A independência narrada : introdução à história da historiografia no Brasil [1 ed.]
 9786500459920

Table of contents :
Capítulo I
Modernidade e crise da representação.....................................23
a) Compilação, “história universal”
e experiência da história ......................................................23
b) O Tacitismo como linguagem
político-historiográfica (1808-1819):
alguns temas. ........................................................................51
Capítulo II
Variedade e experiências da história no Brasil joanino...............61
a) O fim do “antigo sistema”
nas narrativas ilustradas ...............................................................61
b) Variedades da escrita
da história no Brasil joanino ........................................................74

Capítulo III
Independência, revolução e escrita da História.........................131
a) A experiência ambivalente das revoluções .............................131
b) Mutações da experiência: observação, metáforas
e novas sínteses históricas............................................................180

Capítulo IV
A história domesticada..................................................................209
a) José da Silva Lisboa:
historiador do Império do Brasil .............................................209
b) As narrativas da emancipação na
História dos Principais Sucessos....................................................227
c) O questionamento público
da relação historiador e Estado.................................................239
Conclusão
Os limites da Independência como modernização......................245
Posfácio: A Independência: uma escrita permanente ...................251
Artigos compilados neste volume.................................................255
Fontes ............................................................................................256

Citation preview

A INDEPENDÊNCIA

NARRADA

VA L D E I A R AU J O

A INDEPENDÊNCIA

NARRADA I N T R O D U Ç Ã O D A

À

H I S T Ó R I A

H I S T O R I O G R A F I A N O

B R A S I L

© Editora Proprietas editoraproprietas.pt Título: A Independência Narrada Autor:Valdei Araujo Projeto Gráfico: D29 Studio

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Araujo, Valdei A independência narrada : introdução à história da historiografia no Brasil / Valdei Araujo. -- Niterói, RJ : Editora Proprietas 2022 . Bibliografia. ISBN 978-65-00-45992-0 1. Brasil - História - Independência 2. Brasil Historiografia I. Título. 22-115052

CDD-981.0072 Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Historiografia

981.0072

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

AGRADEC IM EN TO S

Um livro se faz com muitos amigos e colegas. Ao longo desses anos foram eles que impulsionaram a escrita e a pesquisa, seja em conversas privadas, ou em bancas e congressos. Sendo professor, um livro também se faz com muitos estudantes, de diferentes gerações, que inspiraram, motivaram e mesmo pensaram juntos muitas das questões abordadas. Um livro de professor é imaginado primeiro nas aulas, semestre após semestre, nesse reencontro belo e difícil com cada turma nova. Um livro como esse não se faz sem financiamento, sem o apoio de agências, especificamente, neste caso, o CNPq, a Capes e a Fapemig. Mesmo sendo impossível nominar todos os que deveriam ser agradecidos, gostaria de lembrar de alguns poucos. Na UFOP, alguns colegas e parceiros do NEHM, Luisa Rauter, Marcelo Rangel, Fábio Faversani, Marcelo Abreu, Helena Mollo foram os ouvidos mais frequentes. De fora da UFOP, são tantos, mas vamos lá: Temístocles Cezar, querido amigo e interlocutor decisivo. Márcia Menendes Motta, exemplo de coragem e inteligência. João Cezar de Castro Rocha, que há tantos anos, mesmo à distância, sempre me estimula e incentiva. Júlio Bentivoglio, João Paulo Pimenta, Christian Lynch, Wilma Peres Costa, Andréa Slemian, as sempre mestras Lúcia Maria Paschoal Guimarães e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, parceiros em tantas jornadas oitocentistas. Maria da Glória, Rodrigo Turin, Fernando Nicolazzi, cujos trabalhos me instigam sempre a pensar. Na UERJ, dentre os da nova geração, Géssica Guimarães, Daniel Pinha e Francisco Sousa. No Fórum de Teoria dos colegas no nordeste, em particular Wagner Geminiano, Bruno Balbino, Rodrigo Peres, Elton John, Diego Fernandes, Eduardo Vasconcelos

- além da parceria, me mostraram o tanto que ficou de fora ainda em um livro como este. A Cristina Meneguello, pelos passeios em livros, museus e muito trabalho conjunto. Dentre os estudantes e ex-estudantes, alguns co-autores de seções importantes desse livro, gostaria de mencionar André da Silva Ramos e Flávia Varella. E ainda Bruno Franco Medeiros, Thamara Rodrigues, Bruno Diniz Silva, Giorgio Lacerda, Rafael Fani Dias Resende, Bruno Gianez, Walderez Ramalho, Ana Paula Dayrel, Jussara Rodrigues da Silva, Aguinaldo Boldrini, Camila Aparecida Braga Oliveira, Ezequiel Barel Filho, Vinícius de Souza, Raína de Castro Ferreira, Luna Halabi Belchior, João Luís Cardoso de Oliveira, Lamon Fernandes de Siqueira, José Carlos Silvério, Bruno Omar de Souza, Weder Ferreira da Silva, Bruno Franco Medeiros. Menção especial a Augusto Ramirez, que revisou e ajudou a dar forma ao livro. Agradeço a Mateus Henrique de Faria Pereira, parceiro de aventuras intelectuais e outras, grande incentivador deste livro. Este livro é dedicado à memória do grande historiador István Jancsó. Foi sob sua supervisão, e na companhia de grandes colegas, em um estágio pós-doutoral no IEB-USP, que seus primeiros rascunhos ganharam contornos. Para Mariana, incipt vita nuova.

Padre Viegas (M), maio de 2022

PRE FÁC IO NARRAR A INDEPENDÊNCIA: UM PROJETO HISTORIOGRÁFICO INACABADO Sine ira et studio. Tácito, Anais, 1,1,3

I Na senda taciteana, José Bonifácio, em um discurso na Academia Real das Ciências de Lisboa, em 24 de junho de 1815, manifestou-se assim: “O homem de Letras, (...) há de mapear seus vícios e virtudes, e entregar o quadro ao tribunal da Razão, para que o possa essa julgar sem ódio e sem lisonja”.1 Não obstante, o célebre apotegma de Tácito, quando relacionado à escrita da história, sempre foi mais fácil de ser enunciado do que de fato concretizado. Afinal, narrar sem ira e sem paixão ou sem parcialidade, outra tradução possível, são condições protocolares do gesto autoral, seja ele um historiador antigo ou moderno.2 As dificuldades oriundas dessa quase aporia epistemológica para o conhecimento histórico podem ser ilustradas pelas narrativas do processo que 1 

Silva, José Bonifácio de Andrada e. Discurso. https://archive.org/details/discurso-

contendo00boni/page/n3/mode/2up 2 

Jacyntho Lins Brandão traduz a sine ira et studio do seguinte modo: “sem ódio”, ou

“sem cólera e sem parcialidade”. Hartog, François (org). A história de Homero a Santo Agostinho. Prefácios de historiadores textos sobre a história. Tradução para o português de J. L. Brandão. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p. 221.

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Prefácio

levou o Brasil à sua independência de Portugal. Não parece ser por outra razão que Januário da Cunha Barbosa, editor, ao lado de Joaquim Gonçalves Ledo, do Revérbero Constitucional Fluminense, cuja circulação efêmera, entre 1821 e 1822, não o impediu de se tornar um veículo importante no debate político em torno da independência do Brasil, anotou em seu discurso publicado no primeiro volume da revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1839, que: O coração do verdadeiro patriota Brasileiro aperta-se dentro no peito, quando vê relatados desfiguradamente até mesmo os modernos fatos da nossa gloriosa independência. Ainda estão eles ao alcance de nossas vistas, porque apenas 16 anos se tem passado dessa época memorável da nossa moderna história, e já muitos se vão obliterando na memória daqueles, a quem mais interessam, só porque têm sido escritos sem a imparcialidade e necessário critério, que devem sempre formar o caráter de um verídico historiador.3

Essa cardíaca lamentação indicava que a Independência como evento, em uma temporalidade marcada pela aceleração do tempo, em menos de duas décadas, esvanecia-se como experiência, mesmo para aqueles que dela participaram. Nem a história, nem a memória, pareciam capazes de conter a inaptidão ou a negligência de alguns autores que não compreenderam ou deliberadamente ignoravam a prescrição taciteana. As consequências são 200 anos de guerras (de armas e de panfletos), de consensos e de dissensos políticos, de polêmicas e embates culturais, de esquecimentos e lembranças coletivas e individuais, de mentiras e de verdades, de seres humanos livres e de seres humanos em situação de escravidão, de vidas e de mortes. De projetos, enfim; alguns que se esgotaram em seu próprio tempo, outros que, como boa parte dos projetos da modernidade, continuam inacabados.4 3 

Barbosa, Januário da Cunha. “Discurso”. Revista do IHGB, 1839, pp. 10-11.

4  Habermas, Jürgen. “Modernitity: an unfinished project”. ENTRÈVES, M.P.d’/BENHABIB, S. (ed.) Habermas and the unfinished project of modernity. Critical essays on the philosophical discourse of modernity. Cambridge: The MIT press, 1997, pp. 38-55.

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II A Independência Narrada. Introdução à História da Historiografia no Brasil, de Valdei Araujo, é um notório estudo sobre as formas narrativas que produziram sentido ao processo de querelas que tornou o Brasil um país independente. O livro nos demonstra que o 7 de setembro de 1822 não foi apenas uma data disposta no calendário, objeto de veneração para alguns e de desprezo para outros, mas um modo de organização do tempo que antecedeu e se seguiu à Independência, contexto em que a cronologia encontra-se com um modo de consciência histórica: a nação, o Estado e a identidade nacional. Esses três fenômenos tornaram-se, ao longo do século XIX, valências históricas que se disseminaram não apenas no Brasil, mas por todos os cantos. Incondicionalmente aceita ou contestada por diferentes grupos sociais, por anônimos e patriarcas, a relação entre essa tríade existencial e a história nunca foi homogênea e varia de acordo com o país.5 No caso brasileiro, há ainda uma desproporção entre os estudos sobre a construção da nação, do Estado e da identidade nacional – enquanto instituições políticas, econômicas e culturais –, e os estudos sobre a constituição da própria noção de história. Nesse sentido, se há um entendimento quase predominante entre os historiadores brasileiros é a de que “a ideia contemporânea de Brasil se funda quando se consolida na historiografia uma ideia de nação”,6 ou que “nos anos que se seguiram à independência, e durante todo o século XIX, uma construção historiográfica foi adquirindo consistência”, com o objetivo de “conferir ao Estado imperial que se consolidava em meio à resistência uma

5 

Berger, Stefan; Lorenz, Chris (edited by). The contested nation. Ethnicity, class, religion

and gender in national histories. Basingstoke: Palgrave Macmillian, 2011. Berger, Stefan. “‘Fathers’ and their fate in modern european national historiographies”. Storia della Storiografia, 59-60, 2011, pp. 228-247. 6 

Mota, Carlos Guilherme. “Ideias de Brasil: formação e problemas (1817-1850)”.

Mota, Carlos Guilherme. (Org.) Viagem incompleta (1500-2000). A experiência brasileira. Formação: histórias, São Paulo, Editora Senac, 2000, p. 233.

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Prefácio

base de sustentação no constituído de tradições e de uma visão organizada do que seria o seu passado”.7 O presente livro não nega, de modo nenhum, essa perspectiva consensual. Ele aprofunda e, de certo modo, inverte o questionário e remedia a assimetria investigativa entre o conceito de história e a narrativa historiográfica, por intermédio da análise de como a ideia moderna de história surgiu no Brasil, de como ela se constituiu em conhecimento sobre si mesma e, simultaneamente, sobre o papel do Estado e da nacionalidade.

III Um dos caminhos escolhidos pelo autor para analisar esta composição historiográfica eventualmente metódica e harmoniosa, mas que também pode assumir formas heteróclitas e divergentes, foi o de flanar por uma República das letras, nacional e internacional, de ontem e de hoje (eu voltarei a esse último ponto adiante). O autor percorre atento e prudentemente avenidas e ruas, vielas e impasses dessa cartografia intelectual. Respublica literaria é uma fórmula que data de 1417, ou seja, três décadas antes da invenção da imprensa.8 A tradução da expressão para as línguas vernáculas abriga uma grande variedade de sentidos. Pode tanto assumir acepções tão vagas e gerais como os eruditos, os doutos, os letrados, o saber, as letras, quanto designar uma comunidade mundial de sábios.9 O estabelecimento de uma República das letras implicaria destarte em uma suposta ou desejada liberdade de pensamento e de crítica sob a égide da razão. 7 

Jancsó, István, Pimenta, João Paulo G. “Peças de um mosaico (ou apontamentos para

o estudo da emergência da identidade nacional brasileira)”. Mota, Carlos Guilherme. (Org.) Viagem incompleta (1500-2000). A experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Editora Senac, 2000, pp. 132-133, e nota 14. 8 

Eisenstein, Elizabeth L.. The printing press as an agent of change. Cambridge: Cam-

bridge University Press, 1980, p. 137, n. 287. Fumarolli, Marc. La République des Lettres. Paris: Gallimard, 2015, p, 17. 9  Waquet, Françoise. “Qu’est-ce que la République des Lettres? Essai de sémantique historique”. Bibliothèque de l’école des chartres. tome 147, 1989, p. 477.

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Em Crítica e crise, a partir do estudo da obra de Pierre Bayle (16471706), Reinhart Koselleck observa que a “crítica é uma arte de julgar”, cuja “atividade consiste em interrogar a autenticidade, a verdade, a correção ou a beleza de um fato”. Pela crítica aplicada distinguem-se o “autêntico e o inautêntico, o verdadeiro e o falso, o correto e o incorreto, o belo e o feio”. Logo, aquele que exerce a crítica deve estar “acima dos partidos” posto que grande tarefar não é “destruir”, mas “estabelecer” a verdade. Por conseguinte, na República das letras, à época de Bayle, mesmo afastado da prática política ou do estado absolutista, cada um seria um “soberano em relação a todos e, ao mesmo tempo, sujeito ao juízo de todos”. 10 Caberá à geração seguinte incorporar esta capacidade crítica à avaliação do poder estatal e das formas de governo. A República das letras seria assim não apenas uma resposta à ideia de uma Respublica christiana, mas uma reação a um mundo irremediavelmente dividido por guerras políticas e conflitos religiosos. Os desdobramentos ou efeitos da República das letras como evidência ou utopia, mas sempre sob os auspícios de uma noção de república como comunidade de comunicação aspirando certa universalidade de ideais, independentemente de seus resultados serem positivos ou negativos, benéficos ou nefastos, são recuperados por Valdei Araujo de modo inédito no âmbito da pesquisa em história da historiografia brasileira.

IV Dicionarizada em língua portuguesa desde o século XVIII por Bluteau e Moraes, na entrada República, República das letras aparece com o sentido mais usual, ou seja, de referência a pessoas letradas e doutas.11 Valdei Araujo, magistralmente, recupera uma noção mais ampla de República das letras para o contexto da América portuguesa. Ele reúne, de forma original, um acervo bibliográfico anterior, hodierno ou posterior aos acontecimentos de 10 

Koselleck, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês.

Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 1999, pp. 9311 

Silva, Antonio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa. T. II. Lisboa: Officina

de Simao Thaddeo Ferreira, 1789, p. 327.

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Prefácio

1822, publicados em português e em idiomas estrangeiros, formando um dossiê único para nossa história da historiografia. O historiador, inicialmente, desbrava as crises da representação moderna por meio de uma análise inovadora do método compilatório e sua relação com um frágil princípio de autoria desde a segunda metade do século XVIII à primeira década do século seguinte. Na sequência, ele analisa a linguagem política e historiográfica entre 1808 e 1819, à luz do tacitismo como fundamento de uma semântica histórica. A República das letras reunida neste livro implica em diversidade de gêneros de escritas, de protocolos de investigação e apresentações de resultados, temática à qual Valdei Araujo dedica-se no segundo capítulo, notadamente às obras que se destacaram no Brasil joanino. De Aires de Casal e Fernandes Pinheiro, passando por Monsenhor Pizarro e pela monumental trilogia de Robert Southey, chegando a Alphonse Beauchamp, José da Silva Lisboa e Luís Gonçalves dos Santos, o autor congrega a variedade das escritas da história sobre o Brasil de 1817 a 1825. A escrita historiográfica acerca da paradoxal experiência das revoluções e o processo de independência brasileira, observados desde o exterior, notadamente da França, bem como as diferentes possibilidades de acesso ao passado e ao presente na década de 1820 por meio de inovações tecnológicas, como o diorama e o panorama, que permitiam, de certa maneira, uma visão da história, compõem o conteúdo do terceiro capítulo. Finalmente, as potencialidades e os limites dessa República das letras encontram um interlocutor privilegiado em José da Silva Lisboa, o visconde de Cairu, objeto de estudo do quarto e último capítulo do livro. A História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil (1825-1830) de Cairu, obra inconclusa, é um invulgar exercício de (des)controle da ira e da paixão que envolvem a escrita da história do contemporâneo. Concluir A Independência Narrada (1788-1834). Introdução à História da Historiografia no Brasil, com uma analítica da historicidade do presente de um século que foi, muitas vezes, acusado de negligenciar sobejamente seu próprio tempo, constitui-se em uma ousada abertura epistemológica.12 12  Araujo, Valdei Lopes de. “História da historiografia como analítica da historicida-

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Por quê? Porque Valdei Araujo contribui decisivamente para o desmonte do topos que afirmava que as formas de história (as histórias gerais, as sínteses históricas, as memórias históricas, os esboços e os compêndios históricos, os resumos, os panoramas, as biografias etc.) do século XIX eram eminentemente passadistas e que o presente pouco importava à historiografia oitocentista, que fascinada pela objetividade teria renunciado à análise dos eventos da atualidade, sempre suspeitos de estarem contaminados por ódios e/ou parcialidades.

V Muito já se escreveu sobre a Independência brasileira. Segundo o levantamento de João Paulo Pimenta, apenas para os anos compreendidos entre 1808 e 1831, cerca de 16 mil obras relacionam-se direta ou indiretamente ao processo: “um volume enorme, muito diversificado e que não para de crescer”.13 Poucas, contudo, especificamente sobre a história da historiografia, área na qual o autor deste livro é um de seus mais importantes representantes. Valdei Araujo não adquiriu esta posição de destaque entre nós apenas por ser um pesquisador e docente altamente qualificado e, nos dias de hoje, presidente da Associação Nacional de História, a ANPUH-Brasil, mas também porque tal como colige, com erudição eloquente, um dossiê responsável pelas narrativas a respeito da Independência sob a curadoria de uma República das letras, ele igualmente tem o dom de expandi-la benevolentemente. Como? Pela sua atualização! Além dos clássicos do período e de obras modernas incontornáveis, o historiador amplia significativamente as redes de pesquisa no que concerne ao tema pela incorporação de jovens pesquisadoras e pesquisadores, ou que deles foi orientador ou do qual participou da banca de mestrado ou de doutorado, ou, simplesmente, leu. O posfácio de Thamara Rodrigues neste livro é um testemunho que sintetiza essa generosidade acadêmica.

de”. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 12, 2013, pp. 34-44. 13 

Pimenta, João Paulo. Independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022, p. 130.

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Prefácio

Em mais de uma oportunidade, disse eu a Valdei Araujo que os seminários de história da historiografia que ocorrem em Mariana sempre me pareceram uma espécie de reificação ou epifania de uma República das letras. Seu sorriso cúmplice nunca dissimulou o que pensa(va) ser uma metáfora exagerada... Porém, mais seriamente, denominar as novas redes de pesquisa ou campos científicos de República das letras não poderia ser uma forma interessante e simpática de reatualizar a antiga definição dos humanistas?

VI Alguns dias após ter concluído a leitura da primeiríssima versão deste livro, eu percorria a rua principal de Porto Alegre, a antiga rua da Praia, cujo nome oficial, desde 1865, é rua dos Andradas, em que pese a maior parte da população continuar se referindo a ela pela designação antiga. A lembrança do texto de Valdei Araujo e a efeméride dos 200 anos da Independência – deste longo processo de acomodações e sujeições, de sonhos e de insubordinações –, irromperam sob meus passos lentos que caminhavam contra o vento protegido por uma máscara N95. Parei no cruzamento mais popular da capital gaúcha, no qual os irmãos homenageados, José Bonifácio, Martim Francisco e Antônio Carlos encontram-se com a avenida Borges de Medeiros, tributo ao líder positivista que presidiu o Rio Grande do Sul com mão de ferro durante boa parte da República Velha, herdeiro que era de outro patriarca (esse apenas do Rio Grande do Sul), Júlio de Castilhos. Pensei em como a história podia ser irônica: eu estava na chamada esquina democrática; mais uma vez, portanto, entre projetos políticos cujas histórias parecem ainda inacabadas.

Porto Alegre, outono de 2022. Temístocles Cezar UFRGS

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Prefácio...............................................................................................7 Introdução: ao modo de síntese.......................................................17

Capítulo I Modernidade e crise da representação.....................................23 a) Compilação, “história universal” e experiência da história ......................................................23 b) O Tacitismo como linguagem político-historiográfica (1808-1819): alguns temas. ........................................................................51

Capítulo II Variedade e experiências da história no Brasil joanino...............61 a) O fim do “antigo sistema” nas narrativas ilustradas ...............................................................61 b) Variedades da escrita da história no Brasil joanino ........................................................74

Capítulo III Independência, revolução e escrita da História.........................131 a) A experiência ambivalente das revoluções .............................131 b) Mutações da experiência: observação, metáforas e novas sínteses históricas............................................................180

Capítulo IV A história domesticada..................................................................209 a) José da Silva Lisboa: historiador do Império do Brasil .............................................209 b) As narrativas da emancipação na História dos Principais Sucessos....................................................227 c) O questionamento público da relação historiador e Estado.................................................239

Conclusão Os limites da Independência como modernização......................245 Posfácio: A Independência: uma escrita permanente ...................251 Artigos compilados neste volume.................................................255 Fontes ............................................................................................256

INTRODUÇÃO AO MODO DE SÍNTESE

Ao longo deste livro tentamos demonstrar como as experiências com e através de relatos e apresentações de histórias disponíveis e/ou produzidas entre finais do século XVIII e as três primeiras décadas do século XIX ajudaram a definir a Independência do Brasil como evento e processo. De modo complementar, nos perguntamos como o evento/processo Independência transformou as formas de pensar e representar histórias. Para efeito de organização, mas também como contribuição a um debate acerca da periodização dos fenômenos estudados, sugerimos dividir o processo em três momentos. O primeiro, de 1808 a 1821, é marcado pela experiência aberta com a transferência e presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro. Nesta fase multiplicam-se narrativas sobre o sentido e o destino da América portuguesa no conjunto da monarquia e de novos projetos políticos. O segundo momento abarca o período de 1821 a 1825, tempo de efervescência das lutas e disputas por projetos de futuro para a nova nação. O terceiro, de 1826 a 1831, vê a estabilização da primeira grande narrativa da Independência enquanto uma porta de entrada para se interpretar a História do Brasil-Nação, narrativa esta que terá influência duradoura ao longo dos 200 anos seguintes. Assim, este livro investiga como narrativas e representações de histórias deram sentido a certos eventos e configuraram uma determinada forma da realidade enquanto nacional. Na qualidade de evento fundador da nacionalidade, a Independência nunca estará plenamente domesticada, diversas camadas da realidade que continuamente precisam ser reprimidas para que essa normalização se efeti-

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Introdução

ve vêm à tona colocando sempre a mesma questão: estaria a independência realizada? Essa pergunta foi e é formulada para continuar sem respostas definitivas, de modo que todas as formas do futuro, mesmo com conteúdos muito diversos, possam ser entendidas como atualizações desse mesmo projeto: emancipar o Brasil e os brasileiros e assim confirmar a permanência no tempo de uma identidade. Essa pergunta mítica procura resolver, através da narrativização histórica, o grande ponto cego do projeto nacional: por que a diferença não para de se produzir, apesar do desejo e dos esforços por uma nação homogênea e idêntica a si mesma? Caracterizamos nosso primeiro momento como a “independência prefigurada”. A partir de 1808, a expectativa da independência da América portuguesa foi disputada e produzida por diversos textos e autores em variados formatos e gêneros, apontando para a direção de uma maior presença em debates cada vez mais públicos, ampliados e polêmicos. A Corte no Rio de Janeiro mobilizará seus letrados nas interpretações da história, e um dos mais importantes foi José da Silva Lisboa (1756-1835). Seja em suas obras de economia política, em que constantemente surgem temas históricos, seja nos livros de história mais diretamente, ou na sua intensa atividade como publicista, Lisboa foi o autor mais ativo e influente do período neste campo. Para o grupo joanino-brasílico, a história do Brasil só teria sentido como forma de regenerar o projeto de uma monarquia absoluta atualizada com os novos tempos, narrativa que podemos encontrar em autores de situações e contextos tão distintos como Hipólito da Costa (1774-1823), no Correio Braziliense, ou José Bonifácio (1763-1838), em sua atividade como letrado em Portugal até 1818. Essa experiência joanina de emancipação conciliatória terá na Corografia Brasílica [1817], de Aires de Casal (1754-1821), seu maior monumento literário para a experiência da história no Brasil. A forma corográfica ou de memórias que apresentavam catálogos descritivos será replicada por outras iniciativas locais ou particulares por autores como Fernandes Pinheiro (1774-1847) [Memórias da capitania de São Pedro, 1819], Pizarro e Araujo (1753-1830) [Memórias históricas do Rio de Janeiro, 1820] e Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), [Memórias para servir à história do reino do Brasil, 1825], dentre muitos outros. Essas obras traduziram experiências e oferece-

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ram um legado de histórias locais/coloniais para a nova situação e dignidade do Brasil como sede da monarquia e como reino a partir de 1815. Mas o que acontecia na América portuguesa não interessava apenas aos estudiosos da história e letrados locais; as revoluções deste lado do Atlântico eram tema de contínua conversação e circulação de conceitos, ideias e experiências na república das letras. É nesse contexto e frente a esse auditório que precisamos entender os dois principais monumentos literários da historiografia dessa nossa primeira fase: History of Brazil [1810, 1817, 1819], de Robert Southey (1774-1843); e História do Brasil [1815], de Alphonse Beauchamp (1767-1832). Malgrado suas intenções, esses relatos permitiram às elites brasílicas imaginarem no tempo e no espaço uma unidade até então precariamente disponível. A nova experiência da realidade historicizada, lentamente construída a partir de transformações sociais, culturais e econômicas, possibilitou perguntas acerca do futuro dos continentes Portugal/Brasil, Europa/América, que precisavam ser situadas nessa experiência histórica que dividia a humanidade entre povos avançados e atrasados, em políticas de tempo que adquiriram cada vez maior centralidade no debate político. De formas distintas, Southey e Beauchamp diferenciaram o Brasil de sua antiga metrópole, aplicaram à realidade local os questionários e as respostas acerca do sentido da história, do progresso; mas também ajudaram a dar a ver eventos dispersos em uma nova e singular unidade, a História do Brasil. Suas obras não são apenas a aplicação de ideias e formas europeias em solo estrangeiro, elas documentam a existência de uma ampla e ativa rede de conversação e troca de experiências entre os habitantes e letrados dos dois continentes. A Independência, nessas obras, será esperada com temor, otimismo ou, mais frequentemente, com uma mistura de ambos. Embora não experimentada e processada enquanto evento, essas expectativas ajudaram a definir os contornos nos quais o evento poderia acontecer e fazer sentido. Na segunda parte de nossa periodização, o evento/processo Independência coincide com a sua representação e apresentação em imagens, formas e narrativas de história. Já no debate pela imprensa e na guerra de panfletos, o tema da história do Brasil e dos brasileiros, seu suposto estágio civilizatório e sua habilidade/inabilidade para formar um corpo político autônomo servirão

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Introdução

de terreno fértil de singularização de uma experiência nacional que ressignificou o passado colonial como tirania e opressão, a fim de projetar o colapso das expectativas de restauração ou regeneração do legado português. Em um gesto revolucionário típico, os 300 anos de colonização serão reduzidos a 300 anos de exploração e tirania. No entanto, uma vez proclamada a Independência, o novo regime vai se deparar com demandas óbvias por legitimidade. O grupo que se reúne em torno de Pedro I, passado o momento de crise que culminou com a dissolução da Assembleia Constituinte em 1823, vai, um tanto a exemplo do momento joanino, patrocinar letrados que pudessem atuar como historiadores a serviço do governo. É a esse esforço que devemos as narrativas produzidas por Victor-Laurent de La Beaumelle (1772-1831) [O Império do Brasil, 1823] e o já citado Alphonse de Beauchamp. O livro de Beaumelle, traduzido e publicado no Brasil já em 1824, tem pouco mais de 250 páginas e é dividido em duas partes. Na primeira são apresentados diversos elementos da história e dos desdobramentos possíveis da Independência do Brasil, enquanto a segunda parte é formada por anexos documentais, em geral papéis oficiais, cartas e manifestos públicos produzidos pelos partidários da Independência. O livro desenvolve a tese de que as causas da Independência não poderiam ser buscadas em ações individuais, mas em grandes leis históricas. Assim como o corpo individual, também o corpo social teria um começo e um fim; esse processo poderia ser observado em toda a história da humanidade, em que corpos políticos se dissolveriam e, a partir de seus elementos, novas identidades surgiriam. Não haveria, portanto, que se buscar culpados, nem fariam sentido as acusações de traição contra Pedro I e os brasileiros. A legitimidade da nova nação está ancorada nas leis da realidade histórica. Por sua vez, Beauchamp reivindicou o título de primeiro historiador do Brasil, referindo-se ao seu livro de 1815, como fonte de motivação e autoridade para escrever o seu relato [A Independência do Brasil apresentada aos monarcas europeus, 1824]. Depois de três séculos, escreve, apenas uma “revolução universal” poderia mudar essa estrutura. Esse movimento se encarna na expansão napoleônica, na invasão de Portugal e na migração da Corte. Beauchamp convida seus leitores a passear pela cidade do Rio de Janeiro através da visita ao Panorama daquela cidade, que em 1824 havia sido inaugurado no

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centro de Paris. O Panorama de 1824 é um bom exemplo de como o interesse pela história do Brasil, despertado em 1808 e reforçado em 1822, atinge um público mais amplo do que aquele formado por estadistas e monarcas. Como se vê, não era muito simples separar os projetos promovidos e financiados pelo estado daqueles que surgiam por interesses autorais ou do mercado do livro e seus novos leitores. O fato é que se aprofundava o interesse existencial por um novo tipo de história, mais ampla, menos fundada em fórmulas ou exemplos congelados. Novas metáforas que conectavam formas de visão integrativa com a análise da conjuntura histórica denunciavam o novo campo de experiência disponível e a demanda por entretenimento histórico. Ao mesmo tempo em que liam os folhetins sentimentais nos rodapés dos jornais, essas pessoas precisavam educar também seus sentimentos para compreender o novo mundo em formação. Era preciso desenvolver novas cognições, como a empatia e a simpatia, de modo a compreender melhor a alteridade crescente do indivíduo e das nações. A busca dessa compreensão ajuda a explicar o sucesso da obra do jovem Ferdinand Denis (1798-1890), que entre 1822 e 1825 publicou três livros importantes que tratavam de histórias brasileiras, o Brasil [1821-1822], com Hippolyte Taunay (1785-1881), As Cenas da Natureza sob os trópicos [1824] e o Resumo Histórico do Brasil [1825]. Teve ainda a oportunidade de publicar, também em 1824, em parceria com Félix Taunay (1795-1882), um guia para o Panorama do Rio de Janeiro em Paris. Toda essa atividade letrada acerca da nova nação, motivada por interesses diversos e impulsionada por uma conjuntura de grandes transformações, ampliava a sensação de que os acontecimentos requeriam algum tipo de intervenção normalizadora. Nosso terceiro momento, a Independência domesticada, é dominado pelo projeto historiador mais ambicioso e pioneiro na escrita de uma história geral do Brasil a partir do evento/processo Independência. Não chega a surpreender que tenha sido justamente Pedro I o responsável por encomendar, em 1825, ao diligente, fiel e já citado José da Silva Lisboa, a redação de uma história da Independência. Entre 1826 e 1831, o Visconde de Cairu transformaria a encomenda imperial no pretexto para projetar uma história geral do Brasil em dez volumes, dos quais chegou a finalizar apenas quatro, sendo o primeiro dedicado aos descobrimentos e

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Introdução

processo de colonização e os outros três ao processo de Independência [História dos principais sucessos do Império do Brasil]. No centro de sua história estava a ideia de que as sociedades modernas se fundam no comércio e na sociabilidade. Assim, a civilização do Brasil, mesmo que sufocada em seu período colonial, herdou da história portuguesa o projeto civilizatório cujo emblema foram as Grandes Navegações. Portugal havia decaído primeiro com o sistema colonial, depois com o liberalismo radical e maçônico; o Brasil, desde 1808, seguia seu destino enquanto baluarte da liberdade bem entendida, temperada por um governo forte. Essa visão conciliatória, autoritária e conservadora, que celebrava a nova nação como herdeira de um legado europeu, respondia à pergunta sobre a identidade do Brasil e dos brasileiros de um modo que se atualizaria nos 200 anos seguintes. Essa resposta parece hoje cada vez mais violenta e incapaz de nos levar ao futuro; escapar aos seus efeitos acumulados enquanto passado-presente não nos é possível. O que nos cabe é assumir as responsabilidades pelas dores de nossa formação e nos abrirmos para escutar a polifonia de vozes como nosso maior patrimônio. A diferença, que é nosso passado, pode também ser nosso futuro.

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CAPÍTULO I MODE RNIDADE E C R I SE DA REPRESENTAÇÃO 1

A) COMPILAÇÃO, “HISTÓRIA UNIVERSAL” E EXPERIÊNCIA DA HISTÓRIA Embora tenhamos hoje um relativo consenso acerca da modernização conceitual produzida entre os séculos XVIII e XIX, em especial daquela que serviu de base para a emergência de uma cultura ocidental sustentada por uma compreensão historicista da realidade, muito ainda nos falta saber sobre o modo pelo qual essa nova experiência da história foi produzida. O objetivo desta seção é contribuir para esse entendimento através do estudo de um caso que nos parece bastante ilustrativo das transformações nas expectativas do público europeu com relação à experiência da história. Pretendemos analisar um dos mais relevantes experimentos historiográficos do século XVIII, em especial em suas conexões com a modernização da escrita da história no mundo lusófono. Trata-se da publicação de uma grande história universal, em duas partes, história antiga e moderna, empreendida no mundo britânico entre 1736 e 1768,com amplas repercussões no cenário ocidental da época. Na parte moderna desse empreendimento, nos deteremos na seção dedicada à história de Portugal. 1 

Esta seção tem origem na pesquisa que desenvolvi com André Ramos e que resultou

nos artigos Araujo & Ramos, 2015; Araujo & Ramos 2018. Mais que um agradecimento, cabe o registro do caráter coautoral da reflexão.

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M o d e r n i d a d e e c r i s e d a re p re s e n taç ão

Os desdobramentos dessa iniciativa para o mundo luso-brasileiro se estenderam, pelo menos, até as primeiras décadas do século XIX, uma vez que diversos projetos editoriais traduziram, atualizaram e transformaram essa primeira versão de uma história cosmopolita de Portugal, de modo a interpretar um tempo presente repleto de desafios e incertezas. Daremos especial atenção à história da tradução da parte portuguesa por Antônio de Morais Silva (1757-1824), destacando o trabalho de apropriação e transformação dos sentidos originais do projeto nos diferentes momentos de sua história.2 Graças ao trabalho pioneiro do historiador italiano Guido Abbatista podemos hoje vislumbrar a importância da Universal History para a história intelectual do século XVIII (Abbatista: 1985). Ofuscada por projetos de fortuna crítica mais rica como a Encyclopédie, a iniciativa britânica de uma grande história universal, apesar de ter sido muito influente e traduzida para diversas línguas entre os séculos XVIII e XIX, acabou por afundar em relativo esquecimento ( Zande: 2003, pp. 135- 156; Link: 2006; Baár: 2010, pp. 63-82). Antes de tudo, um projeto comercial voltado para o florescente mercado do livro, as partes antiga e moderna da Universal History estão separadas pelas grandes transformações do século XVIII, já que a obra, anunciada em 1729, teve a primeira parte (História Antiga) publicada entre 1736 e 1744 e a segunda (História Moderna) entre 1759 e 1765. Como destaca Abbatista, os letrados reunidos pelos editores britânicos longe estavam de representar a nata da intelectualidade da época, pois ilustravam um novo tipo de profissional da erudição disposto a atender as demandas de um empreendimento que pressupunha certo gosto pelo risco: Os autores que cooperaram em momentos sucessivos - George Sale, John Swinton, George Shelvocke, George Psalmanazar, John Campbell, 2  Embora o foco de nossa análise seja a modernização da experiência da história em diálogo com pesquisas no campo da história da historiografia, a natureza das fontes e dos problemas torna inevitável a incursão em aspectos da história do livro, do impresso e da leitura, por isso, nos beneficiamos de alguns textos fundamentais sem a pretensão de esgotar a rica literatura acadêmica nesse setor de investigação. Para o aprofundamento neste campo de estudos no Brasil e suas interfaces internacionais Cf. Dutra: 2006; Abreu & Deacto: 2014.

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Tobias Smollett – simples mercenários-escritores, raramente citados nos anos que viram nascer a obra, com a exceção parcial do valoroso arabista George Sale e, obviamente, depois, de Tobias Smollet. Nenhum deles, de todo modo, chegou a ser um Leibniz, um Vico ou um Voltaire. (Abbatista: 2001, p. 102).

O capitão George Shelvocke atuou como corsário britânico, notabilizando-se pela publicação, em 1723, de um relato de viagem intitulado Viagem ao redor do mundo pelo Grande Mar do Sul. Mas o perfil que melhor exemplifica o caráter heterodoxo do grupo talvez seja o de George Psalmanazar, um mestre da arte da impostura e da fraude, que transformou sua biografia em um constante enigma, a ponto de ter sido tomado, durante algum tempo, em Londres, como um imigrante chinês convertido ao cristianismo. Quando se juntou ao projeto da Universal History já tinha sido integrado modestamente ao meio literário e editorial, colaborando na redação de panfletos e obras de referência.3 Além do “valoroso arabista” George Sale, o grupo também contava com escritores de sucesso e talento como o escocês John Campbell (1708-1775), autor multifacetado, tido como um dos mais bem sucedidos no mercado editorial britânico e que na parte moderna do projeto ficou responsável, dentre outras seções, pela História de Portugal. Mesmo admitindo a pluralidade de um projeto que atravessou boa parte do século XVIII, alguns apontamentos podem ser feitos no sentido de ampliar nossa compreensão sobre o seu significado para a modernização da experiência da história (Peres: 2010, pp. 5-25; Silva & Rodrigues: 2014). Apontaremos apenas alguns desses aspectos, sem aprofundá-los. Em primeiro lugar, a iniciativa produz, com algum grau de consciência da parte dos editores, uma revisão, em escala inédita, da ideia de história universal. Gênero muito antigo, cuja história é certamente marcada por grandes descontinuidades, tinha na unidade do mundo cristão e de sua história providencial

3 

Cf. Lynch, Jack. “Orientalism as Performance Art: The Strange Case of George

Psalamanazar”. Rutgers University, Delivered 29 January 1999 at the CUNY Seminar on Eighteenth-Century Literature. http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Papers/psalm. html. Consultado em 21/02/2013.

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uma de suas bases de sustentação na época moderna. O projeto britânico nasceu do diagnóstico da insuficiência desses modelos, buscando novas direções.4 1. O planeta, e não a cristandade, tornou-se a unidade de referência dessa história. Os editores esforçaram-se por narrar os acontecimentos de todos os países e povos conhecidos nos diversos continentes. Mesmo na parte antiga, há uma tentativa consciente de ir para além da geografia bíblica. Portanto, um primeiro traço modernizante do projeto é a ampliação geográfica da história, que passou virtualmente a coincidir com uma história do globo. 2. Embora iniciem pela parte antiga, o projeto em sua segunda fase avançou para o mundo moderno, mantendo a mesma pretensão de exaustividade da parte anterior. Também a dimensão cronológica foi alargada, dando à história moderna a mesma dignidade da antiga e procurando unificar essas diversas histórias em um mesmo horizonte cronológico. 3. Como apontado acima, o projeto só foi possível pela existência inédita de um mercado editorial em acelerada expansão. O capitalismo editorial permitia e exigia novos conteúdos para um novo público. Um público, por exemplo, não familiarizado com o latim como língua de cultura, que estava tanto ávido por acolher a nova forma do romance, quanto precisava educar-se e entreter-se com o legado histórico da humanidade. 4. Tratado como conteúdo disponível para um público em expansão, a forma de lidar com esse legado na historiografia passou por um grande esforço de compilação e tradução. Diferente dos eruditos, esse público não poderia contar com o acesso, ou o tempo, para consultar a imensa variedade de textos nos quais as histórias antigas e modernas estavam escritas, particularmente em grego, latim e outras línguas nacionais. Como um leitor médio britânico poderia ter acesso à história da França escrita em provençal, francês e latim por cronistas e historiógrafos? 5. Esse novo tipo de história, que emergia da prática dessas novas compilações, punha em movimento outro tipo de relação entre letrado e público. 4 

A partir da análise de inúmeros projetos editoriais de atlas históricos ao longo do

século XVIII, Manuel Schramm explora como a expansão do conhecimento geográfico sobre diversas partes do globo complexificou as formas providencialistas e tradicionais de se narrar a história Cf. Schramm: 2014-2015, pp. 1-50.

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Como o público não era, por definição, formado por especialistas ou eruditos, essas histórias precisavam realizar um grande esforço didático para comunicar seus conteúdos. A imensa dimensão do projeto, certamente pensado também como obra de referência e consulta, era remediada por um uso intensivo e diversificado de longas notas explicativas e notas laterais que guiavam o leitor nessa experiência, para muitos inédita, de ter em mãos a história completa de quase todas as nações do mundo. 6. Como era de se esperar, tendo em vista que essas histórias foram produzidas com fontes tão diversas e para leitores também variados, seu resultado foi bastante irregular e heterogêneo. As grandes linhas das histórias dinásticas são mantidas como grade para as histórias nacionais, respeitando-se, em grande medida, uma definição clássica dos conteúdos, prioritariamente político-militares. Isso, ao lado, como dito acima, de forte presença de uma cultura erudita, seja no cuidado crítico, seja na apresentação minuciosa das notas de referência às autoridades no fim das páginas. Encontramos ainda um esforço de compreensão narrativo-filosófica de processos, por um lado, e certa ampliação do anedótico, do curioso e do individual, por outro, que deveria dar conta do necessário entretenimento do público leitor. 7. O modelo compilatório adotado no projeto correspondia a uma versão fraca de autoria, ao menos se comparado com a que se consolidará no século XIX. Embora o tema merecesse análise mais longa, para nosso objetivo aqui, basta observar que essa versão fraca de autoria correspondia à própria natureza coletiva deste tipo de projeto editorial, distribuído para grandes equipes e publicado em dezenas de volumes ao longo dos anos. Isso tornava possível a constante atualização dessas histórias pelo acréscimo de novas “nações” e mesmo pela expansão do relato sempre em direção ao presente. Como em outras atividades letradas, o autor era remunerado mais pela quantidade do seu trabalho do que pela originalidade de sua expressão ou ideia. Em resumo, o trabalho de compilação reunia diversos procedimentos distintos: a) “tradução” de antigas crônicas e textos originais (grego, latim, árabe, diversas línguas vernáculas), o que pressupunha a existência de uma comunidade de letrados capazes de ler e decifrar esse material para o leitor-consumidor; b) a seleção crítica do material presente nessas fontes (secundárias) primárias. Esse processo crítico envolveu o estabelecimento dos fatos por comparação

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entre autoridades, razoabilidade, consistência das fontes, etc.; c) seleção por relevância cultural. Sobre este ponto cabe destacar a intensificação do anedótico e do individual, além de um olhar irônico laicizante, típico da Ilustração, que não só procurava excluir o miraculoso e fantástico, como o ridicularizava programaticamente. Essa história tendia igualmente a ser antipapal e anticatólica. Acrescente-se, ainda: d) a fusão sintética desse material criticado em unidades eminentemente nacionais, procurando estabelecer rigorosamente a cronologia e um cânone de assuntos, eventos e feitos geralmente de perfil político-militar e monárquico, mas com presença nítida de um esforço por compreender as causas dos acontecimentos, o que, em geral, recaía na análise das “índoles” dos povos e seus governantes.

A HISTÓRIA DE PORTUGAL NA UNIVERSAL HISTORY (1760) A parte que contém a História de Portugal na Universal History foi publicada no volume 22, em 1760, sendo a narrativa da obra encerrada no ano de 1714, não abarcando, portanto, eventos contemporâneos ao referido volume.5 Como já dito acima, a parte lusa é atribuída ao escocês John Campbell. Sua primeira obra considerada original data de 1739, intitulada As viagens e aventuras de Edward Bevan, Esq., ex-mercador em Londres, etc. Pela descrição da National Biography, tratava-se de um tipo de autobiografia fictícia, ao estilo de Defoe, que reunia informações sobre topografia, história, produtos naturais, condições políticas, maneiras e costumes de países supostamente visitados.6 É neste período que Campbell começou a colaborar para a Universal History, sendo, durante algum tempo, a ele erroneamente atribuída a redação da Cosmogonia, na verdade, escrita por George Sale. Na parte antiga, Campbell escreveu a “História dos impérios persa e de Constantinopla”. Na parte moderna, compilou as histórias da presença europeia, inclusive portuguesa, nas índias 5  The Modern Part of an Universal History, from the Earliest Account of Time. Compiled from Original Writers. By the Authors of the Antient Part. Vol. XXII. London, Printed for T. Osborne [etc.], 1760. 6  National Bibliography, p. 373.

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orientais.7 Redigiu ou compilou as histórias de Portugal, Espanha e boa parte da francesa de Clóvis até 1656. Em 1741, Campbell publicou uma História concisa da América Espanhola, simultaneamente escrevia as vidas de almirantes e outros grandes navegadores britânicos, assim como também contribuiu com diversos perfis para a Biografia Britânica. Em 1750, publicou O estado político da Europa, um conjunto de resumos das histórias dos estados europeus, suas relações internacionais e políticas internas. Essa obra, republicada em um periódico intitulado The Museum, parece ter tido larga recepção em seu tempo. Essa atuação intensa e variada, em gêneros para os quais havia um crescente interesse por parte de um público leitor em expansão, possibilitou o enriquecimento do autor.8 Em 1743, Campbell provou estar à vontade no eclético grupo reunido pelo projeto da Universal History, pois publicou um pequeno livro intitulado Hermippus Redivivus, no qual se propunha apresentar um método para o prolongamento da vida retirado de grandes autoridades antigas. Era obviamente uma sátira, pois o segredo da longevidade seria respirar o mesmo ar que os jovens, em especial as mocinhas. Mas a forma do livro parece ter confundido alguns de seus leitores, incapazes de descobrir o falso por detrás de todo o aparato erudito simulado pelo autor. Já no título era anunciado “um comentário sobre uma inscrição antiga na qual este grande segredo é revelado e confirmado por numerosas autoridades”.9 Esse lado heterodoxo do grupo de compiladores da Universal History certamente o afastava das academias ilustradas típicas do Antigo Regime, que também adotando as técnicas da erudição, produziam uma variedade historiográfica mais amarrada pelo decoro clássico e monárquico, voltada para um auditório igualmente erudito, nobilitado ou semiespecializado, no qual as longas 7  “To the ‘Modern Universal History’ he contributed the histories of the Portuguese, Dutch, French, Swedish, Danish and Ostend settlements in the East Indias, and histories of Spain, Portugal, Algarves, Navarre, and that of France from Clovis to the year 1656”. National Bibliography, p. 374. 8  National Bibliography, p. 375. 9 

Na biografia de Campbell, o Dr. Kippis descreve o seu próprio fascínio com o texto,

e o engano de alguns leitores mais ingênuos (Kippis, 1784. pp. 343-349).

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e sisudas dissertações eram a base para a escrita de histórias gerais, eclesiásticas e/ou civis, muitas ainda prioritariamente escritas em latim. As distintas condições de autonomia e produção destas variedades explicam porque, ao final do XVIII, os letrados portugueses precisaram recorrer à Universal History para obter uma versão moderna de sua história nacional, apesar da existência e do trabalho das academias luso-brasileiras (Kantor 2004; Nicolazzi 2010, pp. 4051; Silva 2010). Já em 1741, a parte antiga da obra começou a ser publicada em língua francesa, em uma versão editada em Amsterdam e atribuída a Guillaume Thomas François Raynal (1713-1796). A partir de 1779, uma nova versão em língua francesa começou a ser publicada em Paris, editada por Nicolas-Léger Moutard (1742-18??), sendo que, nesta edição, a parte moderna da obra foi traduzida do original e aperfeiçoada (Mann 1780, p. 25-26). O tomo que contém a História de Portugal foi publicado em 1785 naquela língua, sendo ele a base da primeira tradução para o português feita por Morais Silva. Na versão francesa são acrescentados novos capítulos com eventos da história de Portugal até o ano de 1760 e um capítulo introdutório intitulado Description Du Royaume de Portugal: Origine, splendeur et décadence de cette Monarchie, ao gosto dos grandes ensaios de especulação filosófica sobre história, tão em voga naquele fim de século (Histoire Universelle, 1785). Um pouco da recepção da primeira edição inglesa da história de Portugal pode ser mapeado em resenhas em periódicos britânicos. Um resenhista da Monthly Review, em 1761, ressaltou o caráter memorialista da obra e citou excertos para demonstrar como os feitos dos portugueses foram grandiosos e possuíam “as mais memoráveis das particularidades”. Nesse sentido, o reinado de D. Manuel I e a expansão de Portugal deviam ser lembrados como momentos gloriosos e exemplares da história da Europa. De todos os reis de Portugal, nenhum merece ser mais honoravelmente mencionado que Manuel, que possuiu a coroa em 1495: ele foi chamado de “O Venturoso” com grande propriedade; pois sua vizinhança, tanto quanto seus súditos, foram participantes da sua boa fortuna. À sua sagacidade e ao seu manejo deve ser atribuída a descoberta difundida por toda Europa. Ele

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se distinguiu por ser sóbrio sem parcimônia e generoso sem prodigalidade (The Monthly Review, 1761, pp. 110-122, p. 120).

Em contrapartida, outro resenhista, agora da Critical Review destacava, em 1762, a relação ambivalente da obra com as crônicas que visavam eternizar na memória os feitos dos reis, enfatizando que “[...] o leitor, nada de clássico encontrará no estilo ou na composição das histórias de Portugal e Espanha, embora a narrativa seja prolixa e embaraçada, os personagens mortos, sem vida, e as reflexões, banais, vulgares e superficiais”, no entanto, “tal é a variedade e novidade da matéria, que ele não fracassará em encontrar nela instrução e diversão” (The Critical Review, 1762, p. p. 178). Para esse resenhista, as histórias de Portugal e Espanha, presentes na Universal History, diferenciavam-se das obras dos cronistas clássicos, i.e., dos séculos XII a XVII, porém, alguns elementos foram preservados desses autores, como o distanciamento na narrativa, constatado a partir da caracterização crua das virtudes públicas dos personagens, e a escassa reflexão filosófica no corpo da obra. Dessa forma, o autor da resenha demonstrava tanto o afastamento quanto a proximidade dos autores da Universal History com relação às narrativas das crônicas, afirmando, implicitamente, a positividade do alargamento da distância histórica com relação aos ideais de composição clássicos.10 A positividade deste alargamento se realizava na possibilidade da composição historiográfica superar a parcialidade das crônicas dos eventos contemporâneos, incapazes de tecerem amplos juízos filosóficos sobre o processo histórico. A História de Portugal, presente na Universal History, trazia “reflexões banais, vulgares e superficiais”, no entanto, podia ser considerada uma síntese do desenvolvimento da nação enquanto uma unidade ao longo do tempo. As causas dos progressos e decadência de Portugal podiam ser depreendidas pelos leitores, que teriam, nesta obra, uma síntese diacrônica dos feitos que abarcavam cerca de 500 anos de história. Era dada ao leitor a possibilidade de uma experiência cosmopolita da história da Europa e do mundo, mesmo que no texto faltasse esse ponto de vista ou o julgamento filosófico exigido pelo século. 10 

Para um aprofundamento sobre as performances da distância histórica na historio-

grafia e demais gêneros literários na Grã-Bretanha neste contexto Cf. Philips, 1997.

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Deste modo, o evento mais importante narrado na História de Portugal teria sido a “revolução” de Bragança, pois os autores da obra, na perspectiva do resenhista, demonstraram como os espanhóis, após a união das dinastias, trataram “Portugal como uma província conquistada”. Nesse ponto, o fundamental para o resenhista foi destacar como os desmandos político-administrativos da coroa espanhola inviabilizaram a unidade entre as duas coroas. Essas ações, segundo este autor, bárbaras, arbitrárias e insolentes, teriam suprimido a pujança do comércio português, submetido o clero com tirania e taxado o povo com pesados impostos. Portanto, o resenhista da Critical Review leu a História de Portugal em oposição às obras dos cronistas clássicos, pois os compositores da Universal History apontavam para a crise da concepção de virtude militar, compreendida em oposição ao progresso moral e material das nações. O distanciamento da concepção de virtude dos cronistas refletiu no método adotado na obra, por sua vez composta a partir do exame crítico e confronto de diversas crônicas. O vigésimo segundo volume contém uma minuciosa e circunstancial história da origem, surgimento e progresso da monarquia portuguesa, deduzida de uma variedade de historiadores espanhóis e portugueses. O evento mais interessante nos anais deste país é a famosa revolução acontecida no reinado de Filipe IV sobre a condução de João, Duque de Bragança, logo após elevado ao trono de Portugal. Nosso autor descreveu muito acuradamente toda a circunstância que deu origem a esta grande revolta; os erros da administração de Filipe, que lançaram as fundações dos descontentamentos portugueses; a quebra de artigos fundamentais, pelos quais as coroas de Espanha e Portugal estavam unidas; as usurpações dos ministros espanhóis; a total negligência do comércio português, fonte única da importância do reino; a tirania exercida sobre o clero; as exorbitantes taxas lançadas sobre o povo, e as arbitrárias barbaridades e insolências cometidas pelos castelhanos, que, em todos os aspectos, trataram Portugal como uma província conquistada. Estas, somadas a milhares de outras maldades todos os dias exercidas pelos arrogantes espanhóis, foram decisivas para que os portugueses procurassem seu remédio em uma revolução e em sua coragem. (The Critical Review, 1762, p. 172)

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Portanto, era possível para um leitor britânico identificar, no texto de Campbell, os principais elementos de humanismo comercial, tal como definido por Pocock.11 Mesmo sem o ensaio filosófico, era possível ao leitor assimilar um reforço do conjunto de valores da vida civil assentado em certa interpretação da história da Europa como um progresso do “barbarismo e religião” à época comercial.12 Essa descrição não pareceu suficiente aos tradutores e editores franceses, que na edição da parte moderna procuraram ampliar o espaço da especulação filosófica. Por outro lado, a edição francesa deslocou as longas notas de erudição ou explicativas para o fim do livro, já que na edição britânica estavam indicadas por letras ao final das páginas. O significado desse deslocamento não é fácil de estabelecer, mas podemos especular sobre seus efeitos, pois a edição francesa acaba tendo um aspecto mais leve e menos erudito, embora sejam mantidas as referências às fontes no rodapé. Será esse texto, e não a versão britânica, a fonte para a transposição desse universo para a língua portuguesa. Como veremos mais adiante, essa transposição começou com a tradução feita pelo luso-brasileiro Antônio Morais Silva, publicada em 1788.

11 

Pocock diferencia a imutável “virtude republicana clássica”, por ser inscrita na na-

tureza, da cambiável “virtude moderna”, em face à disseminação do comércio e possibilidade de expansão do foro íntimo: “Montesquieu y otros teóricos sociales deberán concluir que la virtud espartana, romana o gótica, fundada en la posesión de la tierra por indivíduos austeramente independentes, era de una dureza inhumana y que solo com la expansión del comercio y las artes los hombres se socializaron y llegaron a adquirir la capacidad necessária para poder albegar sentimientos como la confianza, la amistad y el amor Cristiano”. (Pocock, 2002, p. 532). 12 

Com relação ao envolvimento nesta compreensão da história da Europa e sua

sistematização em macronarrativas, Monica Báar escreve, a propósito de John Campbell, o compilador da História de Portugal na Universal History: “[…] the origins of the modern world, as described by the Scottish writer John Campbell, adopted the mainstream commercial narrative of the Scottish Enlightenment, eulogizing commerce as a vehicle for progress and liberty”. Baár, Op. Cit., p. 64.

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MORAIS SILVA E OS SIGNIFICADOS DA COMPILAÇÃO DO DICIONÁRIO DE BLUTEAU (1789) Nascido no Rio de Janeiro em 1755, Morais faz parte da geração de letrados naturais de um Brasil ainda colônia de Portugal, arregimentados pela ação reformista de integração das elites ultramarinas no projeto de restauração da nação portuguesa. No seu esboço biográfico publicado na Revista do IHGB, Francisco Adolfo Varnhagen afirma que após o começo de seus estudos no Rio de Janeiro, o futuro dicionarista viajaria para Coimbra, onde se formaria em leis (Varnhagen 1852).13 Especula o biógrafo que foi pelos vexames passados em Coimbra, pois falava e pronunciava um português muito incorreto, sendo vítima do escárnio de colegas, que Morais teria tomado a decisão de estudar a língua com apuro e profundidade, dando, em pouco tempo, lições e reparos a colegas e mestres (Idem, p. 243). Varnhagen diz não saber os motivos que teriam levado o jovem Morais a se mudar para Londres, mas que estaria por lá em 1779, sob a proteção do Visconde de Balsemão (Luis Pinto de Sousa). Na casa do visconde teria acesso a uma ampla biblioteca na qual certamente pode ampliar sua erudição. Menciona a tradução, desse período, da História de Portugal, “que desde 1789 tem tido várias edições e aditamentos” (Idem, p. 243). Hoje esses motivos são bem conhecidos; talvez o fossem também do biógrafo, que os tenha omitido por decoro. O fato é que Morais Silva foge para Londres para não ser preso pela Inquisição. Ao estudar a presença de luso-brasileiros na perseguição da Inquisição à época do reinado de D. Maria I, Alexandre Barata descreve como o jovem Morais Silva, em 1779, no quinto ano da faculdade de Leis, apresentou-se à Inquisição após ter sido denunciado por Francisco Cândido Chaves (Barata 2006, p. 60).14 Morais tenta passar a ideia de que teria se envolvido por mero acaso com um grupo de estudantes irreligiosos, e que as atividades denunciadas não passavam de um trote que os amigos tinham tramado contra o denunciante. Segundo a 13 

Essa é uma das biografias analisadas por Santos 2009.

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O mesmo episódio é também descrito em Correia 2012.

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queixa, os estudantes “comiam carne durante a Quaresma; discutiam temas de religião; citavam frequentemente Voltaire, Rousseau, Helvécio; não praticavam os atos de um bom católico [...]” (Idem, 61). A lista de blasfêmias enumeradas era longa, caracterizando um círculo de jovens fascinados pelas ideias radicais do Iluminismo. A defesa de Morais não parece ter convencido os inquisidores, que estavam dispostos a prender todo o grupo. Será justamente para fugir de uma prisão iminente que emigra para Londres, passando por Roma. Ainda segundo Barata, baseado na leitura dos processos da Mesa do Santo Ofício, Morais Silva retornaria ao tribunal, em Lisboa, em 1785, confessando suas blasfêmias, atribuindo-as à influência da leitura de livros anticatólicos (Barata 2006, p. 63). O tribunal, após obrigá-lo ao pagamento das custas do processo, o absolveu, reintegrando-o à comunidade católica da qual tinha sido excomungado (Barata 2006, p. 64). Luiz Carlos Villalta utilizou-se dos mesmos processos para estudar os leitores coimbrenses das Cartas Persas de Montesquieu, entre os quais estava naturalmente o nosso futuro dicionarista (Villalta 2016). Varnhagen celebra o Dicionário de Morais e tenta descolá-lo, de algum modo, da herança de Bluteau: “Na primeira edição dele não se propôs o nosso autor a mais que dar um resumo dos numerosos volumes indigestos e palheirões de Bluteau” (Varnhagen 1852, p. 244). Mas continuando seus estudos, a leitura dos clássicos da língua portuguesa, depois de publicar seu Epitome de gramática portuguesa, teriam sido muito aperfeiçoadas a segunda e terceira edições, de 1813 e 1823. De retorno ao Brasil, Morais exerceria funções de Juiz de Fora na Bahia (1795), mas se afastaria rapidamente do cargo após conflitos com outras autoridades locais. Ao se mudar para Pernambuco, em 1796, torna-se proprietário do engenho novo da Moribeca. Varnhagen menciona ainda um suposto envolvimento de Morais com a Revolução de 1817, exercendo cargos públicos em Pernambuco, mas sem muito sucesso: “Morais era ríspido, demasiadamente severo, pouco insinuante, e até dizem repelente...” (Idem, p. 244). O biógrafo não deixa de tecer suas críticas ao dicionário, mas é enfático ao reconhecer seu mérito e autoridade: “no meio de tanto especuladores e compiladores de dicionários, que se têm apresentado a vituperar Morais (de-

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pois de haverem dele aproveitado até as últimas migalhas), ainda ninguém foi capaz de lhe disputar a palma” (Idem, p. 245).15 É neste contexto de retorno a Portugal e com o perdão da Inquisição que em 1789 Morais Silva publicaria a primeira edição de seu Dicionário da Língua Portuguesa. Como dito acima, ainda receberia na folha de rosto a autoria de Bluteau. Na essência, era outro dicionário, considerado por muitos o primeiro dicionário moderno da língua portuguesa. De fato, além de acrescer novos verbetes, Morais Silva procurou “modernizar” o trabalho realizado por Bluteau, o que significou principalmente suprimir o conjunto fantasticamente heterogêneo de informações que o Vocabulário de Bluteau acrescia aos verbetes, dando-lhe o caráter de uma grande enciclopédia erudita, um repertório de fórmulas retóricas. Já em 1747 Verney notara a necessidade de uma versão abreviada do dicionário de Bluteau, originalmente publicado em dez volumes in folio. Segundo Telmo Verdelho: No conjunto, cerca de 50%, ou mesmo um pouco mais, do texto que se encontra no Dicionário de Morais de 1789 pode dizer-se que é recuperado do Vocabulário de Bluteau. Mas este texto sofreu uma laboriosa revisão. Assim, apenas 5%, ou talvez menos, dos artigos do Dicionário são integralmente retomados de Bluteau. O restante “corpus” é retextualizado, reduzido, aumentado ou parcialmente reescrito (Verdelho 2003, p. 478).

O fato é que o período em Londres (1779-1785) foi extremamente relevante para o amadurecimento intelectual de Morais. Não apenas a tradução da “História de Portugal” teria sido ali projetada e inicialmente desenvolvida, mas o próprio trabalho sintético-compilatório sobre o Vocabulário de Bluteau. O tipo de trabalho a que Morais submete o Vocabulário de Bluteau é muito parecido com o que os letrados da Universal History realizavam com as antigas crônicas e histórias. Do mesmo modo esse trabalho indica a emergência de um novo tipo de leitor, menos preocupado ou capaz de lidar com línguas clássicas 15 

Francisco Solano Constâncio (c.1772-1846). Segundo Ettinger, o dicionário de

Constâncio teria edições em 1827, 1834, 1842, 1852, 1856, 1859, 1864, 1867, 1877 e 1887. (Ettinger 1991, p. 3022).

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e mais pressionado pela aceleração do mundo que exigia outro relacionamento com a comunicação escrita. Cabe lembrar ainda que o dicionário é introduzido por uma pequena gramática da língua portuguesa. Apenas a título de exemplo, vejamos como está definida a entrada “história” nos dois dicionários. Em Bluteau o verbete é tão longo que não poderíamos citar aqui na integridade, tomaria algo como duas páginas, por isso, transcrevemos apenas um trecho inicial: História, história. Deriva-se do grego. [Istoria], que quer dizer Eu sei, & a própria palavra História é grega, & vai tanto como Indagação de Cousas Curiosas, e desejo de saber. Mais particularmente, História é narração de coisas memoráveis, que tem acontecido em algum lugar, em certo tempo, e com certas pessoas, ou nações. De todas as Histórias, a mais certa é a da Sagrada Bíblia; como ditada pelo Espírito Divino, deve ser preferida à todas, e (segundo advertiu Santo Agostinho, livro 18. de Civit. Dei, cap. 40.) quando em Historiadores profanos achamos coisas contrárias às que estão na Bíblia, havemos de ter por certo, que são falsas.

Na sequência, entra em uma polêmica com um “autor no norte” que se atreveria a questionar a cronologia bíblica, cita as cronologias dos caldeus, egípcios, chineses, etc. Conta-nos ainda uma anedota chinesa de um homem chamado Hanzu, que teria ficado “oitenta anos no ventre da mãe”. Cita os romanos, que seriam céticos sobre os tempos mais recuados, que se confundiriam com a fábula. E claro, elenca os topoi clássicos em lugar de destaque ao final do verbete: “A história é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da memória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade”. Vejamos agora o que o trabalho de síntese-compilatória de Morais fez com esse material: História, s. f. Narração de sucessos civis, militares, ou políticos. § História Natural: exposição dos objetos, e produtos da Natureza por meio de suas propriedades, e caracteres, dispostos em certas Classes, Ordens, Gêneros, etc. segundo o sistema do que a escreve. (Morais 1813, p.116, vol. II).

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Portanto, não é sem razão o estranhamento dos estudiosos acerca do gesto de Morais em manter o nome de Bluteau como autor de obra tão modificada. Com o simples gesto de enxugar o dicionário de Bluteau, Morais contribui para a modernização da experiência da língua. Mesmo não podendo exercer suas ideias radicais no controlado espaço português, Morais ainda foi capaz de trabalhar para o desaparecimento do mundo em que algo como a Inquisição faria sentido. Com um gesto, reduzia-se a presença tanto do edifício clássico-retórico quanto da explicação religiosa do mundo. Não queremos dizer com isso que essas duas forças teriam desaparecido como por um passe de mágica, mas que o seu lugar estava sendo profundamente reestruturado na experiência disponível. Sem querer decifrar os mistérios com argumento insuficiente, não podemos deixar de mencionar que a concepção de autoria e de trabalho intelectual disponíveis para Morais estavam ainda mais próximas de um esforço coletivo e compilatório do que da ideia romântica da singularidade autoral. Além disso, manter o nome do teatino em obra tão revolucionária quanto o Dicionário não deixava de ser uma estratégia eficiente contra a censura. A segunda edição do dicionário de Morais, já sem a referência ao nome de Bluteau, data de 1813. Outra edição viria ainda em 1823 sem a colaboração direta de Morais Silva que, no entanto, trabalhara em Pernambuco na revisão e ampliação da obra. Como esclarecem os editores no texto introdutório da quarta edição, assinado por Borel Borel e Companhia: “Ao mesmo tempo o infatigável, e eruditíssimo Antônio de Morais Silva preparava no Sertão de Pernambuco os elementos de uma nova edição, e ali em horas furtadas à vida rústica, tornava a ler e conferir os Autores capitais da Língua Portuguesa [...]” (Silva 1831, v. I, p. V). Em todas essas introduções, na presença de diversos outros nomes envolvidos no trabalho de atualização e ampliação do dicionário fica evidente o seu aspecto de iniciativa “empresarial” e compilatória. No já citado artigo, Verdelho chama atenção para o fato de Morais, mesmo assumindo o lugar de autor a partir da segunda edição, não deixou de se definir como “recompilador”, estatuto só alterado na 4ª edição, após sua morte. O sucesso editorial do empreendimento rendeu a Morais um retorno financeiro considerável:

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O Livreiro Borel Borel e Cª, que tinha comprado a propriedade do Dicionário por 2.000 cruzados, perante os lucros auferidos logo nas primeiras respostas do mercado e na sequência de uma procura prolongada e inesperadamente auspiciosa, ofereceu ao autor, espontaneamente, uma gratificação suplementar de 600.000 réis, cerca de 1250 cruzados. (Verdelho 2003, p. 480).

A terceira edição de 1823 reflete a distância do autor. Sua taxa de inovação vocabular é a menor dentre as cinco edições publicadas entre 1813 e 1858, segundo o levantamento feito por Dieter Messner (1994). A edição mais inovadora é a de 1813, que apresenta quase 60% de novos verbetes em relação a edição de 1789. A taxa se estabilizaria por volta dos 30% nas edições de 1831 e 1858. As anotações “pernambucanas” de Morais serão utilizadas, após sua morte (1824), na quarta edição, de 1831, que como mostrado acima volta a ser substancialmente inovadora se comparada com a edição de 1813. Pela sua influência cultural nos dois lados do Atlântico, o dicionário de Morais é uma fonte central, embora ao longo do Oitocentos veremos surgir uma grande variedade de dicionários, alguns simples transcrição de obras anteriores, outros fruto de esforço real de sistematização da língua em um momento de profundas transformações. Telmo Verdelho sumariza muito bem alguns processos históricos documentados e impulsionados pela publicação do dicionário de Morais, uma das bases para a democratização da escrita e da leitura, preparando a ampliação da escolarização, a vulgarização da gramática, a mudança nos paradigmas literários “[...] a escrita ornamentada e hipotáctica da oratória da tradição latina e clássica é substituída pela parataxe, pela ordem direta e pela coloquialidade romântica” (Verdelho 2003, p. XX). Cita ainda o alargamento da “circulação da palavra” e do “discurso público” com o jornalismo e a prática parlamentar (Verdelho 2003, p. 473).

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UMA RECEPÇÃO COMBATIVA (1802 - 1809) Com a História de Portugal o esforço de Morais não foi de síntese, como no dicionário de Bluteau – esse trabalho já tinha sido feito, em certo sentido, por Campbell –, mas analítico, tanto traduzindo e anotando o ensaio de história filosófica acrescentado na edição francesa, quanto avançando na cronologia ao adicionar novos capítulos ao texto original. Ao traduzir a História de Portugal, Morais Silva incorporou o capítulo introdutório da edição francesa e continuou a narrativa do relato do reinado de D. José I até 1777, ou seja, não se tratou apenas do que hoje consideraríamos uma tradução, mas uma verdadeira apropriação e continuidade com o projeto de uma história compilatória. Outras edições desta obra foram publicadas em Portugal nos anos de 1802, 1825 e 1828 (Rodrigues 1992, pp. 254, 358, 369). A partir do volume de 1802, um último capítulo sobre o reinado de Dona Maria I foi acrescentado, sendo este escrito por José Agostinho de Macedo (1761-1831). Na Inglaterra, Hipólito da Costa (1774-1823) editou uma versão em 1809, igualmente mantendo o corpo da obra traduzida e ampliada por Morais Silva, sendo o capítulo inserido por Agostinho de Macedo sobre o reinado de Maria I substituído, por ser considerado equivocado, por um de autoria do próprio Hipólito. A rica fortuna desse projeto demonstra a importância do texto para a cultura histórica luso-brasileira, tendo em vista as várias reedições e as polêmicas surgidas a propósito do reinado de Maria I (Macedo 1802, pp. 74150 e Costa 1809, pp. 214-248). A multiplicidade de textos que o constitui aponta para a complexidade das relações historiográficas entre Portugal, Inglaterra e França, sendo impossível reduzir tais conexões à unilateral categoria de influência.16 O caráter híbrido do texto original britânico (clássico, erudito e, em menor escala, filosófico) parece ter sido importante para a recepção da obra em Portugal, que teve a sua publicação autorizada pela censura, e sua impressão realizada pela Academia Real de Ciências de Lisboa. Morais Silva 16  Para um aprofundamento teórico-metodológico da questão Cf. Padilla 2008; Araujo 2008; Pimenta 2008.

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escreveu, no prefácio, que a história de Portugal não podia contar somente com as “leves tinturas” que se podia tirar dos “antigos compêndios”, tornando-se necessária uma compreensão histórica mais ampla sobre o processo de formação do reino (Moraes Silva 1788, p. 1). No entanto, mesmo criticando os cronistas, a dimensão elogiosa das suas obras deveria ser preservada, pois a virtude militar não podia ser julgada com mero distanciamento pelo presente. Sua dignidade devia ser restituída, já que esta possibilitou a manutenção da unidade do reino no passado. Dessa forma, no corpo do texto principal traduzido para o português é enfatizado que “uma longa série de Príncipes Guerreiros e prudentes” possibilitou a unidade do “pequeno Reino” e a glória de Portugal “em todas as partes do Mundo” (Idem, p. 49). Ao passo que esta perspectiva idealizada continua presente na obra, igualmente encontram-se passagens que dissolvem as glórias fundadas nos relatos dos cronistas. Estes, ao buscarem eternizar a exemplaridade dos feitos dos reis como guiados pela interferência direta de milagres divinos, são criticados pelos compiladores da obra em notas, que concebiam a interferência direta da providência como desqualificadora das narrativas dos cronistas. Esta perspectiva foi seguida por Morais Silva, que traduziu a nota presente nas versões inglesa e francesa: “A verdade é, que os Escritores modernos são menos, repreensíveis, que os antigos, os quais muitas vezes dão as suas Histórias o jeito, que lhes convém, mais para as acomodar às ideias, que eles tinham acerca da Justiça de Deus”. (Idem, p. 125). Portanto, a tradução e ampliação da História de Portugal realizada por Morais Silva seguiu tanto o decoro dos cronistas, ao não prescindir da narrativa dos sucessos e virtudes dos reis de Portugal, quanto negou a exemplaridade atemporal das crônicas, ao submeter esses relatos à crítica erudita, pois a narrativa devia ser tecida “[c]onforme às melhores memórias, emendadas por comparação dos sucessos, que são a única guia certa na História”. (Idem, ibidem). Apesar de Morais Silva expor, no prefácio e notas de rodapé, críticas às narrativas dos cronistas portugueses, o corpo da obra traduzida não rompeu com a predominância de temas clássicos-tradicionais, como a política e ações militares. Da mesma forma que os autores das versões inglesa e francesa fizeram nos capítulos anteriores, Morais Silva, ao completar o reinado de D. José I, seguiu a cronologia dinástica e narrou com distanciamento emotivo os

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sucessos políticos e militares da monarquia. O corpo do texto principal apresenta poucos juízos filosóficos envolvidos à narrativa dos fatos compilados de cronistas portugueses e estrangeiros. No entanto, Morais Silva acrescentou o capítulo introdutório Description Du Royaume de Portugal: Origine, splendeur et décadence de cette Monarchie, presente na versão francesa. Neste capítulo, o afastamento dos horizontes históricos dos cronistas em relação ao presente foi reiterado logo no primeiro parágrafo, abrindo o amplo caráter de síntese filosófica deste texto. Com efeito, lê-se na tradução de Morais Silva para a língua portuguesa: Portugal, que foi em outro tempo parte da antiga Espanha, jacta-se, como muitas outras regiões, de uma antiguidade que se perde na obscuridade dos tempos. Os autores portugueses querem que a sua pátria fosse povoada primitivamente por Tubal, e pela sua família, do qual dizem, que fundou uma Cidade, a que pôs seu nome, e que ainda hoje existe, com o de Setúbal; e que tem isto por uma prova sem réplica do que afirmam. Mas os historiadores espanhóis, não menos orgulhosos de sua origem que os portugueses, contestam-lhes esta prova, e reclamam o mesmo Tubal como fundador da sua Monarquia. (Idem, pp. 72-3)

A incerteza das origens mitológicas fundadas na tradição bíblica narrada pelos cronistas é evidenciada na exposição dos múltiplos povos que habitaram os domínios geográficos de Portugal ao longo do tempo, como os Túrdulos, Belles, Lusos, Suevos, Romanos, Godos e Mouros (Idem. p. 2).. A crítica à concepção bíblico-mitológica, segue-se, nesse capítulo introdutório, um esforço de sistematização filosófica que expõe as causas da ascensão e queda de Portugal. Se, por um lado, “[...] entre as Nações Modernas, a portuguesa é a que mais se ilustrou por uma larga série de tempos”, por outro, o “Reino veio a decair desde que por forças de armas se reduziu à província da Espanha” (Idem, p. 4). Para entender a particularidade dos progressos e decadência de Portugal são realizados breves esboços geográficos sobre as províncias do reino, análises quantitativas sobre as produções agrícolas, comerciais, industriais e rendimentos do erário público; atuação do governo, do clero e da Inquisição, concluindo com um tópico intitulado Do caráter nacional.

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No geral, nesse capítulo nos é apresentada a imagem de um reino decadente, que somente após o ministério do Marquês de Pombal passou a ter uma relativa independência econômica das nações estrangeiras, já que os “benefícios” que este trouxe à pátria tornam desculpável o “despotismo com que governou” (Idem, p. 21). A baixa produção agrícola, a diminuição da população, o desaparecimento das artes, o decréscimo do erário público e o declínio do “gênio militar” são apontados como as causas da “inércia da metrópole” no século XVIII, sendo que esses efeitos negativos da improdutividade se fizeram sentir até nas “fertilíssimas terras” do Brasil (Idem, ibidem). Esse estado catastrófico foi explicado como provocado pela dependência do comércio com a Inglaterra. Em contrapartida, a atuação política do Marquês de Pombal figura como decisiva para uma maior autonomia do comércio com relação à Inglaterra e para a dinamização da economia. Nesse ponto, o texto destaca como as medidas políticas de Pombal estavam em consonância com os ideais das nações civilizadas, o que podia ser constatado até mesmo na administração colonial, especialmente com relação ao Brasil (Idem, pp. 23-4). Contudo, se, nesse caso particular, Portugal é colocado como um modelo para “as demais nações civilizadas”, a atuação de Pombal não foi capaz de fazer o reino superar os entraves de um “exemplo inaudito de tanta pobreza Nacional” (Idem, p. 30). Os “sábios regulamentos” do ministro teriam permitido a superação das dificuldades do país caso não sobreviesse a Portugal “a terrível catástrofe de 1755” com o terremoto (Idem, p. 31). Essa caracterização, em grande medida negativa, encerra-se com o tópico Do Caráter Nacional, no qual os portugueses são caracterizados a partir de uma anedota: Ainda que os portugueses são havidos por mais laboriosos, que seus vizinhos, e mais inteligentes da navegação e do comércio, nem por isto deixou Lord Tirawleis de dizer por eles engraçadamente ‘E que se há de esperar de uma Nação, da qual a metade espera pelo Messias, e outra metade por El Rei D. Sebastião que morreu há 200 anos?’ Mas taxe-se embora de frívola esta lembrança. Se porém é verdade, que os portugueses se avantajaram aos espanhóis, no que toca à navegação e ao comércio; tão bem parece que ficaram muito a quem deles, ao menos por muito tempo, e ainda hoje, no

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que respeita à constituição e disciplina militar, prescindindo-se do valor (Idem, pp. 38-9).

Ora, mesmo sendo o relato do Lord Tirawleis concebido como uma frívola lembrança, pode-se compreender que esta foi tida como instrutiva para a verificação da decadência de Portugal, pois se os portugueses são tidos como mais “laboriosos” que os espanhóis no que concerne às atividades comerciais e à navegação, tal superioridade não pode ser constatada a respeito da virtude militar, perdida em meio às expectativas supersticiosas sobre o retorno do Messias ou do rei D. Sebastião. Sendo assim, a caracterização do Lord Tirawleis, apesar de extremamente cáustica, guardava em si conclusões que não podiam ser dispensadas na análise do estado do reino, pois o declínio de Portugal e o descompasso com as demais nações se relacionavam à natureza supersticiosa do seu povo. Morais Silva não se manifestou perante essas críticas ao estado presente de Portugal, no entanto, quando as críticas contidas no capítulo introdutório confrontaram as instituições do reino e a origem absoluta do poder real, foram prontamente rebatidas. Com relação à Inquisição, o original francês afirma ser “mais temida neste reino do que na Espanha”, sendo a responsável por muito tempo pela “censura dos livros, que se haviam de imprimir”. Esse controle teria sido decisivo para que o povo permanecesse ignorante, pois “não liam senão vidas de santos sem critério, histórias de milagres obrados com relíquias, e, talvez, alguns contos de fadas e máximas tendentes a acrescentar o predomínio dos ministros da Igreja no ânimo dos povos” (Idem, pp. 36-7). É desenvolvido, logo em seguida, que esse estado de ignorância teria sido confrontado pelo Marquês de Pombal, que tanto reconfigurou o regimento da censura de livros, ampliando a atuação de magistrados seculares e restringindo o protagonismo da Inquisição, quanto proibiu a cerimônia dos Autos de Fé e a condenação de réus sem a aprovação do rei (Idem, 37-8). Mesmo sendo feita esta ressalva no capítulo introdutório traduzido da versão francesa, Morais Silva destacou, no prefácio, como o Tribunal da Inquisição, em sua configuração presente, não significava um obstáculo ao desenvolvimento do reino. Essa defesa do Tribunal fazia-se necessária, em sua opinião, pois a “inteireza do original” foi conservada, sendo “transladados

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alguns lugares, em que os autores desta obra maltratam o Régio Tribunal”. Assim, o tradutor expõe que as penas desta instituição foram aplicadas com “brandura e humanidade” nos reinados de D. José I e D. Maria I, caracterizando “a regularidade, com que naquele reto Tribunal se procede, principalmente em virtude do novo Regimento” (Idem, pp. I-II). Morais Silva procurou demonstrar como a Inquisição, ao invés de se opor ao avanço de Portugal, atuava na reabilitação dos réus de lesa majestade, que em outras nações eram condenados à morte. O tradutor ressalta ainda a importância histórica desta instituição para o reino, ao demonstrar a sua atuação decisiva para a manutenção da unidade da monarquia nos “calamitosos tempos da pretensa Reformação”, no qual inúmeras guerras de religião se desencadearam pela Europa. Dessa forma, a introdução da Inquisição “teve efeitos melhores, do que foram prejudiciais algumas imperfeições, que não deixam de entrar em todas as obras humanas” (Idem, p. 3). Segundo Morais Silva, a natureza humana estava sujeita ao erro, não podendo ser poupado o Tribunal da Inquisição de críticas, contudo, ao serem descobertos os equívocos desta instituição, os mesmos foram corrigidos, não podendo haver dúvidas “[d]o quanto a bondade e clemência da nossa Augusta e Piíssima Rainha têm influído na brandura e humanidade com que hoje se procede nas Inquisições deste Reino” (Idem, Ibidem). Dessa forma, o tradutor defende a Inquisição, expondo que no passado ela esteve encerrada em excessos e barbaridades análogas às cometidas em outras nações da Europa, e que, no presente, ela era uma prova da capacidade dos ilustrados monarcas portugueses de realizarem reformas e superarem os entraves do progresso do reino. Nesse sentido, o autor reitera, em nota, o que foi afirmado no prefácio: A Inquisição por atalhar as funestíssimas consequências dos erros de Lutero, Calvino, e outros, houve-se com toda a severidade na Censura dos Livros, e bem se sabe que por ocasião daquelas disputas se averiguaram muitas verdades, e ilustraram outras, mas eram trigo com joio, isto é, acompanhadas de erros, ou insertas em maus livros. Houve-se talvez com nímio rigor como foi proibindo as Comédias de Sá de Miranda, Antonio Ferreira, etc, etc. que hoje correm, e então foram representadas ante o Rei

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D. João o III., e o Cardeal Rei D. Henrique Inquisidor Geral: talvez foi muito indulgente com livros de pias credulidades, ou antes, que inculcam coisas análogas: mas era defeito dos tempos. Depois, quando começaram a raiar as luzes mais puras neste Reino, e a haver na Inquisição quem abrisse a elas os olhos, mudou-se a Censura para o Régio Tribunal da Mesa Censória. Em fim considere-se o leitor o melindre, com que se hão de fazer as mudanças para melhor na opinião do povo, e povo de todas as classes, que crê porque crê. Todas as inovações perspectivas tem levado o mesmo caminho, e não há nenhuma, em que hoje senão pasme das imperfeições de há 20 anos atrás. (Idem, 36-7)

Os excessos da Inquisição deveriam ser julgados tendo em vista o contexto histórico específico nos quais foram perpetrados. No entanto, a recensão de Morais Silva sugere um plano de concordância com as críticas enunciadas na síntese filosófica francesa, já que, para este letrado, mesmo no século XVIII, com o “raiar [d]as luzes mais puras neste Reino” e o progresso dos últimos 20 anos, podia-se sentir os efeitos da atuação histórica da instituição, tendo em vista a exacerbada credulidade do povo. As enunciações de Morais Silva transitam em uma linha tênue entre a contextualização do passado e o seu julgamento, segundo seus efeitos sobre o presente.17 Por um lado, prenhe de progresso, por outro, imerso na ignorância, o que demonstrava bem as incertezas quanto ao significado dessa distância histórica entre o presente e o passado do reino. Apesar da tonalidade ambivalente da sua defesa com relação à atuação histórica da Inquisição, as enunciações do letrado podem ser compreendidas como engajadas na dissolução das dúvidas sobre o potencial da monarquia na promoção do progresso contemporâneo do reino. Dessa forma, as notas e o prefácio do tradutor vinham ao encontro dos anseios historiográficos da 17 

Para uma análise das práticas de leitura no contexto do reformismo ilustrado que

emergiram enredadas a uma nova compreensão da história, por sua vez capaz de separar presente e passado e contestar as representações tradicionais Cf. Villalta, Luis Carlos. “Libertine readings in Portugal and Brazil (c. 1746-1807)”. In: Abreu, Marcia & Deacto, 2014, pp. 103-111.

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Academia Real de Ciências de Lisboa, que possibilitou a impressão da obra, uma vez que visava tanto a atualização de Portugal com relação aos avanços literários que aconteciam em outras nações, em especial Grã-Bretanha e França, quanto afirmar a importância das instituições do reino através de uma perspectiva reformista ilustrada.18 Em estudos recentes, Marcia Abreu explorou casos nos quais os órgãos da censura em Portugal nos finais do século XVIII e início do XIX publicaram obras escritas por autores estrangeiros que veiculavam enunciações políticas, religiosas e morais subversivas aos padrões da monarquia, anotadas pelos censores responsáveis pela correção das opiniões em prefácios e notas. Como árbitros da cultura, os censores confrontavam a pluralidade das opiniões corrosivas ratificando a razão de Estado.19 Como visto acima, as constantes reedições dessa História de Portugal nas primeiras décadas do século XIX demonstram que as enunciações de Morais Silva, no prefácio e nas notas, foram interpretadas como uma defesa da Inquisição e das instituições do reino por seus contemporâneos.20 José Carlos Pinto de Souza, na obra Biblioteca Histórica de Portugal e seus Domínios Ultramarinos (1801), expõe como a tradução da segunda edição francesa da Historie Universelle contém inúmeras informações equivocadas sobre o reino de Portugal, cujo objetivo seria sua depreciação, “as quais previne o nosso douto Tradutor os leitores com as suas sábias notas” (Pinto de Souza 1801, p. 394). O autor destaca que na edição francesa foi inserido o capítulo Description du Royaume de Portugal, “cujo autor é de um caráter análogo ao da obra État présent du Royaume de Portugal acima anunciada, se 18 

Para um aprofundamento sobre a relação entre as práticas historiográficas e as po-

líticas do reformismo ilustrado no âmbito da Academia Real de Ciências de Lisboa Cf. Silva 2006 e Silva 2010. 19 

Abreu 2007, pp. 1-12. Para o aprofundamento nesta questão Cf. Villalta 2006, pp.

111-134. 20 

Em 1806, outras denúncias foram feitas ao Santo Ofício a propósito da irreligiosi-

dade de Moraes Silva, agora residindo na freguesia de Moribeca, na província de Pernambuco. No entanto, as denúncias foram arquivadas pela Inquisição. Cf. Baião 1924, pp. 101-122; Cf. Menegaz 2007, pp. 337-341. Cf. Barata 2006, pp. 31-80.

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não é o mesmo, como se manifesta das notícias contidas nele” (Idem, 1801, p. 392). Pinto de Souza dedicou alguns parágrafos para combater as enunciações veiculadas no capítulo introdutório da obra traduzida por Morais Silva, sendo uma das passagens abordadas a anedota de Lord Tirawleis (Idem 1801, p. 393). Pinto de Souza inicia as informações sobre a Description, publicada nos anos de 1766 e 1775, identificando seu autor: É fama pública que o seu autor é o famoso e bem conhecido Mr. Dumouriez, que na detestável revolução de França em 1792 seguiu o partido dos Rebeldes; e depois sendo general deles nos Países Baixos contra a Holanda, havendo sido pelos ditos mandado prender, fugiu para a Alemanha furtando a Caixa Militar. Antes do acontecimento da sobredita revolução, também esteve nesta corte, a qual pelo conhecer lhe não concedeu o que lhe pretendia, por cuja causa se ausentou dela descontente; e desorientado ou inebriado arrojou-se, com proterva temeridade, a escrever a Obra acima enunciada para deprimir Portugal, e a escrevê-la até com manifesta ignorância crassa da História do mesmo, como demonstrativamente provam as suas seguintes notícias (Idem, 1801, pp. 346-7).

Charles-François du Périer Dumouriez  (1739-1823) foi um general do exército revolucionário durante a Revolução Francesa, da qual viria a desertar, tornando-se partidário da monarquia e conselheiro do governo britânico durante o reinado de Napoleão (Duckettn 1854, pp. 161-162). Pinto de Souza o caracteriza como um “imprudente impostor” e refuta muitas das suas enunciações sobre Portugal em diversas obras para além do État présent du Royaume de Portugal. Neste verbete, o autor não somente afirma, sem deixar dúvidas para o leitor, que o capítulo introdutório da Historie Universelle foi de autoria de Dumouriez, como também atribui ser sua responsabilidade os erros de erudição e os preconceitos veiculados ao longo dos capítulos da edição francesa traduzida por Morais Silva (Pinto de Souza 1801, pp. 346358). Ora, o que foi afirmado peremptoriamente no tocante à autoria da obra neste verbete foi colocado em dúvida posteriormente na entrada sobre a Historie Universelle. No entanto, torna-se importante destacar que Pinto de

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Souza, de forma geral, depreciou o caráter da obra traduzida e ressaltou as “sábias notas” do “douto Tradutor”. Apesar de Pinto de Souza não se demonstrar plenamente certificado da proveniência do capítulo introdutório da Historie Universelle, supostamente escrito por Dumouriez, é inegável a semelhança da estruturação da obra do militar francês e a seguida na Description du Royaume de Portugal. Ambos os textos iniciam pela descrição geográfica de Portugal e objetivam abarcar aspectos da economia colonial, do estado militar do reino, da aplicação das leis e da justiça, da atuação da Inquisição, procurando definir o “caractère national” através da descrição dos costumes e maneiras dos povos. Deve-se considerar que na versão portuguesa de Description du Royaume de Portugal esses temas são desenvolvidos em 42 páginas, enquanto a obra de Dumouriez contém 304 (Dumouriez 1775). A organização dos textos e as apreciações de Pinto de Souza são indícios de que o capítulo introdutório traduzido por Morais Silva era uma compilação inspirada na obra de Dumouriez. Todavia, o fundamental a ser ressaltado aqui em um contexto no qual a prática compilatória tensionava com a plena consolidação da subjetividade autoral, é a impossibilidade da recepção pacífica da História de Portugal traduzida por Morais Silva em meio ao público letrado português. As disputas posteriores entre Agostinho de Macedo e Hipólito da Costa, e as apreciações de Pinto de Souza, evidenciam como a experiência da história de Portugal estava enredada em tensões que dificilmente poderiam ser harmonizadas por um letrado comprometido com a escrita da história do reino. Frente à necessidade de atualização perante os progressos literários e socioeconômicos de outras nações e a afirmação da singularidade das instituições portuguesas, as políticas reformistas em vigor no mundo luso-brasileiro viabilizaram a circulação de perspectivas historiográficas radicais ilustradas. Apesar de “corrigidas” pela razão de Estado em prefácios e notas, essas narrativas de reforma confrontaram a pretensa atemporalidade dessa razão, o seu estatuto de juíza moral, ao expor os leitores a uma pluralidade de visões sobre os mesmos processos e eventos.

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*** Ao reunir, traduzir e compilar as diversas histórias para forjar as histórias nacionais e, no limite, uma história universal que coincidia com o próprio globo, projetos como o da Universal History davam concretude e realidade à experiência moderna da história como um singular coletivo. A prática compilatória, permitida por um modelo de autoria ainda difuso, colaboraria para o aprofundamento da experiência moderna e, de modo ambíguo, para a emergência de novos padrões historiográficos e autorais que depois colidiriam com a prática compilatória. Na escrita da história, a compilação atendia a demandas por democratização do conhecimento sobre o passado, mas, da forma como praticada na Universal History, pressupunha certo horizonte estável em sua representação. Acreditava-se que uma só história poderia surgir da colaboração de diversos autores, e que essa mesma história seria simplesmente continuada em direção ao presente, com novos capítulos e seções. E, de fato, foi isso o que aconteceu ao longo de diferentes edições da coleção ou das histórias nacionais destacadas do conjunto, como o caso da História de Portugal. No início do século XIX, teremos ainda mais duas edições ou continuações dessa História de Portugal extraída da matriz produzida por Campbell. Uma organizada por José Agostinho de Macedo, em 1802, na qual acrescentou um capítulo sobre o reinado de Dona Maria I, e outra, em 1809, editada por Hipólito José da Costa. Na edição de Hipólito, pela primeira vez, no lugar de simplesmente continuar expandindo o projeto, o editor sentiu a necessidade de reescrever a parte dedicada ao reinado de Dona Maria I, substituindo o capítulo de Agostinho de Macedo por um de sua própria autoria. Esse episódio talvez seja o documento mais evidente de como a crise da representação e as transformações na experiência da história problematizariam esse modelo de escrita, levando tanto a uma nova concepção de autoria, quanto à necessidade moderna de contínua reescrita da história. No prefácio, iniciando a primeira polêmica, Hipólito justifica a atitude inesperada: A Grande aceitação que tivera este resumo da História de Portugal, fez com que se desejasse, nesta nova edição, um aditamento, que compreen-

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desse a história do Reinado de D. Maria I, que Deus guarde; incumbiu-se-me esta tarefa; e não podendo eu fazer resumo de uma história que ainda ninguém havia escrito, julguei que devia contentar-me, com fazer um esboço, que se assemelhasse ao resumo precedente. Haviam já tentado isto na edição de Lisboa de 1802, mas eu julguei que devia seguir outra vereda, e tocar muitos fatos, que naquele compêndio se omitiram; dando a outros uma forma algum tanto diferente do que ali se acha. O Público decidirá, qual destes epitomes se aproxima mais ao verdadeiro e ao imparcial; os mesmos fatos tocam diferentemente, diferentes pessoas, e cada um os refere, segundo a impressão, que lhe fazem (Costa 1809).

Vários temas que serão mobilizados à frente são reunidos neste pequeno fragmento. A diversidade dos pontos de vista devido à velocidade crescente das transformações que tornavam a história do presente um campo de batalhas, as incertezas quanto à capacidade do escritor em manter a imparcialidade e os leitores ou público como tribunal decisivo. Seja no presente ou na posteridade, o leitor é peça central no juízo das diferentes versões da história que agora parecem ser inevitáveis. Nesse cenário, a autoria passou a ser um elemento constitutivo da própria representação, já que esse ponto de vista único alterava as impressões acerca dos mesmos fatos.

B) O TACITISMO COMO LINGUAGEM POLÍTICO-HISTORIOGRÁFICA (1808-1819): ALGUNS TEMAS. O tacitismo teve suas primeiras formulações21 em 1572 quando Justus Lipsius ressaltou sua validade para o entendimento do comportamento político e, em 1581, Carolus Pachalius publicou o primeiro comentário político sobre a obra do historiador latino Tácito.22 O tacitismo surgiu nesse contexto e con21  Esta questão foi abordada com maior detalhamento em Varella, Araujo, 2009, passim. 22 

Isso não quer dizer que mesmo antes não possamos encontrar temas de leitura,

especialmente da Germânia, que se agregariam ao tacitismo, como aponta Kelley (1978, pp. 416-417).

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solidou-se como forma de análise das obras taciteanas em 1590, caracterizando-se, assim, pela utilização da linguagem taciteana e dos escritos históricos de Tácito na explicação do comportamento político e, consequentemente, na arte de desvendar o que está sob as aparências. O objetivo principal do “tacitismo era fornecer indiretamente a análise da situação política contemporânea” (Momigliano 2004,157 e 183). A utilização das obras de Tácito gerou duas vertentes de interpretação distintas. A primeira delas foi construída através da Germânia, obra que trata dos costumes do povo germano e conta com trechos comparativos entre esses e os romanos. (Idem, p. 157) Os alemães buscaram na descrição de Tácito, que nunca foi à Germânia, a origem de sua liberdade e, mais que isso, a “reinvidicação de independência e talvez de superioridade em relação às Romas imperial e papal”. (Idem, p. 173) As obras históricas, principalmente os Anais, serviram para revelar os segredos do império, ou seja, foram utilizadas como reveladoras do comportamento político e da ação governamental. (Idem, p. 157) O relato da tirania imperial e de suas consequências feito nas Histórias e nos Anais foi utilizado de forma exemplar para entender o presente.23 Como argumenta Arnaldo Momigliano, “o verdadeiro objetivo de Tácito era desmascarar o governo imperial, enquanto fundado na corrupção, hipocrisia e crueldade”. (Idem, p. 167) Nessa perspectiva, o recurso aos ensinamentos de Tácito foi entendido de duas formas distintas. Algumas vezes ele era tido como o grande vilão que apoiava os déspotas e outras como o justiceiro que mostrava as tiranias imperiais e os perigos de um governo baseado no medo. No mundo de língua portuguesa, podemos verificar um sensível deslocamento da avaliação da obra de Tácito, particularmente dos Anais. Até a primeira metade do século XVIII vemos predominar a avaliação que podemos chamar de analógica, por enfatizar os elementos de estilo e composição, mais compatíveis com uma apreciação retórica, talvez fruto de um certo interdito ao “maquiavelismo” que muitos autores identificavam em sua obra. Ao revelar os segredos do poder, os seus livros poderiam ser vistos como manuais de

23 

Para uma análise geral dos significados da obra historiográfica de Tácito, ver Varella

(2008, passim).

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tirania.24 Sumariando as ambiguidades da recepção de Tácito na Península, escreve Isabel Almeida: Lembremos Saavedra Fajardo, que se pronunciou contra a divulgação indiscriminada de Tácito, reservando o nulla obstat para o acesso de público erudito; lembremos Antonio de Herrera, dividido entre a apologia e o ataque; lembremos como a Companhia de Jesus recuou no tocante à aceitação que concedera ao autor latino, e como a fulcral Ratio Studiorum de 1598, ostensivamente ciceroniana, reviu o corpus paradigmático preconizado doze anos atrás, silenciando Cornélio Tácito. (Almeida 2009, p. 64)

A exclusão de Tácito da Ratio jesuítica ajuda a explicar o crescente interesse por este autor a partir das reformas pombalinas. O elogio da concisão retórica era o mesmo, mas outro Tácito e outra retórica começariam a emergir. Um sinal tardio dessa renovação são as diversas traduções, como o renovado e afamado Manual de Retórica e Belas Letras do escocês Hugh Blair, com uma grande seção dedicada ao modo de se escrever e compreender a história. Lamentando que muitos dos historiadores antigos haviam colocado mais energia na beleza e estilo da narrativa do que na exposição das causas das grandes revoluções, Blair aponta Tucídides, Políbio e Tácito como as três grandes exceções: Tucídides es grave, inteligente, y juicioso; y siempre cuidadoso de dar una idea exacta de las operaciones que refiere, y de manifestar las ventajas ó perjuicios de cualquier plan que se proponía, y de cualquier medida que se tomaba. Polibio se distingue por sus grandes conocimientos en política, su penetración en los sistemas de mayor interés, y su profunda y clara instrucción en los negocios militares. Tácito sobresale por el grande conocimiento del corazon humano: es sensible y fino en sumo grado: y da mucha instruccion en las materias políticas, pero aun mas todavía sobre la naturaleza humana. (Blair 1804, p. 229) 24 

Para a recepção do tacitismo na península ibérica no contexto de um “pragmatismo

católico”, ver Oliveira (2006, p. 106).

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Para os homens que vivenciaram a crise do que chamavam de “Antigo Sistema Colonial” no mundo luso-brasileiro, as referências a Tácito eram razoavelmente comuns e podem ser organizadas em alguns temas mais recorrentes que juntos formam algo que podemos caracterizar como uma linguagem “tacitista”. Dentre esses temas, destacaremos alguns, a saber: a) a descoberta da tirania; b) os Arcana Imperii; c) a relação entre censura e decadência político-intelectual; d) os fundamentos do constitucionalismo entre os Germanos; e) o projeto de uma escrita da história sine ira et studio; e f) a escrita da história como ação política indireta. Faremos, a seguir, uma breve descrição de cada um desses temas tacitistas em uso nos autores luso-brasileiros no começo do século XIX.

A DESCOBERTA DA TIRANIA E A NATUREZA HUMANA Se nos manuais de retórica mais tradicionais Tácito é sempre elogiado pela concisão da expressão e capacidade de sintetizar grandes quadros em frases lapidares,25 a tradição tacitista de comentário político privilegiou o Tácito leitor da hipocrisia, cronista do poder desmesurado dos imperadores, do isolamento e manipulação do poder por libertos. O tema da escravidão surge aqui como uma descrição do estado do povo romano sob o poder dos maus imperadores. O Tácito leitor da natureza humana, capaz de revelar o caráter de um personagem pelos pequenos gestos será cada vez mais evocado por uma opinião pública que já não aceitava a ideia de que a política era uma prerrogativa real. Chamado a ajuizar sobre o comportamento político dos homens públicos, esse auditório precisava adquirir a capacidade de avaliar o que estava por trás das aparências ou oculto pelos segredos do estado. O que no século XVII poderia ser visto como um manual para o uso do príncipe era agora “democratizado” como uma “tecnologia” social necessária para o homem comum chamado à

25  Também José Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, faria coro a essa vetusta tradição ao afirmar “Não sou Tácito, que (segundo Montesquieu diz) abreviava tudo, porque via tudo [...]” (Lisboa 1825-1830, p. 22)

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vida pública. A experiência das cortes e assembleias e o debate pela imprensa foram os ambientes privilegiados dessas experiências de anatomia moral.

OS ARCANA IMPERII Inspirado em uma célebre passagem em que Tácito reflete sobre as dificuldades de escrever a história do principado, uma vez que os assuntos importantes não eram mais discutidos no espaço público do Senado, mas no interior da domus imperial, muitos leitores de Tácito vão associá-lo ao projeto de uma escrita da história contemporânea que pudesse revelar, aos olhos da opinião pública, os segredos do estado, as intrigas de gabinete, os malfeitos dos funcionários que procuravam ocultar suas ações. Esse tema será comum no periodismo da época, que não poucas vezes vai assumir a função de uma espécie de história do tempo presente, estabelecendo os fatos como os anais na antiga Roma republicana que idealizavam em uma leitura muito pragmática de Tácito. Os Ingleses lamentam a sua perda de caráter; aos portugueses pertence deplorar as más consequências daquela desventurada convenção, pelo que toca a Portugal; e a mim, que escrevo em Inglaterra as memórias do tempo, convém mostrar o modo porque nisto se portaram as pessoas públicas aqui empregadas pela Nação Portuguesa [...]. (Costa 1808, p. 318)

Alguns autores não se furtavam a inverter o significado da fórmula tacitista, como é o caso do bem mais conservador Visconde de Cairu, que ao tentar justificar a necessidade de o historiador contemporâneo preservar os interesses do Estado escreveu: “Ainda que soubesse dos segredos do Gabinete no curso dos Sucessos (o que está fora do meu alcance) devia conformar-me à regra de Tácito – ne revelaret arcana imperii” (Lisboa 1824-1839, vol. I, p. V). Hipólito José da Costa encontrará na tradição tacitista, como muitos de seus contemporâneos – a exemplo de seu rival José Liberato Freire de Carvalho –, os elementos da montagem de uma metanarrativa para a história de Portugal que estabelecia uma relação de causa e efeito entre despotismo religioso e decadência das letras e ciências. Em suas palavras:

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[...] os Eclesiásticos para tornar a chegar ao estado de pisar impunemente o Soberano, como de antes fizeram, precisam que o reino torne atrás ao estado de ignorância, em que então se achava, o que só pode conseguir-se, pondo entraves à propagação das ciências, debaixo do pretexto de censuras, e outros motivos especiosos, que nunca faltaram aos homens mal intencionados para fazer monopólio das ciências, e deixar a nação no estado de ignorância, que foi tantas vezes em Portugal a única causa dos desgostos, que os Papas causaram aos Soberanos. (Costa 1809, p. 532)

A defesa da liberdade de expressão e favorecimento de uma república das letras autônoma encontrava em diversos temas da obra taciteana elemento de reforço. A defesa das letras era a defesa da opinião pública como única esfera capaz de impedir que grupos privados, como os libertos em Roma e os Jesuítas em Portugal, utilizassem do poder do rei para alcançar seus objetivos particulares. No artigo Reflexões sobre o comportamento dos Portugueses, de 1808, Hipólito já reflete sobre o tema: [...] o Soberano terá vassalos fiéis, esforçados, e tão prontos a derramar seu sangue em defesa do Monarca, como sempre se observou nos antigos tempos; a Nação é a mesma, mas para obrar do mesmo modo conservem-lhe seus foros antigos: exemplo a Espanha; outra vez repito, exemplo a Espanha, obrando como Nação, livre das intrigas ocultas de um Gabinete, onde com a capa do bem público se engana o Soberano, e se guia a sua ruína. A discussão dos negócios públicos nas Cortes foi sempre em Portugal o único meio de poderem os Reis saber a verdade, que eles nunca podem esperar de ouvir da boca de cortesãos corrompidos, cujo interesse é agradar ao Soberano seja ou não seja à custa da verdade. (Costa 1808a, p. 142-3)

O absolutismo do poder real não seria incompatível com a existência de cortes e parlamentos; a sua degeneração em despotismo aconteceria quando os aduladores e ambiciosos insuflam no monarca a ideia de um poder ilimitado. Os reis portugueses estariam mais vulneráveis a esses procedimentos pelo fato de que, diferente da Inglaterra, onde o rei teria principiado com poder absoluto e somente depois foi sendo paulatinamente limitado por leis

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e instituições, o monarca luso “[...] em princípio dependia dos povos em muitos casos, mas desta dependência gradualmente se isentou” (Costa 1810, p. 83). A adulação encontra terreno quando o povo perde sua unidade de propósito e divide-se em múltiplos partidos. Esse elemento será recordado por ocasião da polêmica com o Correio do Orinoco a propósito da revolução de Pernambuco: “Dos mesmos Romanos, diz Tácito (Hist 1. 1) que vistas as dissensões do povo, não tinha a pátria, no tempo de Augusto, outro remédio senão escolher o Governo de um só homem” (Costa 1819, p. 269). Novamente José da Silva Lisboa mobilizará o mesmo tema, mas dessa vez já com uma perspectiva mais liberal, para legitimar o reinado de Pedro I, também recorreria ao repertório tacitista para criticar os efeitos nefastos da censura prévia sobre a civilização dos povos e a natureza dos governos: “O político historiador Tácito bem notou a inutilidade de tal expediente, ainda nos despóticos reinados dos Imperadores Romanos. O risco da proibição forçava procurá-los e escondê-los; depois a licença de os possuir fazia que caíssem no esquecimento” (Lisboa 1824-1830, vol 2, pp. 93-4). A partir das críticas aos revolucionários franceses que tentariam, a partir de abstrações, reformar a sociedade, reforçou-se, em toda a Europa, a busca das origens históricas dos sistemas políticos. No caso luso-brasileiro não foi diferente. Os críticos da monarquia absolutista, fundados em teorias já disponíveis no reformismo ilustrado, buscavam demonstrar que o modelo de um rei centralizador que atribuíam a Pombal era um desvio da evolução histórica de Portugal. Desde moderados que procuravam distinguir entre absolutismo e despotismo, até liberais mais avançados, todos recorriam a uma famosa passagem da Germânia para provar que os primeiros portugueses se reuniam em Corte e o povo dividia as responsabilidades de mando com o rei. Hipólito José da Costa procurou escrever uma História filosófica ou hipotética da liberdade em Portugal que pressupunha que a antiga liberdade dos lusitanos se perdeu devido à introdução da Inquisição, a falta de patriotismo de alguns que preferiam “um repouso de escravos aos incômodos e perigos necessários para se obter uma liberdade bem entendida” (Costa 1809, p. 117). Para Hipólito, como no caso britânico, foram os povos do Norte, entendam-se os germanos, que fundaram a monarquia portuguesa após invadirem o Império Romano (Idem, p. 119).

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Na escrita dessa história da sociedade civil em Portugal, o historiador não poderia contar com documentos autênticos e “positivos”, por isso deveria recorrer ao método hipotético, utilizando-se da analogia e da comparação com os costumes desses povos fundadores “[...] que havendo passado o Reno, se apoderaram de toda a Europa”. A todo o momento uma visão idílica opõe os jovens e livres germanos aos amolecidos e despóticos romanos, como na seguinte passagem, comparando a instituição da escravidão: “Os escravos entre os germanos gozavam de mais suave condição do que entre os romanos, pelo testemunho do mesmo Tácito; não podendo os senhores exercitar para com eles o direito de vida e de morte, que tinham os Romanos”. (Costa 1819, p. 153) Nessa história hipotética fundada na comparação com os povos do Norte, Hipólito encontrou argumentos tanto para condenar o despotismo, quanto para defender a natureza absoluta do poder do rei em Portugal. Como muitos de sua geração, as causas da decadência estavam ligadas ao enfraquecimento do poder do rei em favorecimento de nobres amolecidos ou religiosos fanáticos e gananciosos. No entanto, esse poder absoluto não era incompatível com a existência e funcionamento de cortes, como ele acredita ter descoberto lendo a Germânia, citada como fonte de autoridade logo após o seguinte parágrafo: A primeira ideia de Cortes, e de Parlamento inquestionavelmente se deduz das Nações do Norte da Europa, que se estabeleceram em Portugal, e em Inglaterra. Em nenhuma daquelas nações costumavam os povos entregar ao seu primeiro magistrado, chefe, ou Soberano, todo o poder de governar, sem reserva ou restrição. Era costume de todos estes povos congregar-se em assembleias, onde se discutiam, e decidiam os negócios de maior importância para a nação; não se confiando jamais, nestes casos, de um só homem, o qual pode suceder, que obre contra o interesse dos povos e venha o mal, a ser ao depois irremediável. (Costa 1809, p. 623)26

26 

A citação é a seguinte: “De minoribus rebus príncipes consultant, de majoribus amnes.

Tacit. De morib. Germ. C. 11”.

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Os exemplos desse uso “constitucional” da obra de Tácito poderiam ser multiplicados. Por ora, fiquemos com mais um exemplo, tirado das atas do debate parlamentar acerca da constituição em Portugal em 1821: Em quanto à segunda, convenho em que as nossas leis fundamentais não falam em Cortes; mas devo observar que o nosso direito público não foi fundido de um só jacto, nem derivado de uma só fonte. Do direito consuetudinário nos vieram estas grandes assembleias da nação chamadas Cortes; e se acreditarmos um ilustre autor português, já estas assembleias eram conhecidas dos antigos lusitanos, antes da invasão dos povos do norte; a quem outro as atribui, fiado – no testemunho de Tácito, que diz – de minoribus rebus principes consultant; de majoribus omites. (Carmo 1878, p.198)

UMA HISTÓRIA “SINE IRA ET STUDIO” A necessidade de imparcialidade e isenção por parte do historiador é um tema tão antigo quanto a própria historiografia. Ele apresenta desafios que são, ao mesmo tempo, de ordem ético-política e epistemológica. Como um dos primeiros a revelar a força do poder e dos interesses sobre a escrita da história, Tácito será evocado por um contexto de vida política onde os cidadãos disputavam com o Estado, e entre si, projetos para o futuro. Frente à luta de interesses, que não poderiam ainda ser admitidos enquanto tal, era preciso reforçar o valor ético e epistemológico de suas próprias posições. Assim, ao evocar a máxima taciteana sine ira et studio buscavam autoridade discursiva em um contexto de crise das formas tradicionais de autoridade: [...] o meu intento é informar os Portugueses presentes, e vindouros, do modo porque os servem os homens públicos, que eles empregam, conservando porém a minha costumada imparcialidade. Mihi nec Galba, nec Otto, nec Vitelius /Injuria aut benefio cogniti. Tácito, Histórias. (Costa 1808, p. 319).27 27 

O trecho citado em latim pode ser assim traduzido: “Nem Galba, nem Oton ou

Vitélio fizeram-me injúria ou benefício”.

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Na medida em que o passado já não lançava mais luz sobre o futuro, a escrita da história contemporânea adquiria maior centralidade, mas com ela as conhecidas dificuldades de produzir autoridade para um relato escrito no calor da hora. Escrevendo sobre imperadores já mortos, Tácito criou a noção de uma história vingadora, juíza da posteridade, mas o fazia em detrimento da possibilidade de escrever a história de seu próprio tempo, ainda marcado pelo poder do imperador. No contexto da crise da Independência, a consciência do caráter transitório do tempo reforçava a necessidade de registrar para o futuro os “anais” a partir do qual os homens e o tempo poderiam ser julgados.28 Vencidos e vencedores procuravam garantir o fatal juízo da posteridade, procurando pré-determinar o significado da história que estavam fazendo e sofrendo. Frente aos limites do interesse, multiplicavam-se argumentos de distanciamento: ser estrangeiro, ser capaz de penetrar no significado filosófico dos eventos, ser patriota e não possuir interesses privados, entre outros.

28 

Para o tema na historiografia brasileira no oitocentos, ver Guimarães 1995 e Ma-

leval 2015.

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CAPÍT ULO I I VA R I EDADE E E X PE R I ÊNCI AS DA H I STÓRIA NO BRASI L JOAN I NO

A) O FIM DO “ANTIGO SISTEMA” NAS NARRATIVAS ILUSTRADAS 1808 COMO MARCO DE ACELERAÇÃO Marco fundamental do fim do que os contemporâneos identificavam como “antigo sistema”, a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808, abre um período de inédita aceleração histórica no mundo luso-americano. Seus atores são unânimes em perceber o caráter memorável do acontecimento, que não apenas acentuaria a ideia de especificidade do continente americano no conjunto do império português, como lhe conferia uma nova dignidade histórica. O padre Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844) afirma ter iniciado neste ano suas Memórias para servir à história do reino do Brasil, publicadas em 1821, pois logo teria percebido que a chegada da Corte era um grande acontecimento, decidindo, desde então, registrar tudo que testemunhasse.1 A percepção de que nascia um novo império conferia ao presente funções de fundação mítica, capaz de orientar o olhar para o futuro em um momento carregado de profundas incertezas. Essa tentativa de sondar o futuro 1 

Essa visão sintética foi primeiro desenvolvida em parceria com João Paulo Garrido

Pimenta, cf. Araujo & Pimenta 2008.

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a partir do presente ficou registrada pela citação recorrente da afirmação de Leibniz, “o presente está prenhe de futuro”, utilizada como uma espécie de mantra pelos mais diversos atores políticos da época.2 Aos poucos se consolidava a experiência do presente como um momento de transição para um futuro que se procurava prognosticar: “como em todos os fenômenos da natureza é só pela acumulação de pequenos e insensíveis fenômenos homogêneos que se formam com o tempo essas comoções, que parecem um transtorno geral do Universo”. (Ferreira 1813-5, p. 60). A perspectiva do sistema leibniziano, que acreditava poder derivar o futuro da simples análise mecânica de elementos do presente, não escondia sua ambivalência. Era um esforço de reafirmar a capacidade de organizar as transformações com os olhos voltados ainda para o passado, mas também podia ser ressignificado como uma convocação a analisar o potencial transformador do presente. Também no Correio Braziliense, periódico editado em língua portuguesa em Londres entre 1808 e 1822, a transferência da Corte aparece como abertura de um novo tempo. Seu ativo editor, Hipólito José da Costa, recorreu a “narrativas ilustradas” para defender um tipo de emancipação da América sem rupturas através de um amadurecimento natural de sua relação com a Europa. No Correio, a versão religiosa da história é substituída pela possibilidade de obter orientação através da análise racional de leis históricas. As narrativas e macronarrativas ilustradas aparecem constantemente, sendo adaptadas de suas fontes inglesas e escocesas para a história do império português.3 O caráter especialmente histórico do tempo presente é constante2 

“A instrução não só regula a conduta do presente, senão ainda previne e providencia

a marcha do futuro. O presente está prenhe do porvir, diz Leibniz, e pode-se conhecer a conexão por observadores e profundos. As medidas e providências dos homens são proporcionais às suas vistas. O que é cego do futuro, tropeçará em mil obstáculos no caminho da vida». Revérbero Constitucional Fluminense n. XIII, Tomo I, 12/03/1822. p. 212 Apud Santos 2010, p.113. 3 

A categoria é aqui usada no sentido de Pocock (2005, p. 110). Ou seja, como a

integração de duas ou mais narrativas de eventos/processos históricos em um conjunto coerente. Por narrativas ilustradas entendemos os relatos que procuravam registrar os progressos de algum campo da atividade humana, sem ainda os reunirem um conceito

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mente sublinhado, justificando seu empenho em estabelecer a verdade, pois os jornais seriam os anais modernos, nos quais os historiadores, no futuro, retirariam seus fatos (Correio, I, 3, 1808, p.321). A história política “ilustrada” de inspiração clássica era o mais poderoso instrumento de interpretação do presente então disponível. Como ressaltado no capítulo anterior, os modelos clássicos eram profundamente complexificados por leituras tacitistas que conferiam novas funções à escrita da história, em especial a publicização dos segredos de Estado e a ampliação de uma esfera pública bem-informada (Correio, I, 3, pp. 318-9, 1808). No Correio, a história é orientadora moral, juíza e guardiã da posteridade, mas também fonte para uma reflexão filosófica capaz de revelar as vocações dos povos. Nesse último ponto, como dito anteriormente, é central a leitura ilustrada do historiador romano Tácito, em especial da Germânia, já que o suposto amor à liberdade e suas instituições, alegadamente presente na nação portuguesa desde seu início, teriam sido originalmente herdadas desses povos “bárbaros”.4 É no interior da macronarrativa ilustrada que são lidos os principais eventos contemporâneos, em especial a expansão napoleônica – razão de ser da transferência da Corte para o Brasil – entendida como a ameaça de um retorno a um “despotismo universal” semelhante ao dos romanos, impedindo “assim os progressos de civilização” (Correio: I, 1, p. 44, 1808). O ano de 1808 parece abrir a possibilidade de uma releitura da história portuguesa em relação ao Brasil, dando consistência a um projeto de emancipação sem ruptura que procurava modernizar, mesmo que pela busca de origens imaginadas, as relações metrópole-colônia. Assim, as medidas de abertura do comércio colonial adotadas por D. João – contrapartida necessária ao suporte britânico da transferência da Corte – foram interpretadas pelo Correio como a abolição do “antigo sistema colonial”. A inauguração de uma nova era oferecia pretexto também para uma defesa da história de Portugal contra as frequentes críticas de filósofos da Ilustração ao decadente sistema luso:

singular de progresso geral da sociedade. Para a definição de narrativas ilustradas, ver Pocock 1999b, pp. 289-290. 4  Para uma análise desses mesmos temas na obra de Southey, ver Ramos 2013, pp. 61 e ss.

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[...] na Europa não havia nem sequer ideia do que eram estabelecimentos de colônias, os Portugueses encetaram este novo ramo de política, e infelizmente lhe chamaram conquistas; porque era o único estabelecimento estranho de que havia então ideia na Europa. Este errado nome foi a causa das medidas erradas, que se tomaram na administração das colônias (Correio, I, 2, 1808, p. 123).

O “antigo sistema” era um erro histórico compartilhado por todo o continente europeu, justificando o empenho na redenção do passado português a iniciar-se em 1808. Os mesmos fatos históricos que serviram ao discurso ilustrado para explicar a decadência de Portugal e o atraso do Brasil deveriam ser corretamente entendidos em suas causas e consequências. As funções de guardiã da memória, atribuídas à história tradicionalmente, agora passariam a conviver com a busca das leis racionais que deveriam, fundamentalmente, explicar os acontecimentos. Nesse caminho, o reforço de uma ideia de “Brasil” como singularidade, isto é, sua centralidade no bojo do império português, relativizaria e enfraqueceria, de início, a possibilidade de uma “história do Brasil”, na medida em que este deveria ser, mais do que nunca, o baluarte da regeneração política e moral da nação portuguesa, bem como aproximava a narrativa “recuperada” de seu passado de uma história europeia.

A REVOLUÇÃO, NAPOLEÃO E UMA NOVA HISTÓRIA A invasão napoleônica em Portugal despertou um discurso patriótico evocativo das grandezas do passado e do valor moral dos portugueses, como, de resto, produziu em diversos outros cenários (Berger and Conrad 2015). A transferência da Corte, no entanto, permitiu aos homens, que em ambos os lados do Atlântico ainda operavam com conceitos e metáforas do reformismo ilustrado, ampliar largamente suas expectativas, de modo a continuar a conceber um futuro que, sendo cada vez mais incerto e temerário, poderia também ser planejável e promissor:

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Entretanto desenvolvia-se aquele futuro Império, crescia em povoação e riquezas [...] as relações de família entre o Brasil e Portugal, mais que as políticas antecedentes, prometiam aos dois reinos irmãos uma série de prosperidade, que a imaginação do homem pode apenas traçar (Correio, II, 10, p.261, 1809).

Em um trecho que resume elementos da macronarrativa no interior da qual a decadência portuguesa começava a ser posta em perspectiva fica claro que, para Hipólito da Costa, o que ocorria no mundo luso-americano era um capítulo de especial relevância da disputa entre “antigos e modernos”. Comemorando o recebimento de uma carta de conteúdo patriótico em torno da resistência à ocupação francesa, afirmava que [...] os sentimentos dos portugueses são ainda os mesmos que eram antes do estabelecimento da Inquisição, antes da ruína das ciências, antes do desuso das Cortes, antes do aumento desnecessário do poder da Coroa e antes da aniquilação total da influência do povo [...] quanto a mim, o século de Quinhentos não produziu nada mais nobre do que os sentimentos desta carta (Correio, II, 13, p.635, 1809).

Essas novas funções da história conviviam com um intenso e persistente uso de referências clássicas, incluindo a da história como mestra da vida (Koselleck 2006, pp. 41-60; Araujo 2011). Ao lado da noção cada vez mais forte de circunstâncias históricas a exigir medidas adequadas ao tempo, pode-se encontrar o recurso aos exemplos do passado – longínquo ou recente – como alerta. Um argumento que continuaria forte, anos depois, em meio a uma aceleração ainda maior do tempo histórico.5

5 

Em 1822, um correspondente do periódico Revérbero Constitucional Fluminense, edi-

tado no Rio de Janeiro e divulgador de um projeto de independência política do Brasil que já podia ser claramente vislumbrado, após citar os exemplos de fragmentação dos impérios de Alexandres e Filipes, afirmaria: “estes documentos, e outros muitos, que fornece a História, são lições instrutivas para nós” (Revérbero, 12, 1822, p. 136).

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Tanto em Portugal como no Brasil essa nova percepção da história era acompanhada da necessidade da escrita de uma história geral e filosófica capaz de esclarecer as causas da crise e decadência e apontar as formas pelas quais poderiam ser resolvidas. Assim como do ponto de vista econômico as histórias naturais deveriam ajudar a melhor explorar as riquezas do território americano, do ponto de vista moral e político, uma história geral e filosófica deveria iluminar as decisões do Estado e da sociedade civil, reunida na imprensa periódica. No mesmo período, o programa histórico desenvolvido no interior da Academia das Ciências de Lisboa apontava para outra direção, na qual, a exemplo do que ocorria com o Correio Braziliense, o fundamental era inserir a história do mundo luso-americano no interior da história universal a partir de uma perspectiva racionalista. Em discurso publicado em 1813, o então secretário da Academia, José Bonifácio de Andrada e Silva, figura que logo exerceria papel nodal no processo de Independência do Brasil, defendia a necessidade da publicação de antigas memórias e documentos da história portuguesa. Em uma compreensão gradualista do desenvolvimento das ciências, acreditava que a soma dessas obras de menor mérito prepararia o terreno para um desenvolvimento mais completo: “que seria dos sábios dos séculos XVIII e XIX sem as fadigas e trabalhos preliminares dos Eruditos, e polígrafos dos séculos XVI e XVII. [...] não há saltos no mundo físico, assim como no intelectual e literário” (Bonifácio 1813, p. 139). Em 1816, comentando a elevação do Brasil à categoria de reino, Hipólito da Costa mais uma vez manifesta sua compreensão gradualista: Nós aborrecemos tanto as revoluções morais, como tememos as revoluções físicas; entendendo pela palavra revolução (moral) a mudança repentina, em qualquer país, da forma de governo, da religião, das leis, ou dos costumes. [...] julgamos mui dignas de desejar-se aquelas mudanças graduais e melhoramentos nas leis que se fazem necessárias pelos progressos de civilização e que são ditadas pelas circunstâncias dos tempos. [...] (Correio, XVI, 93, p.187, 1816).

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A Academia das Ciências estava empenhada em um programa de restauração da língua portuguesa que passava pela leitura dos clássicos lusitanos, nitidamente atrelado a uma persistente concepção reformista da monarquia e da nação portuguesas. Contudo, inovação e conservação deveriam estar equilibradas em um projeto político e cultural que procurava enfrentar os tempos modernos. Para Bonifácio, o filósofo, ao restaurar a língua portuguesa, “lima com jeito e arte a ferrugem antiga, que o tempo deixara; e corrige o que há de anômalo ao gosto, e à razão [...] se favorece o comércio livre de novas ideias e conceitos; sujeitá-los todavia às leis precisas da polícia nacional” (Bonifácio 1813, p. 141). Essa perspectiva era comumente repetida para as mais diversas atividades, procurando mostrar que o estado decadente de Portugal poderia ser superado também com a recuperação dos corretos princípios de seu passado. É nessa mesma direção que Hipólito José da Costa manifestava-se, em 1815, no Correio Braziliense: “a história de Portugal recorda os tempos em que o Reino exportava trigo e legumes; logo não é impossível que suceda o mesmo agora, se a proteção, que se concede a gordos monopolistas for aplicada, como deve ser, aos úteis lavradores” (Correio: XV, 86, p.52, 1815). Esse trecho mostra bem como esse retorno à tradição pode estar a serviço de valores nitidamente modernos. É importante destacar que, no mesmo ano de 1815, a América portuguesa, ainda sede da Corte de D. João, teria sua privilegiada condição política e identitária reconhecida com a equiparação oficial de seu estatuto ao território peninsular. Para efeitos do que vimos demonstrando até aqui, a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve implicaria o reconhecimento inequívoco de um espaço de atuação política que, embora concebido originalmente como português, começaria a oferecer um locus de projeção de um Brasil autônomo e independente, em um movimento de fortes implicações para a experiência da história. Ainda em 1815, um discurso acadêmico de José Bonifácio recapitularia a macronarrativa ilustrada desde seu momento clássico, passando pela decadência romana e as invasões germânicas. As invasões bárbaras, apesar da aparência catastrófica, teriam inoculado novo ânimo na história europeia, permitindo mais adiante a valorização das línguas vernáculas e com elas dos

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diversos povos europeus. Trata-se de uma caracterização do tempo presente e de sua conquista de autoconfiança: “[...] as faíscas do lume, que se ia aumentando com o novo estudo e leitura dos Gregos e Romanos, faziam já fermentar a matéria caótica, que desenvolvendo-se, e cristalizando-se, ia criando um novo mundo de ciência e civilização” (Bonifácio 1815, p. 358-9). Os limites da macronarrativa ilustrada permitiam uma experiência de aceleração do tempo que certamente apresentava perspectivas distintas para aqueles que se viam no interior do Brasil – fosse este a sede de um novo império nascente ou, simplesmente, um reino – e aqueles que se achavam no velho Portugal. Para homens nascidos na América como Hipólito ou Bonifácio, o peso de um passado decadente parecia relativizar-se frente ao espaço virtualmente virgem do novo mundo, pois talvez fosse mais fácil recomeçar do que corrigir o velho: Se ainda há porém espaços ermos e desertos no vasto território das ciências, não desanimemos com isso: basta considerar que as primeiras faíscas de luz, que hoje chameja, apenas remontam a trinta séculos, nos quais houve porém repetidos e longos intervalos de barbárie e escuridão. Devemos animar-nos com a reflexão consoladora, que há dois séculos seus progressos têm sido muito maiores que em todos os passados; e que os cinquenta anos, em que vivemos, apesar das desordens da Europa, igualam, se não excedem em tudo, a estes últimos dois séculos (Bonifácio 1815, p. 360).

No mesmo discurso, Bonifácio procura aplicar à história das letras em Portugal princípio narrativo equivalente. No entanto, o que se verifica são sucessivos períodos de decadência, sendo o mais recente aquele marcado pela invasão francesa. No governo de D. João V, a criação da Academia de História era “digna de nossos agradecimentos pelos trabalhos corajosos de seus Sócios em explorar e cavar as ricas minas de nossa História, que até então estavam em grandíssima parte escondidas e desaproveitadas” (Bonifácio 1815, p. 364). No trecho merece destaque a palavra história referida à metáfora geológica que lhe dá uma concretude que falta nas tradicionais referências às “páginas da história”. A metanarrativa que organiza a compreensão de Boni-

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fácio gira em torno da existência da república das letras enquanto força trans-histórica. Essa compreensão permitia uma visão cosmopolita da história, muito ao gosto dos intelectuais que, de toda a parte do mundo português, eram chamados a administrar o novo projeto de império. No interior da Academia de Ciências, fundiam-se as demandas por uma história erudita e, ao mesmo tempo, filosófica, capaz de iluminar o passado e orientar o presente através de uma narrativa elevada e com o requerido decoro: [...] poderemos ter um dia quem com Crítica apurada, arte, e bom gosto nos dê um corpo de História pragmática e filosófica; que, é preciso confessar, ainda nos falta. Cumpre esperar que virá tempo, em que tenhamos os nossos Gibbons, e os nossos Humes (Bonifácio 1815, p. 367-8).

Bonifácio termina seu discurso com um elogio da história como um ramo das ciências. Aqui já se identifica o novo campo de experiência da história enquanto um espaço passível de racionalização. Aos “azedos filósofos” que veem na história apenas um cortejo caótico de fatos, Bonifácio contrapõe as novas possibilidades, mesmo que acompanhadas de antigos argumentos da história exemplar: [...] quem porém não quererá saber as causas por que o tem sido? Mas convém saber também o que os homens têm feito neste mundo de útil e de bom, pois é inegável que o tem feito: convém saber os progressos do espírito humano; as vicissitudes por onde passaram as ciências e as artes que nos felicitam, ou deleitam; e a sorte das Nações e dos Estados. Cumpre ver o crime detestado, e as vezes punido; a virtude estimada, e as vezes premiada: cumpre enfim ver os homens sem máscara, e hipocrisia, comparecerem em próprio vulto, com as faltas e fraquezas que cobria a sagacidade da ambição, perante os tribunais terríveis da Verdade. O homem de Letras, que munidos de todos os subsídios, e alumiado pela crítica, empreender colher palmas nesta carreira, há de saber julgar, e avaliar os homens, tais quais foram; há de mapear, para dizer assim, seus vícios e virtudes, e entregar o quadro ao tribunal da Razão, para que o possa essa julgar sem ódio e sem lisonja. (Bonifácio 1815, p. 368).

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Uma história filosófica e uma história exemplar convivem lado a lado sem aparentarem contradição, embora as novas exigências da história racionalizada se imponham, em especial na constante lembrança da necessária completude documental e do caráter filosófico do juízo histórico, mais do que simplesmente moral. Não se trata apenas de selecionar algumas histórias, mas de mostrar a história em sua nova visão de totalidade. O Correio Braziliense defende seu projeto de criação de uma biblioteca portuguesa em Londres alegando, dentre outros fatores, a necessidade de os portugueses residentes naquela cidade instruírem-se: “[...] nas Histórias, e mais coisas de sua nação, que é obrigação de todos não ignorar, e que, em ponto de ricas, e interessantes, por nenhumas das modernas são excedidas” (Correio, XV, 91, p. 727, 1815). Se no passado a história era uma espécie de arte de governar restrita aos estadistas e reis, agora ela deve interessar a todo cidadão. No interior do espaço acadêmico, mais afastado das agitações da luta política, as funções moralizantes da história e sua figuração como mestra da vida permaneciam, mesmo que legitimadas a partir de novas teorias racionais, como o faz José Bonifácio em seu Elogio Acadêmico de Dona Maria I: A pintura das ações insignes atrai sempre a nossa atenção. A princípio desperta nossa curiosidade, depois alcança nossa admiração. A impressão do belo e do sublime dilata o coração, e aumenta a consciência de nossas próprias forças. Ao prazer imediato que causa, acompanha logo um desejo obscuro de imitação, que afagado depois e cultivado, cria por fim este entusiasmo, donde brotam os grandes feitos. O filósofo, que estuda o coração humano, aproveita estas nobres disposições da natureza; e procura desenvolver com a eloquência da palavra, o gérmen precioso das virtudes, que a Divindade encerrou em nossos peitos. Eis aqui os frutos que produzem os Elogios, quando sabem retratar com verdade, e energia, o caráter dos heróis. (Bonifácio 1817, p. 36).

Esse crescente desejo e necessidade de história em espaços cada vez mais democráticos não deixou de repercutir nos projetos de escrita. Em língua portuguesa, podia-se contar com a rica tradição cronística, com os avanços da erudição ou as formas de descrição de novas terras que as corografias

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eminentemente pragmáticas apresentavam. No entanto, faltava ainda uma concepção de história geral capaz de apresentar de forma orgânica e documentada o processo histórico. Em 1819, no seu último discurso como secretário da Academia das Ciências de Lisboa, Bonifácio anunciou que estava deixando o “[...] antigo, que me adotou por filho, para ir habitar o novo Portugal, onde nasci.” (Bonifácio 1819/20, p. 445). Traçou um quadro otimista das perspectivas do território americano, ao qual, para progredir “[...] basta[ria] a segurança pessoal e a liberdade sóbria de imprensa, de que já goza; e uma nova educação física e moral: o mais pertence à natureza e ao tempo.” (Idem, ibidem). Se, na Europa, a Revolução Francesa marcou a nova sensibilidade histórica, no contexto especificamente luso-americano, a expansão napoleônica e seus desdobramentos mostraram-se cruciais para compreender as transformações no campo conceitual. A visão de Napoleão como o representante de uma vontade trans-histórica de domínio universal parece ter modulado a recepção do conceito de revolução, dando nova vida a formas mais conservadoras de experimentar o processo histórico, caracterizado pelo gradualismo e mesmo o apego a visões do passado (Neves 2007; Pimenta 2009). A importância do conceito de regeneração nesse contexto parece ser um sintoma dessa direção gradualista (Araujo 2008). O voltar-se para a história significava ponderar as fórmulas racionais com a experiência do passado, mas também encontrar o fio condutor capaz de explicar o presente: Com efeito, Senhores, sem o socorro de novos documentos e manuscritos, nunca teremos uma história completa e verdadeira, e sem esta nunca poderemos apreciar os progressos que tem feito Portugal nas Letras e na civilização. [...] como também por meio de guerras e tratados, e por novas providências e estabelecimentos, chegamos a gozar de sossego, segurança e força que tínhamos antes da revolução Francesa [...]. (Bonifácio 1819, p. 421-2)

No período que vai de 1808 a 1820, não encontraremos nenhuma história de Portugal que satisfizesse os requisitos arrolados por Bonifácio. Nem a História do Brasil de Southey – talvez pelo motivo óbvio de ser de apenas uma parte do império –, nem as histórias ilustradas disponíveis, como a

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traduzida por Morais, pareciam ser suficientes. De todo modo, a experiência da história não se limitava ao prescrito para a história geral filosófica. Nesse período de grandes transformações, multiplicaram-se narrativas históricas de natureza muito diversas, como veremos a seguir. A chegada da família real serviu como um poderoso catalizador para as narrativas ilustradas que já frequentavam o discurso letrado luso-brasileiro há algumas décadas.6 A transferência da Corte foi imediatamente interpretada como a ruptura com um tempo velho e a abertura de uma nova época. Assim, podemos dizer que o ano de 1808 já nasce como um evento de reconhecida importância histórica. A transformação de um acontecimento em fato histórico no interior de uma narrativa serve, entre outras coisas, para administrar seu caráter ameaçador. Ou ele é identificado com um evento do passado a partir do qual seu futuro pode ser antecipado ou é disposto em uma cadeia de acontecimentos que lhe serve de contexto e permite prognosticar seus desenvolvimentos. Essas duas formas, uma antiga e outra moderna, eram articuladas para explicar o evento 1808, embora seu ineditismo, por muitos atores salientado, exigisse narrativas processuais – já que no passado nada similar poderia ser comparado. 6 

Cf. Kantor, Iris. Esquecidos e Renascidos: historiografia acadêmica Luso-brasileira. São

Paulo: Hucitec, 2004, p. 214-5 e Pimenta, João Paulo G. & Araujo, Valdei Lopes de. “História - 1750-1850”. Ler História. (Lisboa), v. 55, p. 83-96, 2008. Embora ainda seja muito reduzida, tem se ampliado a bibliografia sobre a escrita da história no Brasil antes da criação do IHGB, cito apenas alguns exemplos: Cezar, Temístocles. “O poeta e o historiador. Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil do século XIX”. História Unisinos, v. 11, p. 306-312, 2007; Medeiros, Bruno Franco. “Das causas da emancipação: Alphonse Beauchamp e a Independência do Brasil”. In Sérgio da Mata; Helena Mollo & Flávia Varella.  Anais  do 2o. Seminário Nacional de História da Historiografia. Mariana: UFOP, 2008 e Varella, Flávia Florentino. “Repensando a História do Brasil: apontamentos sobre John Armitage e sua obra”. Almanack Braziliense, no. 8, Novembro de 2008, pp. 117-126; Diniz, Bruno. “Linguagens políticas em José da Silva Lisboa (1808-1830)”. In: Sérgio da Mata; Helena Mollo & Flávia Varella, op. cit.; Santos, Christiane A. C. dos. 2010. Escrevendo a História do Futuro: a leitura do passado no processo de Independência do Brasil. São Paulo: USP.

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EM BUSCA DE UM NOVO FUTURO O discurso histórico que simultaneamente acompanha os eventos a partir de 1808 é uma tentativa de determinar o desenvolvimento futuro de um fato que todos sabiam único, e, por isso, não redutível ao passado entendido como exemplo. Para contar essas histórias, o mundo luso-brasileiro tinha já disponível um conjunto de narrativas que enfatizavam a ideia de melhoramentos e progressos: fosse das ciências ou das letras, fosse na arquitetura ou nos costumes. Muito mais que uma constatação, as narrativas ilustradas sobre a chegada da Corte procuravam tramar o evento em uma cadeia explicativa. Nesse ponto, os dois lados do Atlântico português começavam a divergir, pois o mesmo evento tinha significados progressivamente conflitantes e invertidos. A desgraça dos portugueses em Portugal era o início de uma nova era para os portugueses do e no Brasil. Junto com a Corte, aportava a necessidade de abrigar uma nova dimensão de historicidade. A realeza trazia consigo outra dignidade histórica, bem como uma nova perspectiva de unificação da história brasílica. O gênero história já estava sendo amplamente utilizado desde o século XVIII português para legitimar uma nova forma de autoridade real, mais centralizada, racional e universalista. O projeto da Academia das Ciências de Lisboa evidenciava a importância da historiografia no novo cenário político e social. Na América, essa tradição tinha o desafio de recolonizar discursivamente um tempo e um espaço geográfico inéditos, ao menos do ponto de vista da centralidade que repentinamente essa região do planeta adquire. Deslocados da margem ao centro da história, em um momento no qual o conceito moderno de história tornava-se cada vez mais relevante, escritores como Aires de Casal, Hipólito José da Costa, José da Silva Lisboa, José Bonifácio de Andrada e Silva, Fernandes Pinheiro, Silvestre Pinheiro Ferreira, José Liberato Freire de Carvalho, Luis Gonçalves dos Santos, José Pizarro Araujo, Balthazar da Silva Lisboa, dentre outros, registravam animadamente a história contemporânea que a presença dos monarcas trazia ao Brasil e furtava a Portugal. Abriam novas perspectivas para a experiência da história na república das letras que debatia passado, presente e futuro da experiência moderna no universo luso-americano.

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Do ponto de vista da escrita de uma história filosófica do Brasil, a chegada da corte em 1808 é o evento que articula o legado do reformismo e o projeta, atualizando-o como possibilidade real de entendimento e orientação do processo histórico em curso. Esse projeto pode ser claramente mapeado na historiografia e na cultura histórica a partir daí produzidas. Mais à frente, ainda neste capítulo, analisaremos detidamente parte dessa produção textual com uma atenção maior a certos mecanismos historiográficos. Antes, contudo, façamos um panorama acerca das diversas formas e veículos nos quais as narrativas sobre a história circulavam neste período de criação e expansão do impresso no Brasil.

B) VARIEDADES DA ESCRITA DA HISTÓRIA NO BRASIL JOANINO A ampliação do espaço público, sua transformação e o novo papel que a imprensa passou a ocupar na luta política são alguns elementos estruturantes que ajudam a entender o alargamento do impresso tanto em sua dimensão de produção, quanto de circulação.7 A aceleração dos eventos, as grandes transformações político-sociais e especialmente a emergência de novos sujeitos políticos e sociais exigiam formas mais eficientes de comunicação e legitimação dos governos. Com o texto de história não seria diferente, verificamos nessas primeiras décadas do século XIX uma multiplicação de escritores e escritos sobre a história. A vontade crescente de conhecer e interpretar o passado impressiona, seja para controlar o futuro ou para guardar a fama dos grandes homens e eventos. No caso brasileiro, a ausência ou distância de instituições que pudessem disciplinar essa escrita resultou em uma variedade impressionante de gêneros, projetos e protocolos de pesquisa e exposição. Formas antigas e novas conviviam em um mesmo autor. Essa variedade talvez fosse a característica mais marcante da escrita da história nas primeiras décadas do século XIX no Brasil. Tentemos então lançar um rápido olhar por 7 

Sobre esta questão, ver Morel, Marco. As transformações dos espaços públicos: im-

prensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005, passim.

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essa multiplicidade procurando identificar algumas linhas gerais que talvez nos permitam compreendê-la um pouco melhor. Para o período estudado, o conhecimento histórico poderá se apresentar sob diversos títulos, como memórias, corografias, anais, efemérides, crônicas, biografias, elogios acadêmicos, panegíricos, deduções cronológicas, ensaios históricos, notícias, resenhas, compêndios, resumos de história, discursos históricos, poemas, relatos de viagem, relatórios e relações, história, história geral, além de outras pequenas variações. Esse material pode estar publicado em livros, panfletos avulsos ou na emergente imprensa periódica. Era comum que no interior de uma mesma obra vários subgêneros fossem reunidos, de acordo com as possibilidades de pesquisa, funções do relato e talento do autor. Esse traço híbrido, bastante antigo na historiografia portuguesa, que já podemos encontrar nas crônicas de Fernão Lopes (Araujo & Gianez 2006), permitia que o autor adaptasse a forma da escrita ao conteúdo do que era narrado. No interior de uma história eclesiástica, podemos encontrar um panegírico real, uma narrativa ilustrada ou o elogio de um chefe militar. Esse hibridismo era reforçado, algumas vezes, pelos protocolos bastante flexíveis de uso da citação. Era frequente que, no meio da narrativa, o autor transcrevesse páginas e páginas de algum documento de época, podendo provocar no leitor certa confusão quanto ao tempo narrado, relativizar a autoria e produzir um efeito testemunhal no relato. Não se pode ignorar os efeitos na imaginação histórica da influência da história natural como projeto de investigação e como fonte de modelos de escrita, metáforas, narrativas etc (Süssekind 1990). Os relatos de viagem, as descrições dos naturalistas, as memórias e dissertações científicas acerca de plantas, doenças, processos produtivos, contribuíram de modo vigoroso para a modernização da experiência da história. No entanto, esses textos não receberão neste livro um tratamento mais detido, pois implicaria a abordagem de outro universo documental e linhas evolutivas ao longo do XIX, nas quais a formação de um campo historiográfico não teve a mesma centralidade. O discurso naturalista, que teve na história natural sua âncora, e os discursos históricos naturalmente possuem diversos pontos de contato, mas também zonas de incomensurabilidade. Não se trata de dois tipos opostos, mas de dois projetos globais distintos de conhecimento que, embora se en-

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trecruzem em alguns momentos, não podem ser completamente reduzidos a uma matriz comum. Até certo ponto podemos dizer que esses dois projetos surgem como alternativas às antigas histórias universais, cuja fundamentação religiosa permitia totalizar a realidade dos acontecimentos, sem se importar com as divisões entre cultura e natureza ou civil e religioso.8 Eles colaboram, cada um ao seu modo, para uma ampliação do conhecimento das realidades locais, para sua tradução nos novos quadros mentais modernos em construção. Nossa atenção aqui estará focada para a matriz dos discursos históricos, especificamente sobre a história geral, contudo, não é possível ignorar a importância que o discurso naturalista tinha, não apenas na reorganização da natureza, mas também sobre a experiência da história. Uma forma de sistematizar os diversos níveis em que os contemporâneos imaginavam organizar o conhecimento histórico pode partir da ideia, ainda presente, da história geral como uma espécie de monumento estável capaz de levar à posteridade a glória e os ensinamentos de um determinado povo ou época. Nos prefácios e textos introdutórios em que os autores buscam explicitar as razões e os métodos utilizados em suas obras podemos derivar a existência de círculos concêntricos. Em um primeiro nível (1) estão os arquivos, sejam municipais ou eclesiásticos, nos quais se encontram documentos que hoje chamaríamos de primários, ali também poderiam ser encontradas memórias ou “relações” que no passado pudessem ter sido feitas para sistematizar certas histórias. Em um segundo nível (2) estão as memórias, entendidas como gênero preparatório da história geral. Ele deveria recolher as informações dessas fontes originais, sempre sob o risco de desaparecer na poeira dos tempos, e reuni-las de modo sistemático em suas Memórias. Assim, elas não funcionam apenas como “representações” do passado, mas também como o próprio passado substanciado em “arquivo” ou coletânea de histórias. Por isso é muito comum neste nível encontrarmos vasta transcrição documental, bem como uma preocupação erudita com a notação das fontes. Começamos a verificar igualmente a publicação de manuscritos antigos ou mesmo a reedição de testemunhos passados, transcritos e reeditados, com ou sem crítica, respeitando sua 8 

Essa dissolução da História Universal já pode ser percebida em Bluteau. Cf. Pimenta

& Araujo Op. cit., p. 83.

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integridade ou atualizados, resumidos e compilados. Esse segundo nível pode assumir diversos nomes ou gêneros de acordo com seus objetivos específicos: anais, deduções cronológicas, cronologias, memórias, relatos de viagem, biografias, elogios fúnebres, panegíricos. No terceiro nível, encontramos a história geral, que, como já dito, precisava aliar concisão, qualidades poéticas e amplitude. Um quarto nível pode ser encontrado nos trabalhos dedicados a produzir versões educativas para diversos públicos, geralmente amparadas na atividade compilativa, com nenhuma ou pouca pesquisa original, podendo ter a forma de compêndios, resumos de história, catecismo etc. Não raro uma mesma obra poderia apresentar diversos níveis, já que podemos compreender a relação entre eles como sendo em parte concêntrica. A história geral deveria conter todos os demais níveis no interior de suas próprias exigências formais de composição. O que o decoro permitia entrar em uma memória poderia não ser adequado a uma história geral. Por outro lado, o trabalho em cada um desses níveis, em especial no 1 e 2, tinham objetivos próprios. Embora o erudito ou memorialista legitimasse seu esforço como preparatório para a produção de uma história geral, o seu método e seus objetivos intrínsecos garantiam uma lógica própria a essa atividade. O que deve ser observado é que nem sempre se fazia distinção quanto à confiabilidade das informações provindas dos níveis 1 e 2. Uma memória contemporânea dos eventos passados e uma sistematização posterior poderiam ser igualmente consideradas como fontes seguras. A forma de exibir os documentos nesses textos variava em modo e intensidade, poderiam estar no corpo do texto principal como citação marcada com aspas contínuas, em seção própria identificada com subtítulo no interior do capítulo, como em notas de rodapé, algumas vezes longas, em apêndices documentais ao final do volume ou mesmo em publicações adicionais. Suas funções igualmente variavam: salvar o documento citado como monumento a ser preservado, autorizar o que está sendo dito quanto à facticidade, comprovar ou dirimir dúvidas acerca de um fato, produzir um efeito de presença do passado, reforçar a autoridade do relato pelo testemunho de pessoas qualificadas por sua posição social, histórica ou conhecimento, endereçar ao leitor

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certa leitura, apontar a posição crítica do autor acerca de determinado fato narrado, ilustrar um fato com poesias e versos, dentre outras. Nas seções seguintes analisaremos com maior grau de detalhamento algumas dessas obras que ilustram bem a variedade que descrevemos acima.

A COROGRAFIA BRASÍLICA DE AIRES DE CASAL (1817) A corografia, que poderia estar nos níveis 1 e 2 de nossa classificação, foi um formato muito cultivado, talvez por seu caráter prático e associação com as atividades militares (Kodama 2008; Araujo & Medeiros 2007). Considerada um dos ramos da geografia, aquele apto a lidar com a dimensão local, a corografia logo se mostrou indispensável ao historiador do período, já que tinha que situar o seu leitor em um território em grande medida desconhecido. Ao longo do século, as descrições corográficas foram sendo limitadas às introduções nos livros de história, embora permaneça como um gênero da geografia em sua configuração disciplinar. Em nosso período destaca-se a Corografia Brasílica, de Aires de Casal, publicada em 1817, que, nas palavras de Raja Gabaglia, seria obra capital por condensar “a atividade geográfica do Brasil até o século XVIII e a primeira metade do XIX” (Gabaglia 1943, p. 5). Não há muitas informações sobre a biografia de Casal, sabe-se que nasceu em 1754, na freguesia de São Pedrogão, Portugal. Sagrou-se presbítero do Grão-Priorado do Crato e, em algum momento, emigrou para o Brasil, pois em 1796 estava no Rio de Janeiro. Foi capelão da Santa Casa de Misericórdia e retornou a Portugal junto com D. João VI em 1821. Para escrever sua Corografia foi erudito diligente e visitou diversas partes do território que descreveu (Gabaglia 1943, p. 5-6). Em sua obra, pela própria escolha do título, afinal não se trata nem de uma história nem de uma geografia, o Brasil é mostrado sob a perspectiva dominante de um patrimônio do rei a ser inventariado, como parte das possessões portuguesas. A organização sistêmica do livro parece talhada especialmente para oferecer tal relação, que pouco ou nada tem do pitoresco da paisagem que depois será reivindicado como parte das circunstâncias singularizadoras do território nacional:

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A descrição geográfica do vasto Reino que a Providência confiou a V. R. Majestade na América é o assunto da obra que respeitosamente ofereço a V. R. Majestade, como Sua, por muitos títulos. Nela se acha a História do Descobrimento do Brasil em 1500, até o ano de 1532 em que este País foi repartido em Capitanias: mostra-se a época, o método da colonização, e o atual estado das povoações, e produções da agricultura e indústria de cada uma delas: indica-se o que há de mais notável em a Natureza; como são rios, lagos, montes, cabos, portos, ilhas, animais, minerais e vegetais [...]. (Casal 1817, p. 15).

Apesar das intenções arcaizantes do relato de Casal, a recontagem dos principais eventos da história do brasil em seu livro e nas Corografias Provinciais, com sua necessidade de encontrar o “lugar” de cada localidade, capitania ou província no conjunto “Brasil”, produzia um sentido comum, um mesmo pano de fundo para as diversas histórias e espaços. Os mesmos personagens, temas semelhantes como os “descobrimentos”, a “civilização” dos “selvagens”, tratados sobre limites e fronteiras, guerras e conflitos, muitas vezes a citação dos mesmos documentos ou autores secundários formavam uma espécie de peregrinação simbólica (Anderson 1991). Criava-se uma sensação de uma história comum, revelavam-se seus entrecruzamentos, seus pontos de contato. Assim como o mapa produzia uma sensação de contiguidade, os pontos em comum às narrativas, os grandes eventos tomados como marcos cronológicos, produziam um “tempo compartilhado”. Isso pode ser constatado estudando-se as estruturas dessas “descrições históricas”: o descobrimento, os primeiros povoadores, as medidas administrativas. Textos como a Corografia Brasílica assumiam assim uma nova importância. Talvez distante da vontade autoral, formavam a base comum onde se podiam buscar materiais e modelos de composição. As velhas crônicas e relatos eram lidos na busca do preenchimento desse vazio de experiência, suprindo em uma memória de papel o esquecimento ou a experiência fragmentada.9 9 

“Com esses dados, estimamos que Aires de Casal tenha contribuído substantiva-

mente para o estado da política econômica de sua época, uma vez que sua obra buscasse o aproveitamento dos recursos naturais de que dispunha o Reino do Brasil. Ademais, o

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O que poderia diferenciar o formato da corografia de outros adotados para a história local? A história geral poderia ser uma grande corografia? Nesse momento ainda pesavam os protocolos retóricos ao gênero: estilo, decoro e exemplaridade. Era lugar comum, nos escritos considerados preparatórios, a ideia de que perfaziam uma contribuição para a escrita da história geral do Brasil; por isso, o autor não havia se preocupado tanto com o estilo ou com explicações mais complexas dos fatos. Enquanto as corografias tinham uma estruturação que privilegiava temas, a história geral seguia prioritariamente a ordem cronológica e narrativa. A corografia parece projetar uma história geral enquanto âmbito possível de uma história natural. Mas nesse formato não haveria tanto espaço para a história política e civil, predominando a narrativa dos costumes. O correlato temporal das corografias eram as cronologias, deduções cronológicas e anais, embora esse último frequentemente se desenvolvesse até o formato de uma memória monográfica. Em espaços onde o passado era terra tão ou mais incógnita quanto o território, o esforço para recordar os feitos e as datas, os monumentos da história, era uma atividade essencial. O trabalho dos eruditos frequentemente tornava essa tarefa de estabelecimento um fim em si mesmo, produzindo um esforço constante de aperfeiçoamento e crítica em busca do relato tão perfeito quanto fosse possível, considerando que se lutava contra a força destruidora do tempo, agente de esquecimento. Não podemos por isso considerar o esforço de síntese que caracteriza a história geral meramente como um avanço quantitativo. Ela tinha outros objetivos, qualitativamente distintos. Ainda assim, não podemos subestimar a importância do livro de Casal para a experiência de uma história brasileira. A sua breve narrativa não se dispersa em muitos detalhes, mas ainda assim é capaz de prover uma imagem bastante clara de como poderia ser interpretada o sentido da presença portuguesa no Brasil. As cerca de 15 páginas dedicadas à história geral iniciam com uma generosa descrição das circunstâncias que levaram ao descobrimento: crescente interesse da corte joanina pelos assuntos da terra brasílica e o desejo de regenerar o império luso-brasileiro foram condições que possibilitaram o aparecimento desse tipo de inventário corográfico” (Castro 2016, p. 238).

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Tendo chegado a Portugal D. Vasco da Gama em 1499, com a certeza de ter descoberto a navegação da índia, determinou El-Rei o Sr. D.Emanuel mandar lá no seguinte ano uma Armada a estabelecer amizade, e tratado de comércio com o Rei de Calecute, e uma feitoria na mesma cidade, onde o feitor tivesse as mercancias européias de melhor gasto no país, e com o seu produto carregasse de especiarias as naus, que as levassem. Para comandante desta Armada, que constava de dez caravelas e três navios redondos, foi escolhido um fidalgo chamado Pedro Álvares Cabral. O número da gente, que a guarnecia, andava por 1.200 pessoas: tudo gente escolhida, limpa e bem armada. (Casal 1817, p. 20).

A narrativa prossegue descrevendo o pitoresco da reunião da armada no Restelo, destacando o hasteamento da bandeira da Ordem de Cristo. Com pouca tinta, produzia-se uma visão idílica da presença portuguesa no Brasil e no mundo: promover o comércio, a amizade e o cristianismo. Não se vê qualquer vestígio da dimensão crítica que o reformismo ilustrado já vinha amplamente divulgado ao tratar desses mesmos eventos. Por fim, o quadro é como que posto em moldura pela transcrição, em nota de rodapé, da até então inédita carta de Pero Vaz de Caminha, que acompanha quase todo o texto da breve história do Brasil de Casal. O autor acha espaço ainda para destacar a participação de brancos, negros e nativos na luta contra os holandeses e termina, sem se alongar, com a menção ao status de reino adquirido em 1815.

FERNANDES PINHEIRO E OS ANAIS DA CAPITANIA DE SÃO PEDRO (1819) As histórias particulares, como componentes da matriz do discurso histórico, tratavam de unidades de uma totalidade mais ampla, podendo ter uma dimensão local ou regional. As histórias especiais recortavam tematicamente, podendo ser eclesiásticas, militares, ou de diferentes ramos da atividade humana, como o comércio, a agricultura etc. – não raro essas fronteiras se confundiam em uma mesma obra. No período estudado, um bom exemplo

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de “história particular” são os Anais da capitania de São Pedro, cujo tomo I foi publicado em 1819 por José Feliciano Fernandes Pinheiro, o futuro Visconde de São Leopoldo. Fernandes Pinheiro nasceu em 1774, em Santos, na capitania de São Paulo, filho de um comerciante português com uma mulher proveniente de uma importante família local. Em 1792, foi matriculado no Colégio de Artes da Universidade de Coimbra, curso que concluiu em 1798. Desse período é a sua atuação na famosa Casa Literária do Arco do Cego, onde traduz textos e compila uma História Nova e Completa da América, em dois volumes. A obra foi publicada em 1800 pelo naturalista Frei José Mariano Veloso (Kuhn n.d.; Pinheiro 1800, 1922).10 A dedicatória que consta no primeiro volume é um bom exemplo de como o tema das Grandes Navegações tornava-se essencial na produção de narrativas sobre o futuro do império português: A descoberta do Novo Mundo, esta Época distinta na História das Nações, esta feliz revolução, que abriu um vasto campo à indústria humana, e forneceu recursos poderosos à atividade do comércio, e da política, foi sem dúvida preparada pelas navegações, que fomentou o gênio dos augustos Avós de V. A. R. O estabelecimento das Colônias europeias nesse continente, suas vantagens, e sucessos oferecem a três séculos um quadro interessante, e bem digno da instrução dos povos: patenteá-lo, e promover deste modo as luzes da Nação [...]. (Pinheiro 1800)

Trata-se de um livro, como dito no próprio título, “coligido de vários autores”. Nem o compilador nem seus editores demonstraram qualquer preocupação em indicar claramente a fonte dos textos, as notas de rodapé são raras e a preocupação com a crítica erudita é mínima. A sensação que a leitura nos dá é de um resumo apressado de fontes diversas com vistas a divulgar em formato acessível uma versão reformista e ilustrada da história da colonização da América. O primeiro volume trata basicamente do descobrimento do novo continente por Colombo e da colonização da América do 10 

Consta a existência de uma segunda edição em 1801. Para a redação desta seção

tivemos acesso apenas ao primeiro volume datado de 1800.

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Norte. O texto se dilata na descrição das instituições políticas locais, de suas liberdades, enfatiza a tolerância religiosa, o progresso material e prosperidade de algumas cidades. Por outro lado, não deixa de descrever as contradições, as perseguições movidas por crenças e superstições, dedica longas páginas ao episódio da caça às bruxas em Salem. Também destaca o conflito entre Inglaterra e França nas disputas territoriais. A visão dos indígenas é, no geral, bastante negativa: “tais eram as nações com que tinham de tratar os primeiros colonos, bárbaras na guerra e pérfidas na paz, os incomodaram mais do que todos os bosques e desertos que tinham que arrasar”. Funcionam como uma espécie de contraponto narrativo para valorizar o significado dos “[...] alicerces de um vasto e florescente império” que os colonos teriam lançado na América (Pinheiro 1800, p. 25)”. Já os colonos envolvidos na fundação de Maryland e Pensilvânia deveriam ser elogiados por terem criado uma legislação tolerante com a diversidade religiosa, em um cenário em que se poderia “ver homens de todas as religiões em vez de se perseguirem uns aos outros, viverem juntos, como filhos de Israel, adorando um Ente benfazejo onipotente que protestam servir!” (Pinheiro 1800, p. 39). Em um Portugal em que o tribunal do Santo Ofício ainda podia censurar e prender por crimes de opinião, o elogio de Maryland fundada por católicos que produzem uma legislação garantidora da diversidade religiosa não era acidental. Do mesmo modo, poderia ter um papel autorreflexivo a longa descrição e crítica das superstições e abusos cometidos no episódio de Salem. Cinco dos sete capítulos do livro narram as guerras entre ingleses e franceses, marcando um tema que veremos ser desenvolvido mais tarde: a ambivalência da colonização do Novo Mundo. De um lado, marco da expansão da civilização como a abertura do comércio universal e a expansão da ciência, de outro, pretexto e ocasião para os infindáveis conflitos entre as potências europeias rivais. O contato estabelecido com Antônio Carlos Ribeiro de Andrade e com D. Rodrigo de Souza Coutinho, importante conselheiro de D. João, parece explicar a nomeação de Fernandes Pinheiro para a recém-criada Alfândega do Rio Grande e Ilha de Santa Catarina, cargo que assumiu em 1801, mesmo ano em que foi condecorado com a comenda do Hábito de Cristo (Costa 2011, p. 28). Seguia os passos planejados pela política metropolitana de

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cooptação das elites de ultramar na gestão reformada das áreas coloniais, projeto que tinha em D. Rodrigo um dos seus mais importantes patrocinadores. A trajetória de Fernandes Pinheiro como burocrata e depois como protagonista da vida política foi ativa, diversificada e relevante desde então. Em 1812, tomou parte nos conflitos de fronteira na região da Banda Oriental. Foi eleito e participou dos trabalhos nas Cortes de Lisboa em 1821. Foi Deputado Constituinte em 1823 – e, dentre seus projetos, destaca-se o da criação de cursos jurídicos no Brasil, ideia que ele mesmo efetivaria como ministro, em 1827. Tornou-se figura relevante nos ministérios do Primeiro Reinado no Brasil, foi nomeado por D. Pedro I presidente da província do Rio Grande do Sul (1823-1825) e ministro dos Negócios do Império (18251827). Em 1826, foi escolhido senador após eleição por São Paulo. Recebeu o título de Visconde de São Leopoldo em 1827, sendo nomeado, neste mesmo ano, Conselheiro de Estado. Após a abdicação de Pedro I, foi algumas vezes identificado como defensor do absolutismo por seus adversários políticos no contexto das disputas na Regência. Em 1838, foi sócio-fundador e primeiro presidente do IHGB, vindo a falecer em 1847 (Barbosa 1909; Pinheiro 1874, 1875). De acordo com um de seus biógrafos, teria sido nas campanhas de 1812 que Fernandes Pinheiro começou a reunir os materiais para a composição dos seus Anais da Capitania de São Pedro (Barbosa 1909, p.185). O segundo e último volume seria publicado somente em 1822, já com a antiga capitania transformada em província. Em 1839, surge uma segunda edição, bastante revisada pelo autor, que sempre considerou o livro sua mais importante obra de história. Diferente de grande parte das obras publicadas no período joanino, os anais não são dedicados ao rei, nem o autor menciona suas “qualidades”, como o recém adquirido Hábito de Cristo. Identifica-se apenas como “desembargador”, e a nota fala muito diretamente com os “leitores”, em sentido geral e abstrato, que serão diversas vezes evocados em referências de rodapé. Do mesmo modo, é bastante inusitado que a epígrafe retirada dos Ensaios de Montaigne – e não de um clássico antigo – aponte para a necessidade de que cada um escreva apenas do que sabe e viu. Esse universo erudito é reforçado

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já no primeiro parágrafo, quando descreve as razões e os procedimentos que teria adotado em seus anais: Pesaroso de que se ignorasse a fundação e progressos de uma das mais importantes Capitanias do Brasil, quando das outras se sabia mais ou menos, me impus esta tarefa, levado mais dos desejos de ser útil, do que consultando minhas forças; para encher o vácuo de uma história que faltava, dediquei todos os momentos restantes das pensões do meu Ministério, momentos sempre aproveitados, e sempre por elas interrompidos; esquadrinhei por seis anos os Arquivos das diversas repartições, escrutei e pesei escrupulosamente os documentos, interroguei e comparei testemunhas fidedignas, coevas ou as mais próximas aos fatos; nada enfim poupei do que me pareceu essencial para salvar e transmitir à posteridade memórias fiéis, que um pouco mais tarde talvez não existissem, já por incúria, já pela voracidade dos tempos (Pinheiro 1819, p. 3).

Outro lugar comum do gênero era a expectativa de permanência e aperfeiçoamento dos trabalhos, seja por ser considerado fruto de uma atividade preparatória, fosse pela expectativa de futuridade das histórias narradas. Claro que o patriotismo nacional dará novo significado a esse gesto: “Uma pena mais hábil refundirá algum dia minhas ideias e aperfeiçoará o edifício, que eu não faço mais que esboçar” (Pinheiro 1819, p. 5). Chama a atenção o uso bastante intenso de notas ao fim das páginas, tendo como fontes tanto memórias e textos antigos compilados quanto documentação de arquivos camarários e outras fontes oficiais. Algumas poucas vezes essas notas eram usadas para chamar a atenção do leitor para algum aspecto “filosófico” ou interpretativo que o texto em si não aprofundava, como no caso da descrição dos aspectos físicos da capitania: [...] não julguei contudo dever omiti-lo às vistas calculadoras do Leitor filósofo, que da configuração admirável deste país, qual poderia traçar o próprio gênio do comércio, pressentirá as vantagens que em benefício da Agricultura e da Indústria, proporcionam os inumeráveis rios, e as duas grandes Lagoas, ou antes dois Mediterrâneos: à extensão e facilidade da

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navegação interior e de um comércio doméstico deveu o Egito e a China o estado florente a que chegaram. (Pinheiro 1819, p. 24)

A introdução da obra retoma temas já desenvolvidos na história da América: “Se a descoberta do Novo Mundo foi a aurora do benéfico dia que livrou as ciências e as artes de uma noite profunda” também produziu os contínuos conflitos entre as duas potências que primeiro se lançaram às navegações (Pinheiro 1819, p. 7). A narrativa não invalidava os progressos feitos, mas insistia neles, e o livro se deterá longamente neste aspecto, no conflito de interesses entre as “razões” dos estados e o bem estar das sociedades. A história da civilização como a história do comércio livre, em sentido amplo, era algo ainda a ser realizado no presente. O aspecto bárbaro e feudal da época das descobertas, mesmo sendo a origem de fato tão importante para a civilização, figura apenas em sentido negativo, sem qualquer esforço de recuperação como podemos ver, por exemplo, nas narrativas de Robert Southey e do Visconde de Cairu, mesmo que por caminhos diversos. Assim, o Brasil seria marcado por esse selo ambivalente que marcaria o começo da colonização: “predominavam porém as ideias do tempo, um entusiasmo militar, um espírito de cavalaria deslumbrava e atraía os portugueses para as índias orientais, onde as fortunas eram mais rápidas e gloriosas, entretanto que o Brasil era olhado com notável indiferença [...]” (Pinheiro 1819, p. 8). Por isso, grande parte do volume está dedicado aos conflitos diplomáticos e militares na região; conflitos esses que faziam parte ainda do presente imediato desses homens. Outro elemento importante e estruturador da narrativa, embora pouco desenvolvido nesse volume, é a celebração do papel dos paulistas na conquista e garantia da integridade territorial, um tema que será depois largamente desenvolvido por Southey e toda a historiografia posterior: Assim a ilesa conservação destes territórios no senhorio português é mais um testemunho do zelo e do entusiasmo patriótico, que instigavam os Paulistas para os altos feitos, em que a custa de suas fazendas e vidas tanto se extremaram; propensos por gênio e por educação a empresas árduas, não só defenderam, mas ainda alargaram as raias deste Estado, que sem

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eles é provável estivessem hoje reduzidas a mais estreitos limites; por isso a história daquela Capitania será também a história geral do Brasil (Pinheiro 1819, p. 30).

Não é difícil perceber como essas histórias particulares estavam também orientadas por uma disputa simbólica das diversas partes da América portuguesa e, logo, do Brasil independente. A observação indica igualmente a dificuldade desses formatos excessivamente presos aos contornos oficiais das capitanias e dos negócios oficiais em lidar com fenômenos históricos complexos como a colonização. Problemas semelhantes, como veremos, enfrentou monsenhor Pizarro na determinação dos limites de sua história. O fato é que nesse período de aceleradas transformações, os projetos eram constantemente ressignificados para se acomodarem às novas realidades. Como já mencionado, a segunda parte dos anais seria publicada apenas em 1822, quando a capitania já havia se tornado província do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e o seu autor, como identificado na capa, era agora “deputado pela província de São Paulo nas cortes gerais, extraordinárias e constituintes portuguesa”. Do mesmo modo, endereçamento “Aos Leitores” é substituído por uma dedicatória “Ao Soberano Congresso da Nação Portuguesa”, ao qual se dirige como “Vossa Majestade”. (Pinheiro 1822).

AS MEMÓRIAS DO RIO DE JANEIRO, DE MONSENHOR PIZARRO (1820) Na folha de rosto do primeiro tomo, José de Souza Azevedo Pizarro e Araujo apresenta-se como “Natural do Rio de Janeiro, Bacharel formado em cânones, do Conselho de Sua Majestade, Monsenhor Arcipreste da Capela Real, Procurador Geral das Três Ordens Militares etc.”, o que não deixa de ser um bom resumo da trajetória desse homem profundamente enraizado nas estruturas de poder da América portuguesa desde o final do século XVIII.11 11 

Em sua dissertação de mestrado, Müller (2007) analisa a inserção social de mon-

senhor Pizarro naquilo que ele chama de estruturas arcaicas do Antigo Regime lusitano, mesmo admitindo o aspecto reformista ilustrado do personagem. Trata-se do único

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Formado em Coimbra em fins do século XVIII, constituiu laços estreitos com a Corte portuguesa no Brasil e, após a independência, com o governo de Pedro I, no qual exerceu diversas atividades até o falecimento, em 1830. Na dedicatória ao rei D. João VI e, de certo modo, aos seus leitores, esclarece que “O interesse de instruir-me na História de minha Pátria, para que não achava meio fácil, suscitou o meu empenho no trabalhoso descobrimento e coleção de Memórias, por cujo socorro pudesse conseguir notícias mais amplas [...]” (Araujo 1820, vol. I). Ao longo de suas pesquisas afirma que o descobrimento de muitas outras fontes o fez ampliar o projeto original para abarcar outras províncias cujas relações com o Rio de Janeiro fossem mais intensas. A invocação do monarca termina do modo mais servil possível, como se pode ver na forma mesmo com que organiza graficamente as hierarquias:

Em seguida encontramos um longo preâmbulo em que Pizarro traça a história de seu projeto, que teria começado com a visita do bispo Antônio de Guadalupe, em 1720, ordenando que o secretário capitular à época reunisse em livro “as Memórias Eclesiásticas do Bispado fluminense, de todo sepultadas por incúria dos homens, e de perpetuá-las com outras mais próximas, antes que da negligência resultassem os naturais efeitos de se consumir quanto é proveitoso, necessário, e útil à História” (Araujo 1820, p. VII). Em 1732, viria outra recomendação, tendo em vista a lentidão na execução da tarefa de reunir as notícias e memórias. Nessa época, Henrique trabalho que dedicou alguma atenção monográfica às Memórias como um problema em si, embora não fosse esse o objetivo principal da dissertação.

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Moreira de Carvalho, doutor por Coimbra, assumiria a tarefa e “se entregou todo a descobrir antigualhas precisas e tendo consultado testemunhas antigas, revolvido cartórios públicos, arquivos dos conventos, e o do mesmo Cabido, que lhe podiam instruir” consegui reunir muitos documentos “verídicos” (Idem, Ibidem). Mas o fato é que morreria antes de poder organizar sua coleção, sendo parte dela entregue ao Arquivo da Catedral. A tarefa é herdada pelo cônego José Joaquim Pinheiro, que ordena a lista dos bispos e prelados até D. Frei Antônio, que tinha encomendado a tarefa: “As notícias comunicadas por este Cronista, e deixadas ao Cabildo, apesar de escassas, são hoje a fonte única, e a mais normalizada de conhecimentos históricos dos mesmos prelados: e por isso nunca se negará ao seu autor o distinto elogio, que bem mereceu com o seu discreto trabalho, do qual nos utilizamos” (Ibidem, p. IX). O relato é importante porque nos dá uma visão razoavelmente concreta das práticas de erudição, da sociabilidade erudita, dos valores que cultivavam, de seus modos de operação. Assim, Pizarro situa sua própria ação como a continuidade com aquelas iniciativas, num gesto muito parecido com o que vimos na compilação da história universal: “A vista dos mencionados escritos, e de outros igualmente proveitosos, que eu possuía, projetei levar a mais os conhecimentos históricos do meu Bispado [...] (Ibidem, p. x). O relato vai ganhando riqueza de detalhe, conferindo ao gesto do memorialista um caráter quase heroico, repetindo lugares comuns nesse tipo de obra, mas com um maior desenvolvimento e expansão da subjetividade: À proporção que os meus desejos cresciam sobre os progressos do trabalho, sentia abatido o espírito pela falta de documentos principais, não aparecidos já noutra Era e, contudo, nem a negligência da antiguidade, nem a conhecida mediocridade dos meus talentos, puderam jamais dissuadir-me do que havia pensado. Em meio a tantas dificuldades fui constante: e prevalecendo mais que o temor, o desejo de utilizar a minha Pátria, e também a Sociedade em que vivia, coligi memórias (a) e nas que descobri, deixaram ver coisas preciosas. (Ibidem, p. x).

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Diz ter começado o trabalho propriamente literário com o catálogo das dignidades em 1782, descreve suas pesquisas em diversos arquivos camarários nos recôncavos da cidade, nos conventos, em Lisboa, etc (Ibidem, p. 11). Percebia que, ao historiar o bispado, deparava-se com muitas informações sobre os governadores, incorporando esse novo objeto ao seu relato, que deixa de ter o caráter exclusivo de uma história eclesiástica. O relato da pesquisa tem seus momentos de drama, como quando descreve o encontro com o catálogo de governadores feito por frei Gaspar da Madre de Deus, o que tornaria desnecessário muito do esforço que vinha fazendo com esse mesmo objetivo. Imagina, em primeiro momento, que seu próprio esforço deveria ser interrompido, mas “confrontando as memórias desse tão distinto religioso com as que possuía, extraídas de fontes puras, observei que para ter aquele catálogo o caráter de perfeito, precisava de correção, e que devendo ser acrescentado novamente, dava-me largo campo às minhas exposições” (Ibidem, p. XIII). O enfrentamento com Madre de Deus é delicado, como refazer o seu trabalho sem desqualificar o autor venerando? Pizarro gasta alguns parágrafos nessa operação: A Memória impressa para a História da Capitania de S. Vicente faz honra à sua religião, e não é pequena a que daí me resulta, por sentir nas minhas veias parte do sangue, que o animava: aliás, por qualquer omissão tem a desculpa, já na dificuldade de adquirir melhores conhecimentos, estando residente na Vila de Santos, Capitania de S. Paulo, onde faleceu no princípio de 1800, e já por serem menos exatos os dois catálogos, Anônimo Beneditino e de D. Marcos de Noronha VI Conde dos Arcos, que consultou, e por que se dirigiu. (Ibidem, p. 13).

A forma como ele recupera os dados em suas fontes é bem moderna. Não apenas soma e resume as fontes, como no gesto compilativo, mas aponta e pondera o valor após explicitar claramente os princípios que organizam a sua crítica, quase sempre tentado compreender as condições e limites a que os autores criticados estavam submetidos (Ibidem, pp. 26, 28). Ao assim proceder, Pizarro contribuiu para a produção de uma tradição de escritores e

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para a sensação de um progresso na representação dos objetos, ainda que na expectativa de uma história monumental e perfeita. Na falta de um centro narrativo claro, as memórias vão se ampliando em seus monumentais dez volumes, um a mais do que planejado inicialmente. Em sua dissertação de mestrado, Müller destaca a importância das visitas pastorais na composição de parte do material, tarefa que Pizarro assumira entre 1794 e 1799 (Müller, 2007, pp. 17, 28, 31). A insana variedade de assuntos que o autor acabou por reunir justificava-se sempre para “benefício da História Geral do Brasil” (Ibidem,p.XV) ou, na parte eclesiástica, para o bom cumprimento de um projeto determinado há quase um século. Embora possamos afirmar que Pizarro estivesse bem próximo da perspectiva de Casal em sua Corografia, o de entender o Brasil como um patrimônio real, não temos como ignorar o fato de a nova dignidade do objeto narrado ter sido umas das causas da expansão das memórias. Assim, mesmo concordando com Müller que entender as “Visitas Pastorais” como “[...] elementos que permitiram à Coroa ter noção do desenvolvimento político-geográfico da capitania do Rio de Janeiro e compreender também como se dava a expansão” (Müller 2007, p. 31), no novo contexto performativo das Memórias esse material ganhava outras funções, já que a publicação para um público não previamente restrito, em um contexto de profunda crise das narrativas tradicionais, permitia usos renovados. Entre eles, está a busca no passado colonial de elementos identitários e base para acreditar na emancipação como um destino possível, tendo em vista a sensação de progresso pela expansão narrada e a construção de novas bases para a experiência em um passado que, até então, ou era desconhecido, ou circulava apenas em gabinetes de governança. Do mesmo modo, é evidente que, no seu conjunto, as Memórias parecem ser um exemplo perfeito da imagem de Clio com um cesto ao seu lado, contendo diversas histórias separadas para uso prático-prudencial (Müller 2007, p. 45). Mas, ao mesmo tempo, nesse cesto de memórias de monsenhor Pizarro, o leitor contemporâneo poderia igualmente encontrar narrativas e macronarrativas de progressos e melhoramentos que testemunhavam outra experiência de história – em especial na descrição dos progressos da civilização no Rio de Janeiro.

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Apesar das críticas, mesmo de contemporâneos, o formato do livro era bastante compatível com o projeto da história geral que então poderia ser concebido, ou seja, trabalho de maior decoro realizado a partir da fusão de diversas memórias. Como a palavra memória poderia referir-se a muitas coisas, desde um objeto que pudesse documentar certo evento até a composição de uma monografia, o sentido plural do título deve ser tomado literalmente. Seu relato é uma grande coleção de memórias de tudo aquilo que considerava digno de lembrança: “não me desvelei na arte, na pureza e na graça de dizer (circunstância menos precisas, que a verdade, ídolo principal da História), ocupando-me mais em coligir os subsídios, que devem servir de base a quem, com pena culta, destra, hábil e judiciosa, convier a composição de uma História perfeita do Continente Brasiliense [...]” (Ibidem, p. XV). A imagem de uma grande coleção é visível na forma como introduz seu relato da entrada dos franceses no Rio de Janeiro em 1710, destacando-o do conjunto do capítulo. O mesmo será feito em diversas outras passagens, configurando a imagem de coleção de memórias:

Os tomos de I a VI foram publicados pela Impressão Régia e têm data de 1820. Apenas no primeiro volume as notas são apresentadas ao fim do tomo, em todos os demais elas vêm ao rodapé, o que vai produzir óbvias dificuldades, considerando o volume e heterogeneidade desse material. Em inúmeras páginas, o texto principal ocupa parte ínfima, tomado o espaço pelas longas notas que assumem o protagonismo como presença física do autor. A lógica do texto permitia e mesmo pressuponha a transcrição de material

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diversificado, desde discursos diretos, menos frequentes (Tomo I, p. 17), até longas transcrições de documentos e relatos. Naturalmente, o providencialismo está infiltrado por toda a parte do texto, mas não encontramos relatos frequentes de milagres, em especial na história civil e militar. Se, para nossa sensibilidade contemporânea, a narrativa parece excessivamente religiosa pela constante lembrança de planos divinos, por exemplo, nas descrições das ações de Estácio de Sá, devemos lembrar que as fontes jesuíticas e outras usadas por Pizarro estão recheadas de intervenções milagrosas diretas nos eventos. Por isso, em diversos aspectos, Pizarro está submetendo essas fontes a um processo de racionalização narrativa. A ação divina ocorre sempre por causas naturais e não por ação direta; são as razões ocultas em acontecimentos que, de outro modo, seriam atribuídos ao acaso. Geralmente, o recurso ao plano divino serve para preencher a função edificante da narrativa, mostrando o mal punido e o vício combatido (idem, p. 5). Pizarro, como já salientamos, tem um gosto especial em descrever o cotidiano da pesquisa, não apenas por prover o texto com a autoridade das fontes ou para reforçar o valor de seu trabalho, mas também pelo gosto antiquário de rememorar a copresença com esses objetos e seus lugares de depósito. Isso fica evidente na menção quase automática na passagem: “O autor da Relação anônima, impressa em Lisboa, e publicada em 20 de fevereiro de 1711, que se conserva na Livraria pública da Corte (onde a li) contou o fato pelo modo seguinte” (Pizarro, Tomo I, p. 32). Transcreve um conjunto de passagens sobre um mesmo episódio em mais de uma fonte, essas transcrições são recheadas de notas explicativas e retificadoras. Em um trecho com cerca de 6 páginas (Idem, pp. 38-44) são inseridas mais de 30 longas notas. Em diversos momentos, parece que os livros formam um grande cemitério ou mausoléu, tantos são os nomes e pequenas biografias de padres, cônegos, bispos arrolados (Idem, p.162). Nenhum deles, por menos importante, poderia ser esquecido. Esse aspecto de rememoração ritual é reforçado por descrições de aberturas de túmulos e seus cuidados, com a descrição do estado do cadáver e o tratamento recebido. Tudo isso parece ter contribuído para a má fama de Pizarro já no século XIX, considerado confuso e antiquado, mas nesse imenso volume os assuntos distintos recebem tratamento literário diverso. A descrição da luta con-

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tra os franceses tem passagens que indicam um maior cuidado compositivo, como a que citamos a seguir: Eram, porém, débeis recursos e vontade, e o valor sem direção. Em uma abundância de tudo, faltava tudo, porque não havia um chefe, que regulando os movimentos de cada um, lhes dobrasse as forças, combinando-as e calculando a sua atividade e o tempo da execução. Todos aspiravam à glória de defender a religião, o Rei, as próprias vidas, honras, fazendas, e a pátria: desejava-se sustentar o crédito, e honra da Nação: todos se ofereciam voluntariamente a afrontar a morte: mas não havendo quem os consolasse pelo bom uso de tão favoráveis disposições, isto, que em circunstâncias menos críticas decidiria a vitória contra forças mais superiores, nada operou (Pizarro, p. 48, Tomo I).

Da mesma forma, o imenso monumento não deixou de registrar narrativas ilustradas de progressos e melhoramentos, tão influentes nesse período. Ao retomar a história da capitania no tomo VII, podemos encontrá-las em abundância, aplicadas aos mais diferentes objetos, desde prédios públicos e privados ao avanço do comércio e da agricultura, passando pela evolução dos arruamentos e o progresso na construção de fontes e chafarizes. O aparecimento de memórias antiquárias, como a de Pizarro e do padre Perereca, da qual trataremos mais adiante, era o indicativo, também, da sensação de perda de mundo que a aceleração e transformações materiais provocavam. Uma sociedade que não estava estruturalmente preparada para a transformação acelerada via antigos lugares mudarem de uso e de nome, como o exemplo do chafariz dos marinheiros (Pizarro, tomo VII, p. 58), descrito por Pizarro. Um passado de curiosidades ia se acumulando, levando à vontade de registro e à acumulação de objetos sem utilidade prática, sem expectativa de restauração, que, em sentido antigo, enfatiza a possibilidade de reutilização. Era preciso ainda marcar o progresso que a mudança do estatuto colonial havia produzido, afinal, apontar o progresso era uma forma de dar sentido a essa perda de passado. Pizarro utiliza-se frequentemente de estatísticas para apresentar ao leitor essa aceleração positiva: “O Almanack de 1800 enumera 84 negociantes na praça do Rio de Janeiro, o de 1883 [sic] contou

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95, o de 1807 fez memória de 126, o de 1811 chegou a 207 portugueses e 65 ingleses, e o de 1817 deu notícia de 278 nacionais, 105 ingleses e 8 franceses...” (Idem I, p. 67). Logo adiante, no mesmo capítulo em que fala dos avanços dessa atividade na cidade, faz um longo elogio ao comércio, em uma das notas. Cita como uma de suas autoridades os Estudos do Bem-Comum, de José da Silva Lisboa: “o comércio é a base firme dos interesses políticos e o equilíbrio das potências. A sua profissão é proveitosa, necessária e nobre. Dele, em geral, resulta o bem-comum, depende o público do Estado, e a utilidade de cada um em particular” (Idem, p. 68). Os mesmos princípios do humanismo comercial serão invocados na descrição da índole dos brasileiros, criticando a interpretação de Robertson em sua História da América que consideraria servilismo a obediência dos colonos, e referindo como autoridade o volume III da História do Brasil de Southey (Idem, pp. 84-85). Certamente a descrição do Rio de Janeiro que aparece nesse tomo é um texto mais recente do que outras partes das Memórias, que, também nesse ponto, apresenta grande heterogeneidade. Ao que tudo indica, apenas os dois primeiros tomos efetivamente vêm a público em 1820. Em nota editorial ao final do volume III, Pizarro esclarece seu leitor acerca da demora da publicação dos demais volumes, que sairiam apenas em 1822, sendo que os primeiros cinco volumes ainda aparecem com data de 1820, produzidos na Impressão Régia. Os volumes de VI a VIII surgem com data de 1822, impressos na Tipografia de Silva Porto, e o volume IX, também com data de 1822, impresso na Imprensa Nacional: A demora em se expedir da impressão este e os mais volumes, por acontecimentos assaz públicos, dando lugar ao adicionamento das Memórias presentes, pareceu mui oportuno ao autor delas não retardar as que são mais análogas ao objeto principal, sem, contudo, misturá-las com as da nova ordem das coisas, principiadas no dia 26 de fevereiro de 1821, porque de então tem princípio outra época, cuja história brilhantíssima fica reservada aos vindouros, que com assaz energia saberão organizá-las. Portanto, não acuse o judicioso leitor a falta de memórias recentes, como esperaria, vendo

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sair do prelo no ano de 1822 este, e os seguintes volumes, cujas estampas se achavam em atual trabalho desde 1820. (Pizarro, Tomo III, p. 283).

HISTÓRIA GERAL COMO HISTÓRIA DA CIVILIZAÇÃO, ROBERT SOUTHEY (1810-1817-1819) O projeto de uma história geral assume enfaticamente o legado do modelo de uma escrita da história clássica, ou seja, é nele que deverão ser tratados os grandes eventos da história política. Ele sofrerá adaptações com a emergência de um programa ilustrado de investigação, que estará em busca das grandes causas das transformações históricas, o que na época era chamado de uma história pragmática e filosófica. Guardará, no entanto, em seu escopo, formas mais antigas como as biografias, elogios, histórias especiais e particulares. Ao se referirem a uma história geral, nesse período, os autores, editores e leitores tinham certas expectativas: 1) da completude do relato em relação ao tempo e espaço do fenômeno tratado, opondo-se, assim, às histórias particulares ou especiais, 2) de ser uma narrativa redigida com decoro, com certa qualidade literária e retórica, capaz de ensinar e orientar; e (3) de mostrar uma história que revelasse as causas mais profundas, filosóficas, que movem o processo histórico abordado. A dimensão cronológica tende a ser o eixo principal de organização do material.12 No que se refere aos objetos tratados, o projeto da história geral tem a pretensão de esgotar o repertório de temas, mas com um claro privilégio para a dimensão política. Nesta rubrica incluímos as descrições de guerras e conflitos, a evolução administrativa e a história da sociedade civil e religiosa, embora essa última, objeto especial (a igreja em sentido institucional e simbólico), entrará apenas na medida em que estiver articulada com o eixo principal de investigação. A descrição dos costumes encontrará também espaço, assim como os panoramas geográficos, mas bastante marginais no quadro geral dos 12 

Como propôs Jack Greene para outro universo, aqui também podemos imaginar

certa evolução estrutural desse material, desde descrições meramente espaciais e levantamentos sistemáticos do passado factual até a formação de discursos de fundação identitária. Cf. Greene 2006, pp. 12-14.

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projetos. Embora aqui também caiba a ressalva da história filosófica, que podia tomar como eixo central de investigação as leis ou os costumes, sem, no entanto, assumir o caráter sistemático e exaustivo próprio das corografias ou memórias científicas. Uma pesquisa no banco de dados da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional pode nos dar uma boa ideia da circulação social da expressão “História Geral”. No período entre 1820 e 1849, o peso relativo da expressão na base se eleva algo em torno de 290%. Na década de 1820-29, o peso é 0.000126; na década seguinte, já tem um considerável salto para 0.000284; e, na última década, 1840-49, se estabiliza em 0.000299.13 Claro que não podemos tratar esses números como provas cabais ou definitivas, é preciso considerar a natureza da base, a velocidade de sua expansão e a contínua transformação no perfil dos jornais. Mas aqui nos interessa no sentido de revelar a crescente exposição daqueles leitores ao campo de significados da “história geral”. Assim, a listagem de algumas dessas ocorrências pode nos dar uma ideia menos abstrata. Abaixo listamos alguns títulos e descrições que aparecem nos jornais desse período, muitas vezes nos anúncios de venda. História geral da Igreja; História geral das viagens, de L’Horpe; História geral das invasões dos franceses em Portugal, de José Acúrcio da Neves; Elementos da História Geral, por Nilot, contendo a História Moderna; Ensaio sobre a história geral da arte militar de sua origem, de seus progressos e de suas reduções desde a primeira formação das sociedades europeias até os nosso dias; História geral do comércio nos Estados Unidos; Introdução à história geral e política do universo; História geral de Portugal e suas conquistas, por Damião; História geral da franco-maçonaria desde o seu estabelecimento até nossos dias; Compêndio de história portuguesa, por T. A. Craveiro. Nela se acha em resumo a história geral de Portu13 

Esses números são obtidos pela divisão entre a frequência da expressão e o tamanho

da base. Por exemplo, na década de 1820-29 encontramos 29 ocorrências da expressão “História Geral”, a base conta com 331.361 páginas. Dividindo o número de ocorrência pela base chega-se ao valor de 0.000126. Para a década entre 1840-49, esse valor é 0.000299, 199 ocorrências divididas por uma base de 665.118 páginas. Verificamos o crescimento relativo comparando a distância percentual entre esses números, ou seja, 0.000126 e 0.000299. Levantamento realizado em junho de 2016.

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gal desde os mais antigos tempos conhecidos até hoje; Relação histórica, estatística e médica da cólera morbus, por F. de Assis Sousa Vaz [...]; além da História geral da epidemia se indicam os meios de reconhecer....; Compêndio da história geral, pelo padre Antonio Pereira de Figueiredo; História geral dos animais classificados segundo o sistema de Cuvier, por José Saturnino da Costa Pereira; História geral de Portugal, por La Cled; Curso de história geral, de Guizot. Mesmo a simples leitura de alguns desses títulos é capaz de nos dar a ideia de como as narrativas e macronarrativas ilustradas ocupavam seu espaço na produção de uma nova imaginação histórica que continuamente procurava ligar o ontem ao hoje dando sentido positivo e totalizante à passagem do tempo. Não significa dizer com isso que as expectativas não eram também marcadas por ambivalências e permanências, como podemos ver em uma proposta de programa de um compêndio para ensino médio publicado no jornal Império do Brasil: Diário Fluminense, de 1826: Um catecismo de cronologia, e outro de história geral, que dê uma sucinta, mas compreensiva relação dos principais acontecimentos desde a criação do mundo até agora v.g.: o primitivo estado do homem, a sua queda, a corrupção antediluviana, o dilúvio; a povoação do mundo pela propagação de uma só família; a vocação de Abraão, e o Decálogo; tudo isso segundo contam as Escrituras Sagradas.  - Depois o estabelecimento dos governos da Grécia, e a sua mitologia, a guerra de Tróia, as quatro grandes Monarquias, o nascimento do Salvador, as perseguições do Cristianismo, e a seita de Maomé - Depois a Invenção da imprensa, da pólvora, e do astrolábio; a reforma de Lutero; a passagem à Índia pelo cabo da Boa Esperança, a descoberta da América, a revolução de França, e enfim todas as grandes descobertas nas artes e nas ciências. (Império do Brasil, 27 de janeiro de 1826, p. 82)

Uma visão ainda profundamente sagrada das fontes e temas da história antiga convive com um relato de temas ilustrados que passam uma sensação de que o progresso histórico envolve, de certo modo, uma laicização dos temas e fontes da história. A qualidade e a abrangência dessas narrativas que se multiplicavam a partir de 1808 será bastante diversa. Estabelecer datas

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não garantia por si só criar a narrativa, muitas vezes a trama ficava literalmente enclausurada no interior de “quadros”, fossem eles formados, muito frequentemente, pelas sucessivas dinastias ou por episódios especialmente relevantes, como as histórias de Silva Lisboa dedicadas às campanhas de Lord Wellington ou mesmo aos Benefícios políticos de D. João VI. A ausência de informações – os grandes vazios factuais ainda comuns nas cronologias –, era igualmente uma dificuldade real para a narrativa historiográfica no período. O que podemos observar é uma profunda reformulação das exigências para a escrita da história, que embora não eliminassem as referências clássicas, morais e retóricas, não se satisfaziam mais com elas. Exigia-se um tipo novo de combinação entre erudição e síntese narrativo-explicativa. Para escrever esse novo tipo de história, era preciso um novo escritor. Entre o final do século XVIII e início do XIX, a figura do historiador ganhará uma dimensão cada vez mais importante. Ele não poderia ser mais o simples cronista ou o moralista preocupado em edificar com exemplos, nem mesmo o filósofo abstrato. As condições para o surgimento do tipo moderno do historiador surgiam lentamente, resultado de uma combinação de elementos antigos e modernos, sem que houvesse ainda um modelo institucional claramente definido para acolhê-lo. No Brasil joanino, o historiador tanto poderia ser o jornalista-filósofo, letrado semi-independente com relação ao Estado, quanto o funcionário público – embora esse já em um perfil distinto daquele do Antigo Regime, por sua necessidade de produzir um discurso cujo público-alvo não podia ser previamente delimitado, ou seja, tendo em vista uma noção aberta de público. Entre esses dois polos, toda uma variedade de situações poderá ser identificada, embora com clara preponderância de homens com maior ou menor vínculo com a gestão do Estado. A história que escreviam estava, em grande medida, comprometida com um projeto de reforma interna do Estado, por isso a crise da Independência será um momento altamente problemático para esses homens, bem como para a escrita da história.14 14 

Estudando o caso Britânico no final do século XVIII, Pocock diferenciará a escrita

da história de homens como Hume, claramente inseridos em uma República das Letras ilustrada, e com certa autonomia em relação ao Estado; e autores como William Rober-

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Um marco importante da história da história geral no Brasil é a publicação da obra de Robert Southey em três volumes, respectivamente em 1810, 1817 e 1819.15 Seu aparecimento representava o ponto alto de certa linha do programa do reformismo luso-brasileiro, em seu diálogo com a ilustração britânica. Sabemos que desde a publicação, pelo abade Raynal, de sua crítica às relações coloniais, que abordagens mais conciliadoras de interpretação dessas relações vinham sendo construídas (Medeiros 2012, pp. 65ss). Autores como o abade De Pradt estavam no centro desses empreendimentos, procurando conceber o inevitável divórcio entre Europa e América como algo potencialmente amigável, domesticado pela metáfora de um crescimento natural, de uma emancipação. Na introdução de Três épocas das colônias, publicada entre 1801-1802, De Pradt revela que o texto começou a ser redigido em 1800 e que uma de suas motivações teria sido justamente a revisão das críticas do abade Raynal à colonização europeia. O filtro imposto por De Pradt ao texto de Raynal terá profundas repercussões no processo de independência do Brasil, aparecendo em periódicos como o Revérbero Constitucional Fluminense.16 A obra de Southey pode ser compreendida nessa linha interpretativa de uma revisão do significado do processo de colonização, embora no autor inglês não haja apenas a ideia de uma naturalização dos portugueses na América, mas o relato da formação da civilização no Brasil. Southey demonstra como a cultura portuguesa foi se enraizando e se adaptando às condições locais, e demonstraria o papel central e positivo dos jesuítas e da miscigenação como forças civilizatórias. Assim, no segundo volume, termina a descrição das invasões holandesas alegando como, no Brasil, certo padrão civilizacional tson, Adam Ferguson, Adam Smith, dentre outros, que escreviam história a partir de posições no interior do Estado, comprometidos com um programa interno de reformas. Cf. Pocock 1999b, pp. 266-267. 15 

O trabalho pioneiro de Maria Odila permanece sendo uma referência importante

no debate acerca da obra historiográfica de Southey, que, entretanto, recebeu tratamento renovado por pesquisadores estrangeiros e nacionais. Cf. Dias 1974. 16 

Cf. Dominique Georges Frédéric De Pradt (1801-1802). Cf. Santos (2008, pp.

109-116).

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já estava constituído – padrão esse, naturalmente, derivado da matriz lusa. No relato de Southey, a língua e a religião, especialmente pela atuação exemplar dos jesuítas, já aparecem como as duas principais forças históricas em ação na colonização brasileira: Por outro lado a reconquista de Pernambuco deixou Portugal na indisputada posse duma das mais extensas e favorecidas regiões do mundo, de um império que em todas as imagináveis circunstâncias de desgoverno tem continuado a crescer em população e indústria, que progride agora rapidamente, e que, sejam quais forem as revoluções porque esteja destinado a passar, ficará sempre sendo o patrimônio dum povo português, que fale a língua de Fernão Lopes, de Barros, de Camões e de Vieira. (Southey 1981, p.150).

A ideia de que o Brasil, independentemente das revoluções políticas, seria sempre o patrimônio de um “povo português” era uma solução bastante elegante e conciliatória para as ansiedades de americanos e europeus que vivenciavam esses anos críticos. A história aqui não é algo feito em gabinetes ou em guerras, mas fruto de uma evolução mais profunda de estruturas como a língua, os costumes e os povos (Varella 2016, 2021). A ideia de uma refundação brasílica da monarquia portuguesa, que circulava nas mentes de britânicos e luso-brasileiros, encontraria em Southey sua grande realização textual. Não devemos pensar em uma transmissão mecânica do modelo de Southey para o mundo luso-brasileiro, mas entender sua realização como possível apenas nessa triangulação cultural Brasil/Portugal/Grã-Bretanha, que permitirá o evento de 1808 e será por ele profundamente amplificada. Analisando o clássico trabalho de Maria Odila sobre a História do Brasil de Southey, Ramos acredita que a dimensão ambivalente desses escritos com relação aos projetos e valores do império britânico e ao significado do mundo luso-brasileiro foram subestimados em favor de retratá-lo como uma espécie de ideólogo da expansão britânica. Também procura afastar-se da caracterização, segundo ele excessiva, entre Southey e a historiografia dita romântica, operada por Dias. As vivas polêmicas entre católicos e protestantes

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em torno do significado dos conflitos religiosos funcionaria ainda como um bloqueio à recepção simplesmente empática do passado dos portugueses no continente americano (Ramos 2013, p. 15-19). Contrariando certa noção das fronteiras nacionais como âmbito natural para a compressão das ideias, Ramos enfatiza: [...] a própria circulação de letrados portugueses pela Europa e a tradução de obras estrangeiras pelos acadêmicos, como o interesse de estrangeiros pela história de Portugal, nos sugere que a experiência moderna da história desta nação emergiu envolvida em significações plurais e conflitantes, devido a sua mobilização em múltiplos contextos (Ramos 2013, p. 26).

A História do Brasil foi concebida inicialmente como a última parte de uma grande história do império português, ficando o projeto inacabado. Apenas a parte brasileira, sem qualquer menção ao projeto original, foi publicada: “[...] a crise gerada pelas incursões militares na Península Ibérica e a possibilidade da transferência da Corte portuguesa para o Brasil foram decisivas para que o tio de Southey, Herbert Hill, o aconselhasse a iniciar a História de Portugal com os tomos correspondentes à História do Brasil” (Ramos 2013, p. 151). O relato de Ramos sobre as idas e vindas do projeto de Southey traçam um panorama detalhado das expectativas do autor e das pressões políticas, comerciais e literárias que atravessavam uma empresa de tal envergadura. Ao acompanhar a troca de cartas de Southey sobre o projeto, mostra sua frustração inicial com a interrupção do que considerava ser sua ordem natural e a antecipação dos volumes sobre a história do Brasil a pedido do tio, que, com interesses pessoais consolidados em Portugal, era uma espécie de patrocinador do projeto. Essa frustração inicial, muito ligada ao crescente gosto pelo passado gótico ibérico, se comparado aos costumes dos selvagens americanos, vai dando lugar a um envolvimento cada vez maior com a história do Brasil, fruto naturalmente das pesquisas que realizava, mas também da nova importância que a região assumia como novo centro da monarquia portuguesa (Ramos 2013, p. 153) .

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A recepção da História do Brasil no mundo britânico foi muito menos entusiasmada do que o seu autor imaginou. O momento de expectativas muito diversas sobre as funções da escrita da história e a existência de uma obra tão popular como a História da América, de Robertson, com a qual foi imediatamente comparada, não ajudaram no sucesso da recepção. Analisando as primeiras resenhas, Ramos mostra cenários em que a História do Brasil desagradava tanto a leitores ilustrados que esperavam maior orientação filosófica e concisão, quanto à geração de historiadores românticos que criticava Southey pela falta de empatia e imaginação. Uma obra entre dois mundos, ela parecia, ao menos no mundo britânico, ocupar um lugar incômodo. Os elogios também variaram de acordo com a expectativa dos resenhistas, mas um elemento destacado foi o aprendizado que se poderia fazer com o sucesso das políticas de miscigenação adotadas pelos portugueses na colonização do Brasil. Preocupados, ao mesmo tempo, com a perda das colônias na América e com a nova expansão do império britânico, que já podia ser antevista, muitos olhavam a experiência portuguesa no Brasil como exitosa e, em vários aspectos, capaz de orientar a ação colonial (Ramos 2013, pp. 157-162). Esse aspecto ficaria ainda mais evidente, alguns anos depois, na História do Brasil, de John Armitage (Varella 2011). No prefácio do primeiro volume de História do Brasil, Southey deixa claro que a história que escrevera não se tratava da mesma história de Portugal, apesar do projeto inicial talvez nos devesse fazer pensar de outro modo: A história do Brasil, menos bela do que a da mãe pátria, menos brilhante do que a dos Portugueses na Ásia, a nenhuma delas é inferior quanto à importância. Diferem dos de outras histórias os seus materiais; aqui não temos enredos de tortuosa política que desemaranhar, nem mistérios e iniquidade administrativa que elucidar, nem revoluções que comemorar, nem celebrar vitórias [...] Descoberto por acaso, e ao acaso abandonado por muito tempo, tem sido com a indústria individual e cometimentos particulares, que tem crescido este império, tão vasto como já é, e tão poderoso como um dia virá a ser (Southey, I, p. 39, 1810).

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Pela primeira vez, as teorias civilizatórias da ilustração europeia eram aplicadas para a escrita de uma “história do Brasil” enquanto unidade autônoma com relação à história de Portugal. Não se tratava apenas de delinear uma macronarrativa na qual o território seria anexado como apêndice, ou de enaltecer a importância do continente americano no conjunto do império, mas de encontrar nos acontecimentos e fenômenos da história da colonização portuguesa da América, protagonizada por índios, colonos e colonizadores, os princípios formadores de uma sociedade com identidade própria. Como apontamos acima, na obra de Southey, as forças históricas deixavam de ser apenas as decisões da alta política para enraizar-se na própria história entendida como processo formativo: [...] do ignóbil guerrear e das empresas destes homens obscuros, surgiram consequências mais amplas, e provavelmente mais duradouras, do que as produzidas pela conquista de Alexandre ou Carlos Magno. [...] o progresso do Brasil desde os seus mesquinhos princípios até a importância que atualmente atinge, tudo isto são tópicos de não vulgar interesse. (Southey, 1810, p. 39)

A elevação do Brasil à sede da monarquia portuguesa não é mais consequência do jogo político europeu, ou fruto da ação da providência divina, mas resultado de sua própria evolução histórica, conduzida pelos princípios de uma teoria civilizacional que começava a entender a formação das sociedades menos como “contaminação” e mais como desenvolvimentos estruturalmente semelhantes em horizontes e ritmos temporais distintos. Nos três volumes de sua obra Southey realizou o projeto de uma história civil que soube unir erudição, narrativa de acontecimentos passados e princípios filosóficos. No entanto, a imagem do Brasil aparecia ainda mal determinada em seus contornos, desfocada por uma quantidade imensa de informações eruditas e detalhes. Embora tenha demorado décadas até sua primeira tradução completa para o português, a História do Brasil de Southey exerceria forte influência na cultura histórica brasileira na primeira metade do século XIX, sendo continuamente evocada como preparatório de outros

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empreendimentos que, de algum modo, tinham a pretensão ou de continuá-la ou de superá-la.

ENFIM, UMA HISTÓRIA DO BRASIL, ALPHONSE BEAUCHAMP (1815) O francês Alphonse Beauchamp (1767-1832) talvez tenha sido um dos nomes mais emblemáticos e controversos entre os historiadores desse período. Em 1815, publicou sua História do Brasil, em parte uma compilação do primeiro volume da obra de Southey – único até então publicado, compreendendo até o século XVII. Essa história de Beauchamp, que ia até 1810, o autorizou a se intitular “historiador do Brasil”. Nascido em Mônaco, atuou no regimento da Marinha da Sardenha, em 1784, mas acabou sendo expulso por se recusar a lutar contra a França revolucionária em 1792. No ano seguinte, estaria em Paris, empregado no comitê de segurança. Embora tenhamos pouquíssimas informações biográficas sobre Beauchamp, a Enciclopédia Britânica afirma que teria participado da conspiração que levou ao assassinato de Robespierre, sendo transferido para o ministério da polícia como “superintendente de imprensa” em 1794. Segundo a mesma fonte, essa posição lhe teria dado acesso aos materiais para a composição de seu livro mais importante, História da guerra da Vendéia e dos Chouans, cuja primeira edição data de 1806, já em plena era napoleônica. A repercussão da obra, que defendia o movimento contrarrevolucionário, levou a seu banimento de Paris em 1809, indo viver em Reims, retornando apenas em 1811, à frente de novo emprego público.17 Após uma atividade letrada incessante, marcada por muitas polêmicas e estreitamente ligada ao florescente mercado editorial francês, Beauchamp morreu em Paris, em 1832. A História do Brasil caiu rapidamente nas graças dos letrados luso-brasileiros, tendo sido traduzida e ampliada por iniciativas tanto em Portugal,

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“Alphonse de Beauchamp”.Encyclopædia Britannica. Encyclopædia Britannica On-

line. Encyclopædia Britannica Inc., 2016. Web. 09 ago. 2016 .

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1817-1818,18 quanto no Brasil joanino em 1818-1819. No Rio de Janeiro foi traduzida pelo padre Ignácio Felizardo Fortes (?- 1856) e publicada pela Impressão Régia (Camargo & Moraes 1993, p. 202). O tradutor é identificado como “professor de língua latina, natural do Rio de Janeiro” e foi autor de uma influente e muito reeditada gramática da língua portuguesa. Podemos apontar muitas causas para esta rápida e aparentemente exitosa recepção, em especial se lembrarmos que Southey só será traduzido em 1862. Para Medeiros, o fato de a história do Brasil ser «[...] compreendida como parte constitutiva da História de Portugal», alimentando aqueles que trabalhavam pelo projeto de um império luso-brasileiro foi uma dessas razões (Medeiros 2012, p. 19). Esse aspecto fica evidente no resumo de conteúdo que vai publicado de modo eloquente na folha de rosto da tradução de 1818-1819: A origem da monarquia portuguesa; o quadro do reinado dos seus reis, das conquistas dos portugueses na África, e na Índia; a descrição do Brasil, o número, posição e costumes das povoações brasileiras; a origem, e os progressos dos estabelecimentos portugueses; o quadro das guerras sucessivas tanto dos naturais com os portugueses, como destes com diferentes nações da Europa, que procuraram se estabelecer no Brasil; enfim, as revoluções, e o estado atual deste vasto país (Beauchamp 1818b).

Não temos muitas pistas sobre as motivações para a escrita da obra para além daquilo que o próprio Beauchamp afirma, como o fato de ter trabalha18 

“Essa história foi imediatamente traduzida em Portugal a partir de 1817, na oficina

tipográfica de Desidério Marques Leão. Além dele, outras pessoas estiveram envolvidas nessa tradução: Pedro José Figueiredo, responsável pelas anotações e correções da obra e Pedro Ciryaco da Silva, que teria traduzido, apesar de seu nome não constar no frontispício” (Medeiros 2012, p. 62). A versão portuguesa é a tradução do original até o volume sexto, os demais volumes, em um total de 12, são adições de diversos colaboradores, o último volume data de 1834. Ver texto crítico em http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/ id/520906. Houve uma segunda edição em 1822, “aumentada e corrigida”, da qual pude ter acesso e consultar apenas o Tomo 1.

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do no recolhimento dos materiais necessários para a sua redação durante sete anos. Esse fato sugere que a ideia pode ter sido uma reação à migração da Corte portuguesa em 1808 e paralelo aos trabalhos de seu livro sobre o Peru (Beauchamp 1815, T1, p. vii). Mas, sem evidências mais sólidas, a afirmação pode ser tomada apenas como uma estratégia de dissociar seu projeto da publicação do primeiro volume da obra de Southey, em 1810. Ademais, com a evidência que o Brasil assumiu em 1808, haveria editores ávidos por oferecer ao público uma apresentação “popular” de sua história. A tradução de 1818, publicada no Rio de Janeiro pela Impressão Régia, mostra que o texto passou pela censura joanina. Ao mesmo tempo, pela lista de subscritores ao final do volume, vemos que a tradução foi parcialmente financiada pela iniciativa privada, talvez como gesto comemorativo ao início do reinado de D. João VI, um dos objetos do último capítulo. Na tradução portuguesa editada por Marques Leão, encontramos uma sensível atuação dos editores, tanto em notas como poucas, mas significativas alterações no texto original a fim de torná-lo mais harmônico com as expectativas do monarca e do público português. O já citado último capítulo é uma das partes mais sensíveis, por avançar naquilo que poderia ser entendido como história contemporânea, ou seja, o estado atual do Brasil sob a regência e depois reinado de D. João. Significava falar sobre os progressos, mas também sobre o delicado tema da migração da Corte e do próprio caráter do rei. No texto original, Beauchamp descreve as críticas de “irresoluto” e “tímido”, sofridas por D. João, que teria muito adiado a decisão de partir para o Brasil. Na edição de Lisboa, a palavra “tímido” simplesmente desaparece, permanecendo apenas a expressão mais neutra “circunspecto” (Beauchamp 1818a, p. 270). Apenas uma análise comparativa mais minuciosa de todas essas edições poderia nos dar uma noção mais precisa de como esse texto se transformou ao longo da conjuntura, mas não seria exagero dizer que foi certamente a “história do Brasil” mais disponível e consultada neste período. Sua complexa história de reapropriações terá um dos seus pontos críticos na polêmica Abreu e Lima versus Varnhagen, na década de 1840. (Rodrigues 2017, 2021). A menção, no prefácio, de sua frustração com o fato de o prometido segundo volume da obra de Southey não ter sido publicado na data indicada, dá a Beauchamp a oportunidade ainda de chamar a obra do autor inglês de

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compilação e “anais” (Beauchamp 1815, T1, p. x). Fica evidente sua estratégia de reivindicar o título de ter sido o primeiro a publicar uma “história geral e completa do Brasil”. Ao mesmo tempo, critica o tipo de publicação seriada como a de Southey, tratando sua obra junto com outras memórias e viagens que teriam sido consultadas para “formar um corpo de história completo sobre o Brasil” (Idem, p. xviii). Essa ênfase na completude do “corpo de história” é reforçada com o sumário de toda a obra já estampado nas primeiras páginas do Tomo I. Trata-se de uma estratégia editorial, mas também cognitiva e de produção de autoridade letrada, já que reforçava a possibilidade de entregar ao leitor uma vista completa e compacta dessa nova história. A obra está dividida em três tomos e 45 livros, como são denominados os capítulos. Os dois primeiros tomos são precedidos por uma gravura, ilustrando episódios da narrativa; o terceiro é acompanhado por um “novo mapa do Brasil”. No primeiro tomo, a gravura vem com a seguinte legenda: “Chegada ao Brasil de Dom Tomé de Souza, primeiro Governador Geral”, indicando a página 184 como o lugar no livro em que o leitor poderia encontrar a narrativa dos eventos ilustrados. Ao fundo, uma nau portuguesa, indicando a chegada recente. No eixo principal, o exotismo das palmeiras que fazem o contraponto local com os navios, assim como os nativos formam com Tomé de Souza, sendo mediados por uma figura que parece ser europeia, que, pela narrativa, sabemos se tratar de Caramuru, vestindo um cocar indígena e roupas que o distinguem dos supostos selvagens, além da vasta barba. Os padres e a cruz marcam a presença do elemento religioso, bem como, também esclarecido na narrativa, os sinais das edificações no novo lugar escolhido para a cidade: o palácio do governador, uma catedral e a alfândega. A gravura funciona como uma espécie de atestado de nascimento da civilização no Brasil. Já a gravura que inicia o segundo volume trata de um dos episódios das invasões holandesas. Uma cena do confronto com forças navais espanholas nas costas da Bahia, na qual o comandante invasor, após ser derrotado, abraça a bandeira e se deixa afundar com o navio, mas não sem antes afirmar: “O mar é o único túmulo digno de um almirante batavo”. É curioso notar, na primeira gravura, a complexidade e assimetria das representações. Os portugueses europeus estão vestidos com um razoável cuidado de representação, há uma riqueza de detalhes que vem de uma longa

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tradição de pinturas de história, mas também do conhecimento crescente do passado europeu. Já os nativos americanos, são muito genericamente figurados. Mesmo os adereços, como os cocares, são nitidamente neoclássicos, as penas são praticamente as mesmas que enfeitam os chapéus europeus, a forma de representar o corpo e o rosto não revelam um cuidado e uma atenção para o pitoresco (Cardoso 2019a, 2019b). Adiante, veremos como esse aspecto se torna bem mais complexo ao analisarmos a obra de Ferdinad Denis e Félix Taunay.

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Medeiros analisa detidamente a presença de autores e recursos clássicos e seus problemas na historiografia produzida por Beauchamp, mas no lugar de advogar pela simples permanência de uma experiência do tempo antiga, prefere apostar na ideia de uma reelaboração de tradições historiográficas herdadas. Assim, ao tratar da historiografia sobre a Revolução Francesa produzida no começo do século XIX e dos diversos debates sobre o modo em que a história deveria ser escrita, afirma: A insistência deste historiador em compreender os eventos da Revolução Francesa sob a ótica do conceito de história baseado no modelo dos historiadores da Antiguidade, ao mesmo tempo em que outras formas de compreender a história vinham à tona, não significa uma defasagem intelectual ou mesmo o desconhecimento dessas novas formas, mas, sim, uma tentativa de compreender aqueles acontecimentos que poderiam parecer tanto inéditos quanto espelhados em situações semelhantes do passado (Medeiros 2012, p. 18).

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Em um contexto pós-Revolução Francesa, altamente disputado por diferentes grupos políticos e sociais, a história contemporânea era ao mesmo tempo urgente e impossível. Sua impossibilidade advinha menos da sua ausência e mais do fracasso em suas expectativas tradicionais de estabilizar a representação dos eventos. Por mais que a função de exemplaridade continuasse a ser reivindicada, a recepção polêmica e mesmo as perseguições políticas que motivava apontavam para seus limites. Mas como a história das reelaborações, adições e correções dessa história do Brasil muito bem ilustram, os problemas com a representação pareciam estimular o interesse pela história. O livro de Medeiros desenvolve a tese de que é o conflito entre diferentes concepções de historiografia que deve nos ajudar a entender as acusações de plágio que foram insistentemente levantadas contra Beauchamp, em particular, mas não apenas, aquela feita por Southey contra o livro de 1815. Medeiros argumenta que a própria acusação era parte de um conflito maior entre uma historiografia erudita e outra, que afirmava a prevalência dos aspectos estéticos e retóricos como mais relevantes e definidores do que poderia ser considerado responsabilidade autoral (Medeiros 2012, p. 21). De nossa parte, no lugar de explicar esses fenômenos pela convivência entre problemáticos “regimes de historicidade” (Hartog, 2013), preferimos entendê-los como reações possíveis à mesma situação de aceleração do tempo histórico. Diversos discursos históricos relativamente autônomos, que atendiam a demandas e funções distintas, conviveram e responderam à mesma sensação generalizada de aceleração, de afastamento entre expectativa e experiência. Assim concordamos, ao menos em parte, com a tese levantada por Medeiros a partir de Koselleck: “[...] a historiografia que tratava da atualidade, do tempo presente, continuou a ser cultivada no início do século XIX, embora tenha deslizado para um gênero inferior, que continuou sendo praticado por jornalistas” (Medeiros 2012, p. 51). Mas no lugar de afirmar a existência de um “gênero inferior”, deveríamos tentar compreender as condições próprias dessa modalidade de discurso histórico, pois apenas do ponto de vista do discurso disciplinar ele poderia ser considerado “inferior”. Será analisando as repercussões da história da Guerra da Vendeia, nas edições de 1806 e 1820, que Medeiros nos apresenta um panorama complexo das possibilidades e impossibilidades da história contemporânea nesse

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contexto. Ele mostra que Beauchamp conquistaria, ao mesmo tempo, grande renome e diversos inimigos e críticos, inclusive a acusação de ter revelado segredos de Estado (Medeiros 2012, p. 30). Beauchamp argumenta que a publicação e o recurso ao juízo público eram instâncias críticas suficientes para avalizar a correção de sua versão da história. Veremos esse mesmo argumento ser mobilizado em outros contextos, denunciando um deslocamento do âmbito crítico dos espaços acadêmicos para os espaços populares da nova imprensa (Medeiros 2012, p. 43). Será essa modalidade de argumento, o estabelecimento do público leigo como mediador crítico, que terá de ser combatida quando o discurso histórico “disciplinado” constituir um auditório de especialistas que reivindicará uma autoridade superior àquela de um auditório ampliado. Segundo Medeiros, o grande mérito da História do Brasil de Beauchamp foi ter apresentando ao público francês que “[...] América Portuguesa despontava como uma nação que começava a trilhar o mesmo caminho das outras nações consideradas civilizadas” (Medeiros 2012, p. 56). Embora Beauchamp insistisse no caráter “completo” de sua História do Brasil, Medeiros parece correto ao identificar elementos de uma “historiografia aditiva” em sua obra. Ou seja, um projeto que, justamente por se achar completo, pressupunha uma continuidade apenas no sentido da adição de partes ainda não incorporadas, naturalmente envolvendo a história contemporânea: “A organização das histórias de Beauchamp a partir dessa estrutura pressupõe que um presente contínuo deveria ser enriquecido com os fatos do passado, o qual sofre uma espécie de alargamento que origina um espaço de experiência da história homogêneo e constante” (Medeiros 2012, p. 60). Porém, certamente, o tempo vivido nesse começo de século XIX pouco corresponderia a essa expectativa de homogeneidade. Ao finalizar sua obra, Beauchamp traçava um quadro no qual era difícil imaginar o lugar do velho Portugal. Claro que muito do que ele escreve deve ser lido tendo em vista o contexto das invasões napoleônicas em Portugal. Mas é impossível não perceber que a história do Brasil se separava da portuguesa, restando a dinastia como única possibilidade de conectar esses dois mundos. Após descrever os progressos e potencialidade do Brasil por volta de 1806, afirma que seu estado já poderia ser comparado aos grandes impérios do mundo, mas que não

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era ainda mais que uma colônia de uma das menores monarquias da Europa. Com a migração da Corte, de um golpe, se transformava na sede “do governo e a metrópole da monarquia portuguesa” (Beauchamp 1815, T.3, p. 506-7): A emigração da potência portuguesa para o Rio de Janeiro dá ao Império Brasiliense as mais brilhantes esperanças; este Império parece ser chamado para gozar agora dos mais altos destinos. Quem poderá calcular de antemão, onde parará a energia de uma nação, por assim dizer, ressuscitada? (Beauchamp 1815, T.3, p. 517)

Nessa nação ressuscitada não fica claro o lugar que os portugueses europeus poderiam ocupar, mas Beauchamp parece preocupado apenas com o futuro da monarquia, com sua independência em um contexto europeu que lhe parecia hostil e insustentável. Nas últimas frases brilham palavras como “independência”, “duração”, “força”, que teriam um impacto profundo nos acontecimentos futuros: Quanto é mais forte e inexpugnável este império do hemisfério austral! Quanto é nobre, e independente o seu destino! Armadas numerosa não o poderão investir, exércitos formidáveis em vão o ameaçarão; tudo lhe promete uma prosperidade permanente, e longa duração. Com prudência, e energia, pode o soberano do Brasil firmar a si, e aos seus descendentes, sobre um trono não precário e muito brilhante (Beauchamp 1815, T.3, p. 518).

JOSÉ DA SILVA LISBOA: HISTORIADOR JOANINO (1815-1818) José da Silva Lisboa nasceu na cidade de Salvador, em 16 de julho de 1756. Seu pai, o lisboeta Henrique da Silva Lisboa, era “arquiteto”, e sua mãe, Helena Nunes de Jesus, natural da Bahia, supostamente parda. A profissão de arquiteto na época era de natureza mecânica, similar a outras atividades consideradas modestas, “defeito” paterno de que o filho seria diversas vezes lembrado ao longo de sua trajetória, além da mestiçagem materna. (Kirschner 2009, p. 18).

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Em 1784 casou-se com Ana Francisca Benedita, filha do bacharel pernambucano Antonio Álvares de Figueiredo. Segundo a biografia publicada por um de seus filhos, Bento da Silva Lisboa, em 1839, José da Silva Lisboa teria iniciado os estudos de latim com a idade de oito anos, em seguida, no convento dos frades carmelitas, estudaria filosofia racional e moral, tendo ainda aprendido música e piano (Lisboa 1839, p. 186). Fez sua primeira viagem a Portugal, em 1773, para estudar retórica e se preparar para os exames de admissão em Coimbra. Para tanto, foi auxiliado pelas aulas de Pedro José da Fonseca, em Lisboa. Matriculou-se na Universidade de Coimbra, nos cursos jurídico e filosófico, aplicou-se ao estudo do grego e do hebraico, chegando a assumir a posição de professor substituto dessas matérias, em 1778. Tendo sido aluno de Domingos Vandelli, em Coimbra, Lisboa manteve com o famoso naturalista correspondência e colaboração em assuntos científicos (Kirschner 2009, p. 45). Em 1779, obteve o grau de direito canônico e filosófico. Pouco depois, em 1780, retornou para Salvador, onde foi nomeado ouvidor da comarca de Ilhéus, cargo que exerceu por curto e conflituoso período. Em 1782, foi nomeado professor régio de filosofia racional e moral e professor substituto de língua grega, sendo esta última função exercida até 1787. Em 1793, afastou-se das aulas e retornou à Lisboa com a família, sob o pretexto de cuidados com a saúde. Nesse período, trava conhecimento com D. Rodrigo de Souza Coutinho. Quatro anos depois, obteve, do príncipe regente, seu jubilamento como docente e a nomeação como deputado-secretário da Mesa de Inspeção da Agricultura e Comércio da Bahia. Remontam a esse período os esforços que levariam à publicação, em 1801, de sua primeira obra de fôlego, os Princípios do Direito Mercantil, cujos dois primeiros tomos vieram à luz já em 1798. Em 1804, publicou os Princípios de Economia Política, em que defendia a liberdade de comércio e apresentava as ideias de Adam Smith. Quando da passagem da família real portuguesa pela cidade de Salvador, em janeiro de 1808, Lisboa teria influenciado na decisão de abertura dos portos do Brasil às nações amigas. Nomeado ainda na Bahia lente de uma cadeira de economia política, foi convidado a seguir a Corte em sua migração para a nova sede, no Rio de Janeiro. Desde então, sua influência nos assuntos do Estado seria permanente, desenvolvendo uma intensa atividade letrada

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em mais distintas frentes, em particular a já citada “economia política”, traduzindo e vulgarizando o pensamento de Adam Smith e Edmund Burke, produzindo reflexão original em que aplicava os princípios do liberalismo econômico e do conservadorismo burkeano à realidade luso-brasileira. Por intermédio de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ainda em 1808, Lisboa foi nomeado deputado da Real Junta de Comércio e membro do corpo de direção e censura da Impressão Régia. Esta instituição se tornaria central na produção do que podemos chamar de estratégias de sustentação letrada da nova Corte. É nesse contexto que podemos compreender as duas primeiras obras de história produzidas por Lisboa, Memória da Vida Pública do Lord Wellington (1815), e Memória sobre os principais benefícios del Rei D. João XVI (1818). Durante todo o reinado de D. João no Brasil, Lisboa esteve a serviço do fortalecimento da autoridade real e do projeto reformista de fundação de um império português, ou luso-brasileiro, assentado na ideia do fim do sistema colonial e uma nova governança do território. Em 1821, no contexto aberto pela Revolução do Porto, foi nomeado inspetor-geral dos estabelecimentos literários, o que significava exercer a censura de tudo o que era publicado no reino. Nas disputas em torno da independência, foi bastante ativo pela imprensa, tendo publicado o jornal Conciliador do Reino Unido, além de diversos panfletos cuja posição prevalente era a defesa do projeto de unidade do império. Entre 1821 e 1828 publicou nove jornais e 42 panfletos (Kirschner 2009, p. 207). Esteve entre os que apenas no último momento aderiram ao projeto de independência do Brasil. Tornou-se homem de confiança do novo imperador que, já em 1823, o nomeou desembargador do Paço e deputado da Mesa de Consciência e Ordens. Foi deputado na Assembleia Constituinte de 1823, tendo, a partir daí intensa atividade parlamentar, chegando ao Senado em 1826. Na crise provocada pelo fechamento da Assembleia Constituinte, atuaria pela imprensa na justificação das ações de D. Pedro e na defesa da causa do Brasil em busca do reconhecimento da Independência. É nesse cenário conflituoso que foi encarregado pelo governo da missão de escrever a história dos principais acontecimentos da Independência, o que originaria seu mais ambicioso projeto historiográfico: uma história geral do Brasil, obra que analisaremos mais detidamente no capítulo seguinte. Os serviços ao Estado e à dinastia

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de Bragança foram reconhecidos com os títulos de Barão (1823) e Visconde de Cairu (1826). A intensidade de sua atuação letrada pode ser vislumbrada pelas diversas sociedades de que foi membro: Sociedade Promotora da Indústria Nacional do Rio de Janeiro; da Agricultura da Bahia; Filosófica de Filadélfia; Agricultura de Munique; da Propagação das Ciências Industriais; Instituto Histórico de França; Instituto Real para a Propagação das Ciências de Nápoles (Lisboa 1839, p. 187). A formação reformista em Coimbra e o clima contrarrevolucionário de sua segunda passagem por Portugal consolidaram a admiração de Lisboa pelos autores britânicos. Adam Smith, no pensamento econômico, e Edmund Burke, na política. Em 1812, publicaria uma tradução com extratos das obras deste último, em particular as Reflexões sobre a Revolução em França. Cita e demonstra conhecer também os trabalhos históricos de Gibbon, Hume, Robertson e Southey. Dentre os antigos, é admirador de Tácito, que refere constantemente em seus textos históricos e em sua atuação parlamentar e como publicista. A história intelectual e a história das ideias no Brasil privilegiaram a interpretação que enquadrou Lisboa como um precursor do liberalismo econômico, celebrando seus trabalhos no campo da economia política. Esse viés interpretativo obscureceu a reflexão sobre a história presente nestas obras. Narrativas ilustradas e certa teoria da história fundamentavam sua compreensão da economia como um ramo da jurisprudência e da moral. Ainda mais grave, essa ênfase na economia política ajudou a esvaziar o significado de suas obras propriamente históricas. Essa frente, embora não tenha sido a mais prolífica, não foi menos relevante. Como nos demais ramos de sua atividade letrada, também a história era entendida por Lisboa como forma de servir ao país, à dinastia e ao bem comum. As memórias publicadas no período joanino respondiam à conjuntura política imediata. A biografia de Lord Wellington comemorava a derrota francesa e a libertação do reino, reforçava as virtudes aristocráticas do grande militar como exemplo de edificação moral e prova da superioridade desses valores sobre o mundo revolucionário napoleônico. Nos dois volumes da memória o leitor pode acompanhar a vertiginosa carreira do militar britânico, os detalhes de suas campanhas, anedotas que demonstrariam sua firmeza de

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caráter e, em paralelo, diversos discursos e exemplos em denúncia de Napoleão e sua ambição de se tornar o tirano do mundo. Nessa memória, Lisboa cita autores como Smith, Burke e Montesquieu para legitimar a posição central da nobreza. Afirma não pretender sufocar o mérito, mas considera que o respeito aos antigos seria um sentimento natural. Ao mesmo tempo, o império britânico aparece sempre como portador de um tipo elevado de civilização, seja pelo respeito aos derrotados, a defesa do livre comércio ou por terem “[...] sob a sua proteção povos que, como diz Montesquieu, vivem em imemorial despotismo” (Lisboa 1815, p. 45). Em seu relato, as conturbações políticas são sempre produzidas pela ascensão de usurpadores, pretendentes não legítimos, algumas vezes de origem obscura, numa alusão direta à Napoleão. O imperador francês é considerado “[...] irreconciliável inimigo das nações comerciantes, e aspirando claramente à monarquia universal” (Idem, p. 61). A fuga da família real é justificada pela perda do balanço entre as monarquias europeias que formavam, antes da Revolução, uma espécie de república. Nessa conjuntura, o Brasil seria a rocha de resistência contra os franceses, recuperando o episódio colonial de sua expulsão do Rio de Janeiro no século XVI. Em sua análise das memórias, Bruno Diniz identificou o que chama de “linguagem da restauração” do reino e dos valores de uma monarquia aristocrática como força organizadora das narrativas (Diniz 2010, p. 43ss). Essa restauração estaria em curso com as políticas liberalizantes e de “libertação do comércio” adotadas pelo monarca, que teria encerrado o medonho “sistema colonial”. Esse tema marca o que temos argumentado como historiografia joanina produzida no Brasil, que, além de Silva Lisboa, encontra em nomes como Luís Gonçalves dos Santos, Ayres de Casal e monsenhor Pizarro alguns de seus expoentes. Como vimos anteriormente, o discurso histórico nesse período mobilizava narrativas de progresso e civilização como forma de dar sentido à vinda e à presença da Corte na antiga colônia, projetava um futuro de unidade entre as partes europeia e americana da monarquia. A restauração do reino dependia do fim do “sistema colonial” e da passagem de um mundo bélico e medieval a um mundo comercial, da polidez e sociabilidade, da civilização e das letras.

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Essas narrativas ilustradas de celebração da liberalidade do monarca são abundantemente exploradas por Lisboa em sua segunda memória histórica, publicada em 1818, em comemoração a coroação de D. João VI. Em um contexto de insatisfações locais, em particular a Revolução Pernambucana de 1817, a memória funciona como ação política indireta. O livro de 1818 está organizado em 12 seções temáticas, de modo a que cada uma rememore um grande benefício promovido pelo rei: I) Legislação Favorável; II) Interdito da França Revolucionária; III) Sistema defensivo de Portugal; IV) Expedição da Corte ao Brasil; V) Suspensão Provisória do Sistema Colonial; VI) Estabelecimento da Corte no Rio de Janeiro; VII) Excitamento do Valor Nacional; VIII) Estabelecimento do Banco do Brasil; IX) Definitiva Franqueza do Comércio e Indústria; X) Declaração de Reino Unido; XI) Promoção das Ciências e das Artes; XII) Liberdade Diplomática nos Negócios Estrangeiros. A memória abre com um elogio bastante tradicional às virtudes do príncipe, mas seu objeto era a justificação da política empreendida pelo monarca desde sua chegada ao Brasil. Transcrevendo um longo trecho da História da América de Robertson, em que o autor britânico destaca o pioneirismo e centralidade de Portugal nos descobrimentos, apesar de ser à época “um dos reinos mais pequenos, e menos poderosos da Europa” (Lisboa 1818, p. 5), Lisboa dá a entender que D. João estaria completando a obra dos grandes personagens dos descobrimentos, o Infante D. Henrique e o rei D. Manuel I. Ao fazê-lo, fortalecia uma narrativa de restauração do império a partir de uma missão, ao mesmo tempo, providencial e racional, pois o que estava sendo construído no Brasil culminava a história das Grandes Navegações como passo decisivo para a civilização europeia. O impulso dos “descobrimentos” teria sido deturpado pelo “sistema colonial”, a política de segredos e monopólios. Assim, a presença portuguesa no Brasil teria sido desvirtuada pelo “antigo sistema colonial”, o mesmo “sistema” que D. João VI começou a abolir em 1808, como que restaurando os princípios originais dos “descobrimentos”. *** Do ponto de vista de seus contextos discursivos, os gráficos abaixo podem nos oferecer importantes indícios de como a historiografia produzida

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por Cairu se transforma. Neles contamos as vezes em que Cairu fez referência direta a seus interlocutores intelectuais, seja em notas, ou no corpo do texto das três principais obras de caráter mais diretamente histórico. O gráfico a seguir apresenta apenas os principais resultados; a lista de autores citados é, naturalmente, bem maior em sua integralidade. A complexidade intelectual dessa historiografia fica bem demonstrada pela identificação de suas fontes de legitimação autoral: 1) escritores britânicos, muito especialmente, Robertson, Hume, Gibbon, Burke e Smith; 2) autores da Idade do Ouro portuguesa, especialmente Camões e João de Barros; 3( citações bíblicas; e, por fim, 4) a obra do historiador romano Tácito. 19

Gráfico 1: Autoridades citadas nas obras históricas de Silva Lisboa

Analisados do ponto de vista cronológico, verificamos uma consistente tendência de ampliação das referências aos grupos mais claramente identi19

Para uma análise detalhada dos contextos discursivos na obra historiográfica de

Cairu, ver a dissertação de mestrado de Bruno Diniz, em que argumenta a existência de um processo de modernização das referências entre uma “linguagem da restauração” predominante nas duas primeiras memórias para uma “linguagem da regeneração” na História dos Principais Sucessos (Diniz 2010).

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ficados com modelos historiográficos: autores britânicos, João de Barros e Tácito, perdendo as citações bíblicas e camonianas parte substantiva da centralidade que tiveram nas duas Memórias do período joanino. Esse deslocamento acompanha em parte a própria redefinição do gênero historiográfico que se acelera nesses anos. Não é por acaso que Cairu diferencia sua última obra das duas anteriores, chamando-a claramente de História, e História geral, enquanto as duas outras eram Memórias. Esse deslocamento de gênero exigia uma reflexão mais específica sobre o ofício do historiador, levando, inclusive, a uma laicização do texto, evidenciado não só pela brusca queda nas referências à Bíblia, mas também por reflexões meta-textuais sobre a necessidade dessa separação. Outro indicador pode ser verificado se desdobramos da categoria britânicos em suas partes constitutivas (gráfico 2). Verifica-se um crescente interesse pelos autores identificados como historiadores (Southey, Robertson e Hume) ou mesmo nas obras de história de pensadores como Adam Smith.

Gráfico 2: Principais autores britânicos citados por Silva Lisboa

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Nas Memória dos Benefícios políticos do governo de El-Rey Nosso Senhor D. João VI (1818), o impacto da obra de Southey é evidente, ao menos da parte já publicada e disponível até então. Lisboa procurou adaptar à sua visão monarquista e reformista princípios de autores como Burke, Robertson e Gibbon. As teorias dos estágios civilizatórios são empregadas para defender um otimismo reformista de longo prazo, que procurava colocar as bandeiras revolucionárias em uma perspectiva histórica secular: “agora acelerar-se-á a época agourada por sábios da Europa, que ‘entre os seus habitantes indígenas (por ora embriões da espécie) surgirão também, algum dia, seus Newtons e Lockes” (Lisboa 1818, I, p. 129). Lisboa escreveu uma história da América portuguesa nos quadros do providencialismo lusitano, sem, no entanto, comprometer suas tentativas de compreensão racional da história como processo. Na mesma linha seguirá o também monarquista Luís Gonçalves dos Santos: “foi então que a Providência [...] inspirou aos sobreditos vice-reis os planos de reforma, e melhoramento, com que começou a aformosear-se, engrandecer-se, e a afazer-se mais digna de ser a capital da América Portuguesa” (Santos 1821, 36 pp). “Reformas” e “melhoramentos” tanto mais importantes de serem narrados e descritos quanto mais se presente se fazia, em solo americano, manifestações políticas de contestação não mais restritas ao mau governo, mas aos próprios fundamentos do poder monárquico.

Luis Gonçalves dos Santos: a monumentalização do novo império (1820-1825) Dentre os principais subgêneros para a escrita da história geral, talvez as memórias fossem as mais flexíveis. Há, certamente, paralelismos entre as memórias científicas e as memórias históricas, embora dificilmente um leitor da época as confundiriam. Como subgênero da história geral, as memórias estavam livres de várias limitações devidas ao decoro, principalmente aquelas ligadas aos assuntos que poderiam ou não entrar em uma história geral. As memórias podiam então compensar sua incompletude e provisoriedade com um imenso e variado repertório de assuntos, o que lhes conferia alguma vantagem do ponto de vista do uso político imediato. Como na época elas eram

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consideradas as fontes seguras da história, escrevê-las era o primeiro passo para determinar o sentido dos fatos. Para o período estudado, um dos melhores exemplos do funcionamento das “memórias históricas” é o conhecido livro de Luís Gonçalves dos Santos (também conhecido como padre Perereca), as Memórias para servir à história do reino do Brasil, redigidas entre 1820-1821, mas publicadas apenas em 1825. Nelas, o autor reuniu um conjunto textual heterogêneo com o propósito de defender a permanência de D. João VI no Brasil e, principalmente, interpretar a vinda da Corte portuguesa como um processo de progressiva abolição do que em ele chamava “antigo sistema colonial”. Gonçalves dos Santos era filho de pai português, natural do Porto, e mãe brasileira. Como sua mãe, ele nasceu no Rio de Janeiro, em 1767.20 Seu pai trabalhava na ourivesaria de prata. No Brasil, foi ensaiador de ouro, mas problemas financeiros o obrigaram a abandonar o ofício e a se dedicar à atividade agrícola sem muito sucesso. Toda sua formação se deu nas precárias condições então disponíveis no Brasil, o que foi suficiente para ordenar-se em 1794, após estudar filosofia, teologia, grego, retórica entre outras disciplinas então oferecidas em aulas régias, com professores particulares ou nos seminários da cidade. Entre 1821 e 1822, teve participação ativa nos debates em torno do processo de Independência do Brasil, publicou panfletos e artigos em jornais como o Revérbero Constitucional, de Januário da Cunha Barbosa e Gonçalves Ledo.21 Já quase no final da vida, em 1839, foi nomeado sócio honorário do IHGB. É no contexto do debate sobre a permanência ou não de D. João VI no Brasil que devemos entender as Memórias de Luís Gonçalves dos Santos. O autor afirma, na introdução de seu livro, que tomara a decisão de escrevê-las em 1808, mas, como o título revela, somente em 1821 resolveu reuni-las e publicá-las. A justificativa que apresenta para a decisão de levá-las ao prelo é 20 

Para os dados biográficos seguimos Santos, Noronha. “Introdução”. In Santos, Luís

Gonçalves dos. Memórias para servir à história do reino do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo : EdUSP, 1981. 21 

Cf. Faoro, Raymundo (Org.). O debate político no processo da Independência. Rio de

Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973.

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a ausência de relatos sobre o período. Assim, mesmo considerando-se pouco qualificado, resolvera tentar remediar tal lacuna. O livro é apresentado ao leitor como simples memórias, anotações que, afirma ainda em 1808, resolvera manter por ter percebido a importância sem igual dos acontecimentos que se abriam com a chegada da família real ao Rio de Janeiro. No entanto, a leitura nos revela uma estruturação mais complexa. É possível perceber diversas camadas textuais que sugerem períodos distintos de composição. Por isso, não podemos considerar as “memórias” como testemunhos diretos do tempo que narra, embora o autor procure retirar desse efeito de crônica dimensões de autoridade. O mais provável é que entre 1820 e 1821, com o acirramento do debate em torno da presença da Corte no Brasil, o padre tenha resolvido reunir suas anotações em um longo argumento em defesa do que ele considerava o novo império luso-brasileiro que nascera com o fim do “antigo sistema colonial”. Já na introdução, em que descreve a cidade do Rio de Janeiro antes da chegada de D. João, podemos perceber os efeitos dessa decisão de reestruturar suas notas em torno de um novo centro argumentativo. Mesmo que consideremos que o autor vinha narrando os principais eventos desde a chegada de D. João, a decisão de compor as “memórias” obedece a outra estrutura argumentativa que não a da simples crônica ou memória. O que percebemos na descrição do Rio de Janeiro é a tensão entre o que vai efetivamente escrito e suas funções declaradamente afirmadas nos textos justificativos. Para o argumento do livro era importante mostrar o contraste entre uma cidade modorrenta, atrasada e os progressos promovidos com o fim do “antigo sistema”. O que se vê, no entanto, é o retrato de uma cidade em expansão, com diversas obras que são retratadas como a presença da civilização, da polícia e do polimento. O espaço não é representado como colonial, e sim como um centro de civilização. Isso não fica patente apenas no conteúdo do que é descrito, mas na própria forma escolhida para descrevê-lo, uma transfiguração neoclássica do tecido urbano da cidade. O espaço é divido em vários setores e, após uma apresentação panorâmica, o leitor é levado a percorrer cada rua da cidade e é apresentado aos monumentos de civilização nelas presentes. Essa descrição geométrica é reforçada pela planta urbana reproduzida no primeiro volume, que serve como uma espécie de panorama,

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integrando texto e imagem com o objetivo de provocar no leitor essa visão total tão necessária à compreensão da narrativa ilustrada. As Memórias estão entre os primeiros livros de história escritos no Brasil que contam com um uso estruturado das imagens, que não apenas retratos de príncipes, mas um complemento essencial ao argumento (Cardoso 2019a). Nesse aspecto, o texto estava atualizado com as tendências dos centros ocidentais que, desde o final do século XVIII, vinham revolucionando a experiência narrativa com a agregação de imagens. Como nos famosos panoramas e dioramas, que, além de suas versões edificadas, vinham acompanhados de livros que procuravam reproduzir em menor escala essa experiência de leitura ilustrada e, talvez mais importante, transpor para a narrativa uma forma de olhar a realidade que tinha como seu pressuposto a visão geral, organizada e total dos fenômenos.22

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Muito ainda há que se pesquisar sobre as relações de mútua influência entre uma

nova experiência da história e as formas de relacionamento com a imagem. A rapidez com a qual neologismos como “panorama” e “diorama” entraram para o vocabulário histórico-literário é apenas um indício da importância desse fenômeno. Para uma descrição técnica dos procedimentos, ver Daguerre, Louis Jacques M. Historique et description des procédés du daguerréotype et du diorama. Paris: Alphonse Giroux ET Cie. Editeurs, 1839, passim.

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Planta da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro

Considerada isoladamente, a descrição da cidade do Rio de Janeiro antes de 1808 não cumpriria as funções de contraste que são anunciadas, mas o problema é amenizado pelo autor com a introdução de inúmeras notas que atualizam o cenário descrito com as transformações produzidas por D. João VI. O recurso às notas parece evidenciar a decisão de não interferir em um texto previamente escrito que não tinha as funções que lhe foram posteriormente atribuídas. Após situar geograficamente a cidade, o padre faz um rápido resumo de sua história, desde a fundação por Mem de Sá em luta contra os franceses e a “caterva de huguenotes” (Santos 1825, p. 35), seus escassos e vagarosos progresso, até o final do século XVII, com a descoberta do ouro nas Minas, o que marca um momento de aceleração em seu desenvolvimento. Com a chegada de aventureiros e comerciantes atraídos pelos metais, “[...] desde logo começou esta cidade a engrandecer-se em povoação, e edifícios; como também em comércio, e riqueza, donde precedeu merecer dos senhores reis de Portugal uma maior atenção e estima”.23 Continua a narração pela criação do bispado e elevação da cidade a “capital” do Brasil em 1763. O que o relato mostra é a história da civilização do Rio de Janeiro, em um tipo de narrativa profundamente enraizada no programa ilustrado. Narrativa essa que desloca o foco do problema da civilização da responsabilização dos portugueses pelo descaso, tão comum na retórica da Independência, para o papel dos próprios colonos na edificação da sociedade. A vinda da Corte poderia ser entendida como uma continuidade ou coroação desse progresso, e não apenas como uma ruptura. A civilização não vinha ao Brasil apenas como uma doação europeia, mas aqui se desenvolvia a partir de uma dinâmica interna, dinâmica essa que antecipava a possibilidade da vinda da Corte e sua instalação no Rio. Teria sido nos governos dos vice-reis Marquês de Lavradio e Luiz de Vasconcelos e Sousa que: [...] o Rio de Janeiro fez o maior progresso em edifícios, regularidade das ruas, e civilização dos seus moradores, como também na extensão de seu 23  Idem, ibidem.

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comércio, agricultura, e alguns ramos de indústria, e no aumento de sua população (Santos 1825, p. 36).

Em seus panfletos de polêmica contra os portugueses em 1821, o padre Perereca procurava refutar os argumentos que negavam ao Brasil a capacidade de sediar a monarquia pela falta completa de civilização. Ao mostrar na história da cidade do Rio de Janeiro sua antiga civilização, reforçada em 1808, Gonçalves dos Santos, ao mesmo tempo em que elogiava D. João VI, garantia a centralidade da cidade como sede senão da monarquia como um todo, ao menos do Brasil. Na mesma linha seguida por Monsenhor Pizarro e Balthazar da Silva Lisboa, a história do Rio de Janeiro era transformada em laboratório para a investigação da civilização no Brasil. O programa era bastante parecido com o de Robert Southey, mas aplicado a um conjunto documental muito mais fácil de ser organizado: a história do Rio de Janeiro. O pseudônimo de “O Fluminense”, adotado pelo padre Perereca em alguns artigos publicados no Revérbero, seria apenas mais um sinal dessa defesa da centralidade do Rio de Janeiro. Se nas Memórias do Reinado de Dom João VI, publicadas em 1818, o baiano José da Silva Lisboa escrevia a primeiro grande elogio do monarca. O carioca Luís Gonçalves dos Santos, entusiasta de Cairu, saberia mesclar as glórias da dinastia de Bragança com a própria história da cidade. Não é nosso objetivo aqui fazer uma análise exaustiva das Memórias, mas apenas dar uma pálida visão da complexidade e importância que a escrita da história assumia naquele contexto. Publicado em uma edição luxuosa pela Imprensa Régia, o livro do padre Perereca trazia, principalmente em seu primeiro volume, um rico material iconográfico de apoio ao texto. Por meio desse material, era exibidas ao leitor mais cético as maravilhas da civilização do Rio de Janeiro. Os movimentos da Corte eram minuciosamente narrados, seja sua chegada, no mapa-roteiro do trajeto da frota na Baía de Guanabara, seja na planta da monumental “Varanda Régia” construída para a aclamação de D. João. O padre procurava demonstrar que o caminho aberto em 1808 era a única via segura para a civilização do Brasil, evitando as ansiedades revolucionárias. Em suas descrições ele produzia o efeito de multiplicar a presença civilizatória da Corte e do Estado pelo território.

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Planta da varanda régia erguida para a aclamação de d. João

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Projeto de monumento comemorativo da chegada da família real portuguesa

Luís Gonçalves dos Santos foi um dos mais vigorosos defensores da ideia de monumentalizar a civilização do novo império. Lamentou, em suas memórias, que o monumento comemorativo proposto pelo Senado da Câmara do Rio de Janeiro não tenha sido realizado e o exibe em suas páginas com um misto de homenagem e esperança de que um dia fosse erguido. Por ocasião do juramento da constituição portuguesa por D. Pedro I, em janeiro de 1821, cogitou-se a ideia de um monumento no rocio comemorando “nossa regeneração política”. Mais de 40 anos depois, os desejos do padre talvez tenham se tornado realidade. No mesmo local planejado, no antigo rocio, erguia-se, em 1862, a estátua equestre de D. Pedro I. Do neoclássico ao romântico, do obelisco à estátua equestre, de D. João a D. Pedro, do império luso-brasileiro ao Império do Brasil, entre rupturas e continuidades produzidas e sofridas em meio século, uma história nacional ia sendo escrita. *** Ao longo do século XVIII, em especial na segunda metade, o interesse pela história vai se ampliando, da mesma forma que se ampliavam as camadas da realidade que passavam a exigir algum tipo de tratamento histórico-temporal. Mesmo as monarquias absolutas, como a portuguesa, precisavam produzir um discurso histórico legitimador que fosse além dos cânones das antigas crônicas e histórias dinásticas. Esses estados monárquicos precisavam responder à grande pergunta do mundo político moderno: estamos na direção histórica correta? Qual o futuro dessa unidade cada vez mais frágil chamada de império português? Não por acaso, a escrita da história, ao lado da economia política, foram as grandes preocupações do reformismo ilustrado também no mundo luso-brasileiro (Pimenta 2011). Ao desembarcar no Brasil, em 1808, a Corte portuguesa e parte considerável dos dirigentes do império, sabiam que o passado local deveria ser crescentemente incorporado nesse processo de modernização controlada da experiência da história. Não era possível mais limitar o interesse e os auditó-

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rios, era necessário disputar as narrativas. A luta política, cada vez mais feita pela imprensa, confrontava interpretações históricas concorrentes. É nesse sentido que podemos falar no surgimento de uma historiografia joanina no Brasil. Mas diferentemente das antigas histórias dinásticas do Antigo Regime, esses discursos não tinham sua legitimidade garantida pelo aval real ou de restritos espaços acadêmicos. Eles precisavam disputar legitimidade em espaços cada vez mais plurais. É nesse contexto que podemos interpretar as histórias do Brasil, ou produzidas no Brasil, por autores como Luís Gonçalves dos Santos, Ayres de Casal, José da Silva Lisboa (Cairu), José Bonifácio de Andrade e Silva, Balthazar da Silva Lisboa, dentre outros (Araujo 2009; 2010; 2010b; Diniz 2010; Rosa 2011). Esses relatos tentavam produzir a sensação de que o futuro estava sob controle, que o passado ainda fazia sentido e continha experiências que, apesar de ocultas, poderiam ser revitalizadas na significação do presente. Ao celebrar o reinado de D. João, por exemplo, autores como Cairu e Santos mantinham a antiga ideia de “benefícios” e “liberalidade” real, mas a lista dessas virtudes incluía cada vez mais ações de abertura da economia e da sociedade, o que eles resumiam na ideia-força de que D. João estava promovendo o fim do sistema colonial.24 Do ponto de vista estrutural, essa historiografia joanina permitiu aos homens do Brasil ter à mão sínteses cada vez mais amplas de suas histórias. Mesmo que mobilizadas para produzir adesão afetiva e reconhecimento à autoridade real e ao projeto do Reino Unido, esses textos também produziram o efeito colateral de uma maior visualização das diferenças entre Brasil e Portugal (Araujo 2008). Também nesse horizonte podemos compreender o grande projeto de uma história do império português desenvolvido pelo historiador britânico Robert Southey. A pesquisa de Ramos mostrou que a grande História do Brasil publicada por Southey entre 1810 e 1819 era 24 

“Era uma literatura de circunstância, que traçava um caminho entre a história e a

política, introduzindo novas palavras e ideias, fazendo com que a linguagem se politizasse e entrasse na vida pública. Transformavam palavras antigas em conceitos novos, que passaram a ser chaves interpretativas para reconstituir os processos de maior duração, como por exemplo, a própria edificação do Império brasílico”. (Neves 2011, p. 248-249).

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inicialmente parte desse projeto maior. Projetada para defender a unidade do mundo luso, também ela seria utilizada para a construção de uma identidade brasileira distinta da portuguesa. Dividido entre diferentes e dinâmicas expectativas dos ambientes intelectuais britânicos e luso-brasileiro, a obra de Southey documentou as ambivalências da modernização do discurso histórico nesse começo de século XIX, bem como revelou a ampla circulação de ideias, conceitos e pessoas que ajuda a explicar a formação dialógica dessas narrativas (Ramos 2013), muito diferente do modelo da “importação de ideias” tão cara à historiografia centrada na crítica das ideologias. O projeto reformista de reconstruir a identidade lusa em termos nacionais em um âmbito imperial encontrou o seu limite em 1820 com a Revolução Constitucionalista do Porto. A divisão material do Estado, em 1808, deu maior energia ao projeto de uma nação que integrasse as periferias do império, mas a velocidade dos acontecimentos revelou as dificuldades estruturais para produzir uma comunidade de interesses e sentimentos em territórios tão descontínuos. O resultado foi a bifurcação do processo de nacionalização dessas realidades. A partir de 1822, Brasil e Portugal teriam que reconfigurar esse legado em projetos nacionais distintos, afastando a possibilidade de um desenvolvimento análogo ao que produziu o homem britânico ao longo do século XVIII com a convergência de Escócia, Inglaterra e Irlanda (Shields 2010, p. 8; Melton 2008, posição 1824-1836).

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CAPÍTULO I I I I NDEPE NDÊ NCIA, R EVOLUÇÃO E ESCRITA DA H I STÓR I A

A) A EXPERIÊNCIA AMBIVALENTE DAS REVOLUÇÕES O DEBATE NA IMPRENSA E A EXPERIÊNCIA DA REVOLUÇÃO A conjuntura que havia iniciado em 1808 encerra-se, em abril de 1821, com o retorno do rei e sua Corte para Lisboa. Pressionado pela eclosão da Revolução Constitucionalista do Porto (1820), D, João VI deixa o reino americano entregue ao príncipe-regente D. Pedro. A conjuntura que permitira imaginar um futuro mimetizado na ideia de um império luso-brasileiro, complexificada com a criação do Reino do Brasil, começava a se esgotar. Seja pelo alargamento das expectativas que as cortes constitucionais e o constitucionalismo abriam, seja pelos desdobramentos imediatos de seus impactos nos interesses políticos que convergiam para o Rio de Janeiro, a solução absolutista-reformista que estava no centro da historiografia produzida no período joanino perdia espaço. Com ela, também enfraqueciam as expectativas de uma experiência histórica centrada na ideia de uma restauração ou regeneração da história portuguesa e de um modelo de vida letrada (Araujo 2008). A experiência revolucionária, tão combatida e temida por muitos dos letrados reformistas, como Silva Lisboa, Hipólito José da Costa e mesmo José Bonifácio, emergia em 1820 e precisava ser conduzida, combatida e

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significada pelos diferentes atores políticos. Criticando o partido dos “desejadores do governo antigo”, assim se manifestava em agosto de 1822 o Revérbero Constitucional Fluminense, editado por Januário da Cunha Barbosa e Joaquim Gonçalves Ledo:

A espécie humana tem de tal forma dilatado a esfera de suas luzes, que não pode mais conter-se na concentração dos poucos conhecimentos dos séculos passados; quer reintegrar-se dos seus naturais e inauferíveis direitos de propor novo pacto social em Liberdade [...] não se devendo argumentar, o que seria conclusão ilegítima, do que tem sido, para o que devia ser. (Revérbero 1822, II, 11, p. 128)

Essa celebração das mudanças nem sempre chegava à defesa aberta da Revolução, mas lá estava a experiência revolucionária infiltrando-se por diferentes subterfúgios, mesmo quando autores mais conservadores a evocavam para combatê-la. No mesmo artigo, os chamados republicanos são criticados em sua confiança ingênua nos valores da razão e da democracia, crédulos na perfectibilidade da natureza humana e responsáveis pelos horrores da Revolução Francesa. Em sua crítica da democracia, reivindicava as teorias de uma história cíclica: Nem se pode imaginar o fazer Leis, e executá-las democraticamente [...]. A habilidade, e superioridade de talentos promoverá demagogos; e assim a democracia tenderá sempre à aristocracia, e esta à tirania, como se tem observado em todas as idades do mundo”. (Revérbero 1822, II, 11, p. 129)

O projeto de independência do Brasil enquanto separação política total de Portugal resultou de uma rápida radicalização nas ideias articuladas de “emancipação” e “autonomia”, de modo a atingirem outra, de criação de um novo Estado e de uma nova esfera de soberania. Como destaca Santos, ao analisar as transformações na avaliação histórica do período colonial entre 1821 e 1822:

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No que diz respeito às leituras do passado, se em 1821 o topos dos “trezentos anos de opressão” é mobilizado pontualmente, a partir de dezembro, ele passa a ser evocado de forma especificamente qualificada. Não se trata, apenas, de denunciar as arbitrariedades do Antigo Regime, mas sim de uma opressão diretamente relacionada à condição colonial. (Santos 2010, p. 107)

As pesquisas que hoje começam a ganhar forma não pretendem retomar uma história épica de formação nacional, mas compreender como as transformações nas estruturas e o acontecer de eventos catalisadores ao longo do século XVIII serviram de base para os novos arranjos sociais, políticos e conceituais que conformariam a história a partir da emergência dos estados nacionais. A nacionalização dos mundos da vida não foi um destino, nem fruto do acaso ou invenção de letrados geniais. Foi o resultado, algumas vezes não visado, e a resposta que aquelas sociedades produziram frente às transformações globais que atravessavam. Nesses três anos (1820-1822), vemos, como já apontavam alguns dos contemporâneos, os acontecimentos de três séculos – desde o Descobrimento em 1500 –, que passavam por intenso processo de compilação, novamente condensados e reescritos. O que marca a modernidade, a dimensão revolucionária desse processo, não é somente a reescrita da história passada e a reprojeção do futuro, mas a crescente consciência que os sujeitos históricos adquirem da natureza deste procedimento e de sua importância na luta política. Seria ingênuo imaginar que, uma vez disponível uma nova experiência da história, as formas anteriores desapareceriam. Elas serão constantemente ressignificadas, no mínimo por agora terem de dividir o espaço com outras possibilidades de experiência. Portanto, a tentativa de reduzir o caráter moderno dessa experiência pelo apontamento de suas ambivalências e permanências parece não atentar para o próprio sentido do tempo moderno como capaz de incorporar e transformar essas dimensões. Admitir esse aspecto da experiência moderna de história, ou seja, sua pulsão à universalização, não significa concordar e aceitar esse procedimento como a única descrição possível daquela realidade. Trata-se do ponto de partida incontornável para uma abordagem crítica que rompa com os relatos de um pro-

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jeto moderno incompleto, fundado em versões normativas pouco críticas que naturalizaram noções de atraso e procedimentos descritivos que simplesmente aplicam à realidade local modelos analíticos cronologicamente defasados, variando apenas o quantum de “atraso” se deveria aplicar aos fenômenos. Não por acaso esse tipo de procedimento é uma das formas de dar sentido à experiência que se tornou possível com a temporalidade moderna: do nosso futuro ser a realização de certos estágios já percorridos pelos países europeus. Na dissertação de Rafael Fanni, que se concentra no vínculo entre politização e temporalização, um dos momentos mais impressionantes é o encurtamento do passado em sucessivas ondas até sua quase total supressão no auge do vértice revolucionário. Claro que esse relato precisa ser compreendido como um entre vários possíveis. Ele está ancorado na leitura de jornais e panfletos editados no Rio de Janeiro e, mais verticalmente, em um deles, o Revérbero Constitucional Fluminense. De todo modo, o autor mostra como a conjuntura evolui de um otimismo quanto às possibilidades de uma unidade “constitucional” com os portugueses, passando pela dúvida e ceticismo frente às intenções recolonizadoras das cortes. Nesse momento, se para os portugueses da Europa o projeto da regeneração alimentava a ideia de uma reativação de traços positivos do passado do Reino, no Brasil, o passado local era identificado com os 300 anos de escravidão colonial, ainda que interrompido, em 1808, com a vida da Corte. O que se defendia era a manutenção de um estado adquirido, uma etapa evolutiva que não poderia retrogradar sem grandes e imprevisíveis consequências para o corpo político imaginado. Uma imaginação celebrada e confirmada com a elevação do Brasil ao estatuto de reino, como vimos no capítulo anterior. Assim, à medida que as divergências entre os projetos das cortes em Portugal e das elites alinhadas com D. Pedro divergiam, o passado reivindicado era apenas aquele iniciado por D. João, celebrado como fim do sistema colonial. Os eventuais progressos anteriores, evocados por uma vida letrada precária do tempo dos vice-reis, progressos que alimentavam os brios e os privilégios reivindicados pelas elites locais, ganhavam agora contornos mais ambivalentes. Por um lado, serviam à defesa da maturidade do Brasil, tão questionada por alguns publicistas em Portugal na guerra de panfletos ao longo de 1821. Esse passado local legitimava tanto a esperança em uma uni-

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dade entre duas partes iguais da monarquia, quanto, adiante, o discurso da emancipação pelo progresso natural nas relações entre metrópole e colônia. Um dos exemplos da ambivalência desse processo é o uso do discurso do “abandono de Portugal” por aqueles que exigiam o imediato retorno de D. João VI. Sua mobilização “contribuiu para cimentar o caráter nefasto e explorador da atividade colonial na América” (Fanni 2014, p. 76), pois se os portugueses da Europa não estavam satisfeitos com a situação de um reino “abandonado” pelo monarca, reduzido quase a um estatuto de colônia, como poderiam os portugueses no Brasil aceitarem a mesma posição? Ao traduzir a experiência aberta em 1808 como a de inversão da relação entre metrópole e colônia, os constitucionalistas em Portugal acreditavam contribuir para sensibilizar o soberano da necessidade de retorno. Ao mesmo tempo, adensavam a experiência do viver em colônia como estado indigno e de opressão. Adiante, poderão dizer os brasileiros, como parte do discurso da recolonização, que os portugueses não deveriam desejar para os outros o que não suportaram para si mesmos. Esse e outros movimentos conduziriam para episódios de radicalização desse tempo revolucionário e de uso do passado como locus de disputa entre diferentes identidades políticas em um espaço público em expansão. Essa mutação da experiência foi documentada e intensificada pelo emprego do neologismo “recolonização”. Em torno desse novo conceito, agrupou-se um campo semântico e um acúmulo experiencial que foi decisivo para a evolução dos acontecimentos até a emancipação política. Ao definirem o projeto das cortes para o Brasil como “recolonizador”, os panfletários no Rio de Janeiro davam um golpe fatal no projeto de unidade do império da forma como concebido em Lisboa. Do lado de cá do Atlântico, cabia apenas a radicalização da revolução, entendida agora como emancipação e ruptura. Claro que a radicalidade do discurso dependerá não apenas do lugar, mas também do momento da enunciação. Mais do que congelar um contexto muito dinâmico, a descrição analítica serve para alargar nossa consciência dos limites do repertório discursivo disponível para aqueles homens. Como muito bem sintetiza Fanni, demonstrando como a concepção processual do tempo histórico tornava-se uma força de emancipação: “Não importava se demorasse um pouco mais ou um pouco menos, o certo era que, a despeito

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da desigualdade dos ritmos, as mudanças ocorreriam de fato. Assim, os fantasmas do ‘despotismo’, ou até mesmo da “recolonização”, enfraqueciam-se diante da imagem do progresso” (Idem, p. 50). Ou ainda, mais à frente, em outra formulação precisa: “Nesse sentido, a autoconsciência do tempo histórico interferiu diretamente na visão sobre os papéis assumidos até ali por ambos os reinos, fazendo com que passado e futuro se tornassem objetos de reflexão e disputa” (Idem, p. 59). Esse momento revolucionário se alimenta de uma homogeneização do tempo, que vai sendo entendido como um cronótopo, uma época definida. Essa consciência fica muito bem documentada em uma das passagens destacadas pelo autor, que vale a pena ser transcrita pelo caráter arquetípico da emergência de uma “época das constituições» em uma narrativa de sincronização global. Apesar dos diferentes estágios, o mundo começava a poder ser experimentado dentro de uma só história: O meu espírito não se tem unicamente derramado pela ilustrada Europa: eu vejo já o novo Mundo, que ansioso me estende os braços. Tempo virá, em que o mesmo oriente, a mesma África me patenteiem as suas vastas províncias, e conheçam a doçura do meu suave mando. Então cairá em ruínas por todas as partes o teu injusto, e mal seguro Império.” (Diálogo entre a Constituição e o despotismo, Rio de Janeiro, Imp. Nacional, 1821, pp. 6-7, apud Fanni, 2014, p. 88).

Em 1821, muitos autores apostavam ainda em uma solução de unidade renovada entre as duas partes da monarquia, imaginavam, como Silva Lisboa, que os portugueses reconheceriam os progressos feitos no Brasil. É assim que temos o uso direto de narrativas ilustradas que visavam atestar os progressos da antiga colônia. Fanni cita um desses momentos, retirado do jornal Conciliador do Reino Unido, editado por José da Silva Lisboa, em março de 1821: Roberto Southey, célebre poeta laureado de sua majestade britânica, e excelente escritor da História do Brasil, dada à luz proximamente, assim diz: No Brasil o Comércio, Agricultura, e População, estão rapidamente crescendo, e são suscetíveis de quaisquer melhoramentos, que o benévo-

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lo Soberano, e um Ministério sábio, possa introduzir. Todas as coisas aí tendem ao adiantamento do povo; ele é desejado pelo seu Governo; e se promove pelo teor das Leis, e é favorecido pelo espírito do século. [...] Deus na graça preparou aos brasileiros esta feliz mudança: conceda-lhe também ciências, e verdadeira piedade; e que possam florescer por todas as gerações, tendo por sua herança uma das mais belas porções do globo (Lisboa apud Fanni, p. 99).

Outro aspecto que merece destaque na dissertação de Rafael Fanni é o cuidado com que levanta e descreve as metáforas presentes nas fontes que estudou. Sejam aquelas que se referem ao tempo diretamente, sejam as que descrevem e produzem uma experiência de comunhão de experiência, de contaminação de valores e percepções que ajudavam a lidar com novos conceitos-realidades como opinião pública, frente à grande expansão dos sujeitos e objetos do processo político. Metáforas como fermentação, eletricidade, vertigem e faísca ajudaram a descrever e produzir novas formas de comportamento e ação. A mobilização das ruas, o convencimento das grandes levas de homens, a necessária sintonia com um tempo que ganhava cada vez mais protagonismo e autonomia exigiam e produziam não apenas um novo repertório de conceitos, mas também novas imagens e metáforas. Uma das marcas do tempo revolucionário é a cisão entre presente e passado, um distanciamento que visa criar uma nova história que pode, em certas situações, projetar um futuro utópico. Esse movimento é registrado na documentação mobilizada pelo autor no trecho a seguir, retirado de uma edição do Revérbero de maio de 1822: Nós tínhamos abertas profundas chagas, gemíamos debaixo de uma dívida horrorosa, sofríamos todos os males provindos da escravidão de 300 anos, e da ruinosa administração que se lhe seguiu nos quatorze últimos, e nós não vimos uma só providência, uma só lei que nos respeitasse diretamente e nos produzisse o menor gênero de alívio, ou esperança. (Revérbero Constitucional Fluminense, apud Fanni 2014, p. 125).

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A força do novo tempo que se deseja anula mesmo o período joanino no Brasil, reivindicado como fonte dos progressos que legitimavam a emancipação. Aqui a Independência parece não precisar de outra legitimidade que a certeza histórica e o senso de justiça. Claro, esse movimento não foi unânime entre as elites políticas, nem sua duração poderia ser prolongada em demasia. Feita a ruptura, era preciso reaver o passado, ao menos parte dele. Mas não era essa a urgência do tempo, o passado poderia esperar, a nova nação fundava a si mesma entre uma filosofia e uma ética da história. Como bem demonstra a passagem a seguir, o conceito de nação em 1822 não exigia a densidade identitária-cultural dos nacionalismos futuros. Quem produz essa lista é ninguém menos que Raymundo José da Cunha Matos, um dos fundadores do IHGB, em 1838: [...] também agora por muito mais fortes razões do aumento da sua população, e agricultura, estabelecimentos literários, força física e moral das suas Tropas poderá representar dignamente como nação livre, soberana, absoluta, e independente entre as mais ilustres potências do universo, muito principalmente achando-se ligado ao reino de Portugal também livre, soberano, absoluto, e independente, e vivendo sujeito ao mesmo excelso monarca, e na sua ausência a seu augusto filho primogênito e herdeiro regente deste reino do Brasil, e nele lugar-tenente imediato à sua pessoa (Carta histórico-política-militar... apud Fanni, p. 117).

Essa nação abstrata e racional alarga-se em otimismo, se transmite como uma descarga elétrica, para nos mantermos no campo de imagens da época. Se o passado pode ser suspenso, o presente, tornado história contemporânea, encontra em si mesmo a sua confirmação e legitimação. A modernidade em seu momento revolucionário, como já destacaram muitos pensadores, precisa fundar a si mesma. Não se espera mais aprender com a história apenas nos livros, cujas páginas mais confundiam do que ensinavam. A história se aprende fazendo: O Século presente, reassumindo todos os feitos da antiga história, nos amplifica um vivo quadro, onde mostra retratadas recentes ações, talvez mais

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estupendas, e de caminho se lê a política das nações, sem dependência da fadiga, com que dantes para alcançarmos este conhecimento revolvíamos antigos escritores, cujas truncadas páginas mal nos ministravam confusas ideias, umas vezes pela sua desmarcada exageração, outras por menos exatas, e quase sempre pela redundância de períodos pouco enérgicos. Agora sim, já não carecemos admirar desconhecidos heróis, nem acontecimentos remotos, tendo a par de nós contemporâneos, que excedem a meta do brio, e do valor, e imortalizam outros fatos mais gloriosos, que fazem êmulos para a imitação; mas se algum Povo sabe conceber essa louvável ambição, e com tudo se deixa sucumbir à dor de lhe não serem transmitidas as façanhas, que ensinam o Patriotismo; certamente é digno de lastima, porque não pode aperfeiçoar cidadãos civilizados para bem fazer sua nação. (O Espelho, nº 41, 8 de abril de 1822, apud Fanni 2014, p. 128).

Ainda que não desaparecessem totalmente os sonhos de uma reunificação, os letrados e homens públicos envolvidos se veriam diante da imperiosa necessidade de dar conta de uma experiência de ruptura revolucionária – em seu sentido moderno – que toda a sua formação anterior procurara evitar. Para o Revérbero, assim como a migração de Corte para o Brasil havia adiado a emancipação que se espalhava na América espanhola, a volta do rei para Portugal deveria acelerar o processo de separação entre as duas partes da monarquia portuguesa (Revérbero: II, 17, 1822). É certo, no entanto, que a Independência representou um grande afastamento entre experiência e expectativa, o Brasil não poderia mais ser pensado como a nova Lusitânia. Os mais otimistas acreditavam que os princípios da economia política, do liberalismo e do constitucionalismo seriam suficientes para fundar um novo pacto social. Os mais moderados, receosos da base escravista e do legado fragmentador do período colonial, eram céticos quanto às possibilidades de uma abertura e liberalização acelerada. A opção pela monarquia constitucional tendo à frente um herdeiro da casa de Bragança foi o caminho tranquilizador que garantia alguns dogmas há muito consolidados entre elites políticas, muitos dos quais criados, reforçados ou atualizados a partir de 1808.

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Para muitos, a independência política poderia significar livrar-se do peso do passado português. A imagem de um Portugal em decadência e de um Brasil livre desse legado reforçava uma interpretação mais otimista do movimento da história. Essa ideia ficou muito marcada no lema do Revérbero: redire sit nefas. Retirado de Ovídio, o lema pode ser traduzido como “não retroceder” e referia-se particularmente ao que na conjuntura era entendido como reação às medidas recolonizadoras das Cortes de Lisboa. Em polêmica contra os defensores da ideia de que a constituição original portuguesa não deveria ser modificada, afirmava o Revérbero: “detestar ceticamente toda a inovação, é detestar os progressos [...]” (Revérbero, 11, 1822, p. 127). A imagem da colonização portuguesa também vai ganhando novo tom, perde a perspectiva histórica que lhe procurava compreender as circunstâncias e assume todas as cores da crítica ilustrada ao sistema colonial. O próprio conceito de emancipação, entendido agora como revolução, passa a ser evocado pelos atores políticos, recuperando a experiência da América espanhola não apenas em chave negativa, exemplo de viabilização sustentada de ruptura entre a América colonial e a Europa metropolitana (Pimenta 2006). A separação, justificada como emancipação, podia ser encarada com a mesma inevitabilidade do crescimento individual. Como destacou Santos, “[...] se priorizava a experiência histórica recente em detrimento da remota, colonial, como capaz de fornecer lições para a elaboração de projetos de futuro. Nesse contexto, são recorrentes, a partir de 1822, narrativas históricas que apresentavam os anos de 1808, 1815 e 1820-22 em uma cadeia processual” (Santos 2010, p. 124). No mundo luso-americano, agora tornado brasileiro, o período que vai de 1822 até 1831 é marcado pelas constantes oscilações nas expectativas quanto ao ritmo e à natureza das reformas que a Independência deveria promover. Essa cadeia processual destacada por Santos não deixará de ser reescrita e reinterpretada em cada nova conjuntura e disputa pelos diferentes grupos políticos. Como destaca João Paulo Pimenta, “a criação de um Estado nacional brasileiro [...] teria que superar desavenças e dissidências entre províncias e no interior delas, de modo que é razoável considerar o período de governo de Pedro I (1822-1831) como de crise de consolidação da nova ordem” (Pimenta 2009a, p. 57).

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Os debates na Assembleia que deveria elaborar uma Constituição para o nascente Império do Brasil são interrompidos em 1823 quando Pedro I a manda fechar à força de armas, exilando vários líderes que haviam protagonizado as lutas políticas pela Independência e outorgando, no ano seguinte, uma Carta Constitucional. O Primeiro Reinado se estenderá marcado pela perda de base de sustentação do imperador até 1831, quando será forçado pela Revolução de 7 de abril a abdicar em favor de seu filho menor. Instaura-se então um governo regencial que durará até 1840 e será marcado pela eclosão de várias revoltas de natureza política e social que ameaçavam pontos centrais do consenso reformista. *** O debate da Independência parece ter esgotado a experiência da história centrada na ideia de regeneração de uma idade do ouro portuguesa, deixando livre o caminho para o desenvolvimento de teorias constitucionalistas e racionalistas, como se a nova nação pudesse ser compreendida e “praticada” como um experimento racional (Pereira 2013). Ao longo do processo muitas vozes levantar-se-iam contra essa compreensão, chamada de democrática, revolucionária, de uma razão abstrata. Essa reação somar-se-ia à percepção de que uma nova relação com o passado colonial deveria ser estabelecida. As experiências dos conflitos políticos em um tempo em aceleração contribuiriam para reforçar a ideia de que, além de fundado em um contrato constitucional, o novo país deveria constituir-se enquanto identidade cultural. A história será então evocada como a força capaz de produzir essa metamorfose. Independente de Portugal, o Brasil deveria identificar suas singularidades, sem que isso pudesse significar, evidentemente, uma total negação do que se havia desenvolvido, no plano da história real, ao longo dos séculos passados; tampouco ignorando as transformações recentes que articulavam tal narrativa ao conceito de um Brasil singular e preparado para sua emancipação. A nova situação política aberta em 1820 ampliou a liberdade de imprensa e expressão. O modelo do intelectual reformista protegido e acoplado ao Estado, em uma situação de circulação controlada da opinião, deu lugar a um processo conflituoso de aprendizado e negociação de autonomias e

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legitimidades. Essa situação afetaria diretamente as condições para a escrita da história. A necessidade e o desejo por história eram crescentes, seja por parte da sociedade civil, seja do Estado. A luta pelo reconhecimento da Independência levou o governo do agora monarca constitucional a recrutar letrados nacionais e estrangeiros capazes de produzir narrativas históricas da legitimidade nacional. Do ponto de vista da sociedade, conhecer a história pátria tornava-se um requisito do exercício pleno da cidadania, uma exigência do moderno patriotismo. Os debates nos recém-abertos parlamentos nacionais exigiam dos representantes da nação a capacidade de articular o processo histórico em defesa de suas agendas. O mercado intelectual europeu, em particular o britânico e o francês, viviam um momento de grande demanda por relatos históricos que entretivessem e instruíssem um crescente número de leitores nos assuntos históricos das novas nações em surgimento ao redor do mundo. Para o “homem de Estado”, para o negociante ou mesmo para o cidadão comum, passou a ser fundamental o conhecimento histórico para a tomada de decisão e orientação política, comercial ou existencial, mas também como forma de preenchimento de um novo tipo de tempo (o nacional) que se disponibilizava, com o qual ao se entreter se era entretecido. Relatos como os de De Pradt, Beauchamp, Beaumelle e Ferdinand Denis sobre o Brasil recém independente tanto alimentavam os mercados europeu e local, quanto atendiam aos interesses das classes dirigentes na busca de novas formas de legitimação e orientação. Como bem demonstrou Wilma Peres Costa, a chamada Era dos Congressos iniciada em Viena, em 1815, imporia exigências ao reconhecimento dos novos corpos políticos forjados naquele contexto de crise: [...] as agremiações políticas deviam ser “reconhecidas como tais” a partir de um complexo repertório de requisitos, que eram informados por essa enorme proliferação de informações sobre seus territórios, populações, costumes, formas de governo, que alimentou toda uma esfera pública animada pelos relatos de viagem, pelos anuários estatísticos e ganhou um lócus formidável nas arenas internacionais estabelecidas na Era dos Congressos (Costa 2015, p. 263).

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Essas novas demandas surgem em um contexto em que a concepção moderna de autoria enfatizava noções como independência e originalidade. Trabalhos coletivos por encomenda, como os que produziram a Universal History não deixariam de existir, mas o valor da autoria tendia a se sobrepor ao do artesanato letrado. James Melton observa que, na Grã-Bretanha do século XVIII, a forte indústria do livro garantiu a diversos autores um tipo de independência ancorada na venda do impresso, o que tornava o vínculo com o estado e suas autoridades algo a ser evitado. Nos casos da França e dos estados alemães, os autores dependiam mais do patrocínio governamental para o financiamento de suas atividades. Como não poderiam abdicar dos novos protocolos da autoria e independência, desenvolveram um discurso e uma “visão transcendente de si mesmos como servidores do bem público”, “representantes da opinião pública” (Melton 2008, location 1843). Portanto, mesmo em situações em que o mercado do livro não fosse capaz de garantir sozinho a “sobrevivência” do letrado, outros mecanismos de proteção e separação foram sendo constituídos. Claro, não sem questionamentos e limites.

A EXPERIÊNCIA DA TIRANIA: A TRADUÇÃO COMBATIVA DOS ANAIS DE TÁCITO (1820-1821, 1829) A primeira tradução completa dos Anais para a língua portuguesa devemos a José Liberato Freire de Carvalho, que imprimiu, no periódico O Campeão Português, entre 1820 e 1821, os dois primeiros livros. Em 1830, sairia pelas mãos do editor francês Aillaud a tradução completa. A história dessa tradução, produzida entre 1809 e 1829, e os motivos alegados por seu tradutor para empreender a tarefa de verter a mais influente obra de Tácito, oferecem-nos indícios de como a experiência daqueles anos de crise orientou e era, por sua vez, orientada pela releitura de alguns temas centrais da linguagem tacitista. Na Advertência que antecede a tradução na sua edição de 1820, Freire de Carvalho afirmaria o que seria uma espécie de mantra para muitos de sua geração, a admiração por Tácito como um guia na luta contra os tiranos e seus governos:

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Nestes dois anos de prisão constante foi pois começada, e acabada, esta o. minha tradução dos Anais de Tácito, com o 1 Livro, e parte do 2°. das História do mesmo autor. Assim parece justo que uma obra, feita originalmente para desmascarar a tirania, e traduzida por ocasião de um ato atroz da mesma tirania, não esteja por mais tempo privada da luz da Imprensa Portuguesa [...]”. (Carvalho 1820, p. 5) Em diversas outras ocasiões, o tradutor fez questão de ligar os Anais a sua própria vida, marcada, segundo ele, pela perseguição injusta e pela luta contra a opressão. Nascido em Coimbra, em 1772, Freire de Carvalho tornou-se cônego da regra de Santo Agostinho, junto à qual estudou filosofia e teologia, matérias que logo depois viria a lecionar no mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, por volta de 1800, aos 15 anos (Silva 1859, pp. 418421; Carvalho 1855, p. 411). Em suas Memórias, publicadas já no final da vida, em 1855, o tradutor oferece o relato mais detalhado de sua formação (Carvalho 1885, passim). O significado dos estudos de filosofia e teologia – e talvez de todo o rumo de sua trajetória individual – seria transformado pela erupção do evento revolucionário na França, sobre o qual deixou o seguinte depoimento: Era no ano de 1789 que começaram estes meus estudos, em que também começou a revolução francesa, e deles e dos extraordinários acontecimentos que aquela revolução foi produzindo, também na minha cabeça se operou uma revolução completa. Com sumo desejo de ler tudo o que se ia passando, li quanto pude haver à mão; e com esta leitura se entrou a desenvolver em mim um ódio profundo a tudo o que eram abusos, excessos de poder, absolutismo, tirania... (Carvalho 1855, p. 410).25

A origem principal da linguagem para dar vazão a esse ódio à tirania, senão uma das fontes desse mesmo ódio, foi a obra de Tácito, como vimos no primeiro capítulo. No período que leciona em Lisboa, entrou efetivamente na precária e perigosa vida política portuguesa de então. Afirma ter lido “[...] 25 

É preciso observar que esse julgamento claro e preciso do significado da Revolução

Francesa era possível em 1854, quando tomou a decisão de organizar as suas memórias.

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quanto bom e mal se tinha escrito em história, política, filosofia e ciências morais no século passado, assim como o que se ia escrevendo no século que principiava [...]” (Idem, p. 411). Essas leituras logo chamariam a atenção das autoridades, sendo obrigado a deixar a cidade em 1805 para um primeiro exílio, retornando apenas em 1807, durante a “[...] entrada dos franceses, e fugida d’El-Rei D. João VI para o Brasil” (Idem, p. 411-2). É no Portugal disputado pelas tropas francesas e inglesas que vivenciou pela primeira vez a experiência da tirania, tornando-se ele próprio prisioneiro em Coimbra no ano de 1811. Foram nesses dois anos em que esteve preso que afirma ter concluído sua tradução dos Anais: “[...] com que passei toleravelmente meus dias, expondo à luz em português, língua em que ainda não tinham aparecido, os crimes e os castigos desses monstros humanos, que enxovalharam Roma, a rainha do mundo!” (Idem, p. 112). A ideia da tradução lhe teria surgido quando, com a derrota das tropas francesas em 1809, teve de deixar Lisboa em direção a Coimbra, acusado de “francês” por seu envolvimento com a maçonaria. Com um amigo de passagem por Coimbra, José Ferreira de Moura, teria combinado iniciar uma correspondência com o envio mútuo de traduções dos livros dos Anais: Concordamos nesta correspondência, e d’aqui nasceu ter eu já o manuscrito de que há pouco falei. [...] Tive sempre uma grande paixão pelas obras de Tácito, porque nelas achava estampados os meus próprios sentimentos. Fui sempre, como ainda sou, inimigo irreconciliável de tudo o que é tirania, absolutismo, e abuso de poder; e com este caráter que recebi da natureza, e pelo muito que tenho sofrido pelos abusos desse mesmo poder, me abalancei a traduzir todo os Anais, [...] com este trabalho satisfiz o meu espírito, consolando-me de pôr em português os crimes dos tiranos, que do coração aborreço. (Carvalho 1855, 71-2 pp)

Em outra passagem das Memórias nos dá pistas sobre a edição que utilizou em sua tradução. Era o ano de 1810 e junto com parte de sua família haviam sido aprisionados pelas forças do marechal Massena, comandante das tropas da nova investida francesa no território português. Ao atravessar a vau o Mondego, relata como teria guardado em suas botas “[...] uma

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pequena preciosidade, que, ao menos julgava como tal, e esta preciosidade (não se riam os meus leitores) era um pequeno livro latino do formato 24, que continha todas as obras de Tácito, e da edição de Amsterdam do ano 1734,26 livrinho, que ainda hoje conservo” (Carvalho 1855, p. 71). Junto do “livrinho” ia o manuscrito com a tradução do primeiro livro dos Anais, trabalho que completaria a seguir, durante o período em que ficaria detido em Coimbra, por ordem do novo governo constituído pelos ingleses, primeiro, na cadeia da universidade, depois, no convento de Santa Cruz. Durante o deslocamento com as tropas francesas, a valiosa bota teria extraviado, perdendo o autor as esperanças de reavê-la, até que da casa de seus primos enviaram um criado ao convento informando-lhe que a haviam recuperado junto com o livro de Tácito e os referidos manuscritos. Decide então ocupar seu tempo no cárcere e continuar a sua tradução, pedindo a um amigo que lhe enviasse subsídios literários para empreender a tarefa: [...] mandou logo uma bela edição de Brotier27 com muitos comentários, notas, e os suplementos, que fez aos livros que se perderam de Tácito, e com ele outra muito illustrada edição alemã de 1801, feita por Oberlino;28 creio que conjuntamente me mandou também a tradução espanhola do nosso português Soeiro29, da qual nada me aproveitei. (Carvalho 1855, p. 115). 26 

Provavelmente trata-se da seguinte edição: Tacitus. C. Cornelii Taciti opera quae extant

omnia, ad fidem optimorum codicum manuscriptorum accuratissime castigata. Amsterdam, Apud Janssonio Waesbergios, 1734. Agradeço a Fábio Faversani pela ajuda decisiva na identificação do título e o entusiasmo com que sempre nos orienta nos assuntos taciteanos. 27 

Gabriel Brotier (1723-1789), influente editor e comentador moderno das obras de

Tácito em latim. Certamente uma das fontes principais das abundantes notas que Carvalho insere em sua tradução. 28 

Jérémie-Jacques Oberlin (1735-1806), outro editor e comentador das obras de

Tácito em latim. Sua edição de 1801 reimprime o célebre comentário de Justus Lipsius. 29 

Manoel Soeiro, cônsul português em Anvers, traduziu, no século XVII, os Anais

para o espanhol, com edições em 1613 (Anvers) e 1614 (Madrid). Segundo Agostinho de Macedo, trata-se de Manoel Fernandes de Villa Real, judeu português refugiado na Holanda (Macedo 1901, p. 100).

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Em meados de 1813 teria terminado a tarefa da tradução. Nesse mesmo ano, após receber ordem de se transferir para uma prisão mais isolada no interior, decide, com o apoio de amigos do Porto, fugir para a Inglaterra. Em Londres, a exemplo de vários exilados portugueses, empregou-se na atividade jornalística, colaborando com o Investigador Português até 1819. De início dedicado à luta geral contra a ocupação francesa e à expansão napoleônica, com o fim do conflito, o jornal passou a ser um dos defensores da causa portuguesa contra o que chamava de “injustiças do governo do Brasil” (Idem, p. 414). Nesse período, defende o caráter “constitucional” da monarquia portuguesa, retornando, segundo ele, às memórias do tempo para demonstrar aos povos do Brasil e de Portugal os rumos que deveriam garantir sua justa união. Esse mesmo ponto será mais detidamente desenvolvido no Ensaio histórico-político sobre a constituição e governo do reino de Portugal, publicado em 1830. Como era comum na época, o Tácito autor da Germânia era evocado como fonte de autoridade sobre as origens hipotéticas do espírito constitucional. Argumentava-se no interior de uma narrativa que atribuía a Pombal o auge da usurpação do poder do povo em benefício do despotismo real, devendo-se então regenerar o equilíbrio histórico entres os poderes: As formas constitucionais, ou as Cortes em Portugal, têm sido em todos os tempos conhecidos a coisa mais sagrada e importante que politicamente temos possuído; e delas sempre dependeram essencialmente, assim como ainda hoje dependem, as nossas liberdades. É uma instituição mui sagrada, porque sem haver sido sancionada na sua origem por lei alguma escrita, de que as histórias façam menção, sempre gozou do caráter de uma certa lei natural, que sem necessitar escrever-se com caracteres humanos, passa de geração em geração gravada na memória e no coração dos homens. Assim a instituição de nossas cortes ou de uma representação nacional, se pode mui propriamente denominar uma lei da terra, fundada em imemorial e antiquíssimo costume, mantido entre as ruínas do império Romano por todas as nações do Norte que vieram fundar novos reinos e impérios na Europa, e chegaram até a extremidade dela, o nosso Portugal. Tácito, falando dos costumes dos Germanos, diz no capítulo XI: Os

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negócios pouco importantes são regulados pelos chefes; os mais importantes pela nação (Carvalho 1830, pp. 1-2).

Foi em 1819, no contexto da radicalização da luta pelo retorno de D. João VI para Portugal e da agenda constitucionalista, que Freire de Carvalho deixou o Investigador Português, que considerava muito tímido, e criou o seu Campeão Português, o amigo do Rei e do Povo, também editado em Londres (Carvalho 1855, p. 417). No final desse mesmo ano, o jornal foi proibido de circular no Brasil e em Portugal. Radicalizava-se a conjuntura que culminaria nos acontecimentos de 1820 e 1822. Criado para defender o retorno de D. João e o estabelecimento das cortes, o jornal foi descontinuado em agosto de 1821, mas não sem antes ver publicados em suas páginas os dois primeiros livros dos Anais, traduzidos nas difíceis condições que Freire de Carvalho não se cansou de repetir sempre que pode – afinal, era na imagem de um Tácito inimigo da tirania que buscava dar sentido e coerência à sua trajetória de vida. Nesse mesmo ano, voltaria a Portugal “para assistir os progressos da pátria”. Atuou intensamente na vida política até a sua morte, em 1855, não sem um novo exílio londrino, em 1828, por conta dos conflitos sucessórios entre D. Miguel e D. Pedro (Gonçalves 2020). Foi desse novo exílio londrino em 1830 que, a pedido do editor e amigo Aillaud, publicaria finalmente a tradução completa dos Anais, em Paris e no Rio de Janeiro. Nas Memórias, esclarece que somente em Londres pode retornar ao manuscrito de 1813 e compará-lo com os “[...] dois tradutores franceses Dureau de la Malle30  e Gallon de la Bastide,31 porque devo confessar, que o meu primeiro trabalho [em 1811-1813] só se concluiu à vista dos comentadores latinos, que foram com especialidade Brotier e Oberlino” (Carvalho 1855, p. 320). Afirma ter ainda nessa ocasião cotejado a sua tradução com uma espanhola, “cujo nome” não recordava, além de alguma tradução francesa. O fato é que Aillaud lhe pagaria a pequena fortuna de mil 30  Trata-se de Jean-Baptiste Dureau de La Malle (1742-1807), que em 1793 publicou uma influente tradução das obras de Tácito para o francês, reeditada em 1808 e 1816. 31 

Outro célebre tradutor das obras completas de Tácito para o francês, editada em três volumes,

em 1812.

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francos pela tradução, o que é um indicativo do bom negócio que deveria ser editar Tácito naquele tempo.32 O historiador romano sempre seria evocado por Carvalho como uma espécie de atestado de pureza de suas convicções políticas. Em 1834, quando participou da decisão parlamentar que expulsou D. Miguel de Portugal, ainda lembraria de seu trabalho como tradutor dos Anais, dizendo que se orgulhava de ter tomado parte nas negociações que levaram à queda de D. Miguel, pois “[...] sempre detestei os tiranos; e uma das ocupações mais agradáveis, que tive na minha vida, foi a de traduzir os Anais de Tácito, o meu livro mimoso” (Idem, p. 375). Continuava a sua descrição oferecendo uma das análises mais explícitas do que os leitores de sua época buscavam na obra do autor da Germânia: “Como me consolava quando via o autor ir dissecando com o seu afiado escalpelo fibra a fibra o coração corrupto dos monstros que tinham governado Roma! Parecia-me estar ainda vendo seus cadáveres expostos à execração do mundo!” (Idem, p. 376). No prólogo à edição de 1830 é ainda mais preciso, definindo Tácito como o mais profundo “anatomista moral”, o mais “analítico indagador do coração humano”. Além de simplesmente narrar os fatos, o autor romano saberia mergulhar “[...] ao interior da consciência dos tiranos, que ele tão habilmente sempre [soube] desenhar”, não deixaria escapar qualquer circunstância, sentimento ou paixão: Debaixo dos pincéis de Tácito vemos, como diante de um espelho, a alma refolhada e tenebrosa de Tibério; a estúpida insignificância de Claudio; a bárbara dissimulação de Nero no meio de lodos os seus atrozes delírios; e vemos em fim os crimes e as dissoluções da ambiciosa Agripina para dar um trono usurpado a um filho digno de tal mãe. (Carvalho 1830b, p. 1)

No interior da linguagem tacitista, Freire de Carvalho entretecia os eventos de sua vida conturbada, da história que fazia e sofria com o próprio texto 32 

Até onde sei, a tradução de Carvalho continua sendo a única completa dos Anais em

português, sendo, até pouco tempo, seguidamente reeditada na coleção Clássicos Jackson, omitindo-se a Advertência que o tradutor tão zelosamente havia anteposto ao seu texto e que, de certa forma, é essencial para se compreender o “espírito” de sua tradução.

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dos Anais. Se for verdade que ao traduzir um texto o autor lhe acrescenta os horizontes de suas experiências, não é menos certo que o texto e a linguagem no interior da qual ele pode ser lido ajudam a prefigurar os quadros no interior dos quais a experiência pode ganhar forma. A tradução, fruto dessa fusão de horizontes, torna-se então um documento histórico privilegiado.

O “LE BRÉSIL” DE HIPPOLYTE TAUNAY E FERDINAND DENIS (1821-1822) Publicado em 1822, o livro O Brasil, ou história, hábitos, usos e costumes dos habitantes deste reino, editado em seis volumes ilustrados por Hippolyte Taunay (1785-1881), foi a primeira de uma longa lista de contribuições para a história do Brasil que surgiria da longeva trajetória de Ferdinand Denis (1798-1890). Por uma divisão de fronteiras que ainda era incerta e distinta no começo do século XIX, geralmente a obra de Ferdinand Denis tem sido estudada e comentada por pesquisadores da história da literatura, permanecendo apenas marginalmente incluída em estudos de história da historiografia no Brasil. Ao nos distanciarmos dessa perspectiva teleológica e hipercentrada na formação das fronteiras disciplinares, fica evidente que a obra de Denis é tão fundamental para os discursos históricos e seus regimes quanto para a história da autonomia literária. O Discurso preliminar que introduz O Brasil inicia lamentando a ausência de trabalhos sobre o país, em particular aqueles capazes de oferecer uma visão sintética. A obra de Southey seria uma “excelente história”, mas teria feito pouco para prever os grandes acontecimentos que agora intrigavam o público europeu. Beauchamp, na trilha de Southey, teria oferecido uma “obra interessante”, mas é repreendido pelos “detalhes romanescos de sua história natural e os costumes dos selvagens” (Denis & Taunay 1822, p. vi). Ele teria feito um retrato do passado como se representasse a situação atual dos indígenas, além de desconhecer a enorme variedade de povos. Além dos já citados Southey e Beauchamp, os autores reconhecem como fontes cronistas coloniais e viajantes modernos, fazendo uma especial deferência à Corografia Brasílica de Casal, da qual admitem terem extraído boa parte do conhecimento geográfico das capitanias (Idem, p. XIV).

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Após esses reparos aos seus dois rivais, afirmam a autoridade e relevância de seu texto como o de “duas pessoas que por longo tempo residiram no Brasil” (Idem, p. vii), que ajudados por outros viajantes dariam uma “descrição geral” do país. Entre a “excelente história” de Southey, exata mas pouco sintética, e a obra de Beauchamp, certamente sintética, mas pouco exata, a nova obra ocuparia um espaço de mediação. Como veremos, a “descrição geral” que prometem oferece um breve e pouco original panorama histórico no primeiro volume, demorando-se um pouco mais sobre os indígenas e na descrição das capitanias. Para a obra ser ao mesmo tempo “agradável e útil”, afirmam ter decidido organizar o material de modo que no primeiro volume apresentam os “detalhes gerais sobre a história e geografia, bem como a História Natural e os costumes indígenas à época dos descobrimentos”. Esse ponto mereceu destaque, pois procuravam se distanciar da literatura disponível diferenciando o estado passado e presente dos povos indígenas (Idem, p. viii). Os demais volumes seriam dedicados à “descrição detalhada de cada capitania”, incluindo os costumes atuais de seus indígenas. O plano desses volumes é rapidamente apresentado, de modo a chamar a atenção dos leitores para seus aspectos mais pitorescos. Embora não seja informado em quantas partes o trabalho seria dividido, ao final, seis volumes são produzidos, sendo que o último é inteiramente dedicado à publicação de documentos, com destaque para a tradução para o francês da carta de Caminha. O Discurso preliminar oferece ainda uma ideia de como o trabalho foi dividido entre os dois autores. Denis, que teria adentrado mais o interior, no primeiro volume ficou encarregado pela geografia, história natural e costumes dos “antigos indígenas”. Nos demais volumes, descreve São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande, Minas, Mato Grosso, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte e Pará. Já Hippolyte Taunay teria redigido a parte histórica geral do primeiro volume, descrito o Rio de Janeiro, com ênfase em suas melhorias recentes, e as capitanias de Pernambuco, Maranhão, Sergipe e Espírito Santo. Apenas no último parágrafo do Discurso preliminar fica mais claramente registrada a vinculação da obra com o processo de Independência em curso: “é em uma época em que o Brasil atrai o olhar de toda a Europa que os senhores Hippolyte Taunay e Ferdinand Denis acreditaram dever oferecer sua

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obra ao público; se convencerão ao lê-la que este belo país deve alcançar o mais alto grau de prosperidade” (Idem, p. XVI). O plano da obra não dá visibilidade à unidade territorial, enfatizando mais a diversidade. Nesse ponto, são devedores da obra de Casal e seu compromisso joanino de inventariar o território, o que parece ser reforçado pelo próprio título, que enfatiza, e de algum modo celebra, a unidade do Brasil como reino, ainda o estatuto joanino. O primeiro capítulo, que abre a visão histórico-sintética que a obra prometia, começa descrevendo os “progressos da navegação com os portugueses” e a história do descobrimento do Brasil. Descreve rapidamente a passagem de Colombo pela Corte portuguesa e o acolhimento de seu projeto de navegação, depois de muito esforço, pela Corte espanhola. Citam o caso de Vespúcio e se posicionam sobre o erro de Colombo ao chamar os habitantes do novo mundo de indianos, afirmando que na obra evitariam tal equívoco optando pela expressão “indígenas” (Idem, p. 4). Definem a descoberta do Brasil como um “feliz acaso”, mas, ao mesmo tempo, admitem que não teria acontecido sem os grandes progressos na navegação alcançados pelos portugueses. Os “Descobrimentos” são caracterizados como os primeiros passos do renascimento das ciências e artes na Europa. Em seguida, mencionam as guerras contra os mouros e a força e centralidade que a monarquia e a pequena nação portuguesa assumiriam na história da Europa (Idem, p. 5). Descrevem com algum vagar a expansão marítima lusitana pela África e Ásia e a partir desse movimento o “descobrimento” do Brasil. Sente-se a presença da carta de Caminha, disponível desde a sua publicação por Casal na Corografia. Hippolite Taunay parece particularmente encantado com as descrições do escrivão (Idem, p. 14). Dessa seção é a cena da primeira missa que ganha destaque na gravura de Taunay:

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O segundo capítulo trata da divisão em capitanias e as primeiras tentativas dos franceses de se apropriarem de territórios no Brasil. A questão da mão-de-obra é logo abordada, afirmando os autores que os indígenas, depois de sofrerem com a violência dos colonizadores, migraram para o interior evitando qualquer contato com os cristãos (Idem, p.33). A avareza dos colonizadores os teria levado a introduzir escravos africanos, em 1570, para resolver a escassez de mão-de-obra. Os autores afirmam que essa medida poderia representar um benefício de curto prazo que não se perpetuaria no futuro, referindo-se aqui ao caso do São Domingos. Ainda assim, a introdução da escravidão negra resultaria em menor pressão sobre os indígenas. A maior parte do capítulo descreve a questão da França Antártica e a presença francesa no Maranhão. A gravura desta seção apresenta uma cena de missionários franceses se apresentando com grande pompa para os indígenas no Maranhão (Idem, p. 50). Todos estes elementos parecem sugerir que o público leitor preferencial da obra é o francês, capaz de se apropriar da expansão do mercado editorial e da cultura de história a ele atrelada. O terceiro e último capítulo da parte histórica, que ao todo ocupa apenas 121 páginas, trata da invasão e expulsão dos holandeses. Após recuperar com algum detalhamento o conflito, nas últimas páginas produz um grande salto cronológico e uma ponte que reduz a distância histórica entre a vitória

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de D. João IV na restauração do reino e o legado de um Brasil unificado a D. João VI. Esse movimento teria sido aprofundado quando da elevação do Brasil a reino, tornando-se o único território americano a ver a coroação de um monarca cristão (Idem, p. 120). A seção exalta a lealdade dos brasileiros, que receberiam em breve do rei uma constituição, “que serviria de centro e salvaguarda”. Afirma ainda que no momento em que escrevia, D. João VI teria cedido aos apelos de seus súditos na Europa, retornado à Lisboa, não sem deixar no Brasil “um outro de si mesmo”, D. Pedro, príncipe herdeiro da coroa. Por essa passagem fica sugerido que essa seção do texto foi concluída em 1821, antes da crise que levaria à Independência. Mais adiante, ainda neste capítulo, veremos como Denis tratará do Brasil independente, com algum atraso em relação a seus compatriotas que escreveriam a serviço da causa de D. Pedro I. Ainda precisamos de mais estudos monográficos que possam avaliar o impacto da obra de Denis e Taunay nos primeiros anos da nova nação, algumas referências isoladas podem ser obtidas nos jornais, e claro, como um primeiro ensaio do que seria o Resumo Histórico que Denis publicaria em 1825. Podemos dizer, inserindo-as no debate que eles mesmos promovem ao revisar a literatura disponível para a escrita de uma história do Brasil, que a obra é mais uma das tentativas de síntese que vão servir de solo para a crescente politização e nacionalização da história da América portuguesa.

A DEFESA HISTÓRICA DA INDEPENDÊNCIA: BEAUMELLE E BEAUCHAMP (1823-1824) BEAUMELLE (1823) É fato notório que as autoridades do jovem império rapidamente se deram conta que precisariam mobilizar letrados capazes de defender seus interesses na luta pela opinião pública. Dois nomes se destacariam nessa conjuntura como responsáveis pelo agenciamento de homens e meios que pudessem defender a causa do Brasil na Europa, Felisberto Caldeira Brant (Conselheiro 2016), atuando em Londres, e Manuel Rodrigues Gameiro Pessoa, em Paris. No capítulo em que analisa as negociações para o reconhecimento da Independência,

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Varnhagen confere grande importância a essas iniciativas, segundo ele, “[...] tratava de angariar não só os jornais ingleses, mas até alguns que no estrangeiro se publicavam em português” (Varnhagen 1938, p. 359). Atribui a Gameiro a iniciativa da encomenda e direção de dois livros que teriam muito influenciado a favor do Brasil junto “à opinião, inclusivamente [sic] de alguns agentes da Santa-Aliança” (Idem, p. 360). Referia-se aos livros de Victor de La Beaumelle e Alphonse Beauchamp. Sobre o primeiro escreve que após ser publicado em Paris, em meados de 1823, como reconhecimento, o seu autor “[...] foi até logo 14 admitido ao serviço do Império [...]” (Idem, p. 360). Victor Laurent Suzanne Moise Angliviel de La Beaumelle (1772-1831) era filho de Laurent Angliviel de La Beaumelle (1726-1773), um típico philosophe de origem protestante, que se tornou célebre por suas polêmicas literárias. Foi duas vezes preso na Bastilha por suas críticas ao livro de Voltaire sobre o século de Luiz XIV, supostamente por serem consideradas ofensivas à casa de Orléans. No entanto, manteve-se sempre próximo das fontes de poder do Antigo Regime, aqui incluído a maçonaria, tendo atuado na biblioteca do rei e se destacado no grande comércio literário que marcou a ilustração francesa (Polet 1995, p. 917). Protestante como o pai, Victor La Beaumelle ingressou no exército francês durante as campanhas napoleônicas na Espanha, foi comandante do batalhão de engenharia, tendo sido condecorado cavaleiro da Legião de Honra. Exerceu cargo de professor de matemática e de teologia protestante em Montauban, provavelmente na recém-criada faculdade estabelecida por Napoleão em 1808 (Nicolas 1852, p. 40). Ao recusarem seu pedido de reincorporação ao exército francês, foi recrutado como coronel de engenharia a serviço do Império do Brasil, em 1823, atuando na cidade de Salvador, na Bahia. Nos jornais da época, é possível encontrar menções a estudos de engenharia que teria escrito sobre as causas dos desmoronamentos na parte alta daquela cidade. No Diário Fluminense de 22 de julho de 1824, encontramos uma ordem da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, datada de 19 do mesmo mês, informando ao comandante do Corpo de Engenheiros que se nomeava o coronel Victor Lourenço [sic] de La Beaumelle para uma Comissão de Serviço na Província da Bahia, devendo partir no dia seguinte.

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Além de seu livro em defesa da independência do Brasil, como literato e publicista, Beaumelle escreveu sobre as leis eleitorais na França e sobre a Guerra na Espanha, um tema em voga nos anos de 1820 (Medeiros 2012, p. 72). Colaborou em jornais franceses como a Minerva littéraire. Foi ativo tradutor do teatro espanhol entre 1823-1826, tendo produzido diversos livros que seriam importantes na recepção da literatura ibérica no romantismo francês e na mediação cultural para um público mais amplo. Produziu estudos críticos e biografias de nomes como Lope de Vega e Calderón de La Barca, tudo isso parecia qualificá-lo para o serviço do império de D. Pedro I (Azar 2009). Um anúncio impresso na tipografia do Diário do Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 1824, que também circulou como panfleto avulso, noticiava a subscrição da tradução brasileira do “L´Empire du Brésil composta em Paris pelo Ilustre e sábio Coronel La Beaumelle”. A edição, traduzida por Luis Gonçalves dos Santos, teria sido corrigida e aumentada por La Beaumelle já em sua residência no Brasil. A obra seria lançada nas comemorações do aniversário do imperador, em 12 de outubro. Segundo Santos, Esta tradução de tão interessante escrito, e tão digno dos brasileiros, é mais um público testemunho que o tradutor dá do amor e reverência que consagra à augusta pessoa de sua majestade imperial, e também da sua firme adesão à justa causa da Independência do Império do Brasil, e do seu extremo interesse pela felicidade dos seus patrícios (Diário do Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1824).

O livro foi impresso na tipografia de Plancher, introduzido como “impressor, livreiro de sua majestade imperial”. Pela lista de livrarias e casas comerciais onde se poderia assinar a obra, ficamos sabendo que Santos, à época, residia na Rua do Sabão, 97. No mesmo número do jornal também vemos sendo anunciadas vendas e leilões de pessoas escravizadas. Dentre eles, um chama a atenção, por estar nas vizinhanças do tradutor: “Vende-se um moleque Angola, idade de 12 a 13 anos, próprio para qualquer ocupação; quem o quiser comprar, com preferência para fora da terra, queira dirigir-se à Rua do Sabão, No. 48, loja de livros, que se dará em conta”.

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O De L’Empire du Brésil considérè sous ses rapports politiques e commerciaux é publicado em Paris pela casa Bossange Fréres, em 1823. Já no prefácio, o autor notava que a sucessão recente e acelerada de grandes eventos na cena do mundo dificultava sua necessária compreensão, justificando seu esforço em trazer ao leitor sua interpretação dos acontecimentos no Brasil (Beaumelle 1823b). O livro, de pouco mais de 250 páginas, é dividido em duas partes, na primeira, em oito seções, são apresentados diversos elementos da história e dos desdobramentos possíveis da Independência do Brasil. A segunda parte é formada por diversos anexos documentais, em geral papéis oficiais, cartas e manifestos públicos produzidos pelos partidários da Independência. A primeira seção do livro é intitulada Des changements d’etendue des états e desenvolve a tese central de que as causas da Independência não poderiam ser buscadas em ações individuais, mas em grandes leis históricas. Assim como o corpo individual, também o corpo social teria um começo e um fim, esse processo poderia ser observado em toda a história da humanidade. Nela, corpos políticos se dissolveriam e a partir de seus elementos novas identidades surgiriam: “Na marcha sucessiva e não interrompida dessas desagregações e dessas novas formações sociais, hás tendências gerais a observar” (Beaumelle 1823, p. 2). Não caberia aos homens, nem aos historiadores, julgar tais eventos da história do mundo com base em uma moralidade estreita, mas apenas avaliar sua oportunidade, amadurecimento e ajuizar sobre os seus desdobramentos. O novo corpo político nasceria maduro? Teria condições de permanência? Quais os desafios de seu futuro? A história, que Beaumelle imagina organizada como uma sucessão de etapas civilizatórias, permitiria ver o passado no presente, já que coexistiriam povos em diferentes estágios em um mesmo tempo. Do mesmo modo, no passado se poderiam encontrar sociedades em estágios equivalentes, o que autorizaria o analista traçar comparações gerais e delas retirar as leis e tendências gerais que revelariam as causas necessárias dos grandes eventos (idem, p. 3). Sua teoria parte da ideia de que os corpos sociais surgem de unidades menores que, ao se organizarem politicamente, tendem a progredir pela força civilizatória dos bons governos. No entanto, à medida que se expandem, in-

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corporando aqueles que se se opunham ao seu crescimento, as vantagens desse governo central ficam menos evidentes. As diferentes partes, pelo isolamento e pouca integração com o centro político, começam a se sentir prejudicadas, e dessa consciência emergem outras identidades: “[...] e se a essas circunstâncias se agrega a de um crescimento da força própria de uma parte distante, o desmembramento torna-se tão necessário quanto a adesão” (idem, p. 5-6). Ao lado dessa teoria da agregação e desagregação dos corpos políticos, Beaumelle afirma a existência de uma fronteira natural e ótima para cada estado (idem, p. 8): “Há nessas circunstâncias naturais qualquer coisa de instintivo: como disse M. de Bonald, todas as nações aspiram a se completar, mas pela mesma razão todas as partes do povo que estão fora desses limites naturais estão unidas por um laço muito menos forte” (Idem, p. 6). Para Beaumelle, esses princípios também valeriam para as colônias. No começo, aderiam ao estado mãe pela fragilidade dos primeiros povoamentos, mas à medida que se desenvolvem começam a sofrer com as dificuldades do governo e a perceber certas “fronteiras naturais”. Sua emancipação aparece na primeira circunstância: “Eu disse que ela aparece porque é evidente que a independência deve existir de fato, antes de ser declarada” (Idem, p. 9). Essa ideia serve como guia para avaliar a Independência do Brasil; isso depois de um longo debate sobre as semelhanças e diferenças entre as colônias antigas e modernas, sendo as antigas divididas entre “romanas” e “gregas”. O autor nega que a causa da emancipação das colônias possa ser atribuída à vontade de indivíduos, mas “apenas aos fatos sociais desenvolvidos pela evolução sucessiva de diferentes eventos que os preparam” (Idem, p. 10). Pela observação e conhecimento do passado seria possível prever os desenvolvimentos, revelando uma espécie de destino providencial de cada corpo político. No plano dos grandes eventos históricos, a liberdade individual teria um efeito apenas limitado. Assim, a segunda seção do livro é dedicada à investigação histórica das causas da emancipação das colônias, em geral, e do Brasil, em particular, pois... [...] não são inúteis as pesquisas da curiosidade que buscam nos tempos antigos a origem dos direitos novamente reclamados. Delas eles tiram uma nova força [...] como nas constituições políticas, assim como nas or-

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ganizações individuais, a natureza procede gradualmente, natura non facit saltus; encontraremos nos antigos documentos da história dos povos o germe dos fatos que somos testemunhos, e o conhecimento de sua origem nos servirá para melhor julgá-los (Idem, p. 11).

Beaumelle destaca o caráter polissêmico da palavra colônia, indicando o fato de que na história da humanidade todos os povos em algum momento foram conquistados por outros. Como os povos pastores que se estabeleciam em áreas já cultivadas pelos povos agricultores, no entanto, esse primeiro sentido da palavra colônia, como sinônimo de conquista, não deveria ser o mais importante e correto (Idem, p. 12). Na sua definição mais ampla, colônia indica a relação que povos emigrados mantêm com a cidade ou país de origem (Idem, p. 13). Afirma que na Antiguidade a ideia de raça era mais forte, que a nacionalidade se ligava menos ao solo e mais a uma noção aristocrática de origem racial comum. Também a religião reforçava essa fidelidade dos emigrantes aos costumes de suas origens. Destaca que esse vínculo não gerava, entretanto, relação de obediência ou dependência entre a colônia e a cidade ou estado original, as cidades gregas, por sua natureza comercial, não tinham a pretensão de traçar regras civis ou políticas para suas colônias. Um cenário diferente marcaria o caso romano. Caracterizado como povo originalmente agricultor, sua expansão tendia a unir todas as terras conquistadas, “todo o mundo conhecido”, a um só estado (Idem, p 15). Esses dois sistemas de colonização do mundo antigo teriam, no entanto, pouca influência sobre o moderno, devendo o historiador buscar nos costumes bárbaros os fundamentos do direito colonial. As guerras de reconquista contra os mouros são apontadas como o primeiro evento análogo com o qual se poderia compreender a colonização moderna. À medida que a terra ia sendo conquistada aos mouros, os reis concederiam aos chefes militares o direito e a obrigação de fazer a terra habitada, povoada: “A palavra povoar no sentido de colonizar, de cultivar, é frequentemente empregada na língua espanhola [...]” (Idem, p. 17). Nesse sistema, os reis peninsulares seriam apenas chefes de seus vassalos, mas não senhores em sentido pleno. Estes reinos guardariam, portanto, grande autonomia, reivindicando o direito de poder romper o pacto social

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quando ele parecesse prejudicial a seus povos. A expansão desses estados teria se dado em um modelo de federação de pequenos reinos ou repúblicas. Por isso, Beaumelle entende que a lógica da expansão ultramarina foi a mesma da reconquista, legitimada pelo desejo de expandir a religião, assim como nas guerras contra os mouros (Idem, p. 20). A expansão marítima é caracterizada como de “descoberta e povoação”. O “descobrimento” do Brasil e sua colonização são caracterizados inicialmente por ações que tinham como modelo as colônias cartaginesas, que chama de “feitorias”, destinadas somente ao comércio, tipo de colonização que predominou na expansão europeia na África e Ásia. Mas logo em seguida, a doação das capitanias hereditárias sinalizaria o primeiro esforço de povoamento. Entende que o estatuto político das cidades fundadas no Brasil não difere daquelas fundadas no reino luso, valendo na colônia as mesmas regras do direito feudal e senhorial que vigiam na Europa. Assim como nas colônias espanholas, a existência política autônoma do Brasil foi reconhecida quando se estabeleceu, já em 1549, um centro governativo geral na Bahia. Logo depois seus governadores teriam o título de vice-reis, o que fazia supor uma “realeza” e um “reino”. Mas foi com a introdução dos sistemas de monopólios que a relação metrópole-colônia adquiriu o caráter tirânico, pois apenas a força legitimava essa submissão das colônias a uma regra prejudicial aos seus interesses particulares (Idem, p. 30). É essa compreensão que dá sentido à epígrafe, transcrita em grego e francês, escolhida por Beaumelle para este capítulo: uma bem conhecida passagem do primeiro livro da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, que mais sentido ainda teria no contexto da luta pela independência da Grécia. Se eles disserem, todavia, que de vossa parte não é justo receber seus colonos, deverão ficar sabendo que toda colônia honra sua metrópole enquanto é bem tratada, mas se afasta dela quando maltratada; de fato, colonos não são enviados para serem escravos dos que ficaram, mas para ser iguais a eles (Tucídides 2001, p. 23).

Nessas circunstâncias, em que o pacto social fundador das colônias foi rompido, surgem “as ideias de submissão, de inferioridade de um povo a

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outro na fraseologia política; [...]”, que aos colonos é dito incessantemente “[...] da mãe pátria, expressão elegante, sonora, que portam as frases sentimentais que os déspotas amam muito empregar quando se desafiam suas forças, mas expressão falsa no sentido que se lhe era atribuído. Portugal era a pátria dos brasileiros assim como dos portugueses [...]”, ambos os povos tinham a mesma origem, por isso, o Brasil como Estado não deveria ser considerado filho, mas sim irmão de Portugal, pois um país não pode dever a outro uma piedade filial (Idem, p. 37). Quando, ao longo do processo de povoamento, adquiriu uma população suficiente, o Brasil tornou-se um Estado singular por direito próprio “[...] separado de todos os vizinhos pelos costumes, língua e raça, separado de seus parentes da Europa por uma distância de dez mil léguas” (idem, p. 40). Assim como outros estrangeiros que escreveram sobre o Brasil ao longo do século XIX, em Beaumelle, é difícil separar o que pode ser atribuído a uma reflexão pessoal daquilo que lhe era ditado pelos seus contratantes, muitas dessas ideias eram moeda comum entre os letrados reformistas. Por outro lado, o autor não seria contratado se suas ideias e ações não revelassem afinidade com o grupo que deveria representar. O fato inegável é que, em 1823, a formulação de La Beaumelle estava entre as mais bem elaboradas à disposição das elites locais. Ao final, sua resposta ao debate europeu indicava claramente a inevitabilidade histórico-providencial da Independência: Se, como já disse, é verdade que a Independência do Brasil é um desses eventos preparados desde longo tempo por eventos anteriores, se ela é resultado da marcha geral das coisas; se ela não é senão o complemento desta segunda revolução que abarca no presente toda a América [...] se esta emancipação de um império ainda jovem e já poderoso é um decreto da providência para nós, ou um golpe do destino para os ateus, é completamente inútil se ocupar dos meios de detê-la (Idem, p. 95).

O livro de Beaumelle terá uma recepção polêmica, em especial quanto à sua teoria das transformações histórico-providencial, criticada por esvaziar de sentido a ação dos grandes homens. Embora parecesse muito conveniente como forma de eximir D. Pedro I de maiores responsabilidades pela revolu-

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ção da independência, também torna problemática sua consagração como herói. Podemos encontrar essa teoria aplicada, ainda com maior desenvolvimento, em outros livros do autor publicados neste mesmo período, como no já mencionado Golpe de Vista sobre a Guerra na Espanha (Beaumelle 1823a)

BEAUCHAMP (1824) O livro A Independência do Brasil apresentada aos monarcas europeus é publicado em Paris, em 1824. Dividido em nove capítulos, sua hipótese geral não se afasta substantivamente do trabalho de Beaumelle. Talvez uma diferença importante entre os dois trabalhos fosse a autoridade que Beauchamp poderia reivindicar como autor de uma das mais influentes histórias do Brasil até então publicadas, como vimos no capítulo II. Esse ponto é bastante explorado na introdução, que inicia justamente problematizando as prerrogativas que o autor teria sobre o assunto. Pergunta-se retoricamente se grandes questões como essa não deveriam estar vedadas a um escritor (écrivain) sem missão e sem títulos, ao que, “como publicista e historiador, como escritor independente, já nos colocamos à prova; nenhuma questão de Estado nos é estranha” (Beauchamp 1824, p. iv), responderia apenas à lei pela manifestação livre de sua opinião. Já no que se referia aos assuntos do Brasil, em particular, pergunta-se, “quem poderia contestá-lo?”. Afirma que como o primeiro a publicar uma história geral do Brasil, em 1815, obra que à época teria sido examinada e aprovada por todos os partidos, sua autoridade sobre o assunto seria inquestionável. Refletindo talvez a acusação de plágio levantada por Southey, faz questão de dizer que a obra de 1815 “foi um tipo de criação realizada com numeroso material dos quais eu indiquei a fonte” (idem, ibidem). É na qualidade de historiador do Brasil que se pronunciaria sobre os episódios da Independência. No primeiro capítulo, analisa as causas da Independência, começando por um breve relato da colonização em que o sistema de capitanias hereditárias daria um perfil feudal ao sistema social que nasceria no Brasil. O relato prossegue afirmando as semelhanças culturais e jurídicas entre as populações do Brasil e de Portugal, diferenciadas apenas pelo monopólio comercial que impunha uma desigualdade injustificada, mas decisiva. Depois de três sécu-

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los, escreve Beauchamp, apenas uma “revolução universal” poderia mudar essa estrutura. Esse movimento se encarna na expansão napoleônica, na invasão de Portugal e na migração da Corte para o Rio de Janeiro. O primeiro capítulo encerra com a referência à carta que D. João enviou para D. Pedro sobre a necessidade de ele reivindicar a coroa do Brasil antes que algum aventureiro o fizesse (Beauchamp 1824, p. 15). O segundo capítulo analisa a conduta de D. Pedro durante a crise que levaria à Independência, apresentando-o como o único garantidor do sistema monárquico no continente americano, uma ideia que já havia sido explorada na introdução. A constituição jurada por D. João VI em Portugal, sob pressão das cortes, enfraqueceria o princípio monárquico por seu caráter radicalmente democrático, algo que os brasileiros, ao menos aquela parte que se reunia em torno de D. Pedro, não queriam. Aos brasileiros restaria aceitar uma constituição cujo espírito rejeitavam ou proclamar a Independência (Idem, p. 23). Essa equação prepara o capítulo seguinte intitulado “da revolução imperial”. Na tentativa de esclarecer algum mal-entendido acerca do título de imperador concedido à D. Pedro, Beauchamp explica que os brasileiros pretendiam com isso apenas corresponder à grandeza territorial do país e a sua potência futura, mais do que qualquer reivindicação de prerrogativas tradicionais que poderiam inquietar seus vizinhos na América. Ao mencionar uma “revolução imperial” ou a “revolução universal”, Beauchamp faz uma apropriação positiva do conceito para descrever as grandes transformações que exigiram a Independência. A emancipação do Brasil não foi uma revolução, mas se ligava às revoluções contemporâneas que desde o final do século XVII transformavam radicalmente o mundo ocidental. No entanto, na introdução fez questão de afirmar que a emancipação do Brasil não poderia ser caracterizada como uma revolução no sentido de transformação radical do sistema social, o que mais uma vez demonstra a recepção ambivalente do moderno conceito de revolução na conjuntura da Independência: Aqui não há revolução na completa acepção do termo, quero dizer que não houve mudança do estado social; houve apenas transições. Os brasileiros tiveram a presença de espírito de sentir que a constituição física e

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moral de seu país exigia a unidade de direção e hereditariedade monárquica (Idem, p. IX).

Embora cioso da legalidade e fiel ao seu pai, o D. Pedro de Beauchamp é o motor fundamental dos eventos históricos. Em uma passagem em que procura descrever o clima patriótico produzido por D. Pedro nos homens livres, Beauchamp introduz ao mesmo tempo o delicado tema da diversidade racial e da escravidão: “Apesar de uma espécie de apatia reprovada aqui aos crioulos (Créoles), todos obedeceram ao enérgico impulso que lhes comunicou a atividade inesgotável do Imperador” (Idem, p. 47). Mais adiante, essa imagem de D. Pedro é novamente tida como garantidora de uma espécie de ponte temporal e civilizatória entre a Europa e o Brasil. Ao descrever a sessão de abertura da Assembleia Constituinte, em 3 maio de 1823, salientando que no dia comemorava-se o “aniversário do descobrimento”, cita um trecho do discurso de D. Pedro como uma narrativa histórica de continuidade: “Dignos representantes da nação brasileira! Este dia é o mais belo que jamais iluminou o Brasil; é nele que, pela primeira vez, fez-se ver ao mundo como um império e como um império livre” (Idem, p. 53). Mesmo que a conexão entre as duas datas não seja diretamente explorada no trecho do discurso citado, ao enfatizar a comemoração do descobrimento, Beauchamp realizava um lance que na economia de seu argumento contribuía para a redução da distância histórica entre o novo e o velho Brasil e o reordenamento do tempo no momento pós-revolucionário. Não por acaso o capítulo três é o mais longo do livro, pois precisa ainda tratar das acusações de despotismo que recaíam sobre D. Pedro desde o fechamento da Assembleia, em 12 de novembro de 1823. Os capítulos seguintes tratam dos aspectos políticos da Independência e das disputas entre Brasil e Portugal, sempre fundados em argumentos bem conhecidos do discurso anticolonial da ilustração. Aborda ainda o futuro das relações entre a nova nação, a Europa e, em particular, a Espanha. No capítulo oitavo, discute se Portugal teria condições de reconquistar o Brasil, centrando o debate no perfil e no caráter da população local, o que de novo traria a questão racial – dessa vez em viés positivo, movimentando o tema da miscigenação: “Existe também no Brasil uma raça de homens cujo serviço é inestimável para a infantaria em um semelhante clima; são os homens de cor livres, mistura de três raças, que reúnem ao vigor do africano a agilidade

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do indígena e a desteridade do branco” (Idem, p. 111). O nono e último capítulo traça o Estado atual do império do Brasil, procurando demonstrar a existência de instituições civilizadas e de direitos políticos garantidos na constituição recém-jurada pelo imperador. Naturalmente, o tema da escravidão negra teria que ser abordado, o que Beauchamp faz citando estatísticas que demonstrariam que metade da população no Brasil era livre e a outra era formada por pessoas escravizadas. Não chega a reivindicar ou promoter o fim da escravidão ou do tráfico, como fariam outros publicistas à época; duvida mesmo se haveria condições para atacar esse problema. Mas o cenário era apaziguado pela evocação da natureza especial da escravidão no Brasil: “[...] quem não sabe que a escravidão no Brasil é a mais branda de toda a América” (idem, p. 126). A descrição do Rio de Janeiro como cidade civilizada já tinha sido mobilizada na introdução, quando Beauchamp convida seus leitores a passear pela cidade através da visita ao Panorama do Rio de Janeiro, que em 1824 havia sido inaugurado no centro de Paris. Não haveria como ver tal cidade sem exclamar: “veja, um lugar digno da metrópole do universo!”: Com efeito, vê-se uma cidade assentada no meio de uma cadeia circular de montanhas que se abre apenas para deixar passar o oceano e para formar um dos portos mais vasto e mais seguro que existe. Quadro formado por mil quadros que abarcando o círculo inteiro do horizonte, não surpreende menos pela verdade das cores do que pela verdade das perspectivas; quadro onde o artista soube pintar o próprio clima, onde se reconhece o trópico, onde se acredita respirar um ar perfumado que nos transporta a outro hemisfério. E esta cidade que se revela a nossos olhos é o Rio de Janeiro [...] teatro dos eventos de mais alto interesse e de recordações dignas da história” (idem, p. XV).

O Panorama do Rio de Janeiro de 1824 é um bom exemplo de como o interesse pela história do Brasil despertado em 1808 e reforçado em 1822 atinge um público mais amplo do que aquele formado por estadistas e monarcas. Nas próximas seções voltaremos a esse ponto ao explorar com maior aprofundamento a descoberta e a mobilização do clima histórico nesta conjuntura.

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Como se vê, não era muito simples separar os projetos promovidos e financiados pelo Estado daqueles que surgiam por interesses autorais ou do mercado do livro e seus novos leitores. O fato é que se aprofundava o interesse existencial por um novo tipo de história, mais ampla, menos fundada em fórmulas ou exemplos congelados. Novas metáforas como o “diorama”, que conectava formas de visão integrativa com a análise da conjuntura histórica, denunciavam o novo campo de experiência disponível e a demanda por entretenimento histórico. Ao mesmo tempo em que liam os folhetins sentimentais nos rodapés dos jornais, inclusive no Brasil, esses homens precisavam educar também seus sentimentos para compreender o novo mundo histórico em formação. Era preciso desenvolver novas cognições, como a empatia e a simpatia, de modo a compreender melhor a alteridade crescente do indivíduo e das nações. A busca dessa compreensão ajuda a explicar o sucesso do projeto lançado por Denis: uma nova nação, uma nova literatura, uma nova história. A seguir, deslocaremos o foco para essas novas formas de se entreter com a história que seriam tão fundamentais na emergência desse todo chamado nação.

FERDINAND DENIS: A TUTELA FRANCESA SOBRE A JOVEM NAÇÃO E HIERARQUIAS RACIAIS (1824-1826) CENAS DA NATUREZA SOBRE OS TRÓPICOS (1824) Embora pouco analisado pela história da historiografia, o Resumo da História do Brasil, publicado por Ferdinand Denis em 1825, teve profundo impacto na construção da experiência historiográfica brasileira. Não tanto pela visão concisa e bem organizada dos principais fatos da história nacional, que já poderia ser encontrada em diversas outras fontes, mas pela introdução de novos temas que seriam decisivos no debate acerca da identidade nacional, em particular o papel da natureza americana e dos povos indígenas e africanos. Se a tradição do reformismo ilustrado limitou-se a pensar os indígenas em termos de aliados ou adversários no processo de ocupação do território e

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gestão populacional, aqui incluído o tema da miscigenação (Araujo 2008), Denis inaugura a apropriação histórico-cultural do elemento nativo e africano como tema decisivo na produção da diferença e legitimidade nacional. Como vimos na análise do livro de 1821-1822, Denis já estava bastante voltado para o problema dos indígenas, dedicando uma parte grande do texto à descrição de sua diversidade, frequentemente criticando os autores por não distinguirem entre o passado e o presente desses povos. O tema ganharia profundidade programática em 1824, com a publicação das Cenas da Natureza nos Trópicos que, embora não seja integralmente dedicado ao Brasil, lançaria as bases para sua teoria da história, em geral enfatizando os aspectos naturais e ambientais para produção de identidade cultural: “Minha obra tem portanto dois objetivos; definir a influência da natureza sobre a imaginação dos homens que vivem nos países quentes, e fazer conhecer aos europeus a vantagem que eles poderão tirar de grandes cenas das quais não têm senão uma ideia imperfeita” (Denis, 1824b, p. III). Outro elemento fundamental em Denis é a afirmação do papel tutelar da Europa sobre os destinos das novas nações americanas. Esse ponto é afirmado no prefácio das Cenas: “À medida que a Europa expande suas relações, que espalha os benefícios da civilização para outras partes do mundo, vemos acontecer uma troca contínua, ela enriquece suas artes e comércio com a indústria de todos os povos que submete ao seu poder” (Denis 1824b, P.X). Mais do que o continente americano, os trópicos surgem como o totalmente outro, o radicalmente diferente que poderia ser incorporado na chave do exotismo romântico, como já foi bastante explorado pela crítica, a exemplo do trabalho incontornável de Maria Helena Rouanet, que ao tratar do tema, escreve: “Aproxime-se esta noção de domesticação àquela definição de colonização como uma forma de pedagogia [...] e o resultado será imediato: para a Europa, ver a América equivalia a domesticá-la, através da adequação de uma realidade estranha aos parâmetros do conhecido” (Rouanet 1991, p. 72). Esses e outros elementos teóricos são desenvolvidos no primeiro capítulo sob o título Golpe de vista geral sobre a natureza nos trópicos. Efeitos do clima. As metáforas pictóricas predominam quando o autor precisa indicar seus objetivos, tratava-se de apresentar pela primeira vez aos europeus uma representação precisa desses espaços distantes (Cardoso 2012). Expressões como cenas, golpe

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de vista e quadro contribuem para aprofundar essa sensação de realismo, mas também indicam o quanto autores como Denis estavam envolvidos com a revolução tecnológica e estética da era dos panoramas e dioramas. Como trataremos com maior vagar na próxima seção, nesse mesmo ano de 1824, pouco antes de as Cenas serem publicadas, Denis colaboraria novamente com os irmãos Taunay no projeto do Panorama do Rio de Janeiro. Ao abordar a questão dos povos nativos, Denis mobilizava o processo de revisão crítica que diversos autores promoveram contra o processo de colonização iniciado com as Grandes Navegações. Além da crítica à violência contra esses povos a partir de uma perspectiva filantrópica, as Cenas introduziam o argumento de que diversos aspectos das culturas nativas poderiam contribuir para a renovação das velhas civilizações europeias, particularmente em sua poesia e literatura (Hartog 2013). Sugere, por exemplo, que a agricultura moderna não permitiria ao camponês europeu o entregar-se à inspiração poética que ele acreditava encontrar entre os povos selvagens nativos (Denis 1824b, p. 5). Naturalmente, esse reencontro com “povos na infância”, ao mesmo tempo em que reforçava a autoconfiança de que a Europa estava no topo do processo civilizatório, permitia um contato com o passado que ajudava a compensar os efeitos negativos do progresso. Em uma passagem reveladora o autor se apoia em uma afirmação atribuída a Alexander Von Humboldt de que a influência da natureza seria tanto mais profunda quanto mais afastado o homem estivesse da civilização. Dentre esses homens afastados, “os povos localizados nas zonas mais quentes são aqueles que a natureza reservou as inspirações mais poéticas” (Denis 1824b, p. 7). No entanto, onde todos são poetas, a literatura – entendida aqui enquanto uma tradição escrita – encontraria dificuldade para se desenvolver. Caberia aos europeus, talvez para redimir os crimes cometidos no processo de conquista, transformar esse legado poético em literatura (Idem, p. 8). Em 1826, quando publicaria o Resumo da História Literária do Brasil, essa tarefa seria um dos fatores de legitimação da autonomia nacional. Ao longo de seus 43 capítulos, Denis descreverá, com sua autoproclamada precisão e poesia, os mais diversos aspectos dos rios, animais, das plantas, dos povos e climas tropicais. Temas como a solidão, a melancolia e a preguiça aparecerão em consonância com as teorias de superioridade moral

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dos climas temperados. Seguindo de perto o modelo de Chateaubriand, quase 100 páginas, distribuídas entre os capítulos 24 e 34, apresentam a história do Quilombo de Palmares na chave de uma espécie de romance histórico que narra o destino do casal Zombé (sic) e Zara desde seu idílio na África, a captura e travessia do oceano, a formação do quilombo e a guerra que levaria a sua destruição. Essa história dentro das Cenas culmina nos capítulos dedicados à África e representa, sozinha, cerca de 25% de todo o livro, se excluirmos o anexo sobre Camões. A aventura, profundamente comprometida com a produção de empatia e com a denúncia da escravidão, nos é contada por um narrador ficcional, um homem idoso que se apresenta como filho do próprio Zombé. Antes, no entanto, o narrador-autor procura enquadrar reflexivamente o relato ao indicar as palmeiras e enormes rochas que no meio da mata apontariam o lugar onde teria existido o quilombo. Seriam os monumentos “que atestam a coragem dos vencidos e os crimes dos vencedores”. Frente a essas ruínas sem grandeza, o viajante “deveria lançar um olhar de tristeza”, do mesmo modo que faria frente às ruínas de Roma ou Atenas, pois todas ensinariam “[...] que é preciso apenas um passo para reverter os esforços tanto dos homens mais civilizados quanto dos povos na infância” (Denis 1824b, p. 239). O filho de Zombé mostra-se surpreso que o narrador-autor demonstre conhecimento da história de Palmares, o velho acreditava ser o último homem vivo a guardar a memória dos eventos. O Denis-narrador revela então sua condição de historiador estrangeiro, que poderia garantir que mesmo sem monumentos, a história da bravura dos guerreiros de Palmares jamais seria esquecida, pois “as histórias da Europa lembram o universo o que os séculos nos fariam esquecer”. (Idem, p. 244) Embora o conteúdo historiográfico das Cenas seja evidente, sua recepção entre aqueles dedicados à escrita da história no Brasil, desde o século XIX, foi pequena. Diferente do Resumo Histórico de 1825, que como veremos adiante foi traduzido e obteve rica fortuna, as Cenas até hoje permanecem sem tradução integral para o português. Nossos românticos, mesmo conhecendo e citando as Cenas, vão preferir o Resumo da História Literária, de 1826, e seu programa para a construção de autonomia nacional. O romantismo brasilei-

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ro herdaria igualmente o interesse poético pelos povos nativos, mas ignoraria solenemente os africanos e a escravidão, tão presentes nas Cenas. Esse veto à tematização do africano e da escravidão, que será superado apenas no último quartel do século XIX, ajuda também a explicar as restrições dos historiadores a essa parte da obra de Denis. Talvez houvesse aqui nas Cenas também um veto ao ficcional (Costa Lima 2007), que não atuará tão fortemente nos livros mais historiograficamente definidos. De todo modo, o texto é um documento fundamental para a história das relações entre historiografia e romance-literatura, pois Denis usa um vasto repertório de dispositivos para produzir verossimilhança, como as abundantes notas de rodapé que citam historiadores, cronistas e documentos na ancoragem referencial do texto. Mais adiante, ao tratar da tradução de Bellegarde do Resumo Histórico de Denis, voltaremos ao tema da recepção seletiva de sua obra.

O RESUMO HISTÓRICO DE 1825 Ao tratar do volume sobre o Brasil, publicado em 1822, notamos que a parte dedicada à história geral propriamente dita foi escrita por Alphonse Taunay. Portanto, com o Resumo Histórico do Brasil, de 1825, Denis apresentou pela primeira vez sua síntese da história brasileira. Esse volume tem particular relevância, se comparado com as demais compilações que temos analisado, por ter sido traduzido, mesmo que de modo seletivo, em 1831, e uma segunda versão desta tradução ter sido recomendada como o primeiro manual para o aprendizado de história do Brasil. O texto do Le Brésil ainda é hesitante quanto ao significado da Independência, já no Resumo ela é a motivação primeira para sua redação, afirmando-se, já no prefácio, que um dos seus objetivos seria apontar as causas da revolução (Denis 1825, p. VI). O termo revolução qualifica o processo de Independência, entendido como tendo sido o resultado dos progressivos melhoramentos no governo. Sua aposta, que seria depois desenvolvida no Resumo Literário, é que esses melhoramentos seriam acompanhados por outras dimensões da vida na realidade brasileira. Naturalmente, não faltaria a repetição performativa da abertura de horizontes: “Por sua situação geográfica, por sua navegação interior,

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por sua fertilidade e riquezas naturais, o Brasil pode ocupar o primeiro lugar na América Meridional” (Idem, ibidem). Antes mesmo de iniciar o primeiro capítulo, Denis apresenta uma tabela com estimativas acerca da composição demográfica do Brasil, destacando as diferenças de raça e situação civil: brancos, indígenas, mestiços e homens de cor livres e escravos, negros livres e escravos. A tabela, que ocupa três páginas, apresenta a distribuição pelas províncias, ainda chamadas de capitanias, e, ao final, a soma para todo o território. Em nota de rodapé, o autor esclarece que a fonte das estatísticas seria o geógrafo Adriano Balbi (17821848), que a pedido da Corte do Rio de Janeiro teria conduzido um levantamento junto aos governadores das capitanias, em 1816. O modo sinóptico em que a distribuição da população pelas capitanias era exibido provocaria incômodo em parte da elite política que via tais informações como perigosas e que deveriam ser tratadas com segredo de Estado. Vale lembrar que durante as polêmicas acerca da Independência, a suposta fragilidade da composição demográfica brasileira era continuamente evocada, no próprio resumo, em diversas passagens, Denis aponta esse elemento como um obstáculo importante a ser superado na conquista do futuro prometido. Na imagem abaixo, que apresenta os totais, podemos ver que a população escrava (negros, mestiços e gente de cor escravizada) somaria quase dois milhões de habitantes, ou seja, quase 55% da população.

As 253 páginas que formam o volume estão organizadas em 23 seções não numeradas ou indicadas com qualquer marcação; o exemplar que pude analisar não apresenta sumário. Portanto, a distribuição da matéria obedece a um critério essencialmente cronológico, não sendo evidente qualquer esforço

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na caracterização mais substantiva de épocas. No entanto, podemos organizar a matéria em três grupos, uma espécie de ante-história formada pelas duas primeiras seções, uma descrição geográfica e um relato acerca dos povos nativos à época da chegada dos portugueses, caracterizado como conquista. Um grupo temático posterior à narrativa principal e que ocupa as três últimas seções, uma dedicada às perspectivas econômicas da jovem nação, outra que descreve a situação presente dos povos nativos e dos negros escravizados e, por fim, uma seção que atualiza o leitor com os últimos acontecimentos – neste caso, as negociações para o reconhecimento da Independência. Entre esses extremos, as demais seções tratam da história político-administrativa e das invasões estrangeiras, com destaque para os episódios envolvendo franceses e holandeses e a ocupação do território. Neste ponto, o Resumo afasta-se da organização focada nas histórias particulares das capitanias, como usado no Le Brésil de 1822, representando um importante avanço formal para o estabelecimento de um equilíbrio entre a história geral e particular. É interessante notar que o episódio do quilombo de Palmares terá uma seção especialmente dedicada, com cerca de 10 páginas. Ela não mostra o esforço de dramatização ficcional, mas mantém o tom de denúncia da escravidão e de elogio da coragem e bravura dos africanos, além de trazer alguns parágrafos descritivos importados das Cenas (Idem, p. 145). O processo de Independência ocupa apenas duas seções, iniciando com a Chegada do regente ao Brasil e passando pela Primeira revolução de Pernambuco. Curiosamente, é no interior dessa última seção que a crise da Independência será tratada, reforçando uma interpretação de que a crise resultou da má administração joanina. Na primeira seção do livro, dedicada à descrição geográfica, Denis organiza o continente sul-americano em três grandes áreas, Guiana, Brasil e as províncias do Prata. Como em outros momentos, repete a avaliação reformista do futuro grandioso do Brasil, ou das fronteiras naturais, mas chama a atenção diversas vezes para a baixa presença demográfica e para a imagem de um território desocupado, o que sugeria que essa relevância ainda levaria séculos para se realizar (Idem, p. 1). A segunda seção intitula-se História das nações selvagens encontradas no Brasil na época da conquista e introduz de maneira emblemática o tema da violência europeia no processo de colonização: “É uma verdade infelizmente muito conhecida que em todo lugar conquis-

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tado pelos europeus as nações selvagens logo desaparecem” (Idem, p. 10). Ao comparar os indígenas que tiveram contato com os homens civilizados com aqueles que se refugiaram no interior do continente, escreve: a civilização destruiu os primeiros, a natureza selvagem conservou os outros; eles nos oferecem hoje a prova de que não se deve passar imediatamente os povos do estado selvagem aos nossos hábitos sociais. Há sempre degraus a serem vencidos, também não se pode jamais fazer retrogradar de súbito as nações (Idem, p. 11).

A última afirmação parece ressoar o debate acerca da suposta tentativa de recolonização das cortes portuguesas com relação ao Brasil. Em ambas vemos se consolidar uma versão sincronizada e homogênea da história da civilização. Mesmo sem citar a expressão latina, os dois argumentos reafirmam que a natureza não dá saltos e nem retrograda de modo brusco. Esse confronto com os costumes dos povos nativos era também oportunidade de exercitar um discurso crítico compensatório do processo de civilização. Em seu estágio evolutivo, esses povos haviam atingido certo grau de perfeição e harmonia que a civilização ainda não conseguia replicar, pois em “[...] todas [as tribos] vemos um amor para a vida errante e de uma perfeita independência: por toda a parte se acham provas inquestionáveis de que o estado selvagem em que viviam esses povos reunia muitas vantagens que a civilização só poderia oferecer ao fim de muitos séculos” (Idem,p. 12). A terceira seção é intitulada História da Descoberta e pela sequência já é possível verificar a consolidação de um protocolo em que o tratamento dos povos nativos serve de antessala para as narrativas ilustradas acerca das Grandes Navegações. A partir deste ponto, como já antecipamos, Denis percorre temas consagrados por modelos como Rocha Pita, Southey, Casal, dentre outros. Comparando-se com o Le Brésil de 1822, mantém-se a ambivalência entre o acaso e o mérito dos navegadores portugueses: “O acaso fez, nessa circunstância, o que fez tantas outras vezes: tocou de genialidade os homens empreendedores” (Idem, p. 39). No entanto, verificamos um encurtamento do tema das navegações e dos adjetivos que celebravam o feito. No quadro que Taunay traçou para essa

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história geral em 1822, o primeiro capítulo tratava dos descobrimentos, sendo os nativos abordados apenas no episódio do desembarque de Cabral. O arranjo proposto por Denis inova ao fazer os povos nativos ocuparem lugar autônomo e abrir o campo para a especulação acerca de uma história pré-cabraliana. Não seria exagero afirmar que o lugar dos portugueses na história do Brasil é reduzido, enfatizando-se, além dos povos nativos, os episódios de conflito com outras potências europeias como a França, Espanha e Holanda. Sendo o tema do vazio populacional uma das preocupações de Denis, seria razoável que a miscigenação aparecesse com alguma centralidade em sua narrativa, já que era recorrente entre letrados do reformismo luso-brasileiro. No entanto, em apenas uma ocasião ela aparece, justamente na descrição dos paulistas, não se afastando muito do modo como o tema é desenvolvido em Southey (Varella 2021; Ramos 2020). No sul do Brasil, a população havia crescido rapidamente porque os primeiros europeus não se furtaram em casar com as nativas, resultando deste cruzamento povos chamados “mamelucos” ou “paulistas”: “O resultado dessas uniões foi uma raça de homens notáveis por sua força e atividade [...] uniam em princípio, como já disse, o gosto das descobertas dos portugueses e a facilidade de suportar as privações que admiramos nos selvagens” (Idem, p. 140). Diferente das narrativas de muitos reformistas que, em maior ou menor grau, explicavam a fuga da Corte como resultado de uma política imperial por parte da França napoleônica, Denis descreve a Corte partindo para o Brasil com o objetivo de fugir às “ambições das duas potências” europeias em conflito, Inglaterra e França (idem, p. 176). Como todo o livro parece ter como agenda despertar o interesse de brasileiros e franceses para o potencial de uma verdadeira aproximação, reforçando a história de contatos e o papel tutelar que a civilização francesa poderia exercer sobre a jovem nação, este lance discursivo é coerente com o conjunto da obra. Mesmo descrevendo as grandes transformações vividas pelo Brasil com a chegada da Corte, Denis se diferencia de boa parte da historiografia anterior por destacar a rivalidade que a presença dos recém-chegados ia produzindo entre “brasileiros” e “portugueses”, abrindo um importante veio discursivo ligado à produção de uma consciência crítica nativa acerca do sentido da colonização. Certamente, a radicalização do debate, entre 1821 e 1822, com

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sua guerra de panfletos pela imprensa dos dois lados do Atlântico, permitiu essa reinterpretação do sentido da chegada da Corte em 1808 e do legado colonial luso. Denis afirma que ao compararem o Brasil com Portugal, os recém-chegados com a Corte tenderiam a fazer comparações injustas que provocavam espanto por parte dos habitantes do Brasil, que acreditavam serem todos membros de uma mesma nação. Esse encontro, no lugar de promover entendimento, era fonte de contínua irritação. Embora para muitos houvesse uma troca justa, já que pela hospitalidade que recebia a Corte oferecia vantagens até então desconhecidas, elas não eram sentidas pelas classes mais humildes da sociedade no Brasil (Idem, p. 176-7): Os brasileiros lembraram que receberam pouca ajuda da metrópole e que depois de muito tempo possuíam a fonte de suas riquezas. Eles se queixavam de que não participavam suficientemente de seu próprio governo, e sentiam que as ciências e a indústria de que os portugueses tanto se orgulhavam, outros europeus poderiam ofertar: os espíritos ficaram amargurados; e não poderia ser de outra forma (Idem, p. 177).

Aqui vai ficando mais claro o deslocamento narrativo que Denis promovia em favor da França. Logo após descrever o afastamento entre portugueses e brasileiros, narra com adjetivos generosos o entusiasmo com que os habitantes do Brasil, após a abertura dos portos, dedicaram-se a se aproveitar da civilização europeia. Enquanto os comerciantes ingleses inundavam o país de produtos ordinários, era dos franceses que chegavam os bens culturais capazes de educar os sentimentos e preparar o progresso: “As artes atingem um súbito brilho para os homens capazes de senti-las, e é especialmente aos franceses que eles devem essa primeira revelação do que poderiam um dia ser” (idem, p. 179). Mais adiante, mencionará a lenta revolução nas artes que a chegada de artistas franceses como os Taunay e Grandjean de Montigny (1776-1850) provocaria nas artes no Rio de Janeiro durante o reinado de D. João VI. Esses efeitos de progresso ainda não estavam igualmente distribuídos no território. Os proprietários rurais continuavam em profundo atraso, mas logo descobririam as vantagens do comércio com a Europa e importando novas máquinas, buscando maior lucro particular, acabariam por

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produzir profundas transformações na sociedade, a começar pelo destino dos negros (idem, p. 181). A segunda e última seção desse núcleo histórico-narrativo lida com a crise da Independência e recebe o título de Primeira Revolução de Pernambuco. Entre historiadores mais ligados à Corte joanina como Cairu e o padre Perereca (Luís Gonçalves dos Santos), 1817 é sempre caracterizado como um gesto de traição e ingratidão com todos os progressos que o monarca estaria promovendo na antiga colônia. Em Denis, embora seja bastante crítico aos ideais políticos dos revolucionários de Pernambuco, que em sua opinião tentavam implantar ideias europeias não adaptadas ao Brasil, a revolução era consequência da má administração joanina. Os “abusos dos privilégios” e favores, que estariam reservados a uma classe apenas da sociedade, e as desordens da administração seriam as causas das turbulências em Pernambuco (idem, p. 184). Por fim, descreve com cores vivas as punições e, particularmente, as terríveis condições das prisões a que foram condenados os revolucionários no Brasil, denunciando, mesmo que não diretamente, o caráter despótico do regime. De todo modo, o episódio serve como transição para a conjuntura da crise da Independência, já que o governo não demonstrou ter aprendido as lições, persistindo os mesmos vícios: “a administração do interior continuava em uma decadência absoluta (idem, p. 189). Em menos de um parágrafo, Denis narra como, na Europa, os portugueses tomam a iniciativa na Revolução do Porto. O monarca retorna à velha nação deixando no Brasil o príncipe D. Pedro em uma conjuntura que exigiria prudência e determinação. As leis que se produziriam em Portugal não se adequariam a um país tão distante quanto o Brasil. O relato continua com os trabalhos das cortes e o crescente conflito com os brasileiros, até que a decisão de privar o país de um centro político precipitaria a Independência. A descrição do clímax do processo é bem pouco heroica ou dramática: “O príncipe é chamado pelas cortes, lhe é oferecida a coroa do Brasil, ele a aceita. Uma nova era começa para esta bela parte da América meridional, que forma, a partir daí, um império independente” (Idem, p. 194). A parte final da seção narra os conflitos armados nas capitanias para derrubar resistências ao projeto da Independência, a abertura e o fechamento da Assembleia Constituinte de 1823, a outorga da carta e o estabelecimento

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do Brasil como uma nação monárquica, livre, independente, representativa, constitucional, católica, mas com tolerância à diversidade de religiões (idem, p. 200). Aqui termina propriamente o quadro principal da história geral do Brasil de Denis. As três últimas seções serão dedicadas às perspectivas econômicas, ao problema dos povos nativos e da escravidão negra e, por fim, a um apanhado dos últimos acontecimentos – o que era comum nesse modelo de historiografia que tinha como uma de suas funções atualizar o público com a história contemporânea. A seção dedicada à economia, além de traçar um balanço positivo do progresso agrícola nas diversas províncias, trata das relações futuras com a Europa. Descreve as dificuldades de qualquer tentativa de recolonizar o Brasil, desde a falta de interesse da Inglaterra ou da França até a incapacidade de Portugal ou da Santa Aliança. A distância e o clima são caracterizados como dificuldades incontornáveis a qualquer projeto de ocupação estrangeira (idem, p. 224). Como em outros momentos, Denis está preocupado em ampliar a influência francesa no Brasil. Assim, lembra aos leitores que o tratado de comércio que a Inglaterra havia firmado em 1810 deveria ser renovado em 1825, havendo esperança de serem alcançadas condições mais favoráveis, já que no Brasil “os franceses são amados, e os ingleses poderosos” (idem, p. 224). A penúltima seção trata de um dos temas que Denis considerava estratégicos para o futuro do Brasil: a população, em particular, o destino de indígenas e negros escravizados. Diferentemente das Cenas e de trabalhos anteriores, em que a questão nativa responde ao interesse literário pelo selvagem, aqui o tratamento do tema está mais focado no destino concreto desses povos no contexto de formação de uma nação civilizada. O pitoresco da descrição dos costumes é substituído por uma narrativa obcecada em caracterizar o estágio de desenvolvimento das diversas tribos, povos espalhados pelo território e suas possibilidades de integração à população útil. Ele trata dos povos selvagens que ainda habitavam o território, divididos entre aqueles que tinham sido subjugados pela civilização e os que ainda andavam errantes pelas matas. Retoma a avaliação anterior sobre os efeitos negativos da colonização. Citando novamente Humboldt, escreve: “os antigos habitantes, abandonados a si mesmos, estavam antes da conquista um pouco mais civilizados do que estão em nossos dias as hordas independentes” (Idem, p. 228).

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O desafio para a jovem nação era compreender as dificuldades desse processo de civilização e evitar os erros do passado. Um caminho para isso seria perceber o estágio evolutivo de cada grupo e avaliar suas possibilidades de incorporação. No extremo inferior estavam sempre as “hordas” errantes, que não poderiam ser consideradas agrupamentos sociais, depois os bárbaros, os pastores e agricultores. Os adjetivos se multiplicam: semicivilizados, nômades, selvagens, bárbaros, bugres, hordas, tribos errantes, etc. Em diversos momentos, caracteriza povos que, pelo grau de enfraquecimento, estariam destinados a uma rápida extinção. Produz uma imagem curiosa ao tratar dos sertões de Minas, nos quais vilas relativamente florescentes estavam cercadas por “hordas de botocudos” sem que fossem perturbadas, tão extensa era essa região. Em outra passagem, a imagem é invertida, e são os indígenas que aparecem cercados pela civilização: As tribos selvagens estão em estado de barbárie; aquelas que vi excitaram minha pena. Os puris, os patachos, os botocudos despertam apenas lembranças tristes; eles apresentam a imagem fatal do homem desses lugares, lutando contra a civilização, e se recusando a se submeter ao seu jugo, embora o envolva por todos os lados (idem, p. 234).

Mesmo que Denis não ofereça uma resposta única ao problema dos povos nativos, podemos dizer que a solução passava pelo aldeamento e catequese civilizatória, mas em uma passagem parece ficar claro que o que chamaríamos hoje de aculturação incomodava o letrado francês. Descrevendo um agrupamento que no texto é chamado de “tamoios”, escreve: “esta nação é atualmente a que oferece o maior interesse aos olhos do viajante, pois mesmo dando alguns passos em direção à civilização, têm conservado em grande parte os seus costumes” (idem, p. 237). Mas do ponto de vista do estado, em especial em áreas nas quais as “hordas selvagens” representavam um risco à segurança da população, importava pacificá-las de modo que pudessem contribuir para a população “ativa e útil”. Por fim, apenas relembrar que o tema da miscigenação novamente não ganharia destaque, mesmo que ele pudesse estar subjacente. O Denis viajante parecia estar interessado em algum nível de preservação daquelas diferentes culturas.

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A segunda parte desta seção é reservada a um “golpe de vista sobre a situação dos escravos negros”, o que ocupa apenas um longo parágrafo. Aqui, Denis dirige-se aos governantes do Brasil, advogando pela melhoria das condições de vida das pessoas escravizadas. Chega a afirmar que as condições das pessoas escravizadas Brasil seria a melhor da América meridional e que os negros e mulatos livres não eram excluídos da sociedade, podendo gozar dos benefícios de seus talentos ou coragem (Idem, p. 243). No entanto, alertava que com o fim do tráfico a única maneira de encontrar braços para cultivar seria incentivando a natalidade, o que só poderia acontecer se essas pessoas desafortunadas encontrassem no Brasil uma pátria. Há ainda uma grande nota de rodapé sobre o agravamento das condições precárias que os negros enfrentavam na travessia do Atlântico à medida que a repressão ao comércio de escravos tornava a operação mais cara e arriscada. Nenhuma exortação sobre o fim da escravidão ou de suas consequências negativas, como já se poderia encontrar em muitos outros autores à época. Como já mencionado, o livro termina com uma seção de atualização intitulada «golpe de vista sobre os últimos acontecimentos». Algum destaque é dado à Revolução Pernambucana de 1824, mas ressaltando o êxito do governo em reprimir os revoltosos e restabelecer a ordem na província. Mas o ponto alto da seção traz o leitor para o tempo presente do autor: “no momento mesmo em que escrevia um evento político da mais alta importância tinha lugar” (idem, p. 250), tratava-se do reconhecimento da Independência por parte da Inglaterra. Uma exortação final esboça a imagem do presente futuro do Brasil: os europeus, aqui entendidos os seus descendentes, iam paulatinamente aumentando seu controle sobre o território, derrotando a resistência dos nativos. O que no passado da colonização era um crime em nome da ganância, poderia ser visto agora como um serviço à pátria: “eles lutaram pela Europa e cometeram crimes; ações generosas serão o resultado de sua guerra” (idem, p. 251). Os desertos do Brasil seriam preenchidos por cidades prósperas e... homens distintos pela cor e caráter formarão apenas um povo, que oferecerá exemplos úteis às outras nações; impulsionados pelo mesmo interesse, mas atuando com um gênio diferente, o descendente do europeu, o

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negro e o americano contribuirão para o bem público seguindo caminhos diversos (idem, p. 253).

Atingindo um estado de prosperidade, o Brasil poderia perdoar a Europa dos males que lhe havia cometido; poderia também ver “em cada português um irmão”, pois durante muito tempo haviam partilhado um mesmo passado. Esse final conciliatório espera produzir algum tipo de fechamento terapêutico para os traumas da colonização. No entanto, ao evitar o tema da miscigenação ou da formação de um povo homogêneo racialmente, como na mesma época propunha figuras como José Bonifácio, não estamos seguros se Denis não estaria promovendo uma espécie de nação onde as diferentes raças ocupariam posições hierarquicamente distintas. Ao final, era a vitória da Europa e de seu tempo civilizado que estava sendo celebrado.

B) MUTAÇÕES DA EXPERIÊNCIA: OBSERVAÇÃO, METÁFORAS E NOVAS SÍNTESES HISTÓRICAS CRISE DA REPRESENTAÇÃO E CLIMA HISTÓRICO Entre 1800 e 1830, a observação de segunda ordem, como uma tecnologia amplamente disponível na sociedade ocidental, parece ser uma tendência reorganizadora da experiência histórica (Gumbrecht 1988). A seguir, tratarei dos impactos da multiplicação da imprensa na abertura de um novo campo de experiência marcado pela modernização do conceito de história e, associado a isso, a descoberta de que era possível relacionar-se com o passado em termos da representação e apresentação de “climas históricos”. A “descoberta” e os usos dos “climas históricos” parecem modalidades de resposta a uma inevitável melancolia advinda da sensação ambivalente de perda e desejo por passado. A descrição de Gumbrecht do cronótopo historicista está relacionada com uma hipótese ampla a respeito da modernidade enquanto um fenômeno que pode ser entendido na sucessão de três grandes cascatas. A primeira teria início com a descoberta do Novo Mundo e a invenção da imprensa,

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metonímia de um processo geral de crise da autoridade do escrito e da desmaterialização da cultura, ou seja, o afastamento do corpo e suas marcas do processo de produção de sentido. Nesse momento, surge o tipo de subjetividade ocidental, marcada pela oposição sujeito (puro espírito) e objeto (pura materialidade). O sujeito assume a função de um observador de primeira ordem, responsável pela produção de conhecimento sobre um mundo de objetos. Essa produção de conhecimento toma a forma de uma espécie de “leitura” da realidade em busca de seus sentidos profundos, emergindo o que Gumbrecht chama de “campo hermenêutico”.33 Uma das características principais dessa cascata é o afastamento do corpo dos processos cognitivos, produzindo-se um grande otimismo sobre a possibilidade de uma representação universal de um mundo exterior convertido em objetos do conhecimento pelo observador. A segunda cascata corresponderia ao período entre 1780 e 1830, momento em que desponta a consciência da modernidade enquanto um conceito de época. A novidade é o surgimento de uma forma reflexiva de observação e a figura do observador de segunda ordem; ou seja, a validade do conhecimento produzido precisa ser testada em suas condições de produção, 17 o sujeito de conhecimento torna-se ele mesmo objeto de observação. Esse relato corresponde àquilo que Foucault chamou de crise da representação, ou seja, à tomada de consciência de que a representação de um determinado objeto ou fenômeno depende da posição ocupada pelo observador. É possível então produzir inúmeras representações diferentes sobre um mesmo objeto: “Nenhuma dessas múltiplas representações pode jamais pretender ser mais adequada ou epistemologicamente superior a todas as outras” (Idem, p. 17). A historicização de amplas camadas da realidade, acompanhadas do processo de narrativização, responde à crise de consciência provocada pela multiplicação das representações. Ao serem colocadas no interior de uma narrativa histórica, essas diferenças são explicadas como momentos evolutivos de 33 

“[...] os significantes da superfície material do mundo nunca são suficientes para ex-

pressar toda a verdade presente na sua profundidade espiritual, e, portanto, [se] estabelece uma constante demanda de interpretação como um ato que compensa as deficiências da expressão” (Idem, p. 12-3).

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uma mesma identidade. O indivíduo pode assumir o papel de sujeito de sua própria história, sobrecarregando-se com as demandas por transformação e realização de um futuro utopicamente constituído. Em resumo, funda-se o que Gumbrecht tem chamado do cronótopo “tempo histórico” ou historicista. O terceiro momento, denominado alta-modernidade, teria lugar com as vanguardas de início do século XX, que consolidaram na compreensão geral a noção do moderno como constante autossuperação. Os resultados da multiplicação das representações parecem agora extrapolar as soluções produzidas pelo processo de historicização. São visíveis os primeiros sintomas de erosão do campo hermenêutico aberto na primeira modernidade. Nessa seção pode-se interromper aqui esse resumo, já que apenas as consequências das duas primeiras cascatas sobre a cultura histórica trarão consequências para a análise em tela. Em sua formulação ideal típica, o cronótopo historicista estabilizaria a crise da representação instaurando uma nova forma hegemônica de se relacionar com o passado concentrada na historicização e narrativização de quase toda a realidade. Uma das faces mais visíveis desse processo foi o surgimento das filosofias da história, que permitiram lidar com a sensação de aceleração do tempo e a perda do passado a partir de conceitos como progresso e evolução. Assim, a perda de contato com o passado era compensada com a promessa de que a descoberta de seu sentido e sua evolução eram capazes de reintegrar toda a história humana no futuro. Nesse ponto, é preciso apresentar uma categoria analítica que estava apenas esboçada na reflexão inicial de Gumbrecht sobre o cronótopo historicista: presença. Em seu livro Produção de Presença, Gumbrecht procurou demonstrar que a vontade de tocar ou viver no passado, que pode ser identificada como fenômeno reprimido no cronótopo historicista e que se amplia com sua crise a partir do segundo pós-guerra, é uma característica antropológica, reveladora do desejo humano de transcendência. Como tal, esse impulso esteve presente em todas as sociedades conhecidas, mas na modernidade foi reprimido pela “visão-de-mundo cartesiana”, pelo campo hermenêutico ou pela hegemonia de uma “cultura de sentido”.34 34  O próprio Gumbrecht tem exemplos da produtividade dessa compreensão antropo-

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Em vários momentos do livro, Gumbrecht destaca que não há cultura puramente de “sentido” ou de “presença”, estes dois elementos estão sempre atuantes em maior ou menor grau, e, ainda, que a preponderância do sentido produz uma nostalgia das práticas de presença: “[...] todas as culturas e objetos culturais podem ser analisados como configurações de efeitos de sentido e de efeitos de presença, embora suas diferentes semânticas autodescritivas acentuem com frequência apenas um ou outro aspecto” (Gumbrecht 2014, p. 41). A descoberta da oscilação entre “efeitos de presença” e “efeitos de sentido” pode ser usada agora para um melhor entendimento da cultura histórica vigente no interior do cronótopo historicista. Ao mesmo tempo em que o passado era abandonado enquanto fonte orientadora da experiência e o presente esvaziado por sua percepção enquanto um espaço de transição para um futuro melhor, crescia o interesse geral pela possibilidade de experimentar tanto os “climas do passado”, quanto a possibilidade de congelar o presente para apreendê-lo em sua unidade epocal. Assim, no lugar de reduzir a análise da historiografia a uma simples forma de prover orientação e sentido, pode-se entender esse desejo pelo excesso de passado, um excesso cuja complexidade não poderia ser enfrentada pelos processos de significação. A seguir, tento descrever algumas dessas formas de redução de complexidade que a emergência do observador de segunda ordem tornava disponível. Particularmente, gostaria de explorar as relações estruturais entre a emergência da observação de segundo grau, os efeitos melancólicos da sensação de aceleração do tempo e a descoberta de que o passado poderia ser explorado em sua dimensão de presença através da recuperação e reprodução de climas históricos. Em outros trabalhos, Gumbrecht tem estudado justamente as possibilidades de descrição dos climas históricos para uma nova experiência do passado, especialmente aqueles marcados por latências que só podem ser

lógica do tempo histórico, para citar apenas um particularmente importante, pois aplicado ao mundo ibérico, ver Hans Ulrich Gumbrecht. “Cosmological time and the impossibility of closure: a structural element in Spanish Golden Age narratives. In Marina S. Brownlee & Hans Ulrich Gumbrecht. Cultural Authority in Golden Age Spain. Baltimore, London: The John Hopkins University Press, 1995, pp. 304-321.

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percebidas indiretamente. O que estamos chamando aqui de clima é o que ele tem referido com a palavra alemã Stimmung: Para podermos ter consciência e perceber o valor dos diferentes sentidos e das nuances de sentido invocados pelo Stimmung, será útil pensar nos conjuntos de palavras que servem para traduzir o termo em algumas línguas. Em inglês existem mood e climate. Mood refere-se a uma sensação interior, um estado de espírito tão privado que não pode sequer ser circunscrito com grande precisão. Climate diz respeito a alguma coisa objetiva que está em volta das pessoas e sobre elas exerce uma influência física. Só em alemão a palavra se reúne, a Stimme e a stimmen. A primeira significa “voz”; a segunda, “afinar um instrumento musical”; por extensão, stimmen significa também “estar correto” (Gumbrecht 2014a, p. 12).

Embora Gumbrecht esteja particularmente preocupado em descrever os climas históricos que emergem com a situação de latência no pós-guerra, ou seja, tem utilizado a noção de clima como uma categoria, acredito que seja possível abordar o problema a partir de uma perspectiva historiográfica. Para isso, teríamos de nos perguntar a partir de quando especificamente emergiu a percepção de que o passado poderia ser percebido como um clima. Um caminho possível seria historiar o próprio conceito como faria uma abordagem ligada à Begriffsgeschichte (história dos conceitos), historiando as transformações nos usos de certas palavras como contexto, clima histórico, quadro, conjuntura, visão-de-mundo, golpe de vista, dentre outros. Talvez tenhamos aqui uma promissora agenda de investigação, mas nosso objetivo é bem mais modesto: tentar relacionar essas categorias teóricas à circulação entre novas tecnologias da representação ligadas à cultura do entretenimento e o discurso histórico das primeiras décadas do século XIX.

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O CRONÓTOPO HISTORICISTA E A EMERGÊNCIA DA “HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA” A emergência de uma cultura histórica que tinha como seu principal veículo o jornal aprofundou transformações que Gumbrecht associou à emergência da imprensa na primeira cascata de modernidade. Ao longo do século XVIII, acontece uma expansão vertiginosa do texto impresso, fenômeno abundantemente estudado pela historiografia. Um dos efeitos nem sempre notado dessa expansão, e particularmente a dos jornais, foi a sensação de aceleração do tempo que caracteriza a modernidade. A cada dia, um número crescente de leitores era bombardeado com informações sobre mundos até então inacessíveis, sobre grandes e pequenos eventos que já não podiam ser significados com paradigmas de histórias do passado. A complexidade desses eventos do presente não podia mais ser reduzida apenas pela analogia com eventos e textos clássicos, a forma predominantemente retórica de redução de complexidade (Alcides 2003). A prática da leitura rapidamente evoluía da leitura intensa, em que um pequeno número de textos era lido inúmeras vezes, para a extensa, um modo de ler que precisava lidar com a ampliação de textos e autores. Vê-se com frequência os articulistas afirmarem que uma função central dos jornais era resumir e guardar os principais fatos do tempo, constituindo-se ora como uma história do presente, ora como uma espécie de arquivo ou anais. Esse movimento parece responder e, ao mesmo tempo, produzir uma experiência da história marcada pela simultaneidade e pela extensividade da leitura ou visão dos fatos. A sensação de crescente complexidade é acrescida pelos efeitos da crise da representação e o inevitável conflito entre as diferentes descrições dos mesmos eventos. A aceleração dos acontecimentos parecia indicar a necessidade de técnicas mais abrangentes de representação dos eventos que não estivessem orientadas pela analogia episódica, pois se esperava a revelação de certa unidade e interconexão dessa história. Imaginava-se que os acontecimentos do tempo presente, agora trazidos ao leitor em escala global, pudessem mostrar o mesmo tipo de unidade que a historiografia revelava em épocas passadas. O

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surgimento do neologismo “história contemporânea” simultaneamente documentava esse desejo e levantava o desafio de ver alguma unidade por detrás do turbilhão de eventos/notícias.35 A expansão da imprensa revelava uma dimensão ocidental ou mundial da história, que deveria ser controlada para a tomada de decisões, fossem elas pessoais, comerciais ou políticas. Embora essa nova história, chamada contemporânea, pudesse ser globalmente significada através de uma filosofia da história ou de macronarrativas evolutivas, a dispersão que a caracterizava e a velocidade de sua transformação exigiam formas menos intensas e mais rápidas de redução de complexidade. Essa necessidade ficou documentada pela multiplicação de subgêneros historiográficos cuja função era resumir e compendiar esses eventos sem necessariamente produzir uma macronarrativa. Esboços, quadros, compêndios, resumos e panoramas são alguns títulos frequentemente usados. Associados a esses títulos também se encontram expressões como “vista de olhos” ou “lance de olhos” que denotavam a necessária velocidade e escala ampla com que essas “representações” precisavam ser construídas e recebidas. Para além da unidade narrativa, experimentava-se uma unidade “pictórica” ou “cênica” dos eventos. Assim, o neologismo “panorama” seria definitivamente incorporado ao vocabulário histórico, demonstrando essa expectativa de identificar uma unidade do tempo. A palavra panorama foi inventada pelo pintor inglês Robert Barker (1739-1806) em 1792 para nomear suas pinturas que exibiam vistas da cidade de Edimburgo. No ano seguinte, foi construído um edifício especialmente planejado para acomodação de suas telas circulares que podiam ser vistas mediante a compra de ingressos. Desde então os panoramas tornaram-se uma mania, existindo em todas as grandes cidades na Europa. Os panoramas fascinavam pelo estabelecimento de um ponto de vista de um observador distanciado, já os dioramas, como tento demonstrar a seguir, pressupunham um maior controle do ponto de vista do observador, como que invertendo a lógica do panorama. A observação só era possível de dentro mesmo da história, como que controlados por um observador de se35  C f. Guillermo Zermeíio Padilla. “História/história - Nova Espanha.” História da Historiografia. Ouro Preto, no. 4, março de 2010, p. 62.

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gunda ordem. O corpo do expectador era submetido a uma espécie de imersão que procurava não apenas seduzir o olhar, mas produzir uma sensação de deslocamento espaço-temporal. Ao descrever esse novo tipo de interesse pela história que marca a historiografia liberal francesa, falando especificamente de Barrante, Hartog identifica essa diferença que aqui tento mostrar entre a experiência do panorama e do diorama: “No entanto, pela analogia com a pintura, a questão colocada já não é, como no século XVIII, a do ponto de vista, mas a da cor”. (Hartog 2005, p. 173) Essa nova experiência, que acredito ser dependente da descoberta de que o tempo histórico instaura climas, é o que analiso a seguir. A cor local, o pitoresco, são apenas outras figurações do mesmo fenômeno global que chamamos, com Gumbrecht, de cronótopo historicista. Analisando os panoramas de outra perspectiva, Margareth Pereira identifica já nessa tecnologia o problema da temporalização: Mas pode-se dizer que, com estes jogos de luz, os panoramas abriam-se para a representação também da noção de movimento e, com ela, para a de duração. Até então, ela estava oculta, era um convite à imaginação. De certo modo, a «presentificação” vivida nos panoramas reconhecia e até mesmo apelava para o passado (a memória) e o futuro (a expectativa), mas guardava-os potencialmente. O passar das horas: com os dioramas implica um esgarçamento dessa ambiguidade dos primeiros panoramas em relação à suspensão temporal. A mutabilidade, o novo, a viagem já haviam criado uma cultura, que fazia pressão (Pereira 1994, p. 188).

DIORAMA E CLIMA HISTÓRICO O diorama é uma tecnologia de exibição de dois grandes painéis inventada por Louis Daguerre (1787-1851) em 1822. Os dioramas eram exibidos em salas especialmente construídas que permitiam a acomodação do público e a produção de efeitos ilusionistas que tinham como objetivo produzir uma sensação de presença real da cena representada. Já em 1823, salas para exibi-

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ção de dioramas estavam construídas em Paris e Londres, produzindo imenso interesse do público.36 O Diorama de Paris comportava nada menos que 350 pessoas em uma sala com 12 metros de diâmetro.37 A seção onde o público era acomodado girava em direção aos grandes painéis iluminados por intrincados mecanismos que conduziam a luz do exterior. Cada um dos painéis media 14 metros de altura por 22 metros de largura e era pintado sobre um tecido fino de modo diferente de cada lado, obtendo-se assim efeitos de transformação da imagem na medida em que a luz era manipulada no interior da sala.38 Cada painel era exibido por cerca de 15 minutos, apresentando transformações centradas na passagem do tempo, do dia para noite, por exemplo, ou mudanças climáticas como a vista de um amanhecer enevoado que lentamente revelava uma paisagem pitoresca. Em Romanticism and the rise of history, Stephen Bann procurou compreender os dioramas como uma das manifestações de uma vontade de “encenar o passado” que emerge com a sensação de “perda da história” sentida com a entrada na episteme moderna. Representar o passado a fim de produzir uma sensação de presença seria uma maneira de compensar essa perda.39 No vocabulário de Gumbrecht, os dioramas podem ser entendidos como efeitos colaterais necessários de uma sociedade centrada na produção de sentido. No final das contas, a representação “realista” de coisas e eventos distantes no diorama produzia efeitos de presença que tornavam possível

36 

O Diorama de Paris foi destruído por um incêndio em 1839.

37 

Para uma detalhada descrição do diorama e sua recepção, ver R. Derek Wood. The

Diorama in Great Britain in the 1820s. Edição eletrônica consultada no site http://www. midley.co.uk/diorama/Diorama_Wood_1_1.htm. acesso em 21/09/2021. 38 

Sobre as técnicas de pintura que consistia em usar os dois lados de uma grande tela

em tecido, ver L. Daguerre. “Description des procédés de peinture e de eclairage inventes par Daguerre e apliqué par lui aux tableaux du diorama”. In: Historique et description du Daguerreotype et du Diorama par Daguerre. Paris: Alphose Giroux ET Cie. Editeurs, 1839, passim. 39 

Bann, Stephen. Romanticism and the Rise of History. Nova York: Twayne Publishers,

1995, p. 122 e segs

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avançar com o processo de transformação industrial da paisagem e o afastamento do passado. O impacto da novidade no público foi imenso, com relatos de membros da audiência que reagiam fisicamente às transformações exibidas. Organizado prioritariamente como um negócio, era possível comprar entradas individuais para os dioramas, ou, fato comum, “passaportes” para toda uma temporada de exibição. Os temas preferenciais eram cenas históricas, interiores de grandes catedrais ou paisagens sublimes. Em seu artigo, Derek Wood cita o impressionante depoimento de um membro da audiência no Diorama de Manchester ao ver o painel intitulado Vale de Sarnen: [...] requer um esforço para ter em mente que aquilo que parece tão verdejante e tão bonito, tão vasto e tão sublime, está confinado nas paredes de um prédio de tijolos em uma cidade enfumaçada. Uma garotinha de quatro ou cinco anos de idade que não se questionou como tal cena poderia se estender do fundo da rua Cooper, disse em nossa sessão: “Por que papai, você disse que era uma pintura, e estas são coisas reais? e coisas reais elas pareciam ser... Tal exposição é um aumento positivo do estoque de diversão de qualquer cidade, e mais particularmente em uma cidade como esta, que ainda tem pouca beleza para se gabar, um passeio ao Diorama para quem trabalha em meio a fumaça e poeira é tão refrescante quanto a água para os sedentos (Wood 2010).

Em uma Manchester em acelerado processo de urbanização e industrialização, o sentimento de perda de contato com a paisagem natural era amenizado pela possibilidade de estar, mesmo que por alguns minutos, em uma verdejante paisagem dos Alpes. O efeito contramelancólico não deveria ser diferente na recepção das cenas históricas que seguiam a moda dos temas medievais e góticos, de paisagens escocesas ou do interior de grandes catedrais e edifícios históricos. Descobria-se que o passado poderia ser experimentado sem a necessidade do risco de um retorno real. Era possível sentir-se inserido nesses mundos perdidos ou distantes, em seus ambientes, sem que a possibilidade de um retrocesso histórico-evolutivo estivesse em pauta. Muito pelo contrário, essa busca pressupunha a percepção moderna da não reversibilida-

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de do tempo. A lista dos temas é reveladora desse desejo de uma experiência, mesmo que efêmera, de reintegração com o passado, seja ele histórico-religioso ou natural: Sermão na Igreja real de Santa Maria Nuova, na Sicília; Inauguração do Templo de Salomão, Uma vista da floresta negra, O túmulo de Napoleão em Santa Helena, O Começo do Dilúvio, A cidade de Edimburgo, dentre muitos outros exibidos em Paris e Londres, além de muitas outras cidades europeias que construíram seus dioramas ou adaptaram prédios já existentes para receber versões simplificadas do dispositivo. A referência aos episódios clássicos e à edificação moral não encontrava nos dioramas o mesmo espaço que poderia ainda ter em certa historiografia ou nos discursos escolares; era como se o conceito moderno de história pudesse melhor se expressar nessa conjunção entre negócio, multidão e entretenimento. O fato de as iniciativas serem tomadas por particulares também ajuda a entender a abertura dessa nova tecnologia, só possível na afluência de um público urbano amplo e heterogêneo. Não significa dizer que a cultura histórica representada nesses espetáculos não pudesse também estar a serviço de um projeto nacional ou ser permeada pela historiografia profissional, mas na década de 1820 isso era menos visível. Nas décadas seguintes, será possível ver esse tipo de entretenimento a serviço de um projeto político-ideológico de celebração dos grandes eventos da nacionalidade. Como em toda representação histórica, é difícil avaliar de forma homogênea o que estava em jogo na produção e recepção dos dioramas. Desde a Revolução Francesa ficava cada vez mais claro que um mundo passado estava se perdendo, mas o significado e as reações a essa percepção podiam ser bastante ambíguos. Frank Ankersmit procurou tipificar essas reações em torno de duas categorias – tradicionalistas e conservadores – emprestadas da historiografia política/intelectual. Os primeiros imaginavam que o passado perdido poderia ser reconquistado ou restaurado, já os conservadores, como Edmund Burke, sabendo que esse retorno já não era possível, limitavam-se a uma tarefa de “conhecer” o passado, sem a esperança de uma reconstrução da identidade, ou uma representificação. O fundamental aqui, para a descrição do fenômeno do diorama, é que essa experiência do passado carregava uma dimensão de trauma e reconciliação que precisava ser enfrentada por todos os grupos em disputa, não apenas os dois citados (Ankersmit 2005, pp. 324-30).

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Ao longo da década de 1820, muitos dos dioramas exibidos estavam relacionados com a moda escocesa celebrada nos romances de Sir Walter Scott (1771-1832). Foram eles “As ruínas da Holyrood Chapel vistas ao luar”; “Roslyn Chapel, próximo a Edimburgo, efeitos do sol” e “Ruínas enevoadas”. Este último representava os despojos imaginários de um edifício gótico com dois personagens trajando seus kilts. Como em muitos dioramas, o efeito produzido é o da passagem do tempo; a mudança acelerada de um fenômeno natural ou histórico que pode se experimentado em um espaço controlado e sem riscos. Como lembra Derek Wood, essas imagens estavam diretamente relacionadas com o trabalho de artistas como Caspar David Friedrich (1774-1840) e Karl Friedrich Schinkel (1781-1841). O mesmo autor cita uma descrição desse painel (Figura 1), publicada em 30 de junho de 1827 no Mirror of Literature: Tudo é sombrio, desolado e triste; apenas os corredores compridos, à primeira vista, são percebidos, pois uma névoa espessa reina. A ilusão da cena é tal que você realmente se sente arrepiado pelo ar frio e úmido. Aos poucos, porém, o nevoeiro se dispersa e, através dos vastos arcos, são claramente descobertas as florestas de pinheiros e lariços que cobrem o vale” (Wood 2010).40

40 

All is sombre, desolate, and mournful; the long drawn aisles, at first glance, are

alone perceived, for a thick fog reigns without, and such is the illusion of the scene that you actually fancy yourself chilled by the cold and damp air. By degrees, however, the fog disperses, and through the vast arches are plainly discovered the forests of pine and larch-trees that cover the valley.” Apud R. Wood, Derek. Op. cit.

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Ruínas enevoadas.

Na emergente cultura do entretenimento que florescia desde o final do século XVIII, a descoberta da possibilidade de apresentar climas históricos respondia tanto à sensação de perda do passado, de um distanciamento que despragmatizava a relação com a história, quanto à percepção de que o observador deveria ser incorporado ao dispositivo de representação. Não apenas uma mente observadora, mas a totalidade do corpo deveria estar acoplada no dispositivo, de modo que a experiência da coisa representada pudesse suspender, mesmo que momentaneamente, as dúvidas sobre a estabilidade do que estava sendo apresentado. Era preciso sentir o frio medieval ou o espírito de uma religião pura que as catedrais pareciam ainda exalar para fixar a representação. Nas cidades enfumaçadas e superlotadas da revolução industrial, era preciso acreditar haver ainda lugares naturais onde se poderia viver como no passado. Além disso, os dioramas respondiam à vontade antropológica de ubiquidade, de estar em muitos lugares espaço-temporais diferentes, sem ter, é claro, de correr os enormes riscos e custos que esses deslocamentos reais exigiriam. Alguns comentadores contemporâneos ficavam maravilhados com a possibilidade de “visitar” o interior de uma catedral sem abandonar suas cidades, negócios ou famílias. Em uma das mais completas e ricas descrições

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do diorama, presente no livro de W. H. Leeds, Illustrations of the public buildings of London, de 1838, o autor relata o seguinte: O efeito da identidade real que esta exposição transmite dos temas que apresenta ao espectador não pode deixar de interessá-lo profundamente; e se esse cenário clássico for apresentado ao público dessa maneira, como pode ser visto na natureza apenas pelo trabalho e pelas grandes despesas de viagens, há muito pouca dúvida que o Diorama experimentará um longo patrocínio (Leeds 1838, p. 365).41

Construído logo após o de Paris e de forma a permitir que os materiais originalmente apresentados na capital francesa pudessem ser exibidos na Inglaterra, o prédio do Diorama de Londres foi finalizado em 6 de outubro de 1823, após quatro meses de obras, em uma área nobre do Regent’s Park. A planta do Diorama de Londres42 (Figura 2) documenta a crescente curiosidade pelos dispositivos de observação do observador, revelando o parentesco do dispositivo com aparelhos menos divertidos como o Panopticon de Jeremy Bentham (1748-1832), inventado alguns décadas antes, em 1785. Na descrição do interior do prédio, são representados os ângulos de visão da audiência e todo o mecanismo que permitia ao palco girar sobre o seu próprio eixo. O efeito de real produzido dependia do conhecimento crescente sobre o modo como os seres humanos percebiam o mundo pela observação.

41 

“The effect of actual identity which this exhibition conveys of the subjects it pres-

ents to the spectator, cannot fail to interest him deeply; and should such classical scenery be brought before the public in this way, as is only to be viewed in nature by the labour and great expense of travel to obtain it, there is very little doubt but the Diorama will experience a very durable patronage.” Leeds, WH. Illustrations of the Public Buildings of London: with Historical and Descriptive Accounts of Each Edifice, vol. I. 2 a ed. Londres: John Weale Architectural Library, 1838, p. 365 42  Idem, p. 362

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Diorama de Londres, corte lateral.

Essa vontade de controlar o ponto de vista não estava apenas preocupada em produzir uma perspectiva universal, mas se utilizar das próprias condições e limites do posicionamento da visão para produzir uma experiência semelhante ao real, vicária. Assim, toda a tecnologia do diorama foi pensada para produzir um enquadramento que fizesse com que o expectador esquecesse da ilusão, da distância entre ele e a cena ou situação representada: Essas imagens são colocadas a certa distância do espectador proporcionalmente ao ângulo em que ele veria os objetos na natureza; e, na ausência de meios para perceber essa distância, e não tendo objetos de conexão para operar como uma escala para seu juízo na comparação de quantidades, cede irresistivelmente à magia da habilidade do pintor e sente a ilusão integralmente (Leeds 1838, p. 363).43 43 

These pictures are placed at distances from the spectator proportioned to the angle

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O DIORAMA COMO METÁFORA Assim como a palavra panorama, também o neologismo diorama rapidamente entrou no vocabulário geral, particularmente no historiográfico. Já em 1823, é possível encontrar livros como o Diorama de Portugal nos 33 meses constitucionais, de José Sebastião de S. O. Daun (Daun 1823) 44 e o Diorama de Londres (Arcieu 1823),45 publicado em Paris pelo tradutor de Byron. No ano seguinte, Andrew Wilkie publicou The Diorama of Life (Wilkie 1824).46 É sempre lembrada a passagem de Père Goriot na qual Balzac ironizava a moda das palavras com “rama” como um exemplo da superficialidade e volatilidade de certa cultura parisiense centrada no entretenimento: A recente invenção do Diorama, que levou a ilusão de ótica a um nível superior ao dos panoramas, trouxe a brincadeira de falar em rama em alguns ateliês de pintura, uma espécie de infecção que um jovem pintor frequentador da pensão de Vauquer tinha por lá inoculado (Balzac p. 515).47 at which he would view the objects in nature; and in the absence of means to perceive this distance, and having no connecting objects to operate as a scale towards the direction of his judgment in comparing quantities, he yields irresistibly to the magic of the painter’s skill, and feels the illusion to be complete.” Leeds, W H. Illustrations of the Public Buildings of London, p. 363. 44 

Daun, José Sebastião de Saldanha Oliveira. Diorama de Portugal nos 33 meses cons-

titucionais, ou golpe de vista sobre a Constituição de 1820, a Constituição de 1822, a Restauração de 1823 e acontecimentos posteriores até o fim de outubro do mesmo ano. Lisboa: Impressão Régia, 1823 45 

Arcieu, Eusêbe de Salle. Diorama de Londres, on tableau des moeurs britanniques en

mil huit cent vingt deux. Paris: Chez Fr. Louis Librairie, 1823. 46 

Wilkie, Andrew. The Diorama of Life, or the Macrocosm and Microcosm Displayed

Cbaracteristics, Sketches and Anecdotes of Men and Things. Bath: Edward Barrett, 1824. 47 

La récente invention du Diorama qui portait l’illusion de l’optique à un plus haut

degré que les Panoramas, avait amené dans quelques ateliers de peinture Ia plaisanterie de parler en rama, espece de charge qu’un jeune peintre habitué de Ia pension Vauquer y avait inoculée.” Balzac, H. de. Ouvres, t. 3, p. 515.

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Balzac, no livro de 1835, não escondia a admiração pelo diorama, enxergando nele certas semelhanças com seu próprio programa de representação e investigação histórico-social, mas ironizava a recepção ligeira do público, uma recepção centrada em uma cultura do entretenimento da qual dependeria o sucesso da recepção e venda de seus próprios romances. Não seria exagerado dizer que, em seus romances, em seu projeto de produzir uma história das grandes transformações da sociedade francesa, Balzac lançava mão de procedimentos análogos aos do diorama. O enquadramento do ponto de vista, sua superação pela abordagem da sociedade com a perspectiva ao mesmo tempo distanciada do observador de segundo grau e atenta aos contextos efetivos nos quais a complexidade dos comportamentos poderia ser reduzida e estabilizada. Essa dimensão do entretenimento parece ter sido a motivação do autor do The Diorama of Life, que, na verdade, parecia apenas se aproveitar da palavra em moda para oferecer ao leitor um mosaico bastante aleatório de histórias anedóticas, supostamente reais, envolvendo personalidades da época. Em suas palavras: O mundo está carente de muitos tipos de livros: alguns são necessários para prosseguir nossos estudos e outros para satisfazer nossos divertimentos: e como existem pessoas que quando lêem apenas para entretenimento desejam encontrar assuntos curiosos, e não indignos da curiosidade de um homem de letras, é adequado que recebamos livros que, sem exigir pensamentos severos ou devotados a assuntos triviais, possam nos proporcionar recreações instrutivas. O editor se lisonjeia que o presente volume se enquadra nesse tipo de livro, e que sua leitura proporcionará aos leitores lucro e prazer (Wilkie 1824).

JOSÉ DAUN: DIORAMA DE PORTUGAL (1823) Uma recepção um pouco mais complexa identifica-se no Diorama de Portugal. Embora seja plausível considerar que o autor estivesse interessado nos efeitos do neologismo no público, ele teve, por outro lado, a preocupação de adaptar, de alguma forma, seu método de escrita à ideia de representação

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do diorama. Assim, embora não se encontre outra referência à palavra além daquela do título, nem gravuras, em várias passagens o autor parece usar a expressão “golpe de vista” como equivalente aos efeitos cognitivos e pictóricos do diorama: Neste sentido empreendi esta Análise Crítica, e Refutação da Constituição de 1822 , assim como a Narração dos Acontecimentos, que imediatamente se lhe seguiram; nem o tempo, nem o talento, nem a paciência me permitiriam tratar este assunto com o vagar, e extensão, que merece a sua importância, recorri então ao expediente de um Golpe de Vista, que abraçando o maior número de objetos interessantes no menor espaço possível, não enfastiasse tanto o Leitor, e mostrasse com clareza, e precisão a impostura da Revolução [...] (Daun 1823, p. V).

Refletindo certas mudanças estruturais nas condições de leitura e produção do texto, José Daun destacava as vantagens de seu método: velocidade, concisão e abrangência. Em obra posterior, Quadro histórico-político dos acontecimentos mais memoráveis da história de Portugal, de 1829, abandonaria a palavra diorama no título, mas não a estrutura e o sentido de suas intervenções historiográficas, tornadas ainda mais claras ao recusar o uso das eruditas notas de rodapé. Após comparar seus esforços com os dos “escritores habilíssimos” que em suas avultadas obras criticavam o rei, ponderava que “algumas vezes um inesperado e vigoroso ataque pode decidir também da sorte de uma batalha, e segurar as vantagens da vitória” (Daun 1829, p. III). Uma ação rápida e precisa sobre a opinião pública, assim entendia seu novo Quadro, no qual resume os acontecimentos da história portuguesa desde 1807 até 1828. Defende da seguinte forma seu método, deixando clara as novas necessidades de extensividade da leitura: Simplificar a sua narrativa; resumir, sem omitir algumas reflexões jurídico-políticas, que os fatos essencialmente exigem, é sustentar a natureza da Obra, que o Título suficientemente explica, e seguir também a moda, ou o capricho do gosto literário atualmente em voga, e que não quer demorar-se na leitura de extensas composições (Daun, 1829, p. III).

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Por volta da década de 1850, parecia haver uma perfeita fusão entre as preocupações com o realismo histórico e as apresentações do diorama. No prefácio de um guia impresso para orientar o visitante no grande diorama “Campanhas do Lord Wellington”, os organizadores explicavam que: Os proprietários imploram sinceramente que seus visitantes tenham em mente, que eles não pretendem, ou presumem nessas ilustrações representar batalhas e cercos com uma consideração rígida aos detalhes técnicos ou manobras militares, ou mesmo fazer mais do que selecionar características particulares de ocorrências interessantes. O principal objetivo do Diorama é trazer à vista ideias e justas de locais, ações, cores e roupas locais: eles se limitaram a representar os incidentes mais marcantes e os episódios enfáticos das campanhas do duque e a delinear com sinceridade algumas das dificuldades físicas que teve de enfrentar (Ford 1852, p. 3).48

Os empresários afirmavam ainda que a iniciativa havia sido inspirada no grande sucesso de um diorama composto por múltiplos painéis intitulados Correio terrestre para Índia, exibido mais de 1600 vezes, tendo atingido um público de mais de 400 mil pessoas (Ibidem). Sabe-se ainda que os painéis do diorama das campanhas de Wellington foram pintados pelos proprietários, Thomas Grieve, William Telbin e John Absolon. Os animais desenhados por Alfred Corbould, a batalha de Waterloo, com dois painéis que encerram a série de 29, foram executados por George Danson e seus filhos. O diorama contava ainda com música composta e arranjada por Rophino Lacy e com descriptive lectures ministradas por J. H. Stocqueler. Na 48 

The proprietors beg earnestly to impress upon their Visitors, that they do not pre-

sume, or profess, in these illustrations, to depict battles and sieges with a rigid regard to technical details, or military manoeuvres, or even to do more than select particular features of interesting occurrences. The main purpose of the Diorama is to bring before the eye, pictorial but just ideas of sites, actions, local colour and costume: they have confined themselves to representing the most striking incidents and emphatic episodes of the Duke’s campaigns, and to truthfully delineating some of the physical difficulties by which he was opposed:” (Ford 1852, p. 3).

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apresentação figuram ainda agradecimentos a John Burnett pelos esboços do campo de Waterloo, a Stocqueler por “informações valiosas” sobre a Índia e o Oriente, e a Richard Ford pelos esboços feitos na Espanha. Esse último é o mesmo que assina a autoria do guia e deve ser o responsável pelos longos textos explicativos que acompanham cada ilustração representativa do diorama. Os painéis apresentam a biografia de Wellington desde seu nascimento, passando por sua atuação na Índia, nas Guerras Peninsulares, culminando, obviamente, na Batalha de Waterloo (Figura 3).

Enfrentamentos nas Fontes de Onoro. O texto destaca a antiga capela e os prédios que coroam as colinas, dando assim à cena a dimensão pitoresca prometida pelos editores.

O trabalho de pesquisa e produção teria durado dois anos, nos quais: “as autoridades mais reconhecidas, militares e civis, foram consultadas, em especial os Dispatches de Duke, a História, de Napier; Life of his Grace, de Maxwell; Peninsular Annals, de Hamilton; Battle of Waterlo, de Sibornes; e Handbook for Spain, de Ford”. William Telbin, um dos proprietários, informa ter visitado Espanha e Portugal com o objetivo de garantir a fidelidade da representação, trazendo de volta esboços que serviram de base para alguns painéis. Não tenho informações precisas das técnicas de exibição usadas, se eram realmente idênticas às do diorama de Daguerre, mas a iniciativa dá uma

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ideia bastante rica da direção que essa tecnologia tomará ao longo do século e de sua importância na cultura histórica oitocentista. No ano seguinte, 1853, os mesmos empresários apresentariam um guia para uma exibição intitulada The ocean mail to India and Australia (Stocqueler & Mossman 1852). Essas iniciativas, economicamente acessíveis às massas urbanas (a admissão no salão da Regent Street 14 custava 1 shiling e o guia, 6 pence), permitiam uma democratização da experiência da acelerada expansão do império britânico. Uma expansão que passava pela montagem de uma grande narrativa sobre o passado na qual as batalhas contra Napoleão tinham um lugar de destaque, mas também a peregrinação imaginária aos novos territórios conquistados.49 No mesmo guia, tínhamos uma boa mostra da variedade de interesses dessa vontade de apresentação, um anúncio de um dos shows da famosa Madame Tussaud retratando o casamento do imperador da França, Napoleão III, com a imperatriz Eugênia, os dois em seus trajes nupciais minuciosamente descritos: “a imperatriz Eugênia em seu belo vestido de noiva, com belíssimas rendas, ornamentos usados na ocasião [...] Sua Majestade Napoleão III com as vestes de tenente-general”.50

FÉLIX TAUNAY, FERDINAND DENIS E O PANORAMA DO RIO DE JANEIRO EM PARIS (1824) Já vimos anteriormente que na introdução de seu livro sobre a Independência do Brasil Beauchamp convida os seus leitores a conferir a pujança e beleza da capital no novo império visitando o Panorama do Rio de Janeiro que estava em exposição no centro de Paris em 1824. Esse panorama foi pintado por Fréderic Guillaume Ronmy (1786-1854), com base nos desenhos enviados 50 por Félix-Émile Taunay (1795-1881). Vimos que essa exposição da cidade servia muito bem Beauchamp em sua argumentação a favor da Independên49 

Para uma descrição mais detalhada da cultura londrina do entretenimento, ver Ri-

chard Daniel Altick. The Shows of London. Harvard: HUP, 1978, passim 50 

“the empress Eugen in her beautiful bridal dress, of exquisite lace, ornaments worn

on the occasion [...] his majesty Napoleon the Third in dress of a Lieutenant-General”

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cia. A dupla Ferdinand Denis e Hipollyte Taunay, que haviam escrito uma descrição geral do reino do Brasil entre 1821 e 1822, aproveitaram a oportunidade do Panorama para oferecer aos visitantes um guia. As aquarelas do irmão Félix davam outra visão ao Rio de Janeiro descrito por Hippolyte no tomo 2 do Le Brésil, em ambos a imagem de um Rio de Janeiro civilizado e pitoresco, prenhe de futuro em 1821-1822, data provável em que ambos estavam envolvidos em suas representações. A Notícia histórica e explicativa do panorama do Rio de Janeiro foi publicada no mesmo ano de 1824 pela editora Nepveu, situada justamente na Passagem dos Panoramas, primeira galeria comercial coberta na França, que dava acesso às duas rotundas nas quais eram exibidos panoramas. Auguste Nicolas Nepveu, além de livreiro, em um momento em que a indústria do livro se expandia na França, estava também envolvido com outro contexto do mercado do entretenimento que passava pela exploração das novas tecnologias visuais. Em 1830, ele registra a patente de seu Cyclorama, um dentre os vários inventos portáteis que prometiam levar a nova experiência visual para dentro das casas (Huhtamo 2013, p. 76). Margareth Pereira acredita que Félix Taunay teria produzido as aquarelas que serviram de base para o panorama sob encomenda de empresários, neste caso Pierre Prévost (1766–1823) que, desde o começo do século, explorava e produzia essas novas ferramentas de visualização (Pereira 1994, p. 187). Falecido em 1823, seria substituído por Ronmy na pintura do Panorama do Rio de Janeiro, embora todos os elementos pareçam indicar que encomenda do material à Félix Taunay teria sido ainda feita por Prévost. O prefácio da Notícia histórica não poupa elogios ao Panorama do Rio de Janeiro, “a grandeza e a beleza das linhas, a elegância e o pitoresco da arquitetura, a pompa da vegetação dos trópicos e a fidelidade do coup-d’oeil formam um todo extraordinário e delicioso” (Denis & Taunay 1824, p. v). No entanto, para apreciar toda essa complexidade, “[...] para saber admirá-lo era necessário um cicerone, por isso o guia” (Idem, p. v). O texto é então organizado de modo que na primeira parte segue um resumo histórico e geográfico do Brasil, com o relato sobre as expedições francesas no Rio de Janeiro, a descrição dos usos e costumes dos habitantes, com destaque para os indígenas, além de pontos da história natural. A parte final é dedicada a pontos de interesse na paisagem da

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cidade, com números à margem referenciando-os no panorama. Fechando o volume, da página 110 à 123, segue outra descrição intitulada Notícia adicional do panorama do Rio de Janeiro, atribuída em nota a M. Prévost, identificado como o irmão do ilustre autor dos panoramas precedentes. Ou seja, tratava-se de Jean Prévost (1768-1853), que frequentemente escrevia descrições dos panoramas produzidos pelo irmão Pierre. Bem mais curto e sumário que o texto de Denis e Taunay, sugerindo que talvez fosse o guia original, antes da decisão de adaptar o texto do Le Brésil ao novo propósito ou mesmo que foi escrito para suprir o visitante com um guia mais conciso e que se atinha à descrição sequencial da cena, algo que os dois autores do guia reconheciam que não haviam feito de forma regular. A notícia histórica que introduz o guia começa pela descrição geográfica do Brasil, não pelas Grandes Navegações como no livro de 1822. Também essa parte do texto está ancorada por números que referem os quadros do panorama. Enfatiza-se agora o lugar comum de que o país, pela sua posição geográfica, estaria destinado a um futuro de grandezas. É apenas na página 15 que a descrição geográfica dá lugar à descrição da divisão política e, em seguida, trata do Descobrimento. Como já dito acima, o texto é um resumo do que foi publicado em 1822. As supressões revelam as diferenças de ênfase e propósito, aqui mais focado no grande público francês que o panorama atraía. Talvez por isso as causas do descobrimento fiquem limitadas à narrativa do acaso, sendo suprimido o elogio da expansão portuguesa (Idem, p. 18). O encontro de portugueses e indígenas é descrito, repetindo literalmente o texto de 1822, como a abertura de uma caixa de Pandora (Idem, p. 20). O foco mais direto no público francês talvez explique igualmente a supressão do debate acerca da escravidão e seus efeitos negativos, embora os negros escravizados apareçam amplamente representados nos painéis de Taunay em cenas da vida cotidiana com traços de exotismo distante de qualquer crítica mais aguda. A longa seção sobre as invasões holandesas que aparecia em 1822 é também suprimida, valorizando, naturalmente, o episódio da França Antártica. (Idem, p. 26).

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Detalhe da gravura de Friedrich Salathé do Panorama do Rio de Janeiro de Ronmy. Fonte: bndigital.bn.gov.br

O detalhe destacado acima é assim descrito em texto de curadoria de uma exposição no Instituto Moreira Sales: “No morro do Castelo, no primeiro plano, uma comitiva acompanha D. Pedro I e a Imperatriz Leopoldina, que são aclamados pelas pessoas pegas de surpresa”.51 O texto prossegue destacando a extensão do traçado urbano e a movimentação do porto como signos de centralidade que seriam sublinhados no panorama no momento em que a jovem nação buscava reconhecimento internacional para sua independência. Em estudo mais monográfico em sua tese de doutorado, Elaine Dias analisou as aquarelas da coleção David-Roy que suscitaram a questão da atribuição a Meunié. Em sua descrição do grupo reunido no Morro do Castelo, já estariam presentes o imperador, a imperatriz e José Bonifácio (Dias 2005, p. 328). A identificação dos personagens principais é feita por um texto descritivo que segue na parte inferior das aquarelas: “A numeração inicia-se pela imagem onde se encontra um grupo de figuras centrais à história do Brasil daquele período, seguidos por uma pequena comitiva composta de homens da Corte e de alguns escravos” (Idem, ibidem). O fato é que o sentido desse grupo em 1820-1822, quando da produção das aquarelas, e em 1824, quando o Panorama foi inaugurado, era um tanto distinto em função das disputas políticas entre o imperador e José Bonifácio ainda em 1823. O fato 51 

Disponível no link https://ims.com.br/exposicao/panoramas-a-paisagem-brasileira-

-no-acervo-do-ims/ Último acesso em 05/03/2022.

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é que tanto no roteiro Denis-Hippolyte, quanto no de Jean Prévost, não é feita qualquer menção às figuras representadas. Mesmo na gravura do Panorama produzida por Salathé, que possuía diversas legendas na parte inferior, o grupo é também ignorado. Dias levanta a hipótese, já discutida por Pereira (1994), de que o grupo teria sido acrescentado depois, considerando que as aquarelas tenham sido levadas à Paris entre 1821 e 1822 (Dias 2005, p. 338). Ao analisar parte da recepção crítica do panorama nos jornais franceses, Dias ressalta a problemática conjuntura do fechamento da Assembleia em 1823 e a presença dos irmãos Andradas exilados, mas parece não ter dúvida em atribuir ao Panorama a função de propaganda do regime instaurado com a Independência (Idem, p. 347). Em sua importante reflexão sobre o panorama e outras tecnologias visuais, Margareth Pereira afirma uma descontinuidade em seu significado crítico. Se em suas origens, identificava um enorme potencial libertário, associado às novas possibilidades abertas por uma representação que colocava ao espectador a possibilidade de uma representação plástica das cidades que convidava à ação transformadora, a partir da década de 1840, esse aspecto começaria a ser neutralizado pela comercialização literalmente domesticadora dessas imagens. Também pela sua monumentalização, que mais convidava à reverência do que à transformação: “Tanto os temas que predominariam nas exibições quanto a própria escala, marcadamente grandiloquente, que assumiriam, contribuiriam no sentido de neutralizar o universo ideológico, complexo e, libertário que Ihes dera forma” (Pereira 1994, p. 170). Margareth Pereira identifica a fase crítica dos panoramas entre 1790 e 1830. Nela, a busca pela imagem total na representação de vistas urbanas estaria associada a uma estética moderna que respondia à especialização e à fragmentação que resultaram da expansão ilustrada em uma nova ordem de síntese: “De fato, estas telas se organizam a partir de uma busca de fusão entre arte e ciência, percepção, imaginação, razão, insistindo em unir a objetividade à subjetividade e celebrar a identidade do exterior e do interior” (Pereira 1994, p. 176). A cultura visual instalada pelo panorama teria contribuído de modo fundamental para o entendimento da arte enquanto um agir crítico: “a compreensão da comunicação emotiva moderna em seu atopismo e o aguçamento de racionalização dos dispositivos tanto de estímulo quanto de

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controle dessa ‘vertigem’ dos sentidos [...] é o que está no centro do modo de formalização e enquadramento do visível, implícito nos panoramas” (Idem, p. 174). A substituição dos temas de contemplação idílica, típica do neoclassicismo, pela concentração nos temas urbanos indicava que a atualidade, os eventos do presente, ganhava relevo (idem, p. 184). Acrescentaríamos, como demonstrado na análise dos dioramas, que os temas propriamente históricos, como as ruínas, longe de representarem exceção a esse conjunto, o complementava. A historicidade do tecido urbano como espaço de ação do sujeito tinha como contrapartida uma dupla significação do passado, como origem e como espaço de evasão compensatória. Para essa autora, o Panorama do Rio de Janeiro representaria um bom exemplo do momento de maturidade crítica dessa nova tecnologia visual entre 1810 e 1830, momento em que o predomínio das vistas urbanas “[...] renega as visões arcadianas e idílicas inspiradas por um desejo de harmonia com a natureza” (idem, ibidem). A representação da cidade como totalidade plástica aberta à intervenção convidaria o sujeito à ação. O caso do Rio de Janeiro naturalmente servia bem ao propósito de apresentar um novo otimismo quanto à capacidade humana de projetar e compreender seu futuro enquanto histórico. Na periodização proposta pela autora, o momento de radicalidade dos panoramas com sua ênfase da fusão entre subjetividade e objetividade seria domesticado a partir dos anos de 1840, quando técnicas que prometiam a pura objetividade (a representação em voo de pássaro) abririam espaço para a ciência do urbanismo e sua vontade de controle racional domesticados da vida urbana: Aqui e ali, pedaços de verde, mas são resíduos. A viagem chega até o presente - roupas apenas acabadas de lavar, frutos que pendem das árvores e no alto do morro do Castelo a figura de Pedro I, já Imperador, que se faz acompanhar, a cavalo, por uma comitiva. A cena é clara, a arquitetura mostra contornos bem desenhados, e as casas são apresentadas com seus telhados nivelados, ordenados, cercando os diversos “monumentos”. No fundo, a baía de Guanabara em sua versão radiosa. Tudo parece em equilíbrio e a única promessa de ação vem dos homens que estão na comitiva. A cena registra um acontecimento, dota o que seria corriqueiro - um pas-

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seio a cavalo do Imperador (uma visita específica?) - de uma espessura e convida à reflexão. Mas é em direção ao futuro “a criar” - à jovem nação a pouco independente - que o pintor busca nos conduzir. (Idem, p. 189).

Em direção complementar, embora enfatizando a influência do neoclassicismo do pai nesta primeira fase da pintura de paisagens de Félix Taunay, Dias resume a importância do Panorama do Rio de Janeiro como um marco divisor que encerra uma fase dos panoramas marcada pela forte influência de Prévost. O Panorama do Rio de Janeiro condensaria aquela experiência visual passada e apontaria a um aspecto mais prospectivo ao se colocar como modelo de representação da cidade como capital de uma nação independente: “Depois da exposição de 1824, novos panoramas surgirão e levarão adiante o conhecimento da cidade americana, capital do Império recém-criado, tornando-se uma fonte de documentação visual precisa e pedagógica” (Idem, p. 352). Acrescentaríamos que o panorama certamente dialoga com uma história mais longa de representação da modernização do espaço urbano em suas relações com o futuro político, de modo como está apresentado na descrição narrativa de Luis Gonçalves dos Santos que analisamos no capítulo anterior. ** A emergência da observação de segunda ordem promovia uma curiosidade técnica progressiva sobre os modos de ver a perspectiva. Especialmente no diorama, o observador é enquadrado em um dispositivo técnico e arquitetônico pensado em congelar o seu ponto de vista – respondendo positivamente aos efeitos da crise da representação – e produzir efeitos de presença. A historiografia, lidando com as dificuldades epistemológicas crescentes em representar a história do presente, se deixou fascinar com a promessa de objetividade, realismo e exaustividade desses novos mecanismos. Muitos autores procurariam então aliar a necessidade de orientar com o desejo de manter o passado disponível enquanto um clima a ser reconstituído e experimentado. Talvez o grande desafio assumido pelo diorama fosse representar a passagem do tempo em uma cena. O “realismo” que se buscava não era apenas na definição da imagem, mas na sua representação no tempo, visto no

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cronótopo historicista como o agente absoluto de mudança. Por mais bem sucedidas que fossem, as filosofias da história não eram capazes de garantir a redenção absoluta, a reintegração do tempo histórico perdido. Abria-se então a necessidade especificamente moderna de produzir tecnologias capazes de combater a rememoração melancólica da perda do passado, mesmo do mais recente, da história que se vivia. Parece ser nessa falha, como movimento compensatório, que se podem entender as funções da descoberta do clima histórico em uma historiografia também marcada pelo desejo de entreter, além de orientar.

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CAPÍT ULO I V A HISTÓRIA DOMEST ICADA A) JOSÉ DA SILVA LISBOA: HISTORIADOR DO IMPÉRIO DO BRASIL

UM HISTORIADOR MARGINAL? Mais conhecido por seu pioneirismo no campo da economia política, o historiador José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, teve seu papel na formação da historiografia brasileira relegado a um plano secundário, quando não completamente esquecido. No prefácio de sua póstuma História da Independência do Brasil, Francisco Adolfo Varnhagen avalia a historiografia sobre a Independência até então disponível – um gesto, tão tipicamente moderno, de produzir o que hoje chamaríamos de balanço historiográfico. Reafirmando o compromisso da historiografia com a verdade, Varnhagen diz ter certeza de que essa sua história da Independência não seria tão bem recebida como os “memorandos” engajados na defesa da causa do Brasil que caracterizariam a maior parte das ditas “histórias da Independência”, dentre elas os livros de La Beaumelle e Beauchamp.1 Se esses primeiros textos estavam comprometidos com as paixões da época, os volumes da História dos Principais Sucessos do 1 

Cf. Francisco Adolfo Varnhagen. História da Independência do Brasil, p. 12. Para uma

tentativa de revisão da historiografia de Beauchamp, ver Bruno Franco Medeiros. “Das causas da emancipação. Alphonse de Beauchamp e a Independência do Brasil” In Sérgio da Mata; Helena Mollo & Flávia Varella (Org.) Anais do 2o. Seminário Nacional de História da Historiografia. Mariana: UFOP, 2008, passim.

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Império do Brasil, de Lisboa, apesar de apresentarem a transcrição de valiosos documentos: [...] pecam pela sua insuficiência e falta quase total de redação e de critério; e, mais que uma História, eram importantes apontamentos de decretos e discursos conhecidos e até impressos, próprios para serem depois, como foram, aproveitados e postos em estilo por mais corrente pena, e com muitas adições inteiramente inéditas o serão de novo por nós nesta História, em que nos comprazemos de citar muitas vezes o consciencioso trabalho do honrado e fecundo setuagenário baiano (Varnhagen 1957, p. 12).

Por mais delicada que seja a menção do livro de Lisboa, o texto é firme em situá-lo em um plano inferior ao trabalho da verdadeira história. Ao velho baiano, faltariam redação e critério para reivindicar o título de historiador da Independência. Varnhagen foi sempre muito cioso em zelar pela prioridade de sua própria obra, trabalhando intensamente para definir um modelo de crítica e o decoro historiográfico que marcariam profundamente a historiografia brasileira (Temístocles 2005, p. 207-240). Quase um século depois, José Honório Rodrigues, continuando em grande medida os mitos de uma formação progressiva da historiografia no Brasil, colabora para a desqualificação da obra de Lisboa ao discutir as primeiras periodizações da história do Brasil, ao mesmo tempo em que destacava o papel dos fundadores do IHGB, novamente relegando Lisboa a uma espécie de pré-história: [a História dos Principais Sucessos Políticos] limita-se a distribuir a matéria coligida. Escreveu ele por incumbência de D. Pedro I, ‘a fim de perpetuar a memória dos sucessos do Brasil desde o dia de sua Independência’. [...] O plano, como logo se verifica, tinha excessivo caráter político-administrativo e, ademais, o autor se preocupava especialmente em que fossem dignamente transmitidos à posteridade pela história os feitos e fatos de caráter heroico (Rodrigues, 1978, p.130) .

José Honório sugere traços na obra de Lisboa que a desqualificariam enquanto uma obra de história séria: sua origem em uma encomenda e a

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preocupação memorialística. Esses juízos surpreendem se confrontados com a compreensão que o próprio Lisboa tinha de seu trabalho. Na introdução de seu livro, que apareceu um ano antes da publicação do primeiro volume, em 1826, não deixou dúvidas sobre estar escrevendo história, e, mais precisamente, uma história geral do Brasil. Em um gesto tão moderno quanto o de Varnhagen, levantou, coligiu e avaliou todos os relatos de história do Brasil de que tinha notícia, produzindo o que pode ser considerado o primeiro balanço e esboço de uma história da historiografia no Brasil. Das projetadas dez partes da obra, no entanto, apenas duas foram desenvolvidas: a primeira, dedicada ao descobrimento do Brasil, e a décima, que avançaria da Independência em diante. Não se pode apenas dizer que juízos como os de Varnhagen ou José Honório Rodrigues sejam injustos ou incorretos. Do ponto de vista de uma história da formação mítica da historiografia moderna no Brasil eles se justificam, pois, de fato, o modelo historiográfico que se hegemonizou em torno do IHGB não poderia reconhecer na complexa e ambivalente historiografia de Lisboa suas origens. O problema desses juízos é a tendência a naturalizar um modelo historiográfico como o único possível, fruto de uma evolução necessária da ciência histórica, negando mesmo o título de historiografia a tudo aquilo que escape ao cânone. O trabalho de uma história da historiografia capaz de colaborar efetivamente para nosso conhecimento sobre o passado deve levar a sério a tarefa de constante reescrita da história, bem como o inevitável valor documental que se agrega às obras históricas do passado. Portanto, devemos reler nossa historiografia não como quem busca a justificação para nossa própria ciência, mas procurando reconstruir os contextos específicos nos quais ela fazia sentido e atuava como força histórica. A partir desse deslocamento de foco, a história da historiografia tem deixado de ser uma atividade complementar e justificativa para se tornar um importante instrumento no conhecimento das transformações históricas. Considerando esse silenciamento crítico de sua obra como historiador, não é de se admirar que não se tenha dado o devido valor às considerações crítico/historiográficas presentes nas obras de Lisboa. Nas próximas seções, tentaremos demonstrar que para expor sua compreensão da história pátria, Lisboa empreende na Introdução de sua História dos Principais Sucessos Polí-

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ticos do Império do Brasil (a partir de agora HPSP) uma interpretação geral da historiografia sobre o Brasil.2

A HISTÓRIA DOS PRINCIPAIS SUCESSOS POLÍTICOS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1825-1830 Em janeiro de 1825, no contexto turbulento do fechamento da Assembleia Constituinte no ano anterior e da luta pelo reconhecimento da Independência, D. Pedro I incumbe José da Silva Lisboa, o futuro Visconde de Cairu, de escrever a história dos principais acontecimentos da independência brasileira. A ordem determinava que se remetessem documentos autênticos dos governos das províncias que pudessem servir de “seguros guias” ao relato. Dispensado de suas funções administrativas, Lisboa contaria ainda com o auxílio do frei Francisco de Sampaio e do brigadeiro Domingos Alves Branco Moniz Barreto, ajuda que parece ter ficado apenas nas intenções (Kirschner 2009, p. 267). Na introdução do que intitularia História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil, Lisboa manifestava seu desejo de escrever uma história geral da nova nação independente. A introdução explicava as origens e os objetivos do projeto, comunicava e solicitava ao público letrado subsídios para a empresa, expondo ainda as linhas gerais que seguiria para o cumprimento da tarefa. Diferentemente da ordem do Imperador, Lisboa planejou escrever uma história geral completa do Brasil, com um plano para dez partes. No projeto, assumia a visão de uma lenta evolução histórica em direção à Independência, já visível na obra de Robert Southey, escolhida como “farol” da sua (Diniz, 2010, pp. 79-80). A primeira parte da obra, publicada em 1826, tratou das 2 

Utilizarei o texto da primeira edição. Em 1963, Helio Vianna publicou um pri-

meiro esboço da Introdução, documento importante para entender a evolução do texto. Cf. Hélio Vianna. A primeira versão da Introdução à História dos Principais Sucessos Políticos do Império do Brasil, do Visconde de Cairu, passim. Uma transcrição, comentada por Bruno Diniz, foi publicada no segundo número da revista História da Historiografia, março de 2009.

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Grandes Navegações e do Descobrimento do Brasil, conectando a história nacional com as grandes narrativas ilustradas. Um dos aspectos a ser destacado nesse e nos outros três volumes publicados é o esforço contínuo de debate e avaliação das narrativas até então disponíveis sobre a história do Brasil. Lisboa escreve sua versão ao mesmo tempo em que combate interpretações concorrentes, evidenciando a dificuldade crescente na produção de um relato consensual e estável da história, em particular da história contemporânea. A introdução da História dos Principais Sucessos não se enquadraria facilmente nos moldes que estamos acostumados hoje, pois quando veio à luz, o livro apenas começava a ser redigido. O primeiro volume, anexado da introdução que circulou na forma de folheto em 1825, apareceu no ano seguinte, 1826. O texto, no entanto, tem funções muito claras: explicar a origem da iniciativa: uma ordem do imperador Pedro I, datada de janeiro do mesmo ano, que designava o autor para a tarefa de redigir a história dos Sucessos do Brasil, dignos de memória, particularmente desde o dia 26 de fevereiro de 1821” e expor as linhas gerais que o autor seguiria para o cumprimento de sua empreitada. Nesta seção vamos nos concentrar particularmente nesse último ponto, procurando demonstrar que para expor sua compreensão geral da história pátria, Lisboa empreende uma interpretação da historiografia sobre o Brasil até então disponível. Para começarmos do princípio, podemos afirmar que, na escolha das epígrafes, Lisboa já deixava claro as fontes de sua interpretação. Os paratextos também apontam as múltiplas tradições historiográficas com as quais o autor tentava dialogar, nem sempre sem resvalar em contradições. Assim, na folha de rosto fica patente que a obra é dedicada ao “Sr. D. Pedro I”, e seu autor é assim qualificado: “Visconde de Cairu, do conselho de sua majestade imperial, membro da Câmara dos Senadores, oficial da ordem imperial do cruzeiro, comendador da ordem de cristo, membro da americana sociedade filosófica da Filadélfia, etc, etc”. Logo a seguir a epígrafe com uma longa citação, em inglês e traduzida, do prefácio da História do Brasil de Southey, essa epígrafe aparecerá em todos os quatro volumes publicados: A história do Brasil é menos bela que a da mãe pátria, e menos esplêndida que a dos portugueses na Ásia; mas não é menos importante que a

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de qualquer delas... Descoberto o Brasil por acaso, e por longo tempo deixado ao acaso, foi pela indústria dos indivíduos, e pela operação das comuns leis da Natureza e da Sociedade que se levantou e floresceu esse império, tão extenso como é, e tão poderoso como algum dia virá a ser. (Lisboa 1826, p. I)

O trecho destaca a importância da história do Brasil, relata os três séculos de descaso da colonização portuguesa, e as forças civilizacionais em curso: a empresa individual, as leis da natureza e da sociedade.3 É nessa tradição – de uma história da civilização, mais do que das guerras e conflitos –, que Lisboa pretende inserir a sua história; não na grande tradição clássica da história política, mas no novo regime de uma história da civilização. Claro, entre o projeto mais ou menos explicitado nessa introdução e a obra, há muitas diferenças e ambiguidades Na página seguinte à epígrafe, surge a dedicatória ao “senhor” Pedro I, que não será reproduzida nos demais volumes. De todo modo, às expectativas filosóficas abertas pela citação a Southey, junta-se uma evidente dimensão dinástico-providencial, embora rematada pela evocação de outro historiador filosófico, dessa vez Robertson: Sendo o dia doze de outubro sempre memorável, pelo descobrimento do Novo Mundo, e pelo nascimento de vossa majestade, que nesse mesmo dia foi aclamado imperador constitucional do Brasil, e sendo não menos notável, que a era de mil e quinhentos, em que a armada portuguesa avistou a Terra de Santa Cruz, é a em que nasceu o imperador Carlos V, que, sem o achado desse tesouro, talvez se aclamaria senhor de todo o território americano; estas coincidências por si sós exigiam, que a exposição dos sucessos que prepararam e estabeleceram o novo império na região do Cruzeiro do Sul, se fizesse por pena igual à do celebrado escritor da Historia d’ America, e da vida desse monarca extraordinário [...] (Lisboa 1826, p. II) 3  Trata-se de uma aplicação do tópos, muito repetido ao longo do processo de emancipação, dos trezentos anos de opressão. Sobre a questão, ver (Santos 2008, p.115; Araujo, 2008, pp. 57-66).

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Ao final da dedicatória, após mobilizar o tópos da captatio benevolentiae, fechará com uma longa citação de João de Barros, o grande cronista da expansão portuguesa na Ásia, e que mais de uma vez será evocado como exemplo por Lisboa quando reflete sobre os limites de sua tarefa como historiador, entre a verdade e o decoro.

UMA HISTÓRIA DA HISTÓRIA DO BRASIL Depois de lembrar as dificuldades dos primeiros anos da Independência e de como o tratado de reconhecimento assinado com Portugal terminava harmonicamente essa fase crítica de nossa história, Lisboa lembra ao leitor da importância e do enorme desafio que era a escrita de uma história geral em qualquer nação, mais especialmente no Brasil. A seleção da epígrafe de Tácito prefigurava para o leitor da época o tipo de história na qual Lisboa pretendia narrar os eventos da Independência. Mais ainda, permitia a ela responder positivamente à pergunta sobre as condições para essa escrita. Ao escolher o historiador considerado à época o mais filosófico e crítico da Antiguidade, Lisboa buscava reforçar o novo tipo de história que estava projetando. Essa história só era possível em momentos de excepcional liberdade e estabilidade política, por isso era natural que ela não pudesse ter sido escrita ainda. É esse quadro geral, que podemos caracterizar como metanarrativo, que lhe serve de orientação para avaliar o que havia até então disponível, traçando uma espécie de periodização da história e da historiografia do e sobre o Brasil – mesmo que, algumas vezes, seus contornos fiquem obscurecidos pelas idas e vindas da introdução.

A) PRIMEIRO PERÍODO: COLONIAL-FEUDAL – O SISTEMA COLONIAL E OS ARCANA IMPERII Após notar que mesmo Portugal, mais velho que sua antiga colônia, ainda carecia de uma história geral, Lisboa passa a levantar o que havia sido publicado sobre o Brasil. Começa observando que João de Barros, considerado o pai da história lusa, quase nada teria escrito sobre a América portuguesa. Esse comentário abre um primeiro recorte do balanço que podemos definir

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como o legado colonial. Na trilha de Barros, Couto, Damião de Goes e Ozório também quase nada legaram ao historiador nacional. Esse fenômeno é atribuído não só ao desinteresse inicial dos portugueses pela sua possessão americana, mas ao sistema de “Arcanos”, de segredos de Estado — outro tema tacitista, como vimos anteriormente — que a Coroa portuguesa impunha sobre suas descobertas ultramarinas. Lisboa ilustra abundantemente esse aspecto, que condiz com o caráter anticomercial da política portuguesa daqueles séculos. Assim, poucos monumentos poderiam ser consultados sobre esses primeiros anos da colonização, com as exceções citadas de Francisco de Brito Freire, Bartolomeu Guerreiro, Simão Estaço e Simão de Vasconcelos. Já no começo do século XVIII, iniciava uma fase com mais informações, cujo livro, que hoje sabemos ser de Antonil, é citado como marco inaugural. Novo retrocesso aconteceria em 1713, com a assinatura do Tratado de Ultrecht entre Espanha e Portugal estabelecia-se o que Lisboa chama de “sistema colonial”, impedindo os estrangeiros de qualquer contato com o Brasil. Na tentativa de remediar a carência das letras portuguesas nesse gênero, D. João V estabeleceria a Academia Real de História, que, na opinião de Lisboa, mais se dedicou ao panegírico do que à escrita dos sucessos pátrios, apesar da presença do “brasileiro” Alexandre de Gusmão. Em 1735, com o francês De La Clede, Portugal teria seu primeiro corpo de história, mas que muito de leve referia-se ao Brasil. No reinado de D. Maria I, lembra da História de Portugal, escrita por uma sociedade de literatos em inglês, traduzida pelo brasileiro Morais Silva, que teria acrescentado um suplemento sobre os Tratados dos Limites do Brasil. Encerra essa longa fase com o livro de Raynal, que considera cheio de imprecisões, para concluir que “a Terra de Santa Cruz permaneceu reclusa por mais de três séculos aos Olhos da Ciência, quase continuando a ser Terra incógnita”. Particularmente sobre o Brasil, Lisboa ainda recorda dos escritos de Vieira e Berredo, mas destaca o trabalho de frei Gaspar da Madre de Deus, de 1794. O período colonial de nossa historiografia seria então determinado por dois fenômenos limitadores interligados, a política de segredos de Estado (arcana imperii) e o sistema colonial. Esses dois aspectos eram apenas uma parte da caracterização de uma sociedade pouco polida e comercial, dominada ainda pela força dos grandes e poderosos. Será apenas com a destruição

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desses dois traços que se poderia pensar na escrita de uma história verdadeira; mas para isso foi necessária a fundação de um império verdadeiramente polido e comercial. Talvez a grande exceção teria sido a obra de Rocha Pita, que Lisboa considera a primeira história geral do Brasil, defendendo-a contra as críticas de Southey, afirmando inclusive que deveria ser julgada a partir da compreensão de seu contexto histórico específico: “Sem dúvida foi algum tanto romanesco, mas deve-se dar vênia ao patriotismo, e ao século em que escreveu” (Lisboa 1825, p. 39-40).

B) SEGUNDO PERÍODO: IMPERIAL-COMERCIAL – DO FIM DO SISTEMA COLONIAL AO IMPÉRIO DO BRASIL Uma nova fase para a república das letras e para a escrita da história seria aberta com a chegada da Corte em 1808. Lisboa faz questão de destacar a impressão dos livros na Tipografia Nacional, a começar por eruditas memórias sobre várias províncias do Brasil, destaca os trabalhos de Antônio Rodrigues Velloso e José Feliciano Fernandes Pinheiro. Detém-se um pouco mais na Corografia Brasílica de Casal, destacando seus méritos, mas diferenciando o método corográfico, concentrado nas províncias, daquele que ele mesmo pretenderia seguir em sua história do Brasil. Nessa mesma linha é mencionado o trabalho de Pizarro, do qual se diferencia pelo objeto, já que este autor estaria preocupado mais com a história eclesiástica brasileira. Lisboa vai preparando o terreno de modo a deixar claro que os autores citados não tinham a intenção de escrever, como ele, uma história geral do Brasil. Para efeito de delimitação de seu objeto, diz que não entrará em especulações sobre épocas remotas das quais não haveria monumentos escritos, referindo-se certamente aos índios. Para legitimar sua decisão, cita uma longa passagem de Hume, criticando esse interesse fantasioso pelas nações menos cultas: Tomei a lição de Hume, o qual principia a História de Inglaterra assim refletindo: “A curiosidade de todas as nações civilizadas em inquirirem as aventuras e proezas de seus antepassados, excita o pesar de ser a História dos séculos remotos, já tão envolvida em obscuridade, incerteza e

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contradição; Homens de engenho, quando tem descanso, se empenham em levar as suas indagações além do período, em que se formaram, ou preservaram, monumentos literários; sem advertirem, que a história dos sucessos passados é imediatamente perdida, ou desfigurada, quando se confia à memória, ou à tradição vocal de nações menos cultas etc”. (Lisboa 1825, p. 10).

Em seguida, abre uma seção para os relatos de estrangeiros sobre o Brasil. A presença de estrangeiros escrevendo sobre o Brasil é um tema transversal na cronologia proposta por Lisboa. Eles aparecem em sucessivas levas, variando o juízo sobre a qualidade e a relevância dessa produção. Começa por Thomaz Lindley em 1805, com uma obra que considera sem muito interesse, mas em seguida chega a um ponto nodal, a História do Brasil de Southey, cujo primeiro volume data de 1810. Sobre o autor inglês afirma: “O Posto de Historiador do Brasil se acha pré-ocupado [sic] pelo escritor britânico Robert Southey [...]”. Curiosamente, em outra passagem, Lisboa vai defender Rocha Pita como o autor de nossa primeira história geral. Não seria Pita um “verdadeiro historiador”, ou sua história não seria ainda uma história em sentido moderno? Por que ele não poderia ser abertamente considerado o historiador do Brasil? Lisboa não se colocará essas perguntas. Lisboa ressalva, entretanto, que o empreendimento de Southey iria apenas até 1808. Não deixa dúvidas que o autor britânico é o farol que seguirá em sua empresa. Após essa afirmação, pede licença ao leitor para citar uma longa passagem do texto de Southey, na qual se afirma que os colonizadores do Brasil deveriam ser mais admirados entre todos, pois estavam limitados pela mais daninha política colonial, a dos portugueses, marcados em seu caráter nacional pelo fanatismo, ciúme e orgulho. Na passagem, Southey defende os brasileiros da acusação de não serem afeitos às letras, afirmando que embora a política colonial não permitisse a impressão no Brasil, mesmo assim muita coisa havia permanecido em manuscrito, material que ele mesmo teria usado abundantemente em sua história. Lisboa destaca com itálico o seguinte trecho:

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Quando a História do Brasil for continuada pelos que depois de mim vieram, note-se o mau fim do Padre João Ribeiro (aliás, bom naturalista) que se matou pelas próprias mãos, vendo abatida a Revolução de Pernambuco de 1817, de que foi o primeiro motor (Lisboa 1825, p. 12-14).

Não perde a oportunidade de criticar igualmente os pernambucanos em 1824, reforçando com mais trechos a defesa incisiva que Southey faz do caminho das letras e da boa ordem como único capaz de livrar o Brasil dos fantasmas da revolução e da anarquia. Segundo Lisboa, a época dos “Poderosos” estava no Brasil sendo substituída por uma idade de comércio e civilização, embora nem todos se apercebessem disso. Após esse longo excurso, volta a citar os viajantes que estiveram no Brasil depois de 1808: Mawe, Koster, o príncipe Wied-Neuwied, Maria Graham — sempre avaliando a contribuição e o testemunho de cada um deles. Faz menção a Manuel Ferreira de Araujo, como editor do jornal O Patriota, como o primeiro a ter incentivado o cultivo das letras depois da vinda da Corte, destacando as memórias históricas sobre as províncias do Brasil ali publicadas. Nesse ponto, retorna às experiências coloniais, lembrando da publicação, em 1754, do Júbilos da América, da Academia de Seletos, patrocinada por Gomes Freire. O episódio lhe serve para demonstrar o enorme “estorvo da falta de Tipografias no país” em razão do sistema colonial, cita ainda os exemplos do Marquês do Lavradio, que não conseguiu manter uma academia que criara, e Luiz de Vasconcelos, que tendo patrocinado José Mariano Veloso a escrever uma Flora, o texto ficou no manuscrito até aquele momento, já que Pedro I havia se decidido por publicá-la. Cita o artigo sobre a história do Brasil até 1810, na Nova Enciclopédia de Edimburgo – “essa Atenas da Escócia” — que já antevia grandes progressos para o Brasil. Por fim, não deixa de mencionar a História do Brasil de Beauchamp, de 1815, embora elogie sua concisão, afirma preferir a de Southey.

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OS HISTORIADORES DA INDEPENDÊNCIA: HISTÓRIA EM COMBATE Outra seção será dedicada aos autores preocupados em interpretar a Independência. Prosseguindo na matriz iniciada em Southey, Lisboa defenderá a atuação de Pedro I como decisiva para a Independência sem revolução, garantindo assim a continuidade do processo civilizatório aberto em 1808. Os acontecimentos mais recentes, principalmente o fechamento da Assembleia Constituinte e a outorga da Carta, serão testes fundamentais para a consistência da imagem de Pedro I como um monarca polido e comercial. Beauchamp é recuperado a propósito de sua história da Independência, escrita em 1824. O autor baiano reconhece o importante papel do francês como defensor da causa do Brasil junto às potências da Santa Aliança, e mesmo admitindo que alguma coisa ainda devesse a Southey, diz que os brasileiros estão especialmente obrigados ao historiador francês, dentre outros motivos, por ter “feito justiça” ao libertador do Brasil, D. Pedro I, ressaltando que sem a sua intervenção o Brasil se teria cindido em 19 repúblicas e a América teria mais 19 bolívares. “Estas linhas equivalem a volumes”, conclui Lisboa. Embora também elogie a história de Beaumelle, de 1823, discorda do francês quando explica a Independência do Brasil pelas “[...] causas ordinárias da dissolução dos corpos políticos, como dos corpos físicos, e a tendência da desmembração dos vastos Estados, pela distância da capital do governo, e falta de estradas para as comunicações interiores [...]”. Esse modelo de explicação, que criava a ideia de um “Inflexível destino e lei do fado irrevogável”, desmereceria a glória do Imperador e seu papel decisivo na Independência. Embora o próprio Lisboa tenha optado pelos modelos providenciais em outras partes de sua obra, negando a ação do acaso, nesse episódio ele se mostra um defensor da liberdade de ação como um dos motores da história, produzindo uma visão mais indeterminada do processo. Um dos objetivos da seção é mostrar suas fontes; não há uma preocupação muito aguda em diferenciar o que chamamos hoje de fontes primárias e secundárias. Diz que, além desses livros, usou documentos da Secretaria de Estado dos Negócios do Império e os Diários das Cortes de Lisboa e da Assembleia do Rio de Janeiro, tal como Tácito havia utilizado os comentários

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do Senado para montar os anais do Império. A avaliação dos livros citados serve então como guia para o leitor apreciar o que em cada um o autor pode encontrar de útil, denunciando aquilo que considerava inadequado, seja pelos erros factuais, seja pela divergência de interpretação. Embora disposto a subscrever a crítica de diversos escritores ao modelo de colonização dos portugueses, Lisboa não escondia suas antigas posições políticas em favor da unidade do mundo lusitano, tornado impossível, segundo ele, pela política das Cortes de Lisboa. Por isso, defende que os brasileiros tenham sempre com os portugueses a reverência que se deve aos ancestrais. Neste ponto, ele cita uma longa passagem da História da América em que Robertson afirma a primazia de Portugal enquanto a nação que abriu as portas da Europa para o mundo, levando à descoberta da América. Lisboa continua a reflexão do escocês afirmando que coube ao Brasil abrir “nova carreira de justo império”, quando na Europa os acontecimentos do final do século XVIII pareciam conturbar o equilíbrio do velho mundo. Assim, na mesma América conturbada pelas repúblicas que surgiram da destruição dos impérios espanhóis, nascia o Império do Brasil como antídoto e equilíbrio capaz de manter em aberto o caminho do comércio e da civilização, que, segundo Lisboa, já Felipe II tentava abolir, fechando “[...] os Portos que a Providência abrira para comunicação da Espécie Humana”. Essa pretensão a uma monarquia universal espanhola teria sido a causa da decadência de seu império, desde a derrota de sua invencível armada. Afirma ainda que: presentemente a Espanha, por culpa dos seus revolucionários liberais, e de suas democráticas cortes, é a única nação, que teima no velho sistema de despotismo e monopólio, e, de fato, também é a única que não participa dos benefícios do comércio do continente americano (Lisboa 1825, p. 27).

O esforço de Lisboa em conhecer e julgar o que fora escrito ou estava sendo escrito sobre a história do Brasil vai fazer com que, ao longo da obra, cujo último volume é publicado em 1830, ele continue a inserir resenhas críticas. Ainda na introdução de 1825, que parece ter se avolumado na medida em que novos trabalhos chegavam ao seu conhecimento, ele afirma, sobre um novo livro do abade De Pradt: “Não se podendo levantar qualquer

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Edifício sem limpar-se a área, não posso abrir mão desta preparação sem fazer análise, e opor barreira, ao Compêndio histórico do triênio, que Mr. De Pradt cifrou nessa sua última obra, de que tenho notícia” (Lisboa 1825, p. 28). Portanto, sua relação com a história escrita não a confundia com os fatos ou o passado em si mesmo, mas já pressupunha a tarefa de uma constante reavaliação das interpretações disponíveis e, como consequência lógica, sua contínua reescrita. Ainda nesse mesmo ano, em 22 de outubro, publicaria, em volume avulso datado do Rio de Janeiro , uma “Contestação da história e censura de Mr. De Pradt sobre sucessos do Brasil” (Idem ibidem). A divergência com De Pradt repousa na crítica deste ao fechamento, por D. Pedro I, da Assembleia Constituinte. Ora, perguntava-se Lisboa, quando da vinda da Corte em 1808, o mesmo De Pradt havia celebrado os benefícios da presença do rei, mesmo sendo este um monarca absoluto, porém agora, criticava um imperador constitucional apenas por este não ter cedido aos caprichos de uma Assembleia. A falha, prossegue Lisboa, estava no fato de De Pradt escrever sobre uma história que não testemunhava, ignorando as circunstâncias dos acontecimentos. Como em outros momentos do texto, defenderá o primado de uma história contemporânea e testemunhal — desde que essa fosse escrita com lisura e debaixo de condições políticas favoráveis. Ainda na parte I, logo após a introdução, insere uma Análise da nova obra na língua francesa sobre o Brasil, dedicada ao livro Le Brésil de Taunay e Denis, do qual tratamos no capítulo anterior. Já de início considera o trabalho um epítome, uma compilação da Corografia de Casal. Destaca a presença de ilustrações, inclusive a que considerava a primeira dedicada ao «memorial religioso do sacrifício da missa» celebrado em Porto Seguro «quando a Armada do venturoso almirante português Cabral avistou a Costa do Brasil” (Idem, p. 34). Admite que a obra presta um serviço aos estrangeiros cuja curiosidade pelo país se ampliou após os acontecimentos da Independência, mas gasta boa parte da resenha corrigindo o que ele considerava erros de juízo desfavoráveis ao Brasil, que atribui ao preconceito ou à ignorância e inexperiência dos autores. Em uma das passagens mais ácidas, escreve: “[...] quando artistas se levantam em estadistas, exorbitam da sua esfera” (Idem, p. 38). A questão da escravidão é mencionada rapidamente, e Lisboa diz concordar com os fran-

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ceses acerca da necessidade de fim do tráfico. De resto, o problema é tratado em termos da necessária benevolência que se deveria esperar dos senhores: Praza aos céus que os sentimentos da religião suavizem os costumes, e extirpem, ou, pelo menos, mitiguem o sistema de cativeiro, de sorte que se realize a prática que atesta o moralista Seneca, que no seu tempo em Roma os Senhores cruéis eram apontados com o dedo. (Idem, ibidem, p. 38).

Lisboa discorda de Taunay e Denis por não tratarem de Montevidéu como parte do império, acusando-os de tomar partido da causa Argentina, de serem ainda exagerados ao descreverem as invasões francesas no Rio de Janeiro. Chega mesmo a afirmar que os autores deveriam se desculpar pelo tom ufanista com o qual haviam narrado alguns episódios envolvendo os franceses. O trabalho crítico, muito rapidamente, confunde-se com a luta política contemporânea. Nos quatro volumes publicados da obra, Lisboa acrescentará anexos, novos prefácios e notas explicativas para se pronunciar sobre os novos relatos publicados. A partir do volume 3, que já narra os acontecimentos de 1822 em diante, a obra vai assumindo o caráter de uma quase crônica, um repositório de documentos autênticos. No prefácio do primeiro volume da parte X, Lisboa reclama da dificuldade em se estabelecer as causas reais para os acontecimentos da história contemporânea; seja pela divergência de opinião, seja pelos “segredos de Estado”, que afirma não desejar revelar: A história contemporânea jamais satisfez aos leitores e escritores; porque respeitos humanos, interesses dissidentes, paixões exaltadas, contemplações políticas, implicâncias com indivíduos, impossibilitam completa e inofensiva narração dos fatos, e, ainda mais, o critério exato de suas qualificações (Lisboa 1827 [1829], p. III).

O otimismo no lançamento da obra em 1825, sob o efeito do reconhecimento da Independência, é substituído pela apreensão com a crescente deterioração da situação política. O último volume, de 1830, promete uma continuação que não chegou a ser publicada, certamente interrompida pelos eventos de 1831 que tornavam menos verossímil ou popular o seu retrato de

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Pedro I como o harmonizador da equação tacitista entre liberdade e autoridade. Mas não se pode negar que Lisboa adentra no período que inicia em 1821 um tanto a contragosto, citando as ordens explícitas do imperador para que fossem imediatamente abordados os últimos acontecimentos, desmontando o expediente que havia planejado de uma história geral em dez partes. Na verdade, o que vemos acontecer é o conflito entre dois modelos de historiografia: a crônica, pedida e aguardada pelo Imperador; e a história geral, que Lisboa, talvez de modo irreal, planejou realizar. O argumento presente no primeiro volume de que o governo petrino teria criado as condições para a escrita de uma história verdadeira enfrentava maior resistência quando se colocava em foco os últimos acontecimentos: Tem-se dito que a opinião é a rainha do mundo: porém neste período tem havido, e ainda continuará haver, doutrina armada para sustentar tão contraditórias opiniões, reinantes na Europa e América, sobre o melhor sistema de governo (o que tem produzido calamidades nunca vistas em estados cultos, e dado movimento retrogrado à civilização do Brasil) que não só é mui difícil, mas quase impossível conciliar os partidos antagonistas, que têm complicado questões de religião, moral, e política na série dos sucessos, que remataram no feliz êxito da conciliação dos interesses dos estados pai e filho, pela sua absoluta independência, e saudável adoção da monarquia constitucional, única tábua de salvação para Portugal e Brasil ressurgirem do abismo em que se arriscaram a precipitar-se pela anarquia dos revolucionários (Lisboa 1827 [1829], p. IV-V).

A partir do segundo volume publicado (parte X, seção I), não apenas se antecipava a última parte, como se alterava sua substância: “Cumpri, quanto pude, este penoso dever, dirigindo-me sempre pela dita ordem, a qual unicamente teve por objeto a exposição dos sucessos dignos de memória” (LISBOA, 1827 [1829], p. III-IV). Ao final deste volume, em uma nota intitulada “satisfação ao público”, datada de 19 de outubro de 1829, Lisboa presta contas aos leitores acerca das mudanças no plano inicial. Embora o volume tenha gravado em sua folha de rosto a data de 1827, sua impressão havia sido interrompida e apenas finalizada em 1829.

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Retoma com mais vigor o tema das dificuldades da história contemporânea, já refletindo as polêmicas que a iniciativa começava a despertar. Sua máquina de citações, muitas das quais serviam para afirmar razões opostas, continuava a disparar; novamente Tácito, que teria escrito sobre história contemporânea apenas na velhice, era o espelho em que se mirava o septuagenário visconde: A crônica de um reinado é obra difícil ainda a literatos conspícuos, e de vigor de idade; dificílima se deve considerar a História Geral de um grande país, que envolve a crônica de muitos reinados, o espaço de mais de três séculos, e o estabelecimento de nova ordem política e de novo império, e muito mais sendo empreendida por quem já era quase septuagenário, quando se encarregou da árdua escritura por ordem do governo. (Lisboa 1827, Satisfação ao público [1829], p. 1)

Todo esse aparato serve apenas para reafirmar seu comprometimento com o projeto: “Reconhecendo a minha insuficiência, e quase impossibilidade de executar a tarefa empreendida, meti mãos à obra da História Geral do Brasil até o reconhecimento da Independência do Império pelas potências do antigo e novo mundo [...]” (Lisboa 1827, Satisfação ao Público [1829], p. 1-2). Pela primeira vez, apresenta o plano geral da obra, que, como já mencionamos, planejava dez partes, assim divididas: “I. Achada do Brasil. II. Divisão do Brasil. III. Conquista do Brasil. IV. Restauração do Brasil. V. Invasões do Brasil. VI. Minas do Brasil. VII. Vice-Reinado do Brasil. VII. Corte do Brasil. IX. Estados do Brasil. X. Constituição do Brasil.” (Lisboa 1827, Satisfação ao público [1829], p. 1-2)

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O autor dá a entender que os outros dois volumes que complementariam a parte X já estavam igualmente em impressão. De fato, o volume que corresponde à seção 2 será publicado também com a data de 1829 e o terceiro, correspondendo à seção 3 parte X, com a data de 1830. Esse último volume chega até 1823, faltando, portanto, material para que a parte X chegasse ao momento do reconhecimento da Independência pela antiga metrópole, como havia anunciado: Estas lacunas é do meu dever encher. Apresso-me por tanto a publicar o que se acha impresso, pelo receio de que me falte a vida, estando já nos restos dos dias. Imploro a benignidade do Público pela falta de apuramento, e complemento (em que todavia trabalharei) [...] (Lisboa 1827, Satisfação ao público [1829], p. 3).

Volta mais uma vez ao tema das dificuldades que o espírito de partido, ainda existente, colocava ao seu projeto, afirmando ter silenciado acerca do “Sistema Americano” e se recusado a tratar de intrigas e fatos privados que ofendiam a honra dos envolvidos, aceitando apenas aquilo que pudesse ser obtido em documentos oficiais e públicos. Do mesmo modo, a devida gratidão ao imperador não o teria levado à parcialidade. Mas como outros cronistas, admite a necessidade de escrever o elogio do monarca, o que faz citando diversas avaliações já feitas por autores estrangeiros, que conferiam ao elogio a aura de veracidade e distanciamento. Todo esse aparato justificativo parece ter sido reforçado pela oposição crescente ao imperador, que culminaria com a revolução de 7 de abril de 1831: Sendo notório que alguns dos partidos da oposição propagaram na Câmara dos Deputados no fim da legislatura, tirar-se-me o auxílio de um escriturário, que muito me tem ajudado na empreendida tarefa (o que devo à espontânea munificência do nosso imperador) acrescentando que, — “sendo de ordem do governo, não é essa a história que o Brasil requer [...] (Lisboa 1827, Satisfação ao público [1829], p. 14-15).

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No centro da história de Lisboa está o princípio metanarrativo de que as sociedades modernas se fundavam no comércio e na sociabilidade. Assim, a civilização do Brasil, mesmo que sufocada em seu período colonial, herdou da história portuguesa o projeto civilizatório/comercial cujo emblema eram as Grandes Navegações. Portugal havia decaído, primeiro com o Sistema Colonial, depois com o liberalismo radical e maçônico; o Brasil, desde 1808, seguia seu destino enquanto baluarte da liberdade bem entendida, temperada pelo governo forte, tão fundamental às sociedades modernas. Assim, a história de nossa historiografia estaria condicionada por essa evolução civilizacional. Essa produção, crescente desde 1808, deve-se ao novo patamar civilizatório que valorizou o comércio; mas mesmo ela é vulnerável, seja às forças do despotismo e da lisonja, seja às ilusões do radicalismo revolucionário.4

B) AS NARRATIVAS DA EMANCIPAÇÃO BRASILEIRA NA HISTÓRIA DOS PRINCIPAIS SUCESSOS Em geral, podemos dizer que a grande narrativa nacional produzida por Silva Lisboa no que conseguiu finalizar de seu projeto de uma história geral do Brasil busca compreender a Independência como o cumprimento de um plano providencial e, ao mesmo tempo, a demonstração das forças civilizatórias que dirigiriam a história brasileira.  Nascido das Grandes Navegações, que abriu o comércio global e expandiu a religião cristã, o Brasil estava destinado a ser um grande império comercial capaz de igualar o equilíbrio de poder no Novo Mundo, sendo a primeira monarquia constitucional americana. Em uma narrativa em que as ações são organizadas por uma força providencial oculta que dá sentido a conflitos constantes resultantes de ambições e fraquezas humanas, Lisboa 4 

Sobre o conceito de revolução para o período, ver NEVES, 2007, pp. 129-140. Nesse

artigo, a autora classifica Cairu com um grupo liberal moderado, que mesmo recusando os extremos da revolução, defendiam um professor de reforma organizado em torno de uma ideia de regeneração (p. 139).

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produz uma história cômica, no sentido dado por Hayden White, com os efeitos de uma conciliação conservadora (White 1995). Em seu discurso, convergem diferentes narrativas e linguagens políticas. A seguir, analisaremos três dessas macronarrativas e como elas atuam em conjunto para dar sentido e legitimar o novo império e seu governo.

A MACRONARRATIVA DO CONFLITO ENTRE LIBERDADE E AUTORIDADE Uma das fontes de movimento desta narrativa é a crença de que o mundo político pode ser entendido como um conflito eterno entre os princípios da liberdade e da autoridade. Já para a introdução, que cronologicamente antecede a obra, Lisboa toma como epígrafe, grafada na folha de rosto, uma passagem do historiador latino Tácito. Nos demais volumes, inclusive no primeiro, a referência não se repetirá. Lisboa não se deu ao trabalho de identificar a obra, mas sabemos que se trata de uma interpolação — tão ao gosto do escritor baiano — do parágrafo terceiro da Vida de Agrícola:

Primo statim beatissimi Imperii ortu res olim dissociabiles miscuit, Principatum ac Libertatem... Nunc redit animus: non pigebit rudi et incondita voce memoriam praesentium temporum composuisse. (Lisboa 1825) [Tradução] Outrora ele misturou, desde o começo do opulento Império que inicia, coisas até então incompatíveis: Principado e Liberdade.... Agora o ânimo volta: ele não terá arrependimento de ter reunido a memória dos tempos presentes com uma voz rude e bárbara.

Ou ainda, no original tacitiano: Agora finalmente o ânimo volta; e ainda que outrora desde o começo da opulenta época que se inicia com o César Nerva, o qual misturou coisas até então incompatíveis: principado e liberdade [...]

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Todavia não terá arrependimento de ter reunido a memória das primeiras servidões com a voz bárbara e rude como também o testemunho das excelências do presente.

Sabemos que, para os homens de letras luso-brasileiros, um autor como Tácito representava um conjunto familiar de ideias e temas. O aparente descuido com a citação literal — diferentemente do que fez com Southey — demonstra que os autores, um moderno e outro antigo, tinham usos distintos. Apenas para ilustrar a liberdade do procedimento, transcrevo abaixo o trecho completo em Tácito, sublinhando as partes usadas por Lisboa: Nunc demum redit animus; et quamquam primo statim beatissimi saeculi ortu Nerva Caesar res olim dissociabiles miscuerit, principatum ac libertatem, augeatque cotidie felicitatem temporum Nerva Traianus, nec spem modo ac votum Securitas publica, sed ipsius voti fiduciam ac robur adsumpserit, natura tamen infirmitatis humanae tardiora sunt remedia quam mala; et ut corpora nostra lente augescunt, cito exstinguuntur, sic ingenia studiaque oppresseris facilius quam revocaveris. [...] Non tamen pigebit vel incondita ac rudi voce memoriam prioris servitutis ac testimonium praesentium bonorum composuisse. (Tacitus. Agricola, Cap. III)

Dos clássicos, como também muitas vezes da Bíblia, Lisboa retira pequenas histórias arquetípicas que são familiares aos seus leitores. Na passagem montada por Lisboa, a ideia-chave é uma resposta ao conflito entre virtude cívica e império. A primeira parte da citação afirma que, pela primeira vez – e Lisboa alude, é claro, ao reinado de Pedro I –, império e liberdade, até então irreconciliáveis, se veem juntos. Em seu contexto original, Tácito está particularmente se referindo ao principado de Nerva e Trajano, sob os quais ele diz ter tido as condições para escrever livremente a história e nos quais lentamente as virtudes romanas iam sendo restauradas. Temos então duas frentes de leitura. De uma parte, a primeira afirmação do trecho citado produz um símile no qual Nerva e Trajano podem ser aproximados a D. João VI e D. Pedro I. Como em todo símile, uma das partes deve sua força expressiva a outra; nesse caso, a história modelar é a romana,

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através da qual a brasileira pode ser compreendida pelos leitores. Um procedimento bastante tradicional, que afirma certo primado dos antigos. Por outro lado, em seu conteúdo específico, a passagem responde de modo positivo à grande dúvida do século XVIII sobre a possibilidade de conciliar um governo forte, como o monárquico, com a liberdade – ou autoridade e liberdade –, já que o cidadão de uma sociedade comercial e polida não poderia dispor do mesmo tipo de virtude que o de uma república antiga. Lisboa então toma partido dos modernos, defendendo uma via própria para sua organização política; poderíamos dizer, nesse momento, uma monarquia constitucional. Um leitor mais cético diria que são apenas epígrafes, cuja função era mais ornamental do que substantiva. Mas basta olhar para o esforço feito na segunda parte da passagem para verificarmos a importância dada ao expediente. Mesmo usando as palavras de Tácito (nada é acrescentado), Lisboa compõe uma nova expressão, adaptando o sentido da passagem aos objetivos da obra, suprimindo palavras e mesmo invertendo a ordem dos períodos, de forma que expressões que, em Tácito, tinham certa função assumem outras na montagem. Torna-se então relevante notar que Lisboa deliberadamente omite a menção tacitiana às “primeiras servidões”: Em Lisboa: “Agora o ânimo volta: ele não terá arrependimento de ter reunido a memória dos tempos presentes com uma voz rude e bárbara”. Em Tácito: “Todavia não terá arrependimento de ter reunido a memória das primeiras servidões com a voz bárbara e rude como também o testemunho das excelências do presente”.

Parece ficar claro que o autor evita o confronto entre passado e presente tão importante no contexto original romano. Não seria difícil dar continuidade ao símile, identificando o período colonial brasileiro com as “primeiras servidões” a que se refere Tácito, mas Silva Lisboa parece deliberadamente evitar esse paralelismo em busca de uma interpretação mais conciliadora. De todo modo, a exclusão dessa possibilidade parece coerente com os sentidos ambivalentes do legado português no Brasil em sua obra. Como procuramos capturar com o esquema abaixo, a menção a Tácito é uma espécie de metoní-

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mia de uma narrativa mais completa da história de Portugal como luta entre os princípios da autoridade e da liberdade. Nessa luta, o mais importante é a possibilidade de harmonia entre as partes, já que nenhuma república poderia sobreviver dominada por apenas um desses princípios. Por isso, certos valores emblemáticos como a liberdade e a iniciativa individual e privada têm o valor negativo ou positivo a depender da forma e lugar. De todo modo, a inspiração taciteana que orienta a descrição de uma fundação germânica da constituição portuguesa estrutura a macronarrativa que se realiza com a monarquia constitucional brasileira.

A tarefa da escrita da história era demonstrar e defender o modelo civilizacional representado pelo império em sua forma monárquica-constitucional. Educar o público sobre suas verdades, polir maneiras e assim preparar as condições para o seu próprio desenvolvimento como uma empresa literária, porque sem liberdade e bom governo não há condições para o progresso das letras. Portanto, a circularidade entre letras e civilização é outra dimensão da metanarrativa que organiza o relato. As maneiras comerciais poderiam levar à decadência da virtude, como muitos autores defendiam. Neste ponto, o bom governo deve agir como um antídoto, a fim de orientar a comunidade, mesmo quando os homens não fossem capazes de identificá-lo. Como parte do bom governo, o historiador deve ajudar a controlar o tempo moderno com

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a firmeza dos valores morais e uma racionalidade temperada pelas circunstâncias, ajustando para os tempos modernos o equilíbrio entre autoridade e liberdade.

A MACRONARRATIVA PROVIDENCIAL A descrição do território da nação apresentada no primeiro volume da obra enfatiza suas fronteiras naturais, sugerindo sua doação providencial e destacando a singularidade de sua grande extensão e diversidade recursos: Não menos singular e sem paralelo na história dos impérios é que uma área tão grande, de fisionomia geológica superior à Europa, foi ocupada pela mais pequena nação europeia, tanto em território como em população, que tem sido propriedade de mais de três séculos, agora conserva a integridade da descoberta original, com a mesma religião, língua e lei, e mesmo com maior força e esplendor, apesar de várias vezes terem sido invadidas, em várias províncias, por franceses, ingleses, espanhóis e holandeses, como se verá em o curso desta história. Assim, na medida em que a fraca razão humana chega, parece não ser contra a razão que os brasileiros podem dizer com religiosidade e orgulho – veja o dedo de Deus (Lisboa 1827, p.2-3).

Naquele contexto, parecia para diversos membros da elite política que o maior desafio da Independência era manter a integridade do território nacional, ameaçado por conflitos internos e externos. Esse curto parágrafo é um bom exemplo do que gostaria de chamar “narrativas compactas”. Curtas passagens retrospectivas que colocam de modo condensado e muito preciso ao leitor a possibilidade de experimentar, quase que analogicamente, por memorização, o princípio de experiência ao qual se quer conformar uma realidade diversa e pouco conhecida. Essas curtas sínteses ou recapitulações garantiam a circulação das narrativas orientadoras mesmo entre aqueles que não teriam o tempo ou a oportunidade de ler a obra inteiramente. Um traço dessas “narrativas compactas” é sua possibilidade de repetição e memorização, organizadas que estão em torno de alguns “memes”, como a

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unidade natural do território e a singularidade do império. Esses mitos não resistiriam a uma análise mais longa, mas de tão repetidos acabam por se conformar em realidade. Outra estrutura textual de reforço muito utilizada na obra são as notas de rodapé como circuito de reforço e conexão temporal. Constantemente as notas fazem a necessária aproximação entre começo e fim, reforçando a perspectiva teleológica da narrativa, transformando a diversidade dos eventos em força prefigurativa, como na passagem em que explica que os adjetivos usados para descrever o Estado do Brasil foram retirados de uma enunciação do rei britânico em 1808, celebrando a transferência da Corte portuguesa. A ordem simplesmente cronológica é quebrada pela introdução de uma temporalidade posterior ou anterior que orienta a experiência da leitura. Assim, o fato de D. Pedro ter nascido e aclamado imperador no mês de outubro, o mesmo em que o primeiro rei de Portugal tinha firmado o juramento da visão que teve de Cristo no campo de Ourique, prometendo-lhe que ele e em sua descendência estabeleceria um grande império, são apontadas em nota como coincidências não fortuitas, mas com a ressalva de que tais especulações eram incompatíveis com o gosto do século. No lugar mais pessoal da nota de rodapé poderia reforçar o providencialismo de sua interpretação sem comprometer o decoro racional que a narrativa de uma história geral requeria. Os capítulos seguintes descrevem a descoberta das ilhas oceânicas, do caminho para as índias e da América. Traça longo elogio à quebra do monopólio de comércio provocado pelas navegações, em especial por não terem sido necessárias a guerra ou a injúria a outras nações. Mas essa perspectiva promissora seria interrompida, pois o... espírito de conquista, inércia e cobiça, frustrou, em grande parte, o benefício da divindade, retardou o natural progresso da civilização e perfectibilidade da espécie humana, e causou incalculável miséria, não só aos povos descobertos, mas também a seus descobridores, e aos deles oriundos (Lisboa 1827, p. 11).

A natureza humana e a incivilidade dos tempos impediram que o progresso aberto se confirmasse, introduzindo-se grandes males como a escravidão, a

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intolerância religiosa e o espírito de conquista. Muito ao gosto do Iluminismo escocês e britânico, dos quais era leitor e tradutor, em especial da obra de Burke, Robertson, Hume e Adam Smith, Silva Lisboa narra as Grandes Navegações como o fim do monopólio do comércio do Oriente imposto à Europa pelas cidades Italianas. Os portugueses teriam tido o papel de pioneiros no processo fundamental de civilização da Europa e do mundo. Mas como em toda a obra, essas forças de progresso são bloqueadas pelo preconceito, pela ambição e pelo espírito de conquista que marcam as sociedades ainda em estado semibárbaro, como a europeia naquele momento. Esse estado semibárbaro é entendido como uma continuidade dos princípios feudais. Mas no lugar de uma narrativa ilustrada irônica que simplesmente condenasse essas ações, Silva Lisboa procura compreendê-las em seu horizonte temporal, como o papel da igreja católica nos negócios internacionais, repreensível no presente, mas que teria tido importante papel civilizatório no passado. Como se pode constatar no esquema abaixo, nessa macronarrativa praticamente não se pode identificar revezes ou retrocessos, pois mesmo eventos que poderiam ser entendidos como catastróficos, como a invasão napoleônica, acabam se revelando positivos. A história do Brasil conecta-se com o milagre de Ourique, passando pelo descobrimento e colonização, outras oportunidades para vislumbrar a providência em ação. Pedro I, antigo e legítimo herdeiro da promessa feita nos campos de Ourique, renova e atualiza esse pacto no novo império cristão e católico da América.

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Macronarrativa providencial

A MACRONARRATIVA DA PASSAGEM FEUDAL-COMERCIAL Silva Lisboa narra o descobrimento do Brasil como produto da expansão marítima e, ao mesmo tempo, produto de ação providencial, já que a esquadra portuguesa tinha como objetivo o comércio das índias e não o descobrimento de novas terras. Por isso, de modo polêmico, prefere chamar este evento de “achado” do Brasil, e não descoberta (Lisboa 1827, p. 44). O lance permitia um movimento duplo, pois associava o Brasil à expansão comercial e, ao mesmo tempo, afastava os motivos menos nobres ligados à vontade de conquista e domínio. Dessa forma, respondia e distorcia as opiniões de Robertson e R. Southey, citadas como autoridades, que em suas histórias tinham igualmente salientado o caráter acidental do descobrimento do Brasil. Silva Lisboa se recusa a acreditar que qualquer acontecimento histórico pudesse ser obra do acaso, utilizando-se da ideia de providência tanto como recurso cognitivo quanto como forma transferir o providencialismo luso e seu excepcionalismo ao Brasil. Mas cabe destacar que em nenhum momento esse recurso é transformado em argumento suficiente ou permitia a inclusão de ações miraculosas na narrativa; ele é sempre afirmado como uma crença última no sentido da história, que mesmo oculto ao historiador, poderia ser derivado de causas naturais Com esse movimento conceitual, a história do Brasil e sua Independência podem ser narradas como o cumprimento de um destino providencial e

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civilizatório. A colonização portuguesa é retratada como desleixada e marcada por princípios anticomerciais como monopólio, intolerância religiosa e outras práticas feudais. Este “antigo sistema colonial” foi reforçado pelo Tratado de Utrecht no início do século XVIII. No entanto, apesar desses impedimentos, a colônia prosperou e progrediu sob a iniciativa de seus habitantes, como se destaca na epígrafe geral do trabalho, uma citação da história do Brasil de Robert Southey: discovered by chance, it is by individual industry and enterprise, and by operation of the common laws of nature and society, that this empire has risen and flourished, extensive as it is now, and might as it must one day become (Southey 1810).

O “antigo sistema” bárbaro, feudal e colonial seria revertido apenas com a transferência da Corte em 1808, período que já havia tratado em obras anteriores (Diniz 2010; Rosa 2011). Mas como é frequente em sua história, esse progresso nunca é linear e homogêneo, está sempre comprometido pela fraqueza e ambição humanas, em especial entre povos em que a civilização não havia atingido um grau elevado de perfeição. Em uma Europa marcada ainda por movimentos revolucionários e projetos de impérios universais, Portugal, recém-libertado do domínio francês, seria vítima dessas mesmas forças na revolução liberal do Porto de 1820. Em uma engenhosa inversão, Silva Lisboa interpreta a revolução do Porto como um complô entre democratas radicais espanhóis e portugueses para unir a península sob um mesmo governo, recolonizar a América e impor à Europa seus projetos universais de poder. As narrativas antinapoleônicas, profundamente inspiradas em Burke, são reutilizadas para caracterizar o despotismo das Cortes de Lisboa, que acabariam por forçar os brasileiros a declarar sua Independência para não se verem novamente reduzidos a “servos da gleba”. Assim, descreve como a “revolução” vai contaminando diversas províncias do Brasil ameaçando a sua integridade territorial. Reagindo ao que via como tentativa de restabelecimento no Brasil do sistema feudal das antigas colônias, em especial pelas medidas que visavam a reconstruir os privilégios comerciais da metrópole de privar o Brasil de um

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centro político ameaçando-o de fragmentação, o jovem príncipe de Bragança assume a tarefa deixada por seu pai de conduzir à emancipação do Brasil, preservando a integridade do império tal como suas fronteiras providenciais reveladas no descobrimento em 1500. Emancipar o Brasil de um reino português, visto como contaminado pela revolução, é agora considerado como o único meio de regenerar a nação portuguesa. Silva Lisboa traça a figura de Pedro I como a de um herói burkeano, capaz de unir a aura da presença nobre, moderação e conciliação política, afastando o caráter belicoso que os contemporâneos geralmente atribuíam ao príncipe. Em episódio que descreve como debelou um princípio de revolta, descreve que “A sua presença assombrou todos os espíritos. Ninguém ousou impedir o comando ao Príncipe da Nação” (Lisboa 1825, X.I, 60). Em outra passagem, em que descreve como a presença do imperador conciliou uma revolta provincial, compara essa aura política dos príncipes legítimos e antigos ao halo que se forma ao redor de certos planetas e estrelas (Lisboa 1825, X.II, 79). Assim, o jovem príncipe vai se tornando mais uma das forças morais capazes de unir a nação também contra os inimigos internos, alguns apegados a fidelidades locais. Contra esses, afirma, em nova referência a Burke, “...as Nações não são superfícies geográficas, mas essências morais” (Lisboa 1825, X.II, 20), com o sentido de que não deveriam ser fiéis aos seus compromissos locais, mas à ideia mesma da nação incorporada em sua vocação comercial, destino providencial e, agora, em um herói conciliador. No tema do carisma da nobreza e em outros envolvendo a criação de ordens e comendas, Silva Lisboa faz a defesa dessas instituições feudais como artifícios necessários para a educação do povo. Em sua leitura, os códigos cavalheirescos foram uma força histórica civilizadora na Idade Média europeia, ajudando a adoçar e polir os costumes. De certa forma, como o Brasil longe estava ainda de atingir a perfeita civilização, forças históricas como a religião e a nobreza teriam ainda uma função relevante na educação moral da nação. Naturalmente, a própria nação parecia ser formada por temporalidades distintas, desde a selvageria dos índios até as práticas pouco comerciais e bárbaras espalhadas com maior ou menor intensidade pelo vasto território. Assim, a monarquia-constitucional aparecia como a solução política mais adequada ao século e às condições particulares do Brasil, que necessitava de

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liberdade, mas também de um governo forte. É justamente esse equilíbrio que sua história acredita ter sido alcançado no governo de D. Pedro I, como já descrevemos acima. Macronarrativa Feudal-Comercial

Obedecendo a um princípio narrativo central, a história do Brasil tem como começo a sua descoberta no contexto das Grandes Navegações e da abertura comercial do mundo, e o seu fim no estabelecimento de um império comercial. Silva Lisboa unia três grandes linhas narrativas: (1) a da luta entre liberdade e autoridade alimentada pelos temas da linguagem tacitista; a (2), que compreendia a história da humanidade como a evolução de etapas bem definidas da selvageria à civilização, na qual o nascimento da época dos descobrimentos anunciava o futuro comercial e civilizado do Brasil – mesmo que tivesse que atravessar o seu período “bárbaro”, representado pela colonização descrita como uma espécie de Idade Média nacional, marcada pela força dos poderosos, das famílias e seus pequenos feudos –; e, finalmente, a (3) transferia as expectativas providencialistas da história de Portugal organizadas em torno do milagre de Ourique para o contexto americano em processo de nacionalização. O império prometido por Cristo aos portugueses seria finalmente realizado no Brasil. A harmonização entre liberdade comercial e destino providencial, entre liberdade e autoridade, encontraria na monarquia

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constitucional a sua forma histórica perfeita, capaz de reequilibrar a balança de poder no continente americano dominado por repúblicas. Em seu destino, a jovem nação finalmente poderia conciliar o antigo e o novo, a Europa e América, Brasil e Portugal.

C) O QUESTIONAMENTO PÚBLICO DA RELAÇÃO HISTORIADOR E ESTADO Um episódio de 1830 é bastante emblemático da deterioração das condições de escrita da história. A crise política e financeira do império foi usada pelos adversários de Lisboa, em especial os senadores Nicolau de Campos Vergueiro e José Ignácio Borges, como pretexto para inviabilizar a continuidade de seu projeto. Os senadores propuseram o corte dos recursos utilizados para o pagamento de um copista que auxiliava Lisboa na produção de sua história do Brasil (Kirschner 2009, p. 268). O visconde de Alcântara (João Inácio da Cunha) abria o debate na sessão de 10 de setembro de 1830 defendendo que fosse restituída a verba orçamentária destinada ao pagamento do escriturário (Anais do Senado Federal 1830, p. 9-16).5 Dizia ser injusto que depois da nação ter escolhido Lisboa para escrever sua história – história de que precisava –, que seu auxílio fosse cortado, em especial a um homem na idade e forças de Lisboa. O escriturário Estanislau de Souza Caldas recebia anualmente 365 mil reis, valor considerado muito baixo para um empregado público à época. Do lado contrário à manutenção do escriturário, erguia-se o senador Nicolau Vergueiro, que apesar de insistir sobre os aspectos de economia do corte, não deixou de apontar suas dúvidas sobre a relevância e legitimidade do projeto: mas diz-se: a Nação se negará a escrever a História do Brasil? Pois as histórias de todas as nações estão escritas sem as nações mandarem escrever, e não se pode mesmo esperar uma história imparcial, escrita debaixo da proteção do Governo: a posteridade é que corrige; comparando os diversos escritores, que se escreveram [sic], para formar o seu juízo: não o do 5  Anais do Senado Federal, vol. III, 10 set. 1830, p.9-16.

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escritor no tempo em que a história foi escrita; nem é de supor que seja escrita com toda a verdade, e imparcialmente; porque os homens sempre são arrastados pelas paixões, que os rodeiam sem eles mesmos sentirem: portanto isto é especulação do homem de letras, não do governo, e por isso deve suprimir-se [...] (Anais do Senado Federal, 1830, p. 11)

Como se vê, motivos conceituais sobre a relação do escritor com os governos, e mesmo as condições que hoje chamaríamos epistemológicas, são levantadas no debate. Em sua defesa, Lisboa afirmava que não poderia concordar com a alegação de que a história contemporânea não podia ser verdadeira. Dizia que seguiu o exemplo de outros grandes escritores contemporâneos que escreveram sobre os sucessos da Europa e da América com base em documentos notórios e autênticos. Que já tinha publicado duas partes de sua obra, e que nenhuma reprimenda havia sido divulgada pela imprensa. O próprio Senado não havia apontado erro ou parcialidade: “A fé histórica tem critério de verdade fundada em razão diversa da do contraditor” (p. 12). Lembrava-se ainda que Tácito desacreditou as histórias contemporâneas do império porque estavam contaminadas pelo medo, mas que os tempos atuais seriam outros: A comunicação das nações, o sem número de tipografias em ambos hemisférios, impossibilitam calúnias, adulteração ou omissão dos sucessos os mais decisivos e interessantes, com a especialidade em país de liberal constituição. Atualmente nenhuma impostura se pode sustentar por considerável tempo, sem ser logo desmentida, por êmulos, competidores, e jornalistas (Anais do Senado Federal, vol. III, 1830, p.12).

Ainda em sua defesa, argumentava que sua obra não era apenas ou principalmente sobre os eventos recentes da “revolução do Brasil”, mas uma história geral. Vemos aqui como estava dividido entre as pressões de Pedro I e seu gabinete de enfrentar o período da Independência, e a de diversos outros setores sociais que reagiam a essa tentativa governamental de criar uma versão oficial dos eventos. Sabemos que após publicar a primeira parte de sua obra sobre os descobrimentos, Lisboa foi pressionado pelo governo a

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abandonar seu plano original e abordar imediatamente os eventos recentes; a reação do Senado refletia essa mudança de rumo. Embora o documento que o nomeou para redigir a história fosse explícito na concentração nos eventos recentes, no debate do Senado, Lisboa tentou esvaziar essa interpretação dizendo: “Além de que o meu cargo foi escrever a História Geral do Brasil, e não só a história particular de sua revolução” (Anais do Senado Federal, vol. III, 1830, p.12). Em seguida, ainda procurava esclarecer o escopo dessa primeira redação: A narrativa dos fatos políticos mais interessantes foi o objeto de meu trabalho. Coligi o disperso. Não aspirei ao ambicioso projeto da intitulada História Filosófica do país; mas também não imitei o exemplo dos arengueiros de contos malignos, escuras anedotas, e matérias duvidosas (Anais do Senado Federal, vol. III, 1830, p.12).

Sua reflexão volta ao mundo antigo, criticando-o pela ausência de história contemporânea, cita o caso de reis europeus, como Carlos V, e os reis de Portugal que tiveram o cuidado em nomear cronistas para escrever as histórias de seus reinados, tudo para relativizar o argumento decisivo de Vergueiro de que escrever a história deveria ser tarefa particular. Em sua réplica, Vergueiro voltava ao ponto: Lisboa é homem e, como tal, falho e sujeito às influências de seu tempo. Saindo em defesa do governo, Felisberto Caldeira Brant Pontes,6 Marquês de Barbacena, reforçava o papel da liberdade de imprensa como antídoto e fiadora da verdade: “Concedo que o escritor contemporâneo pode ser influído por um partido, mas quando há liberdade os diferentes partidos se atacam, e é só por este choque, que a posteridade pode descobrir a verdade. Convém portanto que se escreva a história, e que haja copista” (Anais do Senado Federal, vol. III, 1830, p.13). A polêmica evidencia a importância crescente da história para a vida social e política, mas também as dificuldades institucionais e epistemológicas que as novas exigências colocavam. Como garantir as condições materiais 6 

Um dos negociadores do reconhecimento da Independência, Brant Pontes teria sido

um dos encarregados pelo recrutamento de letrados referido na cena anterior.

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para a escrita dessa história moderna cada vez mais assentada em pesquisa documental, coleções de documentos, multiplicidade de referência, explosão de fatos? Qual o papel dos Estados constitucionais nessa tarefa? Qual a posição legítima do escritor-historiador? Qual o papel da imprensa como opinião pública e como veículo de relatos históricos? Tudo parecia apontar para uma grande instabilidade dos relatos, algo parecido com a imagem apontada por Vergueiro de uma verdade que emerge da luta política. A imprensa como espaço de crítica era argumento nos dois lados do debate, mas isso não respondia à necessidade social de ter acesso à história de modo mais ou menos coeso. Ao mesmo tempo em que apontava a liberdade de imprensa como condição de verdade em sua obra, Lisboa evocava antigos exemplos de patrocínio e mecenato de reis e nobres. Sem qualquer patrocínio, a história, em especial a moderna, não seria possível. Mas como evitar que o patrocínio comprometesse a imparcialidade e valor do autor? Mesmo aceitando o argumento de Lisboa de que a liberdade de imprensa e a luta dos partidos serviriam como instâncias críticas, fica a pergunta: por que o Estado deveria financiar uma história e não muitas outras que poderiam ser escritas? A posição de Vergueiro era coerente com sua imagem de uma história que nasce do conflito. Mas esse modelo seria capaz de produzir o tipo de história completa, documentada, filosófica que se desejava então? O mundo evocado por Vergueiro estava mais próximo da situação britânica, em que a escrita da história era um problema da relação entre o autor e seu público. A posição de Lisboa, entretando, dependia da imagem do autor como figura quase sacerdotal, que mesmo a serviço do governo-estado era capaz de manter-se independente na busca do bem comum. A polêmica em torno do escriturário e do papel do governo na escrita da história já apontava como era frágil a situação de um homem de letras, historiador, que dependesse da conjuntura política muito dinâmica das sociedades modernas em formação. O modelo do mecenato, mesmo emoldurado pela razão de Estado, mostrava-se incapaz de garantir as condições necessárias para a escrita da história. Com as exigências do tempo, faltavam instituições mediadoras capazes de assegurar legitimidade discursiva e condições materiais para o empreendimento. A abdicação de Pedro I e a grande

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expansão dos debates na conjuntura das regências tornariam esses impasses ainda mais claros. Ao mesmo tempo, a figura do autor continuava se transformando. Antologias como Parnaso brasileiro, de Januário da Cunha Barbosa, publicada entre 1829 e 1832, através da coletânea de obras e notícias biográficas, ajudavam a produzir o culto moderno do autor como grande escritor (London 2010; Westover 2012), associando-os inclusive ao grau de civilização atingido pela sociedade – como ficaria celebrizando no ensaio de Gonçalves de Magalhães de 1836. As demandas por maior autonomia e liberdade autoral estão amplamente documentadas no período pelo contínuo lamento dos letrados acerca da falta de apoio e valorização das belas-letras. O cônego Januário, já na introdução de seu Parnaso, expressava a esperança de que a estabilização das lutas políticas pudesse abrir maior espaço e tempo para a vida intelectual (Araujo 2008, pp.107ss; Araujo 2009b). A esperança talvez não fosse muito realista, mas, ao mesmo tempo, adquiriria contornos de um primeiro projeto de ação intelectual que tinha a escrita da história em seu centro.

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CONCLU SÃO

OS LIMITES DA INDEPENDÊNCIA COMO MODERNIZAÇÃO Embora as palavras moderno e modernidade não tivessem qualquer uso político relevante na conjuntura da Independência, o mesmo não pode ser dito se considerarmos a modernidade como uma forma específica de pensar e agir. O evento/processo Independência do Brasil só pode ser compreendido no interior de uma história da modernidade e da modernização, seja em seu contexto original, seja em sua contínua recepção e atualização enquanto evento fundador da nacionalidade. A Independência foi feita e pensada nos quadros de problemas próprios do que depois seria chamado de modernidade. Um dos aspectos centrais dessa forma histórica da experiência é justamente a necessidade constante de organizar em processos e narrativas temporais a realidade em seus diversos aspectos. Esses processos temporais tendiam sempre a lidar com a diferença em hierarquias de progresso e desenvolvimento. Assim, os problemas e conflitos poderiam ser compreendidos e resolvidos por políticas de sincronização do atrasado com o moderno; ou, na impossibilidade de sincronização, na tutela dos atrasados pelos modernos. Nas disputas de narrativas entre portugueses e brasileiros, a ideia de que Portugal estava destinado a permanecer atrasado em relação aos grandes centros da civilização foi inúmeras vezes mobilizada para justificar a independência do Brasil. Desde fins do século XVIII, letrados da América portuguesa traduziam as realidades locais em narrativas de progresso e civilização. Essas

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CONCLUSÃO

narrativas encontraram na migração da Corte, em 1808, um catalisador irresistível, alargando o horizonte de expectativas e produzindo autoconfiança quanto ao futuro que tornou problemática a tutela portuguesa sobre as colônias americanas. Essa situação justificava perguntas como a do abade De Pradt, que, na virada para o século XIX, sob o impacto da Revolta no Haiti, se perguntava: a quem pertencerá a América, à Europa ou à África? Essa pergunta terá uma força espectral e fundadora da modernidade brasileira no evento/processo Independência. Perguntar se o Brasil pertenceria à Europa ou à África era essencialmente questionar-se acerca das hierarquias temporais, correspondendo à fórmula historicista posterior de um processo histórico em que civilização, entendida como progresso contínuo para melhor, e barbárie estariam sempre como alternativas reais no horizonte histórico. Claro que essa alternativa é própria da modernidade, mas nossa condição de país colonial e escravista dá a ela sua configuração própria. A ameaça da barbárie não estaria apenas em continuar a ser colônia de uma metrópole supostamente atávica como Portugal, mas também nas assimetrias temporais no próprio corpo nacional, em sua população heterogênea em termos civis, racial e civilizacional. Assim, não nos deve surpreender que talvez o primeiro texto a refletir sobre as possibilidades de progresso da jovem nação tenha sido pensado já em 1823 por José Bonifácio (1763-1838), impondo-se, a partir daí, como uma espécie de aporia fundadora da modernidade brasileira. Na Memória sobre a escravatura [1826] temos a formulação, em termos bastante precisos, de uma retórica da atualização. Uma nação não poderia ser atual, seguir no caminho da civilização, evitando o abismo do retrocesso, sem tornar-se homogênea. Embora use esse adjetivo e se refira, em primeiro plano, às diferenças civis e políticas entre a população livre e escravizada, sendo, portanto, manifestação de um desejo democrático por igualdade, a reflexão de Bonifácio sobre o fim do tráfico e, eventualmente, da escravidão, é inseparável de seu conteúdo identitário eurocêntrico. A diferença entre africanos e negros escravizados – ou mesmo os povos nativos – e os brancos livres, era civil e política por ser também racial, evolutiva e cultural. Dito de modo direto, o texto estabelece um vínculo orgânico entre valores da identidade étnica europeia e os requisitos para a cidadania em

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termos modernos. Para ser moderna, a nação precisava antes se homogeneizar. Isso seria possível porque o heterogêneo, o diferente, foi temporalizado como atrasado. A nação só pode efetivar sua independência nessa busca sempre incompleta por homogeneidade e sincronização, seja interna, seja com a Europa. Essa busca marca a modernidade brasileira como um projeto identitário predatório, incapaz de aceitar a diferença em um horizonte democrático. Caberia às elites brancas ou embranquecidas exercer o controle do tempo para lenta e gradualmente homogeneizar a nação. Amalgamar, misturar, manipular, fundir os diferentes para que possam ser iguais e homogêneos. Em seu lado utópico, homogeneizar significa todos terem direitos, mas também estarem todos no mesmo estágio de civilização e horizonte cultural. Uma coisa depende da outra, não se pode ter direitos sem estar civilizado. As mesmas perguntas e respostas seriam dadas por Carl Philipp Von Martius (1794-1868) em sua conhecida resposta ao concurso promovido pelo IHGB acerca da melhor forma de se escrever a história do Brasil [1845]. Em seu texto, a história do Brasil foi e estaria sempre marcada pelas confluências das raças indígena, negra e portuguesa. O reconhecimento desse fato já não está acompanhado por projetos pelo fim do tráfico ou da escravidão. Von Martius exemplifica bem a solução conservadora para conviver com a diferença que persiste a ocupar o corpo da nação: aceitá-la, desde que hierarquicamente administrada em um tempo longo, quase imutável. O tempo para a transição do heterogêneo ao homogêneo é dilatado e as elites convocadas novamente a liderar com condescendência. A dimensão identitária fica ainda mais evidente. É o português, aqui liberado do espectro do atrasado, tomado como sinônimo de europeu que, tendo sido o descobridor e conquistador, foi o motor e deu as condições físicas e morais para a independência e a nacionalidade. Para a pergunta espectral, a resposta de Von Martius não deixa dúvidas, o Brasil será da Europa ou não será. Claro que essa posse precisa ser realizada em um projeto de incorporação do outro (negro e indígena) ao mesmo possível: um mestiço europeizado. A diferença só seria importante se fosse conduzida à fusão, à identidade única, à completude homogênea da nação. Portanto, as diferenças visíveis só podem ser entendidas enquanto atraso. O progresso e o futuro serão sempre a superação da diferença. A miscigenação em Von Martius deve garantir que

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o tipo branco europeu seja o prevalecente. A ansiedade pelo homogêneo é aqui mais cultural e racial do que político, o historiador pragmático deveria demonstrar como as artes e as ciências no Brasil teriam sido sempre um reflexo da vida europeia e continuaria a sê-lo. Em 1902, no seu mais famoso livro, Euclides da Cunha (1866-1909) documentou em chave trágica as dimensões aporéticas do projeto nacional aberto pelo evento/processo Independência. Como motor mítico de nossa história, a Independência está destinada a ser um movimento incompleto, em eterna realização/atualização. Atormentado pelas teorias racistas de seu tempo, Euclides e parte de sua geração romperam com as soluções progressistas ou conservadoras do convívio com a diferença como atraso. Em sua enigmática advertência que abre Os Sertões, a última possibilidade do Brasil se constituir em bases raciais homogêneas e estáveis, o sertanejo, não teria tempo de alcançar os estágios de civilização material do mestiço proteiforme do litoral ou do imigrante europeu, que trazia consigo uma cultura superior, mas externa. Aqui, a Independência se atualiza realizando uma de suas possibilidades paradoxais: sermos tão europeus quanto os europeus (Costa Lima 1997, passim). Um dos motores ideológicos da Independência foi a percepção e o medo do atraso~; a vontade, mesmo que ainda não claramente formulada, de ser moderno. O sertanejo teria a chave racial para uma modernidade local, ou seja, um projeto de estado nacional eficaz na produção de progresso. Mas o sertanejo não tinha mais tempo de ser atual. O seu atraso era irrecuperável, e a extinção surgia como o resultado do caminho da barbárie – senão representada pelo sertanejo exterminado, pelo mestiço imitativo que não conseguia ser plenamente brasileiro/americano ou europeu. Sem pertencer de todo à Europa ou à África, os brasileiros estavam ainda exilados em sua própria terra, nos termos de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em seu livro de 1936. O exílio buarqueano é mais agudo, pois não significa apenas estar fora de casa, em terra estrangeira, mas se sente estrangeiro na casa que construiu e habita. A leitura atenta do livro prova que estamos diante de mais uma atualização do tópos da Independência como projeto inacabado, até os grandes temas da história geral do Brasil estão presentes na nova estrutura do ensaio. O exílio é nosso destino enquanto não

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escaparmos dos aspectos identitários e predatórios (sua pulsão pela completude) do projeto nacional. Para Holanda, o iberismo, em sua incompatibilidade com os valores da modernidade, seria a raiz e a atualidade retardatária da cultura brasileira como se apresentava na década de 1930. O produto dessa raiz, o homem cordial, é caracterizado sempre em falta na comparação com uma concepção de modernidade simultaneamente teórico-formal e histórico-culturamente determinada por certo horizonte europeu. Assim, faltariam ao Brasil e aos brasileiros autodisciplina, racionalidade burocrática na relação com o Estado, verdadeiro espírito de empresa, sentimento religioso autêntico, relação profunda com o saber e a ciência, e tudo o mais que nos esquemas teóricos configurariam os tempos modernos. Ao final, assim como o sertanejo de Euclides, também o homem cordial, contribuição original do Brasil à civilização, estaria fadado à extinção. A versatilidade e a recusa à disciplina, que na visão de Holanda aproximou portugueses, os povos nativos da América e os africanos, possibilitaram o relativo sucesso da colonização portuguesa nos trópicos. Mas essa mesma versatilidade era a razão que tornou o resultado dessa história o avesso de certa concepção de modernidade marcada pela ordem, constância e exatidão. A Independência em 1822 teria apenas um papel negativo no relato de Raízes, pois sem romper com o legado colonial (patriarcalismo e ruralismo) teria introduzido a demanda artificial por valores europeus modernos nunca efetivamente realizados, aprofundando a sensação de desterro e exílio das elites nacionais. A mestiçagem, resultado da suposta falta de orgulho de raça dos portugueses, permitiu a africanização e americanização tão necessárias ao sucesso da colonização. Como os valores da modernidade estão decisivamente confundidos com certo identitarismo norte-europeu, patriarcal e branco, essa mesma miscigenação impede que o brasileiro das elites se sinta em casa em uma nação que ele se obrigou a querer moderna, sob o risco da extinção. Americanizado e africanizado, o Brasil não poderia mais pertencer à Europa, a não ser que a urbanização (outro modo de dizer modernização) permitisse o surgimento de um segundo brasileiro a partir, mas substantivamente diferente, do mestiço cordial.

Sabemos que até hoje sínteses como a de Sérgio Buarque de Holanda configuram os modos de sentir e pensar do brasileiro, atualizando os impasses fundacionais de nosso projeto nacional nos termos em que ele se apresenta no evento/processo Independência. Não significa dizer com isso que esses impasses esgotem o legado desse evento, nem que não tenham surgido muitos outros relatos a apontar outras respostas. Uma das mais disruptivas foi escrita por Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) no breve ensaio O problema do negro na sociologia brasileira [1954]. O ensaio passa em revista crítica a própria intelectualidade brasileira, denunciada por não conseguir se afastar da perspectiva eurocêntrica. O que o ensaio documenta é a possibilidade do deslocamento da questão nacional do problema das raças para a questão do racismo, mudando a centralidade da solução da homogeneização para a possibilidade da convivência das diferenças. Inspirado e transformado em suas próprias concepções pelos movimentos negros emergentes, em particular por iniciativas como o Teatro Experimental do Negro e pela interlocução com intelectuais como Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos ajudou a produzir um deslocamento inédito nas narrativas de emancipação nacional. O processo de luta anticolonial é atualizado em uma crítica poderosa à confusão entre a identidade europeia e a luta democrática e emancipatória. As políticas de tempo que arcaizavam a diferença são identificadas como ferramentas de dominação colonial. Abria-se, assim, a possibilidade de uma modernidade descolada do identitarismo europeu, que se afastaria de mitos fundadores como a demanda por homogeneidade racial via miscigenação e embranquecimento racial e cultural. A interpretação latente da Independência nacional como processo, no ensaio de Guerreiro Ramos, mostra como é possível explorar as possibilidades de futuro abertas em 1822. O projeto nacional não precisa ser a repetição rotineira dos mesmos mitos. A proposta de Ramos da sociedade brasileira como uma “conjunctio oppositorum”, do ponto de vista étnico, mostra que há caminhos para atualizar um projeto democrático de nação diferente daquele comprometido com identidades e temporalidades predatórias. Essa abertura a mundos possíveis é o que torna a modernidade um legado do qual não podemos fugir.

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A INDEPENDÊNCIA: UMA ESCRITA PERMANENTE Thamara Rodrigues

A Independência Narrada: Introdução à História da Historiografia no Brasil continua e consolida as pesquisas que, há anos, Valdei Araujo, dedica à investigação das formas de apreensão, narração e disputa da experiência histórica moderna no Brasil, que tem na Independência uma de suas dobras centrais. Desde a publicação de sua tese de doutorado, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (Hucitec, 2008), os estudos abertos pelo autor têm sido responsáveis por revigorar e consolidar o campo da história da historiografia no Brasil, em diálogo profundo com a teoria da história. Nessa primeira obra, ao considerar o tempo como uma dimensão básica da existência, junto ao qual sujeitos e sociedades disputam os mundos herdados e os que gostariam de habitar, Valdei desvelou algumas condições de possibilidade que tornaram a Independência possível, e que eu gostaria aqui de relembrar. Acompanhando a trajetória intelectual e política de José Bonifácio, o livro de 2008 descreveu experiências de tempo em tensão. A partir do século XVIII, com a intensificação da crítica à estrutura do Antigo Regime, exigiu-se cada vez mais estratégias para o enfrentamento de uma experiência lusitana considerada decadente, mas cuja “solução” ainda se apoiava numa

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expectativa de retorno à experiência colonial, tida ainda como referência civilizacional. No entanto, acontecimentos como a “invasão francesa” e a “transferência da Corte” intensificaram uma aceleração temporal que enfraqueceu essa expectativa, já que esses eventos pareciam marcar uma espécie de fim trágico para Portugal enquanto uma nação autônoma. Em contrapartida, o território do Brasil foi sendo considerado o cenário ideal para a regeneração de um novo Portugal, “emancipado” dos erros e vícios do antigo reino europeu. Entre 1820 e 1822, contudo, o alargamento das diferenças entre a metrópole e a colônia abre espaço para um sentimento de esgotamento da história europeia, inaugurando um momento mais intenso de crítica e distanciamento do passado português. A expectativa e a construção da separação política acompanhavam uma descontinuidade na experiência temporal e discursiva desses territórios, que tanto para o Brasil quanto para Portugal representou o desafio-limite pautado pela urgência de construção de outros futuros, mas que também levou à frente continuidades assimétricas e violentas em relação ao mundo colonial. No livro que acabamos de ler, o autor retomou e ampliou de forma significativa e ainda mais cuidadosa a transformação da experiência histórica e a emergência dos desafios para representá-la durante a Independência. A pesquisa, junto a fontes diversas, realiza um amplo diálogo com as reflexões do campo da história da historiografia que o trabalho do autor ajudou a sistematizar ao longo desses anos, nos aproximando dos desdobramentos históricos e epistemológicos que ressoaram de forma dissonante e descontínua na construção da disciplina de história no Brasil, nos imaginários e nos projetos nacionais. Temos, então, novamente uma obra fundamental que aborda como a Independência, entendida na sua dupla manifestação – evento e processo –, transformou e direcionou os modos pelos quais nos relacionamos com a história, e, particularmente, com o que passou a ser denominado de historiografia brasileira: as formas de elaboração, imaginação e escrita realizadas no e sobre o Brasil. Em outras palavras, percorrer a história da historiografia brasileira nos ajuda a identificar a transformação nas formas de pensar e de representar as experiências próprias aos mundos históricos luso-brasileiros que colapsavam (algumas estruturas do Antigo Regime), ao mesmo tempo

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em que muitas permaneciam (como a escravidão), dando forma a novas experiências e projetos de Brasil. O livro retoma cuidadosamente os momentos centrais da Independência constituída pela abertura junto à transferência da Corte; a aceleração na qual as disputas pela separação entre os reinos adensavam-se e, por fim, a estabilização de um sentido mais geral para o evento, na qual uma perspectiva conciliatória e harmônica com o legado colonial se projetou no tempo. Vamos, assim, acompanhando as ambivalências do processo que, simultaneamente, projetou expectativas e discursos de autonomia frente à colonização, ao mesmo tempo que rearticulava suas continuidades. Apesar de certa dissonância entre as elites políticas e intelectuais, parte significativa dos homens que as constituíam se relacionou com o passado (ainda que não de forma unânime) buscando junto dele algum “conforto” que adviria da “civilização” europeia, do tipo homem branco, a organizar e determinar as tensões do encontro forçado entre povos diferentes. Tudo isso lançando mão de estratégias historiográficas que, por vezes, dissimulavam essa escolha, querendo também ultrapassá-la. Como nos alerta Valdei, o Brasil é hoje parte dos desejos materializados desses homens e suas narrativas, daí a importância de conhecê-las exatamente porque se presentificam e determinam o nosso cotidiano. Mas este projeto que atualizou a colonização e a escravidão, fazendo-as ecoar no tempo, nunca deixou de ser profundamente questionado. Afinal, essas narrativas ávidas por assegurar a sensação de que o futuro do Brasil estava sob controle, o faziam exatamente em nome de uma dúvida que não cessa de nos assombrar: teria a Independência do Brasil se consolidado? Poderia algum dia realizar-se? A resposta a essas questões é marcada por uma impossibilidade constitutiva da própria experiência histórica e das formas de narrá-la: que experiência chega de fato a “terminar” se o tempo é uma performance? No entanto, no caso da Independência, a permanência dessas perguntas ao longo dos últimos 200 anos está diretamente associada ao peso de passados e futuros violentamente suprimidos por um projeto homogêneo de nação centrada nos gestos, imaginários, valores e na escrita do homem-branco-colonizador. Essa concepção de país, cuja conservação e atualização parece não cessar, tem impossibilitado e descontinuado muitos outros brasis e outros modos de

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narrá-los. Mas esses mesmos brasis não cansam de reivindicar sua presença, de questionar o legado colonial e de apresentar futuros possíveis pautados pelas diferenças que nos atravessam. São eles que têm garantido a contestação da Independência como experiência distanciada e encerrada em si mesma. A condição de possibilidade desse conflito reside na mobilidade da história, na pulsão (ora mais intensa, ora menos) para outras realidades que temos a obrigação de desejar e promover em respeito àqueles futuros menos hierárquicos que não puderam vir-a-ser. Assim, se somos o resultado dos desejos daqueles homens oitocentistas e suas narrativas, também somos mais e além. Outras experiências e expectativas nos constituem, ainda que nem sempre possamos ver as múltiplas e infinitas camadas do tempo silenciadas ou ainda-não-descobertas. Essa perspectiva tem impacto decisivo para a história da historiografia e para a disciplina história em geral que não podemos ignorar. Isso me ensinou o autor deste livro ao longo de 13 anos de intenso diálogo na condição de orientador e amigo. A história da historiografia não se refere apenas à reflexão e à reafirmação da ciência histórica e de seus protocolos constitutivos. Não é ocasional que a experiência da Independência coincida com a urgência por uma escrita do Brasil, o que significa dizer que o campo da história da historiografia “nasce” aqui como um espaço continuado de disputas, questionamentos e reorganização permanente das estruturas históricas. À história da historiografia cabe o exercício de colocar em evidência os conteúdos, os imaginários históricos, suas respectivas formas e limites, dando condições de possibilidade para um questionamento ininterrupto das estruturas hierárquicas e opressoras. Assim, além do caráter epistemológico, essa disputa se realiza também no nível ético-político, pois investiga os limites do conhecimento histórico, suas potencialidades e lacunas. É também de abrangência ontológica, uma vez que precisa investigar e tornar audível o que torna possível as múltiplas existências. A história da historiografia e a Independência compartilham a impossibilidade de realizar-se porque são performances marcadas pela presença e pela ausência de passados e de futuros que nos forçam a descobri-los, disputá-los e reescrevê-los sempre.

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