A crise do movimento comunista: o apogeu do stalinismo [2° Volume]
 85-260-0104-3

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Comentários à edição brasileira de

A crise do movimento comunista

"O livro relido hoje, depois de devorada a edição francesa de 1972 como autêntica revelação, se ressente, aqui c ali, de algum esquemntismo ao atribuir muitas viradas do Comintern aos ditames da política externa de Moscou. Na verdade, a pesquisa histórica posterior demonstrou que muitas decisões, como a virada de 1934-1935, da tática classe contra classe (socialistas igual a fascistas) pa­ ra a frente popular, deveu-se a algumas revi­ sões autônomas dentro dos próprios partidos. Comentário injusto porque o próprio Claudín se reviu no seu belo ensaio ‘La politica di fronte popolare nell’Internazionale Comu­ nista’ (in Problemi dell’Internazionale Co­ munista, 1919-1939, Einaudi, 1974). E também no seu último livro, prolongamento direto daquele agora lançado, A oposição no ‘socialismo reai’ (Marco Zero, 1983) — incompetentemente passado em brancas nu­ vens no debate brasileiro — , onde desvenda as lutas contra os sucessores do Comintern nas tiranias da URSS e do Leste europeu. É uma bênção — sacrifiquemos aos tem­ pos natalinos — despencar, nesse final de ano chocho, esse livro de scholar e comba­ tente que ajudará a espantar as velharias que os partidos comunistas de várias procedên­ cias continuam a fazer circular aqui.” Paulo Sérgio Pinheiro

‘‘Daí a importância de um livro como A crise do movimento comunista, de Fer­ nando Claudín, recentemente lançado em português pela Global. Esta obra se impõe como um marco na reflexão crítica da es­ querda. Talvez o grande mérito de Claudín tenha sido, ao lado da análise cuidadosa e rica das questões teóricas e filosóficas de fundo, a capacidade de identificar as ex­ periências e os fatos mais significativos, documentando-os solidamente, de forma a torná-los propriamente ditos. Sim, porque a historiografia oficial comunista procura negar e ocultar os próprios fatos, com um discurso generalizador.”

Carlos Eduardo Carvalho

‘‘Mas, de qualquer maneira, a leitura do livro de Claudín é de uma importância ines­ timável, e não apenas para o conhecimento da história. As questões em debate na época continuam atuais: a crise do capitalismo, a possibilidade do socialismo, a necessidade da construção mundial de partidos capazes de trabalhar nesta direção, etc. E, para esta discussão, o material reunido por Claudín e suas reflexões são uma ajuda preciosa.”

João Machado

ferrando dautti a crise do movimento comunista Este volume corresponde à segunda parte de A crise do movimento comunista (“O apogeu do stalinismo”), onde Claudín analisa o período que marca a absoluta dominação da política staliniana em todo o movimento comunista inter­ nacional, desde os anos imediatamente anteriores à eclosão da Segunda Guerra Mundial, com o pacto germano-so­ viético, passando por todos os acontecimentos da resistência ao nazi-fascismo, o “cisma iugoslavo”, e culminando com o período do pós-guerra, com o abandono e o fechamento do Kommintern e sua transformação no Komminform, no auge da guerra fria. Completa-se assim o ciclo histórico estudado por Fernando Claudín em sua monumental obra a respeito do movimento comunista internacional, que constitui o tomo I de sua pesquisa.

tÿ0 Ziobaí editora

Dados de C atalo gação na Publicação (C IP ) Internacional (C âm a ra B rasileira do Livro, S P , B rasil)

C 553c v .1 - 2

C la u d ín , F e rn a n d o , 1 9 1 3 A c r i s e d o m ov im en to c o m u n is ta / F e rn a n d o C la u d ín ; tr a d u ç a o e i n t r o d u ç ã o J o s e P a u lo N e t t o . — S ao P a u lo : G lo b a l , 1 9 8 5 -1 9 8 6 . (C o le ç ã o l u t a de c l a s s e s ) C o n te ú d o : v . 1 . A c r i s e d a I n t e r n a c i o n a l C om unis­ t a / p r e f á c i o de J o r g e S erap rú n . — v . 2 . 0 a p o g e u do s ta lin is m o . ISBN 8 5 -2 6 0 - 0 0 4 1 - 1 ( v . 1 ) . — ISBN 8 5 - 2 6 0 - O lO il- 3 1 . Comunismo - H i s t ó r i a 2 . I n t e r n a c i o n a l C o m u n ista I . S erap rú n , J o r g e , 1 9 2 3 - I I . N e t t o , J o s e P a u l o , 1 9 4 7 I I I . T í t u l o . IV . T í t u l o : A c r i s e d a I n t e r n a c i o n a l Co­ m u n i s t a . V. T í t u l o : 0 ap o g e u do s t a l i n i s m o . V I. Se­ rie .

1 9 . C D D -320.53209 8 6 -0 2 2 8 ___________________________________ _____ ____________ - 3 2 4 .1 Índices para catálogo sistem ático: 1 . Comunismo : C i ê n c i a p o l í t i c a : H i s t o r i a 3 2 0 .5 3 2 0 9 2 . I n t e r n a c i o n a i s c o m u n is ta s 3 2 4 .1

tornando claudín

a crise do movimento comunista

vol.2-0 apogeu do stalinismo TRADUÇÃO E INTRODUÇÃO

JOSÉ PAULO NETTO

Ziobai editora 1986

© Fernando Claudín

Título original:

La crisis del movimiento comunista 1. De la Kommintern al Komminform

Editoração:

Presser & Bertelli Consultoria Editorial Produção gráfica: Hélio Daziano Revisão: Alice Aparecida Duarte

Capa:

Carlos Umberto Martins Carlos Luiz Pompe fotacê (projeto) Marco A. Â. Gianella (arte-final)

Direitos reservados:

g l o b a l e d i t o r a e d i s t r i b u i d o r a 1tda . Rua França Pinto, 8 3 b - Cx. Postal 4 5 3 2 9 Fone: (0 1 1 )5 7 2 -4 4 7 3 Cep 0 4 0 1 6 - V. Mariana Sào Paulo • SP.

N.° de catálogo: 1716

ISBN 85-260-0104-3

Rua Mariz e Barros, 39 - conjs. 2 6 / 3 6 Fone: (0 2 1 )2 7 3 -5 9 4 4 Cep 2 0 2 7 0 • Tijuca Rio de Janeiro ■ RJ

SUMÁRIO

II. O APOGEU DO STALINISMO 1. REVOLUÇÃO E ESFERAS DE INFLUÊNCIA Da Internacional Comunista ao Centro de Informação dos Partidos Comunistas, 329 A revolução frustrada (França), 338

O pacto germano-soviético e o Partido Comunista Francês, 339 A renúncia à alternativa socialista, 342 A restauração da “França eterna”, 350 A revolução frustrada (Itália), 363 A viragem de Salerno, 364

Da união nacional ao monopólio democrata-cristão, 371 Revoluções sem permissão, 387

A revolução realizada (Iugoslávia) e a revolução estran­ gulada (Grécia), 389 Crítica iugoslava do oportunismo franco-italiano, 397 Da “grande aliança” aos “dois campos”, 403 A grande mistificação, 405 A divisão das “esferas de influência”, 411 O naufrágio do oportunismo staliniano, 438 Interrogações e conjecturas, 448 325

2. O CENTRO DE INFORMAÇÃO DOS PARTIDOS COMUNISTAS As revoluções na área de projeção soviética, 485 O Centro de Informação dos Partidos Comunistas e a nova tática, 494 Retrocesso geral do movimento comunista no Ocidente, 502 3. A FRATURA IUGOSLAVA Instauração da ditadura burocrática e policial na área de projeção soviética, 511 A revolução herética, 517 Os processos, 545 A campanha contra o titoísmo nos partidos comunistas do Ocidente, 565 4. O PANORAM A ORIENTAL Revolução chinesa e “grande aliança”, 589 Guerra revolucionária ou “união nacional”, 594 O espectro de um “titoísmo chinês”, 599 A aliança sino-soviética, 604 5. NOVO EQUILÍBRIO MUNDIAL Os “combatentes da paz”, 617 Empate na “guerra fria”, 626 Balanço do período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, 630 PRIMEIRO EPÍLOGO, 641

1

REVOLUÇÃO E ESFERAS DE INFLUÊNCIA

Apoiar o movimento de libertação da China? Não será arriscado? Não nos con­ frontará com outros países? Não será m e­ lhor estabelecer nossas “ esferas de influên­ cia” na China em conjunto com outras potências “avançadas” e tirar dela algo em nosso benefício? [. . . ] Apoiar o movimento de libertação da Alemanha? Vale a pena correr este risco? N ão será melhor che­ gar a um acordo com a Enterite sobre o Tratado de Versalhes e obter algo a título de compensação? Manter a amizade com a Pérsia, a Turquia e o Afeganistão? Não será melhor restabelecer as “ esferas de in­ fluência” com alguma das grandes potên­ cias? Esta é a “concepção” nacionalista de novo tipo com que se tenta substituir a política externa da Revolução de Outubro. [. . . ] Esta é a via do nacionalismo e da degeneração, a via que conduz à liquidação total da política internacionalista do prole­ tariado, pois aqueles que são vitimados por esta doença não vêem em nosso país uma parte do todo que se chama movimento revolucionário mundial, mas apenas o prin­ cípio e o fim deste movimento, conside­ rando que os interesses dos outros países devem ser sacrificados em prol dos interes­ ses do nosso país. Stalin, 1925.

Da Internacional Comunista ao Centro de Informação dos Partidos Comunistas Os quatro anos que se estendem entre a dissolução da Interna­ cional Comunista e a criação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas1 demarcam um período de auge espetacular do movi­ mento comunista, sobretudo nos principais palcos da guerra — Eu­ ropa e Ásia. O mundo que emerge do grande drama conta, em finais 329

de 1945, com catorze milhões de comunistas organizados fora das fronteiras soviéticas, contra o escasso um milhão das vésperas do conflito e menos ainda — não é possível determinar a redução, mas ela foi drástica, particularmente na Europa — do período do pacto germano-soviético2. Nesta progressão geral, cuja exceção mais signifi­ cativa são os Estados Unidos, sobressaem-se nitidamente uns poucos partidos que, juntamente com o da União Soviética (mais os do Vietnã e de Cuba, nos últimos anos), serão, até hoje, sob um ou outro ponto de vista, os centros nevrálgicos do movimento comunista mundial: o Partido Comunista da China, os das “democracias popu­ lares” européias e os da França e da Itália. O partido chinês, no curso da guerra antijaponesa, passa de 40.000 membros, em 1937, para 1.200.000, em 1945, consolidan­ do-se como dirigente da grande revolução asiática. Em fins de 1947, conta já com 2.700.000 membros e, no verão do mesmo ano, um pouco antes da decisão de Stalin de criar o Centro de Informação dos Partidos Comunistas, o exército de libertação passa à ofensiva contra as tropas do Kuomintang — inicia-se a viragem decisiva no rumo da guerra civil e a vitória revolucionária se perfila no hori­ zonte 3. Às vésperas da guerra, todos os partidos comunistas das futuras “democracias populares” estavam na clandestinidade e, salvo o da Tchecoslováquia, vinham de anos de precária existência. Suas forças organizadas estavam reduzidas a uns poucos milhares de militantes, e na Romênia e na Hungria a sua influência política era ínfima. O partido polonês fora praticamente destruído pelos expurgos e repres­ sões stalinianas do final da década de trinta, que — embora em menor medida — tinham afetado também os partidos da Iugoslávia, Hungria e Romênia (veja-se a nota 17 do capítulo 3 do primeiro tomo). Em 1947, estes partidos reuniam, no total, mais de sete milhões de membros e eram donos do poder ou estavam a ponto de conquistá-lo. Na França e na Itália se formavam os dois “grandes” do comunismo no interior da área capitalista desenvolvida. O partido italiano salta de 5.000 membros, nos começos de 1943, para 2.000. 000, em 1946, e o francês, mais modestamente, passa de 300.000, nas vésperas da guerra — que se reduzem bastante no período do pacto germano-soviético —, a cerca de 1.000.000, em 1946. Ambos se convertem no partido hegemônico no seio das res­ pectivas classes operárias e estendem a sua influência a outros 330

setores sociais, especialmente aos círculos intelectuais. Os dois par­ ticipam dos governos que se sucedem da Libertação aos inícios de 1947. O crescimento numérico e, especialmente, o papel político de outros partidos comunistas ficam muito aquém dos níveis que aca­ bamos de citar, mas são notáveis numa série de casos. Em pequenos países europeus da área capitalista desenvolvida (Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suíça, Áustria e Finlândia), o con­ junto dos efetivos comunistas passa de menos de 100.000, nas vésperas da guerra, a uns 600.000 em 1946-1947. E até o sempre minúsculo Partido Comunista inglês, que contava com uns 18.000 membros em 1939, já beira os 50.000 em 19444. Os partidos co­ munistas da Áustria, Finlândia, Bélgica, Dinamarca e Noruega par­ ticipam de governos no imediato pós-guerra. O Partido Comunista da Grécia (17.500 membros em 1935, 72.000 em 1945) converte-se, durante a guerra, no principal organi­ zador e dirigente da Frente Nacional de Libertação (EAM) e do Exército Popular (ELAS). Somente a intervenção in extremis do corpo expedicionário inglês (coberta pelo acordo secreto Stalin-Churchill de outubro de 1944 5), em dezembro de 1944, impede o triunfo da revolução. Em 1946, o Partido Comunista grego organiza a luta armada, cujo ponto mais alto se situa nos últimos meses de 1947, coincidindo com a criação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. No outro extremo do Mediterrâneo, o Partido Comu­ nista da Espanha reconstrói, sob o terror fascista, a sua organização e impulsiona um importante movimento de guerrilhas. Na Ásia, o Partido Comunista da índia passa de 16.000 mem­ bros, em 1943, para 90.000, em 1948. O partido japonês, que antes da guerra estava na clandestinidade, duramente perseguido e tinha cerca de mil membros organizados, obtém, em 1946, dois milhões de votos e elege cinco deputados; em 1949, os votos são três milhões e os deputados, trinta e cinco (não há dados sobre os efetivos do partido). O fenômeno é o mesmo em quase todos os partidos asiá­ ticos: crescem os pequenos núcleos comunistas que existiam antes de 1939 e se criam partidos onde não existiam. O Partido Comunista do Vietnã inicia a sua longa epopéia revolucionária. Ainda que em menor escala, progride também a influência comunista em alguns países do Oriente Médio (Irã, Síria). Os comunistas do Irã, durante um curto lapso de tempo, participam do governo (1946). 331

Os partidos comunistas da América Latina, em 1939, tinham 90.000 membros. Em 1947, este contingente salta para meio milhão, destacando-se os partidos brasileiro, chileno e cubano que, entre 1945 e 1947, tinham, aproximada e respectivamente, 200.000, 60.000 e 40.000 militantes. Os comunistas chilenos e cubanos che­ garam a participar de governos e o movimento comunista interna­ cional depositava grandes esperanças no partido brasileiro; comen­ tava-se que “o Brasil pode ser, logo, a Rússia da América”. A exceção mais significativa, como já observamos, deste auge geral do movimento comunista nos primeiros anos do pós-guerra são os Estados Unidos. A superpotência do capitalismo mundial conti­ nuava impermeável ao marxismo e seu pequeno partido comunista só experimenta um efêmero crescimento em 1944 quando, por ini­ ciativa de Earl Browder, secretário-geral, decide transformar-se numa ambígua “Associação Política Comunista”, disposta a “colaborar para garantir o funcionamento eficaz do regime capitalista no pósguerra” 6. No entanto, apesar da crise do partido comunista, também nos Estados Unidos se produz uma certa evolução do movimento operário no sentido da esquerda. Se a Federação Americana do Trabalho nega-se a participar da criação da Federação Sindical Mundial (FSM), a outra grande organização sindical do proletariado americano, o Congresso dos Operários Industriais, ingressa na FSM com os sindicatos soviéticos e outras centrais sindicais dirigidas por comunistas. A reconstrução da unidade sindical se generaliza em escala nacional e, com a criação da FSM, em fevereiro de 1945, realiza-se — pela primeira vez desde a Revolução de Outubro — a unidade sindical em escala mundial. A radicalização do movimento operário se expressa também na progressão da ala esquerda nos partidos so­ cial-democratas e em tendências favoráveis à unidade de ação com os partidos comunistas. No centro deste desenvolvimento mundial das forças do movi­ mento operário e do rápido crescimento dos partidos comunistas erguem-se o Estado e a sociedade nascidos da Revolução de Outubro, aureolados com um novo prestígio. Desmentindo os augúrios pessi­ mistas de Trótski, o sistema soviético saíra-se airosamente da terrível prova e a opinião mundial reconhecia a contribuição decisiva da União Soviética para a derrota do imperialismo hitleriano. O efeito produzido nos operários e nos povos de todos os continentes pelas vitórias militares soviéticas pode ser comparado ao eco que, em

seus primeiros tempos, teve a Revolução de Outubro. Com uma diferença: a União Soviética não aparecia apenas como a encarnação exemplar da revolução socialista — diante de grandes setores sociais alheios ao comunismo, a União Soviética passava a ser o símbolo máximo de todas as causas progressistas, da independência das nações, da paz entre os Estados. Os partidos comunistas capitaliza­ vam esta renovação e esta ampliação do prestígio da União Soviética e este foi um dos principais fatores do seu crescimento naquele período, ao lado do papel destacado que tiveram na luta contra os ocupantes alemães. Os comunistas — e, com eles, os setores mais radicalizados do movimento operário — viam, então, com eufórico otimismo as pers­ pectivas revolucionárias no mundo inteiro. A impressionante demons­ tração do poderio militar soviético infundia-lhes ilimitada confiança no desenlace vitorioso da luta pelo socialismo, tanto onde ela to­ mava a forma de combates armados (China, Grécia), como onde se desenrolava sob a presença protetora do exército vermelho libertador (os países do Leste europeu) e onde parecia que o caminho ia abrir-se por uma via inédita — a conquista do Estado pelo mecanismo da democracia burguesa (Itália, França). Os comunistas estavam con­ victos de que toda ação revolucionária, armada ou pacífica, haveria de encontrar a assistência decisiva da “fortaleza invencível” do so­ cialismo. É verdade que a impunidade com que se desenvolvia a intervenção anglo-americana contra a insurreição grega não era um bom sinal. Mas esta nota dissonante não se mostrava suficiente para ensombrear o quadro. Sabia-se que a Iugoslávia auxiliava os guerri­ lheiros gregos. Quem podia imaginar que, por detrás da Iugoslávia, não operava a grande potência soviética? Não era isto o que apre­ goava a reação internacional? Em resumo: depois do refluxo sofrido entre as duas guerras, a revolução mundial parecia retomar a sua marcha com força irre­ sistível. É certo que, uma vez mais, se detinha nos países capitalistas desenvolvidos (com a exceção da pequena zona ocidental da Tchecoslováquia e do Leste alemão); novamente seguia um curso diferente do previsto por Marx. Mas o crescimento sensacional dos partidos comunistas na França e na Itália, as tendências de esquerda que se desenvolviam na social-democracia e no movimento sindical, a ro­ tunda vitória trabalhista na Inglaterra — tudo isto não anunciava a irrupção do socialismo no berço do capitalismo? Vanderberg, ao 333

saber da derrota eleitoral de Churchill, anotou no seu diário: “O inundo inteiro gira à esquerda” 7. Os êxitos reais ou aparentes do comunismo, naqueles anos, na­ turalmente contribuíam para reforçar a imagem apologética da sua trajetória sob a direção de Stalin, imagem posta em circulação pelos corifeus stalinistas na década de trinta. A crítica de Trótski parecia infirmada. Era possível acreditar-se na degeneração burocrática do sistema soviético diante da vitalidade, do heroísmo e das qualidades combativas que o povo e os comunistas da URSS revelaram durante a guerra? A teoria do socialismo num só país e suas implicações estratégicas, o monolitismo como condição ótima da eficácia comba­ tiva de todo partido comunista — estes e outros postulados gestados nos tempos da IC não estavam brilhantemente confirmados pelo “julgamento da história”? A liquidação do trotskismo e do bukharinismo, os processos de Moscou, todas as repressões stalinianas, o pacto germano-soviético, a subordinação sistemática do movimento revolucionário ao interesse supremo do Estado soviético, o holo­ causto da Internacional no altar da “grande aliança” não foram outras tantas exigências inexoráveis da “necessidade histórica”, sa­ biamente interpretada pelo gênio staliniano? O nacionalismo de grande potência que impregnava toda a política mundial de Stalin ficava suficientemente ocultado sob o real conteúdo libertador das vitórias militares soviéticas. Esta “comprovação” empirista da justeza das teses e decisões stalinianas teve imenso impacto sobre o novo contingente comunista, constituído a partir dos núcleos formados pela IC. Nos veteranos, potenciou os reflexos adquiridos nos tempos do “partido mundial”, proporcionou-lhes novas e eficazes justificações ideológicas para seu comportamento anterior; nos novatos, facilitou a rápida assimilação dos mesmos reflexos e a aceitação axiomática da herança recebida. A mentalidade acritica, dogmática — cultivada no seio da IC du­ rante o período staliniano —, transmitiu-se assim às novas gerações comunistas que, a partir de 1945, representavam (como se infere das cifras atrás apontadas) a esmagadora maioria de cada partido. O mundo entrava na era do átomo, iniciava-se uma nova revolução técnica e científica, o desenvolvimento do capitalismo e a emanci­ pação das colônias logo colocariam problemas inéditos, assim como a “construção do socialismo” em novos países — mas nunca foi tão pobre o pensamento teórico dentro do movimento comunista como na década seguinte ao fim da Segunda Guerra. É o período em que 334

culmina ii clericalização do movimento. Stalin é divinizado e o fa­ moso compêndio de História do Partido Comunista (Bolchevique) da URSS se converte na bíblia dos comunistas. O bom comunista não precisa esquentar os miolos na decifração de Marx ou Lênin: Stalin condensou a quintessência do marxismo, tudo o que realmente é ne­ cessário saber, no pequeno manual redigido de forma simultanea­ mente “acessível” e “profunda” para que todos os homens — tanto o sábio quanto o “homem simples” — possam trilhar sem desvios a rota que conduz diretamente ao comunismo. A partir de 1945, suce­ dem-se as edições, em todos os idiomas e em milhões de exempla­ res, deste Pai-Nosso dos povos. A grande vitória soviética na segunda guerra mundial propor­ cionou, conseqüentemente, novas justificações ideológicas e políticas ao monolitismo e ao dogmatismo stalinianos, mas a guerra e a pró­ pria política de Stalin engendraram igualmente fatores e processos de sinal contrário. A guerra antifascista exaltou os sentimentos nacio­ nais dos povos, as suas aspirações a uma vida independente — sen­ sibilizou-os contra quaisquer menosprezos a seus direitos nacionais. Os partidos comunistas, dado o papel que desempenharam na luta contra as potências do Eixo, não podiam ficar “imunes” a este revigoramento dos sentimentos e dos objetivos nacionais. Ademais, a política de Stalin — atenta à salvaguarda da “grande aliança” — induziu-os, na maior parte dos casos, a relegar a um plano secundário os objetivos sociais revolucionários, ou mesmo à renúncia à sua co­ locação, donde derivava que os ingredientes “nacionais” e “patrió­ ticos” passavam a adquirir um peso enorme no comportamento dos partidos, na formação dos seus militantes (não nos esqueçamos que rapidamente os novos adeptos constituíram a grande maioria dos efetivos de todos os partidos comunistas), tomando facilmente tona­ lidades nacionalistas. Esta substantivação do “nacional”, logicamen­ te, continha em germe a contradição com o chovinismo grão-russo que animava a política de Stalin. No entanto, enquanto esse nacio­ nalismo oportunista favorecia a conservação da aliança entre a URSS e os Estados capitalistas anti-hitlerianos, a referida contradição per­ manecia soterrada. Em troca, ela se manifestou desde o primeiro momento onde os partidos comunistas uniram as aspirações nacionais aos objetivos revolucionários — China, Iugoslávia, Grécia —, por­ que esta política nacional revolucionária perturbava a alta estratégia staliniana. 335

Assim, a “nacionalização” dos partidos comunistas, consagrada formalmente com a dissolução da IC, foi tomando aspectos inquiétan­ tes para o monolitismo staliniano. Todos os partidos, de fato, conti­ nuaram considerando-se — na maioria dos casos sinceramente, em alguns “maquiavelicamente” — sob a direção de Moscou. Não pu­ nham em dúvida a função dirigente suprema do partido soviético nem a infalível sabedoria de Stalin mas, pela própria dinâmica das coisas, tiveram que começar a atuar por sua conta, a desenvolver uma iniciativa maior em função das diversas realidades nacionais. E surgem os primeiros sinais de indisciplina ou “heterodoxia”. Os comunistas chineses aparentam ceder às pressões de Stalin para che­ gar a um acordo com Chiang Kai-Chek, mas seguem firmemente na sua guerra revolucionária. Em fins de 1946, os comunistas vietna­ mitas iniciam a guerra de libertação contra o colonialismo francês, também em contradição com a política staliniana do momento. Os partidos comunistas da França e da Itália falam de uma via especí­ fica, não soviética, “francesa” e “italiana”, para o socialismo. Nos Estados Unidos, Earl Browder, seguido por uma fração importante do partido, transita abertamente para o reformismo, sendo excomun­ gado em 1946. Entretanto, o mais inquietante para Stalin era o que se passava na sua àrea de projeção européia — particularmente a evolução iugoslava. Como se constata, a situação interna do movimento comunista no periodo que vai da dissolução da Internacional Comunista à cria­ ção do Centro de Informação dos Partidos Comunistas era complexa e contraditória. Fortaleciam-se os fundamentos ideológicos e políticos do monolitismo staliniano, o prestígio e a autoridade de Stalin toma­ vam proporções avassaladoras, assim como os do Partido Comunista soviético; mas, ao mesmo tempo, gestavam-se tendências centrífugas e Surgiam atitudes conflitivas, que punham em perigo a coesão “mo­ nolítica” do movimento. A rebelião iugoslava de 1948 abriu a pri­ meira grande brecha no edifício mundial do monolitismo staliniano e pôs a nu o caráter radicalmente antagônico da contradição entre o nacionalismo grão-russo e os movimentos revolucionários enraizados na realidade nacional. Mas a rebelião iugoslava, enfim isolada total­ mente no movimento comunista, também pôs em relevo a imensa força que conservavam os suportes ideológicos e políticos do mono­ litismo no conjunto do movimento. Por outro lado, a luta contra a “heresia” iugoslava serviu para reforçar tais suportes e torná-los mais agressivos durante todo um período.

In untes do caso iugoslavo, num terreno mais conhecido, famillni piiru os veteranos da IC, fora posta à prova, com pleno êxito, a «m mui monolítica do movimento comunista saído da guerra: referimu iui:, á grande “viragem” de 1947, determinada pela crise das iillnnçns antifascistas. De fato, esta crise desnudava tudo o que houvem de oportunista na política staliniana desde 1941, tanto em ( m ala internacional, no marco da “grande aliança”, como em escala mu ional, na política da maioria dos partidos comunistas. Mas a " viiagem” realizou-se sem que, nos partidos comunistas, se travasse pieviamente uma discussão fundamental sobre a política seguida até então - na etapa crucial da guerra e no imediato pós-guerra — ou sobre a que se seguiria depois. Foi uma decisão de Stalin e seus colaboradores diretos, imposta ao conjunto do movimento, sem que sc levantasse uma só voz de protesto contra este procedimento ou que surgissem divergências sobre as teses e diretivas soviéticas. Enliv estas últimas estava a constituição do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Da noite para o dia, o movimento comunista sc viu a braços com um novo centro dirigente, sem ter participado da sua criação. Tudo se resolveu numa reunião secreta — celebrada na Polônia, em setembro de 1947 — de representantes dos nove partidos que, por vontade de Stalin, deveriam formar o novo orga­ nismo (os partidos da União Soviética, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária, Iugoslávia, França e Itália)8. Nem se­ quer os órgãos centrais destes partidos haviam discutido previamente as questões que se trataram na reunião: a nova situação internacio­ nal, a política que no seu marco o movimento comunista implemen­ taria, a criação do Centro de Informação dos Partidos Comunis­ tas, etc. A problemática relativa à nova linha do movimento comunista adotada na reunião constitutiva do Centro de Informação dos Parti­ dos Comunistas será abordada no próximo capítulo, mas antes é pre­ ciso analisar o processo que determina a viragem de 1947 — a evo­ lução da situação internacional desde o fim da guerra — começando por uma questão que o encontro na Polônia viu-se obrigado a tratar, ainda que de forma mutilada, escamoteando o elemento essencial (a política de Stalin) e sem reconhecê-la explicitamente na sua reali­ dade: a questão da frustração da revolução na França e na Itália. Mesmo que deste modo espúrio, a reunião na Polônia teve que en­ frentar tão espinhoso problema porque aquela frustração foi um componente capital do processo político que desembocaria na situa337

ção de aliança de uma Europa

1947, quando as enormes ilusões semeadas pela “grande foram substituídas pela "guerra fria”, quando as esperanças via pacífica, democrático-parlamentar, para o socialismo na revelaram-se vãs.

A revolução frustrada (França) É evidente que, nas condições de 1945, com o exército vermelho no Elba, a confirmação da possibilidade revolucionária criada na França e na Itália seria a vitória da revolução na Europa continental e a radical modificação do equilíbrio mundial de forças contra o imperialismo americano, o único grande Estado capitalista que saíra fortalecido da guerra. E, inversamente, é difícil exagerar o efeito ne­ gativo que a frustração desta possibilidade teve para o desenvolvi­ mento ulterior do movimento revolucionário mundial. Frustração que pode comparar-se, com toda razão, às conseqüências advindas da derrota da revolução alemã de 1918-1919. “Como estaria o mundo — perguntava-se Dimitrov em novem­ bro de 1937 — se, depois da revolução socialista de outubro, no período de 1918 a 1920, o proletariado da Alemanha, da ÁustriaHungria e da Itália não tivesse se detido a meio caminho em seu impulso revolucionário? Como estaria o mundo se as revoluções alemã e austríaca de 1918 fossem levadas até o fim e se, em seguida à vitória da revolução, a ditadura do proletariado se instaurasse no centro da Europa, nos países altamente desenvolvidos?” 9. Algo se­ melhante pode hoje ser indagado a respeito do auge revolucionário de 1944-1945 na França e na Itália. Naturalmente, Dimitrov não deixa de assinalar que os responsáveis pelo fato de o proletariado da Europa central e da Itália se haver “detido a meio caminho em seu impulso revolucionário” foram os chefes social-democratas que se “aliaram à sua burguesia”. Mas, em 1944-1945, quem deteve “a meio caminho” o impulso revolucionário do proletariado francês e italiano? Naqueles anos, este proletariado estava, em sua grande massa, sob a direção dos partidos comunistas. E não só o proletaria­ do, como mais tarde reconheceria Togliatti: “A classe operária em sua grande maioria e parte considerável da opinião pública não ope­ rária agruparam-se em torno dos partidos operários avançados, ins­ pirados pelos marxistas, o que distinguia a situação, em nosso país, como na França, da situação de outros países da Europa ocidental” 10. 338

I him,I IMiliivru. apenas os partidos comunistas podiam, em 1944-1945, mu,a o impulso revolucionário do proletariado. E, de fato, tra>ui m u i nu A verdadeira pergunta, pois, não é quem travou, mas sim: f u i Icglllino (sob o ponto de vista, é claro, dos interesses do prolelhi lull,,, Jn revolução) este comportamento dos partidos comunistas tin I .... ça e da Itália? Para responder a esta questão é preciso anallM.,1 a ilida que rapidamente, a política dos dois partidos na Resisi, in ia r na Libertação. Começaremos pelo partido francês.

i >imi to nermanosoviético e o Partido Comunista Francês t) Irances é o único partido comunista importante da Europa qui i bega il guerra em situação de legalidade, com mais de 300.000 ml In untes e influência majoritária na classe operária. E chega com i bandeiras do antifascismo desfraldadas. A Alemanha hitleriana: vnihi iennemi. O partido denuncia a política capitulacionista de 1blindici e da direita francesa em função, exatamente, da luta contra Unici, L os elementos mais reacionários clamam pela dissolução do 1'iulUk) Comunista porque o vêem como o maior obstáculo a um i iiiiipromlsso com a Alemanha. Nestas circunstâncias, explode a In mil m do pacto germano-soviético, que pega de surpresa os dirigeni, . d,, partido (Stalin, naturalmente, não levara em conta os chefes , iniiiiiiistus de outros países, nem mesmo os do país mais imediataiiicntc afetado). Num primeiro momento, a direção do partido justiIa a o pacto como tentativa suprema para salvar a paz, mas mantém |i|ciuimente a sua posição de defesa nacional contra a agressão hitlei luna A 1." de setembro, o grupo parlamentar comunista “proclama Iiiii unanimidade a inquebrantável resolução de todos os comunistas paia ocupar a primeira trincheira da resistência à agressão do fasi l ino hitleriano” e, no dia seguinte, os deputados comunistas votam •is créditos de guerra11. O governo interdita a imprensa comunista e, a 26 de setembro, pne o partido na ilegalidade. Esta perseguição aos comunistas, ao mesmo tempo em que os partidos burgueses revelam-se incapazes pum organizar a defesa nacional (quando não se orientam claramenii para a capitulação), poderia ter se traduzido num rápido cresci­ mento do prestígio do Partido Comunista Francês se este se mantivcs.se firmemente à cabeça da luta contra a agressão hitleriana, unindo-a ao combate contra a impotência ou a traição da bur339

guesia — se ele tivesse traçado uma diferenciação nítida entre a sua política e a política soviética. Mas logo a posição do partido se alinha incondicionalmente à de Moscou. Depois de haver proclamado que a França tinha razão para sustentar a Polônia e de votar os créditos militares requeridos pelo governo para uma eventual intervenção em favor dos poloneses, o partido declara que “a Polônia dos latifundiá­ rios não merece ser defendida” e louva a ocupação da sua parte oriental pelo exército soviético. Justifica, igualmente, a ocupação dos países bálticos pela URSS. Estes fatos poderiam ser explicados como medidas militares de sentido antialemão, mas a direção do partido assume a versão mistificadora oferecida pela diplomacia soviética. Quando Molotov apresenta a França e a Inglaterra como as potências agressoras e a Alemanha como movida por intenções pacíficas, o partido assume esta posição que, além de falsear grosseiramente a realidade, era suicida nas condições francesas. Numa palavra, o par­ tido comunista entrega de bandeja, à reação, os argumentos ideais para situá-lo como partido da traição nacional. A burguesia francesa, assim, pode matar dois coelhos com uma só cajadada: acentuar o isolamento dos comunistas (o que facilita a repressão) e dissimular a sua própria política de capitulação. Consumados o desastre nacional e a ocupação, o partido insiste na mesma política: dedica-se a atacar Vichy, mas não toma em suas mãos a bandeira da libertação nacional, não organiza a guerra na­ cional revolucionaria e antifascista, como o fazem os comunistas iugoslavos e gregos. Deixa a bandeira da libertação nacional nas mãos de típicos representantes do nacionalismo burguês, como de Gaulle. Definitivamente, o cego reboquismo que o Partido Comunis­ ta Francês exercita diante da política de Moscou no período do pacto germano-soviético causou-lhe três graves prejuízos: em primeiro lu­ gar, impediu-o de capitalizar, desde o início, a bancarrota do Estado francês, de utilizar a fundo o sentimento nacional numa perspectiva revolucionária; em segundo lugar, permitiu que a iniciativa da luta pela libertação nacional caísse nas mãos dos nacionalistas burgueses; em terceiro lugar, e conseqüentemente, a repressão contra o partido foi facilitada 12. É importante mencionar que, neste período, o partido coloca, como solução para a crise sem precedentes da França burguesa, a única saída que um partido revolucionário poderia propor: a revo­ lução socialista. No documento programático intitulado “ Pela sal­ vação do povo francês”, difundido em março de 1941, se diz que, 340

,iiuiws das lutas parciais, preparam-se “as grandes batalhas sociais ,1, 1111e resultará a República popular, a França nova, a França livre da União Soviética, é o único país que pode apresentar Iluiiite resultado. [ . . . ] Cabe cumprimentar nossos mineiros, •111< ii.io pouparam nem suor nem esforço” 32 (lendo-se os discursos .1. Thorez deste período, tem-se a impressão de que se está cons111iludo o socialismo na França e que a tarefa central dos trabalhaI H c erguer uma economia que passou às suas mãos). Em dezemIii11. ii organismo dos trabalhadores nos serviços públicos decide iiigimizar uma greve de advertência e, para prepará-la, tem lugar no Vcludromo de Inverno um comício-monstro. Os oradores preconizam ii greve geral, inclusive os da SFIO. A única voz discordante é llniri Raynaud, dirigente comunista da CGT: “Nas circunstâncias iiliittis — afirma —, uma greve geral seria catastrófica; resultaria, a >lii ctudo com a paralisação das ferrovias, na fome nacional”. Dez 11111s mais tarde, Thorez assegura no Conselho de Ministros que não i pode ceder a pressões intoleráveis e que, com algumas correções, u projeto do ministro da Fazenda deve ser aprovado33. Referindo-se no ano de 1945 — que, com a linguagem cubana de hoje, o PCF poderia ter batizado como “o ano da produção” —, de Gaulle cm reve nas suas Memórias: “Quanto a Thorez, mesmo se esforçando paru levar adiante as questões do comunismo, em várias ocasiões prestou serviços ao interesse público. Não cansa de passar a pala­ vra de ordem de trabalhar o máximo possível e de produzir a qualquer preço. Uma simples tática política? Não vou discuti-lo. Iiusla-me que a França saia ganhando.” Logo ficaria claro que "as questões do comunismo” não avançavam muito, mas que a f rança — mais exatamente: a burguesia francesa — sairia ganhando. Em junho de 1946, Thorez viu-se obrigado a declarar ante o Comitê Central: “A situação é muito séria [refere-se ao fato de o resultado negativo do referendum sobre o projeto de Constituição apoiado por comunistas e socialistas, bem como as eleições legisla­ tivas de 2 de junho, haverem revelado um nítido deslocamento dos eleitores para a direita]. A grande burguesia francesa, forte em sua larga experiência e dotada de enorme capacidade de manobra, usou hábil e alternadamente de todos os seus métodos e de todos os seus homens para chegar até este ponto e, se possível, para fazer-nos 353

retroceder ainda mais. Quando da Libertação, não se enfrentou dire­ tamente com o movimento popular. Procurou ladeá-lo, deslocá-lo, desagregá-lo. Impediu a união das forças da Resistência e pouco a pouco reduziu a influência do Comitê Nacional da Resistência e dos comitês locais e departamentais de libertação” 34. Declaração reveladora, porque dela se deduz nada menos que o seguinte: a) dois anos de Libertação, dois anos de participação dos co­ munistas no governo, não fizeram avançar na França o movimento popular saído da Resistência, mas avançou a grande burguesia, que fortalecia as suas posições econômicas e recuperava a sua influência política. A original tática thoreziana de lutar contra os trustes à base de um esforço para que os operários trabalhassem mais e melhor, apertando os cintos, conduzira ao fortalecimento dos trustes. A con­ tenção do movimento de massas, a renúncia às ações que atentassem contra a ordem legal, a fim de não colocar em risco a “união nacio­ nal”, conduziram à reinstauração da ditadura burguesa sobre a na­ ção. A linha de travar as reivindicações proletárias para não assustar as camadas médias resultara na inclinação destas para a direita, para os partidos da burguesia — que iam revelando, em contraste com a pusilanimidade e a debilidade do partido proletário, sua maior determinação —, como o reconhece Thorez no mesmo informe. A via para avançar no sentido da “nova democracia”, baseada exclu­ sivamente na conquista da maioria parlamentar, conduziu à restaura­ ção da mais “velha democracia”, a democracia tradicional da França burguesa. O cretinismo parlamentar comunista dava os mesmos frutos que o cretinismo parlamentar social-democrata. Inutilmente a direção do PCF lançava sobre a SFIO a responsabilidade da não formação de um governo socialista-comunista, apoiado pela maioria parla­ mentar reunida pelos dois partidos. Todo mundo sabia que os diri­ gentes socialistas de direita só aceitariam semelhante coalizão sob uma irresistível pressão das massas, mas a direção thoreziana fizera todo o possível para paralisar o movimento de massas nascido da Libertação. Quanto aos quadros socialistas e sindicais de esquerda, susceptíveis de apoiar sinceramente um governo socialista-comunista, eles alimentavam legítimas reservas sobre o futuro que esta solução podería lhes oferecer. É claro que, durante esse período, Thorez mencionou, em algumas oportunidades, uma possível via francesa ao socialismo, diferente da seguida pelos bolcheviques. Mas estas colocações eventuais não se acompanhavam de nenhuma fundamen­ tação teórica séria — reduziam-se. na realidade, a generalizar o caso 354

•Iti» democracias populares do Leste europeu, esquecendo o pequeno ili hillic do papel ali desempenhado pelo exército vermelho e por mil ms instrumentos do poder soviético. Ademais, a sujeição do PCF n nliii direção stalinista, a seus dogmas, era tão evidente que as i Moiregadelas heterodoxas de Thorez dificilmente poderiam ser tomndiis por algo mais que manobras táticas35; lo icconhecendo que, “quando da Libertação [a grande burguesia] mio sc enfrentou diretamente com o movimento popular” e “pro' m i o u ladeá-lo, deslocá-lo, desagregá-lo”, Thorez estava dando razão mo . que então preconizavam, dentro e fora do partido, uma política olensiva, revolucionária, orientada ao desenvolvimento do vigoroso movimento operário e popular que a insurreição nacional deflagrara. • a “grande burguesia” não se atreveu a atacá-lo frontalmente era, precisamente, porque percebia a sua potencialidade revolucionária. Mus quem “pouco a pouco reduziu a influência do Comitê Nacional •lo Kcsistência e dos comitês locais e departamentais de libertação”? \ “grande burguesia” ou a política defendida e imposta por Thorez desde o seu regresso de Moscou? Noutra passagem do mesmo inIurine, Thorez refere-se novamente à “tática sinuosa [das forças burguesas], da qual hoje ousam se orgulhar, tática destinada a conter, a ladear o povo, ao qual não podiam atacar de frente em agosto de 1944” 36. E não era lógico esse orgulho? Não tão lógico cia que o secretário-geral do Partido Comunista, por sua vez, se ■agulhasse da política que tão maravilhosamente se ajustara à “tática .limosa” da reação burguesa. No entanto, Thorez defende como inte­ gralmente justa, perfeita, a linha seguida desde a Libertação. Se houve pequenos defeitos, estes se localizam no trabalho de federações e seções. Com a maior naturalidade, como se não tivesse nenhuma responsabilidade nisto, Thorez censura “alguns camaradas que não estão livres de ilusões parlamentares”. Mas esta censura, no contexto do informe, funciona apenas para equilibrar formalmente o alvo verdadeiro do ataque, a esquerda. O mal-estar diante dos resultados da linha seguida, realmente, se generalizara muito nas fileiras do partido e Thorez, ainda que minimizando-o, se vê obrigado a reco­ nhecê-lo. Cita casos particulares: a resolução de uma célula do Yonne reprova à direção “colaborar no governo, fazendo concessão atrás de concessão”, e outra dos Altos Pirineus, que acusa a direção de “colaborar com a reação, acumpliciando-se com leis antidemo­ cráticas”. Thorez convoca o partido a combater energicamente estas posições. Aqueles que as sustentam “ainda não compreenderam que 355

nos convertemos num partido de governo, colocam em dúvida a nossa linha geral”. E, para convencer esses recalcitrantes, Thorez exibe — pela primeira vez, ao que sabemos, publicamente — o grande argumento, o argumento irrecusável, que continuará utilizan­ do por anos e anos para justificar a política do PCF na Liber­ tação: os que criticam esta política, diz Thorez, “nem sequer leram o artigo do jornalista norte-americano Walter Lippman, que escreveu, em Le Figaro, que as tropas anglo-americanas estavam prontas a in­ tervir se os comunistas ascendessem ao poder na França” 37. Acerca desta justificação suprema, e aparentemente tão “sólida”, voltaremos mais adiante. Antes, porém, concluiremos este sumário esboço da política do PCF até a sua exclusão do governo. Nem a “séria” situação criada, nem o descontentamento nas fileiras do partido — que, ademais, é facilmente controlado pelos métodos tradicionais de intimidação ideológica e medidas adminis­ trativas — são suficientes para que a direção do PCF introduza mudanças na sua política. Pouco depois da reunião do Comitê Cen­ tral que acabamos de mencionar, Thorez faz a declaração, acima re­ produzida, louvando o aumento da produção carbonífera conseguido com o “suor e esforço” dos mineiros. E o partido se resigna com o congelamento de salários decretado pelo governo de que participam seus ministros. Contudo, o mais escandaloso — se é possível esta­ belecer gradações nisto — é a atitude do PCF diante da luta dos povos oprimidos pelo colonialismo francês. Desde que, no encontro de maio de 1942, Molotov concordou com que todos os povos das colônias francesas deveríam agrupar-se sob a direção de de Gaulle, a política do partido francês consistiu em preconizar a manutenção das colônias (com certa autonomia, ou uma independência formal) na União Francesa — e, nisto, apenas retomava a política já pratica­ da no período da Frente Popular. Em seu informe ao X Congresso (junho de 1945), Thorez define o programa do partido neste campo: “Criar as condições da união livre, confiante e fraternal dos povos coloniais com o povo da França”. O partido sustenta o princípio da livre determinação, mas “o direito ao divórcio não significa a obrigação de divorciar”. A prática desta política colonial — que seria subscrita sem hesitações por Van Kol e os outros líderes da Segunda Internacional que, no Congresso de Stuttgart, propuseram uma política colonial “socialista” — traduziu-se em que o partido foi associado a todas as repressões colonialistas exercidas pelos su­ cessivos governos franceses, com ministros comunistas, da Libertação 356

I'i47. Depois da selvagem repressão à insurreição de maio de IM .. no Constantinois argelino, com um saldo de milhares de ..... os ministros comunistas continuam no governo e, no i ongresso do Partido, um mês após a matança argelina, Thorez .h/ o seguinte: “Falando de democracia, não podemos esquecer .i,111uma das suas exigências é uma atitude mais compreensiva e mais 111 i.i cm face dos povos coloniais. Como em Aries, diremos que há ,|iK reconhecer as reivindicações legítimas dos povos coloniais, pri....... no interesse destas infelizes populações, segundo no interesse ,l,i I rança. Na Argélia, depois dos dolorosos acontecimentos do mês IiiimsikIo, nada é mais urgente do que melhorar o abastecimento, ir,pender o estado de sítio, demitir os funcionários de Vichy e , nr,ligar os traidores que, após haverem abastecido o inimigo por entre os operários a idéia de travar a sua própria “batalha”. I. mundo canalizar o descontentamento, a CGT, em março de 1947, ,'int ncntara uma série de modestas reivindicações, mas sem empreen­ di i qualquer ação real — e desaconselhando que se o faça. A 25 ili iiIh il, os operários da Renault vão à greve, iniciada, ao que parece, i . Km irotskistas, e secundada imediatamente por sindicalistas socialuimi e cristãos. Nos círculos governamentais, o PCF é acusado de u i o instigador e Ramadier coloca a questão da confiança sobre a {Miluiia econômico-social do governo na Assembléia Nacional. Ante .i. fluis de milhares de operários em greve e o profundo mal-estar que sc gesta entre aqueles que ainda não cruzaram os braços, o |wittido não pode aprovar tão ostensivamente a continuidade do conliimento salarial, sob pena de se desacreditar gravemente diante ■li.. irnbalhadores e sob o risco de estes deslizarem para a esquerda deslizamento já em curso na Renault. Se Ramadier aproveita a . qiortunidade para cumprir a ordem americana sob a aparência de um imperativo de política interna, tampouco o PCF deixa escapar .1 ocasião de matar dois coelhos com uma só cajadada: pôr em crise um governo que acabava de dar um perigoso passo para alinhar-se nos americanos (a direção do partido pensava que sua atitude deter­ minaria a crise ministerial) e revalidar seus títulos de partido deIcusor dos interesses proletários. O primeiro golpe falha porque Ra­ madier se limita a reorganizar o seu governo sem os ministros comu­ nistas (confirmando, assim, que o problema de fundo não residia na política interna, mas era outro). Entretanto, o voto contra a política econômico-social do governo não significa que o partido se proponha organizar as massas contra ela. No parlamento, Jacques Duelos tranqiiiliza Ramadier, que teme a extensão das greves: “Somente os imbecis falam agora de greve geral” 46. Mais do que nunca, o partido :,e apresenta como “partido de governo”. Ainda pensa que o acordo Uidault-Bevin-Marshall sobre o carvão do Ruhr é um episódio aci­ dental, perigoso, mas reversível. E inclusive depois do niet47 que Molotov opõe ao projeto do Plano Marshall, nos últimos dias de junho, a direção thoreziana seguirá embalando-se em suas ilusões sobre a continuidade da “grande aliança”, cuja influência benévola permitiu-lhe ser, durante quase três anos, “partido de governo”. E até a reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, em finais de setembro, não compreenderá que chegara a hora da “vi­ ragem”. 361

No intervalo, Thorez não perde ocasião de exibir as irrefutáveis provas que durante três anos o partido deu de ser um autêntico “partido de governo”, e não pára de lamentar que tais méritos sejam desdenhados pelos outros partidos da República. Eis uma pequena amostra, de 8 de junho de 1947: “Em 1944, se se toma o índice 100 para antes da guerra, o nível da produção geral estava em 35. Em finais de 1946, chegava a 90. E em relação à outra guerra? Em 1919, o nível da produção era menos baixo, estava em 57. Em 1920, era de 62; em 1921, 55; em 1922, 78; em 1923, chega a 88. Assim, graças à classe operária, o país se reergue em dois anos, enquanto foram necessários mais de cinco anos para obter o mesmo resultado depois da primeira guerra, embora então as dificuldades fossem menores. Este é o grande mérito da classe operária e do nosso partido, porque fomos nós, os comunistas, que dissemos, com franqueza e sem demagogia, o que era necessário dizer à classe operária, aos ferroviários, aos mineiros. Enquanto isso, quando se falava da uni­ dade num congresso socialista, o atual ministro do Trabalho comen­ tava: ‘Unidade para produzir carvão? Ah! Isto é socialismo?’ No entanto, depois da guerra de 1914-1918, o nível de vida da classe operária se elevou. Em 1921, o índice dos preços no varejo, com relação ao período anterior à guerra, era de 337, e o dos salários era de 472. Houve, portanto, uma elevação de 40% no poder aquisi­ tivo dos salários. A tendência só se inverteu depois da crise finan­ ceira de 1925. Hoje, o que se passa? Em outubro de 1944, os preços estavam em 291 e os salários em 321; em abril de 1946, os preços haviam subido a 491 e os salários continuavam em 321; em outubro de 1946, os preços chegaram a 851 e os salários a 417. Há, pois, uma redução de 50% no poder aquisitivo real dos salários em rela­ ção a 1938” 48. Vale dizer, a colaboração do partido comunista no governo de 1944 a 1947 tivera efeitos mais favoráveis para a restauração da eco­ nomia capitalista e mais desfavoráveis para as condições materiais das massas que o governo reacionário da chambre bleu horizon de 1919-1921 49. Contraste sem mistério, se se recordar que, enquanto em 1919-1921 a classe operária lutou energicamente, recorrendo à greve, em defesa das suas condições de vida, em 1944-1946 aceitou disciplinadamente as consignas contra as greves e para elevar a pro­ dução, consignas que lhe ofereceu o PCF. Evidentemente, a bur362

i ui ui cru injusta com o partido comunista e é compreensível que, tu * \ l Congresso (junho de 1947), o velho Cachin se perguntasse, iludindo a Thorez, “em razão de que absurdo se prescindiu de iiiulhante homem de Estado?” 50. De fato, somente o desconheci...... das realidades européias que caracterizava os políticos ameri. iiiuri c o servilismo em relação a estes revelado pelos seus colegas iimii cses explicavam tamanho “absurdo”.

A revolução frustrada (Itália)

A política do Partido Comunista Italiano (PCI) durante a Resisit’iu ia, a Libertação e os primeiros anos do pós-guerra não difere, ■ i iicialmente e no tocante à sua orientação geral, da política do imitido francês. É a versão italiana da linha ditada aos partidos minunistas pela alta estratégia staliniana, expressa na resolução teslumcntária da IC. No entanto, houve certas diferenças significativas 11jI maneira de aplicar esta linha, determinadas em parte pela natuie/.a dos problemas que objetivamente se colocavam na Itália e, iiluim por enviar para lá mais dezoito, ocupam de fato o Norte e ( entro do país — sem que o governo Badoglio tome qualquer medida defensiva. Ao que parece, o rei, o marechal e a grande Iiiiigiiesiu nutriam a ilusão de sair da guerra e consagrar-se à patriói, i tarefa de combater o inimigo interno utilizando o aparato do I í,tudo fascista; pensavam que alemães e anglo-americanos, vincuImlns pela preocupação comum de prevenirem-se contra o perigo vermelho, patrocinariam a operação53. Mas a reação dos alemães interdita esta perspectiva. A única saída que resta ao governo de Sun Majestade é refugiar-se no Sul, ao amparo das tropas aliadas, deixando aos hitlerianos a missão de reprimir o movimento antifaseista no Norte e no Centro do país. A 9 de setembro, depois de anunciar o armistício concluído secretamente com os aliados, o rei e a família real, o marechal e um distinto cortejo de generais e fun, ionários fogem de Roma, sem haverem tomado a menor medida defensiva contra os invasores — e ainda passará um mês antes que Badoglio declare guerra à Alemanha: fará isso a 13 de outubro, sob pressão do alto comando aliado. A Itália ficará dividida em duas zonas: a ocupada pelos alemães, que, até a primavera de 1944, compreenderá o Norte e o Centro da península e, no verão desse ano, reduzir-se-á ao Norte; e a ocupada pelos aliados, que, inversamente, até a libertação de Roma nos primeiros dias de junho, só compreende o Sul do país (a frente passa um pouco ao Norte de Nápoles), in­ cluindo, a partir do verão, o Centro. Desde novembro de 1943, o movimento de massas e a ação armada começaram a adquirir grande envergadura na zona Norte. Eclodem importantes guerras no Piemonte, Lombardia, Ligúria e Toscana. Por iniciativa da direção comunista do Norte e com o apoio 365

do Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália (que inclui os partidos comunista, socialista, de Ação, liberal e democrata-cristão), em março de 1944 se declara a greve geral no território ocupado pelos alemães. O Partido Comunista e o Partido Socialista lançam uma convocação conjunta. Mais de um milhão de trabalhadores par­ ticipam do movimento — o mais importante do gênero, durante a segunda guerra, na Europa ocupada —, enfrentando todos os riscos. Em Turim, a greve dura oito dias. Simultaneamente às ações gre­ vistas e outras formas de luta de massas, o movimento guerrilheiro se desenvolve rapidamente. No verão de 1944, nas unidades comba­ tentes já estão em armas cerca de 100.000 homens. Longo faz esta descrição da situação na Itália setentrional: “ Graças à envergadura do movimento de massas, em muitas regiões existia, de fato, duali­ dade de poderes: os organismos das autoridades fascistas, que se desacreditavam cada vez mais, e os organismos de poder antifascistas, que existiam ilegalmente, mas gozando de grande prestígio entre a população. E, além dessas regiões onde havia a dualidade de poderes, durante todo o período de ocupação nazista existiram outras zonas no Norte da Itália completamente libertadas das autoridades fascistas, alemãs ou italianas. Eram dirigidas por organismos democráticos de poder, eleitos livremente sob a proteção das forças guerrilheiras” 54. Comunistas e socialistas — com o indiscutível predomínio dos pri­ meiros — constituíam o núcleo dirigente deste vigoroso movimento, cuja força decisiva era a classe operária da Itália industrial e cujo espírito revolucionário foi sublinhado por numerosos protagonistas e historiadores comunistas55. No entanto, se no Norte industrial começava a tomar corpo este poder popular, no Sul agrário se gestavam as estruturas de um novo poder político da burguesia italiana. No momento seguinte à queda de Mussolini, os líderes da es­ querda tentam chegar a acordos com Badoglio para organizar a luta contra a ocupação alemã; mas o entendimento é impossível, dada a cumplicidade tácita do rei e do marechal com os hitlerianos e a sua política repressiva antipopular. Depois do abandono de Roma, o problema da criação de um governo representativo do antifascismo e disposto a conduzir com firmeza a luta contra os nazistas se coloca no primeiro plano. Entretanto, os “três grandes” reconheceram de facto o governo Badoglio e, na sua “Declaração sobre a Itália”, publicada nos finais de outubro de 1943, depois de umas quantas fórmulas gerais sobre a futura democratização do regime político italiano, se faz uma expressa recomendação: a inclusão, no governo, 366

1.. ii iHi hciiUintcs daqueles setores do povo que sempre se opuseram MM 1.1 . I mo". A 12 de novembro, o Pravda publica um artigo de i i llnill (rIc ainda se encontrava na União Soviética: empreende a i , ni di- regresso à Itália em finais de fevereiro de 1944 e desemi ........ ui Nápoles a 27 de março); escreve o chefe do PCI: “As didn'1 que se indicam nesta declaração [das três potências] corresim l, m i-Milumente às aspirações e interesses do povo italiano. Cons11111• ui o programa em torno do qual devem unir-se todas as forças ....Ilnm ÍMiis democráticas do país, a fim de conquistar a sua rápida . ..11 i. ,iu" A Ê supérfluo esclarecer que a essência deste “proi i.iin,i . Mibscrito pelos representantes de Churchill e Roosevelt, era , ui i miiiçào de uma democracia burguesa na Itália. E, para comeiii a li.i implementação, o “programa” exigia o compromisso entre !■iilidos antifascistas e Badoglio — e os partidos antifascistas conidiMiivnm este governo, justamente, como uma sobrevivência do fwndiimo. A posição de Togliatti, inteiramente alinhada à transação a que 1., I ii.mi os ministros de Relações Exteriores dos “três grandes” na i milm-iicia de Moscou, divergia claramente daquela que, nestes dias, ui .m.ii-ntada pelo PCI na Itália. Um documento interno da direção dii pmtldo que atuava na Itália ocupada, de finais de outubro de l'i |t, luz a seguinte colocação: “No momento atual, a função e a 11■i ...ui da classe operária consistem em situar-se na vanguarda da 1,11,1 pda libertação nacional e, através desta luta, conquistar tal inlluôncla no povo italiano que lhe permita converter-se na força dhlgcnte em prol de uma efetiva democracia popular. Esta deve ser „ política do partido”. O documento adverte contra dois erros. Um di Us consistiria em identificar os objetivos da Resistência com a ii-volução proletária, caindo num “extremismo infantil”. “Mas seria mu cito ainda mais grave subestimar, em sentido oportunista, a im­ portância do problema da direção política no complexo de forças nu interior do qual atua a classe operária e, através de uma unidade mal entendida, capitular ante as exigências das forças reacionárias, , ujos representantes são Badoglio e a monarquia, às quais se pode reconhecer uma função auxiliar, mas não dirigente, na luta contra u fascismo e pela libertação nacional” 57. É sintomático que este documento interno tenha sido publicado na imprensa ilegal do par­ tido, sob a forma de artigo, no mês de dezembro — depois que a rádio de Moscou dera a conhecer a posição de Togliatti. Neste período, a política do Partido Socialista não se situava à direita da 367

do PCI — bem ao contrário; e até o Partido de Ação acentuavu que os objetivos da Resistência não podiam se limitar à instauração de uma democracia burguesa 58. No Sul, o Partido Comunista — juntamente com o Socialista e o de Ação — impulsiona energicamente a campanha contra o rei e o marechal. Em fins de janeiro de 1944, reúne-se em Bari um congresso conjunto de todos os partidos antifascistas, com a presença de delegados do Comitê de Libertação Nacional (o CLN constituí­ ra-se em Roma a 9 de setembro de 1943, depois da fuga do rei e do governo, mantendo ali a sua sede clandestina até a libertação da capital, em junho de 1944 — mas a sua atividade prática era muito limitada59). O Partido de Ação propõe ao congresso uma série de medidas, que são apoiadas por comunistas e socialistas e pelos dele­ gados do CLN: exigir a abdicação imediata do rei; constituir-se em Assembléia representativa do país, até a eleição de uma Assembléia Constituinte; designar uma junta executiva encarregada das relações com as Nações Unidas. Os liberais, encabeçados por Benedetto Croce, manobram com habilidade. O filósofo reconhece que o rei é o “ so­ brevivente representativo do fascismo”, mas argumenta que as pro­ postas do Partido de Ação só poderiam ser viabilizadas por um atto di forza, impossível dada a presença dos aliados. A única saída — afirma — é pressionar o rei no sentido da abdicação. O congresso vacila. Nomeia uma junta executiva, mas não se constitui em assem­ bléia representativa nem toma medidas para mobilizar o povo. No entanto, os partidos de esquerda não renunciam às suas posições. Em resposta ao discurso pronunciado por Churchill a 22 de fevereiro, ironizando as resoluções antimonárquicas e antibadoglianas do Con­ gresso de Bari, os operários de Nápoles anunciam uma greve que, ante a oposição das autoridades militares aliadas, é substituída por um grande comício popular onde só intervêm os partidos de es­ querda. O comício é realizado no dia 12 de março. A 14, quando a agitação contra o governo está no auge, Badoglio anuncia o reco­ nhecimento de seu governo pela União Soviética e o restabelecimento de relações diplomáticas entre òs dois países (os aliados ainda não haviam dado este passo). Esta é, em grandes pinceladas, a situação com que se defronta Togliatti ao desembarcar em Nápoles, a 27 de março, disposto a apli­ car o programa italiano dos “ três grandes”. Não surpreende que sua avaliação sobre a política dos partidos antifascistas de esquerda, e especialmente sobre a de seu partido, tenha sido tão severa. Anos 368

ui* ........ lilngi alim que o PCI se metera numa “via perimin i i i n h i Ii. piiiido uo extremo de “organizar comícios < ||.,i mu . , imltii, com outros partidos antifascistas, a possi......... . uniu consulta popular, não por iniciativa do ...............no 111U Io11vii dos partidos” 60. Num abrir e fechar de i ............... um uiii o PCI do atoleiro para o qual deslizara

| u i....IhI...... 1'i’ln estrada, pródiga em perspectivas, da união jKlpIttl!a1 ' 111o ,i nu guerra contra a Alemanha e avançar imediataHi»n> ....... ,i criação de um governo de união nacional”. Inicial,11/ *.i■ na mesma biografia —, “a maioria dos presentes ffo ,, . 1111■ ■lula", mus Togliatti “expôs suas proposições de modo i| i »I.... .. ,, 'iivmeente que ninguém pôde fazer objeções” 61 (segundo .............. . uiiiiçõcs, alguns dos dirigentes veteranos do partido não i , num convencer tão facilmente, mas Togliatti, além do seu lM| ui ,|, iHilcmista, tinha atrás de si todo o prestígio da Interna......... i nimmlsta e da União Soviética. Acabava de chegar de Mosçnii i ........... que Stalin poderia saber o que convinha ao povo ...........1 v a União Soviética reconhecera o governo Badoglio, era li ti 1111•11iivoI que o interesse da causa assim o exigia. . .62).

\ vIrugem de Salerno — la svolta de Salerno, como passará à i,, ....... ,Ki PCI — permitiu finalmente vencer a resistência de sociaH..I.I , ,1,, l'urtido de Ação. O “sacrificio” de Vítor Emanuel III — i......... lendo às pressões de Benedetto Croce e de Roosevelt, anuni.ni » un decisão de afastar-se e nomear seu sucessor o príncipe i ml m io -, uma vez que Roma fora libertada, abriu o caminho ....... o compromisso. Apesar disto, o parto do governo de união ,, » i. uni foi bem árduo. Na última hora, os liberais e o Partido de \, in qiiuse o abortam, mas Togliatti “dirigiu o contra-ataque, com ■ iipoio de Badoglio, do socialista Lizzardi e dos democrata-cristãos Iludi nó e Jervolino e, para encontrar uma saída para a situação, teve ■Itu- aceitar a sua inclusão no governo”. Depois, Jervolino chegou i , omentar que, não fora a questão religiosa, poderia fazer-se comu­ ni.ia e se congratulava pelo espírito de sacrifício demonstrado pelo lldor comunista assumindo um posto ministerial: “ Se não o acei­ tasses — observou a Togliatti — , diriam que o consideravas um governo de imbecis e por isto recusaras participar dele” 63. Não sa369

bemos se, com estas palavras, o político democrata-cristão aludia ao papel pouco lúcido que os líderes antifascistas estavam represen­ tando: até a véspera, denunciavam o rei e Badoglio como sobrevi­ vência do fascismo; denunciavam a sua tácita sabotagem contra a guerra à Alemanha — e agora aceitavam ser ministros do rei, sob o comando do marechal, em nome do “esforço de guerra” contra o invasor e para liquidar as sobrevivências do fascismo. Não era pedir demasiado que o máximo paladino da operação, no qual o prole­ tariado via o seu representante e o representante da União Sovié­ tica, avalizasse com a sua participação a sinceridade dos ideais anti­ fascistas e democráticos do apaixonante governo de união nacional presidido por Badoglio, que assumiria logo que prestasse juramento ante o monarca. Nos documentos do PCI, ou nas interpretações influenciadas pelo ponto de vista do partido, apresentou-se a constituição do governo de união nacional presidido por Badoglio como uma opera­ ção essencialmente italiana, cujo artífice principal foi Togliatti. Na verdade, foi uma operação dos “três grandes” e, segundo fontes soviéticas, o mérito da iniciativa cabe ao governo da URSS. A Grande Enciclopédia Soviética o diz com extrema clareza: “Por inicia­ tiva da URSS, que a 11 de março estabelecera relações diretas com o governo italiano, o gabinete Badoglio foi reorganizado a 22 de abril de 1944, incluindo-se nele representantes dos seis partidos da coalizão antifascista” 64. A “iniciativa” é facilmente compreensível a partir do ponto de vista dos interesses soviéticos. Embora houvesse na Comissão Consultiva para a Itália (criada na Conferência de Mos­ cou dos três ministros de Relações Exteriores e sediada em Argel) um representante da URSS, na prática quem mandava e desmandava no território italiano era a Comissão Militar Aliada, na qual não estavam representados os soviéticos. O reconhecimento diplomático do governo Badoglio conferia a Moscou a possibilidade de somar-se a essa intervenção. O problema, para Stalin, não consistia em o PCI formular uma estratégia capaz de facilitar uma solução revolucio­ nária para a crise do capitalismo italiano; tal problema, na ótica de Stalin, era descartado a priori desde o momento em que a Itália era “libertada” pelos exércitos aliados. A questão era situar, desde o primeiro instante, no tabuleiro italiano, as peças suscetíveis de enfrentar a influência dos fraternais aliados (em 1947, durante a reunião de fundação do Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas, os comunistas italianos serão duramente criticados por 370

/ l i ....... porque não souberam impedir a inclusão da Itália no ii, .......icrleuno — e não pela ausência de uma política orientada , n.i dm uma saída revolucionária ao grande movimento proletário , |,,,|>.11..i que fora deflagrado desde a queda de Mussolini). Como r i ...... .1 "iniciativa” de Stalin de reorganizar o governo Badoglio •i iM.illii viiibilizar-se mediante um acordo com os anglo-americanos. i M,.i. i.indo que exatamente neste mesmo período, para satisfazer . Iímm lilll e a Roosevelt, Stalin exercia toda a pressão possível sobre I iih imii ii que se chegasse a um modus vivendi com o rei Pedro, ....... t,ni preendente que Churchill e Roosevelt pressionassem o rei \ .... I inimuel para que chegasse a um modus vivendi com To, ...... Como dizem os franceses, tout se tient. . .66.

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ii ii

mo nacional ao monopólio democrata-cristão

A união nacional se pôs em marcha. O partido comunista, •liipliimcnte aureolado — “partido da revolução”, “partido de go■. mu" —, começou a crescer rapidamente. E, com ritmo igualmente volli/, lui vez até mais, começaram a se constituir as novas forças pollili ns das velhas classes dirigentes, explorando a fundo a magni­ li, u cobertura que lhes proporcionavam as forças de esquerda, a i... 11>iIidade única que se lhes oferecia de amalgamar a ideologia iimhdonal, o ópio religioso, com as renovadas aspirações por liberilmlr c democracia e até mesmo com o socialismo (o socialismo i! mo, naturalmente). Estas novas forças políticas das velhas classes diligentes começaram a se adensar, assimilando os resíduos do fas. Indio, incorporando a antiga e experimentada burocracia civil e a iiinls mitiga e mais experimentada burocracia clerical, bem como os ........mentos armados do velho Estado. Desenvolvimento paralelo ■ i mplurmente equitativo, porque, no final das contas, o sol da união mu lonal, do secondo risorgimento67, devia brilhar igualmente para I. ni. »*i os italianos, independentemente das suas convicções religiosas . tendências políticas (apenas os fascistas, como justo castigo pelos mi . pecados, ficavam excluídos da comunidade política nacional; in.i lhes restava o recurso de mudarem de pele para reingressar itola). Depois da libertação de Roma, o governo de união nacional rd orça os seus títulos antifascistas e democráticos com a substituição .1. Badoglio por Bonomi — social-democrata reformista na juven­ 371

tude, expulso do Partido Socialista em 1911 por seu excessivo socialchovinismo e chefe, em 1921, de um dos governos que abriram o caminho ao fascismo. Na biografia de Togliatti, revisada por ele mesmo, diz-se de Bonomi: “Apesar de transcorrido tanto tempo, nele ainda permaneciam marcas do período de sua existência em que militara no movimento operário, conhecendo seus problemas e seus impulsos. E provavelmente isto o conduzia a identificar na polí­ tica dos comunistas uma forma do seu velho possibilismo reformista. Daí a sua simpatia por Togliatti e as excelentes relações que man­ teve com ele, mas daí também a origem de frequentes e graves desa­ cordos. O que, nele, punha tudo a perder era a sua exagerada preo­ cupação pela sorte do velho aparelho de Estado e pelas formas exteriores da ordem governamental” 68. Efetivamente, Bonomi tra­ balhou zelosamente para salvaguardar o velho aparelho de Estado, cujas peças essenciais estavam sendo metodicamente integradas no novo aparato. Em troca, a sorte das massas trabalhadoras não lhe perturbava o sono. O dever destas era suportar estoicamente, com espírito de união nacional, o “esforço de guerra”. Il rinnova­ mento sociale69 que todos os partidos — é claro! — inscreviam em seus programas seria realizado quando se vencesse o inimigo externo, quando saíssem de cena as armas e entrassem as urnas. Como dissera univocamente Togliatti em seu primeiro discurso depois que pisara o solo pátrio: “Hoje não se coloca aos operários italianos o problema de fazer o que se fez na Rússia”. Hoje, a questão é derrotar a Ale­ manha hitleriana e, para realizar esta tarefa — a “mais revolucio­ nária deste momento, esclarece Togliatti —, “nós devemos garantir a ordem e a disciplina na retaguarda dos exércitos aliados”. Os problemas sociais de fundo serão tratados quando se reunir a Assem­ bléia Constituinte. Quando chegar esta ocasião, o programa do par­ tido será claro, incluindo uma “profunda reforma agrária” e outras reformas económico-sociais e políticas, cuja realização impedirá que, na nova democracia”, “um pequeno grupo de homens rapaces, egoístas e corrompidos, possam, uma vez mais, concentrar em suas mãos toda a riqueza do país e servir-se dela para suprimir a liber­ dade e impor uma política contrária aos interesses nacionais”. Aos que acusam o partido de “renunciar à revolução”, Togliatti replica: “Deixem-nos em paz! Não se preocupem; este assunto é nosso e o conhecemos um pouco melhor que vocês!” 70. Realmente, era muita pretensão querer dar lições sobre este “ assunto” ao que fora um dos mais eminentes dirigentes do “partido mundial da revolução”. 372

i i putido — é de justiça ressaltá-lo — exigia que se tomassem ,,, .Utili Imediatas para melhorar a situação das massas, para travar H ,1. i uiinidu especulação que enriquecia uma minoria às custas ,i„ ....... dos que lutavam e trabalhavam. Mas os principais especuIhiIum estavam bem protegidos. “A força do grande capitalismo — .........Invìi Togliatti —, as grandes organizações dos industriais, dos i .1111111111iirios e dos banqueiros, estão de pé; não sofreram nenhum ........ durante o fascismo e tratam de conduzir a vida econômica e |u >|ti li o do país numa direção que não tende a satisfazer os intei. , . dos trabalhadores num espírito de solidariedade nacional [sic], um li ..itisfazer os interesses desta casta de possuidores em prejuízo do povo c da nação” 71. Numa situação como a em que se enconIinvìi o puís, de ruína e caos econômico, só era possível melhorar a Htnii.uo das massas atacando a fundo os interesses dessas classes ..... Ics do “espírito de solidariedade nacional”. Mas justamente isto • i,i o que a política de união nacional interditava. Os sindicatos se d. i nvolviam impetuosamente, surgia um vigoroso movimento cam...... no Mezzogiorno, o partido comunista e o socialista — e, em urini, toda a esquerda antifascista — se fortaleciam dia a dia. Mas n política de união nacional exigia que sua ação não ultrapassasse cer1.1 limites, além dos quais se punha em perigo a “solidariedade gover11.imental” e a. . . solidariedade de classes. Nos finais de 1944, a d, ,ilusão das massas com o governo Bonomi era evidente. Na História da Resistência Italiana, de Battaglia e Garritano — , 111c não põem em dúvida, em nenhum momento, a justeza da política d. união nacional do partido, mas que registram os fatos —, assina1.1 se que “um dos argumentos da propaganda neofascista dirigida u n s guerrilheiros e às massas populares, para fazê-los desistir da oposição e da resistência, era a desilusão que, ao sul da Linha Gótica, i omeçava a se generalizar em face do governo democrático” (chamavu-se Linha Gótica a frente dos Apeninos, que permaneceu estável entre setembro de 1944 e abril de 1945; a aludida propaganda neo­ fascista é a do regime fantoche de Mussolini — a “república de Salò” —, instaurado na zona ocupada pelos alemães). “A desilusão explicam os mesmos autores — devia-se principalmente ao fato de que o governo não correspondera às esperanças de renovação do povo italiano. O governo Bonomi deveria ser o governo do CLN, dos partidos antifascistas, substituindo o governo Badoglio, que era o governo dos generais enfeudados ao rei. Mas os generais, mesmo encontrando-se sob o efeito da derrota, estavam dispostos a colaborar 373

com o esforço militar contra os alemães; em Roma, porém, a sua influência foi substituída pela da alta burocracia estatal e a dos resíduos da classe dirigente fascista, que começaram a minar a unidade do CLN e do próprio governo, paralisando a ação demo­ crática” 72. De fato, não era apenas a influência da alta burocracia estatal e dos “resíduos” da classe dirigente fascista que paralisava a “ ação democrática” do governo. O fundamental era que as classes dirigentes, reagrupadas por detrás da democracia cristã, sustentadas por todo o aparato da Igreja e pelos aliados, consideravam possível — e, ao mesmo tempo, necessário, prevendo a entrada na cena polí­ tica, quando da libertação do Norte, das poderosas forças populares organizadas na Resistência — reforçar seu controle político em toda a Itália meridional e central, constrangendo ainda mais as massas populares à passividade. Em novembro, a direção do partido democrata-cristão lança um virulento ataque contra o partido comu­ nista, acusando-o de fomentar a “violência”, a “arbitrariedade” e a “anarquia” 73. Bonomi renuncia. Após uma crise intrincada, forma-se o segundo governo Bonomi. O Partido Socialista e o Partido de Ação negam-se a participar do novo governo que, evidentemente, vai pros­ seguir — em condições mais degradadas — com a política do ante­ rior. Mas o PCI aceita formar o governo com liberais e democratacwstãos. Togliatti é designado vice-presidente do governo, cargo (como consta em sua biografia) “sobretudo honorário e represen­ tativo”, mas considera que esta solução da crise é uma vitória da política de unidade nacional. Para convencer-se desta vitória — argumenta —, basta levar em conta apenas um fato: a crise tinha por objetivo a formação de um governo sem os partidos do CLN, e no novo governo só há membros destes partidos. “ Na primeira batalha que tentaram travar [as forças antidemocráticas] foram plena­ mente derrotadas e nós desempenhamos nesta batalha um papel de grande relevo [. . .] Se se deixassem excluir do governo, os par­ tidos do CLN, e particularmente os mais avançados, teriam compro­ metido as poucas conquistas realizadas por eles; teriam novamente abandonado o aparelho de Estado às forças conservadoras e reacio­ nárias. Assim procedendo — segue Togliatti — , continuamos com a linha de guerra, de união nacional e de ação democrática constru­ tiva, à qual está ligada a sorte da classe operária e a própria sorte do nosso partido” 74. Como diz o provérbio popular, no se consuela el que no quiere 75. 374

Ah forças antidemocráticas, explica Togliatti no mesmo texto, mio "forças escusas que não ousam mostrar-se à luz do dia”. E, de i no mostravam-se apenas através dos aliados, da Igreja, dos liberais, .In democracia cristã, do aparelho de Estado (burocracia civil, forças iinmidas, polícia). Nesse período, a sua tática não era excluir do governo os partidos operários — eram suficientemente inteligentes pnru compreender que a presença “honorária e representativa” de um Togliatti na equipe governamental lhes proporcionava uma ex­ celente cobertura diante do povo, atrás da qual poderiam continuar reforçando as suas posições em todas as estruturas do Estado e da sociedade. Não lhes interessava, em absoluto, que os partidos anti­ fascistas “abandonassem” o aparelho de Estado, por cuja integridade zelava cuidadosamente um Bonomi (e os seus ministros — os de esquerda, claro, já que os democrata-cristãos e liberais comparti­ lhavam do mesmo sagrado respeito pelo inamovível aparelho estatal, independentemente do seu “rejuvenescimento” com novos elementos que não alteravam a sua essência; os de esquerda ou se solidari­ zavam com esta cuidadosa conservação da máquina estatal ou punham em perigo a unidade governamental, peça-chave da sacrossanta unida­ de nacional). O que lhes interessava justamente, às forças conservado­ ras e reacionárias, era que o “novo” Estado, que continuava sendo o seu Estado, não fosse “ abandonado” pelos partidos operários e popula­ res até que se fortalecesse suficientemente, até que o país superasse a perigosa crise política, econômica e social em que se debatia. E os partidos operários, a esquerda antifascista, deveriam respeitar escrupulosamente — e este era o fundo real da crise do primeiro governo Bonomi — o contrato de solidariedade nacional concluído em Salerno. Coisa difícil: a pressão do descontentamento das massas e as suas iniciativas espontâneas tendiam constantemente à ruptura do contrato. Eram necessárias toda a capacidade de manobra política de Togliatti, toda a sua dialética justificativa em face dos comunistas e das massas italianas, todo o seu savoir faire nas esferas da alta política e, muito especialmente, todo o prestígio revolucionário do Partido Comunista, toda a sua virgindade anti-reformista para poder manter o equilíbrio entre as exigências da solidariedade governa­ mental (que incluía, em primeiro lugar, a submissão aos aliados) e a solidariedade com as massas trabalhadoras. O virulento ataque lançado pela direção da democracia cristã contra o PCI era, evi­ dentemente e como diz a biografia de Togliatti, uma “enorme calú­ nia”. Acusar de fomentador da “violência”, da “arbitrariedade” e 375

da “anarquia” o partido que vinha predicando sistematicamente a necessidade de manter “a ordem e a disciplina”, que estimulava no povo italiano a crença nos objetivos libertadores, democráticos e pacifistas dos Aliados, que cultivava nas massas proletárias a cons­ ciência da sua missão nacional, precisando bem que esta não devia ser entendida como o foi pelos proletários russos em 1917 — lançar uma acusação como esta contra este partido não era apenas uma “enorme calúnia”, era algo aparentemente sem sentido. Mas a polí­ tica é a política. A direção da democracia cristã não queria ofender o seu aliado; simplesmente, queria obrigá-lo a apertar um pouco mais o freio imposto às massas populares. Os comitês de libertação, por exemplo, demonstravam uma perigosa propensão — entenda-se: em escala local e provincial — para fortalecer o seu poder, para tomar iniciativas independentes do governo, para, numa palavra, criar uma situação de dualidade de poder. E este era o caminho russo, não o que se combinara percorrer na Itália. Tratava-se de tendências tanto mais perigosas quanto mais próxima estava a hora do Norte, baluarte dos comitês de libertação e dos partidos operários, que dispunham do exército guerrilheiro. Pouco antes da crise minis­ terial, a direção do Partido Comunista definira a sua posição em relação aos comitês de libertação: “Os comitês de libertação nacional, em lugar de serem mantidos à margem, como pretendem fazer certas autoridades, devem ter as suas funções reconhecidas e ampliadas, evitando-se certamente um desdobramento de poderes, mas assegu­ rando-se a ativa participação de todas as forças democráticas e antifascistas no esforço organizado que o país deve realizar” 76. O ataque da democracia cristã ao PCI e a crise ministerial tinham por objetivo assegurar um rumo político no qual as tendências ao “des­ dobramento de poderes” se eliminassem mais radicalmente e a “ativa participação” das forças democráticas e antifascistas se enquadrasse mais estritamente no marco determinado pelo governo. Em contra­ dição com o canto de vitória que entoa imediatamente à resolução da crise ministerial, Togliatti reconhece pouco depois que os “acon­ tecimentos da última crise governamental significam, em vários as­ pectos, o travamento do movimento em direção à nova democracia, determinado pela necessidade de terminar a guerra e assegurar a unidade nacional” 77. As concessões políticas feitas pelo partido para poder continuar no governo não se limitam ao sul da Linha Gótica — maiores, sem dúvida, são as que faz ao norte deste limite. Como já dissemos

i('polidamente, o que mais inquietava as classes dirigentes italianas r im aliados era a eventualidade de uma explosão revolucionária no i lia ic, quando se consumasse a derrota alemã. A primeira medida (losiinada a destruir o movimento guerrilheiro foi a paralisação do avanço aliado, no outono de 1944, permitindo, durante todo o invcrno, que as tropas mussolinianas e hitlerianas se consagrassem à lula contra a Resistência. O general Alexander, comandante-em-chefe das forças aliadas, ordenou aos guerrilheiros que suspendessem todas as operações até a primavera, enterrando as armas e limitando-se a escutar as emissões de rádio do quartel-general aliado (tais ordens foram transmitidas por rádio, de forma que o comando alemão tivesse inteiro conhecimento delas)78. O Comitê de Libertação Nacional da Alta Itália (CLNAI) e o estado-maior do exército guerrilheiro não acataram as ordens de Alexander e decidiram prosseguir na luta. Mas o CLNAI atuava também na linha da união nacional (a direção do PCI para o Norte da Itália rendera-se à viragem de Salerno e, apesar da oposição dos socialistas e do Partido de Ação do CLNAI, prevaleceu a posição da maioria comunista, liberal e democratacristã79). Para chegar a um acordo com o comando aliado e com o governo de Bonomi, o CLNAI enviou à capital uma delegação que, a 7 de dezembro, firmou o chamado “protocolo de Roma”. Os guer­ rilheiros se comprometiam a acatar as instruções dos anglo-ameri­ canos no curso da guerra, a nomear como chefe militar do exército guerrilheiro um “oficial secreto” dos aliados e a seguir as suas ordens até a libertação do território. “Parece que, com este acordo — diz a História da Resistência Italiana, várias vezes citada — , o movimento de libertação foi constrangido a duras concessões; realmente, os Aliados obtinham, de fato, a confirmação de que o movimento guer­ rilheiro ‘não faria a revolução’, o que evidentemente era o objeto da sua preocupação”. “Na verdade — afirmam estes historiadores comunistas — , o êxito não era da parte aliada, mas da parte italiana: o CLNAI era reconhecido oficialmente como governo, não só de facto, mas de jure, no Norte da Itália” e, “como conseqüência do reconhecimento aliado, o governo Bonomi reconhecia, por sua vez, o CLNAI como seu ‘delegado’ no território ocupado — estabelecia-se assim uma ponte entre as duas Itálias, que as forças hostis à Resis­ tência, já reorganizadas na Itália libertada, tentavam obstruir até então” 80. Como se vê, as forças democráticas e operárias, providas com o maravilhoso talismã da união nacional, caminhavam de êxito em êxito. Depois de “derrotar plenamente” as forças antidemocráticas 377

que procuravam excluí-las do governo, conseguiam agora — mediante a simples “confirmação” de que não se propunham “fazer a revo­ lução” — o reconhecimento como “governo legal” do Norte. Os aliados e o governo Bonomi concediam-lhes generosamente o direito de exercer este “governo legal” batendo-se contra hitlerianos e mussolinianos (aos quais, por seu turno, os aliados ofereciam todas as facilidades para liquidar o “governo legal” e suas valorosas unidades guerrilheiras). Todos os interessados se esforçaram para cumprir fielmente o compromisso expresso ou tácito que firmaram. As tropas alemãs, au­ xiliadas pelos neofascistas, desencadearam ofensiva atrás de ofensiva contra o exército guerrilheiro, ao passo que os aliados observavam rigorosamente a pausa que se haviam concedido até a primavera. O governo Bonomi e os partidos antifascistas, ao sul da Linha Gótica, nada fizeram para mobilizar o povo contra esta cumplicidade crimi­ nosa dos aliados. O exército guerrilheiro e a combativa classe operá­ ria do Norte enfrentaram sozinhos as ofensivas fascistas e o duro, interminável, inverno de 1944-1945. E, nesta prova, demonstraram ser não apenas o “governo legal”, mas o poder real na Itália indus­ trial81. Em meados de abril de 1945, quando a Alemanha já está praticamente derrotada, os aliados iniciam a ofensiva sobre a Linha Gótica. O exército guerrilheiro e a classe operária se antecipam, com a insurreição geral. Combinando as ações armadas com as greves insurrecionais, libertam todas as grandes cidades e a maior parte do território antes da chegada das tropas aliadas. Concedamos a palavra a Longo, que foi um dos principais dirigentes da Resistência e da insurreição no Norte da Itália: “Mais de 300.000 guerrilheiros iniciaram, em princípios de abril de 1945, ativos combates no Norte da Itália e libertaram seguidamente Bolonha, Módena, Parma, Pia­ cenza, Gênova, Turim, Milão, Verona, Pádua e toda a região de Veneza, antes da chegada das tropas aliadas. Os guerrilheiros sal­ varam as empresas industriais e as comunicações, que os alemães se preparavam para destruir, fizeram dezenas de milhares de prisionei­ ros e se apoderaram de considerável armamento. Os guerrilheiros estabeleceram em todos os lugares o poder dos Comitês de Libertação Nacional e executaram os principais chefes do fascismo italiano. [. . . ] Durante dez dias, até a chegada das tropas e das autoridades aliadas, os comitês dirigiram toda a vida econômica, política e social no Norte da Itália. Os serviços policiais ficaram a cargo das unidades guerrilheiras liberadas das operações militares de perseguição e de378

Mil nu' das unidades alemãs” 82. Assim, portanto, durante dez dias a ■111■.’•c operária e as massas populares do Norte da Itália tiveram o lii hIr i cm suas mãos, controlaram as principais empresas industriais .1.. país, contaram com 300.000 combatentes organizados (que podelÍMiti scr rapidamente multiplicados) e dispuseram de considerável uiimimento tomado aos alemães. Na fronteira Leste, tinham o exército ievolucionário da Iugoslávia, dono do poder. Na fronteira austríaca, o exército soviético. Mas havia o “protocolo de Roma” , a política dc união nacional e. . . Ialta. Longo termina laconicamente esta parle do seu informe, apresentado na reunião que constituiu o Centro dc Informação dos Partidos Comunistas: “Quando as autoridades nliadus chegaram ao Norte com suas tropas, começaram a expurgar dos curgos importantes os homens da Resistência, nomeados pelos comitês de libertação nacional, substituindo-os por funcionários do velho aparelho administrativo. No que se refere ao governo de Roma, quando os aliados lhe transferiram a direção de todo o país, apres­ sou-se a substituir todas as pessoas designadas pelos comitês de liber­ tação nacional para cargos de responsabilidade por supostos ‘espe­ cialistas’, vale dizer, por funcionários do velho aparelho administra­ tivo” 83. Um historiador soviético resume, da maneira a mais com­ pleta, o que ocorreu: “A administração militar anglo-americana de­ clarou o estado de guerra no Norte da Itália. Aboliu todas as dis­ posições democráticas dos comitês de libertação nacional e destituiu do aparato dirigente os elementos que contavam com a confiança do povo, substituindo-os por funcionários reacionários. Devolveu aos monopolistas e aos latifundiários a propriedade que lhes fora con­ fiscada. Os ocupantes desarmaram os destacamentos guerrilheiros e dissolveram o comitê de libertação nacional do Norte da Itália” 84. O historiador soviético só se esquece de que, no Conselho Consultivo para a Itália, havia um representante soviético e, ao que se saiba, até hoje o governo da URSS não protestou — nem neste organismo, nem em qualquer outra instância — contra o comportamento dos “ocupantes” no Norte da Itália. Esquece-se também de que o PCI foi o primeiro a facilitar o desarme dos guerrilheiros, como recordou Togliatti no V Congresso do partido (dezembro de 1945): “Estamos todos unidos no acordo de não recorrer à violência na luta entre os partidos. Este acordo exige o desarmamento de todos, e fomos os primeiros a fazê-lo, providenciando a sua realização nas unidades guerrilheiras” 85. 379

A insurreição da Itália setentrional suscitou uma onda de entu­ siasmo e esperança entre o povo. Como então se dizia, contra o “vento do Sul” — a política reacionária, travestida de antifascismo, das classes dirigentes tradicionais — levantou-se o “vento do Norte” — a aspiração de milhões de operários, camponeses e intelectuais por profundas transformações sociais e políticas. No curso de 1945, todos os partidos antifascistas de esquerda se converteram em partidos de massas. O comunista saltou de 400.000 membros, em abril, para 1.700.000, em dezembro. Já nesse mês, o socialista contava com cerca de 800.000 membros. E o Partido de Ação, que expressava as ten­ dências da pequena burguesia radicalizada e, particularmente, de importantes núcleos intelectuais, chegava à cifra de 250.000. Inclu­ sive na democracia cristã — que, como observava Togliatti, eram dois partidos num só, abrigando “duas almas opostas” — as cor­ rentes de esquerda, especialmente entre a juventude do partido, cresceram consideravelmente. A Confederação Geral do Trabalho, que unificava, no plano sindical, todas as tendências políticas da classe operária, chegou a reunir rapidamente mais de 5.000.000 de filiados. No Mezzogiorno se desenvolvia um vigoroso movimento de jornaleiros e camponeses. Os comitês de gestão constituídos em todas as grandes fábricas do Norte, em defesa da insurreição, mantinham-se organizados, embora não fossem legalmente sancionados. E, sobre­ tudo, os operários tinham consciência de sua força e estavam dis­ postos à luta86. Apesar das medidas governamentais e dos aliados, voltadas para depurar os comitês de libertação e preparar a sua liquidação, estes órgãos unitários do antifascismo (nos quais, em escala local e provincial, predominavam geralmente as tendências de esquerda) defendiam tenazmente a sua sobrevivência. Do mesmo modo, apesar de todas as medidas tomadas para o desarmamento, muitas armas foram escondidas e a possibilidade de criar, em grande escala e sobre a base dos combatentes da Resistência, organizações paramilitares de autodefesa era indiscutível — só dependia da disposição das forças antifascistas de esquerda. Ao mesmo tempo, a ruinosa situação econômica do país exigia objetivamente — se a restauração econômica se direcionasse segundo os interesses dos tra­ balhadores — a urgente realização de radicais reformas de estrutura, o ataque profundo contra a propriedade dos grandes industriais, banqueiros e agrários. Ademais, continuava presente o fator nacional. O comportamento colonialista dos novos ocupantes feria os senti­ mentos nacionais exaltados pela guerra contra o ocupante alemão. 380

I stava dada, portanto, urna sèrie de premissas políticas, econômicas c sociais e de tipo organizacional muito favoráveis para que a es­ querda antifascista e operária, rompendo com a linha de compro­ missos e composições com a direita “antifascista”, instrumento poli­ tico das classes dirigentes tradicionais, pudesse passar a uma estraté­ gia ofensiva, mobilizando milhões de trabalhadores manuais e in­ telectuais para uma democracia avançada, de conteúdo socialista. O "vento do Norte” significava a possibilidade latente de organizar uma luta enérgica de massas pela defesa e fortalecimento de múl­ tiplas formas incipientes de um novo poder democrático, que vieram surgindo durante a guerra de libertação, e a favor da insurreição de abril. A palavra de ordem lançada pelo Partido de Ação — levar a termo a “revolução do Comitê de Libertação Nacional” — refletia a disposição de um amplo setor da pequena burguesia (sobretudo das camadas intelectuais e profissionais) para caminhar, junto com a classe operária, no sentido de uma transformação democrática so­ cialista. Em junho de 1945, sob a pressão do “vento do Norte”, forma-se um novo governo da coalizão antifascista, presidido por F. Parri (a personalidade mais destacada do Partido de Ação, presidente do CLN da Alta Itália), mas até as posições vagamente socializantes dos homens do Partido de Ação eram consideradas como excessi­ vamente esquerdistas pela direção togliattiana. O PCI — sem cuja iniciativa e concurso era impossível o reagrupamento da esquerda e a passagem a uma estratégia ofensiva — continuava aferrado à política de união nacional aberta com la svolta de Salerno. Aqueles que, no seu interior, preconizavam uma nova viragem, desta vez à esquerda, eram rotulados como “aventureiros” ou “esquerdistas” ; segundo o diagnóstico oficial, contraíam a “ doença infantil” e não compreendiam a “relação de forças”. Em nenhum documento — da época ou posterior — do PCI se pode encontrar uma verdadeira análise desta “relação de forças”; o pressuposto de que ela não permitia uma solução socialista para a crise do capitalismo italiano era manipulado pela direção do PCI (tanto como a do PCF fazia em relação à crise do capitalismo francês) como um princípio meta­ físico, ou um axioma matemático, a partir do qual toda a política do partido ficava justificada, assentada numa consideração rigorosa da “situação objetiva”. Mais adiante, voltaremos a esta famosa questão da “relação de forças” existente no cenário italiano — bem como no francês — durante o biênio 1944-1945. Por agora, interessa381

nos apenas registrar que, para a direção togliattiana, tal “relação” impunha a submissão a dois imperativos, cuja transgressão poderia acarretar as maiores desgraças para a classe operária e para o partido: manter a coalizão com a ala burguesa do antifascismo e evitar qual­ quer conflito com os Aliados (cada um desses imperativos, forçosa­ mente, implicava o outro: não era possível conservar a coalizão com a direita do antifascismo se se entrasse em choque com os Aliados e reciprocamente). Sujeitando-se a estas coordenadas, o partido deixava a iniciativa nas mãos da direita, condenando-se ao exercício exclusivo de uma função de pressão. Reclamava, exigia, propunha, mas nada fazia para desenvolver na ação o potencial revolucionário do formidável mo­ vimento operário e popular que fervia no país. A Itália vive uma “revolução democrática” — escreve Togliatti no verão de 1945, de­ pois de formado o governo Parri — e a classe operária “exige” um papel dirigente: “A classe operária e a massa trabalhadora reivindi­ cam marcar com o seu selo a mutação democrática que está se pro­ duzindo e, dada a bancarrota das velhas castas dirigentes reacioná­ rias, exigem um papel dirigente de primeiro plano na solução de todas as questões colocadas pela revolução democrática e, em geral, na direção do país. Daí resulta, como conseqüência inevitável, que os problemas da emancipação econômica e social dos trabalhadores, e todas as questões conexas, tendam a receber um começo de solução, conforme as aspirações populares, no próprio curso da revolução de­ mocrática’’ 87. Pois bem: em virtude de que mágico mecanismo o fato de a classe operária “reivindicar” na revolução democrática a marca do seu selo, de “exigir” um papel dirigente, acarretará, como “con­ seqüência inevitável”, o início da solução socialista (a “emancipação econômica e social dos trabalhadores”)? O mistério não é esclarecido por Togliatti, nem neste nem em outros trabalhos. Mas, em dezembro desse mesmo ano, ele explica o que ocorria na prática, qual o destino das “exigências” operárias e como se começava a resolver o problema da sua emancipação econômica e social; diz no seu informe ao V Congresso do partido: “Não é possível avançar com um regime cujo governo está paralisado porque, quando é preciso tomar medidas eficazes em qualquer domínio, os partidos de es­ querda que desenvolvem uma ação democrática conseqüente confrontam-se com uma contínua chantagem, que os obriga a submeter-se à inércia governamental e, inclusive, a aceitar medidas antidemocrá­ ticas para evitar crises que levariam o país ao caos” 88. Como se 382

depreende do texto, a “paralisia” afetava a “ação democrática conseq U e n t e a s medidas antidemocráticas se aplicavam, ao passo que ir. democráticas ficavam nas resoluções dos partidos de esquerda ou nos discursos dos seus dirigentes. Diante da “chantagem” — ameaça de ruptura da coalizão governamental ou de intervenção aliada —, o PCI e, atrás dele, os outros partidos de esquerda resignavam-se com o curso reacionário da direita, aceitavam compromissos que seria difícil incluir entre os que Lênin considerava admissíveis para um partido revolucionário. E, segundo uma lógica bem comprovada em todas as crises sociais, quando não há um partido revolucionário capaz de colocar-se decididamente à frente das massas, as camadas intermediárias, flutuantes, começam a evoluir para a direita. Em dezembro, produz-se a crise do governo Parri. Enquanto a classe operária “exige” um papel dirigente, a burguesia — velhas e novas “castas” — consolida as suas posições no Estado e põe de tiasperi à cabeça do governo. Registram as Crônicas da Vida Ita­ liana, dos biógrafos de Togliatti: “ O vento do Norte sofreu um golpe decisivo; todo o debate centrou-se sobre o problema de república ou monarquia, com o embate social estimulado pela insurreição de abril sendo contido. O vento do Norte e o vento do Sul chegaram a um compromisso” 89. Com efeito, no lugar do inquietante tema capitalis­ mo ou socialismo que, desde abril, tendia a situar-se no centro da luta política, todos os partidos se puseram de acordo para colocar em primeiro plano a questão monarquia ou república, bem menos perigosa para as classes dirigentes e muito adequada para inflamar a imaginação meridional. Simultaneamente, o desmantelamento dos comitês de libertação e a liquidação da Resistência a todos os níveis prosseguiam metodicamente. Os centros efetivos do poder burguês e dos Aliados não perdiam tempo. A “depuração” não avançava um passo, mas o secretário-geral do Partido Comunista continuava gerindo com exemplar competência o Ministério da Justiça90. A 2 de junho de 1946, as urnas darão maioria à opção republi­ cana e, ao mesmo tempo, consagrarão a hegemonia da Democracia Cristã (DC) na política italiana. Nos dias de Salerno, a DC era apenas um — e não o mais influente — entre os partidos da coalizão anti­ fascista que entraram no governo Badoglio. Em dois anos de “união nacional”, converteu-se no primeiro partido político da Itália. As eleições para a Assembléia Constituinte (realizadas simultaneamente ao referendum sobre a forma do regime) conferem-lhe 8.000.000 de votos (35,2% dos sufrágios), contra 4.300.000 (18,9%) dados aos 383

comunistas e 4.700.000 (20,8%) ao Partido Socialista. Nesses oito milhões de votos se incluíam a maioria da massa camponesa e da pequena burguesia e até um percentual de operários — massa que votava no partido manipulado pelos grandes industriais e agrários porque não via diferença substancial, quanto aos objetivos sociais, entre ele e os partidos operários — com a vantagem da conciliação com a Igreja e a religião. Os democrata-cristãos — observa um dirigente do PCI — apresentaram-se às eleições constituintes “com um programa social e de reformas estruturais que respondia às aspi­ rações dos trabalhadores católicos e era substancialmente idêntico ao dos comunistas e socialistas” 91. Togliatti assinalou este fato imediatamente depois das eleições, reconhecendo que comunistas e so­ cialistas haviam cometido um erro ao não se distinguirem nitida­ mente: diante das generalizadas declarações dos democrata-cristãos, segundo as quais “seu programa econômico e social não se diferen­ ciava em nada do programa dos socialistas e dos comunistas, estes, em geral, limitavam-se a exigir daqueles que se pronunciassem cla­ ramente a favor da república” 92. Mas não havia qualquer novidade nisto. Desde a queda de Mussolini, durante a guerra de libertação nacional, ao longo de 1945, quando o “vento do Norte” agitava o país, o PCI, antes de tudo preocupado em salvaguardar a “união nacional”, facilitara a demagogia social do novo instrumento político das classes dominantes. E não só reduzindo o seu próprio “programa social” a reformas compatíveis com a democracia burguesa, mas ainda renunciando a promover uma luta efetiva, de massas, em prol da realização daquelas reformas; renunciando, sobretudo — e isto era o decisivo — , à luta por afirmar e consolidar o novo poder democrático que a Resistência trazia em si, a partir do qual teria sido possível um avanço real para o socialismo. Numa palavra, a política do PCI facilitara que o “programa econômico e social” da DC não fosse questionado em sua sinceridade pelas massas. É verdade que as eleições para a Constituinte realçavam a enor­ me força reunida pelos dois partidos operários — os 40% de votan­ tes que se pronunciaram por eles incluíam a grande maioria do proletariado industrial e agrícola, importantes setores do campesinato e das camadas médias urbanas e, também, da intelectualidade. Mas esta força, depois das eleições, continuou desempenhando, na prática, um papel secundário, brilhante porém não de protagonista, no pro­ cesso político. Com toda razão poderá escrever Maurice Vaussard, historiador da democracia cristã européia: “No fundo, enquanto du384

mu n iripurtidarismo, Togliatti e Nenni, mesmo resmungando de vez ■in ■ 23 Cfr. de Gaulle, M é m o ir e s d e G u erre, Plon, Paris, t. II, PP- 291-292. 24 A referência à intervenção de Duelos se encontra em H isto ir e d u P C F (U n ir), t. II p. 246. Do relato dos autores desta obra — militantes do partido que, à época, ocupavam cargos de responsabilidade e estão muito distanciados de qualquer “esquerdismo” — se depreende, sem que fiquem duvidas, a forte pressão que a massa do PCF e, em geral, a massa popular exerciam sobre a direção para que esta imprimisse à sua política um espírito ofensivo. Nos comitês de libertação desenvolvia-se a tendencia para converte-los em órgão de poder. Em outubro de 1944, os delegados dos comitês de libertação de quarenta departamentos do Sul da França se reuniram em Avignon, resol­ vendo convidar os comitês locais a “convocar, nas cidades e aldems as embléias patrióticas para expor o programa de açao do Comitê Nacional d Resistência, para concretizar este programa em face das !,?CA 9 para submeter a composição e a ação destes à ratificaçao popular . e 10 de dezembro, os comitês locais de libertação da região do Sena, reunidos na prefritura de Paris, inspiraram-se neste movimento do Sul para propor que as assembléias patrióticas populares preparassem grandes pod^es legislativos representando todas as camadas da populaçao. A reunião destes leSatívos oco “reu mais tarde em Paris, mas o movimento morrera em conseqüência da linha do partido que, como explicaremos em seguida, preconizou a subordinação rigorosa dos comitês de libertação ao governo central. 25 Cfr. H is to ir e d u P C F (U n ir), pp. 2 4 7 -2 5 1 . Segundo os autores desta obra, Thorez nunca refutou estas e outras alegações das memórias de de Gaul . 26 M. Thorez, O e u v r e s, t. 20, pp. 181-182, 187-188. 2 7 M u ito in o p o r tu n o (em francês, no original). N. do T. 28 De Gaulle explica assim a viagem: “A fim de obter do partido comunista o período para tomar fôlego de que eu precisava para ter a situaçao nas maos, tive que ir a Moscou e firmar acordos” (citado por Fauvet, o p . c,t„ p._ 148). Como justamente observa Fauvet, esta não podia ser a un.ca razao da viagem — mas, indubitavelmente, era um dos seus motivos essenciais. Em troca, não nos parece fundada a interpretação de Fauvet segundo a qual Thorez, desde o seu regresso, postulava o reforço do poder dos comitês; de libertação, a manutenção das milícias, etc., e que a viragem se produziu na reunião do Comitê Central de finais de janeiro, em consequência do 469

acordo de Gaulle-Stalin. Na realidade, desde que pisou em solo francês _ e já antes, em suas alocuções pela Rádio Moscou —, a orientação de Thorez é para liquidar o poder autônomo surgido da Resistência e da Libertação nos altares da reconstrução do velho Estado democrático-burguês. Sua fórmula — “um só Estado, uma só polícia, um só exército” —, lançada imediata­ mente após sua chegada (H isto ire d u P C F / U n ir, t. II, p. 247), mostra-o com eloquência. Mas, dado o estado de ânimo existente no partido e no pais, havia que proceder com cautela. Thorez começa por louvar o papel dos comitês de libertação, exigindo, porém e ao mesmo tempo, sua subor­ dinação aos órgãos do novo Estado — esta é a sua colocação no ato do Velódromo de Inverno, a 14 de dezembro de 1944. O acordo de Gaulle-Stalin é utilizado para acentuar esta linha até a forma acabada, contundente e pública que toma no Comitê Central de janeiro. É significativo que na recente edição das O e u v r e s C h o is ie s de Thorez, em três tomos (Ed. Sociales, Paris, 1966), não se tenha incluído nenhum dos artigos e discursos do período entre sua chegada a Paris e a reunião, de finais de janeiro, do Comitê Central não se reproduz o seu informe a esta reunião, no qual se coloca a disso­ lução das milícias, etc. 29 Sobre os informes de Benoit Frachon, cfr. H isto ir e d u P C F (U n ir) t II pp. 262-264, ’ ’ 30 Cfr. o t. 21 das O e u v re s de Thorez, pp. 128-129, 100, 57, 129 118 127 e t. 20, p. 183. 31 Thorez, O e u v r e s C h o isies, 1966, t. II, p. 399. 32 Thorez, O eu v re s, t. 22, p. 141. 33 Citamos segundo Fauvet, H is to ir e d u P C F , cit., t. II, p. 172. 34 Thorez, O eu v re s, t. 22, p. 105. 35 Eis a versão que os autores da H is to ir e d u P C F (U n ir) dão das negociações entre o PCF e a SFIO sobre o problema da unidade entre os dois partidos: em novembro de 1944, a SFIO publicou uma resolução com a seguinte proposta: “O Partido Socialista renova solenemente ao Partido Comunista francês a proposição da unidade, feita já na luta clandestina”. Pouco depois formou-se uma c o m issã o d e e n te n d im e n to , cuja tarefa era elaborar um memo­ rando destinado a preparar a unidade orgânica socialista-comunista. Nesta co m issã o , as posições dos delegados do PCF revelavam uma intransigência formal que contrastava com as concessões de princípio admitidas para continuar em boas relações com o general de Gaulle ou participar do gover­ no. Ia-se ao ponto de exigir que uma ca rta d e u n id a d e com os socialistas incluísse um parágrafo de aprovação incondicional às posturas da URSS e de reconhecimento da supremacia do PC (bolchevique). Na verdade, exi­ gia-se dos socialistas que se fizessem comunistas, fiéis ao PC soviético e a Stalin (cfr. o p . cit., t. II, pp. 254-455). 36 Thorez, O e u v re s, t. 22, p. 207. 32 Ib id ., p. 132. 33 40.000 vítimas, segundo os autores da obra soviética citada na nota 2 deste capítulo (cfr., na fonte, a p. 369). Os redatores do manual soviético se referem à repressão da insurreição argelina pelos imperialistas franceses, sem mencionar, absolutamente, a presença de ministros comunistas no governo. 32 Thorez, O e u v r e s C h o isies, t. II, pp. 351-352 (A r ie s: alusão ao IX Congresso do PCF, realizado nesta cidade antes da guerra). 43 Fauvet, H isto ir e d u P C F , cit., t. II, pp. 194-195. O propósito de imputar a responsabilidade da guerra a “provocadores vietnamitas” é assinalado em H isto ir e d u P C F (U n ir), t. III, p. 31. Como se sabe, a independência do Vietnã 470

c H instauração da república democrática em todo o território foram o resul­ tado da vitoriosa insurreição popular de agosto de 1945, dirigida pelo Partido Comunista. A agressão colonialista francesa começou praticamente no outono daquele ano. As tropas francesas, desembarcadas sob o pretexto de desarmar os japoneses, reocupam Saigon e obrigam as autoridades da república a se refugiarem nas áreas rurais. Em todo o ano de 1946 se sucedem as provocações e as medidas destinadas a reinstalar o regime colo­ nial. O bombardeio de Haiphong, que causa 6.000 mortos, marca a passagem à guerra aberta. Cfr. Fauvet, o p . it., t. II, p. 195. 42 a 29 de março de 1947, a fim de liquidar com o movimento de libertação nacional de Madagascar, as autoridades francesas provocaram conflitos san­ grentos. O povo resistiu, levantando-se em vários pontos da ilha. A insurrei­ ção foi implacavelmente reprimida e vários dirigentes do movimento de libertação — entre eles, quatro deputados ao parlamento francês — foram condenados à morte. 43 Cfr. Thorez, O eu v re s, t. 21, pp. 63-64 (informe ao X Congresso, junho de 1945); O e u v re s C h o isie s, t. II, p. 452; O eu v re s, t. 23, pp. 115, 10 ( L e c o e u r le n d re : coração mole — em francês, no original). N. do T. 44 M a n e ira b ru sca . Em francês, no original (N. do T.). 45 Thorez, O eu vres, t. 23, p. 9. A citação de Blum foi tomada de Fauvet, op. cit., t. II, p. 185. Na mesma página deste livro de Fauvet se alude a um artigo de C a h ie rs d u C o m m u n is m e , revista do PCF, número de 17 de julho de 1946, no qual se critica os socialistas por abordarem o problema alemao colocando em primeiro lugar as exigências do “internacionahsmo ou do “socialismo”, já que, “no período atual, os problemas devem ser resolvidos, antes de tudo, a partir do ponto de vista nacional francês”. 46 A p u d Fauvet, o p . cit., t. II, p. 198. 47 Em russo, não (N. do T.). 48 Thorez, O eu vres, t. 23, p. 122 (discurso na assembléia da Federação do Sena do PCF). 49 Denominou-se assim ao parlamento saído das eleições de 1919, com esma­ gadora maioria conservadora e nacionalista (433 deputados entre 613). Em fins de 1919 e ao longo de 1920, multiplicaram-se as greves. 50 A p u d Fauvet, o p . c it., t. II, p. 199. 51 Togliatti, L e P a rti C o m m u n is te Ita lie n , Maspero, Paris, 1961, pp. 109-110. 52 R. Battaglia, S to ria d e lia R e s is te n z a Ita lia n a , Einaudi, 1955, p. 83. 53 Cfr. a B r e v e S to ria d e lia R e s is te n z a Ita lia n a , de R. Battaglia e G. Garritano, Ed. Riuniti, 1965, p. 36. 54 Informe de Luigi Longo à reunião constitutiva do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, incluído na C o n fe r ê n c ia d e I n fo r m a ç ã o d o s P ar­ tid o s C o m u n is ta s, ed. Lenguas Extrangeras, Moscou, 1948, pp. 227-228 (cita­ remos esta fonte, em seguida, como C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947). 55 Cfr., por exemplo, Henri Michel, L e s M o u v e m e n ts C la n d e stin s en E u ro p e , PUF, Paris, 1965, pp. 47-48. Em seu discurso na comemoração do 35.° ani­ versário de fundação do PCI, Togliatti referiu-se a este período da seguinte maneira: “Em 1943, no mês de março, os operários de Turim entraram em greve para defender-se da odiosa exploração e para combater a política fascista de guerra. O movimento, há que recordá-lo, foi preparado, orga­ nizado em todas as suas fases e dirigido por comunistas, pelos camaradas que constituíam o núcleo do interior do nosso partido, liderados pelo camarada Massola. Esta greve foi um dos golpes de misericórdia no regime 471

fascista. Quando, depois, este regime caiu, em 25 de julho, e quando entra­ ram em colapso todos os velhos fundamentos do Estado burguês, começou a maior insurreição popular da história da Itália. O povo tomou a iniciativa, assumiu a sorte do país, organizou-se, dotou-se de um exército e de líderes e lutou para salvar a pátria da destruição e da catástrofe. E éramos nós que estávamos na vanguarda, nós, velhos e novos combatentes” (“35 années de lutte pour la liberté et le socialisme”, C a h ie rs d u P a rti C o m m u n is te Ita lie n , séction pour l’étranger, 1956, pp. 14-15). 56 Togliatti, “A Itália em guerra contra a Alemanha”, P ravda, 12 de novem­ bro de 1943. Tomamos o texto das O b ra s E s c o lh id a s de Togliatti, publicadas em russo pela Editora de Literatura Política, Moscou, 1965. O parágrafo citado encontra-se no t. I, p. 274. Neste artigo, Togliatti omite que a decla­ ração das três potências sobre a Itália continha uma disposição segundo a qual, enquanto durasse a guerra, todo o poder efetivo ficava nas mãos das autoridades aliadas — o direito do povo italiano de escolher democra­ ticamente o seu governo era adiado para depois da vitória. 57 Citado por Pietro Secchia no ensaio “Movimento operaio e lotta di classe alia Fiat nel periodo delia Resistenza”, publicado na R e v is ta S to ric a d e i S o c ia lism o , n.° 22, 1964. 58 Num artigo de 1965, Lelio Basso refere-se a uma reunião celebrada em Milão, pouco tempo antes da queda de Mussolini, da qual participavam representantes dos partidos comunista, socialista, de Ação e democrata-cristão. Escreve Basso: “Recordo o embaraço do companheiro Marchesi [represen­ tante do PCI] ao 1er um texto inteiramente dirigido para oferecer garantias e segurança à burguesia contra a perturbação da ordem social (a preocu­ pação, inclusive, era tranqüilizar os industriais, dizendo-lhes que o governo antifascista lhes ressarciria os danos da guerra), e recordo a ingênua obser­ vação do representante democrata-cristão, após a leitura: ‘Agora, nós, os demo­ crata-cristãos, estamos mais à esquerda que os comunistas’ ” (L. Basso, “II rapporto tra rivoluzione democrática e rivoluzione socialista nella Resis­ tenza”, C ritic a M a rx is ta , julho-agosto de 1965). 58 A partir da ocupação do Norte e do Centro da Itália pelos alemães, existiam três Comitês de Libertação com âmbito nacional: o do Norte da Itália, o que tinha sede em Roma e teoricamente era o organismo supremo, mas que, na prática, não dirigia o movimento sequer na zona central, e o instalado em Nápoles. 50 Marcella e Maurizio Ferrara, P a lm ir o T o g lia tti, Éditions Sociales, Paris, 1954, p. 339. Esta obra foi revisada e corrigida pelo próprio Togliatti; redigiu-se a partir de entrevistas com ele e sobre a base de documentos do partido italiano. Portanto, o que nela se diz pode considerar-se como a versão e a opinião do próprio Togliatti em relação aos acontecimentos referidos. 61 Ib id ., p. 340. 62 A versão de que alguns dirigentes veteranos do PCI opuseram certa resis­ tência às teses de Togliatti, nós a recolhemos de funcionários da Seção Estrangeira do Comitê Central do PCUS, quando ainda eram recentes a formação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e a crítica então feita à política seguida pelo PCI. 63 M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 350. 64 G r a n d e E n c ic lo p é d ia S o v ié tic a , em russo, t. 19, p. 86. Na obra de história contemporânea que serve de manual na Escola Superior do PCUS se diz, com mais precisão: “Por exigência do governo soviético, o Conselho Con­ sultivo para a Itália [formado pelos representantes da URSS, Estados Uni­ dos, Inglaterra e França] adotou uma decisão especial sobre a constituição

imediata, pelo marechal Badoglio, de um governo com a participação de todos os partidos antifascistas” (N o v e is h a ia isto rila [H istó ria C o n te m p o r â n e a ], parte II, Moscou, 1959, p. 582). 6! Mais adiante, trataremos das pressões de Stalin sobre Tito. 66 T o d o s se a rra n ja m — em francês, no original (N. do T.). 67 Denomina-se ris o rg im e n to ao movimento pela autonomia e unidade italianas, articulado em finais do século XVIII e que percorre todo o século XIX. O tema foi objeto de vários escritos de Gramsci, entre 1929 e 1935, na prisão, depois reunidos no volume II R is o r g im e n to (Einaudi, Turim, 1949). N. do T. 68 M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 362. 67 A re n o v a ç ã o s o c ia l — em italiano, no original (N. do T.). 70 Togliatti, “La política di unità nazionale dei comunisti” (discurso de 11 de abril de 1944), C ritic a M a rx is ta , julho-outubro de 1964, pp. 24, 34, 42 e 34. 71 Togliatti, “Avanti, verso la democrazia” (discurso de 24 de setembro de 1944), ib id ., p. 74. 72 Battaglia e Garritano, o p . cit., p. 192. 73 M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 369. 74 Ib id ., pp. 369, 371-372. 75 N ã o se c o n so la a q u e le q u e n ã o o d e se ja (N. do T.). 76 M. e M. Ferrara, o p cit., p. 369 (sublinhados nossos). 77 Togliatti, O b r a s E sc o lh id a s, em russo, cit. na nota 56, t. I, p. 379. 78 Cfr. Battaglia e Garritano, o p . cit., p. 189. T> Ib id ., p. 91. so Ib id ., pp. 202-203. 81 Aproveitando a dureza do inverno, o inimigo, movimentando forças impor­ tantes, tentou isolar as unidades guerrilheiras nas zonas altas das montanhas, separando-as das suas bases de aprovisionamento. Os guerrilheiros decidiram infiltrar-se por entre as unidades inimigas e descer aos vales e planícies. Esta tática — chamada de p ia n u r iz z a z io n e [de p ia n u ra = plano] — deu magníficos resultados, graças ao apoio massivo da população. Simultanea­ mente, reforçou-se o dispositivo da luta armada nos centros industriais, nas grandes fábricas. 82 Informe de Longo à reunião constitutiva do Centro de Informação dos Par­ tidos Comunistas. C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., pp. 228-229. 83 Ib id ., p. 230. 84 N o v e is h a ia isto riia , cit., p. 583. 85 Togliatti, “Rinnovare lTtalia” (informe ao V Congresso do PCI), C ritic a M a rx is ta , julho-outubro de 1964, p. 96. 86 Os “comitês de gestão” formaram-se por um decreto do Comitê de Liberta­ ção do Norte da Itália às vésperas da insurreição. Eram organismos em que estavam representados operários, funcionários e técnicos, com a função de dirigir as empresas junto com comissários do governo e patrões (cfr. o informe de Longo citado na nota 82, p. 229). 87 C h .R in a s c ita , n.° 5-6, maio-junho de 1945 (sublinhados nossos). 88 Togliatti, “Rinnovare lltalia”, o p . cit., p. 99. 87 Marcella e Maurizio Ferrara, C r o n a c h e d i v ita ita liana, 1944-1948, Ed. Riu­ niti, 1960. Tomamos a citação da versão francesa dos capítulos VII e VIII, incluídos em R e c h e r c h e s In te rn a tio n a le s, n.° 44-45, 1964, p. 205. 473

90 Togliatti foi ministro da Justiça da Libertação até as eleições de 2 de junho de 1946. O principal problema concernente ao seu ministério era a depuração e o castigo dos quadros do fascismo. A orientação do partido, indubita­ velmente correta, era concentrar a operação nos verdadeiros responsáveis, nos quadros superiores — mas não se efetivou mais que nuns poucos casos. As forças burguesas e os aliados sabotaram a depuração por todos os meios. E o partido não lutou energicamente para impedir esta sabotagem. Assinala-o até um historiador da democracia cristã européia, Maurice Vaussard: “Se a depuração foi frustrada — e o foi, radicalmente, sobretudo no Sul —, deveuse, parcialmente, sem dúvidas, à presença e à influência dos exércitos aliados e à oposição dos meios liberais de direita, mas também à extraordinária indulgência de que deram provas os encarregados pela depuração, principalmen­ te os próprios Togliatti e Nenni, que se sucederam no o^rgo. Evidentemente, eles se deram conta de que a Itália não podia preencher, ainda que o quisesse, com vantagens os postos que ficariam vacantes. As sucessivas anistias fizeram o resto e permitiram que os piores adversários da democracia — como o príncipe Valerio Borghese ou o diplomata Anfuso, um dos chefes europeus do neofascismo — levantassem a cabeça” (H is to ir e d e la D é m o c r a tie C h r é tie n n e , Seuil, Paris, 1956, pp. 275-276). 91 Emilio Seregni, I l M e z z o g io r n o a ll’O p p o s iz io n e , p. 60. Sublinhado no original. 92 Togliatti, O b ra s E sc o lh id a s, em russo, t. I, p. 463. 92 Vaussard, o p . cit., p. 275. Por “tripartidarismo” o autor entende os governos baseados fundamentalmente nos democrata-cristãos, comunistas e socialistas. 94 A c o r d o tá c ito . Em francês, no original (N. do T.). 95 Vaussard, o p . cit., pp. 276 e 274. 96 Os biógrafos de Togliatti assinalam que o “conteúdo social introduzido na Constituição” o foi “graças a um acordo com parte dos próprios democratacristãos” (M. e M. Ferrara, o p . cit., p. 389). ■97 Os princípios sociais mais “avançados” incluídos na Constituição italiana são os seguintes: “A Itália é uma República democrática baseada no trabalho” (art. l.°), Cabe a Republica superar os obstáculos de ordem econômica e social que, limitando de fato a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impe­ dem o completo desenvolvimento da personalidade humana e a efetiva parti­ cipação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país” (art. 3.°); “O trabalhador tem direito a uma retribuição proporcional à quantidade e à qualidade do seu trabaho; em qualquer caso, esta retri­ buição deve ser suficiente para assegurar a ele e a sua família uma existência livre e digna” (art. 36). De acordo com Togliatti, estes “princípios fundamen­ tais” inscritos na Constituição “impõem uma transformação do velho sistema econômico e político italiano e indicam uma via de desenvolvimento orientada para o socialismo” (Togliatti, L e P a r ti C o m m u n is te Ita lie n , cit., p. 128). Convém observar que esta “via de desenvolvimento orientada para o socialismo” foi aprovada pelo partido que representava, principalmente, a grande burguesia italiana e o Vaticano, meio ano depois da exclusão dos comunistas do governo. Como ficou claríssimo na discussão dos diferentes artigos e, em particular, na do primeiro, todo esse “conteúdo social” está fundado — como ocorreu com a predecessora mais direta da Constituição italiana de 1948, a Constituição espanhola de 1931 — num equívoco: os conceitos de trabalho e “trabalhador” servem para designar indistinta­ mente o operário e o capitalista, o camponês e o grande proprietário agrário e seus respectivos “trabalhos”. Isto fica perfeitamente claro, por exemplo, na coletânea de ensaios sobre a Constituição italiana reunida nos C a h ie rs d e là F o n d a tio n N a tio n a le d es S c ie n c e s P o litiq u e s, Armand Colin, Paris, 1950. 474

98 Togliatti, “Rinnovare l’Italia”, ed. cit., pp. 117 e 115. 99 Cfr. R e c h e rc h e s In te rn a tio n a le s, ed. cit., p. 228. 100 Ib id ., p. 227. 101 A p u d M. e M. Ferrara, P a im iro T o g lia tti, ed. cit., pp. 388-389. '0 2 A referência do autor é aos congressos de Livorno e Tours, nos quais, respec­ tivamente, dos partidos social-democratas, saíram as frações que constituiram os partidos comunistas italiano e francês (N. do T.). 103 E. Reale, A v e c J a c q u e s D u e lo s a u B a n e d e s A c c u s é s a la R é u n io n C o n s titu tiv e d u K o m in fo r m , Plon, Paris, 1959, p. 4. 104 Jb id ., p. 135. '05 v. Dedijer, T ito P a r l e . . . , Gallimard, Paris, 1953, p. 307. 106 Para a rápida análise que em seguida faremos da política dos comunistas iugoslavos e da intervenção de Stalin, apoiamo-nos fundamentalmente no informe de Kardelj sobre a atividade do Partido Comunista da Iugoslávia, feito na reunião constitutiva do Centro de Informação dos Partidos Comu­ nistas (C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., pp. 41-69), na obra já citada de Dedijer ( T ito P a rle . ..) e na de François Fejto, H is to ir e d es D é m o c r a tie s P o p u la ire s (Seuil, Paris, 1969, t. I, pp. 66-89). Levamos em conta, ainda, a versão soviética, apresentada no manual da Escola Superior do PCUS, também já citado. É desnecessário advertir que, na versão soviética, omite-se totalmente a intervenção de Stalin, dirigida para modificar a orientação revo­ lucionária da política dos comunistas iugoslavos neste período, ao mesmo tempo em que se reconhece que esta política foi justa. É interessante observar que no número de R e c h c e r c h e s In te r n a tio n a le s (4 4 . 4 5 , 1964) dedicado ao período que vai da Libertação ao começo da “guerra fria” há ensaios sobre a França, a Itália, a Alemanha, a Hungria, a Bulgária, a Tchecoslováquia, etc. — e nem uma palavra sobre a Iugoslávia. O PCF prefere não recordar o exemplo da luta revolucionária do povo iugoslavo ao tempo da Libertação — o contraste com a política seguida pelo PCF é muito brutal. . . 107 No informe de Kardelj, cit., explica-se que, desde finais de 1941 e começos de 1942, o estado-maior central dos destacamentos guerrilheiros iniciou a seleção das melhores unidades e combatentes para com eles formar brigadas de manobra, não vinculadas a um território determinado e susceptíveis de serem utilizadas num plano operativo único. Destas brigadas, posteriormente, formaram-se divisões e corpos de exército. Por sua disciplina, seus conheci­ mentos militares, sua potência combativa e seus métodos de fazer a guerra, este exército revolucionário regular se distinguia essencialmente das guerri­ lhas, que, no entanto, continuavam exercendo um papel importantíssimo. A combinação das duas formas de luta foi uma das principais características da guerra revolucionária na Iugoslávia. O inimigo enfrentado pelos iugoslavos não era mais débil do que o existente na França ou na Itália. Os alemães sempre empregaram importantes contingentes, aos quais se somavam tropas italianas, búlgaras, etc. e as forças armadas dos diversos fantoches do ocupante — alem dos tc h e tn ik s de Mikhailovitch. tos Cfr. Dedijer, o p . cit., p. 189. 109 Ib id ., pp. 189-190. no Ib id ., p. 217. in Ib id ., p. 218. 112 Cfr. Fejto, o p . cit., p. 79 e Dedijer, o p . cit., pp. 231-232. 475

'13 A referência à entrevista Stalin-Tito encontra-se em Dedijer, o p . cit., pp. 243-244. Sobre a divisão das “cotas de influência” nos Balcãs, cfr. a nota 153 deste capítulo. "4 Dedijer, o p . cit., p. 246. " 5 Fejto, o p . cit., p. 83. "4 A p u d Basile Darivas, “De la Résistence a la Guerre Civile en Grèce”, R e c h e r c h e s In te rn a tio n a le s, n.° 44-45, 1964. O telegrama de Churchill encon­ tra-se à página 268. É interessante notar que esta publicação do PCF cita o testemunho de Churchill sobre as “mãos livres” que Stalin lhe concedeu na Grécia sem discutir a sua veracidade. " 7 O VIII Congresso do Partido Comunista grego assinalou precisamente os erros cometidos durante 1944 e inícios de 1945: “Primeiro: o a c o r d o d o .L íb a n o , em maio de 1944, pelo qual fizemos concessões inadmissíveis que, fundamentalmente, facilitaram os constantes esforços dos imperialistas ingleses e da oligarquia plutocrática grega para restaurar o antigo regime e impedir que o povo grego decidisse sobre seu destino. Segundo: o a c o r d o d e C aserta, que colocava as forças armadas gregas sob o comando do general inglês Scobie. Terceiro: a ausência de preparação política, ideológica, organizacional e militar da direção do partido para a b a ta lh a d e d e z e m b r o , que nos foi imposta pelos imperialistas ingleses e seus serventuários. Quarto: o a c o r d o d e V a rk iza , que foi um compromisso inaceitável e, de fato, uma capitulação ante os imperialistas ingleses e a reação grega” ( V I I I C o n g re sso d o P C G , em grego, Edições Políticas e Literárias, 1961, p. 99). "3 A p u d André Kedros, L a R é s is te n c e G re c q u e , Laffont, Paris, 1967. Cfr. a nota 106, onde damos as referências pertinentes. Sem mencionar nomi­ nalmente os partidos comunistas francês e italiano, o informe de Kardelj apresenta a política do partido iugoslavo polemizando com a daqueles. Entre os termos desta crítica indireta e a versão da crítica direta dada pelas notas de Reale há coincidências essenciais. '2 0 Referência às posições do secretário-geral do PC americano, Earl Browder, já aludido anteriormente (N. do T.). ' 2 ' Informe de Kardelj, C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., p. 52. 122 Informe de Gomulka sobre a atividade do partido polonês, C o n fe r ê n c ia K o ­ m in fo r m 1947, cit., p. 79. 123 Dedijer (o p . cit., p. 308) descreve da seguinte maneira as reações de Duelos e Longo à crítica iugoslava, “apoiada” por Zdhanov do modo que indicamos: “Duelos e Longo reagiram de forma muito diferente à crítica da delegação iugoslava. Duelos estava furioso e muito aborrecido, recusou-se a conversar; depois da reunião, saiu para o parque, sentou-se sozinho num banco, balan­ çando nervosamente as suas pernas curtas, que não tocavam o chão. Longo, ao contrário, pediu um encontro com nossos delegados, para conhecer em detalhe as nossas críticas e lhes disse que a linha política do Partido Comu­ nista italiano durante a guerra fora ditada por Moscou”. 124 Cfr. as pp. 31-40 do volume anterior e as pp. 342-344, 349, 366-367, 370-371, 387-397 deste volume. 125 Cfr., no volume anterior, as partes “Stalin revisionista, ou o socialismo integral num só país” (cap. A crise teó ric a ) e “A experiência frentista” (cap. A

crise p o lític a ).

'24 Cfr., no volume anterior, a parte “O último ato” (cap. A crise p o lític a ). 127 N o te s e t É tu d e s D o c u m e n ta ir e s (Documentation française), 5 de maio de 1951, p. 6 — entrevista com o Marechal Stalin, por Elliot Roosevelt, 21 de dezembro de 1946, publicada em D a ily M a il, 22 de janeiro de 1947. 476

u* Declaração dos nove partidos, C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., p. 6 . IJV sinlln, D isc o u rs e t O rd re s d u J o u r (1941-1945), Édition France-URSS, 1945, p. 106. 1 "i Informe de Zdhanov na reunião constitutiva do Centro de Informação dos 1'urtidos Comunistas, C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 19 4 7 , cit., pp. 12-14. Dl C o n fe r ê n c ia K o m in fo r m 1947, cit., pp. 22 e 7. 133 C o rre sp o n d ê n c ia e n tr e o P re sid e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s da U R S S e P re sid e n te d o s E sta d o s U n id o s e o P rim e ir o -M in istro d a G r ã -B re ta n h a d u r a n te a G r a n d e G u e rra P a tr ió tic a (1 941-1945), em russo, Edições Políticas do Estado,

Moscou, 1957, pp. 200-202 — mensagem pessoal e rigorosamente secreta de Roosevelt a Stalin, recebida por este a l.° de abril de 1945. Em seu livro sobre a guerra fria, André Fontaine refere-se a esta ameaça de Roosevelt (o p . cit., t. I, p. 275). 133 Diante da reiteração, por de Gaulle, da sua conhecida tese de que a divisão das “esferas de influência” provém de Ialta, o Departamento de Estado divulgou um comunicado, datado de 23 de agosto de 1968, declarando que na conferência da Criméia “não se tratou de nenhum modo, direto ou indi­ reto, das questões de esfera de influência”. L e M o n d e , de 25-26 de agosto de 1968, tentou apoiar esta tese do Departamento de Estado publicando o texto integral dos acordos de Ialta que — como todos os acordos públicos das três potências — têm, naturalmente, além de outros objetivos, o de ocultar dos povos o fato da “divisão”, quer mediante uma formulação que o dissimule (quando o texto se refere concretamente a aspectos da “divisão”), quer mediante a omissão dos arranjos secretos que se efetivaram no curso da conferência. Quanto ao primeiro método, o texto oficial dos acordos de Ialta se refere, por exemplo, ao caso iugoslavo, dizendo que as três potências convieram em recomendar a Tito e a Subachitch que implementem imediata­ mente o acordo firmado entre eles (acordo a que nos remetemos anterior­ mente), mas não diz que este acordo foi imposto a ambos pelas pressões secretas de Stalin, por um lado, e por Roosevelt-Churchill, por outro, em função da secreta divisão das esferas de influência na Iugoslávia, acertada entre Stalin e Churchill em outubro de 1944. Algo parecido se poderia dizer do ponto referente à Polônia e a outros casos. O estranho é que os comu­ nistas leia m do mesmo modo que o Departamento de Estado os textos oficiais de Ialta ou de outras conferências dos “três”; assim procedem, por exemplo, Sérgio Segre, em seu ensaio “De la Derrota dei Nazismo a la Lógica de los Bloques Militares” (C ritic a M a rx is ta , n.° 4-5, 1968) e E. Ragionieri, em seu prefácio ao volume publicado por Ed. Riuniti, 1965, contendo as atas das reuniões dos “três grandes”, de Teerã a Ialta. 134 Deborin, L a S e g u n d a G u e rra M u n d ia l, ed. espanhola, Moscou, 1961, p. 214. 135 A p u d André Fontaine — que tem por fonte as memórias de Churchill —, o p . cit., t. I, p. 208; a versão da entrevista está nas pp. 206-208. 136 H istó r ia d o M o v im e n to R e v o lu c io n á r io (M is l), cit., pp. 43-44. 137 Cfr. p. 342 deste volume. 138 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 211. 139 A p u d P. Broué, L e P a rti B o lc h e v iq u e , Ed. du Minuit, Paris, 1963, pp. 433-434. 140 Trótski, L a R é v o lu tio n T ra h ie , IV Internationale, pp. 167-168. 141 Apud P. Broué, o p . cit., pp. 434-435. 142 Cfr. a nota 55 deste capítulo, na qual se transcreve a caracterização feita por Togliatti do movimento de massas e do movimento guerrilheiro, bem como da crise do Estado italiano neste período.

477

Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 216-218. O humor de Stalin é recor­ dado por Churchill nas suas M e m ó r ia s , t. V, vol. II, p. 72 da edição inglesa. O “Pai dos Povos” não sabia até que ponto estava dizendo a verdade. 144 Deborin, o p . cit., pp. 371-399. Deborin se apóia nas M e m ó r ia s de Cordell Huli, secretário de Estado neste período, onde se relata que Churchill argu­ mentou, na conferência de Quebec, pela conveniência da abertura da segunda frente nos Balcãs porque “a irrupção soviética” naquela área atingiria impor­ tantes “interesses ingleses e norte-americanos” (Cordell Hull, T h e M e m o ir s , vol. II, p. 1.231). '4 5 Stalin, D is c o u r s e t O rd re s d u J o u r (1 941-1945), cit., pp. 95-96, 101 e 105. 146 Editorial de N u e s tr a B a n d e ra , revista do Partido Comunista da Espanha, 30 de junho de 1944. '47 I. Maiski, “Le Problème du Second Front”, R e c h e r c h e s In te rn a tio n a le s, n.° 9-10, Paris, 1958, p. 239. '48 G r a n d e E n c ic lo p é d ia S o v ié tic a , em russo, t. 7, p. 181. 149 Deborin, o p . cit., p. 425. 150 Esta avaliação de Roosevelt foi feita — segundo o testemunho de seu filho — na conferência do Cairo, entre o presidente americano e o primeiro-ministro inglês (22-26 de novembro de 1943); cfr. Elliot Roosevelt, A s i lo V e ia m i P a d re, ed. espanhola, p. 196. 151 T h e C o n fe r e n c e s o f M a lt a n d Y a lt, Departament of State USA, 1959, pp. 523 e ss. 152 Stalin, D is c o u r s e t O rd re s d u J o u r , cit., pp. 95-96. ’ 53 é claro que a divisão das “esferas de influência” na Europa se fez guar­ dando, em geral, as formas diplomáticas que convinham às características da segunda guerra mundial — ou seja, justificando-a com o respeito à indepen­ dência das nações, ao direito dos povos a decidirem seus destinos, etc. O que não impediu que, em alguns casos, se recorresse a uma linguagem mais direta. Eis aqui uma pequena amostra — em suas M e m ó r ia s , Churchill relata a sua entrevista com Stalin no dia 9 de outubro de 1944: “O momento era favorável e, por isto, declarei: Acertemos nossos assuntos nos Balcãs. Os seus exércitos se encontram na Romênia e na Bulgária. Nós temos interesses, missões e agentes nestes países. Evitemos choques por questões menores. No que toca à Grã-Bretanha e à Rússia, o que diria o Senhor de um predomínio de 90% na Grécia para nós e de uma paridade na Iugoslávia? Enquanto lhe traduziam as minhas palavras, escrevi numa folha de papel: 143

Rússia Os outros

R o m ê n ia

Iu g o slá v ia

H ungria

B ulgária

90% 10%

50% 50%

50% 50%

75% 25%

G récia

Grã-Bretanha/Estados Unidos Rússia

90% 10%

Coloquei o papel diante de Stalin, para o qual já tinham feito a tradu­ ção. Houve uma pausa. Depois, ele tomou seu lápis azul, fez com um traço grosso o sinal de aprovação e me devolveu a folha. Tudo se acertou num tempo menor do que o da escrita destas linhas. [...] Em seguida, fez-se um longo silêncio. O papel, com o traço azul, repousava no centro da mesa. Finalmente, disse-lhe: — Não parecerá um pouco cínico a forma desenvolta 478

com que resolvemos estes problemas, de que depende o destino de milhões «Ir pessoas? Queimemos o papel. — Não, guarde-o, replicou Stalin”. No dia seguinte — continua Churchill —, entabulou-se entre Eden e Molotov uma verdadeira discussão de negociantes sobre o cálculo exato dos percentuais. Sucessivamente, Molotov propôs as seguintes combinações (as cifrus indicam o “percentual” russo): H u n g ria

75 75 75 75 80

R o m ê n ia

90 90 90 90 90

B u lg á ria

Iu g o slá v ia

90 75 90 90 80

75 75 50 60 60

Finalmente — diz Churchill —, acertou-se a última combinação (a p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 244-245). A discussão sobre a segunda frente recobriu também, na prática, o problema da “divisão”. Os ingleses, durante toda a guerra, insistiram em abrir a segunda frente nos Balcãs, por razões facilmente compreensíveis. Os soviéticos, tenazmente, se opuseram, por razões não menos compreensíveis se se leva em conta toda a tradição da diplomacia russa. Mas uns e outros argumentaram com razões de eficiência militar. Na realidade, tratava-se de determinar que zonas, eventualmente, ficariam sob o controle de uns e outros. Convém assinalar que os soviéticos não desmentiram a versão de Chur­ chill. E, como nota André Fontaine (op. cit., p. 288), a edição russa da correspondência secreta entre os “três grandes” omitiu uma mensagem de Churchill a Stalin, de junho de 1945, na qual se alude explicitamente à di­ visão das “esferas de influência” nos Balcãs em outubro de 1944. A mesma edição conserva, porém, uma mensagem de Churchill a Stalin, de 28 de abril de 1945, na qual se lê: “Devo dizer, também, que o rumo dos aconte­ cimentos na Iugoslávia é tal que não corresponde à relação dos interesses de nossos países na proporção meio a meio”. Na resposta de Stalin não há qualquer objeção à “lembrança” de Churchill. 154 Stalin, D is c o u r s e t O r d re s d u J o u r, cit., pp. 105-106. '55 Cfr. p. 396 deste volume. '54 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 258. A oposição trabalhista inglesa, naturalmente, interessava-se em aproveitar os acontecimentos gregos com vistas às próximas eleições. Depois de afastar Churchill, os trabalhistas pros­ seguiram com a mesma política na Grécia. Quanto aos dirigentes americanos, já se preparavam para substituir os ingleses na Grécia. '57 Às vésperas da libertação, o EAM (Frente de Libertação Nacional) tinha organizados nas suas fileiras mais de 1.500.000 homens e mulheres. Referindo-se aos combates de Atenas, André Fontaine diz (op. cit-, t. I, pp. 249-250): “O ELAS [Exército de Libertação Nacional] esteve a ponto de ganhar”. “No Natal, Churchill desembarcou em Atenas, ignorando que ele mesmo asseguraria o fracasso da insurreição do ELAS. De fato, este projetara explo­ dir o Hotel Grã-Bretanha, centro do Estado-Maior inglês e do ‘governo’ Papandreu, cuja autoridade não ultrapassava algumas centenas de metros quadrados. À confusão proveniente da explosão seguir-se-ia uma ofensiva geral, mas o ELAS renunciou ao seu projeto devido à presença de Churchill, que aceitara uma entrevista com os seus emissários”. Realmente, o que levou o EAM à perdição foi a busca, a todo custo e adaptando-se à política de 479

Stalin, de um compromisso com Churchill, por parte da direção do Partido Comunista grego. 158 Segundo a historiografia soviética, o plano dos alemães era tomar o porto de Amberes, base fundamental para o abastecimento dos exércitos aliados, isolar e destruir o núcleo destes exércitos na Bélgica e na Holanda e assim impossibilitar a projetada ofensiva dos aliados. 159 C o r re s p o n d ê n c ia e n tr e o P re sid e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s d a U R S S . . . , ed. cit., t. I, p. 299. 150 A p u d Deborin, o p . cit., p. 485. léi I b id ., p. 425. A historiografia soviética, como é lógico, vale-se dos documentos secretos e das M e m ó r ia s dos principais protagonistas ingleses e americanos que confirmam que estes eram os objetivos dos aliados — mas vale-se deles apenas como elementos de corroboração. A fundamentação essencial da análise realizada por esta historiografia se baseia em fatos e dados conhecidos por Stalin e pelos dirigentes soviéticos durante a própria guerra, na inter­ pretação que então faziam de tais fatos e dados à luz dos interesses de classe representados pelos chefes anglo-americanos. Tomemos, como exemplo, uma das obras mais representativas da interpretação oficial — a já tão citada de Deborin, escrita em colaboração com o general I. Zubkov (remetemos às páginas da edição espanhola que estamos utilizando). Na página 337 e ss., analisam-se os projetos operacionais dos aliados em 1942, relativos ao Norte da África, à Itália e aos Balcãs, e se mostra que, através do simples exame da imprensa americana daquele ano, era possível discernir por trás dos projetos os interesses dos grupos monopolistas angloamericanos. Na página 344 se assinala “o apoio dos Estados Unidos aos representantes da reação francesa, lacaios da Alemanha fascista”, no Norte da África, depois do desembarque. À página 350 se alude aos artigos de Walter Lippman de 1943, nos quais se lança a idéia de uma “Comunidade Atlân­ tica” como instrumento da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Na página 354 se realça a política de aberta proteção a Franco praticada pelos governos de Washington e Londres, à base de dados então públicos. Na página 395 se qualifica como sistema colonial o poder estabelecido pelas autoridades militares aliadas na zona libertada do Sul da Itália. Na página 399 se explica que a delegação soviética à conferência de Teerã se opôs aos planos britâ­ nicos de desembarque nos Balcãs porque o seu verdadeiro fim — esclarece-o Deborin na página 337 e ss. — era “impor a estes povos o regime colonial do imperialismo britânico e restabelecer o c o r d o n sa n ita ire anti-soviético”. Na página 425 se encontra o parágrafo — que citamos — sobre os objetivos dos aliados com o desembarque na Normandia. Na página 474 e ss. se caracteriza, nos termos mais duros, a intervenção inglesa na Grécia e se diz que “a ocupação da Grécia por tropas britânicas indignou profundamente a opinião democrática do mundo inteiro” (observemos, de passagem, o seguin­ te detalhe significativo: Deborin não cita um só testemunho — se houvesse, ele não deixaria de referi-lo — de como esta indignação se refletiu na imprensa ou nos documentos oficiais soviéticos). 159 Stalin não podia ignorar este fato — a transferência de tropas aliadas da Itália para a Grécia — porque, em Atenas, havia uma missão militar sovié­ tica junto ao quartel-general do corpo expedicionário inglês. 153 Deborin, o p . cit., p. 485. 154 Ib id ., p. 481. 155 A lia n ç a , c o a lizã o — em russo, no original. N . d o T. 165 Engels, ‘‘La questión que está realmente em juego en Turquia”, O b ra s d e M a r x e E n g e ls, em russo, 2.a ed., t. 9, p. 15. 480

I»' llr. p. 395 deste volume. !'•“ Cfr. F. Fejto, o p . cit., t. I, p. 57. Nesta obra se revelam os seguintes dados «la “rápida e brutal sovietização” da Polônia oriental, imediatamente após a sua ocupação pelas tropas soviéticas em 1939: supressão de todos os partidos políticos poloneses, ucranianos, bielo-russos e judeus; prisão de milhares de socialistas e membros do Partido Agrário; deportação de cerca de 1.200.000 cidadãos poloneses, além dos 250.000 soldados do exército polonês aprisionudos e internados. Os poloneses deportados foram libertados depois do utuque da Alemanha à URSS, mas uns 200.000 haviam desaparecido. Alguns dos dirigentes políticos libertados em 1941 foram novamente presos — entre eles, dois dos principais chefes do partido socialista judeu (B u n d ), Henryk F.rlich e Víctor Adler. Estas duas personalidades, quando da ocupação da Polônia ocidental pelos nazistas, refugiaram-se na parte oriental do país; cm 1941 aceitaram, por convite do governo soviético, constituir um Comitê Mundial Judeu Antifascista, cujos estatutos enviaram a Stalin; depois da evacuação de Moscou (outubro de 1941), foram mandados para Kuibitchev para esperar a resposta de Stalin — a 3 de dezembro foram detidos e executados. I** Sobre a importância da Resistência polonesa subordinada ao governo exilado, cfr., na obra que citamos na nota anterior, as pp. 56-57. Seguindo instru­ ções do governo exilado, a l.° de agosto de 1944 a Resistência desencadeou a insurreição de Varsóvia, com a evidente intenção de libertar a capital e instaurar seu próprio poder antes da chegada das tropas soviéticas, que se encontravam muito próximas. Estas, no curso da insurreição, chegaram às pe­ riferias de Varsóvia, no outro lado do Vístula; dali se limitaram a bombardear as posições alemãs, mas não lançaram nenhum ataque que, combinado à insurreição da Resistência, poderia liquidar com os alemães. Ao cabo de dois meses de combates, os habitantes de Varsóvia tiveram que capitular sobre as ruínas da sua capital. Os soviéticos explicaram a sua passividade por razões técnicas. 170 C o r re s p o n d ê n c ia e n tr e o P re s id e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s d a U R S S . . . , ed. cit., t. II, p. 224. 171 Ib id ., p. 201. 172 Ib id ., p. 204. 173 A p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 280. 174 C o r re s p o n d ê n c ia e n tr e o P re s id e n te d o C o n s e lh o d e M in is tr o s d a U R S S . . . , ed. cit., pp. 217-218. Na Bélgica, a Resistência também fora duramente re­ primida no inverno de 1944-1945. 175 Cfr. K. S. Karol, V isa p o u r la P o lo g n e , Gallimard, Paris, 1958, pp. 97-98. 176 Está no ponto III do protocolo. Posteriormente, este plano foi abandonado. 177 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 285-286. 178 A p u d Robert Murphy, D ip lo m a te p a r m i les G u erriers, Robert Laffont, Paris, 1965, p. 232. 179 Cfr. p. 427 deste volume. Em sua mensagem de 12 de maio a Truman, Churchill opina que “os russos poderiam avançar, se quisessem, até as costas do Mar do Norte e do Atlântico” (a p u d André Fontaine, o p . cit., t. II, p. 285). 180 L e M o n d e , 11 de agosto de 1945. 181 Declaração de Stalin a um correspondente do P ravdw , citamos segundo a versão espanhola de N u e s tr a B a n d e ra , revista do PCE, n.° 5, 1946. 182 “Les Interviews du Maréchal Staline (1945-1951)”, L a D o c u m e n ta tio n F ra n çaise, 5 de maio de 1951, pp. 3, 4, 6 e 7. 481

183 Dedijer, o p cil., p. 334 e Djilas, C o n v e rs a tio n s a v e c S ta lin e , ed. cit., p. 200. 184 Mao Tsé-Tung, O e u v r e s C h o isie s, ed. de Pequim, t. IV, 1962, pp. 87-88. '85 Cfr. fonte referida na nota 182, p. 4. 186 Quando da rebelião de maio, na França, a questão foi novamente suscitada — L ’H u m a n ité teve que responder, sob a assinatura de Marcel Veyrier, à carta de um comunista, na qual se sustentava a tese da possibilidade da revolução em 1944-1945; o partido teria recuado pela oposição de Stalin e pelo medo da eventualidade de uma intervenção americana (cfr. L ’H u m a n ité , 24 de ja­ neiro de 1969). Sartre retomou o problema na sua entrevista, concedida a D e r S p ie g e l e publicada pelas Ed. Didier (Paris, 1968) sob o título “Les Communistes Ont Peur de la Révolution”; na sua opinião, o partido recuou em 1944-1945 simplesmente porque “seu objetivo não era fazer a revolução” (p. 14). Também na Itália o problema foi abordado, ainda que muito tangencial­ mente, no debate sobre a política de frente popular e nacional que se pu­ blicou, no curso de 1965, nas páginas de C ritica M a rx is ta . Um homem nada extremista, como Lelio Basso, admitindo que os acordos de Ialta dificultavam a solução socialista, observa: “Mas entre o socialismo e a ‘restauração’ pós-1945 havia uma infinita gama de soluções, entre as quais me obstino em acreditar que o movimento operário poderia ter avançado muito profunda­ mente se não tivesse aceito, durante e depois da Resistência, em nome da uni­ dade antifascista, uma série de compromissos que facilitaram a restauração” (C ritic a M a rx is ta , julho-agosto de 1965, p. 17). '87 O documento do PCF que mais profundamente aborda esta questão é o do Birô Político de 3 de outubro de 1952, sobre os casos de André Marty e Charles Tillon (reproduzido em C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 10, 1952). O conflito com estes dois dirigentes do partido tinha como substrato divergências a propósito da política seguida durante a Resistência e no período seguinte à Libertação. Essencialmente, Marty e Tillon — este último tivera postos de máxima responsabilidade na organização militar da Resistência — conside­ ravam que o partido praticara uma política oportunista e desperdiçara a sua chance. A direção do PCF sufocou a discussão com os métodos ha­ bituais, recorrendo a ignóbeis calúnias contra Marty, que foi expulso do partido; Tillon permaneceu nele, ficando marginalizado. No referido do­ cumento, diz-se: “Charles Tillon declarou recentemeente, num comício em Drancy, que era ridículo acusar-nos de querer tomar o poder no último 28 de maio quando pudéramos fazê-lo em 1944 — e não o fizemos por fi­ delidade a nossos compromissos. Assim, Charles Tillon dá a entender que o partido asssumiu não se sabe que tipo de compromissos nas costas da classe operária e do povo, ao invés de explicar a realidade, ou seja, que em 1944 não existiam as condições para que a classe operária pudesse tomar o poder”. E o Birô Político fornece a seguinte explicação: “Em agosto de 1944, a guerra ainda não terminara. Uma inversão das alianças, voltando as potências capitalistas contra a União Soviética, era possível. Se se ofe­ recesse um pretexto aos americanos, que chegaram à França como com­ batentes da undécima hora pelo temor de ver o exército soviético avançar muito em direção ao Oeste, eles não hesitariam em se aliar na Europa com a Alemanha e na Ásia com o Japão para erguer todas as forças do ca­ pitalismo internacional contra a pátria do socialismo. Na própria França, apesar dos consideráveis progressos da sua influência, o partido seria rapi­ damente isolado se se lançasse por uma via alternativa à continuação da guerra contra Hitler — e isto só redundaria num sangrento fracasso. Com isto, fornecer-se-ia a de Gaulle o pretexto para recorrer aos exércitos anglo-americanos a fim de liquidar a classe operária, entender-se com Pétain 482

e prosseguir a sinistra tarefa da Gestapo. A sábia e clarividente política do partido evitou isto. Os comunistas somos revolucionários, não aventureiros”. E, mais adiante: “A atitude em face da União Soviética é a pedra-de-toque dos partidos comunistas, tanto no plano do internacionalismo proletário, quanto no plano da política conseqüente de independência nacional”. A resposta a esta argumentação está dada ao longo de nossa análise e não vamos reiterá-la aqui. Assinalemos, porém, os truques polêmicos de que se vale o Birô Político: a) coloca a questão como se se tratasse de tomar o poder em agosto de 1944. Mas ninguém se aborreceria com a tomada do poder em abril de 1945, quando já não havia nenhum risco de inversão das alianças e a tentativa poderia coincidir com a grande insurreição do Norte da Itália. A partir de agosto de 1944, o que era possível ao partido consistia em encaminhar-se no rumo do aprofundamento e do desenvolvimento do formidável mo­ vimento nascido da Libertação — preparar as condições para a tomada do poder na conjuntura propícia; b) coloca a questão como se o dilema fosse ou tomar o poder ou continuar a guerra contra a Alemanha. Mas, supondo-se que fosse possível a to­ mada do poder, ela significaria o fim da guerra à Alemanha? Por que não a sua transformação em guerra popular, revolucionária, em defesa do novo poder e pela derrota final do hitlerismo? Mais ainda: não havia outro modo de continuar a guerra contra a Alemanha que aquele esco­ lhido pela direção do partido, submetendo-se ao comando de de Gaulle e dos americanos, liquidando com as forças armadas da Resistência, redu­ zindo os comitês de libertação a órgãos decorativos, etc.?; c) coloca a questão da inversão das alianças como se a de Roosevelt com Hitler e com o Mikado fosse, em 1944-1945, uma operação simples e fácil — bem como a de de Gaulle com Pétain. Vê apenas o perigo do isolamento do partido, não o do isolamento dos americanos e de de Gaulle. A chave da posição adotada está revelada, porém, no próprio do­ cumento: “A atitude em face da União Soviética é a pedra-de-toque dos partidos comunistas [ ...] ”. Não a “União Soviética”, mas Stalin proibia a Thorez sequer a colocação da exploração das possibilidades revolucionárias abertas pela Libertação. 188 Cfr. a nota 55 deste capítulo. 189 G r a n d e R ú ssia — em russo, no original. N . d o T. 190 A p u d Joseph R. Starobin, historiador americano que escreveu o ensaio “Origins of the Cold War: The Communist Dimension”, F o re ig n A ffa ir s , julho de 1969, p. 685. 191 Cfr. L ’I n te r n a tio n a le C o m m u n is te a p rè s L é n in e e t T r o ts k i , PUF, Paris, 1969, p. 94. 192 Cfr. S ta lin , cit., capítulo XII. No seu último ensaio, L a R e v o lu c ió n I n c o n d u s a (Ed. Era, México, 1967, p. 85), Deutscher faz a seguinte e sintética apre­ ciação: “Uma guerra civil internacional, com imensas potencialidades sociais revolucionárias, desenvolveu-se dentro da segunda guerra mundial. No entan­ to, o stalinismo continuou aferrando-se à segurança tradicional, à raison d ’É ta t e ao sagrado egoísmo nacional. Conduziu a guerra como uma ‘Guerra Patriótica’, outra versão de 1812, e não como uma guerra civil européia. Não opôs ao nazismo a idéia do socialismo e a revolução internacional. Stalin não acreditava que esta idéia pudesse impulsionar os seus exércitos à luta, nem que pudesse contagiar e desintegrar os exércitos inimigos, como ocorrera nas guerras de intervenção. Mais ainda: instou junto aos movimentos de resis483

tènda dirigidos pelos comunistas na Europa para que lutassem unicamente pela libertação nacional, não pelo socialismo”. 193 Deutscher, S ta lin , ed. cit, pp. 438-439. '94 N. Pavlenko e V. Kniajinski, “Las Relaciones Internacionales después de la Segunda Guerra Mundial”, em russo, Instituto de Economia Mundial e de Relações Internacionais da Academia de Ciências da URSS, 1962, paràgrafo do capítulo XIII, publicado em R e c h e r c h e s I n te r n a tio n a le s , n.° 44-45, 1964, p. 56. 195 R a z ã o d e E sta d o . Em francês, no original (N. do T.).

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O CENTRO DE INFORMAÇÃO DOS PARTIDOS COMUNISTAS

As revoluções na área de projeção soviética Quando da sua libertação pelos exércitos soviéticos, os cinco puíses do Leste que seriam integrados na área de projeção soviética upresentavam características muito diferentes. O desenvolvimento in­ dustrial da Tchecoslováquia contrastava com o caráter predominanlemente agrário dos outros quatro, entre os quais, por outro lado, existiam diferenças substanciais na equação indústria/agricultura. A Polônia, a Tchecoslováquia e a Bulgária eram eslavas — mas en­ quanto entre os poloneses imperava a russofobia, os tchecoslovacos c os búlgaros se distinguiam por sua russofilia. A Romênia e a Hungria tinham poucas vinculações étnicas e culturais com a Rússia. Na Tchecoslováquia, à simpatia pela União Soviética se somava a presença de um partido comunista tradicionalmente influente e que, durante a Resistência, transformou-se no primeiro partido político do país. Embora em escala menor, os comunistas búlgaros contavam com sólidas tradições, organizaram um movimento guerrilheiro de certa importância e, no momento da libertação, representavam a força política mais ativa e organizada. Em troca, os partidos comu­ nistas da Polônia, da Romênia e da Hungria eram pequenas organi­ zações, com reduzidíssima influência sobre as massas. A Tchecos­ lováquia vivera vinte anos de democracia parlamentar, ao passo que os outros quatro experimentaram neste período regimes reacionários e ditaduras semifascistas. A Polônia e a Tchecoslováquia estavam no campo vencendor; a Hungria, a Romênia e a Bulgária pertenciam ao campo vencido. Outras significativas diferenças, de tipo diverso, poderiam ainda ser arroladas. O simples fato de que, nestes cinco países, os partidos comu­ nistas conquistaram o monopólio do poder quase simultaneamente (no decurso de 1947-1948), ajustando o regime sócio-político a idên­ tico esquema, demonstra por si mesmo que os fatores determinantes deste desenvolvimento não foram os nacionais. Na Tchecoslováquia, a classe operária poderia ter tomado o poder no processo da liber­ tação e iniciado a revolução socialista sobre bases ampiamente demo­ cráticas. De acordo com a feliz expressão de H. Ripka, na Tchecos­ lováquia a revolução não foi pré-fabricada — foi-o o seu adiamento 1. 485

Na Bulgária, ainda que noutro contexto, análoga possibilidade (a rea­ lizar-se sob outras formas) se apresentou. Mas a Polônia, eviden­ temente, não reunia condições — dado o leque de forças políticas ali existentes — mais que para uma democracia burguesa, na qual os comunistas e os socialistas de esquerda deveriam batalhar para obter o apoio das massas. O mesmo se dava na Romênia e na Hun­ gria. A União Soviética poderia proteger os que lutassem pelo socialismo nestes três países contra quaisquer intervenções das potên­ cias imperialistas, facilitando assim a sua ação — mas apenas esta ação levaria a uma transformação revolucionária que fosse o fruto e a expressão da vontade popular. Nos três casos, o exército soviético substituiu a vontade das massas. Foi ele quem tomou o poder e colo­ cou os seus suportes decisivos — o comando do exército, a polícia, a informação — nas mãos dos comunistas, revestindo este poder real, durante uma primeira fase, sob formas “democrático-parlamentares”. Como depois o reconheceu Rakosi, o partido assegurou-se desde o primeiro momento da libertação “o controle absoluto da AVO, a polícia política”. “Foi a única instituição cuja direção assu­ mimos totalmente, sem compartilhá-la com os outros partidos da coalizão conforme a respectiva proporção de forças” 2. O problema do exército, neste caso, foi resolvido — como o explica o próprio Rakosi — pela redução ao mínimo dos seus efetivos (12.000 homens, em troca dos 70.000 a que a Hungria tinha direito segundo os ter­ mos do armistício) e pela sua dispersão por todo o país. “A presença do exército vermelho — prossegue Rakosi — diminuiu a importân­ cia da luta que deveríamos travar pela influência comunista sobre a maioria dos militares. [. . .] O reforço do exército húngaro só começou em 1948, quando o partido comunista assumiu o m inistério da Defesa” 3. O que Rakosi nunca explicou é como o partido pôde monopolizar a polícia política e liquidar praticamente o exército antes de assumir o ministério da Defesa sendo tão extremamente minoritário, como o demonstraram as eleições de 1945 (o PC obteve 15% dos votos, contra os 8 5% dos outros partidos da coalizão, 57% dos quais dirigidos para o partido dos pequenos proprietários)4. Na Romênia e na Polônia, o partido comunista assegurou-se o con­ trole do exército desde os primeiros meses. “Exportar a revolução? Tolice! Cada país faz a sua revolução se assim o deseja; se não, não há revolução” — foi o que Stalin disse, em 1937, a um jornalista americano5. Dois anos e tanto depois, a “tolice” foi ensaiada nos países bálticos, nas regiões orien486

inis da l)olônia, na Bessarábia e na Bukovina, mas ela podia se apre.cntar com outra significação. Desde 1945, a Polônia, a Hungria e a Romênia passaram a ser exemplos clássicos de “revolução exporladu’1, realizada pelo alto, por um poder emanado do libertadorocupante. O que não quer dizer que este poder não levasse a cabo uma tarefa progressista — e, em certos aspectos, revolucionária — de liunsformação social (reformas agrárias, nacionalizações industriais, reconstrução do país, etc.), que lhe valeu, durante um primeiro mo­ mento, o apoio das massas trabalhadoras e de frações importantes da intelectualidade e de outros grupos sociais. “A obra realizada cm 1945-1947 — escreve F. Fejto em sua História das Democracias Populares — pode ser considerada uma obra nacional, levada a cabo com o apoio mais ou menos ativo, mais ou menos sincero, de lodos os partidos democráticos” 6. Os progressos da influência e da organização comunistas — enfatiza este autor, que não pode ser acusado de simpatia pelos comunistas — não se explicam apenas pela intervenção do exército soviético, mas porque os comunistas foram os elementos mais decididos e dinâmicos na realização desta obra, seus principais inspiradores e definidores. Mas estes méritos eram obscurecidos pelo que se tornava cada vez mais evidente aos olhos do povo: o partido comunista dependia de uma potência estran­ geira, estava submetido à disciplina de Moscou. As decisões capitais e, freqüentemente, as acessórias eram tomadas lá — e não em Var­ sóvia ou Budapeste, Bucareste ou Sofia, ou mesmo em Praga, cuja autonomia era maior. A luta contra o hitlerismo fora conduzida, antes de mais, como uma luta nacional, e a Libertação exaltou os sentimentos patrióticos. A própria bandeira eslava era entendida em Praga e Sofia como união de povos livres e soberanos. Mesmo os espíritos mais simpá­ ticos aos libertadores não podiam resignar-se facilmente a que uma nova sujeição — ainda que com o selo “socialista” — substituísse as anteriores. No período 1945-1947, o peso desta nova dependência fez-se sentir particularmente na Polônia, pelas razões referidas, e na Hungria e na Romênia, por pertencerem ao campo dos vencidos. Embora a Bulgária se incluísse neste campo, a atitude pró-russa da população e a importância do partido comunista lhe garantiram um tratamento mais benevolente por parte de Moscou. Mas sobre a Ro­ mênia e a Hungria, além do controle militar-policial, recaíram pon­ deráveis tributos econômicos sob a forma de indenizações, manuten­ ção das tropas soviéticas instaladas no país e sob outros títulos. Os 487

bens alemães, que compreendiam as principais empresas e depósitos bancários nos dois países, passaram às mãos do Estado soviético 7. Como não podiam competir em matéria de patriotismo com os outros grupos políticos quando estavam em jogo os interesses sovié­ ticos, os comunistas locais se esforçavam por se mostrar dignos pa­ triotas quando a questão tocava às outras democracias populares. Obrigados a justificar a perda das regiões orientais, os comunistas poloneses não só foram os campeões do antigermanismo como os mais intransigentes no conflito com os tchecoslovacos em relação à área de Teschen. Os comunistas tchecoslovacos, compelidos a ce­ der a Rutênia aos soviéticos, revelaram-se igualmente intransigentes nesta questão fronteiriça e foram irredutíveis em face da Hungria quanto ao problema das minorias húngaras na Eslováquia (houve que “intercambiar” quase meio milhão de húngaros que viviam na Eslováquia por um contingente menor, mas também considerável, de eslovacos residentes na Hungria). Os comunistas romenos, obri­ gados a defender a anexação da Bessarábia e da Bukovina pela URSS, operada por ocasião do pacto germano-soviético, evidencia­ ram o seu patriotismo diante dos húngaros (os mais prejudicados na série de reajustes territoriais) na questão da Transilvânia. E os búlgaros revelaram o seu em face dos romenos (em relação à Dobrudja) e em face dos sérvios — depois da excomunhão de Tito — (em relação à Macedònia). Moscou foi o árbitro desses lití­ gios, notáveis pela ausência do internacionalismo socialista 8. O grande “regulador” da transformação do Leste europeu — é supérfluo dizê-lo — foi a política staliniana, orientada para articular todos os países desta zona num sistema político-militar protetor das fronteiras ocidentais da URSS, bem como para ampliar o espaço econômico do que em Moscou se entendia por construção do socia­ lismo. Isto implicava a criação de regimes que oferecessem suficien­ tes garantias políticas ao Kremlin. Durante a fase que estamos consi­ derando, Stalin tratou de conciliar a construção de tais regimes com a tentativa de chegar a um acordo mundial, duradouro, com os Estados Unidos. O poder efetivo deveria ficar em mãos seguras para os interesses soviéticos, mas, ao mesmo tempo, convinha observar aparentemente, e no limite do possível, os princípios de democracia formal estipulados na declaração de Ialta e em outros documentos (Carta das Nações Unidas, acordos de Potsdam, etc.). Convinha que as medidas contra os interesses capitalistas e latifundiários (indis­ pensáveis não só para destruir as bases das classes hostis à aliança 488

preferencial com a URSS, e sobretudo à integração à sua esfera eco­ nômica, mas para criar a base social adequada ao poder político pró-soviético) não aparecessem como um ataque em geral ao sistema capitalista, à empresa privada. A estas considerações, derivadas da política da “grande aliança”, há que agregar outra, de primeira ordem, derivada das características adquiridas pelo regime soviético. I ste não podia tolerar que o processo revolucionário aberto nos países vizinhos desembocasse numa democracia socialista, com órgãos de gestão econômica e política emanando verdadeiramente do povo trabalhador e submetidos ao seu controle. Um desenvolvi­ mento deste tipo era o que poderia, com mais plenitude e rapidez, despertar e mobilizar as energias e as iniciativas das massas, ins­ truí-las e afastá-las da influência ideológica das velhas classes diri­ gentes, erguer uma sólida barreira à política do imperialismo e, por­ tanto, constituir a melhor defesa da URSS. Mas nem a burocracia soviética, nem os núcleos dirigentes dos partidos comunistas forma­ dos na época staliniana eram compatíveis com semelhante evolução. A via iugoslava, que até certo ponto representava um passo neste sentido, foi a exceção à regra e refletia, exatamente, a formação, durante a guerra nacional-revolucionária, de um núcleo dirigente com características novas 9. As considerações expostas, tomadas em seu conjunto, determi­ naram em grande medida as estruturas econômicas e políticas das chamadas democracias populares. Determinaram o “adiamento” da revolução socialista na Tchecoslováquia e a sua substituição pela “re­ volução democrática e nacional”, conforme a definição de Gottwald. Determinaram que, na Bulgária, quando Dimitrov já era o chefe do governo e o poder estava praticamente nas mãos dos comunistas e outros grupos de esquerda, o partido considerasse que a tarefa não era iniciar a construção do socialismo, mas a “consolidação do regime democrático-parlamentar” 10. Em virtude destas ponderações, a “revolução democrática e nacional” foi exportada para a Polônia, a Romênia e a Hungria, onde o controle efetivo do poder pelos comunistas — carentes de base política para exercê-lo — ficou dis­ simulado por trás de um parlamentarismo fictício. Os comunistas tiveram que se converter em caçadores de votos, como antes o eram os partidos reacionários. Mas este método revelou-se insuficiente para enquadrar na moldura da “nova democracia” partidos como o dos pequenos proprietários na Hungria e o agrário, de Petkov, na Bulgária — partidos nos quais se reagruparam as principais forças 489

burguesas — e houve que recorrer (com a hábil ajuda dos serviços secretos soviéticos) à montagem de complôs que permitissem justi­ ficar a repressão contra tais partidos. Muito rapidamente o sistema parlamentar se converteria em farsa, inclusive na Tchecoslováquia, o único país onde possuía certa autenticidade. A via iniciada nos países do Leste, a partir da sua libertação pelos exércitos soviéticos, era totalmente nova para os partidos co­ munistas. A experiência mais próxima — que, nas teorizações poste­ riores, foi apresentada como um primeiro exemplo de “democracia popular” — era a república espanhola de 1936-1939; mas, além de que esta experiência tivera lugar nas condições excepcionais da guerra civil e da intervenção armada estrangeira, faltava nela o fator que foi determinante nas democracias populares do Leste — a presença (em ato ou potencial) do exército soviético. As explicações doutriná­ rias “marxistas-leninistas” que foram elaboradas naqueles anos sobre a natureza e as perspectivas da “democracia popular” ficaram fal­ seadas em sua raiz porque o papel decisivo deste fator não podia ser incluído e analisado sem prejudicar a diplomacia soviética, sem “dar argumentos” à propaganda e à estratégia das potências capita­ listas. Reduzida à sua essência, a teoria da “democracia popular” fundava-se na seguinte hipótese: uma vez destruído, no curso da Libertação, o poder político da oligarquia financeira e latifundiária, privada da sua base econômica mediante as expropriações e as nacio­ nalizações subseqüentes, seria possível a colaboração duradoura en­ tre a classe operária, os pequenos camponeses proprietários e a mé­ dia burguesia — industrial, comercial e agrária — numa perspectiva de evolução gradual para o socialismo. O setor nacionalizado iria se ampliando e reduzindo o setor privado; os pequenos camponeses, voluntariamente, passariam pouco a pouco a formas cooperativas — até que toda a economia ficasse estruturada sobre bases socia­ listas. A luta de classes prosseguiria, mas tomando formas pacíficas e evolutivas dentro do sistema representativo democrático-parlamentar. Este tipo de desenvolvimento ficava supostamente garantido desde o momento em que a classe operária (entenda-se: o partido comunista) assumia a direção nos marcos da coalizão governante e em que a nova correlação mundial de forças, emergente da segunda guerra, permitia à União Soviética proteger contra a intervenção imperialista os países que empreendessem esta via. Como diziam os teóricos soviéticos e os chefes comunistas das democracias populares, 490

Iratava-se de uma via ao socialismo diferente da soviética, viabili­ zada graças às “novas condições históricas” criadas pela construção definitiva do socialismo na URSS e pela vitória do Estado soviético na contenda mundial. Dimitrov foi mais longe que todos, susten­ tando a tese de que, se “à passagem ao socialismo fora indispen­ sável [em 1919] a ditadura do proletariado”, agora, “ para muitos países, o problema da realização do socialismo se coloca como um problema de colaboração da classe operária com os camponeses, os artesãos, os intelectuais e demais camadas progressistas do povo” 11 (as “demais camadas progressistas do povo”, é claro, eram a bur­ guesia industrial, comercial e agrária, cujos representantes políticos faziam parte da “frente nacional” e do governo “ democrático-popu­ lar”, ou “governo do povo”, segundo as expressões da época). Esta foi a concepção vigente em 1945 e 1946, enquanto perdurou a espe­ rança de um entendimento global entre a URSS e os Estados Unidos. Depois do início da “guerra fria” e do colapso de todas as ilusões — nas “grandes” e “pequenas alianças” —, o velho Dimitrov teve que fazer uma autocrítica, declarando que a ditadura do proleta­ riado continuava tão necessária nos anos quarenta como nos anos vinte e reconhecendo que (embora de forma diversa da do sistema soviético) a “democracia popular” também cumpria as funções da ditadura do proletariado 12. Não é preciso assinalar que “as funções da ditadura do proletariado” eram entendidas em estilo soviético: liquidação de qualquer irrupção de democracia proletária, ditadura do partido comunista (mais exatamente: do seu núcleo dirigente). A única diferença que subsistiu entre a “democracia popular” e o sistema soviético era a conservação, na primeira, de uma paródia de “pluralismo” político no marco de uma caricatura do regime parla­ mentar. Esta concepção — em sua primeira forma, antes da viragem de 1947 — foi a adotada pelos partidos comunistas da França e da Itália como justificação doutrinária da sua participação nos gover­ nos burgueses, depois que a derrota da Alemanha os privara da justificação tática anterior. Os governos de união nacional deveriam ser vistos como um primeiro passo na direção da democracia popular e as nacionalizações como um primeiro golpe contra o capital mono­ polista. Uma vez que o partido comunista e seus aliados chegassem à direção do Estado pelo sufrágio universal, o setor nacionalizado começaria a adquirir caráter socialista e se iria ampliando. O Estado deixaria de estar a serviço da oligarquia capitalista, transformando-se 491

em Estado de democracia popular. Naturalmente, este esquema ia associado à idéia do novo equilíbrio mundial de forças, em virtude do qual acabaria por se impor a colaboração entre a URSS e os Estados Unidos, no espírito de Ialta. Se o povo votasse majoritariamente pelo partido comunista e seus aliados, as potências capitalistas teriam que respeitar a vontade popular. O modelo de desenvolvimento que parecia afirmar-se no Leste era transferido para o Oeste com a abstração de todos os fatores decisivos que permitiam a sua afirmação. Dava-se por suposto que os partidos comunistas haviam conquistado — ou estavam prestes a conquistar — a direção do Estado por meios exclusivamente democrático-parlamentares, conservando-a sobre esta base. É ilustrativo, por exemplo, o informe de Thorez à assembléia da Federação do Sena do PCF, a 8 de junho de 1947, no qual há longas referências à concepção da “nova democracia’’. Aludindo concretamente à Po­ lônia e à Hungria (ou seja: aos dois casos em que os comunistas não podiam, com toda a evidência, manter-se um só dia como força dirigente do Estado se isto dependesse de eleições livres), Thorez diz que o “governo do povo” conserva ali o “poder do povo”, à base de “eleições democráticas, com um parlamento eleito demo­ craticamente, segundo formas mais ou menos aproximadas às que nós conhecemos” ,3. É difícil saber se os dirigentes comunistas oci­ dentais enganavam as massas de militantes ou a si mesmos. De qualquer maneira, não enganavam os outros grupos políticos con­ vocados para acompanhá-los na nova via ao socialismo. A impotên­ cia do neo-reformismo comunista provinha, antes de mais, da dialé­ tica da luta de classes, quer a nível internacional, quer a nível na­ cional, que não se submetia ao novo esquema doutrinário; mas ela se via agravada pela reação que os acontecimentos do Leste provo­ cavam nos outros grupos reformistas do movimento operário (sem falar já na “burguesia democrática”). Não trataremos aqui da crítica teórica destas concepções. A “guerra fria” se encarregou da crítica prática è elas não renasceram até os desdobramentos do XX Congresso do PCUS, quando, então, foram objeto de uma elaboração teórica maior. Quando chegarmos a este período, voltaremos ao assunto. Por agora, limitar-nos-emos a assinalar que a doutrina da “democracia popular”, na sua versão ocidental, não se apoiou em nenhuma análise da sociedade capita­ lista que permitisse alcançar novas conclusões sobre a dinâmica das suas estruturas e o comportamento das classes. A doutrina nasceu 492

iIn 11miIii 11 ti multi pragmática que se pode conceber, sem outra susi. objetiva que a nova correlação mundial de forças, cuja apreto..o. i pelos doutores da igreja foi rapidamente desmentida pelo . „i o ui dos acontecimentos. Os poderosos partidos comunistas da I 1,1111,11 c da Itália foram eliminados — sem condescendência e sem ...... nlrtecessem resistência — dos governos respectivos e, em lugar dl, 11va t i ç o pura a “democracia popular”, produziu-se um avanço mi M i m o dc um novo desenvolvimento capitalista. O capitalismo ..........ano instalou-se solidamente na Europa ocidental. Nu I.este, a exacerbação da luta de classes — as classes buri l i , m s , estimuladas pela superpotência americana, intensificaram por I i i i I iin os meios a sua ação contra todas as reformas que limitavam ii mi base econômicaj bem como contra o crescente monopólio do puder eletivo pelos comunistas — e a ofensiva econômica do impeII,de.mo umericano, sob o manto do Plano Marshall, demonstraram ii 1utilidade do curso idílico concebido no período de Ialta e da I ibertuçio. Particularmente se explicitou a fragilidade das democra, ms populares em face do capitalismo mundial no terreno econômico. A eeonomia destes países era extremamente dependente do comércio com o Ocidente — e a dependência começou a mostrar-se agudamente quando se iniciou a reconstrução. Na Tchecoslováquia, por exemplo, entre o terceiro trimestre de 1946 e o primeiro de 1947, as importuções da URSS caíram pela metade, enquanto as exportações para ela diminuíram em um terço; no mesmo período, as importações dos Estados Unidos triplicaram e as exportações para lá cresceram em 50%. No primeiro trimestre de 1947, a URSS ocupava o sexto lugar no comércio externo tchecoslovaco (tanto nas importações quanto nas exportações). E tais tendências não davam sinais de re­ versão — pelo contrário14. Diante desta realidade e partindo das ilusões que ainda subsistiam neste momento acerca das perspectivas do desenvolvimento internacional e nacional, compreende-se que o partido comunista e o governo tchecoslovacos se pronunciassem, a 4 de julho de 1947, pela presença na Conferência de Paris, convo­ cada para discutir o Plano Marshall. Tendências análogas se veri­ ficavam noutras democracias populares. Em 1945, a URSS absorvia 93% das exportações polonesas e concentrava 91% das suãs impor­ tações; em 1946, as respectivas porcentagens eram de 50% e 70% ,5. Também os comunistas poloneses mostraram-se favoráveis à dis­ cussão da proposta americana de ajuda. É óbvio que posturas deste gênero colidiam com a construção da área de projeção soviética, tal 493

como Stalin a concebia. A 8 de julho de 1947, enquanto o governo polonês deliberava com a intenção de acorrer à Conferência de Paris, a Rádio Moscou anunciou que a Polônia se negava a parti­ cipar da conferência. No mesmo dia deslocava-se para Moscou uma delegação tchecoslovaca, à qual Stalin colocou a questão em termos que tinham, pelo menos, a virtude da clareza: o Plano Marshall objetivava isolar a URSS e, portanto, não havia nada a discutir. Simultaneamente, apareciam outras tendências perigosas para a integridade da área de projeção soviética. Apesar da sua submissão indubitável à direção soviética (e provavelmente sem a menor inten­ ção de questioná-la), entre as democracias populares começaram a se articular relações bilaterais e tratados de alianças — e, sobretudo, a Iugoslávia se destacava cada vez mais como um segundo pólo político de atração. O projeto iugoslavo da Federação Balcânica, por exemplo — a constituição de um Estado do Mar Negro ao Adriá­ tico, dirigido por Tito, que já dera as provas de independência que conhecemos —, era mais que suficiente para despertar a doentia desconfiança de Stalin lé. Assim, no verão de 1947, tanto a evolução na área de projeção soviética como na Europa ocidental e a orientação francamente anti-soviética adotada por Washington (sobre isto, remetemos o leitor ao capítulo precedente) exigiam do Kremlin a drástica revisão da política até então implementada — quer a política externa soviética, quer a política dos partidos comunistas no Leste e no Oeste. Em todas as frentes se impunha um “ aperto nos parafusos”. Esta neces­ sidade ditou a criação do Centro de Informação dos Partidos Comu­ nistas.

O Centro de Informação dos Partidos Comunistas e a nova tática Em face da nova situação mundial, Stalin reage com a lógica que lhe é própria. Posto no auge da glória, possuído pela sua infabilidade, habituado aos métodos autocráticos que há duas décadas implantara no Estado e no partido soviéticos e no movimento comunista inter­ nacional, Stalin não pode pensar em submeter a um exame crítico deste movimento a política seguida até então e a nova problemática criada. Vistas as coisas do Olimpo em que está situado, nem sequer considera-se obrigado a recorrer ao formalismo de uma conferência 494

mi dc um congresso mundial que confira aparência de sanção colelívn u decisões previamente tomadas — como fizeram os últimos con­ i'o,sos da IC. Agora lhe basta convocar secretamente os represen­ tantes dos partidos que julga úteis para os fins determinados que ■i propõe. Pensa que, agregando ao partido soviético os partidos das democracias populares e os dois principais da área capitalista, tem a sua disposição um organismo suficientemente representativo para assumir o papel que desempenhou, até a sua dissolução, o Comitê l xecutivo da IC: impor ao conjunto do movimento comunista a linha decidida pela direção soviética. Ademais, a composição do Centro de Informação dos Partidos Comunistas determinou-se por duas razões precisas. Em primeiro lugar, o núcleo axial da resposta staliniana à ofensiva americana era constituir um bloco monolítico, sob a égide soviética, com os países da sua área de projeção — daí o convite aos partidos destes países à conferência secreta na Polônia, hm segundo lugar, o campo de batalha principal para Stalin, na situação dada, era a Europa, com dois objetivos estreitamente vin­ culados: assegurar a invulnerabilidade da sua área de projeção e impedir que prosperasse o plano americano de agrupar num bloco, sob a direção de Washington, os Estados europeus ocidentais (incluí­ da a Alemanha do Oeste) — daí o convite aos dois principais par­ tidos desta zona ao conclave na Polônia. Como vimos, os dois par­ tidos serviram como bodes expiatórios para os efeitos negativos que tiveram as suas políticas de fidelidade ao Kremlin e, para reparar os seus erros, receberam um mandato de honra: fazer fracassar os planos americanos na Europa ocidental. Em troca, para a conferên­ cia de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas não foi convidado nenhum partido comunista do mundo colonial, nem mesmo o Partido Comunista Chinês. Igualmente foi ignorado o Partido Comunista da Grécia, empenhado naquele momento na luta armada contra a intervenção americana. Estas ausências expli­ cam-se por uma razão simples: o que Stalin procura, então e ao contrário do que acreditam os políticos do “mundo livre”, não é desencadear em escala mundial a luta revolucionária contra o impe­ rialismo americano. O seu objetivo estratégico permanece o mesmo; o que muda é a tática. Stalin se propõe, recorrendo a uma maneira “dura”, obrigar Washington a reconhecer a divisão das esferas de influência no marco de um compromisso mundial que assegure a direção bipartida do mundo pelas duas superpotências — e as con­ cessões que está disposto a fazer para chegar a este arranjo concer­ 495

nem principalmente ao mundo colonial e, em particular, ao Extremo Oriente. Quanto à Grécia, já a cedeu a Churchill e não lhe parece problemático que passe às mãos dos americanos. Tudo isto se reflete no informe que, em nome de Stalin, Zdhanov faz à conferência dos nove partidos. Informe, aliás, que possui especial relevância para o rumo do movimento comunista até a morte de Stalin: assim como a orientação estratégica e tática dos partidos comunistas, entre a disso­ lução da IC e a constituição do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, ficou definida na resolução de 1943, no qüinqüênio seguinte ela está definida pelo informe de Zdhanov e pela Decla­ ração dos nove partidos, que se limita a sintetizar as idéias daquele. A partir de 1953, o Centro de Informação dos Partidos Comunistas deixará de existir praticamente — embora a sua dissolução oficial só ocorra em abril de 1956 — e se iniciará uma mudança na linha geral do movimento comunista, determinada pela nova viragem da política externa soviética. Sem a menor preocupação em explicar por que se revelaram errôneos todos os prognósticos de Stalin acerca do mundo que sairia da guerra — um mundo unido, regido pela colaboração confiante dos “grandes” —, a tese central do informe de Zdhanov é que, após a contenda, o mundo se dividiu em dois “campos”, “o campo imperialista e antidemocrático, de um lado e, de outro, o campo antiimperialista e democrático” 17. No campo imperialista, “ a força dirigente fundamental são os Estados Unidos”; dele fazem parte, “na qualidade de satélites dos Estados Unidos”, a Inglaterra e a França. Em seguida, vêm os Estados que desempenham um papel de “ apoio” : “Apoiam o campo imperialista Estados coloniais como a Bélgica e a Holanda, países com regimes reacionários antidemocrá­ ticos, como a Turquia e a Grécia, e países que dependem política e economicamente dos Estados Unidos, como os do Oriente Médio, da América do Sul e a China”. Enfim, o campo imperialista se “apóia” também “nas forças reacionárias e antidemocráticas de todos os países” e nos “adversários militares de ontem” (Alemanha e Japão). Quanto ao campo antiimperialista, sua ‘‘base é constituída pela URSS e os países da nova democracia”; são seus “adeptos” a Indonésia e o Vietnã e “simpatizantes” a Índia, o Egito e a Síria. “O campo antiimperialista se apóia no movimento operário e demo­ crático de todos os países, nos partidos comunistas irmãos, no movi­ mento de libertação nacional de todos os países coloniais e depen496

d* nli n, nu ujuda de todas as forças democráticas e progressistas *l1" ' Hislein em cada país”. Neste campo, o “papel dirigente corresii União Soviética e à sua política externa”. forno se constata, o conceito de “campo” significa, antes de mm bloco de Estados. As forças sociais e políticas não organi­ mi la\ n i i Estado desempenham uma função subalterna, de “apoio”. l ud ii "campo” está articulado em torno do seu Estado “dirigente”, • a sua "base”, constituída por este Estado-guia, mais os Estados tilt «.'tinnente subordinados, e conta com seus “apoios” em outras bui, iis políticas e sociais. Os partidos comunistas exteriores à “base” do campo antiimperialista são forças de “apoio” a tal campo. E, “ 'in eleito, a função que cumprirão, aplicando a linha promulgada polo Centro de Informação dos Partidos Comunistas, ajustar-se-á ountamente a este conceito. Segundo as formulações de Zdhanov, os objetivos estratégicos do oadu “campo” são os seguintes: o campo imperialista se propõe o lortalecimento do imperialismo, a preparação de uma nova guerra Imperialista, a luta contra o socialismo e a democracia”; o campo uiitiimperialista tem como objetivo “a luta contra a ameaça de novas guerras e contra a expansão imperialista, o fortalecimento da demomu iu e a erradicação dos restos do fascismo”. A “tarefa fundamenlul do campo antiimperialista é “assegurar uma paz democrática duradoura”. Nem no informe de Zdhanov, nem na Declaração dos nove se diz uma palavra sobre a luta pelo socialismo nos países do Capital — sequer como uma perspectiva remota com alguma ligação com os objetivos imediatos. Omissão deste tipo não pode tomar-se como casual, tendo-se em conta que era a primeira definição da estratégia mundial do movimento comunista depois da dissolução da 1C. E se afigura ainda menos casual se se a correlaciona a outras omissões semelhantes nos dois documentos. As duas ações revolu­ cionárias de maior envergadura que estavam em curso no instante da fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e que encerravam uma promessa mais imediata de desembocar numa revolução socialista — a guerra civil chinesa e a insurreição gre­ ga — são totalmente silenciadas. O seu significado não é analisado, sua luta não é apresentada como exemplo para outros povos e não se convocam os partidos comunistas e as forças democráticas mundiais para auxiliar os combatentes chineses e gregos. Um silêncio tão mais eloqüente quando se recorda que nestas duas batalhas as armas e os recursos americanos estavam diretamente envolvidos. No 497

seu longo informe, Zdhanov só dedica quatro linhas à intervenção americana na China e na Grécia, sem nada dizer sobre a resposta revolucionária dos respectivos partidos comunistas. Em troca, con­ sagra grande parte do documento à denúncia do Plano Marshall, cujos fins principais formula assim: “prestar ajuda prioritária não aos países vencedores empobrecidos, mas aos capitalistas alemães”; “restaurar o poder do imperialismo nos países da nova democracia e obrigá-los a renunciar à estreita colaboração, econômica e militar, com a União Soviética”; “formar um bloco de Estados compromis­ sados com os Estados Unidos e conceder créditos norte-americanos aos Estados europeus em troca da sua independência econômica e, pois, da sua independência política”. Numa palavra, o Plano Marshall significa que Washington nega à União Soviética a ajuda econômica de largo alcance solicitada pelo Kremlin desde Ialta; significa que a política americana ameaça a integridade da área de projeção soviética e se propõe erguer barreiras à extensão da influên­ cia soviética na Europa, nomeadamente na Alemanha. Estão claras as razões por que Stalin dirige a mobilização do comunismo inter­ nacional e de seus aliados fundamentalmente contra o “plano de dominação da Europa” . Por isto, o informe de Zdhanov termina enfatizando a “tarefa particular” que cabe aos partidos comunistas da França e da Itália: “ Devem tomar em suas mãos a bandeira da defesa da independência nacional e da soberania dos seus países” . Se estes partidos forem capazes de “colocar-se à frente de todas as forças dispostas a defender a causa da honra e da independência nacionais, qualquer plano de dominação da Europa será irrealizável”. À exceção da resolução de 1943, pela qual se dissolvia a IC e se renunciava à luta por uma solução socialista para a catástrofe européia, há poucos documentos na história do movimento comu­ nista que refletem com tamanha transparência a subordinação da luta revolucionária mundial às exigências da política externa sovié­ tica como este informe de Zdhanov. Isto não se expressa somente na definição dos objetivos essenciais, das “frentes” prioritárias; salta à luz também no problema das formas de luta, na atitude em face da luta armada como forma de ação revolucionária. O silêncio diante das guerras civis na Grécia e na China (à guerra de libertação dos vietnamitas são dedicadas duas linhas) não se explica unicamente porque havia a disposição staliniana de fazer concessões nestas zo­ nas, enquanto a área de projeção soviética era considerada intocável e primordial a “frente” euro-ocidental; explica-se também em virtude 498

da “tarefa fundamental do período do pós-guerra”: conservar a paz. A URSS — diz Zdhanov em seu informe — “está empenhada em criar as condições mais favoráveis para a construção da sociedade comunista”, e “uma destas condições é a paz exterior”. Mas o go­ verno soviético considera, como o declarou Vichinski na ONU, dias antes do informe de Zdhanov na fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, que, “na situação atual, toda nova guerra se converte inexoravelmente em guerra mundial” 18. Logo, as guerras locais representavam um grave perigo para assegurar a “tarefa fun­ damental” e “a construção do comunismo na URSS”. Portanto, as guerras revolucionárias, como as da China e da Grécia, não eram formas recomendáveis de luta contra o imperialismo. Encerravam o risco de envolver a União Soviética numa nova conflagração. Por isto, não figuram no informe de Zdhanov. Por isto, os combatentes gregos não receberão uma ajuda eficaz da União Soviética e serão finalmente liquidados. E se os chineses oferecem um dia ao movi­ mento comunista a surpresa da sua histórica vitória, será graças às forças próprias que souberam erguer, fazendo ouvidos moucos às re­ comendações stalinianas para chegar a um compromisso com Chiang e com os americanos. Sem dúvida alguma, a conservação da paz era uma aspiração profunda dos povos depois de seis anos de guerra, mas a dura reali­ dade estava mostrando que se a URSS precisava da sua paz para “construir o comunismo”, os povos de várias regiões do globo pre­ cisavam da sua guerra para se libertar da escravidão colonial — não lhes restava outro caminho. Esta era a sua “tarefa fundamental”, apesar de todos os sacrifícios que implicava. Por outro lado, o improvisado dogma de que toda guerra local se transformaria inexo­ ravelmente em guerra mundial não possuía fundamentação científica e os acontecimentos revelaram a sua inconscistência. Nenhuma das duas superpotências tinha a menor intenção de desencadear uma nova conflagração mundial; utilizavam o seu fantasma para obter conquistas políticas e estratégicas localizadas — nada mais. No en­ tanto, o dogma foi útil para justificar algumas capitulações e muitos oportunismos. Ao lado da paz, as duas outras folhas do tríptico estraté­ gico “antiimperialista” que Stalin oferecia ao movimento comunista eram a “independência nacional” e a “democracia”. Os comunistas deveríam aglutinar “todas as forças dispostas a defender a causa da honra e da independência nacionais”. Ao mesmo tempo em que 499

exproba os liberais burgueses e social-democratas europeus que, insensíveis à “honra nacional’’, se põem a serviço dos americanos, Zdhanov se esforça para explicar às burguesias européias a ameaça que os projetos americanos contêm para os seus interesses. Sob o pretexto de defendê-los contra uma imaginária ameaça comunista — diz-lhes Zdhanov — , os capitalistas americanos, na verdade, pro­ curam apoderar-se dos mercados europeus e desalojar as respectivas burguesias das colônias. Existe, portanto, a possibilidade — que os partidos comunistas devem explorar a fundo — de que uma fração da burguesia, aquela que compreender a conexão entre os seus inte­ resses crematísticos e os nobres ideais da honra e da independên­ cia nacionais, una-se aos comunistas contra os vorazes planos de Washington. Este é o pano-de-fundo da análise de Zdhanov. Mas, para que esta possibilidade venha a concretizar-se, a terceira folha do tríptico, a democracia, não deve passar do rosa-pálido e adquirir um tom muito vermelho. Torná-la rubra, postular claramente a alternativa socialista ao capitalismo, equivaleria a confirmar o “pe­ rigo comunista”, justificação máxima da política americana. Daí por que a perspectiva da revolução socialista brilhe pela ausência na nova linha de Stalin, tanto como, no período precedente, fora elimi­ nada para não prejudicar a “grande aliança”. Como se pode ver, Stalin permanecia fiel àquela que fora, desde que se afirmara no poder, a pedra angular da sua estratégia. A que dita em 1947 ao movimento comunista continua concedendo a prioridade à exploração das contradições interimperialistas e intercapitalistas, preterida a contradição burguesia-proletariado. Já que, no momento, as primeiras estavam soterradas em virtude do medo da burguesia européia diante do perigo revolucionário e do aceno dos dólares, a tarefa primordial dos partidos comunistas consistia em propiciar a sua reativação. Os métodos de ação devem ser os mais enérgicos — e, para este fim, convém estimular a luta de classes no plano econômico, à diferença do que se fazia no período prece­ dente — para bater os políticos centristas e social-democratas que se dobram aos americanos, mas o objetivo estratégico é reconstruir a união nacional com a fração da burguesia ameaçada pela expansão americana, criar uma “frente ampla” pela paz e pela independência nacional. Esta orientação, naturalmente, não é a adequada para os partidos comunistas da área de projeção soviética; aqui, como vere­ mos no próximo capítulo, deve-se acelerar a marcha para o “socia­ lismo”, inclusive “queimando as etapas”, forçando o processo com 500

medidas udministrativas e repressivas, assegurando direções comunisliis absolutamente incondicionais a Moscou, a fim de que a “base” do "campo antiimperialista” adquira consistência monolítica. lista estratégia deveria servir para resistir à ofensiva americana, dando tempo à União Soviética para vencer o seu atraso no armamento atômico, e sua meta final era um novo equilíbrio mundial de forças que obrigasse os Estados Unidos a aceitar o grande i ompromisso procurado por Stalin — sem descartar que a simples colocação da contra-ofensiva poderia levar os dirigentes americanos .1 reflexão, induzindo-os a modificar rapidamente a sua política. () informe de Zdhanov está sabiamente dosado e estruturado, de Iminii que Washington possa perceber, sob o punho cerrado, a mão estendida. Em primeiro lugar, fica claro que o objetivo não é atentar contra as bases da grande cidadela do capitalismo; mais modesta­ mente, trata-se de conter a sua expansão, como se diz taxativamente no informe (daí a não abordagem dos problemas das revoluções coloniais, das revoluções socialistas na área capitalista desenvolvida ou da luta de classes nos Estados Unidos). Em segundo lugar, Zdhanov assinala, com suficiente inteligibilidade para os entendidos, a zona em que tal expansão é intolerável para os interesses soviéticos (a área de projeção européia) e a zona em que se deve chegar a um arranjo que reconheça a preeminência de tais interesses (Alemanha). Quanto às outras, o porta-voz de Stalin limita-se a registrar a domi­ nação americana (Japão, América Latina) ou o propósito de estabelecê-la (colônias inglesas, francesas, holandesas, China, Grécia, Tur­ quia, etc.), sem aludir a qualquer pretensão soviética nelas e dei­ xando de lado a luta revolucionária que aí se desenvolve. Em relação à América Latina, por exemplo, o sentido profundo do in­ forme de Zdhanov fica completamente óbvio com a declaração feita poucos meses depois por Molotov — respondendo à acusação norteamericana de que a tensão internacional é provocada pela política da União Soviética na Europa Oriental, Molotov replica: “ Sabe-se que também os Estados Unidos aplicam uma política de fortaleci­ mento [sic] das suas relações com os países limítrofes, como o Ca­ nadá, o México e outros países da América, o que é perfeitamente compreensível” ,9. Ou seja: respeitemos cada um as respectivas esfe­ ras de influência e tudo pode ser arranjado. O silêncio de Zdhanov sobre a guerra revolucionária na China e na Grécia equivale a subli­ nhar diplomaticamente a boa disposição de Moscou em face dos 501

interesses americanos no Extremo Oriente e no Oriente Próximo. Particularmente, dá a entender que permanece de pé o oferecimento de seguir uma política comum com os Estados Unidos nas questões do Extremo Oriente”, reiterada por Stalin em dezembro de 1946 20. Permanece de pé, bem entendido, com a condição de que os Estados Unidos renunciem às suas pretensões hegemônicas na Europa. Zdhanov insiste na possibilidade de colaboração entre a URSS e os países com outros sistemas, desde que se observe o princípio da reciprocidade e do cumprimento dos compromissos contraídos”. “Sakf"Se T acrescenta — que a URSS sempre foi fiel, e continua a se-lo, às obrigações concertadas. A União Soviética demonstrou a sua vontade e o seu desejo de colaborar”. Em outras palavras: sobre a base dos acordos de Ialta, Potsdam, etc., continua sendo possível a colaboração URSS-Estados Unidos. E Zdhanov aduz uma precisão importante: “ O governo soviético nunca se opôs à utilização de cré­ ditos estrangeiros, particularmente de créditos norte-americanos, co­ mo meio capaz de acelerar o restabelecimento econômico”. A única condição que põe é que tais créditos “não tenham caráter oneroso e não conduzam à escravização econômica e política do Estado de­ vedor pelo Estado credor”. Portanto, ficava aberta a porta para um Plano Marshall revisado, que não implicasse a criação de blocos hostis à URSS ou a tentativa de minar a área de projeção sovié­ tica. Os círculos liberais norte-americanos da época, agrupados em torno de Henry Wallace (o vice-presidente de Roosevelt), compreen­ deram perfeitamente a mensagem cifrada contida no informe de Zdhanov e tentaram convencer a opinião pública a aceitar a mão estendida de Stalin — mas fracassaram rotundamente 21. As classes dirigentes norte-americanas consideravam-se suficientemente fortes para impor ao mundo a pax americana ou, o que dá no mesmo, para modificar a seu favor a divisão das esferas de influência resultante da guerra.

Retrocesso geral do movimento comunista no Ocidente Nos meios burgueses, o informe de Zdhanov e a criação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas — ressurreição, à primeira vista, do Lázaro vermelho enterrado em 1943 — foram recebidos como um desafio aos “povos livres”, cuja defesa fora 502

itili(lislicamcnte assumida, segundo proclamava a “doutrina Truman”, pelos listados Unidos. Foram recebidos como o anúncio de uma PKpócie de ofensiva revolucionária mundial. Desde o momento em ipie rechaçavam a negociação global, sobre as bases reiteradamente propostas por Stalin, os dirigentes do imperialismo tinham interesse eu, divulgar esta versão: o espantalho do “perigo comunista” constiiiifa um excelente recurso para agrupar, sob a égide americana, imliis as forças conservadoras do planeta. Na realidade, a nova políIleu staliniana tinha um caráter essencialmente defensivo. Seu objeti­ vo central era consolidar as posições adquiridas no Leste e no Centro ila Europa, assim como no Extremo Oriente, e impedir que avan­ çassem os projetos de blocos anti-soviéticos. A tarefa dos partidos comunistas do mundo capitalista, cumprindo com a sua função de "apoio” à “base” do “campo antiimperialista”, deveria consistir em “encabeçar a resistênciu aos planos imperialistas de expansão e agres­ são”, tal como a definia o informe de Zdhanov. Ao final desta nova "resistência” não havia outra meta estratégica que a muito utópica de uma democracia burguesa zelosa da sua honra nacional e da sua independência em face das pretensões “dirigentes de Washing­ ton. O que conferiu certa tonalidade “ofensiva a esta nova po­ lítica foi, de um lado, a violência verbal — recobrindo, geralmente, a pobreza de idéias — na denúncia da política americana e seus “ lacaios” social-democratas, violência que, neste último aspecto, con­ corria com os lauréis do “terceiro período” da IC, os tempos do “social-fascismo”; e, de outro lado, a utilização de formas de luta quase esquecidas nos anos de colaboração governamental a greve, a manifestação e até o enfrentamento com as forças da ordem pú­ blica. Mas o conteúdo ofensivo ou defensivo de uma política não se define unicamente pelos métodos de ação, e a violência verbal pode servir — e, mais freqüentemente, desservir — a qualquer política. A curva ascendente do movimento grevista na Europa ocidental, do outono de 1947 aos finais de 1949 (logo ocorreu um nítido des­ censo, salvo na Itália, onde, pelo contrário, o maior desenvolvimento se deu nos anos 1950-1955), expressou a ação defensiva da classe operária frente à escalada patronal e do Estado, a tentativa de sal­ vaguardar seus interesses elementares diante das medidas de racio­ nalização que contribuíram para preparar o auge da economia capi­ talista européia iniciado nos começos dos anos cinqüenta22. Situados na oposição e interessados em mobilizar as massas contra os gover­ 503

nos da terceira força” postos a serviço da política americana, os partidos comunistas procuraram encabeçar as lutas operárias, em lugar de travá-las, como haviam feito no período 1945-1947. Esforçaram-se — com muito pouco êxito — por conectar estas lutas econômicas com as consignas de defesa da paz e da independência nacional, de oposição ao Plano Marshall e ao Pacto Atlântico, de proibição da bomba atômica, etc. No outono de 1947, estendeu-se por toda a França uma onda grevista que envolveu mais de dois milhões de trabalhadores. Como o movimento eclodia logo que se conheceram as resoluções do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, o governo acreditou en­ contrar-se diante de um “compio comunista”: instaura o estado de sítio, mobiliza 80.000 reservistas, dissolve unidades das forças da ordem pública consideradas pouco confiáveis e adota uma série de disposições antioperárias. Em várias localidades ocorrem choques en­ tre os operários e as forças repressivas, que têm por saldo quatro trabalhadores mortos, centenas de feridos e milhares de prisões. Evi­ dentemente, não havia nenhum “compio comunista”: havia o medo da burguesia, vivendo ainda com a impressão (de três anos atrás) de estar à beira da revolução; e havia o fato de a direção do PCF estar sob os efeitos da crítica que lhe foi feita, por seus peca­ dos oportunistas, na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Esta direção quer aproveitar a chance para mostrar a Moscou que também sabe jogar duro quando o exige a política soviética, mesmo que a situação francesa não seja propícia. E trata de conferir à greve um caráter político, impondo à direção da CGT — contra a posição da fração socialista — a inclusão, entre os objetivos do movimento, da luta “contra o projeto de dominação encarnado no Plano Marshall [. . .], contra os belicistas que encon­ tram cúmplices em nosso país” 23. Consignas que mal ecoam entre a massa dos grevistas — para não falar da massa da população. Como acreditar que o país qualificado na véspera — pelo próprio Partido Comunista Francês — como grande aliado da França, responsável, junto com a União Soviética, pela paz e pela independência dos povos, tenha se convertido, da noite para o dia, em tenebroso pro­ motor de uma nova guerra mundial e escravizador da França? Por que os dólares do grande aliado não podiam contribuir para restaurar a combalida economia francesa? Não fora o próprio Partido Comu­ nista Francês que, na véspera, apresentara a restauração econômica do capitalismo francês como a tarefa número um da classe operária? 504

O PCF não conseguiu politizar a greve, mas ofereceu magníficos argumentos a Léon Blum para evidenciar a mecânica subordinação do partido comunista à política soviética e para preconizar, sobre esta base, a cisão sindical24. Uns meses depois, Force Ouvrière25 c constitui como central sindical socialista, furtando à CGT meio milhão de filiados. A 9 de dezembro, a direção da CGT ordena a volta ao trabalho, sem ter conquistado nenhuma das principais rei­ vindicações econômicas. Um ano mais tarde, os mineiros novamente vao à greve e o governo responde com procedimentos análogos: ocupa as bacias carboníferas com o exército, metralha e prende em massa. Tal qual no outono de 1947, o governo, desta vez pela boca do socialista Jules Moch, ministro do Interior, acusa o partido comunista de cumprir ordens do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e se propor a tomada do poder26. Acusação absur­ da — embora útil propagandisticamente — no que toca à tomada do poder. O que a direção thoreziana procura é criar as maiores difi­ culdades possíveis ao governo e inquietar os americanos no mo­ mento em que o conflito provocado pelo bloqueio soviético de Berlim está em pleno desenvolvimento e não se sabe até onde pode chegar. A greve dos mineiros, determinada por razões econômicas, oferece-lhe uma excelente oportunidade e por isto trata de prolongá-la e endurecê-la, inclusive quando parte considerável dos grevistas se in­ clina pela volta ao trabalho27. Em 1944-1945, os núcleos avançados da classe operária eram seguidos pela grande massa da população trabalhadora, em plena efervescência política — o proletariado tinha uma posição de força. Então, Thorez convocou os mineiros e os demais setores operários a não utilizar a sua força, a não fazer gre­ ves, a colaborar com a burguesia na reconstrução econômica. Em 1948, quando a passividade política envolvera novamente as massas, decepcionadas em suas esperanças de renovação social, Thorez se dirige aos mineiros com as palavras de Zdhanov, que dissera na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas: “Agora, o perigo principal para a classe operária consiste na subestimação das suas próprias forças e na superestimação das forças do adversário” 28. Zdhanov faz esta afirmação em 1947, quando a situação já sé inver­ tera na Europa ocidental. Thorez repete-a em 1948, quando a re­ gressão política se acentuara ainda mais, como o demonstra o isola­ mento em que se desenvolve a greve dos mineiros. De 1947 a 1951, o percentual correspondente aos lucros das grandes sociedades capi­ talistas na renda nacional da França passou de 36% para 48%, en­ 505

quanto que o dos salários caiu de 47% para 33%. A ofensiva pa­ tronal e estatal alcançou pienamente os seus objetivos e a causa profunda não residia na subestimação, pela classe operária, das suas forças no período — residia em que o partido comunista, aplicando incondicionalmente a política staliniana, subestimou-as em 19441945. Também o Partido Comunista Italiano submeteu-se à nova po­ lítica de Stalin, promulgada por Zdhanov, mas não tão mecanica­ mente como o partido francês. Empenhou-se por estimular as lutas operárias e camponesas, mas sem tentar forçar as situações, sem perder de vista que a evolução política girava à direita, como o revelaram as eleições legislativas de abril de 1948, nas quais a de­ mocracia cristã obteve 48,5% dos votos e a maioria absoluta das cadeiras. Ademais, o PCI teve a seu favor a posição unitária da maioria do Partido Socialista, ainda que a minoria adepta de um afastamento dos comunistas tenha começado a ganhar terreno. Ao atentado de julho de 1948 contra Togliatti, oito milhões de traba­ lhadores responderam fulminantemente com uma greve geral impres­ sionante, que parou o país por dois dias. Alguns grupos do par­ tido pretenderam dar-lhe uma inflexão insurrecional, mas a dire­ ção — aconselhada pelo próprio Togliatti, antes de perder a cons­ ciência — avaliou que, na situação dada, isto seria uma aventura. E provavelmente estava com a razão, embora a explosão de julho ti­ vesse explicitado retrospectivamente a magnitude do potencial revo­ lucionário que a direção togliattiana se recusara a desenvolver na conjuntura única de 1943-1945. O PCI, mesmo consagrando, como o PCF, a atenção exigida pelo Centro de Informação dos Partidos Comunistas às campanhas gerais pela paz e pela proibição da bom­ ba atômica, contra o Pacto Atlântico e o Plano Marshall, etc., soube colocar com certa profundidade os problemas específicos da socie­ dade italiana, ainda que conservando a ótica reformista do período precedente. Num primeiro momento — antes da condenação de Tito — parece, inclusive, que Togliatti quis tomar distância em face do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. O informe que apresenta ao VI Congresso do partido (janeiro de 1948) pouco se refere ao novo organismo e, quando o faz, é para sublinhar que o Centro de Informação dos Partidos Comunistas não é a Internacional Comunista e que “as vias de desenvolvimento do movimento demo­ crático nos vários países da Europa não podem ser idênticas”. Ele assinala também que “nossa colaboração voluntária e fraterna [no 506

Centro de Informação dos Partidos Comunistas] tem por agora um caráter consultivo”. Os dois grandes do comunismo ocidental puderam resistir, aos trancos e barrancos, aos embates da “guerra fria” e aos efeitos neliistos da sua subordinação à política soviética — mas outros partidos mais débeis sofreram profundos prejuízos. O auge relativo experi­ mentado depois da Libertação pelos partidos comunistas dos países escundinavos, da Bélgica, da Holanda, da Áustria, da Suíça, etc., como vimos29, converteu-se rapidamente em declive. O Partido Co­ munista espanhol foi duramente golpeado pela ditadura franquista i|ue, gozando abertamente da proteção americana, intensificou bru­ ti) Imente a repressão contra toda a oposição operária e democrática. Sem a solidariedade internacional, especialmente sem a ajuda sovié­ tica — enquanto os americanos não poupavam o seu auxílio ao governo monárquico — , os comunistas gregos se viram obrigados a abandonar a luta armada em agosto de 1949. Também foi conside­ rável o golpe sofrido pelos partidos comunistas da América Latina, assim como de alguns países asiáticos. Mas sobre este retrocesso geral do movimento comunista no mundo capitalista, durante os anos da “guerra fria”, voltaremos em outro capítulo. Antes de fazer o balanço geral deste período — no qual, contrastando com o retro­ cesso indicado, se ergue a grande vitória da revolução chinesa e o prelúdio da vitória vietnamita — , trataremos em separado três temas que englobam acontecimentos, tendências e fenômenos de significa­ ção primordial para o rumo seguido pelo movimento comunista du­ rante estes anos e ulteriormente. Em primeiro lugar, a ruptura soviético-iugoslava, suas repercussões nos outros partidos comunistas e a evolução da área de projeção. Em segundo lugar, a vitória da revolução chinesa. E, por último, a chamada “luta pela paz”, con­ vertida em tarefa central do movimento comunista no período da “guerra fria”.

NOTAS 1

Cfr. H. Ripka, L e C o u p d e P ra g u e, Paris, Plon, 1949, pp. 33 e ss. Nas eleições de maio de 1946, consideradas por todos os partidos políticos do país e pelos governos ocidentais como plenamente livres e regulares, o PC obteve, no con­ junto da Tchecoslováquia, 38% dos votos e, na Boêmia-Moldávia, mais de 40%. De 300 deputados, 115 eram comunistas, 55 socialistas-nacionais (Benes), 47 do partido populista e 36 social-democratas. O restante parti507

ripava de diversos grupos. Em julho de 1946 formou-se o novo governo pre­ sidido por Gottwald. A representação parlamentar só oferecia uma idéia parcial e indireta da relação de forças. No curso da libertação, criaram-se novos órgãos de di­ reção do Estado em escala local, distrital e regional, os Comitês Nacionais, com representantes dos diversos partidos políticos, mas também de sindicatos e outras organizações, que foram legalizados pelo governo Benes, inclusive antes de instalar-se em Praga. Em 1946-1947, os três presidentes regionais dos Comitês Nacionais eram comunistas. De 163 Comitês Nacionais de distritos, 128 tinham presidentes comunistas e, de um total de 11.512 Comitês Na­ cionais locais, 6.350 presidências eram comunistas. Se a isto se acrescenta que o partido controlava o ministério do Interior, as milícias operárias, a maior parte do exército — e, naturalmente, seu alto-comando — e dirigia os sin­ dicatos e outras organizações de massas, etc. — compreende-se que a opinião de Ripka corresponde bem à realidade. Os dados referentes às eleições e aos Comitês Nacionais, nós os tomamos do informe de Slanski, secretário-geral do Partido Comunista da Tchecoslováquia, à reunião de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, em setembro de 1947. 2 A p u d F. Fejto, H is lo ir e d e s D é m o c r a tie s P o p u la ir e s, Seuil, Paris, 2a. ed., 1969, p. 107. O autor tomou a citação de um estudo de Rakosi, de 1952, publicado na revista teórica do partido húngaro. 3 Ib id ., p. 108. 4 Ib id ., p. 107. Segundo Fejto, “as autoridades soviéticas mostraram-se, do ponto de vista político, tanto mais tolerantes e liberais, na Hungria, quanto mais duras no aspecto econômico. Tudo se passava como se, então, consi­ derassem a Hungria situada mais além da sua zona de segurança e quisessem provar a sua vontade de respeitar as disposições de Ialta, algo que não podiam fazer na Romênia e na Bulgária” (ib id ., p. 106). As coisas mudaram rapidamente depois das eleições referidas e na medida em que se foram de­ teriorando as relações entre o governo soviético e os Estados Unidos. Em dezembro de 1946, os dirigentes do partido dos pequenos proprietários foram acusados de conspiração contra o regime. Como o grupo parlamentar deste partido, que representava 57% dos eleitores, se recusasse a votar o levanta­ mento das imunidades parlamentares do seu secretário-geral, Bela Kovaks, as autoridades militares soviéticas intervieram abertamente, procedendo à sua detenção em fevereiro de 1947, sob a acusação de “complô contra a segu­ rança do Exército Vermelho” (cfr. o p . cit., p. 194). 5 Stalin, E n e r e v is ta c o m o P re s id e n te d a S c r ip p s -H o w a r d N e w s p a p e r s , S r. R o y H o w a r d , em russo, Partisdat, Moscou, 1937, p. 10. t> O p . cit., p. 127. 7 Segundo certas estimativas, citadas por F. Fejto, até setembro de 1946, a Romênia pagara à União Soviética, a título de indenizações, um bilhão de dó­ lares, faltando ainda o ressarcimento de 950 milhões. Na Hungria, em 1946, 65% da produção nacional total destinava-se ao pagamento de indenizações. Sobre esta questão e sobre a constituição de sociedades mistas, cfr. Fejto, o p cit., pp. 136-137 e 154-157; um estudo mais especializado e detalhado encontra-se em Jan Marczewski, P la n ific a tio n e t C ro issa n c e É c o n o m iq u e d es D é m o c r a tie s P o p u la ire s, PUF, Paris, 1956, t. I, pp. 218-232. 8 Acerca do conflito tcheco-polonês em relação a Teschen, cfr. Fejto, o p . cit., p. 114; sobre a questão das minorias húngaras na Eslováquia, na Transilvânia, etc., cfr., na mesma obra, pp. 116-117, 127-128. 9 No início da guerra, Tito era um quadro pouco conhecido. O fato de dirigir o partido e a luta de libertação no próprio palco de operações, sem outro 508

contato com Moscou que a ligação por rádio, explica bastante, sem dúvidas, o ,eu comportamento — ao que o predispunham, por outro lado, as suas expe­ riências anteriores, os conflitos vividos no seio da IC, seu conhecimento da realidade soviética, etc. A este respeito, é muito esclarecedora — indepen­ dentemente dos aspectos de “culto” que lamentavelmente contém — a bio­ grafia de Tito, já citada, escrita por Vladimir Dedijer. ia "Nossa tarefa imediata — declarou Dimitrov ao assumir a liderança do go­ verno em 1946 — não é a realização do socialismo, nem a introdução do sistema soviético, mas a consolidação do regime democrático e parlamentar” (a p u d Fejto, o p . cit., p. 126). II Citado por Chervenkov, dirigente do PC búlgaro, em seu informe à reunião de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas; incluído na antologia dos documentos desta reunião publicada em Moscou, Edições em Línguas Estrangeiras, 1948, versão espanhola, p. 185. iz Cfr. Dimitrov, informe ao V Congresso do Partido, 19 de dezembro de 1948, publicado sob o título L a B u lg a ria d e H o y , Ediciones Nuestro Pueblo, do PC da Espanha, p. 52. 13 Thorez, O e u v re s, ed. cit., t. 23, p. 133. 14 Cfr. Fejto, o p . cit., p. 180. 15 Ib id ., p. 179. 16 Cfr. o capítulo IV da já citada obra de Fejto, t. I. 17 Baseamo-nos no texto oficial do informe de Zdhanov, publicado juntamente com a Declaração dos nove partidos e os informes dos seus representantes pelas Edições em Línguas Estrangeiras, de Moscou, 1948. A antologia leva o título C o n fe r ê n c ia d e I n fo r m a ç ã o d o s R e p r e s e n ta n te s d e A lg u n s P a rtid o s C o ­ m u n ista s , C e le b ra d a n a P o lô n ia e m F in a is d e S e te m b r o d e 1947. Todas as ci­ tações e referências seguintes são tomadas desta fonte; os sublinhados são nossos. 18 Citamos a afirmação de Vichinski segundo a versão publicada em M u n d o O b re ro , órgão do PC da Espanha, editado na França, número de 25 de se­ tembro de 1946. O sublinhado é nosso. 19 Declaração de Molotov, em 9 de maio de 1948; tomamos a citação do texto publicado em M u n d o O b re ro , de 13 de maio. Cfr. p. 444 deste volume. 21 A 13 de maio de 1948, a imprensa soviética publicou uma carta aberta de H. Wallace a Stalin, na qual se enumeravam as questões sobre as quais o remetente considera indispensável chegar a um acordo. Stalin, numa decla­ ração firmada a 17 de maio, responde valorizando altamente a carta de Wallace, qualificada como “o documento mais importante”, nos últimos tempos, entre os voltados para “fortalecer a paz, normalizar a colaboração internacional e garantir a democracia” e afirma que o programa exposto pelo signatário poderia servir de base a um acordo. Previamente a esta iniciativa de Wallace, o Departamento de Estado fi­ zera uma exploração das intenções soviéticas, que deu lugar a uma troca de notas, entre 4 e 19 de maio, nas quais os governos de Moscou e Washington se acusavam reciprocamente da responsabilidade pela tensão internacional e se ressaltava a importância das divergências. A declaração de Stalin e as notas soviéticas refletem o forte interesse de Moscou em estabelecer negociações para chegar a um compromisso global (baseamo-nos nos textos publicados nos números de M u n d o O b re ro de 13, 20 e 27 de maio de 1948). 20

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24 Cfr. Le Sputare, órgão da SFIO, 24 de dezembro de 1947. 25 Em francês, no original — F o r ç a O p e rá ria (N. do T ) FaUVet’

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ed. cit t II p 212

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do partido e seus efeUos p r e j u d i c ^ ' u m a S T ™ ' * °rientaçã° do movimento. Pouco a D o u c n a Parte dos grevistas deseja o fim minorias q u e c o n d u z a erro s \e r td T transforma num movimento de A o b stin a ç ã o e m d a r c o n tin u id a d e ^ A . Operaçao divisionista tem êxito, mineiros filiados à CGT aue rei °° m o v ‘m e n to conduz ao isolamento dos de .ma- (0p cit., *** * ^ ~ 28 A p u d J. Fauvet, o p . cit., p. 212. 2^ Cfr. p. 331 deste volume.

3.

A FRATURA IUGOSLAVA C om o todos os que se encontram fora da obediência e da devoção da Santa Igreja Católica, obstinados em seus erros e heresias, se esforçam para afastar da nossa Santa F é os fiéis e devotos cristãos, pare­ ceu-nos que o verdadeiro remédio consiste em evitar todo contato com os hereges e suspeitos, castigando e extirpando seus erros a fim de impedir que uma ofensa tão gran­ de seja feita à Santa F é e à Religião Cató­ lica nesta parte do mundo. O Inquisitor Apostólico Geral de nossos reinos e dom í­ nios, com o acordo dos membros do C o n ­ selho da Inquisição Geral e depois de N os haver consultado, decide criar nestas novas províncias o Santo O fício da Inquisição.

Felipe II, 25 de janeiro de 1569.

Instauração da ditadura burocrática e policial na área de projeção soviética. A tarefa indicada por Stalin aos partidos comunistas das demo­ cracias populares — completar a conquista do poder e eliminar da cena política todos os grupos hostis à integração total na órbita soviética, ligados às potências ocidentais ou simplesmente vacilantes entre os dois “campos” — foi cumprida de maneira rápida nos últimos meses de 1947 e ao longo de 1948. Na verdade, o problema não oferecia grandes dificuldades, porque os suportes decisivos do Estado já se encontravam nas mãos do partido e o exército soviético estava presente ou rondava as vizinhanças. Na Polônia e na Hungria, na Romênia e na Bulgária, assim como na Eslováquia, os grandes partidos agrários foram postos fora de combate no curso de 1947. Estes partidos, que contavam com ampla base social entre os cam­ poneses e a pequena burguesia urbana, tinham sido tradicionalmente os principais instrumentos políticos da burguesia liberal, mas, desde 1945, serviram de refúgio aos restos das velhas oligarquias derro­ cadas. E estavam vinculados às potências ocidentais. Não era possí­ 511

vel liquidá-los através do jogo parlamentar democrático e, como os partidos comunistas tampouco quisessem promover um novo tipo de democracia revolucionária direta, tiveram que recorrer ao método dos “complôs”. Dispondo do ministério do Interior e da eficaz assis­ tência dos serviços secretos soviéticos, era fácil aproveitar as liga­ ções que os dirigentes daqueles partidos mantinham com os repre­ sentantes das potências ocidentais para acusá-los de conspiração con­ tra o regime. Assim foram presas, condenadas a longas penas ou executadas as principais personalidades políticas dos partidos men­ cionados. Outras puderam se exilar a tempo '. Na rápida marcha para o monopólio do poder empreendida pelos partidos comunistas das democracias populares após a cons­ tituição do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, o acon­ tecimento mais espetacular foi o chamado “golpe de Praga”. Para­ doxalmente, na TChecoslováquia, onde o partido comunista contava com o maciço apoio da maioria da classe operária e esta — em vir­ tude do nível industrial do país — constituía a força social deter­ minante, os partidos burgueses haviam conservado a sua identidade e a sua integridade num grau muito maior que nas outras demo­ cracias populares. Já nos referimos à razão deste paradoxo: nos demais países da área de projeção soviética não era possível compa­ tibilizar a liderança comunista — e, através dela, a soviética — com o funcionamento real do mecanismo democrático-parlamentar; na Tchecoslováquia isto foi possível — graças, precisamente, à influên­ cia comunista e ao peso da classe operária — enquanto não houve a ruptura russo-americana e a revolução interna era artificialmente contida em limites compatíveis com os interesses da burguesia libe­ ral. A partir do momento em que a primeira premissa (e, por conseqiiência, a segunda também) desaparecia, a crise do regime era inexorável. Os partidos burgueses acreditaram ilusoriamente na pos­ sibilidade de resolvê-la a seu favor, aproveitando as eleições parla­ mentares previstas para maio de 1948. As sondagens realizadas pelos próprios comunistas, de fato, deixavam entrever a eventualidade do seu retrocesso eleitoral2. Mas o Partido Comunista tchecoslovaco tomou medidas para descartar semelhante risco: intensificou a ação política entre as massas e reforçou o seu controle sobre o aparelho policial do Estado (o ministério do Interior, como nas outras demo­ cracias populares, estava nas mãos do partido desde 1945). A 20 de fevereiro de 1948, os doze ministros do partido socialista nacional (Benes), populista tcheco e democrata eslovaco se demitem em pro512

lesto contra a nomeação de oito comissários comunistas para a polít, iu de Praga. Esperam que os ministros social-democratas sigam o seu exemplo, com o presidente Benes podendo utilizar a crise para obrigar os comunistas a recuar no problema da polícia. Mas, sob a pressão dos trabalhadores, mobilizados pelo partido comunista e pelos sindicatos, a direção centrista do partido socialista colou-se il sua ala esquerda e manteve seus representantes no governo. O partido comunista apela às massas para responder à manobra dos partidos burgueses. Convoca-as à mobilização, à criação de comitês de ação nas empresas, bairros e aldeias, à formação de milícias ope­ rárias que são imediatamente armadas pela polícia. O partido realiza comícios em todos os lugares e manifestações exigindo de Benes a formação de um governo liderado por Gottwald e “sem reacioná­ rios”. Procede à prisão, em todo o país, dos elementos mais carac­ terizados pelo seu anticomunismo e anti-sovietismo. E amplia a Fren­ te Nacional, fazendo entrar nela sindicatos, organizações coopera­ tivas e juvenis e outras entidades de massas ou profissionais con­ troladas pelos comunistas. Com esta “ ampliação ’ — a que se opu­ seram tenazmente os partidos burgueses e social-democrata , o Partido Comunista assegurou-se o pleno controle do Comitê Executi­ vo da Frente Nacional, que adota uma plataforma incluindo a depu­ ração dos partidos políticos e o estreitamento da aliança com a URSS. O exército, cujos principais comandos são comunistas (o mi­ nistro da Defesa, Svoboda, simpatiza com o partido comunista), observa benevolamente o desenvolvimento da situação. A direção social-democrata — a sede do partido fora ocupada pelos socialistas de esquerda, apoiados pelos comunistas — dá mais um passo, con­ cordando em colaborar com a solução preconizada pelo Partido Co­ munista. A 25 de fevereiro, Benes capitula e encarrega Gottwald de formar um novo governo, no qual os representantes dos partidos burgueses são apenas elementos decorativos. O mecanismo interno dos acontecimentos é evidente: não é o livre jogo do sistema democrático-parlamentar que permite aos co­ munistas conquistar a totalidade do poder, mas a utilização intensiva da sua força extraparlamentar: as massas, a polícia, o exército. E o feliz desenlace está protegido, contra toda intervenção exterior, pelos exércitos soviéticos, postados nas fronteiras Norte, Leste e Sul (para que a “presença” soviética não deixe lugar a dúvidas, às vésperas da crise chega a Praga o vice-ministro de Relações Exteriores da URSS). Mas, em vez de explicar as coisas na sua realidade, em vez 513

de invocar simplesmente o direito dos trabalhadores de levar a cabo a revolução, “adiada” em 1945 — partindo da concepção oficial, segundo a qual o partido comunista é o representante consciente da classe operária —, Gottwald declara no parlamento, ao apresentar o novo ministério, que “o reajuste e a reconstituição do governo se realizaram de maneira estritamente constitucional, democrática e parlamentar” 3. A ficção é convalidada nas urnas. A 30 de maio se celebram as eleições previstas — mas com uma “ligeira” modifi­ cação: só existe uma lista de candidatos, a da Frente Nacional, confeccionada, é óbvio, pelo seu Comitê Executivo, que, como vimos, está absolutamente controlado pelo partido comunista. A lista única recebe 89,92% dos sufrágios. A 6 de junho, Benes se demite e, a 14 do mesmo mês, Gottwald ascende à presidência da república (mais adiante, a partir do XX Congresso do PCUS, a ficção tchecoslovaca será utilizada como exemplo conclusivo da possibilidade da revolução socialista pela via pacífica e parlamentar. “Os comunistas [tchecoslovacos] — dirá Mikoyan na tribuna do XX Congresso — chegaram ao poder firmando uma aliança não só com os outros partidos operários, mas também com os partidos burgueses que sus­ tentavam a frente única nacional. O povo da Tchecoslováquia triun­ fou pela via do desenvolvimento pacífico da revolução” 4). O coroamento da tomada do poder pelos partidos comunistas significava, segundo as teses oficiais, que os regimes de democracia popular passavam a exercer as funções da ditadura do proletariado. Mas a concepção dogmatica de ditadura do proletariado vigente na época staliniana exigia que a sua direção fosse exercida por um único partido operário, o partido marxista-leninista. O “desenvolvimento criador do marxismo no período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas se limitou a admitir a presença, nas “frentes nacionais”, de partidos pequeno-burgueses e agrários, adequadamente depurados e manietados, sem qualquer poder e que, supostamente, facilitariam a irradiação da influência do partido comunista nas camadas pequeno-burguesas (a prática demonstrou rapidamente que este maquiavelismo barato, em todo o caso, só enganava os seus autores). O dogma não permitiu proceder de igual forma com os partidos social-democratas — nem mesmo com as suas frações de esquerda. A solução foi obrigá-los a se fundir com os partidos co­ munistas, uma vez, naturalmente, levada a cabo a correspondente depuração. Pouco antes da reunião do Centro de Informação dos 514

r,H lidos Comunistas, Gomulka escreveu um artigo sobre a unifit socialista-comunista no qual se pronuncia contra todo enfoque ...... mico ou burocrático do problema: “ Nenhuma unidade mecânica .li.! capuz de substituir a unidade ideológica. A unidade mecâm. a significaria que os dois partidos, o PSP e o POP, se fundiriam . m levar em conta as divergências ideológicas existentes entre n inhos, sem analisar as causas sociais destas divergências, sem defi­ nir os fins perseguidos e os meios para a sua consecução. [. . .] SaI irin o s perfeitamente que a criação de um só partido operário é um processo ideológico de longa duração” 5. Naquele momento, Dimitrov . outros líderes comunistas do Leste pensavam de modo parecido. I . de fato, a situação interna dos partidos socialistas nas democra. i.i populares não permitia esperar que o “processo ideológico”, ir.nptível de conduzir à unificação com os partidos comunistas, pudesse decorrer em curto prazo. Em finais de 1947, as posições dii ala esquerda se haviam debilitado, como demonstraram os con­ fessos dos partidos socialistas da Tchecoslováquia e da Hungria. I a própria esquerda, ainda que desejando por princípio a unifit ação, divergia dos comunistas em questões fundamentais, relativas aos métodos de construção do socialismo, ao regime interno do partido, etc. Particularmente, não aceitava a submissão ao partido oviético. Mas, a partir de janeiro de 1948, como que tocados por uma varinha de condão, todos os partidos socialistas das demo­ cracias populares foram se pronunciando pela fusão com os partidos comunistas: em janeiro, o romeno; em abril, o tchecoslovaco; em junho, o húngaro; em dezembro, o polonês e o búlgaro. Ocorreram fenômenos tão curiosos como este: em finais de 1947, o XXXVI Con­ gresso do Partido Socialista húngaro recusou a unificação com os comunistas por substancial maioria; seis meses depois, o XXXVII Congresso do mesmo partido aprovou a unificação por unanimidade. Na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, cele­ brada em novembro de 1949, Togliatti fez um informe sobre os problemas da “unidade operária”. A resolução adotada à base deste informe registrava “os êxitos históricos alcançados, no terreno da unidade operária, nos países de democracia popular”, a criação de “partidos únicos, sindicatos únicos, cooperativas únicas, organiza­ ções únicas de jovens, mulheres, etc.”. No seu informe, Togliatti explica que tais “êxitos históricos” “só puderam ser conquistados lutando enérgica e abertamente contra os social-democratas de di­ reita, desmascarando-os, isolando-os, afastando-os dos postos diri515

gentes, expulsando-os das fileiras socialistas; esta tarefa foi realizada com sucesso, embora lenta e debilmente às vezes, pelos socialistas de esquerda, com a ativa ajuda dos comunistas” 6. Togliatti não ofe­ rece mais detalhes e é inútil procurar nos textos comunistas da época a crônica documentada desta luta “enérgica”, dos procedimen­ tos que serviram para afastar dos postos dirigentes e excluir dos respectivos partidos os “social-democratas de direita”. Se, efetiva­ mente, se tivesse tratado de uma aberta luta de idéias, de decisões tomadas livremente pelos próprios militantes socialistas, convencidos da necessidade da unificação, é evidente que Togliatti não teria se privado de analisar minuciosamente tão importante experiência. Mas a história da “ativa ajuda” dos comunistas à “lentidão” e à “debi­ lidade” dos socialistas de esquerda está por escrever. Suas fontes se encontram nos arquivos policiais dos respectivos países, porque a varinha de condão não foi outra — é supérfluo dizê-lo — que a prévia depuração dos partidos socialistas, com o expurgo de todos os que se opunham à unificação. E depuração levada a cabo pela repressão e pela intimidação, depuração que só se tornou conhecida através dos casos mais notórios de personalidades socialistas en­ carceradas ou obrigadas ao exílio7. Entre os líderes da esquerda socialista que cooperaram com a operação, alguns se amoldaram ao stalinismo; os outros logo conheceriam a prisão ou o ostracismo político. Num primeiro momento, a liquidação das forças políticas bur­ guesas e o anúncio de que começava a “construção do socialismo” encontrou o apoio e despertou as esperanças das massas proletárias ou, pelo menos, de amplos segmentos seus, bem como de núcleos relativamente importantes da intelectualidade. Mas a ilusão se dissi­ pou rapidamente, dando lugar ao descontentamento larvar, ao medo e, sobretudo, à apatia política. Sob a sua forma “democrático-popu­ lar”, a ditadura do proletariado se revelou muito escassamente de­ mocrática e bem menos popular que sob a sua forma “ soviética”. Menos popular, entre outras razões, porque, à diferença da URSS, nas democracias populares encarnava a dependência a um poder estrangeiro. O mecanismo burocrático e policial que se dizia repre­ sentante do proletariado, ao mesmo tempo em que o privava de toda intervenção efetiva na direção do país, era controlado, por seu turno, por um mecanismo mais oculto, encarregado de zelar pela unidade monolítica do conjunto da área de projeção soviética. Uma vez que os incréus foram postos fora de combate, a heresia passou 516

ii vi o perigo principal nas novas províncias do império. E Beria, o Guinde Inquisitor desses anos, entrou em ação, com todas as conse­ quências. Os depuradores passaram a ser depurados.

A revolução herética A 28 de junho de 1948 se fez pública, nas democracias popu­ lares, a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas i uiulenando a direção do Partido Comunista da Iugoslávia. A notícia, 11 uno dizia Le Monde do dia seguinte, produziu em todos os lugares "o efeito de uma verdadeira bomba”. Nos meses precedentes, a imprensa ocidental fizera eco de rumores sobre dificuldades entre Moscou e Belgrado (Le Figaro, de Paris, por exemplo, informou, rin fevereiro, que o Partido Comunista romeno ordenara a retirada dos retratos do marechal Tito de todos os locais onde estava ao lado de Stalin, Dimitrov e Groza8), mas ninguém suspeitava que o conflito pudesse alcançar tais proporções. E menos ainda os prin­ cipais interessados: para os comunistas, esses rumores eram, indis­ cutivelmente, calúnias da imprensa burguesa. Stalin só informou do conflito — ou melhor: da sua versão do conflito — aos máximos órgãos dirigentes dos outros sete partidos que, com o soviético e o iugoslavo, constituíam o Centro de Informação dos Partidos Comu­ nistas. O resto do movimento comunista mundial inteirou-se do assunto ao mesmo tempo que os outros mortais. Antes de analisar a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, vamos resenhar, sucintamente, os principais antecedentes da crise, baseando-nos nas informações disponíveis até agora — informações ainda incompletas porque, como em todos os problemas do mesmo gênero, os arquivos soviéticos permanecem fechados à investigação histórica9. Ao conflito surgido durante a guerra mundial entre a política dos comunistas iugoslavos e a estra­ tégia staliniana seguiu-se — como vimos em outro lugar 10 — uma aproximação entre ambas as políticas, especialmente a partir de 1946, quando se foi agravando a deterioração das relações entre Washington e Moscou. Mas as agudas divergências do período da guerra devem ser situadas entre as premissas da crise de 1948, ainda que apenas por mostrarem a existência, na direção comunista iugos­ lava, de uma vontade de autonomia dificilmente compatível com as concepções vigentes em Moscou, e no conjunto do movimento comu­ 517

nista, acerca das relações entre o “partido guia” e os “guiados”. Se existisse em Moscou uma postura internacionalista, o aspecto nacionalista que indubitavelmente estava contido na vontade de autonomia iugoslava poderia ir cedendo e se extinguir. Mas, no choque com a prepotência do nacionalismo grão-rasso, o naciona­ lismo iugoslavo exacerbou-se cada vez mais. Entre a libertação da Iugoslávia e o início da crise que levou à ruptura de 1948, o con­ flito latente entre os dois nacionalismos se refletiu numa série de incidentes e problemas significativos, a maior parte dos quais não ultrapassou os círculos dirigentes, sobrevindo à superfície na fase aguda da crise ou depois da ruptura. Vamos nos limitar à evocação dos que tiveram um alcance maior. Em fins de 1944, depois da libertação de Belgrado, registraram-se numerosos casos de violências e abusos cometidos por solda­ dos soviéticos contra a população civil. Como é lógico, os elementos reacionários exploraram esses incidentes contra o novo regime. As massas revolucionárias, inclusive os comunistas, que tinham uma imagem idealizada do exército vermelho, não podiam compreender o fenômeno e, menos ainda, que os culpados não fossem castigados com a máxima energia. A questão se converteu num importante problema político, e o próprio Tito — junto com os principais diri­ gentes iugoslavos — teve que colocá-lo ao general Korneiev, chefe da missão militar soviética. A reação imediata do general foi quali­ ficar a gestão como ofensa ao exército vermelho. No curso da discussão, um dos dirigentes iugoslavos explicou que o assunto adquiria um significado político mais grave pelo fato de os membros da missão militar britânica não cometerem excessos semelhantes, com a população comentando o contraste. A indignação do general Korneiev chegou ao cúmulo: para ele, a constatação deste fato equivalia a comparar o exército vermelho aos exércitos dos países capitalistas, o que — afirmava — era uma injúria intolerável11. Nos anos seguintes, Stalin, por mais de uma vez, recordou este epi­ sódio em suas entrevistas com os chefes iugoslavos e em 1948 ele se converteu numa das “provas” do seu anti-sovietismo12. Casos se­ melhantes no comportamento de uma parte das tropas soviéticas — contrastando com a correta conduta da maioria — também se deram em outros países, sobretudo na Hungria (sem falar da Ale­ manha, onde a “lei do vencedor” foi aplicada em grande escala). Mas em nenhum desses países os dirigentes comunistas ousaram co­ locar o problema às autoridades soviéticas. 518

Hm maio de 1945 produziu-se outro incidente significativo, d( stu vez na esfera da política exterior. A Iugoslávia firmara, em abril, um pacto de ajuda mútua com a URSS. Pouco depois, as 11 opus anglo-americanas entravam no Trieste, onde já se encontra­ vam us do exército de libertação iugoslavo. Washington e Londres .ipicsentaram um ultimato a Tito, exigindo-lhe a evacuação do Trieslc. O chefe iugoslavo solicitou, em vão, o apoio soviético. Em fins d maio, em Liubliana, capital da Eslovênia, Tito pronunciou um discurso — referindo-se a afirmações da imprensa ocidental, segun­ do as quais a Iugoslávia reclamava o Trieste menos para si do que para a União Soviética, o marechal afirmou enfaticamente: "Apesar do que se diga ou escreva, não queremos depender de nin­ guém. [. . .] Não queremos ser moeda de troca, não queremos que se nos misture a não sei qual política de esferas de interesses”. Cumprindo ordens do Kremlin, o embaixador soviético em Belgrado imediatamente fez saber aos dirigentes iugoslavos que seu governo considerava esta declaração como “um ato de hostilidade à União Soviética” e que todo novo ato semelhante seria publicamente de­ nunciado por Moscou 13. A partir de 1945, o litígio Moscou-Belgrado estendeu-se também à área da economia. Na direção do Partido Comunista da Iugoslávia se enfrentaram duas tendências. A minoritária, represen­ tada pelos ministros das Finanças e da Indústria (Juyovitch e Hebrang, este igualmente presidente da Comissão do Plano), que expres­ sava o ponto de vista soviético, e a majoritária, encabeçada por Tito, Kardelj, etc. A primeira preconizava um desenvolvimento econô­ mico lento, considerando a falta de créditos, de operários qualifi­ cados e de técnicos, bem como “os superiores interesses da URSS” . A segunda defendia a industrialização a ritmos forçados, à base da mobilização entusiástica dos trabalhadores e da obtenção de créditos e ajuda técnica soviéticos 14. Mas, ao mesmo tempo, os dirigentes iugoslavos se opunham a certas formas de “ ajuda econômica pro­ postas por Moscou, particularmente as “sociedades mistas”. Sobre este último ponto, aparentemente Stalin cedeu, reconhecendo, numa entrevista com os dirigentes iugoslavos, que “as sociedades mistas eram uma forma de colaboração com países dependentes e não com os independentes e amigos”. No entanto, a tensão persistiu em relação aos outros aspectos (condições dos créditos soviéticos, preços fixados para o comércio entre os dois países, etc.) que os dirigentes 519

iugoslavos consideravam lesivos para o desenvolvimento econômico nacionalls. Outro problema que teve um peso ponderável na crise soviético-iugoslava foi o da Federação balcânica e danubiana. Em con­ traste com as atitudes nacionalistas aludidas no capítulo anterior (cfr. p. 488), os dirigentes iugoslavos e búlgaros, Tito e Dimitrov, começaram, em finais de 1944, a projetar a constituição de uma Federação balcânica. Mas surgiram divergências sobre a estrutura da Federação e, ademais, os anglo-americanos explicitaram a sua oposição ao projeto. Stalin, que, inicialmente, dera sinal verde para a idéia — embora, na realidade, como ulteriormente se colocaria de manifesto, estivesse longe de simpatizar com ela —, aproveitou a oportunidade para pedir aos iugoslavos e aos búlgaros para adiar as negociações. E estas só foram retomadas em 1947. A conferência de Bled, realizada entre os dirigentes das duas repúblicas em finais de julho, levou a uma série de acordos — entre eles, o projeto de união aduaneira — que equivaliam à preparação prática da Fe­ deração ,ó. Apesar disto, subsistiram divergências sobre um ponto essencial: se a Federação deveria compor-se de oito repúblicas em pé de igualdade (as sete que já constituíam o Estado iugoslavo, mais a república búlgara) ou assentar-se em dois Estados (búlgaro e iugoslavo) — a primeira posição era defendida pelos iugoslavos e a segunda (que implicava colocar as repúblicas componentes da Federação iugoslava numa posição de inferioridade em relação à república búlgara) pelos búlgaros. Em janeiro de 1948, Dimitrov faz uma declaração sensacional, expondo um projeto muito mais ambicioso: o de uma Federação ou Confederação balcânica e danu­ biana que englobaria todos os países de democracia popular e a Grécia (em dezembro de 1947 constituíra-se, nas montanhas do Norte da Grécia, o governo revolucionário de Markos e a inclusão da Grécia no projeto de Dimitrov fundava-se, naturalmente, na pers­ pectiva da vitória da insurreição). Dimitrov esclarecia que a ques­ tão “não fora discutida ainda nas nossas conferências”: “Quando estiver amadurecida, o que ocorrerá inevitavelmente, nossos países, os países de democracia popular, a Romênia, a Bulgária, a Iugos­ lávia, a Albânia, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Hungria e a Grécia — é o que digo: a Grécia! — vão resolvê-la. Decidirão tanto sobre a forma que o projeto tomará — federação ou confe­ deração — como sobre o momento da sua realização. O que posso afirmar é que nossos povos já começaram a preparar soluções para 520

, ./e. problemas” ,7. A declaração foi inserida no Pravda moscovita, ,|u< . dias depois (29 de janeiro), publica uma nota oficiosa manifesi.nido a rotunda oposição da direção soviética: “O Pravda — dizia ,1 nota — não podia deixar de divulgar a declaração do camarada Dlmitrov, publicada na imprensa de outros países, mas isto não lenifica, absolutamente, que os diretores deste jornal concordem 'ini o camarada Dimitrov sobre a questão de uma federação ou união aduaneira entre os países mencionados. Ao contrário, os direlorcs do Pravda consideram que estes países não têm necessidade de nenhuma espécie, mais ou menos duvidosa e fabricada, de federação, confederação ou união aduaneira”. Ao mesmo tempo em que cen­ surava publicamente a personalidade mais prestigiada — depois da sua — do movimento comunista mundial, Stalin convocou ime­ diatamente os dirigentes búlgaros e iugoslavos. A reunião tem lugar a 10 de fevereiro. Dimitrov e Kardelj tentam defender as suas opiniões. Stalin não admite discussões — ordena. Reprova grossei­ ramente a Dimitrov: “Você fala inoportunamente sobre tudo. Quer assombrar o mundo como se ainda fosse o secretário da Interna­ cional”. Em face do projeto de federação balcânica e danubiana, exige que se realize rapidamente a federação iugoslava-búlgara, à base do primitivo plano búlgaro. Exige que, uma vez esta efetivada, se proceda à anexação da Albânia. No dia seguinte, Molotov convoca Kardelj e lhe apresenta para assinatura um documento pelo qual a Iugoslávia se obriga a consultar o governo soviético para qualquer iniciativa de política externa 1S. Imediatamente depois desta reunião começa, por via interna, a ofensiva contra os iugoslavos, cujo pri­ meiro sinal exterior foi o revelado por Le Figaro: a repentina desa­ parição dos retratos de Tito em Bucareste. É desnecessário que nos alonguemos nas considerações sobre os motivos que determinavam a contundente oposição de Stalin ao projeto de Dimitrov e Tito. A idéia de uma associação independente das democracias populares estava em radical contradição com todos os planos e concepções stalinianos e, aqui, o problema interessante é saber como ela pôde ser concebida — e, sobretudo, exposta publi­ camente — por Dimitrov. Até hoje não estão disponíveis dados que permitam esclarecer a questão, mas, em todo o caso, a posição do velho chefe comunista, unida à de Tito e à de Gomulka — que, ao que parece, também era favorável à idéia da associação federativa das democracias populares 19 — , é um signo eloqüente de que, nos meios dirigentes dos países do Leste, ganhava peso uma tendência 521

autonômica em face do grande protetor. A idéia da federação ou confederação ligava-se, sem dúvidas, à de seguir vias originais no desenvolvimento rumo ao socialismo, distintas da soviética — idéia que fora formulada no período precedente e cujo principal teórico (na medida escassa em que se pode falar de elaboração teórica) era Dimitrov. Na reunião soviético-búlgaro-iugoslava de Moscou, o problema da federação balcânica e danubiana apareceu vinculado à questão grega. Os iugoslavos e os albaneses, na medida das suas possibili­ dades, apoiavam decidamente a luta armada dos comunistas gregos. Pouco antes da reunião de Moscou, o governo albanês solicitara ao iugoslavo o envio de duas divisões para a fronteira greco-albanesa. Belgrado respondeu favoravelmente, mas Molotov comunicou aos iugoslavos que o governo soviético se opunha resolutamente, amea­ çando fazer pública a sua discordância se Tirana e Belgrado não anulassem as providências previstas. Na reunião de 10 de fevereiro, Stalin afirmou enfaticamente que a luta armada na Grécia não tinha nenhum futuro e que os iugoslavos deveriam suspender a ajuda aos comunistas gregos. Evidentemente, dados os meios militares que o imperialismo americano estava empregando na Grécia, as forças re­ volucionárias não podiam vencer sem uma assistência militar sovié­ tica adequada, mas Stalin não queria nenhum compromisso neste terreno (sobre isto, o informe de Zdhanov na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas é suficientemente significativo). Em troca, a inclusão da Grécia no projeto de federação balcânica equivalia a proclamar publicamente que o movimento comunista estava disposto a intensificar a ajuda aos combatentes gregos. Era um desafio a Washington incompatível com a estratégia staliniana. Em todo o período que estamos considerando — da libertação da Iugoslávia à ruptura de 1948 — , um outro conflito de máxima importância esteve latente entre Moscou e Belgrado. Permaneceu mais subterrâneo e secreto que todos os demais, como correspondia à sua natureza; mas nele se jogava decisivamente a questão que, realmente, estava sobre a mesa: se a Iugoslávia seria um país inde­ pendente ou uma colônia “socialista”. Referimo-nos à guerra oculta que, desde 1945, se travou entre os serviços secretos soviéticos e iugoslavos. Os primeiros montando a sua rede, recrutando seus agentes em todos os meios e, muito particularmente, nas esferas dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia e do Estado, no exér522

dio o na polida, nos organismos econômicos e no corpo diplomáIin i. Os segundos se esforçando para impedir este recrutamento, procurando descobrir e manter sob vigilância a rede soviética. A li istòria seria velha, não fora pelo fato de desenrolar-se pela pri­ meira vez entre dois Estados que se diziam socialistas, entre dois partidos que se diziam comunistas. Para vencer os escrúpulos dos i oinunistas iugoslavos abordados —premidos pela fidelidade a seu povo e a seu partido, a que se ligavam não só pela ideologia e pelo linimento nacional, mas ainda por quatro anos de sangue e sacri­ fícios na guerra de libertação, e pela fidelidade à União Soviélion. expressão suprema, para todo comunista, da causa revolucio­ nária —, os agentes soviéticos recorriam a argumentos deste gênero: "O inimigo pode se encontrar inclusive entre os dirigentes mais responsáveis (e recordavam os casos de Trótski, Bukharin, etc.); nunca teremos uma segurança total e, neste caso, é preferível ter o apoio de uma organização superior e mais experiente, como a União Soviética”. Os homens de Beria costumavam se referir favoravel­ mente a Tito, mas davam a entender que no círculo próximo ao marechal havia “elementos suspeitos” a que convinha “vigiar” 20. O mesmo ocorria nas outras democracias populares, com a diferença de que, nelas, não existiu resistência dos respectivos partidos comu­ nistas. A resistência dos dirigentes iugoslavos à instalação desse me­ canismo ultra-secreto, encarregado — como dissemos atrás — de assegurar a unidade monolítica da área de projeção soviética em torno da ideologia e da política de Moscou, foi, indubitavelmente, uma das causas principais da ruptura entre o Kremlin e o Partido Comunista da Iugoslávia. Do exposto se deduz com evidência que o problema de como submeter os iugoslavos esteve permanentemente colocado para Stalin nos primeiros anos do pós-guerra. De acordo com a situação política, ele tentou resolvê-lo com métodos diversos, combinando as censuras e exigências imperativas com os compromissos e as concessões. Em 1946, Stalin procurou explorar a vaidade — real ou suposta — do comunista-marechal, elogiando, privadamente, os seus méritos, ehquanto denegria Dimitrov, Thorez, Togliatti e a Pasionaria21. Já vimos a utilização feita por Zdhanov do prestígio de partido revo­ lucionário conquistado pelo partido iugoslavo para corrigir o opor­ tunismo dos franceses e italianos e colocá-los numa nova linha antiamericana. No momento da criação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, o Partido Comunista da Iugoslávia parecia 523

ser o mais alinhado com a viragem política decretada por Stalin. Mas justamente esta viragem levou o conflito subterrâneo à sua fase aberta e à ruptura. A estratégia antiamericana de Stalin se pro­ punha bater a ofensiva de Washington naquelas zonas e questões consideradas como vitais para os interesses soviéticos, mas incluía a perspectiva de um arranjo geral que reconhecesse a primazia dos interesses americanos nas outras zonas e problemas. E uma destas zonas era precisamente o Sul dos Balcãs. Stalin não punha em questão o statu quo estabelecido na península, que implicava a do­ minação americana na Grécia e o repúdio das reivindicações iugos­ lavas sobre o Trieste e a Caríntia eslovena, bem como das aspira­ ções macedônicas à reunificação nacional. Em troca, a política exter­ na iugoslava estava centrada na luta contra este statu quo e en­ cerrava o risco de um conflito maior com Washington, no qual a União Soviética se veria envolvida. Para a nova estratégia staliniana, o “aventureirismo” iugoslavo passava a ser um perigo mais grave que o oportunismo governamental e parlamentar dos comunistas franceses e italianos. De qualquer maneira, este problema não parece ter sido a causa essencial da ruptura. A julgar pelas informações existentes, provavelmente os dirigentes iugoslavos teriam se alinhado às necessidades da política externa staliniana. O ponto de ruptura se situou, sem dúvidas, no problema da área de projeção soviética. A atitude independentista iugoslava era incompatível com o plano integracionista de Stalin e se convertia num perigo para o conjunto do plano — e não só para a sua realização no marco iugoslavo. E depois da reunião do Centro de Informação dos Partidos Comu­ nistas os dirigentes iugoslavos não cederam um milímetro nesta atitude22. A bomba do projeto de federação balcânica e danubiana, lançada por Dimitrov, revelou até que ponto o risco do contágio existia para as outras democracias populares23. As coisas chegaram suficientemente longe para esgotar a paciência de Stalin e pro­ vocar a explosão da sua desconfiança doentia. Era urgente matar o vírus em seu foco, antes que ele se propagasse excessiva­ mente. É claro que, na determinação de Stalin, influiu também a crença na sua infalibilidade, em sua onipotência. Como Kruschev revelaria no “relatório secreto” ao XX Congresso do PCUS, Stalin acreditava que lhe bastava um movimento do dedo mínimo para destruir Tito. Acreditava que os comunistas iugoslavos, diante do dilema de escolher entre a União Soviética e a Iugoslávia, não vaci­ lariam. E é provável que os seus serviços secretos, informando ao 524

chefe segundo os seus próprios desejos, tenham contribuído em boa medida para fortalecer estas convicções. O primeiro movimento do dedo mínimo staliniano consistiu em comunicar aos iugoslavos, nos últimos dias de fevereiro, que não deviam enviar a Moscou a delegação cuja viagem estava prevista para abril e que renovaria o acordo comercial existente entre os dois países. Na prática, isto significava a ruptura das relações co­ merciais e deixava a Iugoslávia numa situação extremamente difícil, porque todo o seu relacionamento econômico estava orientado para a URSS e as democracias populares. A URSS absorvia 50% das exportações iugoslavas e abastecia a república com matérias-primas vitais, como o petróleo. A l.° de março reuniu-se o Comitê Central do partido iugoslavo. Tito e Kardelj (que acabava de regressar da entrevista com Stalin, em Moscou) colocam claramente a situação criada. O Comitê Central decide resistir em todos os terrenos à pressão soviética. Segundo se soube posteriormente, alguns membros do Comitê Central e do governo figuravam entre os agentes recru­ tados pelos serviços secretos soviéticos e informaram imediatamente sobre as decisões adotadas. A partir deste instante, os movimentos do dedo mínimo se tornaram mais ameaçadores. A 18 de março, a embaixada soviética em Belgrado comunica a Tito que Moscou decidiu retirar os conselheiros e instrutores militares enviados para ajudar na modernização do exército iugoslavo e, no dia seguinte, comunica a retirada dos especialistas civis (engenheiros, técnicos, economistas, etc.). Moscou justifica a primeira medida com o argu­ mento de que os conselheiros e instrutores são tratados inamistosamente e a segunda porque não se permitia aos especialistas civis obter de qualquer cidadão iugoslavo as “informações econômicas” que desejassem, uma vez que lhes fora ordenado que se dirigissem, para tanto, à direção do Partido Comunista da Iugoslávia ou aos mi­ nistérios correspondentes24. Imediatamente, Tito escreve a Molotov expressando o assombro da direção iugoslava diante das justificações de Moscou. “Nossas relações com os conselheiros soviéticos — diz a carta — não são boas: são fraternais”, e, quanto às “informações econômicas”, explica-se na carta que a decisão adotada o foi “por­ que os funcionários de nossos ministérios se habituaram a transmitir informações a qualquer pessoa, com o que se divulgaram segredos de Estado que poderíam cair (e às vezes caíram) nas mãos de nossos inimigos comuns”. E a carta precisa: “Contrariamente ao que pre­ tende o seu telegrama, não existe nenhuma disposição oficial a 525

propósito do direito de nossos funcionários transmitirem informações de caráter econômico aos serviços soviéticos sem autorização do nosso governo ou do Comitê Central”. A carta termina assim: “Está claro, para nós, que as razões invocadas não são as verdadeiras. Gostaríamos que o seu governo dissesse francamente o que não vai bem e impede que as relações entre nossos dois países continuem tão cordiais como antes. Advertimo-los contra informações que pos­ sam obter de fontes não oficiais — elas não são forçosamente impar­ ciais, seguras ou bem intencionadas”. Com esta carta se inicia a escalada epistolar que desembocará na reunião do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas (segunda quinzena de junho) e a publicação (28 de junho) da resolução então adotada, condenando a heresia iugoslava. Stalin responde a 27 de março. Começa qualificando de “embus­ tes” — e, portanto, “absolutamente insatisfatórias” — as explica­ ções de Tito. Insiste no “direito” de os especialistas soviéticos obte­ rem “informações” de quem lhes apeteça. E arrola novas acusações contra os iugoslavos. Em primeiro lugar, aquela que parece particular­ mente intolerável ao chefe do Estado soviético — Estado no qual, como é de notório conhecimento, qualquer comunista estrangeiro sempre pôde circular livremente, sem sofrer a menor vigilância e obtendo as informações que mais lhe interessassem. . . — : “Os re­ presentantes soviéticos são submetidos ao controle e à vigilância dos organismos de segurança iugoslavos. Não recebem tratamento deste tipo nem mesmo em todos os países burgueses”. Outra acusação é esta: “Nos meios dirigentes do partido iugoslavo circulam declara­ ções anti-soviéticas, como, por exemplo: o PC (bolchevique) está em degenerescência; na URSS reina o chovinismo de grande potên­ cia; a URSS quer avassalar economicamente a Iugoslávia; o Centro de Informação dos Partidos Comunistas é um instrumento do PC(b) para subjugar os demais partidos comunistas”. “Estas declarações anti-soviéticas — aduz Stalin — geralmente são dissimuladas sob cores esquerdistas, tais como ‘o socialismo, na URSS, deixou de ser revolucionário’ ”. “Declarações” tão distantes da realidade deixam Stalin indignado, especialmente porque feitas sotto voce, às escon­ didas, quando não há nenhum inconveniente para que as críticas sejam francas e públicas. . . Stalin nunca questionou as críticas dos outros partidos. .. “Nós — diz em sua carta — reconhecemos in­ condicionalmente ao Partido Comunista da Iugoslávia, como a todos os partidos comunistas, o direito de criticar o PC(b), assim como 526

‘■sir icm, igualmente, o direito de criticar qualquer outro partido comunista. Mas o marxismo exige que a crítica seja franca e honesta, mio dissimulada e caluniosa, privando o criticado da possibilidade dn resposta”. Stalin nunca privou ninguém do direito de resposta. . . Mas os seus críticos iugoslavos o colocam nesta triste situação. “Daí que semelhante crítica seja caluniosa, uma tentativa de desacre­ ditar o PC(b) e destruir o sistema soviético”. Mas o “ sistema soviélico” sabe defender-se. “Não é inútil recordar — continua dizendo Stalin — que, quando Trótski decidiu declarar guerra ao PC(b), começou igualmente por acusá-lo de degeneração, de estreiteza na­ cionalista, de chovinismo. É claro que dissimulava tais acusações sob frases esquerdistas acerca da revolução mundial. Sabe-se que Trótski era um renegado e que, mais tarde, passou-se abertamente para o campo dos inimigos jurados do (PC(b) e da União Soviética. Pensamos que a trajetória política de Trótski é bastante instrutiva”. Depois de tratar de outros problemas, a carta terminava com o mesmo estribilho: “Consideramos que a trajetória política de Trótski comporta uma lição suficiente”. Tendo convocado, em termos tão estimulantes, os dirigentes iugoslavos a exercerem o seu direito de crítica ao PC(b), Stalin passa a exercer o direito de crítica do PC(b) ao partido iugoslavo em relação à vida interna deste e à sua política. Stalin manifesta profunda preocupação porque no partido iugoslavo não existe de­ mocracia interna, porque a maioria do Comitê Central não foi eleita, e sim “cooptada”, porque não se pratica a crítica e a autocrítica e, sobretudo, porque os quadros do partido se encontram sob a vigi­ lância de Rankovitch, ministro do Interior. No partido bolchevique jamais ocorreu algo parecido. . . e, por isto, de acordo com Stalin, “é compreensível que não possamos considerar esta organização de partido comunista como marxista-leninista, como bolchevique”. No que se refere à política do partido iugoslavo, são dois os aspectos que, fundamentalmente, preocupam Stalin. Primeiro: o partido não luta com suficiente energia contra os kulaks, incorrendo em bukharinismo. Segundo: em lugar de exercer seu papel dirigente abertamente, o faz através da Frente Popular (na Iugoslávia, a Frente Popular, diferentemente das frentes populares de outros países, não era uma coalizão de partidos, mas um movimento de massas com um pro­ grama revolucionário, forjado no curso da guerra de libertação). Nesta carta, Stalin concentra o ataque — citando-os nominal­ mente e qualificando-os de “marxistas duvidosos” — contra Djilas, 527

Vukmanovitch, Kidritch e Rankovitch, que chefiavam, repectivamente, os ministérios de Imprensa e Propaganda, Exército, Economia e Interior — vale dizer, os ministérios nos quais a NKVD tinha o maior interesse em se infiltrar. Se Tito liquidasse esses “mar­ xistas duvidosos”, que “falavam mal da União Soviética”, as coisas poderiam ser arranjadas. Os indigitados ofereceram a Tito a sua demissão, mas o chefe iugoslavo tinha a suficiente experiência, des­ de os tempos da Internacional, para saber aonde seria levado se começasse a fazer concessões deste gênero. A 12 de abril, o Comitê Central do partido iugoslavo se reuniu para examinar a carta de Stalin. Com a exceção de dois membros — que, soube-se, eram agentes da NKVD —, o Comitê Central repudiou liminarmente as acusações e pretensões de Stalin e aprovou uma réplica firme, na qual, entre outras coisas, dizia-se: “Todo o amor que cada um de nós professa pela pátria do socialismo, pela Rússia soviética, não pode nos impedir, de maneira nenhuma, de amar, na mesma medi­ da, nosso próprio país, que também marcha pela via do socialismo e por cuja república federativa popular deram a vida centenas de milhares de seus melhores filhos”. Em relação ao problema dos es­ pecialistas soviéticos, militares e civis, a carta recordava que, em 1946, o governo iugoslavo informara Moscou das dificuldades para lhes pagar os salários excessivamente altos — comparados aos vigentes no país —, fixados pelo governo soviético. Um especia­ lista soviético com a patente de coronel ou tenente-coronel, por exemplo, recebe emolumentos — lembra a carta — quatro vezes su­ periores aos de um general iugoslavo no posto de chefe de um corpo de exército e três vezes superiores aos de um ministro do governo federal. Neste ponto, a carta afirma: “Não vemos a questão apenas como um problema financeiro, mas como um erro político, porque nosso povo não pode compreendê-la”. O aspecto em que o Comitê Central iugoslavo se mostra mais contundente é o que se refere às atividades da NKVD: "Consideramos inadmissível que os serviços de informação soviéticos recrutem nossos cidadãos para atividades em nosso próprio país. Esta ação nos parece contrária ao nosso in­ teresse nacional. E ela se desenvolve apesar dos protestos dos nos­ sos serviços de segurança, que insistiram sobre o seu caráter into­ lerável. [. . .] Temos provas de que os serviços de informação so­ viéticos espalham boatos sobre nossos chefes, desacreditam-nos, apresentando-os como incompetentes e suspeitos. [ . . . ] Não se pode invocar o pretexto de que se trata de uma luta contra um país ca528

I11nIistas estrangeiros e contra nossos inimigos de classe internc as organizações soviéticas precisam de informações ou I, 1111,la ncsle terreno, basta que se dirijam a nós, como sempre II • nu a, naquilo que nos concerne” 25. A reunião do Comitê Central iugoslavo de 12 de abril de 1948 i i i |,limeira derrota histórica de Stalin. Pela primeira vez, ele se l , diante do fato de a maioria esmagadora do Comitê Central de .......i,i. principais partidos comunistas desafiar as suas recriminae ordens. Pela primeira vez, não só a direção de um partido ....... mista, mas uma revolução e um Estado revolucionário dirigidos pui i uinunistas resistiam a seu diktat e ousavam confrontar-se com „ icmível NKVD. Com efeito, unindo a ação às palavras, os servi,,us de ltankovitch começaram a deter os funcionários do partido e ,t, I .lado que se sabia serem agentes dos serviços soviéticos. Ao iui hino tempo, internamente, a direção do partido mantinha infor„i,ido» du situação os militantes mais responsáveis. A história de liup.ki fora mais instrutiva para os veteranos comunistas iugoslavi, do que o imaginava Stalin. Mas a batalha estava apenas come­ çando. Stalin aciona o mecanismo do Centro de Informação dos Parildos Comunistas — que fora criado muito especialmente para este lim In via aos dirigentes dos partidos-membros a cópia da sua carta d, 27 de março ao partido iugoslavo e, sem anexar as cartas deste, ,M('i que tomem posição imediatamente. Eles não precisam conhe,i i as razões iugoslavas. Basta-lhes saber o que pensa Stalin. Os do­ cumentos em que fixem sua posição — a recomendação vem de Moscou — não devem ser remetidos diretamente aos iugoslavos, mus a Stalin — o PC (b) se encarregará de fazê-lo chegar ao partido iugoslavo. Não são conhecidos os textos das respostas. Segundo as referências dos iugoslavos, elas estavam confeccionadas de acordo com o molde de Moscou: apoiavam incondicionalmente as posições de Stalin, competiam quanto às qualificações injuriosas e exigiam 529

o mea culpa da direção iugoslava. A resposta de Rakosi, particular­ mente, indignou os iugoslavos, que ainda não tinham se esquecido dos atropelos das tropas fascistas húngaras durante a guerra. Por outro lado, o mesmo Rakosi queixara-se várias vezes, confidencial­ mente, aos dirigentes comunistas iugoslavos, do comportamento do exército russo na Hungria, acusando-o de saquear o país e manifes­ tar tendências anti-semitas. A resposta búlgara não era diferente no essencial embora, segundo a versão dos iugoslavos, Dimitrov os tenha aconselhado a não ceder 2é. Sob o peso da sua formação ideo­ lógica, e talvez também por considerações táticas, o velho leão de Leipzig retrocedeu mansamente todas as vezes que seu conflito com Stalin o colocou à beira do Rubicão. A nova carta de Stalin (resposta à iugoslava de 13 de abril), datada de 4 de maio, marca um novo passo na escalada. Afirma que o embaixador americano em Belgrado se comporta como o dono do país” e que “os ministérios e os órgãos do partido estavam cheios de amigos e primos do general Neditch” (o Quisling iugosla­ vo). Mas esta carta, sobretudo, fere duramente os iugoslavos por­ que procura reduzir o papel dos comunistas e do exército revolu­ cionário iugoslavos na libertação do país e na vitória da revolução, atribuindo os méritos decisivos aos exércitos soviéticos. Referindose a maio de 1944, depois do ataque alemão contra o quartel-gene­ ral de Tito, a carta de Stalin, de fato, diz: “O movimento de liber­ tação nacional na Iugoslávia sofreu uma crise aguda, que só foi su­ perada depois que o exército soviético derrotou as tropas alemãs de ocupação, libertou Belgrado e criou, assim, as condições indispensá­ veis para a vitória do partido comunista”. Com a sua reconhe­ cida perícia na manipulação da história, Stalin a deformava mais uma vez — contradizendo a versão que, quatro anos antes, os pró­ prios soviéticos haviam dado dos acontecimentos iugoslavos no verão de 1944 27 — com o fito de denegrir o Partido Comunista da Iugos­ lávia e de dirigir contra ele os outros partidos do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas. Realmente, o parágrafo citado ter­ minava afirmando: “Os méritos dos partidos comunistas da Polônia, da Tchecoslováquia, da Hungria, da Romênia, da Bulgária e da Al­ bânia não são menores que os do Partido Comunista da Iugoslávia”. Quanto aos partidos comunistas da França e da Itália, a sua única “desgraça” foi que “o exército soviético não pôde ajudá-los como ajudou ao Partido Comunista da Iugoslávia”. No entanto __ pros­ segue Stalin —, “os chefes destes partidos são modestos e não alar530

ileium os seus êxitos, ao passo que os chefes iugoslavos enchem os mi vidos do mundo com as suas fanfarronadas . Depois de resumir „„ suus acusações anteriores e aduzir outras mais (como aquela de que o vice-ministro de Relações Exteriores era um agente inglês, Imito como o embaixador iugoslavo em Londres e outros funcioná­ rios), Stalin escreve: “Os dirigentes iugoslavos devem levar em conta que, mantendo tais posições, privam-se do direito de pedir à União Soviética ajuda material ou qualquer outra, porque a União Soviéticu só pode colaborar com os países amigos”. Nesta carta, Stalin rechaça a proposta feita pelos iugoslavos, c contida na sua última missiva, para que uma delegação do PC (b) losse à Iugoslávia para examinar in loco a situação e comprovar que ela não correspondia ao que se apregoava em Moscou. Ao invés, Stalin propõe que o assunto seja levado ao Centro de Informação dos Partidos Comunistas. O Comitê Central iugoslavo se reúne a 9 de maio e recusa este procedimento nos seguintes termos: “Não fu­ gimos à crítica por questões de princípio, mas nos sentimos em tal situação de inferioridade que nos é impossível aceitar, no momento, que o assunto seja debatido no Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Sem que tenhamos sido consultados, nove partidos re­ ceberam a sua primeira carta e já tomaram posições resolutivas . A reunião do Comitê Central examinou os casos de dois dirigentes do partido e membros do governo que foram descobertos como agentes de Stalin (Juyovitch e Hebrang), decidindo abrir processo contra eles. De Moscou veio um telegrama ameaçador e a NKVD preparou um plano para resgatar Juyovitch e levá-lo para Moscou de avião — mas, quando tentou realizá-lo, era tarde: Juyovitch estava na ca­ deia. A 19 de maio, chegou a Belgrado um enviado do Kremlin, renovando o convite para uma reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. O Comitê Central voltou a debater a ques­ tão e ratificou a negativa. Segundo posteriores revelações dos iugos­ lavos, além das razões antes expostas, considerou-se a inexistência de garantias sobre o regresso, são e salvo, da delegação. O espectro de 1937 ainda estava vivo (naquele ano, numerosos comunistas iu­ goslavos foram executados em Moscou, e tampouco Ti to se esquecia do que então ocorrera com o Birô Político do Partido Comunista da Ucrânia, que adotara posições críticas em face da política nacio­ nalista grã-russa de Stalin; para devolvê-lo ao bom caminho, Stalin enviou Molotov a Kiev; não conseguindo demover o Birô Político, Molotov reuniu o pleno do Comitê Central ucraniano, mas este res­ 531

paldou o Birô Político; diante disto, Stalin convidou os membros do Birô Político para discutir o problema em Moscou; logo que chegaram ao Kremlin, foram presos pela NKVD e fuzilados pouco depois. De certo modo, Tito era um sobrevivente dos expurgos stalinianos dos últimos anos da década de trinta — o que, em boa medida, explica as suas clarividentes reações de 1948 2S) . Stalin recorreu a novas pressões para que o Partido Comunista da Iugoslávia comparecesse ao tribunal do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Em sua derradeira carta (22 de maio), acusa os iugoslavos de romper com a “frente socialista unida das democracias populares e com a União Soviética” e, pela primeira vez, fala de traição. Mas a direção iugoslava mantém-se firme. A 25 de maio, ela anuncia publicamente a decisão de convocar o con­ gresso do partido para que todos os militantes possam se pronun­ ciar com conhecimento de causa sobre o conflito. Iniciam-se as as­ sembléias gerais das organizações locais do partido, onde são lidas as cartas trocadas entre Tito e Stalin. Os delegados ao congresso são eleitos democraticamente, na razão de um por duzentos filiados. O correspondente da Tass é convidado para a assembléia da orga­ nização de Belgrado. Finalmente, dissipadas todas as esperanças de conseguir a participação dos iugoslavos, o Centro de Informação dos Partidos Comunistas se reúne sem eles e adota a resolução proposta pelos soviéticos, que agrupa e resume os elementos essenciais das cartas de Stalin29. De acordo com informações iugoslavas, a dele­ gação soviética — integrada por Zdhanov, Malenkov e Suslov __ encontrou alguma resistência de outras delegações, que consideravam o texto apresentado excessivamente áspero. Para liquidar qualquer dúvida, Zdhanov declarou: “Sabemos, positivamente, que Tito ê um espião imperialista 30. No momento, esta acusação conclusiva não foi inscrita na resolução do Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas havia que preparar o terreno no movimento comunista e fornecer as “provas”. A campanha de terrorismo ideológico de­ sencadeada à base da resolução do Centro de Informação dos Par­ tidos Comunistas serviria exatamente para preparar o terreno. E o processo de Rajk, um ano mais tarde, para oferecer as “provas”, de maneira análoga como os processos de Moscou, de 1937-1938, forneceram as “provas” de que Trótski era um espião da burguesia internacional desde a mais tenra infância. À cabeça da resolução figura o verdadeiro motivo da condena­ ção: a resistência dos chefes iugoslavos à dominação soviética. O de532

Ilio, c claro, apresenta-se do modo que melhor pode provocar a inillgiiiiçâo de todo bom comunista: “Difamação contra os especialisi„ militares soviéticos e descrédito do exército vermelho” , perseguino dos especialistas civis soviéticos, compelidos a um regime , 111 , ial em virtude do qual estiveram submetidos à vigilância dos m^nos de segurança do Estado iugoslavo e seguidos por seus agenIcs'', "propaganda caluniosa sobre a ‘degeneração’ do Partido Co­ munista (bolchevique) da URSS, sobre a ‘degeneração’ da URSS, . n extraída do arsenal do trotskismo contra-revolucionário”. O resto da resolução está, em sua maior parte, dedicado à “crítica” lios supostos erros políticos do partido iugoslavo (a atitude “ anti-soviética”, compreende-se, é mais que um erro: é um crime) e tem como íimilidade principal demonstrar que o “anti-sovietismo” acompanha-se inexoravelmente de graves desvios políticos e teóricos do marxismoleninismo. Na reunião constitutiva do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, os dirigentes iugoslavos — como todos os demais integrantes do novo organismo — haviam informado detalha­ damente sobre todos os aspectos da sua política e nenhum dos pre­ sentes, inclusive os soviéticos, lhes fizeram quaisquer reparos pelo contrário: o partido iugoslavo foi considerado como o exemplo de partido conseqüentemente revolucionário e, sob este título, de­ sempenhou, como vimos, o papel de fiscal do oportunismo francoitaliano. Em setembro de 1947, portanto, o Centro de Informação dos Partidos Comunistas considerava a política do Partido Comu­ nista da Iugoslávia perfeitamente marxista-leninista; em junho de 1948, decidiu que esta mesma política nada tinha de marxista-leni­ nista — qualificou-a de nacionalista, bukharinista, menchevique, trotskista, anti-soviética. O Partido Comunista da Iugoslávia fora o único, entre os com­ ponentes do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, a fun­ dir a guerra antifascista com a revolução anticapitalista. Agora, viase acusado de abandonar a “teoria marxista das classes e da luta de classes” pelos mesmos que haviam seguido uma linha de colabo­ ração de classes em escala internacional e nacional. A resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas incluía na teoria marxista o dogma staliniano segundo o qual a luta de classes se agu­ diza” necessariamente na fase de transição do capitalismo ao socia­ lismo, e condenava os iugoslavos por não o levarem em conta. De acordo com o documento, o partido iugoslavo não lutava conseqüen­ temente contra os kulaks. A acusação já figurara na carta de Stalin

de 27 de março, e os dirigentes iugoslavos, ao que parece impres­ sionados por esta crítica do depositário da ortodoxia, cometeram o erro de anunciar imediatamente a rápida liquidação não só dos kulaks, mas ainda do pequeno comércio e da pequena indústria pri­ vada. Em vista disto, a resolução do Centro de Informação dos Par­ tidos Comunistas acusava-os também de irresponsabilidade e aventureirismo. Em segundo lugar, o Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas denunciava a direção iugoslava como revisionista em rela­ ção à doutrina marxista-leninista sobre a função dirigente do partido. O partido iugoslavo fora o único, na Europa — juntamente com o grego , que não concebera a unidade da Resistência como uma coalizão pelo alto com os partidos burgueses, mas como um movi­ mento de massas, revolucionário, com uma perspectiva socialista. A Frente Popular, expressão política organizada deste movimento, adquiriu influência e prestígio e os dirigentes comunistas conside­ raram oportuno que, numa série de casos, fosse a Frente Popular, e não o PC, que apresentasse ao país iniciativas e medidas que, na realidade, emergiram no interior da direção do PC. Na prática, os comunistas tinham pienamente nas mãos a direção do Estado, não só graças à decisiva influência conquistada no curso do processo re­ volucionário, mas porque controlavam todos os postos-chave e, em primeiro lugar, o exército e a polícia. Não havia nenhum risco de eles perderem a direção da revolução, mas Stalin aproveitou o fato que acabamos de indicar para acusar Tito e seus colaboradores de tendências liquidacionistas em relação ao partido comunista”. Em terceiro lugar, o Centro de Informação dos Partidos Comu­ nistas acusava os dirigentes iugoslavos de criar, no seio do seu partido, um “regime burocrático” em conseqüência do qual nele não existia nem democracia interna, nem elegibilidade dos organismos dirigentes, nem crítica e autocrítica”. O que era o regime comum a todos os partidos comunistas — a eleição dos órgãos dirigentes, onde se realizava, consistia em “eleger” os candidatos previamente selecionados pela direção existente —, o Centro de Informação dos Partidos Comunistas atribuía-o exclusivamente ao partido iugoslavo e carregando nas tintas, qualificando-o de “regime vergonhoso, pu­ ramente turco [sic] e terrorista”. Ou seja, atribuía-se ao partido iu­ goslavo o regime que há muito Stalin instaurara no partido soviético como o XX Congresso do PCUS, anos depois, revelaria. Numa das suas cartas, Stalin acusava os dirigentes iugoslavos de, termina534

do a guerra, ainda não terem convocado o congresso do partido; i sta acusação não aparece no documento do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, provavelmente porque, nesse ínterim, os iugoslavos haviam decidido pela convocação imediata, mas também, talvez, porque alguém fizesse notar a Stalin, discretamente, que o partido soviético não reunia o seu congresso há dez anos e não se tinha a menor idéia de quando isto viria a acontecer (o XIX Con­ gresso do PCUS só se celebrou em 1952, catorze anos depois do XVIII). O partido iugoslavo não era, naturalmente, um modelo de de­ mocracia, mas, naquela ocasião, os seus dirigentes compreenderam - e foi isto o que os salvou, a eles e à revolução — que não po­ deriam resistir à investida staliniana se não recorressem à base do partido e às massas trabalhadoras, coisa que estavam em condições de fazer graças à profundidade e à autenticidade da revolução iugos­ lava. Como já sabemos, à diferença do que se passou noutros países do Leste, onde o fator decisivo da libertação foi o exército soviético, na Iugoslávia este fator foi constituído pela luta armada do povo, organizado e dirigido pelo partido comunista. Os dirigentes comu­ nistas máximos das outras democracias populares chegaram a seus países nos furgões do exército soviético — e aqueles que permane­ ceram lutando em seu país, como Gomulka, Rajk e alguns outros, foram logo marginalizados, quando da libertação, pelos que vieram de Moscou, ou então desempenharam papéis subalternos. Tito e seus camaradas tinham dividido com os combatentes os riscos e os sacri­ fícios. Por isto, entre eles e as massas existiam confiança e vínculos recíprocos. A guerra e a revolução remodelaram dirigentes e dirigi­ dos, unindo-os num mesmo espírito nacional-revolucionário. É ver­ dade que a massa dos comunistas iugoslavos padecia da mesma alie­ nação ideológica que afetava os comunistas de outros países: a sua consciência estava obscurecida pelo fetichismo das mercadorias ideo­ lógicas avalizadas pela legendária etiqueta do Outubro soviético. Ela era o principal trunfo do jogo de Stalin. E a direção do partido iugoslavo compreendeu, desde o primeiro instante, que, para conse­ guir a desalienação do conjunto do partido, o unico remedio efi­ ciente era a verdade — colocar à sua disposição todos os elementos do problema: as cartas de Stalin, a resolução do Centro de Informa­ ção dos Partidos Comunistas, as respostas iugoslavas, as atividades dos serviços secretos, o corte unilateral das relações comerciais, etc. Que cada um comparasse palavras e ações. 535

A resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas terminava com um apelo aos comunistas e aos trabalhadores iugos­ lavos para derrubarem a direção titoísta. Stalin e seus associados es­ tavam convencidos de que a primeira medida de Tito seria ocultar do país o documento, impedindo a sua difusão. No texto se dizia que os dirigentes iugoslavos “trilharam o caminho da mentira flagran­ te em face de seu partido e seu povo, ocultando do partido a crítica da errônea política do seu Comitê Central”. Quando isto era escrito, as cartas de Stalin já eram conhecidas das assembléias das organi­ zações locais do partido iugoslavo. Logo que apareceu a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, Borba, órgão central do partido iugoslavo, lançou uma edição de meio milhão de exempla­ res reproduzindo o texto integral do documento, acompanhado da resposta iugoslava. Esta edição saiu às ruas no dia 30 de junho. A 5 de julho, Duelos escrevia em L ’Humanité: “ O fato de os dirigentes iugoslavos não publicarem a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas demonstra a insegurança dos seus argumentos e o medo de esclarecer o povo”. Inutilmente, o embaixador iugos­ lavo em Paris rogou ao diretor de L ’Humanité a retificação desta versão. Nenhum dos partidos do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, que acabavam de acusar o partido iugoslavo de falta de “democracia interna”, publicou a resposta do Comitê Central iugoslavo àquela resolução. E nem a deram a conhecer a seus mili­ tantes por via interna. Muitos comunistas iugoslavos acreditaram que Stalin fora en­ ganado. Para aqueles que professavam a religião staliniana não era fácil, mesmo dispondo de todos os elementos de avaliação conheci­ dos naquele momento, situar-se repentinamente no campo do mar­ xismo laico — sobretudo levando em conta que o Papa do Kremlin encontrava-se então no apogeu da sua glória. Numa reunião de comu­ nistas de Belgrado decidiu-se enviar-lhe /o seguinte telegrama: “Acre­ ditamos sinceramente em você. Cremos que fará o possível para si­ lenciar esta injusta acusação contra o nosso partido e o nosso Co­ mitê Central” 31. Inicialmente, os chefes do partido iugoslavo não se confrontaram com esta corrente. Compreendiam que a liquida­ ção do mito Stalin requeria a intervenção da experiência prática de cada militante. E, por outro lado, não perderam a esperança de que, diaríte da firme e quase unânime reação do partido e do povo iugos­ lavos, os chefes soviéticos recuassem e se pudesse chegar a um acor­ do. O V Congresso do partido iugoslavo, celebrado a 21 de julho, 536

ilfi miou sob esta ilusão. Ao mesmo tempo em que reafirmou enerj’ii (imcnte as posições do partido e rechaçou as acusações do Centro ilr Informação dos Partidos Comunistas, Tito declarou: “Esperamos ,|iic os camaradas dirigentes do Partido Comunista bolchevique da UKSS nos darão a oportunidade de provar aqui, na prática, tudo o i|uc há de injusto na resolução [do Centro de Informação dos Partidos Comunistas]” 32. E a resolução aprovada no congresso, simuliimeamente ao repúdio categórico à condenação do Centro de In­ formação dos Partidos Comunistas, autorizava o reingresso do parlido iugoslavo no organismo logo que se resolvesse o conflito com o partido soviético. Depois de eleger a nova direção por escrutínio secreto — era a primeira vez que tal coisa acontecia num partido comunista — , o congresso encerrou a sua sessão dando vivas a Stalin e à União Soviética, alternados com vivas a Tito. A resposta imediata de Stalin foi organizar um golpe de Estado contra Tito. A NKVD contava com três generais iugoslavos, entre eles o chefe do Estado-Maior, muito prestigiados pelo seu papel na guerra de libertação. Fracassado o intento de envolver outros oficiais na conspiração, os três tentaram fugir para a União Soviética, mas não o conseguiram — o chefe do Estado-Maior foi morto por um guarda-fronteiras iugoslavo e os outros dois foram detidos em segui­ da. O episódio revelou que, apesar da adesão esmagadoramente ma­ joritária do partido e do povo à política de Tito, Stalin contava com auxiliares entre os comunistas iugoslavos: uns porque comprometidos com os serviços secretos soviéticos, outros porque a sua formação ideológica staliniana era mais forte que tudo. Diante deste perigo, a direção do partido iugoslavo recorreu a métodos análogos aos de Stalin — os serviços secretos, a polícia, todos os instrumentos coativos do Estado. Já no congresso, Tito realçara a necessidade de ser “implacável contra todas as tentativas de abalar” a unidade do par­ tido e dos povos iugoslavos e nas resoluções aprovadas se lançava o apelo para intensificar a vigilância e depurar o partido. Mas, ao mesmo tempo, a direção iugoslava insistiu no método de permitir ao povo que comparasse as palavras com os atos. As emissões sovié­ ticas, que promoveram uma formidável campanha de descrédito dos dirigentes iugoslavos, não foram interceptadas. As cartas de Stalin foram massivamente difundidas. Os “argumentos” do adversário eram polemizados abertamente na imprensa. Pouco a pouco, o mito Stalin foi se desvanecendo no espírito dos comunistas iugoslavos, substituído pela evocação dos czares que, noutros tempos, enverniza­ 537

ram os seus projetos expansionistas balcânicos com a retórica de libertar do jugo turco os escravos do Sul. As torpes alusões da propa­ ganda soviética à eterna amizade da Rússia com a Sérvia contribuí­ ram para esclarecer a continuidade histórica da política moscovita. E no mesmo sentido influíam os reiterados incidentes nas fronteiras da Iugoslávia com a Hungria, a Romênia e a Bulgária, bem como os inquietantes movimentos das tropas russas estacionadas nestes paí­ ses. Numa palavra, os comunistas e o povo> iugoslavos adquiriram a convicção de que a avalanche de acusações ideológicas ocultava, na realidade, a ameaça à independência nacional tão duramente con­ quistada. Ainda hoje se desconhecem as razões concretas pelas quais Stalin não recorreu claramente ao procedimento expeditivo sintomatizado por estes sinais alarmantes. É de se supor que a tensão in­ ternacional vigente naquele momento pesou ponderavelmente. Não se podia descartar que uma intervenção militar soviética na Iugos­ lávia fosse seguida de outra, americana, prolongando o que já ocor­ ria na Grécia, com todos os riscos de generalização do conflito que esta eventualidade implicava. Ademais, o exército popular iugoslavo e a sua experiência na luta guerrilheira não eram dados desprezíveis. Indiscutivelmente, a prudência de Stalin facilitou o êxito da resis­ tência iugoslava. Também é de se supor que, apesar do fracasso inicial da intimidação ideológica e do aborto do golpe de Estado, Stalin acreditasse no colapso, em curto prazo, do Estado herege, cuja situação não podia ser mais angustiante. De fato, a ofensiva staliniana coincidia com uma série de provocações das potências ocidentais. Durante os três primeiros meses de 1948, os aviões ame­ ricanos violaram 21 vezes o espaço aéreo iugoslavo. E, no curso da campanha eleitoral italiana, as forças reacionárias, vinculadas aos americanos, acusaram a Iugoslávia de instalar rampas de lançamento de bombas V-l e V-2 nas proximidades da fronteira italiana, assim como de concentrar tropas para atacar o Trieste. Os Estados Unidos, a Inglaterra e a França aproveitaram o momento para revisar de­ terminadas cláusulas do tratado de paz com a Itália e lhe ceder o Trieste. Mas a situação era sobretudo dramática no aspecto econô­ mico. A ruptura de relações comerciais com a União Soviética e a sua rápida deterioração com as democracias populares, etc., coloca­ vam a Iugoslávia em face da alternativa de ou buscar um compromis­ so com as potências ocidentais ou perecer. Em seu informe ao V 538

Congresso, consagrado aos problemas da política externa, Kardelj proclamara a decisão do partido de manter-se na linha de frente úni­ ca com a União Soviética e as democracias populares, ao mesmo tempo em que dirigia a ambas a pergunta: “Nosso país será aban­ donado à pressão imperialista?’’. Na Conferência Internacional so­ bre o Danúbio, realizada pouco depois da divulgação da resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, os representantes iugoslavos, diante dos diplomatas ocidentais, alinharam-se aos sovié­ ticos. Porém, muito rapidamente as coisas se aclararam: ou a Iugos­ lávia se submetia ou Stalin a abandonava, de fato, à pressão imperia­ lista. Simultaneamente, a feroz campanha antiiugoslava orquestrada pelo Kremlin anunciava que Tito se preparava para pactuar com o imperialismo. Desta maneira, ou sucumbia ou proporcionava a “prova” de que Stalin tinha razão — de que Tito era um agente do imperialismo. Por volta dos primeiros meses de 1949, as democracias popula­ res, seguindo o exemplo soviético, praticamente haviam suspendido todo o comércio com a Iugoslávia. À revolução iugoslava só restou um caminho, aquele trilhado pela Revolução de Outubro quando se encontrou isolada e cercada pelo mundo capitalista: comerciar com este, buscar empréstimos e ajuda técnica. Para explicar que este rumo político não significava renunciar ao socialismo, Tito empregou ar­ gumentos semelhantes aos que os bolcheviques haviam utilizado an­ tes. “Quando vendemos nosso cobre para comprar máquinas — de­ clarou em seu discurso de Pula, a 10 de julho de 1949 —, vendemos exclusivamente nosso cobre, não vendemos a nossa consciência . “Continuaremos a construir o socialismo com as máquinas que rece­ bermos do Ocidente”. Os Estados capitalistas, como é lógico, apressaram-se a responder favoravelmente às solicitações iugoslavas. Eles não tinham necessidade de que este pequeno país atrasado renun­ ciasse à sua pretensão de construir o socialismo; para o imperialis­ mo americano e seus vassalos, o importante era que a Iugoslávia pudesse afirmar a sua resistência ao imperialismo russo. Em plena “guerra fria”, Stalin lhes oferecia, de bandeja, um aliado “obje­ tivo”. Alguns comentaristas e políticos ocidentais expressaram a sua inquietude de que o “titoísmo” revalorizasse os ideais comunistas, revelando a possibilidade de um comunismo “anti-staliniano”; mas os elementos mais inteligentes do capitalismo compreenderam que qualquer tentativa de restauração do velho regime tanto colidiria 539

com a resistência encarniçada dos comunistas e das massas iugosla­ vas quanto faria o jogo de Stalin. Mostrava-o claramente a campa­ nha antititoísta. Cada acordo comercial da Iugoslávia com países oci­ dentais, cada empréstimo obtido era acolhido por Moscou e pelos par­ tidos vinculados ao Centro de Informação dos Partidos Comunistas como uma prova adicional da venda de Tito ao capitalismo. A resolu­ ção do Centro de Informação dos Partidos Comunistas não anunciara que a política “anti-soviética” de Tito acarretaria inevitavelmente “a perda da independência da Iugoslávia e a sua transformação em colônia dos países imperialistas”? Seis anos depois, regressando de sua viagem de penitência a Belgrado, Krushev declararia: “Visita­ mos numerosas regiões do país, conversamos com os trabalhadores e comprovamos que, apesar das dificuldades que a Iugoslávia expe­ rimentou em conseqüência da deterioração [sic] das suas relações co­ nosco, o país não abdicou de sua soberania e conservou inteiramente a sua independência nacional em face do campo imperialista” 33. No verão e no outono de 1949, a “deterioração” das relações soviético-iugoslavas chegou a um ponto crítico, delineando-se nitida­ mente a ameaça de uma intervenção militar de Moscou. O pretexto para o caso foi o problema dos russos brancos residentes na Iugos­ lávia e recrutados pelos serviços secretos soviéticos (depois da Revo­ lução de Outubro, instalaram-se na Iugoslávia vários milhares de russos brancos; quando do triunfo do novo regime, grande parte deles declarou-se imediatamente a favor da URSS e o governo de Moscou concedeu a cidadania soviética a cerca de 6.000 deles, entre os quais os serviços de Beria recrutaram inúmeros agentes). Em 1949, a polícia de Rankovitch deteve alguns russos brancos e Mos­ cou tomou a sua defesa, enviando a Belgrado notas ameaçadoras. A última, datada de 18 de agosto, invocava o direito dos “cidadãos soviéticos” residentes na Iugoslávia a expressar livremente as suas “opiniões democráticas” e qualificava o regime de fascista por não o permitir. “Em nenhum país — diz a nota —, à exceção daqueles que têm regimes fascistas, considera-se crime a livre expressão das opiniões democráticas. Na Iugoslávia atual, esta expressão serve de base para prisões ilegais e para castigos cruéis às pessoas que criti­ cam o regime fascista existente no país”. “Na Europa só dois go­ vernos, o grego e o espanhol, de Tsaldaris e de Franco, consideram a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas como um documento criminoso. Estes dois governos são fascistas. Deduzse que o terceiro governo fascista é o iugoslavo, já que ele considera 540

iiquela resolução da mesma forma, utilizando a sua difusão e até o sou conhecimento como base suficiente para encarcerar milhares de pessoas” (como vimos, o Partido Comunista da Iugoslávia reprodu­ zira e difundira a resolução mencionada, logo que apareceu, em meio milhão de exemplares e, desde então, o texto, bem como as curtas de Stalin, estava a venda em qualquer livraria de Belgrado; mas este fato inexistia para o governo soviético). A nota negava que .1 resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas preguva a derrubada da direção titoísta; apenas pedia que os co­ munistas iugoslavos se reunissem em congresso e mudassem esta direção, coisa inteiramente legítima, porque — como diz o documen­ to — “os congressos dos partidos marxistas não se reúnem para glo­ rificar os chefes, mas para analisar, do ponto de vista crítico, a ati­ vidade da direção existente e, se necessário, renová-la ou substituíla por outra direção. Em todos os partidos marxistas onde reina a democracia interna este método de mudança da direção é natural e completamente normal”. Só havia que seguir o exemplo do Partido Comunista da URSS. Quanto aos maus-tratos sofridos pelos “cida­ dãos soviéticos” detidos, a nota cita três casos (supõe-se que entre os mais extremos). No primeiro, o preso foi “golpeado por vários dias”, “obrigado a permanecer de pé, imóvel, durante várias horas”, “proibido de dormir e privado de alimento e água por dois dias no segundo, o preso “não recebeu nenhum alimento durante seis dias” e, “no curso dos interrogatórios, teve as pernas golpeadas com um porrete”; e, no terceiro caso, o preso, “ durante vinte e dois dias, foi submetido a contínuos interrogatórios noturnos”, “exigiu-se-lhe que definisse a sua posição diante da resolução do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas”, “foi molestado várias vezes no curso dos interrogatórios e levado seis vezes a um calabouço onde só podia permanecer de pé”. Métodos tão inqualificáveis, desconhe­ cidos na União Soviética, só podiam suscitar a indignação da cons­ ciência humanista de Stalin: “Pode-se qualificar como democráticopopular um regime que pratica esses horrores e trata tão brutal­ mente as pessoas? — clama a nota do governo da URSS. Não seria mais exato dizer que um regime como este, onde se toleram maus-tratos tão extremos, é fascista como o da Gestapo?” A nota terminava dizendo que, se o governo iugoslavo não atendesse às re­ clamações soviéticas, o governo da URSS “ver-se-á obrigado a recor­ rer a outros meios mais eficazes para defender os direitos e os inte­ resses dos cidadãos soviéticos na Iugoslávia e para chamar à ordem 541

os agentes da violência fascista desencadeada” 34. Quais seriam esses “outros meios mais eficazes”? Naquele momento, o bloqueio eco­ nômico da Iugoslávia pela URSS e pelas democracias populares era completo. A campanha difamatória parecia chegar ao limite. Apa­ rentemente, só restava a intervenção militar. A imprensa ocidental se encheu de notícias alarmistas sobre movimentos de tropas sovié­ ticas nas democracia^ populares fronteiriças à Iugoslávia e de adver­ tências oficiosas sobre a decisão dos Estados Unidos e de países eu­ ropeus de intervirem em caso necessário. Mais uma vez, Tito pro­ clamou a vontade iugoslava de enfrentar qualquer eventualidade. E, em lugar da intervenção militar soviética, sobreveio o processo de Rajk e a segunda resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas sobre a Iugoslávia. Antes, contudo, se pôs em circula­ ção uma nova “prova” da “traição” de Tito. Como vimos, em inícios de 1948 Stalin exigiu dos comunistas iugoslavos que cessassem a ajuda à luta armada dos comunistas gre­ gos. O Partido Comunista da Iugoslávia não aceitou esta exigência, mas a sua condenação pelo Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas colocou-o numa situação extremamente precária — como facilmente se compreende depois do que expusemos — para conti­ nuar prestando sua assistência aos combatentes gregos na medida em que estes a necessitavam. A partir da resolução do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas, a Iugoslávia teve que manter as suas forças militares praticamente em estado de alerta, prontas para agir caso Stalin se decidisse pela intervenção militar. Por outro lado, a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas teve efeitos catastróficos no Partido Comunista grego e no exército guer­ rilheiro. Muitos dos seus quadros — inclusive o general Markos, chefe do governo revolucionário instalado nas montanhas do Norte — não aceitaram a condenação do partido iugoslavo e foram víti­ mas de um grande expurgo, organizado por Zachariades, secretáriogeral do partido, e por outros elementos partidários do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, que conseguiram se impor na direção do Partido Comunista grego. Em finais de 1948, Zacharia­ des acumulou a secretaria geral do partido com o comando supremo das forças armadas. Como depois o reconheceu a imprensa grega, no outono de 1948 a situação das tropas governamentais, apesar dos técnicos e dos armamentos americanos, era alarmante. O exército revolucionário tivera, durante o ano, uma série de êxitos espetacula­ res. A partir de finais de 1948, depois da eliminação de Markos e 542

iIm depuração

antiiugoslava, a marcha da guerra civil sofreu uma miidimçu radical em favor dos efetivos governamentais — que a im|Moiir.n grega atribuiu ao talento estratégico do general Papagos. Ainiln liojc não está claro se este novo rumo da guerra civil, que levaria illii lmncnte à derrota final das forças revolucionárias em agosto de I' >I*), foi determinado fundamentalmente pelo incremento da intervi 111,110 militar americana (no primeiro semestre de 1949, segundo liilormuções da imprensa americana, foram enviados para a Grécia 112 aviões, 7.000 bombas de aviação, 10.000 caminhões militares, VK40 canhões e morteiros, 280 milhões de cartuchos e outros mair rí ais bélicos35), enquanto o auxílio soviético primava pela ausên■ia, ou se o fator decisivo foi a decomposição interna das forças re­ volucionárias por força dos acontecimentos indicados ou se, ainda, /.achariades, aplicando diretivas concretas de Stalin, jogou conscien­ temente na liquidação da luta. Provavelmente, tudo isto — fora, talvr/., o “talento” de Papagos — se conjugou para conduzir ao trági­ co epílogo da revolução grega. O que, porém, sabe-se com absoluta segurança é que a direção do Partido Comunista grego, encabeçada por Zachariades, não lhe bastando a guerra com a monarquia grega e os americanos, lançou-se a uma guerra larvar e a uma propaganda aberta contra o Partido Comunista da Iugoslávia. É claro que obe­ decia a instruções do Centro de Informação dos Partidos Comunis­ tas, interessado em aproveitar o prestígio dos combatentes gregos no movimento comunista para reforçar a campanha difamatória contra os iugoslavos36. No verão de 1949, a derrota do exército popular es­ tava praticamente consumada e as tropas monárquicas chegavam às fronteiras da Iugoslávia e da Albânia. Em meados de julho, o go­ verno de Belgrado anunciou a sua intenção de fechar a fronteira, explicando a decisão pelas repetidas incursões das tropas gregas no território iugoslavo. Imediatamente, a rádio “Grécia Livre”, con­ trolada por Zachariades, acusou Tito de ajudar a ofensiva governa­ mental. A campanha antititoísta exultou: Tito se vendera aos americanos e aos monarco-fascistas gregos, apunhalara pelas costas o exército democrático! A 28 de agosto, a rádio Moscou difundiu um comunicado do ministério da Defesa albanês também anuncian­ do o fechamento da fronteira e esclarecendo que, “a fim de salva­ guardar a paz, todas as pessoas armadas procedentes da Grécia, se­ jam monarco-fascistas ou democratas, serão desarmadas”. Mas esta medida, como vinha de um governo controlado por Moscou, não era uma “punhalada pelas costas”; era apenas uma providência “a fim 543

de salvaguardar a paz”. Até a morte de Stalin, a versão vigente no movimento comunista pode ser resumida neste juízo de uma revista comunista francesa: “ O governo de Truman seria derrotado na Gré­ cia, como o foi na China, se a traição de Tito não tivesse permitido, in extremis, aos imperialistas anglo-americanos ganhar a partida no plano militar” 37. Depois da morte de Stalin, a “traição” de Tito de­ sapareceu como por encanto das explicações oficiais da derrota grega, cujas causas foram reduzidas a duas: a intervenção americana e os erros da direção encabeçada por Zachariades. As responsabilidades de Stalin e do Centro de Informação dos Partidos Comunistas ainda esperam por análise. Parece bem provável que o fechamento da fronteira não foi motivado apenas pela razão oficial oferecida por Belgrado. Havia dois outros objetivos: impedir a entrada no território iugoslavo de forças armadas obedientes ao Centro de Informação dos Partidos Comunistas (à semelhança da decisão albanesa, que tentava impedir a entrada, no seu território, de elementos armados pró-iugoslavos38) e praticar um ato que facilitasse as relações com Washington, no momento em que a ameaça de intervenção militar soviética parecia concretizar-se (como vimos atrás) de maneira alarmante. Neste, como em outros atos ulteriores da sua política externa (por exemplo, o pacto balcânico com a Grécia e a Turquia), se Tito não vendeu a sua consciência como comerciou com o cobre, a verdade é que teve que dotá-la de uma grande elasticidade. Mas Stalin lhe deixava outra alternativa? Sob certo aspecto, a situação da revolução iugos­ lava era mais dramática que a da Revolução de Outubro. Em face do cerco capitalista, a Revolução de Outubro contou, ao menos, com a assistência ativa do proletariado revolucionário internacional. Mas em face do cerco do imperialismo russo, camuflado sob a eti­ queta socialista, e do movimento comunista, ainda totalmente alie­ nado pelos mitos “soviéticos”, o único recurso defensivo da revolu­ ção iugoslava, no plano externo, foi aproveitar a “guerra fria” entre o imperialismo capitalista e o novo tipo de imperialismo que entrava em cena. O problema real era saber se a aliança tácita com os Esta­ dos Unidos e seus vassalos, assim como com a ala reformista do mo­ vimento operário, seria compatível com o desenvolvimento da revo­ lução socialista no plano interno. Explorar esta via tortuosa ou imo­ lar-se ante o colonialismo staliniano — este foi o dilema inexorávelr com que se defrontou a revolução iugoslava. 544

Os processos Di acordo com a propaganda do Centro de Informação dos i .ii lid o s Comunistas, desenvolvida a partir da resolução de 1948 e ..... i|iiccida com as novas “provas” que os acontecimentos iam forim nido, a heresia iugoslava seguira, até o verão de 1949, este itiiH un iu: numa primeira fase, Tito & Cia. passaram do marxismoI, niilismo ao nacionalismo; colocados na vertente nacionalista, des­ ìi..mim, numa segunda fase, para o anti-sovietismo, confrontando-se com a União Soviética e o partido bolchevique, o que assinalava o ,cti total abandono do internacionalismo (porque, como bem se sabe, ii ntitude frente à URSS é a pedra-de-toque do internacionalismo); i . lilialmente, transitaram para o campo imperialista, começando, inclusive, a se tornar fascistas. O pecado original, portanto, era o nacionalismo. Mas este esquema tinha o inconveniente de, de alguma maneira, credibilizar os dirigentes iugoslavos como patriotas, heróis da independência nacional. Sua função difamadora era eficaz para os comunistas “maduros”, mas podia ser contraproducente entre a população não comunista das democracias populares, cujos senti­ mentos nacionais se levantavam contra a dominação russa, e mesmo entre uma parcela da massa comunista recém-ingressada nos partidos desses países. O processo de Rajk teve como finalidade trazer a “prova documental indiscutível” de que Tito e seus colaboradores não só nunca foram marxistas, comunistas, mas também nem sequer patriotas: tinham sido — já desde a guerra — agentes a soldo dos serviços secretos hitlerianos ou anglo-americanos, aos quais venderam a soberania e a independência da Iugoslávia. O verdadeiro patrio­ tismo — “demonstrava-o” o processo de Rajk — , na Iugoslávia como nas outras democracias populares, estava indissoluvelmente ligado à fidelidade à URSS, garantia suprema da independência nacional des­ ses países (a “prova” oferecida pelo processo de Moscou, segundo a qual Trótski, Bukharin, etc., eram agentes da Alemanha e do Japão, tinha também por objeto — aspecto nem sempre destacado — desacreditá-los ante o patriotismo das massas soviéticas, polari­ zado naqueles anos contra o perigo de agressão alemã e japonesa). Laszlo Rajk era membro do Partido Comunista da Hungria desde começos dos anos trinta, quando ainda estava nos bancos universi­ tários. Esteve na Espanha, combatendo com as Brigadas Internacio­ nais. Depois da derrota da república espanhola, foi internado nos campos franceses. Dirigiu na clandestinidade o partido húngaro du­ 545

rante a Resistência. Foi ministro do Interior da democracia popular húngara da sua formação até pouco depois da divulgação da resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas contra Tito, quando assumiu o posto de ministro das Relações Exteriores. A 15 de junho de 1949, foi divulgado um comunicado do Comitê Central do partido húngaro (chamado então Partido dos Trabalha­ dores da Hungria) no qual se anunciava a expulsão de Rajk e de Szonyi — outro dirigente do partido — por serem “espiões das potências imperialistas e agentes trotskistas”. A 10 de setembro, o governo húngaro publicou a ata de acusação contra Rajk e outras personalidades do partido e do Estado. A 17 do mesmo mês, num grande tribunal de Budapeste, iniciou-se o processo contra eles. As sessões eram públicas e, como o espaço fosse limitado, distribuíram-se convites. Sessenta jornalistas estrangeiros puderam estar presentes__ o Pravda enviou o romancista Boris Polevoi. Representantes diplomá­ ticos também podiam assistir ao julgamento. O grande espetáculo, re­ produção exata dos processos de Moscou, desenvolveu-se impecavel­ mente. Todos os acusados confessaram os crimes — os que lhes eram atribuídos e outros mais. Rajk foi condenado à morte e enforcado juntamente com outros três co-réus. Aos militares, em deferência à farda, concedeu-se-lhes a graça de morrerem fuzilados. Quanto aos outros processados, coube-lhes longos anos de cárcere. Em 1956, depois do XX Congresso do PCUS, as autoridades húngaras reco­ nheceram que tudo fora uma farsa. Rajk foi “reabilitado”. Trezen­ tos mil trabalhadores, intelectuais e estudantes desfilaram pelas ruas de Budapeste rendendo-lhe homenagens nacionais e exigindo a li­ quidação do sistema político que tornava possível a fabricação de semelhantes farsas criminosas pelos mesmos que se diziam represen­ tantes do proletariado e do socialismo. Pouco depois entrariam os tanques soviéticos para, in extremis, salvar este sistema. O seu álibi foi o fato de as forças reacionárias húngaras e os verdadeiros agentes do imperialismo tentarem aproveitar, como era lógico, a sublevação operária e popular para tirar vantagem do fato. Porém, um dos principais motivos da intervenção armada soviética, à semelhança da intervenção realizada na Tchecoslováquia doze anos depois (quan­ do, à falta do álibi utilizado na Hungria, tiveram que inventá-lo), foi impedir que se lançasse toda a luz sobre os crimes políticos nas democracias populares. Daí por que aspectos essenciais destes crimes, da sua montagem, da participação dos principais organizadores, os dirigentes soviéticos e seus serviços secretos, permaneçam desconhe546

i idos até hoje, apesar das revelações de algumas das vítimas sobre­ viventes39. Mas a sua significação e os seus motivos estão suficientemente esclarecidos. No caso do processo de Rajk, o próprio pro­ motor os definiu com extrema clareza: “Este processo, falando com rigor, não é o processo de Laszlo Rajk e seus cúmplices: no b a n c o dos réus, estão Tito e seus acólitos. [ . . . ] Está claro que, condenando Laszlo Rajk e seu bando de conspiradores, o tribunal do povo húngaro condena igualmente, no sentido político e moral, os traidores da Iugoslávia, o bando criminoso de Tito, Rankovitch, Kardelj e Djilas. Precisamente nisto consiste a importância interna­ cional deste processo”. Como Fejto diz com justeza, na sua História das Democracias Populares, “o processo de Rajk não foi mais que um ersatz do pro­ cesso de Belgrado que não se pôde realizar; mais que acusado, Rajk cra uma testemunha, a principal testemunha da acusação contra Tito”40. Na sua “ confissão”, Rajk começava por se auto-retratar como um ser abjeto, vil, vendido desde 1931 — logo que entrou no par­ tido — à polícia de Horthy. Se foi para a Espanha (onde o feriram em três oportunidades), não o fez para combater o fascismo, mas para servir à Gestapo. Como agente da Gestapo, atuou nos campos de concentração franceses (onde foram internados os combatentes das Brigadas Internacionais) e atuou igualmente no período da Re­ sistência húngara, quando esteve à frente do partido na clandestini­ dade. Os outros acusados se retrataram da mesma maneira. E, uma vez fixada a sua condição de policiais e espiões com o que, ao que parece, o seu testemunho diante do tribunal staliniano se re­ vestia da máxima credibilidade e dignidade , os acusados passa­ ram a agir como acusadores dos dirigentes iugoslavos, explicando que em tal ou qual data, em tais ou quais circunstâncias, todos eles foram recrutados pela Gestapo, pela Segunda Seção francesa ou pela espionagem anglo-americana. A crer nestas explicações, as Bri­ gadas Internacionais eram um antro de espiões e policiais que, dos campos de concentração franceses, foram enviados aos países do Leste; ali, à frente dos respectivos partidos comunistas clandesti­ nos e das resistências, continuaram recrutando policiais e espiões entre os comunistas. E a guerra revolucionária iugoslava aparecia, particularmente, como organizada e dirigida por agentes da Gestapo, tanto como a resistência húngara. E todos eram agentes polivalentes — trabalhavam para a polícia anglo-americana e de outras potências. Derrotados os alemães, esta coorte de espiões, naturalmente, foi em547

pregada pelos serviços de Allan Dulles, chefe da espionagem ame­ ricana na Europa. Quanto às outras democracias populares, o pro­ cesso de Budapeste não contribuía com informações precisas — limitava-se a deixar implícito que, nelas, também existiam ramifica­ ções do “monstruoso compio imperialista”. Mas dava algumas pistas para descobri-las: membros das Brigadas Internacionais, comunis­ tas que se exilaram no Ocidente antes da guerra, militares que atua­ ram na resistência, etc. E, sobretudo — está claro — aqueles que tiveram contato com os dirigentes comunistas iugoslavos, que pas­ savam a ser espiões por antonomásia. E qual dirigente comunista das democracias populares não tivera, alguma vez, relação com os iugoslavos? O mesmo se aplicava aos líderes comunistas ocidentais. Se se aplicasse conseqüentemente a metodologia do processo de Rajk, chegar-se-ia à conclusão de que os organismos dirigentes dos partidos comunistas da França, da Itália, da Espanha, etc., estavam prova­ velmente infestados de policiais na mesma escala em que o estavam os dos partidos das democracias populares. E deixemos de lado as altas esferas do Partido Comunista da URSS que, no final das contas, eram as que mais contactavam com os espiões conhecidos ou poten­ ciais de todos os outros partidos, a começar pelo iugoslavo. A partir desta hipótese plausível e se remontando ao passado de uma série de personalidades comunistas ocidentais e orientais — tal como se fazia com Tito, Rajk, etc. — , facilmente se concluiria que a In­ ternacional Comunista fora criada, na realidade, pela espionagem alemã (ah! a suspeita viagem de Lênin no vagão blindado através da Alemanha do Kaiser!), enfim se esclarecendo o ponto que até hoje permanece obscuro na historiografia staliniana: por que a IC foi inicialmente dirigida por experientes agentes da Gestapo como Zinoviev, Trótski, Bukharin... E depois, na época da frente po­ pular, a IC teria passado ao serviço da espionagem anglo-francoamericana. . . A conclusões semelhantes poder-se-ia chegar, logica­ mente, no que toca ao Estado soviético. Afortunadamente, a meto­ dologia do processo de Rajk encobria outra, muito mais rigorosa e científica: as listas de espiões, ou de candidatos a tais, eram confec­ cionadas previamente nos escritórios de Beria, segundo as instruções do Infalível. Portanto, não havia nenhum risco de que a aplicação da lógica formal conduzisse a conclusões errôneas. Só depois que os espiões eram designados é que se recolhiam os dados ilustrativos da sua condição: contatos, reuniões, prisões (envolvimento evidente 548

com a polícia), relações com liberais, social-democratas, etc. (super­ abundantes na época das alianças antifascistas e provas suficientes de contatos com a burguesia), conhecimentos com as missões mili­ tares ou diplomáticas anglo-americanas (qual dirigente comunista de certa categoria não os tivera, direta ou indiretamente, na época da “grande aliança”?) — prova suprema da conexão com o impe­ rialismo e seus serviços secretos, etc. Uma vez que o Infalível, asses­ sorado pelos seus serviços, decidia que tal comunista era um espião, a acumulação dos dados comprobatórios, das “provas irrefutáveis” — como rezava a ata de acusação de Budapeste — era coisa simples. Não havia outra dificuldade que a sua seleção. E era aqui que, às vezes, por causa da rotina burocrática, imperante neste domínio como nos demais, os serviços falhavam. Por exemplo: entre os vo­ luntários das Brigadas Internacionais que, segundo a confissão de Rajk, foram enviados pela Gestapo dos campos de concentração franceses para a Iugoslávia, havia muitos que nunca estiveram em tais campos e um deles (Vukmanovitch) sequer fora à Espanha. Mas, afora estes pequeninos erros burocráticos, o método referido — a designação prévia dos espiões ou candidatos a espiões permitia colocar limites no tempo e no espaço do encadeamento lógico, dei­ xando localizada a epidemia na zona e no período convenientes, conforme os problemas políticos e ideológicos que cabia resolver. Naqueles anos, o Infalível decidiu que a epidemia de espiões no movimento comunista se localizava preferencialmente nos países da área de projeção soviética e, sobretudo, naquele que recusara a honra de fazer parte dela. Dois meses e meio depois da Hungria, chegou a vez da Bulgária. O promotor geral desta república divulgou, a 30 de novembro, a ata de acusação contra “o grupo de conspiradores e criminosos lide­ rado por Traicho Kostov”. Kostov era conhecido no movimento co­ munista como velho revolucionário, fundador — com Dimitrov do Partido Comunista da Bulgária, colaborador durante algum tempo dos órgãos dirigentes da Internacional Comunista, temperado por trinta anos de atividade clandestina, lutas de massas, insurreições ar­ madas e, finalmente, de trabalho dirigente na democracia popular. Mas, de acordo com a ata de acusação, Kostov era outra coisa. Em primeiro lugar, tinha — como Rajk e quase todos os convertidos em espiões — um passado trotskista. “Seus principais traços biográficos — dizia a ata — são a duplicidade de caráter, a traição e a cons­ piração criminosa contra os mais sagrados interesses da classe ope­ 549

rária e do povo búlgaro”41. Esclarecia-se que Kostov recomendara à IC a utilização de Tito em cargos de responsabilidade no partido iugoslavo (esta era a única verdade contida na ata de acusação e, naturalmente, um dos seus crimes mais graves). Kostov não era um agente policial tão precoce como Rajk: só se vendeu em 1942. Pouco depois, passou ao serviço de espionagem inglês, que lhe recomendou vincular-se a Tito. Kostov pôs-se de acordo com Tito para derrubar o poder popular búlgaro com o apoio militar iugoslavo (também Rajk confessara sua articulação com Tito para derrubar o poder popular húngaro, com a ajuda de forças militares iugoslavas, que interviriam disfarçadas de húngaros e em cooperação com unidades do ex-exército e a ex-polícia de Horthy, concentradas nas zonas austríacas contro­ ladas por ingleses e americanos). No plano conspirativo, incluía-se a prisão e o assassinato de Dimitrov. Tais eram — entre outros não menos graves — os “fatos” citados pelo promotor geral. A grande cerimônia inquisitorial de Sofia abriu-se ao público em 7 de novembro — sob a invocação da Revolução de Outubro — , na sala da Casa Central do Exército Popular. Ali estavam os jor­ nalistas estrangeiros, os representantes diplomáticos e as inevitáveis “delegações operárias”. Era a exata repetição do espetáculo encenado em Budapeste. Mas, de repente, para surpresa geral, ocorreu o im­ previsto: Kostov negou as confissões que fizera durante o curso do “inquérito”. Negou resolutamente tudo o que lhe imputavam. Desconcertado, o presidente do tribunal ordenou a imediata suspen­ são da sessão, para que o acusado pudesse reler os seus depoimentos. O presidente pretendia que fosse uma falha de memória. Mas, re­ tomada a audiência, Kostov manteve-se firme na sua posição. Os jornais búlgaros não deram notícias desta intolerável infração ao ritual. Num despacho de Sofia, a agência Tass a mencionava, ao qualificar como insolente o comportamento de Kostov42. O veterano revolucionário que, pelo visto e ao contrário dos acusados de Buda­ peste, encontrara forças para superar as torturas morais e físicas, não recuou da sua “insolência” durante o resto do processo. Quando chegou o momento da sua última declaração, ratificou energicamente a sua posição — mas, agor%, os diretores do espetáculo tinham se prevenido: logo que Kostov começou a falar, do público se ergueu uma onda de assobios e vaias; o sistema de tradução simultâneo em quatro idiomas, com fones de ouvido para os jornalistas estrangeiros, deixou imediatamente de funcionar. Apesar dos seus protestos de inocência, Kostov foi condenado à morte e executado. Isto deveria 550

colocar uma dúvida embaraçosa sobre a justiça democrático-popular; mus, poucos dias depois, as indagações se dissiparam: a imprensa divulgou o texto de uma carta escrita por Kostov antes de morrer, ietratando-se por seus protestos e reconhecendo-se inteiramente culpado. Quando, em 1956, Kostov foi reabilitado, revelou-se a falsi­ dade desta carta, bem como de todas as acusações e confissões apre­ sentadas no processo. A caça e o castigo dos hereges começaram nas democracias populares desde o momento mesmo em que Stalin iniciava a sua ofensiva contra a revolução iugoslava. Na Albânia, Dodje, secretário de organização do partido e ministro do Interior, muito vinculado uos iugoslavos, foi afastado dos seus cargos antes da publicação da resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Julgado e condenado sob o maior segredo, em novembro de 1948, juntamente com outros conhecidos dirigentes do partido, foi executado em junho de 1949. Na Romênia, Patrascanu, secretário-geral do partido até 1945 e desde então membro dos seus organismos supe­ riores e ministro da Justiça, foi preso, junto com outros comunistas destacados, no verão de 1948. Gomulka foi destituído da secretaria geral do partido polonês no verão de 1948, acusado, entre outros crimes, de nacionalismo, resistência à coletivização intensiva da agricultura, falta de vigilância, tolerância para com os intelectuais e, sobretudo, “incompreensão do papel dirigente do Partido Comunista (bolchevique) da URSS”43. Em janeiro de 1949, Gomulka, o general Spichalski e outros dirigentes foram expulsos do partido. Na Tchecoslováquia, a depuração de “titoístas” e outros “direitistas começou imediatamente depois do “golpe de Praga” — que coincidiu com a abertura da ofensiva de Stalin contra os iugoslavos — e se desen­ volveu durante todo o período seguinte, sob a direção de Slansky, secretário-geral do partido. Portanto, no ano transcorrido da reso­ lução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas contra Tito ao processo de Rajk, a depuração dos partidos comunistas e das insti­ tuições estatais das democracias populares já tomara proporções signi­ ficativas, porque os casos mencionados, relativos aos grupos dirigen­ tes, englobam apenas os que foram publicitados por envolver perso­ nalidades. Acerca dos milhares de quadros médios e militantes de base afastados dos seus cargos ou expulsos do partido não houve informação pública nem, provavelmente, interna. Souberam do as­ sunto, unicamente, os membros do partido diretamente relacionados com cada caso. Mas a grande depuração começou mesmo com o pro551

cesso de Rajk, que serviu para concretizar a plataforma política e ideológica em que a operação deveria basear-se em todas as demo­ cracias populares e, ao mesmo tempo, sobre a qual deveria intensi­ ficar-se a campanha contra aquela que, por decreto de Stalin, deixara de sê-lo. Os dois aspectos iam estreitamente ligados. Na segunda quinzena de novembro de 1949 realizou-se a terceira, e última, reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Três pontos figuravam na sua pauta: “a defesa da paz e a luta contra os promotores da guerra”; “a unidade da classe operária e as tarefas dos partidos comunistas e operários” e “o Par­ tido Comunista da Iugoslávia nas mãos de assassinos e espiões”. Aos dois primeiros pontos — cujos expositores foram Suslov e Togliatti — nos referiremos em outro capítulo. Quanto ao terceiro, o informante foi Georghiu-Dej, secretário-geral do partido romeno44. Seu informe começava dizendo que os acontecimentos ocorridos desde a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e, especialmente, desde o processo de Budapeste “confirmaram intei­ ramente a justeza da resolução e destacaram o valor excepcional, teórico e prático, adquirido pelo documento para o movimento revo­ lucionário mundial”, a sua “genial força de previsão” e a sua “pers­ picácia científica” — daí que tal resolução tenha assinalado “uma histórica viragem na orientação e na atividade de todo o movimento revolucionário mundial”. Graças a ela, os partidos comunistas tornaram-se “mais conscientes de que a adesão à pátria do socialismo, à União Soviética, é a pedra-de-toque e o critério do internacionalismo”. E agrega Georghiu-Dej: “ O camarada Stalin prestou uma imen­ sa ajuda ao movimento comunista internacional. Com perspicácia genial, advertiu-nos contra uma série de desvios ideológicos, contra a confusão, e nos auxiliou a combatê-los com êxito. Esta ajuda do camarada Stalin salvou numerosos partidos marxistas” . O valor teórico da resolução de junho de 1948, a sua qualidade científica, a viragem histórica na orientação e na atividade de todo o movimento revolucionário mundial ficavam fundamentadas, com­ provadas, com as confissões de um pretenso grupo de policiais e espiões. Baseando-se nelas — e exclusivamente nelas —, GeorghiuDej não hesita em fazer afirmações extremamente grotescas, como aquela segundo a qual, durante a guerra, os chefes comunistas iugos­ lavos eram simultaneamente agentes da Gestapo e da espionagem anglo-americana (afirmações acatadas cegamente por milhões de co­ munistas, o que, por si só, revela a que nível descera, neste período, 552

o "marxismo” oficial). O informante escreve em seu relatório: “Di­ ante da publicação da resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, os monstros fascistas de Belgrado começaram a se queixar, dizendo-se vítimas de uma injustiça. Mas abrigavam uma só idéia: ocultar, pelo maior tempo possível, o seu passado sombrio e as suas vinculações com o imperialismo anglo-americano. 0 processo de Budapeste caiu como um raio sobre o bando de Tito. Os fatos [sic] demonstraram que não se tratava de um tipo qualquer de erros, mas de uma política deliberadamente contra-revolucionária, anti-soviética e anticomunista, conduzida por um bando de espiões, de confidentes e de agentes provocadores profissionais, que há muito eram membros da polícia e dos serviços de espionagem burgueses. A maior parte dos atuais dirigentes iugoslavos foram enviados a seu país pela Gestapo, a partir de 1941, saindo dos campos de concen­ tração franceses. [. . . ] Churchill [durante a guerra] enviou à Iugos­ lávia seu próprio filho, Randolf, encarregado de uma missão espe­ cial junto a Tito. Mais tarde, o velho reacionário, inimigo jurado da URSS, teve um encontro pessoal com Tito. Desde então, Tito e seu bando gozaram de uma atenção e uma confiança especiais por parte dos imperialistas. Por outro lado, em suas reveladoras decla­ rações, o general iugoslavo Popivoda esclareceu devidamente a posi­ ção conciliadora de Tito, Rankovitch e outros em face dos invasores hitlerianos e da Gestapo, bem como a maneira infame como traíram os guerrilheiros iugoslavos nos momentos mais duros da guerra. [. . . ] Os fatos [síc] revelados no processo de Budapeste, na república po­ pular búlgara, na república popular romena e nos demais países de democracia popular demonstraram à saciedade que Tito, Rankovitch, Kardelj, Djilas, Pjade, Gochniak, Maslaritch, Bebler, Mrazovitch, Vukamovitch, Kotche, Popovitch, Kidritch, Nechkovitch, Zlatitch, Velebit e outros, como Rajk, Brankov, Kostov, Patrascanu e seus par­ tidários são agentes dos serviços de espionagem dos imperialistas an­ glo-americanos. Durante a segunda guerra mundial, estes desprezí­ veis espiões e traidores já ajudavam os imperialistas anglo-americanos a preparar as cabeças-de-ponte para a realização do seu plano de dominação mundial. Este bando de espiões e traidores foi introdu­ zido nas fileiras dos partidos comunistas e operários como um cavalo de Tróia. Sob as ordens dos seus amos, tinham como objetivo cri­ minoso apoderar-se da direção do partido e do Estado onde a classe operária tomara o poder, liquidar o movimento revolucionário e assegurar a restauração da dominação burguesa” (Stalin, que dividira 553

secretamente a Iugoslávia com Churchill, agora acusava Tito de acordos secretos com o “velho reacionário, inimigo jurado da URSS”. Ele não perdoava aos comunistas iugoslavos o terem desafiado as suas diretivas durante a guerra, o terem implementado uma política revolucionária em lugar de se submeter — como ele exigia — às forças burguesas). O informe deixava estabelecido que o regime iugoslavo se con­ vertera em regime fascista, quartel-general da espionagem americana no Sudeste da Europa, destacamento avançado da preparação de uma guerra contra a URSS e as democracias populares, etc. E terminava assim: “Levantemos bem alto, cada vez mais, a bandeira vitoriosa do internacionalismo proletário, cultivando o amor para com a União Soviética, primeiro país do socialismo, base do movimento revolu­ cionário mundial, principal baluarte da luta pela paz e pela liberdade dos povos; cultivando o amor para com o grande Partido Bolche­ vique, força dirigente do movimento revolucionário mundial; culti­ vando o amor para com o camarada Stalin, educador genial da hu­ manidade trabalhadora e guia dos povos na sua luta pela paz e pelo socialismo!” As tenebrosas e rocambolescas histórias urdidas pelos serviços do Kremlin e recitadas no processo de Budapeste — uma vez bem decoradas pelos declamadores graças ao antigo e pedagógico método da tortura — convertiam-se, assim, em material educativo, marxistaleninista, para “elevar o nível político e ideológico” dos comunistas e das massas trabalhadoras, porque, sem elevar este nível — dizia o informe de Georghiu-Dej —, “os partidos da classe operária não podem descobrir e combater em todas as partes o inimigo, qualquer que seja o disfarce sob o qual se oculta”. O genial educador já fornecera idêntico material há doze anos, valendo-se do mesmo mé­ todo dos processos, mas o novo material enriquecia de forma extra­ ordinária o marxismo. Os espiões trotskistas e bukharinistas da dé­ cada de trinta não conseguiram criar mais que alguns grupos fracionistas, rapidamente descobertos e aniquilados. A história ainda não tinha demonstrado toda a eficiência deste labor de sapa do imperialismo e dos seus serviços de espionagem. Agora, com os “fatos” iugoslavos e das democracias populares, tais serviços reve­ lavam diabolicamente todo o seu potencial. Tinham sido capazes, nada mais, nada menos, de organizar e dirigir eles mesmos a guerra antifascista e a revolução proletária num país inteiro, logo criando 554

imi Rstado de democracia popular, a fim de utilizá-lo, oportunaimnte, para derrubar os regimes de democracia popular — os au­ le nticos, os instalados pelo exército soviético — e assim preparar ui condições para uma guerra contra a União Soviética e a instaui m, iio da dominação mundial do imperialismo. A genialidade do Inimigo só tinha similitude com a genialidade do Guia dos Povos. A nova resolução adotada nesta reunião do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas, à base do informe de Georghiu-Dej, i olocava aos partidos comunistas duas tarefas, formuladas da seguin­ te maneira: l.a “ O Centro de Informação dos Partidos Comunistas considera que a luta contra a camarilha de Tito, camarilha de espiões e assassinos vendidos, é um dever internacional de todos os partidos comunistas e operários”; 2.a “ O Centro de Informação dos Partidos Comunistas considera que uma das tarefas principais dos partidos comunistas e operários é a de reforçar, por todos os meios, a vigilância revolucionária em suas fileiras, denunciar e extirpar os elementos nacionalistas burgueses e os agentes do imperialismo, qual­ quer que seja a bandeira com que se cubram” . Georghiu-Dej fazia uma série de recomendações práticas para levar a cabo com êxito esta “vigilância revolucionária”. A primeira consistia em “impor a ordem bolchevique em nossa própria casa, no partido”, para o que era preciso, “como meio principal, o controle dos membros do par­ tido”. Um por um deveria ser analisado. E, nesta análise, haveria que levar ém consideração que o inimigo “esforçar-se-á por valer-se de homens da classe de Rajk, por aproveitar as menores debilidades e as mais minúsculas falhas nas fileiras dos partidos e do aparelho estatal, os elementos descontentes, nacionalistas e de passado duvido­ so”. Era necessário “elevar a vigilância ideológica”, dando provas de “autêntica intransigência bolchevique” diante de todos os desvios. “Na ciência, na literatura, na pintura, na música e no cinema — sublinhava Georghiu-Dej — é preciso ser extremamente vigilantes e manter uma atitude intransigente em face de qualquer tendência estranha à classe operária e de qualquer propaganda cosmopolita” . Mas os bons comunistas só poderiam conduzir eficazmente esta vigi­ lância, em todos os níveis, sobre os maus comunistas, encobertos por uma ou outra “bandeira”, se eles mesmos se educassem política e ideologicamente; dizia o informe: “ O reforço da vigilância deve embasar-se num trabalho de educação cada vez mais intenso” — a quintessência deste trabalho educacional residia no cultivo dos três amores enunciados por Georghiu-Dej no final do informe. 555

Depois da reunião do Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas, à base das orientações e métodos nela preconizados, a de­ puração se intensificou febrilmente em todos os partidos comunistas das democracias populares, envolvendo centenas de dirigentes co­ nhecidos e uma enorme massa de quadros médios e militantes. Só fragmentariamente se conhece a história desta grande operação, mas os dados que transpiraram são reveladores. Em primeiro lugar, res­ salta o volume do expurgo45. O Partido Comunista da Tchecoslováquia, que, no momento do “golpe de Praga”, contava com 1.300.000 membros, nos meses seguintes cresceu vertiginosamente, superando a casa dos dois milhões no fim do ano; em 1954, seus efetivos não chegavam a 1.400.000. Em finais de 1948, o partido polonês tinha 1.400.000 membros; este número, em 1952, caiu para 1.100.000. Na Romênia, o contingente partidário caiu de 1.000.000, em 1948, para 700.000, em 1951. Na Hungria, o corpo de 1.200.000 militantes, em junho de 1948, baixou, em fevereiro de 1951, para 850.000. Em dezembro de 1948, o partido búlgaro contava com 500.000 membros; estes, em 1951, não chegavam a 300.000. Estes números não refletem exatamente a magnitude da depuração, porque os recrutamentos pros­ seguiram no período. A cifra total dos “depurados”, conforme as estimativas de Fejto, no conjunto destes partidos, gira em torno dos dois milhões e meio de comunistas, dos quais foram presos entre 125.000/250.000; ignora-se o total daqueles que foram liquidados fisicamente. Entre as vítimas, figuram numerosos dirigentes e altos funcionários: três secretários-gerais (Kostov, Gomulka, Slansky), um presidente da república (Szakasits, na Hungria), vários vice-presidentes (da Albânia, Bulgária, Polônia, Romênia), dezenas de ministros e membros da alta direção partidária, uma centena de generais etc.46 Na Hungria, durante os dois anos que se seguiram ao processo de Rajk, foram encarcerados Janos Kadar (o atual secretário-geral do partido), sucessor daquele no ministério do Interior; Gyula Kallai, igualmente sucessor de Rajk no ministério de Relações Exteriores e Losonczy, secretário de Estado na presidência do governo posterior à libertação — entre muitos outros quadros. Sandor Zold, que subs­ tituiu Kadar no ministério do Interior, quando este foi preso, sui­ cidou-se em 1951 para fugir ao encarceramento. Os velhos dirigentes comunistas romenos Vasili Luca (ministro da Fazenda) e Teohari Gheorghescu (ministro do Interior) — durante todo este período, o posto mais perigoso era o de ministro do Interior: era quase garan­ tida a sucessiva condição de justiçador e justiçado — foram presos 556

cm 1952; Luca, condenado à morte, foi posteriormente indultado, limibém em 1952 foi expurgada da direção do partido e do governo sem ser presa — Ana Pauker, ministra de Relações Exteriores c personalidade muito conhecida no movimento comunista desde os leinpos da Internacional. Na Polônia, Gomulka — que, como disse­ mos, fora destituído da secretaria geral do partido em 1948 — foi afastado do governo em janeiro de 1949. Em novembro do mesmo ano, ele foi expulso do partido, juntamente com Kliszko, outro vete­ rano líder comunista, o general Spichalski e alguns mais. Em agosto de 1951, veio à luz o processo de um alentado grupo de generais e oficiais, acusados de espionagem e alta traição; de acordo com as "confissões” dos réus, Gomulka e Spichalski tinham por objetivo instaurar na Polônia um regime de tipo titoísta e entregar à Ale­ manha os territórios ocidentais. Mas Gomulka não foi processado — embora permanecesse preso de finais de 1950 ao verão de 1956. O Partido Comunista Tchecoslovaco sofreu uma primeira onda depuradora durante 1948, organizada por Slansky, secretário-geral. Uma segunda onda iniciou-se depois da reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas — em julho de 1950, Slansky anunciou: “Esta será bem mais severa que a de 1948”. Realmente, a vaga começou por chegar ao núcleo dirigente do partido eslovaco (entre outros, Clementis, ministro de Relações Exteriores do governo cen­ tral, Husak, o atual depurador47 e então presidente do Conselho de Comissários eslovacos, Novomeski, comissário de Educação) e acabou por varrer o próprio Slansky e outros destacados dirigentes do partido tchecoslovaco, acusados de alta traição, sabotagem, espiona­ gem e cumplicidade com o sionismo. O processo deu-se em dezem­ bro de 1952: Slansky e outros dez acusados, todos veteranos comu­ nistas, foram enforcados48. No seu demolidor panfleto sobre a degeneração do marxismo em ideologia cinicamente justificadora, enfeitada com adornos religio­ sos, Kostas Papaioannu cita a confissão de um demônio exorcizado sobre as relíquias dos santos Marcelino e Pedro: “ Sou satélite e discípulo de Satã. Durante longo tempo, fui porteiro do Inferno; mas, desde alguns anos, com onze companheiros, dedico-me a devastar o reino dos Francos. Como nos ordenaram, nós destruímos o trigo, a vinha e todos os outros frutos que nascem da terra para o uso do homem”. Observa o autor: “Quem não reconhece a confissão de um ‘monstro trotskista’ ou de um ‘judeu-titoísta’? Tudo está aí: a origem obscura (as portas do inferno, os subterrâneos da reação), a 557

repentina promoção à condição de sabotador qualificado, a abjeta submissão às ordens de um centro satânico, trotskista, titoísta ou ou­ tro qualquer”49. De fato, as confissões que os comunistas luciferinos recitavam antes de subir ao patíbulo ou descer ao inferno carcerário evocam estranhamente os exorcismos medievais, na sua dupla função de explicação e esconjuro das calamidades naturais e dos males so­ ciais. Todas as dificuldades que surgiam nas novas “construções do socialismo”, todos os males que afetavam a área de projeção sovié­ tica, apareciam explicados, justificados, pela secreta atividade dos bandos demoníacos dos Rajk, Kostov, Gomulka, Patrascanu, Slansky etc., servidores do Judas-Tito, por seu turno servidor do SatãTruman — do mesmo modo como em 1936-1938 as distorções eco­ nômicas e as tensões políticas da sociedade soviética foram expli­ cadas pela não menos demoníaca ação dos bandos trotskista-bukharinistas. Ouçamos o promotor do processo de Slansky: “Cidadãos juízes: [ . . . ] Pudemos verificar, em toda a sua monstruosidade, a fisionomia moral destes criminosos. Compreendemos o perigo que nos ameaça a todos. Os crimes revelados nos permitiram conhecer as causas reais dos graves problemas que se manifestaram em vários setores da atividade do partido, do Estado, da economia. [. . . ] Como polvos de mil tentáculos, incrustaram-se no corpo da nossa repú­ blica para sugar-lhe o sangue e a medula. [. . . ] Durante certo tempo, puderam falsificar a justa política do nosso partido, adulterar os informes, as estatísticas, as iniciativas de nossos quadros; puderam enganar à direção gottwaldiana do partido e até enganar insolentemente [s/c] ao próprio presidente”50. Depois de trazer à luz, graças aos crimes imaginários de criminosos imaginários, as causas reais de todos os problemas existentes e por existir e depois de exigir castigo exemplar para os “monstros de rosto humano”, os requisitó­ rios dos procuradores (e, freqüentemente, as próprias confissões dos “monstros”, dotados não só de “rosto humano”, mas ainda da lin­ guagem “marxista-leninista”) terminavam apelando ao fortalecimento da unidade monolítica em torno da direção staliniana, à proteção da pureza do marxismo-leninismo, ao redobrar da vigilância revolucioná­ ria, à prática da autocrítica e — muito especialmente — ao cum­ primento e à ultrapassagem das metas da produção. “Os conspirado­ res causaram a nosso país — concluía o promotor que estamos citando — imensas perdas, calculadas em bilhões, mas nós realiza­ remos vitoriosamente as tarefas do plano qüinqüenal e edificare­ mos uma vida nova, uma vida radiante, tanto para nós como para 558

as gerações vindouras. O esforço incansável de massas de milhões de trabalhadores se confronta com um punhado de conspiradores. Nestes últimos dias, chegaram ao tribunal milhares de cartas, transbordantes de indignação, expressando a firme decisão dos nossos trabalhadores de reparar, num mínimo de tempo, todos os prejuízos que nos causaram esses vendidos ao imperialismo. [ . . . ] Sempre mais vigilante, sempre mais firme e unido em torno dos seus diri­ gentes, em torno de Klement Gottwald, nosso partido comunista con­ duz o povo a um futuro radioso”51. Uma vez afugentados os espíritos malignos e queimados os possuídos, o caminho para a Terra Prome­ tida revelou-se limpidamente ao disciplinado rebanho do Senhor. “Por que não ver [nos processos] — sugere Papaioannu — uma espécie de ‘autocrítica’ indireta, ‘mágica’, do próprio regime, uma vingança da história sobre a ideologia que tão obstinadamente a negava?” 52. De fato, por que não? Quando, nos anos trinta, o movi­ mento real da sociedade soviética, suas contradições e conflitos — espelhados nos estrangulamentos econômicos, nas tensões sociais, na surda oposição dentro e fora do partido — chegaram a um ponto em que não podiam ser silenciados nem, tampouco, justificados por defeitos comuns na execução da sempre justa política do partido, o regime teve que lançar mão de explicações “mágicas”. Não podia recorrer ao método marxista — ao método de Marx — porque este implica a crítica sem reservas, a discussão absolutamente livre, a investigação sem tabus, e o regime era a própria negação destas con­ dições. Para auto-avaliar-se de modo marxista, teria que começar por se autoliquidar. Mas também não podia recorrer à sua ideologia, o “marxismo” oficial, porque a função desta ideologia consistia pre­ cisamente no encobrimento das contradições, não no seu desvelamento — não consistia na reflexão e na explicação racional do movi­ mento real, mas na sua mistificação; a função desta ideologia não era criticar o sistema, mas realizar a sua apologia. Os males do sis­ tema, que não podiam ser escamoteados, tinham que ser apresen­ tados como alheios à sua natureza, à sua estrutura e à sua superes­ trutura — tinham que ser apresentados como importados para a sociedade soviética por agentes estranhos a ela. Dez anos depois, algo semelhante ocorreu nas democracias populares. Nem o regime “soviético” nem os regimes de “democracia popular” podiam su­ portar a análise marxista do conflito com a Iugoslávia, das relações instauradas entre Moscou e os países da área de projeção soviética, da verdadeira natureza dos sistemas políticos nela estabelecidos, dos 559

seus efeitos econômicos, sociais, etc. Igualmente, não podiam lançar mão do “marxismo” oficial, cuja função, mais ainda que nos anos trinta (se isto é possível), era puramente apologética e justificativa. Novamente, houve que recorrer a explicações “mágicas”. A história, o movimento real, mais uma vez, vingou-se subterraneamente dos burocratas e da sua cínica ideologia. Poucos anos depois, com um certo “relatório secreto” e outros acontecimentos, a vingança co­ meçaria a tomar dimensões homéricas. O poder sugestivo da “magia” staliniana, como o da antiga magia, dependia do ocultamento dos seus procedimentos e manipu­ lações. Uma vez revelados estes — ainda que muito parcialmen­ te —, o encanto desapareceu, dando lugar à náusea e à crise de consciência dos que haviam considerado como o melhor dos mundos marxistas o universo da mentira e da polícia. Apesar disto, muitos se aferraram desesperadamente aos pobres resíduos da sua fé des­ pedaçada e novos crentes ingênuos preencheram as lacunas deixadas pelos que se decidiram a tentar redescobrir o marxismo ou pelos que, definitivamente, perderam toda a esperança. Desta história, po­ rém, cuidaremos mais adiante. Aqui nos referiremos somente ao problema dos mecanismos internos da “magia” staliniana. L’Aveu, de Arthur London53, proporciona a este respeito um material de extrema importância, ainda que o autor não tenha extraído dele todas as conclusões lógicas pertinentes. Além de confirmar e ilustrar o que já é conhecido e em parte confessado — frise-se, em parte — pe­ las autoridades oficiais respectivas (que não houve nem crimes nem criminosos, com os processos sendo os únicos delitos), o testemunho de London evidencia que os processos tinham como finalidade po­ lítica o que expusemos nas páginas anteriores. Mas, a nosso juízo, o que é interessante em L’Aveu é a desmontagem do mecanismo dos processos, a sua concepção e realização. O ponto de partida era um esquema geral elaborado em função dos objetivos políticos perseguidos. Algo assim como o primeiro esboço de um roteiro de um filme. Em seguida, estudava-se quais os atores que reuniam as características adequadas para desempenhar os papéis principais. No processo de Budapeste, por exemplo, era essencial que o primeiro ator tivesse múltiplas relações com os diri­ gentes comunistas iugoslavos — além de ter trabalhado na clandes­ tinidade, sido preso alguma vez, provir de meio pequeno-burguês, etc. Como os serviços encarregados do assunto podiam dispor dos arquivos do partido em relação aos quadros, com as biografias deta560

Ihadas de cada um, a seleção não oferecia maior dificuldade. Uma vez escolhidas as pessoas idôneas, as coisas se encaminhavam para que elas assumissem o seu papel, combinando-se o secular e compro­ vado método da tortura física e moral com a utilização da experiên­ cia e da formação de partido dos selecionados. No curso desta fase verificava-se se o candidato reunia efetivamente as condições neces­ sárias, se aprendia bem o seu papel ou, pelo contrário, se opunha inesperada resistência aos convincentes argumentos dos seus instru­ tores. Assim se ia precisando a seleção dos atores, ao mesmo tempo em que o roteiro se concretizava, enriquecido com circunstâncias, detalhes, dados não previstos no esboço inicial, porque, colhidos na engrenagem e aniquilada toda resistência moral, os chamados a desempenhar — pelo “bem do partido” — o papel de espiões, agen­ tes provocadores, pequeno-burgueses degenerados, judeus sionistas, etc., convertiam-se em eficientes colaboradores da farsa. O trabalho tornava-se coletivo. Os comunistas-torturadores-instrutores e os co­ munistas-criminosos competiam entre si para conduzir à perfeição a trama da história inventada e a formulação das confissões de modo que não escapassem sequer frases confusas (por exemplo: em tal data e lugar contactei o iugoslavo Fulano de Tal, aõ invés da fórmula exata: em tal data e lugar contactei o espião titoísta Fulano de Tal). Redigida a confissão com as estruturas, os dados e as formulações que se ajustavam exatamente ao que “o partido ne­ cessitava”, restava apenas aprendê-la de cor, sem qualquer erro, sem esquecer os momentos em que o presidente do tribunal interromperia para fazer determinada pergunta (que o acusado, como o presidente, devia conhecer de memória) e para oferecer a correspondente res­ posta. Finalmente, chegava o momento da representação da peça — o julgamento —, com tudo minuciosamente previsto, ordenado, cro­ nometrado. Poucas vezes sobrevieram surpresas desagradáveis, como a provocada por Kostov no processo de Sofia, a exemplo do que Krestinski fizera, anos antes, num dos processos de Moscou. Os detalhes de todo este mecanismo — de que só podemos oferecer esta síntese ultra-esquemática — encontram-se no livro de London. O que, no seu relato, tem excepcional importância é o papel desempenhado pela chamada — segundo a terminologia “marxista-leninista” — for­ mação de partido. Nesta altura deste ensaio, seriam supérfluas longas explicações sobre os traços característicos dessa “formação”. Em cada comu­ nista, a convicção de ser um revolucionário marxista se entrecruzava 561

com concepções e comportamentos totalmente estranhos ao marxis­ mo. Se a divisa de Marx, espelhada em toda a sua obra, era De omnibus dubitandum 54, a de seus epígonos, um século depois, resu­ mia-se na fé carbonária: “ O partido sempre tem razão” — e se este, todavia, se engana alguma vez, “é preferível enganar-se com o partido do que acertar contra ele”. E mais: Stalin é infalível e a União Soviética algo sagrado. A fidelidade a Stalin, ao partido bol­ chevique (identificado a Stalin), à União Soviética (identificada ao partido bolchevique e a Stalin) era considerada como a característica essencial de todo bom militante. Durante mais de vinte anos, as sucessivas gerações de comunistas vieram se formando neste mar­ xismo inepto, exorcizado de seus fantasmas marxianos. Conjugada com a fé cega em Stalin e em tudo o que vinha da União Soviética, a vida interna dos partidos comunistas, o hábito de não discutir nem examinar criticamente a política e as diretivas fixadas desde o alto e a norma invariável de estar unânime e monoliticamente de acordo modelaram de tal maneira a mentalidade dos comunistas — e cria­ ram neles tantos reflexos condicionados — que ficavam à mercê de qualquer mistificação embalada em fórmulas “marxistas-leninistas” e avalizada pela etiqueta soviética. Com relação à técnica dos processos, além de todos esses ingredientes, interveio outro de par­ ticular importância, também constitutivo da “formação de partido”: o método da “autocrítica”. Assim como a crítica e a discussão tinham sido esvaziadas do seu conteúdo original, convertidas em glosas aprobatórias e repetitivas das orientações e diretivas superiores, a “autocrítica” que se praticava geralmente nos partidos comunistas pouco guardava de comum com o significado consensualmente aceito do termo. O militante ou o organismo afetado, freqüentemente, assu­ mia as culpas coletivas — e, sobretudo, as das instâncias superiores. Fazia o papel do bode expiatório. E isto em todos os níveis. Depois da catástrofe de 1933, a direção do Partido Comunista alemão foi o bode expiatório dos erros de Stalin e do Comitê Executivo da Internacional. Em 1947, na reunião de fundação do Centro de In­ formação dos Partidos Comunistas, a função de pagar pelo oportu­ nismo da política staliniana do período da “grande aliança” coube aos dirigentes comunistas franceses e italianos. Existia uma estreita conexão entre as confissões dos processos e essas “autocríticas” a que estavam habituados militantes e partidos. Em ambos os casos, tratava-se de determinados indivíduos ou instâncias assumirem as responsabilidades coletivas, ao mesmo tempo em que se ocultavam 562

v ou mistificavam os problemas reais e se exaltavam an In-.i» superiores. A diferença consistia na natureza dos "delitos" e que, para chegar às “autocríticas” dos processos, requeria se a Inli venção da tortura, real ou como ameaça. A “formação de purlldu' era necessária como condição, mas não suficiente, para que os eo munistas acabassem por aceitar o papel de espiões, provocadores, etc., em nome do “interesse superior” do partido. A tortura fun cionava como parteira neste sacrifício supremo, digno dos deuses astecas. Em suma, a “formação de partido” tornara os comunistas aptos tanto para assumir o papel de “espiões” como para acreditar nas confissões de todos os “espiões”, cuja linguagem, estrutura e estilo eram tão surpreendentemente parecidos às das “autocríticas” habituais. Dependia apenas do Destino que fossem chamados a de­ sempenhar um ou outro papel. O livro de A. London é uma arre­ piante ilustração desta vinculação íntima entre a “formação de par­ tido”, a fabricação das “confissões” e a credulidade dos comunistas nelas. Tanto L’Aveu quanto outros documentos aparecidos durante a efêmera “primavera” tchecoslovaca confirmam o que, desde o XX Congresso do PCUS, estava evidente, embora sem prova cabal: os processos das democracias populares foram diretamente organi­ zados pelos especialistas soviéticos. E, em certas ocasiões, com a intervenção, nos próprios locais, dos máximos dirigentes do Krem­ lin 55. O monstruoso aparato policial, dirigido por Stalin e Beria, em cujas mãos se encontrava o partido comunista e o Estado sovié­ ticos — como Kruschev reconheceu em seu “relatório secreto” — era o mesmo que controlava, com o auxílio das polícias nativas, teda a área de projeção soviética. O ponto de ruptura com a Iugoslávia foi precisamente, como vimos, a resistência de Tito e seus colabora­ dores em permitir a instalação desse aparato. E uma das finalidades dos processos nas democracias populares foi romper com toda resis­ tência à sua implantação ainda mais profunda e ramificada nos respectivos países. O silêncio que o “relatório secreto” guarda a este respeito fala eloqüentemente das proporções adquiridas pelo fato. A sua revelação representaria um golpe mortal para a ulterior manu­ tenção do controle soviético sobre a sua área de projeção. Em julho de 1953 — quando ainda não terminara a fanática caçada de espiões levada a cabo nas democracias populares durante cinco anos em nome da vigilância revolucionária e sob a qualificada direção dos especialistas soviéticos na matéria e recém-falecido o 563

especialista Número Um — , o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética anunciou que o especialista Número Dois fora desmascarado como agente dos serviços secretos imperialistas. Se­ gundo informe confidencial dos chefes soviéticos aos chefes dos partidos-membros do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, a prova decisiva de que Beria era também espião consistia em que, ao ser preso, foi encontrada em seu poder uma carta dirigida a Rankovitch, pedindo um contato com Tito 56. A Grande Depuração de “espiões” e de auxiliares diretos ou indiretos de “espiões”, dirigida pelo “espião” Beria, sob a superdireção do Grande Vigilante, foi um dos componentes essenciais — efei­ to e causa, ao mesmo tempo — do rumo político que fez secar, nos partidos comunistas das democracias populares, a seiva revolu­ cionária ainda viva nos anos precedentes. Foi um dos componentes essenciais que acabaria por configurar aqueles regimes segundo o modelo policial do regime soviético staliniano, levando a sua burocratização ao extremo, liquidando toda forma de liberdade, fazendo da mentira a lei e da lei uma farsa, travando o desenvolvimento técnico e científico, falseando as análises econômicas — e todas as análises —, aprisionando a cultura nas estultícias zdhanovistas, fo­ mentando o nacionalismo que pretendia extirpar, alimentando a rus­ sofobia que desejava eliminar, desacreditando os ideais socialistas. Este rumo político transferiu às democracias populares os dramas do regime soviético, agravados pelo menosprezo da soberania nacio­ nal. A desatinada campanha de difamação contra a Iugoslávia e a imposição dos diktats soviéticos às outras democracias populares pôs em questão a hipótese marxista de que a revolução proletária criaria relações fraternais entre os povos, baseadas na igualdade e na fra­ ternidade. Este rumo político esteve estreitamente determinado por aquele seguido internamente pelo regime soviético nos anos compreendidos entre a vitória anti-hitleriana e a morte de Stalin. As profundas contradições do sistema staliniano se agravaram neste período e a burocracia governante tentou superá-las com os métodos — já tra­ dicionais — da repressão ideológica e policial, ao mesmo tempo em que o culto de Stalin tomava as proporções que são bem conhe­ cidas. Sob o efeito das contradições internas e da previsível desa­ parição do sinistro ancião, exacerbou-se a luta de camarilhas pelo poder. Mas a análise desta evolução do regime soviético e da crise nele aberta com a morte de Stalin — assim como da crise das de­ 564

mocracias populares, conscientemente preparada pelos aprendizes de feiticeiros stalinianos — será objeto de considerações posteriores. Estas crises revelaram que, na União Soviética, o “sistema” contava ainda com sólidas bases numa população anestesiada por trinta anos de mitos e de enquadramento político, paralisada pela rede onipre­ sente da polícia secreta; numa população ansiosa, antes de tudo, depois de tantas privações e sacrifícios, por um pouco de bem-estar material. Revelaram, porém, que as suas bases eram sumamente frágeis nas democracias populares; aqui, a crise pôs em movimento consideráveis grupos sociais, particularmente entre a intelectualidade, a juventude estudantil e a classe operária. Revelaram a debilidade política das burocracias dirigentes, cuja formação não fora — como no caso soviético — produto de um largo processo orgânico e se encontravam submetidas à tripla e contraditória pressão das forças progressistas internas, dos restos das antigas classes dominantes e das imperiosas exigências soviéticas.

A campanha contra o titoísmo nos partidos comunistas do Ocidente Os partidos comunistas do mundo capitalista assumiram, una­ nimemente, a grande operação policial-ideológico-política montada pelo Kremlin. Imediatamente após a divulgação da primeira reso­ lução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas contra o Partido Comunista da Iugoslávia, a Comissão Executiva do Partido Comunista Italiano publicou um breve comunicado, no qual se lia: “Depois de conhecer o informe dos camaradas Togliatti e Secchia sobre a recente reunião do Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas, a Comissão Executiva aprovou por unanimidade e sem qualquer reserva as decisões adotadas pelo Centro de Informação dos Partidos Comunistas”. Simultaneamente, o Birô Político do Par­ tido Comunista Francês divulgou declaração semelhante. Seguindo os métodos tradicionais, os dois organismos dirigentes adotavam decisões tão graves sem levar em conta os militantes de base e os quadros médios. Mas, ao menos, podiam dar a impressão de que tomavam esta posição com conhecimento de causa, depois do informe que lhes forneceram os seus representantes no Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Ao contrário, os organismos dirigentes dos outros partidos comunistas do mundo capitalista não tiveram a 565

menor intervenção no problema, assim como não a tiveram quer na fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, quer na “discussão” da sua política. Souberam da condenação dos iugos­ lavos pela imprensa. Mas todos adotaram imediatamente — sem pedir mais explicações ou esperar por elas — suas correspondentes resoluções, também aprovando “sem qualquer reserva” a condenação dos que, na véspera, eram modelos de revolucionários. De idêntica maneira procederam diante da segunda resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, segundo a qual o partido iugos­ lavo estava nas mãos de “assassinos e espiões” e que a revolução iugoslava se transmudara em fascismo. E, com a mesma incondicionalidade, todos os partidos comunistas do mundo capitalista apro­ varam os grandes expurgos nas democracias populares, os veredictos dos sucessivos processos, a execução, a prisão e a liquidação política de centenas de comunistas conhecidos pela sua longa trajetória re­ volucionária; admitiram, como a coisa mais natural do mundo, a metamorfose desses homens em “espiões”, “cães” do imperialismo, “monstros fascistas”, etc. Durante mais de cinco anos, a campanha pública e interna em torno da heresia iugoslava e a caça aos hereges nas democracias populares alcançou tais proporções nos partidos comunistas dos paí­ ses capitalistas que tornou pequena a campanha desenvolvida, nos anos trinta, contra o trotskismo, ao mesmo tempo em que a reto­ mava. Um papel particularmente vergonhoso coube a nós, diri­ gentes do Partido Comunista espanhol. O prestígio que o PCE con­ quistara no movimento comunista mundial, graças aos seus combates dos anos 1936-1939, serviu para avalizar as infames acusações lan­ çadas contra os homens que arriscaram suas vidas em terras da Es­ panha, lutando lado a lado com os antifascistas e os comunistas espanhóis. “Fingindo-se amigos, camuflando-se entre os combatentes vindos de todos os países para defender a causa da liberdade na Espanha, os espiões titoístas ajudavam o verdugo Franco, apunha­ lando pelas costas o povo espanhol — declaravam porta-vozes oficiais do PCE. Mais tarde, os espiões titoístas, continuando em sua vil atividade provocatória, nos campos de concentração da França, cau­ saram a morte de milhares de republicanos espanhóis. Os hitlerianos puderam localizar e assassinar muitos dos mais heróicos combatentes espanhóis servindo-se dos miseráveis espiões titoístas [. . ,]” 57. Cada partido comunista deu a sua contribuição “original” à operação montada pelo Kremlin. Inclusive os líderes comunistas chi566

neses, cuja experiência podia permitir-lhes compreender melhor que ninguém o verdadeiro motivo do conflito soviético-iugoslavo, não faltaram à convocação de Stalin. Como vimos em parte anterior deste estudo, a resistência de Mao às imposições soviéticas precedera de muito a de Tito. E, analogamente ao que se passara com a revo­ lução iugoslava, a chinesa pudera triunfar graças à desobediência de seus dirigentes às diretivas de Stalin — que tentou impor-lhes, como aos iugoslavos, uma política de união nacional subordinada às forças burguesas e aos imperativos do compromisso duradouro que Stalin buscava com o imperialismo americano. Mas, em 1949, esses mes­ mos dirigentes qualificavam de “traidores” e “renegados” os comu­ nistas iugoslavos; declaravam que, se houvessem seguido o caminho de Tito, “não teria sido possível conquistar a libertação nacional da China”, com esta se convertendo em “colônia do imperialismo”, como a Iugoslávia58. Apesar disto, neste problema a posição do Partido Comunista Chinês foi mais moderada e discreta que a de outros partidos, particularmente os europeus. E também entre estes houve diferenças. Os louros da campanha contra o titoísmo, fora do “campo socialista”, couberam, sem dúvidas, ao Partido Comunista Francês. Fazendo um balanço do trabalho efetuado neste terreno, e apelando à sua intensificação, um dos dirigentes do PCF escrevia, em junho de 1950: “Não passa um dia sem que a nossa imprensa divulgue informações ou artigos sobre a situação na Iugoslávia. Mas este trabalho tem freqüentemente um caráter formal, improvisado, pouco sistemático. [. . .] Há que melhorar consideravelmente a qua­ lidade dos textos e não cuidar apenas da sua quantidade. Nossa imprensa deve tomar a intensificação da campanha contra Tito como um objetivo de primeira importância” 59. A campanha pela imprensa foi completada com a edição massiva de cartazes e panfletos, como um, intitulado A Iugoslávia sob o Terror de Tito. O PCF não se limitou à propaganda. Organizou “a luta de massas” contra o envio de material “militar” a Tito: “O que se fez em Figeac, contra a fabricação de hélices para Tito, e em Niza, a propósito da rampa de lançamento das V-2 que se supunha destinada a Tito, é apenas o começo. [. .. ] Há que estender esta ação a todo o país, princi­ palmente a regiões como Grenoble, onde se fabricam importantes materiais elétricos a pedido de Tito” 40. O PCF organizou ainda uma campanha contra as viagens à Iugoslávia, lançando a consigna: “Nem um só operário honrado, nem um só estudante sinceramente pro­ gressista, nem um só jovem democrata da França deve visitar a 567

Iugoslávia nas férias!”. E também contra as manifestações artísticas iugoslavas na França: “Tanto a Exposição de Arte Medieval Iugos­ lava em Paris como as mostras cinematográficas iugoslavas deveriam ter sido uma boa ocasião para os comunistas e os partidários da paz demonstrarem, pelos meios apropriados, que tipo de política se oculta sob essa propaganda artística, aparentemente neutra e desin­ teressada, que se dirige aos meios intelectuais pequeno-burgueses, especulando com a sua mentalidade vacilante, instável e crédula” (o PCF exigia que os “partidários da paz” tomassem posição contra lito , promotor de guerra). Com a autoridade de quem só reco­ nhece — como bom marxista — os fatos cientificamente provados e os delitos juridicamente comprovados — tais como a conversão do socialismo iugoslavo em fascismo, os crimes dos espiões Rajk, Kostov, etc. — , o autor do texto que estamos citando se escandaliza com a credulidade e a ingenuidade dos intelectuais franceses, inca­ pazes de perceber as perversas intenções anti-soviéticas e imperialis­ tas embutidas na Exposição de Arte Medieval Iugoslava; ele observa: “Não há como não se surpreender com a ingenuidade de alguns inte­ lectuais franceses, que toleraram e suportaram tão grotescas mistifi­ cações, sob o pretexto de que eram arte pura” 01. Até o esporte representava um perigoso propagador da heresia iugoslava. Afortuna­ damente, a imprensa comunista dera provas, no terreno desportivo, de firmeza doutrinária e a direção do partido enfatiza a questão, apresentando-a como um exemplo a seguir no domínio cultural: “A firme atitude da imprensa de nosso partido, por ocasião das manifestações desportivas iugoslavas, pode servir como modelo do que também se deve fazer no domínio da cultura” 62. Em junho de 1951, na revista política do PCF, Etienne Fajon apresentou o balanço da evolução iugoslava desde a ruptura de 1948 e as lições que se depreendiam dos processos nas democracias populares. O título do artigo era “A Clarividência do Partido Bol­ chevique e os Crimes da Camarilha Fascista de Tito”. Eis algumas passagens: “No que se refere à situação interior, a camarilha de Tito liquidou completamente o regime de democracia popular. [. . . ] Para facilitar a restauração completa do capitalismo, o governo, no ano passado, ‘descentralizou’ o setor econômico do Estado (que, por outro lado, deixara de ser um bem do povo, já que o poder se en­ contra nas mãos dos seus inimigos). A direção das empresas foi confiada a pretensos ‘conselhos operários’, que recorrem amplamente ao capital privado, em virtude da situação catastrófica da econo­ 568

mia iugoslava. [ . . . ] A exploração da classe operária iugoslava é atroz. [. . .] Em certas empresas, 70% dos operários sofrem de tu­ berculose. [. . .] Por toda parte, reina uma repressão sangrenta e selvagem, em particular contra os comunistas fiéis ao internacionalismo proletário e à independência da sua pátria. Dezenas de milhares são encarcerados, torturados até à morte, covardemente assassinados. [. . .] O governo de Belgrado liquidou completa­ mente a independência da república iugoslava, atualmente reduzida ao papel de colônia e de base a serviço dos multimilionários ame­ ricanos. [. . .] Desde 1949, os processos de Rajk na Hungria e de Kostov na Bulgária permitiram revelar o verdadeiro passado da camarilha dirigente da Iugoslávia. Demonstrou-se que se trata de vulgares espiões, há muito vinculados aos serviços de informação de Washington e Londres. Uma das principais tarefas atribuídas a estes miseráveis, na preparação da terceira guerra mundial, consis­ tia em organizar complôs contra o novo regime nos países de demo­ cracia popular e articular, em combinação com os traidores locais, os golpes de Estado contra-revolucionários indispensáveis para trans­ formar estes países em bases de agressão contra a URSS. A ampli­ tude deste plano, que a resolução do Centro de Informação dos Partidos Comunistas ajudou a sufocar no nascedouro, foi ilustrada recentemente com a descoberta da atividade criminosa de Clementis e sequazes na Tchecoslováquia” 63. Este breve mostruário da ação do Partido Comunista Francês contra a “camarilha fascista de Tito” e em apoio aos processos dá uma idéia do que foi a intervenção dos outros partidos comunistas ocidentais. Mas nem todas — como indicamos — tiveram a viru­ lência francesa. A campanha contra o titoísmo do Partido Comunista Italiano, por exemplo, foi bem menos intensa que a do francês e com um tom menos agressivo. As atas do VII Congresso do PCI, celebrado em abril de 1951, contêm poucas referências ao problema. A mais explícita é a de Togliatti, mas na quase totalidade das outras intervenções o problema está ausente64. Isto refletia, indubitavel­ mente, certos traços diferenciais do PCI em face do outro “grande” do comunismo ocidental — traços que, ulteriormente, se acentua­ riam — , bem como a ponderação de importantes considerações de política interna, particularmente a preocupação de preservar as re­ lações unitárias com os socialistas. A este respeito, o PCF não tinha nada a perder, pois seu isolamento não poderia ser maior. E o mesmo acontecia com a maior parte dos partidos comunistas, sobre­ 569

tudo na Europa e na América. Mostrando-se como instrumentos incondicionais da política do Kremlin, inclusive no que esta possuía de mais obscurantista e policial, os partidos comunistas ocidentais acentuaram o seu isolamento. Naqueles anos de “guerra fria” e de macartismo, a sua cumplicidade com o “macartismo staliniano” pri­ vava os comunistas de autoridade moral e política diante de grandes setores operários, democráticos e progressistas. O próprio problema da luta contra o perigo da guerra ficava falseado a partir do momento em que se incluía a Iugoslávia entre as principais bases do imperia­ lismo americano e, sob esta mistificação, se dissimulava a situação explosiva que a política staliniana criara nas fronteiras da Iugoslávia com o “campo socialista”. Até no interior dos partidos comunistas — apesar da aparência monolítica que ofereciam, apesar da credulidade dos seus membros na “traição” dos Titos, Rajks, Kostovs, Gomulkas etc., apesar dos efeitos, acima analisados, da “formação de partido” — a dúvida começou a se instalar, inserindo-se na consciência de muitos comu­ nistas. De maneira indireta, deformada, este fenômeno se refletia nas intervenções dos chefes. “ Os militantes, as organizações do partido, ainda não opuseram uma barreira intransponível às tentativas de infiltração policial — reclamava Thorez no seu informe ao XII Con­ gresso do PCF. Com sua honradez natural, os trabalhadores não podem conceber a que ignóbeis procedimentos de delação e provo­ cação recorrem os seus inimigos de classe. Para a execução da sua vil tarefa, os provocadores se aproveitam da ingenuidade de muitos camaradas. Os processos dos traidores Rajk e Kostov, porém, de­ monstraram que esses espiões e seu chefe Tito estavam há muito a serviço dos organismos de informação anglo-americanos. [. . . ] Pode­ mos acreditar que os atuais governos e seus patrões americanos te­ nham desistido de introduzir seus agentes no movimento operário e democrático? Não vemos a utilização que fazem da sua agência titoísta e dos grupelhos trotskistas?” 6S. Partindo dessas considera­ ções do secretário-geral, Etienne Fajon precisava a maneira de pro­ ceder: “Há que golpear, sem vacilações e publicamente, com uma ampla explicação política, sempre que se possa descobrir no partido um agente titoísta ou qualquer outro provocador policial. E não nos impressionemos com as possíveis retratações — elas obedecem unicamente à regra do jogo duplo que, desde tempos imemoriais, o inimigo ensina aos seus agentes” Os casos de Tito, Rajk, Kostov, 570

Gomulka etc., convertiam-se em modelos para a identificação da penetração policial no seio do partido. A necessária luta contra este risco — compreensível para todo militante revolucionário — era explorada para aniquilar na origem qualquer dúvida ou divergência e, particularmente, qualquer dúvida sobre a política staliniana. Como dizia a revista dos intelectuais do PCF, o que ocorrera com Tito e os outros “espiões” demonstrava “a fatalidade de uma traição desde o próprio momento em que um comunista põe em dúvida a fideli­ dade incondicional à URSS” 67. Nesta atmosfera de terrorismo ideológico, de psicose de espio­ nagem e provocação política, os comunistas que tinham dúvidas sobre o que estava ocorrendo no “campo socialista”, ante o perigo de ingressar na categoria dos espiões e dos agentes provocadores, geralmente optaram pelo silêncio. No entanto, os conflitos internos que surgiam, ou que emergiram no período precedente, sem relação alguma com o problema titoísta, até eles eram vinculados ao “grande complô” da espionagem imperialista, descoberto graças à clarividente vigilância de Stalin. No Partido Comunista espanhol, por exemplo, uma série de casos ocorridos no período compreendido entre a der­ rota da república e 1949 foram englobados na seguinte versão: “O episódio do bando fascista de Tito, na Iugoslávia; o processo de Rajk e seus cúmplices, na Hungria; a acusação contra Kostov, na Bulgária, atualmente — tudo isto mostra que os serviços de in­ formação anglo-americanos realizaram durante a guerra enormes es­ forços para infiltrar seus agentes no interior dos partidos comunistas. Tudo isto mostra que tais serviços herdaram os agentes que a Gestapo recrutou entre covardes e renegados, traidores do partido que caíram em suas mãos. Na Espanha ocorreu algo semelhante. O partido conhece a experiência de Monzón, Trilla e alguns outros, que se tranformaram em agentes do inimigo. Aproveitando as cir­ cunstâncias excepcionais em que por algum tempo eles atuaram, o inimigo os coroou com uma aura de ‘resistentes’, de ‘heróis’. Orientava-os para penetrar no Comitê Central e no Birô Político do partido. De fato, por algum tempo conseguiram introduzir-se na direção das organizações do partido na França, no Norte da África e mesmo na Espanha. Se o partido e sua direção tivessem sido dé­ beis diante desses traidores, se não tivessem tomado medidas polí­ ticas enérgicas para tirá-los de circulação, até onde poderiam chegar? Seriam os Titos, os Rajks, os Kostovs espanhóis. [. . .] Exatamente o mesmo sucedeu antes com o grupo provocador de Hernández e 571

Castro e, ainda antes, no PSU da Catalunha, com os Barrios, Serra Pamies, Víctor Colomers, Ferrers & Cia. O partido e sua direção não vacilaram em varrer esta escória, conscientes de que as depurações fortalecem o partido. Se se tivesse permitido que tais elementos de­ generados e corrompidos continuassem no partido, se se houvesse transigido com eles [. . .] o que nos dirigiria hoje: nossos princípios revolucionários marxistas-leninistas-stalinistas, nossa identificação com a frente dos partidos comunistas e operários, com a URSS, com o partido bolchevique e o grande Stalin, ou os gangsters e aventurei­ ros dos serviços de informação franquistas e anglo-saxões? [. . .] A resposta é óbvia: o partido, ao depurar-se dos êmulos de Rajk e Kostov, dos agentes do inimigo, tornou-se mais forte, mais sólido. Recen­ temente, a expulsão do traidor Camorera das fileiras do PSUC é outro passo nesta direção. Seguindo esta conduta, nosso partido é fiel aos ensinamentos e ao exemplo do partido bolchevique” 68 (em toda esta série de “casos” — como logo depois se teve que reconhecer, embora sem qualquer divulgação — não havia nenhum de traição, mesmo que alguns dos citados (concretamente, Enrique Castro) tenham passado, anos depois, para as fileiras franquistas. Até prova em contrário, tratava-se de divergências políticas, de lutas internas pela direção ou de problemas de corrupção pessoal, mas não de espio­ nagem ou de provocação policial. E a aura de heroísmo que alguns tiveram — por exemplo, Monzón, e outros que não são citados, como Quinones — não foi fabricada pelo inimigo, mas resultava do papel real que, com acertos e erros, haviam desempenhado). Raros foram os partidos comunistas que não descobriram em suas fileiras a infiltração de agentes titoístas, anti-soviéticos, nacio­ nalistas e policiais e, mesmo não podendo competir com os partidos no poder na organização de processos contra eles, chegaram o mais longe possível dentro das condições capitalistas. O caso mais famoso foi o de André Marty e Charles Tillon, que explodiu no PCF nos últimos meses de 1952. Os dois eram membros do Birô Político e tinham a aura da participação na sublevação dos marinheiros fran­ ceses do Mar Negro, em defesa da jovem república soviética, e da presença na guerra civil espanhola. Aliás, Tillon fora um dos principais organizadores das forças armadas da Resistência francesa. Ambos foram acusados de uma série de “graves delitos”, que se resumiam em “ter questionado a direção política staliniana do se­ cretário-geral do partido, o camarada Maurice Thorez”, em ter cons­ pirado fracionisticamente contra o chefe que garantia, entre outras 572

virtudes do partido, a sua “adesão incondicional e indefectível à União Soviética” 69. Os dois — segundo os acusadores — tinham oferecido alarmantes sinais de nacionalismo anti-soviético, o que, na­ turalmente, colocou-os no mesmo caminho de Tito: “ Suas concep­ ções — afirmou-se — são muito similares às de Tito”. Entre os sintomas da “inadmissível desconfiança de Marty” em face da União Soviética, mencionou-se que, durante uma viagem à URSS, em 1949, ele “manifestou desconfiança, no mínimo, diante dos organis­ mos de segurança do Estado socialista”70. Como o velho Marty resis­ tiu a entoar o mea culpa, o Birô Político, para simplificar, decidiu que era um agente policial. Assim rotulado, foi excluído do partido. Quanto a Tillon, foi rebaixado à base, condenado ao ostracismo político. Além deste caso espetacular, no PCF ocorreram muitos outros de menor monta, como o do Professor Marcei Prenant, acusa­ do de anti-sovietismo por colocar em dúvida as teorias biológicas de Lisenko. Na História do PCF, escrita por um grupo de militantes (entre os quais Prenant e outros conhecidos combatentes da Resis­ tência) que naqueles anos começaram a se confrontar com os mé­ todos stalinistas, a situação criada no partido é descrita nos seguintes termos: “ O medo de acusações infamantes reduzia ao silêncio os militantes. As destituições, os processos, as exclusões arbitrárias despertavam dúvidas entre muitos camaradas. Quem duvidava ini­ ciava um longo martírio moral. Era acusado por todos os lados. Fizesse o que fizesse, estava perdido. Se entrasse na via da autocrí­ tica compulsória que se lhe exigia, proporcionava a base para a sua condenação. Se se recusava a admitir erros e crimes que não cometera, sua ‘resistência à autocrítica’ era tomada como prova da sua qualidade de agente consciente do anticomunismo. Enquanto as ‘comissões investigadoras’ das democracias populares e da URSS levavam a ‘investigação’ até a tortura e a condenação à morte, [na França] a Comissão Central de Controle do partido caluniava, levan­ tava testemunhos e provocava o militante incriminado até a exclusão infamante” 71. Na França, como em muitos outros países, numerosos militantes abandonaram silenciosamente o partido e muitos perma­ neceram nele sufocando suas dúvidas, que logo seriam dramaticamen­ te confirmadas. Em geral, porém, apenas alguns intelectuais se deci­ diram a expressar publicamente a sua reprovação, acompanhada da saída do partido 72. Entre os intelectuais de esquerda não comunistas, a repulsa contra o rumo tomado pelos partidos comunistas e pela URSS foi 573

quase geral. Durante a guerra e nos primeiros anos do pós-guerra, os partidos comunistas europeus ampliaram consideravelmente a sua influência sobre os círculos intelectuais. A reaparição da Inquisição staliniana produziu um refluxo brutal. Ao zdhanovismo, aos pro­ cessos, à campanha de mentiras sobre a Iugoslávia vieram somar-se as primeiras informações sobre a existência de campos de concen­ tração na URSS. O conjunto era mais que suficiente para que todo espírito livre, não protegido pelas viseiras do partido, se sentisse obrigado a interrogar-se sobre a natureza do regime e do partido político que produzia e abrigava fenômenos semelhantes. Dado sin­ tomático: a edição francesa de O Zero e o Infinito, de Koestler, lançada em 1947, vendeu mais de 400.000 exemplares73. Completando este aspecto de Igreja medieval que o movimento comunista apresentava naqueles anos, o culto de Stalin — iniciado no decênio de trinta, intensificado durante a guerra e no pósguerra — adquiriu, a partir de 1948, tonalidades quase místicas, amorosas, que o final do informe de Georghiu-Dej sobre “ O partido comunista iugoslavo em poder dos assassinos e espiões” expressava eloquentemente (cfr. p. 554). A reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas na qual este informe foi apresentado realizou-se às vésperas do septuagésimo aniversário de Stalin (dezembro de 1949). O anátema paroxístico fulminado contra o Inimigo conjugou-se com a glorificação não menos paroxística do Salva­ dor (recordemos uma passagem do informe: “Com perspicácia genial [. . . ] o camarada Stalin salvou numerosos partidos marxis­ tas”). De todos os recantos do planeta, chegaram ao Kremlin ca­ ravanas com oferendas. Os artigos de Molotov e Malenkov, dedica­ dos ao grandioso acontecimento, depois de descrever o itinerário terreno do Guia, seus atos e obras imortais, terminavam assim: “ Por isto é tão ilimitada a confiança dos trabalhadores do nosso país na sábia direção stalinista, tão firme a sua fé no gênio de Stalin, tão imenso o amor do povo soviético e dos trabalhadores de todo o mundo pelo camarada Stalin. [. . . ] Com o sentimento de uma gra­ tidão imensa, os povos da União Soviética e centenas de milhões de homens dos países de todo o mundo dirigem os seus olhos ao camarada Stalin. A humanidade progressista vê no camarada Stalin o seu guia e mestre amado, confia e sabe que a causa de Lênin e Stalin é invencível” 14. “ Pode ser comunista aquele que não leva no seu coração um afeto sem limites por Stalin, o Chefe, o Amigo, cujo septuagésimo aniversário comemoramos com fervor?” — cla­ 574

mava Thorez, sob uma tempestade de aplausos, no XII Congresso do PCF 75. Entre os incontáveis panegíricos desses anos, talvez ne­ nhum resuma melhor a carolice reinante no movimento comunista que a dolorida crítica de Les Lettres Françaises ao retrato de Stalin feito por Picasso: “Neste desenho, onde estão expressos a bondade e o amor pelos homens que encontramos em cada fotografia de Stalin? [. . . ] Este desenho não espelha, de forma alguma, o caráter de Stalin, luminoso de inteligência e fraternidade. [. . . ] Não expres­ sa o que representa para nós o querido camarada, o pai de todos, o homem que nós mais amamos, em cuja morte não podemos acre­ ditar. [. . .] A nobreza, a bondade que caracterizam no mais alto grau o rosto imortal de Stalin estão mais que ausentes. [ . . . ] O que se fez da luminosidade, do sorriso, da inteligência, enfim, da humanidade sempre tão visível nos retratos do nosso querido Stalin? [. . . ] Picasso corre o risco de semear a incompreensão e a confusão entre os comunistas e os amigos do nosso partido” 76. De fato, até este momento tudo estava claro para os bons comu­ nistas, e era de lamentar que a genialidade irreverente do grande artista semeasse a confusão. Poucos dias depois, uma notícia — ina­ creditável para todo bom comunista — desviou a atenção do rosto anódino saído do lápis picassiano. Um comunicado do ministério do Interior da URSS, datado de 4 de abril, anunciava a reabilitação e a libertação dos eminentes médicos detidos meses atrás, sob a acusação de complô contra o poder soviético. O caso se tornara pú­ blico a 13 de janeiro. Segundo o Pravda, essas celebridades da medi­ cina soviética, várias delas condecoradas com a Ordem de Lênin, haviam confessado que, ao invés de fazer o possível para tratar de Zdhanov e de outros dirigentes do partido, procederam metodica­ mente a seu assassinato, servindo-se do próprio tratamento médico, e que tinham projetado o assassinato de Stalin e de alguns militares. Na maioria judeus, confessaram igualmente — é claro! — que tra­ balhavam para os sionistas, a espionagem americana e o Intelligence Service 77. Agora, resultava que tudo era mentira e as confissões, de acordo com o comunicado de 4 de abril, foram extraídas através de torturas, “violando-se a legalidade” . Salvo poucas exceções — so­ bretudo entre médicos comunistas, que dificilmente podiam imaginar um médico-assassino no próprio exercício da profissão — , os comu­ nistas, uma vez mais, tinham acreditado na realidade do complô. Denunciara-o o Pravda, ou seja, o porta-voz da Verdade por antono­ másia; denunciara-o a justiça soviética, ou seja, a justiça — e, por 575

outro lado, ao cabo de cinco anos de complôs em série, a coisa se tornara habitual. Se tantos eminentes comunistas, de brilhante pas­ sado revolucionário, revelaram-se “monstros de rosto humano”, não era estranho que existissem “monstros de rosto humano e uniforme branco”. Inacreditável, para os comunistas, era o comunicado de 4 de abril, que semeava mais confusão que o retrato picassiano. Pela primeiia vez na história do regime soviético, reconhecia-se que um complô, irmão gêmeo de tantos outros, era uma farsa. Pela primeira vez se reconhecia que altos chefes da segurança soviética montavam falsos complôs e arrancavam confissões por meio da tortura. De re­ pente, tudo começava a ficar escuro. Para restabelecer a claridade, sobretudo prevendo-se a quanti­ dade de complôs e processos que talvez fosse necessário “anular”, os herdeiros do defunto precisavam fabricar um bode expiatório de alto nível. No momento, ninguém mais indicado que o chefe máximo da polícia secreta. Uma vez “ desmascarado” o novo Azew78, tudo voltou a ser diáfano e translúcido, como veio a dizer o comunicado do Birô Político do partido-piloto entre os partidos comunistas do Ocidente: “O Birô Político do Partido Comunista Francês — dizia o comunicado — está plenamente solidário com o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética que, ao desmascarar Beria, agente do imperialismo internacional, impedindo-o de prosseguir na sua criminosa tarefa, prestou um novo e grande serviço à causa do movimento operário internacional. O Partido Comunista Francês aprova e felicita o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética por: a) ter feito fracassar os plano de Beria, voltados para apoderar-se da direção do partido e do Estado objetivando, em última instância, restaurar o capitalismo; b) ter impedido este criminoso de sabotar o reforço e o desenvolvimento da agricultura soviética, mi­ nando os kolkhozes com o objetivo de criar dificuldades no abasteci­ mento da União Soviética; c) ter impedido que esse agente dos impe­ rialistas prejudicasse a amizade dos povos da URSS, base funda­ mental do Estado socialista multinacional. As esperanças depositadas pelos imperialistas no seu agente Beria revelaram-se vãs e ninguém pode impedir que, mais unido e mais forte que nunca, o glorioso Partido Comunista da União Soviética, modelo para todos os partidos comunistas e operários, conduza a União Soviética em sua marcha rumo à edificação do comunismo” 79. Mas o De omnibus dubitandum de Marx aninhou-se pela pri­ meira vez na consciência de milhares de comunistas. E a fratura 576

aberta pela revolução iugoslava no monolitismo staliniano começou a se aprofundar.

NOTAS 1 Cfr. Fejto, H is to ir e d es D é m o c r a tie s P o p u la ire s, ed. cit., t. I, p. 194. p. 209. Cfr. também o artigo de Amber Bousoglou, “Como a Tchecoslováquia passou do regime parlamentar à democracia popular”, L e M o n d e , 23 de fevereiro de 1968. 3 Discurso de Gottwald na Assembléia Nacional Constituinte, 10 de março de 1948. Utilizamos a versão publicada em N u e s tr a B a n d e ra , n.° 25, 1948. A citação é feita da página 247 e os sublinhados são nossos. A X X e . C o n g rè s d u P C d e L ’U n io n S o v ié tiq u e , coleção de documentos editada por C a h ie rs d u C o m m u n is m e , Paris, 1956, p. 260. 5 Citamos segundo a versão espanhola do artigo, publicada no periódico do PCE, N u e s tr a B a n d e ra , n.° 19, 1947. Os parágrafos que reproduzimos estão nas páginas 608 e 614.

l Ib id .,

à I n fo r m e s y R e s o lu c io n e s d e l B u r ó d e I n fo r m a c ió n d e lo s P a rtid o s C o m u n is ta s y O b re ro s, edição do PCE, 2a. quinzena de novembro de 1949, p. 41.

7 Cfr. Fejto, o p . cit., pp. 202-203. 8 L e F ig a ro , 12-2-1948. Groza era então o chefe do governo romeno. v Baseamo-nos, principalmente, nas cartas trocadas entre Stalin e Tito, de março a maio de 1948, posteriormente divulgadas pelos iugoslavos — a edição fran­ cesa, editada por L iv r e Iu g o sla v e , 1950, com uma introdução que oferece algumas precisões sobre o processo que levou à ruptura. Valemo-nos também da biografia, já citada, de Tito por Dedijer e da obra de Fejto, que resume o essencial do problema. io Cfr. pp. 401-402 deste volume. ti Cfr. Djilas, C o n v e r s a tio n s a v e c S ta lin e , cit., pp. 97-100. 12 Em sua carta de 27-3-1948, depois de acusar os iugoslavos — como veremos mais adiante — de uma série de atos hostis aos especialistas militares e civis que se encontravam na Iugoslávia, Stalin escreve: “À luz destes fatos, a famosa declaração de Djilas, tão ofensiva para o Exército Vermelho, pro­ nunciada durante uma reunião do Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslávia — afirmando que, do ponto, de vista moral, os oficiais soviéticos são inferiores aos do exército inglês — torna-se completamente compreensível. Sabe-se que esta declaração anti-soviética de Djilas não encontrou oposição entre os membros do Comitê Central iugoslavo”. 13 Cfr. Fejto, o p . cit., pp. 85-86. n Ib id ., pp. 165-170. 15 Cfr. Jan Marczewski, P la n ific a tio n e t cro issa n c e é c o n o m iq u e d e s d é m o c r a tie s p o p u la ire s , cit., t. I, pp. 227-229. 18 Baseamo-nos no comunicado divulgado ao fim da conferência, versão espanhola em M u n d o O b re ro , semanário do PCE, edição de 7-8-1947. 17 A p u d Dedijer, T ito p a r le . . . , cit., pp. 326-327. Sublinhados nossos. 18 A descrição desta reunião soviético-iugoslava encontra-se em T ito p a r l e .. ., cit., pp. 328-337. De acordo com os iugoslavos, Stalin exigia a urgente criação 577

da federação bùlgaro-iugoslava, à base do plano búlgaro, como instrumento para romper a unidade recém-realizada, sobre bases federais, dos povos iugoslavos (ib id ., p. 336). Stalin convidou os iugoslavos a “engolir” a Albânia. Ao mesmo tempo, os serviços secretos soviéticos incitavam os albaneses contra os iugoslavos. Na reunião com os búlgaros e os iugoslavos, o próprio Stalin revelou que os dirigentes poloneses consideravam excelente o projeto Dimitrov-Tito (cfr T ito p a r l e . . . , cit., p. 329). 20 Em 1951 publicou-se o L iv r o B r a n c o iugoslavo, com uma série de teste­ munhos sobre as atividades dos serviços secretos soviéticos — dele tomamos a passagem citada. Num jantar para os dirigentes iugoslavos, por ele organizado, Stalin ca­ racterizou Togliatti como um teórico capaz de escrever um bom artigo mas inepto para dirigir o povo. Em Thorez via um grande defeito: “Um cão que na° n'° rd®j P®’° menos é capaz de arreganhar os dentes. Thorez não é capaz nem disto . Considerava a P a sio n a ria incapaz de dominar-se e de dirigir o partido em condiçoes adversas. Depois, declarou: “Tito deve se precaver para que nada lhe aconteça, porque eu não durarei, mas ele ficará para a Europa”. Durante esta passagem da delegação iugoslava por Moscou ocorreu a morte e Kalinin. No dia do enterro, Tito e os outros iugoslavos, como todos os convidados estrangeiros, foram colocados à esquerda do estrado principal ocupado por Stalin e pelos membros do Birô Político soviético. De repente no instante em que a cerimônia ia começar, Stalin fez com que chamassem tito para junto das autoridades soviéticas. Ele foi a única das personalidades comunistas estrangeiras presentes que mereceu esta honra (cfr. T ito p a r l e . . . , pp. 286-287, 289). 22 Cfr. Fejto, o p . cit., t. I, pp. 225-226. ” ? ° d ! ú m°- teT ° qUÊ ° P raV da Publicava a n°‘a oficiosa criticando declaraçao de Dimitrov, Stalin convocava urgentemente os dirigentes iugoslavos e búlgaros. Com esta reunião se inicia a fase aguda da crise soviético-iugoslava. O comportamento de Stalin revela a sua inquietude com a possibilidade de as iniciativas de Tito e Dimitrov encontrarem eco nas outras democracias populares. Como já indicamos (nota 18), a síntese desta reunião encontra-se em T ito p a r l e . . . , pp. 328-337; o biógrafo de Tito apota-se em informações de Kardelj e Djilas. 24 T?dos “ tes dados, como os outros seguintes, foram tomados da corresponencia trocada entre Stalin e Tito, publicada pelos iugoslavos (cfr. nota 9). 25 * esta reunião d0 Comitê Central, Rankovitch informou sobre as atividades dos serviços secretos soviéticos. Grande parte dos agentes recrutados por estes pertenciam à emigração russa instalada na Iugoslávia depois da revolução de utubro, ou seja, eram russos brancos, pelo menos por seus antecedentes. 26 A 19 de abril, Dimitrov, em viagem a Praga, liderando uma delegação Ulgara, passou por Belgrado. Djilas foi saudá-lo na estação ferroviária e Dimitrov aproveitou um momento em que estavam a sós para dizer-lhe: antenham-se firmes!”. Acertou-se, para o seu regresso, uma entrevista com os dirigentes iugoslavos. No intervalo, chegou a resposta do Partido Co­ munista Búlgaro apoiando os soviéticos. A entrevista com Dimitrov não se realizou (cfr. T ito p a r l e . . . , p. 363). 27 dmaTom dn h94,4’ °H alemãeSJm0ntaram uma o p c r ^ ã o de grande envergadura, com o objetivo de se apoderarem do quartel-general de Tito. Por pouco oner!Ía T m T ° CalU, naS mã0S de uraa unidade de Pára-quedistas - a operaçao falhou. O quartel-general do exército guerrilheiro conseguiu salvar seus arquivos e suas estações de rádio. O ataque alemão não era o produto 578

ile uma situação de crise do movimento de hbertaçao nacional ao contrário: foi uma desesperada tentativa do ocupante para reverter o quadro. Num artigo do P ra vd a , de 4 de junho, dizia-se: “O fracasso da tentativa de captura do Estado-Maior do marechal Tito não é segredo para ninguém. O ataque hitleriano foi desbaratado pela heróica resistência do exército iugoslavo, r ] Na Itália, Kesselring precisa de reforços. [...] Os alemaes desejariam liberar algumas das divisões empregadas na Iugoslávia, mas o marechal Tito impediu esses planos. A frente iugoslava absorve importantes forças alemas e impossibilita qualquer ajuda a Kesselring”. JS Cfr. T ito p a r le . . ., p. 369. w O documento intitula-se R e s o lu ç ã o d o C e n tr o d e I n fo r m a ç ã o d o s P a rtid o s C o m u n is ta s so b r e a S itu a ç ã o n o P a rtid o C o m u n is ta da Iu g o slá v ia (versão es­ panhola publicada em N u e s tr a B a n d e ra , número 28, 1948). Consta de oito pontos: “1. O Centro de Informação considera que a direção do Partido Comunista da Iugoslávia segue, nestes últimos tempos, nas questões fundamentais da política externa e interna, uma linha falsa, que representa um desvio da doutrina marxista-leninista. Em conseqüência, o Centro de Informação apro­ va a ação do Comitê Central do Partido Comunista (bolchevique) da URbb, que tomou a iniciativa de desmascarar a política errônea do Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslávia e, em primeiro lugar, a dos camaradas Tito, Kardelj, Djilas e Rankovitch. 2 O Centro de Informação comprova que a direção do Partido Comu­ nista da Iugoslávia pratica uma política de inimizade em relação à Umao Soviética e ao Partido Comunista (bolchevique) da URSS. Permitiu o desen­ volvimento, na Iugoslávia, de uma indigna política de difamaçao contra os especialistas militares soviéticos e de descrédito do exército sovietico. Quan­ to aos especialistas civis soviéticos na Iugoslávia, criou-se para eles um regime especial em virtude do qual estão submetidos à vigilância dos organismos de segurança do Estado iugoslavo e seguidos por seus agentes. O represen­ tante do Partido Comunista (bolchevique) da URSS no C e n tr o de Informação, camarada Yudin, e numerosos representantes oficiais da URSS na lugosla foram submetidos à mesma vigilância por parte dos organismos de segurança do Estado iugoslavo. Estes fatos, e outros similares, atestam que os dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia adotaram uma posição indigna dos comunistas; os dirigentes iugoslavos começaram a identificar a política externa da U b com a das potências imperialistas, e se conduzem diante da URSb como se conduzem diante dos Estados burgueses. Em virtude desta atitude anti-soviética, difundiu-se no Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslavia uma caluniosa propaganda sobre a ‘degeneração’ da URSS, tomada do arsenal do trotskismo contra-revolucionário. O Centro de Informação condena esta orientação anti-soviética dos diri­ gentes do Partido Comunista da Iugoslávia, incompatível com o marxismoleninismo e própria apenas de nacionalistas. 3. Os dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia, na sua política interna, afastam-se das posições da classe operária e rompem com a teoria marxista das classes e da luta de classes. Negam o fato do crescimento dos elementos capitalistas em seu país e a agudização da luta de classes no campo iugoslavo dele derivada. Esta negativa tem origem na tese oportunista segundo a qual, no período de transição do capitalismo ao socialismo, a luta de classes não se agrava, como ensina o marxismo-leninismo, mas se extingue, como o afirmavam os oportunistas da classe de Bukharin, que propagavam a teoria da integração pacífica do capitalismo no socialismo. [... ] 579

4. O Centro de Informação considera que a direção do Partido Comu­ nista da Iugoslávia revisa a doutrina marxista-leninista sobre o partido. De acordo com a teoria marxista-leninista, o partido é a força dirigente e orien­ tadora fundamental no país, com programa próprio e sem diluir-se na massa dos sem-partido. [. .. ] Mas, na Iugoslávia, é a Frente Popular e não o Partido Comunista que se considera a força dirigente no país. Os dirigentes iugoslavos reduzem o papel do Partido Comunista; diluem-no, de fato, na Frente Popular sem partido. [...] Os dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia repetem os erros dos mencheviques russos a respeito da diluição do partido marxista na organização das massas sem partido. Tudo isto de­ monstra a existência de tendências liquidacionistas. [...] 5. O Centro de Informação considera que o regime burocrático criado pelos dirigentes iugoslavos no seio do partido é nefasto para a vida e o desen­ volvimento do Partido Comunista da Iugoslávia. No partido inexistem demo­ cracia interna e eleições para os órgãos dirigentes, inexistem a crítica e a autocrítica. [...] É inteiramente intolerável que no Partido Comunista da Iugoslávia sejam pisoteados os direitos mais elementares dos seus membros, já que a menor critica das normas errôneas no partido pode provocar severas represálias. [...] O Centro de Informação considera que não se pode tolerar num partido comunista um regime tão vergonhoso, puramente turco e ter­ rorista. [.. . ] 6. Em lugar de honradamente aceitar a crítica e colocar-se no terreno da correção bolchevique dos erros cometidos, os dirigentes do Partido Comu­ nista da Iugoslávia, possuídos de uma ambição ilimitada, de arrogância e presunção, receberam a crítica com animosidade, manifestaram hostilidade diante dela e se lançaram por uma via antipartido, negando completamente seus erros, violando as lições do marxismo-leninismo sobre a atitude do parti­ do político em relação a seus erros e, desta forma, agravando-os contra o partido. Os dirigentes iugoslavos, que mostraram a sua falta de argumentos diante da crítica do Comitê Central do Partido Comunista (bolchevique) da URSS e dos Comitês Centrais de outros partidos irmãos, tomaram o caminho da mentira flagrante em face do seu partido e do seu povo, escondendo do Partido Comunista da Iugoslávia a crítica da política errônea do seu Comitê Central e ocultando também do partido e do povo as causas reais da repres­ são dirigida contra os camaradas Juyovitch e Hebrang. Nos últimos tempos, depois da crítica feita pelo Comitê Central do Partido Comunista (bolchevique) da URSS e dos partidos irmãos acerca dos erros cometidos pelos dirigentes iugoslavos, estes tentaram promulgar uma série de novas disposições esquerdistas [a referência é ao conjunto de dispo­ sições para liquidar o pequeno comércio e a pequena indústria, os k u la k s , etc. F C ], O Centro de Informação considera que os decretos e as decla­ rações esquerdistas dos dirigentes iugoslavos, por serem demagógicos e irrea­ lizáveis no momento atual, apenas podem comprometer a causa da construção socialista na Iugoslávia. Portanto, o Centro de Informação julga esta tática aventureira como uma manobra indigna e como um jogo político intole­ rável. [. ..] [O ponto 7 condena a negativa do partido iugoslavo ao convite para participar da reunião do Centro de Informação.] 8. Levando em conta o exposto, o Centro de Informação se solidariza com a apreciação da situação no Partido Comunista da Iugoslávia e com a crítica dos erros cometidos pelo seu Comitê Central levantada nas cartas enviadas, entre março e maio de 1948, pelo Comitê Central do Partido Co­ munista (bolchevique) da URSS. F~

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Por unanimidade, o Centro de Informação conclui que os dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia — por sua orientação anti-soviética e antipartido incompatível com o marxismo-leninismo, por toda a sua conduta e a sua negativa em participar da reunião do Centro de Informação — colocaram-se na oposição em face dos partidos comunistas que compõem este Centro, lançaram-se na via de separação da frente única socialista contra o imperialismo e na via da traição à causa da solidariedade internacional dos trabalhadores, transitando para posições nacionalistas. O Centro de Informação condena esta política e a atitude antipartido do Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslávia. O Centro de Informação comprova que, pelo exposto, o Comitê Central do Partido Comunista da Iugoslávia se coloca — e coloca o partido — fora da frente única comunista, fora da família dos partidos comunistas irmãos e, conseqüentemente, fora das fileiras do Centro de Informação. [.. . ] Os dirigentes iugoslavos, pelo visto, não compreendem — ou talvez se portem como se não compreendessem — que semelhante posição naciona­ lista só pode conduzir à degeneração da Iugoslávia numa república burguesa ordinária, à perda da sua independência e à sua transformação em colônia dos países imperialistas. [...] Cabe às forças sadias do Partido Comunista da Iugoslávia a tarefa de obrigar seus dirigentes a reconhecer aberta e honradamente os seus erros e a corrigi-los, a romper com o nacionalismo, a voltar ao internacionalismo e a fortalecer, por todos os meios, a frente única socialista contra o impe­ rialismo; ou, se os atuais dirigentes do Partido Comunista da Iugoslávia mos­ trarem-se incapazes para tanto, trocá-los e promover uma direção internacionalista.” 30 Cfr. T ito p a r le . .., p. 373. Os soviéticos nunca desmentiram esta informação, que um dos participantes da reunião revelou aos iugoslavos. Ademais, o giro posteriormente tomado pela campanha contra Tito constitui uma confirmação indireta dela. 31 Cfr. T ito p a r l e . . . , p. 375. 32 A p u d Fejto, o p . cit., t. I, p. 232. 33 Discurso de Kruschev em Sofia, a 3 de junho de 1955, segundo o texto publicado no P ra v d a de 4-7-1955. 3* Utilizamos a versão espanhola integral da nota soviética, publicada em M u n d o O b re ro , edição de 25 de agosto de 1949. Reproduzimos, sem qualquer omissão, a descrição feita na nota do tratamento sofrido pelos “cidadãos soviéticos” detidos em Belgrado. É de supor que a nota carregou nas tintas. Para medir o incrível cinismo deste documento do governo soviético, resta comparar aquele tratamento com os testemunhos de Artur London, Soljenitzyn, Guinsburg, etc., sobre os métodos da polícia de Beria. 35 Dados do T h e N e w Y o r k , a p u d Zisis Zografos, “Algumas lições da guerra civil na Grécia”, R e v u e I n te r n a tio n a le (órgão do movimento comunista edi­ tado em Praga), n.° 11, 1964. 3ó Na revista E s p r it (n.° 2, 1950), J. M. Domenach publicou um artigo no qual relata as suas entrevistas com guerrilheiros gregos refugiados na parte iugos­ lava da Macedònia, entre 15 e 20 de agosto de 1949. Segundo as informações desses guerrilheiros, a eliminação de Markos, em outubro de 1948, não foi discutida com os combatentes — só foram avisados os chefes das grandes unidades. Somente dois meses depois (dezembro de 1948), reuniu-se uma conferência do Partido Comunista grego. Mais tarde, informou-se aos comba­ tentes que Markos estava doente. Pouco a pouco, circulou a notícia 581

de que ele fora eliminado por “oportunismo”. A substituição de Markos por Zachariades teve efeitos desmoralizantes no exército popular. Criou-se a impressão de que Zachariades tinha por missão liqüidar a guerra. A luta contra os “titoístas” tomou grandes proporções. Os gregos de origem macedônica que combatiam no exército guerrilheiro (cerca de 18.000) foram afastados de todos os comandos importantes, sob a suspeita de simpatizarem com a idéia de uma grande Macedônia, agrupada na República Popular da Macedônia da Federação iugoslava. Zachariades ordenou o corte de quaisquer comunicações entre a zona do território grego ocupada pelos guerrilheiros e a Iugoslávia. Um chefe de uma guarda de fronteiras afirmou a Domenach ter recebido um telegrama do Estado-Maior de Zachariades ordenando que se disparasse sobre quem tentasse cruzar a fronteira iugoslava — esta fron­ teira fora fechada por Zachariades desde a primavera de 1949. As conclusões de Domenach resumem-se em que os chefes soviéticos te­ miam a formação, na Grécia, de um segundo titoísmo, além de considerar a guerra grega perigosa e inoportuna. Por isto, ordenaram aos chefes comunistas gregos pró-soviéticos que recusassem qualquer ajuda iugoslava e o fim da guerra civil. Realizavam assim uma dupla operação: demonstravam boa vontade em face das chancelarias ocidentais e denunciavam aos outros par­ tidos comunistas e à opinião pública mundial a “infâmia” de Tilo. 37 Pierre Albouy, “La Grèce et Ia démocratie”, L a P ensée, n.° 29, 1950, p. 61. 38 Na Iugoslávia refugiaram-se cerca de 25.000 combatentes gregos. Uma quan­ tidade ponderável — não temos cifras — refugiou-se na Albânia. Os suspeitos de titoísmo foram internados em campos. É de supor que os iugoslavos tam­ bém tomaram as suas medidas contra os partidários do Centro de Informa­ ção dos Partidos Comunistas. 3’ Mais adiante voltaremos a este ponto. Os dados existentes, que apenas revelam aspectos parciais, encontram-se fundamentalmente em V A v e u , de Artur London (Gallimard, Paris, 1968), P ro c è s à P rague, de Eugen Lobl (Stok, Paris, 1969) e em algumas informações publicadas pela imprensa tchecoslovaca durante o seu efêmero período de liberdade. Sobre o processo de Rajk, pode-se consultar o livro de Savarius Vincent (Bela Ezasz), V o lo n la ire s p o u r V é c h a fa u d (Julliard, Paris, 1963). A versão oficial do processo de Rajk encontra-se no L iv r e b le u (L a szlo R a jk e t se s c o m p lic e s d e v a n t le trib u n a l d u p e u p le ), Éd. Réunis, Paris, 1959; a do processo de Kostov, em L e p r o c è s d e T r a itc h o K o s to v e t d e so n g ro u p e , Sofia, 1949; a do processo de Slansky, no livro P ro c è s d e s d irig ea n ts d u c e n tr e d e co n sp ira tio n c o n tr e 1’É ta t, d irig é p a r R u d o lf S la n sk i, Orbis, Praga, 1953. 40 Cfr. Fejto, o p . cit., t. I, p. 254. -*1 Da versão espanhola da ata de acusação, publicada em M u n d o O b rero , edição de 8-12-1949. 42 Cfr. Fejto, o p . cit., p. 262. -43 Resolução do Comitê Central do Partido Operário Polonês, versão espanhola integral publicada em M u n d o O b re ro , edição de 9 de setembro de 1948. 44 Utilizamos a versão integral espanhola do informe, publicada no folheto edi­ tado pelo Partido Comunista espanhol, I n fo r m e s y R e s o lu c io n e s d e i B u r ó de I n fo r m a c ió n d e lo s P a rtid o s C o m u n is ta s y O b rero s, segunda quinzena de novembro de 1949. Todas as citações seguintes — com sublinhados nossos — são extraídas desta fonte. Oferecemos números arredondados. Baseamo-nos nos dados fornecidos por Fejto, o p . cit., e na obra já citada anteriormente, de B. Lazitch sobre os 582

partidos comunistas europeus. Os dois historiadores utilizam fontes oficiais dos partidos comunistas. 46 Cfr. Fejto, o p . cit., pp. 246-247. L ite r a r n i L isti, quanto à Tchecoslováquia, considerou a cifra de 30.000 presos (L e M o n d e , 31 de março de 1968). 47 O autor refere-se a Gustav Husak, que, depois da intervenção soviética na Tchecoslováquia, tornou-se um dos notáveis do novo núcleo dirigente. (N. do T.) Uma versão global detalhada dos processos e depurações encontra-se na obra já citada de Fejto, t. I, parte IV, capítulos III a VI. 49 Cfr. Kostas Papaioannu, L ’Id é o lo g ie F ro id e , J.-J Pauvert, Paris, 1967, p. 141. 50 Cfr. A. London, L ’A v e u , ed. cit., pp. 304, 312. si Ib id ., p. 313. 52 Cfr. Papaioannu, o p . cit., p. 140. 53 Esta obra de A. London constituiu a base para o roteiro cinematográfico do mesmo tftulo (A C o n fis sã o ), preparado por Jorge Semprún ( N . d o T .). 54 D e v e -s e d u v id a r d e tu d o — está nas respostas de Marx, em 1865, a um questionário preparado por suas filhas; cfr. E v o c a ç õ e s d e M a r x e E n g e ls, em russo, Ed. Literatura Política, Moscou, 1965. 55 Como já indicamos na nota 39, apesar dos dados contidos em L ’A v e u e noutros testemunhos, aspectos fundamentais da intervenção dos serviços secre­ tos soviéticos e dos dirigentes do PCUS ainda não são conhecidos. London pôde comprovar, pelos interrogatórios a que foi submetido e pelas referências que outras vítimas lhe forneceram, que o processo era dirigido por funcioná­ rios soviéticos; ele cita, por exemplo, as revelações que lhe fez, depois da sua reabilitação, em 1956, Alois Samec, antigo voluntário das Brigadas Inter­ nacionais, que durante um período colaborou com os “conselheiros soviéticos”; “Eles chegaram à Tchecoslováquia no outono de 1949, depois do processo de Rajk. Diziam que entre nós também deveria existir uma conspiração contra o Estado; que os inimigos, com o propósito de derrotar o regime socialista, estavam infiltrados em todos os níveis do partido e do aparelho governamen­ tal. Cumprindo as instruções que nos davam, procedíamos à prisão das pessoas que ‘podiam’ realizar atividades contra o Estado pelas suas funções e relações. As provas eram procuradas depois. [.. . ] Eu recebi ordens do conselheiro soviético Borisov para lhe entregar, pessoalmente, ao fim de cada interro­ gatório, uma cópia da ata estabelecida contra o acusado. Eu lhe observei que o secretário-geral do partido já recebia uma cópia de cada ata; ele me repreendeu sem contemplação, ordenando-me não discutir as suas instruções. Também tive contato com outros conselheiros soviéticos, particularmente Likhatchev e Smirnov. Eles reuniam informações comprometedoras sobre todo mundo, especialmente sobre as pessoas que ocupavam altos cargos, inclusive Slansky e Gottwald [...]” (o p . cit., pp. 82-83). Às vezes, os policiais tchecos que conduziam diretamente os interrogatórios cometiam indiscrições reveladoras da personalidade que os dirigia. Por exemplo: “Um homem como Radek resistiu por três meses. Depois, confessou tudo. Você está resistindo há quatro meses. Acredita que este jogo vai durar muito?” London deduz, com razão, que apenas um soviético poderia ter contado ao tcheco os meses de “interrogatório” suportados por Radek (cfr. p. 153). Sobre a mesma questão, outras referências de London estão às pp. 44, 71-72, 120-212, 159, 227, 235-236, 256, 259, 261, 263, 267, 291, 295, 322, 329, 357, 374, 377 e 444. Durante a “primavera” tchecoslovaca, a imprensa de Praga revelou que o próprio Mikoyan interviera diretamente em determinadas fases do proces­ so de Slansky. 583

No caso da Polônia a intervenção soviética tomou formas particular­ mente descaradas. Ao mesmo tempo em que Gomulka, o general Spichalski e outros dirigentes comunistas poloneses eram excluídos do partido (novem­ bro de 1949), o governo polonês, acatando ordens de Moscou, nomeava ministro da Defesa da Polônia o marechal so v ié tic o Rokosovski (de origem polonesa, mas formado na Rússia e falando o polonês com forte sotaque russo), que se rodeou de especialistas soviéticos e iniciou a depuração no exército polonês, que culminou, em agosto de 1951, com um processo contra generais e oficiais. Às vésperas deste processo, Molotov, juntamente com o marechal Zhukov, esteve em Varsóvia e pronunciou um discurso exigindo a intensificação da luta contra “os nacionalistas de direita e os titoístas de qualquer espécie” (cfr. Fejto, o p . cit., t. I, p. 226). 56 Cfr. o livro T o g lia tti e S ta lin (Sugar, Milão, 1961), de Giulio Seniga, ex-fun­ cionário do Partido Comunista Italiano. Seniga relata uma reunião secreta, celebrada em Moscou, de 12 a 14 de julho de 1953, na qual o PCI esteve representado por Pietro Secchia. Os soviéticos informaram que Beria tentara ir muito longe no caminho das concessões ao Ocidente, propunha o aban­ dono da construção do socialismo na República Democrática Alemã e a sua transformação num Estado burguês. E, como prova decisiva da sua condição de agente dos serviços secretos imperialistas, mencionaram a carta descoberta quando da sua prisão. Como se vê, as “provas” da traição de Beria eram idênticas às que Beria utilizara para enviar ao patíbulo ou ao cárcere milhares de comunistas das democracias populares. 57 Ignacio Gallego, “La lucha contra el titismo es un deber revolucionário de los comunistas”, N u e s tr a B a n d e ra , n.° 4, 1950, p. 176. As citações que, neste ponto, fazemos de textos de alguns dirigentes comunistas espanhóis, franceses, chineses, etc., não significam que se distinguissem particularmente na campanha contra Tito. Nesta questão, as responsabilidades são gerais e a nossa seleção de textos inspira-se unicamente na sua representatividade. 58 Liu Sho-Shi, “Internacionalismo y nacionalismo”, P o r u n a p a z d u ra d e ra , p o r u m d e m o c r a c ia p o p u la r, l.° de junho de 1949. Este semanário era a revista oficial do Centro de Informação dos Partidos Comunistas e tudo indica que seu nome foi escolhido pelo próprio Stalin. 59 Georges Cogniot, “Redoublons de vigilance dans la lutte contre la clique de Tito”, C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 6, 1950, p. 47. 60 Ib id ., p. 48. A falsa informação de que os iugoslavos estavam instalando rampas de lançamento de V-2 foi divulgada pela imprensa burguesa italiana em 1948. Imediatamente, a imprensa comunista européia deu ressonância ao boato. 8' Ib id ., p. 49. 62 Ib id ., p. 50. 63 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 6, 1951, pp. 657-659. 64 Cfr. V I I C o n g re sso d e i P a rti C o m u n is ta Ita lia n o (R e s o c c o n to ), Ed. Cul­ tura Sociale, 1954. O volume contém cerca de 50 intervenções realizadas durante o congresso. 65 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 5, 1950, p. 9. 66 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 6, 1951, p. 66. 67 Cfr. N o u v e lle C r itiq u e , n.° 25, 1951, p. 19. 68 Cfr. M u n d o O b re ro , edição de 8-12-1949. Monzón — que dirigiu a organi­ zação do partido na França e na Espanha durante a Segunda Guerra Mundial, sendo preso no seu final pela polícia franquista (passou vários anos no 584

cárcere) —, depois do XX Congresso do PCUS, recebeu uma carta de Dolores Ibárruri na qual se reconhecia que as acusações que lhe foram dirigi­ das eram falsas. Mas nunca foi reabilitado publicamente. Sobre Comorera, secretário-geral do PSU da Catalunha, seus amigos editaram recentemente um panfleto reivindicando a sua memória ( A p o r ta d o a la h isto ria p o lític a , so c ia l i n a c io n a l d e la classe o b re ra d e C a ta lu n y a , Publications Treball Mo­ dem, Paris, 1969). 69 Cfr. Documento do Birô Político do PCF, de 3 de outubro de 1952, incluído em C a h ie rs d u C o m m u n is m e , n.° 10, 1952, p. 953. André Marty escreveu um livro no qual demonstrou a falsidade das acusações infamantes que lhe imputaram e expôs as suas posições políticas ( L ’A ffa ir e M a r ty , Deux Rives, Paris, 1955). 70 Cfr. H is to ir e d u P a rti C o m m u n is te F ra n ç a is (U n ir), ed. cit., t. III, pp. 98, 99-100. 71 Ib id ., pp. 63-64. 72 Cfr. David Caute, L e C o m m u n is m e e t le s In te lle c tu e ls F ra n ça is, Gallimard. Paris, 1967. Nas pp. 208-220 dessa obra se expõem as reações dos intelectuais comunistas franceses e da esquerda intelectual não comunista no período do titoísmo e dos processos. 73 Cfr. Caute, o p . cit., p. 219. 74 Cfr. P ra vd a , edição de 21-12-1949. 75 Cfr. C a h ie rs d u C o m m u n is m e , maio de 1950, p. 24. 76 Cfr. L e s L e ttr e s F ra n ça ises, edição de 4 de março de 1953. 77 No comunicado de 13 de janeiro se citavam os nomes de nove personalidades médicas — entre elas, Vinogradov, perito médico no processo de Bukharin a propósito dos “assassinatos” de Gorki, Pechkov, Kuibichev e outros. Cinco dos acusados confessaram trabalhar para a espionagem americana, através da organização judaica J o in t. E três se declararam agentes do Intelligence Service. Dias depois, a doutora Lidia Timachuk foi condecorada por sua colaboração na denúncia dos médicos-assassinos. A imprensa soviética apre­ sentou-a como heroína nacional. O comunicado de 4 de abril mencionava treze nomes, dos quais seis não figuravam na lista de 13 de janeiro. É des­ conhecida a sorte de dois médicos que, relacionados nesta, não constavam da lista do dia 4 — pode-se supor que morreram sob tortura ou eram agentes de Beria, como a doutora Timachuk. De acordo com diversos kremlinólogos que estudaram este caso tene­ broso (Schapiro, H. Salisbury, W. Leonhard), Stalin, nos seus últimos meses, preparava um grande expurgo. A mulher de Molotov, relacionada ao pro­ blema dos médicos, foi presa e deportada. Também foram atingidos dois filhos de Mikoyan. Todos os principais dirigentes se sentiam ameaçados e Stalin sentia-se ameaçado por todos. O episódio dos médicos teria sido ura primeiro capítulo desta luta feroz nas altas esferas do “partido-guia”, a que a morte de Stalin (cujas circunstâncias não são claras até hoje) deu um giro inesperado. Krishnan Menon, personalidade governamental hindu que se entrevistou com Stalin pouco antes da sua morte, contou que o ditador dese­ nhou numa folha de papel a figura de uns lobos e disse ao visitante que o camponês russo os conhecia bem, a seus velhos inimigos, e sabia como abatê-los — mas que, igualmente, sabiam-no os lobos (cfr. P. Broué, L e P arti B o lc h e v iq u e , cit., pp. 460-462, onde se acha um resumo de tudo o que se conhece sobre esta questão). 78 Mayer Azew foi um agente provocador da polícia czarista que conseguiu converter-se, durante quatro anos (1904-1907), em chefe dos terroristas 585

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russos. A polícia impedia, no último instante, a maior parte dos atentados, mas deixava que alguns se efetivassem para justificar, ante a opinião pú­ blica, a repressão contra os revolucionários. Em janeiro de 1953, um escritor comunista francês recorreu a este precedente histórico, entre outros, para argumentar que os processos das democracias populares não tinham nada de surpreendente (cfr. L a P e n sé e , n.° 46, 1953). Cfr. C a h ie r s d u C o m m im is m e , n.° 8-9, 1953, p. 925.

4 . A ALTERNATIVA ORIENTAL

Se os comunistas, que são parte do grande povo chinês, carne da sua carne, aplicam o marxismo sem levar em conta as par­ ticularidades da China, daí resultará um marxismo abstrato, esvaziado de qualquer conteúdo. A tarefa que o partido deve com­ preender e resolver urgentemente é aplicar o marxismo às condições concretas da C h i­ na. Há que acabar com as fórmulas feitas no estrangeiro. [. . . ] Há que superar o dog­ matismo e adquirir a maneira e o estilo chineses. [. .. ] Separar o conteúdo interna­ cional da form a nacional é o traço carac­ terístico daqueles que nada compreendem do internacionalismo. Mao, 1938.

Em dezembro de 1947 — quando, nas duas Europas, os parti­ dos comunistas ingressavam na tenebrosa era do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas, enquanto o capitalismo adquiria um novo impulso em todo o Ocidente — , Mao Tse-tung observava, diante do Comitê Central do Partido Comunista Chinês: “ Produziu-se uma viragem na guerra revolucionária do povo chinês. O exército popu­ lar de libertação rechaçou a ofensiva de vários milhões de soldados das tropas reacionárias de Chiang Kai-Chek, lacaio dos Estados Uni­ dos, e passou à sua ofensiva. [. . . ] Esta é uma viragem histó­ rica. [. . . ] A dominação do imperialismo na China, prolongada por mais de um século, transita da expansão para a liquidação. Este é um grande acontecimento. É grande, porque envolve um país de 475 milhões de habitantes e, sem dúvida, será vitorioso em todo o terri­ tório. É grande, ademais, porque ocorre neste Oriente onde mais de um bilhão de seres humanos — a metade da humanidade — sofrem a opressão imperialista” '. Realmente, a inflexão experimentada pela guerra civil chinesa na segunda metade de 1947 foi histórica. Desde então, a ofensiva do exército revolucionário se desenvolveu, ininter­ rupta e avassaladoramente, até a vitória da revolução em todo o país. A 1 “ de outubro de 1949 nascia oficialmente a República Popular da China. Enquanto o movimento operário ocidental, malo­ 587

grada a excepcional oportunidade que lhe oferecera a segunda grande crise do sistema capitalista, se atolava na via reformista, um exér­ cito de camponeses, com líderes majoritariamente oriundos da inte­ lectualidade, irrompia sobre Pequim e Changai, Nanquim e Cantão. As cabeças-de-ponte do capitalismo europeu e americano na área oriental do continente asiático caíam nas mãos da maior revolução agrária e antiimperialista da história, que se propunha — ou melhor: como o propunha o partido que a chefiada e que tomara o poder em outubro de 1949 — converter-se em revolução socialista, Até 1917, todos os marxistas — Lênin incluído — conside­ ravam que as sociedades asiáticas deveriam transitar, inevitavel­ mente, pela etapa do desenvolvimento capitalista. No II Congresso da Internacional Comunista, Lênin revisou este ponto de vista e formulou a hipótese segundo a qual, “com a ajuda do proletariado dos países avançados”, as revoluções do Oriente poderiam queimar a etapa capitalista. O Partido Comunista Chinês dispôs-se a realizar o primeiro ensaio histórico deste tipo2. Naturalmente este não se iludia acerca da ajuda do proletariado dos países avançados, que, além de não ter tomado o poder, não movera um só dedo contra a intervenção americana em apoio a Chiang Kai-Chek — mas, por outro lado, existiam a União Soviética e as democracias popu­ lares. A vitória da União Soviética sobre a Alemanha hitleriana fora já um dos fatores decisivos na criação das condições interna­ cionais que possibilitaram o triunfo da revolução chinesa — e não só pelo peso que tivera na derrota do Japão, mas porque, no término da guerra, o poderio militar da União Soviética, por si só, constituíra um freio considerável à intervenção americana na China 3. No en­ tanto, a possibilidade de contar com a assistência soviética na etapa que se abria apresentava-se aos dirigentes comunistas chineses como hipotecada a graves condicionantes. A “guerra fria” desencadeada por Stalin contra a revolução que ousara preservar a sua autonomia e a sua originalidade e os métodos que ele utilizava para uniformi­ zar e controlar as demais democracias populares mostravam drama­ ticamente à nova China a alternativa a que o Kremlin poderia obri­ gá-la: ou vassalo ou inimigo. Mao e seus colaboradores mais próximos tinham consciência desta alternativa? Não há informações que embasem uma resposta categórica. De qualquer forma, o grupo de Mao tinha uma expe­ riência das relações com Moscou (análoga, sob certos aspectos, à adquirida por Tito e seus colaboradores durante a guerra de liber588

tação e, sob outros aspectos, mais ampla que a dos iugoslavos) que lhe podia facilitar a compreensão do conflito soviético-iugoslavo. No mesmo sentido operavam certos traços da formação ideológica e da prática política do núcleo dirigente do partido chinês, traços deri­ vados das características objetivas da revolução chinesa e conscien­ temente assumidos desde que Mao ascendeu à direção do partido. Sem repetir o que já dissemos em outro capítulo, consagrado à pri­ meira etapa da revolução chinesa, vamos nos referir a alguns momen­ tos do período posterior que estão diretamente relacionados com este problema.

Revolução chinesa e “grande aliança” No final do capítulo citado, reproduzimos a declaração de Mao, de 1943, segundo a qual, depois do seu VII Congresso, a Interna­ cional Comunista não teve mais ingerência nos problemas internos do partido chinês. O fato era explicável — dizíamos — pela coin­ cidência que existiu, a partir de 1935, entre a política de frente única antijaponesa do Partido Comunista Chinês, a política de frente popular da IC e a política externa soviética do período. Mas esta coincidência não excluía divergências importantes. Enquanto a polí­ tica de frente popular da IC se ajustou estreitamente às exigências da política externa soviética, o mesmo não se passou com a política de frente única antijaponesa do partido chinês. Para a direção maoísta, esta tática incluía a luta permanente para assegurar a hegemo­ nia das forças revolucionárias no interior da temporária aliança com o Kuomintang. A ótica de Moscou era distinta. Ao firmar, em 1937, um pacto com o governo do Kuomintang, que incluía ajuda em material bélico e especialistas militares4, o governo soviético estava interessado, antes de mais, em que Chiang dirigisse seu exér­ cito à guerra contra o Japão, ao invés de alocar boa parte dele ao bloqueio e ao fustigamento das bases comunistas. Mas, para Chiang, o inimigo principal era o comunismo — ou, como ele mesmo afir­ mou certa feita: “Os japoneses são uma doença epidérmica; os comunistas são uma enfermidade profunda” 5. A guerra civil con­ tínua entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang só poderia ser evitada se Mao fizesse concessões fundamentais, se se submetesse ao comando do Kuomintang, se dissolvesse as suas forças armadas no exército do Kuomintang. E, neste sentido, pressionava-o o Krem­ 589

lin, valendo-se de velhos quadros do partido chinês, como Wang Ming, que apoiavam incondicionalmente a política staliniana6. A pressão tornou-se mais direta na fase seguinte à invasão da URSS pela Alemanha. Em abril de 1941, Moscou, abandonando a sua política ante­ rior de aliança com a China oficial, firmou o pacto de não agressão com o Japão, a que já nos referimos em outro lugar. Diante deste gesto, que o colocava em situação análoga à criada para os partidos comunistas europeus pelo pacto germano-soviético, o partido chinês guardou um silêncio eloqüente. O pacto de abril facilitava ao Japão a consolidação e a ampliação das posições conquistadas na China e, particularmente, tornava disponíveis as forças japonesas do norte do país, que podiam ser acionadas contra as principais bases comunistas7. Stalin — é supérfluo dizê-lo — não consultou os dirigentes comu­ nistas chineses quando decidiu firmar o pacto com o Japão; e, pelo que se sabe hoje, não lhes proporcionara ajuda militar no período precedente (1937-1940), ao passo que a concedia ao Kuomintang 8. Mas quando a Alemanha atacou a União Soviética e surgiu o perigo de que, apesar do pacto, o Japão fizesse o mesmo, então Stalin lem­ brou-se da existência dos comunistas chineses. E lhes pediu que em­ pregassem vigorosamente as suas forças militares contra as japone­ sas, muito superiores; pediu-lhes que fizessem esforços (isto é, con­ cessões) para estreitar a unidade com o Kuomintang (para que tam­ bém este concentrasse as suas forças militares contra o ocupante). Recentemente, o fato foi revelado por Kommunist, a revista oficial do partido soviético: “Mao e seus sectários sabotaram abertamente a proposta do nosso partido: paralisar as forças japonesas através de uma ação comum (PCC-Kuomintang) e impedir que elas atacas­ sem a União Soviética no momento em que o exército hitleriano alcançava êxitos na frente germano-soviética”. “A passividade de Mao na guerra contra o Japão, quando os interesses do proletariado internacional exigiam a acentuação máxima das operações antifas­ cistas — continua a revista —, é comprovada por inúmeros fatos. Basta observar que, a partir de 1941-1942, os efetivos do exército popular acionados contra os japoneses não pararam de diminuir. O correspondente soviético em Yenan, em janeiro de 1943, informava que todas as tropas tinham ordem de não realizar ações contra os japoneses e de recuar, se elas se dessem. Na medida do possível, deviam procurar uma trégua” y. De forma adulterada, e mesmo ri­ diculamente caluniosa (a passividade de Mao na guerra contra o Ja­

pão!), esta versão de Kommunist revela o conflito que efetivamente existiu entre a estratégia de Mao e a de Stalin. Considerando a esmagadora superioridade japonesa em arma­ mento e em termos de organização militar regular, Mao recusou-se sistematicamente a comprometer o exército revolucionário em bata­ lhas de tipo convencional. Aplicou em grande escala a tática guerri­ lheira, teorizada e experimentada desde o período de Chiangsi. “As forças comunistas — escreve um dos ocidentais que melhor conhe­ ce a questão — tiveram que desenvolver as suas operações de ma­ neira extremamente fragmentária, em razão, por um lado, dos seus objetivos políticos, que as levavam a se espalhar por áreas cada vez maiores, para melhor contactar com a população e, por outro, da sua extrema inferioridade material diante dos japoneses. Praticaram assim uma guerra de guerrilhas mais afastada do modelo de guerra regular que as campanhas de Chiangsi e nunca ultrapassaram o es­ calão das pequenas unidades, alcançando, no máximo, o nível do regimento” ,0. Esta tática de combate articulava-se intimamente com a implantação do novo poder revolucionário em grandes zonas ru­ rais no interior das províncias ocupadas pelos japoneses. Numa pa­ lavra, Mao aplicava a estratégia da “guerra prolongada”, formulada em 1938. Não excluía a passagem à guerra de manobra numa fase posterior: “A guerra será longa e encarniçada — dizia ele. No seu curso, as tropas guerrilheiras, alcançando o necessário adestra­ mento, pouco a pouco se transformarão em tropas regulares, pouco a pouco seu combate se tornará mais convencional, e a guerra de guerrilhas se converterá em guerra de manobra” n . A repentina ca­ pitulação do Japão, depois de Hiroshima, excluiu esta fase na guer­ ra antijaponesa, mas a estratégia de Mao não se voltava apenas para o combate contra os japoneses: tinha como perspectiva a inevitável continuação da luta armada contra as forças reacionárias do Kuomintang, luta que, praticamente, nunca cessou durante a guerra an­ tijaponesa. Ele se propunha acumular — e não dispersar prematura­ mente — forças para a guerra civil. Em síntese, o objetivo final da estratégia maoísta não se restringia à libertação nacional — incluía a revolução social. A íntima articulação destes dois aspectos consti­ tui, como bem se sabe, a chave da vitória comunista na China. A estratégia político-militar de Mao colidia com a de Stalin em vários níveis. No período em que existiu o risco de um ataque japo­ nês contra o Extremo Oriente soviético — aproximadamente até 1943 —, o conflito se apresentou sobretudo a nível da tática militar, 591

como agora o reconhece Kommunist. Enquanto Mao reservava e pre­ parava forças em função dos interesses estratégicos da revolução chinesa, a Stalin o que convinha era que Mao e Chiang dirigissem imediatamente os seus contingentes militares contra os japoneses. Interesse análogo tinham os americanos, a fim de ver aliviado o seu esforço de guerra no Pacífico. Por seu turno, Chiang reservava o exército do Kuomintang para o inevitável ajuste de contas com os comunistas. Nos inícios da guerra, Chiang imaginara que os exér­ citos japoneses o ajudariam a destruir os comunistas. Aproveitando o fato de que, então, o exército popular se encontrava formalmente sob a autoridade do governo nacional, ordenou-lhe que atacasse as principais forças do invasor ,2. Mao não caiu nesta armadilha — deso­ bedeceu Chiang, como mais tarde desobedeceria a Stalin. Se houvesse aceitado as exigências deste último no período 1941-1943, o exército revolucionário se debilitaria profundamente e, na hora da capitulação japonesa, os comunistas chineses teriam-se visto à mercê do Kuo­ mintang e dos americanos. Não se pode esquecer — porque este é um dado fundamental — que, durante toda a guerra contra o Japão, o Partido Comunista Chinês não recebeu ajuda militar soviética. Stalin exigia que os comunistas chineses intensificassem as opera­ ções militares contra o exército japonês, mas nada fazia para com­ pensar a sua trágica inferioridade em matéria de armas 13. A um nível político mais geral, a estratégia de Mao também colidia com os objetivos de largo alcance do Kremlin. O projeto re­ volucionário do PCC — a vitória comunista na China — era difi­ cilmente conciliável com o grande projeto de Stalin: chegar a um acordo duradouro com os Estados Unidos, tanto na Europa quanto na Ásia, à base da divisão das zonas de influência. Na Ásia, seme­ lhante acordo só era viável, no melhor dos casos, através de um re­ gime chinês no qual os comunistas se submetessem à burguesia na­ cional, a Chiang Kai-Chek. Eis por que Stalin não parava de pres­ sionar a direção do PCC para que ela chegasse a um compromisso deste gênero com o Kuomintang, ao mesmo tempo em que apoiava a política americana voltada para fazer com que Chiang renunciasse ao seu visceral anticomunismo, concedendo algo ao PCC para que este se integrasse ao regime do Kuomintang. No outono de 1944, Roosevelt enviou o general Hurley para atuar como embaixador junto a Chiang. Antes, Hurley passou por Moscou, examinando a situação chinesa com Molotov. Baseando-se nesta entrevista, ele “convenceu” o ditador chinês de que: “ l.°) a 592

Rúggia não sustenta o Partido Comunista Chinês; 2.°) a Rússia não deseja nem dissenções nem guerra civil na China; 3°) a Rússia dese­ ja manter com a China relações as mais harmoniosas 14. Em con­ versações com Hurley (15 de abril de 1945) e com Hopkins (28 de maio), Stalin reafirma que o objetivo soviético é a reunificação da China sob a liderança de Chiang. Hopkins informa Truman que Stalin se comprometeu a “fazer tudo o que estiver a seu alcance para realizar a unidade da China sob a autoridade de Chiang KaiChek” e lhe declarou que “nenhum chefe comunista [chinês] era suficientemente forte para realizar sozinho a reunificação” 15 (em junho de 1944, Stalin dissera a Harriman: “ Comunistas, os comu­ nistas chineses? Comparados ao comunismo, são margarina diante de manteiga” 16). Estas declarações que os políticos americanos atri­ buem a Stalin poderiam ser tomadas como astúcias diplomáticas se não tivessem perfeita correspondência com outros atos e com toda a orientação geral da política staliniana da “grande aliança” . A 14 de agosto de 1945, Moscou subscreve com Chiang Kai-Chek o “Tra­ tado de amizade e aliança sino-soviético”, em razão do qual e de conformidade com o acordo secreto de Ialta — a URSS recupera as bases e concessões arrancadas à China pelo czarismo e perdidas na guerra russo-japonesa de 1905. O governo de Chiang resistiu te­ nazmente a estas pretensões de Moscou — era o momento em que as potências ocidentais renunciavam, uma atrás da outra, às suas antigas concessões na China e a esta se reconhecia o grau de potên­ cia, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e só cedeu depois que Stalin se comprometeu, de acordo com alguns historiadores, a não respaldar os comunistas chineses ,7. Os aconte­ cimentos seguintes à capitulação do Japão abonam parcialmente esta versão — mas só parcialmente. De fato, o exército libertador da Mandchúria não ofereceu aos comunistas chineses a assistência de­ cisiva que poderia lhes dar. Ao invés de lhes entregar as instalações industriais desta região (as mais importantes da China), desmontouas e as enviou à União Soviética como despojo de guerra; ao invés de lhes permitir a tomada do poder em Mukden (principal entroncamen­ to ferroviário e centro industrial da Mandchúria), assim como em outras cidades, as autoridades soviéticas chegaram a um acordo com Chiang para cedê-las às suas tropas; podendo transportar para Pe­ quim e outros centros do norte da China as unidades do exército popular, não o fizeram, de forma que os nacionalistas, transportados por aviões e barcos americanos, ali se instalaram. Em troca, porém, 593

as autoridades militares soviéticas não se opuseram a que o exército popular e as organizações dos comunistas chineses se estendessem pelas regiões agrárias da Mandchúria e até se apoderassem de algu­ mas cidades, como Harbin e Changchun. E, sobretudo — este foi o grande presente de Stalin aos comunistas chineses —, o comando soviético entregou às tropas de Mao parte do armamento apreendido ao exército japonês que operava na área 18 (é verdade que outro pro­ cedimento recusar aos comunistas uma parte das armas japone­ sas, enquanto o grosso delas ia para as mãos do Kuomintang — teria sido excessivamente escandaloso se praticado pelo chefe do comu­ nismo internacional). Em resumo, Stalin estendeu uma mão a Mao e outra a Chiang, ao mesmo tempo em que pressionava ambos para chegarem a um acordo. Ao último, ratificou o seu reconhecimento como chefe do Estado chinês, deu-lhe algumas facilidades para ins­ taurar a sua autoridade no norte do país, mas exigindo-lhe que per­ mitisse a participação dos comunistas no governo (pouco depois da assinatura do tratado sino-soviético, e sob a pressão conjunta de Moscou e Washington, Chiang convidou Mao a discutir a questão da entrada dos comunistas no governo). A Mao, Stalin permitiu que amenizasse a sua acentuada inferioridade bélica, mas exigiu cjue fizesse importantes concessões ao Kuomintang.

Guerra revolucionária ou “união nacional” Em relação às pressões de Stalin sobre Mao existe um testemu­ nho de primeira ordem que, ao que saibamos, nunca foi desmentido por Moscou. Já aludimos a ele noutro lugar e agora o reproduzire­ mos com mais detalhe. Segundo referência de Kardelj, Stalin, em fe­ vereiro de 1948, diante dele e de Dimitrov, disse o seguinte: “De­ pois da guerra, convidamos os camaradas chineses a vir até aqui para discutir a situação do seu país. Falamos claramente a eles que, em nosso juízo, a insurreição na China não tinha o menor futuro e que deviam procurar um modus vivendi com Chiang Kai-Chek, par­ ticipar do seu governo e dissolver o seu exército. Os camaradas chi­ neses concordaram com os nossos pontos de vista, mas, de volta à China, fizeram exatamente o contrário. Reagruparam as suas forças, organizaram o seu exército e, como todo mundo pode ver hoje, es­ tão em vias de bater Chiang. No caso chinês, nós nos equivocamos e o reconhecemos” ,9 (nesta nota, explicamos os possíveis motivos 594

desta curiosa “ autocrítica” do Infalível; mas o que nos interessa por agora é o reconhecimento da pressão exercida sobre o PCC). As negociações entabuladas em setembro de 1945, entre Mao e Chiang, não levaram a nenhum resultado prático. Enquanto se ne­ gociava, Chiang mandava suas tropas atacarem as zonas controladas pelos comunistas e Mao ordenava às suas resistir e aniquilar os ata­ cantes 20. No outono de 1945, a guerra civil era um fato. A pressão soviético-americana, para impor uma solução de união nacional aos dois poderes armados que se confrontavam na China, foi acen­ tuada. Na conferência de ministros de Relações Exteriores, celebra­ da em dezembro de 1945, os “três grandes” concordaram na “neces­ sidade de uma China unificada e democrática, sob a direção de um governo de união nacional, à base de uma ampla integração dos elementos democráticos em todos os organismos do governo nacional e do fim das desordens civis” 21. As negociações entre o PCC e o Kuomintang se reativaram. Em janeiro de 1946, reuniu-se uma con­ ferência consultiva política e se acertou uma trégua nas operações militares. Esta conferência adotou uma série de resoluções que, apa­ rentemente, satisfaziam à vontade dos “três grandes , mas que, real­ mente, encobriam os praparativos de Chiang para retomar a ofen­ siva contra as forças revolucionárias e a preparação dos comunistas para responder adequadamente às forças contra-revolucionárias. Ao mesmo tempo, em Washington ganham espaço os partidários de uma ajuda ao ditador chinês para que este encontre uma solução militar para o conflito. A partir do verão de 1946, a guerra civil se genera­ liza em todo o país e, apesar de esporádicos intentos de negociação, se acentuará até a derrota total do Kuomintang. Chiang Kai-Chek empreende a ofensiva em julho de 1946. Nes­ se momento, o seu exército conta com grande superioridade em efe­ tivos regulares e em armas (dispõe de 500 aviões, na sua maioria pilotados por americanos, enquanto o exército popular não teve aviação até depois da vitória), está assessorado por milhares de ofi­ ciais e técnicos ianques e generosamente subvencionado por Wash­ ington. Durante um ano (até o verão de 1947), os nacionalistas pa­ recem marchar de vitória em vitoria; na verdade, ocupam cidades que o exército popular não defende, obedecendo a uma tática bem experimentada; alargam as suas comunicações e dispersam as suas forças em espaços hostis, minados pela agitação revolucionária. Em regra, o exército popular só aceita o combate onde conta com deci­ siva superioridade. Estende e consolida o novo poder em zonas ru­ 595

rais cada vez mais amplas, onde a revolução agrária se converte ipso facto em realidade tangível; cerca as cidades, corta as vias de comunicação, isola as divisões nacionalistas. Paralelamente, intensi­ fica a ação clandestina nos próprios centros urbanos do inimigo, atrai os elementos vacilantes, aproveita as dissensões do corrompido aparelho político e militar do Kuomintang. Rapidamente, a correla­ ção de forças vai mudando em favor dos comunistas. Entre o verão de 1947 e o de 1948, o exército popular passa progressivamente à ofensiva na Mandchúria, na China central e na do norte. Inicia-se a fase que Mao previra na sua teoria da “guerra prolongada”: o trânsito da guerra de guerrilhas à guerra de manobra. No outono de 1948 começam a se suceder vitórias espetaculares. O exército po­ pular liberta a Mandchúria, faz centenas de milhares de prisionei­ ros, apodera-se de grandes quantidades de material bélico. A supe­ rioridade em armas (apesar da carência de aviões) e em efetivos re­ gulares passa decisivamente para as forças revolucionárias. Em ja­ neiro de 1949, o exército popular entra em Pequim. Na primavera, cruza o Yangtsé e entra em Nanquim e Changai. No outono, chega a Cantão. No fim do ano, toda a China continental — à exceção de algumas áreas periféricas que serão libertadas pouco depois — está sob o controle do novo poder revolucionário. O giro sofrido pela guerra civil a partir do verão de 1947 e a fulgurante e espetacular ofensiva do exército revolucionário a partir do outono de 1948, que, em um ano, leva-o da Mandchúria a Can­ tão, não se explicam apenas pela mestria alcançada pelos comu­ nistas na sua tática política e militar (mestria fruto de vinte e cinco anos de experimentação e teorização da guerra revolucionária); nem se explicam pelo alto nível de combatividade revolucionária, de dis­ ciplina e de espírito de sacrifício, conseguidos pela organização mi­ litar e política dos comunistas. Sem estes elementos, a vitória co­ munista teria sido impossível, mas apenas eles não a explicam — e, sobretudo, não explicam a sua rapidez. Todos aqueles que estuda­ ram este período da revolução chinesa assinalam, dentre as causas decisivas do colapso do regime do Kuomintang, a sua podridão in­ terna, a sua inépcia e corrupção. Além dos chefes comunistas, um dos primeiros a compreender este dado foi Marshall. A sua estada na China, antes de assumir o Departamento de Estado, em fevereiro de 1947, permitiu-lhe conhecer por dentro o regime de Chiang; e, em junho daquele ano, numa reunião interministerial, previu o seu colapso. Em fevereiro de 1948, diante do Conselho de Segurança 596

do governo americano, declarou que “dados o estado de desordem, a corrupção, a inépcia e a impotência do governo central, os pro­ blemas chineses eram praticamente insolúveis” 22. Mas a impotência e a decomposição do governo de Chiang eram apenas o reflexo, o efeito, de uma realidade mais profunda: o avançado grau de revolucionamento da sociedade chinesa. A revolução organizada, pro­ gramada, encarnada no exército popular e no PCC engrenava o seu desenvolvimento com a revolução difusa, espontânea, onipresente que, ao cabo de trinta anos de guerras civis, insurreições campone­ sas e operárias, guerrilhas revolucionárias, invasão japonesa, guerra de libertação nacional, etc., acabara por instalar-se nas consciências e desarticular profundamente estruturas seculares. A invasão japo­ nesa foi a prova decisiva para todas as forças políticas que preten­ diam resolver os problemas dessa China em mutação. Depois de se revelar, em 1925/1927, inimigo da revolução agrária, o Kuomintang revelou, em 1937/1945, a sua incapacidade para organizar a resistência nacional. O PCC, ao contrário, que, no curso da primeira e da segunda guerras civis, acreditara-se como o partido da revolução, no curso da guerra antijaponesa acreditou-se ainda como o partido da independência nacional. Camadas sociais e políticas que vacila­ vam entre ele e o Kuomintang passaram para o seu lado ou exigi­ ram uma aliança sincera com ele. Capitulando o Japão, o governo de Chiang Kai-Chek não teria podido instalar o seu poder na maior parte do país se não ocorresse um conjunto de fatores estranhos à realidade da China — o acordo nipo-americano para que as forças japonesas só se rendessem às tropas de Chiang; a transferência des­ tas (confinadas no sudoeste do país) ao centro e ao norte da China pela aviação e pela frota americanas; o status internacional do go­ verno de Chiang (reconhecido pelos “três grandes” como o único governo legal da China) e o tratado sino-sovietico de agosto de 1945, que o fortalecia politicamente ante as forças revolucionárias; o com­ portamento do exército soviético no norte e na Mandchúria, imple­ mentando este tratado; e, finalmente, a ajuda ativa, em todos os níveis, que o governo americano começou imediatamente a prestar ao de Chiang. Na realidade, o regime do Kuomintang foi artificialmente res­ taurado sobre um país que reclamava exatamente o que este regime impedia: a paz civil, as transformações sociais radicais, a efetiva in­ dependência nacional. Desde o primeiro dia após a libertação do jugo japonês, o Kuomintang apareceu como o partido da guerra 597

civil, o inimigo de toda mudança social e o instrumento de uma nova dominação estrangeira — a americana. Para consolidar o seu poder durante um período mais ou menos largo, só lhe restavam duas alternativas: ou a liquidação militar dos comunistas ou a capi­ tulação política destes, “integrando-se” no regime, dissolvendo as suas forças militares, submetendo-se à liderança de Chiang, abando­ nando praticamente o seu programa revolucionário. Do ponto de vista do Kuomintang, a negociação anteriormente mencionada era uma manobra tática para ganhar tempo e preparar forças militares com vistas à primeira solução e, simultaneamente, para encaminhar a segunda. E esta segunda possibilidade teria podido se afirmar se a direção do PCC cedesse às exigências de Stalin. Os comunistas teriam se encontrado novamente, como em 1925-1927, na condição de prisioneiros do Kuomintang, e a tragédia de então poderia repetir-se num ou noutro momento. Se, na Europa Ocidental, a “ união nacional” de tipo oportunista desembocou na exclusão dos ministros comunistas e no isolamento dos seus partidos, nas condições da China uma semelhante “união nacional”, muito provavelmente, re­ sultaria numa nova chacina dos comunistas. Um dos méritos de Mao e seus camaradas foi a inteira lucidez que revelaram a este respeito, como provam os documentos da época. Tanto no período que precede imediatamente a capitulação japonesa como no que a segue, Mao não se permite nenhuma ilusão — considera inelutável a guerra civil e prepara o partido para enfrentá-la. No seu informe ao VII Congresso do partido, dois meses antes da capitulação do Japão, observa: “Até hoje, o núcleo principal da camarilha que do­ mina o Kuomintang aplicou obstinadamente a linha reacionária di­ rigida a conservar o regime ditatorial e a desencadear a guerra civil. Há inúmeros sinais de que esta camarilha se prepara há muito, e agora mais que antes, para deflagrar a guerra civil no momento em que uma parte da China continental for libertada dos invasores nipônicos pelas tropas de uma das potências aliadas. Ao mesmo tem­ po, esta camarilha espera que os generais de certas potências aliadas desempenhem na China o papel do general inglês Scobie na Gré­ cia” 23. Mais adiante, evoca a experiência de 1927: “Em 1944, o go­ verno do Kuomintang expressou o seu ‘desejo’ de que os comunistas ‘dissolvam, num prazo determinado’, quatro quintos de suas forças armadas nas regiões libertadas. E, em 1945, no curso das últimas conversações, exigiu, inclusive, que os comunistas passassem ao seu comando a totalidade das tropas das regiões libertadas, com a promes598

. di imediatamente depois disto ‘legalizar’ o partido comunista. I .1 gente diz aos comunistas: ‘Entreguem-nos as suas tropas e nós lho concedemos a liberdade’. Deduz-se desta ‘teoria’ que os parti■l.i. e os grupos desprovidos de tropas deveriam gozar de liberdade. .I.i . cm 1925-1927, o partido comunista tinha um pequeno contini • ui. e quando o governo do Kuomintang começou a aplicar a sua p o l í t i c a de ‘depuração do partido’ e de repressão sangrenta não restou ,i menor margem de liberdade” 24. E Mao conclui a sua intervenção de l amento do congresso com estas palavras: “Atualmente, dois . ongressos se desenvolvem na China: o VI do Kuomintang e o VII do |'CC. Os seus objetivos são completamente diferentes: um aspira à aniquilação do partido comunista e das forças democráticas chineaspira imergir a China nas trevas; o outro aspira à liquidação do imperialismo nipônico e seus cúmplices, as forças feudais da China, aspira edificar a China da nova democracia” 25. Imediatamen­ te depois das negociações de setembro, Mao, numa reunião de qua­ dros do partido, afirma: “As negociações entre o Kuomintang e o PCC fracassarão, haverá ruptura, nós nos enfrentaremos” — mas observa que as negociações são necessárias para “ desmascarar as mentiras do Kuomintang, segundo as quais o PCC não quer nem a paz nem a união” 26. c i u

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O espectro de um “titoísmo chinês” Os maoístas ainda não revelaram a história da luta interna do seu partido durante esses anos. Através dos textos atualmente conhe­ cidos — como o documento de abril de 1946, que citamos noutro lugar27 — infere-se que alguns quadros importantes do PCC susten­ tavam a solução preconizada por Stalin — chegar a qualquer preço a um modus vivendi com Chiang Kai-Chek. A guerra revolucionária lhes parecia condenada ao fracasso a partir do momento em que o Kremlin se orientava a um compromisso com os Estados Unidos. É provável que a pressão de Stalin sobre a direção do PCC neste sentido tenha persistido, pelo menos, até finais de 1946 ou começos de 1947. Em dezembro de 1946, Stalin declarava ao filho de Roosevelt que o governo soviético estava disposto a “prosseguir numa política comum com os Estados Unidos nas questões do Ex­ tremo Oriente” 28. Durante 1945 e 1946, a imprensa soviética e os partidos comunistas ocidentais pouco publicavam sobre o exército 599

popular chinês, as transformações revolucionárias nas regiões liber­ tadas, etc. Em geral, limitavam-se a denunciar o apoio dos “círculos reacionários’’ norte-americanos aos “círculos reacionários do Kuomintang”, apresentando este apoio como o principal obstáculo a uma solução de “união nacional”. E, como já vimos, o informe de Zdhanov à reunião de fundação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas só se refere à China mencionando esta intervenção — silencia o conteúdo revolucionário da guerra civil e não coloca o problema da solidariedade do proletariado internacional com os revo­ lucionários chineses. O PCC não é convidado para participar do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. Evidentemente, a política de Mao, como a de Tito durante a guerra de libertação, não estava na mesma freqüência da política de Stalin. E o espetacular triunfo da linha de Mao, em 1949, só podia suscitar a inquietude de Stalin — especialmente depois do que ocorrera com Tito. A inquietude de Stalin devia ser tanto maior quanto o que es­ tava em questão não era apenas a comprovação da estratégia maoísta. Estava em questão outra coisa: pela primeira vez, num grande país, chegava ao poder um partido comunista cuja mentalidade, for­ mação ideológica e evolução interna possuíam traços diferenciais muito nítidos em face do partido soviético. Tratava-se de um partido consciente da sua originalidade e da sua importância mundial. Um partido cuja direção vinha cultivando estes traços, sistematicamente, há mais de uma década, num latente conflito com a ortodoxia de Moscou — apesar das invocações rituais de Stalin e das concepções stalinianas que acompanhavam a “achinesação” do marxismo. No en­ saio publicado em Kommunist, citado páginas atrás, revela-se que o chamado “movimento pela retificação do estilo”, organizado em Yenan, de 1941 a 1945, passando por várias etapas, foi visto em Moscou sob este ângulo. Este “movimento” consistiu no estudo e no debate de uma série de problemas ideológicos, políticos e organi­ zacionais, com o objetivo de que o partido aprendesse a servir-se do método marxista e rechaçasse os enfoques dogmáticos, o subje­ tivismo e o formalismo, unindo a teoria marxista à prática da revo­ lução chinesa. Quando do “movimento de 4 de maio”, dizia Mao, foi “indispensável e revolucionário” conduzir a luta contra “os ve­ lhos clichês, o velho dogmatismo” (do pensamento chinês tradicio­ nal); “ agora, nossa tarefa necessária e revolucionária é desmascarar os novos clichês, os novos dogmatismos, a partir de posições mar­ xistas” 29. Milhares de quadros passaram por esta escola, que serviu 600

para difundir no partido as concepções de Mao e torná-lo coeso sob a sua liderança. As teorizações de Mao sobre a guerra revolucionária, a “nova democracia”, a maneira de resolver as contradições no seio do partido, etc., foram consagradas como a verdade chinesa do marxismo. Começou-se a falar em “marxismo chinês” ou em “achinesação do marxismo”. Wang Ming e outros foram criticados — como agora revela Kommunist — pela “sua atitude dogmática em face do marxismo russo”. Este movimento ideológico — que, apesar das suas intenções antidogmáticas, também se pode considerar como o início do culto de Mao — culminou no VII Congresso do PCC. No informe de Liu Chao-Chi, “sobre o partido”, lê-se: “O programa colocado na aber­ tura do estatuto do nosso partido estipula que o Pensamento de Mao Tsé-Tung deve guiar todo o nosso trabalho partidário. O texto do próprio estatuto estabelece que cada membro do partido tem o dever de se esforçar para assimilar os elementos do marxismo-leninismo e o Pensamento de Mao Tsé-Tung. Esta é uma das grandes par­ ticularidades históricas do estatuto do nosso partido, tal como foi agora revisado” 30 (de fato, tal “particularidade” era então inconce­ bível no estatuto de qualquer outro partido comunista). O informe prossegue: “ Há mais de um século, o povo e a nação chineses so­ freram profundamente, mas sustentaram uma sangrenta luta por sua emancipação, acumulando experiências de valor incalculável. Estas lutas práticas e a experiência assim adquirida deveriam conduzir ine­ vitavelmente à formação da sua própria grande teoria, fazendo da nação chinesa não só uma nação capaz de guerrear, mas uma nação dotada de teoria revolucionária e científica. [. ..] Esta teoria é pre­ cisamente o Pensamento de Mao Tsé-Tung, a teoria e a política de Mao Tsé-Tung referente à história chinesa, à sociedade chinesa e à revolução chinesa. O Pensamento de Mao Tsé-Tung é o pensamento que funde a teoria marxista-leninista com a prática da revolução chi­ nesa; é o comunismo chinês, o marxismo chinês”. O mérito e a ori­ ginalidade desta nova aventura teórica são vigorosamente realçados: “Em virtude das diferentes condições, das acentuadas particularida­ des que caracterizam o desenvolvimento social e histórico da China, entre as quais o baixo grau de florescimento científico, etc., a achinesação sistemática do marxismo, a conversão do marxismo da sua for­ ma européia para a sua forma chinesa — ou, dito de outra forma, a utilização do enfoque e do método marxistas para resolver os di­ versos problemas da revolução chinesa contemporânea — representa 601

uma empresa difícil e excepcional. Muitos dos problemas com os quais se defronta nunca foram colocados ou resolvidos anteriormen­ te pelos marxistas do mundo. [. . . ] Esta empresa não pode ser levada a cabo com sucesso, ao contrário do que pensam alguns, apenas com o domínio dos textos marxistas, recitando-os de cor ou deles ex­ traindo citações. [. ..] Mao Tsé-Tung, e nenhum outro, foi quem, de forma notável e bem-sucedida, realizou a difícil e excepcional achinesação do marxismo. E esta é uma das maiores façanhas da história do movimento marxista mundial [. . Não analisaremos agora este texto, no qual a tomada de consciência de uma realidade indiscutí­ vel — a de que a revolução chinesa, como toda grande revolução, estava produzindo a sua própria teoria — se entrecruza com os elementos iniciais de um culto que levaria à dogmatização das novas idéias, como já ocorrera com o leninismo. O que aqui nos interessa assinalar é que tais postulados do VII Congresso do PCC, tanto como a estratégia político-militar de Mao, eram dificilmente digeríveis por Stalin. A revolução chinesa representava o primeiro grande desafio teórico para a ortodoxia staliniana, assim como o seu curso prático era um desafio à “política da grande aliança”. E o desafio possuía um alcance mundial porque, como declarava o citado informe, a nova teoria significava “o desenvolvimento do marxismo no tocante à revolução nacional democrática da época atual nos países colo­ niais, semicoloniais e semifeudais [. . .], uma contribuição de grande importância e utilidade para a libertação dos povos de todos os paí­ ses e, sobretudo, para a libertação de todas as nações do Oriente”. Desde 1945, o PCC começava a reivindicar as suas concepções e ex­ periências como modelo para a revolução nos países atrasados. Apre­ sentava-se como a alternativa ao partido soviético. Na medida em que a vitória de 1949 se delineia com nitidez, particularmente no curso desse ano, aparece nas publicações dou­ trinárias soviéticas uma série de artigos que, discretamente, põem os pontos nos is. Mencionam-se passagens de trabalhos de Mao nos quais ele rende tributo ao papel e ao exemplo da União Soviética, a Lênin e a Stalin, silenciando, ao mesmo tempo, tudo o que se re­ fere à “achinesação” do marxismo e criticando indiretamente as teses maoístas sobre o desenvolvimento original da revolução nos países coloniais e semicoloniais. “As leis gerais do desenvolvimento social dos países orientais e dos países ocidentais — se afirma num desses artigos — são idênticas. Só se pode falar de diferenças quanto ao ritmo e às formas concretas deste desenvolvimento. Neste sentido, a 602

(Iiinucrucia popular no Oriente não difere, em seus traços funda­ mentais, da democracia popular no Ocidente. Todo o curso da luta nacional-colonial e as imensas vitórias alcançadas pelas forças de­ mocráticas da Ásia oriental são uma esplêndida confirmação da jus­ teza da doutrina leninista-staliniana sobre a questão nacional-coloniul, a demonstração do triunfo das idéias vitoriosas de Marx-Engels-Lênin-Stalin” 31. Para este teórico soviético, as idéias de Mao não axistem. Num outro artigo, afirma-se: “Na elaboração de uma justa política marxista-leninista pelo Partido Comunista Chinês, os trabalhos do camarada Stalin, especialmente aqueles sobre a questão chinesa, desempenharam um enorme papel. À base de uma profunda análise teórica da situação na China, o camarada Stalin definiu nes­ tes trabalhos as particularidades da revolução chinesa, previu genial­ mente seu curso e indicou as condições para o seu triunfo [. . .]” 32. Pouco depois da proclamação da República Popular da China, a Federação Sindical Mundial (FSM) celebrou uma reunião em Pe­ quim (novembro de 1949). A intervenção do representante chinês, Liu Chao-Chi, mantém com firmeza as teses maoístas: “A via do povo chinês para vencer o imperialismo e os seus cães de guarda, para fundar a República Popular da China, é a via que deve ser seguida pelos povos de muitos países coloniais e semicoloniais na sua luta pela independência nacional e pela democracia popular. [. . . ] É a via de Mao Tsé-Tung” 33. As declarações de alguns comunistas asiáticos, que afirmaram a sua vontade de seguir o exemplo chinês, não fo­ ram incluídas no resumo dos debates desta reunião, publicado pelo órgão da FSM. Evidentemente, a revolução da imensa China, como a revolu­ ção da pequena Iugoslávia, trazia consigo perigos heréticos. A pro­ clamação da República Popular da China, a l.° de outubro de 1949 — às vésperas do anúncio, pelo Centro de Informação dos Partidos Comunistas, de que a república popular da Iugoslávia estava nas mãos de “assassinos e espiões” —, não representava apenas o mais ru­ de golpe assestado ao sistema imperialista desde a revolução de Outu­ bro; significava também que diante do Kremlin se levantava o es­ pectro de um titoísmo asiático, incomparavelmente mais perigoso que o titoísmo balcânico. Alguns observadores ocidentais indicaram, ainda que não a considerassem imediata, a possibilidade de que o espectro tomasse corpo 34. E os partidos do Centro de Informação dos Partidos Comunistas julgaram necessário enfrentar tais “espe­ culações”. A revista do Partido Comunista Francês, por exemplo, 603

escrevia, em março de 1950, que “o internacionalismo está profun­ damente inserido no Partido Comunista Chinês, podendo-se afirmar que as esperanças, alimentadas pelo imperialismo, de um ‘titoísmo chinês’ estão condenadas ao mais miserável fracasso” 35.

A aliança sino-soviética O fantasma, de fato, foi afugentado durante alguns anos. A situação internacional empurrava vigorosamente Mao e Stalin ao entendimento. A guerra fria estava no auge. Mao não podia saber até onde chegaria o apoio dos Estados Unidos ao derrotado Chiang KaiChek, que se refugiara em Formosa. De qualquer maneira, o im­ perialismo americano era a principal ameaça à nova China. Stalin, por seu turno, precisava fortalecer o seu dispositivo internacional. Em abril de 1949, firmara-se o Pacto Atlântico. Em maio, o governo soviético teve que renunciar ao bloqueio de Berlim ocidental. O Ja­ pão se convertia numa base militar americana diante do Extremo Oriente soviético. E, ainda que em julho de 1949 se explodisse a primeira bomba atômica soviética, a vantagem americana neste do­ mínio era evidente, embora fosse igualmente óbvia a superioridade soviética no tocante a forças militares convencionais. As negociações Mao-Stalin, iniciadas em Moscou em dezembro de 1949, terminaram, em fevereiro de 1950, com assinatura, por trinta anos, do tratado sino-soviético de “amizade, aliança e ajuda mútua”. Em junho de 1950, eclodia a guerra da Coréia, que, por três anos, soldaria for­ temente a nova aliança. No entanto, não há dúvidas de que, além deste imperioso condicionante internacional, outros elementos se fi­ zeram presentes. As relações entre os dois partidos ainda não se tinham posto à prova no plano estatal (tampouco, no caso iugosla­ vo, as divergências surgidas durante a guerra conduziram, por si sós, à ruptura; as relações entraram na via do antagonismo quando apa­ receu em cena o novo Estado iugoslavo e revelou-se praticamente a incompatibilidade entre a sua soberania e a política e os métodos do Kremlin). Mao, possivelmente, imaginou que, diante de um país como a China, com meio bilhão de habitantes e um exército de vá­ rios milhões de homens, cujas altas qualidades combativas ainda estavam evidentes, Stalin não procederia como se comportou frente aos pequenos países do Leste europeu. Por outro lado, a situação eco­ nômica do país, ao cabo de vinte e cinco anos de guerras quase con­ 604

tínuas, era francamente desastrosa. Os comunistas chineses pensa­ vam que a URSS lhes proporcionaria a urgente ajuda de que neces­ sitavam. A eles se apresentavam problemas econômicos e técnicos inadiáveis, para os quais não estavam apetrechados. A teoria maoísta da “nova democracia” oferecia uma orientação geral sobre as re­ lações e o papel das diferentes classes sociais e sobre o caráter do novo regime, mas, para construí-lo, era preciso algo mais. O PCC acreditou que a solução estaria no modelo e na experiência da cons­ trução soviética. Às vésperas da vitória, Mao colocou o problema desta maneira: “Diante de nós se apresenta a enorme tarefa da edi­ ficação econômica. Muito rapidamente, as coisas que conhecemos ficarão no passado e nos defrontaremos com fenômenos que co­ nhecemos mal. A dificuldade reside aí. Os imperialistas supõem que seremos absolutamente incapazes de administrar a nossa economia. [. . . ] No início, alguns comunistas soviéticos tampouco dominavam a gestão dos assuntos econômicos, e os imperialistas contavam com o seu fracasso. Porém, o Partido Comunista da União Soviética triun­ fou e, sob a direção de Lênin e Stalin, não só fez a revolução, mas soube edificar um grande e magnífico Estado socialista. O Partido Comunista da União Soviética é o nosso melhor mestre e devemos acatar as suas lições”36. Convicção ou afirmação diplomática com vistas à nova etapa? Mao sempre manobrara com extrema habilida­ de a fim de evitar confrontos diretos com Moscou. Combatendo os homens e as tendências que, no partido chinês, representavam a sub­ missão incondicional às diretivas e às concepções moscovitas rela­ tivas à revolução chinesa, reconhecia e proclamava, ao mesmo tem­ po, o papel dirigente da URSS e de Stalin no movimento comunista internacional37. E não existem indícios de que tivesse qualquer cri­ tica aos problemas internos da URSS ou à política de Stalin em face do movimento comunista ocidental (a julgar pelo que se conhece da sua biografia, Mao ignorava estes problemas na mesma medida em que outros líderes comunistas ignoravam os problemas chineses). En­ tre o marxismo achinesado de Mao, tal como este se apresentava por volta de 1949, e o marxismo russificado de Stalin existia um deno­ minador comum muito mais amplo e consistente do que costumam observar alguns apaixonados da originalidade maoísta. As divergên­ cias diziam respeito, sobretudo, aos problemas da guerra revolucio­ nária, da estratégia, das formas e dos métodos da revolução chinesa em sua fase destrutiva e, colocando-se em primeiro plano os pro­ blemas da fase construtiva, naturalmente perdiam a sua relevância. 605

Ao contrário, estas divergências adquiriram maior peso internacional à medida em que se desenvolveu a luta de libertação no “terceiro mundo”. Entretanto, durante algum tempo a guerra da Coréia e os problemas internos chineses relegaram a segundo plano as divergên­ cias entre a ortodoxia staliniana e as teorias maoístas relativas às vias revolucionárias nos países oprimidos pelo imperialismo. E, no terreno da edificação interior, como Mao preconizava, os comunistas chineses se puseram na escola do partido soviético — até que a experiência prática (analogamente ao sucedido, entre 1921 e 1927, no domínio da tática revolucionária) ensinou aos alunos que o professor tam­ pouco lhes servia para a edificação do novo regime. Se, por parte de Mao, existiam, em 1949, os imperativos que acabamos de citar para que ele se esforçasse para chegar ao enten­ dimento mais estreito possível com Stalin, para este último pesava, além do perigo americano, o conflito com a Iugoslávia. É lícito supor que Stalin tinha o máximo interesse em evitar um problema semelhante com o partido chinês, cuja grande vitória o aureolava de imenso prestígio diante do movimento comunista internacional e de todos os povos oprimidos. Seu interesse, ao contrário, consistia em capitalizar este prestígio. Toda a propaganda do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas e dos partidos comunistas apresentou o triunfo da revolução chinesa como o produto da genial direção de Stalin, das suas concepções e da sua estratégia, dos seus con­ selhos e das suas diretivas. Eis uma amostra: “Em todas as etapas da revolução nacional-libertadora chinesa, Stalin esteve presente para colocar os problemas, ajudar na retificação dos erros, indicar os obstáculos a serem evitados e escolher o caminho justo, à base da hegemonia do proletariado” (em 1949, o proletariado industrial chinês não chegava a 1% da população e depois da terrível repressão de 1927 mal pudera intervir na luta revolucionária. O percentual de operários no PCC — ainda em 1949 — atingia os escassos 3%, com a maioria esmagadora dos quadros dirigentes sendo de origem intelectual38. Mas, segundo as versões do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, o proletariado fora a força hegemônica da revo­ lução chinesa. Stalin fazia milagres). O artigo continua: “A análise staliniana das particularidades da China proporcionou ao PCC a base para elaborar o seu programa, a sua estratégia e a sua tática de combate. [. . .] Stalin, cientificamente, previu a traição do Kuomintang [em 1927]. [ .. .] Em face da China, Stalin aprofundou a teoria leninista-staliniana referente aos países coloniais e semicolo606

nini I I ü restabelecimento da influência do PCC sobre a classe Iifit idi In liimbem sc deveu aos conselhos de Stalin. [. . .] Stalin proH li vulução chinesa contra o trotskismo. [• . .] Apenas o estudo • I M «11it ilucilo dus proposições teóricas de Stalin permitiram ao PCC "hi. I liu ide/, corrigir os erros e conduzir a revolução e a guerra leviihicltiiiílrla ii vitória” 39. Pude se supor o efeito de semelhantes versões sobre os dirigentes mi ...... InI iim chineses — mas, no momento, eles não se manifestaram. IIiti 11it li mios, tiveram que engolir sapos maiores — e os engoliram mesma impassibilidade. Sem entrar agora nos detalhes das 0 luti teli mo-soviéticas até a morte de Stalin, limitar-nos-emos a assiII d M 111ii . cm razão dos acordos anexos ao tratado de 1950, a resti­ mi,, nu dii ferrovia mandehuriana ao governo chinês foi adiada para 1' »• ’ excelo se, antes, se firmasse o tratado de paz URSS-Japão. I ' nu ino adiamento sofreu a retirada das tropas soviéticas da base Imu .d de Port Arthur. E o problema do porto de Dairen ficou em in,penso, para ser novamente examinado após a assinatura do refe­ ndi, tintado. O governo chinês teve que reconhecer a “independên• In" da Mongólia Exterior — vale dizer, a sua permanência sob uh,ululo controle soviético40. Em relação a Sinkiang, os chineses llveiam que aceitar a criação de sociedades mistas do tipo que os Iugoslavos rechaçaram. Em 1954, Mao exigiu a transferência, ime­ diata c integral, para a China da parte soviética destas sociedades41. i inaino aos créditos econômicos, os dirigentes chineses haviam orçado as necessidades do país entre dois e três bilhões de dólares; em Moscou, obtiveram um crédito de 60 milhões de dólares anuais, durante cinco anos — no total, 300 milhões de dólares, soma inferior ao que, pouco antes, o governo soviético emprestara à Polônia42. Com os especialistas soviéticos enviados à China ocorreu o mesmo que já acontecera na Iugoslávia, com os problemas daí decorrentes: seus emolumentos eram muito superiores aos dos seus colegas chi­ neses — dado o nível econômico do país e os hábitos austeros em que se educaram os comunistas chineses, é fácil imaginar o efeito moral e político provocado inevitavelmente por esta situação. E, sem dúvida, houve muitos outros aspectos das relações entre os dois Estados e partidos que não abonavam exatamente a rósea imagem oficial da “amizade sino-soviética”. No entanto, até depois dos acon­ tecimentos húngaros e poloneses do outono de 1956, não haverá declarações chinesas pondo em questão esta imagem panglossiana. Em dezembro daquele ano, Mao declarará que, “na solução de cer­ 607

tos problemas concretos, Stalin manifestava tendências ao chovinismo de grande potência e não se inspirava suficientemente na igualdade de direitos; não educava os quadros num espírito de modéstia e, às vezes, imiscuía-se indevidamente nos assuntos internos de países e partidos irmãos, o que acarretou muitas e graves conseqüências” 43. Mas, nem então, nem depois, os maoístas fizeram uma análise his­ tórica objetiva e documentada da intervenção de Stalin (da buro­ cracia dirigente soviética) nas diferentes fases da revolução chinesa e, particularmente, no período 1949-1953. Isto é explicável, porque uma tal análise implicaria a abordagem crítica de determinados aspectos da própria atuação de Mao, coisa difícil enquanto persis­ tir o culto ao seu pensamento e à sua personalidade. De qualquer maneira, enquanto não fizerem esta análise, os comunistas chineses não poderão oferecer uma explicação histórica conclusiva do seu atual conflito com o partido soviético44. A tarefa de unificar politicamente o país e de criar uma eco­ nomia planificada nas condições chinesas tinha que engendrar, for­ çosamente — numa escala ainda maior que a da Rússia de 1917 —, um processo de burocratização; mas é indubitável que a impor­ tação do modelo e dos métodos soviéticos só podia estimulá-lo e acelerá-lo em todos os níveis: partido e Estado, economia e ideo­ logia. A extrema complexidade da problemática chinesa e da tenta­ tiva de avançar para o socialismo num país com as características da China exigiam objetivamente a abertura de um debate perma­ nente, o desenvolvimento de uma investigação sem barreiras, com ampla participação das massas e dos quadros intelectuais (incluindo a crítica da experiência soviética). Ao invés disto, o modelo soviético foi adotado dogmaticamente como a única via possível. Outro efeito da subordinação do PCC a Stalin, naquela etapa, foi que a grande experiência acumulada pela revolução chinesa até a tomada do poder — suas lições teóricas e práticas — não puderam se converter em patrimônio do movimento comunista internacional e, particularmente, dos comunistas dos países coloniais.e semicoloniais, salvo nuns raros casos (os comunistas vietnamitas e alguns núcleos comunistas do Sudeste asiático, tradicionalmente ligados aos chineses). Regra geral, a revolução chinesa foi conhecida pelos comu­ nistas de todo o mundo através das versões soviéticas, cujo enfoque costumeiro se expressa no artigo que citamos nas páginas 606 e 607. Stalin fora o demiurgo; os comunistas chineses limitaram-se a aplicar as suas concepções e diretivas; tudo se encontrava nas obras de Stalin: 608

a análise marxista da realidade chinesa, a trajetória da revolução, a estratégia e a tática que a levaram à vitória, etc. De fato, a expe­ riência chinesa, naqueles anos, não serviu para enriquecer a teoria marxista da revolução, mas para reafirmar a dogmática staliniana e glorificar o seu criador. A vitória do PCC serviu também como consolo aos dissabores do movimento comunista ocidental, dissimulou por algum tempo as conseqüências da frustração da revolução euro­ péia e da crônica impotência do comunismo norte-americano, etc. Por outro lado, a exibição da “amizade sino-soviética’’, os louvores à ajuda que a URSS prestava à China, etc., caíam como uma luva para abonar a encenação montada pelo Centro de Informação dos Partidos Comunistas sobre o conflito soviético-iugoslavo. Com Mao — dava-se a entender — não havia problemas porque ele era um intemacionalista, de provada fidelidade à URSS (pedra-de-toque do internacionalismo), ao contrário do Judas Tito. Prova de que a culpa não era de Stalin. Os comunistas podiam manter a sua boa consciência. . . Apesar de tudo isto, a submissão do PCC a Moscou, no período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, foi bem menos absoluta que a dos partidos comunistas das democracias populares européias. Stalin atuou com certa prudência e Mao tinha atrás de si uma força que faltava aos chefes comunistas europeus instalados no poder pelo exército soviético. Um ano depois da proclamação da República Popular da China, a intervenção dos “voluntários” chi­ neses na guerra da Coréia mostrou espetacularmente, tanto ao Krem­ lin quanto aos governos ocidentais, que o comunismo chinês estava entre as primeiras potências mundiais. Logo depois da morte de Stalin, seus herdeiros compreenderam a necessidade de fazer certas concessões ao fato tão indiscutível da potência e do prestígio da revolução chinesa, ao mesmo tempo em que procuraram capitali­ zá-lo politicamente para respaldar as suas próprias posições (tanto interna quanto externamente) no contexto da delicada situação criada com a morte do grande autocrata. Ampliaram consideravelmente a ajuda econômica e técnica à China, realçaram a importância do PCC na hierarquia do movimento comunista e, pela primeira vez, concederam a Mao o título de “grande teórico do marxismo e do leninismo” 45. Mas os acontecimentos não tardaram em demonstrar que Moscou só atribuía a Pequim o estatuto de brilhante segundo lu­ gar no comunismo internacional com a condição de que Pequim fosse o eco fiel de Moscou na política internacional e não questionasse, 609

em nenhum terreno, a ortodoxia soviética. Os epígonos repetiram, de alguma maneira, a manobra que o mestre tentara com Tito, entre 1945 e 1947 — e os resultados foram idênticos, só que em escala chinesa. A persistência do nacionalismo grão-russo provocou a exa­ cerbação do nacionalismo grão-chinês, como antes provocara a exa­ cerbação do nacionalismo iugoslavo. O espectro do “titoísmo chinês” tomou corpo e dimensões colossais. Mas a este tema voltaremos adiante. A revolução chinesa foi o segundo grande ato do processo revolucionário mundial iniciado em 1917 — a primeira derrota signi­ ficativa do imperialismo, sobretudo do imperialismo americano, de­ pois da segunda guerra mundial. Deu o impulso que conhecemos à luta de libertação nacional e social dos povos coloniais e semicoloniais. Esta luta, sob o signo da revolução chinesa, adquiriu o esta­ tuto de alternativa — durante uma época que ainda não está supe­ rada — ao da luta do proletariado da área capitalista desenvolvida, no plano da ação revolucionária. Mas a tese de que o rumo da revolução mundial, a partir da revolução chinesa, consistirá no cerco da “cidade mundial” (a área capitalista desenvolvida) pelo “campo mundial” (os continentes subdesenvolvidos) é apenas uma genera­ lização abusiva do itinerário real seguido pela revolução chinesa e a projeção futurològica do fato, igualmente real e atual, que acaba­ mos de mencionar: a substituição do “Ocidente” pelo “Oriente” no terreno da ação revolucionária. Nada permite assegurar que esta substituição seja a última alternativa. Ao contrário, já surgem alguns signos premonitórios, tanto a nível da teoria como da ação, de que o proletariado ocidental — um tipo de proletariado, manual e inte­ lectual, muito diferente do conhecido por Marx e Lênin — pode ocupar novamente o proscênio do palco histórico (sem falar do prole­ tariado, também deste “tipo novo”, dos países chamados socialistas, que também saberá dizer a sua palavra). O itinerário da revolução mundial nos reserva numerosas surpresas e não poucas “alterna­ tivas”.

NOTAS ' Cfr. Mao Tsé-Tung,

O e u v re choisies,

edição chinesa, em francês, t. IV pp

161- 162.

2 A “nova democracia” que o programa do PCC definia como etapa interme­ diária entre o regime do Kuomintang e a construção socialista não pode 610

ser considerada como uma etapa de desenvolvimento capitalista, embora persistisse nela um setor capitalista privado (burguesia nacional). Como se diria no informe do Comitê Central ao VIII Congresso do PCC (setembro de 1956), “a fundação da República Popular da China marcou o fim, no essencial, da etapa democrático-burguesa da revolução e o começo da revo­ lução socialista proletária; marcou o começo do período de transição da nossa sociedade do capitalismo ao socialismo” (V l I I e C o n g r è s N a tio n a l d u P a rti C o m m u n is te C h in o is. R e c u e il d e d o c u m e n ts , Pequim, 1956, p. 17). 3 A declaração de guerra ao Japão e a ofensiva contra o seu exército na Mandchúria, imediatamente depois do lançamento das bombas atômicas ame­ ricanas, influiu indubitavelmente na mesma direção. Mas, como veremos, a influência, sobre a revolução chinesa, das vitórias soviéticas na segunda guerra mundial foi contraditória. Enquanto, por um lado, constituíam um freio à intervenção do imperialismo americano, por outro, Stalin, apoiando-se na força e no prestígio que estas vitórias lhe ofereciam, tentou forçar a polí­ tica do PCC no rumo da capitulação ante o Kuomintang, a fim de facilitar o acordo de largo alcance que buscava com os Estados Unidos. 4 De acordo com Guillermaz (H isto ire d u P C C , cit., t. I, p. 297), os sovié­ ticos enviaram uns 300 oficiais e técnicos, liderados pelo general Cherbachev, incluindo pilotos que utilizavam aparelhos soviéticos (EL 5 e EL 6). s A p u d André Fontaine, H is to ir e d e la G u e r re F r o id e , cit., t. I, p. 433. à Wang Ming fora, de fato, o máximo dirigente no período precedente à ascen­ são de Mao à chefia do partido. Era um homem de confiança da Inter­ nacional Comunista. Depois da sua destituição, foi para Moscou e só re­ gressou a Yenan em começos de 1938. Juntamente com outros quadros do partido, confrontou-se com a política de Mao, defendendo maiores concessões ao Kuomintang, a completa integração das unidades militares do partido ao exército daquele e a aceitação da sua disciplina, etc. Considerava que a guerra de resistência contra o Japão só podería ser dirigida pelo Kuomintang. Numa palavra, as suas posições políticas, que expressavam o ponto de vista de Moscou, assemelhavam-se às que os partidos comunistas europeus (à exce­ ção dos iugoslavos) implementaram durante a resistência anti-hitleriana: “união nacional” sob a hegemonia da burguesia antifascista (cfr. Ju Chiao-Mu, T re in ta A n o s d e i P a rtid o C o m u n is ta d e C h in a , Pequim, 1957, pp. 72-73 e Guillermaz, o p . cit., t. I, pp. 358-359). No calor da atual po­ lêmica sino-soviética, K o m m u n is t, revista oficial do PCUS, confirmou que Wang Ming e outros foram atacados naquela época por defender os pontos de vista da Internacional Comunista e do partido soviético (cfr. o número de junho de 1968, “Acerca de alguns problemas da história do PCC”). 7 “Ao longo destes anos — disse Mao, referindo-se a esse período, em seu informe ao VII Congresso do PCC —, não houve, de fato, operações mi­ litares sérias sobre a frente do Kuomintang. As operações militares dos inva­ sores japoneses fo r a m d irig id a s e s se n c ia lm e n te c o n tra as re g iõ es lib e rta d a s" (cfr. o t. IV das O b ra s esc o lh id a s, ed. francesa, p. 309. Sublinhados nossos). 8 Em todos os documentos conhecidos do PCC não há a menor referência à ajuda militar soviética neste período — como, tampouco, no período ulte­ rior da guerra contra o Japão. O mesmo se verifica nos materiais soviéticos. É claro que, se esta ajuda tivesse existido, os soviéticos não deixariam de mencioná-la na atual polêmica, em textos do tipo indicado na nota 6. 9 Cfr. K o m m u n is t, junho de 1968, pp. 93-108. to Esta apreciação de Guillermaz (o p . cit., t. I, p. 323), apoiada em meticulosa documentação, coincide com as versões oficiais chinesas. 611

" Cfr. O b ra s esc o lh id a s, ed. chinesa (em francês), t. II, p. 423. A organização militar construída pelo PCC no curso da guerra contra o Japão constituía um sistema muito complexo e diversificado, que englobava o 8.° Exército e o novo 4.° Exército, organizados à base de divisões, regimentos e companhias (que gozavam de grande autonomia operacional) que não estavam adstritas a um território determinado; unidades territoriais que operavam exclusivamente num espaço delimitado, no interior das províncias ocupadas pelos japoneses; milícias populares, forma massiva de organização armada, de caráter local, geralmente com armamento muito rudimentar, etc. Por volta do VII Con­ gresso (primavera de 1945), o exército popular propriamente dito contava com 910.000 homens e as milícias com mais de 2.200.000. Neste momento, as regiões libertadas incluíam uma população de 95 milhões de habitantes. A região fronteiriça de Chensi-Kansu-Ninghsia, onde estava instalado o quartel-general de Mao (Yenan), situada fora do território ocupado pelos japoneses, era apenas uma pequena fração dessas zonas libertadas — o grosso delas encontrava-se nas províncias teoricamente submetidas ao invasor e nas que estavam sob o regime do Kuomintang. 12 Cfr. Ju Chiao-Mu, o p . cit., pp. 68-69. '3 Complementando o que se disse na nota 8, convém assinalar que Mao insistiu reiteradas vezes, em seus discursos e artigos, sobre a absoluta falta de ajuda exterior. Cfr., por exemplo, o tomo IV das suas O b ra s e s c o lh id a s (edição francesa), pp. 310-314, e, particularmente, o seu discurso em uma reunião de quadros do partido, celebrada em Yenan a 13 de agosto de 1945; nele, Mao afirma: “Ao longo dos últimos oito anos, o povo e o exército das nossas regiões libertadas, se m q u a lq u e r a ju d a e x te r n a , c o n ta n d o u n ic a m e n te c o m as su a s p r ó p r ia s fo rç a s, libertaram vastas áreas do país e contiveram e atacaram a maior parte das forças invasoras japonesas, bem como a quase totalidade das tropas dos fantoches” (sublinhados nossos; “tropas dos fantoches” eram as dos colaboracionistas chineses). '4 Cfr. o “livro branco” americano U n ite d S ta te s R e la tio n s w ith C h in a , p. 73. 15 A p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 493 (Hopkins foi o principal conse­ lheiro de Roosevelt em assuntos internacionais). '4 A p u d Herbert Feis, T h e C h in e T a n g le , Princeton University Press, 1953, p. 140. 17 Cfr. André Fontaine, o p . cit., t. I, p. 440. ^ A 10 de agosto de 1945, Chu Teh, comandante-em-chefe do exército popular, conclamou as tropas japonesas e as dos regimes chineses pró-Japão a depor armas. A quase totalidade das tropas japonesas ignorou esta conclamação e obedeceu ao “Comando Supremo Aliado” (SCAP) — vale dizer, ao Alto Co­ mando conjunto anglo-americano —, que lhes prescreveu não efetuar a ren­ dição senão diante das tropas governamentais (de Chiang Kai-Chek) e as res­ ponsabilizou pela manutenção da ordem até a capitulação. Como conseqüência disto, a maior parte do material de guerra japonês irá cair nas mãos de Chiang, acrescentando-se ao enviado pelos americanos para equipar 39 di­ visões modernas. Nunca — de acordo com Guillermaz, de quem tomamos estes dados (cfr. o p . cit., t. I, p. 370) — um governo chinês dispôs de armas tão numerosas, modernas e potentes. Uma avaliação aproximada fixa em 200 as divisões com que Chiang contava em finais de 1945, além de cerca de 500 aviões. Durante toda a guerra civil, os comunistas não tiveram aviação. O equipamento industrial que os soviéticos retiraram da Mandchúria foi avaliado — conforme Guillermaz (op. cit., t. I, p. 371) — em 858 milhões de dólares (valor absoluto) ou 2 bilhões de dólares (preço de substituição). Este ato — aduz o historiador francês — permite pensar que os russos pla­ 612

nejavam impor a sua cooperação econômica aos futuros ocupantes desta região, tão importante para a economia siberiana”. Em relação às cidades que os soviéticos poderiam ter entregue ao exército popular ou facilitado a este a sua ocupação, Guillermaz observa: “A posse das grandes cidades destas regiões [China do Norte e Mandchúria] Pequim, Tientsin, Tsinan, Tsingtao, Taiyuan, Kagan —, para falar apenas da China do Norte, evidentemente teria fortalecido os comunistas em face do governo e internacionalmente” (ib id ., p. 368). Mas o tratado sino-soviético “reconhecia explicitamente, nas suas condições posteriores anexas, a soberania do governo de Nanquim sobre a Mandchúria” (ib id ., p. 371). O mesmo historiador acrescenta: “Os russos projetavam retirar as suas tropas da Mandchúria, em outubro e novembro [de 1945], por etapas, deixando o campo livre ^para os comunistas chineses. Atendendo a um pedido do governo central [Chiang], cujos preparativos para a reocupação total ainda estavam em andamento, eles consentiram em retardar a evacuação até abril de 1946” (ibid., p. 372). Vale dizer: o exército soviético protegeu as cidades da Mandchúria do perigo de caírem nas mãos dos comunistas chineses até o momento em que as tropas de Chiang, transportadas por navios e aviões americanos, chegaram lá. A p u d Dedijer, o p . cit., p. 334. Nesta reunião com os dirigentes comunistas iugoslavos e búlgaros, Stalin queria obrigar os primeiros a suspender a ajuda à insurreição grega, argumentando que ela estava condenada à derrota. Substancialmente, Stalin dizia: “Não tenho nenhum inconveniente em reco­ nhecer o meu erro no caso chinês e, portanto, vocês não devem tê-lo para reconhecer o seu no caso grego”. Por outro lado, não se pode descartar que Stalin tivesse interesse em fazer chegar aos ouvidos americanos a ausência de responsabilidades suas na política dos comunistas chineses. 2 0 cfr. o t. IV, pp. 51 e 69, da edição chinesa (em francês) das O b ra s esco lh id a s de Mao. 21 Tomamos a referência de M u n d o O b r e r o (janeiro de 1946) que, por seu turno, reproduz a versão da imprensa soviética. A missão de Marshall na China, evidentemente, deve ser vista no marco deste objetivo comum dos “três grandes”. A política soviética e a americana em face da China perseguiam, é claro, objetivos diferentes no interior dessa convergência na solução “união nacional”. Tratava-se de desenvolver a luta por influências no marco desta solução e prevenir as complicações inter­ nacionais que a guerra civil pudesse acarretar. 2 2 A p u d André Fontaine, o p . cit., t. I, pp. 447-448. 2 3 Cfr. Mao, O e u v r e s ch o isies, edição francesa, t. IV, p. 318. O general Scobie comandava o corpo expedicionário inglês que combatia a resistência grega em 1944. 24 Ib id ., p. 344. 25 Ib id ., pp. 278-279. 2 6 Cfr. Mao, O e u v r e s ch o isie s, edição chinesa, em francês, t. IV, pp. 53-54. A política do PCC no período que precede imediatamente a capitulação ja­ ponesa está exposta no informe de Mao ao VII Congresso do partido. A linha de frente nacional única antijaponesa se concretiza no objetivo de for­ mar um governo de coalizão que reúna todas as forças e correntes capazes de apoiar o programa da “nova democracia” elaborado pelo partido, no qual medidas de conteúdo democrático-burguês (reforma agrária à base do prin­ cípio “a terra a quem a trabalha”, etc.) se conjugavam com outras que — segundo a expressão de Mao — continham “elementos de socialismo”: criação, na economia, de um setor do Estado (à base, fundamentalmente, da naciona­ 613

lização do capital estrangeiro e do da burguesia “compradora”) e de um setor cooperativo. O caráter socialista dessas medidas derivava de que o Estado se encontraria sob a “hegemonia do proletariado” — o que, na prática, signi­ ficava a direção do PCC. Naturalmente, tal governo de coalizão e tal pro­ grama eram totalmente incompatíveis com o Kuomintang, ainda que, no interior deste, existissem elementos progressistas susceptíveis de apoiá-los. No curso das negociações iniciadas após a capitulação do Japão, Mao fez uma série de concessões, a mais importante das quais era a formação de um governo de coalizão no qual o PCC, mesmo tendo uma forte represen­ tação, estaria em minoria em relação ao Kuomintang. Mas esta concessão era mais aparente que real, uma vez que Mao não cedeu um só milímetro no tocante ao controle do partido sobre as suas forças armadas e à integridade do poder revolucionário nas zonas libertadas — o que a direção do Kuomintang, obviamente, não podia aceitar. Daí a inevitabilidade da ruptura. 27 Cfr. p. 445 e a nota 184 do capítulo 1 deste volume. No curso da revolução cultural, foram feitas inúmeras alusões às posturas capituladoras de alguns dirigentes do partido nesse período — mas nada se disse da intervenção de Stalin no problema. 28 Cfr. a nota 182 do capítulo 1 deste volume. O sublinhado é nosso. 29 Cfr. Mao, O e u v r e s choisies, edição francesa, t. IV, p. 58. A 4 de maio de 1919, em Pequim, ocorreu uma manifestação estudantil de protesto contra a decisão da Conferência de Paz, reunida em Paris, que transferia da Alemanha para o Japão os direitos sobre a província chinesa de Chandung. A mani­ festação deu nome a um movimento político-cultural dirigido contra o velho regime e as velhas idéias, movimento que já se desenvolvia desde alguns anos e que, com a manifestação, adquiriu um caráter mais radical e massivo. 80 Cfr. a versão do informe de Liu Chao-Chi incluída em L e M a r x is m e e t l ’A sie , de H. C. d’Encausse e S. Schram, ed. cit., pp. 361-365. As citações que se seguem foram extraídas desta fonte. 31 Do artigo de E. Zhukov, “Alguns problemas da luta nacional e colonial depois da segunda guerra mundial”, publicado na revista soviética Q u e stõ e s d e E c o n o m ia , n.° 9, 1949; citamos segundo a reprodução contida na obra re­ ferida na nota anterior. 82 Cfr. G. V. Astafiev, “De colônia a democracia popular”, incluído na antologia sobre A L u ta d e L ib e rta ç ã o N a c io n a l d o s P o v o s da Á s ia O rie n ta l, publicada pela Academia de Ciências da URSS em 1949, e transcrito na obra citada na nota 30, pp. 375-378. 38 Cfr. L e M a r x is m e e t l ’A s ie , cit., pp. 381-382. Na pág. 98 desta obra se informa que o resumo dos debates desta reunião, publicado pela FSM, omite as intervenções de alguns delegados asiáticos que aprovavam as teses chinesas. 34 Cfr., por exemplo, os artigos de Robert Guillain em L e M o n d e , 20 e 28 de dezembro de 1949, sob o titulo geral de “A China sob a bandeira vermelha”. 35 Cfr. Marius Magnien, C a h iers d u C o m m u n is m e , março de 1950, p. 57. w “Sobre a ditadura do proletariado”, 30 de junho de 1949; incluído no tomo IV das O b ra s E sc o lh id a s, edição chinesa, em francês, p. 442. 37 Esta habilidade tática de Mao foi favorecida, sem dúvida, porque, durante a guerra antijaponesa e a segunda guerra mundial, as contradições entre a política maoísta e a staliniana não afetavam de modo grave os interesses soviéticos. Tais contradições poderiam tomar dimensões de antagonismo se. no período seguinte à capitulação do Japão, o espírito de Ialta perdurasse entre Washington e Moscou — mas a rápida deterioração das relações entre 614

as duas superpotências diminuiu a relevância das divergências entre Mao e Stalin. 38 Tomamos o dado do manual utilizado na Escola Superior do PCUS, já tão citado, H isto r ia d e i M o v im ie n to O b r e ro y N a c io n a l-L ib e r a d o r In te rn a c io n a l, t. III,’p. 250. 39 cfr. artigo citado na nota 35, cujo título é “A vitória da política staliniana na China”. 40 Cfr. L a P o litiq u e É tra n g è re S o v ié tiq u e . T e x te s O ffic ie ls (1 9 17-1967), Moscou, 1967, pp. 131-134. O reconhecimento da “independência” da Mongólia Ex­ terior ficou registrado numa troca de notas entre Vichinski e Chu En-lai. 41 Em seu livro C h in e -U R S S : L a F in d ’u n e H é g é m o n ie (Plon, Paris, 1964), François Fejto, apoiando-se no ensaio “I chose Truth’, de Severyn Bialer, publicado em E a st E u r o p a (julho de 1956), dá a seguinte informação: “No curso de uma importante reunião do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, realizada em julho de 1955, quando Molotov se opunha à aproximação com a Iugoslávia, Mikoyan fez uma série de críticas às con­ cepções do velho chefe da diplomacia de Stalin. A este respeito, citou pa­ lavras de Mao Tsé-Tung que, durante as conversações de Pequim, de 1954 [entre Kruschev e Mikoyan, de um lado, e dirigentes chineses, de outro], criticou duramente as sociedades mistas, considerando-as como ‘uma forma de interferência russa na vida econômica da China’ e evocou a vergonha que ele mesmo, Mikoyan, sentira ao ouvir falar do comportamento arrogante dos especialistas soviéticos no estrangeiro” (p. 93). 42 Cfr. o documento citado na nota 40, pp. 135-136. A comparação com o crédito concedido à Polônia, tomamo-la da obra de Fejto citada na nota ante­ rior, p. 73. 43 “Novas considerações sobre a experiência histórica da ditadura do proleta­ riado”, J e n m in jip a o (D iá rio d o P o v o ), 29/XII/1956; citamos segundo a versão francesa publicada num panfleto do PCF em 1957, p. 10. 44 No informe de Lin Piao ao IX Congresso do PCC (abril de 1969), bem como em outros textos da revolução cultural, Liu Chao-Chi serve como bode expia­ tório dos pecados de Stalin, tanto no período da guerra antijaponesa como no da terceira guerra civil revolucionária (1946-1949) e na fase posterior à tomada do poder, até a morte de Stalin. Independentemente do que possa haver de certo nas posições políticas que se atribuem a Liu (e não é possível aceitá-las como verdadeiras, pelo menos enquanto ele não tenha a oportu­ nidade de defender-se publicamente), o fato é que elas coincidem exatamente com a linha que Stalin tentou impor ao PCC naquelas várias e sucessivas etapas Devemos aproveitar esta nota para assinalar também que a acusaçao lançada contra o ex-presidente da República Popular da China no citado informe - a de ser agente do inimigo, traidor da classe operária e lacaio do imperialismo desde a época da primeira guerra civil revolucionária (1925-1927) — reproduz o velho filme das acusações de Stalm contra Trotski, Bukharin, Zinoviev, etc. 45 Cfr. Fejto, o p . c it. na nota 41, pp. 88-89.

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5 . NOVO EQUILIBRIO MUNDIAL

Os “combatentes da paz” Como destacamos na análise do informe de Zdhanov (cfr. pp. 494-502), a nova “linha geral” que Stalin impôs aos partidos comu­ nistas do Ocidente, em 1947, não significava a correção do oportu­ nismo precedente — antes, prolongava-o sob outras modalidades. Representava a adaptação da política desses partidos à resposta que o Kremlin procurava dar ao rumo expansionista de Washington. Os objetivos socialistas, mais uma vez, foram adiados para as calen­ das gregas. Primeiro, foram postergados em prol da grande coalizão anti-hitleriana; agora, e,am-no em nome da grande frente antiamericana que o Kremlin tentava construir a fim de impor à Casa Branca um acordo mundial, baseado na divisão das áreas de influên­ cia — acordo que fosse satisfatório para os interesses soviéticos. A idéia tática essencial da nova linha consistia em explorar a fundo as contradições entre a expansão americana e as burguesias nacionais européias ou de outras latitudes, em agrupar — como dizia Zdhanov — “todas as forças dispostas a defender a causa da honra e da independência nacional” e mobilizar todos os “partidários da paz” contra o perigo de uma terceira guerra mundial. Tratava-se, em suma, de mobilizar tudo o que era mobilizável para enquadrar nos trilhos da razão os chefes americanos e obrigá-los a empreender nova­ mente o caminho de Ialta. E isto permitiria que os partidos comu­ nistas ocidentais retomassem o caminho da união nacional, seguido até 1947 — a via parlamentar e pacífica para o socialismo. Pelas razões que expusemos (cfr. pp. 446-447), a tentativa de ex­ plorar as contradições interimperialistas obteve parcos resultados, pelo menos até a morte de Stalin. Os apelos à “ defesa da causa da honra e da independência nacional” não ressoaram além das fileiras comu­ nistas, salvo no caso de reduzidos círculos intelectuais. Da nova linha, o único aspecto que ganhou alguma densidade, ainda que num plano quase exclusivamente propagandístico, foi a “luta pela paz”. A crise de Berlim (junho de 1948-maio de 1949), a con­ clusão do Pacto Atlântico (abril de 1949), a concordância do Con­ gresso americano (setembro de 1949) em fornecer armas aos mem­ bros do Pacto num valor de 1,5 bilhões de dólares, o comunicado da agência Tass (25 de setembro de 1949) confirmando a explosão 617

da bomba atômica soviética em abril daquele ano — a primeira informação fora dada por Truman poucos dias antes — e esclare­ cendo que a URSS possuía a bomba desde 1947, a guerra da Coréia (iniciada em junho de 1950) — estes e outros dados da “guerra fria” foram agravando a tensão internacional e deram aparente con­ sistência ao perigo de uma nova conflagração mundial. Na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, realizada em novembro de 1949, a “luta pela paz” e contra a ameaça de uma “agressão direta” do imperialismo à União Soviética foi definida como a tarefa central do movimento comunista, a que deviam subor­ dinar-se todas as outras e todos os objetivos. Na ordem das priori­ dades, à “luta pela paz” seguia-se imediatamente a “guerra fria” contra o titoísmo. Ambas se vinculavam estreitamente, posto que o titoísmo, como vimos, era considerado pelo “campo socialista” como uma das principais bases do imperialismo americano na preparação da agressão contra a União Soviética. A organização do chamado “Movimento pela Paz” começou em 1948. Em agosto daquele ano, celebrou-se na Polônia o Con­ gresso Mundial de Intelectuais pela Paz; em novembro, foi a vez do Congresso Nacional dos “Combatentes da Paz” franceses — e, nos meses seguintes, assembléias semelhantes se realizaram em vários países europeus. Nos dias 20 a 25 de abril de 1949 reuniu-se, em Paris e em Praga o I Congresso Mundial dos “Combatentes da Paz”, com a representação de 72 países. Segundo os documentos do congresso, nesta altura já existiam organizados cerca de 600 milhões de “combatentes da paz”. Não é supérfluo esclarecer que, neste total, estavam incluídos os “combatentes da paz” da URSS, da China e das outras democracias populares, onde o simples fato de pertencer à espécie humana era condição suficiente para ficar inscrito no ardoroso exército pacifista. No resto do mundo, os “combatentes da paz” reduziam-se, salvo pequenas variações, aos efetivos dos partidos comunistas e das suas organizações de massa (sindicais, femininas, juvenis, culturais, etc.). A participação de algumas personalidades não comunistas do mundo científico e artístico, ao lado da inflação propagandistica de cifras cuja exatidão era impossível controlar, podia produzir nos mais ingênuos a impressão de que o movimento extrapo­ lava as fronteiras políticas e sociais da influência comunista. Na realidade, as coisas eram diferentes e nos meios dirigentes dos par­ tidos comunistas havia a consciência deste fato. Salvo raras exceções, 618

“comitês pela paz” nas cidades, bairros, empresas, etc., compu­ nham-se de comunistas e simpatizantes.

üs

A principal atividade dos “combatentes da paz” consistiu em recolher assinaturas em incontáveis manifestos dirigidos à opinião pública, aos governos, aos parlamentos, à Organização das Nações Unidas, etc., reclamando a proibição da bomba atômica e o desar­ mamento geral, protestando contra o Pacto Atlântico e o rearma­ mento alemão, apoiando as sucessivas iniciativas da diplomacia so­ viética (a sincronia existente neste aspecto não deixava dúvidas sobre a identidade do maestro da orquestra), etc. A “assinatura” era a arma por excelência do “combatente da paz”. Em março de 1950, 0 comitê permanente do Congresso Mundial, reunido em Estocolmo, decidiu lançar um apelo em prol da proibição da bomba atômica e organizar o correspondente recolhimento de assinaturas. Colheram-se 500 milhões de assinaturas em 79 países. Nas listas figuravam as assi­ naturas de “toda a população adulta da URSS, de toda a população adulta das democracias populares e as de 223 milhões de chineses” 2. Enfim, 400 milhões de assinaturas nos 11 países onde os cidadãos assinavam com o mesmo impressionante automatismo e unanimidade com que votavam nas eleições pelas chapas únicas. Dos outros países restantes vinham 100 milhões de assinaturas, das quais 31 milhões correspondiam à França e à Itália (respectivamente, 14 e 17 milhões). No resto dos Estados capitalistas, as cifras caíam desoladoramente: 2 milhões nos Estados Unidos, 2 milhões na Alemanha Ocidental, 1 milhão na Inglaterra, etc.3 Mesmo admitindo-se a autenticidade de todas as assinaturas — hipótese excessivamente ingênua — , o resultado, evidentemente, não era estimulante (observe-se que a cifra oficial das assinaturas era inferior em 100 milhões à de “combaten­ tes da paz” que, segundo o I Congresso, não apenas existiam como estavam organizados). No entanto, a operação foi qualificada pelos seus promotores como um “autêntico plebiscito universal dos povos” 4. Enquanto os “combatentes da paz” recolhiam trabalhosamente as assinaturas para o Apelo de Estocolmo, a guerra se iniciava na Coréia. Em novembro de 1950 se reuniu em Varsóvia o II Congresso Mundial da Paz, adotando um novo apelo aos povos. Às palavras de ordem tradicionais (proibição da bomba atômica, desarmamento geral, etc.) somava-se a que exigia o fim da guerra na Coréia. Como se sabe, desde os primeiros dias do conflito coreano, a intervenção norte-americana foi coberta com a bandeira da ONU — que, então, 619

encontrava-se sob o absoluto controle dos Estados Unidos — e com­ plementada com o envio de forças armadas de outros Estados mem­ bros da organização. No entanto, o II Congresso dos “combatentes da paz” não viu nenhum inconveniente em dirigir-se à ONU para pedir-lhe que “assumisse a alta missão de assegurar uma paz sólida e duradoura, segundo os interesses vitais de todos os povos” 5. Nesse momento, os “voluntários” chineses já haviam passado à ofensiva e por volta de finais de dezembro as tropas americanas e outras forças do corpo expedicionário da ONU se encontravam à beira do desastre. Mas, cedendo à chantagem atômica, o objetivo de Stalin — ao qual, na ocasião, submeteram-se chineses e coreanos — não levou em conta a questão da vitória revolucionária na Coréia: jogou no fim das hostilidades à base do statu quo anterior, ou seja, na divisão do país. O movimento comunista, através do movimento da paz e diretamente, não fez mais que pressionar por esta solução. O armistício na Coréia devia facilitar o arranjo mundial perseguido por Stalin. Para este objetivo apontava a decisão tomada pelo Conselho Mundial da Paz (criado no II Congresso) em fevereiro de 1951: lançar um apelo em prol da conclusão de um acordo de paz entre os “cinco grandes” e organizar o correspondente recolhimento de assinaturas em apoio a esta sugestão (que, pouco depois, foi assumida pelo governo sovié­ tico). Com o aumento da contribuição da “população adulta” da União Soviética, da China e das democracias populares, nessa ocasião o total de assinaturas chegou a 600 milhões. Durante cinco anos (1948-1952), os congressos — nacionais e mundiais — pela paz; as conferências, assembléias, comícios e fes­ tivais pela paz; os apelos, petições, resoluções pela paz; as centenas de milhões de assinaturas (sempre as mesmas) pela paz — tudo isto se sucedeu ininterruptamente, sob o combativo lema adotado pelo II Congresso: “A paz não se espera, conquista-se!”. Conquista-se através de assinaturas. O grande exército mundial de coletores de assinaturas marchou de vitória em vitória, guiado pelo infalível ti­ moneiro da paz, cujo papel, nesta nobre cruzada, foi imortalizado plasticamente pelo pintor Bielopolski: sobre o fundo de multidões se erguia a figura de Stalin, numa mão a Caneta e noutra o Apelo de Estocolmo, indicando à humanidade o caminho da paz sólida e duradoura — a assinatura 6. “O atual movimento pela paz — afirmou Stalin — propõe-se mobilizar as massas populares em prol da luta pela conservação da paz, para conjurar uma nova guerra mundial. Conseqüentemente, 620

não tende a derrocar o capitalismo e a instaurar o socialismo; limila-se a fins democráticos de luta pela manutenção da paz. O atual movimento pela conservação da paz se distingue do que existiu no período da Primeira Guerra Mundial, o qual, dirigido para trans­ formar a guerra imperialista em guerra civil, ia mais longe e per­ seguia objetivos socialistas” 7. Acatando a linha staliniana, a fim de secundar incondicionalmente a diplomacia soviética, realmente os partidos comunistas embarcaram numa ação tipicamente pacifista, que não apenas excluía os objetivos socialistas, mas também os antiimperialistas. Os dirigentes dos principais partidos comunistas da América Latina, por exemplo, opuseram-se a que o problema da independência nacional fosse colocado nitidamente no interior do movimento pela paz 8. Aplicavam a diretiva dada por Suslov (que, após a morte de Zdhanov, fora encarregado pelo Birô Político do Partido Comunista da União Soviética da direção operativa do movi­ mento comunista internacional) na reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas celebrada em novembro de 1949: “Toda a atividade dos partidos comunistas deve subordinar-se a esta tarefa central: assegurar uma paz sólida e duradoura” 9. No PCF, esta “subordinação” se expressou, por exemplo, no “programa de sal­ vação nacional” adotado pelo XII Congresso do partido (abril de 1950). Não somente estava ausente a questão da alternativa socia­ lista, ainda que como perspectiva remota: abandonava-se também o programa de nacionalizações e outras reformas democráticas des­ fraldado até 1947. O PCF apelava à constituição de uma “frente única pela paz” na qual pudessem participar “os patriotas de todas as opiniões políticas” 10. No VII Congresso do partido italiano, To­ gliatti afirmou que “o problema da paz [. ..] converteu-se no mais importante de todos, e dele depende a solução dos outros”; por esta razão, “o Partido Comunista, o mais forte partido de oposição ao atual governo da burguesia italiana, está disposto a renunciar à opo­ sição, tanto no parlamento como nas ruas, em face de outro governo que modifique radicalmente a política externa da Itália, subtraindo o país das obrigações que inevitavelmente o levarão à guerra”. To­ gliatti sublinhou os efeitos benéficos que esta solução teria no plano interno, porque implicaria a “distensão das relações entre os di­ versos grupos políticos e sociais” e permitiria a retomada da política de união nacional. “Os elementos fundamentais da política que propusemos ao país no fim da guerra — declarou o chefe do PCI — continuam válidos, mesmo com a mudança das condições polí­ 621

ticas”. Diferentemente de Thorez, Togliatti não eludiu a referência à perspectiva socialista, mas fê-lo para assegurar que a via que se propõe retomar “levará gradualmente à transformação profunda da estrutura econômica” e, por isto, os objetivos socialistas do PCI “não são inconciliáveis com a proposta de renunciar à oposição ante um governo que pratique esta política de paz”. “ Para ser mais pre­ ciso e concreto — aduziu Togliatti —, afirmo que já existe uma plataforma política para um movimento de defesa da paz e de trans­ formação das estruturas econômicas e sociais como o concebemos e do qual depende, em nosso entender, o bem-estar da Itália. Esta plataforma é a Constituição da República Italiana” 11. Em resumo, os dois “grandes” do comunismo ocidental ofereciam ao movimento operário, como única alternativa, o retorno ao caminho de 19441945, o mesmo que desembocara na recuperação do capitalismo europeu, na sua submissão aos monopólios americanos e no isola­ mento dos partidos comunistas. Esta estratégia pacifista e reformista dos partidos comunistas europeus, por outro lado, era singularmente irrealista. Dado o grau de dependência econômica e militar em que se encontravam, em relação a seu protetor americano, as suas respectivas burguesias, era ilusório supor que qualquer fração delas poderia prestar atenção aos cantos de sereia thorezianos e togliattianos. E, de fato, eles caíram no vazio. A raiz desse irrealismo residia na errônea avaliação staliniana do estado das contradições interimperialistas e intercapitalistas naquela fase. Na realidade, qualquer possibilidade de desen­ volvimento do capitalismo europeu — e, por conseqüência, de uma política reformista — passava, então e inexoravelmente, pela depen­ dência em relação aos Estados Unidos. E toda luta efetiva contra a dominação americana tinha que ser — objetivamente não podia dei­ xar de ser — anticapitalista, revolucionária, antipacifista. A idéia de um capitalismo nacional, antiamericano, na área européia, era então — como hoje — inteiramente utópica (o segredo do fracasso gaullista está neste utopismo). Mas, dada a necessidade da diplo­ macia soviética de fomentar em todos os lugares a oposição à polí­ tica americana, e dado que o objetivo desta diplomacia — reconhe­ cimento recíproco das áreas de influência — era incompatível com o desenvolvimento de uma política revolucionária nas áreas de in­ fluência americana, a única política possível dos partidos comunistas europeus era a que efetivamente aplicaram. O seu irrealismo tradu­ ziu-se na combinação de um oportunismo direitista (quanto ao con­ 622

teúdo) com um oportunismo sectário e às vezes aventureiro (quanto às formas e métodos). O movimento pela paz, já o indicamos, era apenas uma apresentação camaleônica do próprio movimento comu­ nista e suas filiais. No movimento pela paz não podiam participar efetivamente outras forças pela simples razão de que ele devia ser rigorosamente subordinado a todas as peripécias da política externa soviética. Nele não se podiam colocar objetivos socialistas — como se a alternativa socialista não fosse a condição mesma de uma paz “sólida e duradoura” — porque contradiziam os objetivos que, nesta etapa, eram propostos pela diplomacia soviética. Ao contrário, porém, a condição de “combatente da paz” era incompatível com a simpatia, ou a simples neutralidade, diante do titoísmo. Para lutar pela paz, havia que se lutar contra o titoísmo. E entre as principais “provas” levantadas acerca da existência de um compio imperialista para agredir a URSS estavam os processos das democracias populares. Um verdadeiro “combatente da paz” tinha que acreditar nesses pro­ cessos como se fosse um comunista. A social-democracia foi “des­ mascarada” — por sua colaboração com a política americana, não por sua colaboração com a burguesia nacional — em termos que recordavam os tempos do “ social-fascismo”. Procurou-se forçar e politizar as greves econômicas, não em função de uma estratégia global socialista, fundada nas condições nacionais, mas em torno da campanha pelo desarmamento geral, contra a bomba atômica, etc. A ineficácia das campanhas por assinaturas, o vazio em que caía a política pacifista, conduziu em algumas ocasiões — é verdade que poucas — ao extremo oposto, o de violentas ações de rua, para as quais não existiam as mínimas condições políticas. Um exemplo típico foi a manifestação organizada pelo PCF contra a presença, em Paris, do general americano Ridgway, cujo único efeito foi pôr em destaque o isolamento do partido, a inexistência de eco que a sua abstrata cruzada antiamericana encontrava entre as massas12. Em troca, o PCF não tentou nenhuma ação de massas de envergadura contra a guerra colonialista levada a cabo pelo governo francês no Vietnã. A principal justificação dos dirigentes soviéticos para a política que impuseram nesse momento ao movimento comunista era a exis­ tência de um grave risco de agressão contra a União Soviética (daí derivava o perigo de uma terceira guerra mundial, só concebível se as duas superpotências se enfrentassem diretamente). No seu informe à reunião do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, em 623

novembro de 1949, Suslov afirmou contundentemente: “O bloco do Pacto Atlântico se propõe a agressão direta contra os Estados democráticos da Europa Oriental e, antes de mais, contra a União Soviética”13. E o tom geral do discurso induzia a pensar que se tratava de um perigo imediato. Os governos de Washington e de Londres, assegurava Suslov, “preparam freneticamente a nova guer­ ra”. Nos meses seguintes, a propaganda dos partidos comunistas acentuou a nota alarmista. “A paz está por um fio”, declarou Thorez, em abril de 1950, no XII Congresso do PCF. No entanto, a análise de Suslov sobre a relação de forças na arena internacional, apresen­ tada no referido informe, não abonava particularmente tão dramáti­ cos prognósticos. A crer em Suslov, a situação do “campo impe­ rialista” não podería ser mais desastrosa: “A crise econômica se desenvolve irremissivelmente, tanto na América quanto na Europa”; “até os próprios partidários e os bajuladores mais ardentes do Plano Marshall vêem-se obrigados a reconhecer o seu fracasso”; a econo­ mia da Europa ocidental “encontra-se em total desordem”; o anún­ cio oficial de que a URSS possuía a bomba atômica desde 1947 “provocou a perplexidade e a confusão nas fileiras do campo impe­ rialista e dos promotores da guerra, enfraqueceu este campo”; “apro­ fundam-se as contradições entre os países capitalistas e, em primeiro lugar, as contradições entre os Estados Unidos e a Inglaterra”; a “política aventureira” dos imperialistas “sofre uma derrota atrás de outra”; “a falência da diplomacia atômica, o fracasso do Plano Marshall e dos planos de sabotagem dos imperialistas na Europa central e sul-oriental, a bancarrota da política americana na China — tudo isto é apenas uma parte dos insucessos da política externa dos imperialistas”. Em troca, o “campo da paz, da democracia e do socialismo” marchava de vento em popa: “A economia da União Soviética desenvolve-se ano a ano, mês a mês, numa linha ascendente ininterrupta” e a “sua agricultura avança a passos seguros”; as de­ mocracias populares alcançam “grandes êxitos” no seu desenvolvi­ mento econômico e político, “consolidam as suas relações com a URSS”; o movimento de libertação nacional dos países coloniais e dependentes obtém “imensos triunfos” (a referência aqui feita por Suslov à significação da vitória chinesa é um dos poucos dados objetivos do seu informe). “Um importantíssimo triunfo do campo da paz e da democracia, uma nova derrota do campo imperialista, é a formação da República Democrática Alemã” ; outra “prova magnífica” do fortalecimento do campo do Bem e do debilitamento 624

do campo do Mal é o “impulso do movimento operário, dirigido pelos partidos comunistas, que se verifica em toda parte”, o “cresci­ mento da influência do partido comunista entre as massas” e, por fim, a existência de “600 milhões de combatentes da paz, organi­ zados”. Conclusão: “A relação de forças na arena internacional mudou radicalmente e continua mudando em favor do campo da paz, da democracia e do socialismo”. Suslov não menciona outro dado da relação de forças que, todavia, tinha muito mais peso imediato e muito mais efetividade que outros dos expostos: a notória superioridade militar da União Soviética no cenário europeu. Não era preciso ser especialista em assuntos militares para compreender que, em caso de guerra, os soldados de Stalin não encontrariam obstáculos na sua marcha para Oeste. E, para que não restassem dúvidas a este respeito, Thorez encarregou-se de responder, em fevereiro de 1949 (semanas antes da assinatura do Pacto Atlântico), à oportuna pergunta de “um cama­ rada” sobre “o que faria o partido se o exército soviético ocupasse Paris?”. Os trabalhadores da França — respondeu, em síntese, Tho­ rez — os receberiam de braços abertos. Dias depois, pergunta análo­ ga, referida à Itália, foi dirigida a Togliatti, que respondeu de forma semelhante14. Evidentemente, o interessante neste curioso epi­ sódio estava menos nas respostas que no anúncio implícito nas per­ guntas — e que, com toda a probabilidade, retratava o que ocorreria em caso de guerra (em 1951-1952, filtraram-se para a imprensa ocidental informações sobre os planos do Estado-Maior do Pacto Atlântico na eventualidade de um “ataque da URSS”; todos previam a rápida perda da França15. Em 1955, Kruschev revelaria a jornalistas americanos que, em 1950, a URSS tinha superioridade militar sobre o Ocidente16). Suslov guardou um discreto silêncio sobre este aspecto funda­ mental da situação, mas, mesmo sem ele, a sua análise da relação de forças não podia deixar de suscitar sérias dúvidas sobre a proba­ bilidade de os Estados Unidos e seus sócios se lançarem a uma “agres­ são direta” contra a URSS e as democracias populares. Para dissi­ pá-las, Suslov sustenta a seguinte tese: “ O fato de que o campo anti­ democrático, imperialista, se debilite não deve conduzir à conclusão de que a ameaça de guerra se reduz. Esta conclusão seria profun­ damente errônea e perigosa. A experiência histórica mostra que, quanto mais desesperada é a situação da reação imperialista, mais são de temer as suas aventuras bélicas. As mudanças ocorridas na 625

relação de forças, em escala mundial, favoráveis ao campo da paz e da democracia, provocam acessos de fúria no campo do imperia­ lismo e dos promotores da guerra”17. Mesmo que a “experiência his­ tórica” tenha costas muito largas, a sua instrumentalização no caso em tela era muito grosseira: as duas agressões diretas sofridas pela URSS não testemunham a favor da improvisada afirmação de Suslov; ao contrário: em 1918, os imperialistas da Enterite não se encontra­ vam precisamente numa situação desesperada, e os imperialistas hitlerianos atacaram em 1941 depois de haver ocupado toda a Eu­ ropa, acreditando-se invencíveis. Os chefes do capitalismo mundial herdaram suficiente “experiência histórica” para não deixar que “acessos de fúria” determinem a sua estratégia. Mas de alguma ma­ neira havia que se fundamentar a existência de um grave risco de “agressão direta” contra a URSS por parte de um “campo imperia­ lista” que se debatia, segundo os ideólogos do Kremlin, numa irre­ missível crise econômica e cuja política ia de derrota em derrota. E que, para completar — isto sim, era verdade — , perdera o mo­ nopólio atômico e estava em notável inferioridade no tocante a forças militares convencionais, deixando-se de lado o fato de as opiniões públicas estarem muito pouco dispostas (é o mínimo que se pode dizer) a uma nova matança mundial, decorrido cerca de um lustro desde a última.

Empate na “guerra fria” Naqueles anos, o verdadeiro plano do imperialismo americano não era lançar-se a uma aventura contra a impressionante potência militar do bloco soviético; era estender a sua dominação a todo o “mundo livre”, consolidar o capitalismo na Europa ocidental e particularmente na Alemanha, colocando-a, ao mesmo tempo, sob a sua dependência econômica, política e militar; era realizar idêntica operação na bacia mediterrânea, intensificar a exploração da Amé­ rica Latina, penetrar nas esferas coloniais dos seus aliados, reprimir o movimento revolucionário fora das fronteiras do bloco soviético — numa palavra, assumir o papel de explorador e gendarme mundial. Definitivamente, o objetivo principal da política americana era con­ solidar o “campo imperialista”, definido por Zdhanov, aproveitando — é claro — todas as oportunidades para minar subterraneamente o “campo” adversário (quanto a este segundo aspecto, é forçoso 626

reconhecer que o melhor auxiliar dos serviços de Allen Dulles foi a política staliniana nos países da área de projeção soviética). Mas a estratégia planetária de Washington incluía também, como a de Moscou, a busca de um compromisso entre as duas superpotências. O problema, em última instância, consistia em que um tal compro­ misso era impossível enquanto as partes não chegassem a uma apre­ ciação realista e, pois, similar, da relação de forças. Coisa que, nos primeiros anos do pós-guerra, resultava difícil, dada a revolução operada na técnica e nas doutrinas militares em função da arma atômica e da situação de extrema instabilidade política criada em numerosas regiões do globo. A “guerra fria’’ foi uma espécie de exploração, de sondagem, para chegar a um conhecimento mais exato das forças e das disposições do adversário. Nos Estados Unidos não faltaram generais e políticos aventureiros que preconizaram o lança­ mento puro e simples da bomba atômica sobre os centros nevrálgicos soviéticos — mas esta não era a política oficial. Para os que elaboravam e aplicavam a política oficial, conscientes da enorme potência militar representada pelo bloco da União Soviética, China e democracias populares européias, a bomba atômica era um instru­ mento de “dissuasão”. Não apenas, e nem tanto, para dissuadir os chefes soviéticos de uma iniciativa direta contra as posições ociden­ tais (eventualidade improbabilíssima para todo aquele que conhecesse minimamente os fundamentos, a doutrina e a prática da política externa soviética), mas sobretudo para dissuadi-los de orientar o movimento comunista — dado que eram os seus verdadeiros orien­ tadores — numa direção revolucionária; para dissuadi-los de esti­ mular e ajudar praticamente as lutas revolucionárias onde elas surgissem. A Grécia foi o caso mais ilustrativo, mais escandaloso, mas não o único, da eficácia de que, quanto a este aspecto, a “dis­ suasão” deu provas. Num plano mais geral, toda a política de “luta pela paz”, de subordinação completa da atividade dos partidos co­ munistas à tarefa central de manutenção da paz, esteve dominada pela chantagem atômica. De maneira igual, toda a política ameri­ cana esteve dominada pela orientação de evitar a todo custo um conflito armado direto com o poderio militar do bloco soviético. Os dois “lances” mais sérios no curso da “guerra fria”, os que deram ao mundo a impressão de se estar à beira de um conflito maior, foram a crise de Berlim e a guerra da Coréia. Na realidade, ambos deixaram clara a firme determinação das duas potências tanto para conservar as posições conquistadas na Segunda Guerra 627

Mundial como para não tentar alterá-las recorrendo ao conflito arma­ do entre si. Às medidas americanas para integrar a Alemanha Ocidental no bloco político-militar constituído com o Pacto Atlântico, Stalin respondeu com o bloqueio da zona Oeste de Berlim. O general Clay propôs quebrá-lo com um comboio armado, mas, em Washing­ ton, decidiu-se evitar toda medida que pudesse provocar um conflito bélico, optando-se pela organização do abastecimento da “sua” Berlim através da famosa ponte aérea. As autoridades soviéticas não toma­ ram nenhuma providência militar para impedi-lo. Num primeiro mo­ mento, consideraram que o abastecimento da zona adversária não poderia ser assegurado por este procedimento. Quando, ao cabo de alguns meses, comprovaram o êxito do processo, preferiram negociar. O bloqueio foi suspenso em maio de 1949 ,8. O “lance” da relação de forças na “frente européia” terminou em empate. O segundo conflito maior — o mais grave — da “guerra fria” foi o da Coréia. Ainda não é possível saber com inteira segurança quem tomou a iniciativa das hostilidades'9. As forças militares so­ viéticas e americanas haviam se retirado do país há mais de um ano, ali permanecendo apenas equipes de conselheiros e instrutores, mas é evidente que Washington controlava o regime reacionário de Syngmai Rhee, ao sul do paralelo 38, enquanto Moscou dava a última palavra nas decisões do regime revolucionário instaurado no Norte. Se for verdade — e isto é o mais provável, a julgar pelos dados dis­ poníveis — que a iniciativa coube aos nortistas, ela estava perfeita­ mente justificada a partir de um ponto de vista revolucionário e nacional. E o fulminante avanço do exército popular até o extremo Sul da península evidenciou a debilidade do governo tutelado pelos americanos. Mesmo supondo-se que a primeira “provocação” na linha divisória tenha sido dos sulistas, a resposta avassaladora e massiva dos nortistas, todo o desenvolvimento da sua ofensiva, colo­ cou em destaque que a deliberação de libertar o Sul do país pelas armas fora tomada muito antes, com a operação cuidadosamente preparada. E isto não teria sido possível sem o acordo e a colaboração de Moscou. Enquanto provas documentais não demonstrem o con­ trário, a hipótese que parece a mais plausível é a de que Stalin decidiu explorar as forças e as disposições americanas no Extremo Oriente soviético, servindo-se das legítimas aspirações das forças revolucionárias coreanas no sentido de unificar o país. Possivelmente, ele se propôs testar as declarações oficiais americanas, segundo as quais o Sul da Coréia não estava incluído no “perímetro defensivo” 628

dos Estados Unidos20. Porém, quando Washington resolveu intervir, impondo, ademais, a interferência das Nações Unidas em favor dos sulistas, a posição do Kremlin se tornou muito prudente. Nem mesmo proporcionou apoio aéreo aos nortistas, cujas forças foram derrota­ das sobretudo graças à ação da aviação e da frota americanas. Indu­ bitavelmente de acordo com Moscou, o governo de Mao divulgou que só interviria se as tropas de MacArthur ultrapassassem o paralelo 38, o que significava propor a solução do conflito à base do retorno ao statu quo ante. Mas, então, foi Washington quem se decidiu a “jogar” com as forças e as disposições soviéticas, arrancando da ONU a deliberação de prosseguir avançando até a fronteira sinocoreana. A intervenção dos “voluntários” chineses conduziu nova­ mente as operações para o Sul do paralelo 38 e levou à beira do desastre o exército do fanfarrão MacArthur. Este propôs que se lançassem bombas atômicas sobre a Mandchúria, e Moscou fez saber que, se isto ocorresse, colocaria em ação as suas forças. Washington destituiu MacArthur, apesar da sua auréola, diante da opinião pú­ blica norte-americana, de herói da campanha do Pacífico. E Moscou não ofereceu à infantaria chinesa o apoio aéreo que teria permitido lançar ao mar as tropas imperialistas. Estas puderam se recompor e voltar de novo ao paralelo 38. A 10 de julho de 1951 iniciaram-se as negociações para um armistício. Decorreram ainda dois anos até se chegar a um acordo, durante os quais prosseguiu esta estranha guerra em que nenhum dos contendores queria ganhar. Resumindo: o “jogo” da relação de forças entre os dois blocos na “frente asiática” terminou também com um empate, como acontecera na “frente européia”. Mas o seu preço foi de quase 2,5 milhões de mortos e feridos (cerca de 1 milhão de chineses e 1 milhão de coreanos). Na segunda metade de 1951 e ao longo de 1952, as duas super­ potências começaram a ter uma idéia clara das respectivas forças e disposições, do novo equilíbrio mundial que se criara. Em primeiro lugar, equilíbrio militar. Os americanos viram potenciado o seu poder de “dissuasão” com o domínio da bomba de hidrogênio, mas já não detinham o monopólio atômico e era evidente que logo os soviéticos chegariam a possuir a bomba H. Por outro lado, a entrada da Re­ pública Popular da China em cena aumentava ponderavelmente a superioridade do bloco soviético em termos das forças militares con­ vencionais. Em segundo lugar, equilíbrio político. As áreas de influ­ ência consideradas vitais por cada uma das superpotências estavam 629

politicamente garantidas. Duas Europas, duas Alemanhas. Nenhum perigo revolucionário imediato para o capitalismo euro-ocidental, que iniciava um período de novo desenvolvimento com a ajuda do “fracassado” Plano Marshall. E, na área de projeção soviética, toda oposição parecia sufocada. A “guerra fria” contra a heresia iugoslava fracassara inteiramente e a Moscou não restava outra solução senão adaptar-se ao fato consumado. Sobrava o mundo colonial, em plena efervescência, mas nele os interesses das duas superpotências ainda não se enfrentavam diretamente. Era a hora da negociação. Em abril de 1952, Stalin declarou que o perigo da guerra diminuíra e poderia ser útil um encontro dos chefes das grandes potências21. Em setembro, afirmou que as contradições entre os países capitalistas eram “praticamente” mais fortes que as contradições entre o campo do socialismo e o do capitalismo; a perspectiva de guerras entre os países capitalistas era mais provável que a de uma guerra dos países capitalistas contra os socialistas22. Em dezembro, mostrou-se favorá­ vel à idéia de uma negociação com a nova administração americana (Eisenhower acabava de ser eleito presidente)23. Da “guerra fria” estava-se transitando para a “coexistência pacífica”. A morte de Stalin e a substituição na presidência americana aceleraram este processo, mas não foram a sua causa essencial, embora seja indis­ cutível que os sérios problemas internos criados para os chefes soviéticos com a morte de Stalin tenham pesado consideravelmente no giro sofrido pela política exterior do Kremlin a partir de 1953, giro que, conforme a tradição, determinou uma nova viragem na linha geral do movimento comunista.

Balanço do período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas Depois do XX Congresso do PCUS, a atividade do Centro de Informação dos Partidos Comunistas começou a ser objeto de crí­ ticas no movimento comunista. Seguindo a norma tradicional, não houve nenhuma discussão sobre o problema, mas em documentos dos partidos, declarações dos dirigentes, trabalhos históricos, etc., formularam-se avaliações com teor reprobatório, cujo conteúdo pode ser resumido em uma delas, tomada de fonte soviética autorizada: “ Na atividade do Centro de Informação dos Partidos Comunistas logo se manifestaram tendências negativas. Sob a influência das colocações 630

dogmáticas de Stalin acerca do caráter da nossa época, acerca dos problemas da paz, da guerra e da revolução, acerca das relações entre comunistas e social-democratas, acerca do papel da burguesia nacional, etc., diversos partidos estereotiparam a sua tática, come­ tendo por vezes sérios erros na direção da construção socialista nos países de democracia popular ou na direção do movimento operário e do movimento de libertação nacional. A política do diktat e da arbitrariedade, própria do culto da personalidade, atentou contra os princípios marxistas-leninistas das relações entre os partidos co­ munistas, ocasionou graves prejuízos a todo o movimento comunista, travou a elaboração criadora dos problemas atuais do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional e isolou os partidos comunistas das massas trabalhadoras 24. Os pres­ supostos teóricos e políticos implícitos nesta crítica têm pouco a ver com os da nossa análise25. Mas o simples fato de que ela tenha sido formulada publicamente é revelador das proporções da regressão da grande maioria dos partidos comunistas no período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas. O auge geral do movimento, resumido no primeiro capítulo deste tomo, a partir de 1947 converteu-se, com raras exceções, em retrocesso geral. A principal exceção, como já vimos, teve dimensão histórica: o triunfo da revolução chinesa. Outra exceção: a guerra nacional revolucionária dos comunistas vietnamitas, somente com o apoio direto dos comunistas chineses. No interior do capitalismo ocidental, apenas o Partido Comunista Italiano conseguiu conservar os seus efetivos e a sua influência. Exceto estes três casos, é difícil encontrar um partido comunista que, no período, não tenha decli­ nado. O outro “grande” do comunismo ocidental perdeu cerca da metade dos seus filiados. Os partidos comunistas no poder, no âm­ bito da área de projeção soviética, saíram do período profundamente debilitados, como o provaram as crises de 1956. O fenômeno atingiu também a União Soviética, onde as latentes esperanças de renovação, emergentes ao fim da guerra, foram defraudadas, abrindo o espaço para uma apatia política sem precedente. Inclusive na China, a evo­ lução do partido nos anos seguintes à vitória teve um nítido caráter regressivo, em comparação com a sua trajetória anterior. Entretanto, enquanto no mundo capitalista a deterioração do movimento comu­ nista se manifestou claramente, nos países “socialistas ela perma­ neceu encoberta até o XX Congresso do PCUS, sob a fachada do Estado ditatorial burocrático e a mistificação propagandistica do de631

senvolvimento real. Os efetivos progressos da reconstrução econômica e da industrialização permitiam dissimular as contradições e os es­ trangulamentos que se acumulavam. Tratou-se, portanto, de uma regressão geral, mundial, do movimento comunista que, vista a partir da perspectiva atual, aparece em sua verdadeira significação: não foi um fenômeno conjuntural, mas o começo do declínio histórico irre­ versível do partido comunista de tipo staliniano. As causas profundas residiam em toda a história deste partido, mas, naquele período — como em cada um dos precedentes e dos ulteriores —, adquiriram uma forma concreta, peculiar. A nível político geral, a causa primeira do retrocesso, fora das fronteiras do campo socialista”, parecia ser a ofensiva das forças reacionárias, encabeçadas pelo novo aspirante ao papel de gendarme universal. Na realidade, esta ofensiva — a sua própria possibilidade, seus êxitos maiores ou menores conforme os países — explica-se fundamentalmente pela política de claudicações ante a coalizão an­ glo-americana e as burguesias “antifascistas” seguida no período pre­ cedente, política que debilitou o impulso adquirido pelo movimento de massas no quadro da vitória antifascista e minou interiormente a capacidade de ação revolucionária que ainda se abrigava nos par­ tidos comunistas. A via do eleitoralismo, do cretinismo parlamentar, das ilusões na perenidade da “grande aliança” — numa palavra, a via da colaboração de classes em escala nacional e internacional — desarmou o movimento, desmoralizou as novas gerações de lutadores que ingressaram nas suas fileiras nos anos da Resistência e da Li­ bertação. Por isto, a ofensiva do imperialismo americano e das bur­ guesias nacionais — soterrada em 1944-1945, aberta a partir de 1947 — praticamente não encontrou oposição, salvo no terreno das reivindicações econômicas cotidianas. Os dois únicos partidos comu­ nistas do capitalismo industrial que estavam em condições de desem­ penhar o principal papel neste terreno, melhor que a social-demo­ cracia, eram os da França e da Italia. Por isto, conseguiram conservar em maior ou menor grau a sua influência na classe operária, embora o primeiro — como vimos — tenha perdido grande parte dos seus efetivos organizados. Eles «demonstraram não ser o partido da re­ volução, mas, em troca, mostraram à classe operária que eram úteis na luta pelos seus interesses cotidianos. Em todos os outros países “avançados”, os partidos comunistas se converteram de novo em pequenos grupos marginais, impotentes em face dos grandes partidos social-democratas e das centrais sindicais reformistas — mesmo na 632

Alemanha Ocidental, onde o partido comunista reconstruído não foi mais que a sombra de um passado distante26. Sobre o Partido Comu­ nista norte-americano, reduzido à sua mínima expressão depois da expulsão de Browder (então, uma fração considerável de militantes abandonou o partido), em meio à indiferença das massas operárias, abateu-se a repressão macartista. Os comunistas espanhóis tiveram que interromper a sua luta guerrilheira, que não encontrava eco nem apoio suficiente numa população desmoralizada pela tremenda der­ rota de 1939, pelo terror a ela subseqüente e pela nova “traição das democracias”. Quanto ao drama dos comunistas gregos, a ele já nos referimos. Em 1947, os Estados Unidos concertaram com as oligarquias latino-americanas o Pacto do Rio de Janeiro, ponto de partida de uma ofensiva anticomunista geral na América Latina. A maioria dos partidos comunistas do continente — que, sob a influência da polí­ tica da “grande aliança”, acentuada em alguns deles pela corrente browderista, praticamente tinham abandonado nos anos anteriores a luta antiimperialista — foi jogada na ilegalidade, sem que pudesse organizar qualquer resistência eficaz. Quase todos sofreram crises internas que agravaram a sua impotência política27. Na Indonésia, na Birmânia, na Malásia e nas Filipinas, os partidos comunistas — influenciados pela experiência chinesa, mas sem assimilá-la — passaram à luta armada sem preparação suficiente, com a agravante de que a política oportunista, a reboque da burgue­ sia nacional, praticada no período precedente, colocara-os em situação desfavorável. Os movimentos armados foram liquidados ou tiveram que recolher-se a áreas isoladas, iniciando uma luta guerrilheira de longa duração. O Partido Comunista da Índia foi debilitado neste período por agudas lutas intestinas entre a tendência oportunista de direita que predominara na fase anterior, convertendo o partido num apêndice da burguesia nacional, e tendências esquerdistas sec­ tárias, que não faziam nenhuma distinção no interior da burguesia hindu e nem compreendiam a lição chinesa sobre o potencial revo­ lucionário das massas camponesas28. Também o Partido Comunista japonês foi enfraquecido por lutas internas, além de sofrer com as medidas repressivas adotadas pelos ocupantes americanos durante a guerra da Coréia. No plano do regime interno dos partidos comunistas, o período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas expressou a acentuação do centralismo burocrático e da monolitização ideológica. 633

Foi uma espécie de segunda “bolchevização” dos partidos, realizada sob o signo da luta contra o titoísmo — como a primeira se realizara sob o signo da luta contra o trotskismo. A depuração se pôs na ordem do dia. Poucos foram os partidos que não sofreram crises nos seus organismos dirigentes, para não falar dos escalões inferiores. A vida política interna tornou-se mais rotineira que nunca, desvanecendo-se o sopro de ar fresco que viera com os primeiros anos da Resistência e da Libertação. O princípio supremo que presidiu esta segunda “bolchevização” foi o mesmo que conduziu a primeira: assegurar a coesão monolítica do movimento sob o comando e o “marxismo” moscovitas. Coesão ameaçada nesta conjuntura — como evidenciou a heresia iugoslava — pelas correntes nacionais, e naciona­ listas, que foram avivadas pela guerra e pela dissolução da Interna­ cional. O Centro de Informação dos Partidos Comunistas constituiu um instrumento político e organizacional contra estas tendências. Outro, de tipo especificamente ideológico, foi o culto a Stalin. As dimensões adquiridas por este fenômeno expressavam, sem dúvidas, o extremo a que chegara o abandono do marxismo e a sua substitui­ ção por uma espécie de fideísmo, travestido de pragmatismo e de praticismo, mas elas se explicam também pela função utilitária que o “culto” desempenhava no sentido de travar as mencionadas ten­ dências centrífugas. O florescimento paralelo dos cultos aos chefes comunistas nacionais era um fenômeno mais complexo: tinha a fun­ ção de assegurar a coesão monolítica de cada partido em torno do chefe fiel a Stalin, mas, ao mesmo tempo, expressava obscura­ mente — de modo inconsciente em alguns casos e não tão inconsci­ ente em outros — a resposta nacional ou nacionalista ao culto da hegemonia soviética (o culto a Stalin personalizava este outro, mais profundo, ao comando de Moscou, e que prosseguiu quando da condenação do primeiro, tendo sua nova personalização no pitoresco Nikita). No juízo crítico oficial sobre a atividade do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, citado páginas atrás, reconhe­ ce-se que “a política do diktat e da arbitrariedade [. . . ] travou a elaboração criadora dos problemas atuais do movimento operário internacional e do movimento de libertação nacional”. O verbo travar funciona aqui como eufemismo para designar a total esteri­ lidade que, no período do Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas, caracterizou o domínio da “elaboração criadora”. Neste 634

terreno, não se pode dizer que a situação mudou para pior: sim­ plesmente, prolongou-se a situação anterior. Mas as suas conseqüências eram cada vez mais graves porque, enquanto isto, o mundo, profundamente transformado pela guerra, continuava avançando e colocando problemas de crescente complexidade. Diante da proble­ mática das novas revoluções proletárias e da rebelião dos povos oprimidos pelo colonialismo, da generalização do capitalismo mono­ polista de Estado e da luta operária nas condições desta nova fase capitalista, o movimento comunista continuou agitando rotineira­ mente as fórmulas e os tópicos de outrora. Nenhuma investigação, nenhum debate autêntico, nenhuma idéia nova. Em todos os casos, a ressurreição das velhas idéias reformistas e pacifistas, ligeiramente maquiadas. O regime interno dos partidos não permitia que ninguém levantasse a mais leve proposição inovadora. E se, por acaso, uma surgia — coisa difícil, dado o esclerosamento dos cérebros comu­ nistas produzido por mais de duas décadas de monolitismo ideoló­ gico — , era liquidada no nascedouro. Somente ao cérebro do Grande Teórico se reconhecia a capacidade — e o direito — de propor idéias novas (alguns economistas, historiadores e filósofos soviéticos pagaram caro as suas tímidas infrações à regra). Em 1950, o Grande Teórico ganhou a cátedra no domínio da lingüística, “enriquecendo” de passagem a teoria marxista da base e da superestrutura. Em 1952, abordou os “problemas econômicos do socialismo”, diagnos­ ticando de passagem o estado do capitalismo e as suas perspectivas. A vacuidade teórica destas últimas proposições stalinianas é sufi­ cientemente conhecida para que não nos detenhamos nelas. Limi­ tar-nos-emos a indicar que Stalin transpõe à nova situação o seu esquema da revolução socialista mundial derivado da doutrina do “socialismo num só país”. Dando por construído o socialismo inte­ gral na URSS, Stalin formula a tese de que também é perfeitamente possível construir o comunismo no espaço soviético, ainda que no resto do mundo (fora do “campo socialista”) subsistam o capitalismo e o imperialismo29. E, com a ajuda da URSS, é possível a construção do socialismo integral nas democracias populares européias e asiá­ ticas. O “ritmo do desenvolvimento industrial nestes países” é tal — diz Stalin — “que logo não terão mais necessidade de importar mercadorias dos países capitalistas”30 — ser-lhes-á suficiente o co­ mércio com a União Soviética. Por outro lado, o capitalismo marcha rapidamente para a sua cova. Os principais países capitalistas “esforçam-se por remediar as suas dificuldades através do Plano 635

Marshall, da guerra da Coréia, da corrida armamentista, da militari­ zação da indústria; mas isto se parece muito ao afogado que se agarra a um pedaço de palha”. Stalin chega a esta conclusão baseado em que “o resultado econômico da existência de dois campos opostos foi a desagregação do mercado único, universal, a criação de dois mercados mundiais paralelos que se opõem mutuamente”. Enquanto o “mercado mundial socialista” desenvolver-se-á continuamente, sem limites intrínsecos, o mercado mundial capitalista se irá contraindo, o que terá por conseqüência que “o volume da produção diminuirá [nos principais mercados capitalistas]”. Isto provocará a exacerbação das contradições entre tais países e tornará inevitáveis as guerras entre eles, ao passo que será cada vez mais difícil uma guerra do bloco capitalista contra o bloco socialista. Ao fim deste desenvolvi­ mento triunfal do socialismo e do comunismo no interior do “campo” regido pela URSS e da contínua regressão do capitalismo dentro do “campo” regido pelos Estados Unidos encontra-se, natural e inevi­ tavelmente, a vitória mundial do socialismo. Daí que o problema essencial a resolver, para garantir este curso irresistível da história, consistisse em impedir que as potências capitalistas — cedendo, como dizia Suslov, a um “acesso de fúria” provocado pelo seu contínuo debilitamento — agredissem o "campo socialista”, pertur­ bando a sua marcha triunfal no rumo do comunismo. Garantir a paz “sólida e duradoura” — impensável sem um compromisso “só­ lido e duradouro” entre as duas superpotências — tinha que ser o objetivo número um dos partidos comunistas. E, por isto, a luta pela revolução socialista nos países capitalistas ficava naturalmente relegada a um plano secundário e, sobretudo, subordinada à consi­ deração suprema de não pôr em risco a paz mundial. O importante era que os partidos comunistas agrupassem em cada país os partidá­ rios da paz — a fim de opor um dique a toda veleidade belicosa anti-soviética da superpotência americana — e os partidários da independência nacional — a fim de contribuir para o aprofunda­ mento das contradições entre as potências capitalistas. As duas tarefas não deviam ser dificultadas com a proposição de objetivos político-sociais internos incompatíveis com os setores patrióticos, de­ mocráticos e pacifistas das respectivas burguesias. Daí que, em suas últimas recomendações aos partidos comunistas (no discurso que pronuncia no XIX Congresso do PCUS, em outubro de 1952), Stalin não faça nenhuma referência à luta por objetivos socialistas dentro dos países capitalistas. Afirma aos chefes comunistas do Ocidente 636

presentes ao congresso: “Se vocês quiserem ser patriotas e se con­ verter na força dirigente da nação, devem levantar bem alto a bandeira da independência e da soberania nacional, das liberdades democráticas burguesas e da paz” 31. A bandeira do socialismo deve continuar prudentemente recolhida.

NOTAS 1 O congresso reuniu-se segmentado — os delegados da URSS e das demo­ cracias populares em Praga e os restantes em Paris — porque as autoridades francesas negaram o visto aos representantes socialistas. 2 G r a n d e E n c ic lo p é d ia S o v ié tic a , 2a. ed., em russo, t. 13, p. 456. 3 Ib id ., p. 458. 4 Ib id ., t. 41, p. 28. 5 Ib id ., t. 13, p. 456. à Ib id ., lâmina incluida entre as pp. 456 e 457. 7 Stalin, D e r n ie r s É c rits (19 5 0 -1 9 5 3 ), Éditions Sociales, Paris, 1953, pp. 125-126. 8 Cfr. artigo de Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Bra­ sileiro, no número 126 (5 de junho de 1953) do órgão do Centro de Infor­ mação dos Partidos Comunistas, P o r u m a p a z d u ra d o u r a , p o r u m a d e m o c r a c ia p o p u la r.

9 cfr. Suslov, M.,

I n fo r m e à R e u n iã o d o C e n tr o d e I n fo r m a ç ã o d o s P a rtid o s C o m u n is ta s, S e g u n d a Q u in ze n a d e N o v e m b r o d e 1949. Utilizamos a versão

espanhola publicada em folheto, junto com outros materiais da reunião, pelo PCE, em 1950. A citação foi extraída da p. 21. 10 C a h ie rs d u c o m m u n is m e , n.° 5, maio de 1950, pp. 49-50, 53. 11 V I I C o n g r e so d e i P a rtito C o m u n is ta I ta lia n o (re s o c o n to ), Cultura Sociale, Roma, 1954, pp. 21, 22 e 32. Os grifos são nossos. 12 Cfr. Fauvet, J., H is to ir e d u P C F , cit., t. II, pp. 242-243. 13 Informe citado na nota 9, p. 9. Sublinhados nossos. As citações que fazemos em seguida encontram-se sucessivamente às páginas 20, 8, 15, 20, 14, 16, 17 e 14. 14 A p u d N o u v e lle C r itiq u e , n.° 50, 1953, p. 131. Quanto a Togliatti, tomamos a referência das suas obras escolhidas em russo, Edições Literatura Política, Moscou, 1965, t. I, p. 560. 15 Cfr. L a P en sée, Paris, n.° 44, setembro-outubro de 1952, p. 4. 18 P o r u m a p a z d u ra d o u r a , p o r u m a d e m o c r a c ia p o p u la r, 18 de fevereiro de 1955, entrevista de Kruschev aos jornalistas americanos W. R. Hearst, J. Kingsbury Smith e F. Connif, em 5 de fevereiro de 1955. Kruschev disse textualmente: “A União Soviética não quis atuar em detrimento dos seus aliados na luta contra o hitlerismo. H á c in c o a n o s as condições de mobi­ lização dos Estados Unidos eram menos avançadas que hoje. De acordo com o ponto de vista dos que consideram que se deve atacar no momento mais favorável, se a União Soviética quisesse agredir o Ocidente, deveria tê-lo feito naquela época”. Os grifos são nossos. 17 Observe-se a conexão desta “teoria” com a formulada por Stalin, segundo a qual a luta de classes se agravava indefectivelmente na União Soviética e 637

nas democracias populares na medida em que avançavam na construção do socialismo. Além da sua nulidade científica, ambas têm em comum o seu utilitarismo. A de Stalin serviu (e continua servindo), como bem se sabe, para justificar entre muitas outras ações reacionárias — a repressão contra os comunistas e outros cidadaos opositores do regime autocráticoburocrático (ou acéfalo-burocrático, neste último período); serviu e serve para mistificar a luta entre as tendências progressistas e conservadoras no interior deste regime, batizando as primeiras de anti-socialistas e as segundas de socialistas. A de Suslov (na verdade, de Stalin; Suslov era um simples porta-voz) serviu, nos inícios dos anos cinqüenta, para justificar a linha impos­ ta por Stalin ao movimento comunista, o abandono da luta pelo socialismo, a campanha antititoísta, os processos, etc. E hoje a encontramos em filigrana entre as justificações da invasão da Tchecoslováquia, bem como, doze anos antes, nas do envio dos tanques a Budapeste. 18 Cfr. André Fontaine, H isto ir e d e la G u e r re F ro id e , cit., t. II, pp. 420-427. Ib id ., p. 14 e Fejto, F., C h in e -U R S S , la F in d 'u n e H é g é m o n ie , p. 77, 20 Cfr. Fontaine, o p . cit., t. II, p. 14. 21 Stalin, D e r n ie r s É c rits (1 9 5 0 -1 9 5 3 ), cit., pp. 80-81. 22 Ib id ., pp. 124-125. 23 Ib id ., p. 190. 24 H is tó r ia d o M o v im e n to O p e r á rio I n te r n a c io n a l e d o M o v im e n to d e L ib e rta ç ã o N a c io n a l, em russo, Ed. Misl, Moscou, 1966, t. III, p. 592. Recordamos que esta obra, a que nos referimos em outras passagens do nosso trabalho, serve como texto na Escola Superior de Quadros do Partido Comunista soviético, o que lhe confere especial autoridade dentro da ortodoxia oficial. 25 Os dogmas de Stalin condenam-se aqui em nome dos dogmas do XX Con­ gresso sobre a evitabilidade das guerras, a via pacífica ao socialismo, o papel antiimperialista da burguesia nacional nos países atrasados, a unidade com a social-democracia, etc. Uns e outros dogmas — além do seu parentesco ideológico: improvisação e pragmatismo — tinham em comum servir à mesma orientação estratégica: assentar a “coexistência pacífica” num compromisso sólido e duradouro (a “paz sólida e duradoura” da campanha pacifista do Centro de Informação dos Partidos Comunistas) com o imperialismo americano. Dal o paradoxo que se encontra no texto de onde retiramos o citado juízo crítico: ao mesmo tempo em que se condena severamente a “atividade” do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, qualifica-se de inteiramente justa a sua “linha geral”. Na realidade, depois do XX Con­ gresso, o que se criticou foram certas modalidades táticas da aplicação desta linha geral. Por outro lado, em relação ao Centro de Informação dos Par­ tidos Comunistas — como em relação a outros problemas mais importantes , Stalin foi o bode expiatório de algumas das conseqüências nefastas da política anterior, assim como o “culto da personalidade” se converteu em receita magica para explicar todos os males. Desta maneira, escamoteava-se a análise critica, marxista, das causas profundas, enraizadas na natureza mesma do sistema staliniano, nas suas formas estatais como na sua forma de movimento comunista” — o que facilitava o prosseguimento de uma política e a utilização de métodos muito semelhantes aos do passado. Estes problemas serão tratados na continuidade desta obra. 26 A seguir, fornecemos alguns dados sobre a evolução dos partidos comunistas da Europa ocidental no período do Centro de Informação dos Partidos Comunistas (a maior parte dos quais extraídos do livro, já citado, de B. Lazitch, L e s P a rtis C o m m u n is te s d ’E u ro p e', as informações referentes 638

à imprensa comunista francesa foram tomadas da obra, também já citada, de Annie Kriegel).

L e s C o m m u n is te s F ra n ça is, P a rtid o C o m u n is ta Ita lia n o

1947: 1.889.505 militantes 1952: 2.093.540 militantes

1946: 19% de votos 1953: 22,7% de votos

P a rtid o C o m u n is ta F ra n c ê s

1946: 1.034.000 carteiras distribuídas, 804.229 militantes 1954: 506.250 carteiras distribuídas Depois de 1946, a direção do PCF só tornou públicas as cifras de cartei­ ras distribuídas pelo Comitê Central às federações regionais, sem divulgar os números efetivos de militantes que os subscreveram. Levando em conta a di­ ferença existente entre as duas cifras em 1946, é possível supor-se que em 1954 o número real de militantes girasse em torno de pouco menos que 400.000. 1946: 28,6% de votos 1956: 25,3% de votos Em 1947, a imprensa do PCF tinha uma tiragem de 2.770.000 exem­ plares, sobre o total de 11 milhões da imprensa diária (nesse ano, o PCF possuía mais de 30 diários ou semanários regionais). Em 1952, a tiragem da imprensa do PCF cai para 900.000 exemplares (desaparecem publicações re­ gionais e se reduz a tiragem de L ’H u m a n itê )\ o conjunto da imprensa francesa continua tirando cerca de 11 milhões de exemplares. P e q u e n o s p a r tid o s c o m u n is ta s e u r o p e u s legais

n

% d e v o to s M ilita n te s P a ís 150.000(1948) 28.000 (1951) 1945: 5,4 1953: 5,4 Áustria 100.000(1945) 14.000 (1954) 1946: 12,7 1954: 3,5 Bélgica 75.000 (1945) 21.000(1953) 1945: 12,5 1953: 4,3 Dinamarca 47.513 (1944) 34.801 (1953) 1945: 0,4 1955: 0,1 Inglaterra 150.000(1946) 50.000 (1952) 1945: 23,5 1951: 21,6 Finlândia 53.000(1946) 16.000 (1955) 1946: 10,5 1952: 6,2 Holanda 45.000 (1945) 13.000 (1953) 1945: 11,9 1953: 5,1 Noruega 48.000 (1946) 28.000 (1953) 1944: 10,3 1952: 4,3 Suécia 8.000 (1953) 1947: 5,1 1951: 2,7 13.500(1945) Suíça 1949: 5,7 1953: 2,2 (não há dados) Alemanha Ocidental Segundo dados de historiadores soviéticos, o conjunto dos partidos comunistas latino-americanos, em 1947, tinha meio milhão de militantes (cfr. p. 385 da obra citada na nota 24); em 1964, este número não chegava a 300.000 (cfr. Ponomariov, B., E l M o v im ie n to R e v o lu c io n á r io I n te r n a c io n a l d e la C la se O b rera , Progreso, Moscou, em espanhol, p. 362). Levando em conta que, de acordo com a primeira obra citada, houve um progresso importante após 1956, torna-se visível o drástico refluxo do movimento comunista latino-americano no período do Centro de Informação dos Partidos Co­ munistas. Durante estes anos, as crises internas se sucederam nos partidos latino-americanos. Em 1953, foi excluído do Partido Comunista Chileno o grupo “fracionista” de Reinoso, acusado de propagar concepções anarcosindicalistas. Em 1955, sob a acusação de nacionalismo, o partido uruguaio expulsou de suas fileiras o ex-secretário-geral Gómez Chiribano. O Partido Comunista Venezuelano expulsou o grupo “fracionista encabeçado pelo ex-secretário-geral Fuenmayor. Em 1952, o partido colombiano tomou me­ didas contra uma tendência acusada de desvios esquerdistas. 639

A crise mais importante, provavelmente, foi a do Partido Comunista Argentino, cuja direção, dominada por Codovilla, sempre se distinguiu pela imitação dos partidos europeus. Este mimetismo levou o partido a identificar o peronismo ao fascismo preconizando, diante dele, uma tática de frente popular. O melhor dirigente do partido, Juan José Real, criticou esta política, sugerindo uma tática nova, centrada na aliança com as tendências antiimperialistas do peronismo, sob cuja influência se encontrava a maioria esma­ gadora da classe operária. Juan José Real, juntamente com outros militantes, foi expulso e a camarilha de Codovilla desfechou contra ele uma ignóbil campanha de calúnias. xambém neste período (1948) iniciou-se a guerra civil colombiana de­ sencadeada com o assassinato do líder liberal Gaitán, na qual tomou parte ativa o partido comunista. A guerra civil durou até 1958. No seguimento desta obra abordaremos amplamente a problemática do movimento comunista na América Latina e a sua trajetória histórica. 28 Durante estes anos, nos partidos comunistas do Sul e do Sudeste asiático ocorreu uma aguda luta de tendências em torno dos problemas da luta armada e da atitude diante da burguesia nacional. A estratégia do partido chinês, como vimos, consistiu em promover a aliança com os núcleos antiimperialistas da burguesia nacional, mas conservando sempre a independência e a hegemonia das forças revolucionárias. A política de Stalin, quando se inicia a guerra fria, induziu aqueles partidos a uma posição sectária em face destes problemas, partindo da influência que a demagogia anticolonialista da política americana exercia sobre as burguesias nacionais. Por outro lado, a estratégia maoísta na luta armada sempre se distinguira por sua prudência tática, re­ cusando qualquer movimento insurrecional prematuro. As tendências de esquerda que, sob a influência da revolução chinesa, se desenvolveram nos partidos do Sul e do Sudeste asiático não observaram esta prudência na luta armada e se lançaram a ela sem a preparação suficiente — além de atacar em bloco a burguesia nacional. 29 Em 1946, Stalin formulou pela primeira vez a tese de que “o comunismo num só‘ país é perfeitamente concebível, particularmente num país como a URSS” (entrevista ao S u n d a y T im e s , 17 de setembro de 1946). Stalin, D e r n ie r s É.cvits (1 9 5 0 -1 9 5 3 ), ed. cit., p. 121. Na mesma página, diz; “A experiência mostra que nenhum país capitalista teria podido oferecer aos países de democracia popular uma ajuda tão eficaz e tecnicamente qualificada como a que receberam da URSS”. 3' Ib id ., p. 188.

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PRIMEIRO EPÌLOGO N a história universal, as ações dos homens resultam em algo distinto do que projeta­ ram e desejaram, do que sabem e querem imediatamente. Os homens realizam os seus interesses, mas, ao mesmo tempo, produz-se outra coisa, oculta, que a sua consciência não apreende e que não entrava nas suas previsões. Hegel.

Com a morte de Stalin, o movimento comunista entra no seu ocaso histórico, na etapa da sua crise geral, cujo estudo será o tema da parte restante deste ensaio: a que sera dedicada ao período compreendido entre o XX Congresso do PCUS e a ruptura sinosoviética e a que se consagrará à fase atual’. O referido estudo será iniciado com uma análise global das contradições internas do regime soviético sob Stalin, cuja dialética levada a um ponto crítico pelo desaparecimento do grande chefe carismático — provoca a primeira comoção profunda no epicentro do movimento comunista. As ondas desta comoção rompem diques ideológicos, políticos e organizacionais nos regimes do “campo socialista e nos partidos comunistas exteriores ao “campo”, nas relações interestatais e interpartidárias. Exacerbam-se os conflitos latentes e as tendências cen­ trífugas. Derrubam-se mitos e dogmas. A dúvida, quando não a angústia, instala-se nas consciências. As crises parciais e periféricas se fundem com a do centro soviético numa crise unica, geral, de todo o movimento comunista. Até a presente etapa do nosso estudo, não julgamos imprescin­ dível a análise global da evolução do regime soviético sob Stalin, levando em conta que a crise do movimento comunista se inicia historicamente na sua periferia. Como vimos, manifesta-se primeiro no fracasso da Internacional Comunista, tanto no mundo capitalista quanto no colonial; depois, na impotência do movimento comunista europeu para oferecer uma solução revolucionária à crise catas­ trófica do capitalismo continental nos anos quarenta; e, mais tarde, na ruptura iugoslava e na degradação das democracias populares (refletida no espelho magicamente macabro dos processos). Entre­ mentes, o regime staliniano se afirma e fortalece no interior das 641

fronteiras soviéticas, destruindo implacavelmente tudo o que se interpõe no seu caminho — da oposição reacionária do kulak à revolucionária da velha guarda bolchevique. Constitui-se e se desen­ volve como sistema social totalmente inédito, não apenas na história, mas ainda em face das previsões teóricas marxistas — nem capitalista nem socialista, funda-se no usufruto dos principais meios de produção por um novo tipo de classe social, que começa a se formar com os elementos capazes de assumir a função mais útil e urgente num enorme país arruinado e faminto: organizar e dirigir a economia. Acreditando subjetivamente — ao menos durante algum tempo _ construir o socialismo, encarnar a ditadura do proletariado, realizar o marxismo, esta nova classe dirigente se converte praticamente em usufrutuária dos meios de produção, acima de toda intervenção e controle das massas trabalhadoras, e adquire progressivamente as características subjetivas de classe dominante. Nascido da liquidação da democracia soviética de 1917, este regime revela a sua capacidade para desenvolver as forças produtivas, tirar o país do atraso econô­ mico e cultural e industrializá-lo a ritmos sem precedentes na his­ tória da humanidade. Ao fim dos anos quarenta — como reconhe­ ceria de fato o XX Congresso —, as estruturas sócio-políticas já haviam entrado em contradição com o nível alcançado pelas forças produtivas, com as exigências do seu ulterior desenvolvimento. Se a luta de camarilhas pela sucessão — unica maneira de resolver o problema sucessório num sistema político privado de qualquer ele­ mento democrático, onde o ditador não é hereditário e as condições para a revolução ainda não estão presentes — revestiu-se com a conhecida implacabilidade, as coisas não se explicam fundamental­ mente por ambições pessoais, mas porque, na base desta luta, estava a contradição referida, levada a certo grau de periculosidade e entrelaçada a outros conflitos e tensões, tanto dentro do Estado soviético como no conjunto do “campo socialista” e do mbvimento comunista. A própria dialética da luta pelo poder, emitais condições, produziu o “relatório secreto” de Kruschev, revelação brutal __ apesar das mistificações que deliberadamente continha — da natureza profunda do sistema. O que até esse momento fora considerado pelos comunistas como calúnias da burguesia ou dos “renegados” vinha oficialmente confirmado pelo novo secretário-geral. Ocorria que, na pátria do socialismo”, o poder nâo estava, há muitos anos, nas mãos dos trabalhadores, nem sequer nas do partido que dizia representá-los, mas nas de um ditador todo-poderoso, servido por uma 642

polícia onipresente, cujos principais métodos de governo eram o crime político e a manipulação ideológica das massas. Ocorria que a campanha contra a revolução iugoslava fora uma infame provocação tramada por Stalin e sua polícia, no mesmo estilo dos processos montados nas democracias populares — donde se deduzia que, nes­ tas, tampouco o poder estava com os trabalhadores ou com os par­ tidos que diziam representá-los ou com um ditador nacional, mas cabia ao novo autocrata russo e sua polícia secreta. Ocorria que a política geral do movimento comunista não só não fora decidida pelos partidos membros, mas também não o fora pelo partido guia , uma vez que as altas instâncias deste último (congresso, comitê central) eram arbitrariamente manipuladas pelo amo do Kremlin e a camarilha de plantão, controlada, por seu turno, pela inevitável polícia secreta. E assim por diante. O “relatório secreto reconhecia —- ou dele se deduzia, tão certamente como dois e dois são quatro — este fato chave, decisivo: em todas as esferas do mundo staliniano — Estado, partidos, ideologia, política, economia, cul­ tura —, a última palavra era da polícia secreta. Stalin era simul­ taneamente o chefe máximo e o joguete de um gigantesco mecanismo policial. Até então, o regime soviético se irradiara sobre o movimento comunista constituído ao seu redor não tanto pelo que era, mas pelo que dizia e aparentava ser. Se pode impor-lhe seus dogmas e modelos, subordiná-lo à sua política de Estado, é porque aparece ante as forças revolucionárias mundiais como a primeira encarnação do socialismo e o cume do pensamento marxista. E se pode aparecer assim é porque a liquidação de certas formas históricas de opressão e exploração — capitalistas e feudais — , mais os êxitos quantita­ tivos da industrialização e da difusão da cultura, possuem um efetivo conteúdo libertador em relação ao regime czarista. Sob este real conteúdo libertador podiam se ocultar, durante algum tempo e com a ajuda da ideologia mistificadora segregada pelo próprio regime (adaptando-se para tanto o “marxismo”), as novas formas de aliena­ ção, de opressão e de exploração do homem — que, sob certos aspectos, significavam um retrocesso em comparação às conhecidas no capitalismo “ avançado”. O movimento da história, mais uma vez, revelava-se muito mais complexo e contraditório do que puderam supor as mais lúcidas previsões teóricas. No estudo precedente das primeiras manifestações históricas da crise do movimento comunista esteve sempre subjacente esta con643

cepção da evolução do regime soviético, da sua realidade e da sua aparência, e procuramos explicitar, segundo as exigências da análise, os instantes que mais decisivamente contribuíram para gestar os fatores de crise do movimento, seus fracassos e derrotas: a crença no conteúdo socialista do regime soviético e a sua adoção como modelo de Estado socialista e de partido revolucionário; a consa­ gração da sua ideologia como verdade definitiva do marxismo, fun­ damento da estratégia e da tática de todo partido comunista, do seu programa e da sua política; a subordinação da estratégia mundial da IC, primeiro, e, depois, do movimento comunista à política in­ ternacional do Estado soviético, etc. Porém, a partir dos aconteci­ mentos de 1953-1956 (denúncia de Beria e primeiras revelações dos métodos da polícia secreta, levante dos operários de Berlim, “reabi­ litação” da Iugoslávia, “relatório secreto”, outubro polonês e outubro húngaro, primeira intervenção armada do imperialismo staliniano contra um povo insurreto), a partir daí o regime soviético começa a incidir sobre o conjunto do movimento comunista, cada vez mais, não pelo que até então parecera ser, mas pelo que realmente era. De fato, as novas justificações ideológicas (utilização de Stalin como grande bode expiatório, explicação do seu absolutismo pelo “culto” e do “culto” pelo seu absolutismo, afirmação de que a aterrorizante realidade descrita no “relatório secreto” não afetara em nada a “essência socialista” do regime ou a essência científica do seu “mar­ xismo”), apesar da sua estultícia grosseira, satisfizeram a uma grande massa de comunistas — revelando-se, uma vez mais, até que ponto a sua formação ideológica perdera todo contacto com o marxismo vivo —, enquanto outros as consideraram como uma primeira e imperfeita autocrítica que poderia abrir a via à regeneração do movimento. Entretanto, uma nova realidade irrompera irremissivelmente, e o seu formidável poder desmistificador, destrutor de dog­ mas e mitos, desbastava o seu caminho, contra'todas as resistências subjetivas. Até então, os fracassos, as derrotas, a impotência dos partidos comunistas sempre eram explicados — quando não Se tra­ tava dos fatores objetivos’ — como devidos às suas imperfeições em face do modelo soviético: “ bolchevização” insuficiente, atraso teórico em comparação com o nível ótimo que era próprio do par­ tido soviético, etc. A partir de então, começou a emergir a idéia de que os males dos partidos comunistas e do conjunto do movi­ mento tinham origem na razão inversa — a sua semelhança com o modelo soviético. A crise do partido soviético converteu-se, assim, 644

no espelho da crise de cada partido comunista e do movimento comunista internacional. Daí a necessidade da análise global a que nos referimos e que nos levará ao XX Congresso, símbolo histórico da crise geral do movimento comunista. Encerraremos agora esta parte do nosso estudo retornando, de maneira sistemática, a alguns pontos que nos parecem essenciais para a compreensão global da origem histórica e do processo seguido pela crise do movimento comunista no período da Internacional Comunista e na década que se estende da sua dissolução à morte de Stalin. 1. Como vimos no capítulo sobre “a crise teórica”, a constitui­ ção da IC, a sua plataforma programática e as suas características organizacionais, as suas concepções estratégicas e táticas estiveram decisivamente condicionadas pela teoria leniniana da revolução russa e da revolução mundial. Mas o curso dos acontecimentos no capi­ talismo avançado infirmou muito rapidamente as hipóteses de Lênin sobre o grau de maturidade e o rumo imediato da revolução mun­ dial. Toda a história posterior evidenciou, cada vez mais claramente, que esta infirmação era índice de carências e de pressupostos equivo­ cados na representação teórica leniniana da sociedade capitalista ocidental; evidenciou que, a partir daquele momento, fazia-se obje­ tivamente necessário repensar toda a problemática da revolução so­ cialista neste tipo de sociedade. Esta necessidade objetiva, porém, não foi reconhecida e assumida pelas forças agrupadas na IC, exceto em aspectos muito parciais, fundamentalmente táticos. A frustração da revolução no capitalismo avançado foi tomada como um passa­ geiro dilema — essencialmente devido a “traição ’ dos chefes socialdemocratas — que não punha em questão as teses teóricas mar­ xistas, quer na sua versão ortodoxa clássica, quer na sua versão leni­ niana. Ao mesmo tempo, a vitória inicial da revolução proletária num país atrasado, semicapitalista, semifeudal, foi interpretada como a prova irrefutável de que a teoria marxista da revolução, na sua versão leniniana, chegara ao cúmulo da perfeição científica. O re­ gime soviético era a concretização exemplar da ditadura do prole­ tariado; o partido bolchevique, o tipo perfeito de partido revolu­ cionário; a estratégia e a tática leninianas, o modelo de estratégia e tática para todos os partidos comunistas, aos quais só restava adap­ tá-las às suas respectivas condições nacionais. No entanto, mesmo esta adaptação só parcialmente estava em suas mãos: em última 645

instância, quem decidia era o Comitê Executivo da IC, vale dizer, o centro bolchevique. Numa palavra, a verdade da revolução russa se converteu em verdade da revolução em todas as latitudes, com uns poucos ajustes menores. De posse desta verdade universal, a IC enfrentou-se, com “in­ transigência bolchevique”, com as outras tendências e frações do movimento operário. Não apenas fechou-lhes as suas portas: contri­ buiu, em larga medida, para tornar impossível a colaboração e a discussão com elas. Ao mesmo tempo em que se desvanecia a expec­ tativa da guerra civil internacional e se iniciava a coexistência mais ou menos pacífica entre o Estado soviético e os Estados capitalistas, instaurava-se um clima de guerra civil no seio do movimento ope­ rário. Ao invés de propiciar o intercâmbio fecundo entre a expe­ riência e o pensamento dos revolucionários russos, por um lado, e, por outro, os do movimento operário ocidental, a IC transformou-se em barreira — não apenas para as correntes reformistas (o que já era suficientemente grave, posto que envolviam a maioria do prole­ tariado e só a vinculação viva com essas massas poderia tornar eficaz a luta política e ideológica contra o reformismo), mas também para correntes revolucionárias de tipo sindicalista ou anarco-sindicalista e inclusive para as de matiz autenticamente marxista, como o luxemburguismo, a expressa por Ordine Nuovo e outras, nascidas na es­ querda da social-democracia. As clarividentes reflexões críticas de Rosa Luxemburgo sobre a revolução russa e o modelo bolchevique de partido, a sua profética advertência sobre as graves conseqüências que teria para o movimento operário internacional a pretensão de lhe impor como norma o bolchevismo, as suas idéias sobre a estra­ tégia e a tática nas condições alemãs — tudo isto foi repudiado liminarmente ou lançado no esquecimento, tanto como as primeiras teorizações gramscianas. Assim, ficaram sem resposta as inquietantes interrogações que o movimento real da história colocava à teoria leniniana da revo­ lução e também à teoria marxiana. E, o que é pior, elas permane­ ceram sem ser reconhecidas enquanto interrogações. O imenso res­ plendor da Revolução de Outubro contribuiu para ocultar a crise teórica que de fato se abrira. E o entusiasmo lógico pela primeira vitória histórica do proletariado, salvo raras exceções, cegou ou de­ bilitou grandemente o espírito crítico dos marxistas revolucionários. No entanto, a nova ortodoxia não foi consagrada sem resistências no interior da IC, particularmente no que se refere ao tipo de partido 646

e à aceitação do comando russo. Mas estas resistências foram liqui­ dadas sem muita dificuldade, graças ao prestígio dos dirigentes bol­ cheviques, nomeadamente Lênin, e aos poderes extraordinários que o sistema organizacional do “partido mundial” conferia aos seus organismos supremos. Desaparecido Lênin, a ortodoxia “marxista-le­ ninista” logo degeneraria num dogmatismo sem precedentes na histó­ ria do marxismo, numa ideologia alienante, que expressava e servia aos interesses da nova classe dominante formada no curso da indus­ trialização staliniana. 2. Entre os fundamentos da nova ortodoxia se destaca uma concepção petrificada do capitalismo, de conteúdo essencialmente economicista-catastrofista. Nos anos vinte, quando ainda existia na IC e no partido bolche­ vique certa liberdade de pensamento e de discussão, os problemas suscitados pela construção do socialismo deram lugar a importantes debates e investigações entre os teóricos soviéticos. Algo parecido, ainda que em menor escala, ocorreu na IC em face das revoluções coloniais. Nos dois casos, mas sobretudo no primeiro, aparecia com enorme evidência o fato de se estar diante de uma problemática nova, pouco mais que aflorada pelos clássicos do marxismo. Enfim, nestas matérias, como em todas as outras, se entronizou o esterilizante monolitismo ideológico de marca staliniana. Mas no que tange à problemática do capitalismo, sequer houve uma fase criadora. Neste terreno, partiu-se da idéia de que o essencial fora descoberto por Marx ou, no que toca ao monopolismo e ao imperialismo, por Lênin — e com a agravante de que tanto a herança marxiana quanto a análise leniniana do imperialismo se interpretaram e dogmatizaram cada vez mais no sentido economicista-catastrofista. De acordo com esta interpretação, as estruturas capitalistas-monopolistas representa­ vam um insuperável obstáculo ao desenvolvimento das forças pro­ dutivas; o mecanismo econômico do sistema estava condenado, em prazo mais ou menos breve, a uma inelutável bancarrota que provo­ caria a revolução, provavelmente através de uma nova guerra impe­ rialista. Como se sabe, algumas formulações e análises de Marx parecem atribuir à dialética capitalista um limite estrutural absoluto: o ponto em que “ a centralização do capital e a socialização do trabalho se tornam incompatíveis com o seu invólucro capitalista” e este, inelutavelmente, vai “ se estilhaçar” 2. Contudo, o conjunto da teoria da 647

revolução de Marx não autoriza uma interpretação economicista-catastrofista de tais formulações. Apesar disto, elas foram interpretadas desta maneira na época da Segunda Internacional, quer pela ortodo­ xia kautskiana dos primeiros tempos, quer pelos teóricos da esquer­ da. A análise leniniana do capitalismo imperialista, mesmo repre­ sentando sob certos aspectos um desenvolvimento criador do marxis­ mo, não escapa totalmente a esta herança. A sua caracterização do imperialismo como capitalismo parasitário, putrefato, em decompo­ sição, e muito particularmente o conceito de Lênin que resume a “essência econômica” do imperialismo (a idéia de “capitalismo ago­ nizante”3) não correspondem à tese de que a concentração do capital e a socialização do trabalho já chegaram — e a guerra imperialista seria a expressão catastrófica deste fato — ao limite extremo da incompatibilidade com o “invólucro capitalista”, supostamente pre­ visto por Marx? E não é esta ótica teórica que induz Lênin a considerar pienamente amadurecidas as “condições objetivas” da revolução em escala mundial? Não é ela que o induz a visualizar a revolução mundial em ato, em marcha, a partir da revolução russa? Esta hipótese é abonada por uma série de colocações leninianas deste período, especialmente os documentos dos quatro primeiros congressos da IC, em cuja elaboração ou aprovação Lênin interveio. O IV Congresso resume da seguinte maneira, ratificando-a, a carac­ terização do capitalismo fornecida pelo III (em cujo desenvolvimento e conclusões, como é notório, Lênin teve uma intervenção diretíssima): “Depois de analisar a situação econômica mundial, o III Con­ gresso pôde constatar, com a maior precisão, que o capitalismo, cumprida a sua missão de desenvolver as forças produtivas, caiu na mais irredutível contradição, não só com as necessidades da atual evolução histórica, mas ainda com as mais elementares condi­ ções da existência humana. [ . . . ] O capitalismo sobrevive a si mesmo. [. . . ] O que experimenta hoje é a agonia. O colapso do capitalismo é inevitável” 4. Os três primeiros congressos formularam o mesmo diagnóstico em termos de “agonia”. No primeiro se sus­ tenta categoricamente a “incapacidade absoluta das classes dirigentes para reger de agora em diante o destino dos povos”, “a incapaci­ dade do capitalismo financeiro para restaurar a economia destruída”, “a impossibilidade de reconstruir a produção sobre as bases antigas”, “a crise mortal geral que afeta a circulação de produtos no regime capitalista” e “a impossibilidade de regressar, não só à livre con­ corrência, mas à dominação dos trustes, cartéis, etc.” . O segundo 648

afirma que “a Europa se arruina e, com ela, o mundo inteiro. Sobre a base do capitalismo não há salvação” s. E o terceiro: “O nível das forças produtivas cairá da sua atual altura fictícia. Somente podem existir períodos de prosperidade de curta duração e de caráter sobretudo especulativo” ; se o equilíbrio capitalista chegar a se restabelecer, será “sobre a base do esgotamento econômico e de um retrocesso tal da civilização que, comparativamente, a atual situação da Europa pareceria o cúmulo do bem-estar”; toda melhoria das condições de existência dos trabalhadores “está em contradição abso­ luta com as possibilidades objetivas do capitalismo”; “na sua agonia, o mundo capitalista inclina-se novamente para a guerra mundial” 6. Numa palavra, as contradições básicas, estruturais, do capitalismo tinham chegado — de acordo com a IC leniniana — a um ponto de incompatibilidade absoluta com o funcionamento do sistema. Este é o conteúdo concreto que, neste período, possui o conceito de “capi­ talismo agonizante”. É verdade que nos textos de Lênin se podem encontrar afirma­ ções aparentemente contraditórias com este conteúdo — enquanto o proletariado não estiver em condições de golpeá-la decisivamente, a burguesia sempre poderá viabilizar uma saída; a putrefação do capitalismo não significa que a produção não possa crescer em tal ou qual ramo, em tal ou qual país, enquanto noutros ramos econô­ micos e países ocorrer o contrário; a “lei do desenvolvimento desi­ gual” determina estas flutuações; mas a contradição é só aparente: as flutuações inserem-se na situação limite a que supostamente che­ gara a contradição básica do sistema; quer tendam a uma direção ou outra, apenas a agravam, aprofundam-na, exacerbam-na. Por isto, assegura o III Congresso, “é incontestável que, na época atual, a curva do desenvolvimento capitalista seja, em geral, descendente, com passageiros movimentos de recuperação, e a curva da revolução, com alguns refluxos, seja ascendente”; “as flutuações acompanham o capitalismo na sua agonia, como o acompanharam na sua juven­ tude e na sua maturidade” 7. Em 1924, quando já se iniciara o novo ciclo de auge na eco­ nomia capitalista, a resolução do V Congresso da IC sobre a situação econômica mundial afirma que “a crise continua”, tomando a forma de “crise industrial crônica nos principais países capitalistas” e de “crise agrária no mundo inteiro”; não têm nenhum fundamento as avaliações dos teóricos social-democratas (Hilferding) segundo as quais o capitalismo superou a crise do pós-guerra e se encontra às 649

vésperas de um grande período de prosperidade mundial” 8. Meses depois, uma sessão plenária do Comitê Executivo da IC era obrigada a reconhecer a existência do auge, mas qualificando-o de “estabili­ zação relativa” do capitalismo. A concepção básica mantém-se inal­ terada. O VI Congresso inscreve no Programa da IC: “A época do imperialismo é a do capitalismo moribundo. A guerra mundial de 1914-1918 e a crise geral do capitalismo que ela deflagrou pro­ vam [. . . ] que as condições materiais do socialismo no seio da socie­ dade capitalista já estão maduras e que o invólucro capitalista da sociedade converteu-se num obstáculo intolerável para o ulterior de­ senvolvimento da humanidade. [. . . ] O sistema capitalista, em seu conjunto, caminha para o crack definitivo” 9. Sob este ângulo foi vista a crise de 1929. Vários autores reconhecem à IC o mérito de haver previsto esta crise, mas, na realidade, rara era a análise econô­ mica da IC, desde a sua fundação, que não anunciava uma “crise próxima” de grande envergadura. Algum dia a previsão se reali­ zaria, dadas as características cíclicas do desenvolvimento capitalista. Entretanto, o acerto de 1929 não teve nenhum efeito político posi­ tivo, porque continuou inserido no grande equívoco — produto de toda a concepção do “capitalismo agonizante” — que consistiu em tomar a crise econômica mundial como a tão anunciada e esperada “crise final” do sistema. E isto determinou (junto com outros fatores ligados à política interna e externa do Kremlin) a linha ultra-esquer­ dista da Internacional nesse momento — linha caracterizada pela subestimação do perigo fascista — , o sectarismo delirante em face da social-democracia (definida como “social-fascismo”), a tática aven­ tureira imposta ao partido comunista chinês (depois de havê-lo subor­ dinado a Chiang Kai-Chek), a desnorteada orientação aplicada na fase inicial (1930-1933) da revolução espanhola, etc. O aspecto economicista-catastrofista que registramos era com­ pensado em Lênin pelo caráter global da sua teoria da revolução, na qual o momento político, o partido e a luta de classes indiscuti­ velmente têm a primazia; era replicado pela sua metodologia dialética no exame de qualquer problema, pela sua capacidade de retificação em função das necessidades da ação política, baseada sempre na análise concreta da situação concreta (embora certas fa­ cetas importantes da concepção leniniana do partido implicassem uma tendência prejudicial a este enfoque dialético, como veremos noutro ponto). Na medida em que o leninismo era dogmatizado na teoria e na prática da IC, cada um de seus aspectos vai adquirindo 650

uma existência autônoma, deixando de ser tratado como elemento de uma totalidade dialética. É o que se passa com o ingrediente economicista-catastrofista. As “leis econômicas” do capitalismo são manipuladas como algo transcendente à luta de classes, como forças “objetivas” que determinam fatalmente o curso histórico, particular­ mente a “lei” da queda da taxa de lucros e a “lei” da pauperização da classe operária, manejadas com a abstração das contratendências assinaladas por Marx. A “lei” do desenvolvimento desigual do ca­ pitalismo no estágio imperialista adquire, nas análises da IC, uma faculdade demonstrativa universal. Tanto serve para “demonstrar” a possibilidade da construção do socialismo integral na URSS como para explicar suficientemente o desenvolvimento de um país capi­ talista — apesar da “agonia” do capitalismo — ou a estagnação de outro; serve para designar, em cada conjuntura, o “elo mais fraco”, para fundamentar o perigo de guerra, para definir a previsível coordenação dos contendores, etc. Até a vitória do hitlerismo, a concepção economicista-catastro­ fista desempenhou a função ideológica — no sentido pejorativo do conceito — de conciliar o postulado estratégico fundamental da IC com a situação real. Segundo este postulado, a revolução mundial deveria retomar a sua marcha a curto prazo. Mas a situação real se caracterizava pelo refluxo da luta de classes revolucionária no capi­ talismo europeu e americano, eloqüentemente expresso na espeta­ cular progressão da social-democracia e do movimento sindical refor­ mista, assim como no outro lado do mesmo fenômeno: a acentuada diminuição dos efetivos e da influência da IC. A concepção econo­ micista-catastrofista permitia interpretar esta evolução político-social como um fenômeno de superfície, sob o qual a ação das “leis eco­ nômicas” continuava impulsionando inexoravelmente o capitalismo para o abismo da “crise final”. Isto tornava mais crível o futuro da revolução russa e justificava a razão de ser da IC enquanto par­ tido mundial ultracentralizado e semimilitarizado, pronto para di­ rigir a próxima guerra revolucionária mundial. 3. Evidentemente, a concepção economicista-catastrofista do ca­ pitalismo e a metodologia mecanicista que lhe era inerente tinham que influir de modo negativo nas elaborações estratégicas e táticas da IC referentes à luta revolucionária nos países capitalistas avan­ çados. Aqui reside, sem dúvida, uma das causas primordiais da impotência da Internacional Comunista para penetrar no proleta­ ri

riado dos centros vitais do capitalismo (como os Estados Unidos e a Inglaterra); da sua incapacidade para atrair as forças proletárias decisivas noutro desses centros vitais, a Alemanha (apesar da impor­ tante base inicial que a IC teve ali e da debilitação do capitalismo alemão pela derrota e pela tormenta revolucionária de 1918). Numa palavra, da sua incapacidade para encontrar uma linguagem comum com as grandes massas proletárias do capitalismo desenvolvido, assim como formas adequadas de ação e de organização. A visão economicista-catastrofista explica também, em grande parte, o fato de a IC ter interpretado o fenômeno fascista como a expressão exasperada da debilidade irremediável do capitalismo, a sua última peripécia “agònica”, e o New Deal como outro intento vão de superar as suas contradições estruturais. Esta visão, que inspirou, como assinalamos, a linha ultra-esquerdista e sectária dos anos que precedem a tomada do poder por Hitler, serviu depois para cobrir ideologicamente a linha de colaboração de classe que se inicia nos tempos da frente popular e alcança o seu apogeu no período da “grande aliança”. A concepção economicista-catastrofista continuou vigente no movimento comunista até o fim do reinado de Stalin — sem desaparecer de todo, depois —; os “escritos econô­ micos” stalinianos de 1952 representam uma nova tentativa de teorizá-la. Destas premissas teóricas derivam aspectos permanentes e essen­ ciais da tática da IC. Em primeiro lugar, a significação que se atri­ bui à luta pelas reivindicações econômicas “elementares”, resumida no seguinte ponto das teses sobre tática adotadas pelo III Congres­ so: “A natureza revolucionária da época atual consiste, precisamente, em que as mais modestas condições de existência das massas operárias são incompatíveis com a existência da sociedade capitalista e, por esta razão, a luta pelas reivindicações mais modestas toma as pro­ porções de uma luta pelo comunismo” 10. Apesar de todas as viragens políticas da IC, esta tese sempre constituirá um dos princípios teó­ ricos da sua ação. Na luta pelas “reivindicações mais modestas”, a IC não vê apenas um patamar primário do processo de conscientiza­ ção classista e de organização unitária das massas mais amplas, mas o meio mais eficaz de acelerar o crack do mecanismo produtivo capitalista. E, simultaneamente, de minar a influência dos chefes reformistas, partindo do seguinte raciocínio: se os capitalistas, na fase “agònica” do sistema, objetivamente não podem ceder às rei­ vindicações econômicas dos trabalhadores — nem mesmo às “mais 652

modestas” —, os chefes reformistas, agentes por antonomásia da burguesia, estão objetivamente impossibilitados de propiciar e liderar qualquer luta efetiva pelas reivindicações econômicas. Na prática, a grande beneficiária da luta econômica, até 1929, foi a social-democracia, e a IC, inclusive, nos anos de grande crise mundial, sofreu uma importante redução nos seus efetivos11. Apenas o partido francês, a partir da frente popular, o tchecoslovaco durante um breve período e o italiano depois de 1945 puderam competir vantajosamente com a social-democracia e os sindicatos reformistas neste terreno — mas à base de se inserirem, eles mesmos, numa pers­ pectiva reformista. Esta experiência não prova, é claro, que a luta pelas reivindicações econômicas fosse, no período que estamos exa­ minando, uma dimensão irrelevante para a ação revolucionária no capitalismo. Prova, simplesmente, que não possuía o significado que lhe atribuía a concepção economicista-catastrofista. Até um certo patamar quantitativo, ela não só era perfeitamente compatível com o funcionamento do sistema como, ademais, constituía um impor­ tante motor do seu desenvolvimento tecnológico e organizativo. E a ultrapassagem deste patamar requeria um grau de consciência de classe e de politização revolucionária que a simples luta pelas “rei­ vindicações mais modestas” não podia criar, uma vez que os êxitos desta luta alimentavam — ao invés de reduzi-las — as ilusões re­ formistas. Para que tivesse outro efeito, a luta econômica deveria inserir-se numa ação política e ideológica embasada nas contradi­ ções e problemas — antigos e novos — que iam adquirindo relevân­ cia na existência das massas a medida em que a questão do “pedaço de pão” perdia o seu anterior dramatismo. Mas a visão “ agônica” do capitalismo, de essência economicista, induzia à subestimação desta nova problemática, cujo núcleo central pode ser situado na questão da democracia política e social. A democracia burguesa — considerada pelas massas operárias como uma conquista própria, a partir do momento em que incluiu a existência legal das organizações operárias, a legalidade da greve, o sufrágio universal, etc. — era (e continua sendo) susceptível de uma utilização revolucionária; mas, ao mesmo tempo, constitui uma das principais fontes do reformismo, tanto a nível ideológico e político como a nível da luta reivindicativa cotidiana. Este efeito não pode ser replicado com um desmascaramento abstrato dos aspectos formais da democracia burguesa, mas é possível fazê-lo através da 653

luta concreta por uma democracia real em todos os aspectos da vida social. A IC não somente subestimou este problema como, até o VII Congresso, manteve diante dele uma atitude fundamentalmente abstrata e negativa. Programaticamente, opunha à democracia bur­ guesa a democracia proletária de tipo soviético. O modelo concreto de que se reclamava, porém, dificilmente podia suscitar entusiasmo nas massas operárias educadas nos sindicatos reformistas (ou anarcosindicalistas) e nos partidos social-democratas, informadas, por suas próprias organizações (e não precisamente com a maior benevolên­ cia), da evolução que ia sofrendo a “democracia soviética”. As mas­ sas operárias ocidentais não podiam compreender como a arregimentação dos sindicatos, a privação das liberdades políticas (não só da burguesia, mas também do proletariado), a hierarquização e a orga­ nização taylorista da produção configurariam uma forma de demo­ cracia superior à democracia formal burguesa, na qual, ao menos, os trabalhadores tinham certas possibilidades legais de defender as suas condições de existência. Taticamente, até a viragem do VII Congresso, a IC preconizava a formação de “sovietes” a cada vez que julgava chegada uma situação revolucionária em determi­ nado país; mas esta consigna, manejada abstratamente, desvinculada das formas concretas que o movimento de massas assumia sob o peso da experiência tradicional, nunca teve efeitos práticos em qual­ quer país capitalista. Para consegui-los, teria sido necessária outra estratégia política, que incluísse a ação permanente para desenvolver formas de democracia proletária em todos os aspectos da luta de massas, particularmente nas empresas e sindicatos; teria sido neces­ sário que os partidos comunistas fossem os portadores — na sua própria maneira de se relacionar com as massas, de elaborar a sua política e de organizar-se internamente — da nova democracia. Dados os seus fundamentos teóricos e organizacionais, o seu repú­ dio negativo às correntes e experiências européias que mais tendiam ao desenvolvimento da democracia proletária no próprio processo da luta contra o capitalismo, a IC sequer podia conceber uma estratégia deste tipo. Depois do VII Congresso, sob os imperativos da defesa da URSS e da luta contra o fascismo, a IC e as suas seções se situa­ ram no terreno da democracia, mas da democracia burguesa. Sobre esta base, os partidos comunistas conseguiram estreitar os seus vínculos com as massas trabalhadoras e, em alguns casos, muito poucos, converter-se em partidos hegemônicos da classe operária. No 654

entanto, com isto iniciavam a evolução neo-reformista que haveria de se consolidar e desenvolver no contexto da “grande aliança”. Para este deslizamento dos partidos comunistas ao terreno da democracia burguesa, do parlamentarismo e do legalismo, também serviu de justificação teórica a concepção do capitalismo como re­ gime “agonizante” e a correspondente e já indicada interpretação do fascismo. Formulou-se a tese de que a sobrevivência do capitalismo era já incompatível com a conservação da democracia burguesa e, portanto, a sua defesa — como a defesa dos interesses econômicos imediatos das massas — conduzia inelutavelmente a colocar o con­ junto do sistema contra a parede. 4. Em meados dos anos vinte, a ortodoxia da IC se “enriquece” com a doutrina do socialismo num só país, cuja função ideológica inicial é análoga à da concepção economicista-catastrofista do capi­ talismo: emprestar maior credibilidade quer ao futuro da revolução russa, quer à inexorabilidade da revolução mundial — mesmo que, em realidade, reflita a desconfiança da fração staliniana nesta última. Desconfiança que se expressa na tendência da doutrina de Stalin para independizar a revolução russa da revolução mundial (ainda que conservando a interdependência “em última instância”). Ela afirma, com efeito, a possibilidade da construção do socialismo inte­ gral na Rússia, embora a revolução não se tenha dado no capitalismo avançado — mas retém a necessidade desta revolução para garantir definitivamente o “socialismo integral” russo contra qualquer ataque externo. Sobre esta base, a doutrina do socialismo num só país conjuga-se, nos textos da IC, com a perspectiva da revolução mundial (até a viragem de 1934, quando esta perspectiva desaparece dos textos). Este enxerto, porém, implica a revisão da teoria da revolução mundial no que toca a aspectos essenciais — tanto na sua versão marxiana quanto na leniniana. Aqui, vamos nos limitar a sintetizar esquematicamente alguns dos principais pontos desta revisão. a) A doutrina staliniana introduz o postulado — contrário à fundamentação científica marxiana das condições materiais do so­ cialismo — de que o socialismo integral pode ser construído num espaço regional, não necessitando do espaço mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial, Stalin até afirmará que o comunismo pode ser construído no marco nacional da URSS. Trata-se, nos dois casos, de proposições arbitrárias, carentes de qualquer fundamentação teó­ rica séria, impostas pela via da autoridade. E, enquanto demonstra­ 655

ção empírica, a realidade do “socialismo integral”, dado como cons­ truído ainda em vida de Stalin, em qualquer caso ela fala a favor das teses marxianas. Mas não vamos nos aprofundar aqui neste pro­ blema; além do que já dissemos no capítulo consagrado à “crise teórica”, este aspecto da revisão staliniana será examinado na con­ tinuidade da nossa obra. b) Para Marx e Lênin, a frente decisiva da revolução mundial se localiza nos países capitalistas desenvolvidos. As revoluções de tipo distinto na periferia do sistema podem, na sua ótica, desem­ penhar um grande papel para facilitar a vitória revolucionária do proletariado nos centros vitais do sistema, mas apenas esta vitória pode criar as condições econômicas e políticas para a construção de uma sociedade socialista integral (é possível atribuir a Marx esta posição, uma vez que, embora a primeira teorização global do papel das revoluções periféricas na dialética da revolução mundial caiba a Lênin, que contava com a experiência da revolução russa e das primeiras revoluções coloniais, já em Marx se encontram apreciações que vão na mesma direção). Até a morte de Lênin, o papel e o lugar da revolução russa na revolução mundial foram enfocados sobre esta base, e a construção do socialismo no interior das fron­ teiras soviéticas foi considerada como uma tarefa que só se podia levar a cabo — desembocando numa verdadeira sociedade socia­ lista — se se fundisse com a revolução na área capitalista desen­ volvida. Tratava-se de avançar o “mais possível” nesta direção, en­ quanto os proletários do capitalismo não tomassem o poder e, ao mesmo tempo, de ajudá-los o “mais possível”, em todos os terrenos, para alcançar este objetivo. Com a doutrina do socialismo num só país, a concepção estra­ tégica se altera radicalmente. A construção do socialismo na URSS se converte — para dizer conforme as fórmulas do VI Congresso da IC — no “motor internacional da revolução proletária” no “maior fator da história universal”, no “fator essencial da libertação internacional do proletariado”; a contradição entre a URSS e o mundo capitalista passa a ser a “nova contradição fundamental” que determina a marcha da revolução mundial — o que significa, como Ponomarev recentemente recordou, que a construção do socia­ lismo na URSS se transformava na “frente decisiva da luta re­ volucionária da classe operária internacional” ,2. Ou seja: a tarefa número um da IC deixava de ser a luta revolucionária pela derrocada 656

do capitalismo nos seus centros vitais e passava a ser a preservação do Estado soviético de todo ataque exterior enquanto se edificava o “socialismo integral”. c) Para Marx e Lênin, a organização internacional do proleta­ riado revolucionário não podia, pela sua própria essência, estar submetida a qualquer interesse nacional. Neste espírito é que foi concebida a IC. O poder soviético era considerado como uma força subordinada pienamente aos interesses e necessidades da luta revolu­ cionária mundial, um destacamento da Internacional Comunista e não um poder acima dela (nos primeiros anos, o Exército Vermelho jurava fidelidade à Internacional Comunista). Praticamente, como vimos no decorrer da nossa exposição, a IC ficou subordinada desde o primeiro dia aos chefes do Estado soviético e, apesar de todo o incorruptível internacionalismo de Lênin, Trótski e outros dirigentes bolcheviques, emergiu um certo divórcio entre a teoria e o compor­ tamento real. Mas Lênin — como revela, entre outras, a sua inter­ venção no IV Congresso da IC, criticando o caráter “demasiada­ mente russo” da resolução sobre as tarefas da Internacional — perce­ bia o perigo desta subordinação, contrária a toda a sua concepção do internacionalismo. Sob Stalin, a subordinação não só se acentua de fato: ganha uma fundamentação teórica com a doutrina do socialismo num só país. De fato, desde o momento em que a construção do socialismo na URSS fica definida como a frente decisiva da revolução mundial; desde o momento em que a tarefa prioritária da IC passa a ser a preservação deste objetivo contra os perigos exteriores — então se tornava coerente que a ação da IC estivesse controlada e superdirigida pelos que assumiam a responsabilidade direta da construção do socialismo na URSS. d) O conjunto desta revisão staliniana confere à teoria “mar­ xista-leninista” da revolução um caráter ainda mais determinista do que o já adquirido sob o influxo da concepção economicista-catastrofista. Se, de fato, o capitalismo “agonizante” não pode garantir nenhum desenvolvimento prolongado e substancial das forças produ­ tivas, e, em troca, estas podem crescer ilimitadamente na URSS até proporcionar a base material suficiente do “socialismo integral”, há de chegar fatalmente o momento em que a relação de forças em escala mundial se incline decisivamente a favor do socialismo, inclu­ sive se os proletários dos países capitalistas ainda não tenham sido 657

cão empírica, a realidade do “socialismo integral”, dado como cons­ truído ainda em vida de Stalin, em qualquer caso ela fala a favor das teses marxianas. Mas não vamos nos aprofundar aqui neste pro­ blema; além do que já dissemos no capítulo consagrado à “crise teórica”, este aspecto da revisão staliniana será examinado na con­ tinuidade da nossa obra. b) Para Marx e Lênin, a frente decisiva da revolução mundial se localiza nos países capitalistas desenvolvidos. As revoluções de tipo distinto na periferia do sistema podem, na sua ótica, desem­ penhar um grande papel para facilitar a vitória revolucionária do proletariado nos centros vitais do sistema, mas apenas esta vitória pode criar as condições econômicas e políticas para a construção de uma sociedade socialista integral (é possível atribuir a Marx esta posição, uma vez que, embora a primeira teorização global do papel das revoluções periféricas na dialética da revolução mundial caiba a Lênin, que contava com a experiência da revolução russa e das primeiras revoluções coloniais, já em Marx se encontram apreciações que vão na mesma direção). Até a morte de Lênin, o papel e o lugar da revolução russa na revolução mundial foram enfocados sobre esta base, e a construção do socialismo no interior das fron­ teiras soviéticas foi considerada como uma tarefa que só se podia levar a cabo — desembocando numa verdadeira sociedade socia­ lista — se se fundisse com a revolução na área capitalista desen­ volvida. Tratava-se de avançar o “mais possível” nesta direção, en­ quanto os proletários do capitalismo não tomassem o poder e, ao mesmo tempo, de ajudá-los o “mais possível”, em todos os terrenos, para alcançar este objetivo. Com a doutrina do socialismo num só país, a concepção estra­ tégica se altera radicalmente. A construção do socialismo na URSS se converte — para dizer conforme as fórmulas do VI Congresso da IC — no “motor internacional da revolução proletária” no “maior fator da história universal”, no “fator essencial da libertação internacional do proletariado”; a contradição entre a URSS e o mundo capitalista passa a ser a “nova contradição fundamental” que determina a marcha da revolução mundial — o que significa, como Ponomarev recentemente recordou, que a construção do socia­ lismo na URSS se transformava na “frente decisiva da luta re­ volucionária da classe operária internacional” ,2. Ou seja: a tarefa número um da IC deixava de ser a luta revolucionária pela derrocada 656

do capitalismo nos seus centros vitais e passava a ser a preservação do Estado soviético de todo ataque exterior enquanto se edificava o “socialismo integral”. c) Para Marx e Lênin, a organização internacional do proleta­ riado revolucionário não podia, pela sua própria essência, estar submetida a qualquer interesse nacional. Neste espírito é que foi concebida a IC. O poder soviético era considerado como uma força subordinada pienamente aos interesses e necessidades da luta revolu­ cionária mundial, um destacamento da Internacional Comunista e não um poder acima dela (nos primeiros anos, o Exército Vermelho jurava fidelidade à Internacional Comunista). Praticamente, como vimos no decorrer da nossa exposição, a IC ficou subordinada desde o primeiro dia aos chefes do Estado soviético e, apesar de todo o incorruptível internacionalismo de Lênin, Trótski e outros dirigentes bolcheviques, emergiu um certo divórcio entre a teoria e o compor­ tamento real. Mas Lênin — como revela, entre outras, a sua inter­ venção no IV Congresso da IC, criticando o caráter “demasiada­ mente russo” da resolução sobre as tarefas da Internacional — perce­ bia o perigo desta subordinação, contrária a toda a sua concepção do internacionalismo. Sob Stalin, a subordinação não só se acentua de fato: ganha uma fundamentação teórica com a doutrina do socialismo num só país. De fato, desde o momento em que a construção do socialismo na URSS fica definida como a frente decisiva da revolução mundial; desde o momento em que a tarefa prioritária da IC passa a ser a preservação deste objetivo contra os perigos exteriores — então se tornava coerente que a ação da IC estivesse controlada e superdirigida pelos que assumiam a responsabilidade direta da construção do socialismo na URSS. d) O conjunto desta revisão staliniana confere à teoria “mar­ xista-leninista” da revolução um caráter ainda mais determinista do que o já adquirido sob o influxo da concepção economicista-catastrofista. Se, de fato, o capitalismo “agonizante” não pode garantir nenhum desenvolvimento prolongado e substancial das forças produ­ tivas, e, em troca, estas podem crescer ilimitadamente na URSS até proporcionar a base material suficiente do “socialismo integral”, há de chegar fatalmente o momento em que a relação de forças em escala mundial se incline decisivamente a favor do socialismo, inclu­ sive se os proletários dos países capitalistas ainda não tenham sido 657

capazes de fazer a sua revolução. Esta cairia, finalmente, como um fruto mais que maduro, da árvore do socialismo num só país. 5. Enquanto esta perspectiva — tão otimista quanto ilusó­ ria — se convertia no eixo da estratégia da IC, outra, muito real, começava a emergir cautelosamente nas relações entre o Estado so­ viético e o mundo capitalista. Tanto Marx quanto Lênin supunham que a vitória da revolução em algum dos principais países capitalistas seria inconciliável (dada a articulação da economia mundial, o caráter das forças produtivas avançadas e o sistema das relações internacionais) com a permanên­ cia do capitalismo em outros países do mesmo tipo — inevitavel­ mente se deflagraria uma luta mortal. E esta previsão tinha, sem dúvida, sólidos fundamentos. Basta imaginar o caso possível da vitó­ ria da revolução proletária na Alemanha de 1918. As potências da Entente teriam se limitado a uma intervenção análoga, pelas suas pro­ porções, à que efetuaram contra a revolução russa? Não lançariam mão de todo o seu poderio econômico e militar para liquidá-la? Inicialmente — e a intervenção da Entente lhes parecia dar ra­ zão —, os bolcheviques enfocaram sob esta ótica o destino da revolução russa. Daí o tom de surpresa e incredulidade que trans­ parece nas suas primeiras reações à situação de coexistência mais ou menos pacífica que se cria imediatamente depois da derrota da contra-revolução interna e da intervenção estrangeira e o seu temor de que uma nova intervenção, de envergadura muito maior, poderia se dar a qualquer momento. A mobilização operária internacional e outros fatores políticos não explicam, exceto muito parcialmente, o fato de que tal intervenção não tenha ocorrido. Sem dúvidas, nisto influiu, e de modo muito decisivo, que a Rússia czarista não desem­ penhasse na economia mundial um papel comparável, ainda que de longe, ao dos principais países capitalistas. O mecanismo podia continuar funcionando perfeitamente sem esta “peça”. E se, ademais, se apresentava a oportunidade de comerciar com o inédito truste estatal que entrava em cena, tanto melhor. Inadmissível para as potências capitalistas era uma Rússia soviética que fomentasse a revolução socialista para além das suas fronteiras, quer pela ajuda teórica, política e material ao movimento revolucionário no mundo capitalista, quer pela criação de um regime social que desse efetivos passos para a libertação econômica, política e cultural dos trabalhadores, constituindo assim um exemplo explo658

sivo para o proletariado mundial. A incredulidade de Lênin e seus camaradas em face da possibilidade de uma coexistência duradoura com o mundo capitalista explica-se também por esta razão: para eles, a Rússia soviética era, antes de mais, esta força impulsionadora da revolução em escala mundial. A doutrina do socialismo num só país introduzia, como vimos, uma alteração de ótica fundamental neste aspecto. Abriu a possibi­ lidade teórica de eliminar este fator de incompatibilidade nas rela­ ções entre o Estado soviético e os Estados capitalistas, posto que, segundo esta doutrina, a revolução no capitalismo deixava de ser a condição necessária da “construção do socialismo” na URSS. Natu­ ralmente, para que esta possibilidade se materializasse, era preciso que a direção soviética abandonasse o internacionalismo proletário e se encerrasse no seu “socialismo nacional” — e era preciso, tam­ bém, que este “socialismo nacional” não chegasse a ser o exemplo explosivo atrás referido. A burguesia internacional foi dosando a sua atitude para com o Estado soviético em função da evolução deste e da sua polí­ tica. A industrialização russa não afetava os seus interesses econô­ micos essenciais e inclusive podia oferecer-lhe oportunidades sedu­ toras. Por outro lado, na medida em que se acentuava a liquidação da democracia soviética, em que se reduziam os direitos políticos e sindicais dos trabalhadores, a propaganda burguesa e social-demo­ crata se via abastecida de excelentes argumentos para desacreditar, ante as massas operárias, não apenas o regime soviético, mas o mar­ xismo revolucionário em geral, a própria idéia da revolução e do socialismo. Na medida em que este processo avançava, em que o exemplo soviético deixava de ser estimulante para amplos setores do movimento operário ocidental, o desideratum dos governos e ideólogos burgueses foi se concentrando em que os chefes soviéticos renunciassem à pretensão de fomentar a revolução fora das suas fronteiras, valendo-se dos partidos comunistas. A linguagem da bur­ guesia internacional foi perfeitamente traduzida por Bukharin, em finais de 1927, atribuindo a Chamberlain a frase: “ Não temos ne­ nhum problema em comerciar com vocês, mas, por favor, tenham a amabilidade de acabar com a IC” ,3. Até a ascensão de Hitler ao poder, os chefes soviéticos deram uma resposta negativa a esta demanda da burguesia mundial. Na luta interna pelo poder, bem como na realização das suas principais tarefas econômicas — a coletivização forçada e a industrialização 659

acelerada —, a fração staliniana precisava cobrir-se com a ideologia da revolução mundial. Por outro lado, enquanto durou a aliança tácita com a Alemanha oprimida pelo Tratado de Versalhes, os gover­ nantes soviéticos consideraram relativamente seguras as suas frontei­ ras — mesmo que, por razões internas e externas se utilizassem con­ tinuamente do risco da agressão. Em conseqüência, a construção do socialismo na URSS era apresentada abertamente como o motor da revolução mundial e a IC como o seu grande instrumento. A teoria da revolução mundial, dogmatizada e revisada no sentido que já indicamos, encontra a sua formulação mais completa e coerente no programa adotado pelo VI Congresso da Internacional. A prática em que esta teoria se traduz no mundo capitalista e colonial reve­ la-se totalmente inoperante: conduz à catástrofe chinesa e, final­ mente, à alemã. Mas, ao menos, mantém o fogo sagrado. São os anos heróicos e ultra-sectários da IC staliniana. Em 1934 inicia-se uma viragem histórica. Começa na URSS o Grande Terror, que consolida a ditadura de Stalin e, com ela, a constituição de uma nova classe dominante. Tem início uma inversão nas alianças no plano internacional. Os Estados Unidos e os capi­ talismos europeus coloniais passam a ser aliados potenciais da URSS frente ao perigo hitleriano. Em 1935 se firma o pacto franco-sovié­ tico, primeiro acordo militar do Estado soviético com um Estado capitalista. O concerto das novas alianças exige concessões e Stalin não se limita, como demonstrará o curso ulterior da sua política, a concessões táticas. Orienta-se decididamente a sacrificar o que for necessário e até mais que o necessário — do movimento revolu­ cionário mundial no altar dos “interesses da URSS”, já identificados com os interesses da nova classe privilegiada. Logo se relega ao “esquecimento” a teoria da revolução mundial. O seu programa, tão solenemente aclamado no VI Congresso, é substituído por um pro­ grama universal de antifascismo, democracia e paz (a democracia deixa de ser adjetivada nos textos programáticos). A “construção do socialismo na URSS” deixa de ser apresentada como o motor da revolução mundial e passa a ser o motor da democracia mundial e a garantia suprema da paz. Nesta hora, nada mais inoportuno que uma revolução proletária na Europa “democrática”, aliada formal ou potencial da URSS. Daí que quando a revolução proletária, em 1936, faz-se presente na Espanha e assoma na França, a IC se dedique denodadamente a reconduzir a revolução espanhola ao seu leito democrático-burguês e a bloquear qualquer possível materiali­ 660

zação da revolução na França. Renuncia-se assim, sem sequer explo­ rá-la, a possibilidade aflorada em 1936 de imprimir um giro revo­ lucionário à luta contra o fascismo e contra o perigo de guerra. A ajuda do Estado soviético à república espanhola, bem como o grande movimento de solidariedade para com ela, mantém-se nos limites compatíveis com a nova orientação da política exterior do Kremlin. Quando do VII Congresso, cogita-se já da conveniência de dissolver a IC, mas se a conserva viva para aplicar a nova política de frente popular, com a que se inicia a grande viragem do movimento comu­ nista no rumo do reformismo. O seu prestígio revolucionário ainda pode ser útil para encobrir a renúncia à revolução e controlar forças que subjetivamente resistem a esta renúncia. Porque esta, consciente para a camarilha staliniana, não o é para a maioria dos militantes e quadros da IC. Encerrado o breve parêntese do pacto germano-soviético, com a sua grotesca ressurreição dos velhos esquemas, esvaziados já de qualquer substância — e cuja função era encobrir a orientação de Stalin voltada para um entendimento duradouro com a Alemanha nazista —, a liquidação teórica e prática dos objetivos revolucio­ nários iniciais do movimento comunista se concretiza plenamente nos anos da “grande aliança”. O seu símbolo é a dissolução da IC. A Internacional Comunista não é liquidada por ser, como efetiva­ mente era, um sistema inadequado de direção e organização inter­ nacional da luta revolucionária. O ato dissolutório de 1943 apre­ senta-se assim, mas a verdadeira razão era a renúncia à perspectiva revolucionária. A IC não é liquidada porque a sua extinção seria a condição necessária para a derrota alemã, e sim porque era a condição necessária para a divisão do mundo entre o Estado staliniano e os seus aliados capitalistas. A IC não é liquidada para facilitar a ação nacional revolucionária dos partidos comunistas, mas para facilitar a sua ação nacional reformista nos marcos da de­ mocracia burguesa. A IC não é liquidada porque está em crise, mas pelo que, apesar da crise, ainda simboliza: a revolução proletária. Toda a política dos partidos comunistas — à exceção dos pou­ cos que começam a insubordinar-se contra o comando de Mos­ cou — fica determinada pelo objetivo que Stalin se propõe (como está documentalmente provado) desde as suas primeiras negociações com os outros dois “grandes”: a divisão da Europa e do mundo em esferas de influência. Isto implica que os partidos comunistas renunciem a priori a toda tentativa de transformar a guerra antifas661

cista em revolução socialista. E esta renúncia, por si mesma, deter­ mina que a política dos partidos comunistas não favoreça a emer­ gência daquela possibilidade — bem ao contrário. A sua concepção das alianças, da natureza do novo poder antifascista e das vias para criá-lo, etc., tendem a colocar as forças mais avançadas da Resis­ tência sob a hegemonia política e ideológica da burguesia antifascista nacional e dos “grandes aliados’’ da URSS. E quando, apesar de tudo, apesar dos compromissos de Stalin e da linha geral que impõe ao movimento comunista, a revolução se concretiza na Iugoslávia e na Grécia, assoma na França e na Itália; quando, nessa fase final e irreversível do fracasso do exército hitleriano, a superioridade militar se inclina claramente para o exército soviético no cenário europeu, e a esquerda da Resistência chega ao máximo da sua in­ fluência, envolvendo a grande maioria do proletariado e importantes setores pequeno-burgueses; quando a conjunção destes fatores — su­ perioridade militar soviética no continente e hegemonia da ala radi­ cal da Resistência — viabiliza, ao menos, a constituição de poderes antifascistas avançados, sob a direção de forças operárias e peque­ no-burguesas esquerdistas; quando aparece esta possibilidade real, que podia ser o primeiro passo de um desenvolvimento revolucioná­ rio original em escala européia, as diretrizes que emanam de Moscou e são acatadas por quase todas as direções comunistas nacionais ten­ dem a bloquear esta possibilidade, a travar o movimento, a fomentar as máximas ilusões nas decisões dos Três Grandes, a fortalecer a autoridade anglo-americana no Oeste e no Sul da Europa, a reco­ nhecer e aceitar a direção gaullista na França, democrata-cristã na Itália, etc. E quando não se trata apenas de uma possibilidade de desenvolvimento revolucionário, mas de uma realidade, como na Grécia, Stalin não hesita em facilitar a intervenção militar inglesa para sufocar a insurreição (em facilitá-la não só mediante o conhe­ cido compromisso com Churchill, mas ainda induzindo a direção comunista grega à capitulação). Definitivamente, a transformação da guerra antifascista em revolução se concretizará na Europa apenas na Iugoslávia, onde os dirigentes comunistas, desde o início, se orientam para esta perspectiva e a implementam conseqüentemente, resistindo a todas as pressões de Moscou — ou nos países ocupados pelo exército soviético, onde a liquidação dos velhos regimes era a condição necessária para a constituição da área de projeção soviética. Mas as revoluções deste segundo gênero acarretaram a perda da independência nacional mal reconquistada. O poder não passa ao 662

povo, nem sequer aos partidos comunistas — muito minoritários na maior parte desses países —, mas para as mãos de camarilhas enfeudadas ao Kremlin. Também a linha dos partidos comunistas coloniais e semicoloniais é adaptada à política da “grande aliança”. Os comunistas lati­ no-americanos devem colaborar com o imperialismo ianque, assim como os hindus devem fazê-lo com o britânico. E, como é universal­ mente sabido, não haveria revolução na China se a direção maoista assumisse a política de “união nacional” com Chiang, ao estilo fran­ cês ou italiano reclamado por Stalin. Convertida em superpotência mundial, deslocando as suas fron­ teiras ao coração da Europa, reconhecida e respeitada como realidade irreversível pelos Estados capitalistas, a URSS instala-se decidida­ mente no novo statu quo e o eixo de sua política internacional passa invariavelmente pela busca de um entendimento planetário com a outra superpotência. A “guerra fria” é apenas uma etapa aci­ dentada e perigosa desta busca, provocada pela pretensão do impe­ rialismo americano à hegemonia mundial. Não representa uma vira­ gem, de signo antiimperialista e revolucionário, na orientação de Stalin. Como, igualmente, não o representa a criação do Centro de Informação dos Partidos Comunistas, cuja missão real é facilitar a arregimentação da área de projeção soviética e mobilizar o movi­ mento comunista como instrumento de pressão para impor à Casa Branca o arranjo que o Kremlin procura. Enquanto, no Oriente, a grande revolução chinesa inaugura a época da insurreição do “terceiro mundo”, no Ocidente a perspectiva socialista fica relegada na teoria — se é que ainda se pode falar de teoria do movimento comunista — a um horizonte distante e nebuloso, para cujo alcance o decisivo é a “emulação econômica” entre os dois sistemas, predestinada a coroar-se infalivelmente com a vitória do “comunismo” na URSS. A revolução se torna uma eventualidade perturbadora, quase indesejável. O essencial é conser­ var a pax americano-soviética. A nível teórico, o marxismo oficial fica pienamente convertido num esquema fossilizado de dogmas e fórmulas estereotipadas; a nível político, num empirismo de vôo curto e essência reformista. Assim, ao final do reinado de Stalin, o abandono do marxismo vivo, da teoria da revolução e da práxis revolucionária chega, na ortodoxia “marxista-leninista”, a um grau muito mais avançado do que na ortodoxia da velha social-demo­ cracia, e o movimento comunista parece estar quase a ponto de 663

satisfazer a exigência que Bernstein apresentava à social-democracia no fim do século: “É necessário que a social-democracia tenha a coragem de emancipar-se da fraseologia do passado e a vontade de aparecer como é realmente na atualidade: um partido de reformas democráticas e sociais”. O novo reformismo que entrava em cena se distinguia, no en­ tanto, por algumas particularidades importantes. Em primeiro lugar, o seu nascimento foi determinado, antes de tudo, pela subordinação da IC à política externa soviética, e pela missão fundamental que, no interior desta subordinação, se atribuía à Internacional: a defesa da URSS. As exigências desta defesa, no período da frente popular, conjugavam-se com as necessidades da luta antifascista, mas sob a condição — dada a concepção que a direção staliniana tinha da defesa da URSS — de que esta luta não representasse uma ameaça para a ordem burguesa nos Estados aliados da URSS ou susceptíveis de o serem. Numa palavra, sob a condição de que a luta contra o fascismo se situasse no plano da colaboração de classes. Condicio­ namento análogo continuou existindo depois da Segunda Guerra Mundial, dado que o fundo da política staliniana, inclusive no pe­ ríodo da “guerra fria”, era a busca de um arranjo duradouro com os Estados Unidos e seus satélites. Esta marca de nascimento, toda­ via, entrou em contradição, cada vez mais, com as exigências pró­ prias da política neo-reformista em cada país. Em segundo lugar, a prática reformista iniciada pelos partidos comunistas continua se conciliando com a perspectiva socialista — tanto com a política “ultra-revolucionária” do período ante­ rior graças à doutrina do socialismo num só país (depois da guerra, “socialismo em vários países” ou no “campo socialista”) e à concep­ ção economicista-catastrofista do capitalismo que, como dissemos, continuou vigente até a morte de Stalin. Depois, a fé nesse socia­ lismo recebeu um golpe mortal com o “relatório secreto”, a denún­ cia dos “processos”, a insurreição húngara, o outubro polonês, etc. E a idéia de um capitalismo no limite da sua capacidade produtiva recebeu um golpe não menos sério com o espetacular desenvolvi­ mento dos capitalismos europeus americano e japonês. Esgotada esta justificação ideológica, o neo-reformismo comunista começou a pro­ curar fundamentos doutrinários mais próximos aos do reformismo tradicional. Em terceiro lugar, o novo reformismo se diferenciava do tradi­ cional pelo modelo de sociedade socialista a que dizia aspirar, que 664

continuava sendo o modelo staliniano. Istó significava que todos os eventuais aliados dos partidos comunistas, todos os que contri­ buíssem para o advento desse “socialismo” cavavam a sua própria sepultura enquanto correntes, grupos e partidos distintos do partido comunista. Os processos de Moscou, na época da frente popular, e os das democracias populares, na etapa posterior, não eram propria­ mente tranquilizadores para os eventuais “companheiros de viagem”. Durante a época de Stalin, este foi o flanco mais vulnerável da nova linha dos partidos comunistas. Depois do XX Congresso, fez-se cada vez mais evidente que, sem repudiar o modelo staliniano de “socia­ lismo”, a política neo-reformista se encontrava num beco sem saída. Em quarto lugar, o novo reformismo se distinguia do tradicio­ nal pelo tipo de partido que o sustentava. Quando se iniciou a vira­ gem, as seções da IC tinham alcançado — através da “bolchevização” e de sucessivas depurações — um grau de monolitismo ideológico e organizacional que o VII Congresso saudou como expressão de “maturidade”. Isto permitiu empreender a nova via sem dilaceramentos importantes e assimilar os novos militantes que vieram com a Resistência e a Libertação. O sistema organizacional dos partidos comunistas dotou o novo reformismo de maior eficácia em certos aspectos e, conjugado com o monolitismo ideológico, dificultou ainda mais que nos partidos social-democratas a luta interna por uma linha revolucionária. Mas também estas características dos partidos comu­ nistas, particularmente o monolitismo ideológico e a ausência de democracia interna, foram entrando em contradição com a política de aliança exigida pela nova orientação. Em resumo, a tendência do neo-reformismo comunista, visível já no período que estudamos e acentuada depois, caracteriza-se por ir reduzindo as distâncias que inicialmente o separavam do refor­ mismo tradicional. Esta tendência é uma das expressões globais mais significativas da crise do movimento comunista. 6. Conforme tentamos demonstrar no capítulo sobre a “crise teórica”, a premissa inicial, objetiva, da crise do movimento comu­ nista reside em que, quando da criação da IC, ainda não haviam amadurecido — contrariamente ao que Lênin pensava — as condi­ ções objetivas para a revolução socialista no capitalismo desenvol­ vido — e, no entqnto, a IC foi concebida para atuar nestas condições inexistentes (recordemos que no conceito “condições objetivas” in­ cluímos o estado geral de consciência do proletariado ocidental 665

naquele período — excluí-lo significaria dar a este conceito um con­ teúdo puramente economicista. Repitamos também que o índice mais eloqüente da “imaturidade”, assim entendida, da revolução na socie­ dade ocidental é dado pelo fato empírico de que a guerra imperia­ lista — a primeira grande crise global do sistema capitalista — não debilitou senão muito parcialmente o império do reformismo no movimento operário, apesar dos sacrifícios de todo o tipo que impôs às massas). Concebida como estado-maior e destacamento de choque do assalto imediato ao capitalismo mundial, a IC teve que enfrentar uma tarefa fundamentalmente diferente: ganhar as massas proletárias para uma política revolucionária em condições não revolucioná­ rias. Logicamente, esta tarefa exigia uma reconversão profunda da própria IC, mas esta necessidade, como já dissemos, sequer foi reconhecida como tal. Para explicar este fato, não basta considerar o fator exposto no ponto 1 desta síntese — o efeito deslumbrante da Revolução de Outubro. Há que partir da concepção leniniana do partido e da divergência entre ela e a de Marx. Não há em Marx uma teoria sistemática do partido proletário, mas os seus juízos sobre o tema, apreendidos em conexão com a sua atividade de militante, primeiro na Liga dos Comunistas e, mais tarde, na Primeira Internacional ou no partido socialista alemão, formam um conjunto coerente e significativo. A idéia que Marx faz do partido político proletário é um corolário da sua concepção da revolução comunista como auto-emancipação da classe operária. Ne­ nhuma instância exterior — chefe carismático, grupo de conjurados, partido político — pode, segundo Marx, substituir a “maturidade” revolucionária da classe operária. Ou a revolução comunista será obra sua ou não haverá revolução. De acordo com a teoria marxiana da revolução, esta “maturidade” só pode ser engendrada pela própria prática da luta de classes, a que os proletários se vêem impelidos por sua situação nas relações de produção capitalistas. A experiência desta luta ensina-lhes a necessidade da organização e a solidariedade; revela a eles os seus interesses comuns e o seu inimigo comum; vai convertendo-os de “classe em si”, atomizada, em “classe para si”, consciente do antagonismo radical que a opõe à ordem capitalista. A teoria elaborada pelos intelectuais procedentes da burguesia, que “aderem à classe revolucionária” e se “elevam teoricamente à com­ preensão do conjunto do movimento histórico” u , contribui para esta tomada de consciência, mas não funciona como o seu demiurgo. Numa palavra, para Marx a consciência nasce da prática revolucio­ 666

nária e, por seu turno, a aprofunda e a clarifica. Entre ambos os aspectos da própria práxis, existe a interação dialética definida na terceira tese sobre Feuerbach15. Marx estava pienamente consciente — sobretudo depois de viver o refluxo do espírito revolucionário que se seguiu à derrota das in­ tentonas proletárias nas revoluções de 1848 e de presenciar o “abur­ guesamento” da classe operária inglesa — de que o processo de “maturação” do proletariado como classe revolucionária nada tinha de linear, sendo antes profundamente contraditório, marcado por avanços e retrocessos, ilusões e decepções — uma luta permanente entre a ideologia burguesa predominante e a nascente ideologia pro­ letária. Porém, dada a natureza das contradições capitalistas, Marx considerava que este processo, em definitivo, conduziria à maturação do proletariado como classe revolucionária. E via neste processo — como escreveu em 1860 — a constituição do partido proletário “no grande sentido histórico do conceito”, do partidó proletário que “nasce espontaneamente em todas as partes do solo da sociedade moderna” 16 e no qual Marx incluía todas as formas — políticas, sindicais, culturais — de manifestação da “auto-atividade” do pro­ letariado. Em outros termos: para Marx, o proletariado se constitui em partido revolucionário como classe, não como uma entidade di­ ferenciada da classe e, menos ainda, colocada acima dela. Concepção esta que não pode ser qualificada como “espontaneísta” no sentido habitual do conceito, porque, mesmo o processo nascendo esponta­ neamente, determinado pela situação objetiva do proletariado na sociedade capitalista, sua própria natureza implica que o fator cons­ ciente ganhe cada vez maior relevância, condicionando crescentemen­ te o curso ulterior, imprimindo-lhe um caráter organizado, fixando cada vez mais precisamente os objetivos e os meios para alcançá-los. Os partidos políticos operários em sentido corrente são, para Marx, expressões parciais e transitórias — “episódicas”, segundo suas palavras 17 — do partido proletário no grande sentido histórico do conceito, tanto como os sindicatos ou outras formas de organização operária. Marx valorizava altamente o papel dos sindicatos — criti­ cando, ao mesmo tempo, a sua tendência ao “economicismo” — , en­ quanto, em mais de uma ocasião, manifestou reservas diante dos partidos políticos operários. “Todos os partidos políticos, sem exce­ ção, quaisquer que sejam — declara em 1869 — , só empolgam tem­ porariamente as massas operárias. Os sindicatos, ao contrário, cap­ tam as massas de modo duradouro; só eles são capazes de repre­ 667

sentar um verdadeiro partido operário e de opor um dique ao poder do capital” 18. Juízo que, como outros análogos, não implica nenhu­ ma subestimação da dimensão política da luta de classes — Marx, insistentemente, chama os sindicatos a politizar a ação e a colocar-se o problema do poder — ; ele expressa a prevenção de Marx contra a separação do aspecto econômico-social da luta de classes do aspecto especificamente político, bem como a sua prevenção contra a tendên­ cia natural dos grupos políticos a se independizarem da classe, a conduzi-la e a moldá-la segundo as suas concepções e interesses de grupo. Durante a sua atividade militante, Marx se confrontou repe­ tidamente com estas tendências. Em 1850, opôs-se aos membros da Liga dos Comunistas que, “não contentes em organizar o prole­ tariado revolucionário” e “desprezando profundamente a atividade mais teórica que consiste em explicar aos trabalhadores os seus interesses de classe , dedicam-se a “antecipar o desenvolvimento do processo revolucionário, a precipitar artificialmente a crise”. São — agrega Marx incisivamente — “os alquimistas da revolução, com­ partilhando pienamente com os antigos alquimistas a confusão de representações, a nebulosidade própria das idéias obsessivas” ,9. Em 1873, enfrentou-se com os bakuninistas, porque se acreditavam “os representantes privilegiados da idéia revolucionária”, “erigindo-se eles mesmos em estado-maior , pretendendo impor à Internacional, com meios conspirativos e ditatoriais, uma “unidade de pensamento e ação” equivalente ao “dogmatismo e à obediência cega”, ao perinde ac cadaver da Companhia de Jesus20. Em 1879, Marx e Engels se insurgiram contra as tendências oportunistas que começam a se ma­ nifestar no núcleo dirigente do partido socialista alemão, particular­ mente contra a idéia de que “a classe operária não é capaz de se libertar por si mesma” 21. Numa palavra — e poderíamos multiplicar os exemplos — : Marx e Engels se opõem sistematicamente a qual­ quer tendência, de “esquerda” ou de “direita”, que tente substituir o movimento real da classe operária, ditar-lhe uma política, imporlhe uma teoria. A ação dos comunistas, vale dizer, dos que compar­ tilhavam das suas concepções teóricas, Marx não a concebeu nunca como a ação de um partido exterior à classe operária, titular de uma função privilegiada de direção no sentido leninista. É como declara o Manifesto: Os comunistas não formam um partido separado, opos­ to aos outros partidos operários” ; “não proclamam princípios par­ ticulares, a base dos quais queiram moldar o movimento operário”; o seu objetivo imediato “é o mesmo de todos os partidos proletários:

constituição dos proletários em classe, derrubada da dominação burguesa, conquista do poder político pelo proletariado”. Os comu­ nistas não constituem um partido separado, mas são um “setor” do movimento operário: “o setor mais decidido”, que tem “ a vantagem teórica da sua clara visão das condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário” e, por isto, “ sempre representam os interesses do movimento no seu conjunto” 22. Certamente, esta “van­ tagem teórica” e esta “representação” dos interesses gerais do mo­ vimento contêm em si a possibilidade, e a tendência, à autonomiza­ ção em face da classe em seu conjunto, acarretando a contradição com o princípio primeiro: os comunistas não formam um partido separado e não pretendem moldar o movimento segundo princípios particulares. Perigo tanto maior quando a teoria que proporciona aquela “vantagem” aos comunistas implica um nível de elaboração científica que o proletariado está impossibilitado de produzir por si só nas condições do capitalismo — ela é trazida por intelectuais procedentes, salvo exceções, das classes dominantes ou da pequena burguesia. Assim se cria a premissa de uma ditadura da ciência sobre o movimento operário e se aumenta a possibilidade de que o grupo teórico venha a monopolizar a direção efetiva. Precisamente contra este perigo, Marx preconiza o funcionamento autenticamente democrático do partido, a eleição e o controle permanente dos diri­ gentes pelos militantes, a luta contra todo culto da autoridade e dos chefes. Na sua polêmica contra os bakuninistas, Marx se pronuncia contundentemente contra todo tipo de organização hierarquizada, submetida a um regime interno autoritário, a uma doutrina oficial e ortodoxa. Defende a legitimidade das divergências teóricas e políti­ cas no seio da Internacional e das suas seções, a plena liberdade de discussão na imprensa, nas assembléias e congressos23. Ao mesmo tempo, não admite a imposição de nenhum critério de “partido” quando se trata da investigação científica2A. Nem a ciência pode im­ por as suas conclusões ao movimento operário, nem as instituições em que este se expressa em cada momento podem erigir-se em tuto­ ras da ciência. Em resumo, a concepção marxiana do partido político proletário é extremamente flexível, fluida, aberta, democrática — no sentido me­ nos formal e mais radical do conceito de democracia. A sua concreti­ zação deve ser função, em todo momento, do processo de constituição do partido proletário “no grande sentido histórico”. Para Marx, a classe é o grande sujeito da ação histórica, da revolução. O partido 669

proletário não pode substituí-la neste papel — tem que ser o seu instrumento, estar submetido ao seu controle. Cada vez que a forma concreta adquirida pelo partido — Liga dos Comunistas ou Primei­ ra Internacional — lhes parece entrar em contradição com o movi­ mento real da classe, Marx e Engels não vacilam em propor o seu desaparecimento. O partido político não é o “ dirigente” da classe, no sentido leninista: é a mediação teórica e prática entre a compreen­ são científica da luta de classes, do desenvolvimento social, e a ação autônoma do proletariado — mediação sujeita, ela mesma, a cons­ tante retificação e aprofundamento em função do movimento real. A sua missão não é assumir a direção da classe, mas ajudá-la a “autodirigir-se”. Como dizia Rosa Luxemburgo, polemizando com Lênin e expressando fielmente o pensamento de Marx: “A social-de­ mocracia não está ligada à organização da classe operária; é o pró­ prio movimento da classe operária” 25. Ingressado o capitalismo no seu estágio monopolista-imperialis­ ta, inicia-se uma evolução no movimento operário que parece con­ tradizer a perspectiva marxiana da constituição do proletariado em classe revolucionária. Sob a pressão das lutas proletárias, o capita­ lismo revela-se capaz de suportar melhorias substanciais nas condi­ ções de existência das massas. Os anteriores progressos da consciên­ cia anticapitalista, revolucionária, parecem deter-se, e inclusive re­ troceder, em face do espírito acomodatício, reformista, que se pro­ paga entre amplas massas da classe operária. O revisionismo doutri­ nário, que expressa esta tendência ao mesmo tempo em que a ali­ menta, justifica o seu abandono da perspectiva revolucionária ren­ dendo culto à espontaneidade do movimento operário. O marxismo ortodoxo reage exaltando o papel da teoria, do “socialismo científi­ co”, apresentando-a como a fonte da consciência socialista do pro­ letariado. Káutsky formula a sua tese famosa: “A consciência socia­ lista é algo introduzido desde o exterior [pelos intelectuais burgue­ ses] na luta de classes do proletariado e não algo que surge espon­ taneamente do seu interior” 26. Tese inconciliável, se tomada ao pé da letra, com a concepção marxiana (é sintomático que Káutsky não a respalde com nenhum texto de Marx, o que — dada a importância do problema e o contexto em que formula o seu juízo — não teria deixado de fazer se um texto corroborador existisse). Dizemos: se tomada ao pé da letra — porque a leitura do documento onde se encontra a passagem citada revela que Káutsky utiliza o conceito de consciência socialista” como idêntico ao de “doutrina socialis670

ta”, entendido este como teoria científica do capitalismo e do socia­ lismo. Em Que Fazer?, Lênin assume a equívoca fórmula de Káutsky, desenvolve-a por sua conta com a mesma confusão conceptual e, o que é pior, faz dela a pedra angular da sua concepção do partido revolucionário. Esta posição de Lênin não se explica apenas porque, quando da redação do Que Fazer?, Káutsky era para ele a máxima autori­ dade em marxismo; explica-se também porque a história da pene­ tração e da propagação do marxismo na Rússia, bem como o con­ texto em que elabora a sua teoria do partido, induzem-no a isto. O marxismo, com efeito, começa a penetrar na Rússia e envolve rapi­ damente a juventude intelectual revolucionária — que busca novos caminhos depois do fracasso da Vontade do Povo27 — antes que o proletariado russo entre realmente em cena (o que ocorrerá quando das greves de 1896). Assim como, no período precedente, a intelligentsia populista via nos mujiques a sua base de massas, a intelligentsia marxista das duas últimas décadas do século — analogamen­ te ao Marx de 1843 — vê nos operários, que o tardio capitalismo russo mal começava a produzir, as “ armas materiais” da sua nova filosofia. “ Introduz” neles a “consciência socialista”, que a prática da luta de classes ainda não tivera tempo de despertar, mesmo que embrionariamente. Este fato empírico aparecerá a Lênin como uma comprovação da tese kautskyana. Acentuando inclusive o seu fundo idealista, Lênin chega a dizer que “a doutrina teórica da social-de­ mocracia surgiu na Rússia inteiramente independente do ascenso es­ pontâneo do movimento operário, surgiu como resultado natural e inevitável do desenvolvimento do pensamento entre os intelectuais revolucionários socialistas” 28. Por outro lado, o contexto político e social, tal como Lênin o vê — e os acontecimentos, a revolução de 1905, rapidamente lhe darão razão —, coloca com enorme urgência o problema da preparação política e organizacional das forças revo­ lucionárias, particularmente do proletariado. Nestas condições, o “culto da espontaneidade”, encarnado especialmente pelos marxistas “economicistas”, parece-lhe um verdadeiro crime. Ademais, Lênin está convencido de possuir a chave marxista da revolução russa. Tudo isto permite compreender a violência e a intransigência da sua polêmica contra qualquer posição que se desvie, ainda que por um milímetro, do que ele considera a linha marxista revolucionária; per­ mite entender a sua tendência a exaltar o papel do fator teórico, da 671

organização, e a sua inapelável condenação de qualquer concessão à espontaneidade. “O desenvolvimento espontâneo do movimento operário _ afirma Lênin — conduz precisamente à sua subordinação à ideolo­ gia burguesa, porque a luta de classes, por si mesma, só engendra a consciência trade-unionista”, e o “trade-unionismo implica a escra­ vização ideológica dos operários pela burguesia”. “A tarefa da so­ cial-democracia consiste em combater a espontaneidade, fazendo com que o movimento operário abandone esta tendência espontânea do trade-unionismo a situar-se sob a asa da burguesia e atraindo-o para a social-democracia revolucionária” 29. Aos que o acusam de “opor seu programa ao movimento como um espírito que está acima do caos amorfo , Lênin replica: “Em que consiste o papel da social-de­ mocracia, senão ser o ‘espírito’ que não só está acima do movimento operário espontâneo, mas que o eleva ao nível do ‘seu programa’?” 30. Definitivamente, afirma Lênin, a direção a ser tomada pelo movi­ mento operário depende da luta entre a ideologia socialista (elabora­ da pelos intelectuais marxistas e por eles levada ao movimento ope­ rário) e a ideologia burguesa (ou suas variantes “marxistas”), que tem uma força enorme porque é a ideologia mais antiga e conta com todos os instrumentos do Estado e das classes dominantes. Idéia que está em Marx — com a diferença radical de que, em Marx, o mo­ vimento operário tende espontaneamente para a ideologia socialista: o proletariado e o sujeito central da luta ideologica, com a teoria marxista intervindo nela para contribuir na formação da consciên­ cia revolucionária proletária, mas sem substituir o seu verdadeiro demiurgo, a práxis revolucionária do proletariado. Em Lênin, pelo contrário, o movimento operário aparece como o objeto da luta ideo­ lógica entre os teóricos marxistas e ideólogos burgueses. E, na me­ dida em que também é sujeito, tende espontaneamente a “situar-se sob a asa da burguesia”. Daí que Lênin veja a necessidade de um instrumento poderoso, capaz de preservar e aguçar a arma da teoria revolucionária, tanto diante da ideologia burguesa como diante da ideologia segregada espontaneamente pelo movimento operário _ um instrumento apto a inverter a tendência desta espontaneidade. Instrumento que leve à prática a famosa fórmula leniniana: “Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário” __ cujo conteúdo exato, no contexto do Que Fazer?, é o seguinte: o movimento revolucionário deve ser criado a partir da teoria, segundo princípios, uma política, um plano e formas organizacionais previa­ 672

mente elaborados pelos intelectuais marxistas, depositários do “so­ cialismo científico”. Este instrumento poderoso é o partido conce­ bido por Lênin. Em face do culto do espontaneísmo, Lênin inaugura, na história do marxismo, o culto do partido; do partido depositário da ortodoxia marxista, portador da consciência socialista, organiza­ dor e dirigente da classe operária, instrumento decisivo da revolução. Se o princípio teórico básico da sua concepção de partido — ser o portador de uma consciência exterior à classe —, Lênin o to­ ma de Káutsky, o princípio organizacional ele o resgata parcialmen­ te (apenas parcialmente porque, como veremos, há também uma fonte alemã) da “magnífica organização dos revolucionários da dé­ cada de setenta, que deveria nos servir como modelo”. A nossa obri­ gação — diz Lênin — é “criar uma organização de revolucionários tão boa como a dos partidários de Terra e Liberdade, ou criar uma incomparavelmente melhor” 31. E, com efeito, Lênin se inspirará nes­ te modelo, mesmo que o aperfeiçoando. A sua figura central será a mesma: o revolucionário profissional, cuja procedência social conti­ nuará sendo, salvo exceções, a dos revolucionários profissionais dos anos setenta — a intelligentsia. Embora Lênin insista na necessidade de converter em revolucionários profissionais, tirando-os do traba­ lho da fábrica, os operários mais avançados e instruídos, os resulta­ dos serão mínimos, sobretudo no que se refere ao núcleo dirigente (quando eclode a Revolução de Outubro, o Comitê Central do parti­ do bolchevique contava com apenas um operário no seu interior). Coisa lógica, dado o nível teórico que se exigia no partido para in­ gressar no núcleo dirigente e dado o nível cultural médio do prole­ tariado russo. O esquema geral da organização responderá também ao modelo populista dos anos setenta: “Então — diz Lênin em Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás — , existia um centro bem organi­ zado, com uma disciplina perfeita; em torno dele existiam organiza­ ções por ele criadas, e o que estava fora destas organizações era caos e anarquia” 32. Lênin propõe uma estrutura análoga para o partido marxista: uma organização central de revolucionários profissionais; em torno deste centro, subordinadas a ele, organizações de revolucio­ nários “não profissionais”. Um conjunto rigorosamente centralizado, hierarquizado e disciplinado. Para que não haja dúvidas sobre a ti­ pologia da organização, Lênin recorre a analogias militares: “ Neces­ sitamos de uma organização militar de agentes”; “exigimos que todos os esforços se orientem para reunir, organizar e mobilizar um exér­ cito regular”, que “organize devidamente o assédio da fortaleza ini673

miga” e prepare o assalto e que, na hora oportuna, “não seja ultra­ passado pela multidão, mas se coloque à frente dela, à sua cabeça” 33. Essencialmente, o tipo de organização concebido por Lênin, nos seus princípios organizacionais, parece uma réplica do tipo de or­ ganização do inimigo, assim definida por ele: “Uma organização pu­ ramente militar, rigorosamente centralizada, que até nos menores detalhes está dirigida por uma vontade única — esta é a organização do governo russo, nosso inimigo direto na luta política” 34. Um dos principais instrumentos desta organização inimiga é a polícia polí­ tica, e as massas operárias — diz Lênin — são incapazes de lutar eficazmente contra a polícia política; esta luta “exige qualidades es­ peciais, exige revolucionários profissionais [. . . ] bem treinados, pelo menos tão bem quanto a nossa polícia” 3S. A impressão de estar diante de uma tentativa de transpor para o regime interno do partido o princípio autocrático e burocrático que presidia todo o regime político do país foi tão forte entre os princi­ pais marxistas russos dos primeiros anos do século, de Plekhanov a Trótski, que poucos deixaram de expressá-la abertamente na polêmi­ ca com Lênin. Mas este podia replicar com sólidos argumentos, embasados na análise do período no qual os social-democratas haviam trabalhado com métodos “artesanais”, dispersamente, sem direção central nem plano; ele podia demonstrar facilmente a impossibilidade da democracia no partido sob o regime policial czarista. O tipo de organização que preconizava satisfazia, evidentemente, a determina­ das exigências da luta revolucionária sob o czarismo. A organização de revolucionários profissionais, auxiliada pelas organizações subor­ dinadas de revolucionários “não profissionais”, constituía um instru­ mento eficaz para levar ao movimento espontâneo, às amorfas orga­ nizações operárias, ao movimento estudantil e aos camponeses a linha política elaborada por Lênin, para introduzir neste “caos” um princípio de coordenação em escala nacional. Numa palavra, para colocar o movimento operário, e o conjunto do movimento revolu­ cionário, sob a direção do partido detentor da teoria e da consciên­ cia, dotado de um plano e de objetivos precisos. Daí que Lênin fosse apoiado por uma importante fração dos marxistas russos, apesar da hostilidade das personalidades consagradas. Por outro lado, o gênio revolucionário de Lênin, a sua capaci­ dade para a análise concreta da situação concreta, conduziu-o a in­ troduzir correções nas normas e idéias do Que Fazer? quando a ex­ periência da revolução de 1905 mostrou que o movimento espontâ674

neo das massas não tendia inevitavelmente a situar-se “sob a asa da burguesia”, estando qualificado para uma colossal iniciativa revolu­ cionária. Nos escritos de 1905 e depois, Lênin saúda e sublinha a grande significação desta iniciativa. Em novembro de 1905, chega a dizer que “a classe operária é instintivamente, espontaneamente, so­ cial-democrata” 36 (embora formulações semelhantes sejam raras no período seguinte e, por outro lado, Lênin não tenha retificado a sua tese de que o movimento espontâneo só cria a consciência trade-unionista, com esta tendendo a subordinar-se à burguesia). Diante da limitada liberdade política arrancada ao governo pela revolução, Lê­ nin propugna por certa democratização do regime interno do partido. A Conferência de Tammerfors adota o princípio do “centralismo de­ mocrático” — mas as próprias circunstâncias políticas limitaram, em grande medida, a sua aplicação real. Estas correções, no entanto, não devem ser interpretadas como uma revisão fundamental da concepção do partido exposta no Que Fazer?, Um Passo Adiante, Dois Passos Atrás, etc. Permanece, em primeiro lugar, a idéia básica sobre a relação entre o partido e a classe: o partido é o depositário da verdade teórica e da consciência, entendidas no sentido da tese kautskyana (que nunca será refutada por Lênin); a classe só pode constituir-se em classe revolucionária sob a direção do partido — no sentido mais forte e direto da pala­ vra direção —, quando este lhe introduz a consciência socialista e a educa politicamente; é o partido que controla a classe (não o in­ verso), substituindo-se a ela cada vez que a classe se desvia do justo caminho traçado pelo partido; o partido é sempre o autêntico repre­ sentante da classe, ainda que esta não o reconheça como tal. Em suma, permanece intocado o princípio da exterioridade do partido em rela­ ção ao proletariado. Exterioridade, pela origem da sua condição de dirigente, que não provém da classe, mas de uma teoria elaborada fora dela; exterioridade, pelo seu modo de se relacionar com a clas­ se, refletido nas fórmulas habituais segundo as quais, para ser in­ vencível, o partido tem que apoiar-se na classe, ligar-se a ela, colo cá-la sob sua direção, etc.; refletido também, e sobretudo, na dife­ renciação radical que Lênin exige que se faça entre o partido e as organizações de massas da classe operária, particularmente os sindi­ catos — diferenciação unida à subordinação. Todas elas devem estar sob a direção do partido, reconhecer a sua autoridade. Os sovietes, na concepção leniniana, só podem ser verdadeiros órgãos do poder da classe operária se estão sob a direção do partido. O partido, numa 675

palavra, é o sujeito central da revolução; a classe, e tudo o mais, o sujeito auxiliar. Permanece, em segundo lugar, o essencial da concepção orga­ nizacional do partido. No “centralismo democrático” leniniano, o “centralismo” sempre predomina sobre a “democracia” (a degene­ ração staliniana consistirá em liquidar totalmente o segundo termo), porque está associada aos poderes extraordinários que, de acordo com Lênin, devem possuir os órgãos dirigentes. E porque está asso­ ciado à supervalorização dos chefes, à sua estabilidade, às suas atri­ buições, o que lhes permite condicionar — normalmente, de forma decisiva — o exercício da “democracia” pela base e pelos órgãos inferiores. Lênin se indigna contra os “demagogos” que provocam a desconfiança dos operários “em face de todos quantos lhes ofere­ cem desde o exterior conhecimentos políticos e experiência revolu­ cionária” e apresenta o exemplo dos social-democratas alemães: “Os alemães alcançaram suficiente desenvolvimento político, têm sufi­ ciente experiência política, para compreender que sem uma ‘dezena’ de chefes de talento (os talentos não se contam às centenas), de che­ fes experientes, profissionalmente preparados e instruídos numa longa prática, compenetrados, não é possível nenhuma firme luta de clas­ ses na sociedade contemporânea” 37 (até a “traição” de 1914, Lênin manterá intacta a sua admiração pela organização da social-demo­ cracia alemã, pela autoridade e estabilidade da sua direção). Lênin não considera que a essência da sua concepção organiza­ cional corresponda exclusivamente às condições russas, ainda que tome nestas alguns traços específicos, derivados fundamentalmente da luta contra a polícia política. Também seguindo Káutsky, observa que as diferenças básicas, em matéria de organização, entre a orto­ doxia marxista e o revisionismo, resumem-se na fórmula “burocra­ tismo versus democratismo” (aqui, “burocratismo” quer dizer orga­ nização centralizada, hierarquizada e profissionalizada à base da es­ pecialização dos membros nas diversas tarefas do partido). “Buro­ cratismo versus democratismo — precisa Lênin — é o centralismo versus autonomismo; é o princípio de organização da social-democra­ cia revolucionária em face do princípio de organização dos oportu­ nistas da social-democracia. Este segundo [princípio] procura avan­ çar da base para o topo, e é por isso que defende, sempre que possí­ vel e tanto quanto possível, o autonomismo, o ‘democratismo’ que vai (nos casos em que há excesso de zelo) até ao anarquismo. O pri­ meiro tende a começar pelo topo, preconizando o alargamento dos 676

direitos e poderes do organismo central em relação às partes” 38. Na sua polêmica com Lênin, Rosa Luxemburgo criticou muito especial­ mente semelhante identificação entre revisionismo (a nível teórico e político) e democratismo (a nível da organização) — e é indiscutí­ vel que esta crítica do representante mais qualificado da social-de­ mocracia não russa refletia fielmente a concepção de Marx. Em definitivo, as estruturas e o funcionamento do partido pre­ conizado por Lênin não são mais que a concretização organizacional da concepção do partido como exterioridade dominante em relação à classe, o modo de assegurar a independência e a preservação do poder decisório do partido — na realidade, do seu núcleo dirigente — tanto na definição da ortodoxia teórica como na elaboração e na aplicação da política concreta. Para isto, não basta que o partido tenha uma organização própria, diferenciada da classe, já que a or­ ganização deve estar vinculada às massas e, portanto, exposta às in­ fluências exteriores; é preciso que a organização esteja internamente protegida contra a ideologia “espontânea”, o que exige que o poder decisòrio se concentre num pequeno grupo particularmente “firme” e, no seu interior, no chefe, concebido como a chave da coesão do grupo. Já em 1904, Trótski resumiu concisamente a lógica inerente ao modelo leniniano de partido — o partido tende a substituir a classe; o comitê central tende a substituir o partido; o chefe tende a substituir o comitê central39. A vitória bolchevique de Outubro consagrou a teoria leniniana do partido, da mesma forma como a derrota dos espartaquistas ale­ mães e dos conselhos operários italianos desacreditou as concepções luxemburguistas ou gramscianas, mais próximas à de Marx. A IC foi construída inteiramente sobre a base da teoria de Lênin. E, ao adquirir a dimensão supranacional, todas as características de exte­ rioridade em face da classe, próprias do modelo leniniano de parti­ do, se acentuaram e reforçaram. O corpo central de revolucionários profissionais (Comitê Executivo da IC, rede de delegados e instruto­ res, etc.) constituía um mundo longínquo e secreto para o movi­ mento operário de cada país. E como os revolucionários profissionais de cada seção nacional ficavam subordinados a este corpo central, o exercício da sua função se independizou da classe operária respec­ tiva — bem mais que no caso dos revolucionários profissionais bol­ cheviques. No mesmo sentido influiu a maneira como foram criadas as seções da IC. Enquanto o partido bolchevique se constituiu a partir 677

da originalidade do movimento revolucionário nacional, sobre a base de uma elaboração teòrica e política autònoma, a constituição dos partidos comunistas representa, em maior ou menor grau, um corte com as tradições e experiências revolucionárias nacionais. Enquanto a ruptura dos bolcheviques com as variantes russas do oportunismo resulta de um processo complexo e prolongado de luta ideológica e política, a IC e as suas seções rompem com o oportunismo ocidental mediante os métodos autoritários e burocráticos simbolizados pelas 21 condições. Daí as extraordinárias dificuldades com que se defrontaram os novos partidos, na maioria dos casos, para ganhar raízes no movi­ mento operário. Se conseguem, apesar de tudo, manter-se e, em alguns casos (muito poucos), conquistar efetivos importantes, é porque re­ presentam uma vontade revolucionária que atrai os núcleos mais ra­ dicalizados do proletariado, porque capitalizam o prestígio da Revo­ lução de Outubro e contam — fator de monta — com o apoio finan­ ceiro do Estado soviético. Mas estes dois últimos elementos contri­ buem para reforçar a dependência de cada seção nacional ao órgão supremo instalado em Moscou, que controla os fundos e se identifica com a fidelidade à causa de Outubro. O núcleo bolchevique dirigente da IC se considera, ademais, possuidor de títulos ainda mais indiscutíveis que o grupo bolchevi­ que de 1903, posto que chancelados pela grande vitória de 1917. A resistência que o movimento real do mundo, e particularmente o mo­ vimento operário, opõe às suas concepções; a infirmação a que o efe­ tivo curso dos acontecimentos submete a representação teórica leni­ niana do grau de maturidade e da revolução no capitalismo avança­ do — nada disto debilita a sua convicção de possuir a chave da interpretação científica da história. Aquele curso dos acontecimentos só podia ser, a seu juízo, um desvio superficial, episódico, das pre­ visões teóricas em função das quais se conceberam a estratégia, as estruturas e o funcionamento interno da IC. Não havia, pois, que reformar o instrumento criado; ao contrário, havia que preservar a sua pureza ideológica e as estruturas orgânicas até o momento — próximo — em que a revolução mundial novamente se colocaria em marcha e tomaria as formas previstas. Daí que fossem combatidas com “intransigência bolchevique” todas as correntes — surgidas em numerosas seções da IC nos primeiros anos — que lutavam por al­ cançar certa autonomia política e organizacional em relação ao cen­ tro de Moscou. A nova concepção ortodoxa da revolução mundial 678

exigia a conservação das formas organizacionais do “partido mun­ dial” e estas, por sua vez, constituíam a proteção idônea contra as influências do meio exterior que, na conjuntura, lhe era francamente hostil. Assim, tendem a se acentuar o caráter de exterioridade, a ló­ gica substituicionista e o grau de centralização e hierarquização, próprios do modelo leniniano de partido. E o efeito global de tudo isto é o crescente divórcio entre a IC e o mundo real. 7. As correntes autonomistas no interior da IC encontram o seu aliado natural na oposição ao rumo staliniano no interior do par­ tido bolchevique, que se ergue contra o burocratismo, exige o res­ peito às “normas leninistas”, o restabelecimento da democracia pro­ letária, etc. É natural, portanto, que, depois da morte de Lênin, a luta de Stalin e seus associados contra o trotskismo no partido bol­ chevique se vincule estreitamente à luta contra as tendências centrí­ fugas no interior da IC, o que não exclui — antes pressupõe — a aliança episódica com algumas delas para melhor bater outras que, no momento, se consideram mais perigosas. Por isto, a luta contra a “direita” ou a “esquerda” no interior do partido bolchevique não aparece sempre sincronizada com a luta contra a “ direita” ou a “es­ querda” em tal ou qual seção da IC. Estas etiquetas obscurecem o verdadeiro fundo da luta, que reside — embora sempre se acompa­ nhe de determinada orientação política — no conflito entre o pro­ cesso de monolitização (ideológica e organizacional) e as tendências centrífugas. A conquista da autonomia se converte na condição pré­ via da elaboração de qualquer política, revolucionária ou reformista, capaz de influir na realidade. A política ditada de Moscou tem a pe­ culiaridade esterilizante de não ser nem revolucionária nem refor­ mista — é abstrata e ineficaz. O conteúdo essencial da chamada “bolchevização” consiste, precisamente, na liquidação definitiva des­ sas tendências autonomistas, com o que se assegura a subordinação total da IC à fração staliniana, sobre a base da justificação ideoló­ gica proporcionada pela doutrina do socialismo num só país. Desta maneira, aprofunda-se ainda mais a contradição entre a IC e as exi­ gências da luta revolucionária em cada país. No capítulo dedicado à dissolução da IC, vimos que a argumentação empregada pelo Presidium do Comitê Executivo para justificar o ato equivalia ao reco­ nhecimento de que a IC colidiu com o fator nacional. Mas este re­ conhecimento se baseava exclusivamente nas características organi­ zacionais da IC, ocultando, em primeiro lugar, que tais característi­ 679

cas eram um aspecto inseparável de toda a concepção leniniana do partido mundial; e, em segundo lugar, que a contradição entre a IC e o fator nacional, derivada daquela concepção, foi levada ao extre­ mo, singularmente agravada, quando a IC se converteu num instru­ mento incondicional do Estado staliniano. Por outro lado, os liquidantes da Internacional se apoiaram no fato evidente de a IC, tal como fora concebida, ser uma forma ina­ dequada de organização do internacionalismo proletário para justi­ ficar a renúncia a qualquer tipo de organização internacional revo­ lucionária. Entretanto, na realidade, a experiência da Internacional não prova que os imperativos nacionais sejam incompatíveis com qualquer internacionalismo organizado e concretizado no plano teó­ rico e político; ela prova apenas o fracasso da forma IC, ou seja, o fracasso de uma forma exterior, imposta, ao proletariado internacio­ nal, subordinada aos interesses de um Estado nacional. O fracasso desta experiência induz à idéia de que a concretização do interna­ cionalismo proletário a todos os níveis — teórico, político, organiza­ cional — só pode ser o produto orgânico do movimento revolucio­ nário internacional tomado na sua diversidade. E, neste sentido, adquirem grande atualidade as concepções de Marx sobre a Primeira Internacional, a que aludimos anteriormente. A transformação da IC numa instituição alienada e alienante, a serviço da nova classe dominante que se foi formando sobre as ruínas da democracia soviética, tem lugar, portanto, mediante a eli­ minação sucessiva das tendências, idéias e personalidades conflitivas que surgem no seu interior. Este processo não consegue “reeducar” todas as forças iniciais da IC, e nisto reside uma das razões essen­ ciais do rápido decréscimo dos seus efetivos. Os não assimiláveis são expulsos ou se afastam voluntariamente. As novas gerações entram já num meio mais condicionado e condicionante que o precedente. E, por seu turno, nelas se opera análogo processo de seleção. Daí a enorme flutuação — entrada e saída de filiados — de que se lamen­ tam continuamente todas as instâncias da Internacional. Entre 1921 e 1928, a IC perde mais da metade dos seus efeti­ vos, o que significa, tendo em conta a flutuação indicada, que a grande maioria dos primeiros militantes abandonara a organização ou dela fora excluída. Entre eles, uma fração considerável de núcleos dirigentes iniciais em cada país. Das sucessivas gerações, iam fican­ do aqueles cujo grau de alienação ideológica, de compenetração fi­ deista com os dogmas e os chefes — unido, quase sempre, a um 680

grande espírito de abnegação e combatividade — era suficientemente “elevado”. Quando se produz a viragem do antifascismo, a IC reu­ nia já todas as características do que Marx entendia por seita — re­ ferindo-se concretamente aos proudhonianos mutualistas, aos lassalianos e aos bakuninistas — , seita que “tenta afirmar-se contra o movimento real da classe operária” 40. Na verdade, característica muito mais acentuada porque o regime interno da IC ia muito mais longe na preservação do dogma, no culto da autoridade, na disci­ plina e na mania do segredo. Esta seita recebeu e educou a onda juvenil que acorreu à IC nos anos do antifascismo, vendo nela — como as gerações anteriores — a bandeira de Outubro, a depositária do marxismo revolucioná­ rio. As novas forças chegavam à IC sob o signo do ódio ao fascis­ mo e do ilimitado entusiasmo pelo novo mundo que aparentemente surgia das ruínas da velha Rússia, ao compasso dos planos qüinqüenais. Afora a combatividade antifascista, o traço distintivo destes no­ vos comunistas era a total carência de espírito crítico em face de tudo o que trazia o selo soviético, a subestimação da teoria — posto que todos os problemas importantes vinham resolvidos “de cima” —, o “praticismo” (como se dizia no jargão partidário). Na medida em que se interessavam pela teoria, nutriam-se basicamente das obras de Stalin. Chegava-se a Lênin através de Stalin. Marx vinha num remoto terceiro lugar. Desta geração sairá o plantei de quadros médios e muitos dos quadros dirigentes na etapa da Resistência, da Libertação, da “ união nacional”, da guerra fria, das democracias po­ pulares . . . — dado fundamental para compreender o comportamen­ to da maior parte dos partidos comunistas depois da dissolução da IC. Não é de estranhar, pois, que a imensa maioria dos comunistas dos anos trinta acreditasse piamente na versão oficial dos processos de Moscou, especialmente quando esta fase aguda do terror stalinia­ no coincidia com a grande campanha propagandistica em torno da nova Constituição, que — nas palavras de Stalin — “consagra o fato, de alcance histórico-universal, de a URSS ingressar numa nova etapa de desenvolvimento, a etapa da culminação da edificação da sociedade socialista e da transição gradual à sociedade comunis­ ta” 41. No momento mesmo em que um terror massivo se abatia so­ bre a sociedade soviética, Stalin a apresentava como o reino da liberdade, onde existe “liberdade de palavra, de imprensa, de reu­ nião [ . . . ] , inviolabilidade do domicílio e da correspondência [ . . . ] , completa democratização do sistema eleitoral” à base do sufrágio 681

universal. E todas estas liberdades são autênticas, não falseadas pela exploração do homem pelo homem. Fundam-se na “propriedade so­ cialista dos meios de produção”. Segundo a propaganda staliniana, não havia nenhuma contradição entre esta perfeita democracia socia­ lista e a liquidação das personalidades mais representativas da velha guarda bolchevique porque, como demonstra a história, todas as revo­ luções têm os seus renegados. Haveria algo a estranhar, pois, no fato de a maior revolução da história contar com uma alentada coleção de “monstros”, “lacaios do fascismo” e “agentes dos serviços de espio­ nagem” — conforme as científicas caracterizações stalinianas? A partir do momento em que se convertiam em “inimigos do povo”, os heróis da Revolução de Outubro se transmudavam, de acordo com os próprios termos de Stalin, em “insignificantes insetos contra-revo­ lucionários” 42. Para os comunistas de todo o mundo, somente calu­ niadores profissionais, agentes da burguesia e do fascismo, poderiam questionar esta versão staliniana. E não só para os comunistas, mas também para uma grande massa de trabalhadores e de antifascistas que, mesmo discordando de diversos aspectos do regime soviético, consideravam-no, no entanto, um regime socialista. E o socialismo podia ser compatível com mentiras e crimes tão monstruosos como os denunciados pelos trotskistas, liberais burgueses, social-democra­ tas e reacionários de todo o tipo? Os comunistas não só acreditavam nesta versão staliniana dos processos, como ela passou a ser um ele­ mento essencial da sua formação ideológica e política. Graças a Sta­ lin, o chefe genial, à sua vigilância e sabedoria infalíveis, a teoria e a prática do movimento operário se enriqueciam com a compreensão de novos fenômenos — os meios diabólicos que o inimigo de classe podia implementar para deter a marcha triunfal do socialismo — , não previstos por Marx e Lênin. Formados nesta experiência, os co­ munistas ficaram “preparados” para compreender — e “fazer com­ preender” à massa de neófitos que ingressou nos partidos comunis­ tas no calor da vitória anti-hitleriana — a repetição desses fenô­ menos nos anos da “guerra fria”: a transformação dos principais quadros comunistas das democracias populares em outros tantos “monstros”, agentes de todos os serviços secretos do imperialismo. O enorme poder alienante do partido staliniano sobre sucessivas gerações de revolucionários só se pode explicar, em definitivo, por­ que ele encarnava um grande mito, nascido do acontecimento que mais ilusões e esperanças despertara nas massas proletárias e em todas as forças avançadas do século XX: a Revolução de Outubro. 682

O mito de que na URSS se estava edificando a primeira sociedade sem exploração do homem pelo homem, a primeira sociedade basea­ da na igualdade e na liberdade reais. E deste grande mito derivava outro: o de que o partido staliniano era o portador indiscutível do marxismo revolucionário. Por isto, mesmo que a crise do partido sta­ liniano tenha ido se manifestando, primeiro no plano da IC e depois no dos partidos nacionais, através do processo que analisamos, ela só poderia entrar na sua fase mais decisiva com a derrocada do grande mito — daí a histórica significação do “relatório secreto” de Kruschev. Com ele se abre a etapa da crise geral do movimento co­ munista, que estudaremos na continuidade da presente obra 43.

NOTAS 1 Como indicamos na “introdução” à edição brasileira (vol. 1, p. 7), a obra A C rise d o M o v im e n to C o m u n is ta compreende duas partes — estes dois volumes publicados pela Global Editora reproduzem a primeira parte, única até agora concluída por Claudín. O que o autor designa aqui por “parte restante deste ensaio” é precisamente a segunda parte ainda inédita, cujo título provisório anunciado é “Do XX Congresso do PCUS à Invasão da Tchecoslováquia” ( N o ta d o tra d u to r ). 2 Marx, E l C a p ita l, Fondo de Cultura Económica, México, 1969, I, pp. 648-649. 3 Lênin, ed. cit., t. 22, p. 288. 4 C o n g r e so s I - I V , cit., p. 155. 5 Ib id ., pp. 19, 20, 25, 31 e 74. à Ib id ., pp. 87, 91 e 94. 7 Ib id ., p. 93. 8 V C o n g re so , cit., p. 395. 7 V I C o n g re so , cit., pp. 46 e 55. '8 C o n g r e so s 1 -lV , cit., p. 100. 11 A IC passa de 445.300 membros em 1928 a 328.716 em 1931 (excluída a URSS). Cfr. o capítulo sobre o monolitismo, p. 110 do volume anterior. 12 Sobre as formulações do VI Congresso, cfr. a nota 56 do capítulo “A crise teórica”. As citações de Ponomarev encontram-se no seu artigo sobre o aniversário da IC publicado em E a N o u v e lle R e v u e I n te r n a c io n a le , feverei­ ro de 1969. 13 Cfr. pp. 83-84 do volume anterior e a nota respectiva (74, do capítulo “A crise teórica”). 14 Marx e Engels, O b ra s, ed. cit., t. 4, pp. 433-434. is “A doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se esquece de que tais contingências são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. Deve por isso separar a sociedade em duas partes — uma das quais é colocada acima da outra. A coincidência da alteração das contingências com a atividade humana e a mudança de si próprio só pode ser captada e entendida racionalmentv

como práxis revolucionária” (Marx, 3.a tese sobre Feuerbach, in M a r x , col. Os Pensadores, vol. XXXV, Abril Cultural, S. Paulo, 1974, p. 57. N o ta d o tr a d u to r ).

'4 Marx e Engels, O b ra s, ed. cit., t. 30, pp. 406, 400-401. A mesma idéia já se encontra no M a n ife s to ; depois de descrever o processo através do qual o proletariado se vai transformando em classe consciente, conclui: “[...] esta organização do proletariado em classe e, portanto, em partido polí­ tico [ ...] ” (t. 4, p. 433). 17 Ib id ., t. 30, pp. 400-401. is Marx, declaração a Hamann; reproduzido em L e s M a rx is te s, de K. Papaioannou, cit., p. 223. A segunda edição russa das obras de Marx e Engels não inclui este texto, sob o pretexto de que ele foi deformado pelo órgão do partido social-democrata alemão, D e r V o lk s ta a t (t. 16, p. 774). Mas não se conhece nenhuma declaração de Marx desautorizando a versão do periódico. i’ Marx e Engels, O b ra s, cit., t. 7, pp. 287-288. 20 Ib id ., t. 18, p. 342. 21 Ib id ., t. 19, p. 175. 22 Ib id ., t. 4, pp. 437-438. 23 Cfr. pp. 115-116 do volume anterior e a nota respectiva (14 do capítulo sobre “o monolitismo”). 24 Numa carta a Lafargue, de 11 de agosto de 1884, Engels caracteriza a po­ sição de Marx a este respeito da seguinte maneira: “Marx protestaria contra o ‘ideal político-social e econômico’ que você lhe atribui. Quando se é um ‘homem de ciência’, não se tem ideal: elaboram-se resultados cientí­ ficos — e quando, além disto, se é um homem de partido, combate-se para levá-los à prática. Mas quando se parte de um ideal, não se pode ser um homem de ciência, porque se tem uma posição a p rio r i” (C o rr e s p o n d a n ce E n g e ls-L a fa r g u e , Éd. Sociales, t. I, p. 325). 25 Rosa Luxemburgo, C e n tr a lis m o y D e m o c r a c ia ; incluído no folheto de Spartacus, M a r x is m e c o n tr e D ic ta d u r e , 1946, p. 21. 26 Reproduzido por Lênin no Q u e F azer?, O b ra s, cit., t. 5, p. 355. 27 Dissidência, cristalizada em 1879, da organização de origem populista “Terra e Liberdade” que, por sua vez, surgira, em 1876, do movimento populista original. A “Vontade do Povo”, liderada por Zheliabov, Mikhailov e Vera Figner, centrava as suas atividades no terrorismo ( N o ta d o tra d u to r ). 28 Lenin, O b ra s, cit., t. 5, pp. 347-348. 29 Ib id ., p. 356. 30 Ib id ., p. 367. 31 Ib id ., p. 443. 32 Ib id ., t. 7, p. 238. 33 Ib id ., t. 5, pp. 481, 476-477 e 478. 34 Ib id ., p. 452. 35 Ib id ., pp. 419, 434. 36 Ib id ., t. 10, p. 15. 37 Ib id ., t. 5, pp. 432, 431 e 430. Em U m P asso A d ia n te , D o is P a sso s A tr á s , expressa idéia análoga sob outra forma: “Um partido implica a criação de uma autoridade, a transformação do prestígio das idéias em prestígio da autoridade, a submissão das instâncias inferiores às superiores” (t. 7, p. 339). 38 Ib id ., t. 7, pp. 365-366. 39 Cfr. N a s h i P o litic h e s k ie Z a d a c h i, Genebra, 1904, p. 54. 684

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Michel Lowy, L a Maspero, 1970, p. 175.

Apud

T h é o rie d e la R é v o lu tio n c h e z le J e u n e M a r x ,

41 H isto r ia d e i P a r tid o C o m u n is ta