Um Eremita no Himalaia

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B R U N T O N

UM EREMITA NO HIMALAIA Prólogo do Príncipe Mussooree Shum Shere Jung Bahadur Rana, do N E P A L

Tradução de G I L B E T R O BERNARDES

EDITORA SÃO

DE OLIVEIRA

PENSAMENTO PAULO

ÍNDICE

Prólogo

I.

II.

III.

IV.

V.

VI.

VII.

VII.

IX.

"

Prefácio da Primeira Edição Inglesa

13

A Filosofia da Amizade. No Himalaia em Lombo de Pónei. Meu Bangalô no Cume da Montanha.

17

Expedição Planejada ao Monte Kailas, no Tibete. O Esplendor de uma Montanha Coberta de Neve. Descubro o "Refúgio".

28

Meditação Sobre o Domínio Inglês na Índia e Sobre a Luta Política. A Necessidade de Espiritualizar a Política. O Controle dos Pensamentos. Um Segredo da Concentração.

40

Minha Procura da Quietude Interior. A Recordação de Nascimentos Anteriores. Um Método Budista para Reavivar Recordações Pré-Natais. O Objetivo da Natureza com Relação à Humanidade. E m Unidade com a Natureza.

50

Visita Inesperada de Dois Iogues. Peregrinos e Santuários no Himalaia. O Poder da Quietude.

61

Um Apanhado da Minha Correspondência. Um Quase-Suicídio e a Minha Resposta. Ajuda Telepática a Estudantes.

73

Reflexões Acerca do Futuro do Tibete. As Experiências de Sir Francis Younghusband. O Destino do Oriente e do Ocidente.

83

Uma Missivista Decreta Minha Retirada do Mundo. As Virtudes da Ociosidade e da Solidão. O Novo Testamento. Jesus e Seus Críticos.

94

A Tempestade. Os Precursores das Monções. tantes Animais. A Questão das Roupas.

108

Meus Visi-

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XIII.

XIV.

XV.

XVI.

XVII. XVIII.

Mais uma Visita de um Iogue. Suas Venturosas Viagens de Cachemira até o Monte Kailas. Suas Andanças no Tibete Ocidental. Como seu Mestre Vivia Nu na Neve. Explicações do Feito.

i

Filosofia e Divertimento. Reflexões Acerca do Sr. Charles Chaplin. Sua Arte Silenciosa e seu Génio. A Necessidade de Modernizar a Ioga. A Inviabilidade do Asceticismo. Algumas Verdade Acerca de Sexo e Ioga.

136

Uma Incursão Sagrada na Quietude. nistas e seu Significado.

151

Encontro com uma Pantera. Natureza.

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9

As Expedições Alpi-

O Problema da Crueldade da 160

Visita de um Príncipe Nepalês. Curiosa Experiência com um Faquir e um Espírito. Exploramos o Lindo Vale de um Rio. Aventura com um Elefante Enfurecido. O Budismo no Nepal. Krishna e Buda Comparados.

167

Minhas Vigílias Noturnas ao Ar Livre. Reflexões sobre as Estrelas. A Verdade Acerca da Astrologia. O Mistério de Sírio. Os Planetas são Habitados? O Simbolismo do Sol. O Cedro do Himalaia Fala. Adeus ao meu Bangalô.

185

Parto Novamente a Cavalo. Maravilhoso Panorama no Estado de Tehri. Minha Viagem Através de Cristas e Trilhas Montesas. Atravessando as Florestas na Escuridão. Chego a Pratapnagar.

197

Os Nevados Gigantes do Himalaia. O Ataque de um Urso.

208

As Delícias de Beber Chá. tades das Monções.

217

Epílogo

Como Começam as Tempes-

225

Adeus, mundo ingrato, vou-me embora! Amigo meu não és, nem teu sou. Muito tempo entre a turba vaguei, Qual barca perdida no oceano; Mero joguete muito tempo fui; Mas agora, mundo ingrato, vou-me! Adeus digo à vil bajulação; À ríspida e fútil soberbia; À vã arrogância da fortuna; À toda sorte de servilismo; Aos salões, às cortes e às ruas; Aos empedernidos e apressados; Aos que de cá e de lá correm. Adeus, mundo ingrato, vou-me embora! Vou-me de volta à minha morada, Em verdes colinas isolada, — Canto secreto em país ameno Cujos bosques fadas planejaram, Onde sorri a vida sem cessar Ao canto alegre da passarada, E pés profanos jamais pisaram, Recanto sagrado a Deus c ao mundo. Posto a salvo em seu refúgio Espezinharei o antigo orgulho, E estirado sob os pinheirais, Onde brilha a vespertina estrela, Rir-me-ei das humanas histórias, Dos escolásticos e letrados, Que eles nada são em sua altivez, Pois nas matas se pode achar Deus. Ralpb Waldo

Emerson

PRÓLOGO

Pelo PRÍNCIPE MUSSOOREE JUNG BAHADUR

SHUM RANA,

SHERE

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NEPAL

Proporciona-me grande satisfação escrever estas palavras a este derradeiro livro do amigo Paul Brunton. ao longo da famosa cadeia de montanhas que Central.

introdutórias

O cenário está colocado separa a índia

da Ásia

As cristas e picos que o autor descreve, tais como conheceu

no

Estado de Tehri, não são senão uma continuação do meu querido Himalaia nepalês.

Nascido que sou nestas montanhas, tenho grande afeição

Himalaia e os momentos

que passei lendo a seu respeito,

pelo

nas palavras

originais e atraentes de Brunton, foram dos mais auspiciosos. Tão-somente

aqueles que foram criados entre as cordilheiras revestidas

de florestas e os picos recobertos de neve do Himalaia saberão que o autor não superestimou aquela região;

simplesmente lhe fez justiça.

O Himalaia

será sempre o mais estupendo panorama de toda a Ásia, digo de todo o mundo. Antes de deixar as montanhas, o autor fez-me uma visita de alguns dias e, durante a sua estada, mostrou-me o manuscrito de Um Eremita no Hima-

laia. Foi apenas então que descobri ali algumas páginas dedicadas á minha improvisada visita ao seu refúgio,

quando a amizade levou-me a montar a

cavalo e atravessar as cristas, em procura do amigo a quem considero como um profeta espiritual de nossos tempos. Tivesse

eu sabido que sua poderosa memória

compilava em

e segredo notas sobre tudo quanto eu dizia, provavelmente cuidadoso em minhas manifestações!

silêncio

teria sido mats

Pois eu não sabia que ele fazia um

diário onde registrava, nos momentos de folga, pensamentos, fatos e conversações.

Felizmente,

estou seguro de que sua discrição

publicar assuntos que não sejam do interesse

não lhe

permitirá

público.

9

Este novo livro, sendo apenas um diário, é para mim mais interessante do que uma obra laboriosamente composta, pois, necessariamente, tem um clima de intimidade e franqueza que, de hábito, se pode encontrar apenas nos jornais e diários. A obra conduz o leitor ao mais imo do pensamento do talentoso escritor. Este me disse que, ao reler as páginas antes de mostrar-mas, achou-as "terrivelmente egoístas" e sentiu ímpetos de enterrálas sob as montanhas em que tinham sido escritas. Assegurei-lhe porém que o egoísmo é componente essencial de quaisquer memórias e que estas memórias de sua vida no Himalaia não carecem daquela qualidade que confere renovado interesse e encanto à literatura, conquanto possa ser repugnante em sociedade. Durante a estada que ê o tema deste livro, Paul Brunton foi, creio eu, o único homem branco a viver no pouco conhecido Estado de Tehri. Certamente, poucos europeus se dariam ao trabalho de isolar-se em montanhas bravias e agrestes, longe dos centros civilizados, como ele fez. Não obstante, estou certo de que ele obteve sua recompensa, pois mesmo durante o curto período em que lhe fiz companhia sou obrigado a dizer que os dias pareciam maravilhosos: a gente se sentia apartado das cruas realidades do viver cotidiano e arrebatado por um mundo de sonhos, paz e espiritualidade. A este último respeito parece-me que suas ideias gerais, conforme expressas neste e em outros livros, são particularmente adequadas a orientação das pessoas ocidentais e do crescente número de orientais que adotam a maneira de viver e de pensar do hemisfério ocidental. Pessoalmente, acho mais fácil compreender muitas intrincadas sutilezas de nossas próprias filosofias e técnicas espirituais asiáticas, inclusive a Yoga, quando explicadas por Brunton, à sua maneira científica, racional, moderna e imparcial, do que quando explicadas à maneira tradicional, tão distante da compreensão do século vinte. Encontram-se numerosas passagens nas escrituras da maior parte das religiões onde se menciona o Espírito falando por diversas formas, por meio de diferentes idiomas e a homens diferentes. Estou convencido dc que Brunton é um dos instrumentos eleitos para reinterpretar a sabedoria semiperdida do Leste para aqueles que foram apanhados na vida mecânica do Oeste, e servir com isso a Sua causa. Um livro como este destina-se àqueles que vêem com bons olhos ou desejam a vida interior do Espírito. Posso avaliar a profunda ignorância do critico que, num determinado jornal de direção europeia de Calcutá,

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e, por fim, ridicularizou do autor de entregar-se a tais pesquisas. Os melhores jornais

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revelada por um crítico de nascimento ocidental no tocante ao país em que estava vivendo. A opinião do citado crítico merece tanta aceitação quanto a de um bronco pugilista profissional acerca de um precioso vaso chinês da dinastia Ming.

Posso testemunhar pessoalmente que não há na índia apenas os iogues, descritos no livro de Brunton, vale dizer, homens possuidores de dons sobrenaturais, poderes maravilhosos e altaneira espiritualidade, mas também outros igualmente raros que não foram mencionados. No entanto, o europeu médio e o hindu de educação ocidental encararam com indiferença e desprezo as declarações do autor, provando com isso que não foram iniciados nos mais valiosos conhecimentos do mundo e na mais cara das tradições secretas da Ásia. Como nepalês, pertencendo a um povo que rigidamente vem mantendo seu país em total independência e sobranceira exclusividade, posso também asseverar que essas antigas tradições de sabedoria mística têm sido preservadas nestes redutos montanheses do Nepal muito melhor do que na própria índia. Mas apenas aqueles que procuram com tanta seriedade como o autor podem esperar penetrar na sociedade e nos segredos dos verdadeiros Sábios da Ásia. O crítico de Calcutá não mereceria atenção, não fossem inúmeros preconceitos igualmente injustos sempre a manifestar-se. Assim é que tenho ouvido europeus descreverem as pesquisas realizadas pelo autor no Egito como "Mero sensacionalismo de Jornal"! Uma vez mais, trata-se de uma confissão de ignorância. Essas pessoas ou não chegaram a conhecer Paul Brunton ou, caso tenham chegado a conhecê-lo, não se permitiram compartilhar da sua vida interior, como a mim foi dado fazer. Aqueles que de fato o conhecem — coisa difícil de conseguir, sou forçado a reconhecer — sabem que sua sinceridade é indiscutível e que seus sacrifícios materiais para descobrir a fugidia verdade por detrás da vida têm sido grandes. Poucos realmente o conhecem e a incompreensão parece ser a sua sina preceituada e aceita. Sinto-me feliz com a oportunidade de prestar um pequeno favor ao meu amigo, escrevendo esta introdução. Que a mensagem muito necessária, cuja luz interior brilha através das páginas que se seguirão, leve consigo as bênçãos dos modestos Sábios do Sagrado Himalaia!

PREFÁCIO DA P R I M E I R A EDIÇÃO

INGLESA

Para que os leitores não pensem erradamente que este é um novo livro, que rompi um silêncio de muitos anos através desta manifestação, apresso-me em dizer-lhes que não é assim. Este livro foi escrito há mais tempo do que me é agradável lembrar. As folhas saíram do prelo em Madras, em cujas proximidades eu me encontrava na ocasião, e circularam na forma de livro. Uma pequena porção delas foi mandada para a Inglaterra e ali distribuída também sob a forma de livro, mas logo desapareceu. Um Eremita no Himalaia nunca foi reimpresso, apesar dos pedidos. Embora eu nunca tenha voltado à mesma região do Himalaia Central descrita na obra, os azares da guerra levaram-me, na verdade, àquelas estupendas montanhas, primeiramente o seu extremo oriental, nas fronteiras de Sikkim, e, depois, ao extremo ocidental, dando vista para o Pequeno Tibete. Nunca mais me foi possível esquecer a grandiosidade sufocante daquelas fieiras intermináveis de cumes rebrilhando ao sol a perderem-se céu a dentro, nem os sons alegres de apressados regatos que serpenteiam no chão de vales elevados e pedregosos. Era inevitável que alguns dos pontos de vista segundo os quais as reflexões contidas nesse diário foram escritas se modificassem pelo desenvolvimento interior e acúmulo de experiência trazidos pelo correr dos anos. Porém, o ponto de vista genérico permanece substancialmente o mesmo, isto é, a necessidade de conquistar a paz espiritual recuperando o domínio da mente e do coração. Não faz muito tempo que retornei do Oriente e da vida tropical para voltar a viver no hemisfério ocidental, mas tudo quanto tenho visto e ouvido nestas bandas convence-me de que tal necessidade é hoje em dia mais urgente e imperiosa do que o era quando da feitura deste diário. Se o mundo está em estado de pasmo e confusão diante dos seus problemas, isto se

, w em parte ao fato de que nós, ocidentais, fizemos da atividade um deus Resta-nos ainda aprender como ser, da mesma forma p2a quai aprendemos como fazer. Precisamos de um oásis de calma neste mundo tempestuoso. Ocasiões há em que refugiar-se com tal propósito deixa de ser deserção e se transforma em sabedoria, deixa de ser fraqueza e se transforma em fortaleza. Se nos afastamos durante algum tempo a fim de proceder a uma revisão em nossas metas, se usamos o tempo e o lazer para acalmar nossas agitações e aguçar nossas intuições, então, com certeza, não estamos obrando mal. No entanto, não advogo a reclusão rural ou monástica com outros propósitos que não os de conseguir uma ajuda temporária e fortuita de grande valia, porque a verdadeira batalha tem de ser travada dentro do nosso próprio ego, exatamente no ponto em que o aspirante se encontra. Toda vez que enfrenta com sucesso as contingências impostas pela vida mundana tem o homem uma oportunidade de fazer um. avanço não apenas no terreno da consciência e da compreensão, mas também, e de modo muito especial, no do caráter. É-lhe oferecida uma forma rápida de transformar seu caráter para melhor. O erro que supõe a crença mística e a prática da meditação convenientes apenas aos ascetas, frades e homens santos ou então aos excêntricos, neuróticos e aleijões (e a eles restrita) é dos mais sérios. O antigo mundo da pré-guerra, onde viajar era fácil, já não existe. A despeito dos aviões, o Himalaia parece hoje mais remoto a qualquer cidadão inglês do que o era quando, pela primeira vez, entrei em seus domínios multicoloridos sob um céu turquesa. Aquele que hoje em dia busca um retiro não pode ir muito longe, talvez não possa ir muito além de um estado vizinho. Na verdade, nestes dias de carência de acomodações, muitas vezes lhe é negada a intimidade de um quarto. Estará então fechado o caminho? Não. Continua aberto a todos os homens, se bem que de uma forma diferente. Uma meia hora, roubada as atividades do dia ou ao descanso noturno, reservada para meditar na própria casa, dará, em última instância, bons resultados Sugestão útil para os que não conseguem em casa f o r / / ' L f •** ? Ç requeridas, é procurar uma igreja tora dos horários das cerimonias. É reconhecidamente mais dmcil do que praticar o mesmo exercício num pacato vale de 0

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A tranquila passividade que o indivíduo dispõe-se a alcançar irá, eventualmente, aumentando até chegar a um ponto em que o pensamento pára e o cérebro se esvazia. Nesse silêncio interior penetra, não se sabe como, a sublime consciência do E u Superior. Aqueles que passam um espaço de tempo suficiente na busca mística, com perseverança e orientação suficientes, verificam ser ela infinitamente inspiradora por que os liga — por mais débil e momentaneamente que seja — com um poder infinito, uma sabedoria infinita, uma bondade infinita. O fruto de tais meditações vem na forma de breves visões da beleza floral da alma. Embora esse fruto, na maior parte dos casos, não se faça ver senão por poucos minutos, sua florescência perdura e volta à memória durante muitos anos a seguir. Apenas o adepto, aquele que viajou bem longe na sua jornada ao interior de si mesmo, tem o poder de voltar a qualquer momento, e ao sabor da sua vontade, à serena beatitude dessa alta consciência. P. B. Taneiro de 1949

CAPÍTULO

Filosofia da Amizade pónei - Meu Bangalô

I

No Himalaia em Lombo no Cume da Montanha

de

A ÚLTIMA etapa da minha jornada logo estará terminada Depois de semanas viajando de forma irregular, desde que deixei para trás o tórrido triângulo da Índia meridional, esta noite irei para a cama com a agradável consciência de que possivelmente se passará um bom espaço de tempo antes que o rolo de cobertores marrons e lençóis brancos torne a ser afivelado no seu invólucro de lona. Não que a viagem em si não se tenha constituído em agradável novidade. Até mesmo a queda gradual da temperatura é benéfica ao corpo queimado de sol, ao passo que a extensa sucessão panorâmica de quadros e lugares excita a curiosidade de um intelecto esfalfado. O europeu experimenta aqui uma sensação de liberdade, um sabor de alívio, ao chegar cansado das planícies sufocantes, sobre as quais o calor estival se abate como uma rútila mortalha. Melhor do que tudo, já se teve o prazer de reencontrar velhos amigos e fazer novas amizades. É bem verdade que um homem que baseia suas amizades na afinidade espiritual e não nos vínculos do interesse nem nas ligações mundanas, não pode esperar contá-las em grande número, pois os ditames do E u Superior têm de ser obedecidos e os diferentes graus de compreensão (e, como frequentemente me é dado observar, de incompreensão) propriamente ditos erguem barreiras intransponíveis entre aqueles a quem Deus não uniu no prazer da amizade. Quando pondero agora na variedade de algumas das aparências exteriores sob as quais encontrei essa afinidade, durante a presente viagem, espanto-me diante das possibilidades com que a vida nos presenteia tão logo comecemos a trilhar os caminhos

do Eu Superior, conquanto o façamos de maneira intermitente e mal definida. , Um comerciante de óculos, mercador de custosas sedas, cuja loia o destino colocou no meio de um concorrido bazar; um J intelectualizado editor adjunto de um jornal, o qual discorre sobre política e economia, enquanto eu me delicio com uma bebida gelada; um operário analfabeto que moureja de sol a sol a semana toda, em troca de um salário magérnmo e cuja trágica pobreza ilustra para mim a verdade de que aqueles que suaram na batalha da vida, mas nunca sangraram, nao sabem realmente o que esta significa; um nobre marajá de meia-idade que pertence à época vitoriana no seu sólido zelo pela contenção moral e nas suas melancólicas observações acerca da decadência que rapidamente se apossa das gerações mais novas; um jovem mestre-escola inglês que, com olhos jovens e entusiasmo abrasador, está tentando arrancar os métodos educacionais da antiquada rotina em que os encontrou; um poderoso e dominador ministro, cujas habilidades transformaram-no em figura central do governo de um grande estado hindu e cuja prosa fluente fornece-me estímulo intelectual; o guia espiritual de uma fraternidade religiosa hindu que, benevolamente, ignora as diferenças de crença, na profunda consideração que nos une um ao outro; um iogue paupérrimo que medita em forças misteriosas, sentado à margem do Ganges, nas proximidades de Rishikesh, essa cidade única em que eremitas, frades e peregrinos fazem sua morada, permanente ou provisória: com grande calma, ele me conta como separou o espírito do corpo e conseguiu presenciar cenas na longínqua Calcutá e até mesmo ouvir o rumor do tráfego londrino, enquanto contemplava as águas do rio! Há também uma jovem dama bengali que atingiu excepcional grau de realização espiritual e cujo semblante lembra o rosto pleno de beatitude de Sta. Teresa, enquanto sentada com os olhos semicerrados em meio a um grupo de devotos; um delgado e arcado maometano de barbas grisalhas que me guia através dos encardidos becos e bazares de Delhi até a Jumma Masjid, a maior mesquita da índia, onde então me fala das suas aventuras da mocidade durante a sua peregrinação a Meca e a seguir me conta dos seus preparativos para um outro tipo de peregrinação, sua partida deste mundo. E simpático este velhinho, pois não hesita em mesclar um pouco de humor à sua filosofia. Há muitos outros, conhecidos ou desconhecidos, que de modo '-muito íntimo cruzaram meus caminhos; talvez sejam de e

18

mentalidade mais mundana, mas isso não nos impede de nos sentirmos perfeitamente à vontade em presença um dos outros. ) 0 homem precisa estar preparado para tocar a vida em muitos ( i lados, se é que deseja realmente viver; até mesmo um grande f Pregador não se pejou de confraternizar com os pecadores repu- V diados e desprezados deste mundo; no entanto, o homem deve sempre agir assim quando a atração interior for mútua e espontânea, e não em caso contrário. Não raro as mais espantosas mudanças da vida acontecem por essa forma. Uma das primeiras pessoas que Cristo induziu a dar à vida o devido valor ou, em linguagem popular, salvou-lhe a alma, não era um respeitável esteio da autoridade e virtude cívica, mas uma prostituta. Quando eu visitava uma certa cidade, depois de uma ausência de alguns anos, um amigo ofereceu-se para dar uma festa em minha homenagem, a fim de permitir-me "conhecer as figuras de proa da cidade". Recusei-me solenemente. Não tenho nenhum desejo de conhecer as figuras de proa de qualquer cidade. Ademais, por que tanto trabalho! Eu já tinha feito um pouco de jornalismo e um pouco, assim o espero, de literatura de melhor qualidade. Já tinha feito algumas pesquisas pouco comuns. Apenas isso. Muitos homens tinham feito outro tanto e muito mais ainda. Seria justo dar uma festa quando eu tivesse realizado algo de grande valia, quando tivesse galgado o Himalaia da alma e atingido o seu alto cume. E temo que, se tal coisa chegar a acontecer, as figuras de proa da cidade não quererão conhecer-me pessoalmente! Há ainda outros que eu gostaria de reencontrar, mas, infelizmente, o tempo não espera. Não ouso mandriar na minha jornada rumo ao norte. Pois tenho uma meta, um objetivo, que para mim é da mais alta importância.

*

*

Por isso eis-me sentado numa sela, a cavaleiro de um sólido pónei montês, ouvindo o bimbalhar dos sinos dos seus arreios e deslocando-me em marcha lenta pelas trilhas escorregadias e íngremes que me conduzem para o ar rarefeito das cristas do Himalaia. Seria falso dizer que nós ambos não estamos cansados e não veríamos de bom grado a parada final, nem que a fieira de carregadores cules, sob a chefia do meu criado, que me segue

o erra de quilómetro e meio de distância, transportando bagagens e provisões, não ficaria contente de receber o seu pagamento estLlado e dispersar-se. Até mesmo o pónei desenvolveu o hábito infeliz e desagradável de desviar-se estupidamente para a beirada externa da trilha, onde uma ravina perigosa e pontilhada de troncos esparsos de árvores, mil metros abaixo parece esperá-lo como um abismo de mandíbulas escancaradas; na parte interna a trilha leva à parede perpendicular das rochas nas quais foi escavada. Seria extremamente fácil o animal despenhar pela temível encosta muito mais ligeiro do que tinha subido e estatelar-se finalmente no chão. A ideia de escorregar ladeira abaixo até a ravina nâo me pareceu particularmente sedutora. Persiste e muitas vezes vem à tona o sentimento de que devo controlar meu rumo com firmeza. Por essa razão puxo com frequência a rédea esquerda, mas o obstinado pónei, com igual frequência, encabeça para a borda do precipício, enquanto eu balanço na sela! Não consigo perceber que poderoso engodo o chama para a destruição, mas não me move nenhuma intenção de acompanhá-lo encosta abaixo no seu destino iminente. Por que o animal quereria renunciar à sua existência terrena em pleno viço não o sei realmente, mas esta tarde fiz bambalear propositadamente sua pata dianteira sobre a beirada do precipício, com o resultado de que ele escorregou e tropeçou, mandando-me ao chão com um baque, um quadril esfolado e um ombro dolorosamente deslocado. Julguei então chegado o tempo de termos os dois uma conversa franca e tentei mostrar à melancólica criatura o seu óbvio erro de conduta ao costear precipícios com tanta obstinação. *

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a conversa surtiu algum efeito, porque o pónei ergueu um pouco a tristonha e bela cabeça e dali em diante conservou os pés em terra firme. Cuidei que ele colocasse os cascos no chão com mais cautela e não mais voltamos a ficar separados do terrível despenhadeiro por um mero fio de cabelo, i remiei o pónei mais tarde com duas colheradas do meu precioso açúcar outrora, ai de mim!, tão encontradiço, que crescia maciçacuid Z! a m , mas que devia agora ser ntC > s*t 0 que os meus víveres não int mf ê o meu chá não se tornasse totalmente intragável ao paladar.

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transportar pesadas cargas em sacos colocados de viés sobre o seu lombo e tão compridos que obrigavam a manter-se distanciado da parte interna da trilha, para que a carga não roçasse na rocha daquele lado. O sol bateu o dia todo, com um calor surpreendente para mim; trata-se, no entanto, de um calor tolerável e não cansativo, algo deveras parecido com a temperatura de um bom agosto do verão europeu. E m comparação com o calor enervante e terrível das planícies escaldantes é, sem dúvida, paradisíaco. Numa curva da espiralada trilha montesa, que sobe cem cessar, todo um novo panorama de extasiante beleza cénica é revelado aos meus olhos atónitos. Que a natureza possa juntar picos ciclópicos e cristas montanhosas de forma tão generosa e sob formas tão indiscriminadas é algo que dóceis olhos europeus mal podem acreditar. Olhe-se para onde for, em qualquer direção que seja, é-se prontamente enclausurado pelos gigantes himalaios. A nordeste, um reino de neves eternas, a colossal e altaneira barreira que mantém o Tibete com um estranho segregado e cheio de suspeitas num posto em amistosa comunicação por todos os meios concebíveis, entesa seus flancos cinzentos fendidos, seus ombros revestidos de branco e sua cabeça de um azul-nevado para o céu, distanciando-se das umbrosas ravinas que lhe ficam na base. Enormes massas de neve macia e reverberante brilham nos seus altos. Para o leste, uma fileira comprida e irregular de cumes revestidos de florestas e contrafortes espicha-se em renques intermináveis, até perder-se no horizonte distante. A oeste, vejo a meus pés grandes gargantas boscosas, de um verde-oliva mesclado de marrom, que se encontram e unem num vasto cálice de pedra e terra, milhares de metros abaixo. Quanto ao sul, só me cabe erguer a cabeça e torcer o pescoço, ao contemplar o pico elevado do majestoso rochedo de granito vermelho que se agiganta sobre a cabeça do meu pónei, há poucos metros apenas dos flancos do animal, e que domina a paisagem próxima. Toda essa pletora de cristas corcovadas, separadas por fendas profundas, picos alcandorados e ravinas de agudos recortes, espalha-se confusamente, com uma cadeia desmembrando-se da outra ou correndo paralelamente a ela durante algum tempo e depois desviando-se numa tangente e voltando a encontrar-se subitamente mais adiante.

Os cartógrafos devem ter passado por maus bocados neste amontoado de interminável confusão, creio eu, muito piores do os que enfrentaram em meio as fazendas niveladas das pradarias sern fronteiras nas planícies. As alturas ergueram-se aqui ao acaso e de qualquer maneira. Nada existe aqui de euclidiano, nem um vestígio sequer da geométrica disposição de Nova Iorque. É estranho recordar neste ponto que todo o Himalaia gira com este nosso globo terrestre em torno do Sol a uma velocidade de mais de cento e noventa quilómetros por segundo. No entanto, o rústico encanto destes paramos torna-os mais atraentes do que qualquer outro cenário natural que eu tenha visto. Recebo agradecido o presente da natureza. Os deuses que fizeram esta terra deveriam estar ébrios de beleza. A beleza selvagem do cenário suplanta a imaginação. Inspira a mente e soergue a alma. Fosse eu um Shelley e de pronto tornar-me-ia lírico diante desta região, mas, desgraçadamente, não sou. Pois o senhorial Himalaia existe dentro de uma aura de completa solidão que é inefavelmente cheia de paz e inspiradoramente grandiosa. Nestes planaltos do Himalaia desponta o verdadeiro encanto do alpinismo; a civilização fica tão longe, as cidades tão distantes e a serenidade está tão presente. Eles encerram uma sensação de eternidade, embora haja cordilheiras de montanhas ao sul que são muito mais antigas. As tremendas alturas respondem, talvez, por essa sensação. Aqui a gente se encontra cara a cara com o mistério universal propriamente dito, não oculto sob a fachada de cidades gregárias construídas pela mão do homem, mas revelando sua face calma e desafiadora de maneira direta e assumindo sua forma mais selvagem. O Himalaia corporifica as grandes forças da natureza.

Continuamos a subir pela estreita trilha. Os caminhos íngremes do Himalaia são aparentados com os íngremes caminhos da própria vida. Mas aventuro-me pela áspera trilha com música nos ouvidos. Deus me chama. Cavalgo não apenas para o Himalaia, mas para o próprio céu. Abandonei um mundo apenas para nem^nT ™ - Nenhum sofrimento me sobreveio, nem pode me sobrevir, pois teria primeiro de penetrar na região do meu coração e isso é impossível. O ar é impregnado de doce n

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jamor que emana do Ser Supremo. As montanhas resplandecem de beleza; uma beleza que não pertence a elas mas a Deus. Toda a viagem transformou-se num glorioso símbolo poético. A procura do Santo Graal é a sua divina realidade. Os pés do meu pónei deslocam-se sem firmeza sobre as pedras limosas, rochas esboroadas e fragmentos de granito deslocados que intermitentemente juncam o caminho, tendo caído das encostas acima. Aqui e acolá manchas irregulares de grama sobrevivem no solo pedregoso. Por vezes, a trilha chega mesmo a exibir com orgulho umas poucas flores. Encontra-se aqui tanto cravos-de-defunto quanto hortelãs. A caminho passo por uma cena curiosa. Um cule está transportando uma dama num engraçado cesto cónico atado às suas costas. O marido da passageira vem atrás. Ambos peregrinam em demanda de algum santuário do Himalaia, embora não tenha tomado a estrada costumeira. A dama não está enferma, mas o esforço de subir escarpadas encostas é demasiado para ela. Uma fonte brota lentamente sobre a trilha, saindo de uma abertura na parede maciça da encosta recoberta de vegetação. Ela cria uma poça rasa e a seguir descai pelo flanco do abismo. O pónei estaca subitamente, baixa a cabeça e, sedento, mete o focinho na poça. Se eu não houvesse pressentido o que o animal iria fazer, poderia ter sido facilmente cuspido da sela e atirado ao fundo do faminto despenhadeiro. Mas tomei a precaução de desmontar antecipadamente! Daquele ponto em diante a trilha mantém-se mais ou menos em nível e nos deslocamos em ritmo mais ligeiro. Não obstante, em razão da natureza encaracolada do terreno, somos obrigados a nos desviar consideravelmente do rumo, contornando picos e atravessando vales; não existe a possibilidade de tomar atalhos. Abetos florescem por aqui, sobre os flancos da montanha, e são mantidos em férreo abraço por trepadeiras que crescem em torno dos seus troncos. De uma feita, vejo um solitário rododendro incendiado de flores rubras e de outra uns poucos conglomerados de botões de flores. Eventualmente, o Sol principia seu fatal declínio, o calor se abranda rapidamente, um palor amarelo e lustroso toma conta da paisagem e o céu se transforma em âmbar transparente. De quando em quando um abutre esvoaçante ou uma águia vara o céu turquesa em demanda das suas etéreas moradas. Noto

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flKiitre não voa desajeitadamente como as,demais aves L s Plana exatamente como um avião. Ele se equilibra nas L e plana macio para cima e para baixo. Ouço o cuco uma vez. Seu canto faz-me pensar na primavera europeia. O ocaso acarreta uma rápida mudança nas cores. Os p j e penhascos de um branco diáfano que se erguem rumo ao céu são agora aquecidos pelos raios que se vão e transformam-se em massas de coral e rosa; mas isso é apenas passageiro. A descida do Sol que morre transforma o prateado gelado das neves de cor em cor, enquanto tinge as cristas mais baixas recobertas de verde de uma tonalidade amarelo-alaranjada. O vermelho resvala para o ouro e o ouro volta ao amarelo. E quando os derradeiros raios desaparecem, as cores quentes abandonam também a serrania e as neves assumem uma brancura de giz. O palor torna-se mais pronunciado e termina num branco-acinzentado. O por do Sol, infelizmente, não é senão um breve intervalo intercalado entre o dia e a noite no Leste, mas aqueles poucos momentos cheios de cor são preciosos para mim. c o s

Logo uma mortalha de vacuidade envolve toda a paisagem. Mas a Lua ergue-se cedo por detrás das cordilheiras e, afortunadamente, trata-se de um belo crescente, de modo que podemos enxergar com clareza sob os seus raios, tão logo os meus olhos se habituam à escuridão que se alastra. Não obstante, quando o caminho, após curvas e mais curvas, nos traz afinal aos altos de uma crista recoberta de matas, encontramo-nos rodeados da mais completa escuridão e mal podemos seguir por entre as árvores. Por fim saímos uma vez mais à luz prateada e uma vez mais o meu pónei tem diante de si uma estirada de cinco quilómetros de trilha montesa visível. A maior vantagem prática de tal trilha, pondero amargar

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mam-se em prata sob os raios lunares e os troncos das árvores parecem esculpidos em pedra congelada. Há algo de sumamente sobrenatural na cena do pálido luar esbateando os gigantes do mundo. Penso ser cerca de nove horas, mas não posso afirmá-lo com precisão, porque o meu relógio de pulso espatifou-se no desagradável acidente e daí por diante estou condenado a viver desligado do tempo até retornar à civilização. Não será nenhuma perda irreparável, conjeturo sardonicamente, pois o tempo e eu podemos muito bem nos separar durante alguns meses. A Terra terá de girar dali por diante desapercebida em sua caminhada diuturna. Ademais, para mim é melhor ter levado uma queda de um metro ao invés de um tombo de um quilómetro. Mostrando em silhueta contra o negro pano de fundo do céu, que agora se enche rapidamente com os primeiros conglomerados de tremeluzentes estrelas que chegam com suas jóias como embaixatrizes da noite, encontra-se o elevado terraço de picos que cruza transversalmente a extremidade da nossa rota e bloqueia o vale. É como uma fileira de pirâmides. Cada qual é agora como um titã fantasmal, grande, sombrio, porém de uma beleza inegável. Cada qual zomba desta insignificante criatura a cavalo que ousa invadir-lhes o reino silencioso. Porque o Himalaia, nesta luz misteriosa, converte-se na fabulosa terra dos gigantes. Aqui os contos de fadas que alegraram a nossa infância podem muito bem tornar-se realidade. Com muita propriedade, descubro de repente, no horizonte oeste, o lindo agrupamento das Plêiades na constelação zodiacal de Touro. Não há povo antigo que não cultive a lenda dessas sete filhas de Atlas que foram alçadas aos céus e transformadas em estrelas. Sigo em frente com maior ansiedade. Por sorte, o luar é suficiente para nos guiar, porque constato que a natureza florestal da região poderia facilmente fazer-me perder o rumo e forçar desnecessariamente o meu pónei em caminhadas inúteis. E isto, confesso-o envergonhado, acontece. Adiantamo-nos cerca de quinhentos metros e, súbito, um sentimento desconfortável e crescente de estar errado toma conta de mim e me obriga a desmontar e virar a cabeça do pónei na direção da qual tínhamos vindo. Minha lanterna elétrica jaz esquecida no fundo da bagagem. Não há outra saída senão fazer uma lenta e cuidadosa exploração a pé. Depois de assim proceder, descubro que a trilha quase flanqueia o topo da crista num determinado ponto, onde foi feita uma pequena clareira na densa floresta e cobre as faldas da montanha de alto a baixo.

Prendo o animal a uma árvore e galgo a breve e escarpada encosta até o alto. Ali, rebrilhando palidamente ao luar, estão as naredes caiadas de um bangalô solitário, engastado no seio de uma região selvagem, porém arcádica, situada bem na crista das montanhas! Cheguei ao meu novo lar. Uns poucos passos além da construção levam-me à beira de uma outra garganta profunda, a qual confina com a face sul da cordilheira. Positivamente, serei obrigado a caminhar com cautela nestas paragens, no futuro! Uma vez mais premiei o pónei que, a despeito do seu legado de doridas contusões à minha pessoa, tinha-me transportado com êxito até aquele domicílio único e pitoresco. Nesta ocasião enterrei a mão mais fundo no bolso do casaco e ele engoliu com avidez a generosa porção de açúcar que lhe dei. Um vento frio sopra das neves e viro a gola do meu casaco. No alto, o céu cintila em toda a sua beleza. Planetas correm o firmamento com brilho sobrenatural. As estrelas, no seu alto céu, parecem amontoados de diamantes adornando os cabelos coroados da noite. Agora sento-me à margem do caminho a fim de esperar pacientemente pelo grupo de carregadores dos quais eu me distanciara algumas horas antes. Caio num devaneio noturno até que, depois de algum tempo, sou despertado por gritos de boas-vindas. Uma vez mais o sentimento gregário se reacende em mim e alegro-me de que estejamos todos juntos novamente. Conto a caravana de cules, acrescento o meu criado e verifico que estão todos sãos e salvos, ao cabo da viagem. Seus rostos alegres sorriem comigo quando os informo em tom descuidado: — Somos sete! — e acrescento alguns versos de um certo poema, mas eles não se dão conta de uma sutil alusão de Wordsworth. Talvez imaginem que estou cantando um cântico aos meus estranhos deuses, dando graças pela minha chegada, mas não sei ao certo. A bagagem é levada para dentro do bangalô. Malas são abertas, fósforos e velas são encontrados e a cerimónia do pagamento aos carregadores é efetuada. São homenzinhos peludos e bem construídos, pertencentes a tribos das montanhas. São notavelmente fortes e robustos. Os cules recrutados entre a sua classe sao capazes de transportar nas costas, dia após dia, uma carga de cinquenta quilos (não que eu pretendesse impingir-lhes uma carga tao desumana; eles transportaram em média vinte e 26

cinco quilos. Contudo seu regime alimentar é constituído, no mais das vezes, apenas por arroz e ervilhas secas, com um pouco de leite para rebater). A gente fica a cismar quanta carne e quantas refeições diárias seriam necessárias a um carregador europeu para suportar tal tarefa. Os meus cules faziam uma refeição pela manhã e uma outra, muito ligeira, bem mais tarde. Esses duros indígenas são capazes de suportar mais calor e frio, pesos e escaladas, do que faz supor a sua magreza. E u me antecipo às suas exigências de baksheesh, dando-lhes uma quantia que faz calar o seu loquaz chefe. Eles dormirão um curto sono, contam-me, e partirão antes do nascer do dia, levando consigo o pónei. Meu criado abre as camas de lona. Cansados e empoeirados como estamos, não familiarizados com o local, não temos tempo para inventariar o ambiente, mas, passando por cima de tudo o mais, entregamos nossos corpos àquela misteriosa, porém sempre benvinda condição que o mundo costuma chamar de sono.

CAPITULO

I I

Expedição Planejada ao Monte Kailas, no Tibete Esplendor de Uma Montanha Recoberta de Neve Descubro "O Refúgio"

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um cientista nos dará a matemática do sono, calculando com aproximação de ínfimas frações o quociente entre o grau de cansaço e o período de inconsciência. Mas, qualquer que seja o quociente apresentado ao curioso, estou certo de que será obrigatória uma revisão dos números no que tange aos moradores dos altiplanos do Himalaia. ALGUM DIA

Porque nós ambos acordamos depois de um sono mais breve do que o normal, sentindo-nos porém mais descansados e dispostos do que até então. Talvez o ar puro e fresco, quando inalado, ajude o corpo a restaurar suas funções exaustas mais rapidamente do que em outras circunstâncias. De qualquer forma começamos as atividades do dia bem cedo e tivemos de acender uma luz enquanto esperávamos o romper da aurora, momento em que os picos surgem indistintos contra um céu azul-ferrete e os raios solares sobrevêm para tingir o horizonte nevado. Percorro o bangalô. Trata-se de uma construção simples e elementarmente mobiliada, tal como convém a uma solitária residência de montanha. Três conjuntos de portas duplas abrem para o meu quarto, um vindo da sala de jantar, outro do banheiro (nao ha paredes ladrilhadas nem vasos de porcelana; apenas um quarto nu com uma tina de zinco para banhos frios), e o terceiro abrindo diretamente sobre a floresta. A luz entra através de vidraças colocadas na última porta. aue f Í dou l i ™

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verdadeira, não poderia sê-lo agora. Estou pronto a crer que o finado mostrou-se realmente numa forma levemente fosforescente uma ou duas vezes, num esforço para conservar suas raízes nesta Terra, mas não estou pronto a crer que ele continua aqui. Fantasma algum pode manter-se por muito tempo nestes ares sadios de montanha nem existir sem tornar-se miseravelmente solitário e inteiramente entediado pela falta de quem o aprecie. Que incentivo pode esperar um pobre fantasma nesta morada solitária, que permanece fechada e sem usuário anos e anos a fio? Todo fantasma que se preza precisa de uma plateia. E que plateia poderia haver aqui — os ventos? Não — ele precisa de companhia, a fim de que seus nervos se mantenham em bom estado. Com toda certeza constatarei a improcedência da advertência. E no que consistirão minhas atividades? A principal será ficar quieto! Estou falando sério. Trata-se, na verdade, é forçoso admitir, de uma estranha ocupação, a mais estranha a que já me propus desde que o meu navio levantou âncora e voltou a proa às costas britânicas; não é decerto uma ocupação pela qual me pagarão sequer uma rupia. No entanto, essa é a pura verdade, a única coisa que me fez apartar-me do grosso dos homens e instalar-me por uns tempos neste pouco frequentado reino do Himalaia. Não conto com passagens excitantes, situações de arrepiar os cabelos ou perigos, nesta minha nova aventura. Uma mescla de sentimentos vários passa por mim. A um só tempo sinto-me estimulado, amedrontado e reconfortado. Estimulado, porque acredito que alguma parte de mim "pertencia" a este lugar, e na verdade viveu feliz nestas paragens em alguma vida terrena anterior. Amedrontado, porque recordo que há mais de sessenta picos na grande cadeia do Himalaia com mais de oito mil metros de altura, que tremendas massas tempestuosas e relâmpagos azulados que jamais se aquietam, constantemente açoitam estes deuses cobertos de neve, gelidamente apartados do mundo dos humanos. Reconfortado, porque embora a natureza seja notoriamente inóspita para com o homem nestas regiões, um sentimento de proteção divina imperiosamente afasta qualquer temor, tão logo este surja. Será difícil, entre estas montanhas eternas, equilatar o valor do tempo e, consequentemente, permitir que o cérebro dispare sem descanso. 1 Fica calado e sabe que eu sou Deus!

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É uma frase da Bíblia Hebraica. Ela incita-me a ir para o Himalaia, não como um explorador ou pesquisador, mas apenas para cessar minhas atividades externas e tranquilizar minha mente até chegar à mais completa placidez. Nem mesmo devo continuar meus antigos trabalhos de meditação, aconselha ela, apenas permanecer calado! Não deverei procurar aventuras externas, nem mesmo aventuras interiores. Deverei aceitar a natureza como tutora, amalgamar meu espírito com o silêncio absoluto do meio e permitir que todos os meus pensamentos se desfaçam em nada. Deverei transformar-me num paradoxo vivo, buscando atingir uma ordem de ser mais elevada, seguindo o curioso método de não fazer nada! Em suma, o ditame do salmista, a que estou obedecendo como uma imposição, deverá ser tomado ao pé da letra. Assim, na minha fome pela presença divina, parti para a viagem rumo ao norte, mal sabendo onde meus pés iriam descansar. Pois a grande cordilheira do Himalaia | deve medir de ponta a ponta cerca de dois mil e quatrocentos quilómetros. Onde, dentro desse mundo estranho, poderei encontrar um local suficientemente solitário e adequado para que eu me amalgame com o meio ambiente? Desde tempos imemoriais os mais notáveis dos iogues hindus, sábios e santos têm recorrido às cristas revestidas de florestas e às cavernas tachonadas de pingentes gelados do Himalaia, a fim de meditar e residir em cenários harmoniosos. Imitar, portanto, esses homens seria seguir uma boa tradição. Meu primeiro pensamento dirige-se para o gelado Monte Kailas, no lado tibetano. É o local mais sagrado da Ásia tanto para os hindus quanto para os budistas de todo o continente. O que Roma é para os católicos, o que Meca é para os maometanos, o que Jerusalém é para os judeus, isso é o monte Kailas para os asiáticos. Ele é o monte da salvação, morada dos deuses e residência dos anjos. O Nirvana está entronado entre os seus pingentes de neve. Sei que não se trata de mera superstição, pois há profundas razões de ordem esotérica que sustentam tal tese. Terá a nossa imaginação se tornado tão pobre e limitada que já nao pode conceder lugar na vida e espaço no mundo para os velhos deuses? Será o Monte Olimpo apenas um sítio estéril para nos, quando para os antigos era um local tão bem povoado? Us deuses trocam de nome em função dos povos, mas não mudam em si mesmos. Ademais, o Monte Kailas foi recomendado pelo 30

nróorio Buda aos seus seguidores como um local digno de ser escolhido por aqueles que desejam meditar e chegar ao Nirvana. Assim como o cimo gelado do Olimpo ocultava os deuses helénicos dos olhares profanos, assim também a cobertura nevada do Monte Kailas oculta, segundo a crença, os espíritos dos Budas já falecidos. Os tibetanos dão-lhe o nome de Kang-Rinpoche, "a jóia de neve". O famoso iogue medieval, Milarepa, entregava-se a meditações numa gruta desse monte. Existe uma estrada de peregrinação para Kailas através de Almora, mas escolhi um caminho mais comprido e difícil por ser menos frequentado e mais variegado. Viajar através das suas tranquilas solidões, tão distantes das tensões das gentes e dos lugares, será viajar rumo .da sanidade e da serenidade, deixando para trás um mundo doido e difícil. É certo que haverá perigos em plena jornada, no coração bravio do Trans-Himalaia, mas a ideia pouco me preocupa. Aprendi na escola da experiência que o escudo protetor da Providência acompanha o homem que se lança numa empreitada de objetivos mais altos do que ele próprio.

Kailas transforma-se na minha Canaã, na minha terra prometida. Mas em Nova Delhi, onde os fios do governo central se encontram e são atados numa unidade ordenada, descubro que não me permitirão cruzar a fronteira do Tibete. O Monte Kailas é demasiado sagrado para que os tibetanos permitam seja visitado por europeus infiéis e, de acordo com algum artigo do pacto de 1908, os ingleses garantiram não conceder permissão a europeus desejosos de violar a santidade do lugar com a sua presença. O tempo é precioso. Apelo para o Vice-Rei. Sua Excelência leu meu livro A índia Secreta e, como consequência imediata, fez uma visita de inspeção a Dayalbagh, a cidade que é uma cooperativa em bases espirituais e a cujo respeito escrevi um capítulo. Ademais, Sua Excelência ficou tão satisfeito com aquilo que viu, que o fundador da cidade, Sahabji Maharaj, recebeu um título honorífico quando da proclamação da Lista de Honrarias do Ano Novo.

Mas a resposta à minha solicitação de uma licença esneei 1 a cortês expressão de pesar porque os tibetanos opõem , enazmente a visita de qualquer europeu ao local sagrado. tenaz."'»-" . „ j «f í. Telegrafo para o Secretario de Estado da índia, em Londres Fie está a par das minhas pesquisas; manifesta sua solidariedade e sabe do tato. da compreensão e discrição que me caracterizam no tocante aos sentimentos religiosos dos orientais. A resposta é franca e sincera. Seria embaraçoso para eoverno britânico fazer um pedido às autoridades tibetanas , com toda certeza, seria recusado. E , mais do que isso, o simples fato do pedido ser encaminhado através daquela via em nada me ajudaria com relação à viagem. foi

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O governo estará preparado, todavia, para obter uma licença a fim de que eu possa cruzar a fronteira do Tibete e fazer uma expedição de Kalimpong, perto de Darjeeling, ao longo da estrada comercial de Lhasa, mas tão-somente até Gyantse. Nada mais do que isso. Sinto-me desapontado. O fato de que a simples cor da pele de um indivíduo o impeça de fazer uma peregrinação (porque na verdade se trata de uma peregrinação) ao local mais sagrado da Ásia, parece ser uma justa vingança contra os preconceitos raciais dos brancos. Sei mais acerca do budismo do que a maioria dos próprios tibetanos, pois estudei-o longa e aprofundamento sob a orientação de um dos mais doutos e desenvolvidos monges budistas que há, e, no entanto, catalogam-me entre os infiéis porque acontece ser branca a minha pele, assim como amarela é a deles! A licença para viajar até Gyantse não tem nenhuma utilidade para mim. Gyantse fica bem no interior do Tibete e é uma cidade importante para os comerciantes tibetanos que de Lhasa se dirigem para a índia. Fica no centro-leste do Tibete ao passo que o Monte Kailas fica na zona oriental do país. Mas não sou negociante nem cartógrafo. Não quero ir ao Ubete unicamente para ver alguns poucos mercadores trajando roupas de pele de carneiro e uns poucos mosteiros, decadentes e sonolentos. Move-me um objetivo mais elevado e Kailas fica ^t V L° Le 1 ! ' esse objetivo e apenas a ele. n

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existe ainda uma forma pela qual poderei fazer a viagem, seguro de chegar ao meu destino. Sua sugestão é que eu me disfarce de iogue, pinte o rosto e as mãos de uma cor apropriada e use o manto amarelo característico. Ele próprio cuidará do resto e me acompanhará ao longo de todo o trajeto. Garante-me que me fará transpor incólume a fronteira do Tibete e chegar até o Monte Kailas, uma vez que tem amigos por todo o caminho. Recuso a oferta. Sinto que seria "jogo sujo" para com os amigos do governo que tinham confiança em mim. A peregrinação teria de ser feita com honra ou simplesmente cancelada. Ademais, poderiam surgir desagradáveis complicações políticas. Existe uma derradeira esperança, um último trunfo que eu estava reservando para um caso de extrema necessidade. Um amigo tibetano, que vê com bons olhos minha obra e minhas pesquisas, detém uma certa dose de influência nos círculos governamentais do Tibete. Tão confiante está ele em que poderei fazer minha viagem, que, na verdade, já me muniu de cartas escritas no idioma tibetano, apresentando-me aos lamas chefes de todos os mosteiros na minha rota e solicitando a todos os funcionários locais que me ajudassem na obtenção de combustível e víveres necessários para chegar ao termo da empreitada. E u alimentava a esperança de passar algum tempo num mosteiro situado ao pé do Monte Kailas e ali fazer em paz minhas meditações. Enviei-lhe uma mensagem urgente, relatando o sucedido. Uma fórmula telegráfica vermelha cortou-me abruptamente o suspcnse. Estava vasada nos seguintes termos: Lamento muito. WL

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Aceito aquelas palavras como uma decisão inabalável do destino. — O Monte Kailas está dentro de ti — tinha-me dito, de forma misteriosa, o Mestre um ou dois dias antes da minht partida. Saberia ele que jamais chegarei l á ? Daí em diante o cume branco do Monte Kailas retrocede da minha objetiva e viro.a cabeça em outra direção.

Minha aceitação é tão simples quanto impotente. P i destino preparou verdadeiramente um lugar especial para as minhas meditações e quando examino a comprida e agreste extensão do Himalaia no mapa e repouso o dedo sobre o reino de Tehri-Garhwal, onde nasce o rio sagrado da índia, o Ganges, sinto, como que numa inspiração, que ali deve estar o meu substituto para o Monte Kailas. Q

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Entre as planícies quentes da índia Britânica e o gélido altiplano do Tibete fica toda uma cadeia de Estados, quase todos eles engolfados entre as fronteiras naturais do grande Himalaia. Incluem-se entre esses estados Bhutan, Sikkim, Nepal e Tehri-Garhwal. Raros homens brancos os visitam, pois, além do caráter solitário, bravio e extremamente montanhoso da região, existem barreiras que tendem a manter à distância os europeus. O Nepal é um reino quase que totalmente independente, Buhtan está nas mesmas condições, ao passo que Sikkim é um protetorado britânico. Tehri-Garhwal, embora sob a proteção política da Inglaterra, jamais atraiu residentes britânicos e permanece sob o controle do seu próprio marajá para todos os fins e conservadoramente hindu através dos séculos. Tehri-Garhwal fica distante de toda via férrea. Nenhum turista ou mercador já aviltou esse país. Ademais, qualquer europeu que pretenda entrar na região do país confinando com o Tibete precisa estar munido de uma licença especial. As dificuldades de acesso, a ausência de comodidades civilizadas, a falta de transportes modernos e o desconhecimento pelos habitantes de gostos ocidentais são coisas que mantêm afastados os viajantes brancos, exceção feita talvez a uns poucos esportistas apaixonados que se dedicam à caça graúda. Mas essas são coisas que de forma alguma me atrairão. Ademais, os santuários mais sagrados da índia encontram-se ali. Muitas das histórias de divindades, sábios e iogues que viveram nesse país segregado originaram-se nas brumas da tradição. A l i , mais do que em outra parte, talvez eu encontre um local onde meditar, porque o cenário é o que existe de mais grandioso no mundo.

A tonalidade cinzenta e fria que precede o nascer do Sol ja desapareceu. A aurora espalhou-se pelo leste como uma pérola rosada^ Quando a música de pássaros chilreantes e jubilosos, excitados pelo acontecimento arrefeceu um pouco, abri as minhas

malas. Que monte variado de coisas tinha sido ali atulhado e mesclado! É verdadeiramente maravilhosa a quantidade de coisas que se pode enfiar numa sacola militar! Ternos, camisas, sapatos, alimentos, papéis, lâmpadas e quanta coisa mais não desaparece através da sua boca bocejante indo cair no volumoso estômago que não se cansa de pedir mais! A seguir disponho-me a explorar o ambiente, familiarizar-me com ele e selecionar um local onde a pesada tarefa de nada fazer pudesse ser convenientemente atacada! Eis-me aqui, por fim, empoleirado no alto de uma estreita crista, a barreira divisória entre dois profundos vales. Minha primeira vista é a da floresta e a segunda a das neves. É uma cena tocante e soberba. Meu quarto de dormir possui uma porta que abre para nordeste e para o panorama das alturas mais grandiosas do globo terrestre. Ali, sobre as copas dos abetos e cedros do Himalaia que literalmente crescem a poucos centímetros da porta e cujas raízes estão cravadas bem abaixo no flanco da montanha, a comprida e agreste barreira de picos cobertos de neve e pináculos que separa o Estado de Tehri do Tibete sobrepaira toda a paisagem rural. Algumas das encostas são demasiado alcantiladas para deter a neve e apresentam uma coloração acinzentada contrastando com o branco predominante. Uma verdadeira conflagração de cores explode através dos céus. Sob a ação dos primeiros e oblíquos raios solares as cores do céu refletem-se sobre as neves, as quais assumem um delicado matiz rosa, depois tonalidades de ouro-velho, avermelhadas e rosadas. Depois de algumas transformações calidoscópicas, assentam-se em massas branco-argentinas, livremente manchadas de porções cinzentas de pedra nua, que brilham de uma forma transparente como a madrepérola. Ao longo de cento e oitenta quilómetros, e, fora do meu campo de visão, até mais de dois mil e duzentos quilómetros de distância, a fieira de picos gelados pode ser vista num mesmo e vasto panorama, estendendo-se para a direita e para a esquerda. Minha vista alcança desde o Passo de Buranghatti, a cinco mil metros de altura, ao norte, até Nanda Devi, a oito mil metro^ de altura, a leste, onde por fim o quadro se fecha. Nanda De\ atinge uma altura incrível, sobrepujando todos os demais picos como uma monstruosa torre de igreja. Aqui existe uma sólida muralha de granito — a mais altaneira deste planeta — rctor

cada por um revestimento de neve e gelo de centenas de metros de espessura, apresentando aos espectadores uma face tão formidável que logo se compreende por que o mundo deixa o Tibete em naz Essas cristas maciças constituem o Gibraltar do planalto mais além; elas são inexpugnáveis e, salvo nuns pontos, intransitáveis. Uma fumaça branca parece desprender-se de alguns picos, como de vulcões, mas se trata tão-somente de uma espuma de neve impulsionada pelo vento através dos céus. Despontando da linha esbranquiçada e irregular vejo de relance diversos altos cumes que coroam a cordilheira. Pouca coisa vive, pouca coisa pode viver, nas suas formidáveis alturas. A natureza os colocou como monarcas orgulhosos em seus tronos brancos. Nenhuma criatura plebeia, da espécie animal ou humana, ousa aproximar-se e construir sua casa naqueles domínios régios, porém estéreis, exceto os vales. Os cabeços nevados erguem-se oito mil metros e mais acima do nível do mar e foram generosamente doados a esse território. A nordeste, nada menos que um grupo desses gigantes acha-se aglomerado nas proximidades de Gangotri, onde o Ganges sagrado encontra a sua nascente nas geleiras. Mais próximo de mim fica o Bandarpunch, outro gigante de oito mil metros, a oeste do qual nasce o segundo rio mais importante da índia, o Jumna. Os picos sagrados e batidos de sol de Badrinath, Kedarnath e Srikant dão prosseguimento aos denteados horizontes e brilham contra um céu sem nuvens. Pensamento curioso e assustador é o de que um visitante do espaço sideral ao aproximar-se do nosso planeta visse, antes de mais nada, essa serrilhada cordilheira do Himalaia. Pois, com pelo menos algumas centenas de picos de mais de oito mil metros de altura, o Himalaia constitui-se no mais n o t á v e l objeto na superfície do nosso planeta! Nem mesmo as montanhas Rochosas norte-americanas se lhe podem comparar, pois possuem TL

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A densa floresta de abetos eretos e escuros e majestosos cedros do Himalaia estende-se desde os meus pés até a profunda ravina abaixo. Que sorte! Ter toda uma floresta de árvores de Natal à porta de casa! E cada árvore traz seu quinhão de presentes sobre os galhos agulhados — presentes intangíveis e invisíveis, talvez; presentes de serenidade e quietude! As copas dessas árvores gigantescas chegam quase à minha própria porta, mas suas raízes estão a vinte metros sobre a encosta da montanha. O que falta aos abetos em circunferência sobra-lhes em altura. São árvores senhoriais e grandiosas em suas vívidas roupagens verdes. O musgo cobre-lhes os troncos. O solo recobre-se de uma espessa camada de pelotas caídas. As plantas trepadeiras que se enlaçavam em torno de alguns desses troncos diante da porta de minha casa exibem florescências alvas como a neve de pequeninas flores levemente perfumadas que alegram a cena sombria. Essas flores sarapintam a folhagem escura como um firmamento de estrelas luzidas. Entre essas sombras silenciosas de árvores eu talvez encontre aquilo que as cidades não me podem dar: paz, profundidade e cura. Mas o declive faz um ângulo demasiadamente agudo e é difícil descer por ele sem agarrar-se com ambas as mãos aos troncos das árvores à medida que se avança. Ademais, o sol não penetra através da densa folhagem dos inúmeros galhos; a floresta é fria e tristonha; e eu, amante do Sol que sou, tenho que aquecer-me aos seus raios dourados. Uma vez mais volto-me em outra direção. Essas florestas do reino de Tehri são responsáveis por quase toda a renda do Estado, uma vez que a terra cultivável é muito pouca. Elas são portanto o patrimônio mais valioso da nação e a madeira nelas abatida é posta a ilutuar no rio durante a estação chuvosa, sendo transportada pelas águas até a Índia britânica, para ser vendida às ferrovias. Inspetores florestais costumam correr o país a fim de supervisionar essa propriedade. Para que possam ter abrigo decente e acomodações confortáveis durante o seu turno de inspeção, construíram-se bangalôs em vários sítios solitários. Um desses bangalôs eu o ocupo agora, por cortesia das autoridades locais. Um funcionário dificilmente fará uso dele mais do que duas ou três vezes por ano e, ainda assim, nunca o ocupa por mais do que duas noites em cada viagem. Afastando-me da porta, penetro no ar frio e revigorante que envolve o bangalô. A estreita crista em que a moradia foi erigida

continua no sentido leste, até cerca de oitocentos metros adiante da clareira e a seguir ergue-se abruptamente, formando um outeiro de cento e cinquenta metros, parte do qual é nua e pedregosa, sendo que o restante é irregularmente pintalgado de pequenas árvores. Esse outeiro também não me agrada. Sigo até a beirada da ribanceira dando vista para o que na noite da véspera eu julgara ser uma garganta aos fundos do bangalô. Olho para baixo e constato que na realidade se trata de uma imensa piscina natural, de espantosa profundidade Seria fácil escorregar pela ribanceira e cair ao fundo daquele abismo. No entanto, a beleza do lugar é algo singular. Sinto-me deveras satisfeito por estar a minha nova casa colocada em cenário de tanta grandiosidade. O declive é recoberto até o fundo por uma espessa mata de cedros do Himalaia. É o ponto de encontro de dois vales estreitos e escuros, de aspecto escocês, cujos flancos escarpados alargam-se aqui, formando um vale circular de tamanho suficiente para abrigar um grande pico, caso a natureza, num lance caprichoso, resolvesse fazer surgir um neste local. Espessas florestas de um verde muito escuro alternam-se com extensões marrons e rubras de granito puro espalhadas pelos flancos. No lado leste erguem-se, em formações terraceadas paralelas de grande magnificência, cristas e mais cristas, semelhando gigantescos muros ameados, construídos para afugentar os intrusos, ao passo que a fronteira ocidental é formada de outeiros entremeados com esporões escarpados, de vegetação menos densa. Baixando o olhar sobre aquele oco profundo e parecido com uma garganta, e, permitindo que as minhas vistas descansassem sobre aquelas encostas bravias, compreendi que já não precisava procurar mais. Em algum lugar daquele côncavo montanhoso, com certeza encontraria o local ideal para fazer as minhas meditações. Com alguns golpes de uma faca de madeireiro transformo um galho de pinheiro tombado numa sólida e excelente bengala de alpinista. O segredo está em afiar a extremidade, não reduzindo-a a uma ponta, mas dando-lhe a forma de uma quilha de navio. Entro a seguir na fase final da minha busca. Avançando com lenta cautela pela encosta de um outeiro do lado oeste, porque galgar a rampa escorregadia é tarefa que requer cuidados, e trepando por sobre pedras encravadas nos seus flancos escarpados, eu vou aos poucos circundando a depressão e atravesso uma touceira de musgosos sicômoros. O aroma de pes de hortelã crescendo nas laterais chega até mim. Paro, indino-me e inspiro maior quantidade desse ar agradável. Chego flp

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afinal ao cume. Aqui, para minha surpresa, constato que o lugar está atapetado por folhas mortas. Como vieram ter aqui estas folhas? Algum furacão no Himalaia as terá feito voar milhares de metros pelos ares e depositarem-se depois neste lugar? De qualquer forma, estas folhas formam um estupendo tapete natural para o cume da colina, tão confortável como qualquer grosso tapete de Mirzapur feito à mão e, com toda certeza, não menos artístico. Entre as folhas, despontam decorativamente, aqui e ali, algumas primaveras e diminutas violetas. Sei que não preciso ir mais além. Os deuses guiaram-me até este refúgio perfeito. Os hindus, assim como os tibetanos, acreditam firmemente ser o Himalaia a morada secreta dos deuses, bem como daqueles super-homens espirituais a quem chamam de Rishees e que hoje em dia, ao que acreditam, residem naquelas montanhas, ocupando corpos etéreos e invisíveis. Sim, um deles trouxe-me até cá. É bem possível que este recanto de beleza inimaginável seja a sua própria morada. Encho-me de encantamento. E um fato que estas grandes montanhas do reino de Tehri são recintos sagrados. Os hindus acreditam que estes santuários himalaios colocados entre cristas monumentais, são ainda mais sacrossantos do que as cidades sagradas de Benares, Puri e Nasik. E que Shiva e Krishna, e todas as outras divindades, para cá se transferiram. Parte do fascínio que elas costumavam exercer nos antigos continua presente. Aqui, portanto, fica o meu delicioso santuário montês. E ali, entre as folhas amontoadas, meu tapete de reza cor de topázio! Duas vezes por dia, na aurora e no crepúsculo, treparei pelo flanco escarpado do outeiro com auxílio da minha bengala e, a seguir, me acomodarei para aprender com um homem pode chegar à arte de permanecer quieto e, eventualmente, conhecer Deus. O Himalaia será o meu noviciado para o céu e nestes grandiosos ermos eu talvez me prepare para a solidão ainda mais sublime de Deus.

empregar o cedro do Himalaia para aquecer a água dos seus banhos e dos banhos das suas favoritas, em virtude do raro perfume daquela planta. Duas pequeninas flores montesas beijam o pé venerável do cedro com suas pétalas novas e frescas. A mais espiritual dentre as árvores, o cedro do Himalaia é, segundo a lenda, o preferido dos deuses. CAPÍTULO

III

Meditação sobre o Domínio Inglês na índia e sobre a Luta Política - A Necessidade de Espiritualizar a Politica - O Controle dos Pensamentos - Um Segredo da Concentração

No F I N Z I N H O da tarde torno a subir a íngreme rampa que leva ao meu refúgio. A bengala se presta bem às funções que lhe reservei, mesmo não sendo perfeita como a dos alpinistas, que tem uma ponteira de ferro. Escolho um local onde posso me sentar e pensar em paz, como um prelúdio à quietude interior que espero alcançar com o anoitecer. Sento-me perto da própria borda do rochedo, pois dali pode-se ver lá embaixo o grande vale cingido de árvores e contemplar-lhe quase toda a sublime grandiosidade. O lugar tem uma paz de mosteiro. Se for possível conseguir a serenidade na Terra, esta será, sem dúvida, uma das poucas regiões adequadas para isso. Este Estado fronteiriço, não contaminado, onde os antigos deuses hindus passeavam, parece bem diferente do restante da índia. Meu olhar repousa finalmente sobre os olhos recurvos de um orgulhoso cedro do Himalaia, cujo tronco anoso está recoberto por uma pesada camada de musgo úmido e pardacento, e do qual pendem longos tufos de líquen esfiapado lembrando barbas. A árvore cresce a poucos passos de onde me encontro e se projeta do flanco do rochedo segundo um ângulo bem agudo. Os raios do Sol filtram-se através da sua ramagem. O s galhos não crescem com simetria, como os dos pinheiros, e os conglomerados cachos de espinhos que formam a ramagem descaem melancolicamente na direção do chão. Não obstante, a velha e escura arvore tem um ar de desbotada aristocracia e exala uma fragrância característica que trai o seu parentesco com o cedro sino. Lembra-me que os imperadores mongóis costumavam

Imagino que chegaremos a nos conhecer bem, este alto e grácil cedro do Himalaia e eu, e atingiremos mesmo um grau de sólida amizade que minha inevitável partida um dia não conseguirá desfazer. De qualquer forma, de agora em diante faremos companhia um ao outro durante longo tempo, pois assim o quer o destino. Sussurrarei para ti meus segredos mais recônditos, ó cedro patriarcal, e te relatarei alegrias perdidas e atribulações terríveis que homem algum confessa de público, mesmo sendo um escritor. E tu me falarás, ainda que tão baixinho, que o mundo dirá, trocista, que estou enganando-me a mim mesmo. Mas nós ambos riremos compadecidos do mundo e lhe perdoaremos a falta, porque bem sabemos que embora a natureza seja a nossa mãe comum, o mundo permanece na mais escura negra ignorância dos seus segredos mais íntimos. Meus pensamentos voltam à cálida Índia, país que acabo de deixar para trás. Nas cidades das planuras distantes, onde uma mão colocada sobre um parapeito de pedra tem de ser rapidamente recolhida, tanto se queima, e onde uns poucos homens de pele branca que não podem fugir aos seus deveres cambaleiam no calor estival e são atormentados por mosquitos vorazes, a tensão da agitação política diminuiu temporariamente, porque é difícil desenvolver entusiasmo por ideais distntes a uma temperatura de mais de quarenta graus, por mais idealista que se seja. O mistério e o significado da conquista da Índia pelos ingleses é algo que nenhum inglês ou hindu jamais conseguiu explicar satisfatoriamente, porque ninguém examinou a questão com discernimento e isenção de preconceito racial. Penso que se a lei britânica é tão negra como a pintam os hindus, a estes só resta o recurso de emigrar! Penso também que, se o assunto racial é tão difícil como o afirmam os britânicos, a emigração é a única solução viável também para estes! Somente o tempo, através da amplitude da sua perspectiva, poderá ajudar ambas as partes a compreender por que este enorme subcontinente tornou-se o local de encontro de duas raças tão diferentes entre si. 41

A vida, pouco provavelmente, terá atirado de encontro esses dois povos, sem um objetivo determinado. Terão eles um serviço a prestar um ao outro? O par de séculos durante o qual a civilização ocidental vem desembarcando nas costas da índia precisa de ser acrescido ainda por mais algumas décadas para que o mundo possa ficar conhecendo a resposta. Nesse ínterim, os políticos criaram uma nova profissão para a índia, de educação moderna, e o brado de independência, de expulsão das autoridades britânicas, se faz ouvir, poderoso, onde quer que se reúnam os jovens progressistas. O jovem hindu culto que se veste à moderna e pensa à antiga está desaparecendo rapidamente. As calças que ele enverga hoje em dia transformam-se em símbolo da pressão que exerce sobre a sua religião, seu governo, seus costumes e seu meio ambiente. De outra parte, nos acantonamentos militares e nos clubes civis, nos edifícios de tijolos aparentes do Secretariado de Nova Delhi, desdenhosos anglo-saxões, com toda a teimosa coragem da sua raça, estão determinados a manter o domínio da situação, pelo menos durante a sua geração. O destino, como de hábito, terá a última palavra nesta questão. O destino escreverá suas próprias soluções em seus escuros e misteriosos pergaminhos, e elas, uma vez mais, serão as mais sábias. " O tempo é o rei dos homens", diz o sábio Shakespeare." Ele é pai, mãe e sepultura: dá aos homens o que quer, não o que estes desejam!" Pois existe um poder mais alto que as ambições e aspirações humanas. E u tenho minhas próprias intuições proféticas quanto ao que irá acontecer à índia, mas num inundo onde reina o preconceito de nacionalidade e raça nem sempre é hábil dizer a verdade. Não uso nem quero usar qualquer distintivo político. É certo que não tomar partido hoje em dia passa por ser herético e pusilânime, convida à negligência, mas vestir o manto do profeta e muito perigoso. Tanto ingleses quanto hindus não compreenderiam minha atitude e, com certeza, interpretariam mal minhas predições. O melhor, portanto, é que eu cuide dos meus assuntos e permaneça calado. Entrementes, desejo ver o Leste e o Oeste apreciarem-se mais um ao outro e tentarei, dentro das minhas parcas forças, ser um precursor da compreensão entre um lado e outro. Por que haveria eu de desperdiçar o meu tempo deblaterando contra os defeitos da sociedade estabelecida? Seria prererivel fazer alguma coisa construtiva. 42

Haveria outro risco para mim, caso me aventurasse a fazer profecias políticas neste país, que fervilha de intrigas orientais e susenta. Recordo-me de um incidente pouco conhecido ocorrido durante a última guerra, quando penso nesse perigo. O finado Coronel T . E . Lawrence, essa figura admirada, denegrida e incompreendida, atingiu um período crítico da sua campanha na Arábia, encontrando renitentes obstáculos que foram superados com muita dificuldade. Mas, num daqueles seus famosos repentes de génio, teve a original ideia de pedir a Londres mágicos profissionais que pudessem fazer turnês entre as tribos do Mar Vermelho e do Mediterrâneo. Teriam de ser, na medida do possível, árabes de nascimento e conhecedores dos costumes e crenças dos locais. Seu trabalho consistiria em fazerem-se passar por faquires errantes, executar alguns truques e ganhar com isso a reputação de portadores de poderes sobrenaturais. Baseados na força dessa reputação, arrogar-se-iam o dom da profecia e prediriam uma sensacional derrota dos turcos, induzindo destarte os árabes a juntar-se aos britânicos. Cinco homens foram enviados ao Oriente Próximo com essa missão, sendo três árabes de nascimento, um francês falando árabe e um inglês falando árabe, todos especialmente treinados para o desempenho dos seus papéis. Eles fizeram um bom trabalho para Lawrence e ajudaram a influenciar muitos árabes, mas o francês e um outro membro da trupe foram descobertos e sentenciados à morte.

Não que haja verdadeiramente um fim para a turbulência das lutas políticas e para as inquietações das divergências raciais. Teremos um mundo pacificado quando tivermos os corações pacificados — não antes. Os sábios antigos, que deram à humanidade essa fórmula simples, são agora acoimados de idealistas poucos práticos. Mas se a prova definitiva de uma política é os seus resultados materiais, somos obrigados a reconhecer que este mundo sem paz pouco tem melhorado. A vacuidade espiritual da nossa época e a pobreza dos nossos recursos interioi v - , \pre> sam-se de modo suficientemente claro no caos, na angústia que vemos por toda parte, e na dolorosa subserviência dada a ideais indignos e homens indignos. 4J

O desenvolvimento do egoísmo e do intelecto do mundo deu-lhe um sentimento fictício de sabedoria prática. Mas os sábios que falaram em outras épocas fizeram-no com um conhecimento da história da humanidade muito mais profundo e acurado do que aquele que qualquer dos historiadores contemporâneos poderá ter. Pois os míseros milhares de anos cujo registro podemos fazer — e à custa de muita imaginação — representam tão-somente a porção derradeira do longo passado da humanidade. Quando um homem (ele nunca pretendeu ser mais do que isso) como Buda proclama reiteradamente que "o ódio não se termina com o ódio; o ódio se termina apenas com o amor", não está sendo um mero sentimentalista, propalando suas emoções bem intencionadas porém vãs. Está sendo tão prático como qualquer homem de negócios que não desgruda os ouvidos do telefone nem os olhos dos jornais que tem sobre a mesa. Porque Buda, como todos os grandes sábios da sua categoria, vê o lamentável emaranhado de guerras sem fim que aterraram a época pré-histórica bem como a histórica. V ê tais coisas, na visão universal do passado do planeta, que os deuses seguram diante dele como um espelho. E lhe mostram como os fios de causa e efeito nos assuntos da humanidade são atados por mãos invisíveis de uma forma tal que uma justiça inarredável, um reajustamento uniformizante, estão sempre em ação. V ê também que há um poder espiritual por detrás do mundo que se exprime, de um certo modo, através da benevolência e que tal poder é eterno. Sabe que o ódio traz o sofrimento, tanto ao que é odiado quanto ao que odia, e que, por isso, o ódio e o seu corolário de sofrimento só poderão cessar quando imperar a benevolência. E , porque o Poder que nos urge a praticar a benevolência é eterno e, acima de tudo, iniludível, prega a conveniência de nos curvarmos agora a esse poder, evitando com isso muito sofrimento inútil. Quem é menos prático: Buda ou aquele que odeia? Exatamente a mesma visão da vida foi dada a Jesus. Num mundo de secos formalistas e estéreis fanáticos, dados à doutrina do olho por olho, dente por dente, Jesus condensa e reafirma essa verdade. Também a ele é dada uma visão do universo e das leis que secretamente regem os seres. Não foi à toa que ele desapareceu nas montanhas e quedou-se estático a meditar, louco depois da sua volta, verbera os cegos fariseus e cura o homem paralítico da mão; e diz, em palavras inspiradas e destituídas de paixão, à multidão aglomerada ao redor de si: 44

— Abençoai aos que vos amaldiçoam e rezai pelos que vos exploram. . . Não julgueis, para não serdes julgados; não condeneis, para não serdes condenados; perdoai e sereis perdoados. Pois, quem com ferro fere com ferro será ferido. Jesus sabia. Mas o mundo dos homens superficiais não sabe, não compreende e, por isso, chafurda num caos cego e doloroso. Amargos antagonismos darão lugar a uma sábia cooperação apenas quando essa lei não escrita for compreendida e o homem souber que tudo aquilo quanto ele faz aos outros recairá, em última instância, sobre ele próprio. A benevolência universal é portanto a política mais sábia e sensata. Nesta época conturbada é a nossa preocupação imediata e íntima. No entanto, quem, hoje em dia, quer moral e pregações? Estas só me poderão valer risos fáceis. É vão pregar aos convertidos, porque aqueles que acreditam nestas coisas não precisam de discursos, ao passo que aqueles que não têm fé simplesmente não dão ou vidos. J O destino encarregar-se-á das nações e lhes ensinará aquilo que elas têm de aprender. XO caminho mais prático que se abre diante de mim é, consequentemente, o de concentrar minhas energias e dirigir minha atenção para um canal onde possam ser usadas de forma mais económica. ( Tal canal existe dentro de mim. O melhor ponto de partida para reformar o mundo é, indubitavelmente, o nosso próprio interior. A melhor maneira de disseminar o espírito de benevolência é começar por mim mesmo. Seja-me, portanto, permitido organizar meus pensamentos e repetir em silêncio a fórmula budista para o bem-estar do mundo, cujo espírito e letra é: j — Aos quatros cantos do mundo, envio compaixão. Para L o norte, o sul, o leste e o oeste, para cima e para baixo, envio i (compaixão. A todas as criaturas vivas na face da Terra, envio compaixão. Minha mente demora-se suavemente nesse tema agradável; a emoção da comiseração passa por mim; e quando a derradeira palavra de bendição é pronunciada, não me sinto menos abençoado. ' O rosto de um dos meus mais ácidos críticos surge repentinamente diante de mim. Ouço-a dizer palavras duras, como se ela estivesse fisicamente presente, embora saiba-a em outro continente. Sabendo o que sei e conservando com cuidado meus segredos, eu de hábito recuso-me a brincar com palavras ambv r

guas, qualquer que seja a roupagem de que estejam revestidas, e ignoro-as com tranquila indiferença. Mas hoje, sorrio e perdoo a sua falta de compreensão e lhe desejo bem. Olho nos seus olhos raivosos e faço votos que a sua alma azeda encontre a verdade, e com ela, a doçura e a luz. Três vezes a abençoo e a seguir interponho uma barreira física entre mim e os seus pensamentos. Uma libélula passa adejando à minha frente.

E agora o resfriamento do ar que precede o crepúsculo adverte-me que cesse minhas meditações e adote uma impassividade mental condizente com a minha inação física. Olho em torno — o Sol começou a por-se atrás das montanhas, que perdem sua cálida vermelhidão e recaem em sombria palidez. Mantenho-me em rígido repouso, deixando que o mundo saia lentamente do meu consciente e voltando toda a minha atenção para dentro de mim mesmo. No meu íntimo, em algum lugar, mora o E u Superior, a essência eterna, o ser divino de que recebo a minha força vital. — Fica calado — aconselhara-me o Mestre — e conhecerás então o E u Superior, pois Deus e o E u Superior são como que í um só. Minha respiração se retarda. Durante todo um minuto fixo minha atenção sobre o movimento da respiração. O resultado de controlá-la deliberadamente é por em ritmo a inspiração e a expiração, cadenciá-las e aquietá-las, tornando-as mais suaves e menos abundantes. O cérebro é como uma roda que gira sem parar, colhendo novos pensamentos a cada revolução. Agora observo a roda diminuir sua marcha. Quanto mais me disponho a forçar a atenção para dentro, no sentido de um ponto central, tanto mais meus pensamentos diminuem de frequência e comprimento. Sei que neste repouso do intelecto poderei encontrar o caminho da sabedoria. Recordo-me do que um poderoso professor iogue, de cujos feitos tenho o mais alto conceito, disse-me certa vez. Ele mora numa cela de um antigo e pitoresco templo. Estando eu sentado no chao, ele inclina-se com os olhos semicerrados sobre um banco 46

forrado de algodão, do qual raro se afasta. Falamos das dificuldades experimentadas pelos principiantes quando tentam concentrar-se. O adepto observa: — Se admitirmos que o número médio de pensamentos que ocorrem a um cérebro humano num dado período de tempo é cem J e que, se for possível, através da prática, reduzir essa cifra para noitenta, poderemos dizer então que foi possível adquirir o poder , da concentração em vinte por cento. Por isso, a maneira mais i direta de obter tal poder de concentração é praticar a diminuição do número dos próprios pensamentos.* E com o meu cérebro funcionando em ritmo mais lento, embora não esteja por isso nem um pouco menos atento, começo a sentir-me envolvido por uma paz mais profunda. A concentração prolongada gerou, em última instância, um estado interior melhor. Como sinto pena dos habitantes das cidades, que vivem submetidos a uma agitação sem fim! Por que para eles o intelecto tem de ser supremo? No entanto, sua forma de libertar-se, no fundo, não pode ser diferente da minha. Os cérebros exasperados pelas inevitáveis fricções e decepções do viver cotidiano, poderão encontrar na compensação ganha com a tranquilidade mental uma serenidade reconfortante e saudável que untará de bálsamo seus nervos ofendidos. O intelecto é tão-somente um instrumento, não o ser essencial do homem. Ele não se mantém às próprias custas, f. uma faculdade automática e de rotina. O homem moderno representa o triunfo do intelecto mecanístico sobre o instinto puro, assim como o homem do futuro representará o triunfo da intuição divina sobre o intelecto puro. A razão, que por vezes pode ser um guia excelente, pode também nos trair em outras ocasiões. Nem sempre a reflexão prévia é o nosso melhor guia, também a inspiração espontânea pode-nos orientar com precisão. A razão é puramente aritmética, ao passo que a intuição é um desdobramento não sabemos de qu£ O avanço da intuição sobre os nossos pensamentos não se pode medir matematicamente. A intuição penetra na mente sem ser /anunciada, como que através de uma porta privativa. Nao e Vum pensamento mas um influxo de um reino superior que se imiscui no pensamento. Não é uma emoção totalmente eseoi mada do pessoal. Mas, desgraçadamente, a maior parte doa homens dá pouca importância aos tímidos arautos da intuiçto nascente.

A relativa tranquilidade que agora me envolve talvez não seja, ou melhor, não é, a total quietude que desejo conseguir, pois não poucos pensamentos lentos conseguem serpentear no / interior dos compartimentos vazios do meu cérebro. Estar real' mente sereno é estar centrado. Não obstante, por hoje dou-me „ por satisfeito e não tentarei cruzar a mística fronteira. Sei que esses intrusos são estranhos ao ser essencial do homem. Sei que quando todos os pensamentos se vão, quando morrem como flores de lotos em pleno inverno, a realidade divina começa a surgir. A mera decisão e o consequente esforço para voltar a atenção para dentro, de pronto, os coloca em pé de guerra, fazendo-os lutar ferozmente pela subsistência. O poder de dominação que exercem sobre o homem é mais tenaz do que este normalmente se dá conta, pois se trata do resultado de um hábito há muito arraigado e passado de geração a geração. Os pensamentos dominam impiedosamente o homem, escravizam-no de uma maneira que ele raramente compreende e privam-no da liberdade existente na sua natureza mais íntima e desconhecida. Observei em mim mesmo os processos que movimentam o pensamento e descobri que são todos mecânicos. Vim para o Himalaia a fim de declarar uma guerra sem tréguas a esses antagonistas invisíveis. Não que não me seja possível detê-los, quando me resolvo firmemente a isso; não que eu desconheça aqueles segredos teóricos e práticos cuja aplicação pode proporcionar-me uma boa vitória; não que me falte ajuda valiosa nessas empreitadas. Mas consegui manter os intrusos sob controle apenas por determinados espaços'de tempo e minhas vitórias não me proporcionaram satisfações senão temporárias. Tal é o poder ancestral dos pensamentos sobre o homem. O cume espiritual da minha vida ainda não foi galgado. É chegado porém o tempo de encetar uma nova e ininterrupta batalha contra eles até que um dos combatentes se retire da arena. Nenhum palco mais adequado para essa guerra do que estes sertões remotos e solitários do Himalaia. E m nenhum dos muitos países que visitei — pois só me sinto em casa quando estou viajando! — encontrei atmosfera tão propícia à tranquilidade espiritual como nestas montanhas a que o destino houve por bem trazer-me. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, é possível compreender, tornar real, a frase do salmista: — Fica calado e sabe que eu sou Deus. 4H

Nenhum método melhor se poderá adotar (pelo menos no que me diz respeito) do que sentar-se e ficar imóvel. Não é necessária nenhuma permissão oficial para entrar nos divinos domínios que ficam logo adiante da barreira himalaia do intelecto. Não se pode obter dos homens nenhuma ajuda mais substancial do que aquela que me foi prometida pelo meu Mestre. Seu poder é tal, tenho certeza, que os quatro mil quilómetros entre nós reduzem-se a apenas dois centímetros, ao sabor da sua vontade. Que mais posso desejar? Mas as sombras do crepúsculo entraram no meu refúgio como uma tímida rapariga entrando na casa do seu amante. Até mesmo o rescaldo cor-de-rosa do por do Sol já desapareceu. O dia se exauriu e logo a luz das estrelas estará embalando os cumes para dormir. Qual, pergunto-me, será essa qualidade misteriosa do crepúsculo que tantos encantos tem para mim? Por que, quando todos os grandes professores e grandes iogues do passado aconselhavam aos homens meditar com a aurora, sigo o meu próprio instinto e escolho justamente o pólo oposto do dia para tentar a tranquilidade mental? Todos os fatos científicos, todos os princípios esotéricos, todos os argumentos racionais estão com os mestres. Porém, o fim do dia é o momento que mais me ajuda. Sou obrigado a aceitar a magnífica revelação que vem nesta hora pacífica e não ser um mexo copiador dos outros. f O crepúsculo, portanto, proporcionar-me-á um dia o momento da minha liberação final. O exilado começou sua jornada rumo de casa. Ergo-me, pois é hora de voltar para o meu bangalô incrustado na floresta.

CAPÍTULO

IV

Minha Procura da Quietude Interior — A Recordação de Nascimentos Anteriores — Um Método Budista para Reavivar Recordações Pr é-N atais — O Objetivo da Natureza com Relação à Humanidade — Em Unidade com a Natureza

HÁ J Á VÁRIOS DIAS venho subindo ao imponente anfiteatro, natural que é o meu refúgio, a despeito das minhas constantes dores nas costas. Tenho honrado fielmente meus compromissos com a quietude. O cedo começa a abandonar sua aristocrática rigidez e a acolher-me com prazer, à medida que o nosso conhecimento aumenta. Dentro em pouco, sem dúvida, ele me receberá no círculo sagrado da amizade. As folhas cor de ferrugem abriram para mim uma pequena clareira, como que a prevenir o mundo de que aquele lugar destina-se aos que desejam tranquilidade. As poucas florinhas montesas brilham à luz do Sol e suas coroas de pétalas amarelas e heliotrópicas competem entre si para fazer sentir o seu suave aroma e tornar mais doce o ar. Até mesmo a esgalhada corça, que há apenas uma semana fugia de mim espavorida, quedou-se agora a olhar-me durante um bom minuto, trocando as largas orelhas e franzindo o nariz molhado, antes de disparar para a solidão da floresta. Sim, estou fazendo progressos. Não obstante, não fiz esforços indevidos no sentido de esmagar meus pensamentos recalcitrantes de uma só arremetida. Começo calmamente minhas meditações e, quando me relaxo, deixo que os pensamentos se acomodem sem uma pressão excessiva da minha parte. Sinto que não há necessidade de apressar-me, a despeito do limite de tempo fixado para a minha estada pelo próprio clima do Himalaia e das minhas obrigações para com o 50

mundo^ — A paciência é a chave da alegria, mas a pressa é a \ chave da tristeza — costumavam dizer meus sossegados amigos J árabes em tom reprobativo, quando eu me movimentava entre / eles com a minha pressa ocidental. Aqui, de alguma forma, percebo que eles têm razão. Sinto que não haverá jamais por que preocupar-me com os resultados da minha pequena aventura. porque, mesmo que eu fracasse por completo na consecução dos meus objetivos, haverá sempre um Poder Maior que tomou-me sob seus cuidados, e suas decisões podem ser incondicionalmente aceitas. Não quero bater-me por um maior desenvolvimento espiritual. Sinto-me como o tísico Keats sentia-se com relação à sua arte quando disse: — Se a poesia não nasce tão naturalmente como as folhas das árvores, é melhor que nem chegue a nascer. Hoje, o prelúdio da minha meditação toma um tema cediço — cediço, quero dizer, do ponto de vista do Leste, mas talvez desconhecido da maioria dos ocidentais: a doutrina das sucessivas reencarnações da alma, que Pitágoras chamava de metempsicose e que os budistas e hindus da Ásia chamam de renascimento, é tão velha como o mais velho dos povos pré-históricos. Dificilmente um asiático — a menos que seja maometano — deixa de aceitar essa doutrina como um fato da natureza, tal é o poder da crença herdada! Dificilmente um ocidental não imagina que sua vida na Terra constitui toda a sua existência, tal é o poder da crença herdada! No reino dos mistérios espirituais e psíquicos os povos orientais têm um imenso acervo de conhecimentos passados de geração em geração pela tradição, um acervo superior ao existente na Europa e na América, parte porque estes últimos continentes simplesmente adiantaram-se em matéria de desenvolvimento material e intelectual e foram, em consequência, forçados a desdenhar das coisas menos tangíveis, e parte porque as raças orientais são muito mais antigas do ponto de vista cronológico. É certo que as tradições orientais tornaram-se agora inarredavelmente entrelaçadas com os parasitas da lenda e da superstição, mas a árvore original continua presente. Não que os conhecimentos aqui enfocados tenham sido transmitidos para a massa, pois foram mantidos nas mãos de uns poucos. ^ A t é mesmo na índia, a despeito da degenerescência t # p a dação atuais, a espiritualidade não é privilégio de poucos.

Enquanto um simples preconceito de cor nos impedir de admitir a hipótese de recebermos instrução de um mestre pertencente a uma raça escura, os nossos povos ocidentais permanecerão incapazes de encontrar a forma mais elevada de ensinamento. Pois, tal como nos tempos antigos, dos dias de Buda até os de Jesus, a maior sabedoria encarnou-se nuns poucos corpos orientais.

cado a meditação durante vinte anos e podia testemunhar os resultados. Mas eram necessários esforços dos mais prolongados para arrancar essas recordações da relutante natureza. Não desejo nem tenho competência para dogmatizar neste terreno, mas à luz desta explicação é forçoso sorrir com ironia diante da safra de rainhas e Cleópatras que se seguiu imediatamente ao florescimento da doutrina da reencarnação no Ocidente. Qualquer neófito aventura-se a entrar num terreno que os mais experientes orientais temem pisar! Recordar existências passadas não é tão fácil assim. Não é sem razão que a natureza as protege com véus de grande espessura.

À primeira vista, a ideia de já haver vivido na Terra anteriormente parece ridícula ao ocidental médio, embora o oriental jamais tenha sonhado contestar o acerto dos conhecimentos dos seus ancestrais nesse terreno. O culto monge budista que me ensinou o budismo falou-me certa vez de um método psicológico originalmente ensinado pelo próprio Buda e praticado nos mosteiros com resultados positivos. Através desse método é possível descobrir as encarnações anteriores de uma pessoa. Parte do treinamento diário consiste em fazer voltar atrás a memória, dia a dia, semana a semana, mês a mês, até que os acontecimentos de todo um ano sejam por essa forma relembrados. A seguir, os anos anteriores são trazidos à memória pelo mesmo sistema, pouco a pouco. Por fim, desenvolve-se um maravilhoso poder tanto de memorização quanto de vistualização e chega-se aos dias da infância. Por incrível que pareça, tudo quanto se relaciona com a primeira infância e o nascimento pode então ser lembrado. Os psicólogos, hipnólogos e psicanalistas fazem questão de ressaltar hoje em dia que nossa vida pregressa está gravada na memória do subconsciente. A ser isto verdade, então um exercício mental reavivando as recordações da mais tenra infância não será, afinal de contas, demasiado artificial. As descobertas da Psicopatologia estão começando a iluminar o caminho. Mas o meu monge budista não se deteve ali. Disse-me ele que a superdesenvolvida capacidade de recordação foi então levada mais além da barreira do nascimento, nos exercícios que fizeram e. . . i n c r í v e l ! . . . trouxe consigo recordações de uma pessoa inteiramente diferente, de uma existência anterior na Terra! Foi possível reconstituir todos os detalhes desde a morte anterior até o nascimento anterior através desse estranho processo psicológico. O monge reconhecia que a concentração requerida era tremendamente difícil e que poucos budistas tinham conseguido ir muito longe dentro daquele método. E l e próprio tinha prati52

Dificilmente alguém nos países de onde venho faria uma tentativa com o método budista, pois seria difícil surgir alguém disposto a sacrificar diariamente algumas horas do seu tempo, durante metade da vida, apenas para reavivar recordações já mortas. O jogo, francamente, não vale a pena. Assim como a natureza, nós compreendemos que o passado é menos digno de grandes esforços do que o presente. Não seria proveitoso arrancar tais cenas de suas sombrias moradas. 2

Isto não significa, porém, que essas recordações não possam ser dadas como um presente. E u já as tive, inesperadas, extraordinárias e estranhamente apropositadas. Porém, como tais recordações jamais fornecem provas válidas para outras, é inútil falar delas. Neste sentido, o aforismo do sábio chinês de olhos amendoados pode ser aplicado com muita propriedade: — Aqueles que lfsabem, não falam; aqueles que falam, não sabem! 1

E u só posso dizer que, se pela graça de Deus e da Oriental Steam Navigation Company, piso hoje o solo oriental, já o pisei também em vidas anteriores.

Meus pensamentos são perturbados por um som estranho e sibilante. Alguém ou alguma coisa está subindo o rochedo na minha direção. Pelo som apenas não sei dizer se se trata de gente ou animal, mas mantenho-me perfeitamente imóvel. U>gcjum faisão aparece no meu raio de visão. Tem o corpo azul-ce este. a cauda marrom. A ave lança um olhar sobre mim e volta-se espavorida, correndo para o vale em alta velocidade, tia ctra5?

reja com estridor e grita de excitação. Visitantes, especialmente humanos, são coisa rara nestas paragens!

T

Por que esta doutrina da reencarnação geralmente está associada à incomoda ideia de retribuição fatalística, muitos ocidentais encolhem-se diante dela, intimidados. — Quê! — exclamam eles. — Acha que devemos pagar pelos pecados dos outros? Nada mais injusto! Por que não? Toda a questão gira em torno de quem somos-nós. Se não passamos de corpos físicos, então a objeção é plenamente válida. Se não passamos de moscas voejando por este nosso planeta, por um breve espaço de tempo, então o Ocidente tem razão. Se, no entanto, somos almas revisitando continuamente o mundo, então a exigência de pagar na vida terrena por pecados anteriormente cometidos encerra um certo sentido de justiça. Nesse caso o destino, que coloca a sua marca nas nossas vidas, deixa de ser uma força cega e arbitrária. Creio, ou melhor, sei que o destino do homem está com Deus e não com os vermes. O cérebro não gera pensamentos, o corpo não gera a alma, da mesma forma pela qual o fio não gera a corrente elétrica. Tanto cérebro quanto corpo são apenas condutos, transportando uma força melhor e de maior sutileza para o denso mundo da matéria. Se não passamos de seres de carne, seria injusto exigir que os nossos átomos, lentamente transformados e redistribuídos depois da nossa morte, respondessem por nossos pecados. Mas somos isso e mais alguma coisa. Essa coisa a mais é a Consciência. Na verdade, somos mentes conscientes entrelaçadas com os ossos e a carne do corpo.

A mente representa a soma dos nossos caracteres, tendências e capacidades. É a verdadeira fonte dos nossos atos, pois é ela e não o corpo a nossa verdadeira personalidade. Se acreditarmos que a mente pouco varia de nascimento para nascimento, então não será difícil ver que a personalidade que tem que adaptar sofrimentos legados por uma reencarnação aos sofrimentos recebidos pela reencarnação seguinte está pagando pelos próprios pecados e não pelos dos outros. Mas uma doutrina que declara que toda ação tem seus frutos, e que a vida reencarnada tem de prosseguir até que essas consequências sejam completadas, é deveras razoável. E l a se ajusta 54

perfeitamente a todas as demais leis naturais que os cientistas descobrem no mundo físico. É, sem dúvida, muito mais consoladora do que a ideia de que a vida não é senão uma loteria com poucos prémios e muitas decepções. Há uma onda de acontecimentos que sobrenada irresistivelmente às nossas vontades. Leis mais altas colocam-se a si próprias em ação; não é preciso que nos preocupemos. Pouco razoável é o lamentável e apático desespero a que o povo hindu amiúde se entrega, ajudado e favorecido pelo efeito relaxante e enervante do clima tropical. A futilidade de um ponto de vista meramente físico das coisas fica mais clara quando se pondera no problema da justiça ou injustiça da vida. Não tomamos conhecimento do aspecto mental da vida, por considerá-lo de pouca importância, quando, para a Natureza ele é sempre o aspecto causativo. A Natureza parece, sem dúvida, rigorosa, como dizem os materialistas. Mas a Natureza é nossa mãe. Que mãe castiga seus filhos senão com intuitos educativos? A Natureza é tão real e viva como qualquer mãe humana. Pois este planeta tem por trás de si uma Inteligência diretora, como o comprova um simples olhar para os reinos mineral, vegetal ou animal. E que fizemos à Natureza para que ela deseje castigar-nos com propósitos não educativos? E como poderia o esquema educativo ser completado ao longo de uma simples vida terrena? Qual é então o objetivo da Natureza dentro desse esquema? Ousarei dizê-lo? Será ele demasiado artificial aos ouvidos de mentalidades materialistas? Como poderá esse longínquo objetivo ser descrito em palavras que o façam parecer exequível e racional? Basta lembrar que a Natureza se esforça no sentido de livrar-nos da prisão ao mundo material e recolocar-nos nos lugares primordiais do espírito dos quais provimos. Ou, para usar de uma alegoria bíblica, reconduzir-nos ao Jardim do Éden. Se nos prendemos a essa roda da existência que o destino faz girar, podemos também nos libertar dela. Tal é o desejo Natureza e constituirá a nossa felicidade. Nossas preocupaç terrenas poderão arrastar-nos ao pessimismo, mas a Natureza atrai para a paz. Precisamos deixar a nossa casca terrena e diri mo-nos para o centro, partir da extroversão completa para equilibrada introversão. Mas, enquanto não encontramos o n centro, ficamos à mercê dos acontecimentos futuros. Tão-som aqueles que moram no centro vivem acima das preocupações e medo.

Estas palavras parecem banais. E são. Pois, desde os primórdios do mundo têm sido repetidas, de uma forma ou de outra, por todos os grandes profetas e sábios e continuarão a ser repetidas até a consumação dos tempos. Nenhuma outra explicação dos objetivos da Natureza perdurou nem poderá subsistir por muito tempo, porque esta é a resposta que a própria Natureza dá àqueles que sabem inquiri-la com propriedade. Um fato é preferível a quarenta hipóteses; isto é um fato da Natureza. f A carcaça material deste universo se dissolverá um dia e /com ela nossos corpos serão dissolvidos, porém nós continuaL remos. |

Mas até esse dia basta que se escreva a respeito!

Poderia ser bom para alguns homens, inclusive eu próprio, modelar-se segundo o figurino destas elevações rochosas que buscam os céus, a fim de encontrar estabilidade, fixidez e força. Estas montanhas hão terão o significado de uma lição para os débeis mortais? Ultimamente, minhas excursões à quietude produziram em mim um sentimento de maior contato com o meio ambiente. Como disse o poeta Shelley, sinto-me "unificado com a natureza''. Sentado à beira do meu rochedo, munido de toda a paciência do mundo, deixando que a beleza e a serenidade da vizinhança penetrem em mim, começo a sentir-me, eu próprio, como uma parte da tranquila paisagem. Estou absorvendo na minha natureza a quietude do Himalaia. Meu corpo parece despontar da terra pedregosa e escura como qualquer pequena árvore. Agacho-me ao solo, enraizado como o cedro à minha frente. A vida que pulsa nas minhas veias parece ser a mesma que corre na seiva das plantas ao meu redor. A t é mesmo a sólida montanha deixou de ser uma simples massa de rocha cristalina, para transformar-se numa formação viva obedecendo a determinadas leis, da mesma forma pela qual a minha carne obedece a essas leis. E , à medida que esse espírito unificador penetra mais e mais em mim, um benfazejo sentimento de bem-estar parece ser o resultado. E u e todas estas árvores amigas, esta terra amável, estes picos brancos e reluzentes, estamos unidos num só organismo vivo e o todo, positivamente, é bom no seu íntimo O 56

universo não é morto, porém vivo; não é maléfico, porém benéfico; não é uma casca oca, mas o corpo gigantesco de um Grande Cérebro. Sinto pena dos materialistas que, de forma muito honesta porém dispondo de poucos dados, acham que a morte é o rei do mundo e o Demónio mora no íntimo das coisas. Se lhes fosse possível calar seus cérebros superativos e enquadrar-se na personalidade panorâmica da Natureza, eles descobririam o quanto estão errados. No entanto, com as mais recentes descobertas dos cientistas de que dispomos, apenas os tolos e sectários poderão defender as teses do materialismo. A forma misteriosa pela qual este crescente sentimento de unidade mescla-se com um sentimento de completa bondade vale ser assinalada. O sentimento de unidade não se deve a qualquer esforço da minha parte; pelo contrário, vem-me não sei de onde. A harmonia vai surgindo gradualmente e atravessa-me o ser como música. Uma ternura infinita se apossa de mim, aplacando o duro cinismo que uma reiterada experiência da ingratidão e desonestidade humanas gravou fundamente no meu temperamento. Sinto a bondade fundamental da Natureza, a despeito da sua aparente fachada de ferocidade. Assim como os sons de todos os intrumentos de uma orquestra afinada, todas as coisas e todas as pessoas parecem entrar em doce relacionamento, que subsiste no coração da Grande Mãe. Começo a compreender por que meu venerável Mestre não me sugere nenhum tipo especial de meditação e não me fornece nenhuma fórmula mística para ser ponderada e destrinçada. Ele não deseja que eu realize qualquer esforço no sentido de atingir uma posição mais elevada, quer apenas que as coisas corram naturalmente. Ele não me exibe um quadro daquilo em que me devo transformar, mas diz apenas, sê\ E m suma, trata-se de não fazer nada a fim de permitir que algo seja feito comigo. Nós, humanos, nos tornamos tão importantes e orgulhosos aos nossos próprios olhos que não nos ocorre que a Grande Mãe, que nos gera tão pacientemente no seu seio, nos alimenta com tanta abundância de alimentos e nos chama de volta quando estamos suficientemente cansados, tem um objetivo próprio que deseja conseguir em nós, desde que lhe permitamos. Nós organizamos nossos planos e projetos, nós decidimos aquilo que quere1 mos da vida e nós pensamos, lutamos e até mesmo padecemos em nossos esforços para obter a satisfação de nossos desejos.

a

Se, porém, dedicássemos uma quarta parte do nosso tempo a suspender os nossos esforços e deixar tranquilamente que o cérebro da Natureza penetrasse no nosso, poderíamos proceder a uma sábia revisão do rol das coisas que desejamos e, ao mesmo tempo, garantir a ajuda da Natureza na obtenção dessas coisas. O mundo não passa de um grande hotel, onde a Mãe Natureza nos aloja e alimenta, paga a nossa conta e depois segue em frente. Pois a Natureza tem um desígnio para cada um de nós e apenas desistindo durante algum tempo do contínuo exercício das nossas vontades poderemos nos familiarizar com tais propósitos. Se, no entanto, agirmos assim, talvez constatemos, surpreendidos, que ela também tem uma forma de chegar aos seus fins, í silenciosa porém eficazmente, diante de nossos olhos, desde que a ajudemos despindo-nos do nosso egoísmo. Então os desígnios da Natureza e os nossos tornar-se-ão um só. As ambições mudar-se-ão em aspirações e as coisas que outrora desejávamos em nosso próprio benefício serão alcançadas quase sem esforço, através de ! nós para o benefício de outros também. Cooperar por esta forma com a Mãe Natureza é cessar de carregar as cruzes da vida e deixar que ela faça esse trabalho por nós; tudo se torna fácil, até mesmo miraculoso. 1

Já tinha visto essas verdades antes, mas agora, no meu refúgio montês e mais intimamente vinculado à Mãe, vejo-as com espantosa claridade. Um poeta disse que a Natureza é a roupagem de Deus. Sim, mas para mim a Natureza não pode ser distinguida de Deus. Sei que quando estou reverenciando a Natureza não me estou entregando a um solilóquio; alguém acolhe a minha reverência. Se Deus é o Grande Arquiteto então a Natureza é o Mestre de Obras do universo, no sistema Maçónico do nosso mundo. Meu Mestre explica a inutilidade de qualquer esforço separativo, através de um sorriso significativo. E pergunta-me: — Que pensarias tu de um homem que entrasse num compartimento de um vagão de estrada de ferro com uma mala na cabeça, depois se acomodasse num banco e se negasse a colocar a mala no chão? As pessoas, no entanto, negam-se a entregar a Deus os espinhos das suas existências, insistindo em carregá-los por si próprias, na ilusão de que ninguém mais poderá fazê-lo, assim como o homem do trem estava na ilusão de que não era o trem

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as ele próprio quem iria transportar as malas. Assim, também, Deus sustenta a Terra, sustenta-nos a nós e aos nossos fardos, levando tudo Consigo. Quantos dos nossos sofrimentos decorrem, portanto, da nossa resistência? A princípio a Natureza coloca seu dedo delicado sobre nós, mas nós nos afastamos bruscamente. A solicitação de confiarmos nossas vidas a um Poder mais alto é feita no mais brando dos sussurros, de modo que, se não nos aquietarmos por algum tempo, talvez não a escutemos. A submissão, que nos traria a paz, está distante dos nossos pensamentos. O ego pessoal, com sua ilusória realidade, nos engana e, enganando-nos, nos aprisiona. mm Tudo não pass.i do preço que pagamos por desertar da Natureza. Com ela a harmonia; sem ela, a discórdia c o consequente sofrimento. Não sou capaz de expressar de forma adequada o quanto reverencio a Natureza. Ela é para mim o templo universal, a igreja universal. No sul da Índia ouço muita agitação e tumulto porque os párias e os de casta inferior não são admitidos pelos brâmanes em seus templos. As piores formas de "intocabilidack-' predominam no sul muito mais do que em qualquer outra parte da Índia. O antigo sistema de divisão em castas era perfeito em outras épocas. O homem letrado era a cabeça do corpo social, o guerreiro os braços, os comerciantes e camponeses o corpo, e os operários os pés. Hoje em dia, porém, a disposição das castas perdeu sua força, tornou-se desorganizada e opressiva, de modo que há muitos milhões de seres submetidos a indignidades cruéis e desprezíveis. Se os brâmanes fossem sensatos transformariam suas proibições para com os de casta inferior em vetos de caráter social ou higiénico, mas não religioso. Podemos compreender e aceitar que um duque se recuse a sentar-se em companhia de um gari num edifício público, mas quando ele diz que sua recusa é por ordem divina e não por causa do seu refinamento, e chegado o momento de por um paradeiro a essa tolice. Se eu fosse o líder desses infelizes hindus de casta inferior eu lhes diria: — Parem com esta agitação degradante em torno de alguma coisa que talvez não valha a pena ter. A Natureza deu nos um templo verdadeiro, onde Deus está tão presente como ^aquele velho amontoado de santuários sebentos e pedras santas lá adiante; venham às florestas e montanhas, até mesmo a uma sala nua e eu lhes mostrarei um Deus que os outros raramente enconn.un!

A voz da Natureza tem de ser ouvida interiormente; sua Y beleza pode ser vista exteriormente; mas a sua benéfica harmonia vive tanto no nosso interior quanto no nosso exterior. Se eu não sentisse assim em virtude da experiência presente e não soubesse verdadeiro em razão de experiências passadas, não me atreveria a escrever palavras de tanto otimismo, capazes de iludir-me a mim e a um mundo tornado cego. Mas, porque a sublimidade que se instala em mim, cá neste solitário rochedo do Himalaia, é um fato genuíno e encantador, permito que minha pena as escreva. Já sofri demais e vivi demais mentos melosos que não passam de esta noite, que estas palavras sejam e publicadas e divulgadas para todo / |

CAPÍTULO

Visita Inesperada de Dois logues — Peregrinos e Santuários no Himalaia — O Poder da Quietude

para demorar-me em sentificção. Mas, se eu morrer encontradas no meu diário o mundo:

A Natureza é tua amiga; reverencia a Natureza momentos de silêncio e ela te abençoará em segredo.

V

foi invadida. Os primeiros visitantes chegaram. E sua inesperada visita fornece-me, ainda uma vez, uma ampla prova da pequenez do mundo sublunar. Que se esteja num bulevar de uma grande cidade ou numa viela de um lugarejo oriental, é preciso que se esteja sempre preparado para encontrar algum conhecido ou alguém que jura que nos conhece. Três vezes fui detido na índia Central e Setentrional por viandantes modestamente trajados que me chamaram pelo nome e me saudaram com efusão, embora eu não lhes conhecesse os rostos nem os nomes. E m Delhi, almocei inesperadamente com um major aposentado de volta à índia, obedecendo a um súbito capricho, depois de uma ausência de quinze anos, e com quem eu havia almoçado dezoito meses antes, no seu confortável apartamento londrino. E m Dehra Dun, também de forma inopinada, retomei o fio de uma conversação interrompida com um professor da Universidade de Oxford que há muito não via. E assim por diante. , M I N H A SOLIDÃO

nos teus 1

Aqui, no isolamento do coração do Himalaia, até hoje parecia-me possível conseguir um retiro absoluto. Agora constato* o contrário. Faça-se o que for e mãos invisíveis estarão sempre a atar todos os tipos de meadas entre a gente e o mundo que se deixou. •^ . .,..v% ;^ :

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Pois, tendo eu ficado até tarde esta manhã no pequeno terraço, de pedra e grama, com os galhos do abeto sobre a cabeça e tentando por em ordem uma confusão de papéis, anotações e cartas, eis que me surge de repente o criado, sorridente, anunciando dois visitantes! 60

Ergo os olhos e lá estão eles, logo atrás do criado, tendo subido a pequena rampa que sai da casa. O sol do meio-dia bate de rijo sobre os dois homens que envergam um manto amarelo, vestimenta que anuncia serem iogues, frades, ascetas, homens santos, vagabundos ou ladrões, porque na índia moderna qualquer um que não deseje trabalhar para viver pode envolver o corpo preguiçoso num destes hábitos, tanto quanto um santo que despreza o mundo e deseja devotar toda a sua vida à oração e à meditação. Ambos poderão então pedinchar comida e assim por diante, e, tendo sorte, poderão encontrar um patrão que tome a si a tarefa de sustentá-los. Os dois homens que tenho diante de mim parecem ser de um tipo superior. O mais idoso é bem apessoado, de rosto agradável e aspecto aristocrático. Tem os cabelos encacheados e compridos, chegando até os ombros. Seu companheiro é mais moço, de constituição mais franzina, mas igualmente simpático. Também ele usa cabelos anormalmente compridos. É o primeiro a falar; saúda-me pelo nome e, para minha surpresa, arroja-se no chão. Não o conheço e digo-lhe isso. Ele responde sorrindo que me conhece e conhece também o meu Mestre. A seguir dá-me o seu nome e fico sabendo que provém da costa Malabar do sudoeste da índia. Seu companheiro, esclarece-me ele, vem de Gorakhpur, ao norte, das Províncias Unidas, para ser exato. O primeiro é um guru, isto é, um mestre espiritual, de alguma influência na sua região. Não obstante, é uma espécie de discípulo não vinculado do outro. Essas informações só são conseguidas depois de longo interrogatório da minha parte. A seguir o homem mais velho aproxima-se, toca em mim e apresenta-me uma espécie de manga, cujo nome não me ocorre, mas que sei ser um fruto de alto preço. Ele mo oferece sorridente, mas não diz uma só palavra. O seu companheiro esclarece-me então que o homem está "em regime de silêncio" e há doze anos não fala. ^ Agradeço-lhe e recuso, dizendo que ele precisará de toda espécie de alimentos nesta região erma. — O h , nao! — exclama o outro, — temos conosco alguns cules carregando todas as provisões necessárias, pois estamos numa peregrinação a Gangotri. Mas eu bem sei das dificuldades inerentes à viagem e nego-me a aceitar a fruta, declarando francamente que n ã o me

poderia perdoar se os privasse de um mínimo que fosse de alimentos. Os dois homens tornaram-se então um tanto nervosos e fizeram toda a pressão possível para que eu aceitasse o presente. O mais jovem declara que aquele fruto é uma oferenda especial a um colega iogue, como mandam os costumes, e que ambos se sentiriam muito ofendidos, caso eu insistisse na minha negativa. Como percebesse que ficariam realmente magoados, aceitei com reluntância a dádiva, mas com a condição de que fosse imediatamente cortada e dividida entre nós três. Enquanto o criado cuida de descascar e trinchar a fruta, alego, meio em brincadeira, que eles cometeram um erro e que não sou nenhum iogue, conforme se pode ver facilmente pelas minhas roupas. O guru replica gravemente: — Não é o manto amarelo que faz o iogue; isso não é nada; é o coração e o senhor é um dos nossos. — Então esta é talvez a primeira vez — retruco alegremente — que um iogue veio para o Himalaia usando um capacete contra o sol e calças vincadas, sentou-se num impermeável, bateu as teclas de uma máquina de escrever portátil e tomou chá quente de uma garrafa térmica atada às suas costas! O homem mais velho fica tão surpreendido com o meu chiste banal que prorrompe súbito numa tremenda gargalhada, que dura talvez um minuto. Aparentemente, seu voto de silêncio permite-lhe rir. Se o riso não é na realidade uma forma de falar isto é um problema digno de ser atacado pelos filósofos. Mas eu não tinha terminado de interrogá-los. Enquanto comemos as fatias da deliciosa fruta, pergunto: — Como sabiam que eu estava aqui? Não sabíamos, mas fomos guiados — foi a calma resposta. , • ,_ — Por quem? v

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O homem que falava sorri e aponta na direção do céu. Sou obrigado a satisfazer-me com aquilo. Não obstante, faço uma última tentativa. Se v ã o a Gangotri, sabem que esta não é a estrada habi tualmente usada pelos peregrinos. O caminho certo fica entre Dharasu e Uttarkashi. Passando por aqui, estão-se desviando da rota e encompridando desnecessariamente o caminho.

— Mas queríamos conhecê-lo — é a bondosa resposta acompanhada de um sorriso. A seguir eles se erguem e pedem licença. Vão encontrar-se com os seus cules e almoçar. O mestre, por meio de escrita, convida-me a ser seu hóspede para o jantar e fazer a adoração vespertina em sua companhia, pois pretende descansar aqui durante um dia e seguir viagem antes do romper do dia. Desta vez expresso a minha gratidão e sinto-me tentado a aceitar. Percebo que ele está-se concedendo grande honra ao partilhar comigo suas parcas provisões. Depois do almoço, o homem mais jovem veio visitar-me pela segunda vez. Seu nome é Bhandu Sharma. Sugiro que façamos uma caminhada e levo-o na direção do pico a cerca de oitocentos metros de distância, onde vicejam ásteres amarelos que brilham de encontro ao austero pano de fundo. A caminho, ao galgarmos uma estreita prateleira de rocha que adere ao flanco da montanha como que ansiosa por alcançar-lhe o cume, falamos de coisas mais elevadas e ele desenvolve uma veia autobiográfica. Fragmentos da história da sua vida saem-lhe dos lábios. Há seis anos vinha percorrendo o território da índia em todas as direções, entre multidões agitadas e bazares e solitárias cabanas no jângal, em templos cujos altares tresandavam a manteiga rançosa e no ar puro dos vales das montanhas, estudando a sabedoria do Espírito e a arte da Ioga ao pé de vários mestres. Comparamos nossas anotações, pois algum destes últimos são nossos conhecidos comuns. Diz-me ele que o Místico de Tiruvannamalai é o homem que lhe causou maior impacto. — E m sua presença sentia-me imediatamente em paz — afirma o iogue — e durante os quatro dias em que permaneci na sua choupana recebi experiências espirituais que jamais conhecera antes. U m dia voltarei até ele. Pergunto-lhe acerca do tipo de vida que está levando e como consegue suportá-la. — Serve-me bem porque tenho liberdade para estudar e meditar, liberdade essa que nunca tive quando era funcionário dos correios, embora fosse bem remunerado. — É uma vida dura para um homem da sua classe. — Seria, se eu fosse obrigado a mendigar comida; seria uma degradação impossível de suportar. Mas tenho a felicidade de receber comida e casa de todos os mestres com quem me 64

hospedo. Assim é que, nesta pereginação a Gangotri, o professor que me leva está também arcando com as despesas. — É verdade, como dizem muitos, que a maioria dos ascetas e homens santos não passa de vagabundos desclassificados? O senhor viaja entre eles e tem mais autoridade para lalar do que eu, que, na verdade, estou afastado dessas coisas. O iogue sacode tristemente a cabeça. Seus olhos tornam-se graves. — Sim, infelizmente é a pura verdade. Irei mais longe e direi que mais do que noventa por cento dentre eles não passam de preguiçosos, mendigos ou vagabundos. Vi-os por toda a índia, vivi entre eles e garanto-lhe que menos de cinco por cento são pesquisadores sinceros dos assuntos do espírito. Nossa trilha margeia a floresta e é flanqueada no outro lado por uma baixa elevação. Ao falarmos, aproximamo-nos das pegadas recentes de um urso, que revolveu bastante o solo à procura de raízes comestíveis. Contei ao meu companheiro um incidente que presenciara na Estação Gwalior, esperando por um trem. Um homem santo itinerante, dono de apenas uma capa impermeável e uma bengala, obrigara o bilheteiro e a polícia ferroviária a deixá-lo viajar sem passagem. Diante das suas ameaças propaladas em altos brados e logo misteriosas ninguém se animou a erguer um dedo e, com certeza, ele repetiria a cena no seu destino e aumentaria assim o número daqueles que viajam de graça na índia. Ademais, eu percebera nos olhos do homem que ele se encontrava ainda sob o efeito de uma boa dose de haxixe. Bandhu Sharma expressa seu descontentamento em voz melancólica. Minhas viagens e peregrinações terminarão dentro de um ano — informa-me ele. — Então deixarei de lado a companhia desses rufiões para sempre, assim espero. Fixar-me-ei em algum lugar e viverei na maior simplicidade, à custa de um pequeno rendimento que espero obter de amigos. Dedicar-me-ei ao estudo. Parece-me claro que os homens santos itinerantes da índia são simplesmente os frades errantes da Europa medieval. A modernização da índia fará com que desapareçam, assim como a modernização da Europa fez desaparecer os frades. Aqueles raros que são iogues de verdade talvez desapareçam também, mas não por completo. Considero-me um felizardo por

haver alcançado uma situação entre as suas fileiras, porque sociedade dos iogues é mais fechada que a da aristocracia. Ele conta-me do ponto a que chegou na sua vida interior É capaz de sentar-se calado para meditar durante duas ou três horas e olvidar por inteiro o mundo exterior; é capaz de entrar em transes espirituais místicos e desenvolveu seu poder de concentração até um ponto muito adiantado. E l e encontrou uma certa dose de tranquilidade interior e é, por isso, feliz. Discutimos dois problemas com os quais ele não é capaz de se haver satisfatoriamente e, por fim, sinto necessidade de dar certas explicações. E l e as recebe jubilosamente e exclama: — Agora sei por que tinha de vir vê-lo. Estas são precisamente as respostas que me escapavam! Digo-lhe que não devem ser levadas a meu crédito, mas sim ao do meu Mestre, pois só a ele devo esses conhecimentos específicos. Descansamos um pouco no alto do pico. O lugar está repleto de samambaias, que se enroscam nos troncos dos abetos. Na nossa viagem de volta, sob um céu raiado de um rosa-pálido e com as neves reverberando ao acaso como metal em brasa, deparo, agradavelmente surpreendido, com alguns jasmineiros selvagens. São flores de exótico perfume, brancas como neve, e recordam-me um certo jardim de Gwalior onde meu anfitrião ajudara a Natureza a propiciar-me alguns momentos indeléveis. Meu companheiro faz uma observação acerca da alta inspiração que encontra aqui. Quase todos os hindus voltam-se com devoto temor diante do "Poderoso Himalaia", conforme dizem os seus livros, como a última morada dos verdadeiros sábios nesta era que se finda. À noite, sob a luz fraca de um lampião de querosene, junto-me a ele e ao seu mestre para a adoração vespertina. Depois de cantarem seus hinos, eles permanecem prostrados por terra em reverente oração. A o final, surge o jantar. Tudo está colocado sobre uma enorme travessa de latão, de modo que os pratos, do primeiro ao ú l t i m o , aparecem simultaneamente diante dos meus olhos. Surpreendo-me ante a excelência e variedade do repasto oferecido. Todas as gulodices de que os hindus tanto gostam estão presente — desde chapatis (pães de cevada) até as rasigullas (rapaduras). O guru tem vários cules e dois criados e, evidentemente, é o homem abastado, julgando-se pelos p a d r õ e s dos peregrinos.

Terminado o jantar, convido-os a vir ao meu bangalô para uma derradeira conversa, já que partirão antes da aurora. Discutimos antigos tópicos da vida espiritual que na índia já íôtãm tantas vezes discutidos e o professor, com ajuda do seu ágil lápis, esclarece laguns detalhes de somenos ligados ao seu próprio ramo de cultura espiritual. A seguir levanta-se, todos sorrimos uns para os outros, tocamos as palmas à guisa de saudação e eles vão-se recolher para passar a noite. Foi a última vez que vi os dois andarilhos vestidos de amarelo.

Estamos na temporada das peregrinações. Durante os quatro meses de verão pode-se transitar a salvo pelas trilhas e caminhos do Himalaia, mas a seguir estes ficam enterrados na neve até cerca de dois metros e viajar por ali torna-se tarefa perigosa e praticamente impossível. Assim sendo, os peregrinos só aparecem durante o verão. A maior parte deles é constituída de homens santos, faquires e frades. Admiro a determinação, a bravura e a devoção religiosa dessa gente que vem das planícies da índia, de regiões onde faz um calor feroz para uma austera região de precipícios, gelo e neve. É relativamente fácil a um europeu, habituado aos frios invernos do seu próprio continente, suportar o frio do Himalaia, mas para aqueles hindus mal vestidos a aclimatação é penosa e exige muito sofrimento. Centenas de homens, e até mesmo.mulheres, vêm em peregrinação a estas montanhas recobertas de neve todos os verões, pois sua religião lhes ensina que aqui viveram seus deuses e seus mestres mais famosos e, invisivelmente, continuam a viver. O Himalaia é a terra santa do subcontinente hindu. É para os hindus o mesmo que a Palestina é para os judeus e cristãos. Aqui, na gruta de Badarikasrama, viveu o famoso sábio Vyasa que escreveu a Mahabharata, a mais grandiosa epopeia religiosa da índia. E m Rishikesh, à margem do Ganges, os Vedas, ou escrituras sagradas, receberam sua forma quadrupla final ' Vasishta, sábio e profeta, o solitário autor de um imenso compêndio de Ioga, viveu neste reino de Tehn antes da era cristã No alto de um trono natural rodeado de neve. ohiva. o Deus que tomou o corpo de um iogue, acredita-se ainda perdido 6;

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numa meditação eterna. No pequeno e arborescente vale de Agastyamuni o grande vidente chamado Agastya havia praticado a Ioga nos tempos antigos. O sagrado Rio Bhagirathi, que atravessa este reino, é mencionado nos livros sagrados, os Puranas, pois é na verdade o principal alimentador do Ganges. O nome do rio está associado com o do rei Bhagirath, um santo real. O templo de Badri Narayan num vale gelado é sagrado até para os budistas, e não menos para os hindus, e até hoje alguns mosteiros tibetanos prestam-lhe tributo. Quando o peregrino chega a esses santuários ele se acredita na presença das divindades que habitam o local. Os peregrinos palmilham pacientemente o terreno até Kedarnath Badrinath e até mesmo Gangotri e Jumnotri, percorrendo trilhas estreitas e sinuosas, alimentando-se apenas de arroz e lentilhas, cantando extaticamente hinos sagrados e engrolando orações. Sobem a custo íngremes ladeiras e descem com dificuldade declives escorregadios essas figuras cansadas e pequenas, padecendo de diversos males na viagem de volta, que dura de seis a oito semanas, e correndo riscos de sofrer acidentes e contrair moléstias. Quando, por fim, chegam, exaustos, aos templos erigidos há séculos em locais sagrados nestas montanhas, seus rostos iluminam-se, pois recebem — ou pensam receber — as bênções dos deuses. Acho que eles têm razão. Ainda que os templos sejam inúteis coleções de pedras, ainda que os deuses não passem de delírios da imaginação dos homens primitivos, viver no Himalaia é por si só uma grande bênção! Lá no alto, as estrelas em sua alta abóboda já saíram por completo dos seus ataúdes de luz diurna e brilham aqui e acolá com seus raios que piscam. Hidra, batizada com o nome da serpente monstruosa que Hércules abateu, espicha sua comprida silhueta sob a eclíptica. Orion, outra constelação austral, aparece no equador. O Caçador é a figura mais notável dentre as formas estreladas. Seu punhal embainhado contém uma nebulosa que é uma das vistas mais lindas do céu. A sudoeste de Orion brilha Sírio, famosa estrela de primeira magnitude. Meu derradeiro olhar dirige-se à constelação de Leão, quinto dos grupos zodiacais, que comanda o zénite. A seguir recolho-me por aquela noite. Gozei uma comunhão silenciosa com as estrelas longínquas.

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Curiosa experiência sucedeu-me hoje. Estando sentado de pernas cruzadas sobre o rochedo, com o pé direito descansando sobre a coxa esquerda, o olhar fixo na extremidade da garganta, a respiração contida pela quase imobilidade, o doce torpor em que recaio é subitamente rompido por uma aparição violenta de poder. Nenhum esforço da minha parte a provoca, pois repouso sobre o solo tão impassível como uma pedra. No entanto, um impulso eletrizante toma de repente conta do meu corpo e enri jece a minha espinha como se fosse a corda de um arco. Uma força dinâmica se espalha por toda a minha carne, de modo que rilho os dentes para conter-me e enterro as unhas nas palmas das mãos. Este repentino acesso de força, aparentemente vindo' do nada, é tanto físico quanto moral. Meu corpo leve se transforma e sente-se capaz de feitos hercúleos, ao passo que o meu caráter absorve grande dose de coragem física, determinação e aspiração. Sinto que legiões de anjos guardiões e espíritos prestativos se reuniram para amparar-me e me ajudarão a transformar em sucesso qualquer empreendimento a que me atire. Sinto-me como um segundo Mussolini, com o mundo invisível como a minha Abissínia. Sinto-me como aquele oficial do exército que certa vez relatou-me suas sensações ao passar em revista a tropa. — A consciência de ter sob o meu comando duzentos homens, todos inteiramente prontos a obedecer à minha primeira voz de comando e a seguir-me onde quer que eu fosse, dava-me uma autoconfiança prodigiosa que eu, normalmente, não possuo — confessou ele. Esta disposição misteriosa prolonga-se por cerca de mais de uma hora. A seguir vai gradualmente arrefecendo, nlo, porém, sem deixar sua marca em mim. Percebo que, por acaso, liberei alguma força psicofísico-espiritual, embora como, por que e onde, sejam coisas menos fáceis de asseverar com precisão. De repente uma rajada de vento se ergue e varre as gargantas. As folhas amareladas dançam loucamente em torno de mim e depois voltam a cair ao solo. Um corvo chama sua companheira, que responde de uma árvore próxima./ Uma premonição estranha toma conta de mim. Sinto que aquela disposição iria voltar-me com frequência, com o consequente despertar de toda a vibração da vida em todas as esferas. Com esta força indescritível, gerada não sei onde, tomando conta 69

de mim, sei que o futuro poderá ser encarado com otimismo, sem receios, até mesmo de modo triunfante. Estas ideias de vitória ser-me-ão valiosas no futuro, tenho certeza. Lembra-me que os antigos mestres iogues costumavam falar de um poder que jaz oculto no corpo etéreo do homem, o qual, embora invisível, liga-se intimamente ao seu corpo físico. Representavam esse corpo sob o símbolo da serpente e diziam que ficava enrodilhado na base da espinha. Uma vez distendido, despertado e forçado para cima,** o corpo etéreo iria regenerar o homem e conferir-lhe incríveis poderes psíquicos, mágicos e espirituais. E m última instância poderiam ajudá-lo a entrar à força no reino dos céus. Mas os fisiologistas não chegaram jamais a encontrar qualquer vestígio desse poder maravilhoso. Seja ele um fato ou mera ficção, isso não me importa. Seja como for, fiz uma descoberta. Descobri que quietude é força. Um mestre hindu moderno, já falecido, disse que estando sentado a meditar tinha sob os pés a força do mundo! Queria ele dizer que aquele que é capaz de dominar os próprios pensamentos é capaz de dominar o mundo. Ao invés de fraquejar, sinto-me hoje mais forte; portanto, os que encaram a meditação como uma expressão de fraqueza não sabem na realidade de que estão falando. Rejubilo-me da quietude que suave e diariamente cresce dentro de mim como uma flor. A pose delicada que se assume durante a meditação pode ser uma fonte que jorra poder. Os deuses mais altos são parados, tão parados que os antigos egípcios os retratavam de cócoras, em seu sistema hieroglífico! No entanto, massas de homens movem-se inconscientemente ao seu talante, ao passo que até mesmo os maiores planetas oscilam catastroficamente da vertical para uma oblíqua, ao menor ato da sua vontade. A coisa mais enganosa do mundo é pensar que só aqueles que fazem barulho são poderosos ou que só eles possuem poderes muito ativos. O maior chefe executivo de um grande empreendimento comercial costuma ficar parado na sua cadeira giratória, enquanto 70

os seus auxiliares movimentam-se para cá e para lá, fazendo todo 0 barulho. O eixo de um gigantesco volante que comanda as correias de transmissão de uma máquina de uma grande fábrica onde trabalham milhares de homens é silencioso e fixo, mas as rodas fazem a maior parte do barulho. No entanto, em última instância, toda a atividade da fábrica gira em torno do eixo.

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Nos terríveis furacões dos trópicos africanos, que podem ser tão devastadoras à vida e às propriedades humanas, sabe-se que bem no seu centro existe a mais absoluta calmaria. Os furacões estrugem por fora mas são calados no seu interior. Estas analogias tiradas tanto da Natureza quanto da vida ilustram a ilusão de que calma significa necessariamente fraqueza. Não é assim. O ser mais poderoso de todo o universo — O Criador — é também Sempre-Calmo, Sempre-Plácido. O Ser Supremo vive no Absoluto imutável, porém todo o movimento, toda a criação, todo o trabalho do mundo, emanam da Divina Imobilidade. E , se o homem é "feito à imagem de Deus", então o elemento mais dinâmico do seu ser deve também viver na imobilidade. Esta é uma verdade primordial da vida e seria de bom alvitre que a reconhecêssemos. Se o Poder que impulsiona toda a maquinaria do nosso universo é, em última análise, secreto e imóvel, então o homem, que no seu interior reproduz em miniatura todos os principais elementos do universo, deve ser também animado por um Poder igualmente secreto e imóvel. Percebo, por conseguinte, que nada tenho a perder persistindo nos meus exercícios de quietude. Não preciso temer nem a fraqueza nem a degenerescência. Pelo contrário, tenho tudo a ganhar, a saber, entrando em contato com essa vital força criadora que na verdade me fez. Tal contato poderá até mesmo transmitir algo dessa força única ao meu eu consciente. No entanto, exteriormente, poderá não restar nada senão a serenidade. O mundo poderia continuar a considerar-me insignificante. Isso não teria a menor importância. O mundo perceberia a liberação e agiria de um plano mais profundo do que o físico.

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Os povos antigos sempre tiveram suas lendas acerca dessas possibilidades. Não há raça que não tenha tido histórias algo exageradas de sábios, mágicos e profetas que obrigaram tanto os

homens quanto a Natureza a submeter-se aos seus desejos Quando os motivos não eram egoístas tais homens eram bons, caso contrário eram maus. Fazer o mundo voltar a estúpidas crenças antigas e reviver superstições seria retroativo, mas fazer o mundo reportar-se àquilo que havia de verdadeiro em tais crenças só poderia ser uma atitude progressista. A ciência aplicada mostrou o caminho. Ela atira ao espaço, pelo sem fio, um raio invisível de sutil energia elétrica; os raios movem-se de forma rápida, silenciosa e invisível. E , pronto!. . . Aviões voam sem pilotos, o tráfego nas ruas é dirigido por semáforos automáticos, campainhas de alarme são disparadas, portas automáticas são postas a funcionar, sinais de estradas de ferro levantam e abaixam por si mesmos, navios encontram suas rotas nas mais densas cerrações e soldados tombam mortos, eletrocutados instantaneamente. No armazém universal há outras forças que não a eletricidade, as quais poderão agir de forma igualmente secreta e invisível e serem não menos potentes à sua própria maneira. Tais forças poderão estar, adormecidas e inaproveitadas, dentro do próprio homem.

CAPÍTULO

VI

Um Apanhado da Minha Correspondência Quase-Suicídio e a Minha Resposta — Ajuda a Estudantes

— Um Telepática

O MENSAGEIRO que de tempos em tempos traz-me a correspondência da agência postal mais próxima na escaldante índia deve ser um dos campeões mundiais de marcha. Entra dia sai dia, não faz senão andar! Ele percorre de trinta a quarenta quilómetros por dia, graças a Deus e aos seus resistentes sapatos, mas não se gaba disso. Chega invariavelmente depois do cair da noite, quase sempre ensopado por uma dessas tempestades que agora assolam esta região quase que todos os dias, abre sua valise e derrama sobre a mesa o habitual maço de cartas. Depois, em seguida a uma refeição e a um descanso noturno, parte novamente com o romper do dia, carregando através dos compridos e desérticos caminhos monteses os meus despachos para a civilização. Assim passa ele a sua vida, alma simples e primitiva que é, fiel e dedicado ao serviço, caminhando sem parar! É uma figura que poderia ter fornecido a Charlles Lamb o tema para um espirituoso ensaio, caso houvesse nascido na Inglaterra e no século dezenove. Mas o destino reservou-o para o meu serviço sobre estas trilhas mal traçadas e para a visão de um mundo em que os aviões cortam os ares zumbindo como vespas furiosas e carruagens sabidas correm como o vento, sem ter um cavalo sequer para puxá-las! Para mim ele é de inestimável necessidade, pois mantém aberta a minha linha de comunicação com o resto do mundo. Tal serviço poderia muito bem ter sido desmerecido pelos eremitas antigos ou medievais, mas para um eremita do século vinte como eu é das melhores coisas que há. Hábitos modernos para eremitas modernos, eis o meu lema.

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Portanto, vivo segregado mas não isolado. Houve época em que eu encarava estas estranhas missivas que me são mandadas dos quatro cantos do mundo como perturbadoras do meu sossego. Depois que um autor escreveu suas quinhentas palavras diárias para um novo livro e, possivelmente, alguns parágrafos de um artigo de jornal, ele não tem disposição para tomar da pena e escrever duas ou três mil palavras adicionais na forma de respostas a correspondentes desconhecidos ou cartas fornecendo as novidades aos conhecidos e amigos, especialmente se precisa manter intato um período do dia para a sua Deusa meditação. Quando não, escrever cartas será para ele uma ocupação enfadonha e cansativa. Certamente, eu não poderia, como o francês Flaubert, labutar durante três dias apenas para conseguir uma frase perfeita! Apenas um génio ou um milionário pode dar-se ao luxo de tal desperdício de tempo. Jamais serei um milionário e ainda tenho muito o que viver antes que possa dizer orgulhosamente a um inspetor de alfândega, como disse Oscar Wilde ao entrar nos Estados Unidos: — Nada a declarar, a não ser o meu génio! Nem mesmo uma secretária, conquanto ajuda valiosa e essencial, é capaz de aliviar a pressão o suficiente para diminuir de maneria marcante o peso do encargo, quando a correspondência é tão peculiar e pessoal como a minha. No entanto, a passagem do tempo abrandou o meu ponto de vista e terminei por encarar de modo mais tolerante essas cartas. Afinal de contas, tirante umas poucas que não são muito sãs ou vêm de meros caçadores de autógrafos ou de simples curiosos ou histéricos com mania de religião, a maior parte das pessoas não rompe sua natural reserva escrevendo a um estranho acerca das suas dificuldades com a sua concepção do mundo ou expondo-lhe os problemas espirituais que a aflige ou, perplexa, pedindo-lhe orientação, a menos que haja um motivo forte e urgente para assim fazer. Existe, no entanto, um lado bem agradável na vida do escritor. Boa percentagem das cartas que recebe relaciona-se com o prazer intelectual e a ajuda espiritual que seus leitores alcançaram à custa de seus esforços literários. Nenhum autor é modesto a ponto de não gostar de receber tais cartas encomiásticas. Elas o encorajam a prosseguir na sua obra e impedem-no de abandonar uma profissão precária, quando ocupações muito mais lucrativas surgem tentadoramente diante dele. E , quando críticos hostis denunciam seus livros como 74

"escória literária" ou "tolices nauseabundas", como aconteceu comigo, ou impugnam sua sinceridade, como aconteceu comigo, ele pode perdoá-los com um sorriso e responder-lhes com o silêncio da indiferença, enquanto apanha o volumoso maço de cartas em que os leitores lhe enviam sua mais profunda gratidão e até mesmo bênçãos cordiais por haver escrito determinada obra. Nem todos os críticos usam epítetos tão pouco lisonjeiros como os que acabo de citar. Precisamente o mesmo trabalho que mereceu deles uma opinião tão desfavorável foi altamente recomendado pelos dois jornais de maior prestígio no mundo: o Times de Londres e o New York Times. Pode-se muito bem aguentar os primeiros com a finalidade de ouvir os últimos. Mas, seja como for, não erigi nenhum altar à opinião pública. Se o mundo puder receber o meu pensamento, isto sem dúvida me será agradável; caso contrário, permanecerei imperturbável. E agora chegou uma nova remessa de correspondência. Não posso trazer para cá minha secretária, fazendo-a compartilhar da completa solidão deste desértico Himalaia, de modo que tenho de cuidar de cada carta e cada assunto sem qualquer ajuda. Na verdade, arrependo-me até de ter trazido comigo um criado provisório, porque ele, pobre alma, está-se tornando um tanto inquieto e, lendo-lhe os pensamentos, vejo que começou a contar os dias da nossa estada. Não ficarei chocado, portanto, se ele me vier anunciar gaguejante que deseja acertar as contas e a seguir me abandone pela mais sociável e civilizada cidade de Delhi, onde o contratei. Posso perfeitamente cozinhar as minhas próprias r e f e i ç õ e s . . . sim, até mesmo os místicos têm de comer!... e prefereria fazê-lo a ter a paz destas montanhas prejudicada por pensamentos conturbados. O preparo de uma saborosa refeição não supera as minhas capacidades culinárias. — Paz a qualquer preço — que já foi o lema de um certo partido político inglês, tornou-se o meu lema também. Aqueles iogues que antigamente se refugiavam nos recessos do Himalaia levavam consigo apenas discípulos devotados que os atendiam em suas necessidades, nos seus recantos solitários: agora posso compreender porque. E embora eu não seja um iogue (ao menos no sentido ortodoxo do termo), meu objetivo aqui é sensivelmente igual ao deles. As revelações que a minha mala postal me faz são por vezes extraordinárias. Eis um homem da Checoslováquia que me diz que mais de duas mil pessoas reuniram-se no seu pequeno pafa com o propósito de estudar a sabedoria secreta do Espirito e

praticar regularmente a meditação como meio de chegar a ela Aqui está uma carta de um advogado hindu exercendo sua profissão no fórum de uma grande cidade, o qual está tentando organizar um retiro espiritual no sopé do Himalaia, a fim de ele e outros profissionais tenham um lugar para onde se dirigir quando necessitarem de tranquilidade espiritual. Eis um convite de um comité europeu de pesquisas psíquicas para que eu presencie e investigue uma demonstração feita caminhando sobre carvões em brasa. Bem, a distância impede-me de ir, mas, de qualquer forma, eu preferiria presenciar e investigar o por do Sol por entre reverberações douradas de luz deslumbrante.

podem atacar com muito mais propriedade? A Europa forjou seu próprio destino e, sob o olhar vigilante dos deuses, a Europa terá de suportá-lo. Toda calamidade traz consigo uma compensação espiritual invisível. Não desespere, porém, pois há um plano por detrás de tudo e, no momento apropriado, a presença de poderes mais altos se tornará mais clara diante de um mundo estupefato. Nossa raça está atravessando um período de transição. Pois as grandes forças do destino, as invisíveis forças diretoras da História, mobilizam nas ocasiões críticas os instrumentos humanos necessários ao cumprimento tanto do nosso destino prévio quanto de sua própria vontade, seja para a alegria ou para a dor ou, ainda, para ambas as coisas.

Cá está um amigo jornalista que, durante vinte anos, encontrou toda sorte de infortúnios e, mantendo o seu orgulho embora sempre com os bolsos vazios, via agora as coisas mudarem radicalmente e todos os bens do destino caírem-lhe ao colo.

Quem são, na verdade, os legítimos senhores do mundo? Serão eles os títeres inconscientes cujos nomes aparecem nos jornais ou serão os seres divinos que desde tempos imemoriais • tiveram a seu cargo a tutela da humanidade?

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Entrementes enraíze sua vida no E u Superior e não terá por que sentir medo. É extremamente difícil para uma mente moderna conceber um estado em que o ego pessoal se submete ao Infinito impessoal. Parece, à primeira vista, impossível que toda uma vida, com seus sofrimentos e alegrias, seus temores e esperanças, seus fracassos e loucuras, deva ser mantida em suspenso, por assim dizer, por uma vida mais profunda que emana de uma fonte divina interior ao próprio ser e o transcende. Nesse estado não há ontem nem amanhã, pois só assim se pode obter a paz. Mas precisamos tentar, se se tentarmos como fé e correção, eventualmente não estaremos tentando em vão. Capacite-se desta verdade, senhora, use-a como se fosse uma lanterna.

Outro é um charlatão de oitenta e um anos à procura de um discípulo, oferecendo-se, numa carta em duas vias, para dar-me "iniciações para Deus (sic), reavivar mistérios zelosamente preservados, que só podem ser desvendados aos olhos de homens que mereçam tal felicidade. Mas, sendo necessário encontrar um sítio permanente e as facilidades exigidas para a consecução desse trabalho e também para as minhas orações diárias, cobro uma taxa de 108 rupias dos ricos, 40 rupias da classe média e 9 rupias dos pobres". Ainda bem que posso receber "uma iniciação para Deus" aqui nestas montanhas silenciosas sem pagar um tostão sequer e, com certeza, uma iniciação bem melhor do que aquela que me seria proporcionada pelo velho caçador de rupias. Pergunto-me, porém, por que ele me teria escrito. Sou suficientemente conhecido na índia para dar-me ao luxo de recusar discípulos ao invés de converter-me num deles. Sem dúvida, a lapidar definição de Darwin do tolo como um homem que jamais faz uma experiência não se aplica ao velho em tela. Aqui está a carta de uma amiga fiel, falando dos problemas políticos em que a Europa se acha mergulhada e lastimando a ameaça de guerra sempre presente. E l a , muito naturalmente, sente-se deprimida, pois é esposa de um general e implora-me que saia do meu retiro e tome alguma providência! Mas quem sou eu, cara amiga, mísero escrivã itinerante e um mortal fraco e pecador, para atacar aquilo que um milhar de políticos preocupados e algumas centenas de milhares de pacifistas atónitos 76

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Eis aqui mais uma carta de uma dama. E l a é velha e há / trinta anos procura a verdade espiritual, mas, infelizmente, seus esforços sempre foram vãos. Só encontrou decepções e desilusões Y em sua busca, o que gerou ceticismo e amargura. Torturada, ela pede-me que a aconselhe. Pois bem, dar-lhe-ei meu conselho, pobre senhora A A tristeza é o prefácio da sabedoria. Renove J suas esperanças desvanecidas e restaure sua fé no Ser Supremo. Cá está um amigo político a quem ajudei com conselhos Escreve-me para- perguntar se serei candidato pelo seu partido nas próximas eleições. Agradeço e lamento. Já me candidatei a

uma eleição mais elevada, presidida pela Mãe Natureza e prometendo ao eleito apenas repouso e como honraria única a verdade. Outra carta chega-me de um amigo no Egito, pondo-me a par de todas as novidades relacionadas com um grupo que tem o seu papel na vida social daquele ensolarado país e a seguir pedindo notícias minhas. Um funcionário de uma ferrovia escreve-me acerca de problemas surgidos quando se entregou à prática da meditação. Um médico da Inglaterra envia-me agradecimentos por haver eu elucidado determinados aspectos psicológicos num dos meus livros e a seguir propõe uma questão de difícil resposta. Um arguto homem de negócios americano diz que alguns dos meus parágrafos revolucionaram seu modo de ver as coisas e pergunta-me se estou disposto a tratar de certos delicados problemas de ordem pessoal. Alguns grupos esparsos, que um dia talvez se transformem em expoentes do evangelho da ação inspirada e que estão prontos para trabalhar desinteressadamente pelo bem-estar da humanidade, mandam-me notícias suas e pedem conselhos acerca de vários assuntos. Meu aluno mais jovem, que tem doze anos de idade e algumas dezenas de séculos na alma, manda-me carinhosas notícias dos seus progressos escolares. Ele já é capaz de fazer, com habilidade e segurança, aquilo que muitos adultos continuam lutando por conseguir: ficar calado e relaxar, os pensamentos enfocados no Infinito. Um iogue que começa e termina sua carta com o símbolo de Deus em sânscrito; um engenheiro que está tentanto conservar sua sensibilidade para as coisas divinas no meio da sua carga de tarefas comerciais, embora seus impulsos espirituais fluam de forma irregular e incoerente; um diretor de empresa que está agora aprendendo a dirigir-se a si próprio; um marceneiro desempregado que me pede que abençoe seus esforços para encontrar trabalho; uma condessa apanhada no turbilhão da vida social, sem contudo esquecer seus deveres mais elevados — todos estes e alguns outros contribuem com a sua quota para a minha correspondência de hoje. A última carta é mortificante. Relata ela uma série de terríveis tragédias que partiram o coração do escritor. Poderia eu dar-lhe uma migalha de conforto, pergunta-me o^homem, alguma explicação que lhe permita agarrar-se à vida e não terminá-la de forma violenta? Dou-lhe as explicações que me são possíveis, mas pouco há para se dizer diante dos mistérios do destino. Desenredar por inteiro suas teias é tarefa para um Conhecedor. Mas há umas 78

poucas palavras de júbilo a seguir: — Quando surgem os grandes aborrecimentos e a vida se enegrece de infortúnios, não resmungues em tom lutuoso, "É o fim!" mas, ao invés, diz, cheio de esperança, "É o começo!" A ocasião tem de ser aproveitada como uma oportunidade para iniciar uma nova vida, para mostrar as qualidades positivas, corajosas e construtivas que estão latentes no teu íntimo. Tem de ser uma oportunidade para reconstruir tua existência em melhores bases, bases apropriadas que repousam sobre aquelas qualidades imperecíveis. Domina primeiro as dificuldades em tua mente e também elas irão gradualmente tomando novas formas segundo as novas circunstâncias exteriores. Deixa que cada tristeza, quando chegar, seja o ponto de partida para um tipo de vida mais divino. Foste feito à imagem de Deus — sim, bem no fundo és a imagem de Deus — faze, portanto, jus a ela. Quando te recusas a reconhecer a maldade de uma outra pessoa ou de um conjunto de circunstâncias, fazes com que diminuam as possibilidades de seres por ela afetado. Faze dos teus aborrecimentos uma forma de encarar a vida sob um novo aspecto e pensa nela de uma forma mais forte, mais positiva. Não sintas amargura com relação ao que poderia ter sido; a rebelião em nada te ajudará; a sábia resignação talvez. Começa de novo, tornando-te uma nova personalidade. Tenta, assim, desarmar o destino. Faze uma lista daquilo que ainda possues, tanto material quanto espiritual, e verás que não estás verdadeiramente perdido. Na pior das hipóteses, estarás perdido apenas quando tiveres perdido toda a esperança, toda a coragem, toda a fé nos divinos poderes curativos que nos guiam. A agonia de perder as coisas é grande, sim, mas a agonia de perder a esperança é ainda maior. Não te submetas a ela; ela nunca é benvinda. Deus continua a existir e importar-se conosco. Garanto-te que ganhei o direito de escrever esta última sentença, pois ganhei-o em meio a uma angústia tão grande quanto a tua. E agora preciso apanhar a minha pequena máquina de escrever portátil e começar a datilografar respostas, umas poucas, pois não tenho tempo para escrever mais. Há outras pessoas com as quais uma voz interior que precisa ser obedecida proíbe toda comunicação: são imposições amplamente justificadas e o tempo, via de regra, endossa por inteiro tais vetos. Nem sempre sei por que devo obedecer, já que a mente interior tem suas próprias razões, mas sempre o faço. Os críticos maldosos, por exemplo, só merecem a resposta do silêncio. Por este modo, não abrimos nenhum canal de comunicação com as fontes invisíveis

que os usam como instrumentos inconscientes. A maldad d ser combatida com o destemor, o que não significa que deva combatida com estupidez.

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Quando Jesus disse aos seus seguidores que fossem inofe sivos como pombas mas astutos como serpentes, Ele levava conta a existência desses poderes maléficos.

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Há os que fazem pedidos impossíveis, ante o meu tempo limitado e as minhas finitas energias. A resposta a estes é o silêncio, também. Claro que serei mal interpretado por eles por melhores pessoas que sejam, mas não posso resumir quarenta e oito horas em vinte e quatro. Recebe-se também a habitual coleção de cartas pedindo esmolas, pois o mundo (e de modo especial a í n d i a ) imagina sempre que a riqueza acompanha necessariamente a fama. Ele jamais sonha que a pobreza muitas vezes é irmã da celebridade. Outros pedem-me grátis uma coleção completa das minhas obras. Estes têm a ilusão de que um autor viaja com estoque de livros na mala e ignoram que ele próprio tem de pagar pelos livros que presenteia. Não há nada grátis no universo. No entanto, se alguns tomam o autor pelo editor, julgam ser ele uma agência de empregos!

outros

E , finalmente, por escrevermos sobre assuntos que durante muito tempo foram exclusividade dos desequilibrados e, por essa razão, foram motivo de escárnio e só agora começam a ser encarados com o devido respeito, numerosos maníacos nos perseguem, julgando haver encontrado um colega! Apesar de tudo, recuso-me a apear da minha posição de indivíduo dotado de bom senso e esclarecido realismo.

* À noite, contudo, entro em outra espécie de correspondência. Esta funciona sem caneta e sem máquina, mas é infinitamente mais agradável para mim. Pois existem uns poucos que ofereceram devoção e lealdade sem que isso lhes fosse pedido e cuja oferta é provada e redimida. Intitulam-se eles meus discípulos, mas não quero discípulos. O E u Superior dentro de nós é capaz de nos dar todos os ensinamentos e toda a ajuda de que necessitamos — desde que o abordemos convenientemente. N a ^ dade, nenhum outro mestre senão essa luz interior é necessário, r

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mas o mundo dos aspirantes é demasiado fraco para alcançar esta verdade e precisa sempre de alguém que já foi um pouco além a fim de orientá-lo. Que eles se apoiem em mim, se assim o desejarem, desde que não exagerem e percam sua viril capacidade de autoconfiança espiritual, que tanto é um direito natural quanto é o destino de cada um. E m última análise as palavras do sábio Marco Aurélio permanecem verdadeiras: — O homem tem de ficar de pé e não ser mantido de pé pelos outros. Mas a lei universal que faz recair sobre nós tudo aquilo que fazemos a outrem é mais inapelável em relação àqueles que acreditam nela. Se eu adquirisse um dia uma fortuna espiritual, esses amigos também ficariam mais ricos. É impossível expressar a gratidão formal em palavras formais diante da devoção, o mais raro de todos os dons. Esta transforma a selva que é para mim a vida social, pois dentro dela sinto-me deslocado e órfão, num florescente e ameno roseiral. Aqueles poucos que deram uma devoção provada têm de ser recompensados. Não lhes posso dar dinheiro nem cargos, mas posso-lhes dar o que tenho de melhor — eu próprio. Seus rostos passam diante de mim à hora do crepúsculo, como uma longa galeria de retratos, estando eu no meu refúgio e enquanto um corvo no céu bate pesadamente as asas em demanda da sua pousada. Tudo aquilo que encontrei nestes indefiníveis reinos de espiritualidade partilho com eles. Se entro em paz profunda, não é apenas por mim mas por eles também; se descubro a benevolência íntima da Natureza, minha feliz disposição adeja silenciosamente até eles. Quando a exótica pulsação do silêncio sagrado me empolga com a sua sublimidade, telegrafo-a, transmito-a como que por telepatia, para essas almas fiéis. Talvez nem sempre elas tenham consciência do que está sendo feito por elas, porque as pesadas barreiras da insensibilidade não são fáceis de remover, mas de várias maneiras e em ocasiões diversas a mensagem é, em última instância, recebida. Por vezes os beneficiários não se dão conta de nada, até que a tristeza surge para afligi-los e atrapalhá-los: então a força, a sabedoria e o consolo apossam-se do ser aflito e lhe permiu suportar aquilo que de outra forma seria insuportável. Por vezes uma inesperada onda de serenidade visita endereços situ.uU > numa rua populosa, um escritório de muitas ocupações ou uma barulhenta fábrica. Aí também a atividade diurna nio terá «do

em vão. Mas, de uma forma ou de outra, um pensamento f tem forçosamente de chegar ao seu destino. ° O mundo exterior rira destas ideias tolas. 1

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que construímos um vinculo espiritual atetuoso e sincero o í desafia o espaço e suporta todas as provações, não tomaremos conhecimento dos risos. Pois se trata de um vínculo que não depende das aparências do status social nem dos acessórios das propriedades mundanas, e, por essa razão, destina-se à imortalidade.

CAPITULO

VII

Reflexões Acerca do Futuro do Tibete — As Experiências de Sir Francis Younghusband — O Destino do Oriente e do Ocidente começo de manhã o céu está de um azul divino, tão claro como o céu da Itália e delicadamente prateado por tiras regulares de nuvens matizadas de giz. É um desses dias límpidos em que se vê o maciço Himalaia em seu esplendor máximo. Todos os detalhes da deslumbrante paisagem se iluminam pela ação dos primeiros raios solares do dia, enquanto a luz intensa transforma as grandes geleiras em gigantescos prismas que as refletem em calidoscópica confusão de cores. NESTE

De leste a oeste a vista passeia por um formidável horizonte de picos recortados e campos de neve ondulados, um quadro de pureza e grandiosidade suficiente para satisfazer ao gosto estético mais exigente. Na verdade, a austera pureza das neves rechaçaria qualquer forasteiro que trouxesse consigo um resquício de mundo. As fendas de um cinza-metálico que cortam as geleiras e as negras ilhas de pedras que despontam da neve fornecem o contraste necessário e o céu constitui um pano de fundo azul perfeito para todo o cenário iridiscente. Lembro-me, pelo contraste que oferecem, dos verdes arrozais da índia meridional que tão bem conheço, dos pitorescos coqueirais, das planícies poeirentas. Mal posso olhar pela minha porta dos fundos sem sentir um extático soerguimento, uma requintada animação. Estes cumes piramidais que de forma tão majestosa se projetam sobre a longa e alva cordilheira fariam do mais empedernido admirador de cidades um orador da Natureza. Tão grandes, tão numerosos e tão resplandescentes são. A aurora, com seus tons pálidos* e

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podem o) ocaso com seus tons rubros, criam quadros q ser V/istos um milhar de vezes sem qualquer impressão dee m monotonia. Por que estas encostas rebrilhantes do Himalaia amiúde varridas por nevascas e castigadas por avalanchas? Suas faces possuem uma beleza perfeita. São a produção mais requir? tada do Grande Arquiteto e do Mestre de Obras. U e

E , no entanto, com o zelo estas cordilheiras gigantéias de gelo cinzento e neve defendem o escuro e árido planalto que fica atrás da imensa grandiosidade da sua perspectiva! A cinco mil pés de altura fica o telhado do mundo. O Tibete há séculos encontra-se seguramente protegido pela barreira inexpugnável do Himalaia. Parece que a Natureza deliberadamente construiu estes agrupamentos de frígidos gigantes para cingir e defender o país. Com boas razões este se mantém alheio ao resto do mundo. Mas durante quanto tempo ainda conseguirá sustentar esta sua desconfiada segregação? A ciência aplicada e a técnica podem conquistar até mesmo o grande Himalaia. U m avião construído com engenho já contornou e sobrevoou o Monte Everest — pico mais alto do mundo. O adido consular Sir Erich Teichman, em seu épico voo de Kashgar até o quartel-general do governo em Delhi, na Ásia central, mostrou o que o homem do século vinte é capaz de fazer para cruzar até mesmo o Himalaia ocidental em coisa de dois dias apenas. Quando visitei Hardwar, a velha cidade na boca da garganta através da qual o Ganges entra nas planícies depois de cortar pelas montanhas, tive uma tremenda surpresa. Existe um caminho de Hardwar até o Himalaia, chegando até os famosos santuários de Kedarnath e Badrinath. Esses lugares estão tão intimamente ligados com a religião hindu que todos os anos centenas de peregrinos dirigem-se a pé para lá ou, quando são ricos, utilizando toscos palanquins. Mas este ano deparei com uma outra forma de viajar oferecida a essas piedosas criaturas. Alguns industriosos engenheiros hindus formaram uma pequena companhia e inauguraram uma linha de transporte aéreo, que já estava em funcionamento. Os peregrinos mais abastados tinham à sua disposição um pequeno e elegante monoplano que cobria a distância de Hardwar ao ponto de aterrissagem mais próximo em apenas uma hora. A partir desses pontos o peregrino tinha pela frente uma viagem de quatro dias em lombo de pónei até chegar a Kedarnath ou uma viagem de sete dias S4

até Badrinath. No entanto, os mais pobres, que eram obrigados a usar as trilhas nas montanhas, gastavam, via de regra, de três a quatro semanas para cobrir a mesma distância. Se os aviões já roncam no coração do Himalaia, transportando os fiéis aos seus sítios de devoção, a barreira ártica não poderá manter-se inexpugnável por muito mais tempo. Talvez eu ainda possa dar um pulo ao Monte Kailas e pregar um susto nos monges budistas de um dos cinco mosteiros que lá existem, com um inesperado pedido de hospedagem. Posta em perigo pela gasolina e mais o cérebro humano, a longa segurança do Tibete talvez se esboroe. Seus redutos gelados e sobranceiros baluartes não permanecerão intatos até o fim deste século. A chegada do avião pode e deve trazer o ruído das hélices até os seus planaltos e até as próprias janelas do Potala, o grande palácio de Lhasa. A escalada do Everest, o voo de Teichman e o avião dos peregrinos são apenas arautos do que está por vir. Até mesmo a conquista da Etiópia é um augúrio. Sua segregação era tão antiga como a do Tibete, embora menos drástica. Mas perto de três mil anos de isolamento e liberdade se perderam, acabaram em sete meses. Não fosse o avião, os italianos precisariam de sete anos para conquistar aqueles sombrios desertos e rochosas montanhas avermelhadas que escoram os chapadões. Por que esses estreitos e orgulhosos tártaros do Tibete insistem em manter fechadas suas fronteiras? Por que reforçam o majestoso isolamento propiciado pela Natureza com uma determinação inflexível? Por que se agarram a essa desconfiança exagerada com a mesma tenacidade com que as neves se agarram às cordilheiras que velam pelo seu país? As razões são de dois tipos — religiosas e materiais. Os governantes do Tibete são religiosos. Os lamas são poderosos. Eles nomeiam o soberano — O Dalai Lama — e compõem o Conselho de Ministros. Eles mantêm sob seu domínio material e espiritual a massa do povo. Eles sabem que a chegada de estrangeiros será tatal ao seu domínio. Encaram o forasteiro como um agente do materialismo ou então como um agente de outra religião — coisas que oio são bem vistas pela sua fé e, consequentemente, representam perigo para a sua posição. Eles devotam amargo desprezo ao propalado materialismo do estrangeiro e não hesitam em usai o epíteto "bárbaro com

relação ao intruso ocidental, que tão pouco sabe acerca rW ^- . rios psíquicos e religiosos cujos segredos estão escritos nas b guardadas bibliotecas dos grandes mosteiros. Mais vital ainda, .nestes dias pragmáticos, é o e

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conhecido de que provavelmente existe tanto ouro dentro d fronteiras do Tibete quanto em qualquer outro país do globo* Talvez haja até muito mais, pois nenhum geólogo profissional obteve permissão até esta data para proceder a um levantamento das riquezas virgens do país. A t é mesmo as minas de ouro que vêm sendo trabalhadas atualmente, sob a vigilância de soldados ficam numa região proibida e inacessível e estão sendo trabalhadas da forma mais rudimentar possível. Métodos usados há dois mil e quinhentos anos pelos demais países continuam sendo empregados pelos modernos tibetanos. A mineração mal faz jus a esse nome. Ninguém sabe ao certo o tamanho dos tesouros pertencentes às lamaserias nem a extensão dos filões de ouro ainda não minerados nas montanhas. Há mais de um templo com telhado de puro ouro. Os caras brancas tentarão roubar o ouro do solo tibetano? A tradicional cobiça ocidental se contentará em ficar de fora para sempre?

Muito mais poderosas que os lamas são as forças que hoje em dia tendem a aproximar o Leste do Oeste e fazer com que o antigo e o novo se misturem. O Tibete não será capaz de resistir à chegada dos caras brancas, seja ela para o bem ou para o mal. Suas cabeças, relutantes, já se viram obrigadas a baixas um pouco em seu teimoso conservantismo, aceitando algumas das invenções dos brancos. Neste momento o governo está montando uma estação de rádio a fim de transmitir mais rapidamente suas ordens aos governantes de certas cidades provincianas. Luzes elétricas brilham no palácio de Potala. E uma linha telegráfica liga a capital a Darjeeling, na índia. Quando o funcionário tibetano intercedeu em favor da minha expedição ao Monte Kailas, não fui obrigado a permanecer três semanas em Nova Delhi enquanto um mensageiro em lombo de iaque atravessava os altos passos e um cavaleiro percorria nos dois sentidos o planalto do Tibete meridional com mensagens. Não, graças à linha telegráfica para Darjeeling pude receber a decisão final dentro de poucos dias. 86

Pertence à linha de evolução de nossos dias que o Leste e o Oeste terão de encontrar-se, quando não casar-se. Embora eu veja com simpatia os desejos de evitar proximidade com os povos orientais que, no passado, muito naturalmente temiam o imperialismo do branco, o calendário avançou e hoje tais desejos são antiquados. O mundo todo está sendo unificado pelos transportes, comunicações, comércio e cultura. Não estou entre aqueles que tolamente afirmam que os povos ocidentais não trazem consigo para o Oriente senão o materialismo, senão coisas más. Pelo contrário, trazem coisas boas e más. E encontram tanto coisas boas quanto coisas más. A santidade não é prerrogativa do Oriente. Este, proclamo-o com toda a convicção, precisa de um reavivamento espiritual tanto quanto o Ocidente. Ambos os hemisférios estão em má situação espiritual. Uma vez que vivemos num mundo material, pois possuímos um corpo material, é acertado e sensato aproveitar ao máximo esse mundo, fazer uso de todas as comodidades, confortos e invenções que o cérebro humano seja capaz de engendrar. Por isso, o encontro do Ocidente progressista com o Oriente conservador tem de despertar este último para a exploração e o desenvolvimento, em maior escala, dos recursos naturais. Tal coisa virá beneficiar o Oriente e não prejudicá-lo. Também o Ocidente se beneficiará. A primeira e óbvia vantagem é puramente material. A segunda, e mais remota, é puramente cultural. Mas é preciso que esses encontros de povos diferentes sejam feitos com amizade. Os métodos da Espanha medieval, abrindo a América Central e rapinando todo o seu ouro não serão bem aceitos hoje em dia. Leste e Oeste devem encontrar-se em boa camaradagem. Que suas ideias sejam trocadas e que as melhorias materiais resultem de uma cooperação mútua e não de projéteis ou bombas! Estas derradeiras palavras recordam-me uma significativa passagem que Sir Francis Younghusband contou-me faz alguns anos. Há mais de trinta anos foi ele colocado à testa de uma pequena expedição militar britânica que foi mandada através das espaldas geladas do Himalaia até o Tibete, negociar um tratado político e comercial com o governo do Dalai Lama. O principal objetivo da missão do exército era modificar a atitude hostil do país e forçar os tibetanos a adotar um ponto de *7

vista mais razoável com relação ao comércio da índia. modo o isolamento do Tibete começaria a diminuir.

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Sir Francis deu aos tibetanos todas as oportunidades de chegar a um acordo pacífico, mas eles se mostraram obstinados. Um exército recrutado às pressas barrou-lhe a passagem na desolada estrada para Lhasa. O exército contrário dispunha apenas de velhos arcabuzes de mecha, arcos e flechas e espadas. O chefe britânico sabia o quanto era infantil aquela pretensão d enfrentar seus homens armados de modernos rifles, metralhadoras e artilharia de montanha. Pediu por isso aos comandantes tibetanos, um bom número de vezes, que não lhe resistissem para não serem massacrados, pois a ele interessava apenas a assinatura de um tratado; e a seguir evacuaria prontamente o Tibete, voltando para a índia. e

Porém, apesar da sua corporação mal armada e pouco disciplinada, os tibetanos não cederam e trataram o inimigo com desprezo, até por fim atacá-lo. O então Coronel Younghusband foi obrigado a dar ordem de fogo, com o resultado que as balas da sua artilharia despejaram-se sobre as fileiras tibetanas, enquanto seus rápidos rifles repetidamente atiravam contra o inimigo, o qual precisava de alguns minutos para recarregar um por um seus mosquetões, com a pederneira frequentemente negando fogo. O inevitável aconteceu. Centenas de soldados tibetanos foram postos fora de combate em pouco tempo e os restantes debandaram na mais completa desordem. O caminho para Lhasa estava aberto.

ninguém pode dar-se ao luxo de continuar a acreditar em notórias inverdades. A chegada das raças brancas ao Leste é como um vento forte e saudável que soprará para longe repugnantes teias de crenças anacrónicas e costumes bárbaros. Pois os brancos trarão sanidade, bom senso e ceticismo. Na vida também há necessidade de tais coisas. A civilização quase destruiu nossa fé no sobrenatural. Não se pense, porém, que a superstição dos tibetanos não passa de rematada tolice. Não é. Onde há fumaça há fogo. A verdade perdura entre as distorções em que a encontramos envolvida. Os lamas não podem conter as leis da Natureza mas podem tirar partido de leis que para nós são desconhecidas e para eles são conhecidas de longa data. Existem lá homens portadores de poderes mágicos genuínos, mas não nos mosteiros. Tais homens fazem pouco dos monges comuns e isolam-se em locais afastados, no alto das montanhas. Claro que são muito pouco numerosos. Não lhes interessa em absoluto impressionar as massas com exibições de seus dons sobrenaturais. Mas os gabolas e embusteiros, aqueles dentre os lamas ortodoxos que são crédulos e cegos, tanto quanto na índia, adquirem e conservam uma falsa reputação de milagreiros, a qual cairia por terra diante de qualquer investigação de cunho científico. Já encontrei mais de um embusteiro na índia e na Africa que me ofereceu amuletos capazes de fechar-me o corpo à ação das balas! W. ^ . , , '. % :

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O interessante nesta história é que a verdadeira razão da resistência do exército tibetano a um inimigo superiormente armado fundamentava-se na superstição. Os soldados haviam confiado na magia de seus melhores feiticeiros e dos seus mais famosos padres. Havia-lhes sido dito que, com a ajuda de amuletos e talismãs especialmente preparados e fartamente distribuídos pelos acampamentos, eles ficariam invulneráveis aos tiros do inimigo. E era tal a sua fé cega e a sua superstição que esses pobres diabos atacaram o exército inglês com total confiança de que nenhuma bala britânica seria capaz de penetrar em seus corpos! Mas as leis da Natureza não cedem, nem diante de um lama!

Não obstante, não apenas há alguns resquícios de verdade por trás das alegações dos tibetanos (e hindus) de que existem poderes e forças psíquicas impossíveis de explicar por outra forma, como também há algo por trás da tradição de alta sabedoria espiritual no sombrio planalto. Acredito, em razão das minhas muitas pesquisas, que o Monte Kailas e suas vizinhas, incluindo-se o Lago Manasrowar, possuem uma atmosfera magnética de intensa vibração espiritual, assim como o Monte Arunachala, no sul da índia. Estou certo de que qualquer pessoa verdadeiramente sensível notaria seus pensamentos serem automaticamente captados e reverenciados, pelo menos, quando se aproximasse desst montanha, que é o centro espiritual da Ásia e o orgulho espiritual do Tibete.

O episódio ilustra a habitual mistura de superstição ridícula e sabedoria profunda encontrada nas raças orientais. Porém,

Quando o exército inglês sob o comando do Coronel Younghusband conseguiu chegar até Lhasa e o tratado que moti-

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vou a pequena guerra foi afinal conseguido, uma coisa curiosa sucedeu ao seu chefe. Contou-me ele que no dia seguinte ao acontecimento, obedecendo a uma imperiosa necessidade, subiu sozinho a íngreme e rochosa colina sob a qual se estende a cidade de Lhasa. Depois de caminhar durante algum tempo sentou-se num matacão para descansar. E m pouco tempo aconteceu-lhe a mais surpreendente experiência espiritual da sua vida. Todo o seu ser foi transportado a uma espécie de êxtase místico. Uma serenidade absoluta tomou conta de sua alma. A experiência nada teve de pessoal, pois todos seus desejos reduziram-se a nada diante da paz impessoal e maravilhosa que o tinha envolvido.

Seria também conveniente que se deixasse de lado mesquinhos temores políticos e construísse uma estrada de rodagem através de um vale de Sikkim e às margens de um rio, a melhor via natural de comércio entre a índia e o Tibete, poupando assim a homens e animais uma terrível viagem por entre os altos passos nevados* ^ á< Manter os homens sempre imersos nas doutrinas e nos feitos de séculos anteriores a Cristo não é coisa totalmente sadia. Se os tibetanos fossem mais sábios, permitiriam que seus jovens lamas de maior talento absorvessem aquilo que o conhecimento ocidental tem de mais útil, particularmente a parte científica, insistindo sempre em apegar-se às verdades essenciais da sabedoria budista. Ambas as coisas podem facilmente se complementar, embora não o possam através de espíritos ortodoxos de visão acanhada. E enquanto conservando sua independência e soberana autoridade sobre o seu próprio país, deveriam incluir um pouco de bom senso e prudente discriminação em suas leis proibindo a entrada de estrangeiros. Na verdade, se lhes fosse possível conseguir estrangeiros da melhor estirpe ou portadores de capacidade especializada e conhecimentos técnicos que entrassem no seu gélido e desinteressante país, cujos vales apenas são mais altos que os mais altos picos dos Alpes Suíços e cujas planícies sombrias não têm abrigos nem árvores e são dia e noite varridas por tempestuosos ventos gelados, esses estrangeiros deveriam ser recebidos de braços abertos e não repelidos. Que os desordeiros indesejáveis, os enfatuados portadores de complexos de superioridade e os exploradores inescrupulosos fossem mantidos longe por todas as formas, mas deixe-se o país ser aberto aos europeus úteis e bem intencionados.

Ele desceu da colina com um acontecimento memorável gravado para sempre em sua mente. O Tibete dera-lhe mais do que uma simples conquista militar; dera-lhe iluminação espiritual. Quem ou o quê, naquela extensão coberta de neve, era responsável pela dádiva?

Mas preciso voltar ao meu tema. O contato, sob todas as formas, entre Ocidente e Oriente é inevitável. O Tibete não pode fechar suas altas fronteiras contra o influxo de ideias ocidentais. Mas foi preciso esperar até o século vinte para descobrir e revelar esta verdade. O último dos países proibidos não poderá sustentar-se por muito mais tempo. Seu receio ao imperialismo ocidental não tem sentido nos dias que correm, embora pudesse ter fundamento há cinquenta anos. Das três grandes potências cujos domínios ficam mais próximos do Tibete, a Inglaterra já não é um país anexionista, mas cuida agora, sabiamente, de fazer suas conquistas através do comércio; a Rússia tem uma extensão territorial suficiente para satisfazê-la e cuida, antes de mais nada, de edificar sua própria economia e estrutura industrial; a China é um império em estado de triste desintegração. E , se os lamas temem a sede de ouro dos ocidentais, melhor seria para eles negociar algumas concessões de seus campos auríferos com empresas europeias, que têm à sua disposição engenheiros capazes, equipamento científico atualizado e modernos meios de comunicação. Dessa maneira o governo tiraria maior proveito das minas e a futura propriedade das mesmas estaria mais bem resguardada. 90

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Porque acredito firmemente nas verdades básicas ensinadas por Buda, e, consequentemente, simpatizo com qualquer povo budista, estou sempre a sugerir a viabilidade de adaptar-se voluntariamente aos conhecimentos e modos de agir modernos. Assim fazendo, os orientais poderão pfeservar sua antiga sabedoria, progredindo concomitantemente com o progressista século vinte. Não que eu padeça da vaidade da época e entenda que a substituição do século vinte pelo século dezessete seja necessariamente a substituição de uma forma de civilização mais elevada por uma menos elevada; é porque, embora façamos uso inconsciente das invenções científicas, as invenções propriamente ditas nem por isso devem ser desprezadas.

Mas, infelizmente, hoje em dia os verdadeiros seguidores de Buda estão-se tornando tão raros em seus próprios países como os verdadeiros seguidores de Cristo nos países cristãos. Esta é uma razão pela qual os deuses estão pondo por terra as barreiras que dividem povos, raças e países. O futuro é previsível. No mundo unificado que vai surgir na civilização conjunta Leste-Oeste que está nascendo, o caminho estará desimpedido e pronto para receber o elevado despertar espiritual universal que ainda está por vir. Não existe credo que não esteja padecendo de uma extrema necessidade de um novo impulso de vida divina. Este virá porque tem de vir. Um calvo e imperturbável monge budista falou-me certa vez de uma profecia corrente no Tibete e conhecida dos lamas, a qual se ajusta curiosamente à atual situação. Disse-me ele que a previsão, feita há dois ou três séculos, refere-se ao Dalai Lama (ou Grande Lama), a um só tempo rei e Papa do Tibete. Previu-se que o décimo terceiro Dalai Lama seria o último da sua linhagem e que algum tempo depois da sua morte o Tibete seria invadido por "bárbaros" de cor branca cuja civilização "materialista" penetraria no país dali por diante. Segundo a velha crença, o rei seguinte será uma reencarnação do seu espírito. É dever do Grande Conselho de Lamas, reunido em Lhasa, encontrar a criança na qual o espírito do falecido Monge Governador está reencarnado. Sua teoria não é a reencarnação, como de hábito é entendida, mas uma emanação de um místico Ser celeste, quase aparentado com Buda, que entra na criança recém-nascida destinada a ser o futuro Grande Lama. Por essa razão um dos títulos deste último é O Onisciente, já que se presume possuir ele a sabedoria divina. O Grande Conselho consulta sempre o Oráculo do Estado quando precisa de orientação na procura da criança. Depois de encontrar algumas do sexo masculino, portadoras de certos sinais tradicionais, ordena que os nomes destas crianças sejam inscritos em pequenas placas de ouro, que são encerradas numa urna; o nome escolhido por sorte será o eleito. Encontrado o menino, tem este de ser educado e preparado para as suas altas funções. Isto significa que de quinze a vinte anos passarão antes que a criança alcance a maturidade e principie realmente a governar. A t é lá o país é dirigido por um Conselho de Regentes. 92

Não recordo o nome desse profeta nativo que vaticinou o desaparecimento dos Grandes Lamas e a entrada dos brancos no Tibete. Creio, no entanto, que parte da predição será cumprida e que esse país heomético será um dia invadido e sofrerá o impacto e a inevitável influências das forças da nova era, quaisquer que sejam estas.

Mas a verdade é que a Natureza nos conserva sob seu domínio: não há, em última instância, como fugir. Num dia determinado seremos todos chamados, com uma autoridade que não admite réplica, à nossa verdadeira morada.

CAPÍTULO

VIII

Uma Missivista Decreta Minha Retirada do Mundo — As Virtudes da Ociosidade e da Solidão — O Novo Testamento — Jesus e seus Críticos

e meia passaram-se silenciosamente desde que anotei no meu diário o último destes parágrafos, que me saem da pena de forma tão desordenada. Afinal de contas, não vim a estas florestas primitivas e a estes cumes nevados para escrever, mas para descansar. Se quiser permanecer fiel à tarefa que me impus, ficar quieto continuará sendo meu principal objetivo. Se eu tomo da pena em determinados dias ou dedilho as teclas polidas da minha máquina portátil em outros, ou ainda não faço uma coisa nem outra durante semanas inteiras, isto não é coisa que faça diferença para mim neste lugar, como poderia acontecer caso eu ainda estivesse na Europa. A solene insignificância da existência mundana desapareceu sob estas árvores. TRÊS SEMANAS

Sinto que o trabalho é uma coisa excelente e, na verdade, uma necessidade, se é que devemos justificar nossa existência, mas sinto também que sempre há uma época em que aprender a ser não é menos excelente nem menos necessário, se é que desejamos obedecer à lei suprema da vida. Pois tive uma visão da meta derradeira. V i o caminho maravilhoso que se alonga até o cimo diante de todos os homens, o caminho que conduz ao reino do céu acerca do qual Jesus falava e ao lugar do Nirvana descrito por Buda. Talvez resistamos à chegada desse caminho durante milhares de anos, se assim o desejarmos, porque entre todas as atribulações e exaltações do viver cotidiano preferimos as delícias da existência sensorial material. Talvez nos ressintamos da intrusão daqueles profetas que alardeiam o seu evangelho, pois eles atiram o gelo da dúvida sobre^as convicções ortodoxas que nos enchem de ilusões.

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Seja-me permitido, então, não desperdiçar todos os meus dias numa insensata devoção ao trabalho incessante. Ganhei o direito de fazer uma breve pausa nesta existência da labuta constante e estudos que não se acabam. Queimei mais as pestanas GO que a maioria dos homens e, muitas vezes, acordei com a fria aurora, encontrando minha cabeça calva enterrada num enxame de papéis sobre a mesa. Houve época em que eu me orgulhava de trabalhar como um forçado e devorar o trabalho com o mesmo apetite com que um cão se atira sobre o seu osso; hoje em dia recuso as tarefas remuneradas que a todo instante me são oferecidas. Não que encare minha existência solitária cá no sul como a única espécie de vida digna de ser vivida; pelo contrário, acredito no ritmo, na retirada apenas quando a esta se seguir a atividade, na solidão somente quando seguida da sociedade, no desenvolvimento autocentralizado apenas quando o serviço social for o seu complemento necessário, na espiritualidade apenas quando em harmónico equilíbrio com a materialidade. Devemos obedecer à ordem de Cristo, dando a César o que é de César, sem contudo desleixar das coisas de Deus. Tudo aquilo que constitui o que há de melhor na vida material e que todo mundo ambiciona — propriedades, casa, posição, casamento, automóveis, mobílias e boas roupas — é na verdade, desejável, mas é preciso que não nos esqueçamos do nosso destino primordial quando empenhados na procura de tais coisas. Por isso, o retiro espiritual não passa de uma episódio em minha vida; não é, em absoluto, um objetivo último, mas apenas um oásis à margem do caminho. Não estou na índia nem como turista nem como residente, mas como um peregrino que tanto poderá fixar-se por alguns anos quanto tomar um avião de volta e ir embora de um momento para outro. E m suma, não tenho residência fixa, seja na cidade seja no sertão. Busco manter minha mente tranquila e minha vida ordenada. Nos dias que correm transformei-me num ocioso, inútil à sociedade e a mim próprio, num faz-nada que se limita a permanecer imóvel e esforçar-se para repelir as ondas de pensamento que de contínuo o assaltam. E m resumo, não tenho um statu

definido nem um lugar próprio no mundo homem respeitável.

Deixei de ser um

E que importa isso?

Num livro de bolso, de capa preta, que acaba de enviar-me uma amiga de Bombaim li ao acaso esta frase que, para mim, encerra uma ideia sensata e reconfortante: "De que vale o homem ganhar o mundo inteiro e perder a própria alma? Que deve dar o homem em troca de sua alma?" O livro a que me refiro traz na capa estas palavras: Testamento.

Novo

Trata-se apenas de uma forma de dizer que avaliar um homem por sua riqueza ou por aquilo que ele trabalha é vulgar. Não é apenas aquilo que ele faz pelo mundo que importa, mas aquilo que faz por si próprio. Meu excerto é, no entanto, inauspicioso para a minha amiga. Ela mandou-me o livro com o desejo específico de que eu lesse uma passagem inteiramente diferente. Na página em branco, ela anotou a lápis o seguinte: Veja Atos, capítulo 26, versículo 24. Obedientemente, viro as páginas e procuro a indicada. Leio agora:

referência

" E como que falando de si para consigo, Festus ergueu a voz e disse: — Paulo, estás doido; o excesso de conhecimentos te põe fora de ti." Minha correspondente parece não aprovar minhas atividades (ou seria melhor dizer inatividades)! Sei, por uma carta anterior, que ela julga dever eu instalar-me numa grande cidade como Bombaim, durante minha permanência na índia, e tornar-me respeitável, isto é, entrar em contato com as classes média e alta, receber e ser recebido, cuidar de alguma ambição ativa, escolher algum tipo de local, nele permanecer e, finalmente, fazer tudo quanto fazem as pessoas convencionais. Acha, por conseguinte, a missivista, que seria mais sensato que eu me transformasse num ser hurpano rodopiante movendo-se à assim chamada melodia de jazz numa cidade superpovoada. Evidentemente, ela acha melhor ter uma vista sobre um mar de chaminés, estando-se na Europa, ou uma vista sobre um mar de

telhados planos, estando-se na índia, do que descansar o olhar sobre picos gelados e pináculos rebrilhantes como o faço da minha atual morada. Acredita ela que me isolei da realidade. Se a realidade consiste no estuante calderão que é uma cidade grande, e nos temores, ódios e cobiças que ali fervem, há coisa pior do que fincar os pés neste solo himalaio sem mácula, passar os dias com pacífica alegria e recusar-se a voltar para o mundo. Felizmente, porém, não tenho receio e voltarei para a vida sem objetivo do mundo. Executei apenas uma retirada estratégica do mundo, não o abandonei por inteiro. Não que aos olhos mundanos da minha amiga não exista um tipo mais divino de vida — longe disso — mas ela gosta de encarar o bem-estar social como uma coisa santificada e apartada das demais. Minha missivista poderia, está claro, denunciar minha quietude como mera ociosidade, mas creio que ela tem alguma compreensão do que acontece. Suplico-lhe que se lembre de que o valor dado por europeus e americanos ao trabalho advém de necessidades climáticas, da mesma forma pela qual o valor atribuído pelos orientais à indolência decorre do clima quente em que vivem. Olhe-se qualquer vivaz representante do Ocidente que tenha vivido vinte anos na índia. A mudança é espantosa. O antigo apóstolo do trabalho converte-se em praticante da indolência. A atmosfera o absorve, o clima o domina malgrado seus músculos fortes. Mas os ocidentais transformaram o excesso de energia num fetiche a ser venerado; nós fizemos da operosidade um pequeno deus. Sempre que visito o Oeste sou obrigado a munir-me de um diário alentado, com o maior número possível de páginas, pois ali, de hora em hora, surge a pergunta: — Que tenho de fazer agora? — ou — Quem tenho de encontrar agora? — É impossível colocar uma cadeira junto da lareira e gozar de um hora de lazer. Afinal de contas, alguns dentre nós somos como o pescador bíblico que labutou a noite inteira sem nada conseguir. Tentamos juntar um pouco de dinheiro, mas acontece que concomitantemente juntamos preocupações. Tudo tem seu preço, é verdade mas poucas coisas têm valor; ainda temos de aprender a torma mais elevada de prudência. A t é Shakespeare está comigo. Não foi outro quem escreveu;

"Nada convém mais ao homem Do que uma moderada quietude."

E u gostaria de apor um gigantesco ponto de exclamação essas palavras, pois o apoio do príncipe dos poetas ingleses talentoso mestre da língua é verdadeiramente valioso. A ideia é inebriante, mas não ouso bulir com suas palavras. Claro que um crítico exigente poderia enfurecer-se e assinalar que eu chegara a essa citação plausível (e, na minha opinião, perfeita), primeiro decapitando a frase e a seguir decepando-lhe os pés. Mas eu contestaria que a verdadeira arte de citar é retirar algumas palavras do contexto e deixar de lado o resto. Que fiz eu senão isso? a

e

Temo, porém, que o crítico se afastasse agastado, frenético de raiva, diante das minhas heresias: shakespearianas, espirituais ou de qualquer outro tipo. E u poderia também lembrar à minha missivista uma passagem do livro que ela tanto respeita: "Olhai os lírios do campo; eles não mourejam nem rodopiam." O resultado das minhas considerações é esta incursão no Himalaia! Mas a minha amiga irá intimar-me a descer destas nuvens metafísicas e cair na realidade que nos cerca. Para dizer a verdade, renunciei a pouca coisa ao fugir para o meu refúgio. Não desgosto dos prazeres sociais, mas posso muito bem passar sem eles. Não tenho medo de sentar-me no flanco de uma montanha e contemplar o cenário abaixo. Devemos render adoração aos pés da deusa da sabedoria na mais completa solidão, se é que desejamos conquistá-la. Embora sempre me tenha sido agradável tomar chá no Florian de Veneza ou olhar a multidão dos passantes num café parisiense, tais lugares não são necessários à minha existência. A Natureza, no entanto, é. Posso afastar-me dela durante algum tempo, mas sempre volto, à maneira do marido que prevarica mas não deixa de amar sua esposa. Não posso tampouco resistir à tentação de fazer uma derradeira citação que não me sai da lembrança: "Alguém deveria ensinar que, embora na opinião da sociedade, a contemplação seja o mais grave dos pecados que se pode imputar a um cidadão, na opinião da cultura mais elevada é a ocupação mais apropriada para o homem." Adoto alegremente a sugestão de Oscar Wilde e me arrogo o papel de professor! 98

O artista que ou o músico que marcada pelo génio chaves até terminar

deseja compor uma tela realmente inspirada aspira criar uma sinfonia verdadeiramente tem de afastar-se de tudo ou fechar-se a sete seu trabalho.

Numa tal ocasião o artista criativo que deseja ser algo mais do que uma simples mediocridade em sua profissão corre perigo, se permitir que o mundo venha em sua procura ou se for, ele próprio, em procura do mundo. Ele tem de respeitar a santidade do seu próprio ego tanto quanto a de qualquer templo religioso. A solidão resguarda e fomenta os esforços do seu génio; a sociedade porém os destrói. O génio, na verdade, precisa de operar em meio a um completo isolamento espiritual, artístico e físico. O génio tem de ser seletivo e não tomar mais ao mundo do que aquilo que é necessário aos seus objetivos primordiais. As pessoas que levam vidas comuns poderão rir-se dele mas não serão capazes de produzir alguma coisa extraordinária. Da mesma forma, quando um homem deseja fazer um esforço supremo no sentido da espiritualização, é preciso que ele se afaste de tudo e se feche em alguma parte. Não será eíe também um artista, embora sua arte seja intangível e mesmo infalível em seus resultados? Da mesma forma, igualmente, se o meu próprio sonho chama-me para o Himalaia e me pede que fique quieto, sem I dúvida tal coisa deverá ter sua utilidade para a vida. Ser-me-á J lícito supor que outras pessoas entendam mais dos meus assuntos \do que o meu Mestre e o meu E u Superior? Não, cara senhora, prefiro ser fiel a mim mesmo e não tentar mistificar os demais. Tanto a senhora quanto eu, não nos devemos curvar ao respeito humano mas, ao invés, obedecer à lei primeira dos nossos seres. Não é preciso que tenhamos medo. Nada iremos perder; absolutamente nada. As leis divinas cuidarão de nós, se confiarmo> nelas, e todos os prejuízos aparentes serão apenas temporários e reparados em dobro. Confiemos na justeza matemática da Justiça invisível; esta não nos trairá. >

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Resta, por fim, uma razão mais forte para a minha atitude. 1 Há alguns anos, estando eu mergulhado em transe iogue, meditando profundamente, recebi uma mensagem, talvez mesmo uma missão, mas, de qualquer forma, uma obra a fazer. Tal mensagem 1 veio de quatro grandes seres, figuras angélicas de uma ordem particularmente interessada no bera-estar espiritual da humam dade, e vindas de um outro planeta para a esfera terrestre.

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E m obediência a essa mensagem, cujo conteúdo solicitava que eu me tornasse um andarilho neste mundo, salto de lugar em lugar ao sabor de impulsos espirituais do momento. E u não me importava então, e continuo a não me importar, com a opinião pública. Fama e celebridade são coisas que não me tocam e por isso não as desejo. Quanto ao dinheiro, preciso apenas do suficiente para viver decentemente e ocorrer às minhas despesas de viagem. Quanto ao prazer, gosto de prová-lo em pequenas doses de quando em quando. Embora eu tivesse aceitado a tarefa, repudiei o seu lado público, preferindo deixar a outrem aquela parte que implicaria em honrarias públicas. É mais próprio do meu temperamento construir em paz e segredo as bases da referida tarefa. O labor literário é para mim uma coisa secundária e, no tocante a reservas, sempre tenho a providência divina a apoiar-me. Nada mais me é necessário. A excelente senhora assinalou o parágrafo que julga pertinente ao meu caso. Tal referência, partindo de qualquer outra pessoa, pareceria ofensiva. Mas trata-se de uma amiga que está tomando liberdades de amiga. Mais ainda, como idosa viúva de um oficial do exército e conhecedora de alguns dos meus assuntos mais íntimos e pessoais, ela tem por mim um interesse maternal. Recebo, portanto, sua referência sem ofender-me; rio-me mesmo dela, pois sei que foi o afeto e não o desprezo que levou-a a sublinhar o parágrafo em tela.

É curioso, porém, como as pessoas definem diferentemente o termo "sanidade". Há poucos meses fiz uma conferência em determinada universidade hindu. Sem querer afastar-me dos assuntos que falavam mais de perto aos estudantes e não desejando, por outro lado, desperdiçar uma viagem de quatrocentos quilómetros abordando um tema que não fosse do maior interesse para mim, encontrei uma solução feliz, fixando-me no tema A Filosofia da Inspiração. Foi-me assim possível tratar da inspiração na literatura, na arte, nos negócios, nas invenções, na vida e na religião, bem como fornecer aos estudantes uma ou duas sugestões práticas relativamente à sua preparação para a vida profissional. Depois que os jornais publicaram o meu endereço, recebi a visita de uma delegação, solicitando-me que pronunciasse uma conferência na universidade estadual. Embora aquilo implicasse 100

numa viagem ainda mais longa e eu raramente fale em público, tendo o hábito de recusar sistematicamente quantos convites recebo, respondi que concordaria desde que me fosse feito um convite oficial. Mas quando os professores que me viam com bons olhos apresentaram sua ideia, na primeira reunião da congregação da universidade, o diretor do conselho usou de sua influência para que a resolução não fosse aprovada. Em consequência, o convite oficial não me foi mandado. A razão de tal negativa foi estranha. O homem que se opôs à minha presença foi um europeu, um inglês para ser exato, mas hoje em dia todos os brancos recebem na índia, por deliberação governamental, a designação de europeus. A objeção principal e única era a de que "um homem branco que mora entre os nativos e passa a maior parte do seu tempo metido com iogues deve ser louco"! Se trocar a cidade pelo campo, a atividade pela reclusão, durante determinados períodos de tempo, for indício de insanidade, então espero jamais recuperar a razão! Se procurar a verdade metafísica ou praticar a meditação mística for sinal de intelecto confuso, então rogo aos deuses que nunca me façam voltar à normalidade! Se para esse cavalheiro erudito porém pouco arejado, o esforço no sentido de encontrar e conservar a paz interior num mundo sem paz for um princípio de loucura, então dou-me por feliz porque ele me rotula de doido! Mas considero como verdadeira sanidade tentar manter uma digna integridade de alma entre tantas forças desagregadoras, entre o terror e a turbulência da existência moderna. Sem dúvida alguma, meu oponente académico frequenta uma igreja aos domingos, mas será que estaria disposto a acompanhar Cristo até o Calvário? Pergunto-me se ele terá jamais cogitado que Cristo realmente era sincero em suas manifestações. Pergunto-me se ele seria capaz de perceber que um santo sábio de nossos dias, ainda que hindu de nascimento, é mais cristão do que a maior parte da massa que não falta à missa dominical. Pergunto-me se ele seria capaz de entender que uma pele escura não é empecilho a que se entre no reino dos céus, o qual Jesus nos apresentou como a meta final, coisa que tão poucos cristãos compreendem nos tempos atuais. Se dependesse de mim, cada pregador teria de faaer um aprendizado para a vida, e não com professores, antes de pronunciar sua primeira palavra no púlpito. Ele teria de ser enviado

ainda jovem, a viver entre os pobres e desfavorecidos antes d e compor os bens cuidados e floridos períodos que constituem seu„s sermões. Teria de ir para a solidão das montanhas e florestas desertas e ali permanecer, sem livros nem amigos, lutando com a própria alma até encontrar Deus ou chegar à conclusão de que a Igreja não era a sua vocação. Teria de renunciar a todos os desejos de incutir religião nos outros até que ele próprio se imbuísse dela. Se, depois disso, seus sermões não agradassem aos ouvintes e bispos convencionais, seriam, pelo menos, verdadeiros e sinceros, palpitantes do sopro divino que deve possuir todo homem que ousa transformar-se em ministro de Deus perante outrem. Isto seria uma condição mínima exigida de todo pregador e todo padre, quer pertencesse ele à igreja de Cristo ou à irmandade de Buda, quer se dirigisse ao seu rebanho em nome de Sri Krishna ou em nome de qualquer outro profeta. Desfruto da situação privilegiada de não estar filiado a nenhuma religião ortodoxa. Quando pessoas curiosas se metem num assunto que não é da sua conta, respondo-lhes de forma desconcertante e elas cessam de fazer perguntas. Não encontrei amarras para a minha alma flutuante em nenhuma fé religiosa, em nenhuma filosofia, pois acredito no Espírito que, assim como o vento, sopra onde é ouvido. Pessoas que confessadamente seguem Jesus, mas que jamais chegaram a compreender ou acatar suas injunções mais profundas, talvez, em seu fervor farisaico, ressintam-se da intromissão de alguém não declaradamente filiado à sua ou a qualquer outra denominação. Um homem cuja visão interior interpõe barreiras entre ele e tais pessoas, bem como entre ele e qualquer outro grupo religioso, descobre, no entanto, que essa visão é para si um agente de liberação. Se ele for suficientemente forte para manter-se desvinculado de todas as religiões ortodoxas e grupos raciais que o circundam, se for suficientemente independente para não pedinchar favores nem temer carrancas, neste caso o destino e o acaso se combinaram para proporcionar-lhe uma liberação única e maravilhosa. Enquanto outros homens atiram seu ódio silencioso ou declarado uns sobre os outros, enquanto as raças se maldizem entre si, enquanto credos entram em desprezíveis conflitos por causa de quinquilharias, ele poderá contemplar a insensatez dessas pessoas briguentas em cujo meio foi colocado, como faria um observador de um planeta distante, caso viesse a encontrar-se em posição semelhante.

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Tal homem não tem contemporâneos e não precisa deles. O ortodoxo talvez não encare com simpatia tal independência, ao passo que o heterodoxo poderá desdenhar tanta "superstição"! Não importa. A verdade, serena e suprema, pode esperar pacientemente pelo seu dia de glória. Ela nada tem a perder, pois é eterna. Sua revelação terá de vir mais cedo ou mais tarde, de modo abrupto ou lento. É em razão dessa posição equidistante que conto amigos entre todas as crenças e entre os ateus, bem como inimigos em todas as facções. Vivo no meio de todos eles como um estranho, embora saiba muito bem onde fica a minha verdadeira pátria. Instituição alguma interpõe-se entre mim e os raios provenientes do Sol Oculto. O destino condenou-me a ser um intérprete da linguagem da Esfinge; a tarefa é deliciosa, desde que guarde para mim as minhas interpretações, mas torna-se desagradável tão logo me ponho a revelá-las ao cético mundo. Mas encontro um consolo secreto na ideia de que esta penosa jornada não é senão temporária e que os deuses compadecidos irão um dia reconduzir-me à minha própria estrela, cujo fulgor de prata procuro localizar no céu todas as noites com indizível nostalgia. ^ 1

A minha amiga de Bombaim, que Deus lhe tenha a alma ingénua, ao tentar reprovar minha tentativa de pesquisar assuntos que permanecem na mais densa obscuridade, prestou-me, na verdade, um grande serviço. Ela colocou-me nas mãos, eu que estava inteiramente desprovido de livros quando cheguei a estas paragens desoladas, as palavras e a vida do sábio Galileu, cujo simples nome soa de modo mágico aos meus ouvidos. Lerei estas páginas de começo a fim. Claro que não posso aceitar a versão autorizada desta obra como a mais exata nem a mais completa, porque muitas coisas dignas de nota foram recusadas pelos compiladores e muitas das coisas impressas foram mal traduzidas, ao passo que as andanças preparatórias de Jesus, entre as idades de doze e trinta anos, não figuram de forma alguma. A t é mesmo as passagens verdadeiras nem sempre são relatadas com fidelidade Não obstante, malgrado todas essas imperfeições, conservarei com estima e amor o pequeno livro negro. Precisamos lançar um olhar mais além deste símbolo superficial a que chamamos vida, minha cara senhora, e procurar descobrir o que realmente significa. Jesus sabia. Não devemos 101

confundir as contingências da .sua vida com aquilo que é fundamental. Aquele que imita o mundo com o sacrifício de sua paz interior está punindo-se a si mesmo. As palavras de Jesus não se perderam inteiramente para o mundo como as de tantos outros pregadores. Por quê? Porque Jesus nos falava das profundas regiões do E u Superior, enquanto outros recorriam apenas aos seus diminutos intelectos. Jesus falou aos seus contemporâneos mas suas palavras chegaram até a posteridade. Os outros jamais conseguiram ir além dos seus contemporâneos, ou ter mais do que uma vida efémera na gazeta diária. Foram obrigados a falar com certos cuidados: cuidados com a opinião pública e com os seus bolsos. Sua desculpa era que o homem precisa viver e pão é melhor do que qualquer auréola. Pobre gente! Não sabia que quem chega a encontrar uma auréola encontra também o pão. Se os pardais recebem de comer por que não o receberiam os homens aureolados? Deus não é tão impotente que não possa cuidar das suas criaturas. . . As palavras de Sócrates continuam em circulação porque ele deixava que o problema do pão se resolvesse por si mesmo, e assim acontecia. . . O valor das palavras de um homem depende da sua gravidade espiritual específica. Os ditos do deus-homem Jesus são os mais dignos de serem repetidos que eu conheço. O mundo dos críticos e teólogos poderá tergiversar acerca do seu significado, como vem fazendo há mil e novecentos anos, mas uma alma simples ou sensível encontrará dificuldades muito menores em compreendê-los, porque são esplendidamente objetivos e porque o próprio Jesus não era um teólogo. Não há nada no Novo Testamento que seja ambíguo ou impreciso. Pois é chegado o dia, como já aconteceu no passado na Palestina, de falar com franqueza, dar plena vazão à voz da Verdade, e não sussurrar frases apenas entreouvidas e de pouco sentido pelos becos escuros.

Desgraçadamente, a maior parte dos homens é muda do ponto de vista espiritual e incapaz de pronunciar uma palavra eterna! Desgraçadamente, também, o clamor pela volta âo cristianismo, que se ouve na Europa, ou pela volta ao neobramanismo, 104

que se ouve na índia, é inócuo. Já tivemos tempo de sobra para provar esses credos. Se não nos foi possível testá-los devidamente nos séculos mais próximos do período de vida dos seus Inspiradores, tal coisa jamais nos será possível. Inútil que nos enganemos a nós mesmos. Retorno ao passado é coisa que não existe. A inspiração original de uma religião é também a mais vital que ela contém. Sob sua influência pode-se fazer muita coisa que no futuro só poderá ser copiada sem sinceridade nem calor. As rodas de um relógio não podem girar em sentido inverso, por mais manipulações que façamos. O passado tem de cuidar de si próprio. É precisamente isto o que Jesus queria dizer ao proclamar: deixem que os mortos enterrem os mortos. Devemos estudar a vida no presente, que é vivo, e não no passado, que é morto. O mundo continua à espera do seu Redentor. As velhas religiões perderam sua dinâmica. Os verdadeiros cristãos são aqueles que foram atirados como mártires aos leões. Que o nosso aprendizado da Verdade comece escoimado dos perniciosos vestígios de dogmas mumificados. Se os oráculos das civilizações antigas estão hoje em dia calados, isto significa que os oráculos do mundo moderno têm agora de falar. A inspiração propriamente dita não jaz num túmulo, embora isso aconteça com os seus primeiros instrumentos. Se Cristo viesse à cidade de Camden, conforme admitiu Blake à sua maneira muito espiritual de ver as coisas, ninguém o reconheceria, pela simples razão de que a nossa falsa educação nos levaria a esperar a descida de carros de fogo do céu ou, melhor ainda, uma figura radiante envolta em brumas como num sonho; ao passo que seria mais provável encontrá-lo a passear calmamente pelas ruas, com poucos sinais em seu rosto capazes de distingui-lo do restante dos carpinteiros que perambulam anonimamente em locais anónimos. Ninguém hoje em dia ousa dizer que Jesus era doido, porém, quando ele começou suas andanças, pregando às multidões ululantes de barbudos fariseus, estes comentaram desdenhosamente entre si: — Que louco! — Só mais tarde, ao perceberem que ele era verdadeiramente sincero e "expulsou os vendilhões do templo e revirou as mesas dos mercadores", começaram a levá-lo a sério. Depois, quando ele se tornou uma ameaça, procuraram uma forma de destruí-lo; pois temiam-no, porque todos ae admiravam da sua doutrina. Os fariseus leccavam como nunca

sacudir suas míseras ilusões. Preferiam o preconceito ao princípio, o orgulho à verdade. Fugiam ao E u Superior, pois tinham medo de ser por este prejudicados. Gente tola e má! Nada havia a perder, tudo a ganhar. Infelizmente, "pois Jesus mesmo provou que um profeta não é reverenciado em sua própria terra". Por isso, "deixou a Judeia e partiu para a Galileia. E precisou atravessar a Samaria... Lá estava o poço de Jacó. Jesus, cansado da viagem, sentou-se à beira do poço. . . Surgiu então uma mulher de Samaria para buscar água: Jesus disse-lhe: — Dá-me de beber. — Ao que a mulher lhe respondeu: — Como podeis vós, um judeu, pedir-me de beber, a mim, que sou uma mulher de Samaria, já que os judeus não tratam com os de Samaria. — Jesus então lhe disse: — Se conhecesses as graças de Deus e aquele que te pede de beber, ter-lhe-ias feito um pedido e ele te teria dado a água da vida. — A mulher contestou: — Senhor, não tendes com o que retirar a água e o poço é fundo; de onde, então, obtendes essa água da vida? — Jesus respondeu-lhe: — Quem beber desta água voltará a ter sede; mas quem beber da água que eu der, jamais voltará a ter sede; pois a água que eu vou dar emana de um poço da vida eterna. — A mulher disse: — Senhor, percebo que sois um profeta. — Jesus respondeu: — Mulher, crê em mim, é chegada a hora em que os verdadeiros fiéis venerarão o Pai com sinceridade: pois o Pai procura gente dessa espécie para venerá-lo. Deus é um espírito e aqueles que o adoram, precisam fazê-lo com o espírito e com sinceridade". Vem, vidi, vici! As palavras do chefe romano não se aplicam a Jesus. E bem verdade que ele conquistou o coração cie uns poucos, mas a grande massa dos judeus permaneceu insensível. Jesus passou entre eles de forma tão obscura como surgira, a despeito das inverdades históricas de certos teólogos. Tanto isso é verdade que é difícil encontrar-se uma só referência escrita àquele período da vida de Cristo. Não obstante: — Naquele tempo seus discípulos instaram com ele dizendo, Mestre, é preciso que vos alimenteis. Mas ele lhes respondeu, tenho com que me alimentar e não o sabeis. Então os discípulos comentaram entre si, alguém lhe terá trazido algo de comer?

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Jesus lhes disse, M E U A L I M E N T O É F A Z E R A V O N T A D E D A Q U E L E Q U E M E E N V I O U E T E R M I N A R A SUA OBRA. :j Os céticos que custam a acreditar que Jesus viveu um dia poderão ser perdoados, mas os místicos intelectuais que consideram todas as bíblias como meras alegorias e todos os antigos mestres religiosos como símbolos da alma humana levam muito longe suas especulações. Por que não haveria de ter existido homens com grandeza suficiente para descobrir sua bondade interior? E , se algum dia viveram, por que não haveria a sua história de ser registrada, ainda que com muitas falhas? Cristo e Krishna, Buda e Osiris não são muitos tanto quanto não o é Maomé, o qual, estando muito mais próximo da nossa era, tem sua existência aceita sem contestações. A dificuldade real repousa nas floreadas interpretações das histórias sagradas. A qualidade mais extraordinária de Cristo é o seu poder de conversão. Ele percorre o litoral da Galileia, encontra-se com dois pescadores entregues à sua faina diária, dirige-lhes umas poucas palavras e, imediatamente, convence-os a jogar uma outra espécie de rede entre os homens. . . O filho sai à procura do rebanho muar do pai, encontra o Mestre, e muda: dali por diante tratará de procurar um rebanho mais divino. . . Saulo, jornadeando pela estrada de Damasco, é encontrado pelo Cristo invisível e cai prostrado de joelhos. . . No entanto, nem mesmo esse poder de Jesus era miraculoso nem universal. Não lhe foi possível converter os fariseus; até hoje ainda não os converteu — a esses indivíduos empedernidos, arrogantes, formais e excessivamente prudentes que existiram através dos tempos em todos os países, não apenas entre os judeus mas também entre todas as raças. Pois Jesus só foi capaz de converter os seus patrícios. Na verdade, não procurou fazer mais do que isso. Ele tinha vindo por eles, seus filhos. Tal é o maravilhoso dom da liberdade com que Deus beneficiou a todos nós — a liberdade de escolha do homem jamais será perturbada. É preciso que nos voltemos na direção certa por nossa própria vontade e não em virtude de qualquer pressão ou interferência. Os Mestres de Luz, tal como nos dias de Jesus, procuram apenas aqueles que os estão procurando a eles, aqueles cujas mentes, consciente ou inconscientemente estão ansiosas por voltar para casa. É sabido que laranja só dá em pé de laranja

CAPÍTULO

IX

A Tempestade Os Precursores das Monções Meus Visitantes Animais - \ Questão das Roupas —



precursores muito remotos da estação chuvosa ainda distante fazem seu súbito aparecimento. O Himalaia mostra-se extremamente caprichoso nestes dias; cada dia oferece diversas amostras diferentes, tanto boas quanto más. As inesperadas mudanças começam no horizonte próximo, onde céu e terra se encontram numa linha interrompida de nuvens algodoadas, picos denteados e neve caída do céu. ALGUNS

A única vantagem que nos vem das chuvas intermitentes é a melhoria do nosso problema de água. Até aqui o líquido teve de ser trazido da fonte mais próxima, a qual fica a mais de quinhentos metros de distância. Agora, porém, basta que ponhamos um balde metálico diante da nossa porta e permitamos que os elementos, generosamente, o encham. De quando em quando fazemos assim, tal é o volume das chuvas que vêm caindo. No entanto, o recurso é esporádico e não se pode confiar muito nele. As noites são, por vezes, de um frio cortante, particularmente para quem veio do tórrido sul. Pois, com o cair do dia, as nuvens singram como navios sobre os cumes e frequentemente se juntam no céu; os terríveis ventos tibetanos saltam, sibilantes, a crista nevada e vêm bater de encontro ao meu bangalô; brumas tenebrosas e desagradáveis aparecem amiúde e toldam a paisagem, deixando o prédio isolado no espaço, depois de encorpar-se em torno dele. Tudo então desaparece de vista. Mas tudo isso não é nada comparado com uma tempestade no Himalaia. Esta é das piores que já vi em razão da sua intensidade, mas não deixa de ser impressionante a ponto de encerrar um toque de grandiosidade. Duas vezes, nesta semana, fomos apanhados por tempestades.

Elas começam com o cair da noite. Uma alteração pressa ocorre na temperatura, que principia a cair gradualmente. Protejo-me do frio, metendo-me numa camisa grossa de lã e num espesso suéter de gola alta; a seguir espio através da janela o irromper da rebombante tempestade. Logo terríveis trovoadas irrompem em toda a extensão da cordilheira himalaia, com uma fúria de bombas detonadas; parece que as montanhas estão sendo dinamitadas em suas bases e aluídas por gigantescas forças subterrâneas. Sei, contudo, que o quartzo, o granito e o gnaisse que constituem o coração do Himalaia resistirão sem susto às erosões da Natureza. Mas, o magnífico espetáculo dos raios que precede o barulho representa, por si só, uma ampla compensação. Não se trata de meros ziguezagues de luz elétrica, mas de grandes massas circulares de uma fosforescência branca que se destaca curiosamente da completa escuridão que domina todo o cenário. Uma rajada selvagem açoita as copas dos meus altos abetos e faz com que os galhos se agitem de um lado para outro, ao passar por eles com a velocidade de um trem expresso. Ventos estrondeantes castigam os vales e deixam as árvores mais frágeis depenadas de suas folhas. Chove a cântaros, gotas imensas que pingarão com fúria e continuamente durante horas a fio. Para completar o bombardeio, o matraquear do granizo agride o telhado, com suas pedras do tamanho de bolas de gude. Essas pedras têm grande poder de destruição. Por vezes chegam a ter o tamanho de nozes. Depois de uma pesada tempestade encontrei os corpos de alguns pássaros nas proximidades do bangalô, como que a anunciar o que teria acontecido ao longo da cordilheira, e um alto cedro do Himalaia abatido por um raio. De manhãzinha fui acordado por ruídos de trovões qu ecoavam por todo o vale. A tempestade rugia furiosamente n lado de fora. E , mais tarde, quando a luz cinzenta e fria de u alvorecer sem sol se espalhou pela região, espiei pela porta deparei com um cenário nada hospitaleiro. Brumas brancas densas, inteiramente impenetráveis, envolviam toda a região, a adiante das fileiras de abetos, os quais, muito eretos, lembrava rígidas sentinelas em serviço. A floresta propriamente dita tm' desaparecido, a linha nevada de penhascos e píncaros sumira com se jamais houvera existido. Cá estamos, a ttès mil metros altura, insulados num mar de brumas leitosas. Índia» Tibet Inglaterra tudo não parece agora passar de designações dad a países lendários. Este planeta Terra, aparentemente,