Brasil, 1993), foi o que mais trabalhou numa trama dramática propriamente dita - uma história de amor entre os dois países, confissão de uma autora que se esconde timidamente - através do jogo de espelhos de uma enunciação multiplicada, barroca. Nesse diário, aparecem vários “Eu”, todos ela própria, mostrando um sujeito contraditório, esquizo, polifónico, esfacelado em diversas vozes e corpos, modo

absolutamente complexo e experimental da enunciação subjeti­ va. Por exemplo, faz complexas relações entre fala e letreiro, rela­ ção cujo diálogo silencioso intensifica a atividade do receptor. Outro exemplo dessa multiplicação do “Eu”, da voz da autora, em dois tons e volumes diferentes, é o diário de Claudia Aravena, que questiona e responde a si própria em Miradas desviadas/Regards

déroutés (Chile, 1992). Outros videoartistas se relacionam mais explicitamente com a literatura, inscrevem sua voz em letreiros, falando de si próprios e de outros. E os textos, com frequência, remontam ao voo (modo) poético. Dessas formas, o conjunto de diários se distancia das convenções autobiográficas, onde o “Eu” surge claro e distinto como pivot de uma narrativa orientada no espaço e no tempo. Na fronteira entre o narrativo e o não narrativo, dentro do estatu­ to documentário, esses videoartistas são pioneiros na indagação de uma questão estética vigente na arte eletrônica até hoje: o uso do audiovisual como técnica de si, questão que desenvolvi como objeto da subsequente pesquisa que fiz na USP, “O documentário performativo do Cone Sul dos anos 90”. Retomando, vejamos com detalhe as consequências desse tipo de construção do espaço no modo de representar o tempo desses diários: o espaço, fragmentado e descontínuo, faz com que a imagem perca (ou debilite) seu poder referencial e informativo, e se transforme em superfície-vídeo (Bellour, 1990). Assim, no conjunto dos diários latino-americanos, o tempo da história (o tem­ po dos fatos, aquele que no modo clássico aparece por transparên­ cia detrás do tempo discursivo) não é marcado nem descrito com precisão. Não sabemos muito (quase nada, para falar a verdade)

sobre a história do autor na viagem, o que ele sentiu, nem é aprofundada a interação com o objeto fílmico, nesse caso uma geo­ grafía, a Europa. O autor está claramente de passagem. Sabemos que é Paris pelos icones turísticos, e a única data é a do filme no final, tempo da fatura fílmica. Sendo um diário, não se aprofunda a informação sobre a experiência, mas sim a impressão, a evocação de um “destempo”, o tempo em que o filme se montou e se fez. Assim, podemos dizer que, nos diarios sul-americanos, o tempo histórico é suspenso e atrelado ao único tempo que pre­ senciamos com definição: o do próprio discurso que se desenrola na nossa frente, gerando uma “mostração do tempo puro do dis­ curso”, que entra no ritmo narrativo da pausa (Genette, 1971). E o que é essa pausa? No ritmo narrativo da pausa, não temos tempo histórico, somente o tempo do próprio discurso. É como se o mundo tivesse se detido para que percebamos um discurso como tal. Ingressamos no que Nichols chama de modalidade reflexiva da representação documentária. Assim, nesse espaço-tempo surge um sujeito cuja focalização, ou ponto de vista através do qual ouve, vê e sabe, é interna, criando um conjunto de enunciações subjeti­ vas e fazendo do espaço do filme um espaço mental, vidente. Um sujeito que sabemos que organiza tudo, cujo fluxo discursivo acompanhamos, um discurso no qual, estando no marco daquele projeto cultural e com essa liberdade expressiva, optou por não se pronunciar (não fala) nem se mostrar (não há autorretrato), tanto a si próprio quanto às suas opiniões. A reflexividade poética não aprofundou em nenhum pronunciamento político, contrastando notoriamente com outros setores da produção da imagem eletrô­ nica (Movimentos de Vídeo Popular), que militavam intensamente

dentro dos processos de abertura democrática em quase todos os países envolvidos neste festival - Argentina, Brasil, Chile, Colôm­ bia e Uruguai. Essas foram as principais estratégias narrativas dessa grande ação de recentramento do sujeito no documentário local, que con­ sidero paradoxal e muito significativa da vida do audiovisual moderno na América Latina. Recentramento promovido pela ver­ satilidade dos equipamentos e que, pela sua exploração próxima da não narratividade, provocou um sintoma muito peculiar na recepção: no nosso contexto, esses diários nunca foram exibidos, nem consumidos, como documentários. Assim, encontramos de­ poimentos, críticas, entrevistas a júris da época. Simplesmente eram chamados de vídeos experimentais. Não se exigia deles - porque assim também eram exibidos - os compromissos éticos do esta­ tuto documentário. Eram projetados, comentados e produzidos no campo da videoarte, como continuou acontecendo até pouco tempo, em que festivais, como o É Tudo Verdade, legitimaram com prêmios artistas (raramente autodenominados de cineastas) que exploraram essa linha experimental e eletrônica. Penso que houve, de fato, um mecanismo do campo das ar­ tes videográficas que tentou a “importação” estética do trabalho narrativo da primeira pessoa no campo documentário que, na Europa e nos Estados Unidos, já possuía antecedentes fortes (Rouch ou Mekas). Isso foi promovido por esta ação cultural da França que, temos que dizer, não vinha precisamente ao encontro das indagações e produções locais em matéria de documentário. No final, tornou evidentes as fraturas dentro do campo audiovisual lo­ cal, inclusive dentro do próprio vídeo, que na época se organizava

respeitando severamente a distinção de formatos e não o proble­ ma da linguagem. Estamos falando no campo intelectual periféri­ co de uma sociedade, cuja organicidade social e cultural foi pro­ fundamente afetada por décadas de processos autoritários, e que estava, nesses anos entre 1980 e 1990, realizando com afinco a re­ construção da sua malha.

2 Assim, esses diários representam um mergulho na experiên­ cia do recentramento do sujeito no documentário, fundado na década de 1950 pelo cinema verdade. Mas por que na produção dos nossos artistas isso aparece de um modo não narrativo, refle­ xivo, sem interação e acrítico? Retomemos o fio da história. Os filósofos da hermenêutica moderna (Heidegger, Gadamer) nos deram uma resposta à necessi­ dade desse compromisso do “Eu”, escrevendo e publicando seus prin­ cipais livros pouco antes dessa revolução no cinema documentário, o que não é casual. Para tais filósofos, o recentramento do sujeito nas práticas culturais é uma resposta que demos à perda do com­ promisso essencial da pessoa com a vida (sentido), com a verdade e com o mundo, questão que na Europa se relaciona diretamente ao trauma da guerra mundial. Assim, esses autores deram funda­ mento filosófico às experiências, como a de Rouch, que assumi­ ram a grande crise epistemológica do relativismo cultural, década de 1950, discutindo e comprovando a constituição do sujeito do e no relato, no trabalho da linguagem, tanto do ¿W/quanto

do Outro, no trabalho interativo das relações intersubjetivas que o dispositivo fílmico ajuda a criar. O cineasta assume, como mo­ mento fundante da sua ética documentária, a parcialidade do seu ponto de vista, entabulando uma relação de respeito e comparti­ lhando os meios de produção. Vale dizer, a França teve esse mes­ mo gesto propriamente através do Festival Franco-Latino-Americano de Videoarte, e seus videoartistas desembarcaram provo­ cando situações de diálogo com e através da presença da câmera. Os latinos utilizaram essa mesma tecnologia e essa mesma opor­ tunidade de produção, realizando um audiovisual, cuja poesia leva o cinema para o território da escritura e da literatura, gestando essa coleção de documentários reflexivo-poéticos. Essa experiência, trinta anos depois e graças ao convite francês, desembarcou no nosso continente. Porém, o que provocou uma resposta artística assim, na qual o recentramento do sujeito não é dialógico e nem crítico? Sem dúvida, a resposta, complexa, levou uma tese inteira e algo mais, que este artigo pretende resumir. Qual pode ter sido, no nosso contexto latino-americano, a causa dessa opção pela pausa>sintoma da perda do compromisso fundamental do sujeito com a vida, com a verdade e com a histó­ ria? As ditaduras, obviamente. A França era consciente do peso estratégico desse projeto cultural e enxergava o festival como um bom motivo para reagrupar setores e criar novos espaços de dinamização cultural, como apoio aos processos de abertura de­ mocrática que começavam a acontecer no nosso continente. As­ sim declarou Pascal-Emmanuel Gallet, autor do projeto, em en­ trevista. Na proposta estética francesa, era justamente um avanço em prol do “politicamente correto” o fato de o festival entregar as

ferramentas de produção, respeitando a palavra - e o poder - do Outro. Deram-nos a palavra e... silêncio, fragmentação, poesia e montagem. Então, se aceitamos esse trauma como parte da resposta, será que, no caso dos diários sul-americanos, esse recentramento do su­ jeito, ainda mudo e que se abstém de depor sobre a história, não responde também a outros dois fatores, como símbolos de nossa con­ tradição de países periféricos? Temos que examinar, não sem cuida­ do. Em primeiro lugar, o conjunto foi produzido por artistas “filhos das ditaduras”: toda uma geração que se formou num ambiente inte­ lectual repressor (dentre os quais me incluo), sem acesso orgânico aos mecanismos reprodutores da cultura, isto é, a nossa história audiovisual e ainda a história do documentário internacional. Em segundo lugar, os mecanismos de importação de mode­ los estéticos da Europa, favorecida nas dinâmicas da globalização, e em funcionamento desde os tempos coloniais, continuam sen­ do acionados em nossos países sob o imperativo da moderniza­ ção tecnológica. Por meio desses mecanismos, acolhemos mos­ tras e palestras, todo um legado de discursos artísticos franceses que se implantaram no coração dos debates do audiovisual sudaca, por meio da organização de mostras e visitas. Como é tradição em um campo intelectual periférico, absorvemos e produzimos esses valores estéticos, condenados a essa definição sempre dialética da identidade da nossa produção cultural. Preocupada como estava com a questão do sujeito, aprofundei a análise da enunciação e vi que, no nosso conjunto, embora se tra­ tando de diários, não era nada clara a presença desse sujeito recentrado que estava longe, tanto do regime documentário clássico quanto da

própria autobiografia. Os diários não foram uma resposta às dita­ duras, nem aos processos de abertura, muito menos uma reação ou resistência pós-colonial, pois em nenhum momento vemos uma crítica a essas relações entre a América Latina e a Europa. Contudo, introduziram novos modos de narrar no documentário local, nun­ ca antes vistos e, nesse sentido, foram pioneiros de um aspecto performativo dentro do documentário sul-americano. Analisando o discurso dos videoartistas, que entrevistei pes­ soalmente, vi que para eles o sujeito recentrado, longe de ser o ponto de partida para uma afirmação pós-colonial crítica, foi empossado na enunciação como a última das certezas, dentro de uma estética que pesquisa os limites do poder assertivo do sujeito sobre o mundo através de elementos autorreflexivos e poéticos. O sujeito aparece nos diários como resistência tanto à perda do com ­ promisso vital com o mundo quanto à crise do sentido provocada pelo pós-estruturalismo da década de 1980. Do ponto de vista da recepção, como antecipei anteriormente, nunca foram exibidos como documentários no nosso contexto. O campo intelectual reagia com outras respostas, mais explícitas e expositivas: o documentário militante, produzido e distribuído nos circuitos da contrainformação humanista e que, esvaziado de renovação estética, preservava, até a década de 1980, os modos nar­ rativos mais clássicos do documentário, desta vez em vídeo. Acredito que essa fenda entre o videoartista e o documentarista foi produzida, em primeiro lugar, pelo histórico isolamento da esfera estética, isto piorado pela introdução em ritmo de moda de valores e normas estéticas estrangeiros, feita às pressas pelos enferrujados mecanismos culturais das novas democracias sob o imperativo da modernização tecnológica.

A reflexividade e a performance no documentário local não nasceram de uma ruptura crítica com produções locais preceden­ tes, contribuindo com uma genealogia dos estilos, contínua, como o é na cultura cinéfila das metrópoles. No nosso contexto, as mu­ danças e inovações nem sempre nascem e operam por ruptura, mas, sim, por saltos ou superposições de valores. A reflexividade documentária no contexto latino-americano foi empossada por artistas que não vieram das escolas de cinema (a maioria formada em filosofia ou design) e cujos referentes estéticos se ancoram na arte eletrônica, no design, na publicidade e nas artes plásticas. E, ainda, a reflexividade dos diários não conduziu à formulação críti­ ca e política ou à crítica das representações e códigos de outros meios, promovendo leituras metalinguísticas e transmidiáticas. Os diários dessa coleção surgiram de um modo bastante recortado e isolado em relação ao restante da produção videográfica e cinematográfica dos campos intelectuais latino-americanos, e foi por isso que tam­ bém me chamou a atenção esse período de produção. A conclusão da tese apontou que a noção de sujeito e de história subjacentes à estética reflexiva e poética dessa coleção de diários de viagem responde à ruptura epistemológica mais crítica da década de 1980: o documentário, para esses videoartistas, reconstrói um dos gêneros mais tradicionais do ocidente, a autobio­ grafia, que recentra o sujeito na linguagem e coloca a história como um campo dinâmico de processos de consciência. Refletindo, as­ sim, nas relações entre crônica e fabulação, para esses videoartistas o audiovisual traz uma linguagem a ser utilizada ao mesmo tem­ po, tanto na representação do mundo quanto como técnica de si.

As inovações estilísticas da Modernidade, que antecipam o peculiar sentimento de perda do ‘senso da história’, servem para ensaiar novas formas de representar o evento, além do ‘story telling’ clássico, representações do passado que são cruciais para o desenvolvimento da identidade cultural. Hayden White The coming extinction of art is prefigured in the increasing impossibility of representing historical events.1 Theodor Adorno Como podemos questionar a elaboração de uma identidade audiovisual sul-americana nesses videodiários sobre a Europa, quan­ do os autores se limitaram à representação de um fluxo fenoménico, fluxo de registros sem narração ou nas fronteiras do narrativo e do poético? Podemos começar por pensar a articulação do ponto de vista do enunciado, vale dizer, na enunciação que esses filmes expe­ rimentaram para esses indivíduos, a focalização e o saber resultan­ te para esse sujeito que assume o centro autobiográfico nesse modo experimental. Como se manifesta nos diários o ponto de vista sobre o mundo histórico? Como podemos pensar a partir das es­ truturas do texto, nos intertextos, nos paratextos e, fundamental­ mente, nas noções de sujeito e história presentes na estética do conjunto?

1. “A extinção da arte por vir é antecipada pela crescente impossibilidade de repre­ sentar os eventos históricos.”

Em Forms ot Time and the Chronotope in the Novel (1981 )2, Bakhtin desenvolve o conceito de cronotopo para articular a rela­ ção entre o textual e o extratextual. O cronotopo, ou “constela­ ção de características distintivas, espaciais e temporais, de gêneros específicos, que funcionam para evocar a existência de uma vida-mundo independente do texto e de sua representação [...]” (Bakhtin, 1981), determina e limita as possibilidades narrativas do texto. Em suma, as características da mise-en-phase do sujeito protagonista: o cronotopo modela a imagem discursiva que o sujeito moderno tem de si, da vida e do mundo. Como resultado da análise fílmica, extraímos conclusões sobre o cronotopo dominante dessa coleção sul-americana de diá­ rios. Analisando o espaço, ele se mostra de forma fragmentária, aleatória, geralmente um só tipo de espaço: público, anônimo ou íntimo, privado, quartos ou museus. Os passeios e os travellings de Jorge Said-Maldonado em Paris, cest trop! (Chile, 1987). Os passeios de Juan Francisco Vargas no interior dos museus em

J ’A ttendrai (Chile, 1988). Já no caso de Miradas desviadas/Regards déroutés, de Clau­ dia Aravena (Chile, 1992), o sujeito se mostra diferente, porque existe um monólogo interior e posterior aos fatos, monólogo que coloca tudo na perspectiva do pretérito perfeito da circunstância. Aravena fala com sua própria voz off, por cima de instantes de passeios que se tornam metáforas do seu pensamento associativo. Da mesma forma, a intervenção poética da voz de Marcela Poch,

2. A tradução é da autora.

em Son oeilplongeait dans la ville... (Chile, 1993), e de Patricio Pereyra, em Discours sur le peu de réalité (Chile, 1994). Os três chilenos refletem sobre suas próprias possibilidades poéticas e exis­ tenciais, sobre o alcance e o limite do sujeito (fílmico). Da cidade, os diários fotografam elementos que demons­ tram a duração do tempo - as luzes dos barcos sobre as fachadas, os meios de transporte em deslocamento. Em Torre Eiffel (Chile, 1986), Juan Enrique Forch explora a longa duração de um travelling ascendente e outro descendente, da Torre Eiffel, claro, enquanto recita o imponente poema do surrealista Vicente Huidobro, “Altazor”. Em Son oeilplongeait dans la ville... (Chile, 1993), Marcela Poch viaja no interior de barcos e automóveis. Na maioria dos diários e, especialmente, em En Français (Brasil, 1993), de Sandra Kogut, o cinegrafista viaja de trem. Na montagem interna ao quadro, são construídos espaços subordinados, complexos, organizados em subcampos, por superposição ou por divisão da tela. Nos diários de Marcela Poch e Patricio Pereyra, o campo visual se divide em territórios geome­ tricamente cortados, nos quais se combinam velocidades e senti­ dos, forçando a simultaneidade (e a perda inevitável) do controle sobre a leitura. Referente fugidio, semiose incompleta, porém in­ finita. Na contramarcha, o ponto de partida do discurso, bem encravado - ou o melhor que pode

o narrador primeiro mostra

e depois narra. A duração do movimento se destaca também na simultaneidade de janelas internas no quadro que, mais uma vez, ajuda a suspender ou a substituir a percepção da história, para cha­ mar a atenção sobre o tempo puramente discursivo do relato. Desse modo, a partir de um espaço fragmentado, múltiplo e simultâneo, os diários nos fornecem uma arquitetura particular

do tempo presente, rompendo com a gramática do cinema clássi­ co, já que, nesses diários, cada subjetividade, cada sujeito, no jogo intersubjetivo a que nos convida o cinema como dispositivo, faz sua most ração, assim como oferece sua interpretarão, ingressan­ do no amplo campo do poético. Em geral, a construção temporal dos diários, vale dizer, os ritmos narrativos, varia nos termos da taxonomía de Genette (1972), da pausa ão sumario. As focalizaçoes, de externas a internas. Mas não temos, de modo algum, a utilização de elipse que contribua a sintetizar uma narrativa com começo, meio e fim sobre um pas­ sado histórico. Temos, sim, cenas, no sentido em que se preserva a duração do plano, em sinal de respeito à circunstância da tomada. Mas geralmente são cenas desdramatizadas através da captação de um instante qualquer, sem agon, sem conflito. Então, como ques­ tionar esses diários sobre nossa identidade, se eles não abordam o passado nem enunciam desde uma pessoa plural, nós7. Da nossa parte, o objetivo do projeto de Gallet, idealizador do projeto cul­ tural, estava fadado ao fracasso. Como é a posição do narrador de um diário que nos mostra um espaço fragmentado, suspende o tempo histórico e que, com relação a si próprio, mostra unicamente seu modo de olhar, deiticamente, sem fazer autoimagem? Com relação ao espaço há, a meu ver, um sujeito duplamente exilado. Ele está longe da sua cultura. A viagem confirma, em primeiro lugar, aqueles lugares dos quais nos distanciamos, principalmente a língua. Nos diários sul-americanos são raras as cenas de diálogos, a troca não é uma constante. Desse modo, a palavra é elevada ao seu valor mais abs­ trato, e temos uma grande presença literária em monólogos e poe­ mas —letreiros em 90% dos filmes.

O movimento do espaço e no espaço é uma variável de grande elaboração. O espaço é fugidio, quase um desfilar sem contato interativo entre europeus e latinos. O espaço mostrado é sempre urbano, não há natureza - como na parte francesa da coleção, onde são maioria as imagens do campo, da montanha e do mar da Amé­ rica do Sul. A cidade europeia é mostrada por meio de múltiplos espaços quaisquer, sem hierarquias, fachadas, pessoas ou meios de transporte. Nos diários sul-americanos, a cidade é um grande espaço de circulação, cenário-fluxo da subjetividade, caótica, e se apresenta aleatoriamente, como um desenrolar de eventos. Mas esses eventos estão concatenados por um eixo que é outro ponto qualquer: o sujeito-sujeitado pela câmera, quase sempre sem nome, diegetizado no campo visual e sonoro nas mais diversas formas: o olhar para a câmera, as diversas formas de molduras (janelas, lentes etc.), a câmera na mão, o som, os textos. Constitui-se, assim, seu segundo exílio: o recuo subjetivo. O sujeito está “longe das circunstâncias”, como diz Claudia Aravena em Miradas desviadas. É um sujeito limitado fenoménicamente a esse presente, outro momento qualquer. Não faz retrospectivas, julgamentos, nem previsões. É restrito, em consequência, também nas formas possíveis de construir aquilo que originalmente quer nos mostrar: sua identidade. Mas isso já é parte da nossa marca cultural como países periféricos: barrocamente, não fazemos a pergunta sobre nós sem nos referirmos ao Outro. Moderno desde sua origem, esse sujeito latino-americano, por definição, é incom­ pleto, aberto e explicável somente nos termos de uma dialética intercultural com a metrópole. Dialética à qual acedemos para, apa­ rentemente, resistirmos ou frustrarmos desde o silêncio. Eis como

a enunciação desses diários torna-se, no final da análise, reveladora de um arquétipo relacionado com uma condição oprimida, a nossa condição cultural, nesse caso, dependente dos campos intelectual e de poder centrais. Por meio da análise desses diários, penso o modo como nossos artistas vivenciaram o evento histórico que é ser um latino-americano na Europa de final de século; e todos os diários possuem, em comum, o fato de serem relatos difusos, sumários de fragmentos sem asserções e que, no final das contas, funcionam como método para dissolver o evento histórico que, sabemos, es­ tava por trás da proposta original: o reencontro das culturas após 500 anos da colonização. A dissolução do evento é uma das estratégias estéticas prove­ nientes da modernidade literária e traz consequências importantes para a relação entre arte e história. Acredito que esses diários usam essa estratégia ao dissolverem o evento numa desintegração das uni­ dades de tempo: as imagens não são documento de um tempo, a imagem não se sujeita a essa exigência da imagem documentária comprobatoria. Significa, mais profundamente, modificar a noção de factualidade; que é fronteira entre o discurso imaginário e o dis­ curso realista. Na teoria do cinema, são abundantes os textos sobre o plano sequência e a montagem como elementos e ferramentas estilísticas do realismo. Mas, na nossa coleção de diários eletrôni­ cos, os recursos do realismo são escamoteados e dispensados ao máximo. O documentário é levado até suas fronteiras. Em outros termos, rompe-se o contrato autobiográfico do século XIX: imaginários ou reais, para esses diários todos os fatos pertencem à mesma ordem ontológica; todos eles trazem a ideia de uma conceitualização da história sem verdade, de que qual­ quer história vira estória, resultado de uma fabuiação. Ou, pelo

menos para esses artistas, isso já não é obrigatório dentro do esta­ tuto documentário, o que acontece até hoje, desde então, com a imagem eletrônica como precedente. Para White, esse tipo de poé­ tica é resultado de fatos históricos traumáticos, que geraram uma neurose coletiva: obliterar sistematicamente o acesso aos fatos para que eles não interfiram no presente nem na visão de futuro. Foi difícil falar do passado e, mais ainda, daquele presente como su­ jeito colonizado. Porém, a consciência histórica do espectador exigia um sentido a ser construído, e esse é o motivo pelo qual este artigo sente a necessidade de definir os sentidos possíveis que foram extraídos dessa experiência intercultural. O modernismo opõe o evento ao fato, desmantelando o evento como objeto de conhecimento científico. Para o moder­ nismo dos diários, o evento histórico não pode mais ser observa­ do e não serve mais como objeto de conhecimento: dissolve a constituição das personagens, entendidas como sujeitos dessa his­ tória ou como representações das perspectivas possíveis sobre essa história. Na maioria dos diários, o espectador não sabe direito de que se trata a viagem, que não é apresentada, resumida, narrada ou encerrada. São as informações paratextuais que nos falam da via­ gem a Paris, do convite do festival. Nos diários, datas e durações são apagadas, assim como o nome dos próprios viajantes, que so­ mente conhecemos pelos créditos. Muito menos conhecemos sua opinião. Em Paris c ’est troph de Said Maldonado, Ventana/fenetre, de Gerardo Silva, ou Miradas desviadas, de Claudia Aravena, não sabemos nada da historia sem as informações exteriores ao filme. Por último, procede a desrealização do evento, que “aban­ dona sua função narrativa como índice da história, para adquirir a importância de um padrão atual, trans-social e de significado

trans-histórico”, segundo Jameson (1996). O sentido parece ina­ cessível, indistinguível no fluxo dos eventos, instáveis, fluidos e fantasmagóricos. Eventos que, não casualmente, são fotografados em slow motion, reverso, zoomz repetição. As próprias persona­ gens são irrealizadas, por exemplo, em Torre Eiffel, de Juan Enrique Forch. A primeira pessoa não é a do autor e, sim, é emprestada de Huidobro, quem, pela sua vez, fala ao seu filho que não guarda ne­ nhuma relação com o relato. Outro exemplo é o diálogo imaginá­ rio de Sabrina Farji com Anais Nin em Diário de outono. Desse modo, fazer asserções também não é a constante. A constante maior é a interferência digital sobre o registro fragmen­ tário, criando colagens e simultaneidades, adensando o plano icônico da representação. Aqui, a pintura entra em cena com toda a sua potência. Les règles du jeu que j’ai tout de suite instituées marquaient cette volontédemettreànu le regard des artistes. N’était autorisée qu une banale caméra, la plus légére possible [... ] au moment de la postproduction retrouver les moyens sophistiqués de traitement de I’image qui faisaient le quotidien de Yart vidéo. (Gallet, 1987, p. 9).3 O trabalho gerativo (processo desenvolvido entre o autor e a obra) desses diários é tão intenso e interfere tanto na montagem dos registros, que gera um grande estranhamento em relação aos códigos mais clássicos do gênero “diário”, como a primeira pessoa,

3. “As regras do jogo que instituí de imediato assinalam essa vontade de expor o olhar dos artistas. Só era autorizada um a câm era simples, a mais leve possível [...1 no m om ento de a pós-produção reencontrar os meios sofisticados de tratam ento da imagem que eram parte do cotidiano da arte do vídeo.”

o racconto dia a dia e, consecutivamente, o começo, o meio e o fim da experiência. Assim, essa coleção questionou e problematizou o espectador, que ingressou na sala para conhecer um diário de viagem e depara, surpreendentemente, com uma intervenção digi­ tal importante na montagem, realizada sobre registros quase descompromissados, só para inverter caleidoscopicamente o re­ lato e falar, no final das contas, mais daquele que viu do que da­ quilo que tinha sido visto. Para esses diários, a construção do lugar do enunciatário receptor, que faz com que se preze a função comunicativa, a fática e a referencial, também não é uma constante na coleção sul-ameri­ cana, que é profundamente reflexiva e poética. Os autores não fa­ zem proposições ao espectador. Temos, nos diários, um enunciador geograficamente isolado, que não fala a língua estrangeira, “comunicacionalmente” crítico (quase cético) e que cultiva todas as estratégias da reflexividade para operar essa inversão pers­ pectiva: falo do mundo para falar de mim e, nesse deslocamento, a viagem principal. Pouco se pronunciam sobre o território que visitam. É mínimo o valor assertivo sobre a história e sobre si próprios; contudo, o modo de ver e ouvir é sempre subjetivo. Para Nichols, o realismo no documentário ajuda a ordenar e a manter uma visão lógica do mundo, cuja perspectiva subordina o emocional a objetivos concretos, com uma finalidade clara. Mas sabemos que há aqui um realismo crítico, que dá vazão e orques­ tra esses sentimentos para, pelo menos, expressar contradições “es­ pinhosas para a razão, ou que seguem padrões de organização so­ cial (como hierarquias, domínio, controle, repressão, rebelião, etc.)” (Nichols, 1994). Acredito que esse projeto cultural tentou, a partir das boas intenções da Lusofonie, e sem sucesso, abordar a relação

Latino-América/França como uma experiência que nos instigaria a respeito da nossa identidade cultural. Mas, depois dessa experiência, o que foi resolvido com res­ peito à nossa relação com a Europa? Pelo menos dessa vez, cria­ ram-se laços estéticos e de produção, mas a leitura crítica e aguda das respectivas posições dentro da história política e cultural da nossa relação não teve lugar. É uma relação que, do ponto de vista pós-colonial, ainda está inconclusa, produtiva e problemática. Acre­ dito que somente assim podemos explicar o grande paradoxo que significa a recepção dessa experiência estética no nosso contexto. Fomos visitar e filmar um continente, o qual observamos e registramos com toda a carga de opacidade e reflexividade que caracterizou a estética midiática do final da década de 1980. E o que vimos? Vimos que não podemos ver. E, na dialética, vimos que não podemos ver sequer a nós próprios, tal a margem absolu­ ta da experimentação eletrônica em matéria narrativa, amplidão certamente mais vedada nos cânones da imagem cinematográfica. De um lado do oceano - ou melhor, do hemisfério - existem as

blurred boundaries, as fronteiras escuras, mas também permeáveis, entre as práticas narrativas do documentário. No nosso contexto, num campo intelectual castigado e empobrecido pelos recorrentes processos ditatoriais, e ainda por efeito da colonização cultural (no caso, importação de modelos estéticos induzidos pela inovação tecnológica digital), os diversos setores do documentário local se distanciaram e se rejeitaram mutuamente. Isso dificultou tanto a recepção quanto a influência possível dessa modernização narrativa noutros meios audiovisuais, modernização cuja estética não pode ser uma resposta à situação do nosso próprio campo intelectual - na

época, mais preocupado em estabilizar-se e em definir sua autono­ mia estética dentro dos processos de abertura pós-ditaduras. Quando nos sensibilizamos a respeito das influências políti­ cas e culturais da vida dos signos na sociedade, constatamos que nem os autores nem os espectadores sul-americanos usufruíram desses diários como documentários, o que é escandaloso, porque eles se esforçaram em mostrar o trabalho subjetivo por trás de qual­ quer relato. Ainda mais, não esqueçamos de que havia consciência clara dos objetivos para todos os autores, que começaram aceitando a encomenda explícita por um diário de viagem, vale dizer, um subgénero da autobiografia. E, contudo, posso afirmar e generalizar que o esforço autorreflexivo dessas obras, experiência estética marcante da arte eletrônica sul-americana de finais da década de 1980, se dirige a inserir a interpretação do sujeito num contexto no qual o próprio trabalho de interpretar pode ser compreendido progressi­ vamente como autocompreensão de quem interpreta. Desse modo, autorreflexivo, quem filma o mundo filma, no avesso, a si próprio. Na perspectiva hermenêutica que este breve ensaio preten­ deu enxergar, “em tudo que uma linguagem desencadeia consigo mesma, ela remete sempre para além do enunciado como tal” (Gadamer, 1998, p. 39). Trata-se de um programa estético que, na arte eletrônica do nosso continente, destacou a incompletude do sujeito e seus sentidos, afirmando que ambos se constituem na tra­ ma da comunicação, da inter-relação, sentidos abertos que neces­

sitam da interpretação do Outro. Isso nos ajuda a compreender uma distinção sutil. No nosso ho­ rizonte de leitura, o leitor não teve em mente a dimensão documentária dos seus trabalhos e, sim, a dimensão “documentarizante”, em cima da qual, claro, efetuou-se todo tipo de intervenções da montagem.

Os europeus, ao contrário, com referentes estéticos do cinema, elaboraram uma arte eletrônica que na década de 1980 dava conti­ nuidade (ou ruptura dialética) às estéticas documentárias das dé­ cadas de 1950 e 1960, e que foram iniciadas, também, com as pe­ quenas câmeras, as novas tecnologias. Jean-Paul Fargier dialoga com Godard, e Robert Cahen com Resnais. Vale dizer, enquanto eles sabiam que estavam fazendo documentário, nós preferimos afrouxar as regras, problematizando a produção e o horizonte de leitura documentária nas nossas capitais, promovendo uma expe­ rimentação radical do estatuto documentário. Como descrevemos, no conjunto latino-americano as men­ sagens limitaram-se às percepções e às emoções mais destacadas de um percurso, sem críticas para além da reflexividade discursiva, sem consciência histórica. Este é um traço importante dos nossos diários, porque justamente acontece dentro de uma experiência estética induzida por um projeto cultural europeu. Ainda mais, a proposta não somente revitalizou o contato Europa/América La­ tina como colocou em circulação o conjunto da produção experi­ mental sul-americana em vídeo, reunindo-a como poucas vezes na história local, e ainda durante mais de dez anos consecutivos, entre 1984 e 1996. O festival circulava durante o mês de novem­ bro em distintas capitais: São Paulo, Buenos Aires, Santiago, Mon­ tevidéu, Caracas. Realizar o diagnóstico de uma falta de posicionamento po­ liticamente crítico em relação à Europa, num conjunto tão repre­ sentativo como essa coleção de diários, evidencia que se trata de uma constante estética da região durante a década de 1980 e co­ meço da de 1990. Essa ausência de elaboração do senso histórico

merece que pensemos e cogitemos alguma explicação, ou pelo menos que a consideremos como sintoma. A presença dominante da reflexividade na arte eletrônica local, no contexto de abertura democrática na América Latina, é certamente sintomática de um mal-estar. Dividiu taxativamente os distintos se­ tores da produção em vídeo. Promoveu o divórcio de vários grupos de documentaristas, dos mais militantes e expositivos aos mais modernos e reflexivos. Ao longo da pesquisa, constatei a presença de um modelo estético isolado que se apresentou, quase que com exclusividade, nessa produção eletrônica: a modernidade da imagem-tempo, da superfície-vídeo. Como já disse, essa imagem foi rejeitada pelos setores que mantinham a hegemonia estética do documentário no Cone Sul, especialmente em contextos cinema­ tográficos como os de Santiago ou Buenos Aires. Ainda hoje, so­ brevivem algumas dessas fraturas; há, por exemplo, em Buenos Aires grupos de documentaristas que eu chamaria de pré-modernos, que ainda não reconhecem os filmes performativos como documentários. A tensão que provocou a aparição inaugural dessa imagem subjetiva e poética no campo audiovisual local é o que me chamou a atenção desse conjunto de obras na época. Se a proposta trazia, desde a perspectiva eurocêntrica, um objetivo político de fundo (os 500 anos, a relação América/Euro­ pa), de nossa parte o problema foi estético e produziu um contraste de horizontes de leitura dentro do mesmo gênero documentário, gerando uma grande diferença entre os diversos setores do mes­ mo campo. Documentaristas e videoartistas não se cruzavam, embora estivessem trabalhando dentro de distintas visões do mes­ mo estatuto, distintos modos narrativos.

A forma de ver e ouvir desses diários nos traz no mínimo três grandes opções feitas pelos autores: a presença de um grande indi­ vidualismo nas condições de produção, o distanciamento pela via da reflexividade poética e o uso performativo da voz expositiva. As características narrativas analisadas nesse conjunto de diários nos mostram que essa cronotopia característica é habitada por um su­ jeito que está longe da sua terra, da sua própria circunstância histó­ rica e das convenções da representação documentária. Podemos dizer que se trata de um sujeito politicamente acrítico, no mínimo, alguém que se abstém da faculdade fundante do documentário: a capacidade assertiva. Para esses diários, o indivíduo é uma singula­ ridade que desenvolve uma epistefilia (um amor pelo saber), estra­ tegicamente parcial e relativista, presa de um lado pelo ambiente intelectual pós-ditatorial e, pelo outro, por uma Europa convidati­ va e ainda mandante da obra e que, com seus impulsos e incentivos, não conseguiu desabrochar uma crítica pós-colonial. Simples diagnosticar o porquê do fracasso: essa crítica deve­ ria ser organicamente gestada pelo próprio campo intelectual. Foi assim que a coleção pouco contribuiu para a reflexão e a criação de um público local consciente da nossa condição histórica e cultural como países periféricos, colonizados. Muito menos formou um público para o documentário moderno. Como explicar isso? O pro­ jeto de diários dentro do Festival Franco-Latino-Americano de Videoarte, concebido pela Secretaria do Audiovisual do Ministério das Relações Exteriores da França, nos trouxe oportunidades de produção e circulação inéditas entre 1984 e 1996, também elemen­ tos estéticos, tecnológicos e econômicos de produção. Porém, o in­ vestimento foi realizado para responder uma pergunta sobre nós mesmos, pergunta que não foi por nós requerida nem elaborada.

Filmografia Diários sul-americanos produzidos entre 1984 e 1995:

Bonjour la France, Magali Meneses, 22’, 1984 (Chile); Torre Eiffel\Juan Enrique Forch, 11’, 1986 (Chile); Paris, cest trop1, Jor­ ge Said Maldonado, 21’, 1987 (Chile); J ’Attendrai, Juan Francisco Vargas, 27’, 1988 (Chile); Mort au roi\Francisco Arévalo, 6’, 1989 (Chile); La mémoire du ciei\ Francisco Fábrega, 10’30”, 1990 (Chi­ le); Poème N. 1. Ventana/fenetre, Gerardo Silva, 11’, 1991 (Chile); Miradas desviadas/Regards déroutés, Claudia Aravena, 15’39”, 1992 (Chile); Son oeilplongeait dans la vi11e..., Marcela Poch, 10*19” 1993 (Chile); Discours sur le peu de réalité, Patricio Pereyra, 6’, 1994 (Chile); Vídeo DAutomne, Sabrina Farji, 11’, 1994 (Argenti­ na); En Français, Sandra Kogut, 1993 (Brasil). Diários franceses realizados entre 1983 e 1993:

Sans T, Santiag, Santiago, Michel Jaffrennau, 4’, 1984; Chili Moya, Chili Moyo, Jean-Paul Fargier, 12’, 1985; Espero Verte Pron­ topor Eso, Jean-Louis Le Tacón, 15’, 1987; ChiliImpression, Robert Cahen, 13’ 15”, 1988; Le Retour à Valparaiso, Hervé Nisic, 45’, 1986; Camino Austral, Jean-François Néplaz, 41* 1991; Valparaiso, Patrick Prado, 18’4”, 1983; Mes Rencontres à Chiloé en 1989, Michael Gaumnitz, 14’38”, 1989; Guirlande, Collective, 17’, 1990; Voyage d’hiver, Robert Cahen, 19’, 1993.

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Sobre os autores

Andréa França é professora do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq. Autora dos livros

Cinema em Azul, Branco e Vermelho-a trilogia de Kieslowski (1997), Terras e Fronteiras no cinema político contemporâneo (2003) e inú­ meros artigos sobre cinema e audiovisual. É membro do Conse­ lho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine). Andrea Molfetta é professora do Programa de Posgrado en Cine

y Teatro Argentino y Latinamericano de la Universidad de Buenos Aires (UBA), presidente da Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (Asaeca), pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones en Ciencia y Tecnologia (Conicet), na Argenti­ na, e colaboradora do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário da Unicamp (Cepecidoc). Trabalha na área de estudos fílmicos desde 1994, com ênfase nas relações entre arte eletrônica e cinema no Cone Sul a partir da década de 1980.

Anelise Reich Corseuil é professora associada da Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado pela Universidade de Glasgow, Escócia. Coautora de Estudos Culturais, Página, Palco e

Tela (2000) e organizadora de Film, Literature and History (1997) e OEnsino de Literatura e Cultura de Língua Inglesa no Brasil (1997). Organizadora de Film Beyond Boundaries (EFUFSC, 2006). Angela Prysthon é professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPE, autora de Cosmopolitismos periféri­

cos (2002), organizadora de Imagens da cidade (2007) e coautora de Comunicação e cultura das minorias (2005), A Comunicação

revisitada (2005), Construções do tempo e do outro. Representa­ ções e discursos midiáticos sobre a alteridade (2006) e Cultura Digital Trash: Linguagens, Comportamentos e Desafíos (2007). Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da Uni­ versidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq. Au­ tor de A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (2007), O

Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002), Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (1999) e organizador de O Cinema dos Anos 90 (2005). Hamid Naficy é professor de Comunicação no Departamento de Rádio, Televisão e Cinema da Northwestern University; Esta­ dos Unidos. Autor de Cinema, Modernity, and National Identity:

A Social History o f a Century o f Iranian Cinema (a ser publica­ do), An Accented Cinema: Exilic and Diasporic Filmmaking (2001), Home, Exile, Homeland: Film, Media, and the Politics o f

Place (1995), The Making o f Exile Cultures: Iranian Television in Los Angeles (1993), entre outros. Hudson Moura é professor e pesquisador associado ao Centro de Estudos da Oralidade da PUC-SP. É PhD em Cinema e Literatura pela Universidade de Montreal, com pós-doutorado em Cinema Intercultural na Escola de Artes Contemporâneas, Simon Fraser

University, Vancouver, Canadá. Coedita a revista on-lineIntermídias [www.intermidias.com] . Laura U. Marks é professora da Dena Wosk University e da Escola de Artes Contemporáneas, Simon Fraser University, em Van­ couver, Canadá. É autora de The Skin o f the Film: Intercultural Ci­

nema, Embodiment, and the Senses (2 0 0 0 ), Touch: Sensuous Theory and Multisensory Media (2002) e Enfoldment and Infinity: An Islamic Genealogy o f New Media Art (2010). Leo Goldsmith é produtor de filmes e crítico que vive em Nova Iorque. Recebeu seu grau de Mestre em Estudos de Cinema na New

York University em 2006. Atualmente é editor da revista de cinema on-line Not Coming to a Theater Near You (notcoming.com) e tem contribuído para as revistas Reverse Shot (www.reverseshot.com),

Indiewire e Village Voice. Mahomed Bamba é doutor em Cinema e Estética do audiovisual pela ECA-USP. É professor adjunto na Faculdade de Comunica­ ção da Universidade Federal da Bahia e pesquisador no programa de Pós-graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas

(Pós Com-Facom-UFBA). Tem participação em livros coletivos sobre os cinemas africanos e publicou artigos sobre a temática da recepção cinematográfica e audiovisual. Martin Roberts é professor adjunto de Estudos Midiáticos na

The New School, Nova Iorque, onde leciona no Programa de Ba­ charelado em Artes Liberais e no Eugene Lang College. Suas pu­ blicações incluem artigos sobre documentário etnográfico, mundo do cinema e televisão multicanal. Atualmente, Roberts está traba­ lhando no projeto de um livro com enfoque nas subculturas e na globalização. Renata Wasserman é professora de Literatura Comparada no Departamento de Inglês de Wayne State University. Ela é autora de

Central at the Margin: Five Brazilian Women Writers (2007), Exotic Nations: Literature and Cultural Identity in Brazil and The United States; 1830-1930(1994). Robert Stam é professor da New York University. Entre seus li­ vros publicados no Brasil, estão Crítica da Imagem Eurocêntrica> em coautoria com Ella Shohat (2006), Introdução às Teorias do

Cinema (2003), Bakhtin (1992), OEspetáculo Interrrompido (1981). É autor ainda de François Truffaut and Friends (2006), Tropical

Multiculturalism (1997) e editou com Ella Shohat Multiculturalismy Postcoloniality and Transnational Media (2003). Rosanna Maule é professora associada de Estudos de Cinema em M el Hoppenheim School o f Cinema, Concordia University, Montreal. Ela é a autora de Beyond Auteurism: New Directions in

AuthorialFilm Practices in France, Italy, and Spain since the 1980s (2008) e coeditora de In the Dark Room: Marguerite Duras and Cinema (2009). Sheldon Lu é professor de Literatura Comparada e Estudos de Cinema na University o f California, Davis. É autor, editor e coeditor de vários livros, como China, Transnational Visuality,

Global Postmodernity (2001), Chinese M odernity and Global Biopolitics: Studies in Literature and Visual Culture (2007), Transnational Chinese Cinemas: Identity, Nationhood, Gender (1997) e Chinese-Language Cinema: Historiography, Poetics,

Politics (2005). Vicente Rodriguez Ortega é doutorando em Estudos de Cine­ ma na New York University Yingjin Zhang é diretor do programa de Estudos Chineses e pro­ fessor de Literatura Comparada e Estudos de Cinema na University

o f California, em San Diego. Seus livros publicados em língua in­ glesa são: The City in Modern Chinese Literature and Film (1996),

Encyclopedia o f Chinese Film (1998), China in a Polycentric World (1998), Cinema and Urban Culture in Shanghai, 1922-1943 (1999),

Screening China (2002), Chinese National Cinema (2004) e From Underground to Independent (2006).

T ítu lo

C in em a, glob alização e in tercu ltu ralid ad e

Organizadores

Andréa França Denilson Lopes

C o le ç ã o

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N ú m ero de páginas T ira g e m P u b lica çã o Im p ressão e a cab am en to

Raquel Maysa Keller Lúcia Lovato Leiria Alexsandro S tu m p f Neli Ferrari Alexandra Fatima Lopes de Souza Neli Ferrari Jocimar Vazocha Wescinski Luana Paula Biazus Daniela Vargas Alexsandro Stumpf Ronise Biezus e Caroline Kirschner Alexsandro Stumpf Carlos Pace Dori Araceli Pimentel Godinho Cristiane Santana dos Santos Lúcia Lovato Leiria Jakeline Mendes Ruviaro 16 X 23 cm Minion entre 10 e 13 pontos Capa: Supremo 250g Miolo: Pólen Soft 80 g/m2 401 1000

setembro de 2010 Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)

A rgos Ed itora da U n o ch ap ecó Av. Senador Atílio Fontana, f>91-E - Bairro Efapi - Chapecó (SC) - 8 9 8 0 9 -0 0 0 - Caixa Postal 1141 feletone: ( 49) 3 32 1 - 8 2 1 8 - E-m ail: argos@ unochapeco.edu.br - Site: www.unochapeco.edu.br/argos