Apocalipse Estável: Aforismos 9789899925908

Karl Kraus era um escritor e jornalista austriaco, conhecido como satirista, ensaista, aforista, dramaturgo e poeta. Foi

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Apocalipse Estável: Aforismos
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Karl Kraus                        

O APOCALISE ESTÁVEl

Aforismos

Selecção, tradução e posfácio de António Sousa Ribeiro 2ª edição

FYODOR BOOKS

O apocalipse estável Aforismos Karl Kraus © Fyodor Books 2015 Selecção, tradução e posfácio: António Sousa Ribeiro Paginação e capa: David Catela Monteiro e Eduardo Ferreira 2ª. edição, revista, 2015 Depósito Legal: ISBN: 978-989-99259-0-8 Fyodor Books fyodorbooks.tumblr.com [email protected]

ÍNDICE

Nota à segunda edição                                                          7     I. Eros                                                                                      9    II. Arte                                                                                     17                                                                                                                               III. Época                                                                                  25   IV.  Viena                                                                                 35                                                                                                                                              V. 1915                                                                                    39    VI. Noite fechada                                                               61 O apocalipse estável (posfácio)                                        75

Nota à segunda edição

A primeira edição deste livrinho veio a lume em 1988 na colecção «Dois dedos de leitura», sob os bons auspícios da editora Apaginastantas. Para a presente edição, a tradução foi integralmente revista, mesmo que só muito pontualmente se tenha optado por novas soluções. Aproveitou-se também para acrescentar uma meia-dúzia de aforismos que, por esta ou aquela razão, não tinham encontrado lugar na primeira selecção. Transcreve-se, sem alterações, o posfácio da edição original. O/a leitor/a interessado/a em Karl Kraus tem entretanto também disponível, em selecção e tradução minhas, uma versão portuguesa de Os últimos dias da humanidade (Lisboa, Antígona, 2004).

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A sequência dos aforismos segue rigorosamente a ordenação do volume publicado por Kraus em 1919, tendose utilizado a edição dos Gesammelte Werke dada a lume em 1986, sob a responsabilidade de Christian Wagenknecht, pelas edições Suhrkamp. Coimbra, 1 de Junho de 2014 António Sousa Ribeiro

I. Eros

O prazer do homem seria apenas um passatempo ímpio, e jamais teria sido criado, se não fosse um acessório do prazer da mulher. Inverter esta relação, gerando uma ordem em que um mísero clímax se faz passar pelo principal e, uma vez desfeito em nada, interrompe tiranicamente a rica epopeia da natureza, representa o apocalipse, mesmo que o mundo, ressarcindo-se com a técnica, o intelecto e o desporto, ainda leve algumas gerações a dar-se conta disso e já não tenha fantasia que chegue para imaginá-lo. É bom que a sociedade, que está apostada em secar as fontes do prazer da mulher, o consiga primeiro com a fantasia masculina. Doutro modo, seria tolhida pela visão do seu próprio fim.

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O homem não participa mais directamente no prazer do que a causa exterior na arte. E, como toda a causa exterior, exagera o seu papel e atribui tudo a si próprio. Qualquer canalha afirma também que foi sobre ele que escrevi e acha a sua parte mais importante do que a minha. Só lhe faltava  exigir  que  eu  lhe  fosse     fiel.   Mas  a volúpia  refere-se a  todos e  não  pertence  a  nenhum. Se em devido tempo as crianças tivessem sido proibidas de se assoarem, os adultos não deixariam de corar ao fazêlo. A educação sexual é aquele método cruel com que, por motivos de higiene, se priva os jovens de satisfazerem eles próprios a sua curiosidade. A educação sexual justifica-se na medida em que nunca é cedo para as raparigas aprenderem como é que não nascem os bebés. Há uma pedagogia que se decide logo pela Páscoa a preparar a juventude com todas as cautelas para aquilo que, no quarto misterioso, está pendurado na árvore de Natal.

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O efeito que eu produzo é apenas o do actor sobre a mulher. No entreacto estão todos tanto mais contra mim quanto mais concentrados estiveram durante o acto. Eles nunca chegaram a dar-me   a   prova   mais funda e verdadeira da admiração que têm por mim: reconhecerem como são supérfluos e, enquanto eu for vivo, renunciarem pelo menos no tocante à actividade literária. Enquanto não tiver produzido este efeito, não acredito que a minha influência seja duradoura. Oderint, dum metuant. Eles que amem, contanto que não escrevam! Agora tenho mais cuidado. Uma vez pus fora um adorador meu e ele queria ir denunciar-me por ofensa à religião. Sou capaz de os excitar a todos. Satisfazer cada um em particular é que é superior às minhas forças. Mas eu, homem muito querido, belo, cruel, que é que lhes fiz? Nada, e essa é que é a questão. Como anseio verme livre desta posição de isolamento partilhada por tantos! Se fiz prisioneiros que não me querem mais largar, de bom grado renunciaria a eles, mas então é que me torno mesmo em vítima das minhas presas. Será que deixar em paz não dá paz?

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Será que a lei erótica de que a distância aproxima não fará uma única excepção   no   meu   caso? Cometa   eu  suicídio  e  ei-los  mortos  a  tiro! A perversidade ou é um estado ou uma capacidade. Será mais fácil a sociedade deixar em paz o estado do que respeitar a capacidade. Na senda do progresso, ela há-de chegar ao ponto de também aqui dar primazia ao nascimento sobre o mérito. Mas pelo menos a norma passará a já só se indignar com o génio, que hoje é forçado a partilhar essa honra com o monstro. Uma cabeça perversa é capaz de compensar uma mulher pelos excessos de que dez corpos saudáveis não foram capazes. O amor e a arte não abraçam o que é belo, mas o que justa- mente com esse abraço se torna belo. O ser criativo vê Helena em toda a mulher. Não contou foi com o analista, que é quem o vai esclarecer sobre o que verdadeiramente deve ver em Helena.

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A cultura só precisa de uma quantidade determinada de beleza. Faz sozinha tudo o que precisa, tem a sua cosmética e não precisa de pedir mais nada emprestado ao cosmos. O destino conduz a mulher ao primeiro. O acaso, ao melhor. A escolha própria, ao primeiro que apareça. Muitas coisas que à mesa revelam mau gosto são na cama um condimento. E vice-versa. A maior parte dos relacionamentos são infelizes como são pelo simples motivo de não se proceder a esta separação entre cama e mesa. Rosto corado, coração a bater, sentimentos de culpa: são as consequências de não se ter pecado. O verdadeiro ciúme não se limita a exigir fidelidade, quer também a prova dela na forma de uma situação imaginável. O ciumento não se contenta com o facto de a amada lhe não ser infiel. Precisamente aquilo que ela não faz é que não lhe dá sossego. Mas como não pode haver provas de uma omissão e o ciumento insiste numa prova, acaba por se satisfazer também com a prova da infidelidade.

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Na opinião das mulheres, o ciúme é sempre injustificado. É que ou ele é justificado ou injustificado. Se é injustificado, é porque não é justificado. Mas se é justificado, então não é justificado. Ora muito bem. E assim nada mais resta senão o desejo de alguma vez conseguir apanhar um momento em que ele seja justificado! No amor, o anfitrião é o que deixa o outro passar primeiro. Mas que escravo ele é! Ela faz dele tudo o que ele quer. Ele obrigou-a a fazer todas as vontades dela. Nietzsche terá afirmado: «O amor transforma as mulheres inteiramente naquilo que são na imaginação dos homens por quem são amadas.» Por mim, antes preferirira confiar na imaginação. Uma mulher nem tem que ser da minha opinião, quanto mais da dela!

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Uma mulher deve ter um aspecto tão inteligente que a sua estupidez represente uma agradável surpresa. O génio é a livre posse de todas as qualidade que, tomadas isoladamente, dominam um aleijado. A sensualidade não tem consciência de nada do que fez. A histeria lembra-se de tudo o que não fez. As prostitutas da rua comportam-se tão mal que é possível tirar daí ilações quanto à maneira como os cidadãos respeitáveis se comportam em  casa. Uma dama brilha como o Sol, é certo, mas não deve ser confundida com ele, desde logo porque o Sol vai com tanta gente num só dia, enquanto a dama foi criada por Deus para dar calor a um único director bancário, o que já lhe dá tanto que fazer que não deseja mais nada, pois sabe que isso reverte em seu proveito, até ao dia em que entre nela o frio e também o director bancário sinta vontade de se pôr ao Sol, que vai com tanta gente num só dia, amen.

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Há mulheres que trazem chapadas na cara mais mentiras do que nela conseguem caber: a mentira do sexo, da moral, da raça, da sociedade, do Estado, da cidade e, se são vienenses, também do bairro e da rua. Com as calculistas do amor, é difícil chegar-se a um resultado. Elas ou receiam que um mais um seja igual a zero ou esperam que seja igual a três. Há mulheres que são tão orgulhosas que nem por desprezo se sentem atraídas por um homem. Ele cometeu a imprudência de lhe ir afastando as pedras do caminho. Acabou por levar um pontapé. Os cães saltavam em redor da sua bela dona como os pensa- mentos dele e deitavam-se-lhe aos pés como os desejos dele. Ela disse que vivia assim para aí. Para aí é que eu gostava de ir com ela!

II. Arte

Quem se sente ofendido por uma sátira comporta-se como o amante de acaso que aparece no dia seguinte a reclamar a sua personalidade. Há muito que um outro exemplo tomou o seu lugar e, onde já um novo esquecimento começa, lá aparece aquele com a recordação, a encher-se de ciúmes. Ainda acaba por comprometer a mulher. É a todos que eu ofendo, não a pessoas em particular. E no que toca ao amor, todos devem ficar enraivecidos, e não os que foram enganados.

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Os meus ataques são tão impopulares que só os malandros que aí hão-de vir me compreenderão. A compreensão da minha obra é dificultada pela familiaridade com os meus temas. Eles não percebem que o que aí está tem primeiro de ser inventado e que vale a pena inventá-lo. E também não percebem que um autor satírico para quem as personagens existem como se ele as tivesse inventado precisa de mais energia do que aquele que inventa as personagens como se elas  existissem. As pessoas conhecem os meus temas pessoalmente. Por isso é que acham que a minha arte não é grande coisa. Através da minha sátira, torno gente pequena tão grande que se transforma em digno objecto da minha sátira e já ninguém mais me pode censurar. Eu sou já tão popular que quem me insulta se torna mais popular do que  eu.

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Tanto os que censuram como os que louvam são testemunhas indesejáveis. Os que estão na margem metem os pés na água, para provar que ela está suja. Os que estão na margem tiram uma mão cheia para pôr em evidência a beleza do elemento. O facto de o leitor perguntar ao autor que ideia foi a sua nada prova contra a ideia. Mas esta de certeza que é boa se o autor já não sabe e pergunta ao leitor que ideia foi a sua. A lógica é inimiga da arte. Mas a arte não pode ser inimiga da lógica. A arte deve ter gostado uma vez do sabor da lógica e tê-la digerido completamente. Para afirmar que dois e dois são cinco, é preciso saber que dois e dois são quatro. Mas quem só sabe isto vai dizer que aquilo está errado. Eu só domino a linguagem dos outros. A minha faz de mim o que quer. É só quando estou perto do fim que começo a ter dúvidas, e então preciso de alguém a quem responda a todas as minhas perguntas.

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Não há linguagem em que seja tão difícil entendermonos como na linguagem. Quando já não consigo continuar, é porque fui de encontro à parede da linguagem. Retiro-me então com a cabeça a sangrar. E gostaria de seguir em frente. O meu embaraço vai crescendo à medida que o que escrevo se aproxima da forma definitiva. Quanto mais me aproximo de uma palavra, tanto mais ela sangra, como o cadáver ante o assassino. Não me poupo a este ordálio e cubro as margens de uma prova tipográfíca, talvez precedida por quinze outras corrigidas despreocupadamente, com sinais que são como chagas. Tenho sempre pelo menos dois caminhos e o melhor seria seguir por ambos, e por todos. Ainda um dia hei-de resolverme a apresentar a frase em versões diferentes, para benefício do leitor, que assim será forçado a ler uma frase várias vezes, e para afastar o mais possível aqueles que só andam à cata de opiniões. Enquanto não chega esse dia, sou obrigado a deixar sempre a responsabilidade pela escolha do melhor de todos os bons caminhos àquele a quem consulto. A sua decisão mecânica ser-me-ia bastante, mas como eu poderia ajudá-lo a sair de uma situação parecida muito melhor do que ele pode ajudar-me a mim, não deixo que as coisas sejam assim tão simples para nós

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ambos e precipito-o tão fundo no abismo das minhas dúvidas que, pelo estado em que ele fica, chego a uma certeza, o salvo e assim me salvo a mim. O jornalista tem a palavra à mão. Eu frequentemente me vejo atrapalhado. Se ao menos tivesse um jornalista à mão! Tirava-lhe a palavra da mão e dava-lhe em troca uma palmada na mão. O substantivo é a cabeça, o verbo é o pé, o adjectivo são as mãos. Os jornalistas escrevem com as mãos. Lá por ter sucesso, não é razão para um artista se sentir ca- bisbaixo. Só há razão para desesperar de si próprio quando um trapaceiro fracassa. A literatura de hoje são receitas escritas pelos doentes. A maior parte dos críticos escreve críticas que são dos auto- res sobre os quais eles escrevem críticas. Isso ainda não seria o pior. Mas a maior parte dos autores escreve então também as obras que são dos críticos que escrevem críticas sobre eles.

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A sujidade ainda lhe dava consistência. Que restou dele quando se lavou? Uma esponja. Há talentos que mantêm a precocidade até uma idade avançada. Um poema só é bom até sabermos quem foi que o escreveu. Este autor é tão profundo que eu, enquanto leitor, demorei muito tempo a atingir-lhe a superfície. O futuro dos futuristas é um pretérito perfeito. O cientista não traz nada de novo, Só inventa o que tem utilidade. O artista descobre o que é inútil. Traz o novo. A relação do esteta com a beleza é como a do pornográfico com o amor e a do político com a vida.

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O esteta é o verdadeiro político realista do reino da beleza. Só é artista aquele que é capaz de transformar a solução num enigma. Toda a arte me parece ser apenas arte para o presente se não for contra o presente. Se mata o tempo – não o mata! O verdadeiro inimigo do nosso tempo é a linguagem. Ela vive em entendimento directo com o espírito que o tempo faz revoltar-se. É aqui que pode gerar-se a conspiração que a arte é. A complacência que rouba as palavras à linguagem goza do favor do tempo. A arte só pode nascer da recusa. Só do grito, não do apaziguamento. A arte, chamada como conforto, abandona com uma maldição o quarto onde a humanidade agoniza. Faz da desesperança o caminho para a realização plena.

III. Época

Os médicos ainda não sabem se é mais humano prolongar o sofrimento de uma pessoa moribunda ou abreviá-lo. Mas eu sei que o mais humano é abreviar o sofrimento da humanidade moribunda. Um dos melhores venenos é o sentimento de insegurança sexual. Ele é retirado da substância que provoca a doença. De que doença sofrem eles então? Da doença de terem vergonha da sua saúde. A humanidade morre secretamente daquilo de que se proíbe de viver: do sexo. É neste ponto que pode dar-se uma ajuda, acrescentando àquilo que eles fazem como um roubo e a que depois chamam amor mais alguns quintais daquela noção de haver testemunhas que desmancha o prazer. Um pesadelo, mais violento do que o fardo do pecado. E este veneno fará empalidecer os homens tanto mais certamente

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quanto, para as concubinas, é uma arma de beleza. Não é admissível continuar a deixar em sossego a paz de burgueses desnaturados; e mil Casanovas não passam de aprendizes, comparados com o fantasma que uma ideia põe atrás da cortina. Será que tal representação é pior do que aquela com que o espectáculo do comprazimento nos atormenta? Será lícito ainda haver momentos em que um usurário fica inconsciente? Já não há nenhum meio com que se possa deitar a mão à razão da sociedade, que hoje em dia possui a vida. Se se quer atingir os homens de hoje, é preciso esperar que se tornem irresponsáveis. Não na embriaguez: pois que teriam eles a recear nesse caso, e, se pressentissem perigo, tornar-se-iam abstémios. Não no sono: porque ser irresponsáveis é coisa que nem em sonhos lhes ocorre. Mas às vezes estão deitados na cama sem se dar conta de nada. Aí é que hão-de ficar a saber como é! A técnica é um criado que faz tanto barulho a arrumar a sala ao lado que os patrões não conseguem fazer música. Aquilo que viu a luz da imprensa num único dia dos últimos cinquenta anos teve mais poder contra a cultura do que as obras completas de Goethe em favor desta.

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Preto no branco: assim se apresenta agora a mentira. O retrato mais pungente da civilização: um leão habituado ao cativeiro e que, restituído à vida selvagem, anda ali de cá para lá como por detrás das grades. Não há gratidão para com a técnica. Só inventando-a. Adolf Loos e eu, ele, literalmente, eu, com os meios da lin- guagem, nada mais fizemos do que mostrar que entre uma urna e um bacio há uma diferença e que só nessa diferença a cultura encontra um espaço próprio. Os outros, porém, os positivos, dividem-se entre os que usam a urna como bacio e os que usam o bacio como urna. «O senhor é Karl Kraus, não é?», perguntou-me um compa- nheiro de comboio que sobrestimara a minha incapacidade de me defender. Eu disse: «Não.» Com o que, na verdade, admiti que sim. É que, se eu tivesse sido um outro, ter-me-ia mesmo deixado enredar numa conversa com aquele idiota.

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Quando o senhor Shaw ataca Shakespeare, age em legítima defesa. À porta do santuário onde um artista sonha vêem-se agora umas botas sujas. Pertencem ao psicólogo, que se sente lá dentro como em sua casa. Toda a ciência exacta assenta na ideia certíssima de que um ciclope só tem um olho, enquanto um professor da univer- sidade tem dois. As pessoas desta época vivem da segunda mão para a boca. Há muitos que partilham das minhas ideias. Eu é que não as partilho com eles. Se alguém perfilha todas as minhas ideias, isso não quer dizer necessariamente que a adição resulte num todo; mesmo que eu próprio não tivesse nenhuma das minhas ideias, ainda seria mais do que um outro que perfilha todas as minhas ideias.

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Uma ciência que sabe tão pouco do sexo como da arte anda a espalhar o boato de que a sexualidade do artista é «sublimada» na obra de arte. Linda vocação da arte, a de poupar a ida ao bordel! Nesse caso, seria muito mais refinada a vocação do bordel de poupar a sublimação através de uma obra de arte. Como é dúbio o efeito sobre o receptor do método utilizado pelos artistas, já para abstrair da sua prolixidade, é o que prova precisamente o caso do compositor que aquela ciência se compraz em apresentar como exemplo de uma sublimação bem conseguida. Os ouvintes da sua música sentem-se de tal modo estimulados pela sexualidade que nela está sublimada que não lhes resta muitas vezes outro caminho senão aquele a que o artista se esquivou, a não ser que eles próprios sejam capazes de proceder a tempo a uma sublimação. Se o artista tivesse escolhido o caminho mais simples, os ouvintes teriam sido poupados a este efeito. Eis como sucede que, com o mau hábito dos artistas de sublimar a sexualidade, esta consiga precisamente libertar-se e um assunto que, por todos os motivos, deveria permanecer um assunto privado do artista degenere num escândalo público. Após madura reflexão, antes queria percorrer o caminho de regresso à infância com Jean Paul do que com S. Freud.

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O psicanalista é um confessor que está cheio de vontade de ouvir contar também os pecados dos pais. A psicologia aeronave.

é

um

autocarro

a

acompanhar

uma

Muitas vezes me dizem que algumas coisas do que encontrei sem procurar devem ser verdade, porque também F. as procurou e encontrou. Mas uma tal verdade seria um cri- tério valorativo infeliz. É que a meta só é importante para quem procura. Para quem encontra, o importante é o caminho. Os dois não chegam a encontrar-se. Um anda mais depressa do que o outro chega à meta. Alguma coisa lhes é comum. Mas o profeta está lá sempre, anunciando o cavaleiro do Apocalipse. Psicanálise: um coelho engolido pela boa constrictor só queria ver como é que ela era por dentro. A psicanálise é a doença mental por cuja terapia se toma. Revelação no final de um tratamento psicanalítico: Mas eu não posso curá-lo! Pois se o senhor está doente!

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A minha consciência tem um criado que vela sem descanso para que nenhum intruso transponha o limiar. Os psicanalistas não são bem-vindos, mesmo para aquém deste. Se ele apanha algum a dirigir-se para o arquivo, levao para o salão, onde, à luz da sua lanterna de larápio, lhe faço ver pessoalmente o que ele é. Há muitos que têm já os meus atributos. É o que permite distingui-los de mim. Os literatos que agora vêm ao mundo são menos consistentes do que os boatos costumavam ser noutros tempos. Ainda conheci boatos em que havia uma ponta de verdade. Naquilo que hoje fala à humanidade através de máquinas de escrever não se pode ter o mínimo de confiança. Dantes, a doença ia ao médico. Agora, como este está doente, ela besunta-se com tinta de imprensa. Não é a brutalidade, é a fraqueza que me assusta.

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Não me custa admitir que sofro de gota aos que desconfiam da minha saúde. Mas que então também sou capaz  de pressentir a tempestade próxima, isso não consinto que ponham em dúvida! O erudito fica muitas vezes cansado com tudo aquilo que, mais uma vez, não teve que pensar. Quando um linguareiro chega ao fim do dia sem ter arranjado quem quisesse ouvi-lo, fica rouco. A cultura é uma muleta com que o coxo bate no são para mostrar que também a ele não faltam as forças. Quando pela primeira vez ouvi falar em livrespensadores, supus que fossem redactores que, tal como os bilhetes de te- atro, recebem também as ideias grátis, sem terem que fazer mais do que apresentar o pedido à direcção. O anti-semitismo é aquela mentalidade que apregoa e toma a sério cerca da décima parte das censuras que o humor da Bolsa tem sempre prontas contra o seu próprio sangue.

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Os Judeus vivem numa endogamia do humor. Podem troçar entre si uns dos outros. Mas ai deles se isso acaba em divergências! O historiador nem sempre é um profeta virado para o passado, mas o jornalista é sempre alguém que depois tinha sabido de tudo antes. Se a arte está durante o dia ao serviço do comerciante, a noite da diversão deste é-lhe dedicada. Isto é exigir muito da arte, mas ela e o comerciante conseguem. A aptidão para o serviço militar já hoje deve ter sido subs- tituída em diversas nações pela aptidão para a leitura dos comunicados de guerra. A tinta de impressão ainda nunca foi utilizada para os fins para que realmente serve. O lugar dela não é o cérebro, mas a garganta daqueles que não sabem utilizá-la.

IV.   Viena

O homem apresenta em desabono do cão o facto de este andar atrás da porcaria. O que fala ainda mais em desfavor dele é o facto de andar atrás do homem. Seja como for, o cão demonstra a sua superioridade por não andar sempre a correr para a opereta da Casa das Três Meninas. A convicção austríaca de que «não há-de ser nada» chega ao extremo da determinação  do  homem  que  tem  um  seguro  contra acidentes e por isso arranja maneira de partir uma perna.

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À força de se ridicularizar politicamente, a Áustria conseguiu que o grande mundo começasse a prestar-lhe atenção e deixasse finalmente de a confundir com a Austrália. Tenho pena dos Sísifos que, nos infernos da nossa vida pública, estão apostados em erguer a pedra do número de turistas e se alegram quando, ao rolar para baixo, ela pelo menos esmaga os estrangeirismos. Cada vienense está sozinho no universo oferecendo-se à contemplação. Em Berlim, só o Reinhardt é que é uma individualidade e os Berlinenses são seus comparsas. E mesmo que eu vivesse dez anos em Berlim, não seria capaz de fazer tilintar as pestanas de quem se cruza comigo na rua, ao passo que em Viena logo ao primeiro dia se pode tocar piano nelas. Em Viena, a segurança é já uma garantia: o cocheiro não atropela o transeunte porque o conhece pessoalmente. Muito embora o cocheiro conheça o transeunte pessoalmente, pode sempre acontecer alguma coisa. É bom não esquecer que a alegria do reencontro é capaz de o perturbar.

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«O Vienense nunca se deixa ir ao fundo.» Esperança ou ameaça? Talvez apenas uma expressão cortês para «erva ruim sempre dura». Haverá situação mais indefesa do que a de um lugar mar- cado no teatro? O que é que se pode fazer, quando à nossa frente está sentado alguém que nos cumprimenta constantemente, na justa suposição   de   que   não  deixaremos   de  reparar  nele? Está bem, não se retribui o cumprimento. Mas ele tenta outra vez no intervalo seguinte   e, mesmo durante   a   representação, passa   o   tempo   a   voltar-se   para   trás. A   razão   por que faz tantos cumprimentos é para recuperar os que não obteve nos últimos vinte anos. Como eu gosto de ler numa sala às escuras para um público de gente assim. Mas estar sentado  no  meio  deles – dá-me logo o nervoso  da estreia. Há pessoas cujo cumprimento eu devolvo, mas é só mesmo para lhes devolver o cumprimento.

V. 1915

Agora, todas as linhas de pensamento são trincheiras. E as minhas, catacumbas. Dá a impressão de que um aprendiz de feiticeiro se aproveitou da ausência do mestre. Mas em vez de água, há sangue. Há uma ideia que um dia vai desencadear a verdadeira guerra mundial: que Deus não criou o ser humano como consumidor e produtor. Que os meios de subsistência não são os fins da existência. Que o estômago não deve sobrepor-se à cabeça. Que a vida não se funda na exclusividade dos interesses do lucro. Que o ser humano foi posto no tempo para ter tempo e não para chegar com as pernas a algum lugar mais depressa do que com o coração.

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Esta guerra funciona a partir das condições de decadência da nossa época. É a autêntica realização do status quo. O desenvolvimento técnico vai deixar um único problema por resolver: a debilidade da natureza humana. Numa civilização que nós sabemos, deve existir também para a alma uma espécie de sopa instantânea que basta deitar em água a ferver para obter uma comida saborosa e barata. Entre a linguagem e a guerra pode verificar-se aproximadamente a seguinte relação: o facto de a língua que mais cristalizou na frase feita e no artigo de armazém declarar também a propensão e a disposição para substituir a substância por um sucedâneo da inflexão de voz, para achar convictamente irrepreensível em si própria aquilo que nos outros só é motivo de crítica, para denunciar indignadamente aquilo que também se tem o hábito de fazer, para prender toda a dúvida num emaranhado de frases e para afastar sem custo como um ataque inimigo toda a suspeita de que nem tudo está em ordem. Eis a eminente qualidade de uma língua que hoje se parece com aquele produto acabado cujo escoamento constitiu o objectivo na vida daqueles que a falam; afastar sem custo como um ataque inimigo toda a suspeita de que nem tudo está em ordem.

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Eis a eminente qualidade de uma língua que hoje se parece com aquele produto acabado cujo escoamento constitiu o objectivo na vida daqueles que a falam; ela brilha como uma auréola e já não tem senão a alma simples do honrado burguês que nem por sombras tinha tempo para cometer uma acção reprovável, porque a sua vida só foi dedicada e gasta no negócio e, se não foi bastante, fica uma conta a descoberto. Certa vez, por entre o barulho de uma rua de trânsito louco, ouvi este pregão: «Bar Cavaleiro da Rosa – o cantinho mais conchegado do mundo!». Perante experiências destas, a posição mais favorável do ponto de vista estratégico de pouco sossego pode servir. O número de exemplares do Zaratustra que os seus soldados trazem na mochila dificilmente poderá ser um critério apropriado para se avaliar da cultura de um povo. Mais apropriada é a circunstância de se atribuir aos soldados mais exemplares do Zaratustra do que os que são efectivamente utilizados em campanha e de os que em casa vão lendo o seu Zaratustra e o seu jornal gostarem de ouvir este género de coisas.

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É com razão que, nas reflexões sobre a cultura e a guerra, constantemente se ouve dizer que os outros é que são os utilitaristas. Esta concepção provém do idealismo alemão, que cercou de uma aura mesmo os géneros alimentícios e os laxantes. Eu posso provar que se trata mesmo do povo dos poetas e dos filósofos. Possuo um rolo de papel higiénico publicado em Berlim e que contém em cada folha uma citação de um clássico apropriada à situação. Tudo o que é alegado falsamente contra uma condução bárbara da guerra tem por alvo, sem que o ódio disso se dê conta, uma condução bárbara da paz. Os jornalistas alemães, para rebater a acusação de que os soldados alemães decepam os pés às crianças, alegam que foi deste povo que saíram Lutero, Beethoven e Kant. Mas ele está pelo menos tão inocente disto como das barbaridades que lhe imputam e seria mais eficaz invocar contra essas acusações os espíritos que a Alemanha ainda há-de vir a gerar. Se já chegámos ao ponto de a pátria não exigir dos seus génios serviços diferentes do que os que exige aos seus lenhadores e se, por um acaso funesto, aqueles podem ser dispensados da oportunidade de lhe prestarem voluntariamente outros,

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então por certo que não surgirá mais nenhum. Os feitos espirituais de Lutero, Beethoven e Kant não têm, apesar de tudo o que a cultura alemã deles sabe e do que a ideologia alemã lhes acrescenta, nenhuma relação com um estado de que aqueles ad personam hoje em dia talvez se livrassem apenas por causa da profissão eclesiástica, da surdez e de uma deformação da coluna. O soldado prussiano é mais culto do que o cossaco; mas este não está tão longe de Dostoievski como aquele de Goethe. Os Alemães designam-se também a si próprios como o povo de Schopenhauer, ao passo que Schopenhauer era suficientemente modesto para não se considerar o filósofo dos Alemães. Há um critério cultural que procura livrar-se com todas as forças dos piolhos que infestam a peliça. Há outro que tolera os piolhos e acha que mesmo assim a peliça está em estado de ser usada. E há, finalmente, um último que acha que na peliça o principal são os piolhos e por isso os deixa dispor livremente dela.

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À invenção da pólvora e à da tinta de impressão deveria atribuir-se sobretudo o alcance para a humanidade de terem sido simultâneas. Como é que o mundo é governado e mandado para a guerra? Os diplomatas mentem aos jornalistas e acreditam na mentira ao lê-la. Mas que barafunda mitológica é esta? Desde quando é Marte o deus do comércio e Mercúrio o deus da guerra? Alguém anunciou: «A ordem vai ser executada imediatamente». O que queria dizer era: A batalha vai ser fornecida imediatamente. Será que a técnica acabará por não ser capaz de produzir novos emblemas? Ficará reduzida a ir buscá-los aos velhos ideais e instalá-los sobre a nova causa? Esta época ainda prefere uma informação segura a uma morte heróica incerta. Por isso é que o jornal que, como nenhum outro, fala a linguagem da época se exprimiu assim:

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«Iminente morte heróica dos soldados alemães na China». Que a «morte heróica» pudesse um dia vir a tornar-se uma coluna do jornal, eis o que nem em sonhos teria passado pela cabeça daqueles heróis cuja memória dependia da tradição oral ou, na melhor das hipóteses, de um poema épico. A nossa época reclama ainda os velhos emblemas para o novo conteúdo. «Risco maquinal» seria demasiado deslavado para ela. E, no entanto, neste caso sobressairia sempre pelo menos a participação individual no destino comum, sobressairia sempre e sempre da coluna do jornal e da mecânica perante a nossa maneira de sentir. Mas nenhuma morte suporta menos a redução a chavão do que a morte heróica, porque já em si resiste à ideia de uma frequência epidémica. Como é sórdido que os louros tenham agora de crescer lá onde fervilham os anúncios publicitários! A morte heróica, seja ela apenas o acaso de uma granada de mor- teiro, que é causa de dor para os entes queridos, seja sim- plesmente a morte, não é ela profanada por aquela lista em que dantes surgia com a mesma frequência a concessão do título de conselheiro imperial? E não será a complacência perante estas coisas tanto um sinal da grande época como a prática delas? Não seria aqui um espaço em branco a pedra tumular perante a qual o leitor deveria descobrir-se?

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Noutros tempos, a guerra era um torneio da minoria e todos os exemplos tinham peso. Hoje em dia, é um risco mecânico do conjunto da comunidade e todos os exemplos vêm no jornal. A quantidade não é uma ideia. Mas que ela comeu esta, é. Cavalheiro de respeito pretende quarto independente onde se não ouça o pregão «Edição especiaaaal!» «Mas então fica impassível, com tantos que agora morrem?» «Choro os sobreviventes, e esses são mais.» «Esta   guerra   tem   servido...» «Pois, pois, esta  guerra   tem    servido!» Posso compreender que alguém sacrifique algodão pela sua vida. Mas o inverso? Os povos que ainda adoram feitiços jamais descerão ao ponto de supor que a mercadoria tem alma.

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Há regiões onde pelo menos se deixa os ideais em paz quando a exportação está em perigo e onde se fala dos negócios com tanta honestidade que não se lhes chamaria pátria e, à cautela, se renuncia desde logo a ter na própria língua uma palavra para designar esta. A um país assim chamamos nós, idealistas da exportação, um «povo de comerciantes». A exigência de um lugar ao sol é conhecida. O que é menos conhecido é que este se põe mal aquele foi conquistado. Eu não gosto das condições de vida no estrangeiro. Só para lá fui várias vezes para não desaprender a língua  alemã. O caixeiro não conhece agora maior ambição do que não saber francês nem inglês. Mas continua a dominar o alemão. Mas que onda de cultura! Há editores que têm a cruz de ferro, soldados que colaboram na página literária e generais que são feitos doutores. Os escritores alemães têm o talento de não serem capazes de manter a boca fechada.

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Um poeta alemão chamou ao estrépito das metralhadoras «música das esferas» e um austríaco observou que «as ervas estão todas em sentido». Se os poetas se mostram tão obedientes, o cosmos e a natureza vão começar a amotinar-se. Os poetas alemães são gente versátil. Há agora uma trombeta de Jericó diante de todas as muralhas, há agora, de manhã e à tardinha, uma cadência no mundo que jamais desaparecerá dos nossos ouvidos. Qualquer coisa como isto: O   nariz   de   Cleópatra   era   um dos   seus traços mais belos. Ontem foi noticiado que   a   Polónia não está ainda perdida. Hoje chega a notícia de que a Polónia não está ainda perdida. Do idêntico teor destas notícias mesmo o simples leigo poderá extrair a importante conclusão de que a Polónia não está ainda perdida. Se compararmos a notícia de ontem com a de hoje, fácil será deduzir que a Polónia, de que já há muito se sabia não estar ainda perdida, não está ainda perdida. É sobretudo a palavrinha «ainda» que nos chama aqui a atenção. Devora-se a notícia literalmente com os olhos e não é difícil imaginar como ela surgiu e as impressões são vivas e a imaginação é estimulada e os sentimentos inflamam-se e as esperanças renascem e talvez neste mesmo momento seja já verdade e talvez já se não possa esconder por mais

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tempo e talvez eles se agitem já inquietos na cama quando lhes forem dizer que a Polónia não está ainda perdida. Sempre gostávamos de ver a cara do presidente Poincaré quando receber esta notícia. Já na segunda-feira extraímos do comunicado oficial que anunciava em termos lacónicos que a Polónia não está ainda perdida a conclusão de que há possibilidades de que ela não esteja ainda perdida. É o que se pode deduzir também do comunicado de ontem e também do comunicado de hoje, as mais elementares leis do raciocínio permitem afirmá-lo. Os melhores especialistas militares dizem que a situação é boa, o nosso correspondente de guerra comunica que o moral é muito bom. Esse é um importante factor da situação. Hoje podemos verificar que estas deduções e impressões estão em consonância com as crónicas do nosso correspondente de guerra. Bebemos esta confiança com o próprio ar que respiramos e ela provém da íntima convicção do instinto. Quem olhar para o mapa e, com base nos comunicados oficiais, se transpuser em espírito para a relação entre as várias batalhas e combates, terá, de acordo com as notícias chegadas, de chegar à conclusão de que, como resulta também do comunicado, é de supor que o nosso exército com toda a certeza que repeliu o inimigo. A nossa leal homenagem à pátria e felicitações aos valentes sol- dados pelo seu feito. Não gostaríamos de dar largas ao sentimento e não é nosso hábito embandeirar em arco, antes de a importante notícia de que a Polónia não está

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ainda perdida ser confirmada pelos próprios acontecimentos em  todos os pormenores e em todos os detalhes. Mas os acontecimentos não podem deixar de reflectir-se desde já na disposição geral de espírito e a impressão causada é necessariamente grande e é natural que se propague a dúvida e já não hão-de ir longe e já os muros deixam passar água. Quem não gostaria de passear hoje pelos boulevards de Paris e espreitar no Palácio do Eliseu, onde se instalou a angústia. Não pode ser que a corrupção e a petulância se possam ainda afirmar, lá onde um simples olhar para o mapa basta para suscitar ponderação e remorso e não pode deixar de impor-se o reconhecimento de que errámos. O velho Belisário era uma pessoa decente. Talleyrand costumava dizer à mesa que o estilo é o homem, e ao chegar esta notícia o pavor será geral, e talvez eles reconheçam como foi grande a sua soberba, uma vez que a maldade tenha produzido os seus frutos e que eles tenham envenenado as ilusões e fustigado as disposições de espírito e acirrado as paixões. Aniquilarnos quiseram, quiseram destruir os frutos do talento e à maldade não faltou engenho para causticar e armar ciladas e provocar com quezílias e atormentar com chacotas. A família Brodsky é uma das mais ricas de Kiev. Ninguém pode saber hoje o que se oculta atrás do véu do futuro, do qual Lady Hamilton costumava dizer que até ao lavar dos cestos ainda é vindima. Hoje chegou a notícia de que a Polónia não está ainda perdida. Endereça-

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çamos ao exército as nossas saudações. Quando ouvirmos que a Polónia, que já superou tantas perdas, não está ainda perdida, haverá de novo alegria nos nossos corações e para trás terão ficado os dias de estéril cogitação. Quando o lacónico comunicado do Estado-Maior que sondamos com o olhar não evita uma expressão tão promissora, antes sugere em poucas palavras o que fala aos corações, então podemos supor o que isso significa e também o homem simples da rua pode imaginar sem custo, ao ouvir que a Polónia não está ainda perdida, que existe efectivamente a possibilidade de ela não estar ainda perdida. A fantasia fica extasiada só de imaginar como isso se terá passado e vão começar dias alegres e a esperança revive e de novo o ar se ilumina à nossa volta. A imperatriz Catarina escreveu no seu diário: como é bom viver! A última notícia é muito importante. A Polónia não está ainda perdida. «Devido aos acontecimentos bélicos, lamentamos ter de diminuir provisoriamente o nosso número de páginas. Iremos, porém, esforçar-nos, uma vez restabelecidas as condições normais, por indemnizar os nossos assinantes publicando números maiores». Promessasda Österreichische Rundschau. Como se vê, há situações que podem fazer o mais impenitente pacifista reflectir sobre o valor da guerra com menos preconceitos.

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Os mais falsos argumentos podem demonstrar um ódio correcto. Vae victoribus! O que é começado por mor do frequentemente em prejuízo do mundo.

Estado

termina

A efervescência espiritual da retaguarda é o pó das ruas que a vassoura mecânica faz levantar-se para que volte a pousar inalterado no chão. O mal nunca prospera melhor do que quando lhe põem um ideal à frente. É belo morrer por uma ideia. Quando não se trata precisamente da ideia da qual há quem viva e pela qual há quem morra. O herói é alguém que está sozinho contra muitos. Na nova guerra, quem está predestinado para esta posição é o piloto bombardeiro, que até está sozinho por cima de muitos.

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Também há fotografias que mostram a guerra de um lado mais simpático. Os coleccionadores de documentos de humanidade não deveriam deixar escapar isto: «Cena na Bucovina libertada: uma camponesa romena dá lume a um correspondente de guerra.» Seja como for, o soldado regressado não irá reintegrar-se facilmente na vida civil. Pelo contrário, o que eu julgo é que ele invadirá a retaguarda e é lá que irá dar início à guerra. Apossar-se-á pela força dos êxitos que lhe forem negados e, comparada com a paz que se irá desencadear, a guerra terá sido uma brincadeira de criança. Deus nos proteja da ofensiva que estará então iminente! Uma actividade terrível, que nenhuma ordem de comando poderá já refrear, lançará mão, em todas as circunstâncias da vida, das armas e dos prazeres e o mundo irá ver mais mortes e doenças do que a guerra alguma vez dele exigiu. Uma mulher seis semanas nas trincheiras? Se ela não tivesse também sangrado pelo menos uma vez durante esse tempo, seria caso para considerar a coisa pouco natural. Os anos oitenta trouxeram toda a sorte de arrebiques. O símbolo da vida era para eles o desporto hípico e era com as marcas deste que se enfeitavam todos os objectos de uso corrente.

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Não havia tinteiro que não tivesse a sua sela ou o seu boné de jóquei, não havia candeeiro cuja base não fosse uma ferradura. Mas o jogo com que se ornamentava o que era sério era pelo menos tirado do jogo e não das coisas sérias. A idade de ferro procede de modo diferente. Não é nem por sombras suficientemente séria para dispensar o ornamento; mas não guarnece o que é sério com o frívolo, mas sim o que é frívolo com o que é sério. Seria, apesar de tudo, mais honesto intelectualmente decorar um morteiro do que dar a um objecto de adorno a forma de morteiro. Quer dizer que os anos oitenta sempre eram melhores  afinal, embora fossem apenas a idade de ferradura. Se os contabilistas se põem a fazer guerras, deviam calcular também as probabilidades. Há artistas da mentira e engenheiros da mentira. Aqueles são perigosos para a fantasia; estes já antes a esgotaram completamente. Na guerra, a mentira ou é uma embriaguez ou uma ciência. Esta é mais prejudicial para o organismo.

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Eu sei da distância entre o Espírito Santo e os costumes dos selvagens. Um analfabeto de Tombuctu, por exemplo, deve estar consideravelmente mais próximo do espírito da sua língua do que um professor de literatura de Dresden, do espírito da dele. É natural, assim, que um analfabeto de Tombuctu esteja também mais próximo do espírito da língua alemã. As mais bárbaras profanações são mesmo as que são cometidas contra a língua. Há hordas de cossacos que, devastaram o chão por toda a eternidade, e há culturas que se sentem satisfeitas com isso. Só seria uma guerra como deve ser se apenas os inaptos fossem mandados para ela. Neste aspecto há ordem: o desmazelo continua na mesma. Neste aspecto há pontualidade: o desmazelo desculpa-se com o cataclismo mundial. Contam-se em velhas lendas, donde deriva a fidelidade dos Nibelungos, maravilhas sem número. Mas que são elas comparadas com as alianças e contrastes miraculosos, fabulosos, deste presente em carne e sangue? Pois nem sequer ser ainda capaz de

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e não ser capaz senão de telefonar – isto pode certamente constituir dois mundos. Mas será que permite uma ligação espiritual, quando a custo seria possível uma ligação telefónica? São pensáveis dois mundos ombro a ombro, dos quais um tem por essência o caos e só por desmazelo não deixou ainda de existir e o outro não é nada e nada mais do que ordem? O Vienense nunca se deixa ir ao fundo, pelo contrário, há-de sempre ir lá acima e desenrascar-se. Quando da eclosão da guerra, parece que em Paris as coisas se passaram como em Viena à saída de um concerto. A diplomacia é um jogo de xadrez em que os povos levam xeque-mate. A guerra seria uma pena sofrível, se não se tratasse do prosseguimento do delito. A evolução da técnica chegou já à impotência perante a técnica.

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O formato do mundo jamais foi de uma tão gigantesca pequenez. O feito tem apenas a dimensão da notícia, que corre atrás dele com arquejante nitidez. La bourse est la vie. Nada mudou, a não ser, quando muito, que agora não é permitido dizê-lo. Acho bem que proíbam as pessoas serem da opinião daquilo que eu  penso. Alguém estava sentado ao piano, alguns dias depois levou um tiro no coração... Um mutilado passa a arrastar-se, contorcendo a cara em esgares... Como é meigo o olhar daquele que além vai coxeando, como se quisesse dizer ao transeunte apressado: Veio tudo não sei como, por vós eu estava pronto, agora já não sei estar entre vós, à morte, escapei, por favor, como é que se vai dar ao caminho da vida? Estas chamas nunca mais sairão de diante dos meus olhos, este concerto infernal não mais deixará os meus ouvidos?... Duas figuras que não têm cicatrizes, mas fornecimentos a fazer, passam apressadas. Ouve-se a expressão: «O risco da paz».

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Eu vi alguém cuja cara se ia abrindo, cada vez mais larga, até se levantar como uma risonha lua cheia sobre o sanguinário passatempo da Terra. Luas assim eram tantas como as que a guerra já contava. Se tivessem contado ao diabo, que sempre teve uma enorme paixão pela guerra, que um dia haveria homens para quem a continuação desta representa um interesse comercial, que eles nem se dão ao trabalho de disfarçar e cujo produto ainda os ajuda a ocupar um lugar de destaque na sociedade, ele teria dito para irem contar isso à avó dele. Mas depois, quando se tivesse convencido do facto, o inferno teria ficado abrasado de vergonha e ele não teria outro remédio senão reconhecer que toda a vida fora um pobre diabo! Quando se fala de uma guerra de quantidades está aparentemente a aprovar-se a necessidade da guerra enquanto tal, que de qualquer forma sempre resolve por algum tempo o problema da sobrepopulação. Mas este nobre fim não poderia atingir-se sem tantos sofrimentos através da liberalização do aborto? «A moral dominante» – ouço eu dizer esta mesma – «jamais poderia aprovar isso!» Mas eu também nunca tal supus, já que a moral dominante só aprova que as mulheres tenham filhos para que estes sejam feitos em pedaços pelas bombas dos aviões.

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Um franco-atirador é um civil que ataca premeditadamente um homem armado. Um aviador é um homem armado que mata um civil por acaso. Tudo o que acontece acontece para os que o descrevem e para os que não o vivem. Um espião conduzido ao patíbulo é forçado a ir por um caminho mais longo, para que os que foram ao cinema tenham alguma distracção, e tem de fixar ainda outra vez a maquina fotográfica, para que no cinema todos fiquem satisfeitos com a expressão da cara. Guardemos silêncio. Não o descrevamos, nós que vivemos. É uma sombria linha de pensamento a que leva ao patíbulo da humanidade, eu não quereria percorrê-la como o espião desta a caminho da morte. E tenho de fazê-lo, e mostro-lhe a minha cara! Pois a minha experiência angustiante é o horror perante o vácuo que esta indescritível sucessão de acontecimentos encontra nas almas, nas máquinas. Eis o que eu penso: que esta guerra, se não matar os bons, talvez crie uma ilha moral para eles, que também sem ela já o eram. Mas que irá transformar todo o mundo em redor num grande hinterland de falsidade, de tibieza e da mais inumana impiedade, porque o mal, agindo para além dela e através dela, engorda por trás da fachada dos ideais e medra com as vítimas.

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Que nesta guerra, na guerra de hoje, a cultura não se renova, antes se salva do carrasco suicidando-se. Que esta guerra foi mais do que pecado: que foi mentira, mentira diária, de que escorria tinta de impressão como se fosse sangue, alimentando-se mutuamente, ramificando-se, um delta a desaguar no oceano da loucura. Que esta guerra de hoje não é senão uma erupção da paz e que o seu verdadeiro fim não deveria ser a paz, mas a guerra do cosmos contra este planeta raivoso. Que vítimas sem conta tiveram de morrer, não dignas de lástima porque uma vontade alheia as arrastou para o matadouro, mas trágicas, porque tiveram de pagar por uma culpa que não conheciam. Que para alguém que sente em si próprio como uma tortura a injustiça inaudita que mesmo o pior dos mundos inflige a si mesmo, não resta senão uma última missão ética: passar sem compaixão a dormir este inquieto tempo de espera, até que a palavra o salve, ou a impaciência de Deus. «Também o senhor é um optimista, que crê e espera que o mundo vai acabar.» Não, ele segue apenas o seu curso como o meu pesadelo, e quando acordar, tudo terá passado.

VI. Noite fechada

Tenho de procurar outra vez a companhia das pessoas. É que, neste Verão, por entre abelhas e dentes-de-leão, a minha misantropia degenerou terrivelmente. Fugir para a natureza é suspeito. Os glaciares são demasiado grandes para se pensar no meio deles como as pessoas são pequenas. Mas as pessoas são suficientemente pequenas para se pensar no meio delas como os glaciares são grandes. Deve usar-se as pessoas para isto, e não os glaciares para aquilo. O solitário, porém, que precisa dos glaciares para pensar nos glaciares, só numa medida, que não depende dele, está mais avançado do que os seres gregários, que pensam nas pessoas no meio das pessoas. Os glaciares já lá estão. É lá onde eles não estão, porque estão as pessoas, que é preciso criá-los.

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Está tudo muito bem, dizem eles, mas falta-me amor, dizem eles, amor à humanidade. Devem ser terríveis pessimistas, esses que julgam que a colecção existente é a melhor possível! Ou terríveis idiotas, que chamam inimigo das borboletas àquele que, à ideia de uma almirante morta, acha que as borboletas-da-couve não faziam cá falta. Noutros tempos, o martírio era a recompensa do saber. Agora deve passar-se o inverso: o pensamento recompensa o tormento e castiga os atormentadores. Sob os golpes de lança que eles distribuem, nasce o que os tortura! Muitas vezes me pediram para ser imparcial e examinar  as coisas de todos os ângulos. Fi-lo, na esperança de que as coisas talvez pudessem tornar-se melhores por eu as olhar de todos os ângulos. Mas o resultado foi o mesmo. Assim, mantive o hábito de olhar para as coisas de um único ângulo, o que me poupa muito trabalho e muitas desilusões. É que é consolador achar que uma coisa é má e poder dar um preconceito como justificação.

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Eu ouço ruídos que os outros não ouvem e que me interferem com a música das esferas, que   os   outros  também  não  ouvem. A ingratidão muitas vezes é perfeitamente desproporcionada em relação ao favor recebido. Que a música seja apenas uma vaga alusão a ideias que já tenho e gostaria de ter de novo. As palavras de um poeta, o amor de uma mulher – são sempre coisas que acontecem pela primeira vez. Um provérbio só pode nascer num estádio da língua em que ela ainda é capaz de silêncio. As pessoas nem imaginam como esta actividade intelectual é um trabalho de rachador de lenha. Rachar as palavras, antes de vos acendermos o fogo! – A nós próprios? Que ideia tola! Tem-se o fogo, o lume já arde, e só então, só por causa disso, continuar sem descanso a rachar as palavras!

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Eis uma coisa que não consigo digerir: um verso inteiro escrito por meio homem. Uma obra construída sobre a areia movediça de um carácter. Uma fatalidade cruel fez que fosse meu destino ampliar a aparência antes de a fazer desaparecer sob o meu olhar. O génio só pode compensar o defeito de provir de uma família não deixando nenhuma. Um orgulho paterno exorbitante sempre me fez desejar que o fulano tivesse ao menos sentido as dores do parto. O meu inconsciente está muito mais à vontade na consciência de um psicólogo do que a consciência dele no meu inconsciente. Para obter uma autorização de saída de um país em guerra, é necessário um «motivo imperioso». Eu teria dificuldade em não encontrar  nenhum.

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«Mas como é que o senhor pode simpatizar assim com os Ingleses? Nem   sequer   sabe   inglês!» «Pois   não, mas sei alemão!» Há mil canais a dirigir as frases feitas para a consciência do povo. Um soldado ferido, que de certeza nunca tinha lido um livro, nem provavelmente um jornal, dominava apesar disso o tom em que uma consciência tranquila se despede. «Já  posso  morrer  em  paz», disse  ele, «hoje  despachei  catorze!» Não, a alma não ficará com cicatrizes. A bala há-de ter entrado na humanidade por um ouvido e saído pelo outro. A alma foi expropriada pela técnica. Isso tornou-nos fracos e belicosos. Como é que fazemos a guerra? Aplicando as velhas emoções à técnica. Como é que praticamos a psicologia? Aplicando os novos padrões à alma. Admitindo que a coragem é concebível no domínio das confrontações físicas, seria por certo mais fácil concedê-la a quem defronta desarmado um homem armado do que inversamente. Ora, a arma desenvolvida até ao ponto em que o foi faz com que, na guerra moderna, o homem esteja ao mesmo tempo armado e desar-

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mado, na medida em que utiliza uma arma contra a qual está pessoalmente indefeso, cobarde e herói ao mesmo tempo. Neste estádio da evolução, deveria saltar à vista pelo menos a essência orna- mental do sabre, uma arma que mesmo na paz poderia por- ventura ser usada. Assim, talvez um dia um lança-chamas venha a fazer parte do fardamento, se é que o progresso da humanidade vai continuar a estar dependente do engenho do engenheiro. Mas há razão para esperar que a humanidade, se tem a ambição de preservar os instintos brigões, um dia se desarme e procure voltar a fazer a guerra sem os engenheiros. Como os ornamentos e flores de retórica são usados de preferência por uma época a cuja essência repugna o sentido perdido dessas formas, e com tanto mais gosto quanto mais ela se afastou desse sentido, mas como o conteúdo dessa época jamais será capaz de criar novos ornamentos e flores de retórica, um Estado ainda há-de «lançar mão à espada» quando há muito já lhe for hábito corrente lançar mão do gás. Porventura é concebível que uma decisão como esta alguma vez pudesse tomar-se uma expressão corrente? O facto de não ser capaz de criar novas frases feitas, mas deixar o espírito da humanidade num tal estado que não pode passar sem as velhas, deveria lançar uma luz reveladora sobre a técnica. Nesta duplicidade de uma vida transformada e de uma forma de vida anacrónica vive e prospera o mal universal.

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A época não gera frases feitas, mas está cheia delas; e precisamente por isso, pelo conflito insanável consigo própria, lança constantemente a mão à espada. As novas circunstâncias não farão nascer novas frases feitas, mas as velhas frases feitas farão nascer as circunstâncias! «Conquistar o mercado mundial»: por os negociantes assim falarem é que os soldados assim agiram. Desde então fazem-se conquistas, embora não a do mercado mundial. A exigência inimiga da entrega da artilharia alemã é um contra senso. Só faria sentido exigir a entrega da mundivisão alemã, e isso é irrealizável. O que agora mais importância tem é aquilo que agora menos importa: o sangue e o dinheiro. Não, meus valentes, aos directores-gerais não tendes de fazer a saudação regulamentar. Muito embora tenham sido eles a conduzir-vos à guerra. «Pai, pão!» «Meus filhos, a Rússia morre à fome!»

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O censor cortou um passo que tinha por título: Assim vamos vivendo. Eu perguntei se (sem prejuízo da verdade) a autorização seria eventualmente mais fácil se o título fosse: Assim vamos lendo. Mas ele achou, com razão, que era a mesma coisa. A censura e o jornal – como não havia eu de decidir a favor daquela? A censura pode reprimir a verdade durante algum tempo, tirando-lhe a palavra. O jornal reprime a verdade durante muito tempo, dando-lhe palavras. A censura não prejudica nem a verdade nem a palavra; o jornal, ambas. Quem acha que o patriota do outro país é um canalha é, provavelmente, um idiota do seu. É natural que haja em todos os estados especuladores de guerra que, de facto, a única coisa que têm na cabeça é que a guerra seja ganha e que, longe de qualquer desejo de enriquecerem, só com relutância aceitam as imensas perdas humanas, na esperança de assim escaparem a ainda maiores perdas monetárias. A esta convicção abnegada, que lançam duramente ao rosto, não a si próprios, mas uns aos outros, chama-se em todos os estados patriotismo.

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Ter uma terra natal foi coisa que sempre achei louvável. Se, além disso, se tem ainda uma pátria, não é caso propriamente para arrependimentos, mas também não há razão para sentir orgulho, e então comportar-se como se só nós a tivéssemos e os outros não tivessem nenhuma não me parece correcto. Desde o momento em que se passou um chuço para a mão do burguês, ficámos finalmente a saber o que é um herói. À porta de uma repartição militar alemã vi um cartaz onde se destacavam os dizeres: «Libertai os soldados!» Mas o que se queria dizer era que eram precisos civis para serviço de secretaria, de modo a que os soldados ali colocados pudessem partir para a frente de batalha. Ouvi alguns oficiais a queixarem-se da má qualidade do serviço. Disseram-lhes que a população civil estava na frente. Mas eles não se acalmavam e diziam que era um escândalo. Saúdam-se uns aos outros ou levam a mão à fronte? Outros, por sua vez, sacodem as cabeças.

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O efeito teatral tem dois aspectos: a fusão dos actores e a fusão dos espectadores. A encenação é que produz ambas as coisas. A guerra é a encenação em que os dois tipos de efeito se misturam. Aqueles além berram como se estivessem entusiasmados, estes aqui estão entusiasmados porque os deixam berrar, o público serve de figurante, e, no meio da confusão, não se consegue distinguir quem está a representar porque se inclui entre os participantes e quem está a participar só porque se encontra ali. É como se o grande encenador neo-berlinense estivesse a puxar os cordelinhos: os de cima subiram de baixo e os de baixo desceram de cima. A tragédia que estão a representar consiste em estarem a representar. A guerra é a princípio a esperança de que a vida nos venha a correr melhor, a seguir, a expectativa de que corra pior aos outros, depois, a satisfação por ela também não correr melhor aos outros, e, mais tarde, a surpresa por ela correr pior a ambos. Muitos que, em 1 de Agosto de 1914,  estavam eufóricos       e tinham manteiga esperavam que, em 1  de  Agosto  de  1917, ainda houvesse mais manteiga. Da euforia ainda conseguem lembrar-se.

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Tenho muita pena, mas não consigo deixar de pensar que existe uma relação de causalidade entre o maior poder de fogo e os elevados preços da fruta, bem como entre ele e as condições num atrelado de eléctrico, com toda a sua resistente e periclitante miséria. O maior poder de fogo é uma vantagem, quando serve para proteger um património cultural ainda mais importante do que ele. Mas como o maior poder de fogo exclui a existência de um património cultural mais importante, só nos resta, para explicar a vantagem do maior poder de fogo, a conjectura de que o maior poder de fogo serve para proteger o maior poder de fogo. Mas de que é que nos servem os lança-chamas, se os fósforos se estão a acabar! Negócios são negócios: como eles diziam isto, os daqui chamaram-lhes comerciantes. Mas eles o que queriam dizer era que negócios são negócios, e não também vida e religião.

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Pouco a pouco, foi-se deixando cair as reservas de trigo, farinha, açúcar, café e assim e por diante. Só ainda não se experimentou com as armas. Os soldados, que não sabem porque combatem, sabem de qualquer modo por que não combatem. A humanidade tinha inventado as conquistas democráticas e, ao mesmo tempo, as máquinas. Isto era demasiado de uma só vez e, com o progresso de ambas as coisas, ela perdeu a fantasia, de modo que já não foi capaz de imaginar que as máquinas iriam chegar mais depressa à meta do que ela própria. Que elas dariam cabo das suas conquistas democráticas e dela própria. A técnica: automóvel no verdadeiro sentido da palavra. Uma coisa que se movimenta não apenas sem cavalos, mas também sem pessoas. O motorista ligou o motor à manivela e foi atropelado pelo carro. E assim se vai andando. A quantidade já não consente senão uma ideia: a do esboroamento.

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Para se proteger contra a máquina, o engenho da humanidade inventou a histeria. Sem esta, não suportaria aquela, e como também não suporta esta, assim vai avançando. O outro dia surpreendi-me a dizer de repente a meia voz a palavra «assassinos». Por sorte, ninguém me tinha ouvido. Se tivesse dito «usurários», todos se teriam virado e não teria havido explicação que me salvasse. Mas assim podia, em caso de necessidade, alegar que estava precisamente a reflectir sobre como era necessário abolir em parte a pena de morte e, em parte, instituí-la. E que estava justamente a preparar-me para o exame de Estado. Uma cara cujas pregas são trincheiras. Quando se pronunciou pela primeira vez a palavra «paz», gerou-se pânico na Bolsa. Na sua aflição, gritavam em clamores: Nós ganhámos e merecemos! Deixem-nos a guerra! Nós merecemos a guerra! «E não se sabe onde isto irá parar.» «Ai, isso sabe-se!»

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O estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável.

António Sousa Ribeiro

«O

aforismo», escreveu Karl Kraus em 1909, «nunca coincide inteiramente com a verdade. Ou é meia verdade ou verdade-e-meia.» Esta definição subtilmente irónica da ambivalência própria de um género de que Kraus é, sem margem para dúvidas, o mais importante cultor na literatura de língua alemã do nosso século, poderia estender-se sem dificuldade à sua concepção da arte e da linguagem em geral. A linguagem não é aqui o lugar unívoco da verdade, instrumento dócil de um pensamento que se arroga a capacidade de coincidir exactamente com o real. Na máxima concentração do aforismo (que tantas vezes coloca obstá- culos intransponíveis à tradução), tornase uma evidência a relação irredutivelmente ambígua entre a linguagem e aquilo que ela refere, ficando sempre aquém ou além, até ao

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supremo paradoxo de a consciência dos limites do dizível poder ser dita, de o escritor que, nos termos de Kraus, constantemente «esbarra na parede das palavras» querer sempre «continuar para além dela» – e acabar por conseguilo. O carácter sentencioso inerente à forma do aforismo, e que constitui também um aspecto essencial do estilo de Kraus, organizado, como observou Elias Canetti, em torno da frase como unidade básica, sem um «princípio estruturante superior», surge assim implicitamente relativado: ironicamente, a formulação lapidar da ambivalência da forma do aforismo não encontra melhor lugar do que justamente um aforismo. O tom definitivo dessas «frases ligadas umas às outras como fortalezas  ciclópicas» (Canetti) é também uma máscara retórica, que tem de ser problematizada para além da sua superfície aparente. O que prevalece é a aguda consciência de que a linguagem se constitui numa constante deslocação dos seus próprios limites, num fluxo permanente cujas formas de cristalização são sempre inevitavelmente provisórias. E, assim, não raro a um aforismo (tantas vezes vertido parodisticamente na forma peremptória da definição científica) se segue um outro que o interroga, o põe em questão, ou inverte mesmo os seus termos, a dar razão a uma outra sentença de Kraus: «Quem alardeia opiniões, não pode deixar-se apanhar em contradição. Quem pensa, pensa também por entre as contradições.»

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Este pensamento, a «ideia» que Kraus insistentemente contrapõe à simples «opinião», só é, para ele, acessível a uma prática estética, capaz de romper com os discursos unidimensionais que dominam a cena pública, reflectidos e produzidos ao mesmo tempo pela grande máquina de comunicação da época, a imprensa. A linguagem desta, o alvo obsessivo da sátira de Kraus, pretendendo-se colada ao real, é, na realidade, a seus olhos, puramente decorativa e pleonástica, os seus estereótipos cumprem apenas a função de falar para que possa calar-se o que importaria dizer e revelam abertamente a sua face quando se põem directamente ao serviço da barbárie. É por isso que, no texto «Nesta Grande Época», lido em público em Novembro de 1914, a primeira tomada de posição de Kraus após o eclodir da Grande Guerra, se sugere o silêncio como única atitude digna, perante o concerto cacofónico das vozes que ocupam a ribalta: Quem tiver alguma coisa a dizer, avance e fique calado! Mas é também obrigação do artista, que mantém com as palavras uma relação não-instrumental, aquele de quem a linguagem «faz o que quer», romper depois esse silêncio. A conclusão de Kraus não é a do cepticismo da «Carta de Lord Chandos» de Hofmannsthal ou da filosofia da linguagem de um Fritz Mauthner ou do

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primeiro Wittgenstein. Tudo acontece dentro dos limites da linguagem – mas esses limites são potencialmente infindos. Aqui se funda o pathos, a retórica «excessiva» de muitos textos da revista Die Fackel, aqui encontra justificação o trabalho de Sísifo da sátira, sempre desesperançada, mas sempre consciente do imperativo de desentranhar da aparente normalidade  do quotidiano aquela verdade maior do que a verdade que, nas mãos do artista, o «servidor da palavra», a linguagem é capaz de de dizer. Essa «verdade-e-meia» é, antes de mais, a da catástrofe per- manente, a face oculta da «paz» desse quotidiano de que  a guerra não é senão a continuação. Porque a sátira krausiana vive de uma consciência crítica apocalíptica, não  em termos de uma visão escatológica como a que virá a exprimir-se em certos textos do Expressionismo, mas sim de uma análise microscópica do quotidiano, desde logo do quotidiano concreto da realidade vienense e austríaca. É esse quotidiano que serve a Kraus como sintoma denunciador dos abismos da sua época, revelando a intima relação entre estes e traços aparentemente inofensivos, como essa intraduzível «Gemütlichkeit», que sintetiza para Kraus a posição existencial do Vienense, a placidez ou «autocomprazimento» do honrado burguês em perfeita paz com a sua consciência. Um fragmento do Parque Central de Walter Benjamin, desenvolvendo uma observação de Brecht, vê

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precisamente na oposição violenta a essa «Gemütlichkeit» uma marca fundamental do projecto estético da modernidade a partir de Baudelaire:

O refinamento sensual de um Baudelaire está inteiramente isento de autocomprazimento. Esta incompatibilidade de princípio entre o gozo sensual e o autocomprazimento é a característica decisiva da verdadeira cultura dos sentidos. O snobismo de Baudelaire é a fórmula excêntrica desta inviolável recusa desse comprazimento e o seu «satanismo» não é senão a disposição permanente de não o deixar em paz sempre e onde quer que se manifeste. A função dos «poetas da humanidade», como escreve Kraus, é, assim, a de «produzir o caos». A sua empresa satírica e a relação conflituosa que mantém com Viena estão na evidente continuidade do satanismo baudelairiano no sentido profundo de Benjamin, e não em termos de um gratuito épater le bourgeois. O arquétipo dessa placidez do carácter vienense, o «rosto austríaco», virá Kraus a encontrá-lo na «regalada paz de alma» expressa na cara do carrasco e na hedionda satisfação que ressuma do retrato de grupo tirado após a execução do deputado autonomista do Tirol Cesare Battisti, condenado por se ter passado para o lado italiano – retrato que circulou num postal da época, um exemplo temporão da banalização do horror na «sociedade do espectáculo» de que Kraus soube detectar presciente-

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mente os sintomas. A obra de Kraus tem, assim, muito pouco que ver com a voga actual da ideia de apocalipse. Este é muito mais o «apocalipse alegre», como convém ao que uma moda irreflectida julga ser a «condição pósmoderna». Hermann Broch, que cunhou a expressão para referir o «vegetar alegre» de uma cidade museal reduzida, nos anos oitenta do século XIX,  a «metrópole do kitsch» e entregue à apoteose eufórica de uma cultura do simulacro sob o signo da fachada sem substância e do puro cenário de teatro, por certo se espantaria de a ver alargada ao conjunto da efervescência cultural daquilo a que agora se chama a «Viena de 1900». A fórmula de Broch está longe de reflectir a complexidade real dessa época de extraordinária vitalidade cultural a partir do dobrar do século, à qual, aliás, não pretendia aplicar-se. A sua exploração equívoca em termos de um valor de mercado em cotação ascendente cumpre a lógica narcisista de um reflexo cultural que renuncia de antemão à reelaboração em profundidade da tradição, contentando-se com a apropriação ecléctica da aura desta.

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Kraus situa-se a contrapelo desta imagem ora dominante da «Viena de 1900». O seu lugar na modernidade vienense é o do rigorismo ético-estético que partilha com um Schõnberg e um Adolf Loos. Mas este ascetismo está longe de traduzir uma forma de simples puritanismo hostil à riqueza  e variedade da vida: a sua obsessão de distinguir, de se demarcar dos discursos correntes em nome de uma estética da negatividade, é a expressão dessa recusa «satânica» da «Gemütlichkeit» cuja genealogia vimos Benjamin fazer remontar a Baudelaire. Assim, se, nos aforismos de Kraus, é de facto de um outro apocalipse que se trata, o apocalipse bem real dos «últimos dias da humanidade», do «fim do mundo por acção da magia negra» da imprensa, ele tem que ver em primeira linha com a catástrofe quotidiana, de que o conflito mundial não é senão a erupção lógica. A produção aforística de Kraus começou a ser publicada e a ocupar cada vez mais espaço nas páginas de Die Fackel a partir de 1906. O autor viria a reuni-la posteriormente em três volumes autónomos: Ditos e Contraditos (Sprüche und Widersprüche), de 1909, Pro Domo et Mundo, de 1912, e, finalmente, Noite Fechada (Nachts), que veio a lume em 1919. É a este último volume que pertence integralmente o conjunto de aforismos que aqui se apresenta em tradução. Enquanto não chega a oportunidade de dar Kraus em corpo inteiro ao leitor português, a selecção, necessariamente limitada,

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destes «dois dedos de leitura», optou, por critérios de representatividade e coerência, por se restringir apenas a um dos volumes publicados por Kraus1. A escolha do último desses volumes não foi, no entanto, fortuita: atravessado pela ex- periência da guerra, é ele o que melhor permite ilustrar os contornos concretos da ideia de apocalipse em Kraus. Noite Fechada, que contém aforismos escritos entre 1912 e 1917, documenta, com efeito, na sua própria organização formal, a cesura que a eclosão da guerra estabelece na obra de Kraus, mas, ao mesmo tempo, também a continuidade profunda que esta revela. No essencial, os quatro primeiros capítulos foram publicados em Die Fackel entre 1912 e 1913 (significativamente, já com o título – Nachts – que viria a ser o do volume definitivo de 1919). Os dois últimos, que preenchem cerca de metade do volume (manteve-se, na presente selecção, reduzida a pouco mais de um quarto do original, a proporção aproximada dos vários capítulos), foram escritos durante a guerra, entre 1915 e 1917, paralelamente à composição do drama. 1. -  Remete-se entretanto o leitor interessado para os textos de Kraus incluídos na colectânea Histórias com Tempo e Lugar, Lisboa, Europa-América, s.d. [1982], pp. 177-228.

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Os Últimos Dias da Humanidade2, de que contêm inúmeros ecos, por vezes mesmo literais. A primeira metade do volume constitui o prolongamento «natural» dos livros de 1909 e 1912, e dos seus tópicos centrais, de alguma forma sintetizados nos títulos lacónicos dos vários capítulos: a peculiar concepção krausiana da relação homem/mulher como relação entre o «espírito» e o «sexo», combinada com a denúncia da hipocrisia da moral sexual e da repressão da sexualidade da mulher, a critica ao «progresso» e a uma técnica transformada num fim em si mesma, a análise do nivelamento cultural pela indústria da cultura, que culmina na ferocidade radical da crítica à imprensa, a anatomia da degradação das relações humanas numa sociedade, e numa cidade, que cultivam uma fachada de normalidade e bonomia – e, concomitantemente, a reflexão sobre a arte e a linguagem e a relação «erótica» que o artista da palavra mantém com elas. Tudo sempre na primeira pessoa: o Eu do autor satírico, ora rosto, ora máscara, serve de ponto prismático em que tudo se refracta. Mas já nesta primeira metade o visionarismo patético que marca a apaixonada tomada de posição contra a guerra nos textos de 1915-1917 está também claramente presente. 2. - Uma ampla selecção deste drama está disponível em português, em tradução minha publicada pela Editora Antígona, desde 2004 [nota à 2.a edição].

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É a própria forma do aforismo que, neste processo, acaba por ser posta em causa, incapaz de conter o excesso da «verdade-e-meia» que o artista tem para dizer: a brevidade lapidar típica do género cede o passo ao comentário extenso e à citação das vozes da época, muito próxima por vezes da técnica de «fonomontagem» d’Os Últimos Dias da Humanidade, em textos que por vezes se prolongam por várias páginas, cada vez menos fechados em si próprios. Por alguma razão a forma do aforismo viria a ser abandonada quase em definitivo depois de 1919. Este volume de aforismos é, do conjunto dos três, o mais agónico, a visão desesperada de um apocalipse que é tudo menos alegre e não consente qualquer fruição estética (e por isso também, apesar das formulações lapidares de que está recheado, ele será o menos «atractivo» para quem procura apenas citações para todo o serviço), mas é-o não apenas nos textos que reflectem directamente sobre o cataclismo real da guerra, mas também nos que lhe são anteriores. A eclosão da barbárie não vem senão confirmar o que a anatomia da linguagem a que Kraus vinha procedendo nas páginas da sua revista muito antes de 1914 já revelara. Como escreveu Max Horkheimer, tendo em mente a catástrofe nacional-socialista, «quando a catástrofe se abateu,

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não fez senão confirmar o que Kraus há muito tinha auscultado na linguagem». É que, nas palavras de Adorno, «os horrores linguísticos a que ele deu expressão e cuja desproporção quanto aos horrores reais é salientada sobretudo por aqueles que gostariam de encobrir estes, são excreções de processos sociais, que surgem arquetipicamente na linguagem antes de destruírem bruscamente a vida supostamente normal da sociedade burguesa, em que se foram desenvolvendo quase sem serem notados, inacessíveis à observação científica corrente». Mesmo antes da guerra, é já dos «últimos dias da humanidade» que se trata. Nas suas partes distintas e na lógica profunda que as une, este volume documenta cruamente que, para Kraus, os últimos dias da humanidade são todos os dias, que o apocalipse é um estado, um «apocalipse estável». A reflexão sobre a «aventura tecnoromântica» da Guerra, radicalizando o tema já antigo em Kraus da crítica a uma técnica que passou ser a medida de todas as coisas, redundando na tragédia do aprendiz de feiticeiro que não está à altura das forças que ele próprio pôs em movimento, não faz senão extremar as conclusões a que a reflexão sobre os pormenores aparentemente mais irrelevantes da linguagem e do comportamento quotidianos já  haviam conduzido.

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Kraus não é cego para as causas profundas do conflito bélico («Eu sei muito bem que, de tempos a tempos, é preciso transformar mercados em campos de batalha, para que destes saiam de novo mercados»). Mas o seu tema específico é a forma como a degradação da linguagem e a perda da fantasia tornam o homem indiferente à barbárie, num caminho que levaria a um Auschwitz já muito antes do qual o artista desperto para o seu tempo não poderia deixar de se interrogar sobre se «escrever um poema» não seria «um acto de barbárie», para usar os termos da reflexão posterior de Adorno. O seu tema é o apocalipse quotidiano que, num texto sobre esse progresso que, na formulação profética de Kraus, «faz porta-moedas de pele humana» – o assunto, afinal, de milhares de páginas de Die Fackel – refere um outro fragmento do Parque Central de Benjamin: O conceito de progresso deve ser fundado sobre a ideia de catástrofe. Que as coisas «vão indo assim» é a catástrofe. Esta não é aquilo que em cada momento está iminente, mas sim aquilo  que em cada momento existe. Na perspectiva eivada de messianismo de Benjamin, «a salvação agarra-se à pequena falha no meio da catástrofe permanente», como se lê no fragmento seguinte. Nos termos do pessimismo de Kraus, essa «pequena falha» é o que, no seu labor desencantado,

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o artista é ainda em cada momento capaz de testemunhar na precariedade da linguagem – até que o advento do horror absoluto torne cruamente clara a impossibilidade da própria sátira. «A respeito de Hitler, nada me ocorre», escreverá Kraus em 1933 a abrir A Terceira Noite de Valpúrgis, numa das suas frases mais citadas e mais incompreendidas, por quem normalmente não leu as mais de trezentas páginas que se seguem. Foi o trabalho de luto resultante desta evidência e deste silêncio que muita da arte e da teoria contemporâneas tiveram que fazer. E esse trabalho não está concluído: na sua hostilidade, hoje porventura pouco conforme ao espírito do tempo, a uma euforia autocomplacente, a face nocturna da modernidade vienense comporta interrogações que continuam a interpelar tragicamente a nossa época – e a exigir resposta.  

O apocalipse estável (aforismos) Karl Kraus Selecção, tradução e posfácio: António Sousa Ribeiro Publicado pela Fyodor Books, 2015. Esta obra contou com o patrocínio da Embaixada Austríaca em Portugal.