História da Maconha no Brasil

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)ean Marcel Carvalho França

História damaconha no Brasil

7

TRÊS ESTRELAS

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rror5 lít{ Estrclas-selo editoriâldâ Publifolha Editora Ltda.

Sumário

ti(1,!\ (,\ (li11 iro\ rcservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada .rr tr'.rrrsrnititla tlc ncnhuma íorma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por .\riro(Lrl\rt iftrhâ Editora Ltdâ.. detentorâdoselo edito al TÉs Estrelâs. r()R Alcino Lcite Neto

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(x)Rr)r:N^(Ào

Ritâ Pâlmeirâ DÉ PRODUçÀO GRÁFrCÀ

Mariana Metidieri

pR()r)U(Ào cRÁFrcA lris Polâchini r

Paulo Bezzera

^r, DÁ cÂPA Underworld/Shutterstock

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Mrolo Mayumi okuyema r,,)rroR^çÂo ELETRôNrC^ Jussara Fino IRril'ÂRAçÂo BeatrizdeFreitasMorcira frr(),!:To GRÁFrco Do

xr.:vrsÀo Luciana Araujo e Carmen T.

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S. Costa

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íNDrcE REMrsslvo Câú Mattos

Dâdos Intcrnacionâisde Câtalogação na Publicaçâo lcrp) (C,imara Brasileira do Li\1o, sB Brâsil)

As histórias de uma planta O vício dos pretos?

48 Diambismo, um flagelo social 72 O canabismo dos hippies e dos excluídos ro6 Canabismo, um hábito economicamente viável

liaúça, )ean Marcel cârvalho Httória da macoíha noBrâsil/rean MarcelCârvalho Frânça Sãô Peúlô: Tês tstÍelâs. 2or8. r"

reimp., da r. ed. de

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rolt.

928-8!68491o6-9

Canilbir ,. Maconha sociaij '. ^spectos l. Maconha - Bnsil - HistóÍia a. Maconha Efêito fisiologi.o

cDDJór.29ro98r indiccs para caráloso sislemárico: r.

Maconhar ,{spEtos sociais: Brasil: HisÍó.ia

Este

livro

segtre âs regrâs do Acordo

ortográfico

cm vigor desde ro de janeiro de 2oo9.

IRÉS

7 ESTRELAS It.nlii) d. l.inrdra. aor, 6'andar i^1. r,rr(,: e(n),S,oPâulo, sP Ll.: (rl) r:2.r-rn6/r'87l,re7

cdÍofu n\rIl.rírtiil(mrcstrclas.com.br

wwwr,lir,nnre\rrüs.eoD.br

,62.29ro98r

de Língua Portuguesâ (r99o),

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Notas

ru7 Bibliografia r4s Índice remissivo

rsr

Sobre o autor

As histórias de uma planta l.i pclo menos três his_tórias possíveis das relaçõcs cntre as socie-

I

,l.rrlcs hunranas e o cânhamo, uma planta, provavelmente de

ilcm asiática, que o renomado botânico sueco Lineu batizou, , rr r;53, de Cannabts sativa. A mais longa, abrangente e mais bem or

rrncntada

,1,,r ,

,rrro íonte

dúvida, aquela que diz respeito aos seus usos

de fibras para a confecção de tecidos e, postcriormente,

prrltir do sécu1o I a.C., para a produção de papel. Das civilizar's cluc floresceram na Ásia àqr,relas resultantes da colonização

,r ,

é, sem

,

,l.r  rlórica, passando pelas que prosperaram na Europa, na

.,

r

Áfri-

(

na Oceania, praticamente todas, em determinada altura de

r.rs

cxistências, utilizaram, por vezes em grande quantidade, as

(,r

lrlrr'.rs do cânhamo para, entre tantas outras coisas, rrestir as suas 1r,

,ptrlaçÕes, equipar os seus navios com cordas e velas ou oferecer

ros irrtcressados Lrm suporte prático e resistente parâ o registro de

rrrrs cxperiências.r lr cla China que vêm os rastros mais antigos do seu uso comcr

Írl)rir, rastros que remontam ao

rlrrt lrojc íaz parte de Taiwan ;,.r

r

tir

clc

neolítico

cncontrados em local

e passam a scr bastante comuns a

4ooo a.C. Por volta de zjoo a.C., escritos da região já des-

t,r( iurr, cntre as riquezas que fazem a prosperidade de um Íeino, as '' r'rr s1:rs ,1,

plantações de cânhamo".2 Um pouco mais tarde, por volta

, secLrlo t a.C., ainda na China, descobre-se

;,,rrrr rr

Íibra do cânhamo:

a

confecção de

outra útil aplicação

papcl

um suporte leve,

7

rcsistcntc c barato para a escrita. Os indianos cedo também começrrrarrr a scrvir-se

d

as frbras da Cannabis, ainda que outros usos da

PIanta, sobretudo os inebriantes, tenham predominado entre eles.

Dc qualquer modo, a importância do cânhamo na cultura hindu ó

significativa

-

rezam os livros sagrados indianos que o cânhâmo

estava presente, com o próprio Shiva, no início do mundo

-, assim

como

dos seus

a

atuação dos indianos na disseminação da planta

e

usos no Oriente Médio, na África e Europa.

A Europa, a propósito, tomou contato com o cânhamo por pelos menos duas vias: primeiramente, através dos citas, grandes

usuários da Cannabis, que levaram a planta para a Grécia e para a Rússia

-

uma exportadora de volumes consideráveis de fibras de

cânhamo para o restante do continente até o início do século xx; e,

mais tarde, pelas mãos dos árabes, que a introduziram na Penín-

sula lbérica.r)á o grego Pedânio Dioscórdio, em Sobre

(zoo a.C.), comentâva que

a

planta era "muito útil

à

m atinamédica

vida humana,

pois dela se faziam cordas fortíssimas"a a partir de suas fibras. Os romanos, aindaque nãoa cultivassem em uma escala assinalável-a planta nunca figurou entre as suas principais produções agícolas

importavam-na em quantidade

e

-,

utilizavam-na cotidianamente.

Daí, por certo, as inúmeras referências à planta e às virtudes de suas fibras espalhadas pelas obras dos autores latinos

-

Leão

Afri-

cano, Aulio Gélio, Galeno, Catão, Lucílio, Gaio Catulo, Plutarco e

muitos outros. Plínio, o Velho, em Históría natural (sêctslo r d.C.), um dos livros mais influentes entre os sábios europeus interessados nas ciências naturais durante pelo menos catorze séculos,

menciona o cânhamo em diversas passagens, em uma das quais explica ao leitor que se trata de uma planta "extremâmente útil para

a

fabricação de cordas", que deveria "ser colhida no equinócio

de outono e secada ao yento, ao sol ou na fumaça".t Foi, no entanto,

na Península lbérica e por meio dos árabes que teve início na Europa, porvolta do século xrr, na região de Alicante, na Espanha rnourisca, um dos usos mais importantes da fibra do cânhamo no c()ntinente: a produção de papel. Da Europa e da África, que nunca mais deixaram de

utilizar do cânhamo, a planta seguiu, na esteirâ da expansão marítima europeia, para a América e para as terras do pací6co. A própria expansão dependeu em grande medida das fibras e da as fibras

rnassa de cânhamo,

muito utilizadas tanto na produção de velas c de cordas para navios como na calafetação das embarcações. Ao norte do continente americano, os ingleses começaram a plantáJo nas décadas iniciais do século xvrr, sob o governo de Thomas Dale, e os norte-americanos mantiveram o seu cultivo legal, contando com apoio do Estado, até pelo menos o final da Segunda Guerra Mundial (1945), como parte de um esforço

nacional para equipar a Marinha com cordas e outros supri_ rnentos derivados da fibra do cânhamo. E assim ocorreu mes_ rno depois de o rsr ter iniciado, a partir da segunda década do século xx, uma campanha sistemática co4tra o- plantio e o uso do cânhamo em todo o país.ó A Espanha tentou introduzira cultura do cânhamo nas Índias Ocidentais desde o século xvr, mas sem muito êxito, não obstantc a crescente demanda da Marinha do reino por suas fibras. por volta da segunda metade do século xvlu, Madri chegou mesmo a enviar

vários especialistas no cultivo e na utilização da planta para as possessões da América, com a missão de ensinar os habi_ lantes lôcais a cultivar e preparar o cânhamo para os mercados colonial, espanhol

e

internacional; providência seguida da reco_

rucrrdação de que os üce-reis incentivassem a suâ cultura por toda ir Nova Espanha. Em 1293, a planta desembarcou em Cuba, mas

It 9

l

!('r'()u Pouc() interesse; no mesmo período, o cânhamo foi intro(luzid() rra Cuatemala; no entanto, aí também não alcançou uma

cnorme dificuldade em conseguir sementes, o que apenas pôde

pr()dução significativa. Na região do Panamá, tentou-se introduzir

carioca. O governador,logo que pôs as mãos nas sementes fran-

o scu cultivo em maior escala no início do século xlx, mas, uma

cesas, mandou semeáJas e, ainda que os pássaros tenham

comido

vez mais, as iniciativas não vingaram. O mesmo ocorreu no Peru,

llgumas espigas,

e

cm período anterior, que por muito tempo continuou a importar

rrandadas "para a Ilha de Santa Catarina, com ordem para que

a

fibra do Chile, onde o cultivo do cânhamo realmente prosperou â

scr contornado graças à passagem de um navio francês pelo

sc plantassem".e

"as que puderam escapar

Infelizmente,

multiplicaram"

porto

foram

as intempéries, a deterioração das

as demandas dos

scmentes, a inépcia dos colonos e as vicissitudes políticas impe-

movimentados portos do país e ainda exportar a fibra para as

tliram que a cultura prosperasse. Uma década mais tarde, em

regiões vizinhas. O quadro, depois dos processos de independên-

r782, o sucessor do marquês, o vice-rei

cia das possessões espanholas na América, nas primeiras décadas

c Souza,

ponto de permitir aos produtores locais suprir

do século xtx, não

se

alterou substantivamentc;

a

parca produção

perdurou até o início do século xx, quando acabou por praticamente desaparecer na região7-

a

importou do Chile z3 alqueires de sementes e também ;rs distribuiu entre os agricultores de Santa Catarina. o pouco conhecimento que tinham da cultura da planta

Na porção portuguesa da América, no Brasil, as notícias mais

rrruito a desejar.lo Dom Luiz deVasconcelos

frequentes sobre o plantio e uso da fibra do cânhamo, em espe-

-

e a má qualidade

tlas sementes, porém, fizeram com que os resultados deixassem

produção Iegal, bem entendido.

cial para as necessidades da Marinha

dom Luiz de Vasconcelos

uso amplamente conhe-

e

Souza, porém, não se deu

. ido e. apesar dos fracassos anteriores.

porven-

investiu em um empreen-

cido em Portugal, que do século xvlII até pelo menos 19+t editou

ilirnento ousado: a criaç ão da Real Feitoria do Linho Cânhamo

manuais agrícolas ensinando a plantar o cânhamo

l

a

ea

extrair dele

melhorfibras-, começam a aparecer em meados do século xvrtr.

Seu uso nos estaleiros locais é anterior: estrangeiros que passaram

rnais bem planejada tentativa de introduzir a cultura da planta

crn larga escala no país durante o período colonial. Instalada t

ialmente, em

1783, na região da

ini-

atual eidade de Pelotas e, mais

e

tirlde, em q88, em razáo da produtiüdade das terras e do melhor

velas de cânhamo nas cmbarcaçôes portuguesâs. É. no entanto.

cscoamento da produção, transferida para a região de São Leopol-

no descnrolar do século seguinte que o cultivo da planta ganha

rkr, a íeitoria chegou a contar com

impulso na Colônia. Em q7z, o vice-rei, marquês do Lavradio, tentou incentivar a sua cultura no Sul do Brasil, mandando para

l)llntel - número considerado pelo vice-rci insuficiente pâra os tllbalhos que devia realizar - e permaneceu produtiva até depois ,lrr proclamação da Independôncia. Vasconcelos e Souza, em um

pelos portos brasileiros no século

xvr

referem o uso de cordas

lá um entendido em seu cultivo e umas tantas sacas de sementes.

Em correspondência enviada à metrópole, datada de r779,omaÍ-

lo

a

rrrro relatório que encaminhou a Lisboa em r784, explica

à

admi-

intro-

rislração metropolitana que estava enfrentando inúmeras adver-

cultura do cânhamo no país, explica que havia, então, uma

sirlatlcs para implantar a empresa, mas que, em agosto de 1783,

quês, sobre os problemas enfrentados sete anos antes para

duzir

k

ünte casais de escravos em seu

,l

cuviara par.l il rcgjão

ulr

inspek)r, conl Ícrrantcntas c sclllclttcs,

"o qual no dia 9 de outubro deu princípio por conta de

Sr-ra

Majes

irl( slirlll, tlcsarltnjos

Iro sistcnlil tcproclutivo

rr.rlriria c lantos ontros. Um pouco

1.r.rais

fctlinino,

tarde, no primeiro século

cra cristà, Hua Tuo, conhecido como o pioneiro da cirurgia chi-

tadc à referida Feitoria".rl Por volta de r796, o cmpreendimento

t

persistia, mas a duras penas. O abandono era tanto quc urrr cstran-

ncsJ, utilizou Llm composto da planta, misturado ao vinho, para

geiro, de passagcm pelo Rio de Janeiro no ocaso do sóculo xvtlt, ao comentâr uma pintura que virâ nas paredes do Passeio Público

.Ir( s(csiar pacicntes durante suas experiências ciúrgicas.

da cidade, "a vista de uma plantação de cânhamo e da manufatu-

(

ra de cordas", destac