Rota de Fuga: a História Não Contada da Ss 9789895150045

A história de Andreas Spinger, um alemão de Munique, se confunde com o surgimento e a chegada ao poder dos nazistas. Sua

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Rota de Fuga: a História Não Contada da Ss
 9789895150045

Table of contents :
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CAPÍTULO 1 CAFETERIA
CAPÍTULO 2 MUNIQUE
CAPÍTULO 3 CERVEJARIA
CAPÍTULO 4 SCHUTZSTAFFEL
CAPÍTULO 5 PODER
CAPÍTULO 6 PILHAGEM
CAPÍTULO 7 CONEXÃO
CAPÍTULO 8 GUERRA
CAPÍTULO 9 PROTEÇÃO
CAPÍTULO 10 VIOLÊNCIA
CAPÍTULO 11 SOBERBA
CAPÍTULO 12 BARBAROSSA
CAPÍTULO 13 WAFFEN-SS
CAPÍTULO 14 SOLUÇÃO
EXPULSÃO
ESPANHOL
OURO
CAPÍTULO 18 FUGA
CAPÍTULO 19 INVASÃO
CAPÍTULO 20 DEPOIS
CAPÍTULO 21 ARGENTINA
CAPÍTULO 22 CAÇADOS
CAPÍTULO 23 CÓRDOBA
CAPÍTULO 24 JULGAMENTO
CAPÍTULO 25 EXPECTATIVA

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COLEÇÃO VIAGENS NA FICÇÃO

Chiado Editora www.chiadoeditora.com Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida. www.chiadoeditora.com Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde Conjunto Nacional, cj. 903, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil Avenida da Liberdade, N.º 166, 1.º Andar 1250-166 Lisboa, Portugal Chiado Editorial Espanha Chiado Éditeur França | Bélgica | Luxemburgo Paseo de la Castellana, 95, planta 16 Porte de Paris 28046 Madrid 50 Avenue du President Wilson Passeig de Gràcia, 12, 1.ª planta Bâtiment 112 La Plaine St Denis 08007 Barcelona 93214 Paris Chiado Publishing U.K | U.S.A | Irlanda Kemp House 152 City Road London EC1CV 2NX Chiado Verlag Alemanha Kurfürstendamm 21 10719 Berlin © 2015, Maurício Munhoz e Chiado Editora E-mail: [email protected] Título: Rota de fuga - A história não contada da SS Editor: Vitória Scritori Composição gráfica: Maria do Rosário Costa – Departamento gráfico Capa: Vasco Lopes Desenho da capa: Paulo Francisco Munhoz Ferraz Revisão: Rosimara Almeida Impressão e acabamento: Chiado Print 1.ª edição: Novembro, 2015 ISBN: 978-989-51-5004-5 Depósito Legal n.º 396017/15

Maurício Munhoz

Rota de fuga A história não contada da SS

Chiado Editora Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

  GRADECIMENTOS A  Sempre a Deus e a minha família.  Notas do autor Era início da década de 1980, quando ainda menino, na cidade de Águas de São Pedro, interior de São Paulo, conheci um senhor alemão, que beirava os 80 anos de idade. Erik Sommer morava em frente ao colégio da cidade, e era comum vê-lo discutindo com as crianças, que por vezes jogavam a bola no “quintal do alemão”, apenas para irritá-lo. Uma professora desconfiava que Sommer era um na - zista, e vivia escondido por ali. Aquele mistério me despertou. Quanto mais nos aproximávamos, descobria naquele alemão ranzinza um sujeito muito engraçado. Certa vez ele me deu um livro, em alemão, com o título “Um coração alegre é o melhor remédio”. Meu amigo morreu em meados da década de 1980 e eu nunca soube do seu passado. Na mesma cidade, uma estância hidromineral, era comum senhores idosos judeus passarem seus veraneios. Conheci um deles, o senhor Aviel, um dos sobreviventes do Holocausto, justamente do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Ele tinha um número tatuado no braço. Era um sujeito alegre, a despeito das histórias tristes contadas por ele. Algum tempo depois, conheci em Piracicaba o “doutor” Noedy Krahembull, notório advogado, antigo juiz de direito. Ele me contou um dia ter presenciado um discurso do próprio Adolf Hitler, em Berlim. O então jovem estudante

brasileiro não entendia a língua alemã, porém apenas com a vibração da voz e com os gestos do führer ficou paralisado. Maurício Munhoz

Os encontros do passado sempre me despertaram grande fascínio pela história da Segunda Guerra Mundial, por isso me interessei em estudar a ascensão e a queda do Terceiro Reich, especialmente o mecanismo mais obscuro da sua máquina de opressão e de guerra, a Schutzstaffel, a temida SS. Por algumas vezes estive na Alemanha, sempre com um olhar atento para as paisagens formadoras daquele ambiente onde a ideologia nazista se desenvolveu. Para os alemães de hoje, o assunto nazismo parece ser constrangedor, talvez por isso a paisagem atual de Berlim não lembre muito aquele período tenebroso que marcou a história do país. Na capital alemã há poucos prédios e outros locais históricos específicos do período do Terceiro Reich, muito embora haja lugares perturbadores, como a igreja Kaiser Wilhelm, mantida com as torres destruídas pelos bombardeios dos Aliados, o Museu do Holocausto ou exposições de fotos e documentos históricos, como uma realizada no que restou do antigo estacionamento da SS. Certa vez, chegando ao aeroporto de Frankfurt com o amigo Altir Peruzzo, ex-prefeito de Juína, em Mato Grosso, fomos questionados sobre nosso endereço. Estávamos no balcão de uma locadora de veículos para tomar um carro. Dissemos o endereço da prefeitura: Rua Hitler Sansão (um antigo deputado estadual mato-grossense, já falecido). Aquilo causou um alvoroço. Lembro-me de um casal de idosos alemães me perguntando se aquela era uma brincadeira sem graça.

Há alguns anos iniciei o projeto de reunir em um livro as informações coletadas sobre o nazismo e a SS. Até para minha surpresa, acabei transformando o conteúdo nesta obra com personagens fictícios convivendo com fatos e personagens reais. No desenrolar dos fatos, enquanto os mecanismos de inteligência e repressão eram utilizados para afastar as ameaças internas e externas ao Terceiro Reich, eles também serviram como instrumentos de saques às populações dos países Rota de fuga - a históRia não contada da ss

invadidos e, principalmente, aos judeus, também vitimados por um emaranhado filosófico, as chamadas bases teóricas do na- cional-socialismo que sustentaram a implantação do genocídio como política de Estado. O livro conta trechos das histórias de pessoas vivendo o antes, o durante e o depois da passagem dos nazistas pelo poder na Alemanha. Nele podemos ter indicativos de como a população alemã apoiou, a princípio, as ideias nazistas. Hitler não chegou ao poder absoluto com a maioria dos votos. O führer, porém, teve o apoio da maioria dos alemães para implantar o nazismo. O fato de uma população com tanta cultura conceber o florescimento de ideias racistas, baseando uma política expansionista, não pode ser explicado apenas pela força do carisma e poder do discurso eloquente de um personagem, um líder. Para se compreender o comportamento dos alemães durante o período nazista, precisamos entender o momento histórico e como a cultura, os mitos e as crenças influenciaram a construção dos seus universos simbólicos, ou como os alemães criaram seu modo de ver o mundo.

Há estudos buscando tal compreensão, e esta obra se baseou em alguns deles, sem, no entanto, ter a pretensão de ser um ensaio sobre o nazismo. O livro é apenas um romance histórico. Para a sua confecção, além da revisão fundamental das jornalista Luciana Giradello e Rosimara Almeida e das críticas sempre saudáveis do sociólogo Silvio Monteiro, utilizei-me de diversos estudos, por vezes extraindo deles frases inteiras, a saber os de: Timothy W. Ryback, Mark Mazower, Gordon Williamson, Lawrence Malkin, Thomas Harding, Richard E. Evans, Jonatham Littell, Sérgio Correa da Costa, David M. Glantz, Jonathan House, C.G. Sweeting, Uki Goni, Hannah Arendt, Adam Tooze e Ian Kershaw, como fontes de pesquisa. Boa leitura!  Prefácio Dizem que prefaciar é falsear os reais interesses livrescos, como se fosse uma vacina para uma mal escrita. No caso deste livro de estreia de Maurício Munhoz Ferraz é possível que haja uma dose de generosidade pelo prazer de escrever um prefácio, mas certamente não me proponho aqui emprestar palavras em vão ou interessadas. Além do mais, em tempos de grande obscurantismo e futilidade por que passamos no século XXI, é preciso render homenagem aos que ainda se aventuram a escrever de maneira séria e corajosa. Não precisarei de um julgamento para revelar a verdade. Serei réu confesso. Conheci o autor em uma situação inusitada e em um lugar da mesma maneira inusitado. Estudamos juntos na China, mais precisamente nos subúrbios de Pequim, em uma academia do governo chinês para oficiais estrangeiros de comércio. Naquela solidão

geográ- fica e linguística, pude discutir longamente com Maurício acerca das nossas percepções de mundo, da geopolítica e sobre retorno da China como protagonista das relações internacionais. Por algum motivo, lendo Rota de Fuga - A História não Contada da SS, vi-me como se estivera presente nos diálogos iniciais do livro que se passam na Munique da República de Weimar, nos quais os personagens fundamentais da trama, Andreas e Ernesto, compartilham também suas angústias próprias daquela contemporaneidade de retorno da Alemanha ao palco central das nações. Essa noção de cumplicidade e diálogo entre leitor e narrador é uma constante no livro, sempre a testar o limite ético. O uso de cenas diacrônicas e de quebras múltiplas de cenário fomentaram a minha primeira constatação do escritor e sua criação: trata-se de um autor brasileiro que se propôs, sobretudo, a escrever sobre angústias humanas universais, não importando que o gênero literário que tenha escolhido se pareça ao olhar desapercebido como mais um relato de guerra. Certa vez, Sérgio Paulo Rouanet teria dito que a intelligentsia brasileira estaria de fato liberta da sua pronvicianidade quando se libertasse da obrigação de falar apenas das questões nacionais e se arriscasse a debater temas universais com elementos completamente estranhos a sua realidade imediata. Este livro tem essa audácia de romper com enredos locais e se lançar a construir uma geografia e uma psicológica do na- zismo a partir e apesar da percepção comum aos brasileiros, sem medo de lançar mão de um sofisticado arsenal de infor- mações, de nomes e de lugares, de maneira quase obsessiva. Se é preciso reivindicar pontos altos para a narrativa, diria que o grande destaque é a construção da história como se fosse um único objeto, porém multidimensional até o último parágrafo. Um polígono, que se visto de longe é entendido como único, o papel da SS no contexto do Nazismo, mas

quando olhado de perto e rotacionado, esse objeto mostra diversas faces. Hora se vê a psicologia do poder, ou do micro poder de Foucault; hora a geografia minuciosa dos pas- sos dos personagens, de Hitler e dos Aliados; a narrativa da pequena história à moda francesa; a arqueologia de lugares que não existem mais; a cartografia minuciosa das cidades cenário. Enfim, é como se autor nos convidasse a fazer vôos de pássaro e, ao mesmo tempo, lobotomias dos pensamentos dos personagens. Rota de fuga - a históRia não contada da ss

Confesso que por um momento achei que estava diante de um enredo à moda de Gabriel Garcia Marquez, como em Cem Anos de Solidão, com tantos personagens que teria que assumir a estratégia de desenhar uma espécie de mapa mental para compreender a conexão entre todos eles. Logo percebi que não. Conselho ao leitor: não se apavore. A arqueologia dos personagens, fatos e lugares são um luxo do autor. Quem se interessar, deve pegar uma passagem até Munique, com um GPS na mão e percorrer os passos de Andreas, como em uma cartografia literária por trás de uma espécie de infográfico geral dos cenários da Guerra. Quem sabe agentes de turismo não farão um roteiro próprio de visitação aos “lugares” deste livro, como fizeram com livros de Kafka em Praga? Os roteiristas de cinema e de séries de televisão terão em suas mãos um banquete de lugares, falas, intrigas, jogos de poder, espionagem e contra-espionagem, paixões, homossexualismo, luxurias e dramas humanos como o holocausto, todos elementos essenciais e dignos de qualquer bom thriller de base histórica. Alerto que este livro é uma bomba relógio ou de efeito retardado. Quem se apoderar dele, pode produzir novos impactos literários e novas leituras estéticas.

Por trás de um texto híbrido, cuja fronteira entre o historiográfico e ficcional é desconhecida, à moda dos livros de Jostein Gardeer, subjaz um argumento central que é o conflito humano decorrente das ambivalências provocadas pela mistura entre humilhação e riqueza, pobreza e glória, segredo e história, ganância e cristianismo, poder e religião, política e ética. Com toda a complexa rationale humana exposta, em uma sequência de pequenos capítulos e sessões, como se fossem motetos de Bach - Curtos, complexos e com cromatismo próprio, o ser humano vai sendo decomposto e exposto a situações limite, que só uma guerra pode revelar de maneira escancarada. Nesse sentido, a escolha por uma história ficcional baseada em uma cartografia histórica pro- vê a este livro uma verossimelhança capaz de confundir o leitor, não sabendo se está no campo da narrativa literária ou historiográfica. Esse efeito de prestidigitação causa no leitor um misto de agonia e tensão salutar à construção de momentos de epifania acerca dos enigmas da narrativa. Nesse mundo criado por Maurício, realidade, percepções e histórias, sejam as verídicas de acordo com o lado vencedor sejam as inventadas pelo autor, amalgamam-se em Rota de Fuga - A História não Contada da SS. Este livro merece leitura atenta, porque de uma certa maneira, cada um nós, gostemos ou não, somos um pouco Andreas, Ernesto, Lui, Himmeler, Göring, Heydrich, Sauber ou Har’el; vivemos em algum lugar parecido com Piracicaba, Heidelberg, Munique ou Tel Aviv; com vizinhos como Evelyn, Fernando Sanches ou Ariel. Desde Hamlet, toda sorte de pecados podem ser cometida em nome da construção de um projeto de poder, mesmo que por vias místicas. Nada tão atual quanto isso. A banalidade do mal de Eichmann, infelizmente, ainda está por ai e ainda há muito o que saber antes de finalizar o

julgamento desse baú ainda desconhecido que é a história humana. Haben sie eine gute Lektüre.  Evaristo Nunes  CAPÍTULO 1  CAFETERIA Fazia um frio intenso naquela tarde de novembro de 1945, em Roma. Em uma rua estreita, no antigo bairro Borgo Pio, no interior de uma cafeteria de onde se podiam avistar os muros do Vaticano, o padre Lui, muito impaciente, estava sozinho à mesa tomando café. Roma aos poucos voltava à normalidade, mas a cafeteria não tinha recuperado o movimento de antes da guerra. Desde a chegada do Padre Lui, havia quase uma hora, nenhum outro cliente tinha entrado no recinto. O proprietário, um romano sexagenário, que escapara das fileiras da guerra por uma deficiência física na perna esquerda, não parecia notar o quanto o padre Lui, seu antigo cliente, estava aflito naquela tarde. Lui Palermo, nascido na Calábria, sempre foi muito comunicativo. Havia mais de dez anos que trabalhava e morava no Vaticano, onde chegou ao posto de auxiliar do Carmelengo. Estava, portanto, diretamente ligado ao Papa. Gordo e baixinho, o padre tinha 47 anos de idade, apesar de aparentar mais. Como estava sempre alegre, não tinha aparência de velho. O religioso esperava seu amigo, o padre argentino Ernesto Artibes, atrasado mais de meia hora. Anos depois, diante dos agentes do Mossad, o sacerdote Lui se lembrava daqueles minutos, parecendo séculos e que serviram para ele concluir estar participando de algo contrário a toda sua

formação cristã. Naquela altura, já era tarde demais para desistir. Finalmente o padre Ernesto chegara. Com a batina preta ele parecia ultrapassar a sua altura de 1,87 metro. Loiro e com olhos negros, tinha um aspecto grave no olhar, causando a impressão de austeridade. De fato, o padre argentino era de poucas palavras e não costumava externar seus sentimentos, mas ao ver seu amigo italiano, abraçou-o apertadamente. O ato de extremo afeto serviu para aliviar a tensão que ambos sentiam. Em italiano, Lui deu as boas-vindas e pediu um café expresso sem açúcar para o amigo. E apesar da sincera alegria pelo reencontro após três anos, não poderiam ficar mui- to tempo juntos naquele dia. Havia um motivo para estarem ali, e isso os deixava expostos a riscos diversos. Ernesto tomou seu café rapidamente, voltou a abraçar o amigo, pegou a mala deixada no chão por Lui e saiu apressado. Lá fora, antes de entrar no táxi, da mesma forma que fez ao sair, ele olhou preocupado em sua volta, para certifi- car-se de que não estava sendo seguido. O táxi deixou o padre Ernesto no aeroporto de Roma. Um avião Lockheed Constellation, da recém-criada força aérea argentina, esperava-o para um voo até Buenos Aires com escala em Paris, Nova York, Recife e Rio de Janeiro. Os militares americanos controlavam o aeroporto e passar pela alfândega improvisada do pós-guerra era um risco calculado. Havia uma entrada especial para voos militares onde um funcionário italiano era acompanhado de um militar dos Estados Unidos. O soldado fitou Ernesto e lhe perguntou, em italiano, se ele falava alemão. – Não, apesar

dos cabelos loiros, não tenho ascendência germânica – respondeu. O americano conferiu o passaporte diplomático de Ernesto, expedido pelo Vaticano. Perguntou por qual motivo R   ota de fuga - a históRia não contada da ss um padre era passageiro de um voo militar. – É apenas uma carona, por assim dizer. O governo ar gentino comprou esse avião usado de uma empresa inglesa, e veio buscá-lo. Por coincidência eu concluí uma missão no Vaticano exatamente hoje e, por força da boa relação entre a arquidiocese de Buenos Aires, onde represento o Vaticano, e a presidência argentina, aproveitamos a passagem do avião por Roma hoje. O avião realmente tinha sido recém-adquirido e estava apenas em escala no aeroporto de Roma. Os militares já sabiam disso. Também tinham antecipadamente tomado informações sobre o passageiro aguardado. Era um legítimo representante do Vaticano. Assim, não realizaram inspeção em sua única mala de viagem. Conforme planejado em Berlim, deu tudo certo. Ao levantar voo, e ver a paisagem romana pelo que ele sabia ser a última vez, o padre respirou aliviado. CAPÍTULO 2  MUNIQUE Sete meses antes, em uma rua central da cidade brasileira de Piracicaba, interior de São Paulo, o pequeno empresário espanhol, Fernando Sanches, proprietário de uma máquina de arroz, ouvia pela rádio Difusora de Piracicaba a notícia do suicídio do Reichsführer da Schutzstaffel, o outrora todo

poderoso e cruel comandante da SS, Heinrich Luitpold Himmler. Aquela notícia não surpreendeu Fernando. Ele conhecia bem a personalidade de Himmler, afinal trabalha- ram juntos durante 15 anos, desde que o ajudou a montar a estrutura operacional da SS. Nessa época, ele ainda utilizava seu nome de nascimento Andreas Spinger. Ele também havia sido oficial da SS de Hitler: o tenente-co- ronel Obersturmbannführer Spinger, o nome que viria a ser um dos mais procurados pelos caçadores de nazistas em todo o mundo. Na verdade, ele nasceu no ano de 1900 em Munique, Alemanha, e foi criado nos seus arredores, em Schwabing. Seu pai, Otto Spinger, tinha uma padaria e confeitaria, Bäckerei, herdada do seu avô. Desde seu nascimento, até por volta de 33 anos de idade, quando se mudou para Berlim, sempre morou no fundo da padaria, em uma casa modesta, onde dividia um quarto com sua irmã Eva. No outro quarto dormiam seu pai e sua mãe, Anne, uma devota católica que saía de casa somente para a missa, uma vez por semana. De resto, ela trabalhava muito, operando o forno da padaria e preparando bolos, pães especiais e, principalmente, donuts bavarianos, famosos na boêmia Schwabing. Desde criança, Andreas se destacou como menino prodígio. Aprendeu a ler sozinho, tocava diversos instrumentos musicais, tinha um talento especial para executar as composições de Mozart, e era muito hábil em cálculos. Uma espécie de inteligência rara, que contemplava várias habilidades.

Nos primeiros anos da escola, no entanto, não foi um aluno exemplar. Ele não tinha paciência para a rotina de aprendizado aplicada aos demais alunos. Por isso, ele desenvolveu um tom arrogante e displicente com os professores e alunos, o que não lhe rendia popularidade. Sua irmã Eva, dois anos mais velha, viu-se obrigada a socorrer o garoto por diversas vezes. Certo dia, quando ele tinha nove anos de idade, e com corpo franzino, foi cercado ao sair da escola por três colegas de sala. Revoltados com as humilhações frequentes provocadas por Andreas na aula de história, resolveram ir além dos simples tapas na orelha ou empurrões nos corredores da escola, algo já corriqueiro. Na frente de todos os alunos, os três partiram para cima do garoto. Quando ele se deu conta, já não podia correr. A fúria dos garotos era tanta que nem se incomodaram com os protestos dos demais estudantes. Bateram sem piedade em Andreas até aparecerem alguns adultos, que interromperam a sova. Quando Eva, ainda dentro da escola, soube da briga correu até o irmão e o encontrou inconsciente, com sangue saindo pela boca e dois dentes quebrados. A menina de onze anos ajudou dois professores a carregarem o irmão até a enfermaria da escola onde recebeu atendimento médico e recuperou os sentidos. O menino então se levantou, olhou para a irmã e disse com voz firme algo nada comum a um garoto da- quela idade: – Nunca mais vou dar motivo para alguém tocar em mim. Vou fazer o jogo e fingir que sou tão tapado como o resto das pessoas. Eva ficou assustada com o irmãozinho, mas não conseguiu, naquele momento, entender que a essência da alma de

Andreas estava exposta nessa frase. O futuro dos irmãos contou com histórias muito diferentes. Ela se tornou enfermeira, uma pessoa dedicada a salvar vidas. Na Segunda Guerra, ela fez questão de acompanhar a Wehrmacht, as Forças Armadas da Alemanha, nas frentes mais perigosas, inclusive na campanha da Rússia, quando morreu em cinco de dezembro de 1941, após uma ofensiva das unidades soviéticas avançadas, que invadiu o quartelgeneral do LVI corpo Panzer, próximo a Klin, já em Moscou. De fato, Andreas mudou seu comportamento após a briga na escola. Ele passou a desempenhar um papel de menino sonso, não se envolvendo com ninguém. Cuidou apenas em se destacar como o melhor aluno. Quando iniciou a Primeira Guerra, em 1914, o jovem cursava o equivalente ao segundo grau em Munique. Ir para a frente de batalha não atraía sua atenção, ao contrário da maioria dos seus colegas adolescentes. No entanto, as notícias e os bastidores da guerra o excitavam. Quando Andreas concluiu os estudos, foi chamado para servir como cadete na Primeira Guerra Mundial. Após um breve treinamento, o jovem se viu participando das chamadas ofensivas alemãs da primavera, na frente ocidental, em março de 1918. Na operação, os alemães avançaram até o rio Marne, onde ele foi atingido pelo estilhaço de uma granada, e ficou na enfermaria até o final da guerra. Como saldo, o jovem cadete não chegou a dar um tiro sequer em batalha. Sua atuação foi na logística das tropas, ajudando a cuidar do fornecimento de munição para as linhas de frente.

Quando se recuperou, ele voltou a morar com os pais em Schwabing. O velho Otto estava doente, e o jovem passou, muito a contragosto, a comandar a padaria com ajuda da mãe e da irmã. Andreas era um jovem de cabelos negros, de 1,75 metro, e olhos azuis. Chamava a atenção das garotas, porém jamais teve algo sério com alguma delas. Isso mudou em uma de suas idas ao centro de Munique, quando conheceu Eva Schiller. Ela o atendeu em um comércio de bebidas da família. Começaram a namorar, e o jovem estava realmente atraído pela bela garota loira, cuja marca registrada eram os cabelos em tranças laterais, típico das aldeãs alemãs. Eva havia concluído os estudos médios e com a morte do pai em batalha nas trincheiras da França, dois anos antes, ela assumiu junto com a mãe o controle do comércio. A princípio, ele foi atraído pela beleza de Eva, depois pela sua forma meiga e atenciosa. Quando percebeu, ele sentia a falta dela se ficasse mais de dois dias sem vê-la. Naturalmente o próprio Andreas se questionou sobre a natureza daquele sentimento, considerando sua dificuldade para se apegar a alguém. Nunca chegou a uma conclusão, mas jamais em sua vida teve tanto carinho por outra pessoa. Os namorados criaram a rotina de encontros na casa de Eva, durante vários dias da semana. Em uma dessas visitas, ele conheceu Ernesto Artibes, um jovem argentino de 19 anos, cuja família tinha ido para Munique dois anos antes. Quando se apresentaram, Andreas ficou impressiona - do com a pronúncia da língua alemã do jovem argentino. A ausência de qualquer sotaque estrangeiro, e a presença do

sotaque bávaro, típico de Munique, o fez questionar se Ernesto realmente estava na Alemanha havia apenas dois anos ou se teve aulas do idioma, antes de sua ida. Quando Ernesto confirmou que a família foi para a Alemanha porque seu pai estava sofrendo perseguição política na Argentina, e que ele não tinha qualquer iniciação na língua germânica, aquilo deixou Andreas incomodado. Ele constatou que não falava qualquer idioma, além do alemão. Ernesto aprendeu sozinho o alemão, e também era autodidata em música. Como Andreas, tocava diversos instrumentos. De certa forma, o alemão identificou em Ernesto alguém com nível intelectual apurado, semelhante ao seu. O jovem alemão fazia questão de procurar sempre o amigo argentino, e frequentemente conversava em espanhol. Em pouco tempo já conseguia se expressar com certa fluên- cia, o que lhe agradava imensamente. Ele jamais deixaria de ser amigo de Ernesto, apesar das opiniões divergentes sobre a vida, pois sempre achou desafiadora a mente do argentino. Ernesto tinha a convicção e entendia ter a vocação para se tornar padre. Também ansiava por voltar para a Argentina. Apenas aguardava que sua família se consolidasse em Munique, com emprego estável e melhor adaptação aos costumes e a língua, pois todos dependiam dele em todos os aspectos. Ele trabalhava em um escritório de contabilidade. Andreas, por sua vez, vivia aflito com sua rotina na padaria. Ele tomara a decisão de não buscar uma universidade, e sim a carreira militar. Seu pai falecera e sua mãe, tão sacrificada por uma rotina extensiva de trabalho, caiu de

cama, para nunca mais levantar. Faleceu seis meses após a morte do pai. Os irmãos tocaram a padaria, e o pai de Ernesto passou a trabalhar ali, fazendo o trabalho desempenhado por Anne. Andreas estava pronto para o próximo passo em seu plano de vida: ir até Berlim. Porém, estranhamente para ele, sentia estar ligado à Eva, assim como à amizade e estímulo intelectual proporcionado por Ernesto. E enquanto a Alemanha vivia as turbulências políticas e econômicas do pós– Primeira Guerra, aquele que seria um dos personagens mais sombrios do período nazista do país vivia uma rotina tranquila de comerciante, enamorado e amigo devotado em Munique. *** Ernesto tinha uma espécie de gratidão especial pelo amigo, porque desde sua chegada à Alemanha se sentia discriminado, por ser um imigrante de um país considerado insignifi- cante pelos alemães. Por isso se empenhou tanto em conversar sem sotaque, mesmo isso sendo insuficiente para a maioria dos alemães. Na verdade, o período em que conviveram em Munique foi importante na formação de ambos. Os diálogos travados por horas a fio, sempre observados por Eva, cada vez mais admirada, contribuíram para o aprimoramento mútuo. Ela achava sedutora a inteligência do namorado, apesar de algumas de suas opiniões sobre a vida a deixarem assustada. Ernesto não se abalava mesmo com as teses e conceitos mais extravagantes do amigo, que sempre tinha um bom argumento para tudo. A questão dos judeus na Alemanha era um tema recorrente entre eles.

– Você é a única pessoa com quem posso me abrir. Para mim, essa história de dizer que os judeus são inferiores, na verdade é um complexo do povo alemão, sempre à procura de culpados pelos problemas encontrados aqui. Não vejo diferenças entre judeus, alemães, argentinos, ciganos, nem nada. São todos seres inferiores, incapazes de compreender os mecanismos do mundo, e enxergam a vida de uma forma limitada – Andreas falou empolgado. – Já para mim, você precisa controlar essa soberba. Não vejo em você um ser superior a mim, ou a qualquer outro ser humano. E como amigo, preste atenção, seu comportamento é amoral – Ernesto rebateu, com tranquilidade. – Ernesto, essa modéstia inerente ao Catolicismo sempre me causou nojo. – Você é um amigo especial. Mesmo com essa sua incapacidade de ser humilde e sua arrogância ou amoralidade, foi o único alemão que conversou comigo de igual para igual, não me vendo como um forasteiro, e isso me faz ser eternamente grato a você. Entretanto, nunca espere de mim concordância com essa forma de ver a vida de maneira tão egoísta. E não se trata apenas de princípios religiosos, mas sobretudo de regras de convivência humana, que exige de nós atitudes de respeito, compaixão e solidariedade. – No começo só conversava contigo porque queria aprender uma outra língua – confessou Andreas – depois sua inteligência me fez aproximar de você. Isso só confirma que não vejo diferença entre raças ou países, há sim pessoas que se destacam, como é o seu caso. Quando os amigos viveram em Munique, a Alemanha passava por uma grave crise econômica e a autoestima da população estava abalada, em especial pelos termos do Tratado de Versalhes, responsável pelo país ter perdido

parte de seu território, todas as suas colônias sobre o oceano e sobre a África, além de ter diminuído o tamanho do Exército e imposto uma indenização altíssima, através da qual o país pagaria pelos prejuízos de guerra. Foi a época da República de Weimar, e seus efeitos sobre os alemães sempre eram debatidos pelos dois amigos. Nessas ocasiões ficavam muito claras as diferenças entre ambos: – Apesar de eu não ter nascido aqui, gosto da Alemanha, e percebo com muita tristeza essa crise vivida pelo país. O povo está humilhado. Apesar disso, não faz sentido entrar em guerra, pois o resultado é só sofrimento e frangalhos nas famílias, no comércio e em toda economia – ponderou Ernesto, em tom de dor. – AAlemanha tem vocação para liderar. Não por acaso, tantos gênios nasceram e floresceram por aqui. Entretanto, amigo Ernesto, o povo é guiado, conduzido por quem tem luz própria, por quem pensa. Eu tenho a certeza que um dia vou guiar pessoas e também vejo você guiando seu rebanho. – Eu tenho mesmo a intenção de me tornar um padre, você sabe. Espero ter essa luz, para ajudar iluminar as pessoas ao meu redor. Andreas expressava seus pensamentos, e aproveitava para impor uma dose de ironia: – A religião tem esse papel. Servir de consolo para grande parte da população, que é apenas massa de manobra. Eu não preciso da religião, preciso é do poder. Quero experimentar. O argentino, mesmo percebendo o tom provocativo do amigo, respondia com seriedade: – Uma das funções da religião talvez seja ser um instrumento de consolo, mas não apenas para aqueles dominados. Os dominadores também precisam de Deus para suportar a carga imposta pelo poder.

– De qual carga você fala? – Falo de várias cargas, como empurrar inocentes para a morte. Veja o exemplo da guerra. Quantos não são mortos, quantas famílias destruídas e veja o pós– guerra, a destruição continua na moral das pessoas, na violência das ruas. Os que provocaram a guerra, ou seja, os dominadores, não têm uma carga por essa responsabilidade? – Amigo, você tem mesmo esse remorso? Não tenho razão par mentir para você, não para você com essa mente especial. Se eu tivesse o poder para liderar, faria como Agamenon na invasão de Troia. Os soldados vão na frente, morrendo quantos forem necessários para o rei assumir o reino invadido, e se esse reino estiver devastado, que seja reconstruído – concluiu Andreas. *** Certo dia, quando Andreas chegou à casa de Eva, ele a encontrou abatida. Ernesto o esperava na sala, para comunicar ao amigo sua decisão de partir, não para a Argentina, mas com destino a Verona, na Itália, onde fora aceito no seminário Vescovile. Andreas se abalou com a notícia, mais do que quando morreram seus pais. Sem a companhia do amigo, a única pessoa capaz de estimular seu intelecto, ele ficou ainda mais próximo de Eva. Decidiu ficar em Munique, e não se casaria com ela, embora não passasse pela sua cabeça a possibilidade de deixá-la. Com a turbulência vivida pela Alemanha, Andreas começou a perceber que assim como os empresários de visão podem crescer escolhendo um ramo para aproveitar as oportunidades geradas pela crise, com a política acontecia a mesma coisa. Ele poderia preparar um plano de trabalho e expandir a padaria, criando filiais por toda Baviera, mas não

era essa sua aptidão. Na política ele sentia mais estímulo, e via com clareza que algum grupo político iria liderar a construção de uma nova Alemanha. CAPÍTULO 3  CERVEJARIA Andreas não ficou procurando um grupo político. Por força do destino, ele morava na mesma cidade onde começara a se destacar um agrupamento político, que em pouco tempo já mudara de nome algumas vezes. Naquele ano de 1920 se definira como Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o chamado partido nazista. Ele percebeu, ainda antes de ver um discurso do seu líder emergente Adolf Hitler, que o nazismo seria o condutor de uma Alemanha forte. Sem identificar o por- quê dessa percepção, ele procurou se aproximar dos ainda poucos membros do partido. Numa tarde chuvosa, entrou no Café Heck e conheceu um jovem estudante, que falava com entusiasmo da construção de uma nova Alemanha. O rapaz se mostrava apaixonado quando culpava os judeus por todos os males do país, principalmente pelo que ele chamava da traição no Tratado de Versalhes, em 1918. Seu nome: Rudolf Hess. Andreas o escutou pacientemente e imediatamente identificou naquele jovem, culto e pouco brilhante, que alguém fazia a sua cabeça. Esse alguém já ganhara seu respeito e mereceria ser conhecido. Seu próximo passo seria conhecer esse mentor, Hitler. O discurso de Hess soava como música aos ouvidos alemães. Diante do cenário de crise econômica vivido naquele momento, parecia claro, o movimento teria muitos adeptos.

O mais brilhante para Andreas era a exploração feita do antissemitismo, como um alvo, ou antes, como uma desculpa para construção de um discurso que cria o bem contra o mal, numa visão maniqueísta da realidade. Os judeus representavam o mal. Assim, para ser aceito no círculo dos nazistas, ele se comportaria como o mais radical dos antissemitas. Divertindo-se, ele se lembrou de quando Ernesto o chamara de amoral por essa capacidade de adaptação aos conceitos que não eram seus. Por indicação de Hess, poucos dias depois Andreas estava no Festsaal da Hofbräuhaus, uma cervejaria próxima à casa de Eva. Além dele, havia cerca de outras duas mil pessoas no local. Na ocasião, Andreas ouviu um discurso de Hitler e percebeu que, com uma linguagem popular, frases curtas, palavrões e muita agressividade, a plateia ficava hipnotizada e se empolgava, principalmente quando eram proferidos insultos a personalidades políticas e aos judeus. Para ele, o importante era estar junto a esse grupo, e se destacar entre a grande maioria dos membros, os quais evidentemente eram apenas conduzidos por Hitler. Andreas imaginava que o sucesso do partido dependeria muito da ousadia e da sagacidade de seus líderes. A fórmula era simples. Usando a tática da escola após a surra, ele se comportaria como todos os membros, mas sabendo que, em breve, iria liderá-los, obedecendo apenas aquele reconhecidamente seu superior, Adolf Hitler. A oportunidade começava a ganhar contornos. Na reunião da Hofbräuhaus, havia algumas pessoas não simpáticas aos nazistas. Um grupo de socialistas estava bastante exaltado e chegaram até a subir em mesas, protestando durante o pronunciamento de Hitler. Andreas identificou o líder e o

seguiu após o evento até descobrir sua casa. Aquela informação poderia ser importante. Ele voltou a se encontrar com Hess, no mesmo Café Heck. O jovem estudante contou, com orgulho, ter sido designado por Hitler para comandar uma tropa de ordem, cuja missão seria manter a segurança durante os comícios do partido. Tudo estava dando certo. Era justamente de uma organização assim que ele precisava para mostrar trabalho. Então, com muita modéstia, sugeriu para Hess formarem um grupo de inteligência para acompanhar a movimentação dos grupos políticos contrários, como os comunistas. Hess ficou entusiasmado com a ideia, e se empenharia em demonstrar para o líder do partido a importância disso. Ele não vislumbrou em Andreas seu futuro grande inimigo no partido. Como consequência imediata, Hess o apresentou para o próprio Adolf Hitler, alguns dias depois. Foi em uma reunião do partido na casa de Alfred Rosemberg. Ele sentiu aquele momento como uma ocasião qualquer e não ficou nervoso ou algo parecido, porém notou que todos os presentes ficavam emocionados e até intimidados na presença de Hitler. No entanto, ele também precisaria se mostrar impressionado, porque era evidente, Hitler gostava de se sentir um ser superior. A reunião daquela noite era para poucos membros. Adolf Hitler estava sentado na cabeceira de uma mesa, na sala de estar, com mais seis pessoas. Hess chegou junto com Andreas e o apresentou para todos. Hitler se levantou para cumprimentá-lo e olhou para o jovem fixamente, como se estivesse fazendo uma radiografia dele.

Por apenas dois segundos, Hitler ficou parado a sua frente, segurando sua mão e o fitando. Ele propositadamen- te fez conforme havia planejado, e misturou ingenuidade, admiração e um toque de mistério, para não ser visto como apenas mais um. Durante esse tempo, ele fez sua própria radiografia de Hitler e concluiu estar diante de um ser complexo, parecido com ele próprio. Ambos pareciam não ter medo, tampouco limites em suas ambições. Hitler, gentilmente, pediu para ele esperar o encerramento daquela reunião, para terem uma conversa particular. Aquelas palavras mansas não combinavam com a convulsão do seu olhar, assim pensou Andreas, associando-o ao Fausto, o personagem mitológico que para obter sucesso vendeu a alma ao diabo. Por analogia, ele criou ali uma brincadeira mental: também venderia, naquela noite, a alma ao diabo. No caso, em vez de Mefistófeles, o diabo vinha configurado em Adolf Hitler. Após poucos minutos, todos se retiram da mesa, inclusive o anfitrião Rosemberg. Andreas ficou apenas com Hitler e Hess, que introduziu aquela breve conferência: – Como eu disse ao senhor, este jovem tem uma ideia interessante, e gostaria de deixá-lo expor. Hitler consentiu através de um gesto com a mão direita. – Se o partido tem a preocupação, muito justa, com a segurança dos seus eventos, poderíamos antecipar uma boa parte da movimentação dos inimigos, com um acompanhamento das ações das suas lideranças. E o que precisar fazer, faremos – Andreas se expressou, controlando as palavras. Hitler não o observou durante a fala, mantendo o rosto levemente abaixado. Após alguns segundos, falou tranquilamente: – De onde você é?

Ele não ficou surpreso com a pergunta. Sabia que seria preciso provar que ele próprio não era um espião. – Sempre morei em Schwabing, e continuo ali, onde mantemos uma padaria na rua Giselastrase. Hitler novamente o fitou, um pouco surpreso, e disse com um certo entusiasmo: – Se é a padaria do velho Otto, já comi muitas vezes por ali, por vezes sem pagar, graças à benevolência dele. Que isso fique entre nós. Foram os velhos tempos de antes da guerra. Quando Andreas confirmou que se tratava da padaria da sua família, viu um lampejo de saudosismo no olhar de Hitler, e considerou tê-lo conquistado. No entanto, para sua surpresa, Hitler encerrou a conversa, abruptamente. – Vou para casa. Se for necessário, Hess entrará em contato com você. Tenha uma boa noite. Ele ficou confuso. Hitler poderia ter absorvido a ideia, ou até mesmo já a tenha em prática, e não precise dele para isso. Ou então tenha considerado uma infantilidade. Lamentou porque não teve oportunidade para expor mais suas opiniões, inclusive sua “profunda aversão aos judeus”. Claro, e o que mais precisasse ser dito para agradar aos ouvidos de Hitler. *** Andreas voltou à rotina da padaria. Era um estabelecimento pequeno, exatamente como seu pai sempre manteve, por sua vez conservando o mesmo estilo do seu avô. O jovem não se sentia estimulado a promover inovações na padaria, pois considerava ali como algo transitório. Na verdade era um fardo que ele carregava, mesmo agora após a morte dos pais.

Seus planos consideravam o crescimento do partido , processo que ele gostaria de acompanhar bem de perto. Com isso, muito em breve tinha a intenção de deixar a padaria, porém após a frieza com que Hitler ouviu sua ideia, passou a ter insegurança sobre seu futuro com os nazistas. Assim, seguia vendendo pães, leite, bolos e biscoitos no balcão do estabelecimento. Encontrava Eva, invariavelmente na casa dela, todas às quartas, sextas e sábados. Chegava pontualmente às 7 da noite. Ficavam na sala conversando, às vezes com a presença de vizinhos, e após o jantar, ele tocava violino, até perto da meia-noite, quando voltava para casa a cavalo. Excepcionalmente dormia ali, com Eva. Ela era apaixonada pelo concerto número 3, de Mozart. Todas as noites ele tocava o solo em violino, a pedido dela. Mas tal momento, em especial, o aborrecia. Era como se fosse a soma de toda monotonia de sua vida. Recordava-se das cenas do seu dia a dia na padaria, a rotina de atender as senhoras que todas as manhãs perguntavam se havia alguma novidade na confeitaria. Lembrava-se da negociação semanal de preços do trigo com os fornecedores, que naquela Alemanha em crise, dobrava ou triplicava em uma semana. Até mesmo a relação fria com sua irmã, seguidora dos passos da mãe na devoção à Igreja Católica, o perturbava. Ele lastimava pelo destino medíocre e pela iminência de um futuro sem sabor, em que viveria uma rotina insossa, veria os dias passarem sem que tivessem um verdadeiro sentido, a julgar pela sua inquietude, um traço predominante em sua personalidade. Passados alguns meses do encontro com Hitler, em uma tarde de setembro de 1921, Hess fez uma visita à padaria da família Spinger, em Schwabing. Andreas ficou sur- preso, pois já começava a desistir do projeto com os nazistas.

Conteve-se para não demonstrar ansiedade e procurou imprimir naturalidade ao encontro. Afinal, na condição de um aspirante a membro ativo do partido, com o poder de influência que ele julgava merecer, tinha que ser um hábil estrategista. As notícias do visitante imediatamente despertaram nele as mais ousadas ambições, que, de forma avassaladora, tomaram conta da sua mente e do seu coração. Haveria um encontro da Liga Bávara, uma organização separatista, em Munique, em poucos dias. O evento contaria com a participação do professor da Universidade de Munique, Thomaz Daniel Günter, um dos oradores da organização. A missão era, de alguma maneira, impedir a presença dele. O objetivo era enfraquecer o movimento. A missão fora aceita. Ele descobriu o endereço residencial do professor Günter, na região central de Munique. Combinou com sua irmã sobre a ausência do trabalho por alguns dias, e passou a seguir os passos do professor, de manhã até a noite durante dois dias, já preparando seu plano. Na manhã do dia 14 de setembro, o dia do encontro da Liga Bávara, Andreas escondido em um beco e com o rosto encoberto por um capuz, esperava a passagem do professor por uma rua deserta, utilizada para chegar a um café, ainda no centro de Munique. Quando Thomas, um homem franzino e pálido, passou ao lado do beco, a pé e desprotegido, foi puxado violentamente e levou uma pancada na cabeça, desfalecendo de forma instantânea. Andreas se certificou que ele não havia morrido, tomando seu pulso. Em seguida o puxou para um depósito abandonado no beco, amarrou seus braços e pernas com muita segurança e amordaçou

sua boca. Quando o professor recuperou a consciência, seu agressor estava em pé a sua frente, encapuzado e absolutamente calado. Ficaram assim até o final do dia. Ao escurecer, Andreas saiu ao en- contro de Hitler, deixando o professor sozinho no depósito escuro e frio. Ao encontrar Hitler, o líder estava acompanhado por um grupo de jovens nazistas. Eles se dirigiam ao encontro da Liga Bávara. Lá chegando perceberam o clima intranquilo pela ausência do professor Thomaz, mesmo assim começara a falar o orador Otto Ballerstedt. Hitler sabia que sem Thomaz a Liga não conseguiria a disseminação das ideias do grupo de forma persuasiva. Por uma linha de ação que passaria a adotar com frequência a partir dali, insuflou os jovens a partirem para cima do orador com o propósito de interromper o discurso. Alguém apagou as luzes do recinto e, quando reacendeu, os jovens gritavam “Hitler, Hitler”, numa sonoridade ascendente, impedindo que Otto discursasse. Em seguida os jovens partiram diretamente para cima do orador, com socos e pontapés. Andreas estava na linha de frente e pensou em um lance teatral e marcante: empurrou Otto de cima do palanque. Ele caiu no chão jorrando sangue de um ferimento grave na cabeça. A violência no evento da Liga e o suposto sequestro de Thomaz foram atribuídos a Hitler, que ficou preso por um mês em uma prisão de Munique. Ele confidenciou para Hess ser exatamente esse seu objetivo, ou seja, queria chamar a atenção. Poucos dias após a sua saída da prisão, um jovem membro do partido foi, em missão secreta, até a padaria e convocou Andreas para uma reunião particular na casa de Hitler, na Thierschstrasse.

Aacomodação alugada por Hitler ficava na região que Andreas mais gostava em Munique, perto do rio Isar, onde no verão, durante sua infância, costumava aproveitar a praia. O pequeno quarto do futuro führer “era algo muito próximo ao miserável, sem qualquer resquício de conforto”, conforme ele descreveu para Ernesto em carta, sem confessar o motivo da visita. Hitler foi bastante agradável e prático, dizendo precisar de alguém para uma missão importante. Seria necessária uma pessoa com habilidade para improvisar, assim como aconteceu no sequestro do professor Thomaz. Seria uma missão longa, e de conhecimento exclusivo dos dois, nem mesmo Hess deveria saber. Ele se infiltraria em uma organização paramilitar, chamada de tropa de choque do partido nazista, que viria a ser conhecida como SA, as Sturmabteilung, ou Divisões de Assalto. – Essa organização vai assumir um papel importante no crescimento do partido, e preciso de toda sua habilidade de simulação para se aproximar do seu líder, Ernst Röhm, e me manter informado de tudo. Ele deve sentir que você é absolutamente fiel a ele, mas quero essa fidelidade a mim – disse o führer. O mais impressionante para Andreas foi a radiografia exata feita por Hitler sobre ele. Ao convocá-lo para uma missão de espionagem, e realçando sua habilidade em dissimular, não havia dúvida que Hitler tinha uma capacidade excepcional de interpretar as pessoas. Ao se despedirem, Hitler o orientou a manter sua vida normal, morando na mesma casa e dividindo seu tempo entre a SA e seu trabalho habitual. Para Hess ele diria ter sido uma decisão pessoal e lamentava por não ser mais procurado.

Nos próximos encontros, ele deveria ir sempre disfarçado e após a meia-noite. Mais tarde, quando Hitler passou a ser protegido em tempo integral por uma guarda pessoal, passaram a usar uma senha para o acesso direto ao führer. Em poucos dias Andreas já havia se alistado na SA e se filiado ao partido nazista. Passou por uma entrevista com o próprio Röhm. Ele viu no líder da SA um sujeito tão assustador quanto Hitler, e com bem menos carisma. O poder principal de Röhm consistia na posse de uma grande quantidade de armamentos, que ele controlou após a dissolução da Einwohnerwehr, a guarda civil da Bavária, em 1921, rendendo-lhe o apelido de “Rei das Metralhadoras”. Também foi perceptível, logo no primeiro contato, uma certa independência com relação a Hitler, algo não perceptível em qualquer outro membro do partido. E, de forma surpreendente e contraditória para Andreas, o discurso de extrema violência, ódio e intolerância imposto por Röhm já na primeira conversa, misturava-se com olhares escondidos, mas que ele não conseguia disfarçar. Não restava dúvidas, ele era homossexual. O discurso de Röhm não ficava apenas na intenção. O crescimento da SA se deu na base de muita violência. Os membros da SA, incluindo Andreas, eram costumeiramente vistos pelas ruas de Munique aplicando sovas em cidadãos comuns, principalmente quando algum deles tinha qualquer traço que lembrasse os judeus. Andreas, após a ação de sequestro do professor Thomaz, percebeu que a violência lhe proporcionava prazer. Não a contragosto, ele se tornou um dos mais entusiasmados soldados da SA, e um dos mais violentos. Ele agora deveria

pacientemente esperar oportunidades para ganhar um destaque especial junto a Röhm, para poder ter informações especiais. Estava claro, o crescimento da SA, a princípio lento e depois assustadoramente voraz, poderia ser um fator desestabilizador para o partido. Prevendo isso, Hitler precisava efetivamente de mecanismos para impedir a SA de se tornar maior que o partido nazista e ele próprio. *** A rotina de Andreas, conforme determinado por Hitler, não sofrera grandes mudanças. Ele servia a SA em dias alternados, salvo em ocasiões especiais. Nos dias fora da tropa, ele trabalhava normalmente na padaria. E mesmo nos dias a serviço da tropa, e até nos de maior violência, ele mantinha a rotina de estar nas noites de quarta, sexta e sábado na casa de Eva. Após um dia atribulado, onde eram comuns ações coléricas, como “estourar os dentes de um indefeso cidadão em frente de seus filhos”, ele estava pronto para tocar o violino com a mesma entrega de sempre, na casa de Eva. A performance costumava arrancar lágrimas de sua namorada, cada vez mais apaixonada e sem a menor desconfiança sobre os traços mais obscuros da personalidade do seu companheiro. Sua irmã, no entanto, quando soube das atividades do irmão, relatadas por ele próprio, não escondeu a indignação. Lembrou a ele terem sido criados em uma casa cristã onde aprenderam que todos são iguais perante Deus. A violência, principalmente a gratuita como eles praticavam para alastrar o terror, não tinha condições de conviver em uma alma cristã. Apesar dele não ter uma relação afetiva com a irmã, não quis transformar seu lar em um ambiente

insuportável de se viver, e não respondia às constantes interpelações. Nunca teve sequer uma discussão com ela, mantendo-se calmo e indiferente, o que causava ainda maior revolta em Eva Spinger. Ernesto também não concordava com os passos do amigo. Em tom fraternal e acolhedor, típico dos sacerdotes, buscava orientá-lo a mudar sua trajetória de vida, casar com Eva Schiller e construir uma família estável. A correspondência de volta, a partir de Munique, sempre agradecia pelas palavras amenas, preocupadas e sinceras. Argumentava ser esse seu destino, assim como entendia ser o do amigo. Se o destino de Ernesto era servir a Deus, o dele era servir a Hitler.

As correspondências de ambos, além das cordialidades entendidas por eles como “protocolares”, segundo a definição de Ernesto, tinham trechos de profunda confissão, de dores, de angústia, de solidão. E, apesar de cada qual estar fazendo o que mais gostava, não restando dúvidas de estarem em suas respectivas vocações, havia neles um vazio na alma. Sentiam a falta da convivência de Munique e da satisfação intelectual e espiritual das suas conversas. Enquanto na Alemanha os planos ambiciosos de Andreas iam bem, em Verona, no tradicional convento Vescovile, Ernesto, que não tinha planos ambiciosos de crescimento na organização eclesiástica, a não ser voltar para a Argentina, ainda assim estava em ascensão nos degraus da Santa Sé. Em pouco tempo se licenciou em filosofia e douto - rou-se em Teologia pela “Pontificia Università Gregoriana”, onde construiu uma amizade sólida com Lui Palermo, um jovem italiano vindo da Calabria, sobrinho do Cardeal Palermo, cujo plano principal era incluí-lo nos quadros da cidade do Vaticano, em Roma. Como a influência do cardeal Palermo era grande jun - to ao Papa Pio XI, seus planos deram certo, e em 1928 Lui assumiu um posto em Roma, e levou também Ernesto. Já Andreas acompanhava o crescimento da SA, modestamente na condição de um devotado membro. Ele estava ali por uma estratégia de Hitler, mas a maioria dos recrutas eram oriundos das Freikorps, treinados para dedicar a lealdade pessoal apenas ao comandante do grupo, e como tinham passado militar ativo, eram bem diferentes dele. No entanto, Andreas se relacionava bem com todos e se dedicava para ser visto como bom colega e

esforçado recruta. Um dia o acaso quis que Röhm começasse a identificar o talento do jovem bávaro. Era uma tarde de setembro de 1923. Ele foi encarregado de levar uma encomenda ao escritório de Röhm, no centro de Munique. Ao entrar na sala, o líder da SA estava preocupado com a desorganização do seu controle sobre os novos membros, que a cada dia aumentava mais. Por uma força de expressão, Röhm lamentou com o jovem, sentir falta de alguém para organizar de uma forma inteligente e prática o controle funcional e militar do efetivo da SA. Andreas, ousadamente, colocou-se à disposição para elaborar um sistema para controlar as informações da tropa e ainda servir como controle financeiro para a organização. Röhm ficou surpreso e receoso. Talvez o jovem fosse apenas um empolgado soldado, buscando agradar ao chefe ou ambicioso o suficiente para prometer o que não poderia cumprir. Resolveu explorar a conversa e elaborou uma pergunta confusa, que serviria como um teste para avaliar a sua perspicácia ou então para descartá-lo: – Jovem, se eu tivesse 900 trilhões de marcos, precisasse transformá-los em dólares americanos e dividi-los entre 10 soldados da SA para uma missão no exterior, quantos dólares eu deveria entregar para cada soldado? Utilizando se da sua experiência nas negociações com fornecedores da padaria, a sua habilidade incomum com os números e acostumado com a complexidade de um país em hiperinflação, em menos de 20 segundos ele respondeu: – 25 dólares aproximadamente. Considerando cada dólar hoje cotado em 3,5 trilhões de marcos, os 900 trilhões se transformariam em 257 dólares americanos, divididos pelos

10 soldados da SA, representaria os 25,7 dólares para cada um deles. Daquele dia em diante, com o entusiasmo de Röhm, ele ajudou a constituir a estrutura organizacional por trás do crescimento fenomenal da SA. A começar pela elaboração de uma planilha para controle de cada membro da SA, adotando um sistema de cargos e salários, o mecanismo administrativo da organização se viu engrenado, proporcionando a Röhm a aparente tranquilidade para cuidar da parte operacional, e do aperfeiçoamento brutal das ações da SA. Aparentemente, porque com a influência e informações privilegiadas obtidas por Andreas na organização, o “Rei das Metralhadoras” nunca imaginou estar sendo monitorado em cada uma de suas ações e até intenções, pessoalmente pelo führer, que recebia um resumo semanal diretamente em sua casa, conforme combinado. Com essas informações exclusivas, Andreas passou a procurar entre os membros da SA, pessoas que pudessem ser de sua estrita confiança para ampliar suas ações de espiona- gem e alguma atividade mais violenta, se fosse necessário. Henrich Sauber, então com 30 anos de idade, parecia se encaixar perfeitamente no perfil de um matador frio e calculista. Combatente da primeira guerra, onde atuou em trincheiras, na chamada frente ocidental na França, foi condecorado com a cruz de ferro, destacando-se por possuir muita habilidade com as armas. Após a guerra, como a grande maioria dos combatentes, não pôde ser aproveitado no Exército, que precisou reduzir o efetivo por conta do Tratado de Versalhes. Sem emprego, entrou nas fileiras da SA.

Era um típico alemão da Bavária: loiro, de 1,80 metro de altura, com o rosto endurecido. Raramente demonstrava algum tipo de emoção. Não era casado e morava sozinho com sua irmã, em Munique. Foi uma aproximação cautelosa e difícil, já que Sauber pouco falava e mostrava pouca paciência para conversas com temas não ligados às atividades da SA. Ainda assim, Andreas conseguiu ganhar a confiança dele, com atitudes simples, como convidá-lo para conhecer a padaria e até mesmo jantar em sua casa. Emannuel Horst Fritz, 25 anos de idade, era um camponês da região do Tirol. Ele deixou os pais no campo e fora tentar a sorte em Munique. Apesar de não ter ensino superior, destacou-se por uma inteligência acima da média nos testes realizados justamente para descobrir alguém talentoso e ambicioso para ajudá-lo na organização do novo núcleo e na formatação de uma estrutura eficiente na tarefa de espionar as atividades das lideranças da SA. A aproximação foi mais fácil com Emannuel, que também foi levado a conhecer a padaria da família Spinger. Naturalmente, Andreas não contou para eles qual seu verdadeiro papel na SA. Após poucos meses de amizade, esclareceu sua intenção em estabelecer uma estrutura paralela no partido nazista. Usando um premeditado poder de sedução, fez ambos acreditarem na aliança que firmavam como sendo um bem-sucedido acordo e de futuro promissor nas carreiras do nacional-socialismo. Em geral, os membros da SA eram induzidos a praticar a violência, sobretudo contra judeus. Adotavam algumas linhas ideológicas do partido nazista, como a crítica ao Tratado de Versalhes e seus efeitos na economia e no modo de vida alemão, mas Röhm sempre cuidou para sua organização manter características de independência com relação a Hitler.

Para não correrem riscos de atrair a fúria do líder da SA, Emannuel e Sauber não deveriam demonstrar a lealdade deles com Hitler, embora eles já estivessem trabalhando para o futuro führer. Os dois passaram a integrar o círculo mais próximo a Andreas, que sempre estava atento a outros membros da SA com potencial para acompanhá-lo em sua trajetória de crescimento no partido, e na construção de uma Alemanha forte, como pregava Hitler. Ele ia pacientemente formando um banco de dados de futuros talentos. Os nomes mais atrativos eram aqueles com habilidades para ações de espionagem e assassinato. Os simples funcionários de repartições ou até mesmo de empresas privadas também interessavam a ele. Quando Hermann Göring assumiu o controle da tropa de assalto no lugar de Röhm, que passou ao controle de um comando paramilitar unificado por toda Alemanha, ele galgou um posto mais importante na estrutura administrativa da organização. O novo comandante, apesar de sua imponência e toda fama de herói de guerra, desde o primeiro momento deixou em Andreas a impressão de fanfarrão. A impressão aumentou durante a ascensão do nazismo, no entanto Hitler apesar de sempre alertado da inconsistência das suas informações e planejamento, nunca deu ouvidos, pois nutria por ele algum tipo de admiração especial. Göring estava ao lado de Hitler no dia 8 de dezembro de 1923. Na ocasião, acompanhados por um grupo armado, invadiram um evento na cervejaria Bürgerbräukeller e Hitler anunciou a deposição do governo Bávaro. No dia seguinte, portando uma pistola Walther calibre 7.65 mm e com um pequeno exército de 2 mil pessoas também

armadas, Hitler se propôs a caminhar em direção ao ministério do Exército, no centro de Munique. Andreas o alertou sobre a iminente possibilidade de serem repelidos por policiais. Hitler não mudou de ideia. De fato, logo após o início da marcha, ficaram frente a frente com um peque- no grupo de policiais, mas passaram por eles sem maiores problemas. Mais adiante, na rua Residenzenstrasse, perto da Odeonplatz, encontraram com um grupo maior de policiais. Por um excesso de nervosismo, em poucos minutos ocorreu um tiroteio que provocou vítimas em ambos os lados. No tumulto, Göring, com um tiro na perna, escapou para em seguida fugir do país. Hitler, após se refugiar nos arredores de Berlim com o braço quebrado no tiroteio, foi preso poucos dias depois. Com Hitler na cadeia, o movimento nazista foi proibido, e a SA, por um período, ficou desarticulada. Enquanto Hitler estava na prisão de Landsberg, Andreas o visitava frequentemente, passando as informações coletadas nos bastidores dos líderes nazistas, como se estivesse conferindo a lealdade deles. Nessa época da prisão, ele passou a saudar o líder com “Heil Hitler” como algumas pessoas já o faziam. A saudação depois virou atitude obrigatória para todo alemão. Röhm também fora preso pelo mesmo episódio. Como recebera uma pena mais branda, foi solto antes. Andreas alertou Hitler sobre a articulação de Röhm para montar uma organização paramilitar de abrangência nacional, chamada por ele de Frontbaan. Hitler não conseguiu fazê-lo mudar de ideia e chegou a considerar a possibilidade de assassinar Röhm. Porém, avaliando o impacto negativo e uma possível convulsão entre as tropas paramilitares, com resultado

imprevisível, ele mudou de ideia. Henrich Sauber já estava pronto para executar a missão. Hitler foi solto em 20 de dezembro de 1924, após escrever seu livro “Mein Kampf”, em Landsberg. Em seu livro, ele resumia a história mundial como sendo conduzida por uma luta racial, onde os arianos, os mais elevados estavam sendo destruídos por uma categoria considerada inferior, formada pelos judeus. A partir desse período de reclusão, uma nova etapa na história da Alemanha surgia. O mundo estaria diante de uma fera ferida, mais preparada com as leituras que teve tempo de fazer longe da agitação das ruas e da vida partidária, madura com conceitos utilizados mais adiante como o do “espaço vital”, fundamental para se entender sua obsessão em invadir a Rússia, e articulada através de diversos planos, elaborados para tomar o poder e criar as bases para o Reich de mil anos. Para isso estava disposto a usar todas as armas necessárias. CAPÍTULO 4  SCHUTZSTAFFEL Hitler tomou a decisão, ainda na cadeia, de formar, aos poucos, uma nova tropa de proteção para, em alguns anos, substituir a SA. O embrião da Schutzstaffel, a SS, seria formada a partir de um núcleo da SA, encarregada de proteger os líderes nazistas. Andreas foi convocado para ajudar na rearticulação da SA e, de forma absolutamente reservada, a pensar em uma SS poderosa. Na concepção de Hitler, a SS deveria ter a capacidade de controlar os passos de toda sociedade alemã, principalmente dos membros do partido e das forças armadas.

De maneira pouco sutil, como era seu estilo nesses assuntos, Hitler adiantou a Andreas: “você jamais assumirá a liderança formal da SS”. Não deu uma explicação do motivo, certamente pensando que a direção de organismos dessa natureza ficaria melhor para alguém mais vaidoso, onde ele, o führer, poderia manipular sua performance justamente a partir desse pronto fraco, a vaidade. A sua função estava clara: ninguém deveria perceber a importância dele junto a Hitler. E ele seria o responsável para agir, de qualquer forma e em qualquer condição, para a formação do Terceiro Reich não ser prejudicada por ameaças externas ou internas. Com a liberação das atividades do partido, Hitler determinou que a SA voltaria a ser uma tropa de apoio ao partido nazista. Röhm tentou dissuadi-lo dessa ideia, mantendo-a como organização paramilitar, mas como não obteve resultado, mudou-se para a Bolívia. *** Antes da recriação da SA em 1925, Andreas esteve presente em diversas ações especiais para Hitler. A mais enigmática foi sequestrar o principal rival no movimento da direita nacionalista, o general Erich Ludendorff, ameaçando-o de morte, assim como sua família, se ele não aceitasse concorrer à eleição para presidência da República de Weimar, após a morte do social democrata Friedrich Ebert. Ludendorff aceitou o convite de Hitler, oficialmente sem expor as razões, o que ninguém jamais compreendeu, e teve um desempenho pífio, alcançando apenas 1,1% dos votos. Com o resultado, ele quase foi destruído politicamente, e abriu o caminho para Hitler assumir a supremacia na liderança do movimento.

A quase destruição da imagem política de Ludendorff se consolidou, quando logo após a eleição, foi divulgado um dossiê que o acusava de fazer parte da maçonaria, algo abominável para os simpatizantes dos grupos políticos que transitavam entre Hitler e o próprio Ludendorff. Naturalmente, um dossiê elaborado por Emannuel. Outra ação de destaque, embora sem os requintes de maldade que vitimou Ludendorff, foi a investigação sobre a vida de Joseph Goebbels, um jovem brilhante, também vindo de uma família católica, da Renânia. A princípio, Goebbels estava contestando a autoridade legítima de Hitler e ainda parecia atraído pela ideia do nacional bolchevismo, o que Hitler abominava tanto quanto o judaísmo. A investigação não apontou nada de relevante contra o jovem. Nada suficiente para afastá-lo do partido ou incriminá-lo. Pelo modus operandi de Hitler, a primeira ação contra os adversários era jogar a reputação deles no lixo, quando não fosse aconselhável eliminar fisicamente os sujeitos. Curiosamente, antes de Andreas ter entregado o relatório final sobre Goebbels para Hitler, espontaneamente o jovem da Renânia se convenceu que Hitler era o grande líder para o movimento. A convicção era tão forte que chegou a ponto de endeusá-lo. Em 1925, a SA foi oficialmente recriada, e o co - mandante designado foi Franz Pfeffer Von Salomon, tendo Andreas oficialmente como seu auxiliar administrativo. Em junho, houve um comício em Weimar, e a tropa de choque estava presente com mais de 3.000 homens, além dos outros 111 da SS, pela primeira vez se apresentando em público.

O crescimento do partido nazista, no entanto, assim como a liderança de Hitler, perderia força nos anos seguintes. O governo alemão já não o considerava uma ameaça ao país. A Alemanha passava por um processo de estabilização política e econômica. A SA sempre fora um organismo sobre o qual Hitler não teve o controle absoluto. Sob o comando de Von Salomon passava por um período de autoestima baixo. Era uma consequência do momento político do movimento nazista e da gestão pouco carismática do líder da tropa. Hitler buscou se apropriar do momento para aumentar seu domínio. Em maio de 1927, ele convocou a tropa de choque de Munique e fez um discurso memorável, mostrando aos seus membros o quanto cada qual se tornaria mais forte e respeitado na sociedade, na medida em que prestassem fidelidade a ele, Hitler. Como sempre fazia quando precisava provocar mais emoção em seu público, ao final do discurso ele se dirigiu a cada um dos presentes apertando suas mãos. O culto à personalidade do führer foi a principal estratégia usada por ele para provocar o ressurgimento do nazismo como movimento forte em toda a Alemanha. Aconfirmação do enfraquecimento do partido nazista, no período em que a Alemanha começava a encontrar estabilidade econômica, ocorreu na eleição para o Reichstag, em maio de 1928. O Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP, conhecido como partido nazista, obteve apenas 2,6% dos votos e elegeu 12 deputados, dentre eles Goebbels e Hermann Göring. ***

No ano de 1929, a crise econômica começava a voltar na Alemanha e o partido, na dimensão proporcional ao crescimento da crise, ganhava novos adeptos pelo país, utilizando de forma competente uma de suas principais armas: a propaganda. Através de ações de divulgação das ideias de Hitler por todo o país, os nazistas exploravam o discurso culpando o governo fraco pela crise, principalmente por ter aceitado os termos humilhantes do Tratado de Versalhes, mandando o dinheiro suado do povo alemão para os países que impuseram ao país a derrota na Primeira Guerra, através do acordo de indenização e, em especial, denunciando a exploração da economia por um pequeno grupo de sanguessugas, os judeus. Com essa fórmula, Hitler esperava conquistar o povo alemão, no entanto, ele não contava com um acontecimento mundial, que na verdade foi o fator mais importante para a consolidação do nazismo como força política relevante no país: a quebra da bolsa de Nova York, em outubro de 1929. A economia americana entrou em crise profunda, e toda a economia mundial teve a mesma sorte. A Alemanha voltava a conviver com o fantasma da inflação, corroendo os salários de forma devastadora, enquanto desestabilizava os preços. As falências aumentavam e o desemprego crescia a ponto de, em pouco tempo, um em cada três trabalhadores alemães estarem desempregados. Muitos dos que mantiveram os empregos conviviam com regimes de redução no horário de trabalho e também nos salários. Naturalmente a população dirigia sua revolta ao governo, e o apelo dos nazistas assim como dos comunistas, considerados o partido dos desempregados, ganhava

simpatia entre os alemães. Essas circunstâncias ajudaram a florescer um sentimento antiliberal em todo mundo, com ascensão de movimentos como o fascismo e o comunismo. Na Itália o Duce, Benito Mussolini, no mesmo ano de 1929 se aproveita da criação do Estado do Vaticano e com o reconhecimento deste, amplia seu poder ditatorial ainda mais. Na onda da crise da bolsa americana e seus efeitos perversos na economia italiana, ele utiliza do mecanismo de criar obras públicas para absorver os desempregados, além de incentivar a agricultura e a indústria bélica. O Duce também inicia uma violenta perseguição a opositores, principalmente os comunistas. Ele fecha partidos políticos e implementa a censura no ensino e na comunicação. Hitler percebeu que os comunistas seriam os grandes rivais dos nazistas na disputa pela simpatia do povo alemão. E recebendo notícias das ações de Mussolini na Itália, envia Andreas para um período de reconhecimento em Roma, confiante que esse “mestrado” serviria para melhorar o funcionamento da SS, que já começava a ganhar o corpo imaginado pelo führer. *** Andreas percorreu o trajeto de Munique a Roma em um trem noturno, respirando um “ar revolucionário”, conforme ele descreveu em carta para Eva Schiller. Já na capital italiana, o padre Ernesto o esperava na estação Termini. Em uma cafeteria próxima ao terminal, os dois amigos puderam relembrar os tempos de Munique e, rapidamente, avaliar como suas vidas tomavam novas rotas. – Meu amigo, experimente um café expresso, de preferência sem açúcar, como os italianos tanto gostam – disse Ernesto.

– De fato, vou precisar respirar os ares da cidade eterna como se fosse um romano. Preciso da sua ajuda, por isso vou ser sincero sobre os motivos que me trazem aqui – emendou Andreas. – Para ser sincero também, tenho acompanhado sua vida. E não é com alegria que vejo as convulsões na Alemanha e como o partido nazista tem usado do ódio para ganhar espaço. Conhecendo sua inteligência e ambição, consigo imaginar até onde você está envolvido com isso tudo, mas vou te dizer mais uma vez: você é meu amigo e pode contar comigo para qualquer coisa – revelou o acolhedor Ernesto. – Fico feliz, e não esperava que você seria tão direto. É isso, eu preciso aprender com Mussolini, mesmo sem conhecê-lo ou ter contato com o seu governo. Na verdade, preciso entender como o povo romano percebe as ações do governo na crise e como este governo está abafando as vozes da oposição – frisou Andreas. – Como você deve saber, uma das formas é através do Vaticano, que tem dado apoio a Mussolini. Isso também é constrangedor para mim e para a grande maioria do clero, e digo isso a você na mais absoluta confiança, pois é um desabafo. Tenha a certeza, um cristão verdadeiro, dos quais é formada a Igreja Católica, não concorda com a violência e a repressão. Eu não gostaria de acreditar, porém vejo que a política é o modo de se abraçar o diabo para se fazer a obra de Deus – ponderou Ernesto. Aquela frase serviu para darem muita risada. Em seguida Andreas se hospedou em um pequeno hotel, na via Magenta, próximo à estação Termini, e sem sequer descansar, saiu a caminhar pelas ruas sozinho, para começar logo a se ambientar, mesmo com seu pouco domínio da língua italiana. Com o passar dos dias, a principal conclusão formulada por Andreas foi que a maioria da população italiana apoiava a

mão de ferro do Duce, porque entendia que no fundo ele a usava para manter os empregos e a paz social. No âmbito econômico, além das obras públicas responsáveis por tirar do desemprego milhares de italianos, havia o incentivo `a indústria bélica, cuja função, além do emprego, foi o fortalecimento da força política da Itália. O governo criou, ainda, um programa de substituição das importações pela produção doméstica. O visitante alemão notou ser esta a mais eficiente política de fortalecimento da economia italiana, pois além de industrializar o país, diminuía sua dependência externa. Quanto à repressão política, estava claro que Mussolini tinha o apoio do rei, dos empresários, do exército e do povo. A adoção do partido único veio acompanhada do controle total dos sindicatos pelo Estado. Foi criado um tribunal, que julgava de forma ágil todos que pretensamente tivessem lançado qualquer ofensa ao Estado. Tal modelo provocou um verdadeiro clima de pânico, e certamente sufocou diversas vozes de oposição, como Andreas notava, em conversas informais pelas ruas de Roma, sobretudo porque a OVRA, a polícia secreta fascista, utilizava de muita violência para garantir o terror. Certamente a SS que tomava corpo na Alemanha seria muito influenciada pela OVRA. Andreas certa vez se encontrou com um italiano de aproximadamente 30 anos, durante um passeio pelo circus maximus. Como o italiano do jovem alemão ainda era bastante ruim, aquilo chamava a atenção dos romanos. Eles achavam divertida a forma daquele alemão se comunicar, usando muitos gestos, e se sentiam à vontade na presença dele, certos de não se tratar de um agente da OVRA disfarçado.

Aquele italiano então se declarou comunista, e contou que dias antes foi interrogado pelos agentes da polícia secreta para entregar comunistas escondidos pela cidade. Como ele não era um comunista ativo, apenas simpatizante, não sabia de nada, mas os agentes além de baterem muito nele, obrigaram-no a tomar óleo de rícino em grande quantidade. Somente após muita tortura, concluíram que ele realmente não tinha qualquer envolvimento com movimentos organizados. Como sequer confirmaram ser ele simpatizante do comunismo, po- de-se dizer que ele tirou a sorte grande, pois foi colocado em liberdade. Ele também ouviu histórias sobre os Blackshirts, uma organização paramilitar italiana semelhante à SA, embora parecesse ser ainda mais violenta e sádica. Em uma das histórias, o irmão de uma vítima, conta que sua irmã, uma ativista comunista, foi presa e usada como símbolo pelos Blackshirts em uma aldeia no norte da Itália. Tiraram a roupa dela e a penduraram em uma árvore. Em seguida a obrigaram a comer um sapo vivo, depois a mataram com golpes de porrete. Junto ao corpo dela, os aldeões puderam ver um cartaz com a frase símbolo do movimento: “Me ne Frego”: não dou a mínima. Durante os vinte dias em Roma, Andreas se encontrou quase todas as noites com Ernesto. Em uma dessas ocasiões, conheceu o padre Lui Palermo pessoalmente. Os amigos se encontraram pela primeira vez na noite seguinte a sua chegada, e por orientação de Lui, em uma cantina próxima à igreja Santa Maria Della Vittoria. Apesar de ficar longe da cidade do Vaticano, onde os pa- dres moravam, valia a pena pela qualidade da comida e do vinho. Como o alemão ficou encantado por um prato, o rigatoni alla pajata, uma massa com molho à base de

intestino de vitelo que toma apenas o leite pajata, adotaram a cantina como ponto de encontro fixo. Como Lui era bastante extrovertido e contava ótimas piadas, Andreas se divertiu muito nas noites entre os amigos. Ele ficou satisfeito por ter a oportunidade de conviver novamente com Ernesto, e poder confirmar pessoalmente o quanto o amigo estava indo bem na carreira eclesiástica. Lui confirmou a sua intenção, a exemplo do dese - jo do tio, em fazer carreira no próprio Vaticano. Agora na condição de Estado independente, abriria ainda mais oportunidades para os sacerdotes. Ele assumira um cargo na Secretaria de Estado, e estava impressionado com o leque de relações aberto por tal posto. O padre italiano não era propriamente um sujeito ambicioso e sempre demonstrava profunda admiração pelos padres que percorrem o mundo levando o Evangelho e a caridade. Lui acreditava ser possível contribuir da sua forma com a igreja, fortalecendo a estrutura central do catolicismo apostólico romano, o Vaticano. Ernesto também acreditava na Igreja Católica como sendo um instrumento de caridade e formação espiritual. Ele não gostava de viver no Vaticano. E sempre quis voltar para a Argentina. Esperava o momento para ser o padre de uma paróquia qualquer. Apesar disso, a cúpula romana tinha outros planos para ele, que alguns anos depois foi nomeado representante do Vaticano na arquidiocese de Buenos Aires. Durante os jantares sempre alegres, e por alguns momentos regados por conversas sérias e filosóficas, lembrando os tempos de Munique, Andreas se sentia incomodado porque um pressentimento invadia seu pensamento: ele, um dia,

ainda usaria as boas relações e a boa vontade de seus amigos em proveito próprio. Enfim, ele voltou para Munique com muitas ideias e com a convicção de que o povo alemão, a exemplo do italiano, aceitaria e se reverenciaria a uma liderança forte, mesmo ditatorial e violenta. E conforme debateu com Lui e Ernesto, de nada valeria toda a formação cultural do povo alemão, uma população culta e esclarecida, sempre orgulhosa de sua história e dos seus gênios. Ele compreendeu que quando a crise na economia leva a fome e a violência para o centro de uma sociedade, e o caos leva a insegurança para as famílias, as pessoas querem a firmeza e força de um protetor, a garantia do patrimônio e a ação concreta contra a violência que ameaça as famílias. Ele também aumentou a percepção do seu papel: ajudar Hitler a criar um serviço de inteligência capaz de se transformar em um mecanismo de contenção aos ataques e conspirações contra o protetor da Alemanha. Porém, mais uma vez, algo o incomodava. Insistentemente recorria em seu pensamento o que Ernesto disse, quando Andreas embarcava no trem: – Meu medo é você também estar acreditando que a ditadura e a violência sejam o remédio para uma sociedade doente. Até antes de te encontrar aqui em Roma, eu sabia dos seus serviços a esse grupo político. Mas como você sabe, esse processo de dominação não passa da manipulação da miséria de um povo. No entanto, agora estou vendo, você também está fascinado por esse regime totalitário. Que Deus o faça enxergar a verdade, meu amigo, e o ilumine para escolher o lado certo. ***

Chegando a Munique, Andreas foi chamado imediatamente para uma conversa com Hitler, quando foi apresentado para o novo comandante da SS, Heinrich Himmler, que recebera o título de Reichsführer SS, alta patente da organização. O führer, na verdade fez um jogo de cena, e apresentou Andreas como um jovem talentoso e disciplinado que ainda se manteria na SA para impedi-la de se tornar totalmente independente. Ao mesmo tempo, ele ajudaria Himmler em todo processo de organização da nova SS. E deixou claro, para tranquilizar o novo comandante da SS, que todos os contatos dali em diante seriam diretamente entre Himmler e o próprio Hitler. Himmler parecia ter um olhar maldoso. Foi assim que Andreas o descreveu para sua namorada. Ele já tinha visto Himmler por diversas vezes em Munique, onde ambos nasceram. Na batalha em que Göring foi baleado e Hitler teve o braço quebrado antes de ser preso, em 1923, Himmler carregava a bandeira imperial alemã, e caminhou ao lado de Hitler. Durante os anos de prisão do líder, ele tentou a vida como o que chamava de “fazendeiro de aves domésticas”, também conhecidas como galinhas. Não obteve sucesso, o que levou Andreas a concluir que Himmler não seria habilidoso com os processos administrativos de uma organização. Porém, como veria adiante, tinha uma grande capacidade para fazer a SS evoluir e ampliar sua atuação e, principalmente, confirmando o que seu olhar transmitia, era cruel, impiedoso e frio. O Reichsführer SS implantou um regime de trabalho alucinado. Trabalhava todos os dias, de manhã até de madrugada. E em todas as noites, incluindo sábado e domingo, dava expediente com Andreas, sempre

consertando pequenos detalhes administrativos e planejando a estrutura da SS para quando, finalmente, assumissem o poder na Alemanha. Curiosamente, o ritmo intenso de trabalho trouxe um problema semelhante para ambos: desavenças conjugais. Por não suportar mais as ausências do namorado, Eva protestava constantemente, mas mantinha-se dócil, enquanto a esposa de Himmler, Marga, com quem estava casado há menos de dois anos, tornou a vida do já poderoso Reichsführer um inferno. Ela lamentava, com protestos descontrolados, ter sido trocada pelo trabalho, e não dava tréguas nos protestos. E se Eva, mesmo descontente, manteve o namoro, Marga decidiu pela separação. Um dia Himmler confessou que era um alívio para ele não ter com quem dividir a atenção que a SS merecia. Por vezes, Himmler interrompia um pouco o trabalho e conversava com Andreas sobre outros assuntos. Certa vez, enquanto discutiam a implantação de uma futura fábrica de armas especiais para os membros da SS, ele interrompeu uma apresentação sobre as planilhas de gastos e discorreu sobre um personagem da história que o fascinava, o rei Heinrich I, conhecido como Henrique passarinheiro. Heinrich tinha defendido as terras, que seriam a Alemanha, contra as tentativas de invasão dos eslavos e foi coroado rei da Germânia, no ano de 919. Com o passar dos anos, Andreas identificou tons místicos na personalidade de Himmler, e percebeu que ele se considerava, de alguma forma, a reencarnação espiritual de Heinrich I. Como, para um primeiro momento, Hitler queria apenas uma guarda pessoal leal e capaz de protegê-lo dos inimigos,

principalmente da SA, o führer deu liberdade para Himmler desenvolver diretrizes para a SS, mesmo com certas características místicas. Himmler tinha a pretensão de criar na SS uma guarda de guerreiros nórdicos, por isso só aceitava para a organização os alemães da mais pura raça ariana e, além da aparência, precisariam comprovar sua linhagem por pelo menos três gerações. O führer, admirador do compositor Richard Wagner, sabia que Himmler, outro admirador do compositor, inspirava-se nas óperas wagnerianas e nos seus heróis, e por isso não se importava com as excentricidades do Reichsführer. Andreas ajudou Himmler na criação de um código de conduta para os recrutas SS, e na aplicação das suas regras, transformando-a em uma organização disciplinada e leal. Ao mesmo tempo, por ordem de Hitler, cuidava para a SA manter uma desorganização disciplinar. Com isso, os melhores membros da SA começaram a procurar a SS, como recrutas. Além disso, Hitler já planejava a hora de extinguir a SA, e o descontrole não ajudaria as suas lideranças a reconstruírem a organização. Por isso, ele ainda não poderia deixar a SA e se dedicar integralmente à SS. Em 1930 Hitler declarou a SS independente da SA. Uma nova organização para a SS foi implantada, com uma estrutura militar. Entre as medidas adotadas estavam o abandono do esquadrão composto por 10 componentes e a introdução do novo uniforme, com destaque para a braçadeira preta com a suástica. Por sua vez, a SA crescia, sobretudo pela depressão alemã, levando desempregados a procurar o soldo como solução familiar. E como a organização demonstrava, cada vez mais, não estar disposta a obedecer a Hitler, este por sua vez

orientou Andreas a estimular a desavença entre suas lideranças, e ordenou que ele viajasse por toda a Alemanha com esse propósito. A estratégia estava dando resultado e a SA, por força da extrema desorganização e brigas entre seus líderes, não estava provocando ameaça direta a Hitler. Entretanto, o vice-comandante da SA, Walther Stennes, decidiu, de qualquer forma, confrontar Hitler. Um informante de Andreas em Berlim o alertou para isso, assim todas as atenções já estavam dirigidas para Stennes. Quando Hitler se recusou a atender as exigências do vice-comandante e o afrontou publicamente, em agosto de 1930, a SA de Berlim se rebelou. Ele recomendou a Hitler voltar atrás e aceitar as condições de Stennes, por uma questão de estratégia. O führer reagiu furioso: – Nunca me peça para voltar atrás em minhas convicções. Eles são traidores, não vou ceder à chantagem. Porém, em poucos dias procurou Stennes e aceitou a maioria das condições dele. Em contrapartida, colocou em plano uma ofensiva. Demitiu o comandante Von Salomon e mandou buscar Röhm na Bolívia para reassumir o comando. Andreas fez chegar às mãos de Röhm um relatório, com fotografias, mostrando os comandantes da SAde Berlim em um encontro secreto e declarando, decididamente, não aceitarem o comando supremo de Hitler. Poucos dias depois, soldados da SA entraram em confronto com os da SS em Berlim, e como um efeito dominó, unidades da SA por todo o país declararam apoio a Stennes contra Hitler. A desorganização da SA, sempre fomentada por Hitler, salvou o nazismo. Se a SA tivesse forças naquele momento, teria destruído o partido nazista e o führer. Só não conseguiu porque foi abatida pela falta de estrutura financeira própria. Quando uma unidade da SA promovia rebelião, o partido cortava sua fonte de recursos, e por isso, através de uma

campanha de propaganda que Andreas articulou em suas viagens, os soldados rasos ligados ao partido, com medo de perder os soldos, ficaram com Hitler. Em pouco tempo, na medida em que os recursos acabavam, Stennes perdia sua força e o movimento foi sufocado. Hitler ainda não estava satisfeito, e bem ao seu estilo, determinou que Göring pessoalmente fosse atrás daqueles que ainda eram seguidores de Stennes e os assassinassem, um a um. Em 1932 a SA contava com mais de 400 mil soldados, e continuava como um constante perigo não só para o partido nazista, como para o governo alemão, que temia um golpe militar. Diversos movimentos, com menor intensidade se comparados às ações provocadas por Stennes, irradiaram pela SA em 1932. Alguns deles eram detectados por Andreas, que cuidava de sufocá-los, até eliminando pessoas-chave, como ocorreu com o comandante SA de Dresden, Wolfgang Kepper, que estava planejando uma rebelião com outros comandantes da Saxônia. Um informante o avisou, então o fiel Henrich Sauber se dirigiu a Dresden, e o eliminou com um tiro de fuzil Mauser 98K, versão “sniper” com mira telescópica, usado diversas vezes dali por diante. *** Na turbulência política da Alemanha nesses tempos, a espionagem e o terror se expandiam na estrutura nazista. A SS incorporou aos seus quadros Reinhard Heydrich, um brilhante estrategista, ainda mais sanguinário que Himmler. Heydrich ajudou o Reichsführer SS a implementar uma rede de espiões pelo país, chamada de rede de proteção e inteligência para a SS, a Sicherheitsdienst, conhecida como a temida SD. Göring, por força de colisão partidária, assumiu o cargo de ministro de interior da Prússia, e se aproveitou da estrutura

policial a sua disposição formando a também temida Gestapo, a Geheime Staatspolizei, polícia secreta do Estado. Porém, o mais impressionante é como estruturas tão eficientes nos serviços de inteligência e contrainteligência, compostas por cabeças privilegiadas das universidades alemãs e policiais experientes, certamente fundamentais para formar o maior sistema de espionagem do mundo até então, não foram capazes de detectar que eles próprios estavam sendo espionados. Assim foi até próximo ao final da Segunda Guerra. Graças à equipe que não tinha sequer um nome, comandada por Andreas, que se reportava diretamente a Hitler. *** O quartel-general da SS se mudou para Berlim, e Andreas, ainda na administração central da SA, também se mudou para a capital alemã. Ele conseguiu um pequeno apartamento, de três cômodos, com quarto, cozinha e banheiro, na Paderbomer strasse, e o mobiliou com móveis simples, bem ao estilo modesto de sua casa. Sua ambição não incluía a posse de bens e a ostentação. Ele apreciava esse estilo simples como sendo uma das únicas heranças dos pais, incorporadas em sua vida. Ele não rompeu o namoro com Eva Schiller, mas para a decepção dela não a convidou para morarem juntos em Berlim, alegando não ter como lhe dar atenção. De fato, sua rotina de viagens e a carga de trabalho seriam mais intensas se comparadas com os compromissos que ele tinha em Munique. Como sempre, Eva aceitou, porém percebeu que o tinha perdido para sempre. Eva Spinger havia se casado pouco tempo antes do irmão se mudar para Berlim, e passou a morar com o marido, um

dentista recém-formado, em uma casa próxima à padaria, ainda conduzida por ela, com a ajuda do pai de Ernesto. *** A Alemanha convivia com um governo frágil, que precisava lançar mão de diversas alianças entre partidos de ideologias e formações diversas, além de manter uma relação delicada com o Exército, sempre agravada pela pressão dos grupos paramilitares. Por conta de uma das crises de coalizão no governo, o presidente alemão, Paul Von Hinderburg, nomeou Hitler como chanceler alemão em janeiro de 1933. Com dificuldades para conviver com as diversas correntes partidárias que formavam o governo e o parlamento, Hitler convocou uma eleição para dois meses após sua posse como chanceler. Entretanto, ele tinha um plano debaixo da manga. Coube a Himmler executá-lo, de uma maneira que não deixasse qualquer rastro, caso contrário seria o fim do movimento nazista. O Reichstag deveria ser incendiado e a culpa do episódio deveria recair sobre os comunistas. Era a prova de fogo para Himmler. Andreas naturalmente sabia da operação porque o escritório e a casa do Reichsführer SS estavam grampeados. Pelas escutas, ele percebeu o quanto o Reichsführer estava nervoso nos dias que antecederam a ação. Como sempre fizera, passou-se por sonso e apenas acompanhou os passos de Himmler, que pediu a ajuda de Heydrich para a execução. Heydrich também sabia ser aquela sua prova de fogo e cuidou pessoalmente do caso, executando-o de forma simples. Através das investigações feitas junto aos membros do partido comunista, descobriu um jovem holandês, recémchegado à capital alemã, Marinus van der

Lubbe, um simpatizante comunista, passando por um momento de martírio pessoal. Ele estava condenado à cegueira em poucos anos. O jovem morava com seu pai desempregado, que encontrara recentemente em Potsdam, subúrbio de Berlim, após anos de separação. Certo dia, Heydrich o sequestrou e fez a ele uma proposta irrecusável. O jovem Van der Lubbe deveria provocar um incêndio no parlamento alemão, ação pela qual iria ser preso. Pelo serviço receberia uma fortuna de 300 mil reichsmarks que serviria para seu pai ter uma vida confortável, em Portugal. Caso ele recusasse, o pai seria morto na sua frente, com requintes de crueldade. Assim foi feito, e conforme combinado o jovem permaneceu no Reichstag após o incêndio, justamente para ser preso. Van der Lubbe não confessou de imediato, mas o fez em poucos dias. Heydrich cumpriu o combinado, e providenciou para o dinheiro chegar às mãos do pai do jovem, somente em Lisboa, onde ele já esperava instalado em um hotel. Ele não foi informado exatamente o porquê da súbita mudança de endereço ou do dinheiro, e foi seriamente advertido para jamais voltar à Alemanha, tampouco fazer comentários sobre o caso. O jovem foi decapitado no ano seguinte, por ordem judicial. Hitler chegou ao local do incêndio visivelmente perturbado. Ele fez questão de demonstrar indignação para todos perceberem o quanto estava inconformado com o ato. Direcionou suas suspeitas aos comunistas, que teriam realizado o incêndio para provocar uma convulsão social na Alemanha e tirar os nazistas do poder. Quem assistiu ao pronunciamento de Hitler, acreditou na sinceridade de suas palavras.

Os nazistas mantiveram a versão: tratava-se de um complô dos comunistas. E mantiveram o estado de tensão na sociedade pós-incêndio. A elite industrial e financeira, políticos e militares temeram pela tomada do poder pelos comunistas e se apressaram em procurar Hitler no mesmo dia do incêndio para manifestar apoio. Naquela noite a polícia prendeu deputados e funcionários do partido comunista. As tropas da SA agiram de forma ensandecida e saíram às ruas procurando qualquer simpatizante comunista e os encaminhavam para as prisões provisórias, geralmente sob pancadas e torturas. No dia 28 de fevereiro o presidente Hinderburg assinou o “decreto do incêndio do Reichstag”, eliminando a liberdade de expressão, de opinião, de reunião e de imprensa, além do sigilo de correspondências. Sem provas ou qualquer segurança jurídica, o governo poderia deter qualquer pessoa, a qualquer momento, além de intervir nos Estados alemães. A grande maioria da população alemã aceitou o fim das liberdades democráticas. E Hitler surgiu como o grande salvador na nação. Conforme previsto, toda formação cultural do povo alemão não foi suficiente para que a sociedade se rebelasse contra a ditadura. Nesse sentido, a dominação era legítima, e Hitler se aproveitou bem disso. CAPÍTULO 5  PODER Na eleição de março de 1933 o partido nazista obteve 44% dos votos. Com a aliança do partido nacionalista, do industrial Alfred Hugemberg, Hitler teve maioria no parlamento.

No ano de 1933 a SS passou a ter 50 mil membros enquanto a SA chegou a ter quase 3 milhões de componentes. A SS tinha na lealdade sua principal virtude. E a lealdade era com Hitler. O lema oficial da organização era “Mein Ehre Heisst Treue”, minha honra é minha lealdade, frase dita por Hitler na revolta de Stennes. Já a SA não professava lealdade com Hitler. Então o führer decidiu que tinha chegado a hora de acabar com ela. Como Hitler queria ter a plena confiança do Exército, que sempre via na SA e nos seus métodos violentos uma ameaça, concluiu que eliminando a SA ele ganharia a simpatia do Exército e extinguiria essa sombra na sua própria vida. No entanto, ele hesitava sobre o tempo certo para fazer isso. Röhm era seu amigo dos velhos tempos. Quando os relatos mostraram para Hitler que Röhm estava em plena atividade para transformar a SA em Exército regular, ou um “Estado da SA”, Hitler ainda procurou Röhm para propor que ele desistisse da ideia, e como o amigo não prometeu nada, o führer entendeu ser a oportunidade para encerrar o assunto SA. Andreas elaborou uma lista de líderes da SA que deveriam ser eliminados. Himmler foi convocado por Hitler para pôr a ação em prática. Porém, naquela noite na chancelaria, o comandante da SS, preocupado por ter mais alguém passando informações para o führer, não deixou de tentar questionar Hitler sobre como conseguira essa lista, que afinal não diferia muito da que ele próprio tinha, apenas continha oito nomes a mais, dentre eles Gregor Strasser e Kurt Von Schleicher, antigos desafetos. Hitler não deu atenção ao Reichsführer SS, e se retirou para a sala de cinema, como fazia costumeiramente, mesmo em momentos de grande tensão.

Havia vários indícios, levantados pelo Exército e até por Goebbels, apontando que Röhm estava preparando um golpe. Porém, Andreas nunca teve a certeza disso, e externou para o führer sua preocupação com a SA, como sendo um perigo por diversos motivos, mas não acreditava que Röhm pensasse em articular um golpe. Ainda assim, em 30 de junho, quando Hitler foi convidado para uma conferência de oficiais da SA, em um hotel na cidade de Bad Weissee, ele foi decidido a iniciar ali o grande expurgo. Por vota das 6h30, Hitler, juntamente com vários seguranças e membros da SS, entrou no quarto de Röhm, com pistola na mão e lá o surpreendeu com seu namorado na cama. Hitler o acusou de traição, Röhm assustado negou, ainda assim foi preso e levado até Stadelheim. Era o início da operação Kolibri, mais conhecida como “A Noite das Facas Longas”, quando mais de 85 pessoas morreram e outras milhares foram presas. Viktor Lutze, um dos homens de confiança de Röhm, foi induzido a traí-lo, passando algumas informações fundamentais que culminaram na Noite das Facas Longas. Como prêmio assumiu o controle da SA, no entanto, a organização deixara de ter a força de antes e passou a ser uma mera coadjuvante da SS. Andreas passou então a ser membro da SS, agraciado inicialmente com o título de tenente por Himmler, o sturmbannführer SS Spinger. Oficialmente ele foi encarregado como o administrador geral da SS, o que lhe dava autonomia e mobilidade para se envolver em todos os departamentos da organização, assim como viajar pelo país, e apesar de ser respeitado por todos, não era um cargo de destaque para o público externo.

Graças a sua extrema habilidade em se fazer simpático, sem chegar a ser pedante, e suficientemente humilde para não despertar a preocupação ou ciúmes de qualquer oficial, ele pôde desenvolver seu trabalho paralelo com a rede própria de espiões, o que seria bastante ampliado a partir daquele momento. De imediato ele compôs seu staff com Henrich Sauber, que o acompanharia em todos os momentos e também era seu motorista particular, e Emannuel Horst Fritz, ambos nomeados como primeiros-tenentes, obersturmführer SS. Diversos outros cargos foram arregimentados por todo o país, geralmente oriundos da SA, e, ainda, novos integrantes convocados de várias formas, incluindo nas universidades, entre os alunos ou professores. Andreas sempre os recrutava pessoalmente, e usava toda sua sedução para criar perspectivas de uma carreira brilhante nas fileiras nazistas. Com o tempo ele percebia se o novo mem- bro era de confiança e então o posicionava como sendo de sua organização pessoal dentro da SS. Assim sua rede se expandia, com meticulosos cuidados em sua organização. Em seu organograma, ele ocupava o topo e tinha Emannuel como gerente operacional. Henrich, além de guarda-costas, coordenava operações especiais, incluindo os assassinatos. Os demais membros eram dispostos em grupos pequenos, com um líder que se reportava diretamente a Emannuel ou Sauber. Em geral, os membros não sabiam dos outros componentes da organização, criando a impressão de estarem sempre sendo vigiados. Tal sensação inibia as eventuais intenções de traição. Sauber reforçava a percepção, através de conversa particular com cada um deles. Nesse contato ele

se dispunha como amigo e parceiro para qualquer situação pessoal, e deixava claro, caso suspeitasse de alguma atitude subversiva não hesitaria em eliminar o suspeito. Além disso, todos aqueles em postos de maior importância na organização, precisavam ter família, e algum grau de apego aos familiares. Conforme ficava bem claro para todos, os entes mais queridos poderiam sempre sofrer as consequências de um ato de traição. Pouco tempo depois de sua efetivação na SS, Andreas se envolveu em um episódio que afetou negativamente sua imagem junto ao führer, e também causou um considerável desgaste na imagem internacional de Hitler, já abalada pela violência da Noite das Facas Longas. No começo de julho, um membro da SS da Áustria, Leopold Von Staden, apresentou a Andreas um plano para um golpe de estado na Áustria, que passava pelo assassinato do chanceler austríaco, Engelbert Dolfuss. Hitler foi comunicado e, a princípio, não aprovou a ideia por considerá-la arriscada. Como Andreas argumentou que iria supervisionar a ação, o führer consentiu, sem muito entusiasmo. Em 25 de julho, os membros da SS da Áustria executaram o chanceler, porém o golpe foi abafado pelo regime ditatorial austríaco. A comunidade internacional não poupou Hitler e o regime nazista das mais pesadas críticas apesar dele ter oficialmente negado participação. A Itália chegou a ameaçar uma intervenção, e por algum tempo a relação com a Alemanha ficou abalada. No dia seguinte Andreas estava diante de Hitler, que não foi o mesmo sujeito amável como das outras vezes. Desta vez ele estava muito irritado, e o xingou com toda a potência de sua voz, de diversos nomes, desde incompetente até filho

de pais desconhecidos. Para sua sorte, o führer não o considerou infiel, e encerrou o monólogo com a frase: – Te dou nova oportunidade, e não me decepcione mais. Andreas não iria decepcionar. Ele sabia perfeitamente, agora com um poder amplo, que o Reich logo se tornaria absolutamente ditatorial com controle sobre as forças armadas e todas as organizações do país. Nada poderia impedir Hitler de ir adiante com seus planos, começando por implantar seu complexo modelo mental na construção de um sistema de administração do Estado fragmentado. Tal estrutura seria composta por diversos órgãos disputando o poder entre si, e que os deixaria sempre a mercê dele, Hitler. Além disso, de agora em diante o führer colocaria em prática uma política racial e expansionista, dentro do conceito de espaço vital, tão arraigado na forma como ele pensava o mundo. *** Certa tarde, quando passava de carro pela Kurfürstendamm strasse, saindo de casa em direção `a chancelaria do Reich, deparou-se com Rudolf Hess caminhando sozinho pela calçada, com andar lento e cabeça baixa como se estivesse triste. Ele observou aquela cena, sem ser visto por Hess e notou que o velho conhecido de Munique, o responsável por ele ter se aproximado de Hitler, e agora oficialmente o novo líder do partido nazista, despertava um sentimento incomum e ruim para ele: desprezo e ao mesmo tempo inveja. Ele sabia, no entanto, que não poderia nutrir tais sentimentos por qualquer pessoa, principalmente nos círculos nazistas, justamente para não afetar seus planos de crescimento. Hess não representava perigo para ele. Saber disso o incomodava, mas não conseguia deixar de se irritar com o

fato de um sujeito tão sem talento alcançar sucesso junto ao führer apenas com bajulação. Ao ver Hess andando despretensiosamente pelas ruas de Berlim, ele decidiu que ainda faria algo para o comandante do partido nazista não ter uma vida tão fácil. *** Naqueles dias Andreas estava concentrado na organização da rede de espionagem sobre os principais membros do partido, do governo e das forças armadas. Ele já tinha desenvolvido um eficiente sistema de escutas, im- plantado nos gabinetes de Himmler, Heydrich, Göring, Goebbels e diversas outras lideranças. Se ele quisesse, poderia ter implantado escutas junto ao próprio Hitler. Porém, o führer ele protegeria, realizando uma inspeção semanal para detectar outras escutas no seu escritório e residência. Foi montado um escritório central secreto para o controle das escutas, gerenciado por Emannuel, e instalado no bairro Prenzlauer Berg, em Berlim. A equipe de escuta era pequena. Dois sargentos da SS foram encarregados de implantar o aparelho nos escritórios, geralmente com a ajuda do próprio Andreas, que tinha acesso a todos os espaços. Na apuração das escutas, quatro outros oficiais se revezavam, sempre sob a supervisão de Emannuel. A casa era habitada pelo sargento Evald Maria Hobrech, com todos os móveis comuns a um oficial da SS solteiro. Porém, nela havia um subsolo, construído especialmente para abrigar o escritório secreto. Pela preocupação com a segurança, foram construídos três corredores subterrâneos e três locais para a entrada e saída eventual dos que trabalhavam no escritório. Em geral as pessoas entravam escondidas no carro do oficial Hobrech. Os ope- rários, todos imigrantes do leste europeu, que executaram o subsolo da

casa e os túneis subterrâneos foram sequestrados para ficarem à disposição exclusiva da obra. Em seguida todos foram assassinados. Göring, outro personagem pelo qual Hitler nutria muita simpatia, sempre foi identificado como um falastrão por Andreas. Apesar de não despertar nele sentimentos semelhantes ao de Hess, foi sempre alvo especial da espionagem. Em algumas vezes foram identificadas atividades anormais por parte do gordo, como Göring era pejorativamente chamado, por possuir uma silhueta avantajada, que revelava seus mais de 130 quilos. No começo da implantação do plano quadrienal para a economia, Hitler deu a Göring a função de supervisionar a coordenação da política econômica, supondo que ele se utilizaria apenas de uma pequena estrutura burocrática. Göring, muito vaidoso, montou uma ampla estrutura, com muita ostentação, cara e corrupta, provocando constantes choques com os ministérios da área econômica. Hitler, no entanto, quando recebeu o relatório sobre os exageros praticados, não esboçou qualquer reação de reprovação, e pediu apenas para Andreas continuar a investigá-lo. Na prática, como Göring se sentiu muito esperto a ponto de suas ações por conta própria passarem despercebidas, continuou a agir assim até o final do período nazista. A reconstrução econômica da Alemanha contou com várias frentes e talvez uma das mais surpreendentes foi a construção da autoestrada autobahn, que teve diversos aspectos revolucionários para a engenharia e arquitetura. A iniciativa serviu para gerar milhares de empregos e fomentar a indústria automobilística no país, embora a produção de carros não tivesse alcançado um maior

desempenho ainda, por ter grande parte dos recursos desviados para a produção de armamentos. Por volta de 1935, armar a Alemanha passou a ser a grande obsessão de Hitler, contrariando abertamente o Tratado de Versalhes. Em 1933 a Alemanha praticamente não tinha força aérea, Marinha, e dispunha apenas de um Exército regular com menos de 100 mil homens. A SS seria encarregada de criar as condições para a Alemanha se rearmar rapidamente, criando diversos disfarces para um plano intenso de fabricação de armas, aviões e embarcações. Tanques de guerra eram construídos e registrados como tratores agrícolas, ou aviões militares eram descritos como aviões de passageiros. Também nesse período deu-se início à produção de metralhadoras, rifles e pistolas espe- ciais para as forças armadas e para a SS, conforme Andreas havia planejado juntamente com Himmler, ainda no escritório de Munique. No ano de 1935, Hitler anunciou a implantação do serviço militar obrigatório na Alemanha, para todos os alemães não judeus fisicamente aptos. Tal anúncio, mesmo bur- lando o Tratado de Versalhes, foi feito após diversas ações de políticas externas por parte de Hitler, sempre consultando o Reino Unido e a França. Finalmente, para justificar a medida, ele associou o serviço militar à geração de empregos na Alemanha. Foram criadas as condições para a Alemanha voltar a ser uma potência militar. E apesar das tentativas para o esforço de rearmamento serem disfarçadas, ao menos o Reino Unido tinha conhecimento da iniciativa e, curiosamente, não fez esforços para coibi-la. Hitler soube que o Reino Unido acompanhava os passos do rearmamento alemão, quando recebeu Andreas, numa noite após o jantar.

– Mein führer, um funcionário graduado do ministério da Economia do Reich, Alfred Rilde, tem passado informações privilegiadas para Londres. Detalhes, como as empresas cadastradas para a produção de armas, os valores gastos pelo governo e até pelas empresas privadas, as armas e suas quantidades produzidas, enfim eles têm acesso à boa parte do nosso plano de rearmamento – disse Andreas. Hitler reagiu de forma clássica. Aos berros pediu que todos os envolvidos fossem punidos de forma exemplar. Andreas, tranquilamente, demonstrou a ação de Rilde como sem conexão com mais alguém do Reich. Ele recebia dinheiro pelas informações, através de um agente inglês, que vivia em Berlim como se fosse um grego, funcionário de restaurante. O agente também já estava preso. Como o espião inglês não tinha sido descoberto pela SS ou pela SD, Hitler convocou Himmler para uma reunião às pressas. Quando o comandante da SS se viu na frente de Hitler, não sabia sobre o espião no ministério da Economia. Hitler o repreendeu severamente, dizendo ter descoberto a falcatrua por um golpe de sorte, através de um outro funcionário do mesmo ministério, sem revelar o nome. Também comunicou Himmler que os dois envolvidos já estavam mortos, e a SS deveria fazer uma investigação para encontrar mais alguém com participação nessa ou em outra rede de espionagem. Na verdade Andreas descobriu o esquema de espionagem não por um golpe de sorte, e sim como consequência de uma rede de informantes implantada por ele em toda a Alemanha e também fora dela. Neste caso, ele tinha um agente trabalhando no ministério da Economia, na função de almoxarife. Em uma de suas saídas para tomar café, viu Rilde conversando com um estrangeiro, e como ele estava ali para comunicar qualquer

acontecimento estranho, assim o fez e a espionagem pôde ser desmantelada. *** No mesmo período em que a Alemanha passava por uma reestruturação econômica, o Terceiro Reich aos poucos voltava seus tentáculos para sufocar a participação dos judeus na economia alemã. E apesar de nos primórdios o governo não permitir a falência coletiva das empresas judaicas, para não abalar ainda mais a economia do país e aumentar o desemprego, a cada dia mais surgiam hostilidades contra, principalmente, as lojas de judeus, por muitas vezes invadidas e quase destruídas por membros da SA ou até mesmo por alemães sem atuação partidária. Outras ações corriam abertamente para sufocar os judeus, não apenas os empresários. Dentre elas a demissão em cargos do governo ou mesmo de empresas privadas. A proliferação da aversão aos judeus crescia e se dava nas ruas, entre os empresários, estudantes, profissionais liberais, donas de casas e por toda a sociedade. A propaganda e o doutrinamento da população, como na juventude hitlerista, projetavam os judeus como parasitas do povo. Se a economia ainda não estava melhor para os alemães era porque os judeus não permitiam. Eles se apropriavam de grande parte da economia alemã. O cidadão comum não entendia como os judeus se apropriariam da economia alemã, mas a ideia se expandia, sempre incentivada pelos nazistas. Para Hitler, os judeus foram usados para descrever o mal, na luta contra o ideal nazista manipulado como sendo o bem. Andreas sabia disso. Agora ele buscava entender porque o cidadão comum estava aceitando essa ideia.

A juventude hitlerista difundia nas crianças alemãs a ideia do judeu como inimigo do povo alemão, espalhando o ódio. O restante do trabalho ficava a cargo da máquina de propaganda. Talvez pelo povo judeu preservar tradições próprias, bastante diferentes das sociedades com as quais eles se integraram, o ódio ao judeu encontrasse espaço para crescer. Porém, na Alemanha, os judeus adotavam a maioria dos costumes alemães, a mesma língua, as mesmas roupas e até mesmo as práticas religiosas. A cultura iídiche não parecia ser de tanta importância para a maioria das famílias judias, conforme Andreas percebia. De resto, ele compreendia que o conflito entre diver - sos povos e os judeus percorre a história. A literatura costuma abordar o tema, como fez Shakespeare no “Mercador de Veneza”, onde o personagem judeu sempre fora hostilizado pelo rico mercador cristão, porém quando o mercador se viu à beira da falência, precisou recorrer aos serviços financeiros do judeu. O livro, além da história, apresenta os conflitos entre os personagens, cada qual independente de raça, com seus defeitos e virtudes como a soberba, a inveja, a ganância, a vingança, mas também o amor, a compaixão, a humildade e a sabedoria. Andreas não tinha qualquer sentimento de compaixão pelos judeus, mas entendia que eles estavam sendo usados para a escalada de Hitler e, exatamente por isso, para dar sustentação ao führer, ele iria se empenhar mais ainda no aniquilamento deles. *** Havia muita gente atuando na violência contra os judeus, assim como na sua discriminação social. Andreas, por sua vez, estava realmente empenhado em identificar os bens

dos judeus alemães e austríacos, para em muito breve promover uma pilhagem neles. Obras de artes, joias, ações de empresas, imóveis, dinheiro em bancos alemães, austríacos e até mesmo suíços passaram a ser contabilizados por Andreas nos seus preparativos de um plano para tomar conta deles. Mais uma vez Hitler sabia dos seus planos e entendia a necessidade de ser criar um tipo de fundo com essa riqueza roubada, independente da estrutura do Reich, para a segurança futura do próprio Reich. CAPÍTULO 6  PILHAGEM A economia do Reich buscaria segurança com a expansão territorial planejada por Hitler, o espaço vital. Seja na forma de saques aos bens naturais dos países que seriam invadidos, como petróleo e outros minerais, ou através de outras iniciativas, como a utilização das indústrias e mão de obra de outros países nos esforços de guerra ou o pagamento de tributos. A França, por exemplo, chegou a ter mais da metade de sua mão de obra e mais de um terço da sua renda nacional comprometidas com o chamado esforço de guerra alemão, durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, os nazistas identificavam na energia o maior problema para sua expansão. No período pré-guerra, os Estados Unidos produziam 60% do petróleo no mun- do e a União Soviética, 10%. O Reino Unido controlava o Iraque e a Pérsia. A Alemanha era dependente da importação de petróleo e mesmo durante os primeiros avanços da Wehrmacht, apenas uma produção insuficiente de petróleo foi incorporada, como na Romênia, Hungria e Galícia.

A União Soviética como alvo da expansão alemã, principalmente pela obtenção do seu petróleo, apesar de todo otimismo do führer, era um grande risco, e como se confirmou, não foi conquistada pela Wehrmacht. Restou ao Reich o investimento na produção de combustível sintético. E isso resolveu por um período a demanda, principalmente da Luftwaffe. Porém, o custo para sua produção estava se tornando cada vez mais caro e extinguindo o carvão da Alemanha. Como poderia ser previsto, o Reich não conseguiria manter sua máquina de guerra contra inimigos em várias frentes. *** Andreas recebeu a incumbência de pensar na confecção de um plano B, no caso do Terceiro Reich não conseguir prosperar da forma que o führer planejara, e os nazistas perderem a guerra. O momento de transição deveria ter como base sólida, além dos ideais inabaláveis da superioridade da raça, muito dinheiro, bem guardado para a reconstrução do Reich. O novo desafio para ele tinha um conceito simples, po - rém com execução complexa. Ele deveria, em primeiro lugar, identificar os judeus com posses e elaborar uma planilha elen- cando quais eram essas posses. A partir disso, deveria esperar o momento certo para tomá-las e preparar locais onde as manteria seguras. A própria SS, sob o comando de Himmler, também criaria seu sistema de pilhagem. Os anos seguintes mostraram que o produto de seus saques teve parte utilizada pelo Reich e a outra se perderia na corrupção. E mesmo dentro do planejamento de guerra, a SS também se preparava. Aos poucos, a sua unidade armada, a Waffen-

SS, iria se aprimorando e criando características de unidade regular do Exército. Já Andreas não conseguia vislumbrar oportunidade para ter controle sobre as unidades da Waffen-SS para sua missão de pilhagem. Certamente não poderia haver uma interferência direta de Hitler para isso, pois poderia prejudicar todo o seu trabalho secreto. Por isso ele trabalhou sempre sem a perspectiva de ter a unidade armada da SS a seu favor. De qualquer maneira ele identificava entre os oficiais do Exército alemão uma constante preocupação com a chamada militarização da SS. Já próximo do início da guerra, Hitler deu uma declaração para controlar a insatisfação dos militares. Considerando em “período de emergência nacional”, para não dizer guerra, a SS armada seria usada pela estrutura do Exército, de acordo com as leis militares e sob as ordens do comandante do Exército regular, mas politicamente ela continuaria sendo vinculada ao partido nazista, e dentro da Alemanha ela seria comandada pelo Reichsführer SS. Com isso foi abafada uma crise que poderia se tornar incontrolável com o Exército naquele momento. No entanto, como Andreas acompanhava, a relação dos militares de carreira com a SS nunca deixou de ter um núcleo de resistência. O conflito foi crescendo aos poucos, na medida em que a SS e, sobretudo a Waffen-SS, tornavam-se mais violentas. Diversos movimentos conspiratórios surgiram e muitos deles foram contidos graças às ações de inteligência da SS, SD e Gestapo. Já outros prosperaram, mas não a ponto de eliminar o führer. ***

Em 1938, Andreas buscava pessoas para compor sua equipe, em especial aquelas aptas a ajudar na usurpação da riqueza dos judeus. Então ele conheceu Matheus Case, um professor de finanças da universidade Humboldt. O professor já havia trabalhado no banco Julius Baer, em Berna, na Suíça, e foi também consultor financeiro de várias famílias milionárias da Alemanha, dentre elas, famílias judias. A principal lição tirada por ele da conversa inicial com Case foi a de que o sistema bancário suíço pode ser inviolável, mas as pessoas não são. A partir disso ele concluiu não ser impossível “recuperar” o dinheiro dos judeus depositado na Suíça. No período anterior à guerra, foi dada a partida para a grande e secreta estrutura financeira criada por Andreas. Era preciso correr contra o tempo, pois muitas empresas judias, de todos os tamanhos, estavam sendo vendidas para alemães não judeus, quando não fechavam as portas devido à grande pressão do governo e, agora em maior escala, do povo alemão, contra qualquer tipo de empreendimento com um judeu no comando. Uma das famílias monitoradas era a de Daniel Geltschimidt, proprietária de uma rede varejista de porte médio, com lojas em Berlim e Hamburgo. Após muita pressão, desde a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, o patriarca da família decidiu vender a empresa. O negócio durou mais de um ano para se concretizar, e para desgosto de Geltschimidt, que jamais pensou em se desfazer da empresa fundada por seu pai, o valor dela caía a cada dia. Ainda assim, no mesmo dia em que fechou o negócio e recebeu os 800 mil reichsmarks pela venda, foi visitado por uma equipe da SS, comandada pessoalmente por Andreas,

que lhe confiscou o dinheiro ainda antes de depositar no banco. Ele estava sendo vítima da aplicação de uma lei que permitia ao governo tomar posse dos bens daquelas pessoas consideradas inimigas do Estado. No caso de Geltschimidt, a ação foi fundamentada considerando o fato da família estar se mudando para a França. Segundo a argumentação torta utilizada, a saída do país consistia em “uma traição à Alemanha neste momento de sua história, em que é preciso as pessoas continuarem na pátria”. Geltschimidt entendia estar sendo roubado e sabia que naqueles tempos não havia um sistema jurídico na Alemanha capaz de protegê-lo e mais, ele ainda poderia se considerar com sorte por não ter sido levado para um campo de concentração. Naquele momento, os campos de concentração estavam sendo implantados na Alemanha, ainda como uma espécie de prisão temporária, pela qual diversos de seus amigos da comunidade judaica já tinham passado. Os motivos para a prisão não tinham o menor sentido, bastava a SS ou a Gestapo entenderem que de alguma forma os judeus agiam como inimigos do Estado, praticando determinadas ações, como o envio de dinheiro ao exterior. A sorte de Geltschimidt ainda não estava selada. Como ele tinha mesmo decidido mudar com sua esposa e seus dois filhos adolescentes para Nancy, na França, onde já comprara uma casa, ele apressou os passos e providenciou a mudança. Colocou os móveis, roupas e utensílios em um caminhão alugado, e acomodou os filhos e a esposa, juntamente com suas joias e restante do dinheiro guardados em seu cofre, quase 50 mil reichsmarks, no seu carro OpelOlympia 1935.

Já quando deixava Berlim, próximo a Potsdam, ele foi obrigado a parar o carro sob as ordens de uma barricada da SS. Geltschimidt quase desfaleceu, porém manteve a calma porque seus filhos começaram a se desesperar no banco de trás. Ele percebeu os homens da SS se aproximando do carro, eram os mesmos que lhe tomaram o dinheiro da venda de sua empresa, com exceção do líder. Com muita violência, eles foram retirados do veículo sem a chance de sequer ficar com as maletas onde estavam as joias e o dinheiro, e colocados na rua, sem explicações mínimas. Um soldado da SS entrou no carro e sem olhar para a família que permaneceu ali, paralisada, deu a volta para Berlim levando o veículo. O outro soldado, de pistola em punho, ainda disse em tom irônico: – Não querem ir pra França? Nos façam esse favor. Eu vou lhes fazer um também. Vão com o caminhão da mudança, não vou querer ficar com essa imundice que vocês judeus chamam de móveis. Por ironia, dentre os móveis chamados pelo soldado da SS de imundice estavam dois quadros do pintor alemão Otto Dix, comprados por um preço bastante módico, cuja temática antibélica agradava a esposa de Geltschimidt. Alguns anos após a guerra, quando a família Geltschimidt já vivia nos Estados Unidos, para onde se mudaram meses antes da invasão nazista na França, os quadros passaram a valer uma fortuna. *** Os bens de Geltschimidt foram os primeiros na imensa riqueza acumulada com o roubo aos judeus. E como foi comunicado ao führer, o professor Matheus Case se

encarregaria de abrir contas na Suíça, a princípio apenas no nome de Andreas, que para isso foi até Berna com Case. Em Berna, Case o apresentou a Julien Hannes Schmid, diretor do banco Julius Baer. Satisfeito por receber o novo cliente, Schmid não fez muitas cerimônias e se colocou à disposição para atender a consulta de Case. Com uma comissão de 20%, ele cuidaria para que os valores de algumas contas de judeus, comprovadamente mortos, assim como seus descendentes diretos, fossem transferidos para uma conta, em nome de algum cidadão não alemão, conforme ele indicasse. Schmid fez questão de ressaltar que escolheria apenas algumas contas para não chamar tanta atenção, e destruiria toda a documentação em poder do banco, para evitar que algum dia fossem rastreadas. Também deixou claro uma exigência sobre a comissão: ele fazia questão de receber em ouro. No mesmo banco, ele alugou alguns cofres para guardar as joias que seriam acumuladas, a começar pelas retiradas da família Geltschimidt. *** De volta a Berlim, um jovem militar brasileiro de origem germânica, João Pedro Müller, aguardava Andreas para uma conversa reservada no luxuoso hotel Adlon, próximo ao portão de Brandenburg. Ele representava o serviço de inteligência do presidente brasileiro Getúlio Vargas, e foi atendido a pedido do próprio führer. Müller parecia apreensivo quando recebeu o oficial da SS em seu próprio quarto, no segundo andar do hotel. Andreas já tinha mandado sua equipe rastrear o local, durante uma saída do brasileiro para um passeio pela avenida Unter den

Linden, e não havia qualquer tipo de escuta. O assunto que levava o brasileiro até Berlim ainda era um mistério. – Senhor oficial, como sabe venho em uma missão re presentando o serviço de inteligência do governo brasileiro. O Brasil, acredite, tende a ser um fiel aliado da Alemanha. É claro, o presidente Getúlio Vargas vê o triunfo do Reich. Minha missão aqui é iniciar com o senhor, indicado pelo führer através do embaixador brasileiro na Alemanha, uma troca de informações e até mesmo de operações. Pela sua cabeça passaram muitas possibilidades. Um aliado em um país remoto seria muito útil para seus planos. Imediatamente ele considerou que precisava ter em Müller um amigo, e o convidou para jantar naquela noite quando aproveitaria para mostrar ao brasileiro a Berlim noturna. Na verdade Andreas pouco conhecia de Berlim, e aquela seria a primeira noite na qual ele sairia para um jantar descontraído. Ele não tinha sequer uma ideia de onde iriam, muito menos saberia indicar uma Stammtisch, mesa para freguês habitual, em qualquer restaurante de Berlim. Sendo assim, consultou Case. O sofisticado professor suge- riu um dos restaurantes mais caros da cidade, o Horcher, na rua Lutherstrassee, e gentilmente fez a reserva. O jantar foi agradável. A intenção dele era exatamente esta: causar no brasileiro um sentimento de simpatia. Conversaram sobre tudo, menos política. Em seguida foram ao clube na cobertura do Eden Hotel, onde os jovens ricos berlinenses costumavam dançar. Ali, Müller que era solteiro, acabou conhecendo uma linda jovem alemã, estudante de química da universidade Humboldt, Evelyn Maria Schaller. Evelyn era uma agente do núcleo da SS de Andreas, recrutada recentemente por Case. Vinda de Schöneberg

para estudar em Berlim, em pouco tempo na universidade virou amante do professor Case. Apesar do relacionamento não ter ido adiante, continuaram amigos, e como o professor sabia da ambição da jovem, convidou-a para ser uma agente especial da SS. Sua missão foi bem sucedida, e quando o brasileiro foi embora, três dias após, parece ter deixado seu coração em Berlim. Em pouco tempo Evelyn se mudou para o Brasil, onde se casou com Müller. Dessa forma, ajudou para que a relação entre Andreas e Müller continuasse, mesmo quando, alguns anos depois, o Brasil declarou guerra ao Eixo. Além do brasileiro, grande parte da polícia secreta do governo de Getúlio Vargas continuou parceiro do Reich, até após a Segunda Guerra. Desde a visita de Müller, diversas ações foram realizadas entre os dois países. O Brasil deportou judeus para a Alemanha, cujo caso mais famoso foi a da judia alemã Olga Benário, esposa do comunista brasileiro Luís Carlos Prestes, enviada grávida para um campo de concentração nazista, onde veio a falecer. Em contrapartida, Andreas forneceu armamentos e equipamentos de espionagem desenvolvidos na Alemanha, o que muito contribuiu com a política de terror da polícia secreta brasileira. *** A pilhagem que começara com os Geltschimidt se estendeu a muitas famílias judias, que tiveram as vidas arrasadas por toda a Alemanha. Em paralelo, Andreas continuava acompanhando a vida das figuras mais importantes do Reich. Por aquele tempo, o maior destaque era a corrupção se alastrando desde os militares até os ministros, com Göring

se destacando como o mais indiscreto deles. Possivelmente Hitler já soubesse, ainda assim foi apresentada a ele uma relação dos gastos dos ministros do Reich, descaradamente incompatíveis com suas rendas. Göring, por exemplo, havia reformado uma de suas seis casas de caça, por mais de 15 milhões de reichsmarks. Nas escutas o ministro detalhava, divertidamente, em conversas com seus secretários, como, através de suborno e desvio de tributos, ele conseguia manter uma vida de milionário. As escutas no escritório de Himmler apontavam que ele também acompanhava o comportamento corrupto dos líderes do Reich, mas não perdia seu tempo levando as apurações para o führer. Além disso, o Reichsführer SS monitorava seus próprios comandados, e havia diagnosticado uma rede de ladroagem na SS, e também na Gestapo, principalmente nos produtos apreendidos das famílias judias e até mesmo dos ciganos. Exceto por alguns casos esporádicos, Himmler deixava tudo correr solto. Se as patrulhas deixassem a maior parte para a SS, ele tolerava a atitude dos soldados e mesmo dos oficiais, como uma forma de incentivo. Uma das poucas vezes que Himmler interveio foi num caso de extorsão praticada por uma patrulha da SS em uma residência de alto padrão, na Pariser Platz, atrás do portão de Brandenburg, em meados de 1938. Após denúncias anônimas, os soldados surpreenderam em flagrante dois homens em pleno ato homossexual. O código criminal do Reich determinava o homossexualismo como crime, com prisão para os criminosos, caso fosse comprovada a penetração, como foi o caso. No entanto, como o proprietário da casa era um rico industrial alemão, ele subornou os soldados com 20 mil reichsmarks e o caso não foi adiante. Porém, através dos seus informantes infiltrados entre a tropa, Himmler descobriu, e além de prender os três

membros da patrulha, foi pessoalmente até a mansão da Pariser Platz e prendeu o proprietário, pelo crime do homossexualismo e também pelo suborno aos soldados. Naquela noite, em seu escritório ele comentou com Heydrich: – Não tolero essa podridão. Por isso eu digo, não basta ser raça pura, ariana. Nós precisamos varrer do Reich esses moribundos homossexuais. Ainda vou convencer o führer a implantar a pena de morte para esses casos. *** Por essa época a violência contra as minorias, sobretudo os judeus, aumentava bastante pelas ruas das cidades alemãs. E foi um acidente ocorrido em Paris que desencadeou um dos episódios mais marcantes do Terceiro Reich, a Noite dos Cristais. Em novembro de 1938, um jovem judeu polonês, Herschel Grysnzpan, criado na Alemanha, dirigiu-se à embaixada alemã, em Paris, e atirou contra a primeira pessoa que viu pela frente. Ele atingiu um diplomata alemão. Foi um protesto isolado do jovem, por conta dos seus pais terem sidos deportados da Alemanha para a Polônia, conforme Andreas apurou. Ainda assim Goebbels usou o episódio para desencadear uma maciça campanha de propaganda contra os judeus, chegando a dizer que aquele era o início de uma ofensiva judia contra o Terceiro Reich. O resultado foi uma onda de violência sem precedentes contra lojas e residências de judeus, além das sinagogas. A população aderiu à ofensiva contra os judeus e a SA foi a organização mais ativa a participar das badernas, mas também a SS e a Gestapo deram apoio, de todas as formas, aos ataques.

Himmler se divertia com as notícias, principalmente sobre as humilhações praticadas contra os judeus. Em um caso, certa tropa da SS entrou em uma casa no subúrbio de Berlim, onde uma família de judeus estava à mesa jantando, e levou o pai, mãe e duas filhas, arrastados pelos cabelos para fora da casa, em seguida destruíram todos os móveis e saquearam tudo. Ao saírem, um dos soldados bateu com o cabo de sua metralhadora contra a cara do chefe de família, que caiu ensanguentado. Quando se confirmou a morte do funcionário da em baixada em Paris, dois dias após o disparo de Grysnzpan, o próprio Hitler instruiu Goebbels para intensificar as investidas de propaganda contra os judeus, explorando a morte do diplomata, e instruiu a SS para conduzir todos os homens judeus para campos de concentração. Os nazistas ainda pensavam em provocar uma debandada para fora do país, por iniciativa própria dos judeus, e aquele seria um esforço final para conseguir isso. A equipe de Andreas se viu em apuros para garantir mais eficiência nos negócios de pilhagem que a Noite dos Cristais proporcionou. Na prática, o espaço para pilhagem foi aberto para qualquer policial e até mesmo para os cidadãos comuns. Ele, no entanto, tinha um mapeamento das famílias mais ricas, que aos poucos estavam sendo “visitadas”. A Noite dos Cristais precipitou seus planos. No dia seguinte, foram publicadas diversas medidas do governo, pressionando ainda mais a vida dos judeus na Alemanha, como a privação de frequentarem lugares públicos, como restaurantes e praças, além da demissão imediata de qualquer cargo remunerado. Uma das medidas não agradou a Andreas, pois atrapalhava seus planos. Um decreto transferiu a propriedade dos negócios dos judeus aos alemães arianos. Na prática isso fez com que um bem-

sucedido ramo dos seus negócios fosse prejudicado. Roubar o dinheiro nas operações de vendas das empresas, iniciado com Geltschimidt, deixaria de acontecer. Para ele, isso não teria muita importância. Ainda haveria muito a ser roubado. CAPÍTULO 7  CONEXÃO Em apenas poucas vezes durante o ano ele visitava sua irmã e sua namorada em Munique. No Natal de 1938 ele fez questão de ir, para se encontrar com o amigo Ernesto, que estava de partida para a Argentina, onde tinha sido nomeado representante do Vaticano na arquidiocese de Buenos Aires. O namoro com Eva Schiller era algo vago para Andreas. Ele não conseguia deixar de dedicar toda sua energia ao trabalho e nunca convidou Eva para conhecer sua casa em Berlim, muito menos ainda passava pela cabeça dele se casar. No entanto, gostava dela e não se envolvia com outras mulheres, nem mesmo prostitutas, como era bastante comum em Berlim. Eva há muito tempo deixou de protestar pela frieza e a distância do relacionamento, e consentia em manter uma relação sem perspectivas. Quando o namorado estava em Munique dormia com ela, mas ela sabia que não teriam futuro, ainda assim se mantinha fiel. Foi na casa de Eva onde os amigos se encontraram para celebrar a ceia de Natal. Eva Spinger também fora convidada, com o marido e o filho, um garotinho de três anos de idade, Klaus. Os pais de Ernesto também estavam presentes. Aquela seria a última reunião com a irmã que ele participaria em sua vida. Após o jantar, quando todos se retiraram, os dois amigos

permaneceram na sala, conversando até o raiar do dia. Depois de muitas reminiscências, Andreas, que tinha planejado pedir certa ajuda para Ernesto, foi bem objetivo. – Meu amigo, a Alemanha já anexou a Áustria e vai invadir a Polônia em breve. Certamente o Reino Unido e a França vão nos declarar guerra. Existe uma possibilidade do Reich vencer essa guerra, mas a chance diminui se o confronto se antecipar, ou seja, se invadirmos a Polônia no começo do ano, como eu imagino, a Alemanha ainda não estará tão bem preparada com armamentos e matéria-prima, como o petróleo. Como o führer tem na cabeça a ideia de espaço vital, na prática significa que ele vai invadir outros países, talvez a Holanda, a Hungria e, tenho a convicção de que ele vai invadir a Rússia. Para mim isso seria um erro fatal porque mesmo os russos não estando tão preparados, isso enfraqueceria nossas forças a oeste. Como vê, o quadro é ruim mesmo sem contar a possibilidade dos Estados Unidos também nos enfrentar. Ernesto não escondia a dor ao imaginar uma guerra, e seus efeitos destruidores, possivelmente muito maior do que a guerra de 1914-1918, pois a tecnologia avançara e a máquina de guerra era ainda mais destruidora. O padre, sentado em frente ao amigo, levantou-se, abraçou-o fortemente e disse ao seu ouvido: – Diga amigo, você tem algo importante para falar. Andreas não se constrangeu, pois era preciso contar com seu amigo para os planos de pós-guerra. – Certo, você me conhece. Eu preciso que você convença o padre Lui a abrir uma conta bancária, na Suíça. Muito dinheiro vai ser depositado ali, e se preciso, no caso da Alemanha ser derrotada nesta guerra, pedirei para ele

retirar esse dinheiro e me entregar, para eu usar em uma nova vida, em algum país distante. Rota de fuga - a históRia não contada da ss

– Você sabe muito bem que Lui faria isso por mim, e também por você por quem ele nutre boas lembranças. Elas sempre se renovam nas correspondências que nós trocamos, não é mesmo?– indagou Ernesto. – Eu não posso tentar te enganar. Estou te pedindo isso porque sei que vocês não deixariam de me ajudar, e sei também que nem você nem Lui concordam com as atitudes da Alemanha, tampouco com minhas atitudes. – Está bem. Sei dos riscos, e Lui também terá noção do que pode vir a acontecer a ele, caso venha a aceitar. Quanto a mim, já lhe disse, mais de uma vez, você é meu amigo, um amigo especial, e vou fazer como você quer. Só não acredito estar te ajudando, muito pelo contrário, estou colaborando para você estragar ainda mais sua vida. – Eu fico aliviado, não feliz. Vejo o sacrifício que é fazer isso por mim, ainda mais envolvendo uma terceira pessoa. E, Ernesto, não tenho absolutamente nada para te dar em troca. – Eu sei, não tem. Você corrói minha alma ao pedir isso, porque sei quantas pessoas serão e já estão sendo sacrificadas para seu plano dar certo. Mas se eu não fizer isso por você, nem assim você desistiria. Ao menos me diga, do fundo do seu coração, você já viu tantas coisas, tanta maldade, e sabendo o quanto ainda está por vim, como se sente com tudo isso? – Eu tenho mentido, fingido e enganado muita gen- te. Com você eu jamais fui assim. Você merece a minha verdade. Me sinto bem com tudo isso. Nasci para isso. Sabe amigo, um dia desses eu estava no aposento do próprio Adolf Hitler, e vi um livro sobre a sua escrivaninha “O reino de Deus e o mundo contemporâneo” de Peter Maag. Mesmo sem ter

lido, apenas pelo título entendi: o führer encontra ali seu embasamento filosófico, que é igual ao meu: Deus valeu para outras épocas, agora é a vez do reino dos homens, e nesse reino não há lugar para os fracos. Para Ernesto era como se estivesse em um confessionário, mas o confessor não demonstrava arrependimento nem pedia perdão. No entanto ele sentia dor ao ouvir tudo isso, e por vir de uma pessoa por quem ele nutria uma amizade profunda, a dor parecia insuportável. Após alguns dias, o padre Lui se encontrou com o professor Case, em Berna, na Suíça, onde abriu uma conta no banco Julius Baer. CAPÍTULO 8  GUERRA O ano de 1939 começou com a movimentação das tropas alemãs, que desde o ano anterior estavam liderando o processo de anexação da Tchecoslováquia. Se na Áustria foi um caminho relativamente tranquilo, com a tropa nazista entrando em Viena sob a aclamação dos austríacos, desta vez estava sendo diferente, apesar de nos Sudetos de maioria alemã, a população também ter saudado com alegria a entrada da Wehrmacht. O serviço de inteligência da SS, em especial o de Andreas, estava muito empenhado em evitar maiores problemas, em uma região com inúmeros conflitos étnicos. Apesar de tudo, ele olhava para aquela invasão com a perspectiva de mercador. Para a Alemanha o território tcheco-eslovaco era importante pelas indústrias bélicas, de ferro, aço e outros minerais. Já a conta feita por Andreas era: quantos judeus e quão ricos eles eram para ampliar sua pilhagem. E no fundo, ele pensava, Hitler queria apenas isso

dele, afinal os demais trabalhos seus, como os relatórios sobre os ministros e generais, assim como dos adversários estrangeiros, não chamavam tanta atenção do führer, que recebia também outros relatórios, por vezes semelhantes, das mãos de Himmler. Em uma conversa, Hitler disse para Andreas que era “preciso pensar no dia de amanhã, na proteção dos que nos sucederão, para eles continuarem levando nosso espírito adiante”. E com sua mente prática, interpretou a fala enigmática do führer como um claro recado para ele ajudar a construir um novo Reich, se os planos para o Terceiro Reich não tivessem sucesso. Por conta disso, Hitler estaria tão empenhado para Andreas ser bem-sucedido em seu trabalho. *** Quando a Wehrmacht entrou na capital, Praga, em março de 1939, os alemães se apropriaram de grande quantidade de armamentos, aviões e tanques, além da pilhagem de sempre aos judeus, pela qual a SS e Gestapo sempre concorriam com Andreas, mesmo sem saber, sobre quem pilhava mais. Desta vez teve um fato novo. Joias da coroa tcheca também foram levadas para a Alemanha. Uma parte delas foi levada pela equipe de Andreas, que anexou a sua fortuna. E como ele foi pessoalmente a Praga, participou de um fato bastante curioso. Himmler havia decidido por levarem todas as joias da coroa, o quanto pudessem carregar. Mas havia uma peça, a chamada Coroa de São Venceslau, considerada a mais importante, e seguramente a mais valiosa. Andreas ponderou para não tirá-la do seu lugar sagrado, a catedral de São Vito, em Praga, pois a população já não estava feliz

com a invasão nazista, e aquele gesto poderia atenuar os ânimos, ao menos um pouco. Himmler relutou, porém concordou com a precaução e deu ordens explícitas para ninguém tocar na coroa. Heyndrich considerou aquilo uma besteira, só não tinha a petulância de ignorar as ordens do comandante da SS. Algum tempo depois, Heyndrich assumiu o posto de governador nazista nos territórios tchecos da Boêmia e Morávia, onde praticou as mais cruéis atrocidades. Certo dia ele fez uma visita à catedral de São Vito, e ouviu de um tenente da SS que a coroa, deixada ali pelos nazistas, guardava uma maldição para aquele que, não sendo rei, colocasse o ornamento na cabeça. Com sua arrogância peculiar, Heyndrich no mesmo momento quebrou o vidro que protegia a coroa e a colocou em sua cabeça, não sem deixar de ironizar o que ele chamou de mito para seres inferiores. Um ano após o episódio da coroa, Heyndrich foi morto em um atentado, em seu próprio carro, ali mesmo, em Praga.  * * * O próximo passo de Hitler seria a invasão da Polônia. Desta vez, não havia dúvidas: aconteceriam batalhas. Ao contrário do que a Alemanha chamou de “anexação” da Áustria e da Tchecoslováquia, com invasões sem batalhas, na Polônia seria diferente, e o führer sabia disso. No entanto, Hitler não acreditava que o Reino Unido ou a França partiriam para a guerra contra a Alemanha, porque via nos líderes dos dois países personalidades fracas. Andreas tinha um informante no gabinete do primeiroministro britânico, Nevile Chamberlain, incorporado a sua

rede de espiões no ano anterior, por um pagamento inicial de um quilo de ouro. Nigel Antony Lawler era ajudante de ordens do gabinete do primeiro-ministro britânico, e tinha informado a Andreas sobre as mobilizações do Reino Unido, efetivamente se preparando para a guerra. Chamberlain já não acreditava em Hitler, após ter confiado nos acordos feitos com o Terceiro Reich, ga- rantindo que a Alemanha não invadiria a Tchecoslováquia. A SS, através de Himmler, considerava que o Reino Unido não entraria em guerra em defesa da Polônia, e o führer estava diante de duas informações distintas dos seus serviços de inteligência. Enfim, ou por acreditar em Himmler ou por sua já famosa teimosia, decidiu-se por invadir a Polônia. O führer, no entanto, passou a diminuir o tom das críticas ao bolchevismo internacional. Na verdade Hitler já tinha em mente a invasão da Rússia, porém naquele momento sua força armada ainda não estava preparada como ele queria. Buscando evitar que os russos eventualmente se unissem ao Reino Unido e à França, elaborou um pacto para a futura divisão da Polônia, ocupada entre soviéticos e alemães. Através do seu ministro de Relações Exteriores, Joachim Von Ribbentrop, e do ministro soviético Vyacheslau Molotov, assinou um pacto de não agressão entre os dois países. Em primeiro de setembro de 1939, Hitler começa o ataque à Polônia. A primeira ação foi um bombardeio do encouraçado alemão Schleswig– Hostein à península de Westerplatte. Os poloneses, apesar de contarem com uma força armada bastante despreparada, resistiram com muita coragem.

Em 3 de setembro, o embaixador britânico em Berlim entrega uma declaração de guerra à Alemanha, em seguida a França também declara guerra. No dia 7 de setembro as tropas francesas atacam e avançam 8 quilômetros na região do Sarre. Na fronteira da França havia 500 mil franceses, contra 200 mil alemães, além de uma relevante vantagem: a linha Maginot, uma rede de fortalezas construída pela França para deter um eventual avanço alemão. Apesar de ter sido um bom plano, elas não foram suficientes para deter a Wehrmacht nos meses seguintes. Em 25 de setembro, a Luftwaffe, força aérea alemã, promove um intenso bombardeio a Varsóvia. A cidade estava cercada, mas os poloneses mantinham uma aguerrida resistência. A Polônia, no entanto, não suportou a demonstração que Hitler deu ao mundo do poder de sua força aérea. O exército polonês se rende aos nazistas e também aos soviéticos, que invadiram o país, a leste. Com a Polônia dominada, agora cabia à SS o trabalho de controlar os mais de 3 milhões de judeus, cidadãos poloneses, e que seriam, imediatamente, colocados em guetos. O sanguinário nazista Hans Frank assume o posto de governador geral da Polônia. Mais uma vez, deveria ser feito um grande esforço para pilhar o máximo possível. CAPÍTULO 9  PROTEÇÃO Em outubro de 1939, Himmler é nomeado chefe do comissariado do Reich para fortalecimento do povo alemão, RKFDV, criado para providenciar o assentamento do povo alemão em territórios conquistados. Os nazistas comemoraram o momento como sendo o golpe final no

Tratado de Versalhes, pois a Alemanha poderia, finalmente, recuperar os territórios perdidos na Primeira Guerra Mundial. Himmler expulsou milhares de judeus e poloneses de suas próprias casas no oeste da Polônia, enquanto trazia milhares de alemães étnicos para ocuparem os espaços dos expulsos. Com isso, o genocídio passaria, em pouco tempo, a ser política de Estado, e a SS ficaria ainda mais poderosa. Seus soldados assumiram o papel de perseguidores implacáveis dos judeus poloneses. Durante a invasão, era sistemática a ação da SS humilhando e agredindo os judeus, sem qualquer motivo. Juntamente com os membros da Gestapo, os soldados provocavam todo tipo de humilhação aos judeus, além dos constantes fuzilamentos que ocorriam sem justificativas. Era comum os judeus serem obrigados a jogar seus próprios excrementos em outros, por vezes obrigavam os pais a fazerem isso nos filhos e vice-versa. Quando Andreas chegou a Varsóvia, presenciou uma cena que o fez lembrar os blackshirts italianos. Em pleno centro da cidade, dois jovens soldados da SS abordaram um jovem judeu polonês, fizeram-no tirar a roupa e, em seguida puxaram pelo braço uma jovem judia e a obrigaram a cortar o cabelo do jovem com tesoura e o restante do pelo do corpo com uma navalha enferrujada, a seco. Em seguida, tiraram a roupa dela e o rapaz lhe cortou o cabelo e também raspou o pelo do corpo da moça com a mesma navalha. Ele considerou aquilo apenas uma diversão para a tropa, como se fosse uma terapia para aliviar a tensão. No meio da confusão, ele notou que o judeu, apesar de jovem, tinha ao menos um dente de ouro na boca. E começou a se animar, pois poderia aproveitar daquele ouro para ampliar o seu

tesouro. Enquanto não acontecia o que ele já previa como sendo a eliminação física em massa dos judeus nos territórios ocupados, ele e sua equipe trabalhavam incessantemente na pilhagem daqueles com posses, com o mesmo modus operandi implantado na Áustria, Tchecoslováquia e na própria Alemanha. Desta vez o campo estava ampliado, pois além dos caminhões carregados de produtos do saque indo em direção a Berlim, como aconteceu em Praga e por toda Tchecoslováquia, Andreas precisaria encontrar, nas fileiras da SS ou até mesmo da Wehrmacht, pessoas com capacidade de comandar as empresas polonesas, praticamente todas confiscadas. Foi criado um antro de corrupção generalizado. De uma hora para outra, um soldado da SS se via como diretor de uma rede de supermercados em Varsóvia, por exemplo. A principal marca entre os novos gestores dessas empresas, agora sob a posse da SS, foi a pressa em fazer dinheiro para o Reich e desviar o máximo para cada um deles. A SS também criou o chamado escritório central de curadores do leste, haupttreuhanstelle ost, para organizar a transferência de todas as propriedades polonesas e de judeus. Nesta época começavam a se destacar as ideias do especialista da SD para as chamadas “migrações judaicas”, Adolf Eichmann. Sob o entusiasmo de Heydrich e Himmler, Eichmann elaborava minuciosamente uma solução para os judeus que, enquanto isso, viviam em guetos, sem água corrente, sistema de esgoto e sem comida.

Quando a França foi finalmente derrotada pelos ale - mães, em maio de 1940, a expectativa dos poloneses de que a Polônia fosse ao menos uma pátria polonesa, embora com soberania alemã, caiu por terra. Hitler deixou claro que o país seria apenas uma reserva de mão de obra para o Reich. Então, o principal movimento de resistência polonesa, a princípio chamado de “Luta Armada” e depois “Armia Krajowa”, ampliou suas atividades pelo país. Uma de suas ações quase vitimou Andreas. No dia em que ele, ainda em maio de 1940, resolveu ir de Varsóvia para Paris organizar seu sistema de saques pela França, amanheceu chovendo na cidade. Como ele já estava acostumado a viajar nessas condições, não se preocupou e saiu de casa ainda antes do dia clarear. O carro dirigido por um major deixou Andreas e seu fiel escudeiro Henrich Sauber, no hangar próximo do seu avião exclusivo, o Junker Ju 5s/3mge D-AHZA. E como o piloto, o tenente-coronel Hans Koch, ainda estava preparando o aparelho para o voo, eles resolveram esperar embaixo do hangar, para se protegerem da chuva. No local havia um único guarda da SS de sentinela. Sauber estava de frente para Andreas e diante do avião, a uma distância de aproximadamente 100 metros, quando puxou o chefe pelo braço, repentinamente, e o empurrou para dentro do hangar. Cinco homens encapuzados e armados de submetralhadoras Mors, tinham rendido o piloto e procuravam dentro do avião os demais passageiros. Quando eles viram a movimentação no hangar, mataram o piloto a queima roupa e abriram fogo contra o soldado da SS que, assustado não conseguiu disparar, levando vários tiros pelo corpo.

Sauber sacou da sua pistola Luger P-08 e contra-atacou, enquanto Andreas também sacava da sua Walther P-38 e disparava sem precisão contra os membros da resistência polonesa. Dois encapuzados foram atingidos e caíram na pista, os demais se aproximaram perigosamente do hangar atirando sem parar, até um tiro atingir o ombro de Andreas, que caiu ao lado de Sauber. Por sorte, naquele momento tiros de fora do hangar atingiram os encapuzados. Eram os demais soldados da SS que faziam guarda no aeroporto. Andreas foi levado para um hospital no centro de Varsóvia, tomado pela SS especialmente para as tropas alemãs. O tiro foi de raspão. Como teve o ferimento suturado, foi liberado em seguida. Para o maior lamento de Andreas, os cinco encapuzados estavam mortos. Ele estava ansioso para interrogá -los, pessoalmente. Mais tarde a SD descobriu a identidade dos cinco jovens, que planejaram o ataque por alguns dias. Apenas um deles tinha formação militar. O alvo era o tenente-coronel SS Spinger. Ele não ficou especialmente revoltado com o atenta - do, ou sequer com os jovens poloneses. Para ele, era uma ação previsível, e apesar de ter reforçado ainda mais a sua segurança, não passou pela sua cabeça uma retaliação. Mas passou pela cabeça de Himmler, que ordenou uma ofensiva maciça pelas ruas de Varsóvia, onde várias famílias de poloneses foram mortas, como um tipo de aviso para ninguém mais ousar atentar contra os nazistas. *** Himmler convocou Andreas para um encontro em Heidelberg. Foi durante um final de semana em um ambiente tranquilo para que a SS finalmente colocasse em prática

um antigo planejamento idealizado por ambos: o escritório de segurança do Reich, Reichssicherheitshauptamt. O local seria dividido da seguinte maneira: a administração geral, sob o comando de Andreas; a segurança interna e externa do Reich, sob o comando de Heydrich; a Gestapo, sendo dividida entre oponentes políticos, igrejas e judeus, custódia preventiva, territórios ocupados e contraespionagem, comandada por Heinrich Müller, além da polícia criminal e o departamento criado para investigar ideologias de oposição. Heidelberg, uma das poucas localidades alemãs poupadas durante a Segunda Guerra, é uma cidade medieval à beira do rio Neckar, prostrada ao longo de um vale. Andreas apreciou poder andar pelas ruas da cidade, de onde era possível avistar, no topo de uma colina, o castelo de Heidelberg, o mesmo que encantava Goethe, conforme Eva Schiller sempre descrevia. No sábado, ao final de um dia exaustivo de trabalho com Himmler, ele deixou o hotel Ritter para caminhar ao lado de Sauber, e a poucos metros se viu diante de uma padaria de aspecto antigo. Ele não tinha mais entrado em um lugar assim, depois de deixar Munique, a não ser para visitar sua irmã. Aquele local transmitiu a ele uma sensação estranha, algo que o confundia, porque era como se ele estivesse lembrando os seus pais, a sua infância, e com uma espécie de nostalgia, o que nunca havia sentido antes. Um senhor idoso de cabelos brancos estava sozinho do lado de dentro do balcão, e com um sorriso tranquilo, pediu para os dois oficiais entrarem. Dirigindo-se a Andreas, disse serenamente: – São boas as lembranças? Andreas se assustou e deu um soco na mesa, enquanto

tirava a pistola e apontava para o velho. Sauber ficou surpreso e também se colocou em guarda, muito embora não tivesse percebido qualquer ameaça. Andreas disse exaltado: – Quem é você? Estão me perseguindo? Para quem você trabalha, vamos diga, senão o mato aqui mesmo. O senhor não perdeu a calma, e ainda com um leve sorriso respondeu àquela ofensiva do oficial da SS: – Não sou ninguém com quem você deva se preocupar. Calma jovem, sei da sua vida atribulada, por isso mesmo perguntei se as lembranças de tempos tranquilos estavam te fazendo bem. Ele, de alguma forma, tranquilizou-se com as palavras daquele homem, que parecia falar com uma intimidade de velho conhecido. – Por acaso você me conhece? Você foi algum amigo da minha família? – questionou, já não apontado o revólver para o idoso. – Não conheço sua família. Só consigo ver em você, o que nem você consegue. Eu não queria ser assim tão mal educado. Se não digo, daqui a pouco você sairia por esta porta, e não teria a oportunidade de ouvir de mim o que talvez tenha sido a minha missão dizer a você. Ele ordenou para Sauber ficar na porta da padaria, para ninguém entrar, e pediu para o idoso continuar: – Eu falo com você, mas antes coma uma de nossas especialidades. Um doce. Talvez doces te lembrem de um lado bom da sua infância, não? Esse aqui sua mãe não fazia, experimente o nosso chocolate Praline. – Você disse não conhecer minha família, como conhece minha mãe? – Não conheço sua família, insisto. Vou te dizer o que sei: Você é um ser humano protegido por uma força sobrenatural. Portanto, não é do nosso plano de existência.

Você me entende, não? E essa força não é boa. Como não estou aqui para te dar conselhos, vou te dizer: você vai sair ileso por mais tempo do que a maioria deles. A maioria dos seres humanos teria explorado mais aquela conversa. Andreas, no entanto, ao compreender o sentido daquelas palavras, e sem dizer mais nada, virou as costas ao velho e saiu de volta para o hotel. CAPÍTULO 10  VIOLÊNCIA Hitler estava se destacando como um bom estrategista militar. Em parte graças à adoção da Blitzkrieg, a guerra relâmpago, mas fundamentalmente pela ousadia do próprio führer em se decidir por ataques em várias frentes. A Wehrmacht estava avançando com uma rapidez alucinante. Em apenas quatro dias a Holanda foi derrotada. A Bélgica demorou dezoito, a França, menos de quarenta, a Dinamarca não entrou em combate e a Noruega pouco mais de dois meses. Conforme as forças militares ocupavam os países, a SS era encarregada de fazer a segurança política e econômica nos territórios ocupados. Nesta incumbência havia muitas pessoas em uma lista para serem assassinadas, pois eram consideradas lideranças com comportamento hostil ao Reich. Tal ação ficava a cargo das forças-tarefas, as einsatzgruppen, formadas por homens de diversos agrupamentos, principalmente da Waffen-SS. As einsatzgruppen promoviam as mais cruéis e alarmantes atitudes de terror e violência contra as populações dos países invadidos, em especial na Polônia e depois na União Soviética. Quando os grupos de resistência organizavam um atentado ou um ato de sabotagem, a represália era absolutamente desproporcional, e geralmente contra a

população civil. Era comum casos de residências incendiadas, com os inocentes moradores dentro. Himmler costumava dizer que a população judaica deveria ser reduzida por desgaste. Dentro dessa lógica, surgiram os guetos, locais desumanos e sem a menor qualidade de vida, onde foram jogados os judeus, principalmente na Polônia. Com pouca comida, sem saneamento básico ou energia, com diversas famílias morando juntas em apartamentos pequenos e a grande maioria delas vivendo sem sistema de aquecimento, mesmo em pleno inverno, as doenças, a fome e as mortes se espalhavam pelas ruas dos guetos. Andreas esteve no gueto de Varsóvia em 1941 e viu uma paisagem de terror, com pessoas magérrimas perambulando, por vezes sobre cadáveres insepultos. A preocupação dele era exatamente com esses cadáveres. Para ele, bastava tirar o que pudesse de ouro de suas alianças e bocas. Foi no gueto de Varsóvia, em maio de 1941, que ele desbaratou um esquema entre seus soldados de confiança. Sua equipe sempre fora disciplinada, sob o comando de Sauber. Todo produto dos saques e pilhagem era levado a um depósito local, e no caso de Varsóvia ficava em um barracão de uma antiga tecelagem, no bairro velho da cidade. Do depósito em cada localidade, os produtos eram levados escoltados, conforme enchiam um caminhão, para um dos diversos depósitos espalhados por Berlim, onde os bens de maior tamanho e menor valor ficavam aguardando um destino. Em Varsóvia havia um grupo de soldados encarregados por Sauber para coletar o máximo possível de bens pelas ruas, e com rapidez. Havendo algum cadáver com ouro na boca

ou alianças de ouro, a ordem era: arranque antes que outros soldados o façam. Dois desses soldados, trabalhando em conjunto, estavam agindo com muita celeridade e competência em diversas ações de saques. No entanto, eles criaram um próprio depósito para onde levavam a grande maioria dos produtos, em uma casa do antigo bairro judeu. A residência era ocupada por um casal de colonos de etnia alemã obrigados, à base do terror, a manter a boca calada. O casal foi para Varsóvia após a ocupação nazista. Quando Sauber descobriu, convocou uma reunião com todos os membros do seu grupo que atuava em Varsóvia, no final do mesmo dia. Conforme combinado, todos se sentaram em um grande círculo, e Sauber começou um discurso, como sempre fazia, avaliando positivamente a atuação de todos os membros do grupo. Enaltecia o espírito nacional socialista dos integrantes e ressaltava que o resultado do trabalho de coleta de bens dos judeus e poloneses serviria para a riqueza do Terceiro Reich. Depois de alguns minutos de elogios, Sauber fez os presentes ficarem preocupados quando falou que, apesar da orientação pessoal para todos ali não serem desleais, ou seja, não roubarem o führer, havia naquele ambiente pessoas trapaceando. Após alguns segundos de tensão, Sauber foi enfático: – Não vou me estender e deixar vocês apreensivos, vou logo mostrar a todos quem são os ladrões – nesse momento Sauber tirou a pistola e atirou à queima roupa nos dois soldados trapaceiros. ***

Como os guetos estavam absolutamente lotados, às vezes algum einsatzgruppen, em vilas no interior da Polônia, promovia “ações práticas” para solucionar os problemas dos judeus locais. O modus operandi para essa solução encontrada era sempre o mesmo, e passou a ser usado com bastante frequência, principalmente na invasão dos territórios soviéticos. A ação consistia em um einsatzgruppen colocar os judeus em fila, seja homem, mulher, criança, grávida, inválido ou idoso, e fazê-los caminhar até um bosque, onde os mais fortes eram obrigados a abrir uma grande vala, e ainda em fila, dar um tiro na nuca de cada um dos judeus, para então jogá-los nos buracos. Não era incomum que alguns fossem enterrados ainda vivos. Através da mesma forma cruel, os nazistas utilizando os préstimos da SS, deram início à eliminação, pura e simples, dos doentes mentais espalhados em hospitais psiquiátricos pela Alemanha e territórios ocupados. Também foram desenvolvidos métodos de eutanásia, para crianças e adultos, como o envenenamento por monóxido de carbono. A Igreja Católica por esses tempos começara a ser perseguida pelos nazistas, inclusive com a invasão de vários conventos e seminários, tomados para algum tipo de atividade militar. Apesar disso, a cúpula da Igreja Católica na Alemanha não se pronunciou contra as matanças de pacientes indefesos. Porém, muitos padres foram combativos o suficiente a ponto do governo interromper o programa de assassinatos dos “inválidos”. Por outro lado, a violência e a matança de judeus, ciganos e outras minorias, não foram condenadas publicamente pela Igreja Católica alemã, nem pelo alto nem pelo baixo clero, exceto por uma ou outra manifestação isolada.

O cardeal de Munique, Michael Faulhaber, amigo pessoal do Papa Pio XII, era simpatizante do regime nazista. No atentado sofrido por Hitler em 1939, em Munique, o cardeal enviou um telegrama ao führer, dizendo-se feliz por ele ter escapado, graças à “providência divina”. *** Poucos meses depois da invasão à Polônia, Hitler escapou ileso do atentado à bomba, na mesma cervejaria de Munique onde ele tentou o golpe em 1923. O que deixou a todos espantados foi o fato do atentado não ter partido da ação de algum país inimigo ou mesmo dos inimigos dentro das forças armadas. A condução e iniciativa foram de um cidadão comum, em protesto contra a ditadura e violência implantadas pelo regime nazista. O atentado vitimou fatalmente 8 pessoas, mas o führer escapou sem sequer um arranhão, porque saiu antes do momento da explosão. O golpe de sorte serviu para Hitler reforçar a ideia de sua proteção pela providência, conforme comemorou o cardeal Fauhaber. Andreas também tinha a mesma convicção sobre ele mesmo, porém sua preocupação aumentou a partir do atentado, afinal ele sabia: sem o führer seus planos seriam encerrados. Himmler e Heydrich não se conformavam com o resultado das investigações conduzidas pela própria equipe da SD, apontando para um carpinteiro de 36 anos, Georg Elser, preso na mesma noite do atentado, quando tentava fugir para a Suíça. Como as táticas de expansão, concebidas pelo führer, não recebiam a aprovação de toda a cúpula do estado maior, as suspeitas recaíram sobre os militares. Andreas não identificou qualquer movimento por par - te das altas patentes militares, e não acreditava ser possível

naquele momento uma organização a partir das patentes inferiores das forças armadas para realizar um atentado contra o führer. Na verdade, os oficiais mais graduados viam Hitler com desdém, desde quando ele assumiu o poder, afinal ele nunca passou do posto de cabo na Primeira Guerra Mundial. Paul Hindenburg, último presidente da República de Weimar, um marechal condecorado na Primeira Guerra Mundial, referia-se pejorativamente a Hitler, a quem ele foi obrigado a nomear chanceler, como o “cabo da Bohemia”. No entanto, os militares foram aos poucos incorporando o espírito nacional socialista, principalmente na medida em que Hitler aumentava o orçamento para as forças armadas e barrava o crescimento da SA. Com o desenrolar da guerra, e o crescimento da SS, inclusive como força de combate, e as notícias de suas atrocidades, os movimentos de resistência das forças armadas ao führer surgiram em várias frentes militares. CAPÍTULO 11  SOBERBA Com a rendição da França, o führer voltava agora suas atenções ao Reino Unido, mas no fundo, pela autoconfiança exagerada, já pensava seriamente na invasão da Rússia, embora fosse cauteloso para falar sobre isso abertamente com seu comando de guerra. Hitler esperava que os britânicos fossem propor a ele um acordo de paz, porém, influenciado principalmente por Ribbentrop, começou a consultar seu estado maior para uma eventual invasão à Grã-Bretanha. Pouco antes, o contato de Andreas em Londres perde o posto, com a nomeação do novo primeiro-ministro Winston

Churchill, cuja primeira grande façanha foi conseguir convencer todo o governo inglês que uma paz com a Alemanha era impossível naquela altura, devido à força excessiva conquistada pelo Reich. A paz desequilibraria as relações econômicas na Europa, e com o tempo, nada impediria a Alemanha de invadir militarmente a GrãBretanha. Como não surgiram indícios factíveis sobre a queda de Churchill ou que ele propusesse um acordo de paz com a Alemanha, o führer deu a ordem para iniciarem os preparativos para a operação Leão Marinho, Unternehmen Seelöwe. A invasão do Reino Unido se daria através do Canal da Mancha. Para o sucesso da operação, no entanto, a força aérea alemã, a Luftwaffe, precisaria impor uma grande superioridade sobre os ingleses, pois pelo mar os nazistas eram evidentemente inferiores. Então Göring entrou na história, ao garantir para Hitler uma vitória esmagadora da Alemanha sobre a real força aérea de Churchill. Göring estava sendo acompanhado de modo especial, através das escutas. O “gordo” dizia em conversas reservadas com seus principais assessores que iria exagerar um pouco sobre a capacidade da Luftwaffe, apenas para deixar o führer mais tranquilo, porque ele, Göring, acreditava realmente que a Alemanha arrasaria a GrãBretanha a partir do ar. Andreas comunicou ao führer o teor das conversas, portanto as informações de Göring não eram confiáveis. Sugeriu, no mínimo, uma apuração mais detalhada da força exata da Luftwaffe em comparação com a real força aérea britânica. O führer, mais uma vez, não deu atenção a ele, desta feita porque estava visivelmente empolgado com suas

conquistas militares, incluindo a França, derrotada em condições bastante adversas. Hitler tinha a convicção de ser invencível. A força de invasão iria contar com aproximadamente 67 mil homens. O comando das operações ficou a cargo do almirante Erich Raeder, comandante da Kriegsmarine, a Marinha de guerra alemã. A data para início da operação era setembro de 1940. O ataque começaria entre Dorset e Kent. Entretanto, como ficou comprovado através das primeiras batalhas aéreas, a Luftwaffe não conseguiu a superioridade aérea, então a invasão propriamente dita foi adiada para outubro e depois para o verão de 1941, quando a guerra voltou seus olhos para a Operação Barbarossa. Alguns aviões alemães eram superiores aos ingleses, como o Messerschimitt Me 109, que em espaços mais altos não tinha concorrentes entre os ingleses, porém em baixas altitudes era o contrário, e os caças britânicos, como o Spitfire, simplesmente aniquilaram os pesados caças alemães, como o Messerschmitt Me 110. E se a superioridade da Real Força Área estava fi - cando clara nas baixas altitudes, os ingleses conseguiram ainda mais sucesso na defensiva contra os ataques alemães com a introdução de radares na defesa da sua costa. Hitler precisou recuar. A Operação Leão-Marinho não aconteceu, mas Andreas teve acesso a uma lista, na sala de Himmler, com nomes de pessoas importantes que deveriam ser assassinadas pela SS durante a invasão, dentre elas Churchill, Chamberlain, e até artistas como o escritor e poeta irlandês Bernard Shaw, entre outros.

Ataques aéreos, no entanto, aconteciam de ambos os lados já em 1940. Diversas localidades foram alvejadas, e tanto Londres como Berlim eram alvos de ataques por vezes bastante destrutivos. Os primeiros bombardeios atingiram com mais intensidade o moral dos cidadãos. As populações se viam em pânico diante das assustadoras sirenes, quando anunciavam a proximidade de um esquadrão aéreo. Hitler tentaria uma força conjunta com a Espanha, a França de Vichy e a Itália para derrotar a esquadra marítima inglesa. Para seu desgosto, o ditador espanhol, Francisco Franco, não declarou apoio. O general Petáin acenou com apoio apenas se conseguisse um acordo para anexação de territórios coloniais ao seu regime, e Mussolini decepcionou mais ainda o führer ao não entrar na guerra, em seu início, mantendo um papel ambíguo de mediador, que só veio a se alterar, quando o Duce final- mente declarou guerra, ficando ao lado da Alemanha, em junho de 1940. Entretanto, a Itália acumulou uma série de derrotas, pouco ajudando o que viria a ser chamado de Eixo, que passou a contar com o Japão, em dezembro de 1941. Por uma estratégia de avanço pelo Mediterrâneo e com a fragilidade militar italiana, Hitler designou o marechal Erwin Rommel, posteriormente conhecido como a Raposa do Deserto, para chefiar o African Korps, corpo africano da Wehrmacht. A guerra do norte da África se estendeu até maio de 1943. Rommel foi considerado um dos mais brilhantes generais do Exército alemão, mas não escapou das garras da SS. Himmler, pessoalmente, cuidou de implicá-lo em conspirações contra o führer. O general, responsável por vitórias difíceis conduzindo o African Korps, teve suas façanhas exploradas pela máquina

de propaganda do Reich, inclusive em filmes. Ele nunca fora filiado ao Partido Nazista, e nos anos finais da guerra adotou uma postura crítica ao führer e à violência da SS. No entanto, sua ligação com uma conspiração para derrubada do regime nazista e o envolvimento com o conspirador Claus Von Stauffemberg em atentado contra Hitler em julho de 1944, jamais foram confirmados por Rommel, e nem qualquer serviço de inteligência do Reich conseguiu uma prova sobre isso. Himmler e Andreas, porém, tiveram a mesma postura ao lançarem de todos os meios para incriminá-lo, e convencer Hitler disso. Ambos viam nele e nos oficiais que participaram efetivamente da conspiração, verdadeiros inimigos da SS. Enfim, Rommel recebeu em sua casa a visita de dois generais da velha guarda, fieis a Hitler, que lhe deram a opção de se entregar e ir a um julgamento, o que certamente o condenaria à morte e sua família iria para um campo de concentração. A outra alternativa era, naquele momento, sair com eles da residência e tomar um veneno, preservando a sua família e lhe proporcionando um funeral com honras de herói. Rommel, aceitando a segunda proposta, suicidou-se em 14 de outubro de 1944. *** Situações diversas se desenrolavam no grande teatro de guerra, como na difícil equação da Iugoslávia e seus conflitos étnicos. No geral, naquele momento, a guerra tinha mais vitórias do que derrotas no ponto de vista dos avanços alemães. E com as dificuldades na in- tenção de invadir o Reino Unido, Hitler tomou a decisão de invadir a Rússia.

Entre os que se preocupavam com a invasão da Rússia, por temer a fragilidade em que a Alemanha fi- caria exposta, estava Rudolf Hess. Certa vez, inadvertidamente, ele se encontrou com Andreas no hall da chancelaria do Reich e comentou reservadamente sobre sua preocupação. Ele viu ali a oportunidade de aniquilar Hess, e criou a versão de possuir informações de que Churchill tinha a intenção de firmar um tratado de paz com a Alemanha, mas precisava ter uma conversa franca e sincera com alguém ligado diretamente ao führer, não podendo ser Ribbentrop, por quem ele não nutria admiração. Hess ouviu aquilo empolgado. Ele tinha mordido a isca. Andreas promoveu a reunião de Hess com um analista de informações da SS, naturalmente preparado para isso, que demonstrou uma rede apropriada de conversação, antes de chegar em Churchill, passando pelo duque de Hamilton, um opositor ao gabinete inglês, de quem Hess se tornou amigo durante as olimpíadas na Alemanha, em 1936. No dia 10 de maio de 1941, sem avisar Hitler ou outra autoridade do Reich, Hess pilotando um Messerschmitt Me 110, foi sozinho até o Reino Unido, saltando de paraquedas na Escócia, quando ao tocar o solo quebrou o tornozelo. Hess lançou uma proposta semelhante a de Hitler antes da invasão à Polônia: a Alemanha não entraria em guerra com o Reino Unido desde que este não interferisse nos projetos internacionais do Reich. Quando Andreas fez chegar no serviço de inteligência britânico o fato de Hess estar ali, sem o consentimento ou sequer o conhecimento de Hitler, os ingleses não consideraram aquilo como uma missão confiável e o mantiveram preso na torre de Londres até o final da guerra.

CAPÍTULO 12  BARBAROSSA A diretiva 21, conhecida como operação Barbarossa, foi decretada em 18 de dezembro de 1940, e consistia basicamente em “destruir a massa do exército vermelho posicionada na Rússia Ocidental em operações ousadas que envolvam penetrações em profundidade por frente de ataques blindadas, devendo se evitar a retirada de elementos capazes de combate em amplas extensões russas. Com uma rápida perseguição deve se atingir uma linha além de um ponto do qual a força aérea russa não mais consiga atacar os territórios domésticos alemães”. A princípio Hitler não considerava importante atacar Moscou. Andreas, no entanto, tinha a consultoria do general russo Kriger Juravlev, expurgado por Stalin meses antes, e conseguiu fugir para Berlim. O führer foi advertido: os soviéticos tinham uma grande capacidade industrial instalada, podendo substituir as unidades armadas com a mesma velocidade em que fossem destruídas. Além disso, a fábricas poderiam, em curto espaço de tempo, serem deslocadas para leste dos Urais, e algo ainda mais importante: Stalin tinha um controle severo sobre o povo russo, e isso praticamente impossibilitaria uma rendição total, ao contrário da crença de Hitler. O führer também foi alertado para a batalha não ser prolongada em direção ao Oriente, pois era mais fácil para os russos o acesso aos suprimentos do que para os alemães, assim como a comunicação. Algo tão evidente, mas Hitler não parecia enxergar. Mais uma vez Hitler fez do seu jeito. E a operação Barbarrosa foi deflagrada em 22 de junho de 1941, pegando o exército vermelho em evidente inferioridade, com poucos

oficiais experientes, após o expurgo recentemente promovido por Stalin. A Wehrmacht, ao contrário, era formada por oficiais experientes e contava com uma grande e eficiente máquina de guerra, principalmente com o exército Panzer, no entanto a resistência dos russos efetivamente foi muito maior do que a Wehrmacht e o führer acreditavam. Andreas sabia que se Hitler insistisse em atacar a Rússia, a guerra contra os Aliados estaria perdida, afinal ele enfraqueceria todas as frentes de batalha. Era momento para acelerar o plano B, e preparar a rota de fuga para ele e para o führer. Naquela altura já estavam com muito dinheiro e diversos bens, seguramente guardados. Além disso, por uma articulação do brasileiro Müller, Andreas havia se encontrado recentemente, em Berlim, com o general argentino Juan Porfírio Strada, que objetivamente colocou o governo argentino à disposição para qualquer operação sigilosa com a Alemanha nazista. Por qualquer operação, ele questionou se estava incluído o abrigo de dirigentes nazistas em uma eventual derrota na guerra, considerando neste caso uma polpuda contribuição financeira. Strada reiterou: Estavam dispostos a qualquer operação sigilosa com os nazistas. A SS forneceu aos argentinos, a exemplo do que fize - ra com os brasileiros, equipamentos e treinamento relacionados à repressão. Além disso, ainda nos “bons tempos”, quando a guerra não estava em sua fase final, era comum generais argentinos em incursão secreta por Berlim, onde Andreas organizava suntuosas recepções, geralmente com a presença de belas mulheres. Com essa relação próxima, ele foi criando intimidade com boa parte do Exército argentino, dentre eles com Juan Domingo Perón,

um dos mais assíduos frequentadores dos bastidores do Reich, e que se tornou seu grande amigo. Como sempre fazia, ele cuidou para confeccionar um dossiê para cada um de seus novos muy amigos argentinos. Desde fotografias de cenas pornográficas, às vezes envol- vendo homossexualismo de alguns dos oficiais, até registro de visitas dos argentinos a campos de concentração quando eles declararam apoio à solução final para os judeus, e o que mais fosse possível para, num eventual futuro, os argentinos terem, além dos motivos financeiros, fortes razões para apoiar uma comunidade nazista em seu país. *** As ações dos nazistas durante o desenrolar da operação Barbarossa foi ainda mais brutal e sádica do que na Polônia. Contando todos os soldados do Eixo, aproximadamente 4 milhões participaram da invasão à União Soviética. Foram utilizados mais de 600 mil veículos a motor e quase 800 mil cavalos. A princípio o Eixo conseguiu tomar importantes áreas de produção econômica na Ucrânia, e realizaram vultosas incursões aéreas, destruindo grande parte da força aérea soviética. Até o final do ano, mais de 2 milhões de soldados soviéticos foram feitos reféns. Como Stalin foi pego de surpresa e nos primeiros dias os nazistas avançaram, uma das primeiras medidas do ditador soviético foi lançar a campanha de terra arrasada. A ordem era para que em todas as localidades, onde os nazistas estivessem avançando, tudo fosse destruído, desde casa até campos de agricultura, para ajudar a frear a ofensiva do Eixo.

No entanto, em diversas aldeias, principalmente na Ucrânia, Letônia, Estônia e Lituânia, os moradores não obedeceram a Stalin. Em algumas dessas aldeias os nazistas foram recebidos como libertadores do regime comunista. Muito embora, na maioria delas, em pouco tempo depois já lamentassem a invasão, por conta da extrema violência das tropas nazistas, em especial da Waffen-SS. Antes do final de 1941 os alemães tinham conquis - tado uma grande área soviética, e começaram o cerco a Leningrado e a Moscou, mas o inverno russo estava apenas começando, e o frio mais do que intenso foi um grande golpe nos planos de Hitler. Eva Spinger, contrariando o marido e o irmão, e mesmo sendo absolutamente contra a guerra, tomou a decisão de participar dos esforços de guerra, alistando-se como enfermeira. E, com a intenção de se doar na ajuda aos “inocentes alemães que foram jogados à guerra”, conforme disse ao seu marido antes de deixar Munique, ela resolveu ir para as frentes de batalhas mais perigosas, onde as pessoas mais precisariam dela. Quando teve início a operação Barbarossa, Eva decidiu ir com a Wehrmacht até a União Soviética. Ela passou por todas as privações juntamente com os soldados, desde a fome, o frio, o medo e a dor por deixar o marido e o filho, que tanto amava, e com a certeza de estar fazendo a obrigação de uma verdadeira cristã. Isso a mantinha firme, sempre atenciosa, dedicada e com um sorriso no rosto a ajudar os feridos, alguns dos quais chegavam em situação bastante deplorável, por vezes a poucos minutos do suspiro final. Um pouco antes do Natal de 1941, Andreas recebe a comunicação da morte de sua irmã, por conta de uma

batalha com o exército vermelho, perto de Moscou. Por alguns minutos ele ficou pensativo, com uma tristeza tomando con- ta do seu ser. Ele refletia sobre o quanto eram diferentes, e como a irmã era uma alma melhor que a dele. Naquele dia, pela primeira vez, ele considerou estar absolutamente perdido e distanciado daquilo que sua mãe chamava de uma “vida do bem”. Todavia, aqueles pensamentos não eram bem-vindos, e ele sabia: já não podia mais abandonar a missão para ele designada. *** Ainda antes do final de 1941, dos relatos fornecidos pelo serviço de inteligência, o mais preocupante era sobre a situação econômica da Alemanha. Devido ao aumento exorbitante dos gastos com a operação Barbarossa e com um programa quase insano de aumento de produção de aviões, as finanças do Reich começaram a balancear negativamente, com diversos sintomas de crise. A volta da pressão inflacionária, a disparada da dívida pública do Reich e a escassez de matérias-primas fundamentais para a indústria de base, como o carvão, estavam forçando a diminuição da produção industrial, especialmente a bélica, e apontavam para um cenário de muita preocupação. O Reichsbank, banco central alemão, dera início a um plano de recuperação econômica, a partir do estímulo à poupança interna e ao aumento dos impostos sobre as grandes fortunas e grandes empresas. No entanto, foi inevitável a diminuição na produção bélica. A Luftwaffe, por exemplo, já tinha iniciado um arrojado programa de construção de aeronaves, mas foi obrigada a aceitar que os aviões abatidos na operação Barbarossa fossem apenas substituídos.

No geral, a produção bélica alemã não conseguia acompanhar o ritmo necessário para a expansão dos confrontos, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Por outro lado, os nazistas já admitiam que o exército vermelho não seria vencido ainda em 1941 e, conforme Andreas teve a oportunidade de dizer pessoalmente ao führer ainda antes do início da operação Barbarossa, a União Soviética demonstrava uma capacidade extraordinária de repor seus armamentos destruídos e o moral da tropa não era abalada. Com o inverno rigoroso daquele ano de 1941, apontando temperaturas de 30 graus Celsius negativos, e com a dificuldade de levar suprimentos às frentes nazistas avançadas, o exército vermelho deu início a sua primeira grande ofensiva de contra-ataque a partir de Moscou. A Wehrmacht emitia sinais de entrar em colapso, com recuo de tropas inteiras em desespero, sob fogo aéreo inimigo, frio e fome. Hitler recebeu um relato em que a Wehrmacht estimou uma perda de quase 400 mil soldados, dos quais 250 mil sucumbiram devido a doenças e frio. Era uma derrota fragorosa, porém o führer não pensava em recuar. *** Nos últimos dias de novembro de 1941, Andreas estava ansioso por uma audiência com o führer. A última vez havia sido quando a Carta do Atlântico foi assinada, em agosto do mesmo ano. Naquela ocasião ele demonstrou a Hitler que a conferência realizada entre o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, e o presidente americano, Franklin Roosevelt, produzindo a Carta do Atlântico, era um indício da entrada, em breve, dos Estados Unidos na guerra. Quando finalmente Hitler o recebeu, viu um relatório de inteligência apontando quanto os Estados Unidos

planejavam gastar com a guerra, mesmo sem estar oficialmente nela: nos dois anos seguintes o montante significava mais do total da capacidade alemã gastar nos cinco anos posteriores. Hitler olhou desolado para os números, e irrompeu em fúria: – Roosevelt é cercado por uma quadrilha de judeus e maçons. O povo norte-americano vai pagar pelas atitudes desse covarde. O führer tinha concedido a audiência por outro motivo. Ele queria saber qual a verdadeira posição do Japão no conflito, já que entendia como fator de equilíbrio o Japão se lançar contra o Reino Unido e os Estados Unidos, dando-lhe tempo para se rearmar contra a União Soviética. Era um trabalho complicado. Andreas não tinha sua rede de informações armada no Japão e o tempo era curto. Como a máquina de pilhagem montada por ele funcionava perfeitamente e com louvor, mesmo sem a sua presença, haveria tempo para essa nova missão. O Japão já era aliado da Alemanha desde 1937, e tinha uma política clara de expansão, sobretudo sobre a China, onde Pequim era território ocupado pelos japoneses. Quando a Alemanha invadiu a França, os japoneses se aproveitaram e invadiram a Indochina francesa. Os Estados Unidos se empenharam em frear o avanço expansionista japonês, com medidas restritivas, como o embargo no fornecimento de petróleo e matérias-primas, impedindo o crescimento da indústria bélica japonesa. Enquanto Andreas fazia seus primeiros contatos para conseguir algum tipo de informação privilegiada em Tóquio, no dia 7 de dezembro de 1941 surpreendentemente o Japão lança um ataque aéreo à base americana de Pearl Harbor,

no Hawaii, sede da frota americana no Pacífico. Agora, os Estados Unidos entravam na guerra, e ele sabia que, ao contrário da expectativa do führer, era questão de tempo para a Alemanha ser arrasada. CAPÍTULO 13  WAFFEN-SS A Waffen-SS, força de batalha da SS, foi oficial - mente criada no final de 1940 por Himmler e em seis me- ses tinha mais de 150 mil homens em suas fileiras. Em outubro de 1944 ela contava com 910 mil membros, com voluntários de mais de 30 países diferentes. A aceitação de alemães étnicos na Waffen-SS foi uma medida tomada por Hitler para aliviar a tensão que estava sendo criada com o Exército pela disputa por recrutas. O Exército reclamava para si o controle das unidades em campo e não aceitava o fato da SS estar recrutando os melhores homens. Como os estrangeiros, mesmo os alemães étnicos, não estavam aptos para o serviço militar obrigatório, foram deslocados para a Waffen-SS. Os oficiais da Waffen-SS eram submetidos a um ri - goroso treinamento físico e ideológico, envolvendo uma profunda preocupação com o sentido de liderança e fi- delidade ao führer. Os futuros oficiais, quando em trei- namento, acordavam às seis horas da manhã e passavam por uma hora de treinamento físico. Em seguida, comiam mingau com água para continuar na prática de exercícios com armas e mais preparação física, durante a manhã toda, com atividades de alto grau de dificuldade, por ve- zes insuportáveis. Um dia sim, outro não, havia aulas teóricas, na verdade uma verdadeira doutrinação ideológica, onde o livro “O Mito

do Século XX”, de Rosemberg, era a maior das referências. Os membros da Waffen-SS, mais do que os soldados da Wehrmacht, tinham a convicção de pertencerem a uma raça superior. Além disso, acreditavam que a eliminação de outras raças não tinha um caráter desumano, era antes uma obrigação. Uma das inovações nos treinamentos da SS ocorria quando o cadete passava por manobras de tiro real e outras ações de perigo. As tropas eram constantemente incentivadas a participar de competições físicas e intelectuais. AWaffen-SS se formou a partir de diversas divisões paramilitares, no início englobadas na SS– Verfügungsdivision, SS Polizei e a divisão Totenkopf, cujo comandante, o SS– Gruppenführer Theodor Eicke, foi um dos mais brutais dos agentes nazistas, responsável pela adoção do trabalho escravo nos primeiros campos de concentração nazistas e também eficiente na organização e disciplina militar do grupo Totenkopf, que teve muita influência na formação de toda Waffen-SS. Por seu temperamento absolutamente violento e arrogante, desprezando a Wehrmacht e o resto da SS, Eicke foi um dos mais odiados agentes da SS pelos oficiais do Exército regular alemão e também por Andreas. Durante o início da operação Barbarossa, Eicke procurou Himmler para denunciar o que ele considerava uma traição da SS. Ele havia identificado uma movimentação de agentes ligados a Andreas em atividades de extorsão a uma família polonesa, a Jarosz, de comerciantes de Varsóvia. Segundo ele apurou, o produto arrecadado não teria sido entregue devidamente para a SS.

Himmler ouviu pacientemente e prometeu conferir a denúncia no dia seguinte. Como Emannuel realizava, todas as noites, um resumo das escutas, interceptou o diálogo entre os oficiais da SS e, imediatamente, incluiu no livro de registro dos bens apreendidos na Polônia, os da família Jarosz. A manobra representava a correção na operação e foi suficiente para Himmler entender que Eicke fora movido por uma simples implicância, sem fundamento. Entretanto, Andreas sabia: o SS Gruppenführer mereceria uma atenção especial. Eicke comandou diversas ações de extermínio de judeus, principalmente na frente oriental. Ele achava divertido participar das ações típicas de assassinato coletivo, e gostava sempre de dar o primeiro dos tiros nas nucas das vítimas. Por sua eficiência, Himmler o promoveu a general SS, ober- gruppenführer SS, no ano de 1942. Logo que assumiu o novo posto, Eicke e Andreas se encontraram por acaso durante uma parada de ambos para descansar em um hotel da SS em Kiev, a caminho de destinos diferentes. O general o chamou e disse, em tom irônico: – Agora nada vai me impedir de provar que você é um ladrão profissional, um sujeito vindo do nada e sequer sabe manejar uma pistola. Ainda assim está por todos os lugares, e eu sei exatamente o que você anda fazendo. Andreas não aceitou a provocação, deu as costas a Eicke e foi deitar. Porém, ele tinha um plano para acabar com aquela ameaça. Em poucos dias o pelotão Totenkopf de Eicke recebeu, como era de costume, um novo recruta, pouco antes de embarcar para a Rússia na campanha conhecida como a batalha de Kharkov. O recruta na verdade era um especialista em sabotagem, da equipe de Andreas, cuja missão era esperar a hora certa para eliminar Eicke. A hora certa veio quando em 25 de fevereiro de 1943 o general pediu para seu avião Fieseler Storch ser preparado

para um voo de reconhecimento pessoal, no dia seguinte. O agente preparou um mecanismo de explosão, acionado pelo próprio motor do avião, em aproximadamente trinta minutos de voo. Eicke foi considerado abatido em missão pelas tropas soviéticas. *** Durante toda a guerra, Andreas manteve uma regular troca de correspondência com Ernesto, e por questão de segurança, através de sua namorada Eva. Ela recebia um envelope com duas cartas, uma para ela e outra para Ernesto. Então ela encaminhava para Buenos Aires, a partir de Munique. Nos tempos finais de guerra, ele considerou ao amigo que as atrocidades vinham de ambos os lados, tanto existia do lado do Eixo como também dos Aliados. Quanto aos nazistas, porém, ele reconhecia que o Exército regular sempre foi menos violento do que as unidades SS. – Não consigo mais suportar as notícias sobre a guerra – lamentava Ernesto em uma correspondência de 1944. – Agora mesmo os jornais estampam a notícia de uma divisão Panzer SS chamada “Das Reich”, invadindo uma vila francesa de Oradour-sur-Glane, e assassinando mais de 600 pessoas, sendo os homens fuzilados e as mulheres e crianças amontoadas em uma igreja, incendiada a seguir. Como podemos continuar assim, amigo?” As notícias de atrocidades ligadas à SS tiveram lances ainda mais cruéis. Além dos assassinatos coletivos na França e no leste europeu, ocorreram lances macabros, como na frente italiana onde tropas da 16ª divisão Panzergrenadier “Reichsführer SS”, em missão antiguerrilha, em 12 de agosto de 1944 queimaram a vila de Sant’Anna di

Stazzema, e assassinaram 560 pessoas. No dia 18 de outubro, o massacre foi na comuna de Marzabotto, em Bolonha. Ao final, as tropas Waffen-SS deixaram 1.604 civis mortos, além dos 226 “partigiani” italianos. Anos depois, ao fazer um balanço das atrocidades, reconheceu ao amigo Ernesto que os nazistas foram insuperáveis nas crueldades, seguidos pelos soviéticos, mas os Aliados também cometeram diversas delas. Algumas localizadas em vilas ou contra tropas alemãs, por vezes contra algum soldado mesmo quando se rendia, e principalmente por grandes ações, cujos objetivos seriam intimidar os adversários, onde muitas pessoas inocentes foram mortas. Um dos casos mais expressivos foi o massacre de Dresden, com bombas incendiárias em ataques surpresas dos ingleses e americanos, lançados em mais de 1.300 bombardeiros pesados e quase 4.000 dispositivos incendiários, em uma cidade sem qualquer importância militar, um marco cultural europeu. Além disso, houve os ataques a Hiroshima e Nagazaki, no Japão, dizimando a população civil das duas cidades, com o lançamento da bomba atômica. CAPÍTULO 14  SOLUÇÃO O controle dos campos de concentração era responsabilidade da SS. No começo da guerra havia relativamente poucas pessoas detidas pelos nazistas, 21.400, enquanto o Gulav russo tinha 1,3 milhão de prisioneiros. Conforme a Wehrmacht avançava com sua máquina de guerra, Himmler se esforçou para “acomodar” os presos, em especial os judeus, e se discutia uma política de deportação para o leste.

A RKFDV contabilizava, entre os campos de Dachau, Buchenwald, Sachsenhausen e Flossemburg, aproximadamente 21 mil prisioneiros em 1936. Quando foram incorporados os campos de Auschwitz-Birkenau e Lublin, a população de detentos chegou a 714 mil em janeiro de 1945, apenas nesses campos. Após o fracasso militar do final de 1941, e a crise no abastecimento da máquina de guerra alemã, a grande preocupação era com a mão de obra. Entre junho de 1941 e maio de 1944, morriam em média 60 mil soldados alemães ao mês, somente na frente oriental. Nos últimos meses de guerra, esse número chegou próximo a 1 milhão. No início de 1942, Hitler nomeou Franz Sauckel como plenipotenciário geral para a mobilização trabalhista, GBA, logo depois de ter nomeado Albert Speer, seu arquiteto preferido, como ministro do armamento do Reich. As mudanças ocorreram após a morte de Fritz Todt em acidente de avião. Segundo Andreas apurou, ele foi vítima de uma conspiração planejada por Göring, por discordâncias na divisão dos produtos obtidos com a extensa rede de corrupção implantada por ambos. Sauckel promoveu um programa de ampliação da mão de obra estrangeira para o esforço de guerra alemão. Ainda em 1941 já havia mais de 1,2 milhão de prisioneiros de guerra, sobretudo franceses, e quase 1,3 milhão de civis, principalmente poloneses, todos brutalmente forçados a aderir ao recrutamento alemão. O número de trabalhadores escravos crescia, na medida em que o controle sobre essa população ficava mais intenso. A Gestapo foi encarregada de controlar as fugas, assim como o transporte de grande quantidade, principalmente, de mulheres e jovens, de uma região a outra, em condições de

terror, onde vagões de trens eram amontoados com mais do que o dobro da sua capacidade. Os trabalhadores escravizados viajavam com fome, frio e com epidemias de doenças, constantemente culminando em mortes. Alguns meses antes, Alfred Rosemberg foi anunciado como ministro para os Territórios Orientais Ocupados, e logo de cara anunciou sua missão principal: resolver a “questão judaica”. Rosemberg conquistou respeito nos círculos nazistas como um “brilhante teórico” do nacional-socialismo. Ele se empenhou em construir uma escala racial humana, o que daria sustentação à política de ódio aos judeus e minorias de Adolf Hitler. Andreas sempre o considerou um charlatão e sequer deu conta de ler a “grande obra” de Rosemberg, “O mito do século XX”, por considerá-lo demasiadamente forçado e sem qualquer embasamento científico. Ele há muito tempo vinha acompanhando as conversas entre Himmler e Rosemberg e sabia que a solução esperada por grande parte do Reich para os judeus final- mente seria adotada. A SS vinha, desde a invasão da Polônia, promovendo massacres às populações judaicas por onde passassem, e Himmler estava preocupado em esconder as execuções, que já começaram a ganhar notícias por todo o mundo. O Reichsführer ordenou diversas “ações especiais” de execução em territórios ocupados, principalmente na Ucrânia. Nessas ações, a SS montaria um verdadeiro teatro, para a opinião pública mundial responsabilizar os soviéticos pelos massacres. Uma conversa entre Himmler e o chefe da Gestapo, Heinrich Müller, pareceria hilária, se não fosse trágica.

– Os ingleses estão espalhando pelo mundo todo que nós somos um povo cruel, bárbaro – disse Himmler. – Sei, é sobre as batalhas de Kiev – pontuou Müller. – Vamos agir rápido – exaltou-se Himmler. – Convoque uma equipe especial, te darei alguns dos meus melhores homens para isso, e faça com que uma ação nossa de fuzilamento deixe vestígios para a NKVD (comissariado do povo para assuntos internos, a polícia secreta soviética) ser responsabilizada. – Mas chefe, os russos já fazem isso a todo momento – reagiu Müller. *** As execuções, além de causarem propaganda negativa ao Reich, estavam saindo caras e demoradas. Para resolver essa equação, o Reich promoveu a deportação para o leste. Era o início da chamada “solução final” para a questão judaica. Em uma conferência em Wannsee, perto de Berlim, em 20 de janeiro de 1942, foi aprovada a “solução final”. Adolph Eichmann e Heydrich foram seus mais eficientes e entusiastas executores. O relatório final, da conferência dos secretários adjun - tos, conhecida como Wannsee, era claramente uma linguagem no mais puro estilo da SS: "No âmbito da solução final, os judeus agora devem ser submetidos ao trabalho no leste, sob uma devida coordenação. Em grandes grupos, separados por sexo, os judeus aptos ao trabalho chegarão a essas regiões construindo estradas, no que sem dúvida grande parte será eliminada por enfraquecimento natural. O contingente restante terá de ser tratado de modo adequado, visto que, por se tratar dos mais resistentes num

processo de seleção natural, representa a célula reprodutora inicial de uma reconstrução judaica". Como consequência, foram criados novos campos de concentração, além dos campos de trabalho forçado, onde diversas formas de assassinato coletivo foram adotadas contra os judeus e outras minorias, principalmente a morte por sufocamento em câmara de gás. Segundo o controle recebido por Himmler, apenas no campo de Auschwitz-Birkenau foram assassinados 2 milhões de judeus, em Treblinka, 840 mil, em Belzec, 600 mil e em Chelmno, 360 mil. Relatos de experiências médicas também chegavam ao gabinete de Himmler, como as executadas pelo médico Josef Mengele. Em um dos casos ele, sem o uso de anestesia, costurava duas pessoas juntas para tentar construir irmãos siameses artificiais. As condições nos campos de concentração eram degradantes, e os guardas, violentos e sádicos. Os soldados da SS que demonstrassem qualquer sentimento de compaixão por um prisioneiro seriam punidos. Essa era uma ordem direta de Heydrich. As tentativas de fuga ou rebelião eram punidas com extrema severidade. Em março de 1942, um grupo de judeus escapou de um campo de trabalho em Ilja, na Ucrânia e se juntou à resistência. Como represália, a SS executou todos os judeus idosos e doentes em plena rua e levou 900 outros para um prédio, onde foram queimados vivos. Ainda antes do Natal de 1942, Andreas foi chamado por Himmler para uma reunião onde estavam presentes os ministros Goebbels e Speer, além do próprio führer. Durante

toda a tarde, trataram de um plano articulado com todos os ministérios do Reich e a SS para os termos da “solução final”, ou seja, do genocídio. Os termos do encontro não poderiam ser divulgados em qualquer circunstância. Nem a população alemã, nem a força armada regular do Reich, tampouco os demais países, poderiam saber do extermínio dos judeus. Além disso, caberia a uma equipe a ser montada por Andreas, a função de apagar qualquer vestígio da participação do führer na solução final. EXPULSÃO Stalingrado, cidade à beira do rio Volga, comportava um complexo centro industrial, principalmente bélico. Como na região estava concentrada a maior reserva russa de petróleo, Hitler considerava sua anexação como estratégica. No verão de 1942, o führer ordenou à elite da força de guerra nazista para se empenhar em conquistar Stalingrado. Os alemães lançaram violentos ataques diários, com artilharia e bombardeios aéreos. Novamente Hitler imaginou que a invasão se daria rapidamente, mas a resistência soviética, principalmente da população civil, foi implacável e, com o passar dos dias, sem conquistar vitórias relevantes e a chegada do inverno, os alemães passaram a viver momentos de caos, com proliferação de mortes ocasionadas por doenças e frio, assim como ocorreu em Moscou. Andreas tinha detectado vários esforços dos russos para ter apoio militar americano contra a ofensiva dos nazistas, sem sucesso. No entanto, isso não seria necessariamente positivo para o Reich, pois a resistência em Stalingrado estava difícil de ser transposta.

Conforme se percebeu adiante, como Stalin concluiu que não teria apoio dos Estados Unidos ou do Reino Unido, ele criou um plano de ataque contra os nazistas que foi muito bem-sucedido. Para o sucesso do plano, a economia soviética passou por uma drástica mudança, com formação de uma reserva de tropas e a evacuação das indústrias próximas às linhas de frente das batalhas. O serviço de inteligência da SS detectou, e transmitiu ao führer, uma operação que os soviéticos lançaram para transportar a usina de ferro de Zaporozhstal, entre as cidades ucranianas de Dnepropetrovsk e Magnitogorsk, nos montes Urais. Foram utilizados 8 mil vagões ferroviários nessa mobilização. No entanto, nenhum dos serviços secretos alemães conseguiu identificar a estratégia russa de deslocar todas as cargas e máquinas no período noturno, em Stalingrado. A operação surpreendeu a Wehrmacht, e foi um dos fatores mais importantes para a rendição alemã, em fevereiro de 1943. Em junho de 1944 o exército vermelho deu início à “operação Bagration”, que expulsou completamente os alemães da União Soviética e da Polônia oriental. Os alemães, a partir da derrota em Stalingrado, ainda conseguiram algumas vitórias importantes, até serem novamente superados na batalha de Kursk. Naquela altura, a Wehrmacht já precisava voltar suas forças com maior rigor para a frente ocidental. Um exemplo foi quando precisou enviar as já enfraquecidas forças militares para socorrer a Itália, recentemente invadida pelos aliados, quando Mussolini foi deposto.

Como a força militar alemã estava dividida, e os bombardeios aliados a cada dia se intensificavam sobre a Alemanha, destruindo grande parte da capacidade alemã em produzir combustível sintético, os soviéticos, com operações de ataques bem elaboradas, conseguiram ludibriar os serviços de inteligência da Wehrmacht, e finalmente conseguiram expulsar os alemães dos seus territórios. Agora preparavam a grande ofensiva oriental contra a Alemanha nazista. ESPANHOL Andreas incorporou a sua rede um casal espanhol, Diego e Inês Aycinena, que assumiriam um papel fundamental nos seus planos. Ambos moravam na cidade espanhola de Oviedo e, atraídos por uma proposta para enriquecerem rapidamente, feita por um agente SS após uma extensa investigação sobre seus precedentes, mudaram-se para a cidade de São Paulo, no Brasil. Diego fora criado trabalhando no comércio de cereais da família e Inês era uma contadora bastante eficiente. O casal tinha dois filhos, de 3 e 5 anos, que ficaram na Espanha como parte do plano de garantias. Como sempre, se ocorresse algum deslize, os filhos e os demais familiares seriam eliminados. Evelyn, sem o conhecimento do marido Müller, traçou o plano para os espanhóis. Eles iniciariam um ingênuo comércio de cereais no interior de São Paulo, na cidade de Piracicaba, e a partir desse ponto fixo, passariam a comprar fazendas no Brasil e também na Argentina, onde Andreas já vislumbrava como o último paradeiro dele e de outros nazistas importantes, como o próprio führer.

Quando chegasse a hora certa, ele se mudaria para a América do Sul, e todas as propriedades em nome do casal passariam para o alemão. Evelyn viajara a cada três meses para a Alemanha, antes da guerra. Em cada viagem levava ao Brasil uma mala com ouro, joias e dinheiro, produtos da pilhagem. No Brasil, ela abriu uma conta bancária em seu nome, com um cofre em uma agência bancária do Banco do Brasil, em São Paulo, cidade onde Müller servia na polícia secreta. O casal Aycinena comprou uma casa confortável no bairro Paulista, em Piracicaba, e adquiriu uma máquina de arroz de uma família de espanhóis. Além disso, abriu duas contas bancárias no Banco do Brasil, em São Paulo e Piracicaba, e outra no Banco de la Nacion Argentina, em Buenos Aires, Argentina. O próprio Andreas conseguiu com o serviço secreto espanhol documentação falsa, com o nome de Fernando Sanches, que adotaria no estágio brasileiro de sua rota de fuga. Uma vez no Brasil, ele aguardaria o momento de providenciar a transição de Adolph Hitler, desde seu desembarque em porto do Nordeste, e o acompanharia de carro até a cidade de Santos, no interior de São Paulo. OURO Enquanto a Alemanha transferia ouro para o Banco Nacional Suíço, em Berna, Andreas fazia suas transferências para o Banco Julius Baer. Grande parte do ouro enviado pelos nazistas era produto de roubo dos judeus. O metal era derretido na Suíça e ajudava a financiar a guerra. Estima-se que entre 1939 e 1945 o governo alemão transferiu para a Suíça, apenas em ouro, 400 milhões de dólares da época.

No mesmo período ele transferiu, também em ouro, 100 milhões de dólares para o Banco Julius Baer e vinte por cento disso para uma agência do Banco do Brasil, em São Paulo. Uma boa parte do metal precioso utilizado pelos nazistas era arrancado dos dentes de judeus mortos em campo de concentração ou massacres, em cidades e vilas. Certa vez, no campo de concentração de Dachau, onde ele fora acompanhar a ação da SS na captação do ouro dos judeus, viu diversos deles magérrimos carregando corpos quase em decomposição de outros judeus que morreram durante o trajeto de trem, vindos de diversas regiões do leste europeu. Os corpos eram amontoados em um único lugar, onde os próprios judeus sobreviventes eram obrigados a arrancar os dentes e os anéis de ouro dos mortos, sob o olhar vigilante dos guardas. O ouro dos dentes e das alianças era derretido e formava lingotes. *** Em dezembro de 1943, o militar argentino Juan Domingo Perón assume o cargo de secretário de Trabalho e Segurança Social do governo argentino, e durante uma visita secreta a Berlim, tem audiência com Andreas, que lhe apresenta seu plano de fuga para a Argentina, sem comunicar ser Hitler um dos beneficiários dele. Perón externou ao amigo seu próprio plano para assumir o poder na Argentina. Ele concordou em providenciar todas as condições de documentação para que Andreas, ou quem ele indicasse, tivesse uma vida tranquila, sem a perturbação do governo e ainda pudessem desenvolver atividades empresariais na Argentina. Para poder viabilizar, em várias esferas do governo argentino, as articulações para receber

os nazistas, Perón pediu a fortuna de 50 milhões de dólares em ouro. Ele não pechinchou. Providenciou um avião Junker Ju 52 para levar Perón até Zurique, na Suíça, onde o argentino aguardaria o pagamento no hotel Dolder Grando. O mesmo avião foi até Roma buscar o padre Lui. Em Berna ele retirou do seu cofre privativo o ouro para Perón. O padre Lui aceitava essa missão, resignado. Não era com felicidade que ele acompanhava as notícias da guerra, e no fundo torcia para os nazistas serem derrotados logo, porém sinceramente não gostaria de ver seu amigo preso ou morto. Por isso, assim como Ernesto, ele se empenharia em fazer o que fosse preciso. Naquele inverno de 1943 os aliados estavam próximos de Roma, e Lui temia pelo risco da operação. Certamente se descobrissem, ligariam o Vaticano aos nazistas, como já estava sendo ventilado por todo o mundo, em face a um chamado “silêncio do Papa diante as atrocidades nazistas”. O padre considerava injusto, mas reconhecia ser possível que Rota de fuga - a históRia não contada da ss

 muitas informações sobre a guerra não fossem acessíveis. Como os nazistas ainda exerciam o controle aéreo entre Roma e a divisa com a Suíça, a viagem seria tranquila. Em Berna, como fazia sempre, Lui não usava a batina. Sempre foi tratado com muita bajulação pelos suíços, como sendo um empresário italiano. Desta vez, acompanhado de dois agentes SS disfarçados, ele fez uma grande retirada de ouro, posteriormente levado em um pequeno caminhão alugado, até Zurique, pelos agentes. Lui voltou de avião a Roma. Perón cuidou de depositar o ouro, no banco Credit Suisse, ali

mesmo em Zurique. Aquele ouro, assim como os armamentos e o treinamento que a SS deu ao grupo de militares ligados a Perón, seria fundamental quando ele se tornasse presidente da Argentina, em 1946. CAPÍTULO 18  FUGA No final de maio de 1944, Andreas expôs seu plano de fuga para o próprio führer. O dinheiro, obras de artes, joias e o ouro estavam em boas mãos em bancos da Suíça, além de parte dele no Brasil. Já fora estabelecida uma conexão, através de membros do Vaticano, para que a fortuna nazista ficasse guardada em segurança. Lembrou que uma parte já tinha sido paga a militares argentinos para facilitar a entrada e manter a vida de alguns nazistas naquele país, especialmente Hitler. Sua identidade não seria revelada para ninguém. Todos pensariam mesmo que ele cometeu suicídio. O führer passaria por uma cirurgia plástica, com um médico na Suécia, já sob vigia da SS, que ao concluir o trabalho seria eliminado. Também já estava, sob prisão domiciliar, um sósia de Hitler para ser trocado por ele, no que o mundo entenderia como suicídio, sendo necessário, no entanto, o führer abrir mão de sua arcada dentária, sendo substituída pela original, do seu sósia. Eva Braum realmente deveria ser executada e seu corpo encontrado ao lado do de Hitler. Conforme o führer havia solicitado, fora construído um bunker próximo à chancelaria do Reich, e o staff militar e pessoal de Hitler seria deslocado para lá quando os aliados, provavelmente os russos, estivessem invadindo Berlim. Hitler deveria transitar pelo bunker, normalmente, até quando Maurício Munhoz

  eria substituído pelo sósia, que entraria no local dentro de s uma caixa de mantimentos, sem ser visto. Nessa mesma caixa, o führer deixaria o bunker. Ele, então, sempre acompanhado até a Argentina por dois dos melhores homens da SS, poliglotas e fortemente armados, embarcaria em um avião Junker Ju 52/3 sem as insígnias nazistas, com um piloto de confiança da SS, não podendo ser seu piloto particular Hans Baur, com destino à cidade de Trelleborg, na Suécia, onde seria efetuada a operação de mudança facial. Após o período de convalescença, que se daria em uma casa segura de amigos do Reich, havia uma rota de fuga determinada. Esperariam a data adequada pelo serviço de inteligência da SS para embarcar em navio pesqueiro que iria até alto mar, onde seria feito um transbordo para um submarino, também já a postos exclusivamente para essa finalidade. A tri- pulação não tinha qualquer informação de quem esperariam. No dia determinado seria induzida a pensar que o passageiro misterioso seria Himmler em vez de Hitler. O submarino chegaria à costa brasileira, onde seria feito um transbordo para uma outra embarcação pesqueira que os levaria até Recife. De lá partiriam de carro até Santos, no litoral paulista, onde se encontrariam com Andreas, já no Brasil há alguns meses, como um espanhol comerciante de arroz. Então ficariam aguardando a sinalização para entrarem em definitivo na Argentina, onde teriam uma identidade e uma vida acobertada pela condição de importadores de fumo cubano. Na Argentina seria organizada uma nova célula nazista. Dinheiro para isso não seria problema, já que tinham, além de dinheiro em bancos argentinos, brasileiros e suíços,

muito ouro, joias, obras de arte e fazendas com gado, além de participação em grandes empresas argentinas, de origem alemã. Hitler ouviu, pacientemente com a cabeça abaixada, como de costume. Suas mãos não tremiam, o que demonstrava como ele havia interpretado bem os sintomas do mal Rota de fuga - a históRia não contada da ss

de Parkinson, já há vários anos, inclusive com publicidade mundial, mas que nunca teve. Ele concordou em fingir, para uma eventual nova identidade não gerar qualquer tipo de suspeita. Após alguns segundos da exposição do recémnomeado Obersturmbannführer SS Spinger, o führer levantou a cabeça e disse solenemente: – Ainda não tenho a definição se seguirei esse pla - no. Estou realmente propenso a morrer no caso improvável de uma derrota. Devo apenas te advertir, se não fosse exatamente esta sua atribuição, eu não te deixaria ainda estar vivo com essa visão tão pessimista do futuro do Reich. De qualquer forma, seja qual for minha decisão, você será o primeiro a saber. CAPÍTULO 19  INVASÃO No verão de 1944, em um dia ensolarado de Berlim, logo pela manhã, Andreas deixava seu apartamento em direção a seu escritório no quartel-general da SS. Quando seu carro passava próximo à praça Opernplatz, ouviu as sirenes soarem incessantemente. Acostumadas com os ataques aéreos, as pessoas corriam em direção a um abrigo e Sauber sugeriu que parassem o carro ali mesmo e também se protegessem.

Em um bunker bastante espaçoso, ele pôde ouvir as primeiras explosões que ainda estavam longe. Aos poucos elas ficavam mais contínuas e pareciam se aproximar até que um grande estrondo se deu muito próximo deles, momento em que as luzes se apagaram. Com o impacto, que fez tremer o bunker, Sauber foi pego de surpresa e bateu a cabeça em uma extremidade de concreto, próxima à porta de entrada. O sangue jorrou. Andreas correu em seu socorro, em meio aos gritos das pessoas assustadas, e percebeu que Sauber estava desfalecido. Todavia, não era possível sair do bunker em busca de ajuda, porque os aviões continuavam a sobrevoar aquela região da cidade, e as bombas insistiam em explodir nas ruas. Por um momento ele parou e percebeu a aflição que o povo alemão estava vivendo naquela fase da guerra, e de certa forma triste, entendeu que haveria muito mais angústia pela frente. O sangue fora estancado após Andreas, cuidadosamente, usar um lenço que levava consigo. Em seguida, Sauber recuperou a consciência, tranquilizando o amigo, que ficou mais aliviado. Porém, uma angústia tomava conta de Andreas e a sensação se agravou quando ele saiu pelas ruas tomadas por labaredas e focos de fumaça, diante de prédios e veículos destruídos. No começo de 1945, com a intensificação dos ataques aéreos, havia mais de 8 milhões de alemães desabrigados. Naturalmente, a situação que iniciara logo após o começo da guerra se acelerou com as derrotas na frente oriental. A população já não dava a sustentação política para Hitler. Porém, àquela altura, com a instalação do Estado policial no Reich, isso já não tinha qualquer importância.

Naquele dia no bunker Andreas também se viu diante de um impasse. Como faltavam poucos dias para deixar a Alemanha, conforme combinado com o führer, como se empenharia nas suas funções típicas de espionagem? Ele precisaria se desligar dos problemas domésticos, embora fosse leal a Hitler. Ele se preocupava com alguma conspiração com capacidade de derrubar o führer, mas nada poderia adiar os planos traçados para a fuga com destino à América do Sul, onde talvez Hitler pudesse reorganizar o Reich ou, na pior das hipóteses, eles pudessem viver uma vida confortável sem a perseguição que, certamente, os aliados deflagrariam. Ele sabia sobre algumas conspirações em andamento em núcleos do Exército, cujos diversos oficiais culpavam Hitler por seu autoritarismo e teimosia, levando a Wehrmacht a humilhantes derrotas e causando o flagelo da nação alemã. Além disso, para muitos oficiais, as atrocidades com que a Waffen-SS se portava nos campos de guerra e com os judeus, estavam provocando indignação. Ao ouvir um dos diálogos entre dois oficiais da Wehrmacht, condenando a ação da SS contra um grupo de judeus, ele comentou com Emannuel: – Imagine, então, se eles soubessem o que realmente acontece nos campos de concentração.  * * * Quando o almirante Wilhelm Canaris, diretor do serviço de espionagem militar, a abwehr, foi preso em janeiro de 1944, Himmler suspeitava de Canaris, como sendo conspirador, por isso o monitorava. Andreas, no entanto, levantou provas apontando o almirante como membro de um esquema que passava segredos militares alemães para os Aliados. Por

isso Canaris foi preso, e por ordem do führer, que não quis anunciar o motivo da sua prisão, sua vida foi poupada. Andreas se decidiu então a, antes de deixar a Alemanha, com Sauber e Emannuel, entregar, como fonte anônima, um dossiê à Gestapo, com as informações coletadas por ele sobre os movimentos conspiradores. Assim, ele contribuiria com a segurança do führer, mas não poderia fazer mais do que isso, para não comprometer seus planos. Ele estava acompanhando o desenrolar das atividades de alguns militares, com indícios de expor o führer a vários riscos. Um plano de assassinar Hitler viria a desencadear a operação Valquíria, em última análise uma tentativa de tomada do poder por uma ala do Exército regular alemão, antes que a SS o fizesse após a morte do führer. Nos anos finais da guerra, Hitler se apoiava em alguns devaneios. Para ele, a guerra ainda poderia ser vencida e, como já havia acontecido, ele continuaria a escapar de outras tentativas de assassinatos por uma proteção divina. Então, ele criava suas esperanças. Uma delas era a fabricação de uma bomba de poder muito acima do convencional, lançada como um míssil, não tripulado. Em junho de 1944 foram lançadas dez bombas V1 em direção a Londres, causando terror nos ingleses. As próximas bombas já não assustaram tanto, e como uma grande parte delas não conseguiam atingir o alvo, o programa perdeu a prioridade determinada por Hitler. Outra esperança do führer repousava em outro míssil da linha V, cujo projeto era comandado pelo cientista Wernher Von Braun. Em pouco tempo Himmler fez questão de assumir a responsabilidade por sua produção, onde usou mais de 4 mil prisioneiros no processo de fabricação. A bomba, porém, enfrentou sucessivas falhas durante os

testes de lançamento, o que exigiu a realização de inúmeras modificações no protótipo V2. Em setembro de 1944 os fogue- tes puderam ser lançados contra o Reino Unido e a Bélgica, mas apesar de serem eficientes, na medida em que não po- deriam ser contidos pela defesa aérea, tornaram-se pouco destrutivos porque não podiam carregar grande quantidade de explosivos. Em paralelo, havia uma corrida contra o tempo com os alemães de um lado e os ingleses e americanos do outro para a produção da bomba atômica. Os alemães sabiam que alguns cientistas alemães-judeus estavam agora servindo os Aliados, e aquilo os deixava em desvantagem competitiva. Certo dia, Himmler chamou a sua sala uma equipe de elite de assassinos com uma missão intercontinental: assassinar o cientista Albert Einstein em território americano. A missão, feita sem planejamento pelos tenentes SS, Thomas Hensel e Hans Scheidemann, foi um fracasso e ambos foram presos logo ao desembarcarem no porto de Nova York, após terem sido monitorados pelo serviço de inteligência americano. A rigor, Andreas não pôde comentar com Himmler não ser necessária a eliminação de Einstein, porque estragaria o disfarce do seu sistema de escuta, porém ele sabia: Albert Einstein não tinha participação efetiva em projeto de fabricação de bomba atômica nos Estados Unidos. Para chegar a essa conclusão, não era preciso ter um serviço de espionagem ao dispor, bastava ver a imprensa internacional que acompanhava todos os passos do físico alemão. Outras armas estavam sendo desenvolvidas pelo Reich, como aviões a jato ou submarinos com grande capacidade de imersão e ataque, além de um grande canhão lançando

ogivas contra Londres, o chamado V3. Porém, até o final da guerra não foram colocados em prática, a não ser como testes. Se os alemães tivessem obtido sucesso, talvez com mais tempo, Hitler poderia vencer a guerra, sobretudo com a fabricação da bomba atômica. “O que o führer não teria feito ao mundo, se tivesse produzido a bomba atômica?” questionou Andreas, algum tempo depois na Argentina. No dia 6 de junho de 1944, quando os Aliados desembarcaram na Normandia, costa da França, a Segunda Guerra Mundial começara a visualizar seu final. O Reich não che- garia aos mil anos, como a propaganda nazista alardeava. Ao mesmo tempo os russos estavam em plena ofensiva aos nazistas. A Alemanha já não tinha forças para suportar os ataques. No chamado Dia D, os aliados realizaram a maior operação naval da história, com 155 mil homens, mais de 14 mil barcos, 600 navios e milhares de aviões. Os serviços de inteligência do Reich, assim como o próprio Hitler com sua autodenominada super intuição, não conseguiram prever nem o local nem quando os Aliados realizariam a invasão. CAPÍTULO 20  DEPOIS Em 19 de junho de 1944, não pelo momento da guerra, que Andreas já sabia estar perdida, mas conforme o planejamento feito há bastante tempo, ele deixou a Alemanha para sempre. Aquele dia não teve qualquer marca especial para ele, não suscitou reminiscências ou qualquer sentimento especial. Era como se ele estivesse deixando Munique em direção a Berlim, como fizera quinze anos antes.

O destino dele, no entanto, era o Brasil, de onde deveria esperar a decisão do führer quanto a sua fuga, e também a consolidação do seu amigo Juan Domingo Perón, como presidente da República Argentina. Andreas, em companhia de Sauber, Emannuel e do piloto Ferdinando Schultz, não teve dificuldades em chegar a Cascais, na costa portuguesa, de onde embarcou já como o espanhol Fernando Sanches em um barco pesqueiro, que o deixou a bordo de um submarino U-boot tipo VIIC da marinha alemã. O destino era a costa brasileira, onde foi recolhido por outro barco pesqueiro e deixado em João Pessoa, Paraíba. Dois dias antes ele comunicou a Himmler, através de memorando, como era de costume, que iria com sua equipe principal para uma missão confidencial em Copenhagen, utili- zando o Junker JU52/3M, da SS. O avião saiu de Berlim, mas pousou em Rendesburg, na Schleswig-Holstein, onde desceram Andreas, Sauber e Emannuel. O piloto Schultz continuou conduzindo o avião até Eckernförde, na costa alemã, onde pulou de paraquedas, pousando em lugar ermo antes da zona urbana. O avião caiu no mar báltico, não muito longe da costa.

Os quatro se reuniram em Hamburgo na mesma noite, já com identidades da SS falsas, e não foram importunados. Seguiram imediatamente, em um Audi 920, em direção a Portugal, chegando sem dificuldades, conforme o planejado. Himmler não teria tempo ou mesmo equipe para confirmar a veracidade do acidente, por isso a morte de toda equipe foi anunciada oficialmente, com os corpos conside- rados desaparecidos no mar. Apenas Hitler e seu ajudante de ordens Otto Günsche sabiam do plano. Günsche, oficial da SS, seria a partir daquele momento o elo entre Andreas e Hitler, e teria a responsabilidade pela fase Berlim na operação de fuga do führer, caso essa fosse a sua decisão. Eva Schiller recebeu a notícia da morte de Andreas por um oficial da SS de Munique. Todas as esposas, namora- das e mães de soldados sabiam que poderiam receber a visita de algum militar, ou mesmo de amigos, com a notícia da morte do ente querido. Com Eva não era diferente e, mesmo com a relação dela e o namorado cada dia mais distante, ela se considerava a mulher dele. Ele decidiu por não contar a verdade para Eva, para a própria segurança dela. E considerou que a partir de então, ambos estariam livres para novos relacionamentos, embora ele não tivesse a intenção de correr qualquer tipo de riscos, como ter uma namorada. Chegando à Paraíba, os quatro alemães desceram do barco pesqueiro, já preparado por Evelyn. O piloto Schultz se dirigiu a Rio Tinto, no interior do estado, onde ficaria com uma família de alemães que vivia no local há vários anos, e deveria se infiltrar como mais um operário alemão da fábrica de tecidos Lündgreen. Sua recompensa seria entregue algum tempo depois do final da guerra.

Evelyn esperava por eles em João Pessoa, onde os alemães não deveriam ficar por mais que alguns minutos, pois a cidade, em função de estar no extremo da costa brasileira, poderia estar sendo vigiada pelos Aliados. Evelyn falava o português sem sotaque alemão. Da mesma forma Andreas falava o espanhol, o que facilitou o disfarce de ambos. Sauber e Emannuel, no entanto, apesar de estarem estudando espanhol e português há alguns anos, não conseguiam atenuar o forte acento da língua germânica. De qualquer forma, ambos ficariam separados. Enquanto Sauber continuaria até São Paulo, Emannuel seguiria imediatamente para Buenos Aires, onde seria acomodado por uma família alemã. Os quatro seguiram de carro, um Coupe 1940, até Salvador, onde Emannuel tomou um ônibus até o Rio de Janeiro, de lá para Porto Alegre e, finalmente para Buenos Aires. Os demais seguiram até a estação da Luz, em São Paulo, de onde partiram para Piracicaba. Evelyn ficou em São Paulo. O governo brasileiro havia declarado guerra à Alemanha, desde agosto de 1942 e em julho de 1944 enviou tropa para a guerra, a chamada Força Expedicionária Brasileira, a FEB. Apesar disso, vários setores do governo, principalmente a polícia secreta, eram simpatizantes dos nazistas desde antes da guerra, e continuaram sendo mesmo depois da derrota do Eixo. O próprio presidente Getúlio Vargas havia feito até discursos favoráveis a Hitler, antes do início da guerra. O comércio entre Brasil e Alemanha vinha aumentando e no final da década de 1930, o Brasil era o sexto maior par- ceiro comercial da Alemanha.

Os Estados Unidos, no entanto, pressionaram Getúlio Vargas para romper com os alemães e ofereceram em troca apoio financeiro e militar. Os americanos finan- ciaram grande parte da Companhia Siderúrgica Nacional, fundamental para a solidificação do parque industrial brasileiro. Vargas cedeu aos americanos, e primeiro rompeu as relações comerciais com o Reich, depois declarou guerra, porém nunca se opôs ao fato de seu serviço secreto continuar mantendo relações com os nazistas. Durante o trajeto de carro do Nordeste a São Paulo, Evelyn, conversando em português para os alemães se adaptarem à língua, contou que o filme “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin, uma grande crítica ao regime nazista e ao führer, estava proibido de ser exibido no Brasil mesmo depois do país ter declarado guerra à Alemanha. O chefe da polícia secreta de Vargas, Filinto Müller, com sua influência no governo, não aceitava o que ele chamava de “provocação” dos ingleses e americanos. Evelyn detalhou a Andreas todos os investimentos feitos no Brasil e na Argentina, desde fazendas, terrenos urbanos e casas, até os investimentos em ações de companhias e aplicações financeiras, representando um total próximo aos 600 milhões de dólares. Ela entregou todas as escrituras para ele, assim como as procurações, incluindo do casal Aycinena. Em última análise, a posse sobre toda aquela fortuna estava com ele. Ainda durante o trajeto até São Paulo os alemães passaram por uma fazenda adquirida por Evelyn, em Taubaté, no interior do Estado, em uma extensa área de 200 alqueires, incrustada em belo vale cercado pelo verde. Ali seria um dos pontos de apoio do grupo, onde principalmente Sauber passaria uma boa parte do tempo. Andreas trazia consigo mais uma grande quantidade em ouro, joias e obras de

artes valiosíssimas, como de Paul Signac, Pablo Picasso, Renoir e até do judeu Marc Chagall, devidamente acondicionados, sem as molduras. Sauber também trouxe diversas armas, equipamentos de escuta e alguns dos dossiês mais importantes que coletaram desde os primórdios da SS. Todo o restante dos documentos, gravações e fotografias foram incinerados antes da fuga para o Brasil. *** No dia em que chegaram a Piracicaba, o clima estava em torno de quinze graus centígrados, bastante agradável para os alemães. A casa onde iriam morar ficava próxima à estação de trem e, por orientação de Evelyn, os dois foram caminhando até ela, carregando as malas. Tudo deveria ser feito de modo a não despertar qualquer tipo de desconfiança. O interior de São Paulo recebia uma grande quantidade de espanhóis e Sauber tinha identidade holandesa, o que afastava a curiosidade inicial, natural sobre os imigrantes alemães na época da guerra. Nas aulas de português e espanhol realizadas em Berlim, o professor holandês buscou direcionar o sotaque de Sauber o mais próximo possível para a língua holandesa. A casa era bastante confortável, mas não tinha nada de ostentação. O corretor de imóveis que negociou a residência e a chamada “máquina de arroz” com o casal Aycinena, estava esperando o novo proprietário em um bar em frente a casa. Ao chegaram ele foi levar as chaves, mostrar a residência e o prédio onde estava abrigado o comércio de cereais, e apresentar os cadernos da contabilidade da

pequena empresa, que agora era oficialmente de Fernando Sanches. A adaptação à vida no Brasil foi tranquila. Ele e Sauber se ocuparam das atividades corriqueiras do negócio, comprando arroz, levados pelos sitiantes, limpando, descascando, separando, brunindo, classificando e ensacando. A fase seguinte era vender aos mercados e também para as donas de casas da região. Em todas as etapas os dois alemães realizavam todo o trabalho. Mais adiante, contrataram um jovem negro, José Eusébio, como auxiliar, o que facilitou as viagens de Sauber, quando já estava mais adaptado ao idioma. Quem visse ali aquele “espanhol” e seu amigo “holandês” trabalhando de sol a sol, carregando sacos de 60 quilos de arroz nas costas, com os cabelos sempre com cascas de arroz, debatendo preço com os fornecedores e com simples donas de casa, não poderia supor que ambos, até pouco tempo atrás, decidiam e executavam a morte de pessoas inocentes como se estivessem decidindo se a qualidade do arroz era ou não satisfatória. As notícias da guerra eram acompanhadas pelo rádio, principalmente pela BBC de Londres via ondas curtas, sempre de maneira bastante discreta, somente dentro da residência. Para algum contato específico com a Alemanha, Sauber ia de trem até São Paulo, onde Evelyn tinha uma estrutura de comunicação, envolvendo telégrafo e radiodifusão. A mesma estrutura estava sendo montada na Argentina, por Emannuel. As notícias foram as esperadas. O avanço dos Aliados, conquistando Paris, os romenos e a Finlândia mudando de lado, o recuo alemão na Grécia, Albânia e sul da Iugoslávia, os bombardeios incessantes às cidades alemãs, e o avanço

dos soviéticos só confirmavam o fim iminente do regime nazista. Ainda em 1944, por vezes surgiam algumas notícias demonstrando que o regime moribundo ainda se debatia, tentando mudar o rumo da guerra, como o sufocamento de rebeliões na Eslováquia ou na Hungria, ou o contra-ataque alemão no oeste, conhecido como batalha de Bulge, uma tentativa de reconquistar a Bélgica e dividir as forças aliadas na fronteira alemã. Porém, em menos de quinze dias, os alemães foram obrigados a bater em retirada. *** Os oficiais da SS não fizeram amizades mais profundas com os piracicabanos, também não demonstravam antipatia e às vezes até aceitavam alguns convites, bastante simples, como certo sábado que foram até a comunidade Pau D’alho, onde os sitiantes produtores de arroz organizavam uma festa religiosa. Andreas até dançou descalço como os moradores, os chamados caipiras. Por algumas vezes, acompanhados de clientes, iam pescar no barranco do rio Piracicaba. Os alemães se divertiam quando pescavam algum Curimbatá ou Piau, e principalmente os Dourados. Ali mesmo, no barranco, eles assavam os peixes e comiam, invariavelmente acompanhados da “pinga”, aguardente de cana. Andreas sabia que precisava esperar. O prazo de Hitler se decidir estava se encerrando. O plano de fuga deveria ser utilizado quando os inimigos entrassem em Berlim, e ainda não dominassem a cidade por completo. Seria o momento estratégico. ***

Em Buenos Aires havia uma grande comunidade de alemães, muitos deles simpatizantes nazistas. Emannuel não teve qualquer problema de adaptação, principalmente porque o governo argentino facilitou para ele as coisas em todos os sentidos. Em poucos dias ele já estava operando a central de comunicação, assim como Evelyn no Brasil, e começara a gerenciar uma empresa modesta, importadora de charutos cubanos, com escritório na Plaza San Martin. Emannuel preparava a estrutura para a chegada de Andreas e do führer, comprando uma casa espaçosa na calle Anchorenae, um haras, próximo a Buenos Aires. No local estava sendo montada uma estrutura com bunker, guaritas de segurança e uma pista de aviação, onde um avião Rearwin 9000-L ficava à disposição, estacionado em um hangar. Em janeiro de 1945, os soviéticos tomaram definiti vamente Varsóvia e entraram na Alemanha. Andreas confirmou sua teoria de que seriam eles a invadir Berlim. Em 4 de fevereiro, Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética protagonizaram a conferência de Yalta, onde decidiram como a Alemanha seria dividida entre eles. Evelyn passou a enviar correspondência diária para Piracicaba, desde o início de 1945, quando Berlim se preparava para a invasão. Crianças, velhos e mutilados de guerra foram recrutados para a defesa do capital do Reich. Durante a invasão, porém, muitos se recusaram a lutar, pois sabiam que a guerra estava perdida. Estes eram enforcados na rua, para servir como exemplo. Na segunda quinzena de abril, Berlim é alcançada pela artilharia russa. Era o momento para o führer se decidir.

O último relatório recebido de Berlim foi impactante: “No ataque derradeiro sobre Berlim, Stalin colocou a força de 20 divisões do exército vermelho, com mais de 6 mil tanques e quase 9 mil aviões. Os americanos e britânicos estão a pouco mais de 100 quilômetros da capital, porém cumprindo um acordo com Stalin, interromperam o avanço para os soviéticos poderem realizar a invasão. A resistência alemã conta com, além das crianças e velhos, apenas com uma tropa reduzida e cansada, humilhada e sem suprimentos. Nos hospitais da cidade, amontoam-se todos os tipos de flagelados, mas com pouca assistência por parte de médi- cos ou enfermeiras, aqueles que não morreram procuram se salvar fugindo, e quase sem qualquer tipo de medicamentos. O cheiro dos corpos apodrecendo pelas ruas se confunde com o cheiro de pólvora e dos tijolos espalhados pelos tiros de canhão, formando fumaça por toda cidade. O führer encontra-se no bunker”. Em quinze dias Berlim se renderia. CAPÍTULO 21  ARGENTINA O general alemão Alfred Jodl assinou, no dia 7 de maio de 1945, o ato de rendição da Alemanha, no quartel -general americano, em Reims, na França. No dia seguinte, o almirante alemão Karl Dönitz, em Berlim, comunicou à população ter acabado de assinar a rendição do Terceiro Reich. A guerra tinha terminado. Um mês após a rendição alemã, Evelyn conseguiu, através do seu marido, um relatório do serviço de inteligência americano para um grupo formado pelos Aliados, sobre os últimos dias de Himmler: “Himmler e um grupo descolavam-se em quatro automóveis, disfarçados. Dormiram até mesmo nas ruas ou

nos matagais, enquanto sempre alguém ficava de guarda. Eram doze os fugitivos portando documentos falsificados. Himmler raspou o bigode, usava um tapa-olho, e estava com o documento de Heinrich Hitzinger, cabo da polícia de campanha Geheime Feldpolizei. Isso chamou a atenção dos ingleses, em Brener, onde foi capturado, já que essa unidade da polícia alemã sempre foi considerada uma das mais perigosas, rivalizando com a Gestapo em atrocidades. Em 23 de maio o grupo de prisioneiros chegou ao campo de interrogatório britânico número 31, próximo a Luxemburgo. Após algumas horas e com os interrogados em estado de muito nervosismo, os oficiais ingleses desconfiaram e partiram para a acareação, então Himmler resolveu se mostrar, e com arrogância exigiu ser recebido pelo general Montgomery. Após uma discussão sobre uma prova através de assinatura exigida pelos ingleses, Himmler ficou nu como exigência para verificar se ele não escondia algo na roupa. Em seguida o levaram para uma cela, onde na presença de um oficial médico, ele tirou da boca uma cápsula, e imediatamente a mordeu. Os ingleses tentaram impedir, depois promover uma lavagem estomacal e o obrigar a vomitar, mas Himmler perdeu os sentidos e poucos minutos após ter engolido o cianureto, estava morto”. Andreas tinha participado do apogeu de Himmler na SS. Ele conhecia sua vaidade e também sua inteligência, por isso sempre imaginou o Reichsführer SS com seu próprio plano de fuga. Soube, então, que ele não tinha. Alguns meses após, ainda no Brasil, Andreas, aguardava sua mudança para Buenos Aires, onde Emannuel já recebera a esperada “comitiva de alemães”. A decisão de Wagner, o codinome do principal membro da comitiva, foi de morar no haras, pelo tempo necessário para

o ambiente político acalmar. A intenção era poder acompanhar o desenrolar da política na Argentina. O contato entre Buenos Aires e o haras deveria ser feito apenas à noite. No portão de entrada, haveria uma equipe de segurança, formada por soldados SS, exigindo senha, a ser trocada a cada visita. Andreas finalmente se mudou para Buenos Aires. A fase brasileira se encerrava, e ele apostava na Argentina como um campo fértil para o nazismo se proliferar. *** Juan Domingo Perón era o presidente eleito da Argentina e governou o país juntamente com seu grupo de militares, denominado Grupo de Oficiais Unidos, GOU, formado pelos homens que frequentavam a Alemanha. Este grupo aplicou um golpe militar, em 1943, derrubando o presidente Ramón Castilho. Perón atuou como secretário do Trabalho e Bem Estar Social até 1945, quando assumiu a vice-presidência e também o cargo de ministro da Guerra. Nesses tempos ele adotou uma política de forte apelo popular, e começou a construir uma base de apoio entre os mais pobres, chamados por ele de “descamisados”. Em 9 de outubro de 1945, após uma intervenção militar, Perón foi preso. A população foi às ruas exigir sua libertação. Uma das líderes da manifestação de apoio a Perón foi Eva Duarte, conhecida como Evita, sua amante. Pouco mais de uma semana após, ele foi solto. No mesmo dia promoveu um comício na Casa Rosada, a sede do governo argentino, reunindo mais de 300 mil pessoas. Era o início de sua campanha eleitoral.

No início de 1946 Perón foi eleito presidente. O país passou por transformações que fortaleceram seu parque industrial. Foram criadas leis trabalhistas e promovido um grande plano de estatização, como do petróleo e empresas de serviços de telefonia, entre outros. No manifesto de fundação do GOU, Perón escreveu “A luta de Hitler, na paz e na guerra, nos servirá de guia”. Ainda nos primórdios da organização, idealizou um bloco de países da América do Sul para dar apoio aos regimes fascista e nazista, denominado de Blockidee. Antes mesmo de assumir a presidência, Perón emitiu 8 mil passaportes e mais de 100 mil identidades argentinas para alemães, dentre eles diversos membros da SS, militares, diplomatas, empresários apoiadores do nazismo e políticos. Andreas preferiu ficar apenas com a sua documentação espanhola, prevendo que o grande número de alemães vivendo na Argentina poderia gerar suspeitas dos Aliados. Perón, no entanto, não estava preocupado com a interferência externa. Ele acobertou uma rota marítima, partindo de Gênova, na Itália, passando por Barcelona até Buenos Aires, intensamente utilizada por diversos nazistas, então considerados criminosos de guerra. Além do próprio governo argentino, que de uma forma patética declarou guerra ao Eixo apenas no final do conflito, em 1945, Andreas sabia da existência de pessoas em vários organismos internacionais respeitados, como a Cruz Vermelha, a Caritas, além do Vaticano, ajudando em várias fases a fuga de nazistas, não apenas para a Argentina. Perón também tinha interesse nos cientistas alemães. Um dos projetos sonhados por ele era a construção de um avião caça, de fabricação totalmente argentina, um dos indícios

da ambição de expansionismo latino-americano por parte do GOU. *** Andreas estava preocupado em ser reconhecido naquela Buenos Aires cheia de nazistas, fascistas, e outros remanescentes de movimentos apoiadores do Terceiro Reich pelo mundo. De alguma forma, queria manter a história de que havia morrido, ainda em 1944, na costa alemã. Ele mantinha uma rotina sistemática, de casa ao escritório da importadora de charutos na Plaza San Martin, distância percorrida em um Oldsmobile 1940, carro americano da General Motors com caixa de câmbio automática, sempre acompanhado por Sauber, naturalmente seu motorista. No escritório da importadora ele jamais atendia algum cliente, tarefa para Emannuel ou Sauber. Tampouco ele frequentava o haras, um lugar onde poucos tinham autorização para entrar. Ele também passara a incumbência aos seus fiéis companheiros, já que as visitas serviam apenas para questões corriqueiras. Após dois meses em Buenos Aires, ele finalmente se encontrou com Ernesto. O padre havia entregado a encomenda que buscou em Roma, das mãos de Lui, para o general Juan Porfírio Strada, então coordenador de um dos setores do serviço secreto argentino. Strada era responsável pela relação com nazistas, desde o recebimento das propinas individuais para acolher os alemães com posses, até providenciar documentação, empregos ou a aquisição de empresas e propriedades no país. Aquela encomenda, mesmo cabendo em uma mala, foi avaliada em mais de 80 milhões de dólares. Eram joias preciosas, saqueadas dos judeus e milionários dos países

invadidos. Além disso, havia algo muito mais valioso: o projeto de desenvolvimento da bomba atômica alemã, incluindo uma das fases, que nem mesmo os nazistas tiveram a oportunidade de colocar em prática, um estudo sobre a fissão atômica com urânio, para produzir uma explosiva reação em cadeia. Os nazistas não conseguiram desenvolver a bomba atômica antes dos americanos, seguramente porque nos Estados Unidos havia mais cientistas e recursos para isso. Também a ação do serviço secreto britânico barrou a implantação dos estudos com urânio desenvolvidos pelo físico alemão Paul Schaffer. Antes disso os ingleses lançaram diversas ações contra as instalações de pesquisa e de desenvolvimento dos nazistas. No final de 1942, a SS descobriu um plano dos in- gleses para destruir as instalações do complexo hidrelétrico de Vermok, na Noruega, então produzindo água pesada em quantidade muito acima do normal. Ao todo, 36 soldados foram capturados, mas os ingleses não desistiram e continuaram tentando vários planos. Em 1944 sabotaram uma balsa transportando grande quantidade de água pesada e eletrólise da Noruega para a Alemanha, e sabiam dos estudos do professor Schaffer, visando dar um grande salto nos planos nucleares alemães. Porém, a ação mais importante dos ingleses foi roubar os originais do plano das mãos de Schaffer, quando o assassinaram, em Dresden, antes de serem levados ao núcleo da produção da bomba em Rugem. Porém, havia uma cópia com o restante do projeto da bomba atômica alemã. A irmã do professor guardou o material, que chegou às mãos de um agente da SS, ligado a Andreas, somente depois da rendição da Alemanha.

O agente Klaus Phelipe Strauss era um dos contatos deixados por Emannuel na Alemanha. Após a guerra, foi contatado para procurar o padre Lui, em Roma, e o acompanhar em um saque de valores na Suíça. Para surpresa de Emannuel, Strauss estava com os planos de Schaffer. Strauss, alguns anos após entregar os planos da bomba atômica para o padre Lui, foi encontrado por um agente ligado a Simon Wiesenthal, quando trabalhava em uma agência de empregos, em Frankfurt am Main. *** O encontro entre o padre Ernesto e Andreas se deu na catedral metropolitana de Buenos Aires, na rua Rivadavia, próximo ao escritório de importação de charutos. – Seja bem-vindo ao meu país. Espero ser um bom anfitrião, como você foi comigo em Munique. – Obrigado, amigo, pela nossa amizade. – Eu sei, a encomenda da Itália tinha algo muito importante, isso para eu não dizer terrível. E tenho rezado para, seja lá o que for, não dê certo, e a humanidade se livre de uma vez por todas de regimes como este. Então, você pense como tenho me sentido por conviver com essa contradição na minha alma. Meu servir a Deus é sincero e me dá orgulho fazer todos os dias. Ter servido a você, a nossa amizade, me põe contra meu servir a Deus. Por isso coloco sobre meus ombros a dor de todos que sofreram e ainda sofrem com a guerra. Andreas por alguns momentos ficou com a cabeça baixa. Ele sentiu a dor tomando seu amigo, e ponderou: – Monsenhor, não tome a culpa para você. Certa vez você me disse: Se não for através de mim, será através de outra pessoa. Sim, amigo Ernesto, você fez algo pela nossa

amizade. Se você não tivesse feito, eu encontraria outra forma. Por isso, deixe a culpa comigo, ela não me corrói. Ver você assim, isso me destrói. Ernesto não ficou aliviado com as palavras do ami- go, e considerou ser melhor não manter um clima tão triste, após tantos anos sem se encontrarem, e amenizou o tom da conversa: – Está bem. Agora espero continuar com meu amigo de Munique, tão cheio de vida, um brilhante intérprete de Mozart, sempre com algo a dizer sobre o mundo, sobre a ciência. Quero voltar a debater a religião, as crenças, o comportamento das pessoas, suas fraquezas e suas coragens excessivas. Você encerrou seu passado, até mesmo para Eva você está morto. Agora te peço: ressuscite o jovem de Munique. As ruas de Buenos Aires vão lhe servir de inspiração para um novo mundo. CAPÍTULO 22  CAÇADOS C hovia naquela manhã em Tel Aviv. Sentado em sua sala, observando os pingos se chocando contra a janela, Iser Har’el se lembrava da infância em Dvinsk na Rússia, quando adorava brincar nas ruas da cidade em plena chuva. Por alguns momentos ele se permitiu ficar navegan - do em suas reminiscências, mas o diretor do Mossad sabia que aquele dia iria exigir muito do seu senso prático. Ele esperava por Simon Wiesenthal para uma audiência de trabalho. Essas ocasiões sempre abriam novos horizontes nas buscas do recém-criado Estado de Israel sobre criminosos nazistas. Wiesenthal entrou na sala apertada de Har’el carregando diversas pastas entre os braços. Atrapalhado, o “caçador de nazistas” tropeçou no tapete. As pastas caíram no chão e na

mesa do diretor, espalhando papeis pela sala toda. Os primeiros três minutos da reunião na alta cúpula do Mossad entre seu diretor e o homem considerado “A consciência do Holocausto”, foi com ambos agachados ao chão, resgatando os papéis perdidos. – Tenho aqui algo mais do que a busca por um criminoso nazista. Entendi ser tão importante, a ponto de ser necessária sua avaliação antes de podermos levar ao primeiro-ministro – disse Wiesenthal. Har’el estava acostumado com situações de extrema tensão. Desde quando assumiu como diretor do Shin Bet, a agência de segurança de Israel, logo após a criação do Estado Judeu, e posteriormente assumiu a direção do Mossad, o instituto de inteligência e operações especiais, esteve presente nos principais conflitos que pressionaram a criação do Estado de Israel. Agora ele ouvia, atentamente, a explanação de Wiesenthal: – A Argentina está produzindo uma bomba atômica, exatamente a bomba atômica que Hitler tentou concluir. Tenha calma, vou explicar detalhadamente – dizia ofegante, enquanto espalhava as pastas na mesa, defronte a Har’el. – O serviço secreto inglês conseguiu apreender os planos de um físico alemão, em 1944. Algo sofisticado e resol- veria uma das grandes dificuldades encontradas pelos nazis- tas para realmente produzir a bomba atômica. Com o plano, eles poderiam produzir uma reação explosiva em cadeia. Os ingleses eliminaram o físico e ficaram com o plano, porém uma cópia dele, e mais todas as fases para a construção da bomba, estavam em posse da irmã do físico, em Bremen. Aquilo realmente chamou a atenção de Har’el. Wiesenthal prosseguiu. – Depois posso te detalhar como consegui essa informação,

e as outras, agora me ouça... Existe um elo entre os nazistas e a Argentina que tem passado despercebido aos olhos de todos nós. Estou falando de um oficial da SS, Andreas Spinger. Veja aqui a fotografia dele, e perceba na anotação da própria SS, ele foi dado como morto em um acidente aéreo. Har’el examinou detalhadamente o material dos arquivos nazistas sobre o tenente-coronel SS Spinger. O caçador de nazistas continuou. – Pois o tenente-coronel da SS foi visto em Buenos Aires, onde mantém um comércio de importação de charutos cubanos. Na verdade ele tem diversos negócios pela Argentina e Brasil. Não sei precisar tudo em seu nome ou no nome de uma alemã, residente em São Paulo. Esse oficial nazista foi reconhecido como sendo um dos mais poderosos oficiais da SS, responsável por verdadeiras pilhagens às famílias de judeus por onde os alemães passavam, a começar na própria Alemanha. Além disso, ele foi talvez o maior entusiasta do genocídio por um simples motivo: arrancar os dentes de ouro dos mortos. Har’el o interrompeu para buscar dois copos de água. Wiesenthal bebeu o seu em um só gole, e deu prosseguimento. – Spinger abriu contas bancárias na Suíça, em seu nome e de um sacerdote, da cidade do Vaticano. Há um outro padre, residente em Buenos Aires que tem dado sustentação ao grupo nazista, mas não identifiquei uma participação do Vaticano propriamente dito, não neste caso. Ah, o tenentecoronel tem nova identidade, é claro, como um espanhol, Fernando Sanches. Atualmente ele parece estar em um período de hibernação, quero dizer, ele tem uma vida tranquila na Argentina, sempre com todo apoio do governo, principalmente do presidente Perón, como você já sabe. Tenho a impressão que estão esperando o tempo passar. Agora, o mais importante, ele parece ainda seguir as ordens de alguém muito poderoso.

O diretor do Mossad não se impressionou, também não passava pela cabeça dele que Wiesenthal estava se referindo a Hitler. – Não posso afirmar, é alguém importante no núcleo nazista. Conforme levantei, Spinger conseguiu enganar o próprio Himmler durante todo o período dos nazistas no poder. Ele tinha reuniões exclusivas com Hitler, sempre na calada da noite. Às vezes ia disfarçado para esses encontros. Ele se passava por um simples administrador na SS, e tinha um sofisticado sistema de escutas. Todos eram espionados, os ministros e lideranças, incluindo Himmler. Tenho o testemunho de um soldado SS, operador do sistema de escutas. Ele me levou para conhecer o centro de operações desse setor da SS, que me parece, sequer nome tinha. – Outra testemunha é um professor de finanças de Berlim, que serviu o tenente-coronel SS, e me ajudou a identificar também a agente nazista no Brasil. O professor esti- ma que Spinger conseguiu acumular uma fortuna de aproximadamente 2 bilhões de dólares, em dinheiro, ouro, joias e obras de arte. O mais intrigante é saber se Hitler tinha o conhecimento desse esquema. Certamente Himmler não tinha. Har’el costumava pensar muito antes de emitir uma opinião. Ele conhecia a reputação de Wiesenthal como alguém que estuda um caso antes de encaminhá-lo, pedindo ajuda. Além disso, havia documentos conduzindo para um enredo surpreendente. Após alguns segundos ele fez suas considerações. – Eu não poderia imaginar que estaria diante de três grandes possibilidades. A primeira, os planos de uma bomba nazista sendo executados por um país sulamericano. A segunda, um agente nazista tão destacado ter passado despercebido por nós e pelos próprios nazistas e terceiro, ainda apenas uma suposição, Adolph Hitler estar vivo. O senhor me honra, ao ter vindo me procurar, mas

este é um caso para levarmos imediatamente ao primeiro– ministro, Ben Gurion. Havia se passado sete anos desde o final da Segunda Guerra Mundial. As feridas ainda estavam expostas. O primeiro-ministro israelense, Ben Gurion, ao ouvir a história contada pelo próprio Wiesenthal, ordenou uma força-tarefa especialmente para o caso, e pediu para Har’el não medir esforços nela. Estava criada a operação Saque. *** Abner Gelb e Boaz Ben David estavam diante do edifício Atlas, em Buenos Aires, impressionados com os seus quase 150 metros de altura. Na verdade não esperavam encontrar uma cidade tão cosmopolita em um país da América do Sul. Era o inverno argentino de 1952. Buenos Aires, com modernos arranha-céus, largas avenidas, e seus habitantes demonstrando bom gosto nas roupas, dava a impressão de ser uma cidade europeia, como Paris, onde os dois israelitas conheciam bem. Foi onde nasceram, cresceram e participaram da resistência francesa, durante a Segunda Guerra, como membros do Eignement er d’Action Militaire, BCRA. Boaz Ben David foi preso pelos nazistas no forte Montluc, comandado por Klaus Barbie, conhecido pelos franceses como “le boucher de Lyon”, o açougueiro de Lyon, pelo método brutal ao qual submetia os prisioneiros. Ainda antes da criação do Estado de Israel, Ben David se mudou para a Palestina, onde integrou o movimento paramilitar sionista Haganah com Ben Gurion, e, posteriormente, fez parte do Shin Bet, assim como Abner Gelb, chegando em Tel Aviv após a criação do Estado, em 1948.

Seguir os passos de um criminoso nazista, após tamanha humilhação sofrida pelos judeus, dava-lhes a sensação de estarem cumprindo uma obrigação com a história do povo judeu. Ambos não se permitiriam erros. Os dois agentes se instalaram em Buenos Aires, alugando um apartamento na mesma avenida do teatro Coliseu, não distante da Plaza San Martin, onde Andreas mantinha o escritório de importação de charutos. Identificaram-se como franceses, comerciantes de obras de arte. Para afastar suspeitas sobre suas presenças na Buenos Aires repleta de fugitivos internacionais, os dois se passaram por homossexuais e deixavam as pessoas suspeitarem que ambos eram amantes. Mesmo com toda a intolerância provocada pelo disfarce, acabou dando certo e ambos eram vistos com desdém pelos moradores, porém não como agentes de Israel em busca de fugitivos. *** Com o nome de Fernando Sanches, o alemão estava bem incorporado à vida portenha. A princípio sua ideia era não se comprometer com qualquer outra mulher, porém, um pouco por solidão e também para reforçar seu disfarce, ele se casou com a argentina Victoria Maria Martins Vega, em 1949. Dez anos mais jovem, a morena de cabelos encaracolados, trabalhava como recepcionista no restaurante uruguaio que ele frequentava, em San Telmo. Andreas jamais se apaixonou, mas a tratava com respeito e carinho, embora ela não soubesse sequer da sua nacionalidade. Tiveram um filho, Armando Vega Sanches, em 1950. Enquanto Sauber continuava solteiro e morando na calle Anchorena, assim como Emannuel, Andreas se mudou com

a esposa, quando se casaram, para a avenida Córdoba, próximo à importadora de charutos, para onde costumava ir caminhando todos os dias. A rotina dele passou a ser acompanhada pelos agentes do Mossad. Consideraram que a opção dele, por morar no centro da cidade, próximo ao trabalho entre ruas de constante movimentação, estava ligada a sua segurança. Contraditoriamente, manter uma rotina tão previsível, caminhando sozinho pela cidade não parecia um comportamento de quem estava preocupado em ser seguido. Nos primeiros dias os israelenses se revezavam ao acompanhá-lo, de longe, tirando fotografias e buscando identificar as pessoas de seu relacionamento. Aos finais de semana, o oficial da SS não tinha o hábito de sair, exceto para a missa de domingo na Igreja Católica da Villa Crespo, onde os pais de Victoria Maria moravam, e o casal levava o menino para brincar com os avós. Andreas era apaixonado pelas empanadas preparadas por sua sogra. Os israelenses reconheceram Sauber e Emannuel como oficiais da SS, através dos arquivos recuperados do quartelgeneral de Himmler. Naturalmente, a julgar pelo seu comportamento, Sauber seria o segurança do grupo. Também perceberam uma rotina de encontros mantida por Andreas, pelo menos a cada duas semanas, com Ernesto, na catedral de Buenos Aires. E os israelenses o reconheceram como o padre argentino que participara da rota de fuga nazista. Na importadora, os agentes não identificaram qual - quer movimento suspeito, a não ser a entrada e saída de clientes. Por orientação de Har’el, não colocaram escutas no escritório ou residência, já que a especialidade dos oficiais

da SS era espionagem e contraespionagem, e corriam riscos de serem descobertos. O Mossad preparou um plano especial para os agentes da operação Saque receberem armamentos. Através dos Estados Unidos, com quem o primeiro-ministro israelense acertou pessoalmente uma parceria operacional na Argentina, cada agente na Argentina e no Brasil receberam pistolas M1911. A determinação era evitar o confronto, e buscar o rapto do tenente-coronel SS, não sem antes descobrir suas ramificações que poderiam os levar a alguém mais importante na antiga hierarquia nazista. No entanto, se fosse necessário, os agentes estavam autorizados a matar. *** Em São Paulo, os agentes do Mossad, Paul Neistein e Ariel Bosch, estavam acompanhando os passos de Evelyn há dois meses. Então receberam a ordem de Tel Aviv: operação autorizada. Era uma quarta-feira, 7 horas da manhã. Como de costume, Evelyn deixou o prédio onde morava, na rua Francisca Miquelina, no bairro Bela Vista, em direção à padaria na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. A rua estava sem qualquer movimento. A menos de 100 metros à frente da sua casa, havia um carro parado. Era um Chevrolet Fleetmaster vermelho, onde Ariel Bosch estava na posição do piloto. Quando Evelyn passou, Bosch a chamou, ao se virar viu a pistola apontada para ela. Ao lado dela surgiu Paul Neistein, escondido em um terreno baldio, pegou em seu braço e entraram na parte traseira do carro, que saiu lentamente. Após alguns segundos de silêncio, Bosch falou friamente:

– Nós sabemos tudo sobre você. O quanto está envolvida com a SS, com o tenente-coronel SS Spinger. Seguramente nem seu marido sabe. Não temos tempo para muita conversa e não queremos você demorando para voltar pra casa com o leite e pão. Portanto, não nos subestime e ouça nossa proposta. Evelyn se manteve calma, como se esperasse por aquilo a qualquer momento. Bosch prosseguiu, mostrando algumas fotografias para ela. – Como você pode ver, estas fotografias mostram o quanto sabemos dos passos dessas pessoas, por quem talvez você tenha algum sentimento de carinho, não? Evelyn levou um choque ao ver fotografias de seu fi - lho de sete anos de idade, brincando no pátio da escola. – Nada vai acontecer para ele, nem para você ou seu marido. Apenas não tente ser heroína, você já contribuiu para um regime de gângster. Oferecemos a você, a sua vida em liberdade e a vida da sua família. Pedimos de volta para nos contar sobre a operação financeira que você tem operado para Spinger. Você não se envolveu diretamente com operações violentas, e nossa oferta é simples: você fala e está livre de nós e também não a denunciaremos às autoridades brasileiras. Ela não poderia exigir garantias, tampouco eles estavam brincando. Combinaram se encontrar dentro de duas horas no hotel Escala, na Estação da Luz. Evelyn sabia muitas coisas, apenas no âmbito dos negócios e investimentos feitos. Os agentes do Mossad não usaram de qualquer tipo de violência e ela descreveu tranquilamente todos os investimentos em seu nome. Concluíram que ela não conhecia as possíveis ramificações na Argentina. A movimentação feita por Evelyn na Suíça e os detalhes das

contas não eram segredo para eles. O contato dela com a Alemanha, através do sistema de comunicação sob seu controle, não revelava quem eram os superiores de Spinger, por trás das mensagens. Por fim, o Mossad poderia apenas, a partir das informações extraídas daquele contato, iniciar um processo para recuperar parte da fortuna roubada dos judeus pelos nazistas. *** Os argentinos tinham construído um centro secreto para o desenvolvimento da bomba atômica, desde 1946, nas proximidades de Mendoza. Utilizando-se da mesma tecnologia dos nazistas, os argentinos estavam com dificuldades para acelerar o proces- so de produção de água pesada. Por outro lado, o regime de Perón operava um sofisticado esquema de contrabando de urânio, a partir do Congo Belga, onde o ouro nazista ajudava a financiar um sistema de corrupção, garantindo a proteção do governo e o segredo da operação. Dois físicos noruegueses e um alemão coordenavam o programa nuclear argentino. Para Perón, com a supremacia nuclear, os planos de expansão territorial da Argentina não encontrariam resistências. Também fazia parte dos planos do presidente poder contar com os nazistas, fascistas e outros expatriados abrigados em seu país. Para Andreas, por exemplo, ele tinha planos de aproveitá-lo em seu serviço de inteligência, tal qual acontecia no Reich. Naquele momento, no entanto, todos os nazistas, denominados por ele nas rodas íntimas como “meus convidados” deveriam esperar. Em breve a Argentina iria surpreender o mundo com a fabricação da bomba atômica.

A partir dali nenhum outro país teria a coragem de interferir nos assuntos internos argentinos. O primeiro-ministro israelense Ben Gurion considerou real a possibilidade da Argentina estar em processo de fabricação de uma bomba atômica. Entendeu também como uma ameaça ao mundo, mas Israel não teria condições logísticas para impedir isso, então comunicou ao presidente americano Harry Truman sobre os planos argentinos. Truman assumiu a presidência dos Estados Unidos em janeiro de 1945. Alguns meses após, a Alemanha se rendeu, mas o Japão não. Truman tomou a decisão de lançar as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, obrigando a rendição japonesa. Em Kansas City, onde estava participando de evento em uma escola infantil, ele recebeu seu assessor militar, ainda em sala de aula repleta de crianças. Ao ser informado do relatório enviado pelos israelenses, Truman falou, com ironia: – Não precisava tanta afobação, poderiam esperar eu voltar para Washington D.C. Os argentinos não demorariam menos de 20 anos para construir uma bomba. Ele não esperou nem uma semana. Os Estados Unidos e Israel consolidaram uma parceria operacional entre a CIA, central de inteligência americana, e o Mossad, contando com uma cláusula muito interessante: no caso de uma das operações falhar, cada qual assumiria seu erro perante a opinião pública mundial e não citaria a participação do outro. Os americanos não falharam. Em uma operação rápida, a CIA descobriu a localização das instalações nucleares de Mendoza. Em uma noite a destruiu com um bombardeio

aéreo, em operação incendiária noturna, através de dois Boeings B-29 Superfortress, que fizeram es- cala na Colômbia. Era o fim das ambições nucleares de Perón. A Argentina sequer se pronunciou sobre o assunto, nem mesmo sobre a invasão do seu território por forças estrangeiras, menos ainda sobre a missão de ataque sofrida. *** O padre Lui costumava caminhar pelas ruas em volta da cidade do Vaticano, geralmente às tardes de quarta-feira. Os comerciantes da região conheciam o padre, que manteve o hábito mesmo durante o período da guerra, quando ele trazia uma sacola com mantimentos para distribuir entre os pobres e flagelados. Passados sete anos do final da Segunda Guerra, Lui nunca conseguiu deixar de se penitenciar pela sua contribuição com o regime nazista, por isso, naquela tarde quando foi abordado por dois homens, em uma rua com pouco movimento, ele imediatamente percebeu do que se tratava. Foi um momento de alívio. Abel Dayane e Hod Wasser foram os agentes do Mossad responsáveis pelo contato com Lui. Os agentes não usaram arma ou sequer foram agressivos quando chamaram o padre pelo nome, ainda assim ficaram surpresos com a sua reação tranquila, mesmo tendo percebido que aquela abordagem não era de dois fieis pedindo um confessionário. Wasser foi objetivo: – Padre, pela sua reação não precisamos nos apresentar. Minha missão é lhe comunicar: falo pelo Estado de Israel e em nome de tantos judeus mortos por um regime ajudado por você.

Lui se sentiu envergonhado, porém fitou os olhos de Wasser, dizendo pausadamente: – Estou pronto para pagar pelas minhas culpas, aliás, pagar o olho por olho, dente por dente. No entanto, a minha maior dívida é com Deus, e essa acertarei um dia. Os agentes não se importaram com a sensibilidade de Lui. Wasser continuou: – Certamente padre, eu pessoalmente gostaria de lhe retribuir o olho por olho e dente por dente, pois meu pai foi um dos judeus mortos em um campo de concentração e, certamente, o ouro dos dentes dele passou por suas contas na Suíça, mas tenho ordens superiores para buscar uma conciliação. Farei apenas uma oferta. – Padre – continuou Wasser – nos acompanhe até a Suíça e nos transfira todo o dinheiro das suas contas e os bens depositados nos cofres. Além disso, nos descreva, com o máximo possível de precisão todos os saques feitos. Não tenho autorização para fazer nada contra você, porém se não aceitar minha oferta, eu farei e aqui mesmo. Além disso, vamos espalhar para todo o mundo mais essa contribuição do Vaticano aos nazistas. Lui foi até seus aposentos no Vaticano e comunicou sua ausência por alguns dias. Em poucas horas estavam os três a bordo de um Renault Juvaquatre 1947, com destino a Berna, na Suíça. *** Har’el sabia: se as contas na Suíça e no Brasil trocassem de mãos, Andreas perceberia, e poderia escapar ao cerco dos agentes em Buenos Aires. O chefe do Mossad também sabia que nem Evelyn, tampouco Lui o comunicariam. Ambos tinham muito a perder. Era preciso uma estratégia bem elaborada para levá-lo para ser julgado por crimes de guerra, recuperar ao menos parte da fortuna ainda

controlada por ele e descobrir os nazistas superiores, ainda transitando livres, provavelmente pela Argentina. O plano do Mossad então deveria acelerar, pois o tempo poderia ser um inimigo. Har’el, acostumado a tantas pressões, precisaria controlar os passos de cada etapa para uma não prejudicar a outra. Evelyn cancelou todas as procurações outorgadas a Andreas. Sem avisar o marido, pegou seu filho com duas malas e embarcou para os Estados Unidos, em companhia de Neistein e Bosch. Em Nova York assumiu nova identidade, e ficou morando sob a vigia dos agentes do Mossad, até segunda ordem, quando ela passaria todas as propriedades, ações e bens em seu nome para o Estado de Israel. Para Andreas, ela o havia roubado. Lui simulou cegueira total. Com isso se isolou em seus aposentos. O médico diagnosticou como cegueira temporária, possivelmente em função de fadiga mental. Ele então estava impossibilitado de viajar para a Suíça, para outras operações bancárias. O banco Julis Baur aceitou um acordo com o governo de Israel. Como o Mossad tinha provas sobre funcionários do banco participando de esquemas fraudulentos, transferindo recursos de judeus dados como mortos para as contas indicadas por um nazista, a direção do banco agiu rápido para evitar um escândalo. Providenciou para que Lui transferisse todo dinheiro, ouro e joias, algo em torno de 400 milhões de dólares, imediatamente ao Estado de Israel. No entanto, como Andreas poderia manter contato diretamente com o banco, através do seu diretor Julien Hannes Schmid, o responsável pelas fraudes nas contas dos judeus mortos, e descobrir que o dinheiro fora transferido, o

banco decidiu demitir Schmid. Porém, ele ficaria todos os dias no banco, exclusivamente à espera de um eventual telefonema de Andreas. Então ele confirmaria que as contas de Lui es- tavam intactas. *** Gelb e Ben David mantinham a mesma rotina diária. Revezavam-se ao acompanhar a movimentação do tenentecoronel, e realizavam visitas esporádicas a ateliês e galerias de Buenos Aires. Às vezes compravam quadros de artistas portenhos, posteriormente enviados para Paris e Nova York, onde o Mossad se utilizava de préstimos de marchands judeus para fazer com que os quadros realmente fossem parar em algumas galerias. Segundo Ben David reportou a Har’el, havia um plano factível para sequestrar o tenente-coronel SS. Seria durante o trajeto realizado por ele da casa ao trabalho, de manhã, quando passava por uma rua eventualmente sem movimentação. Seria possível render e empurrá-lo no banco traseiro de um carro, em seguida aplicar um sedativo e levá-lo imediatamente até o Uruguai, na cidade de Paysandú, um trajeto a ser feito em curto espaço de tempo, insuficiente para as au- toridades argentinas perceberem e promoverem barricadas. Em Paysandú fora providenciada uma pequena propriedade rural, onde uma família de colonos, amigos de judeus moradores na cidade, abrigariam o sequestrado e os agentes do Mossad até sentirem ser possível prosseguir até o Rio Grande do Sul, no Brasil. A partir dali, Ben David aguardaria as instruções de Tel Aviv para a operação de embarque rumo a Israel, onde o nazista seria julgado pelos crimes de guerra.

Har’el já tinha planejado como tirá-los do Brasil. Seria através de um pequeno aeroporto em Alegrete, no Rio Grande do Sul, e de um avião Bonanza alugado, que os deixaria em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. A partir de então, um avião da El Al, empresa aérea israelense, levariaos para Tel Aviv, com escalas em San Salvador, Nova York e Madrid. Haveria uma ocasião para um avião da El Al pousar em Santa Cruz de La Sierra sem despertar suspeitas. O prefeito da cidade oficializou convite para o governo de Israel enviar uma missão oficial até a localidade boliviana, para uma possível parceria comercial, visando a exploração do gás natural, abundante na região. Bastava Israel confirmar a visita. Os planos do sequestro precisariam esperar. Os agentes na Argentina não tinham ainda detectado a ligação do grupo de Andreas com algum nazista mais importante. Aquilo deixava Har’el ansioso, pois os relatos apontavam para a existência de nazistas fugitivos circulando livremente por Buenos Aires. Se os agentes do Mossad voltassem suas atenções para outras linhas de investigação, seguramente encontrariam criminosos de guerras das mais diversas patentes e culpas. Mas eles não poderiam perder o foco. Deveriam encontrar um nazista em especial, a quem Spinger se reportaria. *** No escritório da importadora, Andreas e Sauber aguardavam pela presença de Emannuel, atrasado mais de meia hora. Andreas não havia dito nada, apenas esperava pelo que Emannuel tinha a mostrar, para poder então começar a pensar se estavam ou não correndo perigo.

– Peço desculpas, o avião de São Paulo a Buenos Aires se atrasou ao decolar, mas tudo correu bem. Senhores, a notícia é dura: Evelyn cancelou todas as procurações outorgadas a Andreas, por isso tudo é oficialmente dela, e fugiu com o filho. Quanto ao marido, eu não tenho dúvidas, foi o último a saber. Provavelmente um caso de corno. E Müller investigou: ela embarcou para Nova York, sozinha com o filho. – E quanto à Suíça? Vamos saber logo das notícias ruins – indagou Sauber. – Falei por telefone com Schmid– respondeu Emannuel– tudo parece normal por lá. Lui está realmente afastado de todas as suas funções, e impossibilitado de qualquer atividade, como viagem. Ele está cego. Andreas se manteve tranquilo, e ponderou: – De uma hora para outra ficamos sem nossos bens no Brasil e na Suíça, mesmo sendo o caso de Lui passageiro. Talvez esteja acontecendo alguma coisa. Evelyn não tem o perfil nem coragem para nos trair, e ela sabe, não hesitaremos em retaliar, ainda assim ela simplesmente cancelou as procurações, abandonou o marido e partiu para os Estados Unidos, justamente para onde, tanto Müller como nós, teríamos mais dificuldades de encontrá-la. O padre Lui ficou cego e no mesmo momento Evelyn nos trai. Fico a pensar se não estamos no olho do furacão, no meio de um ataque inimigo. – Você não pode mais andar sozinho pelas ruas – Sauber disse, preocupado. – Não, nada disso, se estiver acontecendo alguma coisa não podemos alterar nossa rotina. Primeiro é preciso saber se estamos sendo seguidos, o quanto sabem de nós e, principalmente, se eles têm algum conhecimento sobre o haras. Os três se olharam, perplexos. Após quase nove anos vivendo longe da Alemanha, é a primeira vez que alguma

coisa lembrando a Segunda Guerra afetou a tranquilidade das suas vidas. *** Os anos de uma vida de cidadãos comuns haviam tirado deles a “alma selvagem do lobo”, conforme definiu Emannuel. Há muito tempo eles afrouxaram algumas regras de segurança, como rastrear o espaço ao redor para detectar possíveis espiões, ou mesmo um atentado contra suas vidas. Não foi preciso mais que dois dias de “antenas ligadas” para Sauber identificar dois agentes em atividade de campana, seguindo seus passos. Andreas, no entanto, decidiu por ainda manterem a rotina. Emannuel comunicou ao haras, ainda naquela noite, e se certificou se eles o seguiam também nesse itinerário. Após três visitas noturnas ao haras, Sauber lhe dando cobertura, chegaram à conclusão que os agentes ignoravam aquela conexão. Sabiam apenas das visitas ao padre Ernesto. Andreas chegou a pensar que Ernesto teria sido cooptado pelos agentes. Porém destituiu a ideia, após uma conversa com o amigo. – Não, ninguém me procurou. Sobre Lui, concordo com você, ele deve ter sofrido alguma chantagem e cooperou com não sei exatamente quem. Seriam os israelenses? – Sim, provavelmente sim. – Amigo, se eu for abordado, nunca falarei nada, não acredito ter algo interessante para eles. Ainda assim, para mim não seria diferente do que certamente está sendo para Lui, um alívio para nossas almas.

Ernesto tinha providenciado uma varredura de escutas em todos os locais onde frequentavam, incluindo a sala da catedral em que costumeiramente se encontrava com seu amigo. Não havia nada. – Padre, amigo. Talvez minha vida passe por uma profunda transformação. Mais uma. Desta vez, preciso contar com você para ajudar minha nova família. É só o que posso dizer no momento. Ernesto entendeu. Despediu-se tristemente do amigo com um abraço forte. Possivelmente pela última vez. Naquele dia voltou à importadora e se encontrou com os dois companheiros. Aquela reunião marcaria suas vidas, e dos agentes Abner Gelb e Boaz Ben David, para sempre. – Amigos – iniciou sua exposição– não podemos esperar. Como Sauber constatou, são apenas os dois agentes. Ambos moram juntos e estão se passando por comerciantes de obras de arte. Eles não sabem sobre o haras. Está na hora de darmos início à operação Córdoba. *** Os dois agentes do Mossad criaram o hábito de praticar caminhada, pela Plaza Libertad, em frente ao Teatro Coliseu, todos os dias de manhã ainda antes do sol raiar. Foi a maneira encontrada para manter a forma, além de poderem aproveitar o clima da cidade, sempre muito agradável. Sauber mantinha sua velha pistola Luger P-08, sempre em bom estado. Ele havia encontrado uma área de bosque ao norte de Buenos Aires, onde costumava frequentar aos sábados à tarde, para praticar tiro ao alvo, geralmente em bonecos de madeira confeccionados por ele mesmo. Agora caberia a ele eliminar os dois agentes inimigos, e estar com a pontaria exercitada teria valido a pena.

Em uma quarta-feira, Sauber acordou ainda antes das 4 da manhã, e preparou seu café, costume adquirido desde a temporada em Piracicaba. Ao olhar pela janela da cozinha notou que caía uma leve chuva em Buenos Aires. Preocupou-se, pois a chuva poderia afetar a rotina dos agentes e suspender a caminhada diária deles. Ainda assim, ele se arrumou e foi de carro até a praça Libertad, estacionando no lado oposto ao teatro. Chegou às 5 da manhã, vestindo um agasalho, e esperou sentado em um banco a chegada de Abner e Boaz. Naquele momento ele era o único a estar na praça, algo bastante apropriado, pois também poderia facilitar sua fuga. A chuva leve persistia. De repente, ele vê um homem vestindo agasalho esportivo, com toca cobrindo-lhe a cabeça, aproximando-se lentamente. Sauber não se preocupou, até quando o homem parou ao seu lado. Sauber, surpreendido, levou a mão direita às costas, e imediatamente pegou a pistola. Mas o homem sorriu para ele. Um pouco sem graça, Sauber ficou aliviado por não ter exibido a pistola. Era um cliente da importadora. Lionel, um senhor argentino, de aproximadamente 50 anos de idade, demonstrou ter ficado satisfeito ao encontrar Sauber ali. – Muito bom te encontrar aqui. Fumar nos estraga, já os exercícios físicos nos recupera. Sauber viu que os agentes do Mossad estavam entrando no parque naquele instante, e se encontravam a menos de 50 metros dele. Seria preciso tomar uma decisão rápida. Lionel começou a lhe contar histórias daquela região de Buenos Aires, no entanto ele sequer o ouvia. Repentinamente o interrompeu, pediu licença e saiu

apressado. Certificando-se que não fora reconhecido, entrou no carro e voltou decepcionado para casa. Os agentes do Mossad realmente não tinham visto Sauber. Apesar de Har’el tê-los alertado sobre a possibilidade dos alemães estarem mais atentos, em função das operações financeiras, tanto Abner Gelb como Boaz Ben David, mantiveram as caminhadas pela manhã, como se fosse intervalo do trabalho, e portanto poderiam se desligar. Algum tempo depois Har’el considerou ser preciso implementar um código mais rigoroso aos seus agentes. O Mossad estava iniciando suas operações pelo mundo e os erros deveriam se tornar aprendizado. Andreas também se preocupou com a falha de estratégia adotada por Sauber, e mais ainda com a possibilidade dos agentes terem percebido que foram descobertos. Neste caso, os nazistas estavam sob ameaça. Poderiam ser eliminados a qualquer momento. Seria uma corrida contra o tempo, segundo os nazistas interpretaram. Quem fosse mais rápido eliminaria o outro. – Não vou perder uma briga para dois judeus veados – Sauber se exaltou. O impasse estava criado e Andreas precisaria se arriscar. Se ele mudasse os hábitos e se os agentes ainda não o tivessem descoberto, desconfiariam das mudanças e daí sim descobririam. Por outro lado, se os agentes já soubessem que foram descobertos, ao sair na rua, poderia levar um tiro na cabeça. No final do dia, no horário de sempre, ele saiu em di- reção de casa, com a costumeira tranquilidade estampada no rosto. Por dentro, porém, temia pela morte, e por não poder ter concluído a missão de reconstruir as bases do Reich de mil anos. Enquanto caminhava, ele pensava no desenrolar dos planos conforme ouvira de Hitler, em conversa reservada, ainda antes da queda da Alemanha. Estavam no período de transição, onde os remanescentes

do nazismo se adaptavam à nova vida, cada qual na sua realidade, e o mundo esqueceria, aos poucos, da Segunda Guerra. A humanidade deixaria de enxergar os nazistas como vilões. Hitler não acreditava na derrota da Alemanha na Segunda Guerra, porém se o improvável acontecesse, os americanos e ingleses se desentenderiam com os russos, provocando uma nova guerra, na qual ambos se enfraqueceriam. Com isso, o poder de escrever a história, sempre um privilégio dos vencedores, deixaria de existir. O mundo então conheceria a verdade, que segundo o führer, apontaria a Alemanha como vítima do ódio e ambição dos judeus, e dos seus parceiros russos, britânicos e americanos. Andreas se sentiu aliviado ao chegar em casa, sem ter sido abatido. Também lhe agradou ver o filho brincando na sala de estar. A partir daquela imagem, decidiu-se por mudar os planos, algo antes inconcebível para sua mente tão sistemática. Ao concluir a eliminação dos agentes, o que necessariamente deveria ocorrer no dia seguinte, ele se mudaria para Córdoba, no interior da Argentina, dando prosseguimento ao plano com o mesmo nome da cidade, mas levaria sua esposa e filho. *** Sauber não conseguiu dormir na noite de quarta para quinta-feira. Ele passou o tempo todo limpando o seu fuzil Mauser 98K, com mira telescópica. Com sua experiência, Sauber sabia perfeitamente bem que não poderia ficar com ódio, ou agir obsessivamente. Seria um perigo, e poderia levar a outro erro, e dentro do código da SS, dois erros seriam intoleráveis. Sua missão na manhã seguinte, no entanto, seria de alto grau de dificuldade. Ele subiria no telhado do prédio de cinco andares, em frente ao prédio onde os agentes do

Mossad estavam hospedados. Ao saírem de manhã para a caminhada matinal, seriam atingidos pelos tiros da Mauser 98k. Porém, a dificuldade maior estava no fato de serem dois alvos. No primeiro não haveria dificuldades, porém se o se- gundo estivesse em movimento as chances de erro aumentariam. Como ele não tinha outro plano, não poderia voltar atrás. Às 5 horas da manhã, ele já estava posicionado no topo do prédio, conforme planejado. Não chovia e o friozinho agradava a Sauber. As condições estavam boas. Em poucos minutos, os dois agentes do Mossad saíram do prédio conversando animadamente. Abner ria de um tropeção do amigo na escada, quando olhou ao lado e viu o exato momento em que Boaz foi baleado nas costas e jogado à frente, enquanto o sangue espirrava. Num gesto instintivo, agachou para tentar socorrer o amigo. Foi o tempo suficiente para Sauber preparar a mira e disparar o segundo tiro, atingindo a cabeça de Abner Ben David. CAPÍTULO 23  CÓRDOBA Perón ficou furioso quando soube dos agentes israelen - ses invadindo a Argentina e pediu uma retratação do primeiroministro de Israel, Moshe Sharett, substituto de Ben Gurion. O governo de Israel, no entanto, não se pronunciou. Sharett sabia, o governo argentino acobertaria os nazistas, mesmo em caso de uso da força. Por fim, os dois países não deram publicidade para o caso, tratado pela imprensa como um crime comum contra dois franceses, na capital argentina. Har’el foi convocado para uma reunião com o primeiroministro. Não foi uma conversa fácil. A operação na Argentina causou um grande constrangimento diplomático,

além de Israel se obrigar a engolir o cinismo de Perón. Dois israelenses executados, talvez com a participação de argentinos, e ainda por cima as desculpas caberiam a Israel. – Har’el, você sabe o que mais me entristece? O fato de mais judeus estarem sendo mortos pelos nazistas. Pergunto se nossas equipes ainda não estão preparadas – indagou o primeiro-ministro. – Tenho sofrido pelo destino dos meus amigos. E sim, nossos agentes estão preparados e se empenham nas missões com dedicação e com o coração, porque todos nós sofremos, direta ou indiretamente, com a crueldade dos nazistas. Eu reivindico para mim o erro, e lhe digo, senhor, além disso tudo, perdemos as pistas. Por isso peço a demissão do meu cargo. A demissão não foi aceita, e Har’el foi encarregado de preparar e executar um novo plano. Com o código de prioridade máxima. *** Andreas, sua esposa e filho, juntos com Sauber se mu daram para uma chácara, nas proximidades de Córdoba, na Argentina. Emannuel continuou em Buenos Aires, passando a residir no haras, de onde deveria sair o menos possível. A chácara em Córdoba ficava a menos de 5 quilôme - tros da cidade. Produzia leite de vaca, comercializado com um laticínio não muito distante. Ferdinando Schultz, o piloto deixado na Paraíba, já morava ali, havia quase dois anos. A presença deles não causaria suspeita. Victoria Maria enfim soube que seu marido era um nazista procurado. Aquilo a deixou atormentada, porque sempre achou covardia um grupo de homens armados praticar selvageria contra famílias indefesas. Ainda ficava mais

inconformada por nunca ter desconfiado do marido, afinal ele sempre agiu com as melhores maneiras cristãs, jamais a maltratando ou a qualquer outra pessoa, ao menos em sua frente. Ela aceitou acompanhar o marido naquela mudança tão repentina, só não conseguia deixar de chorar e se lamentar. Andreas não perdia a paciência com ela, ao contrário, empenhava-se em tentar acalmar a esposa. Após uma semana em Córdoba, como Victoria Maria não parecia se acalmar, Sauber ousou fazer uma consideração para Andreas: – Como não me casei, entendo não ter condições para opinar sobre sua vida nesse aspecto. Porém, ao trazer sua esposa para o plano Córdoba, estamos com uma falha na segurança. Ela pode não resistir e, em algum momento, entrar em contato com os pais, em Buenos Aires, e daí podem chegar até nós. – Chega! Eu sei perfeitamente o que fiz. E ela só vai à cidade em minha companhia ou sua. Tenha calma, nossos planos não serão alterados. *** Har’el enviou para Buenos Aires os agentes Abel Dayan e Hod Wasser, da operação italiana, com o padre Lui. O diretor do Mossad considerava que os riscos aumentaram, pois Perón estaria atento a novos agentes israelenses, mesmo disfarçados. Além disso, aumentara também o grau de dificuldades da operação. Não tinham mais pistas, e possivelmente Andreas e seu grupo já teriam deixado Buenos Aires. Mas ele tinha a certeza: ainda estariam na Argentina, usufruindo da proteção dada por Perón.

Os agentes do Mossad não falavam o espanhol fluen temente, então se passaram por jornalistas italianos, e ficaram hospedados no hotel Regente, o mais próximo da Vila Crespo, em Buenos Aires. Abel Dayan colocou escutas na casa dos pais de Victoria Maria. Em um domingo enquanto a família foi à missa, ele entrou na casa, vasculhou qualquer informação relevante para levá-lo até Victoria, mas sem sucesso. Na sequência, implantou os aparelhos. Também passaram a monitorar o padre Ernesto, na catedral. Montaram, então, uma central de escuta, discreta e móvel, a partir do hotel. Como a qualidade da recepção deixava a desejar, era comum frases inteiras estarem inaudíveis. Porém, só podiam contar com isso, e precisavam contar também com a sorte. *** A rotina na chácara era monótona. Exceto para Armando, que adorava brincar entre as vacas e correr livremente pelo mato. Mas o humor da mãe estava piorando a cada dia, chorando e lamentando a sorte do seu casamento, até então considerado um verdadeiro conto de fadas. Mantinham contato semanalmente com Emannuel, através de radioamadorismo, utilizando um sistema de linguagem em código. Tudo continuava normal no haras, porém foi confirmada a perda definitiva das contas na Suíça. Essa perda, somada aos bens no nome de Evelyn, representava um prejuízo de aproximadamente cinquenta por cento do total das riquezas acumuladas pelo grupo. Andreas se culpava pelos reveses sofridos. Possivelmente o prejuízo financeiro e a saída de Buenos Aires causariam

dificuldades na condução do plano para o futuro do Reich. O fato de ninguém repreendê-lo também o preocupava. Às vezes ele saía sozinho para andar pelas montanhas e pensar sobre as possibilidades sobre seu futuro. Seu lugar preferido era o Valle de Calamuchita, entre as serras Chicas e serras Grandes, todas cercadas por pinheiros e com diversos lagos. Pelo caminho podiam ser vistas casinhas com telhados vermelhos, lembrando a Alemanha. Mesmo com chuva ou frio, era a melhor terapia para ele. Nesses dias, saía de casa bem cedo e voltava invariavelmente próximo da meia-noite. Uma ou duas vezes por semana iam todos para a cidade fazer compras, tomar sorvete, almoçar em algum restaurante, assistir a missa e até mesmo ir a um cinema. Victoria Maria se sentia melhor nesses passeios, mas nunca ficava sozinha, pois sempre estava sendo observada por Andreas ou Sauber. Nessas ocasiões, nunca deixavam de caminhar pelas ruas no centro histórico da cidade. Havia muitos prédios construídos pelos jesuítas entre os séculos 16 e 18, dentre eles a igreja da Companhia de Jesus, com a fachada em forma de cruz e o interior configurado em bar- roco-rococó. A disposição interna das capelas, no entanto, era o que mais chamava a atenção de Andreas. Havia uma divisão entre as que podiam ser usadas apenas pela irmandade, outra somente pelos colonos brancos e uma terceira, utilizada apenas pelos índios. “Certamente não foram os nazistas os inventores da segregação”, ele dizia, divertidamente. Eles também iam constantemente visitar a antiga estância jesuítica de Jesús Maria, a aproximadamente 30 quilômetros da chácara. Ali apreciavam um vinho produzido desde o

século 17 pelos jesuítas, o Lagrimilla, e caminhavam entre os prédios erguidos pelos padres, na antiga estância San Isidro. Para Armando, o mais prazeroso era correr solto pelo parque Sarmiento, no centro de Córdoba. Cabia a Sauber acompanhar os passos do garoto, para evitar algum acidente. Diante dessa cena, Victoria Maria não se continha e ria animada. Por alguns instantes ela se esquecia da sua nova condição de vida: fugitiva com dois nazistas. Córdoba também tinha uma grande colônia alemã, com muitos nazistas fugitivos vivendo tranquilamente e participando da vida social, econômica e até política da localidade, assim como em Buenos Aires. No entanto, não descuidaram mais da segurança. Estabeleceram um discreto e atento sistema de rastreamento visual por todos os lados, por onde estivessem, para não serem mais surpreendidos por espiões. *** Perón estava se esforçando ao máximo para seguir os estilos de Mussolini e Hitler em seu governo. Ele era o paladino dos operários e das classes sociais mais baixas, que lhe garantiam o apoio popular. Em contrapartida, o Estado controlava com mão de ferro o movimento sindical e a imprensa, que constantemente tinha alguns dos seus órgãos censurados ou fechados. O governo promoveu perseguições aos opositores, geralmente os colocando na cadeia ou forçando o exílio. No campo econômico, ele aplicou uma política extremamente patriota, nacionalizando as ferrovias e muitos serviços públicos. Ele usou de todos os mecanismos

para o Estado intervir a favor da industrialização do país, criando o Banco Industrial, e usando da proteção tarifária para proteger as indústrias argentinas, assim como atrair novas empresas. Apesar do revés do programa nuclear, ele ainda tinha ambições expansionistas. E se ainda não era possível pelos meios militares, Perón buscou ampliar a influência argentina pela América do Sul e pelo mundo pelo simbolismo político do seu governo. Ele criou o conceito de justicialismo, que o mundo passou a chamar de Peronismo. Para Perón a “justiça social” era a maior necessidade do povo argentino. Essa ideia, com o estilo paternalista e nacionalista, foi fundamental para sua reeleição em 1951, mas a partir de então a Argentina não mais resistiria à crise que a enorme dívida criada pelas políticas nacionalistas provocou. O país passou a conviver com uma inflação em crescimento e a economia começaria a estagnar. Perón se viu obrigado a tomar medidas impopulares, como o controle de salários e a contenção no consumo. A popularidade de Perón começara a ser abalada com a morte de sua esposa Eva Perón, no final de 1952, vítima de câncer uterino. Evita era amada pela população argentina, sobretudo a mais pobre, e era vista como a alma da “revolução trabalhadora”. Os problemas de Perón aumentaram diante das constantes denúncias de corrupção, que parte da imprensa e dos políticos de oposição, a muito custo, conseguiu expor. E para piorar, o presidente começara a entrar em choque com a sua grande aliada até então, a Igreja Católica, que não via com bons olhos a santificação incentivada pelo governo sobre a ima- gem de Evita. O controle das ações sociais realizado pelo Peronismo e a tolerância de Perón com o crescimento dos protestantes também causavam desconforto. Por seu lado, Perón acusava a igreja de boicotar o

“movimento revolucionário” peronista e via no rompimento com a igreja uma oportunidade de estreitar ainda mais a relação do Peronismo com os movimentos populares. A instabilidade política na Argentina era acompanhada com atenção e tranquilidade pela comunidade nazista. Perón era o maior dos simpatizantes nazistas dentre os argentinos, mas entre os militares, mesmo entre aqueles que poderiam derrubar o presidente, os nazistas eram considerados muito bem-vindos. *** No dia 03 de agosto de 1953, Abel Dayan ficou páli - do diante do receptor de escuta instalado no seu quarto de hotel. Gritou como um menino pela presença do seu companheiro Hod Wasser. Ele acabara de localizar o grupo de Spinger. A mãe de Victoria Maria falava eufórica com o marido, ao entrar na sala de estar de sua residência, sobre uma correspondência recebida da filha. Victoria estava bem, não havia escrito antes por imposição do marido. Estavam morando em uma chácara, próxima à cidade de Córdoba. Ela tinha conseguido escapar por alguns minutos e depositado a carta para a mãe, durante uma visita ao centro da cidade, como faziam ao menos uma vez por semana. Por fim, ela pedia, encarecidamente, para não comentarem com mais ninguém sobre aquele contato. Har’el recebeu a notícia imediatamente. Agora seu plano teria prosseguimento, com todos os cuidados necessários, levando-se em conta as complicações anteriores. Como a apreensão das pistolas americanas com os agentes do Mossad mortos em Buenos Aires causou um incidente diplomático entre a Argentina e os Estados Unidos, desta

vez os israelenses não poderiam contar com mais ninguém. Era tudo ou nada! Os agentes Paul Neistein e Ariel Bosch voltariam ao caso. Primeiro eles retornariam a São Paulo para comprar, no mercado negro, armas com as quais entrariam na Argentina de carro. Conseguiram dois fuzis kalashnikov AK47 e três pistolas Beretta M1951, com bastante munição e se encontraram já em Córdoba com Dayan e Wasser, após entrar na Argentina. O plano ainda era sequestrar Spinger, mas não deveriam correr mais riscos, por isso assassiná-lo não seria considerada uma derrota para a operação. Precisariam encontrá-lo e acompanhar sua rotina, naturalmente com todas as precauções, pois os alemães estariam atentos. Tentariam abordá-lo sozinho, dispensando assim um confronto com ele, e evitando colocar em risco Victoria Maria e o menino. Mais uma vez deveriam, ao sequestrá-lo, agir rápido e conduzi-lo, de carro, até Paysandú, no Uruguai. O convite da prefeitura de Santa Cruz de La Sierra ainda estava em aberto, e seria a ocasião para o avião da El Al, levando a delegação comercial israelense, poder voltar com o criminoso nazista. Os agentes se instalaram em quatro hotéis diferentes, cada qual com o disfarce de jornalista. A ordem era rastrear os pontos centrais da cidade, na expectativa de encontrar os alemães em um dos passeios aos quais Victoria se referiu na carta à mãe. Não seria uma tarefa fácil, e o tempo corria contra eles, que não poderiam fazer uma investigação comum, com perguntas aleatórias pela cidade, sob o risco do disfarce ser descoberto. ***

Andreas decidiu manter os passeios à cidade de Córdoba com a família, assim como suas andanças solitárias pelo Valle de Calamuchita, porque não acreditava em outra missão igual àquela, por parte dos israelenses. Perón foi incisivo na imprensa, afirmando não tolerar mais intromissão estrangeira na Argentina, por isso Israel, já enfrentando tantos problemas com seus vizinhos árabes, não poderia se dar ao luxo de estender seu rol de inimigos à América do Sul. Andreas estava conduzindo com paciência a crise conjugal com Victoria Maria. Mesmo após vários meses em Córdoba, ela não deixava de lamentar, todos os dias, pelas mentiras do marido. A condição de fugitivos também a incomodava, pois ela imaginava o quanto isso poderia influen- ciar negativamente na formação de Armando. Controlar a fúria da esposa era algo mecânico para ele. Andreas não se deixava envolver no “ambiente dramático” criado por Victoria Maria, ao falar da situação de ambos. Sua preocupação realmente era poder dimensionar o quanto sua reputação estaria comprometida junto ao haras. Ele não queria uma vida familiar monótona. Sua ambição era poder participar novamente na construção de um Estado forte, onde ele poderia desenvolver sua inteligência e sua capacidade de criar e executar algo grandioso, como fez na Alemanha. Enquanto esperava novos fatos políticos surgirem, para ele era conveniente manter uma família. Andreas gostava de conviver com Armando. Não que ele nutrisse algo incontrolável pelo menino, “simplesmente gostava”. Assim ele entendia sua relação com o filho. Só não conseguia compreender, no entanto, porque contrariou as regras de

segurança da SS ao levar a mulher e o filho com ele para a ope- ração Córdoba. Os passeios com a família continuavam. Eles até estabeleceram algumas relações com argentinos, geralmente comerciantes, como o dono do restaurante El Parrilo, onde Victoria gosta de frequentar, e também com alemães. Assim como acontecera algumas vezes em Buenos Aires, em Córdoba ele foi reconhecido ou reconheceu ofi- ciais nazistas pelas ruas. Mas havia um rígido código de comportamento entre eles, que mantinham uma postura discreta entre si. *** Os agentes do Mossad compraram, já em Córdoba, duas motocicletas Excelsior Talisman Twin 250 cc, e as deixaram em dois pontos centrais da cidade, para o caso de localizarem os alemães e precisarem segui-los até a zona rural. Cada um deles contava com um transceptor de mão, walkie-talkie, de comunicação rápida. O aparato era necessário para agilizar a ação, pois caso alguém encontrasse os alemães, os demais seriam mobilizados, buscariam as motocicletas e estariam a postos. Os dias se passavam, e apesar de nenhum progresso alcançado, os israelenses não desanimavam. Era como se toda a carga do Holocausto estivesse em suas costas, e isso era o suficiente para nunca desistirem. Eles estavam determinados em levar para o julgamento um dos responsáveis pelos crimes nazistas. Além disso, seus amigos agentes Abner Gelb e Boaz Ben David foram assassinados de forma covarde pelos mesmos alemães.

Em certa manhã, o agente Dayan finalmente localizara os alvos na Plaza Libertad. Andreas, usando um chapéu preto de abas curtas, caminhava segurando um sorvete na mão esquerda, enquanto a direita segurava as mãos de Armando. Sauber vinha atrás, conversando tranquilamente com Victoria Maria. Dayan se escondeu em meio às árvores, e comunicou aos companheiros. Em poucos minutos estavam a postos para seguirem os alvos. Por mais trinta minutos ficaram todos na praça, de onde saíram caminhando para o restaurante El Parrilo. A poucos metros de distância estavam os israelenses atentos. Durante o almoço, os alemães beberam bastante cerveja, como de hábito, e eufóricos chegaram a cantar, embora não alto, o hino alemão com a versão nazista: Deutschaland, Deutschaland über alles, über alles in der Welt. “Alemanha, Alemanha, acima de tudo, acima de tudo no mundo”. Após o almoço, caminharam por alguns metros e entraram no Chevrolet Sedan, partindo para a chácara. Os agentes perceberam como os homens estavam bêbados, e isso facilitaria a perseguição, porém não o suficiente para abandonarem a regra de atenção máxima. Apenas Dayan os seguiu de motocicleta, a uma distância prudente. Em poucos minutos estavam em uma estrada de terra, que dificultava a condução da moto, entretanto o agente do Mossad conseguiu ir até o destino. Finalmente localizara a chácara onde o criminoso nazista Spinger estava escondido. ***

Os quatro agentes não perderam tempo, e prepararam a sequência da operação de resgate. Montariam um acampamento improvisado em uma área de mata fechada, distante 400 metros da porteira de entrada da chácara. Sempre fica- riam três agentes nessa campana, enquanto o quarto agente estaria descansando. Camuflaram entre as matas, e próximo da estrada vi - cinal, o carro a ser usado para o deslocamento até a cidade uruguaia de Paysandú, um Ford Crestliner 1951. Com um binóculo monitoravam a movimentação na área externa da chácara, tomando cuidado para o reflexo do sol não revelar para os alemães suas presenças. Então só restava esperar. Nos dois dias seguintes a única movimentação foi da camionete Ford F1, na qual Ferdinando levava o leite até o laticínio. Por vezes viam o menino Armando correndo até a porteira, pendurando-se e pulando com os braços abertos, outras vezes ele corria atrás dos cachorros, que pareciam se divertir tanto quanto o garoto. No terceiro dia, antes das seis horas da manhã, Hod Wasser quase não acreditou no que estava vendo. O tenentecoronel SS Spinger acabara de passar pela porteira da chácara, e caminhava sozinho pela estrada vicinal. Imediatamente ele acordou os agentes Abel Dayan e Paul Neistein. Todos, em poucos segundos, estavam prontos com as mochilas nas costas. Wasser e Dayan iriam acompanhá-lo mais à frente. Na retaguarda Neistein asseguraria que Sauber ou Ferdinando não estariam indo atrás. Andreas, de repente, saiu da estrada vicinal, e caminhou à beira de um riacho em direção às serras, vistas ao longe.

Era o caminho do seu passeio habitual para o Valle de Calamuchita. Wasser e Neistein correriam por fora do trajeto e o cercariam 200 metros à frente, enquanto Dayan estaria logo atrás do alemão, que não teria como fugir. Os israelenses não estavam acostumados com aquele tipo de mata, por isso redobravam os cuidados para não provocar qualquer barulho que pudesse fazer Andreas perceber a presença deles. O tenente-coronel da SS Spinger estava muito absorto em seus pensamentos para desconfiar de qualquer coisa. As brigas com Victoria Maria estavam tirando sua capacidade de concentração. O caminhar pelo mato naquele dia serviria para ele colocar os pensamentos em ordem. Quando Paul Neistein surgiu a sua frente, com a pistola apontada para seu rosto, Andreas se assustou. Em milésimos de segundos, porém, reagiu chutando o chão para levantar uma cortina de poeira, buscando tirar a visão de Neistein e já se virava para correr para dentro do mato, quando surgiu por trás Dayan, encostando o fuzil kalashnikov AK47 em sua cabeça. Os agentes o sedaram e o conduziram até a margem da estrada vicinal. Então Neistein buscou o carro, enquanto Wasser acompanhava se ninguém da chácara aparecia. Como não havia qualquer movimento, todos entraram no carro e partiram para a estrada para San Francisco, com destino a Paysandú. Algumas horas depois, Daniel Bosch seguiu de motocicleta até o local da campana. Lá encontrou uma estaca enterrada onde os companheiros estavam. Era o sinal: o sequestro tinha ocorrido. Então voltou para Córdoba, e seguiu de

ônibus para Buenos Aires, de onde embarcou para os Estados Unidos. *** Har’el cuidou para o gabinete do primeiro-ministro de Israel confirmar a visita da delegação israelense em Santa Cruz de la Sierra para o mais breve possível. O trajeto até Paysandú correu sem qualquer infortúnio. Na cidade uruguaia, chegaram a uma chácara na entrada da cidade, onde o casal Súares os abrigou por dois dias, até quando foram para Santa Cruz de la Sierra, e embarcaram no voo da El Al para Tel Aviv. Durante todo o tempo com os agentes do Mossad, apenas quando recuperou a consciência, ainda no carro antes de entrar no Uruguai, Andreas falou com os israelenses, em alemão. – Não falem comigo. Não estou disposto a ouvir sermão.  CAPÍTULO 24  JULGAMENTO A chegada do tenente-coronel da SS Spinger em Israel não chamou atenção. Ele não era um nazista conhecido pelo grande público, como Eichmann e Mengele, caçados pelo mundo todo, ou os julgados em Nuremberg, como Göring, Ribbentrop e Hans Frank, ou aqueles tidos como mortos, a exemplo de Himmler ou Hitler. Mas ele já era considerado um dos nazistas mais procurados. Simon Wiesenthal sentiu naquela prisão um alívio para sua alma. O “caçador de nazistas” acreditou na linha de investigação que lhe surgiu, certo dia em Linz, na Áustria. Na ocasião, Moshe Gelb, dono de tecelagem em Viena e sobrevivente do campo de concentração de Mauthausen,

assim como Wiesenthal, apontou o tenente-coronel SS Spinger como um dos mais cruéis e ambiciosos elementos da máquina nazista. Gelb detalhou a pilhagem e humilhação a que fora submetido sob o comando do tenente-coronel. A partir dessa pista, Wiesenthal decifrou a estrutura comandada por Spinger. Har’el também se sentiu realizado. A partir daquela prisão, havia uma nova linha de investigação aberta, e o mundo passaria a conhecer o sistema de inteligência e saques dentro da SS, tão sofisticado e secreto, que passou despercebido até mesmo pela direção formal da própria SS. Para o primeiro-ministro Moshe Sharett, ainda restaria uma briga diplomática pela frente. Mesmo a operação do Mossad não tendo deixado qualquer rastro, Israel precisaria anunciar a prisão de Spinger porque, antes de tudo, cada vez que um criminoso nazista é preso, a alma dos judeus e de todos os ávidos por justiça se sentem mais aliviadas. Mas ele sabia, Perón não perderia a oportunidade de se manifestar e tentar tirar proveito político da operação israelense. Para todos os efeitos, Israel anunciou a prisão tendo sido efetuada na Suíça, sem dar maiores detalhes. No dia 5 de setembro de 1953, Andreas foi conduzido para uma unidade do Mossad em Tel Aviv, onde permaneceria preso por ordem do juiz Samuel Lieber de Jaffa. No dia seguinte, Moshe Sharett anunciou no Knesset, o parlamento israelense em Jerusalém, a prisão do tenente-coronel SS Spinger, “certamente tão sanguinário e covarde como Himmler, Eichmann ou Hitler”. *** Andreas se manteve tranquilo durante todo o período sob custódia dos agentes, e mesmo preso em Tel Aviv seus

pensamentos estavam serenos, não muito diferentes dos dias em Córdoba. Quando ele se mudou para o Brasil, e a Alemanha estava perdendo a guerra, seu ânimo não se abalou. Ao contrário, ele viu a possibilidade de ajudar a construir um novo mundo. Sua mente estava agitada como sempre esteve desde quando começou sua relação com o partido nazista, quando percebeu Hitler cercado por pessoas sem talento para pensar além das ordens, como Rudolf Hess. Portanto, abria-se um grande espaço para alguém inteligente e brilhante como ele. Desde a saída abrupta de Buenos Aires, de alguma forma ele começou a se preparar para um desfecho ruim. As medidas de segurança relaxadas, como as que permitiram Victoria Maria enviar a correspondência para a mãe ou até mesmo seus passeios solitários pelos vales de Córdoba, refletiam o estado de Andreas, resignado com o fim de uma vida cercada pelo poder. Os dias de detenção em um quarto pequeno de uma prisão de Israel ganharam alguma razão de ser. Ele estava disposto a falar. Naturalmente ele tinha a consciência de não haver condições de fugir dos israelenses. Ele também sabia que seu destino seria a condenação, bastaria para isso o testemunho de uma de suas vítimas durante o período, ou de um único funcionário do banco suíço. Bem ao seu estilo, não ficou preso a reminiscências, e objetivamente concluiu sua última grande missão ou desafio, que seria entrar para a história, desvendando ao mundo os segredos no nazismo, os quais ele era um dos poucos a saber. ***

Har’el deu início ao procedimento padrão, criado para o Mossad, em caso das prisões efetuadas pelos seus agentes, e convocou Haiam Kriger como agente interrogador do prisioneiro Spinger. Em uma sala no mesmo prédio onde Andreas estava preso, sobre uma velha mesa de madeira, Kriger estava sentado diante do tenente-coronel SS, que estava com mãos e pés algemados. Sem qualquer cerimônia ou apresentações, o agente do Mossad deu início ao interrogatório: – Quem é seu superior, ainda solto na Argentina? – É possível existirem alguns oficiais com patentes superiores a minha, na Argentina ou em algum outro lugar. Em Buenos Aires e Córdoba, era comum eu encontrar oficiais nazistas. Eu os via, eles me viam, mas não se estabelecia uma comunicação. Era cada um por si. O agente Kriger viu nele um homem frio o suficien - te para suportar pressão, e seguiu com sua estratégia. – Você ainda mantinha contato com Hitler na Argentina? Andreas não mudou sua expressão. E respondeu ironicamente: – Sim. Com Hitler, com Napoleão Bonaparte e com o imperador Júlio César. – Não brinque conosco. – São vocês brincando comigo. Querendo arrancar de mim algum indício sobre a tal lenda do führer ainda vivo. – Está bem, então vou mudar a linha da nossa conversa. Quero saber se você está disposto a falar sobre suas operações na SS. Andreas respondeu secamente: – Diante de um tribunal, eu direi tudo, inclusive a respeito de Hitler. No gabinete do primeiro-ministro de Israel, naquele mesmo dia, Har’el apresentou a exigência do nazista preso. Ele

concordava em falar, diante de um tribunal, sem citar publicamente as participações dos padres Ernesto e Lui, e ainda facilitaria a transferência dos bens ainda em seu nome. Moshe Sharett consultou Ben Gurion, então morando em um kibutz no deserto do Negev. Ambos concordavam, o nazista deveria ser julgado em Israel, muito embora a Alemanha Ocidental já tivesse manifestado publicamente o interesse na extradição de Spinger. Quanto aos padres, o governo israelense aceitava a exigência do nazista, até mesmo porque não seria interessante qualquer desgaste com o Vaticano. Em alguns dias, Andreas recebeu a visita do advogado israelense Itzack Kurtz. Ele havia concordado em fazer sua defesa. Kurtz seria pago pelo governo de Israel. O advogado foi bem claro: – É uma função do meu ofício, é minha obrigação cumprir. Minha linha é única. Não vou atenuar em nada as atrocidades nazistas contra a humanidade. Vou apenas alegar que você somente obedecia a ordens. Para Andreas não importava como seu advogado se portaria. O tribunal seria apenas dele. Nem os promotores nem a defesa, tampouco o juiz, ganhariam destaque. Era seu ato final, ninguém poderia ofuscá-lo. *** O prédio da Beit Hamishpath, Suprema Corte de Israel, em Jerusalém, estava com um forte esquema de segurança para o julgamento do tenente-coronel SS Spinger. O juiz Mosche Landau presidiria a sessão. Aquilo não despertara grande atenção da comunidade internacional. O réu não havia sido citado publicamente em qualquer um dos relatos dos Aliados ou mesmo de alguma vítima do Holocausto.

Para o governo de Israel e Simon Wiesenthal, aquele julgamento seria a oportunidade do mundo conhecer a história não contada da SS, e talvez se surpreender com uma nova versão sobre o destino de Adolf Hitler. A sessão foi aberta com o juiz Landau lendo as acusações. Discorreu sobre várias delas, desde os saques e roubos a propriedades até a participação direta na condução de extermínio de judeus, a chamada solução final. Quando o juiz, enfim, perguntou se ele se considera - va culpado, Andreas, por uma questão de estratégia e para prorrogar o tempo do julgamento, declarou-se inocente. O promotor-geral do Estado de Israel, Elias Stern, durante os quatro primeiros dias detalhou as acusações, e ouviu testemunhas, dentre elas judeus alemães e poloneses, vítimas de ações de saques com envolvimento pessoal de Andreas. *** Heinrich Sauber desembarcou em Paris no mesmo dia do início do julgamento de Andreas. Ele chegara em um voo da Pan Am, procedente de Nova York. Do aeroporto, alugou um carro e seguiu direto para Bern, na Suíça. No dia seguinte entrou no prédio central do banco Julius Baer, logo pela manhã, solicitando uma audiência com Julien Hannes Schmid. O recepcionista lhe comunicou que Schmid não fazia mais parte dos quadros do banco, então Sauber pediu para falar com alguém responsável pelas contas privativas. Ele foi atendido pelo diretor do banco, substituto de Schmid. Sauber foi objetivo: ele tinha as senhas para acessar os cofres em nome de Andreas Spinger. O diretor então

solicitou ao menos 24 horas para poder cuidar dos trâmites. Sauber agradeceu e se retirou para o hotel. Conforme o acordo do banco Julius Baer com o Mossad, qualquer pessoa tentando acessar as contas ou os cofres, ainda nos nomes de Andreas ou Lui, deveria ser discretamente mantida em espera o tempo suficien- te para os agentes israelenses tomarem as providências necessárias. Os agentes Dov Rubin e Elias Grois, estabelecidos em Paris, imediatamente se deslocaram até Berna. Estavam preparados para enfrentar dificuldades, pois sa- biam que Sauber era um oficial da SS acostumado com embates e, provavelmente, teria sido ele o assassino dos agentes do Mossad em Buenos Aires. A princípio planejaram entrar no quarto de Sauber, durante a madrugada, quando ele provavelmente estaria dormindo. Mas consideraram ser um grande risco. Precisariam, então, elaborar outro plano. Har’el o queria vivo. Na manhã seguinte, optaram pela abordagem clássica do Mossad. Sauber saiu do hotel logo cedo, caminhando pela cidade, enquanto esperava completar as 24 horas determinada pelo diretor do banco. Os agentes o seguiam discretamente. Dov seguia atrás dele, enquanto do outro lado da rua estava Elias. Sauber caminhava pelo bairro Matte, à beira do rio Aare, quando parou para observar seu alto volume de água. Não havia pessoas passando, então Dov encostou ao seu lado, com a mão por dentro do casaco, de onde lhe apontava a arma. – Her Sauber, não se mova. Estou te mirando e atrás de você tem outra arma apontada para você.

Sauber não reagiu. Em poucas horas estavam voando a caminho de Tel Aviv. *** Har’el teve uma reunião com o juiz e o promotor-geral. Era preciso adotar uma estratégia para conduzir o réu para, aos poucos, descrever as ações secretas de sua organização, dando o espaço que ele evidentemente estava buscando para contar suas vantagens. Conforme Andreas se sentisse mais seguro e a vaidade o envolvesse, criariam condições para ele falar sobre Hitler. Os nazistas tiveram grande preocupação em esconder a participação direta de Hitler na solução final para os judeus. Como os israelenses sabiam, Andreas manteve um serviço de inteligência monitorando toda a cúpula nazista, incluindo a SS. Portanto, não poderiam perder aquela oportunidade. E ainda mais importante, era a ocasião para saberem se Hitler ainda estaria vivo. Andreas estava diante do promotor-geral, e fez o juramento de falar a verdade, apenas a verdade. Stern perguntou se em algum momento o réu viu a possibilidade da Alemanha vencer a guerra. Ele falou em inglês: – Para responder a essa pergunta, precisamos falar em economia. A Alemanha, desde o início do nacionalsocialismo no poder, contava com uma economia modesta e dependente do petróleo importado. Hitler tinha como certo os Estados Unidos investindo na Grã-Bretanha e na França, a qualquer momento, para impedir a supremacia militar da Alemanha. Por isso ele resolveu antecipar a invasão da Polônia, contando com a não interferência dos Aliados e antes dos americanos começarem a investir. Foi uma jogada de risco. Como vimos, os Aliados não se omitiram, mesmo sem os Estados Unidos oficialmente entrando em guerra

contra a Alemanha. – O führer considerava Londres e Washington comandados por uma conspiração judaica, e para vencê-la seria necessário o Reich ter autonomia energética, acima de tudo. Por isso ele tomou a decisão de invadir a União Soviética, onde estava o maior potencial petrolífero. Com certeza, se os planos de Hitler tivessem dado certo, e a União Soviética tivesse caído, a guerra ganharia outra proporção. Porém, nós sabíamos da capacidade dos russos em suportar os avanços da Wehrmacht. Ele também recebia as informações dando conta do quanto seria difícil vencer os russos, e para ele ter insistido mesmo assim, é porque acreditava na proteção da providência divina. – Ainda assim, mesmo com as limitações econômicas, houve um momento, no início de 1943, em que o Terceiro Reich ocupava um terço da Europa e comandava a vida de metade dos europeus, indo do norte da Noruega até o deserto do Saara. A segunda pergunta foi propositadamente vaga. Se para ele os nazistas haviam cometido excessos durante a guerra: – Vamos imaginar se a SS não tivesse existido. Os atos cometidos pelos comandantes da Wehrmacht não teriam sido muito diferentes da ofensiva dos militares americanos, ingleses ou russos. Houve excesso de todos os lados. Lembro a vocês, os Estados Unidos criaram campos de concentração para manter os japoneses residentes na América presos, e vejo o bombardeio a Dresden ou a Hiroshima como massacres desnecessários. Além disso, não tenho dúvidas, os dois lados descumpriram, por muitas vezes, as convenções de guerra, quanto a prisioneiros ou mesmo nos combates. O juiz Mosche Landau não pretendia deixar espaços para ele utilizar o tribunal para qualquer tipo de teatro, mas conforme havia combinado com a promotoria, se fossem muito incisivos, o réu poderia deixar de falar, então se conteve. O réu prosseguiu.

– Porém, a SS existiu. Então o que fizemos não pode ser comparado aos outros lados nessa guerra. Não, ninguém jamais fez como nós fizemos em termos de atrocidades. Vocês anseiam por essa verdade, não é mesmo? Pelo ponto de vista de Hitler, a SS precisaria existir. Para dar forma à essência do nacional-socialismo. Para a Alemanha poder implantar um modelo de socialismo diferente do soviético, não dividindo a sociedade por classes. O Reich dividia a sociedade por raças. O promotor pediu para o réu descrever como a SS diferenciava-se do exército regular nazista. – A SS foi um complexo de atividades. Ela nasceu para proteger o führer e para combater uma divisão interna, a SA, perigosamente crescendo como grupo paramilitar, sem obediência a Hitler. Apesar disso, a organização foi ganhando corpo na medida em que se transformou em um comando de inteligência, e passou a exercer o controle de uma estrutura econômica. Nessa estrutura, era como se fosse uma caça ao tesouro. Houve desde a pilhagem pura e simples, não só de judeus, mas também de outras minorias ou populações dos territórios ocupados, até o controle de diversas empresas e atividades inteiras, tiradas dos seus donos originais. A SS controlava setores inteiros da economia do Reich, como a mineração, a siderurgia, os armamentos e muitos outros. – Com a SS ganhando importância na estrutura do Reich – Andreas prosseguiu– passou a atividades de controle da população, comandando os campos de concentração, a princípio servindo como prisão preventiva. Os campos passaram então, com a realocação da população do leste, a ser grandes recrutadores de mão de obra para a economia de guerra do Reich. Por fim, os cam- pos passaram a servir para a eliminação de populações inteiras, a chamada solução final. Antes dos campos de concentração utilizarem os métodos de extermínio em massa, como as câmaras de gás, também cabia à SS promover a eliminação dos judeus,

mas por um método considerado caro e demorado. A execução com um tiro na nuca, e os corpos jogados em grandes valas. Todo o plenário se mantinha quieto, surpresos com a sinceridade e a evidente falta de remorsos do réu. Ele continuou: – Essas atividades de extermínio ocorriam conforme a Wehrmacht avançava pelos territórios ocupados, porém era exercida pela Waffen-SS, criada justamente para participar das ações armadas. Na verdade tinha a preocupação principal de garantir os interesses da SS. Para mim, a função principal da Waffen-SS era abrir negócios. Com a eliminação das pessoas, seus pertences passavam a ser nossos. Por exemplo, quando se levavam os judeus para uma sessão de extermínio ou como queiram chamar, as mulheres demoravam mais, porque tinham os cabelos cortados, para serem usados nas fábricas de colchões, é claro da SS. Sua fala foi interrompida por Golda Meier, então ministra do Trabalho israelense, assistindo ao julgamento, como convidada: – Isso é ultrajante, você fala isso tudo como se fosse apenas um negócio. O juiz a advertiu. Golda Meier se calou para continuar ouvindo o tenente-coronel SS. – Nesses avanços, não tenham dúvidas, a própria Wehrmacht eventualmente participava de ações de extermínio, sob a orientação da Waffen-SS e os grupos também criados pela SS, os einsatzgruppen. Amaioria dos oficiais do exército regular alemão não concordava com o extermínio, como foi o caso de Rommel. Poucos tinham a coragem de se pronunciar porque passavam a ser considerados traidores. A sessão foi interrompida, para retornar no dia seguinte. ***

Os dois oficiais da SS estavam encarcerados no mes - mo prédio em Tel Aviv. O agente responsável por controlar os presos perguntou para Har’el se os nazistas poderiam ter contato entre si. A princípio o diretor do Mossad proibiu, principalmente porque não deveriam ter qualquer tipo de regalias. Depois, ele se lembrou do julgamento de Nuremberg, onde os nazistas presos mantinham um convívio por diversos momentos, como durante as refeições. Har’el autorizou para, a partir do dia seguinte, o encontro durante as refeições, sob a supervisão dos agentes. Andreas soube da presença de Sauber e ficou curio - so para descobrir em quais circunstâncias ele foi preso. Também lhe interessava notícias sobre o haras, mais nada. A convivência durante mais de vinte anos não os transformaram em amigos. Sauber era visto apenas como um cão de guarda, sem vida própria e sempre pronto para protegê-lo. Sua sombra durante todos esses anos. Na mesma noite, após seu primeiro depoimento, Andreas recebeu duas correspondências. Uma de Evelyn Schiffer, de Munique, e a outra de Victoria Maria, de Buenos Aires. Evelyn apenas mostrou o quanto estava feliz em saber que ele ainda vivia. No fundo ela sempre teve a esperança da queda do avião ser mesmo uma armação. Não o condenou pelo silêncio. Ela o compreendia. Victoria Maria, por sua vez, foi concisa. Ela não queria mais saber dele, e arranjaria outro pai para criar Armando. Andreas não se lembrava da última vez que chorou. Mas ao reviver os momentos com o filho, com Armando em seu colo, tão indefeso e brincalhão, o oficial da SS, frio e calculista, para quem a vida dos outros nunca valeu mais do

que uma aliança de ouro, não conteve as lágrimas, sentado solitário em sua cela. *** O segundo dia de depoimentos de Spinger criou grande expectativa em Wiesenthal, finalmente em Tel Aviv para acompanhar o julgamento. O caçador de nazistas viu se confirmarem todas as linhas de investigação sobre o tenente-co- ronel da SS e mantinha a esperança de uma grande revelação ainda surgir a partir dos depoimentos do nazista. O próprio Wiesenthal ouvira, alguns anos antes, o embaixador soviético na Áustria dizer que Stalin sempre fora o mais incrédulo sobre o suicídio de Hitler. Mas quando os peritos da KGB demonstraram os dados coletados sobre o cadáver encontrado em Berlim, ele se convenceu de que seu grande inimigo estava morto. No entanto, ninguém, nem mesmo os soviéticos tiveram qualquer evidência da existência de uma organização tão secreta e tão meticulosamente articulada quanto aquela comandada por Spinger. Em outras palavras, para Wiesenthal, tudo era possível. No tribunal, o promotor-geral abriu o dia de depoimentos: – Agora eu peço para o senhor nos falar qual foi sua participação efetiva no surgimento e no crescimento do Terceiro Reich. – Desde o início das atividades do Partido Nacional Socialista eu estive presente, como homem de confiança de Hitler. Fui infiltrado na SA para o führer ter conhecimento de todo o seu andamento e também tive a incumbência de manter um certo grau de desorganização em sua direção, o que contribuiu para seu desmantelamento. Por pouco a SA não

eliminou Hitler do poder, pois crescia muito, e não era totalmente fiel ao führer. Em paralelo, eu ajudei a pensar e organizar as bases da SS, devendo transformá-la de apenas um grupo de elite para proteção dos dirigentes do partido, em uma estrutura capaz de proteger todo o nacionalsocialismo. Todas as vezes, ao citar o nome de Hitler ou mencionar o führer, ele dirigia o olhar para a plateia, como se estivesse buscando sentir como aqueles judeus, agora em posição de dominação, reagiriam ao ouvir o nome daquele que tentou destruí-los. – A SS – continuou – nasceu para fazer tudo que pudesse ser feito para garantir o poder total ao führer. O genial Hitler pensaria na formatação do Reich de mil anos, e a SS faria os trabalhos de bastidores. Falo da SS original, a pensada por mim e pelo führer, aquela que existe, mas que as pessoas desconhecem. Até mesmo a direção da própria SS. Um dos promotores assistentes pediu permissão para uma pergunta. – Nos fale de algumas ações executadas pela SS ainda antes da chegada do Partido Nacional Socialista ao poder. – Posso lhe garantir, foram muitas. Como destaque cito o incêndio do Reichstag. Ele foi provocado por nós, e passou por várias fases, incluindo ameaças de morte ao pai do jovem, criminoso confesso. O promotor-chefe, então, procurando manter a estratégia inicial, interpelou: – Podemos ver muitas revelações importantes em seu depoimento. Principalmente a existência de uma nova SS dentro da própria SS. Não há dúvidas disso, assim como não temos mais dúvidas da fortuna dessa organização secreta. Estamos com muitas provas disso. Por favor, seria possível o senhor nos apresentar alguma prova das suas exposições? Andreas sentiu um calor percorrer o corpo. Ele estava entusiasmado com o poder, como novamente lhe era dado. O poder de revelar verdades.

– Muito bem. Posso apresentar algumas provas. Tenho um baú, que guarda muitas verdades. Vou começar por uma delas. A pedido de Himmler e do próprio führer, fui encarregado de sumir com as provas do conhecimento de Hitler sobre todas as fases do Holocausto. O tribunal entrou em alvoroço. O juiz pediu silêncio e indagou o réu. – Quando o senhor fala em baú, está falando do quê? – Ora meritíssimo, é como estou dizendo. Tenho um baú com todas as provas deste e de outros fatos relevantes sobre o Terceiro Reich. Tudo está guardado em um local bastante seguro. Acredito ter chegado a hora do mundo ficar sabendo. Wiesenthal estava tenso ao lado de Har’el. Ambos sabiam, o nazista não estava blefando, mas foram surpreendidos com o potencial das informações prestes a serem desvendadas. E ambos ficaram ainda mais tensos quando o pro- motorgeral demonstrou ter perdido o controle e estremeceu a relação com o depoente. – Quero deixar claro para o réu: ninguém aqui neste recinto, ou em todo o mundo, exceto os fanáticos nazistas, tem qualquer dúvida da participação de Hitler no Holocausto. Se o senhor estiver tentando usar este tribunal para fazer algum tipo de troca, algo como sua inocência pelas informações, eu o aconselho a esquecer. – Senhor promotor, pela sua arrogância, eu retiro a oferta de abrir as informações em minha posse. Em nenhum momento pedi para ser absolvido. Foi minha a decisão de falar. Ninguém me pressionou, nem o governo de Israel, nem mesmo os policiais ou agentes. Então o senhor prossiga com seu trabalho. A partir de agora apenas me defenderei. Andreas estava manipulando a todos. Ele sabia, os israelenses repreenderiam o promotor. Bastava esperar. O juiz Landau se preocupou. O réu parecia decidido. Não lembrava em nada um inconsequente, tampouco um mentiroso. As informações, mesmo ainda não estando todas

expostas, evidentemente seriam muito importantes para a memória do povo judeu e para a punição dos criminosos ainda soltos. Para ganhar algum tempo, ele suspendeu a sessão, para continuar no mesmo dia, após o almoço. A procuradoria-geral do Estado de Israel sempre fora independente do Poder Executivo e também do Judiciário. Em outras palavras, ninguém poderia interferir na linha adotada por Elias Stern. Ainda assim houve um acordo inicial, proposto pelo próprio Elias, de buscar extrair o máximo de informações do réu. Por isso o ministro da Justiça de Israel, a pedido de Har’el, encontrou-se com Stern e o juiz Landau, logo após a suspensão da sessão. Stern percebeu seu excesso. E antes mesmo de ouvir as argumentações se propôs a procurar o nazista, ainda naquela manhã. Em uma sala do próprio tribunal, Andreas estava almoçando, com os pés algemados e as mãos livres, acompanhado por um policial. Ele esperava a visita do próprio promotor-geral, apesar disso, quando Stern entrou, ele se fingiu surpreso. – Senhor Spinger, seria um grande prejuízo para a história da humanidade, se por um momento de arrogância de minha parte, como foi dito em seu depoimento, nós ficássemos privados de saber quais suas histórias e sua defesa. – Nós dois sabemos, serei enforcado. Eu não seria estúpido de propor algum acordo para me livrar do meu destino. Apenas tentei me acertar com o passado. – Entendo– prosseguiu Stern– por isso vim aqui para retomarmos os depoimentos. Você acha possível? – Concordo, mas desta vez tem uma condição. Quero produzir um livro com minha história sobre o Terceiro Reich. O governo de Israel se encarrega em contratar um escritor para transformar meu depoimento em livro. Eu supervisiono e minha execução deve esperar a publicação. O Gran Finale da minha história será com uma informação que vai estremecer a todos.

Stern procurou Har’el para se aconselhar. Naturalmente o diretor do Mossad não tinha autonomia a partir de então, mas o promotor sabia da ligação dele com o primeiroministro, a quem caberia tomar a decisão de aceitar a proposta do nazista. Em acordo com o juiz Landau a sessão esperou para a decisão do primeiro-ministro. Har’el, na companhia de Wiesenthal, foi recebido ainda na hora do almoço. Após ouvir a proposta de Andreas, Moshe Sharett fez suas considerações: – Vocês acreditam realmente nessa informação? E diz respeito a Hitler? Pois se sim, eu concordo com o livro. Porém, nós só aceitaremos publicá-lo se não fizer qualquer apologia ao nazismo. Ou seja, se prometerem a ele publicar, para lhe arrancarem a verdade, vamos cumprir, porém se esse criminoso nazista tentar fazer Israel financiar uma versão de alguma forma simpática ao nazismo, vocês não cumprirão a promessa. *** A sessão reiniciou pouco antes das três da tarde. O juiz Landau cuidou de anunciar que, a seu pedido, o réu continuaria com a linha anterior do depoimento, expondo fatos relevantes sobre a história da Segunda Guerra, em especial a respeito da “solução final”. O promotor, visivelmente constrangido, retomou o interrogatório: – O senhor nos disse possuir farto material mostrando novas versões sobre a Segunda Guerra. Antes de mais nada, como pretende nos dispor essas provas? Antes de começar a sessão, Stern comunicou a Andreas a decisão que Israel produziria e publicaria o livro. O alemão

exigiu conhecer o escritor pessoalmente. Como o promotor prometeu ainda para aquela noite, ele se decidiu por revelar o local onde escondera o baú, apenas depois do encontro. Na resposta em público, ele cuidou apenas em dizer: – Na sessão de amanhã informarei o local exato. Com isso, em dois dias o baú já estará em Israel. O promotor continuou: – Então, por gentileza, o senhor poderia nos elencar quais são as informações que teremos a partir desse baú? – Com prazer posso elencar, antes quero dizer, a informação ainda mais importante de todas não se encontra no baú. Ela será comprovada de outra forma. Andreas estava se divertindo com a situação. Ele podia sentir todas aquelas pessoas ali presentes, de alguma forma, sedentas pelo seu conhecimento. Ele não sentia medo pelo que viria depois. – Através do baú, apresentarei provas do envolvimento de Hitler com a solução final, também tenho uma lista de industriais poderosos que foram parceiros e negociaram com o Terceiro Reich e provas documentais dos negócios. Estejam certos, muitos nomes impressionarão a todos. Não são aqueles alemães já conhecidos. Alguns deles começaram a relação com a Alemanha, assim que o Partido Nacional Socialista assumiu o poder e continuaram mesmo após as chamadas atrocidades cometidas. Dentre eles há americanos, ingleses, franceses e outros insuspeitos. Mais uma vez ele deixou todo o tribunal surpreso. – O baú também guarda fórmulas desenvolvidas na Alemanha e testadas em campos de concentração com cobaias humanas, de novas armas químicas de destruição em massa. O impressionante é a parceria para o desenvolvimento dessas armas, com um país não tão neutro como o resto do mundo imagina. Esse país mantém relações diplomáticas com Israel. – Uma outra informação útil diz respeito a oficiais nazistas,

caçados pelo mundo. Bom, vocês já descobriram esquemas financeiros do Reich, via bancos suíços e do pró- prio Reichsbank. Também já descobriram o meu próprio esquema paralelo. Pois bem, havia outros esquemas paralelos. Eu os monitorava e o führer os tolerava, por serem relativamente pequenos. Eles também foram pensados como rota de fuga. Eichmann não tinha algo assim, mas Mengele sim. Com essa conexão, vocês podem chegar até ele. O juiz Landau encerrou a sessão. Todos aguardavam ansiosamente pelo dia seguinte. CAPÍTULO 25  EXPECTATIVA Andreas voltou eufórico para a cela. Nos limites do seu novo mundo, ele estava conseguindo o mesmo sucesso conquistado em sua carreira ao lado de Hitler. O mundo jamais iria esquecê-lo. Naquela noite ele refletia como a expectativa das pessoas se transforma, conforme o interesse próprio. O tribunal em Tel Avi era um exemplo disso. Durante suas primeiras falas, os presentes estavam ansiosos por perceber nele algum sintoma de remorso. Depois das revelações, ninguém mais esperava por isso. Para todos bastava extrair suas informações. Em sua mente surgiu um trecho de Dostoiévski: “Lembre-se, você não pode ser juiz de ninguém. Pois na terra não pode haver juiz de um criminoso, antes desse juiz compreender: Ele mesmo é tão criminoso quanto aquele que comparece na sua frente”. Por isso Andreas não julgava, por poucas vezes fez juízo de valor, e agiu por não gostar ou não aprovar a atitude de alguém. Uma das poucas exceções foi

com Rudolf Hess. De resto ele agiu porque havia algum interesse para aquilo, uma razão de ser. Agora ele seria julgado. E perguntava a si mesmo “Se eles soubessem que eu nunca concordei com a tese de raças inferiores, mas sim pessoas inferiores, me absolveriam?” A resposta ele tinha claramente: não, porque não importava. O agente da carceragem o chamou para jantar. Desta vez ele teria a companhia de Sauber. A ideia de conversar com um velho companheiro lhe agradava, e ele poderia perguntar, mesmo discretamente, como estava o haras. Sauber pareceu tranquilo, e de forma surpreendente o abraçou. – Obersturmbannführer, naquele dia, do seu último passeio no Valle de Calamuchita, quando era meia-noite, e não havia voltado, fui te procurar por todo vale, e ao não te encontrar, estive por todos os hotéis de Córdoba, buscando algum indício de quem estaria por trás do seu sumiço. – Imaginei que todos ficaram preocupados – Andreas disse mansamente– mas o “mastro está levantado”. A frase era um código. Estavam sendo monitorados naquele momento. – Eu sei – reagiu Sauber. – Você tem notícias de Armando e Victoria Maria? – Não muitas, estão vivendo bem com os pais dela. Não se preocupe. Ambos estavam sentados à mesa do jantar, sem algemas, um de cada lado. No extremo da ampla sala, além dos dois, apenas um guarda os vigiava, displicentemente. – E Wagner? Andreas sussurrou. – Nada mal. Todos estão bem. – Assim é melhor. Me diga Sauber, você costuma se lembrar dos velhos tempos? – Evito pensar no passado, ou no futuro. Por alguns segundos ficaram calados.

– Durante todos esses anos de nossa convivência nunca precisei pensar muito. Sempre fui um bom Rota de fuga - a históRia não contada da ss

executor– Sauber disse, enquanto se levantava e esticava o corpo, como se aproveitando os momentos fora da cela. – Sim, um bom executor. Sem você eu não teria conseguido tantas realizações, não é mesmo? Sauber não respondeu. Em um golpe rápido, ele imobilizou Andreas pelas costas, com ambos os braços pressionando seu pescoço contra a mesa. – Obersturmbannführer, com os cumprimentos de Wagner– disse Sauber no ouvido de Andreas. – Durante todo esse tempo – Andreas falava com dificuldade sem poder se movimentar– você esteve a serviço de Hitler. Como não percebi isso? – Não sei te responder. Como eu disse, nunca precisei pensar, seu traidor – concluiu Sauber. Após perceber, o guarda se moveu em direção à mesa, tirando a pistola do coldre. Mas antes mesmo de apontá-la, viu Sauber realizando um movimento brusco com os braços. No mesmo instante ele quebrou o pescoço de Andreas. O guarda, assustado, disparou contra a cabeça de Sauber, que caiu sem vida aos pés de Andreas, já morto sobre a mesa. *** Har’el foi pessoalmente ao hotel para comunicar Wiesenthal sobre o ocorrido. O caçador de nazistas estava se preparando para dormir. Recebeu o diretor do Mossad no quarto, em robe de chambre.

– Senhor Wiesenthal, lamento lhe dizer, mas nosso réu acabou de ser assassinado na sala de jantar do presídio, pelo seu velho companheiro da SS, preso recentemente na Suíça. Lamento mais ainda porque fui enganado. A prisão de Sauber foi um plano rudimentar para calar Spinger. – Meu bom amigo Har’el, não se puna. Foi pela mente por trás dessa queima de arquivo que a humanidade padeceu seus momentos mais insanos. O homem por trás dessa mente é quem precisamos punir. Índice NOTAS DO AUTOR 7 PREFÁCIO 9 CAFETERIA 15 MUNIQUE 19 CERVEJARIA 29 SCHUTZSTAFFEL 47 PODER 67 PILHAGEM 79 CONEXÃO 91 GUERRA 95 PROTEÇÃO 101 VIOLÊNCIA 109 SOBERBA 115 BARBAROSSA 121 WAFFEN-SS 129 SOLUÇÃO 135 EXPULSÃO 141 ESPANHOL 143 OURO 145 FUGA 149 INVASÃO 153 DEPOIS 159 ARGENTINA 169 CAÇADOS 177 CÓRDOBA 201 JULGAMENTO 215 EXPECTATIVA 235 Impresso em Chiado Print, Lisboa, Portugal