A estrutura psicológica do fascimo
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Porges Bataille estrutura psicológica fascismo

Georges Bataille estrutura psicológica

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do fascismo

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Sumário

parte homogênea da sociedade

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Dissociações, críticas da homogeneidade social e do

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Estado....... 21

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existência social heterogênea

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dualismo fundamental do mundo

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heterogênea: A O

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concentração tendencial.......1111.0. 595 exército e os chefes do exército ....... 61

AAA AAA 69 mA fascismo enquanto forma soberana

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85

89

Depois de ter afirmado que em última instância a infraestrutura de uma sociedade determina ou con

diciona a superestrutura, o marxismo não tentou qualquer elucidação geral das modalidades próprias à formação da sociedade religiosa e política. Admitiu igualmente a possibilidade de reações da superestrutura, mas aí também não passou da afirmação à análise científica. A propósito do fascismo, este artigo simboliza uma tentativa de representação ri£orosa (senão completa) da superestrutura social ede suas relações com a infraestrutura econômica. Trata-se, entretanto, apenas de um fragmento pertencente a um conjunto relativamente importante, o que explica um grande número de lacunas, em especial a ausência de toda consideração sobre o método;* aqui foi até mesmo necessário renunciar a dar a justificação geral de um novo ponto de vista e de limitar-se à exposição dos fatos. Por outro lado, a simples exposição da estrutura do fascismo necessitou, como introdução, de uma descrição abrangente da estrutura social.

Seria redundante dizer que a análise da superestrutura supõe o desenvolvimento preliminar daquela da infraestrutura, estudada pelo marxismo. Está aí evidentemente o principal defeito desta exposição, que não deixará de surpreender e de chocar as pessoas que não estão familiarizadas com a sociologia francesa, nem com filosofia alemã moderna (fenomenologia), nem com a psicanálise. A título indicativo é, entretanto, possível insistir no fato de que as descrições seguintes se referem a estados vividos e de que o método psicológico adotado exclui qualquer recurso à abstração. 1,

9

A

parte homogênea da sociedade

da sociedade deve comeacessível mais ao conhecimento çar pela parte fundamental a —, cujo caaparentemente parte

A descrição psicológica



ráter significativo

tendencial. Homogeneidade significa aqui a comensurabilidade dos elementos e a consciência desta comensurabilidade (as relações humanas podem ser mantidas pela redução a regras fixas baseadas na consciência da identidade possível de pessoas e de situações definidas; a princípio, qualquer violência é excluída do curso da existência assim implicado). A base da homogeneidade social é a produção.? A sociedade homogênea é a sociedade produtiva, quer dizer, a sociedade útil. Todo elemento inútil é excluído de sua parte homogênea, mas não da sociedade total. Nessa parte, cada elemento deve ser útil a outro sem que jamais a atividade homogênea possa atingir a forma da atividade váé a homogeneidade*

Nesta exposição, as palavras homogêneo, heterogêneo e seus derivados estão sublinhados sempre que tomados em sentido particular. 2, As formas mais completas e expressivas da homogeneidade social são as ciências e as técnicas. As leis fundadas pelas ciências estabelecem, entre os diferentes elementos de um mundo elaborado e mensurável, relações de identidade. Quanto às técnicas, que servem de transição entre a produção e as ciências, é em razão mesmo da homogeneidade dos produtos e dos meios que elas se opõem, nas civilizações pouco desenvolvidas, às práticas da religião e da magia (cf. Hubert e Mauss, Esquisse d'une théorie générale de la magie, em Année Sociologique, vii, 1902-1903, p. 15). 21.

lida em si. Uma atividade útil tem sempre uma medida comum com outra atividade útil, mas não

com

uma

atividade por si.

medida comum, fundamento da homogeneidade social e da atividade que dela depende, é o dinheiro, ou seja, uma equivalência cifrável dos diferentes produtos da atividade coletiva. O A

dinheiro serve para mensurar todo trabalho e faz do homem uma função de produtos mensuráveis. Cada homem, segundo o julgamento da sociedade homogênea, vale em razão do que produz, portanto, cessa de ser uma existência por si: ele não é mais do que uma função, ordenada no interior de limites mensuráveis, da produção coletiva (que constitui uma existência para outra coisa que não por si). Mas o indivíduo homogêneo não é verdadeiramente função de seus produtos pessoais a não ser na produção artesanal, quando os meios de produção são, em termos relativos, pouco custosos e podem ser possuídos pelo artesão. Na civilização industrial, o produtor se distingue do possuidor dos meios de produção, e é este último que se apropria dos produtos: consequentemente, na sociedade moderna, ele é quem é função dos produtos; é ele, e não o produtor, que funda a homogeneidade social.

Assim, na ordem atual das coisas, a parte homogênea da sociedade é formada pelos homens dique possuem os meios de produção ou o É nheiro destinado a sua manutenção e compra. na classe dita capitalista ou burguesa, exatamente na parte média desta classe, que se opera, em suma, a redução tendencial do caráter humano a uma entidade abstrata e intercambiável, reflexo das coisas homogêneas possuídas. Esta redução se estende em seguida, tanto quanto possível, às classes geralmente ditas médias, que se beneficiam de partes apreciadas do

lucro. Mas o proletariado operário permanece em sua maioria irredutível. A posição que ocupa em relação à atividade homogênea é dupla: esta o exclui não quanto ao trabalho, mas em relação ao lucro. Enquanto agentes da produção, os operários entram nos quadros da organização social, mas, a princípio, a redução homogênea não toca além de sua atividade assalariada; eles estão integrados na homogeneidade psicológica no que diz respeito ao seu comportamento profissional, mas não enquanto homens. Fora da usina, e mesmo fora das operações técnicas, um operário é, em relação a uma pessoa homogênea (patrão, burocrata etc.), um estrangeiro, um homem de outra natureza, de uma natureza não reduzida, não submissa.

O

Estado

No período contemporâneo, a homogeneidade social está ligada à classe burguesa por laços essenciais: assim, a concepção marxista se encontra

mantida quando o Estado é representado a serviço da homogeneidade ameaçada. Inicialmente, a homogeneidade social é uma forma precária, à mercê da violência e até de todo dissenso interno. Ela se forma espontaneamente no jogo da organização produtiva, mas deve ser protegida de modo incansável contra os diversos elementos agitados que não se aproveitam da produção, ou se aproveitam insuficientemente segundo seu desejo, ou, simplesmente, que não podem suportar os freios que a homogeneidade põe à agitação. Nessas condições, a salvaguarda da homogeneidade deve ser encontrada recorrendo-se aos elementos imperativos capazes de aniquilar ou reduzir a uma regra as diferentes forças desordenadas. O Estado não é ele próprio um desses elementos imperativos, pois se distingue dos reis, dos chefes de exército ou de nações, mas é o resultado das modificações sofridas por uma parte da sociedade homogênea em contato com tais elementos. Essa parte constitui uma formação intermediária entre as classes homogêneas e as instâncias soberanas às quais ela deve emprestar seu caráter obrigatório, mas que não exercem sua soberania

senão por seu intermédio. Apenas a respeito dessas últimas instâncias será possível vislumbrar de qual maneira esse caráter obrigatório é transfetido para uma formação que não constitui, entretanto, uma existência válida em si (heterogênea), mas puramente uma atividade cuja utilidade em relação a uma outra parte é sempre manifesta. Em termos práticos, a função do Estado consiste em um duplo jogo de autoridade e de adap-

tação. A redução das divergências por compensação na prática parlamentar indica toda a complexidade possível da atividade interna da adaptação necessária à homogeneidade. No entanto, contra as forças inadmissíveis, o Estado decide pela autoridade estrita. Sendo o Estado democrático ou despótico, a tendência que prevalece é a adaptação ou a autoridade. Na democracia, o Estado tira grande parte da sua força da homogeneidade espontânea, que ele apenas faz fixar e constituir como uma regra. O princípio da soberania

- a nação -, que lhe dá ao

mesmo tempo seu fim e sua força, se encontra então diminuído pelo fato de os indivíduos isolados considerarem a si mesmos, cada vez mais, como os fins com relação ao Estado, que existiria para eles antes de existir para a nação. E, nesse caso, a

vida pessoal se distingue da existência homogênea enquanto valor que se dá como incomparável.

Dissociações, críticas da homogeneidade social e do Estado

Munmo em cireunstâncias difíceis, o Estado é Iuliciente para manter na impotência as forças hieterogêncas, que não cedem não ser sob sua muerção. Mas ele pode sucumbir a uma disso-

a

ningho

interna por parte da sociedade que não

tlumina, senão pela forma constritiva. Itundamentalmente, a homogeneidade social depende da homogeneidade (no sentido geral da palavra) do sistema produtivo. Cada contradiQho nascente do desenvolvimento da vida econô-

arrasta, assim, uma dissociação tendencial existência social homogênea. Essa tendência à dissociação se exerce da maneira mais complexa, *obre todos os planos e em todos os sentidos. Mica

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Mas não atinge formas agudas e perigosas senão à medida que uma parte apreciável da massa de indivíduos homogêneos deixa de ter interesse conservação da forma de homogeneidade existente (não porque esta é homogênea, mas, pelo contrário, porque está em vias de perder seu caráter próprio). Essa fração da sociedade associase espontaneamente, então, às forças heterogêNa

neas já compostas e confunde-se com elas. Desse modo, as circunstâncias econômicas agem diretamente sobre elementos homogêneos que elas mesmas desintegram. Apesar disso, esta

desintegração representa somente a forma negativa da efervescência social: os elementos dis-

sociados não agem antes de terem sofrido uma alteração completa que caracteriza o modo positivo desta efervescência. A partir do momento em que eles se juntam às formações heterogêneas já existentes (em estado difuso ou organizado), tomam-lhes emprestado um caráter novo, o caráter positivo geral da heterogeneidade. Ademais, a heterogeneidade social não existe em estado informe e desorientado: em vez disso, tende de maneira constante a uma estrutura definida e, no momento em que elementos sociais passam para a parte heterogênea, sua ação encontra-se ainda condicionada pela estrutura atual desta parte. Assim, o modo de solução de contradições

econômicas agudas depende ao mesmo tempo do estado histórico e das leis gerais da região social heterogênea, na qual a efervescência toma sua forma positiva; depende, em particular, das relações estabelecidas entre as diversas formações dessa região no momento em que a sociedade homogênea se encontra materialmente dissociada. O estudo da homogeneidade e de suas condições de existência conduz, assim, ao estudo essencial da heterogeneidade. Além disso, ele constitui a primeira parte deste estudo, pois a primeira determinação da heterogeneidade definida como não homogênea supõe o conhecimento da homogeneidade que a delimita por exclusão.

A

existência social heterogênea

Todo o problema da psicologia social repousa precisamente sobre a necessidade de que a análise incida em especial sobre uma forma que não é somente difícil de estudar, mas cuja própria existência não foi ainda objeto de uma determinação positiva.

próprio termo heterogêneo indica que se trata de elementos impossíveis de assimilar, e esta impossibilidade, que toca no cerne da assimilação social, tange também a assimilação científica. Esses dois tipos de assimilação têm uma estrutura: a ciência tem por objeto fundar a homogeneidade dos fenômenos; ela é, em certo sentido, uma das funções eminentes da homogeneidade. Assim, os elementos heterogêneos que são excluídos por esta última encontram-se igualmente excluídos do campo de atenção científica: por princípio, a ciência não pode conhecer elementos heterogêneos enquanto tais. Obrigada a constatar a existência de fatos irredutíveis - de Uma natureza tão incompatível com a sua homoBgeneidade quanto à dos criminosos natos, por exemplo, com a ordem social - ela se encontra Privada de toda satisfação funcional (explorada da mesma maneira que um operário em uma fábrica capitalista, utilizado sem tomar parte no lucro). À ciência, com efeito, não é uma entidade absO



| |

de homens vivendo as nepliições inerentes nos processos científicos. Nessas condições, os elementos heterogêneos,

ao menos enquanto tais, encontram-se submetidos a uma verdadeira censura: cada vez que poderiam ser o objeto de uma observação metódica, a satisfação funcional falta e, sem tal circunstância excepcional - a interferência de uma satisfação cuja origem é completamente outra -, não podem ser mantidos no campo de atenção. A exclusão dos elementos heterogêneos fora do domínio homogêneo da consciência lembra, assim, de modo formal, aquela dos elementos descritos (pela psicanálise) como inconscientes, que a censura exclui do eu consciente. As dificuldades que se opõem à revelação das formas inconscientes da existência são da mesma ordem que aquelas que se opõem ao conhecimento das formas heterogêneas. Como se verá em seguida, certos caracteres são, portanto, comuns a esses dois tipos de formas, e, sem que seja possível fornecer imediatamente mais precisões sobre este ponto, parece que o inconsciente deva ser considerado como um dos aspectos do heterogêneo. Se admitida essa concepção, dado o que é conhecido sobre o recalcado, é tanto mais fácil compreender que as incursões feitas ocasional28

mente no domínio heterogênco nho tenham sido

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tência positiva e cle amente separada, l! de importância secundária indicar aqui que, 4 lim de contornar as dificuldades internas que nonbam ser vislumbradas, é necessário definir os limites das tendências inerentes à ciência e de constituir um conhecimento da diferença não explicável, que supõe o acesso imediato da Inteligência a uma matéria anterior à redução intelectual. Provisoriamente, é suficiente expor DR fatos conforme a sua natureza e

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introduzir, definir o termo heterogêneo, as conniderações seguintes:

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1.

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Da mesma maneira como mana e tabu deSignam em sociologia religiosa formas restritas às aplicações particulares de

uma forma mais geral - o sagrado o sagrado -, pode ser considerado uma forma restrita com relação ao heterogêneo. Mana designa uma força misteriosa e impessoal da qual dispõem certos indivíduos,

reis e

feiticeiros. Tabu indica a proibição social de contato, aplicando-se, como

por exemplo, aos cadáveres ou às mulheres durante o período menstrual. Esses aspectos da vida heterogênea são fáceis de 29

trata: é constantemente redutível a um conjunto de homens vivendo as aspirações inerentes aos processos científicos. Nessas condições, os elementos heterogêneos, ao menos enquanto tais, encontram-se submetidos a uma verdadeira censura: cada vez que poderiam ser o objeto de uma observação metódica, a satisfação funcional falta e, sem tal circunstância excepcional - a interferência de uma satisfação cuja origem é completamente outra -, não podem ser mantidos no campo de atenção. A exclusão dos elementos heterogêneos fora do domínio homogêneo da consciência lembra, assim, de modo formal, aquela dos elementos descritos (pela psicanálise) como inconscientes, que a censura exclui do eu consciente. As dificuldades que se opõem à revelação das formas inconscientes da existência são da mesma ordem que aquelas que se opõem ao conhecimento das formas heterogêneas. Como se verá em seguida, certos caracteres são, portanto, comuns a esses dois tipos de formas, e, sem que seja possível fornecer imediatamente mais precisões sobre este ponto, parece que o inconsciente deva ser considerado como um dos aspectos do heterogêneo. Se admitida essa concepção, dado o que é conhecido sobre o recalcado, é tanto mais fácil compreender que as incursões feitas ocasional-

mente no domínio heterogêneo não tenham sido ainda coordenadas de modo suficiente para cheaté mesmo à simples revelação de sua exisgar tência positiva e claramente separada. É de importância secundária indicar aqui que, fim de contornar as dificuldades internas que a acabam de ser vislumbradas, é necessário definir os limites das tendências inerentes à ciência e de constituir um conhecimento da diferença não explicável, que supõe o acesso imediato da inteligência a uma matéria anterior à redução intelectual. Provisoriamente, é suficiente expor os fatos conforme a sua natureza e introduzir, com vistas a definir o termo heterogêneo, as considerações seguintes: 1.

Da mesma maneira como mana e tabu designam em sociologia religiosa formas restritas às aplicações particulares de uma

forma mais geral - o sagrado -, o sagrado pode ser considerado uma forma restrita com relação ao heterogêneo.

Mana designa uma força misteriosa e impessoal da qual dispõem certos indivíduos, como e feiticeiros. Tabu indica a proibição social de contato, aplicando-se, por

reis

exemplo, aos cadáveres ou às mulheres durante o período menstrual. Esses aspectos da vida heterogênea são fáceis de

análogas àquelas que provocam as coisas sagradas revelam aquelas das coisas hete-

definir, em razão dos fatos precisos e limitados aos quais se referem. Por outro lado, uma compreensão explícita do sa-

rogêneas que não são vistas como sagradas, propriamente falando. Essas reações consistem em que a coisa heterogênea se supõe

grado, cujo domínio de aplicação é rela-

tivamente vasto, apresenta dificuldades notáveis. Durkheim viu-se na impossibilidade de apresentar uma definição científica positiva: contentou-se em caracterizar de forma negativa o mundo sagrado como absolutamente heterogêneo em relação ao mundo profano.* Entretanto, é possível admitir que o sagrado é conhecido positivamente, ao menos de maneira implícita (a palavra, representada em todas as línguas, sendo de uso corrente, supõe uma significação percebida pelo conjunto dos homens). Este conhecimento implícito de um valor referindo-se ao domínio heterogêneo permite comunicar a sua descrição um caráter vago, mas positivo. Ora, pode-se dizer que parte importante do mundo heterogêneo é constituída pelo mundo sagrado e que reações

Les Formas élémentaires de la vie religieuse, 1912, P.53Durkheim chegou a identificar, depois de sua análise, o sagrado de com o social, mas esta identificação necessita da introdução uma hipótese e, qualquer que seja seu alcance, não tem o valor de uma definição imediatamente significativa (ela representa, assim, a tendência da ciência propondo uma representação homogênea a fim de escapar da presença sensível de elementos pro-

imbuída de uma força desconhecida e perigosa (lembrando o mana polinésio) e que certa proibição social de contato (tabu) a separa do mundo homogêneo ou vulgar (que corresponde ao mundo profano da oposição estritamente religiosa);

2.

Fora das coisas sagradas propriamente ditas, que constituem o domínio comum da

religião ou da magia, o mundo heterogêneo compreende o conjunto dos resultados do dispêndio improdutivo? (as coisas sagradas formam, elas mesmas, uma parte desse conjunto). Significa dizer: tudo o que a sociedade homogênea rejeita, seja como de-

jeto, seja como valor superior transcendente. São os produtos de excreção do certas matérias análogas corpo humano (lixos, vermes etc.); as partes do corpo, as pessoas, as palavras ou os atos tendo um

e

1.

fundamente heterogêneos).

*

de dépense”" in La Critique Sociale, Jan. 1933. Adotamos a tradução do conceito batailliano dépense como "dispêndio" seguindo a escolha que julgamos acertada de Júlio Castafon Guimarães em A parte maldita, precedida de 'A noção de dispêndio” (São Paulo, Autêntica, 2013). [n. t.)

2. Cf: G. Bataille, “La notion Ni

7,

al) dl |

|

valor erótico sugestivo; os diversos processos inconscientes, como os sonhos e as neuroses; os inúmeros elementos ou formas sociais que a parte homogênea é impotente para assimilar: as multidões [foules], as classes guerreiras, aristocráticas e miseráveis, os diferentes tipos de indivíduos violentos ou, pelo menos, que se recusam à regra (loucos, líderes agitadores, poetas etc.);

|

.

Os elementos heterogêneos provocam reações afetivas de intensidade variável dependendo das pessoas, e é possível supor que o objeto de toda reação afetiva é neces-

sariamente heterogêneo (senão geralmente, pelo menos em relação ao sujeito). Há tanto atração quanto repulsão, e todo objeto de repulsão pode tornar-se em certas circunstâncias objeto de atração, e viceVersa; A violência, a

desmesura, o delírio e a loucura caracterizam, sob graus diversos, os elementos heterogêneos: ativos, enquanto pessoas ou multidões [foules], produzem-se rompendo as leis da homogeneidade social. Esta característica não se aplica de uma maneira apropriada aos

objetos inertes, todavia, estes últimos apresentam certa conformidade com os sentimentos extremos (é possível falar da natureza violenta e desmedida de um cadáver em decomposição); .

realidade dos elementos heterogêneos não é da mesma ordem que a dos elementos homogêneos. A realidade homogênea se apresenta com o aspecto abstrato e neutro dos objetos estritamente definidos e identificados (ela é, no fundo, realidade específica dos objetos sólidos). A realidade heterogênea é a da força e do choque. Apresenta-se como uma carga, um valor, passando de um objeto ao outro de modo mais ou menos arbitrário, quase como se a mudança acontecesse não no mundo dos objetos, mas somente no dos julgamentos do sujeito. Esse último aspecto não significa, entretanto, que os fatos observados devam ser vistos como subjetivos:

A

assim, a ação dos objetos da atividade erótica é manifestamente fundada na sua natureza objetiva. Todavia, de modo desconcertante, o sujeito tem a possibilidade de deslocar o valor excitante de um elemento

sobre um outro análogo ou vizinho. Na realidade heterogênea, os símbolos carregados de valor afetivo têm, assim, a mesma importância que os elementos fundamentais, e a parte pode ter o mesmo valor que o todo. Com a estrutura do conhecimento de uma realidade homogênea sendo aquela da ciência, é fácil constatar que a de uma realidade heterogênea enquanto tal se encontra no pensamento místico dos primitivos e nas representações do sonho: é idêntica à estrutura do inconsciente;* existência heterogênea pode ser representada em relação com a vida corrente (cotidiana) como totalmente outra, como incomensurável, carregando essas palavras com o valor positivo que elas têm na experiência afetiva vivida.

6. Em resumo, a

Exemplos de elementos heterogêneos agora referirmos essas proposições aos elementos reais, os líderes fascistas pertencem incontestavelmente à existência heterogênea.

Se

3. Parece que

os deslocamentos se produzem nas mesmas condições que os reflexos condicionados de Pavlov. 4 Sobre o pensamento dos primitivos, cf. Lévy-Bruhl, La Mentalité Primitive; Cassirer, Das Mythische Denken; sobre o inconsciente, cf. Freud, La Science des Rêves.

Opostos aos políticos democratas, que representam nos diferentes países a monotonia inerente à sociedade homogênea, Mussolini ou Hitler logo aparecem em projeção como totalmente outros.

Quaisquer que sejam os sentimentos provocados por sua existência atual como agentes políticos da evolução, é impossível não ter consciência da força que os situa acima dos homens, dos partidos e mesmo das leis: força que rompe O curso regular das coisas, a homogeneidade tranquila, mas fastidiosa e impotente para se manter por ela mesma (o fato de que a legalidade é rompida nada mais é que o signo mais evidente da natureza transcendente, heterogênea, da ação fascista). Considerada não quanto à sua ação exterior, mas quanto à sua fonte, a força de um líder é análoga àquela que se exerce na hipnose. O fluxo afetivo que o une a seus partidários - que toma a forma de uma identificação? moral destes com aquele a quem seguem (e reciprocamente) - é função da consciência comum de poderes e energias cada vez mais violentos, :ada vez mais desmedidos, que se acumulam na pessoa do chefe e tornam-se nele indefinidamente disponíveis. Mas esta concentração em Sobre as relações afetivas dos seguidores com o líder e a analocom a hipnose, cf. Freud, Psychologie collective et analyse du "moi" (trad. fr. 192[4]; republicada em Essais de Psychanalyse, 1929). B, Of, W. Robertson Smith, Lectures on the Religion of the Semites, First series, The Fundametal Institutions, Edimbourg, 1889.

&,

uma só pessoa intervém como um elemento que distingue a formação fascista no interior mesmo do domínio heterogêneo: pelo próprio fato de que a efervescência afetiva culmina na unidade, ela constitui uma instância dirigida, enquanto autoridade, contra os homens; essa instância é existência por si antes de ser útil, e existência por si distinta daquela de uma sublevação disforme cujo sentido por si significa “pelos homens sublevados”. Essa monarquia, essa ausência de qualquer democracia e de qualquer fraternidade no exercício do poder — formas existentes não apenas na Itália e na Alemanha -, indica que se devem renunciar, sob coerção, às necessidades naturais imediatas dos homens em benefício de um princípio transcendente, que não pode ser objeto de nenhuma explicação exata. De modo completamente diferente, podem ser da mesma forma descritas como heterogêneas as camadas sociais mais baixas, que provocam geralmente a repulsão e não podem, em caso algum, ser assimiladas pelo conjunto dos homens. Essas classes miseráveis são vistas na Índia como intocáveis, ou seja, são caracterizadas por uma proibição de contato análoga àquela que se aplica às coisas sagradas. É verdade que o costume países de civilização avançada é menos ritual e que a qualidade de intocável não

de

obrigatoriamente transmitida pela hereditariedade; entretanto, basta existir nesses países um ser humano marcado pela miséria para criar entre si e os outros - que se consideram como a expressão do homem normal - um fosso intransponível. As formas nauseabundas da decadência provocam um sentimento de nojo tão insuportável que é incorreto expressá-lo ou somente fazer-lhe referência. A calamidade material dos homens tem, visivelmente, na ordem psicológica da desfiguração, consequências desmedidas. E, no caso em que os homens felizes não sofreram a redução homogênea (que opõe à miséria uma justificação legal), excetuando-se as vergonhosas tentativas de fuga (evasão), tais como a piedade caridosa, a violência sem esperança das reações toma imediatamente a forma de um é

desafio à razão.

dualismo fundamental do mundo heterogêneo

O

Os dois exemplos precedentes, emprestados ao domínio amplo da heterogeneidade, e não ao do-

mínio sagrado propriamente dito, apresentam as características específicas deste último. Essa conformidade aparece facilmente no que concerne aos líderes manifestamente tratados por seus partidários como pessoas sagradas; e é bem menos evidente no que concerne às formas da miséria que não são o objeto de nenhum culto. Mas revelar que tais formas ignóbeis são compatíveis com o caráter sagrado é precisamente 0 passo decisivo, realizado no conhecimento do domínio sagrado ao mesmo tempo em que no do domínio heterogêneo. A noção da dualidade das formas do sagrado é um dos resultados adquiridos pela antropologia social: essas formas devem ser divididas em duas classes opostas puras impuras (nas religiões primitivas, certas coisas impuras - por exemplo, o sangue menstrual não são menos sagradas do que a natureza diVina; a consciência dessa dualidade fundamental

&

persistiu até uma data relativamente recente: na Idade Média, a palavra sacer foi empregada para designar uma doença vergonhosa - a sífilis - e

significação profunda deste uso era ainda inteligível). O tema da miséria sagrada - impura e intocável - constitui exatamente o polo negalivo de uma região caracterizada pela oposição n

de duas formas extremas: há, em certo sentido, identidade dos contrários entre a glória e a decadência, entre as formas elevadas e imperativas (superiores) e as formas miseráveis (inferiores). Essa oposição divide o conjunto do mundo heterogêneo e se acrescenta às características já determinadas da heterogeneidade como um ele-

mento fundamental. (As formas heterogêneas indiferenciadas são, com efeito, relativamente raras - pelo menos nas sociedades evoluídas e a análise de uma estrutura social heterogênea interna reduz-se quase inteiramente àquela da oposição de dois contrários.)

A

forma imperativa da existência

heterogênea: a soberania

A ação

fascista, heterogênea, pertence ao conJunto das formas superiores. Ela acena para os sentimentos tradicionalmente definidos como elevados e nobres e tende a constituir a autoridade como um princípio incondicional, situado acima de todo julgamento utilitário. Como parece evidente, o emprego das palaVras superior, nobre, elevado, não implica uma aquiescência. Esses qualificativos não podem designar aqui senão o pertencimento a uma categoria historicamente definida como superior, nobre ou elevada: tais concepções novas ou individuais não podem ser consideradas, exceto em relação às concepções tradicionais das quais derivam; são, aliás, necessariamente híbridas, sem alcance, e, sem dúvida alguma, seria preferível

renunciar, se for possível, a toda representação desta ordem (quais são as razões confessáveis pelas quais um homem gostaria de ser nobre, semelhante a um representante da casta mililar medieval, e absolutamente não ignóbil, quer dizer, semelhante, conforme o julgamento histórico, a um homem cuja miséria material teria nlterado o caráter humano, o teria tornado totalMente outro?).

Formulada essa reserva, a significação dos valores superiores deve ser precisada com a ajuda

dos qualificativos tradicionais.

A superioridade

(soberania* imperativa) dedos signa o conjunto aspectos notáveis - determinando afetivamente a atração ou a repulsão próprios às diferentes situações humanas nas quais é possível dominar e mesmo oprimir seus semelhantes, em razão de sua idade, de sua fraqueza física, de seu estatuto jurídico ou simplesmente pela necessidade de colocar-se sob a direção de um só: a circunstâncias diversas corres-



pondem situações definidas aquela do pai em relação aos filhos, aquelas do chefe militar em —

relação ao exército e à população civil, aquela do mestre em relação ao escravo, aquela do rei em relação aos súditos. Somam-se a essas relações reais situações mitológicas cuja natureza exclusivamente fictícia facilita uma condensação dos

aspectos caracterizando a superioridade. O simples fato de dominar seus semelhantes implica a heterogeneidade do mestre, pelo menos durante o tempo em que ele é o mestre: na medida em que se refere à sua natureza, à sua qualidade pessoal, como uma justificativa de sua autoridade, ele designa esta natureza como totalmente outra, sem poder perceber racionalmente. Mas não somente como totalmente outra em relação ao domínio racional da medida e da equivalência: a heterogeneidade do mestre não se opõe O termo soberano tem como origem o adjetivo do baixo-latim Ssuperaneus, que significa superior.

1,

menos àquela do escravo. Se a natureza heterogênea do escravo confunde-se com aquela da imundície em que sua situação material o con-

dena a viver, aquela do mestre se forma em um nto de exclusão de toda imundície, ato cuja diregão é a pureza, mas cuja forma é sádica. Humanamente, o valor imperativo acabado se apresenta sob a forma de autoridade real ou imperial, na qual se manifestam no mais alto grau as tendências cruéis e a necessidade de realizar e de idealizar a ordem que caracteriza toda 1 dominação. A autoridade fascista não mostra Menos esse caráter duplo, mas é apenas uma das numerosas formas da autoridade real cuja descrição geral constitui o fundamento de toda descrição coerente do fascismo. Oposta à existência miserável dos oprimidos, n soberania política aparece em primeiro lugar tomo uma atividade sádica claramente diferenviada. Na psicologia individual, é raro que a tendência sádica não seja associada em uma mesma pessoa à tendência masoquista mais ou menos nberta. No entanto, na sociedade cada tendênela é normalmente representada por uma inslíncia distinta, e a atitude sádica pode ser manifestada por uma pessoa imperativa excluindo qualquer participação das atitudes masoquistas Correspondentes. Nesse caso, a exclusão das for-

mas imundas que servem de objeto para o ato cruel não é seguida de uma posição dessas formas como valor e, consequentemente, nenhuma atividade erótica pode ser associada à crueldade. Os próprios elementos eróticos são rejeitados ao mesmo tempo em que todo objeto imundo, e, como em grande número de atitudes religiosas, O sadismo acede, assim, a uma pureza deslumbrante. Esta diferenciação pode ser mais ou menos completa - individualmente, os soberanos puderam viver em parte o poder como uma orgia de sangue -, mas, no conjunto, a forma real imperativa realizou historicamente, no interior do domínio heterogêneo, uma exclusão das formas miseráveis ou imundas suficiente para encontrar, em certo plano, uma conexão com as formas homogêneas. Com efeito, se a princípio a sociedade homogênea afasta qualquer elemento heterogêneo, imundo ou nobre, as modalidades da operação não variam tampouco segundo a natureza de cada elemento afastado. Para a sociedade homogênea, rejeição das formas miseráveis tem apenas um valor constante fundamental (tal que o menor recurso às reservas de energia representadas por essas formas exige uma operação tão perigosa quanto a subversão); mas, sabendo que o ato de exclusão das formas miseráveis associa

a

necessariamente as formas homogêneas e as formas imperativas, essas últimas não podem mais ser pura e simplesmente rejeitadas. De fato, a sociedade homogênea utiliza contra os elementos que lhe são mais incompatíveis as forças imperativas livres e, logo que deva escolher no domínio que exclui o próprio objeto de sua atividade (a existência por si a serviço da qual ela deve necessariamente se colocar), a escolha não pode deixar de recair sobre as forças cuja prática mostrou agirem, à princípio, no sentido mais favorável. É a incapacidade da sociedade homogênea de encontrar em si mesma uma razão de ser e de agir que a coloca na dependência das forças imperativas, do mesmo modo que é a hostilidade sádica dos soberanos contra a população miserável que os aproxima de toda formação buscando Manter esta última na opressão. Dessas modalidades de exclusão da pessoa do rei resultam uma situação complexa: sendo O rei o objeto no qual a sociedade homogênea encontrou sua razão de ser, a manutenção dessa relação exige que ele se comporte de tal maneira que a sociedade homogênea possa existir por ele. lista exigência recai, em primeiro lugar, sobre n heterogeneidade fundamental do rei, garantida pelas numerosas proibições de contato (tabus), mas é impossível manter esta heterogeneidade em

estado livre. Em nenhum caso a heterogeneidade pode receber sua lei de fora, mas seu movimento espontâneo pode ser fixado, ao menos tendencialmente, de uma vez por todas. É assim que a paixão destruidora (o sadismo) da instância imperativa está a princípio exclusivamente dirigida seja contra as sociedades estrangeiras, seja contra as classes miseráveis, seja contra o conjunto de elementos externos ou internos hostis à homogeneidade. O poder régio histórico é a forma resultante

de uma tal situação. Um papel determinante quanto a sua função positiva está reservado ao próprio princípio da unificação, realmente operado em um conjunto de indivíduos cuja escolha afetiva recai sobre um objeto heterogêneo único. A comunidade de direção tem por ela mesma um valor constitutivo: pressupõe - vagamente, é verdade - o caráter imperativo do objeto. A união, princípio da homogeneidade, é apenas um fato tendencial, incapaz de encontrar em si mesmo um motivo para exigir e impor sua existência e, na maioria das circunstâncias, o recurso a uma exigência proveniente de fora tem o valor de uma necessidade

primeira. Ora, o dever ser puro, o imperativo moral, exige o ser por si, quer dizer, o modo específico da existência heterogênea. Mas esta existência, precisamente, escapa, no

que concerne a ela mesma, ao princípio do dever ser, e não pode em nenhum caso ser-lhe subordinada: ela acede imediatamente ao ser (em outros termos, ela se produz como valor sendo ou não sendo, e nunca como valor devendo ser). A forma complexa na qual desemboca a resolução desta incompatibilidade impõe nas existências heterogêneas o dever ser da existência homogênea. Assim, a heterogeneidade imperativa não representa somente uma forma diferenciada em relação à heterogeneidade vaga: supõe, além disso,

modificação da estrutura das duas partes, homogênea e heterogênea, em contato. Por um lado, a formação homogênea, vizinha da instância régia, o Estado, toma emprestado a essa instância O seu caráter imperativo e parece aceder à existência por si realizando o dever ser desnudado e frio do conjunto da sociedade homogênea. Mas O Estado é na realidade não mais que a forma abstrata, degradada, do dever ser vivente exigido, no cume, como atrator afetivo e instância régia: ele é apenas a homogeneidade vaga transformada em coerção. Por outro lado, esse modo de formação intermediário que caracteriza o Estado penetra por reação a existência imperativa: mas, ao longo desta introjeção, a forma própria da homoBeneidade torna-se, dessa vez realmente, existên-

a

eia por si negando-se a si mesma: ela se absorve

na homogeneidade e se destrói enquanto estritamente homogênea pelo fato de que, transformada em negação do princípio de utilidade, recusase qualquer subordinação. Penetrado profundamente pela razão de Estado, o rei não se identifica, portanto, com esta última: integralmente, mantém o caráter distinto próprio da maioria divina. Ele escapa ao princípio específico da homogeneidade, à compensação dos direitos e dos deveres que constitui a lei formal do Estado: os direitos do rei são incondicionais. É quase inútil representar aqui que a possibilidade dessas formações afetivas trouxe a servidão infinita que degrada a maior parte das formas de vida humanas (muito mais do que os abusos de força que são eles mesmos reduzíveis a formações imperativas, enquanto a força em jogo é necessariamente social). Se encararmos agora a soberania sob sua forma tendencial, tal como historicamente vivida pelos sujeitos responsáveis por seu valor atrativo, independentemente, todavia, de uma realidade particular, sua natureza aparece, humanamente, como a mais nobre - elevada até a majestade -, pura mesmo em meio à orgia, fora de alcance das enfermidades humanas. Ela constitui a região formalmente isenta de intrigas de interesse às quais se refere o sujeito oprimido como a uma satisfação

mas pura (nesse sentido, a constituição da natureza régia acima de uma realidade inconfessável lembra as ficções justificadoras da vida eterna). Enquanto forma tendencial, ela realiza o ideal da sociedade e do curso das coisas (na mente do súdito, esta função se exprime ingenuamente: se o rei soubesse...). Ao mesmo tempo, ela é autoridade estrita. Acima da sociedade homogênea como também acima da população miserável ou da hierarquia aristocrática que dela emana, ela exige de uma maneira encarniçada a repressão do que lhe é contrário e se confunde na sua forma definida com os fundamentos heterogêneos da lei: é assim, ao mesmo tempo, a possibilidade e a exigência da unidade coletiva; é na órbita da realeza que se elaboram o Estado e suas funções de coerção e de adaptação; é em benefício da grandeza real que se desenvolve, tanto como destruição quanto como fundação, a redução homogênea. GColocando-se como princípio da associação de elementos inumeráveis, o poder régio se desenvolve espontaneamente enquanto força imperativa e destrutiva contra qualquer outra forma imperativa que lhe poderia ser oposta C, assim, se manifestam, no cume, a tendência fundamental e o princípio de toda a autoridade: redução à unidade pessoal, a individualização

Vazia,

na

do poder. Enquanto a existência miserável se produz necessariamente como multidão [multitude] e a sociedade homogênea como redução a

a

uma medida comum, instância imperativa, o fundamento da opressão se desenvolve necessariamente no sentido de uma redução à unidade sob a forma de um ser humano excluindo a própria possibilidade de um semelhante, em outros termos, como uma forma radical da exclusão exigindo uma avidez.

A

concentração tendencial

Essa tendência à concentração aparece em contradição, é verdade, à coexistência de domínios distintos do poder: o domínio da soberania real diferente daquele da potência militar, diferente do domínio da autoridade religiosa. Mas, precisamente, a constatação dessa coexistência engaja a atenção sobre o caráter compósito do poder real, no qual é fácil encontrar os elementos constitutié

vos dos dois outros poderes, militar e religioso.* Parece, então, que a soberania real não deve ser vista como um elemento simples, possuindo sua fonte autônoma, como o exército ou a organização religiosa: ela é exatamente (e, além disso,

unicamente) a concentração realizada desses dois elementos formados em duas direções diferentes. O renascimento constante dos poderes militares e religiosos em estado puro nunca modificou o princípio de sua concentração tendencial sob a forma de uma soberania una: mesmo a recusa formal do cristianismo não impediu para empregar uma terminologia simbólica vulgar — a cruz de perambular pelos degraus do trono com o sabre. Na Psychanalyse collective et analyse du “moi”, op. cit., Freud estudou precisamente as duas funções militares (exército) e religiosa (lgreja) em relação à forma imperativa (inconsciente) da psicologia Individual que ele nomeia ideal do eu ou supereu. Se nos reportarMos aos conjuntos das aproximações estabelecidas na presente exposição, essa obra, publicada em alemão desde 19[21], surge como Uma introdução essencial à compreensão do fascismo. 1,

Considerada historicamente, a realização dessa concentração pôde ser espontânea - ou ainda o chefe do exército teve êxito em fazer-se consagrar rei pela força - ou o rei consagrado tomou o poder militar (em data recente no Japão, o imperador utilizou esta última forma sem que sua iniciativa própria tenha desempenhado um papel determinante). Mas a cada vez, mesmo no caso em que a realeza é usurpada, a possibilidade da reunião dos poderes dependeu de suas afinidades fundamentais e, sobretudo, de sua concentração tendencial. A consideração dos princípios que regem esses fatos tem evidentemente um alcance capital no momento em que o fascismo renova a existência histórica, reúne uma vez mais as autoridades militar e religiosa para realizar uma opressão total. (Sobre esse assunto, é possível afirmar sem prejuízo de qualquer outro julgamento político - que toda realização ilimitada das formas imperativas tem o sentido de uma negação da humanidade enquanto valor dependente do jogo de suas oposições internas.) Como o bona—-

o

fascismo (que significa etimologicapartismo, mente reunião, concentração) não é senão uma

reativação aguda da instância soberana latente, mas com um caráter de alguma forma purificado

pelo fato de que as milícias que se substituem ao exército na constituição do poder têm imedi-

atamente este poder como objeto.

exército e os chefes do exército

princípio - funcionalmente - o exército existe em razão da guerra e sua estrutura psicológica é redutível ao exercício de sua função. Assim, seu caráter imperativo não resulta diretamente da importância social ligada à detenção do poder material das armas: é a organização interna do exército - a disciplina e a hierarquia — que de fato o torna a sociedade nobre por excelência. Evidentemente, a nobreza das armas supõe em primeiro lugar uma heterogeneidade intensa: a disciplina ou hierarquia são elas próprias apenas formas e não fundamentos da heterogeneidade; só o sangue derramado, a carnificina e a morte respondem no fundo à natureza das armas. Mas 0 horror ambíguo da guerra possui, ainda, uma heterogeneidade baixa (a rigor, indiferenciada). A direção elevada, exaltante, das armas supõe a unificação afetiva necessária a sua coesão, quer dizer, ao seu valor eficaz. O caráter afetivo dessa unificação se manifesta sob a forma de aderência do soldado ao thefe do exército: implica que cada soldado confidere a glória desse último como a sua própria. É por intermédio desse processo que a carnifitina nojenta se transforma radicalmente em seu tontrário, em glória, quer dizer, em atração pura fº intensa. No fundo, a glória do chefe constitui lima espécie de polo afetivo, opondo-se à natuA

reza ignóbil dos soldados. Mesmo independentemente de seu emprego horrível, os soldados pertencem em princípio à parte infame da população; despojado de seu uniforme, cada homem vestido com suas roupas habituais, um exército profissional do século xv1m teria o aspecto de um populacho miserável. Mas a eliminação completa do recrutamento das classes miseráveis não seria suficiente para mudar a estrutura profunda do exército, que continuaria a fundar a organização afetiva sobre a infâmia social dos soldados. Seres humanos incorporados em um exército não são mais do que elementos negados, negados com uma espécie de ira (de sadismo) manifesta no tom de cada comando, negados na parada, pelo uniforme e pela regularidade geométrica perfeita dos movimentos cadenciados. O chefe, enquanto é imperativo, é a encarnação dessa negação violenta. Sua natureza Íntima, a natureza de sua glória, constitui-se em um ato imperativo anulando o populacho infame (que constitui o exército) enquanto tal (da mesma maneira que ele anula a carnificina enquanto tal). Na psicologia social, essa negação imperativa aparece em geral como o caráter social próprio da ação; em outros termos, toda ação social afirmada toma necessariamente a forma psicológica unificada da soberania, toda forma infe-

rior, toda ignomínia, sendo por definição socialmente passiva, se transforma em seu contrário pela simples passagem à ação. Enquanto re-

sultado inerte, uma carnificina é ignóbil, mas valor heterogêneo ignóbil assim estabelecido, deslocando-se sobre a ação social que o determMinou, torna-se nobre (ação de matar e nobreza foram associadas por laços históricos indefectíveis): basta que a ação se afirme efetivamente como tal, assuma livremente o caráter imperativo que a constitui. Precisamente, esta operação o fato de assumir com toda a liberdade o caráter imperativo da nção — é o próprio do chefe. Torna-se possível qui apreender sob a forma explícita do papel desempenhado pela unificação (a individualizagão) nas modificações de estrutura que caracterizam a homogeneidade superior. O exército tolocado sob a impulsão imperativa - a partir de elementos informes e miseráveis - se organiza e realiza interiormente uma forma homogênea, em fuzão da negação da qual o caráter desordenado de seus elementos é objeto: com efeito, a massa que constitui o exército passa de uma existêntia espalhada e frívola a uma ordem geométrica depurada, do estado amorfo à rigidez agressiva. lissa massa negada, na realidade, cessou de ser ela mesma para tornar-se afetivamente (“afeti9



vamente”

se refere aqui aos

comportamentos psicológicos simples, como o sentido! ou o marchar) a coisa do chefe e como que uma parte do próprio chefe. Uma tropa em sentido é de alguma forma absorvida na existência do comando e, assim, absorvida na negação de si mesma. O sentido pode ser considerado analogicamente como um movimento trópico (uma espécie de geotropismo negativo), elevando não somente o chefe, mas o conjunto de homens que respondem a sua ordem, à forma regular (geometricamente) da soberania imperativa. Assim, a infâmia implicada dos soldados não é senão uma infâmia na base que, sob o uniforme, se transforma em seu hetecontrário, em ordem e brilho. O modo rogeneidade sofre explicitamente uma alteração profunda, terminando de realizar a homogeneidade intensa sem que a heterogeneidade fundamental decresça. O exército no meio da população subsiste com uma maneira de ser totalmente outra, mas que é uma maneira de ser soberana ligada à dominação, ao caráter imperativo e definido do chefe, comunicado aos seus soldados. Assim, a direção dominante do exército, desligada de seus fundamentos afetivos (infâmia e carnificina), depende da uma heterogeneidade contrária à honra e ao dever incarnados na pessoa do chefe (se se tratar de um chefe não su-

da

bordinado a uma instância real ou a uma ideia, O dever se incarna em uma pessoa da mesma Maneira que no rei). A honra e o dever, simbolicamente expressos pela geometria dos desfiles, são formas tendenciais que situam a existência militar acima da existência homogênea como imperativo e como pura razão de ser. Essas formas, sob seu aspecto propriamente militar, tendo um alcance limitado a certo plano de ações, são compatíveis com crimes infinitamente covardes, mas bastam para fazer da dominação interna que caracteriza sua estrutura um dos elementos fundamentais da autoridade psicológica suprema instituída acima da sociedade coagida. Todavia, o poder do chefe do exército tem imediatamente por resultado apenas uma homoBeneidade interna independente da homogeneidade social, ao passo que o poder específico da realeza não existe senão em relação com a sociedade homogênea. A integração do poder militar em um poder social supõe, pois, uma mudança de estrutura: supõe a aquisição das modalidades próprias do poder régio, em relação com a administração do Estado, tal como foram descritas a propósito desse poder.

De uma maneira implícita e vaga, admite-se que —adetenção do poder militar pôde ser suficiente para exercer uma dominação geral. Todavia, se forem excetuadas as colonizações, que estendem um poder já fundado, é difícil encontrar exemplos de dominação duráveis exclusiva-

mente militares. De fato, a força armada simples, material, não pode fundar nenhum poder: ela depende em primeiro lugar da atração interna exercida pelo chefe (o dinheiro é insuficiente para realizar um exército). E assim que este queira utilizar a força da qual dispõe para dominar a sociedade, ele deve ainda adquirir os elementos de Uma atração externa (de uma atração religiosa válida para toda a população). É verdade que esses últimos elementos estão à por vezes disposição da força, porém, a atração militar enquanto origem do poder régio provavelmente não tem um valor primordial com relação à atração religiosa. Na medida em que é possível formular um julgamento válido a propósito dos períodos humanos recuados, surge com certa clareza que a religião, não o exército, é a fonte da autoridade social. Por um lado, a introdução da hereditariedade significa regularmente à predominância do poder de forma religiosa,

que pode adquirir seu princípio do sangue, de modo que o poder militar depende em primeiro lugar do valor pessoal.

Infelizmente é difícil dar uma significação exPlícita ao que, no sangue ou nos aspectos régios, é propriamente religioso: adentramos aqui amplamente na forma nua e ilimitada da heterogeneidade indiferenciada, antes que uma direção ainda vaga fixe um aspecto apreensível dela (suscetível de

ser explicitado). Essa direção existe, entretanto, mas as modificações de estrutura que ela introduz deixam de qualquer modo o campo para uma livre de formas afetivas projeção gerais, como a angústia ou a atração sagrada. Por outro lado, não são as modificações de estrutura que são imediatamente transmitidas pelo contato fisiológico na hereditariedade ou pelos ritos nas sagrações, mas sim uma heterogeneidade fundamental. A significação (implícita) do caráter régio puramente religioso só pode ser atingida na medida em que aparece a sua comunidade de origem e de estrutura com a natureza divina. Sem que seja possível, em uma rápida exposição, tornar sensível o conjunto de movimentos afetivos aos quais deve se referir a fundação das autoridades míticas (concluindo-se na posição última de uma autoridade suprema fictícia), uma simples aproximação possui em si um valor signi-

ficativo suficiente. À comunidade de estrutura das duas formações correspondem fatos inequivocos (identificações com o deus, genealogias míticas, culto imperial romano ou xintoísta, teOria cristã do direito divino). O rei é no todo considerado sob uma forma ou outra como a emanação da natureza divina, com tudo o que O princípio da emanação carrega de identidade

quando se trata de elementos heterogêneos. As notáveis modificações de estrutura que caracterizam a evolução da representação do divino - a partir da violência livre e irresponsável - só

fazem explicar aquelas que caracterizam a formação da natureza da realeza. Nos dois casos, é a posição da soberania que dirige a alteração da estrutura heterogênea. Nos dois casos, assiste-se a uma concentração dos atributos e das forças: mas, no que concerne a Deus, as forças que ele representa

não sendo compostas senão em uma existência fictícia (sem a limitação ligada à necessidade de realizar), foi possível chegar a formas mais perfeitas, a esquemas mais puramente lógicos.

supremo dos teólogos e dos filósofos representa a introjeção mais profunda da estrutura própria da homogeneidade na existência heterogênea: Deus realiza assim, no seu aspecto teológico, a forma soberana por excelência. No entanto, uma contrapartida dessa possibilidade O Ser

de realização é implicada pelo caráter fictício da existência divina cuja natureza heterogênea, não

possuindo o valor limitativo da realidade, pode ser eludida em uma concepção filosófica (reduzida a uma afirmação formal de modo algum vivida). Na ordem da especulação intelectual livre é possível substituir a ideia a Deus como existência e poder supremos, o que de fato implica em certa medida a revelação de uma heterogeneidade relativa da Ideia (como o que acontece quando Hegel eleva a Ideia acima do simples dever ser).

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O fascismo enquanto forma

soberana da heterogeneidade

Essa agitação de fantasmas - aparentemente anacrônicos - passaria sem dúvida por vã se o fascismo não tivesse, sob nossos olhos, retomado

reconstituído da base ao topo - partindo por assim dizer do vazio - o processo de fundação do poder tal como ele acaba de ser descrito. Até os nossos dias só havia um exemplo histórico de brusca formação de um poder total, ao mesmo tempo militar e religioso, mas principalmente réBio, não se apoiando em nada estabelecido antes dele, aquele do Califado islâmico. O Islã, forma comparável ao fascismo por sua fraca riqueza humana, não tinha sequer o recurso de uma pátria, ainda menos de um Estado constituído. Porém, é preciso reconhecer que o Estado existente não foi para os movimentos fascistas senão uma conquista, depois um meio ou um quadro,* e que a integração da pátria não muda o esquema de sua formação. Da mesma maneira que o Islã nastente, o fascismo representa a constituição de um poder heterogêneo total que encontra sua Origem manifesta na efervescência atual. O poder fascista é caracterizado em primeiro lugar pelo fato de que a sua fundação é tanto religiosa como militar, sem que os elementos e

1 JW

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1 Aliás, o Estado HO

fascismo.

italiano moderno é, em larga medida, uma criação

habitualmente distintos possam ser separados uns dos outros: apresenta-se assim desde a sua base como uma concentração realizada. O aspecto predominante é, de fato, o aspecto militar. As relações afetivas que associam (identificam) estreitamente o líder ao membro do partido (tais como já foram descritas) são análogas em princípio àquelas que unem o chefe a seus soldados. A pessoa imperativa do líder tem o alcance de uma negação do aspecto revolucionário fundamental da efervescência drenada por ele: a revolução afirmada como um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a dominação interna exercida em termos militares sobre as milícias. Mas essa dominação interna não está diretamente subordinada aos atos de guerra reais ou possíveis: impõe-se essencialmente como um meio-termo de uma dominação externa sobre a sociedade e o Estado, como meio-termo de um valor imperativo total. Assim, estão simultaneamente implicadas as qualidades próprias das duas dominações (interna e externa,

militar e religiosa): qualidades decorrentes da homogeneidade introjetada, como o dever, a disciplina e a ordem consumados, e qualidades decorrentes da heterogeneidade essencial, violência imperativa e posição da pessoa do chefe como objeto transcendente da afetividade coletiva. No

entanto, o valor religioso do chefe é realmente o valor fundamental (senão formal) do fascismo, dando à atividade dos milicianos sua tonalidade afetiva própria, distinta daquela do soldado em geral. O chefe, enquanto tal, é apenas a emanação de um princípio que não é outro além daquele da existência gloriosa de uma pátria alçada ao valor de uma força divina (que, superior a qualquer outra consideração concebível, exige não somente a paixão, mas o êxtase de seus participantes). Incarnada na pessoa do chefe (na Alemanha, O termo propriamente religioso de profeta foi por Vezes empregado), a pátria desempenha assim o mesmo papel que, para o Islã, Alá encarnado na pessoa de Maomé ou do Califa.? O fascismo aparece, antes de tudo, como concentração e, por assim dizer, condensação de poder* (significação indicada, com efeito, no valor etimológico do termo). Esta significação geral deve, além disso, ser aceita em várias direções. No topo, efetua-se a reunião consumada das forCalifa significa, no sentido etimológico da palavra, tenente (tendo lugar) [n. t.: em francês, lieutenant, palavra desmembrada por BaInille em lieu (lugar) e tenant (conjugação do verbo tenir no particíBio presente)]); o título inteiro é tenente do enviado de Deus. Condensação de superioridade, evidentemente em relação com UM complexo de inferioridade latente: tal complexo tem ligações Igualmente profundas na Itália e na Alemanha; é por isso que, Inssmo que o fascismo se desenvolva ulteriormente nas regiões Hue tenham atingido uma soberania inteira e a consciência desta Moberania, não é concebível que ele tenha alguma vez podido ser B produto autóctone e específico desses países. %4

Gas imperativas, mas o processo não deixa inativa nenhuma fração social. Em oposição fundamental com o socialismo, o fascismo é Caracteri-

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zado como reunião de classes. Não que as classes conscientes de sua unidade tenham aderido ao regime, mas porque elementos expressivos de cada classe foram representados nos movimentos de adesão profundos que culminaram na tomada de poder. Aqui, o tipo específico da reunião foi, aliás, emprestado à afetividade propriamente militar, quer dizer, elementos representativos das classes exploradas foram compreendidos no conjunto do processo afetivo apenas pela negação de sua natureza própria (da mesma maneira a natureza social de um recruta é negada por meio dos uniformes e dos desfiles). Esse processo que amalgama de cima a baixo as diferentes formatações sociais deve ser compreendido como um processo fundamental cujo esquema é necessariamente dado na própria formação do chefe, que tira seu profundo valor significativo do fato de que viveu o estado de abandono e de miséria do proletariado. Mas, assim como no caso da organização militar, o valor afetivo próprio da existência miserável é apenas deslocado e transformado em seu contrário; e é seu alcance

desmedido que dá ao chefe e ao conjunto da formação o tom de violência sem o qual nenhum exército nem nenhum fascismo seriam possíveis.

f

estreitas relações do fascismo com as classes miseráveis distinguem profundamente esta formação da sociedade régia clássica, caracterizada por uma perda de contato mais ou menos definida da instância soberana com as classes inferiores. Mas fazendo-se a reunião fascista, opondose à reunião régia estabelecida (cujas formas dominam a sociedade de muito alto), ela não é somente reunião de poderes de diferentes origens ereunião simbólica de classes: é ainda reunião completa dos elementos heterogêneos com os elementos homogêneos, da soberania propriamente dita com o Estado. Enquanto reunião, o fascismo não se opõe menos ao Islã do que à monarquia tradicional. Na verdade, o Islã criou desde o início, em todos os sentidos, e é por isso que uma forma tal como o Estado, que não pode existir exceto por um longo resultado histórico, não desempenhou qualquer papel na sua constituição imediata: em Vez disso, o Estado existente serviu desde então de quadro para o conjunto do processo fascista de aglutinação orgânica. Este aspecto caYacterístico do fascismo permitiu a Mussolini escrever que “tudo está no Estado”, que “nada de humano nem de espiritual existe e a fortiori tem valor fora do Estado”.* Mas isso não implica neAs

1,

Mussolini, Enciclopedia italiana, artigo “Fascismo”; trad. fr. sob. Le Fascisme. Doctrine, Institutions, Paris, 1933, p. 23.

Btítulo de

cessariamente a confusão do Estado e da força imperativa que domina a sociedade como um todo. O próprio Mussolini, inclinado a um tipo de divinização hegeliana do Estado, reconhece em termos voluntariamente obscuros um princípio de soberania distinto que ele designa ao mesmo tempo por povo, nação e personalidade superior, mas que deve ser identificado à própria formação fascista e a seu chefe: povo “ao menos se o povo [...] significa a ideia [...] que se encarna no povo como vontade de um pequeno número ou mesmo de um só [...]. Não se trata, escreve ele, nem de raça, nem de região geográfica determinada, mas de um agrupamento que se perpetua historicamente, de uma multidão [multitude] unificada por uma ideia que é uma vontade de existência e de potência: é a consciência de si, personalidade”? O

termo

personalidade deve ser entendido como individualização, processo culminando na própria pessoa de Mussolini, e quando ele acrescenta “esta personalidade superior é nação enquanto Estado. Não é a nação que cria o Estado. Não é a nação que cria o Estado...”,5 é preciso compreender que ele: 1)

substituiu o velho princípio democrático da soberania da nação pelo princípio de soberania da

2. Op.

cit. p.22.

3. Op. cit., p. 23.

formação fascista individualizada; 2) estabeleceu as bases de uma interpretação consumada da instância soberana e do Estado. A Alemanha nacional-socialista que não adotou, como a Itália fascista o fez oficialmente (sob o patronato de Gentile), o hegelianismo e a teoria do Estado alma do mundo - não foi atingida, por sua parte, pelas dificuldades teóricas resultantes da necessidade de enunciar oficialmente um princípio de autoridade: a ideia mística da raça afirmou-se imediatamente como o fim imperativo da nova sociedade fascista; ao mesmo tempo, ela aparecia encarnada na pessoa do Fiihrer e dos seus. Bem que à concepção da raça falte uma base objetiva, ela não é menos” subjetivamente fundada, e a necessidade de manter o valor racial acima de qualquer outro afastou uma teoria que fizesse do Estado o prineípio de todo valor. Assim, o exemplo alemão mostra que a confusão estabelecida por Mussolini entre o Estado e a forma soberana do valor não é necessária para uma teoria do fascismo. O fato de que Mussolini não distinguiu formMalmente a instância heterogênea cuja ação fez penetrar profundamente no interior do Estado pode ser igualmente interpretado no sentido de uma apropriação absoluta do Estado como no sentido recíproco de uma adaptação difícil da

instância soberana às necessidades de um regime de produção homogêneo. Foi no desenvolvimento desses dois processos recíprocos que fascismo e razão de Estado puderam parecer idênticos. Entretanto, as formas da vida conservam em seu rigor uma oposição fundamental quando mantêm na própria pessoa do detentor do poder uma dualidade radical de princípios: o presidente do conselho italiano ou o chanceler atividade distinalemão representam formas É preciso Filhrer. Duce tas em relação ao ou ao

de

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acrescentar que esses dois personagens detêm seu poder fundamental não da sua função oficial no Estado, como os outros primeiros-ministros, mas da existência de um partido fascista e de sua situação pessoal à frente deste partido. Essa evidência da fonte profunda do poder mantém precisamente com a dualidade das formas heterogêneas e homogêneas a supremacia incondicional da forma heterogênea do ponto de vista do princípio da soberania.

As condições fundamentais

do fascismo

Como já foi indicado, o conjunto dos processos heterogêneos assim descritos não podem ser colocados em jogo se a homogeneidade fundamental da sociedade (o aparelho de produção) está cindida por causa de suas contradições internas. Além disso, é possível dizer que o desenvolvimento de forças heterogêneas, mesmo que produzindo-se a princípio o mais às cegas possível, ganha necessariamente o sentido de uma solução do problema apresentado pelas contradições da homogeneidade. As forças heterogêneas desenvolvidas, depois de terem tomado o poder, dispõem de meios de coerção necessários para arbitrar os diferendos sobrevindos entre elementos anteriormente inconciliáveis. Mas não é preciso dizer que ao fim de um movimento que, excluindo toda a subversão, o sentido no qual se produz a arbitragem permanece conforme à direção geral da homogeneidade existente, quer dizer, na verdade, aos interesses do conjunto dos capitalistas. A mudança consiste em que, depois de recorrer à homogeneidade fascista, os interesses desse conjunto são opostos, a partir do período de crise, aos das empresas privadas. Dessa forma se encontra profundamente alterada a própria estrutura do capitalismo, que tinha até aqui por princípio uma homogeneidade espontânea da pro-

dução baseada na concorrência, em uma coincidência, de fato, de interesses do conjunto dos produtores com a liberdade absoluta de cada empresa. A consciência, desenvolvida por certos capitalistas alemães, sobre o perigo no qual essa liberdade individual os colocava em um período crítico deve naturalmente ser situada na origem da efervescência e do triunfo nacionalsocialistas. No entanto, é evidente que ainda não havia essa consciência entre os capitalistas italianos, que, no momento da marcha sobre Roma, preocupavam-se somente com o caráter indissolúvel de seus conflitos com os operários. Parece, assim, que a unidade do fascismo se encontra na sua estrutura psicológica própria e não nas condições econômicas que lhe servem de base. (O que não entra em contradição com o fato de que

um desenvolvimento lógico geral da economia dê, depois de tudo, aos diferentes fascismos um sentido econômico comum que compartilham, é verdade, com a atividade política absolutamente estranha ao fascismo propriamente dito do governo atual dos Estados Unidos.) Qualquer que seja o perigo econômico ao qual respondeu o fascismo, a consciência desse perigo e a necessidade de remediá-lo representam apenas um desejo ainda vazio, secundado pelo rigor de um meio poderoso de apoio como —

o dinheiro. A realização da força suscetível de responder ao desejo e de utilizar as disponibilidades do dinheiro acontece somente na região heterogênea, e sua possibilidade depende manifestamente da estrutura atual dessa região: no

todo, é possível considerar essa estrutura como variável a depender se a sociedade é democrática ou monárquica. A sociedade monárquica real (distinta das formas políticas adaptadas ou abastardadas representadas pela Inglaterra atual ou a Itália préfascista) é caracterizada pelo fato de que uma instância soberana, de origem antiga e de forma absoluta, esteja ligada à homogeneidade estabelecida. A evolução constante dos elementos constitutivos da homogeneidade pode precisar de mudanças fundamentais, mas a necessidade de mudança não é nunca representada no interior a não ser por uma minoria prevenida: o conjunto dos elementos homogêneos e o princípio imediato da homogeneidade permanecem ligados à manutenção das formas jurídicas e dos quadros administrativos existentes e garantidos pela autoridade do rei; reciprocamente, a autoridade do rei se confunde com a manutenção dessas formas e desses quadros. Assim, a parte superior da região heterogênea é, de uma só vez, imobilizada e imobilizadora, e só a parte inferior formada pe-

las classes miseráveis e oprimidas é suscetível de entrar em movimento. Porém, o fato de en-

trar em movimento representa para esta última parte, passiva e oprimida por definição, uma alteração profunda de sua natureza: a fim de entrar em luta contra a instância soberana e a homogeneidade legal que as oprime, as classes inferiores devem passar de um estado passivo e difuso para uma forma de atividade consciente; em termos marxistas, essas classes devem tomar consciência de si próprias enquanto proletariado revolucionário. O proletariado assim considerado não pode, portanto, se limitar a si mesmo: é apenas um ponto de concentração para todo elemento social dissociado e rejeitado na heterogeneidade. É até mesmo possível dizer que um tal centro de atração existe de certo modo antes da formação do que deve ser chamado de “proletariado consciente”: a descrição geral da região heterogênea implica, portanto, que ele seja visto geralmente como um elemento constitutivo da estrutura de conjunto que compreende não somente as formas imperativas e as formas miseráveis, mas também as formas subversivas. Estas formas subversivas não são outras senão as formas inferiores transformadas em vista da luta contra as formas soberanas. A necessidade própria das formas subversivas exige que o que é baixo

torne-se alto, que o que é alto torne-se baixo, e nesta exigência que se expressa a natureza da subversão. No caso em que as formas soberanas da sociedade estão imobilizadas e amarradas, os diversos elementos rejeitados na heterogeneidade pela decomposição social só podem se reunir às formações resultantes da entrada em ação das classes oprimidas: estão necessariamente votados à subversão. A fração da burguesia que tomou consciência de sua incompatibilidade com os quadros sociais estabelecidos se uniu contra a autoridade e se confundiu com as massas efervescentes revoltadas: e, mesmo no tempo que se segue imediatamente à destruição da monarquia, os movimentos sociais continuam a ser comandados pelo comportamento antiautoritário inicial da revolução. Mas, em uma sociedade democrática (ao menos quando não está galvanizada pela necessidade de fazer a guerra), a instância imperativa heterogênea (nação, nas formas republicanas, rei, nas monarquias constitucionais) é reduzida a uma existência atrofiada e qualquer mudança possível não parece mais necessariamente ligada à sua destruição. Nesse caso, as formas imperativas podem até mesmo ser consideradas como um campo livre, aberto a todas as possibilidades de efervescência e de movimentos da mesma maé

neira que as formas subversivas na monarquia. E, quando a sociedade homogênea sofre uma desintegração crítica, os elementos dissociados não entram mais necessariamente na órbita da atração subversiva: forma-se, diferentemente, no topo, uma atração imperativa que não condena mais aqueles que a sofrem ao imobilismo. A princípio, até uma data recente, essa atração imperativa exercia-se unicamente no sentido de uma restauração. Ela se encontrava, assim, limitada de antemão pela natureza preestabelecida da soberania desaparecida, que implicava no mais das vezes uma perda de contato proibitiva entre a instância autoritária e as classes inferiores (a única restauração histórica espontânea é aquela do bonapartismo, que deve ser colocada em relação com as fontes populares manifestas do poder bonapartista). Na França, é verdade, certas formas constitutivas do fascismo puderam ser elaboradas na formação - mas, sobretudo, nas dificuldades de formação - de uma atração imperativa dirigida no sentido de uma restauração dinástica. A possibilidade do fascismo não dependeu menos do fato de que um retorno às formas soberanas desaparecidas estava fora de questão na Itália, onde a monarquia subsistia em estado reduzido. Foi precisamente a insuficiência, juntando-se à subsistência da realeza,

que necessitou da formação, à qual ela deixava no mesmo tempo o campo livre, de uma atração

imperativa inteiramente renovada e recebendo uma base popular. Nessas condições novas (em relação às dissociações revolucionárias clássicas das sociedades monárquicas), as classes inferiores deixaram de sofrer exclusivamente a atração representada pela subversão socialista e uma organização de tipo militar começou a arrastá-las em parte para a órbita da soberania. Do mesmo modo, os elementos dissociados (pertencendo às classes médias ou dominantes) encontraram Um novo escoamento para a sua efervescência e não surpreende que, a partir do momento em que tiveram escolha entre as soluções subversidirigido em maiovas ou imperativas, tenham ria no sentido imperativo.

se

Dessa dualidade possível da efervescência resulta uma situação sem precedente. Uma mesma sociedade vê formar-se concorrentemente, em um mesmo período, duas revoluções de uma só vez hostis entre si e hostis à ordem social es-

tabelecida. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se duas frações opostas à dissociação geral da sociedade homogênea como fator comum, o que explica as numerosas conexões e até mesmo um tipo de cumplicidade profunda. Por outro lado, independentemente de qualquer comunidade

de origem, o sucesso de uma das frações implica aquele da fração contrária em virtude de um jogo de equilíbrio: ele pode ser sua causa (em particular, na medida em que o fascismo é uma resposta imperativa à ameaça crescente do movimento operário) e deve ser considerado, como na maioria dos casos, como seu sinal. No entanto, é evi-

dente que a simples formação de uma situação desta ordem, a menos que seja possível restabelecer a homogeneidade abalada, comanda de antemão o seu desfecho: à medida que a efervescência cresce, a importância dos elementos dissociados (burgueses e pequenos burgueses) cresce em relação àquela dos elementos que nunca foram integrados (proletariado). Assim, como as possibilidades revolucionárias se afirmam, desaparecem as chances da revolução operária, as chances de uma subversão libertadora da sociedade. A princípio, parece então que toda esperança está proibida aos movimentos revolucionários se desenvolvendo em uma democracia, pelo menos quando a lembrança das antigas lutas empreendidas contra uma autoridade monárquica atenuou-se e não fixa mais necessariamente as reações heterogêneas no sentido contrário ao das formas imperativas. É óbvio, com efeito, que a situação das principais potências democráticas, no território das quais joga-se a sorte da Revo-

lução, não justifica

menor confiança: é apenas aindiferente do

atitude um pouco proletariado que permitiu até aqui que esses países escapassem de qualquer formação fascista. Todavia, seria pueril acreditar em fechar o mundo em um esquema: desde o início, a simples consideração das formações sociais afetivas revela os imensos recursos, a inesgotável riqueza de formas próprias a toda vida afetiva. Não apenas as situações psicológicas das coletividades democráticas são, como qualquer situação humana, transitórias, mas permanece possível vislumbrar, pelo menos como uma representação ainda imprecisa, forças de atração diferentes daquelas que já são utilizadas, tão diferentes do comunismo atual ou mesmo passado quanto o fascismo o é das reivindicações dinásticas. É com vistas a tais possibilidades que é necessário desenvolver um sistema de conhecimentos permitindo prever as reações afetivas sociais que percorrem a superestrutura - talvez, até um certo ponto, dispor delas. O fato do fascismo, que acaba de colocar em questão a própria existência do movimento operário, é suficiente para mostrar o que é possível esperar de um recurso oportuno a forças afetivas renovadas. Não mais do que nas formas fascistas, não pode ser questão hoje, como na época do socialismo utópico, de moral ou de a

idealismo: um sistema de conhecimentos sobre os movimentos sociais de atração e de repulsão mostra-se da maneira mais despojada como

uma arma. No momento em que uma vasta convulsão opõe não exatamente o fascismo ao comunismo, mas formas imperativas radicais à profunda subversão que continua a buscar a emancipação de vidas humanas.