A miséria governada através do sistema penal
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SU ES Pensamento

Criminológico

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Alessandro De Giorgi

Coleção Pensamento Criminológico

Alessandro De Giorgi

A miséria governada através do sistema penal Tradução Sérgio Lamarão

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Institu to C a r io c a d e C rim in o lo g ia

E d ito ra Revan

323EEPensamento

Criminológico Direção Prof. D r. Nilo Batista © 2006 Instituto Carioca de Críminoiogia Rua Aprazível, 85 Rio de Janeiro - RJ 20241-270 tel. (21)2221-1663 fax (21)2224-3265 [email protected] Edição e distribuição Editora Revan S.A. Rua Paulo de Frontin, 163 Rio de Janeiro - RJ 20260-010 tel. (21)2502-7495 fax (21)2273-6873 [email protected] www.revan.com.br Projeto gráfico Luiz Fernando Gerhardt Revisão Sylvia Moretzsohn Diagramação lido Nascimento Giorgi, A lessandro De. A m iséria governada através do sistem a penal. Alessandro De Giorgi. - Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. (Pensam ento criminológico; v. 12). 128 p. Inclui bibliografia ISBN 85-7106-336-2 1~. D ireito penal

Sumário P re fá c io à ed ição b r a s ile ir a ..................... ................................................. 5 D iscu ssão à g u isa de p re fá c io Cárcere, pós-fordism o e ciclo de produção da “canalha” D a iio M elossi ........................................... ............................................ 9

I n tr o d u ç ã o ....................................................................................................25 C apítulo 1 R egim e disciplinar e proletariado f o r d is ta ................................... 33 E conom ia política do controle social ................... ....................... 33 N ascim ento da sociedade industrial e disciplinam ento do proletariado ............................................. 39 Pena e subsunção real do trabalho

ao capital .............................. 43

Encarceram ento e desem prego na época fordista ..................... 47 O lim ite da econom ia política da penalidade fo r d is ta ............... 55 C a p ítu lo 2

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Excesso pós-fordista e trabalho da m ultidão ..............................63 Pós-fordism o: o regim e do excesso ............................................ 63 O excesso negativo ........................................................................... 66 O excesso positivo ........................................................................... 71 M ultidão ............................................................................................... 77 C a p ítu lo 3 . Governo do excesso e controle da m u ltid ã o .............................. 83 D a disciplina da carência ao governo do excesso .................... 83 O controle como “não-saber” ........................................................ 89

O controle da m ultidão . O risco a p risio n a d o A m etró p o le p u n itiv a A rede im b rica d a ..... N ovas resistên cias .........

B ibliografia

Prefácio à edição brasileira Vera Malaguti Batista Este livro de A lessandra De Giorgi atualiza o conjunto de reflexões que o Instituto Carioca de Crim inologia vem publicando ao longo dos últimos dez anos. A Coleção Pensamento C rim inológico tem como elo de articula­ ção a produção teórica acerca da questão crim inal que se opõe ao grande movimento de crim inalizàção da pobreza, gerado pelo processo de acumu­ lação de capital ao longo dos séculos. Na etapa em que nos encontramos, de capitalismo de barbárie, pode­ mos observar a expansão do mercado em todas as direções, mas principal­ mente no esfacelamento das redes sociais de proteção coletiva do capitalis- ■" mo industrial, do Estado Previdenciário ou Welfare State. No âmbito penal há uma expansão análoga, no sentido de um crescim ento sem precedentes da pena de prisão. Como diria Lote W acquant, o outrora denom inado mun­ do livre está sendo encarcerado... A lessandro De G iorgi ap ro fu n d a esta reflex ão crític a acerca do encarceramento em massa da força de trabalho excedente utilizando a eco­ nomia política da pena no desem prego pós-fordista. U m a das principais qualidades deste livro é aproxim ar o marxismo do pensam ento de Michel Foucault. Aqui no Brasil ergueu-se um a parede entre essas duas escolas de pensamento; esta parede é, a meu ver, ilusória. Tenho dito que, sem a militância no Partido Comunista Francês, Foucault não poderia ter efetua­ do a reflexão que fez. A partir do m arxismo frankfurtiano de Georg Rusche, F oucault m ergulha na in teg ração h istó rica do sistem a penal com o disciplinamento do mercado de mão-de-obra. Foucault investe no corpo como centro nevrálgico do poder, e também do podér punitivo. Percebe-se em Vigiar e punir a apropriação da descrição de Rusche acerca dos mecanismos de disciplinam ento dos cárceres, suas normas para a regulamentação do cotidiano na direção da constituição dos corpos dóceis. Mais adiante, Foucault vai trabalhar com a idéia de biopoder, este colossal dispositivo de apropriação e disciplinamento dos corpos, que caminha junto ao assujeitamento massivo das almas. 5

De Giorgi aposta nessa crítica materialista da pena: “o fio condutor da economia política da pena é construído pela hipótese geral segundo a qual a evolução das formas de repressão só pode ser entendida se as legitimaçoes ideológicas historicamente atribuídas à pena forem deixadas de lado” . Seu trabalho cumpre, então, a função fundamental de desativar o dispositivo do dogma da pena. Existe nos dias de hoje uma polissemia de discursos, uma saturação de informações que conduzem à transformação de toda a conflitividade social em problem a penal. A discursividade vai acom panhando então a pauta da reprodução deste capital de barbárie: a im igração é criminalizada, bem como as estratégias de sobrevivência da pobreza em todas as partes do mundo. As políticas criminais de droga, as operações “anti-cor­ rupção”, as cruzadas contra o crime organizado e a lavagem de dinheiro são nada mais nada menos do que expansão dos territórios de ocupação física e virtual pelo capital financeiro soberano. O autor avança também na crítica à contradição estrutural da sociedade capitalista, a partir de Marx: o paradoxo entre a idéia da igualdade formal em relação a uma desigualdade fundamental: “o objetivo, coerentemente, é o de reproduzir um proletariado que considere ü^safátio Como justa retribuição do próprio trabalho e a pena com o justa medida dos seus próprios crim es”, diz ele acerca da ideologia retributiva-legalista do fordismo.

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O trabalho de De Giorgi ultrapassa os limites da econom ia política da penalidade fordista, quando a pós-industrialização se apresenta como uma explicitação do excesso de mão-de-obra, o regime do excesso. Isto quer dizer que temos que nos livrar das permanências subjetivas, da maneira de pensar o mercado de trabalho e o sistema penal e encarar as transformações a que 0 capital submete a mão-de-obra, o trabalho da m ultidão1. O demônio que o capital vídeo-financeiro persegue é o tempo livre da força de trabalho, num modo de produção que já descartou completamente as ilusões do pleno emprego. É aí que o dogma da pena e a criminalização da pobreza e dos conflitos sociais, da luta de classes, são discursos estratégicos à reprodu­ ção desse capital. Nessa direção, a análise de De Giorgi aponta para os novos dispositivos dirigidos “à contenção de uma população excedente e de um surplus de

1 O conceito de multidão aqui utilizado, na trilha de Negri, abre espaço para uma longa discussão a ser tom ada no campo marxista. Pessoalm ente, acredito que o conceito não consegue dissociar-se da carga histórico-ideológica positivista da expressão, tal como definido por Gustave Le Bon.

força de trabalho desqualificada; elas prescindem explicitam ente da consu­ mação de um delito, das características individuais de quem está envolvido nele e de qualquer finalidade reeducativa ou correcional, para orientar-se no sentido da ‘estocagem ’ de categorias inteiras de indivíduos considerados de risco” . Ele se vale então da idéia do cárcere atuarial, a partir das “represen­ tações probabilístieas baseadas na produção estatística de classe, sim ula­ cros do real: imigrantes clandestinos, afro-am ericanos do gueto, toxicodependentes, desempregados” , É o atuarialismo penal que vai produzir as metrópoles punitivas. Esta obra é de uma riqueza im pressionante para nós que pensamos a questão criminal na periferia do capitalismo, na nossa gigantesca instituição de seqüestro, como vaticinou Raúl Zaffaroni, na sua busca das penas perdi­ das. N ós, os indignados, os resisten tes a esse g ig an tesco p ro jeto de assujeitamento aos desígnios do capital, podemos contar com a munição proposta pela presente reflexão, que transformou nossas favelas/prisões em campos de extermínio e tortura, num a escala até então nunca vista. O livro da A lessandra De Giorgi vem aprofundar e substancializar a nossa luta e a nossa clareza acerca das funções reais do sistem a penal e dos discursos punitivos nos dias de hoje. Com o se fora pouco, o livro vem com uma genial interlocução, “discussão à guisa de prefácio” , desenvolvida por Dario M elossi, revigorando ainda mais a análise de De Giorgi, atualizando aquela proposta pelo já clássico Cárcere e fábrica. Regalai-vos, pois, crim inólogos e penalistas críticos brasileiros: esta obra tem novidades! Rio de Janeiro, setembro de 2005.

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Discussão à guisa de prefácio Cárcere, pós-fordismo e ciclo de produção da “canalha” Dario Melossi

Entre 1968 e 1975, produziu-se uma radical renovação nos estudos de sociologia penal. Durante o ano de 1968 foi reeditada nos Estados Unidos a obra Piinishment and Social Structure. Publicado pela primeira vez em 1939, sob a assinatura conjunta de Georg Rusche e Otto K irchheim er1, Punishment and Social Structure foi o primeiro texto em inglês da famosa Escola de Frankfurt, e em particular da sua representação institucional, o Instituto para o F.studo das Ciências Sociais de Frankfurt. A publicação foi praticamente concomitante à complexa e difícil transferência do Instituto para Nova Iorque, junto à Universidade de Columbia, provocada pelos acontecimentos pré-bélicos alemães e pela perseguição à sociologia, sobretudo à sociologia marxis­ ta praticada em grande parte por intelectuais de origem judaica, que eram os principais protagonistas da produção do Instituto. Já o ano de 1975 é marcado pela publicação daquela que foi provavel­ mente a obra mais conhecida de Michel Foucault, Surveiller et punir2. Entre essas duas datas, estende-se o último grande,período de agitações sociais que ocorreram, com intensidade variada, em todos os países mais desenvol­ vidos (mas não apenas neles), e que no interior de cada um desses países afetou não somente os principais núcleos da atividade produtiva - a fábrica, tal coifío a conhecíamos até então mas também todas aquelas instituições 1 Sobre os vários acontecim entos que interferiram na atorm entada elaboração deste texto, ver a introdução à edição italiana (D. M elossi, “M ercato dei lavoro, disciplina, controllo sociale: una discussione dei testo di Rusche e Kirchheimer” , in G. Rusche e O. Kirchheimer, Pena e struttura sociale. Bolonha, II Mulino, 1978) e a introdução à edição francesa (R. Levy e H. Zander, “Introduction”, em G. Rusche e O. Kirchheimer, Peine et structure sociale. Paris, Cerf, 1994). [N. do T.: edição brasileira Punição e estrutura social. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2“ éd., 2004, tradução e apresentação de Gizlene Neder]. 2 Michel Foucault, Sorvegliare e punire. Turim, Einaudi, 1977 [N. do T.: ediç^i- > brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 26a ed., 2002, tradução de Raquel Ramalhete].

que, à época, foram descritas como “subalternas”3à fábrica, em particular a instituição carcerária. O texto de Rusche e Kirchheimer, que na atmosfera im ediatamente ante­ rior à guerra foi quase ignorado (salvo algumas louváveis exceções, registradas mais no campo da história econômica do que no da crim inologia4), permitia uma releitura da história da pena numa perspectiva marxista, O texto de Foucault, a apenas sete anos de distância, oferecia a possibilidade não só de dar a sua contribuição àquela interpretação, mas também de ir além dela, ingressando num espaço que escapava dos esquemas mais rígidos da leitura marxista5. Após o trabalho de Foucault, desenvolveu-se uma ampla literatu­ ra, sobretudo em língua inglesa, amplamente influenciada pelo reaparecimento das hipóteses de Rusche e Kirchheimer, que procurou checar a veracidade em pírica da hipótese de uma relação entre variáveis estruturais fundam en­ tais, especialm ente as de natureza socioeconômica, e a evolução das institui ções penais6. Se, portanto, ainda em 1955, Donald Cressey, ao fazer o levantamento de campo de uma “sociologia da pena” , relacionou um número de obras que podiam ser contadas nos dedos de uma mão ou no máximo de duas7, no final do século X X já dispúnhamos de uma vasta literatura8. Um filão fundamental dessa sociologia é exatamente aquele que De Giorgi identifica como “econo­ mia política da pena” , isto é, uma interpretação da história da penalidade na qual o objeto fundamental consiste em relacionar as categorias de derivação marxista à reconstrução dos processos de desenvolvimento das principais instituições penais. Ao menos duas são as contribuições centrais do trabalho

3 Dario M elossi, “Istituzioni di controllo soei ale e organizzazione capitalistica dei lavoro: alcuni ipotesi di ricerca” , in La questione criminale, 2, 1976, pp. 293-317, in prim is, naturalm ente, aquelas que eram então cham adas de “instituições to­ tais”, como em E. Goffman, Asylums. Turim, Einaüdi, 1968 (ed. orig. 1961). 4 Para mas detalhes, ver as introduções citadas na nota 1. 5 A m inha leitura não concorda aqui com a de D. Garland, Pena e società moderna. Milão, II Saggiatore, 1999 (ed. orig. 1990), capítulos IV ao VII. 6 Sobre esta literatura, rem eto à exaustiva seção no texto de De Giorgi que se segue (infra, Capítulo 1). 7 D. R. Cressey, “Hypothesis in the Sociology of Punishment”, in Sociology and Social Research, 39, pp. 394-400. 8 Ver, além de D. Garland, Pena e società moderna, cit., os ensaios na antologia por mim organizada, The Sociology o f Punishment. Aldershot, Ashgate, 1998. 10

i|iic De Giorgi apresenta aqui. A prim eira é reconstruir o percurso da econo­ mia política da pena tal como vejo se desenvolvendo até os dias de hoje. A M\'.’unda é procurar fornecer uma contribuição original a esse desenvolvi­ mento, estendendo-o do período que De Giorgi cham a de “fordista” até o atualmente consagrado como “pós-fordista” . O ponto de partida de De Giorgi, de uma perspectiva em pírica, é absolu­ tamente macroscópico em termos de história das instituições penais. Desde a primeira metade dos anos 1970, em particular no interior das instituições penais cios Estados Unidos, assistim os a um im pressionante crescimento tanto da população penitenciária quanto da parcela da população que é sub­ metida, de um modo ou de outro, às diversas autoridades definidas como “correcionais” . Esse crescimento é de tal monta que a probabilidade de um homem afro-americano term inar sob o controle de uma dessas “autoridades correcionais” no decorrer da sua vida já está se aproximando daquela de se obter “cara” na brincadeira de “cara ou coroa” . Esse fenômeno, que mudou profundamente as trends anteriormente obser­ vadas, foi cada vez mais notado por um grande número de observadores9, mas as razões são muito complexas para serem exploradas exaustivamente. E certo que na época elas não eram esperadas. Uma das conseqüências da crítica radical às instituições totais e em particular às instituições carcerárias que, note-se, ocorreram imediatamente antes desse aumento im pressionante, foi que, ainda no início dos anos 1970, tanto as principais orientações políti­ cas nos Estados Unidos e nos outros países desenvolvidos quanto as princi­ pais leituras dos fenômenos previam uma obsolescência mais ou menos ve­ loz da instituição carcerária, bem como um aumento dos sistem as de contro­ le extra-institucionais, “em com unidade”, como se costum ava dizer. Assim, Andrew Scull pôde intitular um importante trabalho de sua lavra, lançado em 1977, de Decarceration; Ivan Jankovic e eu pudem os escrever, no mesmo ano, sobre a probation com o a forma penal do futuro, enquanto o 9 Entre outros, ver N. Christie, II business penitenziario. La via occidentale al Gulag. M ilão, Eleuthera, 1998 (ed. orig. 1993); M. Tonry, M align Neglect: Race, Crime and Punishment. Nova Iorque, Oxford University Press, 1995; M. Mauer, Race to Incarcerate. Nova Iorque, The New Press, 1999; Loíc W acquant, Parola d ’ordine: tolleranza zero. La trasform azione dello stato p en a le nella società neoliberale. Milão, Feltrinelli, 2000 (ed. orig. 1999), e o mesmo D e Giorgi. Zero Tolleranza. Strategie e pratiche delia societá di controllo. Roma, DeriveApprodi, 2000. Ver também o número especial da revista Punishment and Society dedicado ao tema “M ass Imprisonment in the United States” (2001).

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reconhecido criminólogo —absolutamente não marxista - AI Blum stein es­ creveu sobre um a substancial “estabilidade” nas taxas de encarceramento, remetendo-a a explicações funcionalistas, de inspiração durkheim iana10. E no entanto, o que já estava em curso naqueles anos era, ao contrário, o mais notável aum ento da população de detentos na história moderna das institui­ ções penitenciárias, que com toda razão poderia ser com parado ao “grande internam ento” sobre o qual M ichel Foucault escreveu em H istória da loucu­ ra na Idade Clássica, a propósito da França do século X V II". M ais um a vez nos Estados Unidos, mas não apenas lá, depois da suspensão devida a uma decisão da Corte Suprema entre 1972 e 1976, ocorreu uma retom ada firme na com inação e na condenação à pena capital, primeiro de modo mais ou menos sim bólico e em surdina, depois de maneira cada vez mais m aciça até atingir o número de 98 condenações executadas em 1999. É bem verdade que esse m ovimento foi caracterizado desse modo tão ostensivo somente nos Estados Unidos. Para os países europeus, verificou-se um certo aum en­ to nas taxas de encarceramento, mas nem de longe comparável ao norteam ericano, nem generalizado a todos os países (e com exceções bastante relevantes, como a Alemanha e a Itália até o início dos anos 1990). Os prim eiros autores que procuraram dar conta desse fenômeno retom a­ ram alguns dos elementos desenvolvidos por aqueles que, alguns anos antes, tinham diagnosticado um aumento d a probation, e os usaram para explicar o que estava acontecendo nas prisões. Talvez a contribuição mais importante nesse sentido tenha sido a de Stanley Cohen, que escreveu sobre a tendência do sistem a correcional de “widening the nét” - “ampliar a rede” - , e também sobre a nova lógica penitenciária vista enquanto uma lógica de “warehousing”, i.e., de “armazenam ento” dos detentos12. M as procedamos com ordem , ainda que de forma extremam ente sintéti­ ca, ao percorrerm os as etapas desta “economia política da pena” . Segundo a 10 A. Scull, Decarceration. New Brunswick (NJ), Rutgers University Press, 1977; I. Jankovic, “L abor M arket and Im prisonm ent” , in Crime and Social Justice, 8, 1977, pp. 17-31; D ano M elossi, “ Strategies o f Social Control in Capitalism : A com m ent on recent work”, in C ontem porary Crises, 4, 1980, pp. 381-402; A. Blum stein e J. Cohen, “A Theory o f the Stability of Punishm ent” , in Journal o f Crim inal Law and Criminology, 64, 1973, pp. 198-207. 11 M ichel Foucault, Storia delia fo llia nelVetà classica. Milão, Rizzoli, 1963 (ed. orig. 1961). [N. do T.: edição brasileira H istória da loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 1989, tradução de José Teixeira Coelho Netto]. 12 S. Cohen, Visions o f Social Control. Cambridge, Polity Press, 1985. 12

ótica que poderemos cham ar de “neo-marxista", que procurei desenvolver na seção que me foi confiada de Cárcere e fá b ric a 13, era possível aplicar a grade interpretativa m arxista clássica - derivada sobretudo do Livro Prim ei­ ro de O capital, centrada sobre a gênese do modo de produção capitalista e na qual se destaca o conceito de “acumulação prim itiva” 14- à história da instituição penitenciária. Essa instituição foi, de fato, criada contemporaneamente aos processos de acumulação primitiva ou original, nos lugares onde teve inicio o modo de produção capitalista, numa conexão não casual e weberiana com os locais onde o protestantismo se revestiu das suas formas mais radicais. O cárcere tivera como antepassado a “casa de trabalho”, espécie de m a­ nufatura reservada às massas que, expulsas dos campos, afluíram para as cidades, dando lugar a fenômenos que preocupavam as elites mercantis (e proto-capitalistas) da época: banditismo, mendicância, pequenos furtos e, last but not least, recusa a trabalhar nas condições impostas por essas elites. A casa de trabalho - um “proto-cárcere” que seria depois tomado como modelo da forma moderna do cárcere no período iluminista, isto é, quando ocorreu a verdadeira “invenção penitenciária” —não parecia ser outra coisa senão uma instituição de adestramento forçado das massas ao modo de pro­ dução capitalista; afinal, para elas, esse modo de produção era uma absoluta novidade (e nesse sentido, a casa de trabalho era uma instituição “subalter­ na” à fábrica). Não por acaso, Cárcere e fá b rica encerrava essa reconstrução ao final histórico desse movimento originário, por volta da primeira metade do sécu­ lo XIX. Tratava-se, todavia, de uma leitura que, assim como no caso das outras leituras “revisionistas” , permitia reconstruir a história do cárcere da perspectiva da crise da fábrica tradicional que se estava verificando naqueles anos, e portanto da perspectiva da crise da relação entre cárcere e fábrica. Do mesmo modo que, naquele momento, era possível desnaturalizar a fábri­ ca como ela era então conhecida, e vê-la inscrita no interior de uma parábola que estava conhecendo o seu êxito final, era lógico aplicar esse mesmo modo de pensar a uma instituição como a carcerária que fora criada - como mal 13Dario Melossi, “Cárcere e Iavoro in Europa e in Italia nel período delia formazione dei modo di produzione capitalista”, in Dario Melossi e M assímo Pavarini, Cárcere efabbrica. Bolonha, II Mulino, 1977 [N. do T.: edição brasileira Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2006, tradução de Sérgio Lamarão]. 14Karl Marx, II capitale, vol. I. Roma, Riuniti, 1964 (ed. orig. 1867) [N. doT.: edição brasileira O capital: critica da econom ia poli ti ca. Rio de Janeiro, C ivilizaçao Brasileira, 1970-71, 74. 6v.]. .

tínhamos descoberto! - juntam ente com a fábrica. Por conseguinte, parecia lógico que ela seguisse o seu destino. (Note-se, porém, que, com o bem havia esclarecido Bentham, na sua “Introdução” a um P a n o p tic o n que, nes­ se meio tempo, Foucault havia tom ado famoso, o cárcere não era senão a mais “com pleta” das instituições que “têm por finalidade manter muitas pes­ soas sob vigilância” 15, dos cárceres aos hospitais psiquiátricos, das m anufa­ turas aos hospitais to u t co u rt, das escolas aos quartéis). D aí a hipótese, elaborada sob diversas formas por vários autores, de que, assim com o a fábrica tornava-se cada vez mais social e se difundia para fora de muros bem marcados - o início da transição ao pós-fordismo o cárcere teria seguido esse mesmo percurso. Portanto, não era tanto a pena pecuniária, como havia predito Kirchheimer, que se colocaria como substituta do cárcere na época contemporânea, mas sim as várias formas de controle extra-institucional que haviam surgido, já há várias décadas, nos países de língua inglesa, e que pareciam se m ultipli­ car, sobretudo quando escrevíamos Cárcere e fá b r ic a . A “crítica do cárce­ re”, que emanava seja das revoltas generalizadas em todo o Ocidente (mas não apenas nele), seja da literatura “revisionista”, parecia colher, portanto, uma ori­ entação tendencial do próprio capitalismo em organizar-se não mais sob a forma-fábrica e sob a forma-cárcere subalterna, mas sim através de formas de controle “em comunidade”, como então se dizia, in p rim is, as várias formas de p ro b a tio n , ou “confiança na prova”, como a lei de 1975 traduziu em italiano. Tal desenvolvimento parecia estar bem de acordo com um outro fenômeno que se desenhava cada vez mais claramente naqueles anos e que está na base do texto de Andrew Scull, isto é, a “crise fiscal do Estado”, no sentido em que já haviam explicado Habermas e 0 ’Connor16, De acordo com essa visão, o Estado parecia não estar mais em condições de “manter juntas” as funções que garantiam, ao mesmo tempo, a legitimação e a acumulação, ou seja, aquilo que depois passou à História como a “crise do W elfare S ta te”. Porém, as coisas não cam inharam exatamente desse jeito, pelo menos nos Estados Unidos, em virtude do fenômeno, como já recordamos no iní­ 15 Jerem y Bentham , Panopticon, ovvero la casa d ’ispezione. Veneza, M arsilio, 1983 (ed. orig. 1787). [N. do T.: edição brasileira O panóptico, Belo Horizonte, Autêntica, 2000, tradução de Tomaz Tadeo da Silva]. 16 J. Habermas, Legitimation Crisis. Boston, Beacon Press, 1975 [N. do T.: edição brasileira A crise de legitim ação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980, tradução de Vamireh Chacon]; J. O ’ Connor, La crisifiscale dello stato. Turim, Einaudi, 1977 (ed. orig. 1973). . 14

cio, do acentuado aumento da população carcerária que com eçou exatam en­ te naquele período. Para dizer a verdade —e isso dever ser sublinhado - , a análise que via n a probation a forma de intervenção penal tendeneialm ente predominante revelou-se exata do ponto de vista da proporção relativa às intervenções correcionais. Com efeito, o aumento tio número de pessoas em liberdade submetidas a controle foi amplamente superior, tam bém nos Esta­ dos Unidos, ao número daquelas sob controle dentro das prisões. A veloci­ dade com que as várias formas de controle em liberdade aum entaram tam­ bém na Europa superou, sem dúvida, o aumento das detenções, dramático nos EUA, e bem mais discreto nos países europeus. Porem, o que não estava previsto era o aumento excepcional, ainda que em virtude da grave crise fiscal dos anos 1970 e 1980, do com prom isso com o setor penal, de tal forma que Loic Wacquant pôde descrever as trans­ formações ocorridas naqueles anos como uma verdadeira passagem do “Es­ tado social” para o “Estado penal” 17. O aumento nas formas de probation ocorria, pois, juntam ente com um aumento dramático, nos-Estados Unidos, das outras formas penais mais clássicas, e com um aumento da detenção no seu interior. Assim, quanto mais prisões, mais severos eram os regim es detentivos e mais se lançava mão da pena capital. Nas páginas que se seguem, Alessandro De Giorgi avança num terreno ainda amplamente inexplorado, em língua italiana e em outras línguas, ten­ tando verificar a possibilidade de a “econom ia política da pena” dar conta deste último período, disso que aconteceu a partir daquelas transformações que comumente são localizadas nos primeiros anos da década de 1970 e que ele reúne sob o termo de “pós-fordismo” . Certamente sem estar fazendo justiça à sua complexidade, para a qual remetemos o leitor às páginas do livro propriamente dito, parece-me que a tese que De Giorgi apresenta pode ser resumida na idéia de que, numa situação de expulsão permanente e estrutural da força de trabalho do processo produtivo - e, ao mesmo tempo, de pro­ funda transformação do modo pelo qual a força de trabalho vem sendo cons­ tituída na fase atual -, a “subalternidade” das principais instituições de con­ trole social em relação à fábrica está de algum modo perdida e se teria torna­ do obsoleta. O ensinamento disciplinar não tem mais sentido na sociedade pós-industrial/pós-fordista porque não há mais ensinam ento a propor; por isso, as instituições que foram criadas na modernidade com esse objetivo perdem progressivamente a razão de ser. Resta apenas aquilo que Cohen 17 Lofs W acquant, Pa rola (Uordine: tolleranza zero, cit.

chamou de warehousing, o “armazenamento” de sujeitos que não são mais úteis e que, portanto, podem ser administrados apenas atrayés da incapacitation, da neutralizazzione [“neutralização”], como se diz em italiano18. Essa afirmação é tanto mais verdadeira se considerarmos que aquilo que, por um lado, é “excesso” de força de trabalho - com relação aos estratos sociais expulsos da produção —, é, ao mesmo tempo, “excesso” de força produtiva em relação ao tipo de força de trabalho que se tornou cada vez mais central ao processo produtivo numa época na qual a profecia marxista dos Grundrisse, de uma força de trabalho que vai desenvolver a função de general intellect do capital19, parece enfim ter encontrado concretização. Uma vez que a realidade atual do modo de produção vê como central a esse processo um reservatório de capacidades intelectuais que excedem continu­ amente as possibilidades de exploração, controle e contenção da parte da razão capitalista, qualquer forma de “disciplinamento”, mesmo que do tipo mais refinado, perde toda a razão de ser (se vocês me perdoem o nada casual jogo de palavras). A tese é fascinante, mas, parece-me, não completamente convincente. E isso ocorre por múltiplas razões, algumas das quais podem provavelmente ser resumidas na sua excessiva tendencialidade, no seu deslocamento talvez para muito além do calor da (futura) observação, correndo o risco de perder contato com o que podemos observar hoje, à nossa volta. Não é possível, nas poucas páginas de um prefácio, confrontar completamente a riqueza da análise de De Giorgi, menos ainda de um ponto de vista crítico. O ferecere­ mos apenas alguns temas de discussão. Com eçam os olhando à nossa volta. Até alguns meses antes do 11 de setembro de 200120, quem vagasse pelas ruas principais das metrópoles do centro do Império - para usar uma metáfora que recentemente reencontrou um uso intenso21- ou seja, N ova Iorque, Londres, as principais cidades da Califórnia, teria visto em muitas vitrinas nas quais o Império orgulhosamente 18T. Bandini, U. Gatti, M. I.M arugo e A. Verde, Criminologia. Milão, Giuffrè, 1999, p p .651-757. 19 Karl M arx, Lineamenti fondam entali delia crítica deli 'economia política. Florença, La Nuova Italia, 1970 (ed. orig. 1857-1858). Ver sobretudo pp. 400-403. 20 Nesse momento já era mais do que claro, para quem quisesse ver, que estava ocorrendo um a recessão de uma certa consistência nos Estados Unidos. 21 M. Hardt e A. Negri, Impero. Milão, Rizzoli, 2002 (ed. orig. 2000) [N. do T.: edição brasileira Império. Rio de Janeiro, Record, 2001, tradução de Berilo Vargas]. 16

ostentava suas mercadorias o cartaz “ h elp w a n te d ”, “precisa-se de em pre­ gado”. E a essa distraída observação corresponde o fato de que nestes m es­ mos centros do Império a taxa de desemprego caíra quase aos seus mínimos históricos e isso por um período de tem po bastante longo, capaz até de colocar em dúvida, aos estudiosos dos ciclos econôm icos, o prim ado da década de 1960 corno os anos de maior prosperidade do capitalismo recente. E claro que aqueles cartazes de “help w a n ted ’ nutrem um processo de de­ senvolvimento e de ocupação que foi definido, com um bruto mas eficaz neologismo, de “macdonaldização”22. Isso quer dizer que a oferta de trabalho certamente não se dirige para o tipo de emprego perdido nos anos 1970 e 1980 - trabalhos relativamente bem pagos, estáveis, sindicalizados, em grande parte masculinos, com bene­ fícios generosos de tipo assistencial (pensões e assistência médica) e cen­ trais ao processo produtivo - , mas sim para um novo tipo de em prego, muitas vezes part-time, flexível, com pouca ou nenhuma proteção, em gran­ de parte feminino e “marginal” ao percurso produtivo. Isso tanto é verdade que uma das teses mais sérias propostas no interior da academia criminológica norte-americana para explicar o inegável decréscimo da crim inalidade na segunda metade dos anos 1990 - tese alternativa ao estardalhaço feito a propósito da “tolerância zero”, tão característica da Nova Iorque de Rudolph Giuliani e que foi reproduzida de modo mais ou menos análogo era quase todas as outras grandes cidades norte-americanas no mesmo período!23 baseava-se exatamente no fato de que aqueles anos assistiram a uma oferta sustentada de trabalho que se dirigia para os estratos sociais marginais, jo ­ vens e em geral “étnicos de cor”, que tinham sido os protagonistas, alguns anos antes, de um inusitado aumento de violência, ligado às batalhas pelo controle do crack entre as várias gangues24. Isso, em outras e breves palavras, que acontece entre os anos 1970 e 1990, pode ser interpretado também como fase “cíclica”, e em particular como a fase descendente de um “ciclo longo” da economia, aquele tipo de ciclo que é acompanhado por transformações muito profundas do modo de produção capitalista em termos de setores econômicos de ponta, tecnologias,

22 G. Ritzer, II mondo alia M cDonalds. Bolonha, II Mulino, 1997 (ed. orig. 1993). 23 A. De Giorgi, Zero Tolleranza. Strategie e pratiche delia soei età di controllo, cit. 24A. Biumstein e R. Rosenfeld, “ExplainingRecent Trends in U.S. Homicide Rates”, in The Journal o f Criminal Law and Criminology, 88, 1998, pp. 1175-1216 (ver, sobretudo, pp. 1210-1212); R. Rosenfeld, “Crime Decline”, in Context (no prelo). 17

transform ações sociais conexas etc.25. O que De Giorgi cham a de “pósfordismo” poderia também corresponder a uma fase cíclica da economia, mais do que ao tipo de transformação “tópica” que parece transparecer das suas palavras e da literatura na qual se inspira. Isso teria também conseqüên­ cias relevantes do ponto de vista das “estratégias do controle social” , se é que estamos nos referindo ao controle social de tipo formal e penal em par­ ticular, com o me parece ser o caso de De Giorgi. M as avancem os na ordem cronológica. Na passagem dos anos 1960 para os 1970 desenvolve-se um embate duríssimo em muitos países, em particular nos Estados Unidos, que envolve o conjunto da “fábrica social”, como se dizia então. No que concerne aos EUA, devemos recordar a situa­ ção de insubordinação geral, aguda e contemporânea que afetava não tanto e não somente as fábricas (como ocorria, cada vez mais, na Europa), mas também as minorias étnicas, os estudantes, o Exército, os jovens em geral, as mulheres. A “crim inalidade” —que em alguns dos seus aspectos especial­ mente preocupantes para a classe média (o chamado S treet crim e ) havia au­ mentado sensivelmente no correr dos anos 1960 - foi explicada por conta da referida insubordinação. A com eçar pelo primeiro mandato presidencial de Richard Nixon, o martelamento da propaganda esteve na ordem do dia, asse­ m elhando-se bastante àquilo a que fomos submetidos na Itália antes das últimas eleições: o crime não é outra coisa senão a “ponta do iceberg” de uma insubordinação e de uma falta, de controle de “certos” estratos sociais (nos quais, num códice não tão críptico, deviam ser reconhecidas as m ino­ rias de cor, nos Estados Unidos, e os imigrados, na Itália) que colocam em risco a ordem social e em relação aos quais é necessário tomar providências para restaurar o bom tempo passado, que corre o risco de ir-se em bora para sempre se não houver uma intervenção imediata. A repetição deste refrão por cerca de 20, 25 anos, conduziu a um tre­ mendo aumento da penalidade, a que já nos referimos acima (nos Estados Unidos; na Itália, conforme se verá, por causa de algumas contradições de certa importância neste campo, no interior da coligação conservadora que 25 Para a aplicação desta abordagem ao tema da exclusão penal, ver Dario Melossi, “Punishm ent and Social Action: Changing Vocabularies of Punitive M otive Within a Political Business Cycle”, in Current Perspectives on Social Theory, 6, 1985, pp. 169-197; C. Vanneste, Les Chijfres cies Prisons. Paris: L’Harmattan, 2001. As con­ tribuições de Hobsbawm, Kalecki, Kondratieff e Schumpeter encontram -se entre as mais conhecidas que podem ser rem etidas, ainda que de m odos diversos, a essa perspectiva. 18

venceu as eleições). Mas não foi só isso. Ela contribuiu também, ainda que simbolicamente, para um processo de disciplinam ento social geral, que foi acompanhado por uma profunda reestruturação da economia. Vale recordar que nos cerca de 20 anos da “virada”, de 1973 aos primeiros anos da década de 1990, o salário médio horário do trabalhador norte-americano foi reduzi­ do em aproximadamente 20%, e o m otivo pelo qual a renda das famílias permaneceu basicamente a mesma foi a entrada maciça e sem precedentes das mulheres no mundo do trabalho assalariado26. Ao mesmo tempo, os estratos mais fortes da classe operária foram ex­ pulsos do processo produtivo e, por conseguinte, perderam a centralídade de que desfrutavam no passado. Essa central idade foi transferida para a força de trabalho intelectual que se tornou crucial no interior do novo procèsso produtivo “guiado” pela informática, mas que é mínima do ponto de vista ocupacional, ao passo que a m aior parte dos empregos teve lugar no interior dos “serviços” que eram oferecidos às margens desta ju n ta produti­ va central e que, em grande medida, nada tinha a ver com um “terciário avançado” . Trata-se, isso sim, da oferta no mercado de todas aquelas ativi­ dades que anteriormente eram desenvolvidas, em grande parte, por meio do trabalho doméstico não pago (que agora as mulheres executam, cada vez mais, também fora de casa), pelos serviços de restauração veloz, aqueles ao encargo dos jovens e dos velhos em toda uma série de serviços de entreteni­ mento - em resumo, exatamente a “macdonaldização” . Estamos seguros de que é possível afirmar, com relação especialm ente a estes últimos estratos sociais, que não existe mais “projeto de disciplinamento” porque eles não constituem categorias “centrais” ao processo produtivo, no sentido de que não executam aquelas funções do “general intelect", em que

26 W. C. Peterson, The Silent Depression: The Fate o f the American Dream. Nova Iorque, Norton, 1994; J. B. Schor, The Overworked American. Nova Iorque, Basic Books, 1991; Dario Melossi, “Gazette of M orality and Social Whip: Punishment, Hegemony and the Case of the USA, 1970-1992”, in Social & Legal Studies, 2, 1993, pp. 259-279 (pode-se notar, en passant, como este é o “segredo” do extraor­ dinário nível de participação no m ercado de trabalho nos Estados Unidos que hoje é apresentado como um modelo a ser atingido pela economia italiana!). Esse também é o motivo pelo qual, no último ensaio citado, eu propus relacionar as taxas de encarceramento na Itália com o nível da “perform ance” requerida à classe operária em seu conjunto numa determinada fase, ao invés de remetê-las apenas à taxa de desemprego, como a literatura da “economia política da pena” geralm en­ te procede.

os conceitos de capital variável e capital fixo “entraram em colapso”, por assim dizer, em conjunto. Mas se cada vez faz menos sentido a distinção entre capital fixo e capital variável, entre trabalho “produtivo” e trabalho “im produtivo” - visto que, no final das contas, aqueles que inventam novos algoritm os para o software continuam a ter necessidade de quem cozinhe seus hambúrgueres, lave suas camisas e lhes garanta um certo relaxamento à noite, diante de um aparelho de televisão ou em qualquer outro local - se, em suma, é o mesmo “processo de vida real”27que constitui a base da repro­ dução capitalista, como podem os afirmar que o emprego “pós-fordista” é aquele em prego que não necessita mais de um aparato “subalterno” a uma “fábrica social” em vias de desaparecimento, e que, por conseguinte, não requereria mais estratégias de “disciplinamento”? Na m inha opinião, o enorme processo de encarceramento que se verifi­ cou nos Estados Unidos nas “décadas da crise” - para citar Hobsbawm28deveria ser reconsiderado a partir deste ponto de vista, ainda que não haja nenhuma dúvida de que, no seu interior, tenham convivido e ainda convivam tendências de tipo m eramente “detentivo-neutralizante” e tendências, ao con­ trário, de tipo “autoritário-ressocializante” . As segundas, na minha opinião, estão mais presentes exatam ente em virtude da superação da fase mais nítida de reestruturação da economia, nos anos 1970 e 1980, e de retom ada no período posterior, no qual o tema da re-emissão de nova força de trabalho no interior de um a nova fase de desenvolvimento se impôs com m aior peso. Eis que nos anos 1990 com eçam a reaparecer preocupações que são apresenta­ das, com todas as letras, como “neo-paternalistas”, como nos trabalhos de Lawrence M ead29; eis tam bém que na segunda metade de 2000, pela prim ei­ ra vez desde 1972, registrou-se uma diminuição na população de presos30(e o uso da pena capital torna-se, novamente, matéria de discussão entre as elites norte-americanas). Esses acenos de uma inversão de tendência na es­ fera do controle social pareceriam responder, segundo a leitura de longo 27 Karl M arx, Lineam enti fondam entali delia critica d e li’economia política, cit., p. 403. 28 Eric Hobsbawm, II secolo breve. M ilão, Rizzoli, 1995 (ed. orig. 1994). [N. do. T.: edição brasileira A era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo, Com panhia das Letras, 1998, tradução de M arcos Santarrita]. Vale destacar que também para o aumento nas taxas de encarceramento o ano da virada é 1972. 29 L. M ead (ed.), The N ew Paternalism. Washington D. C., Brookings Institution Press, 1997. 30 U. S. Departm ent o f Justice. Bureau of Justice Statistics, Prisoners in 2000.

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ciclo das hipóteses de Rusche e Kirchheimer que aqui são propostas, à in­ versão ocorrida por volta da metade dos anos 1990 no campo das relações socioeconômicas, em direção a uma nova fase ascendente. O que pretendo afirmar, em outras palavras, é que o cárcere parece per­ durar obstinadamente com o uma espécie de grande portão de ingresso ao contrato social, ou mesmo com o introdução à forma de trabalho subordina­ do. E um pouco como se a descoberta dos comerciantes holandeses (e de outros similares), no início do século XVII —isto é, a descoberta de que eles podiam “utilmente” “pôr para trabalhar” , juntam ente com os seus capitais, os pobres, os mendigos, os vagabundos, os ladrõezinhos, os rebeldes que o processo de racionalização da agricultura estava expulsando dos campos continuasse a se reproduzir junto com a “colonização” capitalista de “novos territórios”, territórios que podiam estar dentro de uma jurisdição política e social específica. Um exemplo dessa situação é o deslocamento dos negros americanos do sul para o norte dos Estados Unidos entre o primeiro pósguerra e os anos 1950, ou a entrada em massa no mercado de trabalho das mulheres, especialmente as de cor, dos anos 1970 em diante. Vale notar que as taxas de encarceramento feminino nos Estados Unidos, em bora ainda bastante baixa em termos absolutos, aumentaram de modo sensivelmente maior do que para os homens. Há também as situações externas, como é o caso da im igração africana, asiática, latino-americana e do Leste europeu para a América do Norte e a União Européia. É como se, nas “margens” do desenvolvimento, o processo de “acumulação primitiva” continuasse incessantemente no seu percurso de “colonização” de “mundos” “outros”31. Se considerarmos, por exemplo, no nosso pequeno mundo “italiano” , o m odo pelo qual o fenômeno da imigração fez reviver, em certo sentido, a instituição carcerária - que no Centro-Norte e com respeito a “usuários” específicos, como os menores de idade, está literalmente se “especializando” na direção dos estrangeiros - , compreendese então como “a crise do cárcere” dos anos 1960 e 1970, as suas aparente­ mente manifestas obsolescência e antiguidade estão ligadas a um “público” particular que vinha sendo concebido como “além” do cárcere. A situação mudou de forma dramática a partir dos primeiros anos da década de 1990, quando teve início um processo de imigração de alguma relevância (também 31 J. Habermas, Teoria dei agire comunicativo, vol. 2. Bolonha, II Mulino, 1986 (ed. orig. 1981), pp. 951-1088 [N. do T.: edição brasileira A gir comunicativo e razão destrancendentaüzada. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002, tradução de Lúcia Aragão],

por causa naturalmente de mecanismos jurídicos particulares com o os da permissão de estadia, mas é dos efeitos sociais que aqui nos ocupamos e não da sua legitimação jurídica). Parece-m e difícil, em suma, ignorar o caráter “cíclico” que tão bem des­ creve, em bora não explique, esses fenômenos, também no que diz respeito a uma “filosofia da história” diversa, organizada em torno de uma sucessão de transformações “tópicas” . Em certos níveis de “poder”, adquiridos pela for­ ça de trabalho - poder que ao mesmo tempo é de tipo político-tecnológicosindical no interior da esfera mais diretamente produtiva e de tipo políticopolítico, no seu exterior o trabalho se torna um limite ao desenvolvimento capitalista, determinando portanto uma “crise” dentro da qual ocorre tanto uma “reorientação” produtiva, em direção a um modo de produção que se livre da hipoteca do poder do trabalho, quanto um notável redimensionamento também do poder político da classe operária. Ao mesmo tempo instrumento e sinal de tais processos de reestruturação, emerge uma nova classe operá­ ria, ou novos setores da classe operária, recrutados, exatamente como se dizia acima, no bojo da expansão do desenvolvimento capitalista, quer esse desenvolvimento se dirija para o mercado de trabalho “interno” (jovens, mulheres, ex-trabalhadores agrícolas, ex-pequenos proprietários e em presá­ rios), quer para o “externo” (países há pouco, e de vários modos, incorpora­ dos por um desenvolvimento capitalista mais direto e dinâmico). Esses novos segmentos sociais vão constituir uma “classe operária em formação”32, e em formação pelo menos em dois sentidos: porque se está inserindo no interior de processos de trabalho correspondentes a projetos empresariais novos ou renovados (macdonaldização, transformações indus­ triais, “novo m ercado”); e porque não tem nenhum sentido de si enquanto tal (os clássicos teriam dito que lhes “falta consciência de classe”). E destino com um desses setores da “classe operária em formação” serem normalmen­ te descritos - pelo ressentimento das “velhas” categorias operárias, ajudadas nisso por vários tipos de agitadores e por comentaristas “autorizados”, que se encarregam de racionalizar este ponto de vista - como “excrem ento”, “classe perigosa” , subproletariado, underclass, para usar um termo norteamericano recente.

32 Sobre o caso italiano atual, ver a minha “Introdução” , em Dario Melossi (org.), M ulticulturalism o e sicurezza in Emilia-Romagna: Secondci parte. Q uadem o n. 21-ab dei “Progetto C ittà S icure” . B olonha, R egione E m ilia-R om agna, 2001 (cittasic.ure@ regione.em ilia-rom agna.it). 22

Essas descrições se baseiam , naturalm ente, também era “fatos reais” , visto que o processo de desenvolvim ento capitalista ocorre geralmente de modo um tanto anárquico e irracional, e o deslocamento dos futuros operá­ rios do campo para as cidades não é nem automático nem indolor, provocan­ do fenômenos de inserção de alguns dos novos que chegam no interior dos mercados do chamado “ilícito” (que, por outro lado, faz parte daquele mer­ cado “efetuai” , no interior do qual tam bém se necessita de mão-de-obra, como ocorre hoje na Itália com a droga e a prostituição), e igualmente de rejeição e de hostilidade da parte dos estratos sociais, também operários, precedentes. Por conseguinte, o excrem ento, a classe perigosa, a underclass será encerrada (e “cultivada”) no interior de um sistem a carcerário que, reencontrando seus próprios hóspedes preferidos de sempre - ex-cam pone­ ses que se dirigem à cidade, mesmo que a sua cor, a sua língua ou a sua religião sejam agora diferentes - , se sentirá renascer, reconhecendo nos no­ vos recém-chegados os próprios “eternos hóspedes”, por assim dizer a linfa vital da qual o sistema se nutre (não obstante a ingenuidade ocasional de um ou outro magistrado que, tom ando ao pé da letra a forma do direito, tentou enviar para a prisão, nesse meio tempo, hóspedes por assim dizer “inespera­ dos” , mas isso acabou não dando certo!). Porém, com o já acontecera no passado com aqueles velhos operários (e os seus pais e os seus avós), que agora maldizem a “incivilidade” dos recém-chegados, assim tam bém estes últimos crescerão juntamente com o tipo de desenvolvimento em que foram imersos e encontrarão, de acordo com formas solidárias e organizativas, o modo de considerar a si mesmos, e a outros como eles, não mais como excremento mas como seres hum anos, e daí a pouco tam bém como seres humanos dotados de um certo poder. Como dizia uma palavra de ordem que circulava entremos trabalhadores da província de Reggio Emilia, há cerca de um século atrás, “unidos somos . tudo/divididos somos canalha”33. Para que tal modo de pensar se torne um modo de pensar largamente com partilhado, isso depende não somente do esforço infatigável de organizadores e ativistas, mas também, e naturalm en­ te, dos acontecimentos registrados no desenvolvimento das forças produti­ vas (muito embora as duas coisas não possam ser separadas uma da outra). O fato é que, quando isso acontecer, e la canaille não for mais a canalha, este será também o momento em que novamente o cárcere será visto como

33 M aterial recolhido por ocasião da celebração do centenário da C âm ara do Trabalho de Reggio Emilia (2001).

um resíduo arcaico do passado e serão previstas novas “alternativas” puniti­ vas, “correcionais” e “reeducativas” ; ao mesmo tempo, em algum canto do mundo, as prim eiras patrulhas em busca de uma nova “canalha” estarão começando a apressar-se, num incansável movimento, em direção aos con­ fins do contrato social/império.

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Introdução Paris, 1676. Não obstante num erosas providências, todo o restante dos mendigos continuou a viver em plena liberdade em toda Paris e nos subúrbios; eles chegavam ali provenientes de todas as províncias do reino e de todos os países da Europa. O seu número crescia dia após dia, até se constituírem como um povo independente, que não conhecia nem lei, nem religião, nem autoridade, nem polícia; a crueldade, a baixeza, a libertinagem era tudo que reinâva entre,eles. No dia 13, uma m issa solene ao Espírito Santo foi cantada na igreja da Pitié e no dia 14 a reclusão dos Pobres foi levada a bom termo sem nenhuma perturbação. Naquele dia toda Paris mudou de aspecto, tendo a maior parte dos mendigos se retirado para as províncias, e os mais espertos pensando em encontrar sustento com as suas próprias forças. Houve, indubitavelmente, um ato da proteção divina sobre esta grande iniciativa, porque não se poderia jam ais acreditar que se chegaria a um resultado tão feliz com tão pouco esforço1.

Nova Iorque, 1997. Grafites e outros sinais da desordem estavam por toda parte. Durante os anos 1970 e boa parte dos anos 1980, não havia um único vagão do metrô da cidade que não estivesse com pletam ente coberto daquilo que alguns, impropriamente, definiam como uma forma de arte urbana, os grafites. A s estações do metrô transformavam-se em bidonvilles para os homeless, e a esmola arrogante crescia, exacerbando um clima de medo. Assim, mal você colocava os pés em Manhattan, dava de cara com o estandarte não oficial da cidade de Nova Iorque; a epidemia dos lavadores de carros. Bem-vindo a Nova Iorque. Estes tipos tinham sempre nas mãos um trapo sujo, e empor-

'.L'Hòpital Général, opúsculo anônimo de 1676, citado por Michel Foucault in Storia delia fo llia n ell’età classica, trad. it. Milão, Rizzoli, 1998, pp. 459-460. [N. do T.: edição b rasileira H istória da loucura na Idade C lássica. São Paulo, Perspectiva, 1989, tradução de José Teixeira Coelho Netto], 25

calhariam o vidro do teu carro com algum líquido imundo, para depois pedir dinheiro. Quem andasse pela Quinta Avenida, pela área dos negócios da alta moda e dos edifícios chiques, esbarrava por toda parte com ambulantes não autorizados e m endigos. Se voltasse ao metrô, deparava com artistas equilibristas que se comportavam como vândalos, exigindo que os passageiros lhes dessem dinheiro. M endigos em todos os vagões. Nos trilhos, cidades de papelão serviam de moradia aos homeless. Dominava a sensação de uma cidade permissiva, de uma sociedade que autorizava coisas que não teriam sido permitidas anos antes2. A primeira impressão que se pode ter ao se ler os textos reproduzidos acima é que pouca coisa mudou nos três séculos que separam a Paris do Hôpital Général da Nova Iorque da Zero Tolerance. O autor anônimo do opúsculo do século XVII e o ex-chefe de polícia de Nova Iorque, que foi o principal artífice das estratégias da Zero Tolerance, parecem se inspirar na mesma filosofia: idêntico é o desprezo pór aquela pobreza extrem a que, de modo desabusado, ousa mostrar-se, contaminando o ambiente metropolitano; idêntico o entrelaçamento entre motivos morais e alusões vagamente eugênicas; idêntica a hostilidade contra tudo aquilo que perturba o quieto e ordenado fluir da vida produtiva citadina, defendendo-a da infecção do não-trabalho, do parasitismo econômico, do nomadismo urbano; idêntica, sobretudo, a implícita equação entre marginalidade social e criminalidade, entre classes pobres e classes perigosas. Todavia, a uma observação mais atenta, esta impressão se revela completamente inexata. O opúsculo anônimo se coloca historicamente no limiar da transição de um regime de poder, que Michel Foucault define como “soberano”, para um modelo de controle de tipo “disciplinar” . Diante do espetáculo da mendicância, da pobreza e da dissolução moral oferecido pelos pobres na Europa entre os séculos XVII e XVIII, as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa, de destruição e eliminação física do desvio, a uma função p o sitiva , de recuperação, disciplinam ento e norm alização dos diferentes. É aqui que se inicia a era do “grande internam ento” . Pobres, vagabundos, prostitutas, alcoólatras e criminosos de toda espécie não são mais dilacerados, colocados na roda, aniquilados simbolicamente através da destruição teatral dos seus corpos.

2 W. J. Bratton. “Crime is Down in New York City: Blame the Police” , in N. Dennis (ed.), Zero Tolerance. Policing a Free Society. Londres, Institute o f Econom ic Affairs, 1997, pp. 33-34.

De forma muito mais discreta, silenciosa e eficaz, eles são encerrados. E les começam a ser internados porque se com preende que eles são passíveis

de constituir uma massa que as nascentes tecnologias da disciplina podem forjar, plasmar, transformar em sujeitos úteis, isto é, em fo rça de trabalho. Do “direito de morte” ao “poder sobre a vida”, da neutralização violénta de indivíduos “infames” à regulação produtiva das populações que habitam o território urbano, é isso que, com vigor religioso, o autor anônimo do opúsculo invoca, ao m esm o tem po que anuncia p recisam ente o »na«cimení©-*4a írmpolftica3. A rticulando-se entre disciplina do corpo eregulação dos grupos hum anos, 'a biopolítica organiza um poder eficaz sobre a vida, agrupa um conjunto de tecnologias de governo que contrapõem à dissipação e ao esbanjam ento (dos corpos, das energias, dos recursos, m as também do poder) um a gestão racional das forças produtivas'. a ad e q u açã o da ac u m u la ç ã o d o s h o m e n s à do capital, a articulação do c re s c im e n to dos g ru p o s humanos c o m a e x p a n s ã o d a s forças produtivas e a repartição d iferen cial do lucro se tornaram possíveis cm parte devido ao ex ercício do biopoder, e m suas formas e com os procedimentos os mais variados. O investimento do corpo vivo, a sua valorização e a gestão distributiva das suas forças foram, naquele momento, indispensáveis . J n ausura-se. assim, Jõ modelo de controle social disciplinar que carac­ terizará toda a fase de expansão da sociedade industrial, até o seu apogeu, durante o período do capitalism o fordistãTJSerá, de fato, no decorrer da primeira metade do século XX que o projeto de uma perfeita articulação entre disciplina dos corpos e governo das populações se completará, materializando-se no regime econômico da fábrica, no modelo social do Welfare State e no paradigma penal do cárcere “correcional”. Zero Tolerance e as práticas de discurso que a acompanham já se situam num contexto radicalmente mudado, marcado pela crise e pelo progressivo

3“Poder-se-ia dizer que o velho direito de fazer morrer ou deixar viver foi substituído por.um poder de fazer viver ou de rejeitar a morte”(Michel Foucault, La volontà di sapere, trad. it. Milão, FeHnnelii, 1997, p. 122) [N. do T.: edição brasileira História da sexualidade 1: vontade de saber. São Paulo, Graal, 1977, tradução de.M aria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque]. 4 Iclem, p. 125.

abandono do grande projeto disciplinar da modernidade capitalista. Aqui, as tecnologias do disciplinamento não são mais um instrumento eficaz de controle e governo da dissipação e do desperdício da força de trabalho (talvez porque dissipação e desperdício não existam mais) jPobres, desempregados, m endi­ gos, nômades e migrantes representam certamente as novas classes perigosas, “os condenados da m etrópole” , contra quem se mobilizam os dispositivos de controle5, mas agora sãoj;jiiprewadas^estt3 tégia&.difereiites nesse confronto? Trata-se, antes de tudo, de indmdualizá-los e separá-los das “classes laboriosas”. Esta tarefa é, de fato, bastante simples numa metrópole produtiva, na qual a contínua precarização do trabalho, o emprego - que se torna cada vez mais flexível, incerto e transitório - , e a constante superposição entre economia “legal” e econom ias subm ersas, inform ais e tam bém ilegais, determ inam um a progressiva solda entre trabalho e não-trabalho e entre classes laboriosas e classes perigosas, a ponto de tomar qualquer distinção praticamente impossível. Tratase, pois,, d efneutralizar a “periculosidade” das classes perigosas através de técnicas de prevenção do risco, que se articulam principalmente sob as formas de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária^ Se voltarmos o olhar às tecnologias de controle que em ergem no ocaso do século XX e anunciam a aurora do século XXI, podem os certamente falar de u m segundo grande internamentOLX>e um internamento urbano, que tem a forma do gueto, de um internamento penal, que tem a forma do cárcere, e de um internamento global, que assume a forma das inum eráveis “zonas de espera”, disseminadas pelos confins internos do Império6. Porém, diferen­ temente do internamento do qual nos fala Foucault, a sua reedição atual não parece cultivar nenhuma utopia de tipo disciplinar. O novo internamento se configura mais do que qualquer outra coisa co m o |iin a tentativa de definir /um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou im aterial em í torno das populações que são “excedentes”,/seja a nível global, seja a nível metropolitano, em relação ao sistem a de produção vigente.

5 S. Palidda, Polizia postmoderna. Etnografia dei nuovo controllo sociale. M ilão, Feltrinelli, 2000. 6 M. Hardt e A. Negri, Impero. II nuovo online delia globalizzione, trad. it. M ilão, Rizzoli, 2002 [N. do T.: edição brasileira Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, tradução de Berilo Vargas]. Pensamos aqui, obviamente, nos processos de controle implementados em relação aos migrantes. Sobre esse tema, ver particularm ente S. M ezzadra e A. Petrillo (org.), / confini delia globalizzazione. Lavoro, cultura, cittadinanza. Roma, M anifestolibri, 2000. 28

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Aqui se determina, por conseguinte, uma nítida separação entre biopolítica e d isc ip lin a rid a d e , na qual a prim eira se expressa, paradoxalmente, através da negação da segunda. Resta a instalação biopolítica de um poder entendido mais como regulação de populações produtivas, como controle dos fluxos da força de trabalho global num espaço tornado imperial, e menos como aquela “anatomo-política do corpo” da qual nos fala Foucault, aquele “fazer viver” produtivo que integra, ao nível dos indivíduos singulares, a regulação das populações no seu conjunto. Também têm menos espaço aquelas tecnologias de sujeitificação que perseguiam o objetivo de transform ar os indivíduos por meio de um co n tro le in d ivid u a liza d o . Em outras palavras, (não se trata mais de “fazer viver ou repelir a morte” , mas talvez de “fazer viver a tra vés do repelir a m orte^jEste “repelir a morte”, imposto a uma parte da força de trabalho global, parece constituir-se hoje no pressuposto para “fazer viver” a produtividade social conjunta do capitalismo pós-fordista. Falamos aqui de uma morte que se concretiza na violência institucional dos dispositivos de controle que sustentam o domínio ca p ita lista, de u m a m o rte q u e incide sobre a e x istê n c ia afetiva, social e econômica dos indivíduos e que se apresenta como limitação das expectativas subjetivas, como e x p ro p ria ç ã o d e possibilidades, como negação do direito de circular livremente.(Antes e ainda mais do que da morte b iológica, , /falamos da morte como experíencia b io g rá fic a da força de trabalho contemporânea, que se materializa na biografia dos migrantes que morrem nos confins da fortaleza européia, na tentativa de exercitar um “direito de fuga” I negado7, nas biografias dos dois milhões de prisioneiros encerrados no g u la g \ americano ou nas daqueles para quem o horizonte de vida tende a coincidir/ |,com a fronteira de um gueto. Michel Foucault reconstruiu a genealogia de um poder disciplinar que se inscreve na formação do modo de produção capitalista e que se estende até à época da sociedade industrial fordista. A disciplinaridade pode ser compreendida apenas a partir da constituição da produção industrial, do seu nascimento ao seu declínio. Por sua vez, o desenvolvimento do capitalismo industrial não pode ser concebido se prescindirmos das estratégias de produção de subjetividade e de força de trabalho que se concretizam nas técnicas disciplinares. Mas aquilo que 7 Sobre “direito de fuga” (entendido, também, significativamente, como exercício de uma “crítica prática” da divisão internacional do trabalho), ver S. Mezzadra, ‘Migrazioni”, in A. Zanini e U. Fadini (org.), Lessico postfordista. Dizionario cli idee delia mutazione. Milão, Feltrinelli, 2001, pp. 206-211; e S. Mezzadra, Diritto di fuga. Migrazioni, globaUzzazione, cittadinanza. Verona, Ombrecorte, 2001. 29

temos hoje diante de nós é precisamente a superação do m odelo capitalista fordista para o qual aquelas tecnologias foram por tanto tempo destinadas8. Percebemos sinais inequívocos desta superação. Dispomos de descrições, análises e definições que, sobretudo nos últimos dez anos, foram condensadas numa já extensa literatura9. O termo “pós-fordismo” - em uso tanto na linguagem sociológica, política e econômica, quanto no léxico comum —indicanos saltos de paradigm a e transições radicais, que reescrevem a fundo a nossa experiência da contempOraneidade. Ao mesmo tempo, em ergem tentativas de reconstrução das mutações que investem a geografia do controle social. Termos como “sociedade de controle” e “sociedade da vigilância” parecem indicar o epílogo e a superação do regime disciplinar, uma transição que se consumiria a partir do esgotamento da estrutura produtiva fordista. Todavia, enquanto o trabalho de M ichel Foucault inscrevia a análise do “controle disciplinar” diretamente na materialidade das relações de produção capitalistas, nos processos de constituição do proletariado e nas formas de produção de subjetividade da força de trabalho industrial, as análises das estratégias do “ co n tro le s o cial” custam a assum ir u m a p e rsp ectiv a metodológica análoga, limitando-se essencialmente a uma fenomenologia de superfície, Em outros termos, podemos afirmar que^ã disciplinaridade se revela cada vez mais inadequada com relação às novas formas de produção e impotente para exercitar práticas de controle eficazes no confronto com as novas subjetividades do trabalho;/porém, não estamos em condições de reconduzir essa inadequação e essa impotência aos processos de transformação em curso na produção. Chegamos assim ao objeto deste livro, que consiste na individualização de algumas hipóteses para preencher este aparente vazio. O Qbjetjyp, um tanto am bicioso, consiste em (descrever algumas mutações ocorridas nas formas do controle a partir da emergência de uma nova articulação das relações de produção, perguntando-se de que modo as estratégias atuais de controle se inscrevem no contexto produtivo pós-fordistaTJNo entanto, fazer essa 8 “A abordagem foucaultiana permite ler o desenvolvimento da sociedade moderna e a relação nela existente entre Estado e sociedade até o momento histórico do fordismo (...) Mas é este, exatamente, o ponto crucial. Esta configuração é arrastada, faz tempo, numa crise aparentemente sem saída, pelo desmoronamento do seu eixo central, vale dizer, do valor social paradigmático da disciplina de fábrica de tipo fordista” (L. Ferrari Bravo, “Sovranità”, in Zanini e Fadini (org.), Lessico postfordista, cit.,p.280). 9 A transição do fordismo ao pós-fordismo (e as descrições desta transição) será objeto de um a seção posterior desta obra. 30

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pergunta significa, necessariamente, fazer convergir a análise do controle com aquela, complementar, da força de trabalho contemporânea, até o ponto de fundir as duas. Entra aqui em jogo o conceito, fundamental, de “multidão!’, com o qual se pretende exprimir o caráter compósito, enraizado e múltiplo da força de trabalho pós-fordista, em relação à qual um conjunto de caracterizações, distinções e separações, referenciáveis à classe operária, parece perder progressivamente consistência. Vale dizer porém que o conceito de multidão não pretende aludir a uma subjetividade auto-consciente, à emergência de um novo sujeito revolu­ cionário, ou à formação de uma identidade paradigmática da força de trabalho contemporânea. Ao contrário, o term o m ultidão define um processo de subjetivação em andamento, um “tornar-se m últiplo” das novas formas de trabalho sobre as quais convergem as tecnologias do controle pós-disciplinar. Multidão indica, sobretudo, a im possibilidade de uma rechictio acl unam das diversas subjetividades produtivas comparáveis àquela que permitia individua­ lizar, na classe operária, a forma de subjetividade hegemônica durante a época do capitalismo fordista. A partir do conceito de multidão veremos então que aquela que, à primeira vista, se revela como inadequação das tecnologias disciplinares em relação ao novo horizonte produtivo, configura-se, na realidade, como um excesso daquilo que deve ser controlado (a nova força de trabalho social) no que concerne aos dispositivos de controle, uma nova constituição do trabalho que transgride continuamente as determinações e as formas de subjetivação impostas pelo domínio. Será então possível afirmar que/a construção de um modelo de governo do excesso expressa pela multidão produtiva pós-fordista toma-se uma prioridade das atuais estratégias de controleJSerá preciso, porém, articular estas transições seguindo uma certa ordem e situá-las num contexto histórico mais geral. A economia política da penalidade parece poder-nos oferecer esta possi­ bilidade. Trata-se de uma orientação da criminologia crítica, de derivação princi­ palmente marxista e foucaultiana, que investigou, sobretudo a partir dos anos 1970, a relação entre economia e controle social, reconstruindo as coordenadas da relação que parece manter juntas determ inadas formas de produzir e determinadas modalidades de punir10. Como veremos, ela concentrou suas 10 O texto fundamental, do qual depois foram derivadas mais ou menos diretamente todas as análises posteriores, é G. Rusche e O. Kirchheimer, Pena e struttura sociale. trad. it. Bolonha, II Mulino, 1978 ]N. do T.: edição brasileira: Punição e estrutura social, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2a ed., 2004, tradução e apresentação de Gizlene Neder].

próprias análises particularmente nos nexos entre “cárcere e fábrica”, entre “encarceramento e desem prego” , questionando a relação entre dinâm icas do mercado de trabalho e estratégias repressivas no interior de um cenário fordista. Mas os instrumentos críticos produzidos pela economia política da penalidade - tanto por meio da reconstrução histórica do nascimento da penitenciária e da reclusão quanto através da análise da relação atual entre econom ia e pena - constituem uma herança significativa, que deve ser recolhida e levada em conta para se empreender uma crítica do controle social pós-fordista. Por conseguinte, gostaria de ter como ponto de partida a economia política da penalidade para nela individualizar as diretrizes teóricas fundamentais e investigar sua dupla dimensão histórica e contemporânea. Emergirão, assim, alguns lim ites d este p arad ig m a de análise, ligados em p a rtic u la r às transform ações que, nestes anos, afetaram a produção social. Será, pois, necessário valtar nossas atenções para estas transform ações, para nelas colhermos as tendências e os efeitos no plano da subjetividade produtiva. Apenas neste momento serão pesquisadas as formas de controle da multidão através das quais um regime de governo do excesso começa a se revelar. Parte deste trabalho constitui uma reelaboração de dois artigos: “ OItre 1’economia politica delia penalità: posfordismo e controllo delia moltitudine” [“Além da econom ia política da penalidade: pós-fordismo e controle da m ul­ tidão”], in D ei delitti e dellepene, 1-2, 2000, e “Società di controllo: lavori in corso” [“Sociedade de controle: trabalhos em curso”], in DeriveAprodi, 20, 2001 . Desejo agradecer a Venere Bugliari, Richard Sparks, Stefania D e Petris, Thea Hinde, Dario M elossi e Sandro Mezzadra pelos seus preciosos co­ mentários.

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Capítulo 1 Regime disciplinar e proletariado fordista A p rim eira fu n ç ã o era subtrair o tempo, fa ze n d o com que o tem po dos homens, o tem po das suas vidas, se transform asse em tem po de trabalho. A segunda fu n ç ã o consistia em fa z e r com o que o corpo d os hom ens se tornasse fo r ç a de trabalho. A fu n ç ã o de transform ação do corpo em fo r ç a de trabalho corresponde à fu n çã o de transform ação do tem po em tem po de trabalho. M. Foucault, A verdade e as fo rm a s ju ríd ica s

Econom ia política do con tro le social A criminologia nasce como um saber inseparável das tecnologias de po­ der que remetem ao universo criminal. Ela é produto daquilo que Foucault define como “civilização inquisitória” . A sua genealogia faz parte do proces­ so histórico de transformação no sentido “governam ental” da razão de Esta­ do que tomou forma entre os séculos XVIII e XIX. Neste período, a ciência de governo se especializa e se diferencia em seu próprio interior, dando vida a saberes sobre a população, tais como a estatística, a urbanística, a higiene, a psiquiatria, a medicina social e a crim inologia". O potencial “inquisitorial” - que a criminologia acumula e, ao mesmo tempo, libera em relação ao des­ vio - produz, por conseguinte, uma ordem peculiar do discurso e um con­ junto de verdades que se concretizam historicamente nas figuras do h o m o crim inalis, do reincidente, do ambiente críminógeno e da classe perigosa'2. . 11 M. Foucault, “La governamentalità” , trad. it. .in M. Foucault, Poteri e strategie. L ‘assoggetamento dei corpi e Velemento sfuggente (P. Delia Vigna, org.). Milão, r^M im esis, 1994, pp. 43-67. 12 “A inquisição: forma de poder-saber essencial à nossa sociedade. A verdade da experiência é filha da inquisição - do poder político, administrativo, judiciário de "Q/Colocar perguntas, de extorquir respostas, de recolher testemunhos, de controlar afirmações, de estabelecer fatos —como a verdade das medidas e das proporções era

Ao longo de toda a prim eira metade do século XX, a investigação criminológica perm anece fortem ente caracterizada por um saber a serviço do “príncipe”, incapaz de superar o estatuto epistemológico consolidado na fase inicial da sua história. Esta marca fundamentalmente “tecnocrática” , que torna a criminologia uma verdadeira “ciência de polícia” (Polizeiwissenschaft), dificulta por muito tempo a elaboração de teorias do controle social, ou seja, a formação de paradigmas de análises capazes de interrogar criticam ente as dinâmicas de reação social e institucional em relação ao desvio. Apenas com o desenvolvimento das teorias do “etiquetam ento” nos anos 1960 é que o poder punitivo faz o seu ingresso efetivo no horizonte crim i­ nológico como universo de investigação parcialmente independente da cri­ m inalidade13. Os teóricos do “etiquetamento” foram os primeiros a prom o­ ver um processo de renovação crítica do saber crim inológico, propondo uma valorização do desvio enquanto diversidade estigmatizada pelos m eca­ nismos de poder. Porém, ao fazerem isso, eles continuaram confinados aos limites de uma perspectiva micro-sociológíca. “ R e v o lu c io n á rio ” sob ce rto s aspectos, o projeto interacionista —vo ltad o para uma reavaliação da identidade desviante diante dos rituais de repressão e degradação social dos quais é objeto - não se fundamentava, porém, e m

hipóteses abrangentes, relativas ao fundamento material do poder de “eti­ quetar” e reprimir. De um lado, o universo desviante descrito pelos labelling theorists parece incapaz de produzir resistências ao poder que não sejam totalmente individuais e quase sempre oportunistas. Por outro lado, o poder de definição do desvio só encontra algum fundamento nos processos de interação simbólica que têm lugar no microcosmo das instituições totais14. E sses aspectos tendem a p reju d icar o potencial crítico da análise “interacionista” em relação às estratégias punitivas, visto que restituem uma

filha de dike” (M. Foucault, 1 corsi al College de France. I Resumées, trad. it. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 22) [N. do T.: edição brasileira Resumo dos cursos do Collège de France: 1970/1982. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, tradução de Andréa Daher, consultoria de Roberto Machado], Sobre o nascimento da criminologia e sobre a sua relação com a ‘‘governamentalidade’’ e a disciplina, ver R Pasquino, “Criminology: the Birth of a Special Saviour”, in Ideology and Consciousness, 7, 1980, pp. 17-33. 13 Sobre as teorias de etiquetamento, ver a coletânea de escritos publicados em E. Rubington & M. Weinberg (eds.) Deviance. The Interactionist Perspective. Nova Iorque, M acM Illan, 1973. 14 E. Goffman, Asylum s, trad, it. Turim, Einaudi, 1968. 34

im a g e m d o p o d e r p u n i t i v o f u n d a m e n t a l m e n t e d es-h isto ric iz.a d a e descontextualizada. A c rim in o lo g ia crític a co m eç a, p o rta n to , a d e n u n c ia r a urgência d e u m a fu n d ação m a te ria lista d a an á lise d os p ro c e sso s in stitu cio n a is dc co n tro le do d esvio, is to é, d e u m a a n á lise ca p a z de e x a m in a r critic a m e n te os Icibellers (as in stitu içõ e s e as e stra té g ia s do p o d e r p u n itiv o ) e ta m b é m os la b elled (aq u eles que são os d e stin a tá rio s im e d ia to s d o s la b ellers). E sse e s­ tím ulo político-intelectual d e te rm in a , ou p elo m en o s ag iliza, d e m o d o sig n ifi­ cativo, a e n tra d a do m a rx ism o n a so c io lo g ia crim in al, o c o rrid a e n tre o final da d éc ad a de 1960 e o in ício d o s an o s 1 9 7 0 15. Nao d u as as p rin cip ais d ire ç õ e s d e in v e stig a ç ã o q u e se d elin e ia m n este período. A p rim eira é c o n s titu íd a p o r um c o n ju n to d e e stu d o s h istó ric o s q u e descrev em o p ap e l e x e rc id o p e lo s siste m a s p ro d u tiv o s n a a firm a ç ã o h istó ri­ ca das re la ç õ e s d e p ro d u ç ã o c a p ita lis ta s 16, U m a h istó ria d a p ena, q u e até aquele m o m en to era re p re se n ta d a c o m o um p ro g resso c o n tín u o d a c iv iliz a ­ ção ju ríd ic a em d ireção à ra c io n a lid a d e e à h u m a n iz a ç ã o d a p u n ição , ag o ra é descrita co m o u m a concatenação d e estra té g ia s co m as q u a is a o rd em c a p i­ talista im p ô s, no tem po, suas fo rm a s p e c u lia re s de su b o rd in a ç ã o e re p ressão de classe. Já a seg u n d a d ireç ão d e in v estig açã o se o rie n ta p a ra as p rá tic as co n tem p o rân ea s dos siste m a s d e c o n tro le e, so b re tu d o , d o d isp o sitiv o c a rc e ­

15 Ver sobretudo a crítica na perspectiva m arxista feita por Alvin Gouldner aos labelling theorists no seu P er Ia sociologia. Ri/movo e critica delia sociologia dei nostri tempi, trad. it. Nápoles, Liguori, 1977. Seria sim plista rem eter as diver­ sas orientações que se desenvolveram neste período no âm bito da crim inologia crítica apenas à influência teórica do marxismo. Surgem, por exemplo, correntes anarquistas, que se consolidarão posteriorm ente no m ovim ento abolicionista, e, sobretudo, são lançadas as bases para o nascim ento das diversas crim inologias feministas. Para uma reconstrução da história da crim inologia crítica em todas as suas correntes (embora lim itada ao contexto europeu), das suas origens até a metade dos anos 1990, ver R. Van Swaningen, Criticai Criminology. Visions froni Europe. Londres, Sage, 1997. 16 M. Foucault, Sorvegliare e punire, trad. it. Turim, Einaudi, 1976 [N. do T.: edição brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 2002, 26a ed.; tradução de Raquei Ramalhete]; M. Ignatieff, Le origini dei peninteziario. Sistema carcerario e rivoluzione industriale inglese 1750-1850, trad. it. M ilão, Mondadori, 1982; Rusche e Kirchheimer, Pena e struttura sociale, cit.; D. Rothman, The Discovery o f the Asyliim. Social Order and D isorder in the New Republic. Boston, Little Brovvn, 1971; D. M elossi e M. Pavarini, Cárcere efabbrica. B olo­ nha, II Mulino, 1977 [N. do T.: edição brasileira Cárcere e fábrica. Rio de Janeiro, Kevan/ICC, 2006, tradução de Sérgio Lamarão],

rário. A análise se concentra, aqui, no papel desempenhado pelos aparelhos : repressivos em relação às dinâmicas econômicas atuais e, em particular, em relação ao funcionamento do mercado de trabalho nas sociedades industria­ lizadas. A convergência dessas duas direções de investigação dá forma, final­ mente, a uma crítica m aterialista da penalidade. O fio condutor da econom ia política da pena é construído pela hipótese geral segundo a qual a evolução ; das formas de repressão só pode ser entendida se as legitimações ideológi­ cas historicam ente atribuídas à pena forem deixadas de lado. A penalidade absorve uma função diversa e posterior em relação à função m anifesta de controle dos desvios e defesa social da crim inalidade. Esta função “latente” pode ser descrita situando-se os dispositivos de controle social no contexto das transform ações econôm icas que perpassam a sociedade capitalista e as contradições que delas derivam. Tanto a afirmação histórica de determ ina­ das práticas punitivas quanto a perm anência dessas práticas na sociedade contem porânea devem ser reportadas às relações de produção dominantes, às relações econômicas entre os sujeitos e às formas hegem ônicas de orga- . nização do trabalho. A penalidade se inscreve num conjunto de instituições jurídicas, políticas e sociais (o direito, o Estado, a família), que se consolidam historicamente em função da manutenção das relações de classe dominantes. Não é possível descrever os processos de transformação que interessam a essas instituições se não se levar em conta os nexos que ligam determinadas expressões da dominação ideológica de classe no interior da sociedade às form as de dom inação material que se m anifestam no âmbito da produção. O controle do desvio enquanto legitimação aparente das instituições penais constitui, pois, um a construção social por meio da qual as classes dominantes preservam as bases materiais da sua própria dominação. As instituições de controle não tratam a crim inalidade como fenômeno danoso aos interesses da sociedade em seu conjunto; ao contrário, por meio da reprodu­ ção de um im aginário social que legitima a ordem existente, elas contribuem para ocultar as contradições internas ao sistema de produção capitalista. Em outras palavras, numa sociedade capitalista o direito penal não pode ser colocado a serviço de um “interesse geral” inexistente: ele se torna, necessari­ amente, a expressão de um poder de classe. Por outro lado, porém, o caráter complexo das relações entre estrutui econôm ica material e instituições punitivas não pode ser subestimado cas se queira ev itar a recolocação de um paradigm a teórico abalado pel 36

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determinismo e pelo economicismo. Esse problem a já era eficazmente ilus­ trado por Georg Rusche em seu já célebre artigo de 1933, no qual definia as linhas teóricas da econom ia política da pena: É necessário que não se confunda a independência teórica do fenô­ meno criminal e da luta conduzida contra ele, empreendida por meio da argumentação histórica e econômica, com a completa clarificação do problema. As forças às quais se reconhece eficácia através de uma análise deste tipo não são as únicas que contribuem para determinar o objeto da nossa pesquisa, que, por conseguinte, é im­ perfeita e limitada em muitos aspectos . A ligação entre econom ia e penalidade não deve ser, pois, considerada como resultado de um automatismo, como uma relação mecânica mediante a qual a superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida, de modo linear, da estrutura material das relações de produção. Ainda que ocupe uma posição de proem inência em relação a outros fatores sociais, o universo da economia simplesmente contribui para definir a fisionom ia histórica dos diversos sistemas punitivos. Porém, de acordo com Rusche, esta perspec­ tiva materialista de análise da penalidade estava ausente de todas as corren­ tes criminológicas, de derivação sobretudo positivista, que lhe eram contem ­ porâneas: Elas não mantêm nenhuma ligação com a teoria econômica, e por, tanto não se reportam à base material da sociedade, e nem sequer são historicamente orientadas. Isso significa que elas pressupõem uma constância na estrutura social que na realidade não existe e que absolutizam^ de modo inconsciente, as condições sociais reais do observador . Trata -se, portanto, de superar um a dimensão teórica da crim inologia enquanto ciência da crim inalidade, como saber-poder sobre as causas indi­ viduais e sociais do desvio, e de construir uma crítica histórico-econôm ica da formação dos sistem as repressivos. A emergência de formas determ ina­ das da penalidade é o resultado da convergência de forças culturais, políti­ cas e sociais, que em bora não sendo o reflexo necessário dé determinadas articulações das relações de produção, estão intimamente conectadas a es­

G. Rusche, “II mercato di lavoro e 1’esecuzione delia pena. Riflessioni per una sociologia delia giustizia penale”, trad. it. in La Questione crininale, 2, 1976, p. 522. 18Idem, pp. 521-522.

sas últimas, A estrutura material da sociedade inform a a geografia das rela­ ções de domínio e subordinação que aí prevalecem e, ao mesmo tempo, acelera o processo de consolidação das instituições sociais que reúnem con­ dições de favorecer a sua reprodução. A história da pena deverá, por conse­ guinte, tornar-se uma história econôm ica e social dos aparelhos repressivos que se constituem como dispositivos reguladores das relações de ciasse. Ela é “algo mais do que uma história do suposto desenvolvim ento particular de uma ‘instituição’ legal qualquer. Ela é a história das relações entre as ‘duas nações’ [..,] que compõem a população, os ricos e os pobres” 19. O corre aqui, evidentem ente, uma profunda ruptura com relação à historiografia jurídico-penal tradicional. As transformações históricas da pena representam não o resultado do progresso da sociedade, mas, pelo contrá­ rio, a evolução das estratégias com as quais a prim eira das “duas nações” sempre impôs sua própria ordem social à segunda. Contando com a contri­ buição de Otto Kirchheimer, Georg Rusche escreverá a história destas duas nações num livro de título definitivo, Punição e estrutura social. Publicada em 1939, essa obra ficaiá. (odavia, por muito tempo esquecida. A economia política da penalidade desaparecerá por aproxim adam ente 30 anos do hori­ zonte crim inológico e sociológico. Apenas em 1969, com a reedição desse livro, o program a teórico de Rusche será finalmente retomado pela nascente crim inologia crítica. Não é difícil com preender as razões do esquecim ento e da posterior redescoberta. O texto de Rusche e Kirchheim er vem à luz pela primeira vez nos anos 1930, em circunstâncias históricas particularm ente adversas ao marxismo nos Estados Unidos e às ciências sociais na Europa. O advento dos regim es totalitários após o segundo conflito mundial e de uma recons­ trução pós-bélica que enfatizará uma concepção tecnocrática dos proble­ mas sociais e, conseqüentemente, do desvio, certamente não estimulam o desenvolvimento das perspectivas críticas apresentadas em Punição e es­ trutura social. No entanto, no contexto muito diferente dos anos 1960 e 1970, parece finalmente estar colocado o espaço intelectual e político para uma crítica materialista das instituições repressivas, um espaço no qual a crim inologia crítica e a economia política da pena ganham uma posição de destaque.

19 Jdem, pp. 528. 38

N ascim ento d a sociedade in d u s tria l c disciplinamento do proletariado As h ip ó teses centrais de R u s c h e são duas. A p rim e ira é q u e q u a lq u e r sistema re p ressiv o deve, n e c e ss a ria m e n te , in sp irar-se n u m a ló g ica de p r e ­ venção: o o b jetiv o im ediato d as pen a s é d iss u a d ir o s c rim in o s o s e m po ten cia l

de v io lar as leis. P or outro lado, p o ré m , são as classe s s u b o rd in a d a s q ue cometem esses crim es - so b re tu d o c o n tra a p ro p rie d a d e - e é p a ra elas q ue o sistema penal se dirige se le tiv a m e n te . A se g u n d a h ipó tese é que as m o d a li­ dades c o m as q uais se c o n c re tiz a o o b je tiv o d a p re v e n ç ã o v a ria m h isto ric a ­ mente e m re la ç ã o ao u n iv erso d a e c o n o m i a e, s o b re tu d o , à s itu açã o d o m e r­ cado de trabalho: E n sin a a experiên cia q ue os delitos são co m etid o s, e m su a m aio r parte, p o r aqueles q ue p e rte n c e m às classes so b re as q u ais pesa um a o p re s sã o social m ais forte [...] A pena, p o rta n to , se não se quer negar a sua própria função, d e v e ser estab e lecid a de tal m o d o q ue as ca m a d as p o tencialm en te crim in o sa s prefiram , sem d ú vida, através de um a consideração racional, não c o m e te r as ações proibid as, para não serem vítimas de punição" .

As classes sociais despossuídas constituem , assim, o objetivo principal das instituições penais. A história dos sistemas punitivos é, nessa perspecti­ va, urna história das “duas nações” , isto é, das diversas estratégias repressi­ vas de que as classes dominantes lançaram mão através dos séculos para evitar as ameaças à ordem social provenientes dos subordinados. As diversas orientações da política penal se articulam a partir das condi­ ções m ateriais das classes pobres. Para serem eficazes, as instituições e práticas repressivas devem impor, a quem ousa violar a ordem constituída, condições de existência piores do que as garantidas a quem se submeter a ela. Num a economia capitalista, isso significa que será a condição do prole­ tariado marginal que determinará os rumos da política criminal e, por conse­ guinte, o regime de “sofrimento legal” imposto àqueles que forem punidos por desrespeito às leis. Em outras palavras, “todo esforço em prol de uma reforma no tratamento do delinqüente encontra o seu próprio limite na situ­ ação do estrato proletário mais baixo, socialmente significativo, que a socie­ dade usa como parâmetro para quem comete ações crim inosas”21.

20 Idem, pp. 523. 21 Idem, pp. 524. 39

A e v o lu ç ã o d a p e n a lid a d e n ã o é, p o rtan to , o re su lta d o d e re fo rm a s so c ia is e ju ríd ic a s c a d a vez m ais a m b ic io sa s e p ro g ressista s. E x iste, d e fa to , u m lim ite e stru tu ra l a q u a lq u e r p ro c e sso d e re fo rm a e c iv iliz a ç ã o d a s penaS, e este lim ite é re p re se n ta d o p e lo p rin c íp io da less e lig ib ility (isto é, d a m e n o r p re fe rib ilid a d e ) d a p e n a , ao q u a l to d o siste m a d e re p re ssã o d e v e a d e q u a r-se . N as e c o n o m ia s p ré -c a p ita lista s, a co n d iç ã o d as c la s se s m a rg in a is e ra d e fin id a p o r fato res an tes d e tu d o p o lítico s, q u e e sta b e le c ia m as m a rg e n s d e e x p lo ra ç ã o d a fo rça d e tra b a lh o co n fo rm e u m a e stra tific a ç ã o so c ia l b a s e a d a em laço s d e se rv id ã o e d e p e n d ê n c ia p esso a l d as c la sse s su b a lte rn a s p a ra co m as c la sse s d o m in a n te s. P o rém , co m a a firm a ç ã o d o m o d o d e p ro d u ç ã o c a p ita lista , a co n d iç ã o do p ro le ta ria d o se to rn a u m a fu n ç ã o p rin c ip a lm e n te ec o n ô m ic a: a c o n d iç ã o m a te ria l do p ro leta riad o é d e te rm in a d a d ire ta m e n te no in te rio r d o s p ro c e sso s d e o rg a n iz a ç ã o e d e d iv isã o d o trab a lh o . S ão as d in â m ic a s in v isív e is e an ô n im as d o m e rc a d o q u e c o n fe re m à fo r­ ça d e tra b a lh o o seu “p re ç o ju s to ” , e é um a lei e c o n ô m ic a q u e o rie n ta a fix aç ão do p reço : q u a n to m a io r fo r a o ferta d e trab a lh o , m e n o r será o seu v alo r e p io res serão as c o n d iç õ e s do p ro letariad o . D a í d eriv a , d e a c o rd o co m o p rin c íp io d a less e lig ib ility, q u e os p erío d o s h istó rico s em q u e o c o rre um su rp lu s de fo rç a de tra b a lh o se rã o n e c e ssa ria m e n te c a ra c te riz a d o s p o r um ag ra v a m e n to d as p en as. A s m assas sem trabalho, que diante da fom e e d a necessidade tendem a co m eter delitos ditados pelo desespero, só podem ser contidas atra­ vés de penas cruéis. N u m a sociedade onde os trabalhadores são esc as­ sos, a ex e cu çã o penal tem u m a função to talm en te div ersa. Q u an d o alguém que q u er trabalhar encontra trabalho, o estrato social m ais b ai­ xo é fo rm ado p o r trabalhadores não qualificados e não p o r d esem p re­ g ados q u e se en co n tram num a situação de necessidade. A execução penal pode, assim , contentar-se em obrigar ao trabalho qu em a ele se recu sa e en sin ar aos delinqüentes que eles se contentem co m o q u e é suficiente p ara um trabalhador honesto viver . O n a s c im e n to d a p risã o se c o lo ca , p o rtan to , n a p a ssa g e m de u m re g im e p en al q u e a p o n ta p a ra a d e stru iç ã o do co rp o d o c o n d e n a d o , s o b re o q u al se re flete o p o d e r a b so lu to d o m o n a rc a , p ara u m a fo rm a d e p u n iç ã o q u e p o u p a o co rp o a fim d e q u e, n a su a p ro d u tiv id a d e , se e v id e n c ie o p o d e r e c o n ô m ic o re la tiv o d o c a p ita lista . U m a n o v a co n c ep çã o d o tem p o , d e u m la d o , e u m a

22 Idem, pp. 526-527. 40

u n iv ersalização d o p rin c íp io d a tro ca d e eq u iv ale n te s, d o o u tro , ex p lica m a afirm ação h istó ric a p a ra le la d o contrato como fixação do tempo de trabalho

e da sentença como fixa çã o do tempo de reclusão21. Punição e estrutura social d e se n v o lv e estas lin h as te ó ric a s e as em p re g a na análise h istó ric a d o s re g im e s p u n itiv o s d a Id a d e M é d ia ta rd ia até os anos 30 do séc u lo X X . N e ste c o n tex to , o co n c e ito da less eligibility receb e um a elab o ração m ais c o m p le x a e é ap lica d o à an á lise d e p ro c e sso s h istó rico s tais com o a tra n siç ã o d a e c o n o m ia feu d al p a ra o m erc an tilism o e, p o ste rio rm e n ­ te, o ad v en to d a R e v o lu ç ã o In d u strial. A o rig em d a p en a d e te n tiv a está in se rid a no c o n tex to d as tran sfo rm açõ e s .sociais q u e o c o rre ra m n a E u ro p a nos séc u lo s X V I e X V II. N a q u e le p erío d o , um a re p en tin a re d u ç ã o d em o g rá fica, lig ad a em p arte à G u e rra dos T rin ta A nos, h a v ia d e te rm in a d o u m a d ra m á tic a ca rên c ia de m ã o -d e -o b ra , o que resultou n a e le v a ç ã o p ro g re ssiv a dos salário s. E ssa situ açã o in d u ziu os g o ­ vernos d o s p a ís e s e u ro p e u s e c o n o m ic a m e n te m ais a v a n ç a d o s a re v e r as suas p o líticas e m re la ç ã o à p o breza. A m ad u recia a id é ia d e q u e os p obres em condições de tra b a lh a r de v e ria m ser obrig ad o s a fazê-lo. A tra v é s da im p o s i­ ção do trabalho, to rn av a -se possível enfrentar, ao m e s m o te m p o , a prag a social da v a g a b u n d a g e m e a p rag a e c o n ô m ic a do a u m en to dos salário s, p ro ­ vocado p ela e sc a sse z d e fo rça d e trabalho. - - E ssa n o v a filo so fia in sp ira a co n stru ç ão das p rim eira s in stitu içõ e s d e sti­ nad as à re c lu sã o dos p o b re s: Bridewell, n a In g late rra, H ôpital Général, na França, e Zuchthaus e Spinhaus, n a H o lan d a. A re clu são c o m e ç a assim a ser pro p o sta co m o e stra té g ia p a ra o c o n tro le das classe s m arg in a is. A sua u tili­ dade, in d e p e n d e n te m e n te das cam ad as d a p o p u laçã o às q u a is p o d e ser a p li­ cada (pobres, v ag a b u n d o s, p ro stitu ta s, crim in o so s), c o n siste no fa to de que agora o ç e rp o é v a lo riz a d o p o r en c e rra r um a p o te n c ia lid a d e p ro d u tiv a, e os sistem as d e c o n tro le têm in ício co n c en tran d o -se nas atitu d es, n a m o ralid ad e, n a alm a d o s in d iv íd u o s. P ro g re ssiv a m e n te , a d ete n ç ã o se a firm a rá com o

23 “A privação da liberdade por um período determinado preventivamente pela sen­ tença do tribunal é a forma específica na qual [...] o direito penal moderno burguêscapitalista realiza o princípio da retribuição equivalente. Trata-se de um meio in­ consciente, mas profundam ente ligado à idéia do homem abstrato e do trabalho humano abstrato medido pelo tempo” (E. B. Pasohukanis, La teoria generale dei diritto e il marxismo, trad. it. [N. do T.: edição portuguesa A teoria geral do direito e o marxismo. Coimbra, Centelha, 1972, tradução de Soveral Martins], in U. Cerroni (org.), Teorie sovietiche dei diritto. Milão, Giuffrè, 1964, p. 230.

m odalidade hegem ônica da punição, dando origem assim ao “grande internamento” de que fala Foucault. No momento em que esta hegemonia estiver definitivamente consolidada, o que vai mudar, segundo o princípio da less eligibility, serão os regimes de reclusão, isto é, as condições de vida impostas aos detidos. Uma vez, mais, as intenções humanitárias desempenham um papel com­ pletamente secundário em tudo isso. As reformas sustam o passo, quando não retrocedem, toda vez que o desemprego cresce, reduzindo novamente o valor do trabalho. Um exemplo significativo é dado pela Inglaterra do início do século XIX, quando um novo surplus de força de trabalho orienta a política penal no sentido da reintrodução de métodos punitivos cruéis e destrutivos, que parecem decretar momentaneamente a falência dos ambiciosos projetos iluministas de reforma: Já tínhamos observado que o movimento reform ador encontrou um terreno fértil só porque os princípios humanitários cm que se inspirava coincidiam com as necessidades da economia da época, mas agora, enquanto nos esforçávamos para dar expressão prática a essas novas concepções, o fundamento do qual nós havíamos partido já havia, pelo menos em parte, deixado de existir . Quando a utilidade econômica dos novos sistemas punitivos é menor, as mesmas medidas introduzidas pelo reformismo humanitário podem voltar a assumir a crueldade que as reformas pareciam ter confiado ao passado: O trabalho no cárcere torna-se, assim, um instrumento de tortura e as autoridades mostravam-se cada vez mais hábeis em inventar novos sistemas; ocupações de caráter exclusivamente punitivo tornavamse extrem am ente fatigantes^ prolongadas por períodos de tempo absolutamente insuportáveis' . No centro da análise de Rusche e Kirchheimer encontramos as trans­ formações descritas no primeiro livro do Capital. Na seção VII, Marx enfrenta a questão da acumulação primitiva, estágio pré-histórico do capital, no qual o sistema capitalista teve criadas as condições para o seu próprio desenvolvi­ mento, ou seja, a destruição do sistema de produção agrícola-artesanal e a transformação do trabalho aí empregado em força de trabalho assalariada. A contradição constitutiva deste processo fica logo clara: se de um lado o

24 Rusche e Kirchheimer, cit., p. 153. 25 Idem, p. 191. 42

capital libera o trabalho dos vínculos servis e da dependência pessoal que, até aquele momento, o haviam refreado, por outro sujeita-o a uma nova forma de subordinação. A “liberação” do trabalho advém de uma expropriação dos produtores que os submete a um nível mais alto de servilismo: Assim, o movimento histórico que transform a os produtores em operários assalariados se apresenta, de um lado, como sua libertação da servidão e da coerção corporativa; e para os nossos historiógrafos burgueses só existe esse lado. M as, por outro lado, esses recérniibertos só se tornam vendedores de si mesmos após terem sido espoliados de todos os seus meios de produção e de todas as garantias para a sua existência, oferecidas pelas antigas instituições feudais" . As massas de camponeses em fuga após o cercamento dos campos dirigèm-se para as cidades, engrossando as fileiras de vagabundos e pobres. Esta força de trabalho ern potencial, expropriada dos poucos meios de sustento de que dispunha e separada violentam ente do próprio ambiente, revela-se a princípio incapaz de adaptar-se às novas condições de produção e reluta em se subm eter à nova organização do trabalho que se afirm a nas fábricas. Marx detém-se nas práticas repressivas que atingiam as massas expropriadas: Os pais da atual classe operária foram punidos, num primeiro mo­ mento, ao serem transformados em vagabundos e em miseráveis. A legislação tratou-os como delinqüentes voluntários e partiu do pres­ suposto de que dependia da sua boa vontade continuar a trabalhar nas antigas condições não mais existentes .

Pena e subsunção real do trabalho ao capital Uma vez mais, o problema é a constituição do proletariado, isto é, a transformação do trabalho em capital produtivo de mais-valia. A afirmação do regime de fábrica dirige o processo que Marx define como “subsunção real” do trabalho: todas as formas do trabalho pré-capitalista são progressi­ vamente reduzidas à forma geral do “trabalho abstrato”. Os produtores são :assim transformados em força de trabalho social e o trabalhador coletivo sucede o trabalhador individual: Com o desenvolvimento da submissão real do trabalho ao capital e, por conseguinte, do modo de produção especificamente capitalista, o verdadeiro agente do processo de trabalho total não é o trabalhador 26 Marx, 11 capitale, cit., p. 779. 11 Idem, p. 797.

individual, mas sim uma força de trabalho cada vez mais combinada socialmente, e as diversas forças de trabalho cooperantes que formam a máquina produtiva total participam, de diversas maneiras, do proces­ so imediato de produção de mercadorias . Qual foi então o papel das práticas punitivas no processo de subsunção real do trabalho? E qual foi a função da prisão no controle das contradições nas quais este processo se baseia? Do ponto de vista da economia política da pena, a contribuição das insti­ tuições e das tecnologias da pena foi, nesse sentido, fundamental: a penitenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender as exigências do^nascente sistema de produção industrial, A estrutura da penitenciária, sob o‘perfil tanto organizativo quanto ideológico, não pode ser com preendida se, paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui com o teruno que faz a mediação entre cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do século X VIII codividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares à fábrica: Elas se caracterizam por serem incumbidas pelo Estado da sociedade burguesa da gestão dos vários momentos da formação, produção e reprodução do proletariado de fábrica; elas são um dos instrumentos essenciais da política social do Estado, política que persegue o objetivo de garantir ao capital uma força de trabalho que - por hábitos morais, saúde física, capacidades intelectuais, conformidade às regras, hábito à disciplina e à obediência etc. - possa facilm ente adaptar-se ao regime de vida na fábrica em seu conjunto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia extraível em determinadas circunstâncias . A prisão se consolida então como dispositivo orientado à produção e à reprodução de uma subjetividade operária. Deve-se forjar, na penitenciária, uma nova categoria de indivíduos, indivíduos predispostos a obedecer, seguir ordens e respeitar ritm os de trabalho regulares, e sobretudo que estejam em condições de interiorizar a nova concepção capitalista do tempo como medida do valor e do espaço como delimitação do ambiente de trabalho. Delineiamse aqui os contornos de uma economia política do corpo, de uma tecnologia do controle disciplinar que age sobre o corpo para governá-lo enquanto 28 Marx, II capitale. Libro I. Capítulo VI, Inédito, trad. it. Florença, La Nuova Itália, 1969, p. 74. 29 Melossi e Pavarini, Cárcere e fabbrica, cit., p. 70. 44

produtor de mais-valía e que, juntamente com outros corpos “cientificamente” organizados, torna-se capital. Como escreve Melossi: Tal disciplina é condição fundamental para a extração de mais-valia e, portanto, o único ensinamento real que a sociedade burguesa tem a propor ao proletariado. Se fora da produção pode imperar a ideologia jurídica, no seu interior opera a servidão, a desigualdade. Mas o local da produção é a fábrica. Eis a razão pela qual a função insti­ tucional que primeiro a casa de trabalho e depois a prisão assumem é o aprendizado, por parte do proletariado, da disciplina de fábrica . Mas a reconstrução do nascimento do cárcere e da sua função na formação histórica do proletariado industrial constitui apenas uma vertente do problema. A outra vertente é representada pelo papel que este dispositivo de controle desenvolve na reprodução da força de trabalho assalariada. Nesse sentido, toma-se indispensável considerar tanto a dimensão instrum ental quanto a dimensão simbólica da instituição carcerária. A dimensão instrumental nos permite iluminar as origens da penitenciária e as funções econômicas imediatas que ela assumia, sendo a principal delas a produção de um a força de trabalho disciplinada e disponível à valorização capitalista. A dimensão simbólica, por sua vez, permite-nos explicar o motivo do “sucesso histórico” aparente da instituição carcerária. O cárcere representa a materialização de um modelo ideal de sociedade capitalista industrial, um modelo que se consolida através do processo de “desconstruçâo” e “reconstrução” contínua dos indivíduos no interior da instituição penitenciária. O pobre se toma criminoso, o criminoso se torna prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se transforma em proletário: Porém, uma vez reduzido o prisioneiro a sujeito abstrato, uma vez “anulada” a sua diversidade [...], uma vez colocado diante das necessidades materiais que não pode mais satisfazer aujonomamente, tornado assim com pletam ente dependente da/à soberania adm i­ nistrativa, enfim, é imposta a este produto da máquina disciplinar a única alternativa possível à própria destruição, à própria loucura: a forma moral da sujeição, isto é, a forma moral do status de proletário. M elhor dizendo: a forma moral de proletário é aqui im posta como a única condição existencial, no sentido de única condição para a sobrevivência do não-proprietário .

J0 D. Melossi, “Criminologia e marxismo. Alie origini delia questione penale nella società de *11 Capitale’”. In La questione c rim inale, I, 2/1975, p. 328. 1Melossi e Pavarini, Cárcere e fabbrica, cit., p. 223. 45

Esta dinâmica da produção de subjetividade através do regim e carcerário nos conduz diretam ente às reflexões de A lthusser sobre os “aparelhos ideológicos dê Estado”. Segundo Althusser, é exatamente nos processos de subjetivação dos indivíduos, ao perpetuar as relações de produção nas quais a su b o rd in ação m aterial dos su jeito s se m an ifesta, que se b aseia o funcionamento da ideologia32. A instituição carcerária é pois, certamente, uma tecnologia repressiva, uma vez que impõe ao detento uma situação de privação absoluta que faz dele um sujeito totalmente dependente do aparelho de poder que o subordina. Mas é também um poderoso dispositivo ideológico, uma vez que lhe impõe a submissão ao trabalho como único caminho para sair desta condição. Revelase, assim, o paradoxo de um mecanismo que, de um lado, produz privação, falta, carência, e, de outro, impõe as próprias engrenagens disciplinares como remédio para esta condição. A prisão cria o sícitus de detento e, ao mesmo tempo, impõe ao indivíduo trabalho, obediência e disciplina (elementos constitutivos desse status) como condições que devem ser satisfeitas, a fim de que possa, no futuro, livrar-se delas. Ela evoca assim, nos indivíduos, uma representação imaginária de si mesmos em relação à própria condição material. A privação extrema imposta ao preso é, assim, representada como conseqüência óbvia e quase natural dá recusa da disciplina do trabalho33. O princípio da troca de equivalentes torna a instituição carcerária ideologicamente aceitável, do mesmo modo que torna “justo” um contrato de trabalho. Neste não há abuso ou excesso, mas sim troca entre iguais e retribuição ao justo preço: O conteúdo da pena (a execução) está, deste modo, ligada à sua forma jurídica, do mesmo modo que, na fábrica, a autoridade garante que a exploração pode assumir o aspecto de contrato . Vemos emergir aqui uma contradição estrutural da sociedade capitalista: a contradição entre uma igualdade form al e uma desigualdade fundam ental. 32 L. Althusser, La Stato e i suoi apparati, trad. it. Roma, Riuniti, 1997 [N. do T.: edição brasileira. Aparelhos ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1987, 3aed, introdução crítica de J.A.Guilhon Albu­ querque, tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro], 33 Ver também a definição althusseriana de ideologia: “Na ideologia encontra-se representado não o sistema das relações reais que governam a existência dos in­ divíduos, mas sim a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais nas quais eles vivem" (idem, pp. 185-186; itálico meu). 34 M elossi e Pavarini, Cárcere e fabbrica, cit., p. 87. 46

Esta é observável seja no universo econômico, no qual se exprim e na relação entre a esfera da circulação (igualdade) e a esfera da produção (desigualdade), seja na instituição carcerária, onde se traduz no conflito insolúvel entre o princípio de retribuição e as práticas disciplinares. A ideologia retributivalegalista oculta a realidade de disciplina e violência que se produz no interior da instituição penitenciária, assim como a ideologia contratual-igualitária esconde a realidade de exploração e subordinação que se produz na fábrica. Q objetivo, coerentemente, é reproduzir um proletariado que considere o sa lá rio ' c o m o ju s ta retrib u içã o d o p r ó p r io tra b a lh o e a p e n a c o m o ju s ta m ed id a d o s se u s p r ó p r io s crim es.

E n ca rceram en to e desem prego n a época fo rd ista A partir da segunda metade dos anos 1970, a criminologia marxista começa a utilizar os conceitos da economia política da pena na análise dos sistemas punitivos contemporâneos. O paradigm a m aterialista que R usche e Kir­ chheimer tinham elaborado para descrever as transformações históricas da penalidade é, assim, re to m a d o para in v e stig a r as re la çõ es e n tre sistem a, e c o ­ n ô m ico fo r d is ta e estra tég ia s da rep ressã o p e n a l.

A passagem da investigação histó rica à dim ensão co n tem p o rân ea comporta, porém, dois problemas. O primeiro diz respeito à “tradução” dos conceitos. Enquanto Rusche e K irchheim er descreveram o processo de evolução da penalidade ao longo de um arco histórico que se estende do feudalismo à afirmação do capitalismo, o horizonte deve reduzir-se agora à relação entre economia e pena numa fase específica do capitalism o. Como é possível aplicar hipóteses concebidas originariam ente num a perspectiva histórica à análise das políticas penais na sociedade industrial ou pós-industrial? O segundo problema é de ordem metodológica e diz respeito à construção de “representações eficazes” da economia e da penalidade contem porâneas. Em outras palavras, como podem ser individualizados instrumentos analíticos adequados para descrever a situação econômica atual, as estratégias repres­ sivas contemporâneas e o laço que as une? O percurso teórico através do qual se consegue dar uma resposta a essas interrogações está intimamente ligado às circunstâncias históricas particulares em que ocorreu este aggiornamento da economia política da pena. Estamos no final dos anos 1970, nos Estados Unidos. É aqui que se inicia, pouco depois da publicação de P u n ish m e n t a n d Social Structure, o processo de atualização da perspectiva materialista. • A reestruturação capitalista está em curso já há alguns anos e seus primeiros -efeitos começam a ser percebidos, sobretudo o aumento do desemprego que se 47

segue à expulsão de uma ampla fatia do trabalho desqualificado do setor indus- j trial. Começa-se a se falar em surplus population, isto é, uma força de trabalho em excesso no que tange à capacidade de absorção do mercado de trabalho. Essa força de trabalho se configura cada vez mais como uma reedição, no capitalismo tardio, do “exército industrial de reserva” marxista. Trata-se de uma massa de trabalho escassamente ou nada qualificada, expulsa pelo processo produtivo porque é extremamente numerosa, mas ao mesm o tempo extrem a­ m ente eficaz como instrumento de controle das reivindicações salariais da força de trabalho ativa. Ela é, portanto, a principal candidata ao posto de “ estrato proletário mais baixo” ao qual Rusche se referia em 1933. Paralelam ente, ocorre nos Estados Unidos uma significativa inversão de tendência na política criminal. As taxas de encarceramento, que desde a depressão de 1929 ao final dos anos 1960 foram mantidas em níveis par­ ticularm ente baixos, a partir dos primeiros anos da década de 1970 começam novam ente a crescer, inaugurando um a tendência que assum irá proporções cada vez maiores nos anos subsequentes. A economia política da pena co­ meça, então, a investigar conjuntamente esses fenômenos, indagando se eles eram completamente independentes ou se, ainda que não fosse possível indivi- ! dualizar, havia entre eles uma relação estrutural. U m setor da criminologia marxista americana avança a hipótese de que o aum ento paralelo do desemprego e do encarceramento constitui o momento , inicial de um processo de redefinição conjunta da relação entre economia e sistem a repressivo. Delineia-se, assim, uma resposta aos problemas que se colocavam antes. A solução consistirá em assumir o desemprego como pa­ râmetro da condição econômica e o encarceramento com o medida da se­ veridade do sistem a penal. Richard Quinney oferece uma interpretação efi­ caz das transform ações em curso: Incapaz de absorver o surplus no interior da economia política, o capi­ talismo avançado pode apenas supervisionar e controlar uma população que agora é supérflua [...] O sistema penal é o recurso moderno para o controle do surplus de trabalho produzido pelo capitalismo tardio . Em 1977, Ivan Jankovic será o primeiro a tentar aplicar o paradigma de Rusche e K irchheim er à situação americana36. Ele parte de duas hipóteses. A 35 R- Quinney. Class, State and Crime. Nova Iorque, Longman, 1977, p. 131. 36 I. Jankovic. “Labor M arket and Imprisonment”, in Crime and Social Justice, 8, 1977, p. 17-31. Na realidade, merecem ser citadas pelo menos outras duas contribui­ ções, muito anteriores à de Jankovic, mas não tão centrais do ponto de vista da sua 48

primeira refere-se à “severidade” das penas: o agravamento das condições econômicas, isto é, o aumento do desemprego, corresponde a uma maior rigidez das sanções penais, isto é, um incremento das taxas de encarcera­ mento. O núcleo da argumentação está ancorado no princípio da less eligibility: as penas se tornam tão pesadas que, por piores que sejam as condições oferecidas ao trabalhador “livre”, elas ainda são preferíveis ao s'tatus de criminoso “punido”. A segunda hipótese diz respeito à “utilidade” das penas com relação ao mercado de trabalho. O recurso ao encarceramento desem penha a função de “regulação” do su rp lu s de força de trabalho, com o objetivo implícito de consolidar o exército industrial de reserva de que fala M arx. Nas palavras do próprio Jankovic: O que eu proponho é uma reformulação da hipótese da “severidade” avançada por Rusche e Kirchheimer. quando a economia está em crise, as penas são mais severas (...) A segunda hipótese a ser veri­ ficada é aquela segundo a qual o aumento do encarceramento tem a função de reduzir o desemprego. Esta hipótese de “utilidade” sus­ tenta que os efeitos das mudanças nas políticas penais se refletem no mercado de trabalho’ . Jankovic separa nitidamente as suas análises do com portamento das taxas de criminalidade. O pressuposto inicial é que estes fenômenos são observáveis independentemente da crim inalidade e que a relação entre desemprego e

influência sobre os desenvolvimentos posteriores da economia política da penalidagde. A primeira é a de T. Sellin, “Research Memorando on Crime in the Depression”, in }§ocial Science Research Council, Boletim 27, Nova Iorque, 1937. Essa publicação é importante porque, antes mesmo da publicação de Punishment and Social Structure, réonfere destaque às intuições de Rusche (Sellin trabalha com o artigo de 1933). Em iparticular no capítulo VII (pp. 109 e ss.), Sellin considera o conceito da less eligibility como um possível ponto de referência para os desdobramentos futuros da pesquisa Vsõbre economia e sistema penal. A segunda contribuição é de L. T. Stem, “The Effect i M the Depression on Prison Commitments and Sentences”, in Journal o f the American Institute o f Criminal Law and Criminology, vol. XXXI, 1940-1941, pp. 696-711. Siern se propõe aqui, explicitamente, a testar as hipóteses de Georg Rusche, verifi­ cando se à depressão econômica nos Estados Unidos correspondeu um endureci­ mento das condenações à pena de detenção (o case study conduzido por Stern limitou-se, contudo, a duas penitenciárias do estado da Pensilvânia). 37 Jankovic, “Labor M arket and Im prisonm ent”, cit., pp. 20-21.

encarceramento é, por conseguinte, direta38. Todavia, exam inando o caso dos Estados Unidos entre 1926 e 1974, os resultados são ambíguos. De um lado, é confirm ada a hipótese da “severidade” : encarceramento e desemprego seguem, de fato, a mesma direção e esta tendência não é influenciada pelo andam ento das taxas de crim inalidade. De outro, porém, não se registra nenhum impacto significativo das taxas de encarceramento no mercado de trabalho: a hipótese de um efeito imediato do aparelho repressivo em relação ao surplus de força de trabalho é desmentida. Com efeito, muito em bora a população carcerária seja constituída em grande parte por desempregados, trata-se sempre de uma fração muito limitada para que ela possa exercer um impacto significativo sobre as dimensões do exército industrial de reserva. Entre os anos 1970 e 1980 entram em cena outros trabalhas que têm como objetivo verificar as hipóteses de Rusche e Kirchheimer, e é uma vez mais e sobretudo a criminologia crítica norte-americana que investiga a relação entre desemprego e encarceramento. Mas, também nesses casos, a hipótese da severidade é sistematicamente confirmada e a da utilidade não encontra base de apoio39. O fato é que, no período em que surgem essas análises, as medidas penais não constituem (ainda) o único dispositivo institucional de regulação do surplus de força de trabalho. Estamos, vale repetir, entre o final dos anos 1970 e os primeiros anos da década de 1980, quando a reestruturação indus­ 38 É desse ponto de vista que a investigação de Jankovic se distancia notavelm en­ te de outros estudos precedentes, os quais, em bora tendo com o hipótese uma relação entre economia e encarceramento, assumiam que a crim inalidade ali exer­ citasse um papel de mediação e que, conseqüentemente, fosse a verdadeira “cau­ sa” das mudanças do sistema repressivo. Ver, por exemplo, D. A. Dobbins e B. M. B ass, “E ffects o f U nem ploym ent on W hite and N egro Prison A dm issions in L ouisiana” , in Journal o f C rim inal Law, C rhninology cind Police Science, 48, 1958,p p .522-525. 39 Ver, sobretudo, D. Greenberg, “The Dynamics of Oscillatory Punishment Pro­ cesses” , in The Journal o f Criminal Law and Crhninology, 4, 1977, pp. 643-651; e “Penal Sanctions in Poland: a Test of Al terna tive Models” , in Social Problems, XXVIII, 2, 1980, pp. 194-204; M. Yeager, “Unemployment and Im prisonm ent”, in The Journal o f Criminal Law and Crhninology, vol. 70, 4, 1979, pp. 586-588; D. Wallace, “The Political Economy of Incarceration Trends in late U. S. Capitalism: 1971-1977” , in The Insurgent Sociologist, vol. XI, 1, 1980, pp. 59-65. Para uma resenha que inclui trabalhos não considerados aqui, ver G. T. C hiricos & M. Delone, “Labor Surplus and Imprisonment: A Review and Assessment o f Theory and Evidence”, in Social Problems, vol. 39, 4, 1992, pp. 421-446. 50

trial certamente já se iniciara, mas ainda não produzira os efeitos dramáticos que só viriam a ocorrer no decênio seguinte. Além disso, o assalto neoliberal ao Welfare State ainda não se abatera violentamente sobre as classes marginais. Isso significa que Estado social e medidas repressivas concorrem , nessa fase, para a gestão do excesso de força de trabalho, dividindo, em certa medida, as tarefas. Nem toda a população desempregada cai na rede repressiva da penalidade. Parte dela é “gerida” com medidas de w elfa re e assistência social, que, de qualquer modo, com eçam a assumir conotações “punitivas”, por exemplo, através da crescente estigmatização social im posta aos benefi­ ciários e da seletividade dos procedimentos de acesso. O criminólogo marxista Steven Spitzer descreve este processo com acui­ dade, quando afirma que o su rp lu s de força de trabalho pode ser subdividido em social j u n k e em so c ia l d y n a m ite , O primeiro termo se refere à parcela da população desempregada que representa um “detrito social”, inofensivo em relação aos aparelhos do p o d e r (e, p o rtan to , passív el d e m a n o b r a p o r p arte do W elfare State): o s e g u n d o é a fra ç ã o d o su rp lu s p o te n c ia lm e n te ex p lo s iv a e, portanto, p erigo sa p a ra a o rd e m co nstitu ída, q u e d e v e ser trata d a pelo sistema rep ressivo c a rc e rá rio 40. O in cre m en to do e n c a r c e r a m e n to n ão está, portanto, lig ad o g e n e ric a m e n te ao d e s e m p re g o , m as s im a o d e s e m p r e g o q u e

atinge alguns estratos sociais considerados perigosos à ordem constituída: minorias étnicas, imigrantes, jovens marginais41. No âmbito da econom ia política da pena delineia-se, nesse mom ento, a tendência a abandonar as hipóteses “ortodoxas” form uladas por Rusche e retomadas por Jankovic, A dificuldade de provar a existência de uma relação de funcionalidade imediata entre sistema repressivo e mercado de trabalho sugere interpretações mais articuladas da relação entre econom ia e penalidade e uma reavaliação dos elementos çxtra-econômicos. A relação tende a ser estabelecida cada vez mais em termos qualitativos, medianfé a análise dos 40 S. Sptizer, “Toward a M arxian Theory of Deviance” , in Social Problems, vol. 22,5,1975. 41 Para um interessante study case sobre o efeito da interação entre etnicidade, condição ocupacional e níveis de repressão nos Estados Unidos, ver G. T. Chiricos . e W. D. Bales, “Unem ploym ent and Punishment; an Em pirical A ssessm ent” , in Criminology, vol. 29,1 4, 1991, pp. 701-724; G. T. Lessan, “M acro-econom ic Determinants of Penal Policy: Estimating the Unemployment and Inflation Influences and Imprisonment Rate Changes in the United States, 1948-1985” , in Crime, Law and Social Change, 16, 1991, pp. 177-198; G. S. Bridges; R. D. Crutchfíeld e E. E. Simpson, “Crime, Social Structure and Criminal'Punishment: White and Nonwhite Rates of Imprisonment”, in Social Problems, vol. 34, 4, 1987, pp. 345ss. '■•51

fatores sociais que convergem para a “qualificação” do desemprego: com po­ sição étnica da população, relações de gênero, transformações abrangentes do mercado de trabalho etc42. A hipótese de um papel imediato das práticas repressivas na gestão do exército industrial de reserva parecia, pois, perder plausibilidade por conta da citada “divisão de trabalho” entre penalidade e welfare. Na realidade, porém, uma conclusão desse tipo seria apressada. Nos ú l­ timos trinta anos a situação nos Estados Unidos mudou profundamente, tanto na vertente das políticas penais quanto na vertente das políticas sociais. O aumento das taxas de encarceramento, do qual Jankovic pôde entrever apenas o começo, foi tão intenso que levou a população carcerária ao nível mais alto de toda a história contemporânea americana; o ataque neoliberal ao Estado do bem -estar social prosseguiu ininterruptamente, até determinar, de fato, a substituição do “Estado social” por um verdadeiro “Estado penal”43. Partindo dessas transformações, Bruce Western e Katherine Beckett re­ colocaram a hipótese de uma relação de funcionalidade entre políticas penais e mercado de trabalho nos Estados Unidos44. Retornando a hipótese da “uti­ lidade” das penas, eles s u g e re m que o enorme aumento das taxas de encar­ ceram ento dos últim o s anos exerceu um sério impacto sobre as taxas de d e s e m p r e g o 45. 42 Ver, por exemplo, S. L. Myers e W. J. Sabol, “Unemployment and Racial Differenees in Im prisonm ent”, in Review o f Black Political Economy, vol,. 16, 1-2, 1987, pp. 189-209. Para um exemplo mais recente, que faz referência particular aos fatores políticos com o elemento de mediação da relação entre economia e penalidade, ver D. Jacobs e R. E. Hei ms, “Toward a Political Modeí of Incarceration: A Time-Series Examinatiori of M ultiple Explanations for Prison Adm ission R ates”, in American Journal o f Sociology, 2, 1996, pp. 323-357. 43 “A desregulam entação econôm ica e a hiper-regulam entação penal caminham, na realidade, lado a lado. O desinvestimento social im plica o super-investimento carcerário, que representa o único instrum ento em condições de fazer frente às atribulações suscitadas pelo desm antelamento do Estado social e pela generaliza­ ção da in seg u ran ça m aterial que, inevitavelm ente, se difunde entre os grupos sociais colocados nas posições mais baixas da escala social” (L. Wacquant, Pa rola d ’ordine: tolleranza zero. La trasform azione dello stato p enale nella società neoliberale, trad. it. M ilão, Feltrinelli, 2000, p. 101). 44 B. Western e K. Beckett, “How Unregulated is the U.S. Labor M arket? The Penal System as A Labor M arket Institution” , in Am erican Journal o f Sociology, CIV, 4, 1999, pp. 1030-1060. 45 P oder-se-ia acrescentar um outro efeito do encarceram ento de massa, que é retirar os desem pregados das estatísticas m ediante o seu emprego na indústria da 52

O caráter relativamente limitado das taxas de desemprego norte-americano nos anos 1980 e 1990 teria sido causado não pelas políticas de flexibilização e liberalização do mercado de trabalho (como sustenta a vulgata neoliberal), mas sim pelo incremento vertical do encarceram ento, que teria ocultado uma parte da população desempregada, encerrando-a nas prisões americanas. Por outro lado, porém, o efeito penalizante que o encarceramento exerce sobre as possibilidades futuras de em prego da força de trabalho é tal que, para poder m anter os níveis atuais de desem prego, os Estados Unidos deveriam intensificar o internamento em massa iniciado na segunda metade dos anos 1970, alimentando assim um a espiral cujo fim é difícil de se ver. Analisando a composição d e classe da população carcerária dos Estados Unidos, verificamos que a taxa de desemprego seria pelo menos dois pontos mais elevada do que a indicada pelas estatísticas oficiais. O aumento do percentual parece ainda mais significativo se levarmos em conta a população afro-americana: incluindo os detentos nas estatísticas, a variação neste caso seria de 7% . Isso significa dizer que o encarceramento em massa teria reduzido as taxas de desemprego dos afro-americanos em cerca de um terço. E n q u a n to nos países europeus sobrevivem algum as orientações de política social voltadas para a correção das distorções do mercado de trabalho e para remediar as desigualdades sociais daí resultantes, nos Estados Unidos se observa a tendência a substituir essas medidas sociais por políticas penais. A gestão do desemprego e da precariedade social parecer ter passado, em suma, do universo das políticas sociais para o da política criminal. Mas se os Estados Unidos exibem a realidade sem disfarces de uma gestão repressiva das novas pobrezas que se materializa na progressiva convergência entre precarização social e autoritarismo penal, hoje um cenário semelhante parece desenhar-se também na Europa. Nas últimas duas décadas, as taxas de encarceramento cresceram de form a aguda em todos os países europeus, abatendo-se de modo desproporcional sobre a população desempregada, sobre os tóxico-dependentes e, nos últimos anos, sobre os imigrantes. Também na Europa, ademais, este processo de “hipertrofia” do sistema penal se produziu segurança. A privatização dos cárceres é um fenômeno já consolidado nos Esta­ dos Unidos, onde prisioneiros e serviços de segurança privada representam um dos mais promissores setores de em prego de mão-de-obra. Em suma, os pobres encontram trabalho exatam ente no prison-industrial com plex que nasce com o objetivo de en carcerar outros pobres am ericanos. Sobre a transform ação do encarceramento em em presa, ver, necessariam ente, N. C hristie, 11 business penitenziario. La via occidentale dei Gulag. trad. it. Milão, Eleuthera, 1996. 53

p a r a le la m e n te à reestru tu raç ão do w elfa re, n u m a sin g u la r s im b io s e entre co n s tru ç ã o d o E s tad o penal e d e stru içã o das garan tias sociais. As análises críticas m ais re cen tes voltadas ao c o n tex to e u ro p eu d e ix a m p o u c a m a rg e m à dúvida. A n a lisan d o o caso inglês, Steven Box e C hris Hale p u d e r a m verificar tam b ém na Inglaterra a existênc ia de um a re lação direta en tre m erc ad o de trabalho e práticas pun itiv a s46. A p eríod os de crise e c o n ô ­ m ica, c o m o o a tra v essad o p e la In g la te rra a partir dos p rim e iro s an o s da d é c a d a d e 1970. c o rre sp o n d eu u m in c re m e n to vertical das taxas de e n c a r c e ­ ra m e n to d evid o a u m a m aio r pun itiv id ad e do aparelho repressivo: A p erspectiva “ radical” [...] a firm a que d esem p rego e e n c arceram ento estão ligados, m as ao invés d e o lhar a crim inalidad e e as con de n açõ e s com o elementos de m ediação entre as duas, ela concentrou-se na visão de que “o desemprego produz crim inalidade” e nas m aneiras pelas quais esta crença influencia direta o u indiretam ente as decisões das cortes, os pareceres dos assistentes sociais c as práticas d a polícia .

Segundo os dois autores, con vem tornar distância das hipóteses “conspira cio n isía s” q u e p in tam o sistema punitivo como uma estrutura monolítica, p e rfeitam en te integrada e em c o n d içõ e s de re s p o n d er às “ n e c e ssid ad es do ca p ita l” , e esten d e r a o b serv açã o ao co n ju n to dos fatores ideoló gicos e cultu­ rais q u e incidem sobre a relação entre e c o n o m ia e p e n a 48. O siste m a punitivo não guarda autonomia das dinâmicas ideológicas da sociedade: as instituições

46 S, Box e C. Hale, “Economic Crisis and the Rising Prison Population in England and Wales”, in Crime and Social Justice, 17, 1982, pp.20-35; S. Box e C. Hale, “Unemployment, Imprisonment and Prison Overcrowding”, in Contemporary Cri­ ses-, 9, 1985, pp.209-228; e S. Box e C. Hale, “Unemployment, Crime and Imprisonment, and the Enduring Probiem of Prísons Overcrowding” , in R. Mathews e J. Young (ed.), Confronting Crime. Londres, Sage, 1986, pp.72-99; C. Hale, “Economy, Punishment and Imprisonment”, in Contemporary Crises, 13, 1989, pp.327-349. 47 S. Box. Recession, Crime and Punishm ent. Londres, MeMillan Education, 1987, p. 158. 48 Para alguns exemplos deste “conspiracionismo”, ver os trabalhos já citados de Jankovie, Quinney e Wallaee e mais os seguintes: R. Vogel, “Capitalism and Incarceration” , in M onthly Review, vol. 34, 10, 1983, pp. 30-41; M. Colvin, “Controlling the Surplus Population: the Latent Functions of Imprisonment and Welfare in Late U. S, Capitalism”, in B. D. Maclean (ed.). The Poli ti cal Economy o f Crime. Ontario, Prentice Hall, 1986, pp. 154-165. Para uma perspectiva histórica, ver C. Adamson, “Tovvard a Marxian Penology: Captive Criminal Population as Economies Threats and Resources”, in Social Problems, vol. 31, 4, 1984. 54

do “E s ta d o p e n a l” co-d ivid em re p re s e n ta ç õ e s e estereótipo s d o m in a n te s , que, por su a vez, são afetados p e la s c o n d iç õ e s da e c o n o m ia . A g in d o d e m o d o partic u la rm en te punitivo p ara c o m as c la s s e s s u bordinad a s, os o p e r a d o re s do s is te m a penal não re s p o n d e m a n e c e s s id a d e s ab stratas d o cap ita l, das quais, aliás, é im p rov ável q ue eles te n h a m co nsciência; eles se lim ita m , isso sim, a to m a r d e c is õ e s de a c o rd o c o m s u a s p ró p ria s c o n v i c ç õ e s s o b re a questão crim inal e sobre as estra té g ias p a r a enfrentá-la, entre elas a idéia dc que q u e m vive em condições de p o b re z a e p re c a rie d a d e está m ais in c lin a d o a co m e te r crim es. A relação entre desem prego e e n c a rc e ra m e n to é m ediada, p o r co n seg uin te, por u m a p e rc ep çã o da m arginalidade social c o m o a m ea ça à o rd e m constituída, que se torna heg e m ô n ic a nos p e río d o s d e crise ec on ôm ica; Q u a n d o a crise ec o n ô m ic a se agrava, o P o d e r ju d ic iá rio m a n ife sta crescente preocupação c o m a po ssív el am ea ça à o rd e m social, p r o ­ veniente de “populações p ro b le m á tic a s” , dos hom en s d e s e m p re g a d o s m ais do que das mulheres, dos jo v e n s mais do que tios ad ultos e dos neg ro s mais do que do s brancos [...], e reag e a essa “percepção” a u m e n ta n d o o recurso ao e n c a rc e ra m e n to , s o b re tu d o no c a s o dc delitos c o n tra a p ro p rie d ad e, n a e x p e ctativ a d e que u m a re s p o sta deste tipo tenha um efeito in ib id o r e incapacitador, e que, c m c o n s e ­ qüência, possa neutralizar a a m e a ç a .

O lim ite d a econom ia p o lítica d a p en alid ad e fo rd ista C om eça, assim, a delinear-se aquilo q u e nas prim eiras páginas se a n u n ciava co m o o lim ite da econom ia po lítica da p en a lid a d e. A trad u ç ão d o s co n c e ito s de estru tu ra social e pena, nos te rm o s d a re la ção entre d e s e m p r e g o e e n c a r ­ ceram ento, q ue constitui u m a co n s ta n te d a c rim in o lo g ia m arx ista, re strin g e indevidam ente o cam po de observação da relação entre e c o n o m ia e dispositivos de controle. As transfo rm ações q ue afe ta m , so b re tu d o a partir d o s p rim e iro s anos da d é c a d a de 1970, os d is p o s itiv o s de controle d a s o c ie d a d e c o n t e m ­ porânea, não p o d em ser re fere n ciad a s a p e n a s às m u taçõ e s do m e rc a d o de trabalho e às taxas de d e se m p reg o . N a v erdade, elas não c o n s titu e m m ais um a rep resen ta ção ad equada d a d in â m ic a capitalista atual. E m outras palavras, a ev o lu çã o recente das tecnologias d e co n trole deve ser inserida no contexto d o s processos d e m u taçã o q u e p e r p a s ­

49 S. Box e C Hale, “Unemployment, Imprisonment and Prison Overcrowding , cit., p. 217. 55

sam a “estrutura social” no seu conjunto. Estamos falando, pois, das subjetividades do trabalho, das formas de organização da produção, das modalidades de exploração da força de trabalho contemporânea. Porém, do mesmo modo, deve-se também frisar que as taxas de encar­ ceramento, que certamente constituem um indicador plausível da severidade de um sistema penal, não são uma exemplificação exaustiva das estratégias de controle social que vemos desenvolver-se. Pode-se assim com preender em que sentido a econom ia política da penalidade fordista se revela inadequada para descrever as formas de produção de subjetividade que se delineiam no horizonte do controle social pós-fordista. As suas análises não levam em conta os processos de transform ação do trabalho, limitando-se à observação do tratamento penal do desem prego, do “não-trabalho” . O que devem os nos p erg u n tar é se este “red u cio n ism o ” está e fe ­ tivam ente presente na perspectiva m aterialista originalm ente definida por R usche e K irchheim er. Em outros term os, até que ponto é possível lançar m ão dos instrum entos críticos oferecidos pela crim inologia m arxista? P o d er-se-ia responder: até a m argem extrem a do capitalism o fordista, até o ponto de consecução da transição ao pós-fordism o que redesenha, em seu conjunto, a estrutura m aterial da produção à qual a econom ia p o lític a da pena se dirige. Tentam os, pois, aproxim ar-nos deste lim iar, retornando por um segundo ao p aradigm a de R usche e K irchheim er para v alo rizar alguns de seus elem entos que a crim inologia m arxista m ais re ­ cente parece deixar parcialm ente de lado. Nas páginas iniciais d &Punição e estrutura social propõe-se uma definição geral do elo existente entre relações de produção e formas de repressão: Todo modo de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondam às próprias relações de produção. E, pois, necessário analisar a origem e o destino dos sistemas penais, o uso e o abandono de certas penas, a intensidade das práticas punitivas, assim com o se estes fenômenos foram determinados pelas forças sociais, in prim is por aquelas econômicas e fiscais . Por outro lado, no já citado artigo de 1933, Rusche individualizava, como vim os, as linhas contingentes de transform ação deste elo nas formações sociais capitalistas.

50 Rusche e Kirchheimer, Pena e strutlura sociale, cit., p. 46. 56

No primeiro caso, delineia-se uma correspondência histórica e tendencial entre relações de produção e sistemas de controle. No segundo, ficam claros os termos em que esta relação se articula ciclicamente diante de determinadas circunstâncias históricas. Ademais, o princípio da less eligibility constitui, dc certo modo, o nexo de continuidade entre as tendências históricas de longo prazo e as contingências particulares da relação. Independentemente das situações específicas, tal princípio define as fronteiras nas quais a condição de quem se submete voluntariamente à ordem constituída deve, em geral, parecer preferível à de quem é punido por tê-la infringido. Três elementos me parecem merecer aqui particular atenção. Em primeiro lugar, a relação entre estrutura social e penalidade é dinâmica. Tanto de um ponto de vista histórico quanto do da análise do presente, a relação se inscreve num processo de contínua transformação que recusa qualquer representação estática. O objeto da análise é constituído pela relação entre estrutura social e formas de controle, respectivamente nas suas macro-trajetórias históricas e nas suas micro-trajetórias c íclicas51. Em outras palavras, se a análise da história social pré-capitalista e capitalista nos permite afirmar que cada sistema de produção tende a d e s c o b rir formas de p u n ir que correspondam às próprias relações de produ ção , a in v e stig açã o so b re o co ntexto capita lista no s p erm ite detectar as linhas ao longo das quais esta correspondência se modula de quando em quando, em consonância com a mudança de determinados fatores econômicos e sociais. Além disso, a relação se revela complexa e tendencial. Por conta disso, não é possível estabelecer uma ligação definida e irreversível: os termos nos quais a relação se articula estão sujeitos a uma redefinição contínua, que depende de circunstâncias políticas, sociais e culturais. Rusche fala expli­ citamente de correspondência entre sistemas de produção, e formas de punir como uma tendência de longo praztfj e de forças sociais que influem sobre aquela correspondência. Enfim, o princípio da less eligibility não é traduzível em um nexo imediato entre indicadores econômicos e indicadores penais, e menos ainda, conseqüentemente, na simples relação entre taxas de desemprego e taxas de encarceramento. É a situação do estrato proletário mais carente que constitui o limite externo a qualquer reforma do regime penal. Isso significa

51 Sobre a necessidade de distinguir as “macro-trajetórias” e as “micro-trajetórias” da relação entre economia e penalidade, ver sobretudo D. M elossi, “ Punishrnent and Social Action: Changing Vocabularies of Punitive Motive Within a Political Business Cycle”, in Current Perspectives on Social Theory, VI, 1985, p. 186. 57

dizer que, na definição das fronteiras nas quais a le ss e lig ib ility opera, outros fatores sociais intervém para delinear a condição do proletariado e a sua relação com o regime p e n a P 2. Vale dizer que a expressão “ a situação do e stra to proletário mais baixo socialmente significativo” requer uma interpretação muito mais extensa d o que a perm itida pela referência ao desemprego ou ao mercado de trabalho. Ela remete, na realidade, à composição d a força de trabalho, às formas de organização da produção e às relações de classe, em seu c o n ju n to 53. Isto é, devemos introduzir no nexo entre estrutura econômica e controle social aquele conjunto de transformações da produção que, ao definir a condição conjunta da força de tra b a lh o contemporânea, inscreve este nexo no universo dos modos de organização do trabalho, de governo, do conflito de classe e de g estã o d a m arg in a lid a d e social. P o d e m o s en tã o a m p liar o horizonte d o p rin cíp io d a less e lig ib ility e situálo n a e n c ru z ilh a d a en tre m erc ad o d e trabalho,, g o v ern o do social e políticas repressivas. Os dois primeiros elementos determinam a “situação” do estrato proletário marginal que, por sua vez, define o espaço de ação das estratégias d e c o n tro le 54. P o rém , isso sig n ifica ilu m in a r tam b ém a v erte n te ideológica d a re la ç ã o e n tre e c o n o m ia e p ena. Não é d e fa to p o ssív el d e fin ir a “ sig n ificativ id a d e so c ia l” d o s estrato s m a rg in a is se n ã o se le v a r em co n ta ta m b é m os p ro c e s s o s id eo ló g ic o s e c u ltu ra is m e d ia n te os q u ais o “ v a lo r so c ia l” dos d iv e rso s seg m en to s d a fo rça de tra b a lh o é so c ia lm e n te d efin id o . A esse ponto, torna-se possível d esen v o lv er linhas interpretativas q u e n ão se 1im item a fo rn ecer u m a racionalização a p o ste rio ri da correlação estatística entre d ese m p reg o e encarceram ento, m as que, ao contrário, co lo q u em estas co r­ relaçõ es en tre os processos de m u d an ça d a econpmia em seu conjunto. M elossi ju lg a q u e estes processos têm u m an dam ento cíclico e, p o r isso, refere-sô a p o litic a l b u sin e ss cycles:

52 Ver, sobre este ponto, R. Lévy e H. Zander, “In tro d u c tio n ” , in R usche e Kirchheimer, Peine et structure sociale. Paris, Cerf, 1994. 53 A esse respeito, Lévy e Zander chegam a sustentar que o desemprego represen­ taria para Rusche uma “categoria virtual”, mais do que uma entidade real e concre­ ta. Com isso, os autores pretendem, um a vez mais, evidenciar a im portância da dim ensão político-social tanto no que diz respeito às transform ações históricas do conceito da less eligibility quanto no que concerne à noção de “correspon­ dência tendencial” entre relações de produção e práticas penais. 54 Ver W acquant, Parola d ’ordine: tolleranza zero, cit. 58

O c o n ju n to das c o n d iç õ e s s o c ia is e p o lític a s a s s o c ia d a s ao ciclo p o lítico-econ ôm ico n ã o é d e te rm in a d o p o r este n e m lhe é secundário. A o contrário, são essas co ndiçõ es q u e to rn a m possível o seu d e se n v o l­ v im ento . E m outros term os, o v ín c u lo entre ciclo ec o n ô m ic o e fe­ n ô m e n o s político-sociais correlato s n ã o é o p ro d u to d e “leis” e c o n ô ­ m i c a s im p c r s c r u tá v e is , q u e s o b r e d e t e r m i n a m o v a l o r d e o u tra s variá v e is sociais. A o co n trá rio , o v ín c u lo é r e s u lta d o d a o b ra de atores sociais cuja interação fa z flu tu ar os in d icad o res eco nôm ico s, s eg uindo u m a trajetória q uase o sc ila n te . A sucessão destes ciclos redefine c o n tin u a m e n te tanto os term os da re lação entre e c o n o m ia e pen a lid a d e quanto, e sobretudo, as fo rm a s d e co n s tru ç ã o social da p ró p ria relação, as quais se traduzem p o r u m a d e m a n d a social de severidade penal e d e intransigência para c o m o desvio56. E m outras palavras,

durante os períodos de recessão econômica, de aumento de desemprego e deterioração das condições de trabalho, entra em cena uma nova “moralidade” . Um a m o ra lid a d e que se mostra severa para c o m os fenômenos de desvio e constitui terreno fértil p ara as c a m p a n h a s de la w a n d o rd e r promovidas pelas elites no poder. E ste “clim a m o ra l” d ifu s o n a so c ie d a d e p o d e s e r c o n s id e ra d o com o o term o de m ediação entre din âm icas da economia e práticas de controle:

A relação entre economia e encarceramento não deveria ser concebida como diretamente causai. Antes, dever-se-ia conectar a m udança econômica com o clima moral qu e costumeiramente a acompanha, admitindo que as orientações empreendidas pelas partes envolvidas no conflito econômico estejam profundamente relacionadas a atitudes sociais mais gerais e historicamente determinadas . Em períodos de crise econômica, a crim inalidade se torna o tema privile­ giado do discurso público, permitindo as s im às elites políticas catalisar, sob 53 Melossi, “Punishment and Social A ction”, cit., pp. 179-180. 56 “Tempos de depressão econômica são também tempos de punição. Os políticos deploram os hábitos im orais e dissipadores dos tem pos passados, o aum ento e sp a n to so d as a tiv id a d e s c rim in o s a s e d e s v ia n te s , a fa lê n c ia dos laço s institucionais e morais da sociedade. Às suas palavras fazem eco os mass media [...] Diz-se que os trabalhadores tenham passado o tempo a desperdiçar os seus grandes salários e agora se pede a eles que, na austeridade sem brilho da sua nova condição de desempregados, se arrependam. Agora é tem po de traçar uma linha. É tempo de punir” (idem, p. 181). 57 D. M elossi, “Introduction” , The Sociology o f P u n i s h m e n t . S o c i o - S t r u c t u r a l Perspectives. Aldershot, Ashgate, 1998, p., xxiv. 59

a fo rm a do “ p ân ico m o ral” p ro d u z id o pelo a u m en to d a c rim in a lid a d e , in s e ­ g u ra n ç a s e m ed o s c u ja o rig em se situ a m ais lo n g e d o q u e n u n c a do seu o b je to im e d ia to 58. O s p ro c esso s d e d efin iç ão do d esv io m u d a m ra d ic a lm e n te d e sin al d u ra n te os ciclo s p o lític o -e c o n ô m ic o s re cessiv o s. A p rá tic a s d isc u r­ siv as so b re o fe n ô m e n o crim in al q u e ex a lta m o re sp eito p e la d iv e rsid a d e , a im p o rtâ n c ia d a in teg ração social d o s d esv ian te s e o p ap el resso ei ali za n te d o s is te m a p u n itiv o , o p õ e m -se lin g u a g e n s o rien ta d as p a ra a d e fe s a so cial, a n e u tra liz a ç ã o d o in im ig o p ú b lic o e a n ec essid ad e de z e ra r a to le râ n c ia p a ra co m o crim e. Q u a n d o falam o s de ciclo s d e d ep ressão ec o n ô m ic a, re fe rim o -n o s a um c o n ju n to de fa to res q u e p e rte n c e m à e sfera d a e c o n o m ia sem , p o ré m , e s g o ­ tar-se no d a d o e statístic o d o d e se m p re g o . P ara d e fin ir e s te c o n ju n to d e e le ­ m en to s, M e lo ssi in tro d u z o c o n c e ito d e p erfo rm a n c e , q u e re m e te às c o n d i­ çõ e s g erais d e trab alh o , aos n ív eis salariais, aos p ad rõ es d e v id a e aos n ív eis d e e x p lo ra ç ã o im p o sto s p elo ca p ita l a o s setores m arg in a is d a c la sse o p erária. O s ciclo s p o lític o -e c o n ô m ic o s e m q u e se d ifu n d e o clim a m o ral p u n itiv o e a c rim in a liz a ç ã o de m assa das classe s m arg in ais são c a ra c te riz a d o s p o r u m a in te n s ific a ç ã o d a p re ssã o capitalista so b re a fo rça de trab alh o :

Dever-se-ia estabelecer u m a lig ação d ireta entre a d e m a n d a am p liad a de p e rfo rm a n c e d irig id a à c lasse operáçia e o a u m e n to d a p re ssã o p en al so b re os estrato s m ais m arg in ais d a so cied a d e (a un d ercla ss). E sta p re ssã o cria um efeito d e “fru stração so cial” q u e lev a todos a tra b a lh a r m ais, e s p e c ia lm e n te aqueles q u e e stão tão p ró x im o s do fu n d o a^jponto d e p o d e r se n tir os urros e os la m e n to s d e q u em é su rra d o . V o ltam o s a ssim à fu n ç ão su b a lte rn a das in stitu içõ e s d e c o n tro le n a o rg a ­ n iz a ç ã o c a p ita lista d o trab alh o . O p rin cíp io d a less elig ib ility su ste n ta e re ­ fo rça, m e d ia n te u m a am ea ça re p re ssiv a crescente, a d e m a n d a d e p e r fo rm a n c e q u e o p o d e r ec o n ô m ic o d irig e à classe operária. C o m o já ac o n te cia nos albores d o siste m a d e p ro d u ç ão c a p ita lista , o ob jetiv o seria c o n stra n g e r à d isc ip lin a aq u e la s fa tia s d o p ro le ta ria d o m a rg in a l que se m o stra m m ais re c a lc itra n te s

58 Idem, pp. xxv-xxvi. Sobre a insegurança e o medo como categorias existenciais que definem a experiência do “cidadão global”, ver Z. B aum an, La società delVincertezza. trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000. 39 D. M elossi, “Gazette of Morality and Social Whip: Punishment, Hegemony and the Case of the Usa, 1970-1992” , in Social & Legal Studies, vol. 2, 1993, p. 263. 60

para c o m as c o n d içõ e s re n o v a d a s d e e x p lo ra ção , p re c a rie d a d e e in se g u ra n ç a im p o stas à fo rça d e tra b a lh o p ó s-fo rd ista . A tingim os aqui o lim iar extrem o d a eco n o m ia política d a p en alid ad e fordista à qual nos re fería m o s a n terio rm en te. R e le n d o R u sch e e K irc h h e im e r, através das h ip ó teses d e M e lo ssi, ac o m p a n h a m o s esta co rren te c rim in o ló g ic a m a r­ xista até o d ec lín io d o fo rd ism o , isto é, até a c rise d a e c o n o m ia in d u strial taylorista e a in te n sific a ç ã o d a p re ssã o c a p ita lista so b re a c la sse o p e rá ria que acom p an h o u o d e sd o b ra m e n to d esta crise. A g o ra n o s en c o n tram o s n o lim iar. A trá s d e nós, o u n iv e rso ec o n ô m ic o da fábrica e o c á rce re d iscip lin a r, a n a lisa d o p ela e c o n o m ia p o lític a d a p en a; à n o ssa frente, a crise d e sse u n iv e rso e u m p ro c esso d e tra n sfo rm a ç ã o das relações de p ro d u ç ão e m cu rso que re d esen h a , e m seu c o n ju n to , a fisio n o m ia da fo rça de trab alh o c o n te m p o râ n e a , a rrastan d o co n sig o o re g im e d isc ip lin a r e a estru tu ra d a re la ção e n tre p ro d u ç ão e d isp o sitiv o s d e c o n tro le q u e até agora p ro cu ram o s d escrev er.

Capítulo 2 Excesso pós-fordista e trabalho da m ultidão O p o d e r im perial ê o resíduo negativo, a recaída da potência da m ultidão. E um pa ra sita que retira a sua vitalidade da capacidade da m ultidão de cria r sem pre novas fo n te s de energia e de valor. Um p a ra sita que enfraquece a resistência do seu hospedeiro, p o d en d o colocar em risco tam bém a sua p ró p ria existência. O fu n cio n a m en to do p o d e r im perial está indissoluvehnente ligado ao seu declínio. M . Hardt e A. Negri, Im p ério

Pós-forcíism o: o regim e do excesso Antes de proceder a uma a n á lise mais aprofundada dos processos de transformação da produção e investigar as novas coordenadas da relação e n tre e s s a s tra n s f o rm a ç õ e s e o s p ro c e s s o s d e m u d a n ç a q u e a f e ta m as estratég ias d e co n tro le, fa z-se n ec essário e sta b e le c e r d u as p re m issas. A p rim e ira , d e o rd em m e to d o ló g ic a , d iz re sp e ito à u tilid a d e d o term o “p ó s-fo rd ism o ” , ao qual re co rro co m tanta fre q ü ê n c ia n e ste trab a lh o . C o m o dizia n as p á g in a s in tro d u tó rias, p ó s-fo rd ism o é h o je u m a e x p re ssã o co m u m tanto n a lite ra tu ra econômica (ao m enos n a n ão o rto d o x a ) q u a n to n o léx ico so cio ló g ico e político . P o rém , a d ifu são de u m te rm o , p o r m ais ampla qu e seja, n ão sig n ific a n ec e ssa ria m e n te ser sin ô n im o d a su a e fic á c ia e x p lic a tiv a e da ad e q u a ç ã o p a ra d esc rev e r os fe n ô m e n o s a q u e se re fere . “P ó s” in d ica sem p re um p ro c esso de tran siçã o “d aq u ilo que n ão é m a is” p a ra “ a q u ilo que ainda n ão é” ; isto é, d en o ta dinâmicas d e tran sfo rm a ç õ e s q u e, se p o r u m lado p erm item p e n s a r q ue n ad a é m ais co m o an tes, p o r o u tro nos s u rp re e n d e d esp rep ara d o s p a ra descrever a nova co n d içã o em to d o s os seus asp ecto s. N e ste sen tid o , p ó s-fo rd ism o é um te rm o que a lu d e m a is a d e te rm in a d a s ten d ên cias e ao esp aço in d e fin id o que se e sten d e e n tre o “ não m a is ” e o “ n ão ainda” , d o q u e à c o n so lid aç ão d e um p a ra d ig m a claramente d efin ív e l. S erá p o rtan to im p o rta n te c o n sid erar as a rg u m e n taçõ e s p re se n te s nas p á g in a s q u e se seg u e m co m o fru to d a te n ta tiv a de id e n tific a r as te n d ê n c ia s p a ra le la m e n te

observáveis nos universos da produção e do controle social e d e explorar o território, ain d a confuso, no qual elas se desenvolvem. A seg u n d a prem issa, ao contrário, d iz respeito à necessidade de “qualificar” o m odo pelo qual é usado o conceito de p ó s-fo rd ism o . O próprio fato de se referir m ais à percepção de te n d ê n c ia s do que à id en tific a ç ã o de um modelo definido fa z co m que ele possa ser u tilizad o para descrev er fen õ m ep o s diversos e n tre si e m u ita s v ezes até m esm o co n tra d itó rio s60. N e sta s p á g in a s, o term o p ó s-fo rd ism o d e sc re v e p ro cesso s d e tran sfo rm açã o do trab alh o e d a p ro d u ç ã o q u e , so b re tu d o n o c u rso dos an o s 1990, situ a ra m -se no c e n tro d o d e b a te político-intelectual am adurecido n o âm bito d o m arxism o neo-obrerista ita lia n o 65. T ra ta -se , certamente, de uma perspectiva parcial - mas talvez mais ú til q u e o u tras, so b retu d o p o r sua aten ção às din âm icas de c o n flito q u e se m p re se entrelaçam às transformações da produção - a iluminar aqueles aspectos d a tra n siç ã o p ó s-fo rd ista q u e p a re c e m incidir, d e m odo m ais sig n ificativ o ,

sobre o terreno do controle social. E n c o n tra -se , p o is, e m a n d a m e n to um p ro c esso de tra n sfo rm a ç ã o g lo b al d a e c o n o m ia q u e sa n c io n a o esg o ta m e n to do m o d e lo in d u stria l fo r d is ta e p ro je ta , ao m e sm o tempo, um a c o n fig u ra ç ã o de to d o in é d ita das re la ç õ e s de p ro d u ç ão . E sta no va articulação en v o lv e, sim u ltan eam en te, os d iv erso s p lan o s em torno dos quais se d ese n v o lv e u o sistema capitalista ocidental a partir do s e g u n d o pós-guerra. D e um lado, no que concerne aos siste m as p ro d u tiv o s, v e m o s c o n s u m a r-se a p ro g re s siv a “ e x p lo s ã o ” d o p a ra d ig m a ta y lo rista d e o rg a n iz a ç ã o do trabalho: a grande fábrica tende a desaparecer do horizonte da m e tró p o le pós-moderna. D e outro, e contemporaneamente, consuma-se a c ris e d a e s tra té g ia fo rd ista d e re g u la ç ã o d a d in â m ic a salarial, isto é, ro m p e se o círc u lo v irtu o so q u e, d u ra n te b o a p arte do sécu lo X X , p erm itiu m a n te r

em conjunto o rendimento operário, a produtividade social e o consumo de m assa. A tu d o isso se ac resc en ta, tíie la st b u t n o t th e least, um p ro c e sso d e

60 Para um a interpretação “anglo-saxônica” do conceito de pós-fordismo, ver, por exem plo, W. B onefeld e J. Holloway (eds.), Post-Fordism and Social Form. A M arxist Debate on the Post-Fordist State. Londres, MacMillan, 1991; R. Burrows e B. Loader (eds.), Towards a Post-Fordism Welfare State? Londres, Routledge, 1994. Para uma am pla resenha do debate internacional, ver A. Amin, Post-Fordism. A Reader. Oxford, Blackwell, 1994: 61 Os momentos mais significativos podem ser reconstruídos através das revistas Luogo com une, DeriveApprodi, Altreragione, Vis à Vis e Futuro Anteriore, que no decorrer desses anos serviram de espaço para o debate. 64

revisão ra d ic al d as p o lític a s k e y n e sia n a s d e ap o io à d e sp e sa p ú b lic a e d e in terv en ção p ú b lic a n a e c o n o m ia , q u e p e rm itia m m a n te r ou re sta b elece r, periodicam ente, os p recário s eq u ilíb rio s d a s eco n o m ias cap italistas ocidentais. N esse m eio tem p o , m u d a ta m b ém a g e o g ra fia d a p ro d u ç ã o c a p ita lista em nível m u n d ial. O cap ital n ão é m ais a p e n a s tran sn a cio n al, m ó v el, ca p a z de ex p an d ir-se e a tra v e ssa r as fro n te ira s d o s E stad o s, m as tam b ém g lo b a l. E le criou um esp a ço d e v a lo riz a ç ã o sem c o n fin s, no q ual não ex istem fro n te iras, instituições n acio n ais so b e ra n a s e d e lim ita ç õ e s te rrito ria is do poder. O n o v o território do ca p ita l g lo b a l é o Im p ério , u m “e sp a ço liso ” no q u al c irc u la m fluxos d e d in h eiro , fo rç a de tra b a lh o e in fo rm ação , su jeito s a re g im e s de controle d ife re n c ia d o s62. A p assa g em de um re g im e d e p len o e m p re g o p ara u m a co n d iç ã o em q u e o d esem p reg o re p re se n ta u m fa to “e s tru tu ra l” , a p a ssa g e m de u m a e c o n o m ia orientada p a ra a p ro d u ç ã o p a ra u m a e c o n o m ia d a in fo rm aç ão , a p a ssa g e m d a cen tralid ad e d a classe o p e rá ria p a ra a c o n stitu iç ã o d e u m a fo rça d e trab a lh o global (q u e , co m o v e re m o s , a ssu m e as c a ra c te rístic a s de u m a m u ltid ã o ) n ã o são f e n ô m e n o s q u e p e r p a s s a m s o m e n te o s p a ís e s c a p i t a l i s t a s “d om in an tes” e os s e g m e n to s in d iv id u a liz ad o s das suas forças d e trabalho. As profundas d iferen ças que po d em o s d istin g u ir entre os regim es d e pro d u ção q ue p rev alecem nas d ife re n te s áreas g eo g ráfica s do Im p ério (b em co m o no interior d e su as p ro v ín c ia s) n ão in d icam , d e fato, a c o e x istê n c ia d e estág io s diferen ciad o s d o d ese n v o lv im e n to ca p ita lista, co m o se e stiv é sse m o s d ian te de um m o d elo p ó s-fo rd ista n o “P rim e iro M u n d o ” , fo rd ista n o “ S e g u n d o ” e p ré -fo rd ista n o “T e rc e iro ” . E ssa s d ife re n ç a s são, a c im a d e tu d o , o e fe ito im ediato das e stra tific açõ e s h ierá rq u ic a s im p o stas à fo rç a de tra b a lh o g lo b al pelo d o m ín io c a p ita lista so b re a p ro d u tiv id a d e so cial63. L im itan d o o nosso d isc u rso às ten d ên c ias q u e d e term in a m os efeito s de m aior a lca n ce so b re o p lan o d a re la ção e n tre d in âm icas d a p ro d u ç ã o e fo rm a s do c o n tro le , g o s ta ria d e m e d e te r p rin c ip a lm e n te e m d o is a s p e c to s d a tran sform ação em cu rso . O p rim eiro , q u e c h a m a ria d e “ q u a n tita tiv o ” , re ferese à p ro g re ssiv a re d u ç ã o d o n ív e l d e “ e m p re g o ” d a fo rç a d e tra b a lh o e, co n se q ü e n te m e n te , à d rá s tic a d im in u iç ã o d a d e m a n d a d e tra b a lh o v iv o , expressa p elo sistem a p ro d u tiv o a p a rtir pelo m en o s d a se g u n d a m etad e dos anos 1 9 7 0 .0 segundo, q u e ch am aria de “q ualitativo” , d iz respeito às m udanças

62 Hardt e Negri, Impero, cit. 63 Idem, p. 288. 65

o c o rrid a s nas formas da produção, na composição da força de trabalho, nos processos de constituição das su b je tiv id a d e s produtivas e nas dinâmicas de

valorização capitalista em que elas estão imersas. A interação entre estes aspectos da mudança nos permite descrever a transição do fo rd ism o ao pós-fordism o como a passagem de um reg im e ca ra c te riza d o p e la ca rência (e pelo desenvolvimento de um conjunto de estra­ tégias orientadas para a d isciplina d a c a rê n c ia ) a um regim e p ro d u tiv o definido p e lo ex c e sso (e conseqüentemente, pela emergência de estratégias orientadas para o co n tro le d o excesso ). Seria, porém, de todo impróprio pensar que estas duas tendências (redução do trabalho necessário e mudanças nos pro­ cessos de produção) se manifestem independentemente uma da o u tra, como se fossem os e x tre m o s opostos da transição p ó s-fo rd ista . Ao contrário, elas se in sc re v e m c o n ju n ta m e n te n u m a fo rç a d e trab a lh o social a fe ta d a , c o n ­ ju n ta m e n te , p o r p ro c e sso s de tra n sfo rm a ç ã o cu jo efeito p rin cip a l é e x a ta ­ m en te a crise de um c o n ju n to de d istin ç õ e s co n so lid ad as. P en se-se' nas d is ­ tin çõ es e n tre trab a lh o e n ão -trab alh o , e n tre p ro d u ção e re p ro d u ç ã o , entre ag ir in stru m en tal e ag ir co m u n ica tiv o .

Todavia, gostaria de descrever estas tendências e os seus efeitos separa­ damente, p o rq u e isso nos p erm itirá, p o r um lado, e s c la re c e r em q u e sen tid o se p o d e d iz e r q u e o p ó s-fo rd ism o in a u g u ra um re g im e de e x c e sso e, p o r o u tro , id e n tific a r o su jeito d e tal e x c esso , a n o v a fo rça d e tra b a lh o social, a q u e la m u ltid ã o p ro d u tiv a sobre a q u al, co m o v erem o s, se re c o rta m as n ovas e stra té g ia s d o co n trole.

O excesso negativo O p rim e iro dad o, portan to , é q u e a ec o n o m ia p ó s-fo rd ista p a re c e d ep e n d er c a d a v ez m en o s da q u a n tid a d e d e fo rça d e trabalho d ireta m en te e m p re g a d a n o p ro c e sso d e p ro d u tiv o . A in tro d u çã o de novas-tecnologias (p rin c ip a lm e n te in fo rm á tic a s) d im in u iu p ro g re ssiv a m e n te o q u a n tu m d e trab a lh o viv o n e c e s ­ sário à v alo riz açã o do cap ital, até re d u z i-lo a um m ínim o: O p ro g resso tecn o ló g ico in fo rm ático não am p lia a p ro d u ção , m as a re e stru tu ra e a m o d ifica atra v és d e um co n stan te in cre m en to d e fle x i­ bilid ad e. T u d o isso não cria em p reg o , m as, ao co n trá rio , o d estró i. O d e s e m p re g o n ão é m a is, p o rta n to , um fe n ô m e n o p u ra m e n te c o n ju n tu ral, m as sim estru tu ra l . 64 A. Fumagalli, “Aspettti delPaccum alazione flessibile in Italia”, in S. Bologna e A. Fum agalli (org.), II lavoro autonom o di se conda generazione. Scenari dei posfordism o in Itália. Milão, Feltrinelli, 1997, pp. 137-138. 66

Este processo teve início no com eço dos anos 1970 e constitui, por um lado, a resposta capitalista à recusa operária da disciplina de fábrica, à insubordinação e ao a b se n te ísm o , à contestação do trabalho assalariado expressa pelos movimentos revolucionários dos anos 1960; por outro lado, a reação do sistema empresarial à superprodução e à saturação dos mercados de bens duráveis63. Já na metade dos anos 1980, a fábrica fordista se apresentava como um deserto no qual o ecoar barulhento e obsessivo das m á q u in a s ao lo n g o da linha de montagem foi sendo substituído por m áquinas silenciosam ente “inteligentes” , que requeriam a supervisão de poucos técnicos66. Parcelas crescentes da força de trabalho, expulsas dos contextos produtivos em reestruturação, foram, assim, alimentar õ exército da população desempregada, não em pregada e su b e m p re g a d a , ou preencher os vários nichos do se to r terciário, aqueles âmbitos c o m p le m e n ta re s ao com partim ento industrial, cada vez mais caracterizados pela precariedade dos direitos e pela insegurança dos rendimentos, quando não até mesmo por relações neo-servis67. Contemporaneamente, o assalto neo-liberal ao welfare determ ina o abati­ mento, das g aran tias sociais, alimentando as condições de incerteza, a dispo­ nibilidade absoluta à flex ib ilid ad e e as novas e sc ra v id õ e s que se tornarão um asp ecto ex isten c ia l, estru tu ral e p a ra d ig m á tic o d a n o v a fo rç a d e tra b a lh o 68. A restrição dos e sp a ç o s de a c e sso ao e m p re g o reg u lar, so b re o qual co n v e rg e o ataq u e p o lític o aos d ireito s so ciais, p ro d u z uma h ip e rtro fia das e c o n o m ia s sub m ersas, d o s circu ito s p ro d u tiv o s p a ra le lo s aos q u a is aq u e le s q u e n ão têm

65 Para uma análise (voltada para o caso italiano) da crise do paradigma fordista, que leva em consideração tanto os aspectos ligados à conflitualidgde do trabalho quanto às disfunções internas ao sistema fordista derivadas da sua rigidez e, ainda, às dinâmicas de saturação dos mercados que, posteriormente, aceleraram os pro­ cessos de reestruturação, ver mais uma vez Fumagalli, “Aspettti deli’ accumulazione flessibile in I tal ia”, cit. 66 Uma descrição fascinante do processo de reestruturação que ocorreu na Fiat a partir dos anos 1970 e sobretudo dos efeitos sobre a subjetividade operária foi feita por M. Revelli, Lavorare in Fiat. Da Valletta acl Agnelli a Romiti. Operai sindacciti robot. Turim, Garzanti, 1989. 67 A. Gorz, M i serie dei presen te. R icc h ezza dei p o s s íb ile , trad. it. Roma, Manifestolibri, 1998. 6S Para uma reconstrução dos efeitos “biográficos” deste devir inseguro, precário c flexível, ver R. Sennet, L ' uomo flessibile. Le conseguenze dei mtovo capitalis­ mo sulla vita personale, trad. it. Milão, Feltrinelli, 2000. 67

g a ra n tia são o b rig ad o s a re c o rre r p a ra se asse g u rar de fo n tes a lte rn a tiv a s tle re n d a. S eto res in teiros da p ro d u ç ão c o m eç am , assim , a apoiar-se em m ercad o s n ã o re g u la d o s, n ão tu telad o s, m u ita s v ez es no lim ite d a le g a lid a d e , e m que d o m in a o trab alh o interm itente, tem porário, flexível às exigências co n tin g en tes d e e m p re sa s q u e, de aco rd o co m a filo so fia do j u s t in tim e e d a lea n -p ro d u c tio n , c o n tra ta m fo ra fases iso la d a s do p ro c esso d e p ro d u ç ão . É a rees­ truturação d o se to r industrial qu e d e te rm in a estes processos. D e slo c a liz a ç ã o p ro d u tiv a , d e sc e n tra m e n to , o u tso u rc in g , d o w n sizin g e terc ia riz a ç ã o d esestru tu ra m a fo rç a d e trab a lh o o p e rá ria , frag m en tan d o -a em um a rq u ip é la g o de tra b a lh a d o re s atípicos69. D ian te d e u m a v erd ad eira “d e fla g ra ç ã o ” do trab alh o , d e u m a re c o lo c a ç ã o a b ra n g e n te d a p ro d u tiv id a d e so cial en tre p re sta çõ es atíp icas é ocasionais,, tra b a lh o n eg ro , in terin o e in te rm ite n te , d ian te d a p assa g em d e u m trab a lh o p e rc e b id o c o m o ev e n to b io g rá fic o “ n a rrá v e l” p ara um trab alh o v iv id o co m o “ fra g m e n to ” , c o m o n e c e ssid a d e do h o je, u rg ê n c ia do m o m en to , b em , d ia n te d e tu d o isso ain d a é p o ssív el d e fin ir o d ese m p reg o co m o fa lta d e tra b a lh o ? N a re alid ad e, isso q u e temos o costum e de c h a m a r de “d e s e m p re g o ” talvez não corresponda mais à fa lta d e tra b a lh o , m as sim de e m p re g o , se por e m p re g o entendermos um c o n ju n to d e seg u ran ça s - e stab ilid ad e, a c e sso a d e te rm in a d a s g aran tias, titu larid ad e d e u m c o n ju n to d e d ireito s so c ia lm e n te re c o n h e c id o s - d o qual o p ó s -fo rd ism o ex p ro p rio u a to talid a d e d a fo rç a de tra b a lh o c o n te m p o râ n e a . T alv ez o “ d e se m p re g o ” en tã o se c o n fig u re h o je m a is p ro p ria m e n te co m o a a b o liç ã o d o “ tra b a lh o ” esp e c ífic o , p ró p rio do c a p ita lis m o in d u strial, do tra b a lh o a o qual nos re ferim o s q u a n d o se d iz q u e u m a m u lh e r “ n ão tem um tra b a lh o ” e d e d ic a o seu tem p o a c ria r os filh o s, e q u e “ tem u m tra b a lh o ” , q u a n d o d e d ic a ap en as u m a fração d o seu te m p o a c ria r os filh o s d o s o u tro s70. N e sse sen tid o , o co n c eito d e d e se m p re g o a tra v essa urna rad ical m u d a n ç a s e m â n tic a (q u e, en tre tan to , a fe ta d ire ta m e n te o p lan o d a e x p e riê n c ia so cial). O d e se m p re g o d eix a, de fato, de ser asso c iá v el à id éia d e “ in a tiv id a d e ” p ara se to rn a r u m a m e d id a o ficial d a fra tu ra e n tre as in u m erá v eis “ a tiv id a d e s ”

69 Para uma análise dos efeitos de fragmentação e perda de segurança (econôm i­ ca, cultural e existencial) que acom panha a transição do trabalho operário às novas formas de trabalho “atípico” , ver S. Bologna, “Dieci tesi per la definizzione di uno statuto dei Iavoro autônom o”, in Bologna e Fumagalli (org.), II lavoro autonomo di seconda generazione, cit., pp. 13-42. 70 Gorz, M iserie dei presente. Ricchezza dei possibile, cit., p. 10. 68

p rodutivas - isto é, aq u e la s q u e re m e te m à n o ção d e trab a lh o no sen tid o p ró p rio do term o nas q u a is os in d iv íd u o s e stão co n tin u a m e n te e n v o lv id o s, e o lim ite im p o sto p elo siste m a c a p ita lista , a fim de q u e seja re co n h ec id o a essas atividades o v alo r social d e “tra b a lh o ” . E m outros term o s, o d ese m p reg o se co n fig u ra como a margem de excesso da produtividade social em relação à separação artificial entre trab alh o e em p re g o im posta pelo dom ín io capitalista à so cied ad e contemporânea. O desaparecimento do emprego não eqüivale, na v erd ad e, ao d e sa p a re c im e n to do trabalho. Antes, no p ó s-fo rd ism o , o trabalho, e n ten d id o co m o u m c o n ju n to d e açõ es, p e r fo r m a n c e s e p re sta çõ es p rodutivas, estende-se c a d a vez m ais até integrar toda a e x istê n c ia social. A q u ilo q u e e x p e rim e n ta m o s , e f e tiv a m e n te , é u m a ra d ic a l s e p a ra ç ã o do trabalho, a ssim c o n c e b id o , d e um s iste m a d e g o v e rn o d o s d ire ito s e d a cid ad an ia ain d a p ro fu n d a m e n te lig ad o ao co n c eito fo rd ista d e em p reg o . A im p o sição d a so c ie d a d e salarial se c o n fig u ra, p o rtan to , co m o u m a n o v a articu lação do n ex o en tre trab a lh o , re n d im e n to e cid ad a n ia. A n e g a ç ã o do acesso ao trabalho en q u a n to “e m p re g o ” exclui da cidadania massas c re s­ centes de sujeitos cujo agir propriamente enquanto trabalhador (isto é, p ro ­ dutivo), seja ele material ou imaterial, não é socialmente reconhecido como condição suficiente para ter acesso a uma existência sociaí plena71. D elineia-se, n esse m om ento, u m a p ro fu n d a contradição: o reco n h ecim en to do direito à c id ad a n ia, à in clu sã o so cial e ao re n d im e n to é su b o rd in a d o a um trabalho, en ten d id o co m o em prego, q u e n ão tem m ais u m a referên cia m aterial. Se até a seg u n d a m etad e d o sé c u lo X X fo i possível c o n stru ir a cid a d a n ia co m o co n ju n to d e d ireito s do tra b a lh o m ed iad o s pelo d ireito ao trab a lh o , direitos q u e o co m p ro m isso fo rd ista p o d ia g aran tir m ed ian te a re p ro d u ç ã o do eiclo tra b a lh o -sa lá rio -c o n su m o -c id a d a n ia , ag o ra e sta d in â m ic a n ão é m ais im aginável. E m ergem , assim , os p rim e iro s co n to rn o s d aq u ilo q u e definimos co m o regime d o excesso. E x ce sso sig n ifica, n este sen tido, q u e a d in âm ica p ro d u tiv a c o n te m p o râ n e a excede c o n tin u a m e n te o s d is p o s itiv o s in s titu c io n a is d e atribuição, re co n h ec im e n to e g aran tia da cid ad a n ia social. A crise do pacto 71 Ver, por exemplo, A. Gorz, II lavoro debole. Oltre la società salctriale, trad. it. Roma, Lavoro, 1994. Porérn, é preciso não esquecer que mesmo o problema da falta de reconhecim ento de determ inadas práticas sociais como trabalho, com tudo aquilo que daí deriva em termos de direito de cidadania, constitui um terreno de conflito constante entre capital e força de trabalho. Pensemos, neste sentido, nas críticas feministas da divisão sexual do trabalho e nas lutas para o reco­ nhecimento do trabalho “doméstico” como trabalho “lout-court”.

fo rd is ta -k e y n e s ia n o e d o E s ta d o s o cial q u e fora c o n s tru íd o so b re a q u e le p a c to r e s o lv e -s e n u m a c rô n ic a in a d e q u a ç ã o po r p arte das in s titu içõ e s de g o v ern o d a s o c ied a d e e m garantir in clu sã o p o r m eio d o trabalho. A separação entre co n stitu iç ã o m aterial d a socied a d e e constituição fo rm a l d as instituições é m á x im a . S ã o transp ostas aqui to das as m a rg e n s d e m e d ia ç ã o e n tre fo rça de trabalho e capital. O q u e p e rm a n e c e é u m co ntínu o e x c esso da p ro d u tiv id a d e social p a r a c o m os dispositivo s in stitucion ais d estin ado s a re g u lá -la e inserila n u m p ro jeto ab ran g en te de g o v ern o d a sociedade. E nq uan to durante o período fordista era razoável afirm ar qu e o desem prego, a e x c lu s ã o social e a p re carie d ad e ex istencial eram a c o n s e q ü ê n c ia d e u m a carência, d e um d éficit, de u m a in ad eq u a ção subjetiva d o s in d iv íd u o s para co m u m s i s te m a q u e , to d a v ia , tin h a c o n d i ç õ e s de g a ra n tir, g r a ç a s aos in s tru m en to s p o líticos de m e d iaç ão da re lação entre e c o n o m ia e sociedad e, in clu são e c id a d a n ia v irtualm ente universais, h oje isso n ão é m ais possível. A q u e le s i n s t r u m e n t o s d e m e d i a ç ã o d e s m o r o n a r a m e n ã o p a r e c e h a v e r d e s e q u ilíb rio s so ciais e ca rênc ia s su b jetiv as p assív eis de se re m su p rid as m e d ia n te a aç ão de dispo sitivos institucionais d e d is cip lin a m en to da força de trabalho e d e socialização cia produção, n em m uito m enos excessos produtivos e su rp lu s de fo rç a de trabalho a controlar. D o p o n to de vista capitalista, p o d e m o s d izer que o W elfare S ta te p erten ce à fase h istó rica na q ual era o capital q u e se m an ifestava c o m o ex c e s s o sob re a fo rç a d e trab alh o . O d ese n v o lv im en to h istó rico do ca p ita lism o in d u strial fo rd ista n e c e s s ita d e ap arato s de g o v e rn o d a p o p u lação e d e d isp o sitiv o s de c o n tro le so cial q u e p erm itam elev a r ao nível das relaçõ es de p ro d u ç ã o um a fo rça d e tra b a lh o “c a re n te ” , in ad eq u a d a, relutante. V im os, a p ro p ó sito do papel ex e rc id o p ela prisão na pro d u ção do p roletariado, que eram as carências, as in su fic iê n e ta s, além d a re b elião d a fo rça d e trabalho, q u e se p ro c u rav a c o n tro la r, so b o m a n to d a c o o p e ra ç ã o p ro d u tiv a , d o a u to c o n tr o le d o s in d iv íd u o s, d a c a p a c id a d e de in serção no p ro c esso p ro d u tiv o . N e sse m esm o ce n ário se in sc re v ia tam b ém a ló g ica p ro fu n d am en te disciplinar do W elfare Sta te, q u e p e rm e a v a todas as in stitu içõ es sociais, em p rim eiro lu g a r a p risão . Este tip o d e d isp o sitiv o d isc ip lin a r cai p o r terra agora, e é o capital q u e se m o stra ca re n te em re la ção a u m a fo rça de trab alh o to rn ad a flex ív e l, n ô m ad e, m ó v el: m u ltid ã o . A m u ltid ã o p ro d u tiv a e x c e d e as re la ç õ e s d e p ro d u ç ã o c a p ita lista s no m o m en to em q u e vive d ire ta m e n te a in ad eq u a ção d o co n c eito d e tra b a lh o -e m p re g o e ex p e rim en ta em si m esm a a v io len ta n eg a ção dos d ireito s d e c id a d a n ia provocada p o r esta inadequação. N esse sentido, p o d em o s fa la r aq u i d e um ex c esso negativo, e v id en c ian d o , p o r u m lado, os e feito s d a 70

exclusão, da violência do poder e do controle que este excesso determina sobre a força de trabalho e, por outro, o fa to de que, neste processo, o domínio do capital resulta potencialmente negado. Isto é, este domínio se revela em toda a sua estranheza, violência e opressão para com a força de trab alh o social. T ra ta r-se -á então de verificar de que modo e mediante que estratégias de controle da multidão o domínio tenta, a despeito de tudo, “negar” esta negação e constituir-se como regime de governo do excesso. O excesso positivo Dizia-se que a automação da produção determ ina um processo de redução do trab alh o humano necessário à valorização capitalista. Isso, porém, é apenas um aspecto da tra n sfo rm a ç ã o em curso72. A inform atização da produção incide, de fato, diretamente sobre as próprias formas do trabalho, sobre os processos de organização que a conformam e sobre o conteúdo da prestação de trabalho. Desse ponto de vista “qualitativo” , pode-se dizer que o trabalho torna-se cada vez mais “cognitivo” e “ im a te r ia l” . Irnaterial porque se fundamenta n a elaboração de símbolos, na construção de linguagens, num s o b re -fa z e r q u e n ão d e v e nunca s e r id ê n tic o a.si m esm o , n a gestão d os signos. O trabalho tende a “desmaterializar-se” , no sentido de que se desvincula da sua relação h istórica com um p roduto determ inado para se tornar performance comunicativa, ato criativo que dificilmente pode resolver-se no objeto imediato do agir, momento produtivo que cria uma “segunda natureza” (a v irtu al), ao in vés de lim itar-se a transformar o m u n d o n atu ral. Se o fo rd ism o - e o ta y lo rism o c o m o su a tradução organizativa - se fu n d a v a so b re u m a n ítid a se p a ra ç ã o e n tre cria ç ã o , d ire ç ã o d o tra b a lh o e ex ecu ção d a tarefa, o p ó s-fo rd ism o p arece to rn ar este ciclo h o rizo n tal, fazendo da in o v açã o e da criação os fu n d a m e n to s de to d o p ro c e sso p ro d u tiv o 7,5. A re p e tiç ã o das o p eraçõ e s, a c o o rd e n a ç ã o sin c rô n ic a ao lo n g o d as fileiras p ro d u tiv as p ré -c o n stitu íd a s a p artir de cim a e a su b o rd in a ç ã o h ie rá rq u ic a são elem e n to s d a o rg a n iz açã o taylorista d o tra b a lh o q u e tendem a p e rd e r v alo r na 72 Essa vertente-é em si m esma controvertida, caso considerem os que diante da progressiva automação de determ inados âm bitos da produção em ergem setores muitas vezes eomplementares a estes (pense-se em todo o terciário desqualificado) ou até mesmo em “sistemas de produção” inteiros (pense-se no Sudeste asiático), em que a automação é quase inexistente. 73 y er Sobretudo T. Ohno, Lo spiríto Toyota, trad. it. Turim, Eínaudi, 1993; e B. Coriat, Ripensare / ’ organizzazzione dei lavoro. C oncetti e p ra ssi dei m odelo giapponese, trad. it. Bari, Dedalo, 199J. 71

em presa flexível pós-fordista. Ao contrário, eles representam verdadeiros o b s tá c u lo s à p ro d u tiv id a d e . A interdição im p o s ta a o s op erário s d e se c o m u n ic a re m , q u e n a fá b ric a fo rd is ta e ra siste m atic am en te acom panhada d a in ju n ç ã o d e in c re m e n ta r o re n d im e n to co n ju n to dos m ec a n ism o s a tra v é s d e p re sta ç õ e s p arcializad a s e perfeitam ente sincronizadas no tem p o e n o e sp a ço , c e d e agora a vez para a figura do trabalho im d tiskilled , cujo requisito principal é exatam ente a capacidade de não se repetir nunca, de não d is p o r-s e de acordo com uma ordem p re d efin id a:

Na época da manufatura e depois durante o longo apogeu da fá b ric a fordista, a atividade de trabalho 6 muda. Quem trabalha, cala. A produção é uma cadeia silenciosa, na qual é admitida apenas uma relação m ecânica e exterior entre antecedente e conseqüente, ao mesmo tempo em que se im pede qualquer correlação interativa entre simultâneos (...) N a m etrópole pós-fordista, ao contrário, o processo de trabalho material pode ser descrita, em p iricam en te, como conjunto de atos lingüísticos, seqüência de asserções, interação simbólica. Em parte, [isso ocorre] porque a atividade do trabalho vivo se explicita, agora, ao lado do sistema de máquinas, através de tarefas d e regulação, supervisão e coordenação, mas sobretudo porque o processo produtivo tem como “matéria-prima” o saber, a informação, a cu ltu ra, as re la çõ es so c ia is . O trabalho se torna lin g ü ístic o na medida em que a c o m u n ic a ç ã o se to m a m e rc a d o ria (so b a fo rm a d a m e rc a d o ria -in fo rm a ç ã o ) e o in telecto , e n te n d id o como conjunto de faculdades com unicativas, expressivas e inventivas, to rn a se o n o vo u ten sílio d a p ro d u ç ã o p ó s-fo rd ista . Assim, os tempos e lugares que n a so c ie d a d e -fá b ric a s e p a ra v a m o u n iv e rso da p ro d u ç ão da e sfe ra da reprodução são d e se stru tu ra d o s: o trab a lh o , p ro g ressiv am en te, re tira -s e do perím etro da instituição fechada. Ora, a produtividade não depende mais tanto de um a gestão racional e econom icam ente eficaz dos recursos internos à em presa (dos seus fatores produtivos imediatos) quanto da capacidade em presarial de colher, com preender, decodificar fluxos de conhecimento, resíduos de experiência social difusa - tais como modos, linguagens, redes de relação (aquilo que se define com o “externalidade positiva”) - e conferirlhes valor. Nesse sentido, com respeito à nova força de trabalho im a te ria l, torna-se cada vez mais problem ática urna real separação entre tem po de 74 P. Virno, “Lavoro e linguaggio”, in Zanini e Fadini (org.), Lessico Posfordista, cit., p. 181. 72

trabalh o e te m p o d e n ã o -tra b a lh o . D e u m lado, n a re alid ad e, o tem p o de re p ro d u ç ã o d a fo r ç a d e tra b a lh o im a te ria l to rn a - s e te m p o d ire ta m e n te prod u tiv o , u m a v ez q u e a e m p re sa p ó s-fo rd ista c o n fere v a lo r a co m p etê n cias, habilid ad es, a titu d e s q u e se d e se n v o lv e m (ou m elhor, que se c o n stitu em ) sob retu d o d u ra n te o tem p o d e “n ã o -tra b a lh o ” . P o r o u tro lado, o trab alh o im aterial se c a ra c te riz a e x a ta m e n te co m o p ro c e sso d e p ro d u ç ã o d aq u elas relações lingüísticas e c o m u n ica tiv as nas quais se desenvolvem competências, hab ilid ad es e atitu d es a serem v alo riz ad as. O d ev ir lin g ü ístic o d o tra b a lh o trad u z -se, assim , em p ro d u ç ã o de sentido, co m u n icação e laço so cial, i.e., em p ro d u ç ã o de su b jetiv id a d e, em m o d o de subjetiv id ad e. D isso lv e-se , d estarte , a d istin ç ão trad ic io n a l e n tre estrutura m ateria l d a so cied a d e - e n te n d id a c o m o u n iv erso da v a lo riz a ç ã o cap ita lista das su b jetiv id ad es - e su p ere stru tu ra - e n te n d id a co m o u n iv erso d e fo rm ação daqu elas m e sm as su b je tiv id a d e s. N as p a la v ra s de N e g ri e H ardt: A su p erestru tu ra c o lo ca d a no trab a lh o e no u n iv e rso em q u e vivem os é u m u n iv erso de red es lin g ü ística s produtivas. A s linhas d a p rodução e as da representação se cru zam e se co n fu n d em no m esm o contexto lin g ü ístico e p ro d u tiv o (...) A produção é indistinguível da reprodução; as forças produtivas ev o lu em paralelamente às relações d e produção; o cap ital c o n stan te te n d e a ser co n stitu íd o e re p re se n ta d o no interior do cap ital v ariáv el q u e está nos céreb ro s, nos co rp o s e n a co o peração dos su jeito s p ro d u tiv o s '. U m e x e m p lo s ig n ific a tiv o d o s p ro c e s so s q u e e sta m o s d e s c re v e n d o é rep resen tad o p elo “ lo g o ” 76. N a e c o n o m ia p ó s-fo rd ista d o s sig n o s, o lo g o não é m ais apenas u m a m arc a q u e perm ite d istin g u ir u m p ro d u to de outro, idêntico m as de fa b ricaç ão d iv ersa. A o co n trá rio , ele e n c e rra o v alo r lin g ü ístic o ou im aterial do p ró p rio p ro d u to , to rn a-o p arte de u m e stilo d e v id a e fa z d ele um m edium da co m unicação social. O logo contém em si u m a experiência relacionai - veicu la e p ro d u z su b jetiv id a d es. M as o q u e faz d ele um d isp o sitiv o de

75 Hardt e Negri, Impero, cit., pp. 356-357. Ver também M. Lazzarato, La voro immateríale. Forme di vila e produzione di soggettività. Verona, Om brecorte, 1997; P. Virno, Mondanità. U idea di “m ondo” tra esperienza sensibile e sfera pubblica. Roma, Manifestolibri, 1994. 76 Ver, naturalmente, N. Klein, No Logo. Economia globale e nuova contestazione, trad. it. Milão, Baidini&Castoldi, 2000 [N. do T.: edição brasileira Sem logo. A tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro, Record, 2002, tradu­ ção de Ryta Vinagre], 73

p ro d u ç ã o de s u b jetiv id a d es é p re c is a m e n te o fato de q u e e le m e s m o é o resultado d a valorização de subjetividades. E m outras palavras, p ara ser eficaz - isto é, p r o d u t i v o - , o lo g o d e v e p o d e r ca p ta r, a r r a n c a r e in te rc e p ta r determ in a d as fo rm as da re lação social e valorizá-las c o m o atributo de um produto. É n esse sentido q u e a em p re s a p ós-fordista se c a rac te riza com o d is p o s itiv o q u e v a lo riz a fluxos d e lin g u a g e m , sím b o lo s e c o m u n ic a ç ã o , tran sfo rm an d o -o s e m m ercadorias. M as isso significa q u e a em p re s a valoriza d iretam en te a esfera da re produ çã o, do n ão -trab alh o , da ex istên c ia social: aqui se c o n s u m a o fim da distinção entre estrutura m aterial e su p erestru tu ra ideo ló gica d a sociedade. De o utra parte, é a vida inteira a ser s u b m etid a ao trabalho, a partir do m o m e n to e m q u e são as faculdades h u m anas m ais c o m u n s q u e con stituem o núcleo da p ro d u tiv id ad e pós-fordista: ca p acid ad e de lin g u ag em , facu ldad e de ex pressão e inven ção, p ro p e n sã o à co m u n ica ção e à relação, afetiv id ad e. A valorização capitalista destas atitudes não pode realizar-se apenas nos lugares e nos tem pos que um contrato de trabalho define co m o em prego. A o contrário, esta “h u m an id ad e no trab alh o ” rep ro d u z-se e e sten d e -se no esp aço in d efin id o das relações entre os sujeitos e nas redes do agir com u nicativ o. Se a lingu agem , a co m u n ica ção e a relacio n alid ad e se tornaram elem en tos constitutivos da produ tiv idad e, a co o p e raç ão social rep resenta c e rtam en te a sua fo r m a de re a liz a ç ã o . C o m p re e n d e -s e , assim , p or que o p ro c e s s o de p ro d u ção d ep e n d e cad a vez m en os de prestaçõ es sin g u lariza d as às qu ais o co m an d o ca p ita lista pode im p o r urna o rg a n iz açã o racional d o alto, com o aco n tecia n a fá b rica taylorista. A co o p e raç ão p ro d u tiv a entre os su jeito s do trabalho p ós-fordista se furta a qualquer lógica disciplinar que pretenda vinculála a u m a re p etição , a u m a sin cronização, a u m a o rdem cuja rig id ez é an titética ao p ro cesso d e co m unicar. A rede substitui a linha d e m o n tag em . A em p re sa em rede o b tém e valoriza u m a co operação que se p roduz de b aixo e se alim enta de tro cas lin g ü ística s e sim b ó licas, co m relação às qu ais q u a lq u e r fo rm a de o rg an ização rígida re p resen ta um lim ite que d ificu lta o seu livre fluir. M as se isso é v erd ad e - isto é, se a p ro d u tiv id ad e do trab alh o d ep en d e cad a v ez m ais d aq u ilo que, no p assado, seria defin id o co m o o u n iv erso do n ã o -tra b a lh o , e se além disso é a co o p era çã o (e não a co m p etiçã o ) e n tre os su jeito s q ue co n stitu i o p re ssu p o sto m aterial d este sistem a d e p ro d u ç ão - , en tão, ao lado d a crise das ca te g o rias trad icio n ais de q u e vim o s falando, p erfila -se tam b ém a da “ lei do v alo r” . Q uer dizer, do p ro jeto c a p ita lista de m edir, atrav és do tem po de trabalho, o espaço do d ese n v o lv im en to hu m an o que p erm ite à p ro d utividade social exprim ir-se. T orna-se im possível quantificar 74

economicamente o tempo e os recursos necessários à reprodução do utensílio de trab a lh o hegemônico na produção pós-fordista, o intelecto11. M arx prevê as transformações que vemos desenvolver-se e define a nova capacidade produtiva social como general in telle ct, O general in tellect é, de acordo com a definição marxista, uma nova entidade produtiva que emerge graças à inovação tecnológica e do trabalho im ediato como fonte da riqueza social: O desenvolvimento do capital fixo mostra até que ponto o saber social geral, knowleclge, tornou-se força produtiva imediata e, por conseguinte, as condições do próprio processo vital da sociedade são passadas para o controle do General intellect, e remodeladas de acordo com ele, até o ponto de as forças produtivas sociais serem produzidas não apenas na forma do saber, mas também como órgãos im ed iato s da práxis social, do processo de vida real , As possibilidades de realização das potencialidades produtivas do general intellect dependem de processos de cooperação e com unicação social exter­ nos. anteriores e contrastantes com a racionalidade o rg a n iz a tiv a da empresa capitalista. O comando empresarial se coloca diante desses processos como puro domínio externo, como uma cam isa de força q u e Mmita as infinitas p o ten cialid ad es d a cooperação, ao mesmo tem p o em q u e as en c erra dentro d a fo rm a d a valorização: O trabalho vivo é o rg an izad o no in terio r d a em p re sa, in d ep en d en ­ tem en te do co m an d o c a p ita lis ta e ap en as n u m se g u n d o tem p o , e form alm ente, esta co o p eração é siste m atiz ad a n o com ando. A co o ­ p eração p rodutiva se c o lo ca co m o p re ced e n te e in d ep en d e n te da fu n ­ ção em presarial. P ortanto, o capital não se ap resen ta com o o rganizador d a fo rça de trab alh o , m as co m o reg istro e g estão d a o rg a n iz açã o au tô n o m a da fo rça de trabalho. A função p ro g re ssiv a do capital está term in ad a . 77 “De um lado, ele [o capital] evoca, portanto, todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e das relações sociais, a fim de tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho nela empre­ gado. Por outro lado, ele pretende m edir as gigantescas forças sociais assim evocadas à medida do tempo, e aprisioná-las nos lim ites que são necessários para conservar o valor já criado (K. Marx, Lineamenti fondam entali delia critica deli 'economia política, trad. it. Florença, La Nuova Italia, 1978, p. 402). 78 Jdem, p. 403. 79 Hardt e Negri, 11 lavoro di Dioniso, cit., p. 103. 75

O c o n tro le ca p ita lista se ex e rce a p o ste rio ri so b re esta n o v a fo rça de trab a lh o , não m ais co m o d eterm in a ção dos p re ssu p o sto s o rg a n iz a tiv o s q u e to rn a m p o s s ív e l a p ro d u tiv id a d e s o c ia l, m as c o m o p u ra e x p r o p ria ç ã o (d e sv in c u la d a, d e fato, d e um a tro ca d e eq u iv ale n te s to rn ad a im p o ssív e l) de u m a p ro d u tiv id a d e q u e tende, co n tin u am en te, a e x tra p o la r as fro n te ira s da valo rização . N ão h á dúvida, adem ais, q u e esta ex p ropriação fin alm en te ocorra. N ã o p re te n d em o s, é certo , afirm a r q u e agora a fo rça d e trab a lh o social esteja m a te ria lm e n te liv re d o co m an d o cap italista. A o co n trá rio , o q u e d ev em o s in v e stig a r é ex a ta m en te a fo rm ação de novas m o d alid ad es d e co n tro le da fo rç a d e trab a lh o im aterial, tornadas necessárias pelo d ese n v o lv im e n to de u m a co o p e ra ç ã o so cial q u e ex ced e a re la ção capitalista. S ab em o s, p o r o ra, q u e se trata d e form as d e c o n tro le q u e n ão re m e tem m ais a um d o m ín io c a p ita lista “ in tern o ” ao p ro c esso d e trab alh o , m as sim q u e se articu lam a p artir d e um co m an d o externo e que, portanto, m aterializam um p o d er m ais “ p o lítico ” do que econôm ico do capital. D efiniria co m o político o co n tro le q u e o capital exerce hoje sobre o trabalho exatam ente para evidenciar a re tira d a p ro g re ssiv a do d o m ín io de um universo ec o n ô m ic o fu n d a d o sobre a idéia de troca de equivalentes, para se chegar a uma relação de puro com ando. N o p e río d o fo rd ista, a v alo riz açã o capitalista estav a lig ad a a fo rm as de o rg a ­ nização cien tífica d a fábrica que perm itiam m axim izar o rendim ento do trabalho op erário a p artir do in terio r do pro cesso produtivo. H oje, a valorização depende d a p o ssib ilid a d e d e co n tro la r de fora e d e im p o r a fo rm a d a c o m p e tiç ã o (e, su b re p tic ia m e n te , a lei d o valor) a atitu d es p ro d u tiv as q u e, p o r su a natu reza, são c o o p e ra tiv a s80. O q u e d efin im o s c o m o “ex c esso p ó s-fo rd ista ” c o n fig u ra -se aqui co m o ex c e sso c o n sta n te d e p o ten cia lid ad e s p ro d u tiv as, d e laço s d e c o o p e ra ç ã o , de fo rm a s d a c o m u n ic a ç ã o com re sp eito às g eo g rafias d a p ro d u ç ã o im p o sta s p o r u m a ra c io n a lid a d e c a p ita lista re d u zid a a d o m ín io . O c a p ita l - n ão m ais em c o n d iç õ e s d e g o v e rn a r ativ am en te, a p artir d e d en tro , a p ro d u tiv id a d e so cial, v isto q u e e s ta e x c e d e as fo rm a s c a p ita listas de ra c io n a liz a ç ã o d o real - lim ita -se a e x e rc ita r u m co n tro le , a ex p re ssa r-se co m o p u ro lim ite ex tern o e m re la ç ã o a u m a c o o p e ra ç ã o p ro d u tiv a q u e p re fig u ra a su a o b so lescê n cia. E u fa la ria , p o rta n to , d e ex c e sso p ó s-fo rd ista p a ra e v id e n c ia r, ao m esm o

80 “Com isso a contradição da exploração é deslocada para um nível altíssimo, onde o sujeito principalm ente explorado (aquele técnico-científico, o cyborg, o operário social) é reconhecido na sua subjetividade criativa, mas controlado na gestão da potência que exprim e” (ibidem, p. 105). 76

tem po, tanto o s asp ecto s d e hip er-in clu são e centralidade do trab alh o im aterial no q u e c o n c ern e à p ro d u ç ã o p ó s-fo rd ista , q u an to ao fa to d e q u e esta força d e tra b a lh o s o c ia l a lu d e , c o n s ta n te m e n te , à p o s s ib ilid a d e d e s u p e ra r o p arasitism o d o ca p ita l. Isso p re fig u ra um h o rizo n te d e p ro d u tiv id a d e liv re e d e co o p e raç ão so cial n ão c o m an d a d a.

M ultidão P elo que fo i d ito até ag o ra, p o d e r-se -ia ter a im p re ssã o q u e e x iste um a profunda sep aração en tre aq u ilo q u e definimos por excesso n e g a tivo e excesso p o sitiv o . Isto é, p o d e r-s e -ia p e n sa r q u e os dois term o s - re fe rid o s, re sp e c ­ tivam en te, a p ro c e sso s q u a n tita tiv o s e q u alitativ o s d e tra n sfo rm a ç ã o d o tra ­ balh o - d esc rev e m asp e cto s até m esm o co n tra d itó rio s d a tra n siç ã o e m curso: de u m lado, a fo rç a d e trab a lh o e x p u lsa d o p ro c esso p ro d u tiv o , do outro, a força de tra b a lh o h ip e r-in te g ra d a ; de um lado, m assas c re sc e n te s d e sujeitos qu e ex ced em as e x ig ê n c ia s d o sistem a, do outro u m a a risto c ra c ia do trab alh o im aterial q u e se co lo c a e x a ta m e n te no seu centro. In d o -se m ais lo n g e n essa reflexão, p o d e r-se -ia ju lg a r q u e ex a ta m en te a progressiva c e n tra lid a d e do trabalho imaterial, c o g n itiv o e de alfa tecn o lo g ia co n trib u i p a ra d e te rm in a r a exclusão e a m a rg in a liz a ç ã o daqueles estratos da força d e tra b a lh o que se apresen tam c o m o e x c e sso com relação ao sistem a pós-fordista. S e assim fo sse , d e v e r-s e - ia ta lv e z c o n c lu ir q u e a tra n s iç ã o ao p ósford ism o re p re se n ta u m a v itó ria, p ro v a v elm en te d efin itiv a , d o ca p ita l sobre a fo rça de trab alh o . O d o m ín io c a p ita lista a b a n d o n aria o te rre n o do co n flito contra o tra b a lh o p a ra d e ix a r q u e ele se d ese n v o lv a en tre os su jeito s do tra b a lh o . O m e s m o r a c io c ín io p o d e r ia s e r e s te n d id o , e m s e g u id a , à co m p o siçã o g lo b a l d a fo rç a d e trab a lh o : à c re s c e n te in fo rm a tiz a ç ã o d a produção em alg u n s p aíses c a p ita lista s d o m in an tes co n tra p õ e -se , d e fato, a deterio ração das c o n d iç õ e s d e v id a e trab a lh o n aq u e la s re g iõ e s do Im p ério on d e a a u to m aç ão n ão o co rreu . E ste p o n to d e v ista n ão é n o v o e re p resen ta o n ú c le o cen tral d a a rg u ­ m entação d e to d o s aq u e le s q u e re c u sa m a ca te g o ria d e “p ó s -fo rd ism o ” oU contestam q u e e s ta re ú n a co n d içõ e s su ficien tes p ara d e sc re v e r o co n ju n to das tran sfo rm açõ e s q u e atin g em a fo rç a d e trab alh o c o n tem p o rân ea . E m resum o, q u an d o se fa la d e p ó s-fo rd ism o estaría m o s n o s re fe rin d o apenas a um a elite re s trita d o tra b a lh o in fo rm atiza d o , d eix an d o d e fo ra tan to parcelas crescentes d a fo rça de trab alh o dos países “d o m in an tes” q u a n to - e so b retu d o ~ sistem as p ro d u tiv o s in teiro s dos p aíses “d o m in ad o s” . A n d ré G o rz sin tetiza eficazm en te e sta p e rs p e c tiv a q u a n d o afirm a q u e “ é in se n sa to a p re se n ta r com o fo n te essen cial d a autonomia, d a identidade e d o d e se n v o lv im e n to de

todos um trabalho cuja função é a de fazer com que haja cada vez mais menos trabalho e salário para todos”81. O nosso problema não é, certamente, contestar a validade destas posições. Alguns elementos são, de fato, completamente irrefutáveis. E indiscutível, por exemplo, que a revolução tecnológica em curso abole quotas crescentes de trabalho e que isso significa, para quem não tem experiência, não a “liber­ tação do trabalho”, mas sim o desemprego e a m arg in a liza ção . E igualm ente indiscutível que as condições existenciais da grande parte da força de trabalho contemporânea sejam caracterizadas p ela insegurança e pela precariedade, da mesma forma que existem amplos setores d a produção nos q u ais a infor­ matização nao se faz presente. E também verdade que o devir im aterial de alguns circuitos produtivos tenha, no máximo, possibilitado que outros con­ textos d a p ro d u ç ão p erm a n eça m m ais m ateriais do q u e n unca, o u que, fin a l­ m ente, o trab alh o im aterial seja a form a de trabalho que atu alm en te “co m an d a” as o utras.

De resto, é efetivamente indiscutível que, embora possam ser consideradas inadequadas frente às tendências em curso, distinções tradicionais - tais como em prego/desem prego, produção/reprodução, tempo de trabalho/tem po de nãotrabalho - m antêm a sua vigência do ponto de vista dos efeitos q u e concretam ente produzem sobre os indivíduos. E m o u tra s p alav ras, n ão se p o d e n eg ar que e x ista u m p lan o fa c tu a l no q u al a c o n d içã o de d ese m p reg ad o , de em p reg ad a d o m éstica im ig ra n te ou de tra b a lh a d o r tem p o rário c o m p o rte co n seq ü ên cias reais, tan g ív eis e co n c retas sobre as ex p eriên cias b io g ráfic as subjetivas. P o rém , é p o ssív el afirm a r que tudo isso se-atém a u m a p ercep ç ão “ fenom e n o ló g ic a ” d o trabalho, a u m ponto de vista q u e não nos p erm ite co lh er o ex c esso ex p resso p e la fo rça d e trab a lh o co n tem p o rân ea n em id en tificar o seu p o ten cia l “su b v e rsiv o ” . O plan o fe n o m en o ló g ico in d u z à re ificação de c o n c eito s im p o sto s p ela ra c io n a lid a d e ca p italista, tais co m o d esem p reg o , e x cesso , salário , e a co n sid erá-lo s co m o ca racterísticas c o n stitu tiv a s da força de trabalho o n d e elas efetiv am en te não estão. N ão é no nível d a fenom enologia do trab a lh o q u e p o d em o s c o m p re e n d e r o sig n ificad o do ex c esso p ó s-fo rd ista, m as sim no n ív el d a su a “ o n to lo g ia” : são os p ressu p o sto s da p ro d u tiv id ad e do tra b a lh o q u e h o je e x c e d e m a re la ç ã o c a p ita lista e não as d e te rm in a ç õ e s co n cretas d esta p ro d u tiv id a d e 82. N o nível constitutivo, o n to ló g ic o , a força 81 Gorz, M iserie dei presente. Ricchezza dei posslbile, cit., p. 66. Uma ampla resenha das análises que adotam esta perspectiva pode ser encontrada em Vis â Vis, Altreragioni e Capital & Class. 82 A.Negri, Fabbriche dei soggetto. Livomo, Sec. XXI, 1987 (sobretudo pp.131-138). 78

de trabalho contemporânea se configura como totalidade produtiva indistinta, como conjunto de potencialidades cooperativas que escapam a qualquer regulamentação: nesse sentido, ela é um a multidão. Na teoria política clássica, o conceito de “multidão” se define em contra-, posição ao de “povo”. No De eive, Hobbes considera a incapacidade de dis­ tinguir entre povo e multidão como a estrada que leva à sedição e, conseqüen­ temente, à queda dos governos. “Povo” é a entidade que exprime uma vontade geral única por intermédio do querer de um único indivíduo que representa a iodos. “Multidão”, ao contrário, é o conjunto indiferenciado dos sujeitos aos quais uma única vontade e uma única ação podem ser referidas. Á sedição nasce não quando o povo se rebela contra o soberano,*mas sim quando os cidadãos se revoltam contra a cidade, isto é, quando a multidão se opõe ao povo83. Referido, portanto, à realidade produtiva contemporânea, o conceito de multidão permite identificar uma força de trabalho abrangente, cujas determi­ nações escapam a qualquer capacidade de individualização da parte do comando capitalista. Multidão indica o fato de que a força de trabalho pós-fordista expressa, constitutivamente, a própria produtividade na indistinção entre produção e reprodução, emprego e desemprego, trabalho e linguagem. Mas indica também, e ao mesmo tempo, que nenhum sujeito hegemônico, nenhum a “vontade individual” ou ação individual tem condições de exprimir e representar comple­ tamente a complexidade desta força de trabalho. Nesse sentido, o conceito de multidão demonstra e supera a inadequação do conceito de classe, não tanto porque a classe operária tradicional perde hoje a própria centralidade produtiva, mas porque não é mais possível definir um lugar determinado de constituição da subjetividade do trabalho, de tornar extrínseca a sua produtividade e de expressão da sua conflitualidade, como era possível para a classe operária fordista84. O excesso negativo e o excesso positivo são entidades indistinguíveis sob o perfil da sua potencialidade produtiva. Inclusão e exclusão, emprego e 83 Th. Hobbes, De Cive, XII, 8. O conceito de “multidão” também está presente em N. M achiavelli, Discorsi sopra la prima de ca de Ti to Livio, I, 58, e em B. Spinoza, Traetatus Politicus, III, 2, 6, 9. 84 “M ultidão é a forma hodterna do trabalho vivo, não uma Babel de identidades dispersas, mas tampouco uma nova classe operária sob invólucros pós-modemos. E um conjunto de subjetividades cujo impacto produtivo é diretamente proporcional à sua capacidade relacionai, lingüística e comunicativa. A linguagem, enquanto algo comum, é colocada a serviço dos muitos, do ser social inteiro, formação indefinida na cooperação lingüística” (A. Zanini, “Multidão” , in Zanini e Fadini [org.], Lessico postfordista, cit., p. 214). 79

n ã o e m p r e g o , são categorias que, repetimos, produzem efeitos absolutamente reais, mas são impostas à multidão pela e x terio rid ad e do comando capitalista e pelas estratégias de controle que contribuem para a sua reprodução. O ap a g am en to das delimitações do agir individual e coletivo - que, durante o período fordista, circunscreviam os lugares d isc ip lin a re s de controle da força de tra b a lh o - p ro d u z um espaço “ liso ” pós-fordista, no q ual os dispo­ sitivos de poder não parecem mais se dirigir tanto para os indivíduos singulares, m as sim à p re d is p o s iç ã o de “a p a re lh o s d e c a p tu ra ” ca p aze s d e c o n tro la r flu x o s d e p ro d u tiv id a d e social q u e atrav essam a m u ltid ão . N as p a la v ra s de Deleuze e G u attari, O m ais-tra b alh o e a organização ca p italista n o.seu co n ju n to passam cad a v ez m enos pelo cstriam en to esp aço -tem p o co rresp o n d en te ao c o n c e ito físic o -so c ia l de trab a lh o . A n te s, é c o m o se a a lie n a ç ã o h u m a n a fosse su b stitu íd a n o p ró p rio m ais-trab alh o p o r um a “ sujeição m a q u in a i” generalizada, d e tal fo rm a que se pode e x tra ir um a m aisv alia in d ep en d en te de um trab alh o q u alq u er (o m enino, o ap o sen tad o , o d ese m p re g a d o , o em p re gad o de tele-escu ta etc.)' . P a re c e -m e q u e a categoria de m u ltid ão exprime todo o seu valor toda vez q u e ela é e m p re g a d a para definir u m a força de trabalho social que se p r é - co n stitu i c o m re sp e ito a q u alq u er ló g ica do d o m ín io em p re sarial. M u ltid ã o é a q u ilo q u e a n tec ed e ao co m an d o e q u e, p o ten cia lm en te , e sc a p a a ele; são m u ito s a q u e le s q u e, q u a se sem p re de fo rm a la ten te, m as às v ezes tam b ém e x p lic ita m e n te , “ tran sg rid e m ” os re g u la m en to s d as in stitu içõ e s d o p o d e r e su a filo so fia d e red u ção d a com plexidade. L á o n d e o “p o v o ” re p resen ta aquilo q u e re sta d a m u ltid ão , u m a vez q u e as in stitu içõ e s d e g o v e rn o da so cied ad e ten h am d e se n v o lv id o efic azm e n te os p ró p rio s d isp o sitiv o s d e d o m ín io sobre o real, a “ m u ltid ã o ” ex p rim e e x a ta m en te a c re sc e n te irre d u tib ilid a d e d o je al 85 G. D eleuze & F. G uattari, A pparati di cattura. Millepicini. C apitalism o e schizofrenia. Seção IV, trad. it.. Roma, Castelvecchi, 1997, p. 118 [N. do T.: edição brasileira M il platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 1. Rio de Janeiro, Editora 34. 1995, tradução de Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa], 86 Negri evidenciava, num trabalho fundamental, datado de 1977, o nexo existente entre a força de trabalho, a ser entendida, neste contexto, como classe operária, e as formas da soberania política do Estado que se constitucionalizam a partir do conceito de povo: “A força de trabalho que comparece como totalidade social se configura com o povo no interior do mecanismo de reprodução do capital: o povo é a força de trabalho constitucionalizada no Estado da sociedade-fãbrica” (A. Negri. L a fo rm a Stato. Per la crittica deli 'economia política delia costituzione. Milão, Feltrinelli, 1977, p. 53).

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às categ o rias d o d o m ín io p o lítico e ec o n ô m ic o 86. N ão se p en se q u e este d e slo c a m e n to da teoria p o lític a à te o ria e c o n ô m ic a seja im próprio. In sc re v e n d o os co n ceito s de p o v o e m u ltid ão no c o n te x to da transição d o fo rd ism o ao p ó s-fo rd ism o , p re te n d o ev id en ç iar, d e um lado, o declínio p aralelo dos co n ceito s d e p o v o e classe o p erária - e n tid ad e unitárias, suscetíveis de reductio a d unam , p assíveis de rep resen tação singular, situáveis cm territórios d e te rm in a d o s (E stad o -n açã o e fábrica) e su jeiíáv eis ao reg im e discip lin ar e, de ou tro, a e m erg ên cia dos co n ceito s d e m u ltid ão e p ro d u ç ão s o c ia l - e n t i d a d e s m ú l t i p l a s , i r r e d u t í v e i s , n ã o r e p r e s e n t á v e i s e d esterrito rializad as, às qu ais se to rn a n ecessário im p o r urn n o v o re g im e de controle: O c o m a n d o im p e ria l n ã o se e x e rc ita s e g u n d o as m o d a lid a d e s d is c ip lin a r e s d o E s ta d o m o d e rn o , m a s sim d e a c o rd o c o m as m o d alid ad es do co n tro le biopolítico. E stas m o d alid ad es têm com o base e o bjeto um a m ultidão pro d u tiv a que não pode ser d iscip lin a d a e n o r m a l i z a d a , m as q u e , c o n tu d o , d e v e s e r g o v e r n a d a na su a autonom ia. A idéia dc P ovo, enquanto sujeito organizado pelo sistema de co m an d o , não funciona m ais; em conscqiicncia, a identidade do povo é substituída pela m obilidade, pela flex ib ilid ad e e pela autod iferen ciação p erp étu a da m ultidão . A p assa g em do fo rd ism o ao p ó s-fo rd ism o se e n tre cru z a, assim , com o pro g ressiv o e sg o ta m e n to d e u m a so b eran ia estatal d e fin id a corno c o m p lex o d e e s tra té g ia s d e n o rm a liz a ç ã o d is c ip lin a r d a c la s s e o p e r á ria e co m a e m e rg ê n c ia d e u m d o m ín io im p e ria l c o n s tru íd o c o m b a s e no c o n tro le b io p o lítico d a m u ltid ão . T odavia, esse co n tro le “b io p o lític o ” c o lo ca -se nu m plano to talm e n te ex tern o às d eterm in a çõ es sin g u lares d a fo rça d e trab a lh o social, in scre v en d o -se num d o m ín io cap ita lista re d u zid o a p u ro co m an d o . É aqui q u e se d eterm in a a sep aração rad ical entre b io p o lítica e d isc ip lin a rid a d e com a q u al eu ac en av a nas p rim eiras páginas d este trabalho.

87 Hardt e Negri, Impero, cit., p. 319. 81

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Capítulo 3

Governo do excesso e controle da m ultidão D a disciplina d a carência ao governo do excesso Podemos, agora, começar a repensar a análise da relação entre dinâmicas da produção e formas düucontrole social a partir da em ergência daquilo que definimos como “excesso pós-fordista” e tendo como hipótese q u e as estratégias pósdisciplinares orientadas para o controle d a nova força de trabalho, da multidão, convergem na formação de um regime de “govemo do excesso” . E s ta hipótese se baseia, por um lado, na análise do esgotam ento do papel p ro d u tiv o do comando c a p ita lista que descrevemos até este mom ento e, por ou tro , no fa to de q u e u m p ro c esso an á lo g o tam b ém é o b s e rv á v e l no p lan o das estratégias de co n tro le social. E m o u tra s p alav ras, p a re c e -m e q u e o fa to de o d o m ín io ca p ita lista d isc ip lin a r te r um menor c o n tro le dos p ro c e s so s d e trabalho está determinando, paralelamente, uma c rc sc e n le e str a n h e za dos ap a ra to s e d a s estra té g ias de c o n tro le p ara co m a m u ltid ã o p ó s -fo rd ista . O b v ia m e n te , movemo-nos no plan o d a te n d ê n c ia e o o b je tiv o a q u i é tra ç a r alg u m as lin h a s de tran sfo rm açã o p ro v á v e is, e não d e sc re v e r u m p a ra d ig m a in te ira m e n te d esen v o lv id o . A in d a n o te rre n o do c o n tro le so c ia l, d o m e sm o m o d o que o c o rre no co n te x to da p ro d u ç ã o , m u itas v ez es e n c o n tra m o s, à fre n te de p ro c esso s de m u d a n ç a q u e p re fig u ra m h o riz o n te s c o m p le ta m e n te in éd ito s, a p e rsistê n c ia de m o d elo s, estra té g ia s, p rá tic a s e in s titu iç õ e s q u e p arece m ate sta r u m a su b sta n c ia l c o n tin u id a d e e n tre p a ss a d o e p re se n te . N o fu n d o , p o lítica , trib u n ais e cá rc e re a in d a c o n stitu em , p ra tic a m e n te e m to d a a p arte, as in stitu içõ e s fu n d a m e n ta is d o co n tro le so c ia l. M as isso não d ev e prejudicar o sentido de u m a análise atenta aos fenôm enos q u e se ag itam sob a superfície do presente p ara colher a tendência das tran sfo rm açõ es e m curso. D e v e m o s, p o rém , d eter-n o s u m a v ez m ais so b re a q u e le c o m p le x o d e estratégias e racionalidades que tem definido, até agora, a relação en tre controle so cial e sistem a de p ro d u ç ão cap ita lista. Isso é n ec e ssá rio p o rq u e , c o m o já foi visto, n o pro cesso d e d ese n v o lv im en to do c a p ita lism o in d u stria l, d e sd e a ac u m u la ção p rim itiv a até o fo rd ism o , os d isp o sitiv o s d e c o n tro le e x e rc e ra m u m a função fundam ental de racionalização disciplinar d a p rodução e d e sujeição d a fo rç a d e trab alh o à v alo riz açã o cap ita lista. E é e x a ta m e n te o a p a re n te esg o tam e n to d esta fu n ção p ro d u tiv a do co n tro le q u e co n stitu i o o b jeto do n o sso d isc u rso . 83

Gostaria, portanto, de voltar a Foucault e em particular às suas hipóteses sobre a governamentalidade, a disciplinaridade e o biopoder. Trata-se, de fato, de conceitos que representam as coordenadas essenciais daquela cartografia da modernidade e dos seus aparelhos de poder que se revelaram instrum ento indispensável para com preender as diversas articulações da relação entre controle disciplinar e produção fordista. Essa cartografia, de resto, foi também atingida, e de modo significativo, pela economia política da pena que descrevemos nas primeiras páginas deste trabalho. O pensamento volta-se quase que instintivamente para Vigiar e punir. E aqui, na realidade, que Foucault se ocupa especificamente da penalidade e das suas transformações, revelando uma atenção constante aos processos de transformação da economia capitalista e aos seus efeitos sobre o universo d a punição. A pesquisa sobre o “nascim ento da prisão” rep resen ta a sistem atização definitiva de análises e reflexões que F oucault estava em preendendo já havia tem po (devem os pensar sobretudo nos cursos ministrados no Collège de France entre 1970 e 1974), e muitas vezes são os m ateriais não sistem áticos que revelam as intuições foucaultianas mais interessantes a respeito das relações entre sistema de produção e formas de controle88. No centro do projeto foucaultiano encontra-se a tentativa de reconstrução de uma genealogia das tecnologias de poder que nos permite decodificar a econom ia e as racionalidades internas aos sistemas de controle. O objetivo principal é, pois, analisar os processos históricos de transform ação dos d isp o sitiv o s de repressão, perguntando sobretudo de que m odo eles, abandonando progressivamente uma lógica baseada na negação e na destruição dos desvios, foram capazes de desenvolver uma função produtiva que os torna partícipes do processo histórico de afirmação do capitalismo. Os processos de formação das tecnologias discipíinares descritos em Vigiar e punir constituem o contexto em que se dá a passagem do “suplício” à “prisão” , isto é, de um poder que destrói a um poder que transforma. Por 88 N um a conferência de 1971, Foucault descrevia as linhas m ais gerais da sua investigação: “Pareceu-me interessante procurar compreender a nossa sociedade e a nossa civilização através dos seus sistemas de exclusão, de rejeição, de recu­ sa, através daquilo que elas não querem , os seus limites, a obrigação de ter de suprim ir um certo núm ero de coisas, de pessoas, de processos, aquilo que elas d evem d eix ar cair no esquecim ento, o seu sistem a de rep ressão -su p ressão ” (Conversazione con Michel Foucault, II, Pote/i, saperi, strategie, coord. A. dal Lago. Milão, Feítrinelli, 1997, p.38). 84

sua vez, a emergência do universo disciplinar só pode ser compreendida no interior de um processo muito mais amplo: o da afirmação da “governameníalidade”89, Como se acenava nas páginas introdutórias, trata-se da transição de uma lógica do poder centrada no modelo da soberania para uma prática do poder que se nutre da nova “ciência de governo” , A ciência de governo redefine a articulação do nexo saber-poder no interior do qual tomam forma as técnicas disciplinares e a prisão em particular. Contra u m poder soberano que emprega os recursos e finaliza as estratégias de controle à conservação das próprias prerrogativas absolutas, entra em cena, na idade clássica, uma concepção do poder “governamental” que se dirige à população e aos fluxos produtivos que a perpassam. Foucault define a “governamentalidade” como o c o n ju n to c o n s titu íd o p e la s in s titu iç õ e s, p ro c e d im e n to s, a n á lise s e re fle x õ e s , c á lc u lo s e tá tic a s q u e p e rm ite m exercitar u m a fo rm a m u ito específica e tam b ém m uito co m p lex a de p o d er que tem com o alvo a população, com o fo rm a p rin cip a l d e sab e r a e c o n o m ia política, e co m o in stru m en to s técnicos essenciais os d isp o sitiv o s d e segurança90. A “g o v ern am en talid ad e” re p re se n ta portanto a p en etração d a ec o n o m ia po lítica na “razão de E s ta d o ” , isto é, n a q u e le co njunto de sab eres relativ o s à gestão c o rreta de u m territó rio e d as suas po p u laçõ es. O fa to d e a eco n o m ia p o lítica se im p rim ir n a ra c io n a lid a d e d e governo, p erm e an d o as suas estra té­ gias, p rá tic as e in stitu içõ es, sig n ific a q u e, a partir d esse m o m en to , g o v ern ar um E stado e e x e rcitar p ro d u tiv a m e n te os poderes q u e d eriv a m d o n o v o c o n ­ ceito d e so b eran ia sig n ificará m a x im iz a r as po ten cialid ad es p ro d u tiv as e in ­ centiv ar o b em -e sta r d a p o p u laçã o , ativ an d o nesse m eio tem p o m ecan ism o s d e v erificação d o s re su ltad o s, tais co m o a e statístic a social, os recenseam entos, a co n tab ilid ad e nacio n al. A aq u isição h istó rica d a c o n sc iê n c ia d e poder influir, m ed ian te estratégias d e governo ra cio n al d o s processos,-"Sobre as populações e sobre os fe n ô m e­ nos ec o n ô m ic o s q u e os conformam, determina a co n stitu iç ão d e n o v o s “re ­ gim es de p rá tic as” , isto é, d e n o vos ag lo m erad o s d e sab e r e d e p o d er q u e definem os o b jeto s d o g o v ern o : a p ro d u ção , a saúde, a sex u alid ad e, a h ig ie­ ne. U m p o d er fu n d ad o n o p rin cíp io de au to -co n serv ação , q u e se trad u z n a possib ilid ad e sem lim ites d e reprimir tu d o aquilo q u e co n stitu i u m a am eaça, cede lu g ar a u m a tro ca de sab eres e n tre o sistem a po lítico e as n ascen tes 89 Sobre a “governamentalidade”, ver sobretudo o amplo trabalho de M. Dean, Governmentality. Power and Ride in Modem Society. Londres, Sage, 1999. 90 Foucault. “La governamentalità”, in Foucault, Poteri e strategie, cit., p. 65.

ciências sociais e biológicas, a uma idéia de poder como motor dos proces­ sos, como sujeito ativo de transformação da realidade91, O poder se torna então, progressivamente, regulação das populações atra­ vés das quais o governo da sociedade é exercitado, um governo produtivo, que se insinua na complexa interação entre fenômenos sociais, processos produtivos e fluxos vitais que não devem ser impedidos, o b stacu liza d o s e constrangidos, mas sim dirigidos, canalizados e organizados eficazmente. Ainda segundo Foucault: A elaboração do problema população-riqueza (nos seus diversos aspec­ tos concretos: fiscalid ad e, carestia, despovoamento, ócio -v ag ab u n dagem) constitui uma das condições para a formação da economia política. Esta última se desenvolve quando nos damos conta que a gestão da relação entre recursos e população não pode m ais depender exclusivamente de um sistema de tipo regulamentar e coercitivo . A passagem da soberania como poder que proíbe a governamental idade para um poder que regula, ordena e dispõe assinala, pois, a apropriação definitiva da racionalidade econômica capitalista por parte da ciência de governo. Assim, a transcendência de um soberano que se colocava acima e fora daquilo que com andava é substituída pela im a n ê n c ia de um governo que se coloca no in te rio r d o s p ro c esso s que regula. A s referê n cias deste p o d e r n ão serão m ais, separadamente, o território enquanto delimitação espacial do monopólio da v io lên cia, a so b eran ia en q u an to leg itim a ção tran sc en d en tal d esse monopólio e o p o v o en q u a n to d estin atário da p ró p ria violência, O p o n to d e ap o io do p o d e r “ g o v e rn a m e n ta l” será, ao co n trá rio , co n stitu íd o p ela tríade territó rio p o p u la ç ã o -riq u e z a , u m o rg a n ism o co m p lex o , u m corpo social q u e p ro d u z e co n so m e recu rso s lim itados. P a ra le la m e n te à fo rm ação d esta n o v a racionalidade, consolidam-se d is ­ p o sitiv o s e p ráticas d e seg u ran ça c u ja fu n ção é g aran tir o correto fu n c io n a ­ 91 M elossi evidencia, de forma muito apropriada, a afirmação desta concepção transform adora do poder no seu estudo sobre o processo histórico de consolida­ ção do conceito de “controle social” nos Estados Unidos (conceito alternativo ao de “Estado” que domina as ciências sociais européias). O controle social condensa a capacidade do poder de inform ar-se a respeito da sociedade, penetrando em suas relações produtivas, em seus fenômenos culturais e em suas dinâm icas de construção do consenso. Cf. D. Melossi, The State o f Social Control. Cambridge, Polity Press, 1990. 92 M. Foucault, l corsi al Collège de France. I Resumées, trad. it. Milão, Feltrinelli, 1999, p. 78. 86

m ento do ap a rato “ g o v ern am en tal” e p re s e rv a r o p rin c ip io d e m a x im iz açã o e c o n ô m ic a so b re o qual e le é re g id o . F alan d o dos dispositivos d e segurança, F oucault se refere a um co njunto de práticas d e controle e supervisão d a p o ­ pulação, m as tam b ém à ed u cação , aos seg u ro s q u e en tão d esp o n tav a m , às políticas d e saúde pública, em sum a, a tu d o isso que perm ite a reprodução e a conservação de determ inados arranjos de gestão p rodutiva das populações93. A s estratégias de controle social, e em particular as penalidades e a política crim inal, integram igualm ente estes aparatos de segurança. A qui a análise d a governam entalidade se interliga à m icroffsica d o p o d e r disciplinar: as técn ic as d iscip lin a res, co m o F o u cau lt não se c a n sa d e rep etir, n ão co n stitu e m u m p rim a com relação à “g o vernam entalidade” , um a fase anterior a esta e colocada a m eio ca m in h o en tre o esg o tam e n to d o m odelo d a so b eran ia e a o rig e m da no v a ciên c ia d e governo. A o c o n trá rio , o c o n tro le d isc ip lin a r é im a n e n te à g o v ern am en talid ad e e à b io p o lítica . N e le se co n d e n sa, na re alid ad e, u m c o n ­ ju n to de tecn o lo g ias e p rá tic as d e su je iç ã o dos co rp o s a p a rtir d as qu ais p o d e g an h ar fo rm a u m a ciência d o g o v e rn o ec o n ô m ic o d as p o p u laçõ es, A penalidade, concretização pecu liar das tecnologias disciplinares, assum e nesse co n tex to um a função co m pletam ente diversa d a que exercia durante a era da soberania. T am bém ela participa d a difusão de um a concepção eco n ô m ica e produtiva-éo poder. Assim , p o d e fin alm en te consum ar-se a superação do su p lí­ cio em toda a sua teatralidade destrutiva, e o alvorecer d e u m a penalidade silen­ ciosa, discreta, que age com sistem ática regularidade na p en u m b ra das institui­ ções totais. A p en alid ad e to rn a-se, p o rtan to , um p ro c esso m e d ia n te o q ual p ro d u z e m -se indivíduos cu ja u tilid a d e - tan to c o m o sin g u larid ad e s q u an to co m o p artes d e u m a po p u lação p ro d u tiv a - se re a liz a n o tra b a lh o 94. N o e n ta n to , o corpo p erm a n e c e n o centro. A s d iv ersas té cn ic as do p o d e r se ex e rce m so b re o corpo, n ele im p rim in d o as suas m arcas. S o b re o co rp o

93 Esta foi a definição que Foucault deu aos aparatos de segurança durante uma aula ministrada no Collège de France no dia 5 de abril de 1978: “Pôr em prática de mecanis­ mos de segurança [...] mecanismos ou modos de intervenção do Estado cuja função é garantir a segurança dos fenôm enos naturais, dos processos econôm icos e dos processos intrínsecos à população, torna-se o objetivo principal da racio­ nalidade governamental” (citado em G. Burchell, “Governmental Rationality. An Introduction”, in Burchell, Gordon e M iller (eds.), The Foucault Effect, cit., p .19).